Adorno Fascismo Mal 2021

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Sinésio Ferraz Bueno

Um dos pensadores do século XX que mais se dedicou ao estudo crítico


do fascismo foi o filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno. Seu tra-
balho detalhou a vulnerabilidade emocional do cidadão comum a pre-
Adorno,
conceitos, apelos de adesão grupal e de fúria destrutiva dirigidos contra
as vítimas da perseguição fascista. Na realização de sua análise crítica,
Adorno empregou principalmente conceitos da psicanálise freudia-
o fascismo
e o mal
na e do materialismo dialético. Este livro apresenta o estudo crítico de
Adorno sobre o fascismo, mas também procura demonstrar que a des-
trutividade e crueldade do fascismo extrapolam a análise proposta por Supondo que você, leitor ou leitora, esteja
me lendo aqui, quero te dizer, te preparar e
Adorno, e por isso requerem o emprego do conceito de mal metafísico
te incentivar a ir em frente, pois ao final da
para sua compreensão mais ampla. Com esse objetivo, a primeira parte
leitura deste livro estarás como o homem
do trabalho expõe os elementos teóricos centrais utilizados por Adorno que tomou banho no rio de Heráclito: não
para entender e criticar o fascismo. Na segunda parte, são expostos os serás mais o mesmo. Terás mudado algu-
conceitos filosóficos mais importantes para se compreender o conceito Sinésio Ferraz Bueno mas de tuas convicções, talvez superado e
metafísico de mal e também suas implicações relacionadas com o campo problematizado algumas de tuas certezas e
da educação. edificado uma nova postura diante da exis-

Adorno, o fascismo e o mal


Sinésio Ferraz Bueno é doutor em filoso- tência humana. Portentosos, os argumen-
fia da educação e professor do departa- tos e o enredo teórico trazidos pelo meu
mento de filosofia da Unesp de Marília. amigo Sinésio, nos abrem a um novo hori-
Atua como pesquisador e orientador de zonte e nos conduzem a pensar, a sentir e a
mestrado e doutorado na pós-gradua- agir de uma maneira nova. Com o objetivo
ção em educação da Unesp. Desenvol- de continuar o diálogo entre a Teoria Crí-
ve projetos de pesquisa no campo da tica e a Educação, o texto tem a sensibili-
filosofia da educação, adotando as refe- dade e o compromisso de apresentar um
rências conceituais da Escola de Frank- novo olhar para a questão da crueldade
furt, em especial sob a ótica dos pensado- sem limites do nazifascismo. Defende que
res Theodor Adorno e Max Horkheimer. o processo de coisificação do espírito, ex-
plicado como fruto das contradições ma-
teriais da sociedade, não é suficiente para
entendermos a catástrofe humana que
Auschwitz significa. É preciso incorpo-
rar um olhar metafísico a partir do qual
a experiência do mal ali manifesta seja
conceitualmente melhor compreendida.

Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0798/2018
ALONSO BEZERRA DE CARVALHO | UNESP
Processo Nº 23038.000985/2018-89
ADORNO, O FASCISMO E O MAL

Sinésio Ferraz Bueno


ADORNO, O FASCISMO E O MAL

Sinésio Ferraz Bueno

Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – FFC
UNESP - campus de Marília

Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso

Conselho Editorial Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -


Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente) UNESP/Marília
Adrián Oscar Dongo Montoya Graziela Zambão Abdian
Célia Maria Giacheti Patrícia Unger Raphael Bataglia
Cláudia Regina Mosca Giroto Pedro Angelo Pagni
Marcelo Fernandes de Oliveira Rodrigo Pelloso Gelamo
Marcos Antonio Alves Maria do Rosário Longo Mortatti
Neusa Maria Dal Ri Jáima Pinheiro Oliveira
Renato Geraldi (Assessor Técnico) Eduardo José Manzini
Rosane Michelli de Castro Cláudia Regina Mosca Giroto

Auxílio Nº 0798/2018, Processo Nº 23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES

Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC

Bueno, Sinésio Ferraz.


B928a Adorno, o fascismo e o mal / Sinésio Ferraz Bueno. – Marília : Oficina Universitária ; São Paulo :
Cultura Acadêmica, 2021.
274 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-044-0 (Digital)
ISBN 978-65-5954-043-3 (Impresso)
DOI https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-044-0
1. Adorno, Theodor W. – 1903-1969. 2. Fascismo. 3. Educação. 4. Bem e mal. 5. Teoria crítica. I. Tí-
tulo.

CDD 370.1

Copyright © 2020, Faculdade de Filosofia e Ciências

Editora afiliada:

Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP


Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Agradecimentos
___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Meus agradecimentos mais profundos se dirigem a algumas pessoas


muito queridas, que acompanham há alguns anos minha coleção de muitos
percalços e alguns acertos na trajetória existencial e acadêmica.
Alceu e Genivaldo, meus irmãos, amigos queridos e Mestres de
Abaré Tyba. Viva!
Márcia, pelo amor e companhia carinhosa.
Menino de Queiroz, meu amigo de viagens inesquecíveis, parceiro
de academia e prosa.
Fabiola, companheira amiga, sensível e atenta.
Tiago Brentam, amigo e alquimista pós-moderno.
Jéssica Stefanuto, grande parceira acadêmica, que indicou leituras
fundamentais para esta Tese.
Antônio Sérgio e Solange, amizade forte e cumplicidade de três dé-
cadas!
Renata Bueno, minha filha, minha luz.
Ari Maia e Divino José da Silva, parceiros queridos de academia e
bar.
SUMÁRIO

Prefácio...................................................................................................9
Introdução............................................................................................13

PARTE 1 – O FASCISMO

Capítulo 1 | Para compreender o fascismo: indivíduo, ressentimento,


unheimlich, opinião patológica..............................................................23

Capítulo 2 | Personalidade autoritária e jitterbug.....................................45

Capítulo 3 | Vida falsa e coisificação.......................................................65

Capítulo 4 | Educação contra o fascismo................................................73

PARTE 2 – O MAL

Capítulo 5 | Ilusões do materialismo......................................................81

Capítulo 6 | A esfera metafísica............................................................107

Capítulo 7 | Frieza burguesa ou frieza humana?....................................127

Capítulo 8 | O mal..............................................................................151
Capítulo 9 | Adorno, o materialismo e o mal........................................165

Capítulo 10 | Educação contra o mal...................................................213

Considerações Finais...........................................................................231

Referências bibliográficas....................................................................267
Prefácio
_______________________________________________________________________________________________________________

O livro que temos em mãos agora é daquelas obras que chegam em


momentos cruciais e fronteiriços de uma experiência histórica tal qual a
humanidade vive atualmente. Pode parecer, então, que é um texto datado
e em breve estará superado. Muito pelo contrário, pela profundidade da
análise e pelo insistente cuidado que são tratados os conceitos, as ideias e
o diálogo com os autores estudados, o debate frutífero e a provocante con-
tribuição apenas estarão no seu começo.
Supondo que você, leitor ou leitora, esteja me lendo aqui, quero te
dizer, te preparar e te incentivar a ir em frente, pois ao final da leitura deste
livro estarás como o homem que tomou banho no rio de Heráclito: não
serás mais o mesmo. Terás mudado algumas de tuas convicções, talvez su-
perado e problematizado algumas de tuas certezas e edificado uma nova
postura diante da existência humana. Portentosos, os argumentos e o en-
redo teórico trazidos pelo meu amigo Sinésio, nos abrem a um novo hori-
zonte e nos conduzem a pensar, a sentir e a agir de uma maneira nova.
Com o objetivo de continuar o diálogo entre a Teoria Crítica e a
Educação, o texto tem a sensibilidade e o compromisso de apresentar um
novo olhar para a questão da crueldade sem limites do nazifascismo. De-
fende que o processo de coisificação do espírito, explicado como fruto das
contradições materiais da sociedade, não é suficiente para entendermos a
catástrofe humana que Auschwitz significa. É preciso incorporar um olhar
metafísico a partir do qual a experiência do mal ali manifesta seja concei-
tualmente melhor compreendida.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-044-0.p9-12

9
Para que Auschwitz não se repita, não basta apenas reelaborar o
passado com os instrumentos teóricos até agora adotados, mas ampliar e
aprofundá-los a ponto de favorecer o enfrentamento e a proposição de
uma educação que considere os processos emocionais, passionais e espiri-
tuais nela incluídos. O materialismo dialético, que produz o espírito a par-
tir da matéria, seria insuficiente para nos fazer compreender a vulnerabili-
dade emocional daqueles indivíduos que aderem facilmente a grupos e a
comportamentos estereotipados que segregam minorias étnicas, religiosas
e sociais.
No seu livro, Sinésio é contundente em considerar que o fenômeno
fascista deve ser estudado para além de sua circunscrição histórica e geopo-
lítica. Para tanto, apresenta em um primeiro momento os subsídios con-
ceituais que nos permitem compreender a análise crítica que Adorno faz
sobre o fascismo, sobretudo a partir de conceitos como indivíduo,
unheimlich, personalidade autoritária, jitterbug, vida falsa e coisificação,
encerrando com uma reflexão acerca das dificuldades estruturais de uma
educação voltada para a desbarbarização. Se desbarbarizar significa fomen-
tar processos formativos capazes de inverter as tendências regressivas, o que
poderia superar a peculiar defasagem entre o grau de autonomia do indi-
víduo e o desenvolvimento técnico da civilização, ao mesmo tempo nos
revela dificuldades intransponíveis, pois os potenciais formativos que nos
levariam a um estado de liberdade encontram-se travados por um estado
generalizado de semiformação. Como resultado, a civilização moderna e
tecnologicamente desenvolvida encontra-se tomada por impulsos destruti-
vos e anticivilizatórios de maneira perene. Portanto, a análise adorniana,
ao se fundamentar no aparato conceitual da dialética materialista ou a par-
tir das contradições materiais da sociedade burguesa, revela o seu limite.

10
Na sequência do livro, o que vemos é a busca de outras ressonâncias e pers-
pectivas que possam dar conta de compreender de maneira mais profunda
essa experiência trágica e catastrófica que a humanidade experimentou.
É nesse sentido que na segunda parte do texto são desenvolvidas
reflexões destinadas a expor não apenas as dificuldades teóricas da primazia
do materialismo para o estudo dos aspectos sombrios do fenômeno fascista,
mas tratar do tema do mal aí implícito a partir de outros referenciais, o que
inclui filósofos como Leibniz, Kant, Hegel, Berkeley, Freud e Lukács mais
próximos de nós, mas também Platão, Aristóteles e Santo Agostinho. Se
essa abordagem é, por si só, bastante original, as implicações que ela pode
causar no campo da educação me parecem ser a grande contribuição deste
livro. Em outras palavras, uma formação de professor e/ou prática docente
que queira se revestir de importância, ser respeitada, ser tratada com serie-
dade ou cumprir um papel fundamental na sociedade contemporânea não
podem ficar alheias ao debate trazido e promovido nesta obra.
O prazeroso na leitura do livro são as provocações e questionamen-
tos a ideias, posturas, crenças e atitudes que um certo viés intelectual bus-
cou sempre garantir, principalmente nos ambientes acadêmicos, muitas ve-
zes insensíveis às demandas e inquietações que nós temos no nosso cotidi-
ano. Uma educação após os campos de concentração de Auschwitz será
mais frutífera se levar em conta outros aspectos e outras dimensões que
mobilizam os humanos, e é nesse sentido que a questão do mal torna-se o
tema principal do debate. Na história da filosofia ocidental, a indagação
acerca das razões da existência do mal encontrou em Santo Agostinho sua
mais precisa enunciação, tornada referência para as mais importantes refle-
xões posteriores. Sem se ocupar de tratar a questão a partir de uma mera
visão dualista, ou seja, o mal de um lado e o bem do outro, o que o nosso
amigo Sinésio quer mostrar, a partir de uma exposição bastante cuidadosa
e inovadora, é o quanto a metafísica ainda tem muito a contribuir em

11
nossas vidas. Aliás, sem ela estaríamos perdidos e sem rumo, tendo em vista
que a matéria ou o materialismo seria limitado, reducionista e insuficiente
para nos fazer compreender ou nos aproximar de alguma maneira aos mis-
térios que nos envolvem.
Enfim, a sensação final que o texto nos desperta e nos move é a de
que o humano tem um potencial que ainda está por ser reconhecido e va-
lorizado na devida medida. Essa dimensão metafísico-espiritual, que Só-
crates denominava daimon, nos dá a esperança e a força para edificarmos
uma educação que pode fazer a diferença e, assim, fazer com que os mais
inocentes impulsos de espontaneidade e afabilidade possam se expressar e
ser uma resistência em meio ao convencionalismo, aos automatismos e à
frieza que danificam a vida e as relações entre os humanos. As consequên-
cias em uma sala de aula não são difíceis de imaginar. Boa leitura!

Marília, 11 de setembro de 2020.


Prof. Dr. Alonso Bezerra de Carvalho
Departamento de Didática e Programa de Pós-Graduação em Educação
Faculdade de Filosofia e Ciências
Universidade Estadual Paulista – UNESP
Campus de Marília

12
Introdução
________________________________________________________________________________________________________________________________________

Uma das mais importantes contribuições da Teoria Crítica para a


época atual consiste nos estudos de Theodor Adorno sobre a personalidade
autoritária e o fascismo. Por estar em grande medida fundamentada em
conceitos freudianos que permitem aferir o teor de vulnerabilidade emoci-
onal do cidadão comum de qualquer sociedade liberal à atmosfera agressiva
e grupal que caracteriza o fascismo, a análise de Adorno adquire traços de
notória originalidade e relevância. A qualidade da reflexão adorniana pode
ser evidenciada mediante a consideração de três aspectos que a diferenciam
de outros estudos que consideram o fenômeno fascista somente a partir da
circunscrição histórica e geopolítica.
Em primeiro lugar, nas reflexões sobre antisemitismo, na Dialética
do esclarecimento, Adorno caracteriza a ampla flexibilidade do fascismo no
tocante à origem das vítimas. De acordo com a conjuntura histórica ou
política, recortes religiosos, étnicos, sexuais ou nacionalistas podem ser em-
pregados para definir as faixas de uma determinada população que desem-
penha o papel do mal, da impureza, da inferioridade ou do pecado. Cató-
licos, protestantes, judeus, negros, imigrantes, prostitutas, gays, muçulma-
nos podem assumir, de acordo com as demandas emocional-mente proje-
tivas dos cidadãos “normais” de certa época ou sociedade, o perfil do ini-
migo ou do estranho “escolhido” como alvo de perseguição sistemática.
Em segundo lugar, paralelamente ao caráter fanático da adesão fascista a
determinada estereotipia justificadora do preconceito, e em contraste com
a invariável rigidez de ideias e atitudes próprias ao fenômeno, Adorno des-
cobriu algo absolutamente surpreendente. Apoiado em um conceito clí-
nico da psicanálise, ele descreveu o empobrecimento psicológico concer-
nente ao preconceito fascista como “falsidade” ou “impostura”. Para

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Adorno, a adesão à pauta fascista envolve um estado de autoengano volun-
tário mediante o qual o indivíduo encena para o olhar alheio, mas antes de
mais nada para si mesmo, um entusiasmo farsesco que lhe permite equili-
brar os impulsos agressivos dirigidos contra as vítimas com os potenciais
de autonomia próprios à modernidade, que não podem ser pura e simples-
mente suprimidos. Em outras palavras, todo fascista é “ator de seu próprio
entusiasmo”, o que implica em significativa fragilidade emocional desse
tipo de adesão a coletivos agressivos. Em terceiro lugar, o pensamento e
comportamento fascistas envolvem uma mobilização passional intensa que
é direcionada para a perpetuação de uma condição de notório assujeita-
mento perante as palavras de ordem e os estereótipos veiculados no interior
da formação grupal. Assumindo o teor aristotélico próprio ao campo da
ética, Adorno pressupõe que as paixões em si mesmas não são boas ou más,
pois dependem das disposições de caráter, que podem ou não assumir uma
consistência virtuosa. No texto Sobre música popular, em sua última frase,
Adorno resume de maneira primorosa a ambiguidade fundamental que
marca o comportamento fascista: “para ser transformado em um inseto o
homem precisa daquela energia que eventualmente poderia efetuar a sua
transformação em homem” (ADORNO, 1986, p. 146).
Quando são considerados esses três aspectos que assinalam a origi-
nalidade e relevância da análise crítica sobre o fascismo, tornam-se nítidas
as ressonâncias psicológicas do fenômeno, obviamente resultantes da im-
portância central do pensamento de Freud no trabalho elucidativo empre-
endido por Adorno. Por outro lado, embora as descobertas mais importan-
tes realizadas sobre o fascismo tenham como fundamento conceitual as ca-
tegorias da psicanálise, nosso filósofo é irredutivelmente crítico de uma
concepção autônoma da psique que não seja condicionada pelas mediações
materiais da sociedade. O trabalho teórico de integração entre freudismo e

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marxismo, que diferencia a Teoria Crítica como campo de estudos inter-
disciplinares, encontrou em Adorno um forte defensor da primazia do ma-
terial sobre o psíquico. O ideal freudiano de uma personalidade passível de
integração saudável graças à autonomia do ego sobre os impulsos pulsio-
nais do id e a severidade do superego, tornou-se obsoleto na era do capita-
lismo monopolista, em que as pulsões são diretamente mediadas pela tota-
lidade administrada. No conjunto de sua obra, Adorno não deixa nenhuma
dúvida de que as considerações psicológicas acerca do fascismo e da perso-
nalidade autoritária constituem-se como momentos explicativos subordi-
nados à primazia dos fatores objetivos e materiais. O mais expressivo tes-
temunho sobre a importância das mediações materiais na análise de fenô-
menos de natureza emocional é o emprego irrestrito por parte de Adorno
do conceito de reificação, originalmente proposto por György Lukács a
partir da mobilização do fetichismo da mercadoria como fator decisiva-
mente determinante da configuração da subjetividade.
De maneira consequente com a primazia dos fatores materiais so-
bre a subjetividade, os três aspectos descritos como elementos da maior
importância e originalidade para a compreensão do fascismo, podem ser
apresentados como fenômenos materialmente determinados e passíveis de
entendimento a partir da teoria da reificação. Em sua análise do antisemi-
tismo na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer apresentam a
mentalidade do ticket como conceito explicativo de certo tipo de ódio aos
judeus que é dissociado de elementos arcaicos e históricos ligados aos con-
flitos religiosos, e associado a demandas instrumentais de administração
das populações que são derivadas da hegemonia do trabalho abstrato no
capitalismo tardio. O antisemitismo no contexto nazifascista é prioritaria-
mente explicado a partir das fortes tendências de coisificação em uma so-
ciedade hegemonicamente perpassada pelo fetichismo técnico. O precon-

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ceito antisemita, o caráter intercambiável das vítimas, a impostura e a re-
dução das pessoas a centros de reflexos condicionados, são fenômenos re-
gressivos imputáveis às tendências de coisificação decisivamente mediadas
pela base material da sociedade. O lugar central do conceito de reificação
para a crítica social de Adorno é plenamente compatível com sua adver-
tência dirigida contra o idealismo hegeliano, na Dialética Negativa: “não
há nenhuma história universal que conduza do selvagem à humanidade,
mas certamente há uma que conduz da atiradeira à bomba atômica”
(ADORNO, 2009, p. 266).
Por outro lado, embora a análise crítica de Adorno sobre o fascismo
esteja fundamentada no materialismo dialético, perante a dimensão trágica
do nazifascismo, é cabível interrogar se tamanha crueldade pode ser expli-
cada atribuindo-se aos fatores materiais um papel central. Quando consi-
deramos os aspectos sinistros explicitados no nazifascismo, em especial
aqueles associados a Auschwitz, embora seja humanamente impossível
aquilatar a quantidade de sofrimento concentrada em tais acontecimentos
históricos, é possível assumir uma atitude filosoficamente indagativa pe-
rante a centralidade analítica do conceito de reificação. Se assumirmos que
o caráter intercambiável das vítimas do fascismo, o autoengano contido na
impostura e a redução voluntária de homens a seres atomizados no interior
de coletivos, são fenômenos explicativos adequados para a desgraça nazi-
fascista, é relevante nos perguntarmos se tamanha frieza de sentimentos
pode ser explicada primordialmente pela primazia das mediações materiais.
Em outras palavras, quando consideramos que a crueldade sem limites do
nazifascismo envolveu certa coisificação do espírito que não pode ser redu-
zida somente às contradições materiais da sociedade, a própria natureza do
objeto aponta para a necessidade de um olhar metafísico a partir do qual a
experiência do mal possa ser incorporada conceitualmente como elemento
explicativo da catástrofe humana que Auschwitz significa.

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No presente trabalho acadêmico, partiremos do pressuposto de que
a amplitude dos temas tratados pelos pensadores da Teoria Crítica requer
um olhar filosófico que não se restrinja aos parâmetros de análise do ma-
terialismo dialético. Essa exigência metodológica não se deve a uma recusa
pura e simples do materialismo dialético, justificando-se porque as próprias
conclusões da análise crítica realizada por Adorno sobre o fascismo exorbi-
tam as referências conceituais empregadas, apontando para ressonâncias
espirituais cuja compreensão requer mobilizar o conceito de mal metafísico.
As noções de “vida falsa” e “frieza burguesa”, reiteradamente presentes na
obra de Adorno, remetem a mentalidade egoísta, oportunista e indiferente
ao sofrimento alheio que caracteriza o fascismo, a um padrão de caráter
mediado pelo irracionalismo da sociedade burguesa tardia. Porém, ao
mesmo tempo em que Adorno concebe o ser humano como instância sig-
nificativamente vulnerável a comportamentos emocionalmente frios e apá-
ticos explicáveis pelas mediações materiais da sociedade, ainda assim o su-
jeito permanece existindo como instância histórica real e potencialmente
autônoma. A crítica materialista de Adorno dirige-se de maneira incisiva
às concepções substancialistas de individualidade que caracterizam o ho-
mem como sujeito monadológico dotado de profundidade psicológica, por
considerar que tais concepções não passam de aparência socialmente ne-
cessária da própria vida danificada. Mas se tentarmos extrair do pensa-
mento de Adorno um conceito de eu, encontraremos uma declaração in-
substancial a sentenciar que “toda imagem de ser humano é ideologia, ex-
ceto a negativa”. Mesmo assim, à complacência à vida fascista não são es-
tranhos os potenciais dialéticos de liberdade, pois “a hipnose socializada
cria em si mesma as forças que eliminarão o fantasma da regressão através
de controle remoto e que, no fim, despertarão aqueles que mantêm seus
olhos fechados embora não estejam mais dormindo”.

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Por mais que Adorno reafirme declarações explicitamente avessas a
concepções substancialistas de homem, tradicionalmente equivalentes a
“espírito” ou “alma”, por conterem forte teor ideológico de mistificação, ao
mesmo tempo, nosso filósofo não deixa de considerar o indivíduo como
núcleo impulsionador de resistência, apontando para potenciais que se tor-
nam excessivamente etéreos se desacompanhados de uma concepção subs-
tancialista de ser humano. Além disso, o próprio conceito de reificação,
que na verdade é o núcleo de toda a análise crítica realizada por Adorno
sobre o fascismo, apresenta sérias dificuldades quando confrontado com
uma circularidade viciosa que compromete qualquer tentativa de verifica-
ção empírica. Pois para atestar o caráter determinante das mediações ma-
teriais na danificação da subjetividade, é preciso recorrer a um conceito de
totalidade falsa que é inseparável do próprio caráter danificado que se al-
meja demonstrar. Diante dessa impossibilidade, embora a coisificação seja
um fenômeno evidente na sociedade burguesa analisada por Adorno, e de
maneira tragicamente mais intensa ainda no mundo em que vivemos, a
hipótese materialista de que a danificação da subjetividade possa ser expli-
cada pela primazia de fatores materiais, revela-se tão especulativa quanto
qualquer outra hipótese idealista da metafísica. Mesmo que para Adorno o
aparato conceitual da metafísica se revele obsoleto em virtude de sua inca-
pacidade de compreensão sobre o alcance da categoria materialista do tra-
balho como núcleo das determinações da vida espiritual no capitalismo
tardio, as conclusões mais relevantes de sua análise sobre o fascismo reme-
tem a qualidades espirituais que exorbitam os parâmetros de sua dialética
negativa.
A presente tese acadêmica se destina a demonstrar que a análise
crítica de Adorno sobre o fascismo, assim como suas reflexões sobre o im-
perativo ético de uma educação destinada a impedir que Auschwitz se repita,

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apontam para elementos que extrapolam os parâmetros materialistas ado-
tados, e que somente podem ser filosoficamente compreendidos mediante
o conceito metafísico de mal. Com esse objetivo, o trabalho está dividido
em duas partes. Na primeira parte são apresentados os subsídios conceitu-
ais para a compreensão da análise crítica de Adorno sobre o fascismo, en-
volvendo os conceitos de indivíduo, unheimlich, personalidade autoritária,
jitterbug, vida falsa e coisificação. A primeira parte é encerrada pela reflexão
sobre as dificuldades estruturais de uma educação voltada para a desbarba-
rização. Na segunda, parte são desenvolvidas reflexões destinadas a expor
as dificuldades teóricas da primazia do materialismo para o estudo dos as-
pectos sombrios do fenômeno denominado por Adorno como vida falsa.
A segunda parte é encerrada pela exposição do tema do mal a partir da
filosofia de Leibniz, Kant e Hegel, e suas implicações no campo da educa-
ção.

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________________________________________________________

PARTE 1

O FASCISMO
________________________________________________________
Capítulo 1

Para compreender o fascismo:


indivíduo, ressentimento, unheimlich, opinião patológica
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

A análise do fascismo empreendida pelo filósofo alemão Theodor


Adorno durante a fase norte-americana do Instituto de Pesquisas Sociais se
consubstanciou em duas modalidades específicas. A primeira delas diz res-
peito à análise das técnicas psicológicas mobilizadas pelos líderes fascistas
americanos nos anos 1930, ao passo que a segunda consistiu no estudo do
fascismo latente dos cidadãos comuns, realizada no contexto da pesquisa
sobre a personalidade autoritária, nos anos 1940 (CARONE, 2012). Em-
bora tenham existido diferenças relevantes entre um e outro momento da
pesquisa sobre o fascismo, o conjunto da análise de Adorno se destaca por
sua singularidade na análise do fenômeno quando comparada com os en-
foques mais comuns no campo da ciência política.
O caráter específico dos estudos de Adorno sobre o tema pode ser
compreendido quando, a uma consulta ao verbete “fascismo”, em impor-
tante dicionário de ciência política, após advertência acerca da complexi-
dade do objeto e da pluralidade de hipóteses interpretativas a ele dedicados,
o leitor é conduzido à exposição de duas grandes categorias teóricas (BOB-
BIO, 1998). A primeira delas restringe o fenômeno ao movimento político
que se tornou hegemônico na Itália após a primeira guerra mundial. A se-
gunda categoria considera o fascismo um fenômeno supranacional que as-
sumiu traços heterogêneos em diferentes contextos históricos e geográficos.
Nessa segunda categoria estão caracterizados quatro tipos específicos de

23
análise, dentre as quais, uma delas, a que identifica o fascismo com o fenô-
meno totalitário, constitui-se como a grade teórica mais próxima para con-
templar a análise de Adorno, pois aborda o tema pelo viés da atomização e
massificação dos indivíduos na sociedade de massas.
Por outro lado, o enfoque do fascismo como fenômeno totalitário,
ao pressupor a existência de um regime político institucionalizado e fun-
damentado em um partido político único, e em controles policiais basea-
dos no terror, distancia-se em grande medida do escopo analítico de
Adorno, que enfocou o fenômeno sob a perspectiva da psicologia grupal,
da vulnerabilidade emocional do cidadão comum a ideologias segregadoras,
e da compatibilidade do fascismo com regimes democrático-liberais. Tal
impossibilidade de classificação da análise de Adorno sobre o fascismo nas
categorias conceituais consagradas pela ciência política, deve-se sobretudo
ao emprego de conceitos centrais da psicanálise, que tornaram possível
compreender a vulnerabilidade emocional do cidadão comum a oposições
grupais ideologicamente sustentadas em visões estereotipadas e fortemente
segregadoras em relação a minorias étnicas, religiosas e sociais. Da concei-
tuação do fascismo como fenômeno político genérico nas sociedades de
massas do século XX, sobressaem aspectos altamente perturbadores sobre
o fenômeno, pois a ascensão progressiva da barbárie do fascismo não está
restrita a um determinado contexto social ou político, sendo inseparável
do progresso técnico e científico da modernidade. Sob o ponto de vista
filosófico, a análise de Adorno pode ser adequadamente compreendida
quando o fenômeno fascista é pensado a partir de seu antagonismo radical
em relação ao indivíduo.

24
Indivíduo

Na história da filosofia, o conceito de indivíduo em mais de uma


ocasião apresentou aspectos sugestivos de antagonismo frente à sociedade.
O termo "indivíduo" remete, em primeiro lugar, a algo que é indivisível e
caracterizado pela autosuficiência, singularidade e infinitude. A definição
cartesiana da individualidade como substância espiritual oposta e irredutí-
vel à extensão, inaugurou o pensamento moderno, imprimindo significa-
dos metafísicos ao “eu” ou “indivíduo”. Posteriormente, a metafísica mo-
nadológica de Leibniz acrescentou, à concepção cartesiana, traços de dife-
rença absoluta entre os átomos individuais, que, além disso, passam a ser
concebidos como entidades autárquicas e impermeáveis a causas externas.
Como resultado dessa perspectiva metafísica assumida pelos dois filósofos,
cada indivíduo seria uma entidade substancial indivisível, eterna e absolu-
tamente singular em sua diferença irredutível em relação aos outros indi-
víduos. Posteriormente, sob o idealismo de Hegel, a distinção entre “indi-
víduo particular” e “indivíduo universal” acrescentou ao conceito um di-
namismo peculiar próprio a um sistema filosófico que considera o fina-
lismo teleológico como processo desenvol-vido pelo Espírito na história,
diante do qual nenhuma categoria pode ser considerada simplesmente
dada, sem que tenha potencialidades a realizar. Na perspectiva de Hegel, o
indivíduo singular é forma incompleta do indivíduo universal, diferenci-
ando-se deste pelo estado de potência a realizar e por sua qualidade de en-
carnar, a cada momento histórico, certa modalidade de autoconsciência do
espírito.
O conceito metafísico de indivíduo, ao ser recepcionado pela in-
terpretação dialética de Adorno, é problematizado em suas qualidades ina-
tistas, sendo considerado uma categoria mediada e antagônica à totalidade

25
social. A acepção hegeliana apresenta os elementos substanciais da defini-
ção de indivíduo adotada por Adorno e Horkheimer, pois é por meio dela
que a história da filosofia concebeu o indivíduo como unidade social fun-
damental cujas determinações não podem ser pensadas de maneira inde-
pendente da sociedade. Considerando, com Hegel, que o ser-para-si do
singular representa um momento necessário, porém transitório a ser supe-
rado pelo movimento do Espírito, os filósofos observam que a indepen-
dência radical do indivíduo em relação à totalidade representa apenas uma
aparência (ADORNO; HORKHEIMER, 1988, p. 50, 52). Indivíduo e
sociedade somente podem ser pensados em uma relação de mediação recí-
proca, desde o início da modernidade perpassada por acentuadas contradi-
ções. Por um lado, a liberdade individual desenvolveu-se graças aos impe-
rativos materiais da nascente sociedade burguesa, que demandava a exis-
tência de pessoas independentes, capazes de inserção no mercado como
trabalhadores ou empresários. À revelia das relações de exploração na eco-
nomia liberal, mesmo sendo, primeiramente, produto necessário da eco-
nomia burguesa, o senso de independência no mercado gerou pessoas
emancipadas, e assim capazes de uma autodeterminação relativamente livre
de tutelas: “contra a vontade de seus senhores, a técnica transformou os
homens de crianças em pessoas” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
145). Por outro lado, a monopolização da economia, as tendências de con-
centração do capital por aparatos gigantescos de cartelização, desde as úl-
timas décadas do século XIX, decretaram o fim da era liberal da economia
burguesa, gerando, ao mesmo tempo, fortes tendências de declínio da au-
tonomia individual: “na era das grandes corporações e das guerras mundi-
ais, a mediação do processo social através das inúmeras mônadas mostra-
se retrógrada” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 189). Em sua me-

26
diação recíproca com as transformações da sociedade burguesa, a autono-
mia individual tornou-se obsoleta no mesmo contexto social de fortaleci-
mento do capitalismo monopolista.
A mais explícita mediação do indivíduo pela sociedade pode ser
constatada menos em termos filosóficos ou sociológicos do que pela análise
psicológica sobre a relação entre o átomo individual e a sociedade de massas.
Nesse sentido, o texto Psicologia de massas e análise do eu, escrito por Freud,
em 1921, pelo menos uma década antes do surgimento do nazi-fascismo,
foi considerado magistral por Adorno, devido a sua capacidade de anteci-
par em termos essencialmente psicológicos as tendências de liquidação da
individualidade e de ascensão do fascismo na sociedade de massas. No
texto, Freud incorporou a análise clássica de Gustave Le Bon sobre as ten-
dências regressivas que se abatem sobre um indivíduo assim que ele adere
como membro de um grupo organizado. Sob tal condição, os mecanismos
psicológicos de defesa, que em condições de isolamento individual garan-
tem o trato civilizado entre pessoas, são, em grande medida, anulados, per-
mitindo o afloramento da agressividade, da impulsividade e da servidão
voluntária ao líder, acompanhados pela redução da capacidade intelectual
e da tolerância a diferenças. Sob circunstâncias de organização grupal, as
mesmas pessoas que em condições isoladas comportam-se de maneira res-
peitosa e civilizada, convertem-se em membros de um rebanho, predispos-
tos à credulidade, à idolatria e sujeitas à rápida conversão de simples traços
de antipatia em ódio furioso. Freud resume com precisão os contornos cen-
trais da regressão da individualidade sob condições de organização grupal:

a fim de fazer um juízo correto dos princípios éticos do grupo, há que


levar em consideração o fato de que quando indivíduos se reúnem num
grupo, todas as suas inibições individuais caem e todos os instintos

27
cruéis, brutais e destrutivos, que neles jazem adormecidos, como relí-
quias de uma época primitiva, são despertados para encontrar gratifi-
cação livre (FREUD, 1976, p. 24).

A análise freudiana, em sua propriedade de clara exposição do for-


talecimento das inclinações regressivas do indivíduo sob condições grupais,
converteu-se em material fundamental na crítica de Adorno ao fascismo.
Considerando a premissa de Freud sobre a idealização coletiva realizada
pelos membros do grupo na figura do líder, Adorno apontou o teor de
gratificação emocional como principal fator explicativo da regressão cole-
tiva. Assim como na fase liberal da economia burguesa, a autonomia indi-
vidual foi uma consequência necessária das demandas de independência
requeridas pelo mercado, em sua fase monopolista, a mesma individuali-
dade tornou-se não somente obsoleta, mas também um impeditivo para a
acumulação do capital. Por outro lado, considerando que o senso de inde-
pendência gerado no interior de uma sociedade técnica e competitiva não
pode ser simplesmente revogado pelas mais recentes necessidades de repro-
dução do capital, Adorno pôs como questão central a ser respondida acerca
da mediação entre indivíduo e sociedade sob condições de ascensão da
mentalidade fascista, a seguinte interrogação: como é possível que “indiví-
duos, filhos de uma sociedade liberal, competitiva e individualista, condi-
cionados a se manterem como unidades independentes e autossustentáveis”
possam integrar-se passivamente a aglomerados fascistas? (ADORNO,
2015, p. 168).

Individualidade e liberalismo

O caráter desconcertante da ascensão da mentalidade fascista na


sociedade democrática norte-americana nos anos 1940, foi exposto com

28
notável clareza por Adorno mediante a interrogação sobre o problema cen-
tral examinado por Freud em sua análise da psicologia de massas. Acentu-
ando que os membros das massas da sociedade contemporânea são indiví-
duos independentes e competitivos, seria então preciso responder “por que
os seres humanos modernos retornam a padrões de comportamento que
contradizem flagrantemente seu próprio nível racional e o presente estágio
da civilização tecnológica esclarecida” (ADORNO, 2015, p. 159). Ao pro-
por o estudo do fascismo segundo um campo conceitual relacionado pri-
meiramente com os afetos subjetivos individuais e não com o controle ide-
ológico e político exercido pelo Estado ou pela classe dominante, Adorno
inverteu o sentido habitualmente seguido pela ciência política para o es-
tudo do fenômeno, que passou então a ser enfocado não apenas pelo viés
da manipulação ideológica e política, mas pela pesquisa das necessidades
emocionais de regressão dispersas entre os indivíduos atomizados das soci-
edades de massa. O aspecto decisivo do problema foi então definido con-
cisamente sob a seguinte fórmula: “não é suficiente apenas a velha explica-
ção de que os interessados controlam todos os meios da opinião pública,
pois as massas dificilmente seriam cativadas por falsas propagandas, toscas
e capciosas, se nelas mesmas não houvesse algo que correspondesse às men-
sagens de sacrifício e vida perigosa” (ADORNO, 2015, p. 71).
As inclinações subjetivas das massas, que caracterizam as sociedades
que testemunharam a disseminação do ódio fascista, estiveram conectadas
ao declínio da individualidade no capitalismo tardio. O processo histórico
explicativo da decadência da autonomia do indivíduo na sociedade bur-
guesa, é inseparável, de acordo com Adorno e Horkheimer, das transfor-
mações materiais ocorridas desde as últimas décadas do século XIX. Na
Dialética do esclarecimento, e em Eclipse da razão, Adorno e Horkheimer
repercutem a análise originalmente feita por Marcuse sobre as tendências

29
totalitárias intrínsecas ao próprio liberalismo econômico. No texto Com-
bate ao liberalismo na concepção totalitária de estado, Marcuse define como
fundamento do liberalismo histórico “a liberdade do sujeito econômico
individual em dispor da propriedade privada e a garantia jurídico estatal
dessa liberdade”, em detrimento dos ideais universalistas da Revolução
Francesa (MARCUSE, 1997, p. 52). A tese de Marcuse sobre a relação de
continuidade (e não de ruptura) entre os regimes políticos totalitários e o
liberalismo econômico, é mobilizada por Adorno e Horkheimer para ex-
plicar como foi possível que os potenciais de emancipação individual des-
sem lugar ao declínio da individualidade, tão logo o capitalismo liberal
fosse substituído pela supremacia dos monopólios econômicos. Para
Horkheimer, a supressão da base econômica da individualidade, a qual era
sustentada pela competição de pequenos empresários no mercado, ocasio-
nou a transformação das mônadas individuais em átomos sociais confor-
mados à condição de integrantes de coletividades. “Quanto mais o indiví-
duo é reforçado, mais cresce a força da sociedade, graças à relação de troca
em que o indivíduo se forma” (HORKHEIMER, 2015, p. 53).
As transformações ocorridas na base material da sociedade bur-
guesa, desde as últimas décadas do século XX, acarretaram implicações que
se estenderam à dissolução da estrutura familiar burguesa. À decadência da
figura do empreendedor individual e independente, correspondeu a debi-
lidade da autoridade paterna, fator decisivo no processo de declínio da au-
tonomia individual. Segundo Horkheimer, enquanto prevalecia a figura do
pai como agente econômico e educativo, era simultaneamente possível a
formação de espíritos livres e autônomos, capazes de responsabilizar-se pe-
los próprios fracassos, sem atribuí-los a causas externas. A dissolução da
autoridade paterna como núcleo educativo e formativo do indivíduo levou
à anulação do próprio modelo de identificação capaz de permitir para a

30
criança a elaboração de suas experiências de amor e ódio. Como conse-
quência do impedimento da superação consciente de tais eventos próprios
à infância, “a criança já não pode identificar-se totalmente com o pai, não
pode fazer a interiorização das exigências impostas pela família, que apesar
de seus aspectos repressivos, contribuía de uma forma decisiva para a for-
mação do indivíduo autônomo” (HORKHEIMER, 2015, p. 144).
Embora se possa imaginar que essa impossibilidade de identifica-
ção e posterior superação da autoridade paterna possa gerar personalidades
emancipadas dos tabus morais peculiares à família burguesa, para Horkhei-
mer, a incompletude da relação edípica acarreta, pelo contrário, certa in-
tensificação das necessidades emocionais de identificação. Como resultado
da decadência da autoridade paterna, a identificação reprimida tende a ser
escoada sob a forma da idealização de imagens substitutivas ainda mais
poderosas que o pai original, encarnadas por agremiações coletivas e seus
líderes. Com a transferência da autoridade paterna para lideranças coletivas,
a potencialidade de uma individualidade autônoma dá lugar à geração de
um ego frágil e vulnerável a identificações com líderes fascistas e à canali-
zação de pulsões agressivas sobre minorias sociais, étnicas ou religiosas.
“Hitler e a ditadura moderna são, de fato, o produto de uma sociedade em
que está a destruída a figura do pai” (HORKHEIMER, 2015, p. 145).
Marcuse, em sua análise das implicações de uma “sociedade sem pai”, des-
creve com perfeição os prejuízos desse tipo de regressão:

Liberado da autoridade do pai fraco, emancipado da família centrada


na criança, bem equipado com as representações e os fatos da vida tais
como transmitidos pelos mass media, o filho (a filha num grau menor
até agora) entra num mundo feito, com o qual é preciso se entender.
Verifica-se paradoxalmente que a liberdade que desfrutou na família,
de onde a autoridade havia largamente desaparecido, é mais um incon-
veniente que uma bênção: o ego, tendo-se desenvolvido sem muita luta,

31
aparece como uma entidade bastante fraca, pouco apropriada a tornar-
se um eu com os outros e contra eles, a opor uma resistência eficaz às
forças que impõem agora o princípio de realidade (MARCUSE, 1997,
p. 98).

Dialética da autonomia

Em suas reflexões educacionais, Adorno apresenta um ponto de


vista congruente com Horkheimer e Marcuse, analisando o caráter dialé-
tico da formação de uma personalidade autônoma. Esta pressupõe, nos
termos freudianos, um primeiro momento de identificação e apropriação
da autoridade, a ser superado por um segundo momento de confrontação
da figura paterna real com as idealizações próprias ao início da infância.
Horkheimer aborda idêntica dialética da autonomia apontando as duas
possibilidades que se abrem ao jovem diante da constatação da distância
entre o real e o ideal: ele poderá resistir ou se submeter. A resistência, ca-
minho que se apresenta como possível realização da individualidade autô-
noma, implica a recusa à reconciliação pragmática entre a esperança infan-
til na realização de um mundo justo e verdadeiro, com os irracionalismos
da realidade imediata. O indivíduo autônomo é aquele que não se con-
forma com uma simples projeção de suas dificuldades internas sobre o
mundo, mantendo-se fiel aos ideais representados pela autoridade paterna,
realizando uma confrontação permanente entre o real e o ideal. O homem
que se submete, por outro lado, embora pareça aceitar as irracionalidades
da existência, cultiva secretamente um cinismo conformista alimentado
por pulsões de morte reprimidas. A identificação emocional com as ima-
gens substitutivas da autoridade paterna – a raça, a pátria, o líder –, sua
aceitação do domínio do mais forte como norma eterna, encobrem pro-
fundas desavenças internas prontas a se voltar contra aqueles que, segundo

32
a conjuntura, possam representar a imagem de estranheza ou inferioridade.
Uma existência como essa, marcada pela incapacidade de oposição às ten-
dências sociais de estereotipia e agressividade grupal do fascismo, é aquela
que, segundo Horkheimer, é a escolhida pela maioria da população
(HORKHEIMER, 2015, p. 125-126).
O declínio da individualidade como núcleo de disseminação da
vulnerabilidade emocional ao fascismo é elemento central na análise reali-
zada por Adorno sobre as tendências regressivas no campo educativo. No
debate com Hellmut Becker, em Educação e emancipação, Adorno adota
como ponto de partida a atualidade do programa kantiano em prol da co-
ragem de fazer uso do próprio entendimento como perspectiva de esclare-
cimento. Respondendo à indagação de Becker sobre a oposição entre uma
individualidade autônoma e a autoridade, Adorno descreve o que podemos
denominar como dialética da individualidade, a partir de uma perspectiva
freudiana. O filósofo aponta o momento de internalização da autoridade
como sendo fundamental para o futuro processo de desenvolvimento de
uma personalidade autônoma. Nesse sentido, a autonomia requer, primei-
ramente, a apropriação, o conflito dialético com os parâmetros da autori-
dade e sua inadequação, e, posteriormente, a superação da autoridade,
como processo de constituição da personalidade autônoma: “penso que o
momento da autoridade seja pressuposto como um momento genético
pelo processo da emancipação” (ADORNO, 1995a, p. 177). Embora não
tenha como objetivo pura e simplesmente glorificar e conservar a imagem
da autoridade ao modo autoritário, Adorno evidencia sua importância fun-
damental como pressuposto para a emancipação. Essa reflexão não apenas
se coaduna, como já foi apontado, com análises análogas de Marcuse e de
Horkheimer, como também é coerente com os resultados da pesquisa em-
pírica sobre a personalidade autoritária realizada nos Estados Unidos nos
anos 1940.

33
Ressentimento e fascismo

Para a compreensão do declínio da individualidade como núcleo


de disseminação da vulnerabilidade emocional ao fascismo, é essencial con-
siderarmos a apreensão realizada por Adorno e Horkheimer do conceito de
ressentimento. Em sua acepção original, o termo foi introduzido nos estu-
dos filosóficos por Nietzsche, sendo mobilizado pelos dois filósofos sob
uma interpretação freudiana notadamente associada ao conceito de mal-
estar na civilização. Por esse motivo, o conceito de ressentimento terá seu
significado brevemente desenvolvido sob a ótica nietzschiana, e posterior-
mente analisado em seu papel central na compreensão da personalidade
autoritária.
Sob a perspectiva filosófica, o termo ressentimento foi largamente
empregado por Nietzsche para designar o ódio ou rancor típicos de uma
moral escrava voltada contra as qualidades superiores peculiares à moral
aristocrática. Enquanto a moral dos fortes ou senhores consagra virtudes
superiores como orgulho, generosidade e individualismo, a moral escrava,
própria a espíritos cativos, rumina vinganças imaginárias e cultiva enfer-
midades psicológicas caluniadoras da força, da vitalidade e do amor à vida.
O filósofo considera que duas das maiores realizações históricas do ressen-
timento foram o cristianismo – cujo elogio da compaixão traduziu-se em
ódio contra a nobreza e a aristocracia – e o socialismo – espécie de redenção
baseada no espírito de rebanho e no nivelamento do mundo à moral es-
crava. O emprego do conceito nietzschiano de ressentimento por Adorno,
desatrela-se das fortes críticas dirigidas por Nietzsche ao cristianismo e ao
socialismo, concentrando-se, conforme destacaremos à frente, na postura
reativa e hostil diante de um universo de valores culturais exterior, conce-
bido negativamente. Enquanto a moral aristocrática originalmente adota

34
uma postura afirmativa e orgulhosa de si mesma, a moral escrava é engen-
drada não por uma constelação autêntica de valores, mas pelo olhar acusa-
dor diante de uma esfera cultural alheia e externa, convertida em objeto de
desprezo: “esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário
dirigir-se para fora em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressenti-
mento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e
exterior, para poder agir em absoluto – sua ação no fundo é reação” (NI-
ETZSCHE, 2009, p. 16).
Conforme a adequada compreensão de Germán Cano, a análise de
Nietzsche sobre o ressentimento foi complementada por Adorno e
Horkheimer mediante categorias freudianas, sendo o fenômeno então
compreendido como “fúria que somente encontra seu objeto de forma des-
viada, sublimada contra os setores mais débeis da sociedade” (CANO,
2011, p. 123). O conceito freudiano vinculado ao ressentimento é o de
mal-estar na civilização, sentimento que atormenta cada homem sociali-
zado, e que expressa a desproporção entre os sacrifícios pulsionais realiza-
dos por cada um e as parcas recompensas recebidas da civilização. A cons-
tatação de que toda civilização é erigida graças à institucionalização da re-
núncia pulsional e da coerção ao trabalho, levou Freud a assinalar a pre-
sença de fortes tendências destrutivas, antissociais e anticulturais intrínse-
cas à vida civilizada e traduzidas pelo sentimento permanente de mal-estar
(FREUD, 1974). Adorno destaca a relevância do conceito freudiano, assi-
nalando que o mal-estar se manifesta como tendências subterrâneas de de-
sintegração social que tornam a própria civilização o alvo de inclinações de
violência e irracionalidade que são desviadas de seu foco original, que não
pode ser adequadamente compreendido pelas pessoas, e desviadas contra
populações marginais ou socialmente minoritárias ou enfraquecidas.

35
O unheimlich

O caráter projetivo da hostilidade contra populações socialmente


marginalizadas caracteriza a manifestação do ressentimento tipicamente
fascista sobre o unheimlich: “um esquema sempre confirmado na história
das perseguições é o de que a violência contra os fracos se dirige principal-
mente contra os que são considerados socialmente fracos e ao mesmo
tempo – seja isto verdade ou não – felizes” (ADORNO, 1995a, p. 122).
Em seu estudo sobre o unheimlich, Freud destacou a ambiguidade semân-
tica da expressão, que em língua portuguesa significa “estranho” ou “es-
trangeiro”, porém apresentando, em língua alemã, também o significado
de “familiar”. Em sua acepção original, portanto, unheimlich expressa es-
tranheza, mas, ao mesmo tempo, familiaridade, o que explica que na dinâ-
mica emocionalmente projetiva que caracteriza o preconceito fascista,
aqueles que são alvo de hostilidade representem, para seus agressores, es-
tranheza e também familiaridade. A natureza ambígua do fenômeno pro-
jetivo foi sintetizada pelos dois filósofos na Dialética do Esclarecimento: “o
que repele por sua estranheza é, na verdade, demasiado familiar”
(ADORNO;HORKHEIMER, 1985, p. 170). A ambivalência expressada
pelo conceito, esclarece de que maneira a mobilização de conteúdos repri-
midos do agressor conduz a uma relação segregadora e agressiva diante da
diferença em seus diversos registros, principalmente em termos étnicos, se-
xuais e sociais. A depreciação imaginária imposta sobre a vítima da perse-
guição fascista encobre uma representação perversa que atua como meca-
nismo de defesa do agressor perante seus próprios conteúdos inconscientes.
Sua incapacidade de compreensão e elaboração das próprias representações
pulsionais explica a necessidade recorrente de estigmatização da diferença.

36
Um segundo conceito freudiano de grande importância para a
compreensão da análise do fascismo por Adorno é o “narcisismo das pe-
quenas diferenças”, empregado pelo médico vienense para caracterizar as
fortes tendências de supervalorização da diferença entre comunidades ha-
bitantes de territórios contíguos. Esse conceito freudiano explica um fenô-
meno coletivo de projeção emocional mediante o qual torna-se possível a
criação de uma estrangeiridade negativa que permite o escoamento das
pulsões agressivas para o grupo escolhido e imaginariamente representado
como inimigo, permitindo a formação de laços de solidariedade e identifi-
cação coletiva entre os integrantes do grupo agressor. A irmandade fascista
não é, portanto, proporcionada por sentimentos genuínos de fraternidade
entre os camaradas do in-group, mas sim pela possibilidade de hostilização
do estrangeiro: “é sempre possível unir um considerável número de pessoas
no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receber as manifestações
de agressividade” (FREUD, 1974, p. 136). Sob inspiração freudiana,
Adorno caracteriza o fascismo como formação grupal fortemente ancorada
na estigmatização sistemática do unheimlich. Sua conscientização e possível
superação requer a conscientização racional, pelo sujeito agressor, do cará-
ter patologicamente projetivo que impede que ele reconheça seus próprios
conteúdos perversamente transferidos para a vítima. Para a superação da
depreciação do estranho ou diferente, é preciso muito mais que apenas uma
simples retificação da estereotipia negativa atribuída ao outro: “liberdade
seria não eleger entre preto e branco, mas sair dessa escolha pré-estabelecida”
(ADORNO, 1992, p. 128).

37
Opinião patológica

Ao caracterizarmos a mentalidade fascista como estigmatização sis-


temática daquele que é representado como estranho, estrangeiro, ou sim-
plesmente diferente, é cabível nos interrogarmos sobre a natureza desse
tipo de juízo tão fundamentando na estereotipia, assim como acerca do
que seria o seu oposto. No texto Opinião, loucura, sociedade, Adorno de-
senvolve de forma precisa as diferenças essenciais entre o que podemos de-
nominar como uma consciência verdadeira, aberta a experiências, e seu
oposto, uma opinião patológica. Em direção a tal objetivo, o primeiro ar-
gumento apresentado pelo filósofo consiste em desfazer o antagonismo
muito comum entre uma opinião pública, geralmente aceita positivamente
por supostamente retratar a mentalidade normal da maioria da população,
e opiniões doentias, baseadas em preconceitos e ideias conspiratórias ou
persecutórias. Considerando a premissa fundamental de que as contradi-
ções materiais da sociedade engendram predisposições subjetivas de vulne-
rabilidade ao fascismo, ele alerta para o fato de que opiniões patologica-
mente comprometidas originam-se do próprio estado de suposta normali-
dade social. Para esclarecer com maior precisão que tipo de juízo caracteriza
a opinião patológica, ao pressupormos a opinião em si mesma como uma
crença cuja relação com a verdade está temporariamente suspensa, pode-
mos diferenciar entre opiniões cotidianas inóquas e as opiniões patológicas
propriamente ditas. As primeiras podem ser facilmente afirmadas ou con-
testadas por informações objetivas (Adorno cita como exemplo a afirmação
de que o prédio da faculdade tem sete andares), ao passo que as segundas,
quase sempre associadas a preconceitos, são acompanhadas de forte inves-
timento emocional de natureza narcísica, sendo imunes a contestações ob-
jetivas. Nas palavras do filósofo, elas são alheias, ou simplesmente supri-
mem “a condicionalidade do juízo hipotético” (ADORNO, 1969, p. 139).

38
O caráter patológico associado a opiniões desse segundo tipo justifica-se
por seu teor marcadamente narcísico, seu caráter de acentuado apodera-
mento emocional de natureza narcísica, que transforma o que deveria ser
uma simples opinião em “elemento integrante da própria pessoa”, de modo
que opiniões contrárias sejam assimiladas como agressões pessoais
(ADORNO, 1969, p. 140). Adorno observa que uma pessoa ignorante,
para proteger-se do que ela interpreta ser uma agressão a seu narcisismo,
investe certo quantum emocional muitas vezes superior à sua própria capa-
cidade intelectual: “a inteligência empregada no mundo para proteger o
narcisismo das opiniões insensatas provavelmente seria a mesma necessária
para modificar o que se defende” (ADORNO, 1969, p. 140).
A relação entre juízos verdadeiros, racionalmente fundamentados,
e o âmbito da mera opinião, remete, contudo a uma contradição irredutí-
vel. Pois tanto um como outra, constituem-se em sua gênese como pensa-
mentos hipostasiados, vale dizer, como pressuposições que têm de ser acei-
tas como verdadeiras sem que se possa comprová-las em sua efetiva corres-
pondência com a realidade empírica. Adorno cita como exemplo a confi-
ança prévia que uma pessoa necessita depositar nos motoristas para atra-
vessar a rua sem ser atropelada. A simples autoconservação da espécie hu-
mana exige a formulação de juízos fundamentais que estão necessariamente
além da experiência cotidiana. Da mesma forma, juízos racionalmente fun-
damentados frequentemente contrariam informações factuais e dados es-
tatísticos, pelo simples motivo de que pensar é ir além da experiência sen-
sível e cotidiana. Em outras palavras, “todo pensar é um exagero, pois todo
pensamento que vale a pena aponta para além dos fatos que o justificam.
Na diferença entre pensamento e solução se encontra tanto o potencial da
verdade quanto o da loucura” (ADORNO, 1969, p. 141). Se juízos verda-
deiros e meras opiniões são mutuamente animados pela hipostasia da ex-
periência imediata, daí decorre que a diferença entre a verdade e a opinião

39
doentia depende da capacidade do julgamento de se guiar pelos potenciais
de liberdade que são intrínsecos a todo pensamento que é válido em si
mesmo.
As opiniões patológicas, peculiares à mentalidade estereotipada e
preconceituosa que caracteriza o fascismo, em sua atrofia da capacidade
cognitiva de diferenciar as qualidades essenciais de um objeto à luz dos
potenciais de liberdade próprios à razão, avizinham-se da modalidade po-
sitivista de conhecimento. O olhar exclusivamente técnico sobre a reali-
dade, que se contenta com a simples mobilização dos mecanismos intelec-
tuais, sem que a estes seja inerente a atividade de confrontação dos dados
empíricos com os potenciais de liberdade, corresponde ao exercício de uma
racionalidade subjetiva, que se restringe ao tratamento instrumental e coi-
sificado da realidade. Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkhei-
mer sintetizaram, sob fórmula breve e precisa, o comprometimento do in-
telecto com a obsessão manipuladora de homens e coisas e sua atribuição
de independência à técnica em si mesma, desacompanhada de reflexões
éticas sobre desejáveis horizontes humanitários para os fins. A ciência que
se desenvolve nos moldes positivistas, caracterizada pelo domínio patriarcal
da natureza, pela produtividade cega e pela ausência de autorreflexão, é tão
patologicamente comprometida, quanto a mentalidade fascista em suas
opiniões doentias. Em vez do enfrentamento intelectualmente responsável
da distância entre as coisas e seus conceitos, opiniões patológicas e conhe-
cimentos técnicos limitam-se ao exercício cego e patologicamente compro-
metido da faculdade racional.

40
Assim como, hoje em dia, os projetos científicos práticos e fecundos
requerem uma capacidade intacta de definição, a capacidade de imobi-
lizar o pensamento num ponto determinado pelas necessidades da so-
ciedade, de delimitar um campo a ser investigado em seus menores de-
talhes sem que o investigador o transcenda, assim também o paranoico
não consegue deixar de transgredir um complexo de interesses deter-
minados por seu destino psicológico. Seu discernimento consome-se
no círculo traçado pela ideia fixa, assim como o engenho da humani-
dade se liquida a si mesmo na órbita da civilização técnica. A paranoia
é a sombra do conhecimento. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
182).

Dialética da consciência

Diante da correspondência entre a atividade intelectiva que é cega


às mediações sociais, e da opinião patológica que é incapaz de elaborar seus
condicionamentos narcísicos, existe o corretivo da atividade responsável do
pensamento. Para superar a mentalidade positivista e a simples opinião, ao
pensamento não basta, contudo, meramente adotar uma postura crítica
exterior. Um posicionamento crítico, porém exterior, corresponderia, no
caso da mentalidade positivista, a uma atitude irracionalista de pura opo-
sição a fatos e dados reais, ao passo que a crítica a uma determinada opinião,
corresponderia, pura e simplesmente, a apresentar um argumento contrá-
rio, eventualmente tão estereotipado e comprometido quanto o ponto de
vista que se pretende refutar. Seja diante de projetos científicos cujos auto-
res se mostram incapazes de autorreflexão, seja perante opiniões patológi-
cas, o critério de responsabilidade do pensamento reside em sua capacidade
de “opor-se ao momento da opinião dentro de si mesmo” (ADORNO,
1969, p. 159). O olhar exclusivamente técnico sobre a realidade, que se
contenta com a simples mobilização dos mecanismos intelectuais sem que

41
a estes seja inerente a atividade de confrontação dos dados empíricos com
os potenciais de liberdade, corresponde ao exercício de uma racionalidade
subjetiva, que se restringe ao tratamento instrumental e coisificado da rea-
lidade. Da mesma que forma que, diante da ciência positivista, não é sufi-
ciente refugiar-se em tentativas escapistas e irracionais de ressacralização do
mundo, também perante opiniões preconceituosas não basta uma simples
estereotipia positiva supostamente reabilitadora das vítimas. Diante de am-
bos, o pensamento deve compreender o quanto as mediações sociais lhe
são necessárias, porém exteriores, e, portanto, superáveis (ADORNO,
1969, p. 160).
Assim como, tanto a verdade, quanto seu oposto, contêm irreduti-
velmente pressupostos que contrariam a realidade empírica, o critério que
diferencia a ambos reside na capacidade de ir além dos fatos, animada por
potenciais de liberdade. No aforismo A três passos de distância, Adorno ca-
racteriza como “fugacidade” a qualidade do pensamento de referir-se a fa-
tos e dados empíricos, mas, ao mesmo tempo, preservar certa distância que
é justamente sua garantia de autonomia. O apego obsessivo da mentalidade
positivista à neutralidade dos fatos e dados empíricos, não é apenas revela-
dor de falta de espírito, como também do comprometimento da atividade
cognitiva. Para expressar a verdade da vida empírica, é necessário certo
afastamento do peso dos fatos, para que estes possam ser compreendidos à
luz dos potenciais de liberdade historicamente construídos pelo movi-
mento do Espírito. Ao pensamento, “é essencial um elemento de exagero,
que o impele para além das coisas e o faz desembaraçar-se do peso do fac-
tual, graças ao que, em vez de apenas reproduzir o ser, consuma de maneira
rigorosa e livre a determinação deste último” (ADORNO, 1992, p. 110).
A realização da liberdade exige que o pensamento seja capaz não somente
de realizar o momento de identidade conceitual, que expressa as qualidades
empíricas do objeto, como também de confrontar as referidas qualidades

42
com os potenciais de liberdade que lhe são intrínsecos. É somente pela
superação do caráter abstrato da realidade empírica, por meio de uma re-
lação de não-identidade entre o objeto e seu conceito, que o pensamento
torna-se capaz de expressar o que é verdadeiro nos fatos e dados reais.

é apenas na distância em relação à vida que se desenvolve a vida do


pensamento que realmente atinge a vida empírica. Enquanto o pensa-
mento se refere aos fatos e se move na crítica a eles (...), ele exprime
com exatidão o que é, pelo fato mesmo de que o que é nunca é intei-
ramente tal qual o pensamento o exprime (ADORNO, 1992, p. 110).

A relação de não-identidade entre o pensamento e o mundo de


objetos, é evocada neste aforismo de Minima Moralia e seria plenamente
desenvolvida na Dialética Negativa, obra madura por excelência do pensa-
mento de Adorno. Nos diversos fragmentos que compõem a obra, o filó-
sofo discorre sobre o imperativo de priorização do momento negativo da
dialética, como forma de potencialização da autorreflexão do pensamento
em relação a seus momentos de síntese totalitária. A dialética negativa con-
siste na suspensão do momento de síntese dialética com o objetivo de man-
ter um estado de não-identidade entre as coisas e seus conceitos. As ideias
são então concebidas sobretudo como “signos negativos” que suspendem a
síntese conceitual, apontando para a distância irredutível entre o objeto e
a universalidade conceitual: “a não-verdade de toda identidade obtida é a
figura invertida da verdade; (...) o singular é mais e menos do que a sua
determinação universal” (ADORNO, 2009, p. 131-132). A dialética ne-
gativa apresenta os elementos mais consistentes do pensamento filosófico
como oposição à síntese totalitária do positivismo, na medida em que, em
oposição radical à alegada neutralidade aos fatos e dados empíricos, a dia-
lética declara-se em posição de assumida parcialidade aos potenciais de li-
berdade do objeto. Em sua fundamentação racional, o juízo verdadeiro

43
apresenta-se substancialmente comprometido com a liberdade, denunci-
ando a diferença entre a verdade do objeto e o tipo de exatidão propagada
pelo positivismo.
No fragmento Autorreflexão do pensamento, a oposição entre a opi-
nião patológica e o conhecimento positivista, por um lado, e o juízo raci-
onalmente fundamentado, por outro lado, é apresentada com notável cla-
reza. Essa diferença transparece como antagonismo entre o pensamento
tradicional, que se limita ao horizonte da identidade entre objetos e con-
ceitos universais, e a dialética negativa, que ao adotar a não-identidade
como seu horizonte, permanece aberta à transformação qualitativa do ob-
jeto. A fidelidade do pensamento aos potenciais de liberdade do objeto
somente se concretiza por meio da não-identidade entre este e seu conceito,
pelo fato de que a simples celebração de alguém como “sujeito livre” im-
plica já o rebaixamento do conceito, uma vez que “o conceito de liberdade
fica aquém de si mesmo no momento em que é aplicado empiricamente”
(ADORNO, 2009, p. 131). A confrontação do objeto com o telos da li-
berdade expõe o irredutível estado de contradição consigo mesmo, justifi-
cando a não-identidade como o único horizonte à altura dos potenciais de
liberdade. A contradição entre a configuração empírica do objeto, e a livre
realização de suas potencialidades, é indício das ideias como signos negati-
vos, pois “a não-verdade de toda identidade obtida é a figura invertida da
verdade” (ADORNO, 2009, p. 131). A autorreflexão, como antídoto ao
positivismo e à opinião patológica, requer a compreensão de que toda afir-
mação da liberdade como qualidade empiricamente realizada é falsa no
próprio momento de enunciação. Em razão disso, na “contradição entre o
conceito de liberdade e sua realização também permanece a insuficiência
do conceito; o potencial de liberdade exige uma crítica àquilo que sua for-
malização obrigatória fez dele” (ADORNO, 2009, p. 132).

44
Capítulo 2

Personalidade autoritária e jitterbug


______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Para Adorno, o ressentimento peculiar ao fascismo representa uma


forma histórica de moral escrava que é inseparável de certo tipo de subje-
tividade resultante das condições materiais de uma sociedade reificada, ri-
gidamente burocratizada e ameaçadora. A personalidade autoritária é um
conceito bastante amplo sob o qual os investigadores do Instituto de Pes-
quisas Sociais sintetizaram comportamentos potencialmente fascistas no
contexto da sociedade norte-americana nos anos 1940. Na apresentação
do livro The autoritharian personality, Horkheimer caracteriza esse tipo de
subjetividade como uma espécie antropológica de tipo humano autoritário,
pretensamente superior ao fanático pré-moderno, porém igualmente sus-
cetível a pensamentos e comportamentos irracionais. Trata-se de um “ser
ilustrado e supersticioso, orgulhoso de seu individualismo e constante-
mente temeroso de ser diferente dos demais, cioso de sua independência e
passível de submeter-se ao poder e à autoridade” (ADORNO et. al., 1965,
p. 19).
A persistência de uma mentalidade suscetível ao irracionalismo em
contextos técnicos e desencantados que caracterizam a sociedade burguesa
moderna, é o desafio teórico que a pesquisa interdisciplinar empreendida
pelos frankfurtianos procurou elucidar. A articulação entre ressentimento
e mal-estar na civilização, é suficientemente clara quando se considera a
tese geral que motivou a pesquisa, segundo a qual “a hostilidade (em sua
maior parte inconsciente) emanada das frustrações e repressões e desviada

45
na vida social de seu verdadeiro objeto, necessita de um objeto substituto
que lhe sirva para adquirir traços de realidade e assim prevenir manifesta-
ções mais radicais de bloqueio das relações do sujeito com a realidade, por
exemplo, uma psicose” (ADORNO, et. al., 1964, p. 571). No contexto
específico da realização da pesquisa, que envolveu questionários, entrevis-
tas clínicas e testes projetivos de avaliação da subjetividade, o antissemi-
tismo e o racismo norte-americano foram escolhidos como temas agluti-
nadores do preconceito fascista. Não obstante, considerando o caráter in-
tercambiável do fascismo, explicitado por Adorno e Horkheimer em sua
Dialética do Esclarecimento, na presente análise, estaremos relevando a va-
lidade dos pressupostos e conclusões da análise sobre a personalidade au-
toritária para outros contextos sociais e históricos que envolvam a presença
ostensiva de formações grupais e mentalidades de natureza fascista. Antes
de abordarmos mais diretamente a relação da personalidade autoritária
com o fascismo, e os demais temas aqui desenvolvidos, será relevante uma
apresentação geral do significado da pesquisa realizada pelo Instituto de Pes-
quisas Sociais.
Em termos metodológicos, a pesquisa dirigiu-se a diferentes setores
da população norte-americana por meio de variados instrumentos como
questionários factuais e opinativos, testes psicológicos projetivos e entre-
vistas clínicas. Por meio da quantificação das informações, foram elabora-
das quatro escalas temáticas direcionadas para uma compreensão do auto-
ritarismo em seu nível especificamente opinativo: a escala AS (destinada a
aferir o grau de antissemitismo), a escala E (destinada ao etnocentrismo) e
a escala PEC (destinada a opiniões gerais sobre a organização econômica e
social). A quarta escala, denominada F (direcionada a aferir inclinações fas-
cistas), diferenciou-se das anteriores por dirigir-se à estrutura profunda da
personalidade, com o objetivo de conhecer o potencial fascista no campo
emocional, e não apenas no que se refere às opiniões manifestas dos sujeitos

46
pesquisados. O objetivo principal da Escala F consistiu em traduzir em
termos quantitativos a síndrome F, vale dizer, um conjunto de inclinações
emocionais e comportamentais diretamente relacionadas a estruturas la-
tentes da personalidade e associadas com a adesão a temas e ideologias fas-
cistas. Os critérios adotados para a distribuição quantitativa dos sujeitos na
Escala F (de acordo com os quais a uma baixa pontuação corresponderiam
pessoas liberais, e a uma alta pontuação, corresponderiam pessoas com per-
sonalidade autoritária) foram precisamente sintetizados por Sérgio Paulo
Rouanet: “convencionalismo, submissão autoritária, anti-introspecção, su-
perstição e estereotipia, obsessão com o poder, destrutividade e cinismo,
projetividade e atitude obsessiva com relação ao sexo” (ROUANET, 1986,
p. 172).
O caráter metodologicamente diferenciado da Escala F em relação
às demais, ou seja, sua propriedade de expressar a vulnerabilidade emocio-
nal e latente ao fascismo, ensejou o aspecto de maior relevância da pesquisa
no que diz respeito ao conhecimento do fascismo. Entre a Escala F e as
Escalas AS e E, verificou-se significativa correlação estatística, significando
que pessoas com baixa vulnerabilidade emocional ao fascismo apresenta-
ram pontos de vista fracamente inclinados ao antisemitismo e ao etnocen-
trismo, enquanto pessoas com elevada pontuação na Escala F, eram tam-
bém fortemente simpáticas a opiniões antisemitas e dotadas de teor et-
nocêntrico.
Por outro lado, não se verificou idêntica correspondência entre a
Escala F e a Escala PEC, voltada para opiniões de natureza ideológica sobre
a organização social. Isso significa que entre pessoas com alta pontuação na
Escala F, foram encontrados perfis opinativos de direita, conservadores e
favoráveis à manutenção do statu quo capitalista (defensores incondi-cio-
nais da propriedade privada, simpáticos à meritocracia, ao liberalismo eco-

47
nômico e aos valores do american way of life), mas também perfis opinati-
vos de esquerda, liberais e críticos do statu quo (simpatizantes de ideologias
socialistas, críticos da meritocracia e do american way of life e favoráveis ao
controle estatal da economia). A ausência de correspondência direta entre
a Escala F e a Escala PEC levou os pesquisadores à criação de duas catego-
rias distintas para expressar a diferença entre as duas possibilidades de ade-
são ideológica comportadas pela Escala PEC: os “conservadores genuínos”
e os “pseudo conservadores”. Os primeiros poderiam ser também denomi-
nados como uma “direita conservadora”, pois expressam opiniões simpati-
zantes com a tradição norte-americana e com o funcionamento das insti-
tuições burguesas, almejando de maneira sincera o desejo de conservação
do statu quo, porém, ao mesmo tempo, são pouco inclinados a mentalida-
des preconceituosas e baixamente pontuados nos itens já citados revelado-
res de suscetibilidade fascista (agressividade, obsessão etc.). Já os pseu-
doconservadores, que traduzem um perfil de direita fascista, correspondem
de maneira mais fiel ao perfil geral de personalidade associado ao fascismo
pela ciência política. Sua simpatia manifesta pelas tradições conservadoras
encobre desejos destrutivos latentes, revelando grande vulnerabilidade
emocional a oposições grupais caracterizadas pela estereotipia e pelo pre-
conceito:

Os pseudoconservadores são aqueles que aceitando, ao nível de ideolo-


gia explícita, os valores do statu quo, que incluem, no caso da tradição
americana, a igualdade de oportunidades, a liberdade política, o laissez-
faire econômico, se caracterizam, ao nível da personalidade, pelas ten-
dências associadas à síndrome fascista – impulsos destrutivos e violen-
tamente anárquicos – dirigidos, não à conservação do statu quo, mas à
sua dissolução irracional, pela força bruta, com o único objetivo de as-
segurar o poder pelo poder (ROUANET, 1986, p. 173).

48
Da mesma forma, entre pessoas com perfil liberal e de esquerda, de
acordo com a Escala PEC, igualmente foram encontrados sujeitos com
baixa e alta pontuação na Escala F. Os primeiros seriam “liberais genuínos”,
que analogamente podemos denominar como homens genuinamente de
esquerda, pois apresentaram um perfil opinativo voltado para críticas à tra-
dição americana e ao american way of life, sendo emocionalmente não in-
clinados à pauta autoritária, agressiva e preconceituosa da Escala F. Os se-
gundos seriam “pseudoliberais”, configurando uma esquerda autoritária e
fascista, pois embora tenham apresentado ideias manifestas contrárias ao
status quo, estas se mostram compatíveis com uma estrutura de personali-
dade sadomasoquista, agressiva e preconceituosa. Analogamente aos pseu-
doconservadores, os pseudoliberais aceitam, no nível manifesto das opini-
ões políticas, uma ideologia crítica em relação à estrutura capitalista e às
instituições burguesas, porém revelam-se, no nível das emoções latentes,
fortes inclinações a oposições binárias entre grupos, e a mentalidades incli-
nadas à estereotipia e ao preconceito. A possibilidade de que uma mesma
pessoa ser manifestamente de esquerda e ao mesmo tempo revelar atitudes
autoritárias e fascistas representa a contribuição original da análise empre-
endida pelos pesquisadores de Frankfurt em relação aos padrões da ciência
política, que em geral associa o fascismo unicamente com ideologias de
direita.
Em síntese, a originalidade da pesquisa sobre fascismo e autorita-
rismo realizada pelo Instituto de Pesquisas Sociais, reside em sua primazia
dos aspectos emocionais latentes da personalidade, e não nas declarações
ideológicas manifestas, como critério definidor do grau de suscetibilidade
a apelos de natureza fascista. Em virtude dessa metodologia de base psica-
nalítica, foi possível delinear dois tipos básicos de personalidade autoritária,
sendo um à direita, o pseudoconservador, ou fascista de direita, assim de-
nominado em razão de suas tendências fortemente agressivas subjacentes a

49
um discurso ideológico voltado para a conservação do statu quo, e outro à
esquerda, o pseudoliberal, ou fascista de esquerda, assim denominado por
conta de sua agressividade latente ao discurso ideológico contrário ao ca-
pitalismo. A origem emocional comum a ambas tendências autoritárias é
explicada pelos pesquisadores a partir de uma identificação incompleta ou
mal sucedida com a autoridade paterna, o que leva a manifestações decisi-
vamente ambíguas, de identificação e de hostilidade contra o pai. Entre
sujeitos de alta pontuação na Escala F, à direita e à esquerda, a identificação
com o pai é acompanhada de intenso sentimento de culpa, experimentado
como angústia de castração. A necessidade de aliviar tais sentimentos con-
duz os sujeitos de elevada pontuação a representações projetivas da reali-
dade, para as quais as camadas socialmente marginalizadas da sociedade
desempenham um papel primordial. Grupos sociais como judeus, operá-
rios, negros, prostitutas, homossexuais e todos aqueles que representarem
certa condição out-sider em relação aos padrões sociais normais, possibili-
tam a expiação coletiva do sentimento de culpa, notadamente quando o
estereótipo de organização mafiosa ou conspiratória pode lhes ser atribuído,
de maneira a permitir a projeção das próprias aspirações de domínio por
parte dos acusadores. Quanto mais estes desejam secretamente transgredir
as regras da competição no mercado, assim como transgredir as normas
democráticas, maior será a entrega subjetiva a processos emocionais proje-
tivos que lhes permitam expiar o sentimento de culpa (ADORNO
et.al.,1965, p. 662).
A primazia dos fatores emocionais, em detrimento do conteúdo
ideológico propriamente dito, como elemento efetivamente motivador da
personalidade autoritária, é evidenciado quando se considera os motivos
que justificam as opiniões expressadas acerca da realidade social e política.
Uma mesma opinião poderia ser manifestada tanto por sujeitos de baixa
pontuação, como pelos sujeitos de alta pontuação, porém, as motivações

50
internas podem ser completamente diferentes. Um sujeito de baixa pontu-
ação, ao defender uma postura contrária a intervenções estatais na econo-
mia o faria em defesa da autonomia individual, ao passo que um sujeito de
alta pontuação defenderia a mesma ideia, porém apenas porque os grupos
que controlam o Estado não são aqueles com os quais se identifica. Analo-
gamente, uma atitude favorável ao socialismo soviético, poderia ser moti-
vada pela simpatia com a experiência socialista por alguém baixamente
pontuado, assim como poderia ser baseada emocionalmente pela identifi-
cação com o poder militar estatal. Dessa forma, os fatores subjetivos moti-
vadores da opinião, têm precedência sobre o conteúdo ideológico expres-
sado, justificando a conclusão de que

a estrutura psíquica não afeta o que, mas afeta o como. Quando o fas-
cista defende valores ‘liberais’, o faz de uma forma consistente com sua
personalidade autoritária; inversamente, quando o antifacista defende
valores “conservadores”, o faz de uma forma e segundo motivos carac-
teristicamente antiautoritários (ROUANET, 1986, p. 178).

Projetividade patológica e dicotomia grupal

Em virtude da flexibilidade do fenômeno autoritário, é essencial


considerar, em primeiro lugar, que, dado seu caráter projetivo, inseparável
da dinâmica emocional da produção coletiva do tipo de estranheza atinente
ao unheimlich, e da hostilidade proporcionada pelo narcisismo das peque-
nas diferenças, o preconceito, embora se alimente de elementos reais sedi-
mentadores de uma estereotipia imaginária, está relacionado essencial-
mente com “as necessidades e desejos psicológicos do sujeito que o experi-
menta” (ADORNO et. al., 1965, p. 572). Dessa forma, é possível compre-
ender por que, embora para as vítimas da hostilidade fascista, a existência

51
real da perseguição seja um fato objetivo e altamente relevante, para a com-
preensão teórica do fenômeno, é mais fundamental considerar as necessi-
dades regressivas dos agressores, que os levam a apegar-se obsessivamente a
estereotipias imaginárias depreciadoras das minorias étnicas, culturais ou
sociais. O apego obsessivo à estereotipia produtora de estranheza poderia
ser, em tese, gradativamente dissolvido mediante o estímulo ao contato
pessoal com integrantes dos grupos que são alvos do preconceito. O apelo
a esse tipo de correção pressupõe que a capacidade de realizar experiências
teria sido preservada nos indivíduos e poderia ser ativada como ponto de
sustentação para a desconstrução dos rótulos depreciadores das vítimas. O
problema apontado por Adorno nesse tipo de esperança antipreconceito, é
que a própria capacidade de compreender a realidade em termos objetivos
e não poluídos pela projeção emocional já é predeterminada pela estereo-
tipia. Como esta se alimenta de profundas necessidades regressivas, e em
grande parte inconscientes, a própria capacidade de realizar experiências e
produzir juízos objetivos e autônomos, está de antemão prejudicada pela
tendência de emitir opiniões patológicas. Conforme abordamos, o caráter
patológico das opiniões, aqui remetido a visões estereotipadas do outro,
apresenta teor acentuadamente narcísico, que pode converter simples dis-
cordâncias em agressões pessoais. A quantidade de energia emocional in-
vestida na manutenção de uma visão sistematicamente distorcida da reali-
dade, é frequentemente muito superior à própria capacidade intelectual do
indivíduo. O ceticismo de Adorno em relação à possibilidade de se prevenir
o preconceito mediante o contato pessoal com membros de populações
vitimadas, situa com realismo freudiano o grau de dificuldade para o en-
frentamento do autoritarismo:

ainda quando são postas em contato com membros de grupos minori-


tários que apresentam características completamente distantes dos es-
tereótipos, os sujeitos preconceituosos as perceberam através do cristal

52
da estereotipia e os julgaram adversamente, qualquer que fosse seu
comportamento ou forma de ser (ADORNO et.al., 1965, p. 579).

Após constatar os fortes traços de inabordabilidade da personali-


dade autoritária, Adorno interroga-se sobre quais seriam as “causas primi-
gênias” da criação e petrificação de estereótipos, intensas a ponto de se
converterem em sintomas emocionais. A explicação substancial encontrada
para elucidar a contradição flagrante entre as condições gerais de seculari-
zação e tecnificação da sociedade burguesa moderna, e as demandas irraci-
onalistas das pessoas, reside no estado geral de desorientação, temor e in-
certeza reinantes nesse contexto social. O estado geral de impotência é su-
portado pela maioria das pessoas graças à mobilização da estereotipia como
subterfúgio para que meia dúzia de certezas possam compensar, ainda que
ilusoriamente, a potencialização do mal-estar na sociedade moderna. Ao
passo que em sociedades historicamente pretéritas a impotência humana
referia-se à defasagem entre os recursos técnicos de adaptação e o poder da
natureza, na era moderna, dado o estágio infinitamente superior de domí-
nio técnico alcançado sobre a natureza, a impotência foi transferida para a
relação entre homem e sociedade. No texto Revolta da natureza, Horkhei-
mer elucida o problema com notável clareza, apresentando um exemplo
muito simples, ilustrador da transformação qualitativa da impotência hu-
mana quando esta parece ter sido superada pelo progresso técnico. O filó-
sofo discorre sobre a diferença entre montar um cavalo e dirigir um auto-
móvel moderno. O progresso técnico, ao mesmo tempo em que amplia o
grau de liberdade, introduz mudanças decisivas relativas ao próprio teor da
liberdade. Os limites de velocidade, as regras do trânsito e as faixas lineares
a serem rigorosamente seguidas, substituíram a espontaneidade de andar a
cavalo por “moldura mental que nos compele a descartar qualquer emoção
ou ideia que poderia prejudicar nossa atenção às exigências impessoais que
nos assaltam” (HORKHEIMER, 2015, p. 112). A superação histórica da

53
impotência humana diante do mundo natural, ocasionou uma mudança
decisiva nos padrões gerais de adaptação, nos quais “as forças econômicas
e sociais tomam o caráter de poderes naturais cegos que o homem, a fim
de preservar-se, deve dominar, ajustando-se a eles” (HORKHEIMER,
2015, p. 110). O tipo de transformação implicada no progresso técnico
envolve uma contradição dialética subjacente à própria liberdade, pois em
um mundo no qual as pessoas foram em grande medida liberadas do poder
da natureza, o resultado geral não se traduziu em um ganho emancipador,
pois agora é o próprio teor de liberdade que fomenta a impotência e o
medo: “ajustar-se, em nossa época, envolve um elemento de ressentimento
e fúria suprimida” (HORKHEIMER, 2015, p. 113).
O estado geral de impotência diante de poderes sociais anônimos,
inalcançáveis e brutais, como as burocracias estatais e os monopólios
econômicos, parece ser compensado por fórmulas tanto mais apropriadas
quanto mais simples e primitivas forem. Referindo-se especificamente ao
antisemitismo, porém expressando uma modalidade de segregação igual-
mente aplicável a outros contextos fascistas, Adorno expõe o papel impres-
cindível da oposição grupal para que o efeito emocionalmente gratificante
possa ser gerado entre aqueles que são suscetíveis à oratória fascista: “desde
que o clichê apresente ao exogrupo como mau e ao endogrupo como bom,
a pauta antisemita de orientação oferece gratificações emocionais, narcisis-
tas, que tendem a derrubar as barreiras da autocrítica racional”
(ADORNO et.al. 1965, p. 581). O primitivismo das fórmulas usualmente
empregadas pelos líderes fascistas para o convencimento de multidões é
diretamente proporcional ao grau de ignorância de seus adeptos. A análise
da personalidade autoritária evidenciou o “antiintelectualismo” como traço
marcante entre sujeitos de alta pontuação na Escala F. O desconhecimento
da complexidade social, combinado com tendências fortemente reativas a

54
uma compreensão aberta ao conhecimento das mediações e fatores em ge-
ral que determinam a totalidade social, é um ingrediente fundamental para
o sucesso de apelos reacionários próprios ao fascismo: “o ambiente em que
melhor podem prosperar os movimentos fascistas é a configuração consti-
tuída pelo tecnicismo e pelo realismo consistente em cuidar dos próprios
interesses, por um lado, e a obstinada resistência a penetrar a realidade com
o intelecto, por outro lado” (ADORNO et.al.,1965, p. 617). Tal atitude
autoritária diante das atividades do intelecto é menos resultado de uma
deficiência intelectual em si mesma, do que de uma resistência psicológica
em desvendar problemas cujo conhecimento objetivo possa ameaçar o au-
toengano firmemente mantido. A estupidez fascista, sua recusa a atitudes
indagativas básicas sobre a complexidade social, torna-se, assim, a origem
da adesão fascista, em virtude de sua demanda por clichês simplórios esti-
muladores do preconceito, ao mesmo tempo em que se converte em reduto
de resistência emocional contra o desvendamento do autoengano.
A condição de impotência do cidadão comum perante uma totali-
dade social que exige identificação irrestrita com o status quo por ela legi-
timado, induz uma ansiedade tipicamente infantil, que requer o emprego
de artifícios psicológicos precários para compensar, ainda que ilusoria-
mente, a tarefa de “compreender o incompreensível”. “O indivíduo se vê
obrigado a enfrentar problemas que na realidade não compreende e se vê
obrigado a criar certas técnicas de orientação, que por grosseiras e falazes
que possam ser, o auxiliam a se orientar na obscuridade” (ADORNO et.al.,
1965, p. 622). Os dois recursos são a estereotipia e a personalização. Em-
bora a estereotipia já tenha sido abordada em seu papel central na menta-
lidade preconceituosa, cabe agora desenvolver melhor suas implicações e
sua relação estreita com a personalização.

55
As dicotomias rígidas entre “bons” e “maus”, “amigos” e “inimigos”,
“nós” e os “outros” são recursos emocionais que repetem o estereótipo pri-
mário do “homem mau” peculiar à mente infantil. A reincidência de uma
mentalidade que mesmo na infância desempenha um papel precário, no
sentido de aliviar a ansiedade perante adultos estranhos ou ameaçadores,
evidencia o caráter regressivo da personalidade autoritária. Na fase adulta,
em consonância com a estereotipia dos meios de comunicação de massa, o
adulto adquire a segurança ilusória de conhecer uma realidade ameaçadora
mediante fórmulas prontas, que, embora pareçam explicar adequadamente
a realidade, nada mais fazem que fortalecer as tendências decisivamente
alérgicas a uma experiência genuína com o real. Como a estereotipia se
baseia em clichês genéricos que enquadram grandes conjuntos populacio-
nais em imagens rígidas e frias, seu caráter abstrato é compensado por um
segundo recurso igualmente típico da infância, que evita a complexidade
do mundo, pela referência a pessoas específicas. A personalização, atuando
no polo oposto ao da estereotipia, responsabiliza pessoas, em geral “grandes
homens”, que seriam os responsáveis pelos processos sociais e econômicos
objetivos. Por meio desses recursos, o homem comum é poupado do tra-
balho de decifrar a reificação social, podendo compartilhar fórmulas expli-
cativas que enquadram grandes conjuntos de pessoas em estereótipos, ou
então atribuem a pessoas específicas a responsabilidade pela complexidade
social.

À generalidade abstrata de mundo organizado de acordo com catego-


rias estereotipadas, corresponde a particularidade igualmente abstrata
de uma ordem regida por pessoas, e não por processos objetivos. (...)
Do jogo desses dois mecanismos, associado à ignorância factual dos
indivíduos com relação a temas de caráter social e econômico, decorre,
em geral, uma adesão de conjunto aos valores do statu quo (ROUANET,
1986, p. 176-177).

56
A metodologia empregada na pesquisa sobre a personalidade auto-
ritária fundamentou-se em um pressuposto básico, que consiste na existên-
cia de um padrão antidemocrático latente nos indivíduos vulneráveis ao
fascismo, explicitado nas características da síndrome fascista. O aspecto de-
cisivo que determina a inclinação de um indivíduo determinado a com-
portamentos violentos e segregadores, diz respeito à potencialidade de uma
dada personalidade a expressá-los de forma mais aberta ou mais velada.
Adorno adverte, contudo, que a personalidade não pode ser hipostasiada
como determinante último do comportamento autoritário, pois não sendo
um componente fixo da síndrome fascista, ela “jamais pode ser isolada da
totalidade social” (ADORNO, 2009, p. 159). Os fatores sociais moldam
a personalidade de maneira profunda e são, em última instância, determi-
nados por fatores econômicos condicionadores da conduta do pai em rela-
ção ao filho. Dessa forma, a síndrome fascista é essencialmente condicio-
nada pelos fatores materiais da sociedade: “isso quer dizer que amplas
transformações nas condições sociais e instituições teriam um peso direto
sobre os tipos de personalidade que se desenvolvem no seio de uma socie-
dade” (ADORNO, 2015, p. 159). É dessa forma que os mecanismos de
defesa ativamente mobilizados pela personalidade autoritária – estereotipia
e personalização – têm o papel ilusório de atuarem como agentes neutrali-
zadores do estado de impotência em uma realidade material reificada, em
que poderes sociais anônimos, como burocracias estatais e monopólios
econômicos, assumem a aparência de poderes naturais cegos. A teoria da
reificação de Lukács surge, então, como pano de fundo teórico decisivo
para explicar a vigência da personalidade autoritária e das fortes tendências
irracionalistas que lhe são inseparáveis, mesmo em contextos de acentuada
tecnicização e individualização. A interrogação explicitada por Adorno, so-
bre como é possível que seres humanos condicionados a uma individuali-

57
dade liberal integrem-se voluntariamente em aglomerados fascistas, encon-
tra resposta na emergência de processos emocionalmente defensivos e rea-
tivos frente a uma realidade material reificada. Se em sua teoria da reifica-
ção, Lukács limitou-se a somente enunciar a transformação da mercadoria
em “categoria universal do ser social total”, capaz de interferir na dimensão
psíquica profunda da subjetividade, porém sem demonstrar como isso seria
possível, Adorno, em Personalidade autoritária, indica, mediante a estereo-
tipia e a personalização, como se concretiza a reificação.

Jitterbug

Jitterbug é o termo empregado por Adorno em texto escrito junta-


mente com George Simpson, para designar os fãs de bandas norte-ameri-
canas de jazz e swing dos anos 1940. Trata-se de expressão altamente pejo-
rativa, empregada para ilustrar o comportamento mimético e emocional-
mente fervoroso de pessoas dedicadas ao culto de celebridades da indústria
cultural da época. O jitterbug é um tipo social exemplar para ilustrar certa
modalidade de adesão fanática peculiar aos aglomerados fascistas, pois, a
exemplo destes, as multidões de fãs das bandas musicais exibem um com-
portamento ambíguo, marcado pela combinação de admiração fervorosa e
fúria. A analogia dos fãs de música de consumo com insetos sugere clara-
mente a heteronomia da vontade, à qual se acrescenta um elemento deci-
sivo comum à adesão fascista, que é o caráter de falsidade psicológica in-
trínseco à base psicológica desse tipo de entusiasmo.
Adorno caracteriza o jitterbug pelo comportamento supostamente
autônomo, porém secretamente condicionado por mecanismos objetivos
de pseudoindividuação, que se torna o padrão da relação entre os fãs e seus
ídolos. A heteronomia individual é garantida pela perspectiva aterradora
de não integração social que ameaça o indivíduo em sua solidão impotente.

58
Em uma realidade na qual “a resistência é encarada como um sinal de má
cidadania, como incapacidade de se divertir,” interrogam-se os autores,
“qual é a pessoa normal que poderia se colocar contra essa música normal?”
(ADORNO, 1986, p. 142). A análise psicológica do jitterbug constitui-se
em modelo descritivo exemplar do comportamento ressentido na esfera da
cultura. A combinação de frenesi histérico e agressivo, com a recusa prévia
a conteúdos culturais que possam ameaçar a formação de compromisso
proporcionada pela adesão ao coletivo, estende sua validade a todo tipo de
adesão fascista, independente de contextos sociais ou do sinal ideológico
que a justifica: “o fã da música popular precisa ser imaginado como per-
correndo o seu caminho com olhos firmemente fechados e dentes cerrados
a fim de evitar que se desvie daquilo que decidiu aceitar. Uma visão clara e
calma colocaria em perigo a atitude que lhe foi infligida e que, por sua vez
ele tenta infligir a si mesmo” (ADORNO, 1986, p. 145).
Essa imagem do ressentimento como aspecto inseparável da psico-
logia do jitterbug pode ser mais bem compreendida mediante a descrição
apresentada por Adorno acerca da inaptidão a processos de esclarecimento
racional que são próprios à consciência semiformada. No debate intitulado
A educação contra a barbárie, Adorno apontou a hostilidade aos potenciais
de autonomia como traço decisivo daquele tipo de educação voltada para
a disseminação da semiformação. O aspecto decisivamente perturbador
atinente ao tipo de educação disseminadora da semiformação é que ela não
apenas fomenta inclinações emocionais que levam à adesão irrefletida em
coletivos, como também imuniza previamente as consciências contra po-
tenciais formativos capazes de induzir à autorreflexão do espírito. O res-
sentimento do jitterbug, em sua recusa prévia de uma “visão clara e calma”,
corresponde precisamente a uma hostilidade secreta voltada contra a pró-
pria promessa de emancipação contida na cultura:

59
Penso que, além desses fatores subjetivos, existe uma razão objetiva da
barbárie, que designarei bem simplesmente como a da falência da cul-
tura. A cultura, que conforme sua própria natureza promete tantas coi-
sas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens. A divisão mais
importante é aquela entre trabalho físico e intelectual. Deste modo ela
subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como
costuma acontecer nas coisas humanas, a consequência disto foi que a
raiva dos homens não se dirigiu contra o não-cumprimento da situação
pacífica que se encontra propriamente no conceito de cultura. Em vez
disto, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expres-
sando-se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir
(ADORNO, 1995a, p. 164).

Em um texto da década de 1950, dedicado à análise do fascismo,


Adorno se pergunta sobre os motivos que explicariam que “indivíduos, fi-
lhos de uma sociedade liberal, competitiva e individualista, condicionados
a se manter como unidades independentes e autossusten-táveis” manifes-
tem comportamentos regressivos diretamente contraditórios ao desenvol-
vimento do Espírito na era burguesa" (ADORNO, 2015, p. 168). A ex-
plicação encontrada pelo filósofo para a proliferação de inclinações decisi-
vamente regressivas no seio de uma sociedade técnica e dotada de poten-
ciais de esclarecimento, remete uma vez mais à dialética da individualidade,
a seu antagonismo entre tendências de emancipação e de regressão. Para
ele, a sociedade burguesa estimula o senso de independência e autonomia,
mas nega aos mesmos indivíduos as possibilidades de concretização desses
ideais. A frustração de tais impulsos narcisistas conduz à busca de satisfa-
ções substitutivas que encontram, na idealização do líder, e na identificação
fraterna com os companheiros de irmandade, uma oportunidade singular.
A idealização do líder fascista possibilita a satisfação tortuosa dos impulsos
narcisistas socialmente gerados, que é corroborada pela oportunidade de

60
hostilizar as minorias sociais ou culturais supostamente fracas e desampa-
radas. A oposição grupal proporciona ganhos narcisistas pela compensação
imaginária das frustrações reais. Pela idealização do pai primitivo, o sujeito
livra-se “das manchas de frustração e descontentamento que estragam a
imagem que tem de seu próprio eu empírico” (ADORNO, 2015, p. 175).

Impostura

Analogamente aos jitterbugs, os integrantes de coletivos fascistas


desfrutam de uma significativa gratificação emocional, derivada do perten-
cimento a uma comunidade imaginariamente mais pura ou superior, o que
explica o ressentimento cultural, e igualmente a rejeição agressiva a toda
perspectiva de autocrítica: “qualquer tipo de crítica ou autoconsciência é
ressentida como uma perda narcisista e provoca fúria” (ADORNO, 2015,
p. 181). Malgrado a intensidade reativa dirigida à autocrítica, Adorno não
deixa de observar na adesão ao fascismo a presença de uma dialética em
que, juntamente com as inclinações regressivas, existem potenciais negati-
vos de uma possível superação dessa condição. Condizente com a premissa
dialética de que toda sujeição, em seu necessário antagonismo frente aos
potenciais de liberdade intrínsecos ao movimento do Espírito, é passível de
superação, Adorno remete à obstinação que é necessária ao adepto de co-
letividades fascistas para sustentar sua adesão. Esta não é mantida pura e
simplesmente por uma postura passiva, mas sim por um comportamento
baseado em significativo investimento de energia que atua no sentido de
preservar a condição de sujeição. Adorno recupera o conceito de “impos-
tura”, pelo qual Freud descreve a consciência latente do fenômeno da hip-
nose entre pessoas a ele submetidas, para caracterizar o fascismo como uma
coletivização de análogo “feitiço hipnótico” no seio das multidões.

61
O conceito de impostura é empregado manifestamente por
Adorno em sua análise da adesão fascista, mas está implicitamente presente
também em sua análise dos jitterbugs, uma vez que estes são retratados
como “atores de seu próprio entusiasmo”. A adesão declarada a comunida-
des fascistas, assim como o culto fanático de bandas musicais, constitui-se
como uma simulação psicologicamente necessária motivada por demandas
de integração social dotadas de notável ambiguidade e de difícil conciliação.
“É por meio dessa encenação que atingem um equilíbrio entre seus desejos
instintuais continuamente mobilizados e a atual fase histórica de esclareci-
mento que não pode ser arbitrariamente revogada” (ADORNO, 2015, p.
188). A dialética do fascismo, que é a constatação mais significativa da
análise realizada por Adorno sobre o fenômeno, torna-se mais manifesta,
apontando para possibilidades efetivas de superação, quanto mais intenso
é o esforço requerido do indivíduo para conservar seu estado de servidão
voluntária. A dialética do fascismo sustenta-se na contradição entre as de-
mandas fascistas de sujeição e os potenciais de esclarecimento da era mo-
derna. Em virtude de tais potenciais, a farsa deixa de se basear em elemen-
tos ideológicos tradicionais, convertendo-se pura e simplesmente em
“mentira manifesta”, o que exige um esforço psicológico notável para a
manutenção do autoengano.
Em Sobre música popular, assim como em Teoria freudiana e o pa-
drão da propaganda fascista, Adorno destaca a existência de um “fino véu”
entre o autoengano da impostura e sua consciência crítica, sugerindo o
quanto as pessoas estão próximas da superação da servidão voluntária ao
fascismo. Paradoxalmente, justamente em virtude da configuração desca-
radamente mentirosa da estereotipia fascista, o esforço desmedido empre-
gado para preservar o estado de autoengano torna a produção dessa cons-
ciência uma tarefa “quase insuperavelmente difícil” (ADORNO, 1986, p.

62
146). Por outro lado, é salutar reconhecer que a proximidade entre ideolo-
gia e mentira manifesta fortalece os elementos de liberdade que justificam
a análise adorniana sobre o fascismo. Em nome dessa esperança, a conclu-
são dois dos textos expõe de maneira emblemática a dialética própria ao
fascismo:

A hipnose socializada cria no interior de si mesma as forças que elimi-


narão o fantasma da regressão por controle remoto, e que, no fim, des-
pertarão aqueles que mantêm seus olhos fechados apesar de não esta-
rem mais dormindo (ADORNO, 2015, p. 188).

Para ser transformado em um inseto, o homem precisa daquela energia


que eventualmente poderia efetuar a sua transformação num homem
(ADORNO, 1986, p. 146).

63
Capítulo 3

Vida falsa e coisificação


_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Embora Adorno reconhecidamente tenha sido um intelectual an-


tifascista por sua análise minuciosa da personalidade autoritária, dos recur-
sos retóricos empregados pelo líder fascista e do ativismo grupal, sua análise
mais acabada e detalhada do fascismo pode ser encontrada nos diversos
aforismos de Minima Moralia, obra produzida nos anos 1940. O conjunto
de reflexões dedicado à exposição do cotidiano de uma vida lesada foi
aberto com uma homenagem à confiança hegeliana na negatividade como
elemento ontológico irredutível. Em tempos de atrofia da individualidade,
os pensamentos do livro justificam a confiança na capacidade do sujeito de
se opor ao triunfo das tendências objetivas de aniquilação do particular:
"hoje, com o desaparecer do sujeito, os aforismos levam a sério a exigência
de que 'aquilo mesmo que desaparece' seja 'considerado essencial'"
(ADORNO, 1992, p. 9).

O fascismo em Minima Moralia

Na parte final de sua obra tardia, Dialética Negativa, Adorno expõe,


em suas meditações sobre a metafísica, os motivos pelos quais, após Aus-
chwitz, o caráter abstrato e universal da metafísica tornou-se filosofica-
mente obsoleto diante da transformação da morte em evento banal reali-
zado em linha de produção e passível de se impor com inimaginável bru-
talidade a qualquer um. A condição de "transcendência positivamente con-
dicionada" antes atribuível à metafísica, converte-se em escárnio diante da

65
"administração do massacre de milhões”: "a faculdade metafísica é parali-
sada porque o que aconteceu destruiu para o pensamento metafísico espe-
culativo a base de sua unificabilidade com a experiência" (ADORNO,
2009, p. 299). A obsolescência da metafísica tradicional, decretada pelo
holocausto nazista, exige que no momento de sua derrocada ela se volte,
da majestade do absoluto, para a insignificância das pequenas particulari-
dades, dos atos cotidianos concretos. As últimas frases da Dialética Nega-
tiva explicitam a necessidade dessa inversão: "os menores traços intramun-
danos teriam relevância para o absoluto, pois a visão micrológica desenco-
bre aquilo que, em sua dinâmica de subsunção, permanece desesperada-
mente isolado, e explode a sua identidade, a ilusão de que ele seria um
mero exemplar. Um tal pensamento é solidário com a metafísica no ins-
tante de sua queda" (ADORNO, 2009, p. 337).
A inversão do olhar metafísico para a aparente insignificância dos
acontecimentos cotidianos tal como exposta na Dialética Negativa, reper-
cute um método já adotado por Adorno em Minima Moralia duas décadas
antes. O que se expõe na análise da vida danificada nada mais é que um
conjunto de pensamentos dedicados a atos banais cotidianos estampadores
da frieza burguesa como condição de sobrevivência em uma sociedade rei-
ficada: "a sobrevivência necessita já daquela frieza que é o princípio funda-
mental da subjetividade burguesa e sem a qual Auschwitz não teria sido
possível: culpa drástica daquele que foi poupado" (ADORNO, 2009, p.
300). A brutalidade subjacente à existência de portas feitas para serem ba-
tidas, que eliminam a civilidade de se observar, ao sair, o ambiente em que
se esteve acolhido; a existência de lojas especializadas em presentes, que
poupam, àquele que pretende homenagear alguém, de dedicar tempo a es-
colher um objeto desejado pelo amigo; a lápide no cemitério, que feita de
encomenda para enaltecer a suposta serenidade do falecido, involuntaria-

66
mente, trai seu caráter inescrupuloso. Hábitos e comportamentos cotidia-
nos aparentemente pequenos que em seu conjunto expõem a presença in-
sidiosa das condições essenciais ao fascismo no mundo administrado, sem
que seja preciso recorrer à análise de grandes fatos históricos, fazem parte
do conjunto de pensamentos fragmentados expostos em Minima Moralia.
A obra Minima Moralia é um conjunto de reflexões plenamente
justificadoras do diagnóstico sombrio posteriormente apresentado por
Adorno em Educação após Auschwitz, ao caracterizar a claustrofobia do
mundo administrado. Referindo-se ao fascismo como "pressão civilizató-
ria" acumuladora de pulsões de morte, o filósofo descreve a vida no capi-
talismo tardio como "rede densamente interconectada", e assim oferece
uma visão quase profética sobre o mal-estar nos tempos atuais, sob a hege-
monia das redes sociais e da comunicação instantânea: "quanto mais densa
é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a
sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a civilização.
Esta se torna alvo de uma rebelião violenta e irracional" (ADORNO,
1995a, p. 122). Em Minima Moralia, cada fragmento remete, em última
instância, à danificação da vida pela insidiosa e insuspeita infiltração do
fascismo nos mínimos sentimentos e comportamentos cotidianos. O com-
prometimento da vida pelo fascismo se faz notar desde uma formulação
um tanto precipitada, no aforismo 49, Moral e ordem cronológica, que re-
mete em linha reta o ciúme amoroso à segregação de minorias raciais pelo
fascismo, até o relato de lembranças da infância, no aforismo 123, O mau
camarada, em que a ascensão do regime nacional-socialista aparece como
fato confirmador dos pesadelos da infância do próprio Adorno: "a rigor eu
deveria ser capaz de derivar o fascismo das lembranças de minha infância.
Como faz um conquistador em relação às províncias longínquas, o fas-
cismo enviara seus emissários muito antes de fazer sua entrada: meus ca-
maradas de escola" (ADORNO, 1992, p. 168).

67
Vida falsa

Uma coletânea de autores espanhóis, coordenada pelo pesquisador


Jacobo Muñoz, soube captar de maneira notável a mensagem essencial de
Minima Moralia, que é exposta na frase final do aforismo 18, Asilo para
desabrigados: “não há vida correta na falsa” (ADORNO, 1992, p. 33). O
estilo paradoxal desta formulação emblemática enunciada pelo filósofo so-
mente pode ser compreendido quando se considera o alcance do fenômeno
material da coisificação da vida no âmbito do capitalismo tardio. Em nome
da fidelidade ao objeto, Adorno não expõe conteúdos que poderiam reme-
ter aos contornos de uma vida justa, digna e feliz, pelo fato de que estes se
tornaram impossíveis. Em vez disso, o método dialético exige que a secreta
cumplicidade com a opressão, estampada na mesquinhez e automatismo
dos atos cotidianos mais simples, seja exposta em suas íntimas conexões
com a desumanização. O alcance da impossibilidade de uma vida verda-
deira na falsa é exposto com precisão por José López de Lizaga em aponta-
mento sobre o engodo prévio das boas intenções no interior da vida lesada:
“nos apelos à solidariedade, à superação da indiferença frente ao outro,
Adorno vê outra forma, especialmente sutil, de instrumentalização” (MU-
ÑOZ, 2017, p. 185). Como indício explícito da forte ligação entre Mi-
nima Moralia e as reflexões sobre metafísica na Dialética Negativa, nesta
última, é possível entrever a impossibilidade de vida correta na falsa, pois
sob o sadismo dos carrascos, anunciava-se o comprometimento da vida
cotidiana no capitalismo tardio: "já em sua liberdade formal, o indivíduo
é tão cambiável e substituível quanto sob os pontapés dos exterminadores"
(ADORNO, 2009, p. 300).
Essa nefasta neutralização prévia de qualquer tentativa de solidari-
edade ou de delicadeza cotidiana é estampada no aforismo 5 de Minima
Moralia, Isso é bonito de sua parte, senhor doutor! Impulsos humanitários e

68
pequenas alegrias animadas pela espontaneidade imediata são secretamente
movidos pela condescendência em relação à instrumentalização da vida, e
por isso estabelecem cumplicidade com o oposto do que pretendem comu-
nicar, pois "a própria sociabilidade é participação na injustiça" (ADORNO,
1992, p. 19). Isso envolve não apenas o comprometimento das relações
cotidianas pela frieza e pela aspereza no trato com o semelhante, como
também a humilhação adicional a que se submetem todos aqueles que si-
mulam ingenuidade e descontração, almejando que este seja um mundo
onde tais sentimentos conservem alguma autenticidade. O aforismo 5, ao
mesmo tempo em que descreve uma aporia irredutível do mundo admi-
nistrado, pois a frieza é apresentada como atmosfera capaz de neutralizar
possíveis arremedos de calor humano, também expõe de maneira emble-
mática a resposta pessoal de Adorno diante de tamanho paradoxo: "para o
intelectual, a solidão inviolável é a única forma em que ele é capaz de dar
provas de solidariedade. Toda colaboração, todo humanitarismo por trato
e envolvimento é mera máscara para a aceitação do que é desumano" (1992,
p. 20). Esse conjunto de frases, além de esclarecer o equívoco contido nas
acusações de omissão prática frequentemente dirigidas a Adorno, justifica
a já citada confiança hegeliana no caráter essencial do sujeito nos tempos
de seu desaparecimento. Pois a esperança em uma consciência moral capaz
de autêntica solidariedade com o sofrimento do mundo depende "do olhar
que se volta para o horrível, a ele resiste e diante dele sustenta, com impla-
cável consciência da negatividade, a possibilidade de algo melhor"
(ADORNO, 1992, p. 19).
A dimensão micrológica da vida falsa é exposta em suas sutilezas
cotidianas no aforismo 21, Não se aceitam trocas, em que o imperativo das
"ordenações práticas da vida" impõe a substituição da civilidade e da cor-
tesia pelos gestos diretos e pela comunicação abreviada, desprovida de he-

69
sitações e inflexões. Ao eliminar distâncias no âmbito da comunicação co-
tidiana, o ritmo pragmático assume sem disfarces a reificação como idioma
no campo das relações entre os homens, doravante designadas como "rela-
ções humanas": "o fato de que, ao invés de tirar seus chapéus, se cumpri-
mentem com o 'Olá', de familiar indiferença, e de que em vez de cartas se
enviem inter office comunications, sem tratamento nem assinatura, são sin-
tomas de um adoecimento do contato" (ADORNO, 1992, p. 34). Com a
hegemonia do praticismo sacrifica-se a delicadeza entre humanos e a pró-
pria capacidade de realização de experiências dignas de memória e de relato.
A brutalidade nua e crua e sua explicitação da intromissão dos interesses
comerciais na esfera do contato já em si mesma é sintoma revelador do
fascismo na vida cotidiana: "a palavra direta, que sem delongas, hesitação
e reflexão, diz as coisas na cara do interlocutor, já possui a forma e o timbre
do comando, que, sob o fascismo, vai dos mudos ao calados" (ADORNO,
1992, p. 35). No aforismo 3, Peixe n’água, o praticismo relacional é apre-
sentado como modelo de operosidade e instrumentalismo na esfera da vida
privada, em especial na "psicologia parasitária" que se alimenta de receitas
para "fazer amigos e influenciar pessoas". O conhecimento matreiro das
táticas mais adequadas para a realização de interesses comerciais e relacio-
nados ao poder nas hierarquias da organização, é acompanhado de certa
"inteligência emocional", traduzida como sensibilidade empática. Em sua
crítica da vida lesada, Adorno antecipa o estilo psicológico dissimulado e
mesquinho posteriormente consagrado pela autoajuda. O "individualismo
tardio" caracteriza-se por pessoas "espertas, bem-humoradas, sensíveis e ca-
pazes de reagir: elas poliram o velho espírito de negociante com as últimas
novidades da Psicologia" (ADORNO, 1992, p. 18).
Ao analisar o fascismo como pano de fundo da vida cotidiana no
capitalismo tardio, Adorno apresenta uma detalhada confirmação da tese

70
central de Marcuse sobre a relação de continuidade entre liberalismo e to-
talitarismo. Para este, embora no contexto da economia liberal tenham flo-
rescido potenciais de individualidade derivados das demandas de liberdade
dos agentes econômicos no mercado, o próprio liberalismo já continha os
elementos que posteriormente, sob o capitalismo monopolista, levariam à
decadência da autonomia individual: "no racionalismo liberal já se encon-
tram pré-formadas aquelas tendências que posteriormente, com a mudança
do capitalismo industrial ao capitalismo monopolista, assumem caráter ir-
racional" (MARCUSE, 1997, p. 57). Porém, em seu esmiuçamento crítico
da vida danificada, Adorno acrescenta à análise materialista de Marcuse um
elemento adicional ausente na obra deste, que corresponde a uma ampla
compreensão da reificação da vida na sociedade administrada. A importân-
cia do conceito de reificação, originariamente formulado por Lukács, como
fundamento das reflexões de Minima Moralia, foi explicitado por Lizaga:

as reflexões morais de Adorno pressupõem, portanto, o pano de fundo


da teoria marxista e lukacsiana de coisificação. Somente tomando-se
completamente a sério esta teoria se pode compreender em profundi-
dade o problema que preocupa a Adorno: a impossibilidade de iniciar
uma só interação que não esteja contaminada pela instrumentalização
imposta pela 'forma mercadoria' sobre as relações sociais (MUÑOZ,
2011, p. 184).

O conceito de coisificação elaborado por Lukács, que remete ao


âmbito da subjetividade as implicações materialistas da teoria de Marx so-
bre o fetichismo da mercadoria, tornou-se, portanto, o núcleo articulador
das reflexões de Adorno sobre a vida danificada. Em virtude da importân-
cia central das reflexões filosófico-materialistas de Lukács para a análise de

71
Adorno sobre o fascismo, na segunda parte do presente trabalho, serão ex-
postos os aspectos problemáticos da crítica de teor materialista endereçada
à metafísica.

72
Capítulo 4

Educação contra o fascismo


_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

No debate radiofônico intitulado A Educação contra a barbárie, re-


alizado em 1968, Adorno indica a desbarbarização como questão mais ur-
gente para a educação. Desbarbarizar significa fomentar processos forma-
tivos capazes de inverter as tendências regressivas hegemônicas no capita-
lismo tardio, às quais é peculiar a defasagem entre o grau de autonomia do
indivíduo e o desenvolvimento técnico da civilização. À desbarbarização,
todavia, impõem-se dificuldades dificilmente transponíveis, pois os poten-
ciais formativos que poderiam fomentar a liberdade encontram-se travados
por um estado generalizado de semiformação. Como resultado dessa aporia,
a civilização moderna e tecnologicamente desenvolvida encontra-se to-
mada por impulsos destrutivos e anticivilizatórios. Em termos hegelianos,
se o Espírito impulsiona a humanidade no sentido da autoconsciência e
realização efetiva da liberdade, mas se o atual processo histórico impõe obs-
táculos sistemáticos a essa realização, é perfeitamente adequado, em termos
adornianos, caracterizar o capitalismo tardio como um sistema perpassado
por uma totalidade falsa que bloqueia a realização do conceito. Aos educa-
dores impõe-se o imperativo da desbarbarização em um mundo no qual os
arremedos de humanização e liberdade chocam-se com condições perpe-
tuadoras da não-liberdade. Essa aporia fundamental desdobra-se em outras
quatro contradições cuja superação dialética parece condenada a horizon-
tes de incerteza e irresolução.
1) No tocante à educação, Adorno considera a sobrevivência do
indivíduo como “núcleo impulsionador de resistência” (ADORNO,

73
1995b, p. 154). Porém, conforme abordamos no capítulo 1, um conceito
metafísico de indivíduo, que preservasse qualidades inatas e que pudesse
equipará-lo a “espírito” ou “alma”, é explicitamente descartado pelo filó-
sofo, uma vez que o pressuposto de uma individualidade não mediada pela
totalidade social é resquício ideológico destinado a camuflar a reificação.
As transformações ocorridas na base material da sociedade burguesa desde
o século XIX acentuam um processo de dissolução da família burguesa e
da autoridade paterna cuja tendência aponta para o desenvolvimento de
egos frágeis e vulneráveis, suscetíveis de identificações substitutivas com
lideranças fascistas. A vulnerabilidade emocional ao fascismo torna-se uma
tendência generalizada na sociedade, fomentando posturas reativas e hostis
contrárias aos próprios elementos culturais que são essenciais para a reali-
zação do indivíduo como núcleo de resistência ao fascismo. O ressenti-
mento cultural manifesta-se sob a forma de tendências subterrâneas de
agressividade e irracionalismo intrínsecas a vida civilizada, dirigidas contra
populações socialmente marginais ou fragilizadas. Sendo o indivíduo nada
mais que uma categoria socialmente determinada, sob contextos históricos
de obsolescência de seus fundamentos materiais, a autonomia individual
está tão condenada à decadência quanto a autoridade paterna, seu núcleo
educativo essencial.
2) Para a desbarbarização pensada por Adorno, é fundamental a
indução de processos emocionais autoreflexivos que sejam capazes de dis-
solver a mutualidade entre estranheza e familiaridade peculiar ao
unheimlich freudiano. Se o fascismo se alimenta pela estigmatização siste-
mática da diferença, entendida como estrangeiridade negativa, por meio
da qual as pulsões agressivas são escoadas contra grupos imaginariamente
representados como inimigos, a desbarbarização requer sobretudo consci-
ência do sujeito sobre suas tendências emocionalmente projetivas. Porém,
o imperativo de uma consciência subjetiva acerca das opiniões patológicas

74
e da mentalidade estereotipada que alimentam o olhar e o comportamento
fascista, são impedidos pelo caráter narcisicamente gratificante proporcio-
nado pelo pertencimento a um grupo imaginariamente superior e mais
puro. Quanto mais o narcisismo pessoal é frustrado por uma sociedade
baseada em metas e valores irrealizáveis, maior é a necessidade de identifi-
cação emocional com líderes capazes de resgatar a identidade frustrada com
o pai primitivo. Uma consciência capaz de entregar-se a processos subjeti-
vamente autoreflexivos que seriam capazes de imunizá-la contra as tendên-
cias fascistas, é previamente neutralizada pela própria satisfação narcísica e
doentia que a torna imune às “manchas de frustração e descontentamento
que estragam a imagem de seu próprio eu empírico” (ADORNO, 2015, p.
175).
3) O fascismo se caracteriza por certo tipo de moral escrava direta-
mente correspondente às condições materiais de uma sociedade reificada,
rigidamente burocratizada e ameaçadora. Denominada como “personali-
dade autoritária”, esse tipo de subjetividade é inclinada a pensamentos e
comportamentos irracionalistas, traduzidos pelo apego obsessivo a precon-
ceitos de diversos tipos, dirigidos contra populações identificadas com um
out-group. A estupidez fascista da personalidade autoritária baseia-se na dis-
seminação de estereótipos disseminadores de traços negativos e depreciati-
vos da diferença, associada a minorias éticas, culturais ou sociais em geral.
Opor-se à personalidade autoritária exigiria o estímulo da experiência di-
reta com integrantes dos grupos vitimados pelo preconceito, para que a
estigmatização pudesse ser combatida. Porém, a própria capacidade de re-
alização de experiências autônomas e não enviesadas é impedida pela este-
reotipia e pela tendência de disseminação de opiniões patológicas. Adorno
se mostra cético quanto à prevenção do preconceito mediante o contato
pessoal direto com as vítimas: “ainda quando são postas em contato com

75
membros de grupos minoritários que apresentam características completa-
mente distantes dos estereótipos, os sujeitos preconceituosos as perceberam
através do cristal da estereotipia e os julgaram adversamente, qualquer que
fosse seu comportamento ou forma de ser” (ADORNO et.al.,1965, p.
579).
4) A adesão fanática que caracteriza as formações grupais fascistas
pode ser adequadamente compreendida pelo comportamento mimético do
jitterbug, termo empregado por Adorno e Simpson para descrever os fãs de
bandas musicais norte-americanas nos anos 1940. O jitterbug caracteri-
zava-se pela vontade declaradamente heterônoma e subjetivamente ressen-
tida. Seu reativismo emocional era marcado simultaneamente pela admi-
ração fervorosa pelos ídolos, mas também pelo frenesi histérico e agressivo.
O principal traço emocional assumidos pelos “insetos” analisados por
Adorno e Simpson, apresenta-se sob a forma da impostura emocional, tra-
duzida pelo comportamento farsesco, porém consciente, simulador de um
entusiasmo para cuja manutenção são necessárias elevadas quantidades de
energia emocional. Sendo atores de seu próprio entusiasmo, os jitterbugs,
assim como o fascista em geral, estão sempre muito próximos de uma cons-
ciência crítica acerca de seu autoengano, porém, qualquer potencial crítico
é ressentido como prejuízo narcisista, exigindo doses adicionais de investi-
mento emocional para que o embuste se mantenha. O potencial de auto-
crítica é latente, mas perpetuamente adiado: ““Para ser transformado em
um inseto, o homem precisa daquela energia que eventualmente poderia
efetuar a sua transformação num homem” (ADORNO, 1986, p. 146).
A questão fundamental que motivou a pesquisa frankfurtiana sobre
o fascismo, conforme abordamos no presente trabalho, consistiu em com-
preender a vulnerabilidade do cidadão comum ao fascismo, considerando
como seria possível que os filhos de uma sociedade liberal pudessem regre-
dir no interior de comunidades fascistas. A pesquisa sobre a personalidade

76
autoritária proporcionou elementos muito importantes para responder a
esta questão, pois a explicação para a contradição entre as condições gerais
de secularização e tecnificação na sociedade burguesa moderna, e as de-
mandas irracionalistas das pessoas, foi associada ao estado geral de desori-
entação e incerteza imperantes nesta sociedade. Conforme abordamos, o
tipo de liberação proporcionada em relação ao poder da natureza mediante
o progresso técnico, acabou convertendo o próprio aparato técnico e social
em fonte de impotência humana e de novos temores. O tipo de personali-
dade forjada na sociedade moderna esteve bem longe do modelo ilumi-
nista-kantiano de um homem autônomo, alçado à condição de maioridade
intelectual e moral. Pelo contrário, o homem moderno aproxima-se muito
mais do modelo ressentido descrito por Horkheimer, em que prevalece a
identificação emocional com figuras substitutivas da autoridade paterna,
inclinado a aceitar o domínio do mais forte e a hostilizar aqueles que pos-
sam representar signos de estranheza ou inferioridade. A integração reali-
zada sob condições de socialização forçada fortalece o mal-estar na civiliza-
ção, agora manifestado mediante tendências subterrâneas de desintegração
social, escoadas contra populações marginais ou socialmente minoritárias
ou enfraquecidas.
O ressentimento socialmente acumulado é escoado mediante pro-
jeções emocionais sistematicamente segregadoras e hostilizadoras de popu-
lações que lhes são estrangeiras. Trata-se, como vimos, de uma estigmati-
zação que é cega à ambiguidade própria ao unheimlich, vale dizer aquele
que é estranho e familiar. Ao tipo de normalidade social engendrado sob
tais condições historicamente favorecedoras da atmosfera fascista, é própria
uma mentalidade ancorada em opiniões patologicamente comprometidas,
mobilizadoras de uma significativa quantidade de energia emocional. Ex-
posto a condições materiais favorecedoras da regressão psicológica no inte-
rior de aglomerados fascistas, o homem moderno parece adequar-se em

77
grande medida ao modelo comportamental do jitterbug. Em seu compor-
tamento ressentido, permeado pelo frenesi histérico e agressivo, combi-
nado com uma personalidade farsesca previamente imunizada contra po-
tenciais de autorreflexão, o jitterbug, originalmente pensado no interior de
contextos de fanatismo musical, emerge como protótipo do comporta-
mento autoritário que caracteriza a análise adorniana sobre o fascismo.
Porém, em sua mediação social, tal comportamento heterodirigido
não pode deixar de ser compreendido como ser-para-si do singular, inse-
rido em um processo histórico permeado pela manifestação do espírito.
Em sua mediação recíproca com as transformações da sociedade burguesa,
a tal modelo de individualidade heterodirigida são intrínsecos potenciais
de superação da heteronomia, tanto quanto ao espírito é própria uma re-
lação de contradição com seus momentos singulares. Assim, ainda que a
subjetividade seja em grande medida mediada pelo sistema social objetivo,
sendo sua constituição histórica inseparável das relações materiais, o sujeito
“inclui dentro de si aquilo a que ele se contrapõe” (ADORNO, 1995b, p.
196). Embora subsumido ao protótipo indigno do jitterbug, a condição de
impostura voluntária assinala a existência de potenciais de consciência e de
liberdade, encobertos por um fino um véu, e, justamente por isso, tão ob-
jetivamente verdadeiros quanto a própria heteronomia atualmente hege-
mônica. O conjunto de aporias que resulta da análise de Adorno sobre o
fascismo e a personalidade autoritária remete a um contexto de coisificação
do espírito que Adorno explicou a partir das contradições materiais da so-
ciedade burguesa, mediante a teoria da reificação de Lukács. Ao mesmo
tempo, as ressonâncias espirituais contidas nessa análise, exorbitam o apa-
rato conceitual da dialética materialista, remetendo a uma dimensão filo-
sófica que entendemos somente poder ser adequadamente compreendida
mediante o conceito de mal metafísico. Estudar o fascismo sob essa ótica
será o nosso objetivo na segunda parte desta tese acadêmica.

78
________________________________________________________

PARTE 2

O MAL
________________________________________________________
Capítulo 5

Ilusões do materialismo
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

As origens do materialismo moderno podem ser historicamente re-


metidas às profundas transformações ocorridas entre os quase 150 anos
que separam a publicação das obras centrais de Nicolau Copérnico e Issac
Newton, entre os séculos XVI e XVII. Durante esse período, convencio-
nalmente denominado Revolução Científica, foram propagadas novas e
ousadas concepções sobre o método científico, desde então exclusivamente
fundamentado na experimentação e na observação empírica dos fenôme-
nos e na autonomia da ciência em relação ao domínio da fé religiosa e da
teologia. A ciência despregou-se progressivamente dos modos de pensar
substancialistas e teleológicos da metafísica, adquirindo caráter autônomo
e público, e baseando-se em procedimentos mecanicistas empiricamente
controlados, quantificáveis e articulados com o progresso técnico. O ad-
vento da Revolução Científica sinalizou um processo de secularização que
necessariamente deveria conduzir a modalidades gradativamente aperfei-
çoadas de materialismo. O viés materialista pouco a pouco adquiriu hege-
monia cultural, graças à substituição da concepção metafisicamente depre-
ciativa da matéria, entendida como coisa bruta, passiva e amorfa, pela visão
valorativa que a caracteriza como causa fundamental dos fenômenos físicos
e espirituais. Embora Marx e Engels tenham atribuído as origens do mate-
rialismo dialético às contradições materiais intrínsecas ao desenvolvimento
da industrialização e ao acirramento da luta de classes no século XIX, a
formulação das teses acerca da primazia de uma dialética materialista é in-
separável do processo de secularização inaugurado pela Revolução Cientí-
fica. O conhecimento das determinações materiais da sociedade capitalista

81
e a exposição metódica das contradições entre capital e trabalho, longe de
se constituírem como condição para a redenção da humanidade, devem ser
compreendidos como mais um dentre os momentos paradigmáticos do
desdobramento do Espírito na história. Em termos rigorosamente filosófi-
cos, contrariando os pressupostos assumidos por Marx e Engels, é preciso
por o materialismo dialético de cabeça para baixo e evidenciá-lo hegeliana-
mente como experiência histórica do trajeto da consciência infeliz em seu
desenvolvimento necessário na direção do autoconhecimento.

Materialismo e ontologia

Um aspecto paradoxal do materialismo dialético reside na ambição


de opor-se de maneira contundente à tradição metafísica de pensamento,
mas ter ao mesmo tempo de se servir do método especulativo e teorético
da filosofia para atingir seus objetivos. Para contestar a metafísica, o mate-
rialismo tem de se dobrar à impossibilidade de produzir categorias concei-
tuais inteiramente puras e originadas dos fatores materiais cujo primado
propõe instaurar. A crítica filosófica mais incisiva aos parâmetros ontoló-
gicos da metafísica não se originou do materialismo dialético, pois foi rea-
lizada pelo empirismo filosófico britânico na primeira metade do século
XVIII. Baseando-se no pressuposto de que as ideias somente podem ser
originadas por sensações ou percepções empíricas, David Hume apresen-
tou o mais contundente argumento não somente contra o inatismo filosó-
fico, mas principalmente em direção contrária ao conceito fundamental da
metafísica. Para o filósofo, se as ideias derivam necessariamente das per-
cepções, a categoria metafísica da substância, entendida como substrato ou
conexão constante das percepções empíricas, converte-se em conceito cuja
necessidade racional é indemonstrável. A conexão das percepções é um fato

82
mental produzido pelo hábito, não podendo almejar a dignidade ontoló-
gica atribuída pela metafísica. O ceticismo empirista de Hume levou às
últimas consequências a crítica à metafísica, impossibilitando a própria
consistência lógica de qualquer tipo de universalidade conceitual, uma vez
que as percepções dizem respeito unicamente à experiência do particular,
jamais do universal. O filósofo soube explicitar o alcance de seu nomina-
lismo, expressando de maneira trágica sua condição de isolamento no ce-
nário filosófico do século XVIII, caraterizando a si próprio como “monstro
estranho e rude que, por incapaz de se misturar e se unir à sociedade, foi
expulso de todo o relacionamento com os outros homens e largado em
total abandono e desconsolo” (HUME, 2001, p. 296). No mesmo con-
texto histórico, é muito significativo constatar que George Berkeley ba-
seou-se igualmente no primado das percepções para demonstrar a incon-
sistência lógica de qualquer reflexão filosófica fundamentada em princípios
materiais. Partindo de idênticos pressupostos relacionados à primazia das
percepções, Berkeley defendeu a tese da inexistência da matéria, em virtude
da impossibilidade de demonstração da extensão como princípio autô-
nomo e independente das próprias percepções. Na interpretação do filó-
sofo, como a propriedade da extensão é sempre necessariamente acompa-
nhada de uma percepção, disso resulta não ser possível atribuir à extensão,
e por conseguinte à matéria em si mesma, uma qualidade substancial. É
digno de nota que Berkeley reconhece como substância apenas o espírito
divino e o espírito humano, o que lhe permite defender sua tese imateria-
lista. Em outras palavras, para esse filósofo empirista do século XVIII, o
espírito divino e o espírito humano são fundamentos muito mais consis-
tentes para reflexões filosóficas dedicadas à estrutura substancial do ser do
que o mundo material, que para ele é apenas uma ilusão produzida pelo
hábito.

83
O constrangimento do aparato conceitual do materialismo pela
adesão necessária à lógica especulativa e teorética pode ser compreendido
quando se recorda que o estatuto de “filosofia primeira” atribuído por Aris-
tóteles à metafísica implica sua qualidade de condicionar a validade de to-
das as demais áreas do conhecimento. A gênese da metafísica aristotélica
foi marcada pela indagação sobre o “ser-como-tal, diferente de cada ser
determinado e, contudo, atribuível a qualquer um deles, de modo que
pode ser tido como ‘o que é’ real no meio da diversidade dos seres deter-
minados” (MARCUSE, 1978, p. 50). A metafísica aristotélica diferencia-
se do platonismo por não ter atribuído ao ser-como-tal uma realidade in-
teligível distinta do mundo sensível, considerando-a como processo desen-
volvido no devir em que cada ser se movimenta no sentido de realizar suas
potencialidades intrínsecas. Ao servir-se do aparato conceitual original-
mente metafísico da ontologia para uma demarcação circunscrita ao domí-
nio da matéria, os pensadores materialistas tiveram que se render às inves-
tigações relacionadas com o significado primário e fundamental do ser.
Essa exigência, forçosamente aceita pelos defensores do primado da maté-
ria, impôs o ônus da demonstração da existência de um percurso para ates-
tar a estrutura substancial do ser sob termos alternativos ao mundo inteli-
gível platônico e ao finalismo aristotélico. A empresa materialista esteve
diante de um desafio impraticável, pois deveria contestar a metafísica, po-
rém tendo de se render inexoravelmente ao método inaugurado pelos pró-
prios pensadores metafísicos. Em outras palavras, ao enveredar pelo terri-
tório da filosofia, o materialismo dialético foi obrigado a adotar os termos
originalmente expostos por Aristóteles, em virtude da impossibilidade de
propor um aparato conceitual inteiramente novo para pensar a estrutura
do ser. Como a categoria da substância, entendida como estrutura neces-
sária do ser, teve de ser aceita como núcleo explicativo das determinações
de todas as coisas reais, o próprio método teorético contaminou a reflexão

84
filosófica de teor materialista. Os termos a seguir, concisamente expostos
por Aristóteles, transformaram-se em uma camisa de força para a filosofia
materialista:

não há dúvida que pertence à esfera de uma ciência especulativa desco-


brir se uma coisa é eterna, não submetida ao movimento e dissociável
da matéria, não sendo, todavia, a física essa ciência, pois a ciência da
natureza se ocupa de coisas submetidas ao movimento (…) Responde-
mos que se não há uma substância além das que são naturalmente com-
postas, a física será a ciência primeira; mas se há uma substância que
não está sujeita ao movimento, a ciência que estuda essa substância será
anterior à física e será a filosofia primeira, e neste sentido, universal,
porque é primeira. E caberá a essa ciência investigar o ser enquanto ser
- tanto o que é quanto os atributos que lhe pertencem enquanto ser
(ARISTÓTELES, 2001, p. 171).

Considerando a definição aristotélica, que atribui a prioridade do


ser divino sobre todas as modalidades de ser sujeitas ao devir e ao movi-
mento, a contestação da metafísica necessariamente requer demonstrar o
equívoco dessa primazia em favor de determinações de natureza material.
Diante da concepção metafísica de ser, os partidários do materialismo, ao
reivindicarem a primazia da matéria como causa ontológica, assumiram
desafios intelectuais cuja impossibilidade fica evidenciada pelo simples
exame atento desse texto clássico. Em primeiro lugar, é importante repetir,
o antagonista da metafísica é constrangido à aceitação do território origi-
nalmente inaugurado pela própria metafísica para realizar sua contestação,
o que implica a mobilização dos conceitos filosóficos de ser, substância,
ontologia, etc. Em segundo lugar, embora o pensador materialista apreci-
asse profundamente a prerrogativa de se abster da lógica especulativa ori-
ginalmente empregada pela argumentação filosófica, ele é obrigado a se

85
render à impossibilidade estrutural de mobilizar a demonstração experi-
mental a favor de seu projeto, uma vez que a física, sendo a ciência da
natureza que estuda o movimento, não se presta à categoria de filosofia
primeira. Essa segunda dificuldade mergulha o pensador materialista em
abismos lógicos embaraçosos, para cuja negligência é preciso contar sobre-
tudo com a boa vontade e complacência intelectual do leitor.

O materialismo e sua inconsistência filosófica

Partindo do pressuposto de que o materialismo dialético é tributá-


rio da Revolução Científica, que consagrou como verdadeiros somente os
conhecimentos engendrados pela elaboração de hipóteses a serem confir-
madas experimentalmente e traduzidas sob a forma de leis universalmente
válidas, a defesa filosófica de uma ontologia material somente poderia al-
mejar consistência teórica se seus fundamentos fossem passíveis de de-
monstração empírica. A inconsistência filosófica do materialismo dialético
torna-se evidente quando a análise dedicada às contradições intrínsecas à
troca de mercadorias na economia capitalista almeja assumir qualidades
ontológicas atinentes à própria natureza essencial da realidade. Em outras
palavras, o materialismo dialético, ao transgredir os limites da economia
política, em que conceitos fundamentais para a compreensão do mundo
contemporâneo encontram sólida demonstração empírica (como a mais-
valia), e almejar dignidade ontológica, é exposto a uma séria dificuldade
metodológica, pois não pode recorrer à autoridade empírica da ciência para
reflexões sobre as causas necessárias do ser. A rigorosa separação entre o
campo da metafísica, originalmente dedicado a problemas especulativos de
natureza teorética acerca do ser enquanto tal, vale dizer, não restrito a de-
limitações sensíveis, e o campo da ciência moderna, que se restringe, por

86
motivos metodológicos, a hipóteses e problemas experimentalmente cir-
cunscritos, compromete decisivamente as pretensões materialistas de pes-
quisa no campo da ontologia. Evidências eloquentes dessa impossibilidade
expõem-se com frequência digna de nota nos momentos em que Lukács
procura desqualificar a metafísica aristotélica, remetendo a distância irre-
dutível entre metafísica e ciência a uma simplória questão redutível à fé
religiosa:

Conceber teleologicamente a natureza e a história implica não somente


que ambas possuem um caráter de finalidade, que estão voltadas para
um fim, mas também que sua existência, seu movimento, no conjunto
e nos detalhes devem ter um autor consciente. O que faz nascer tais
concepções de mundo, não só nos filisteus criadores de teodiceias do
século XVIII, mas também em pensadores profundos e lúcidos como
Aristóteles e Hegel, é uma necessidade humana elementar e primordial:
a necessidade que a existência, o curso do mundo e até os acontecimen-
tos da vida individual – e estes em primeiro lugar – tenham um sentido.
Mesmo depois de o desenvolvimento das ciências demolir aquela on-
tologia religiosa que permitia ao princípio teleológico tomar conta, li-
vremente, de todo o universo, essa necessidade primordial e elementar
continuou a viver no pensamento e nos sentimentos da vida cotidiana
(LUKÁCS, 2013, p. 48).

A má-fé intelectual do argumento que reduz o abismo entre meta-


física e ciência moderna à mera necessidade subjetiva de atribuir sentido à
existência, omitindo o caráter teoreticamente irredutível das próprias am-
bições materialistas, é complementada pela ilusão insustentável de não só
atribuir à primeira o estatuto diminuído de “ontologia religiosa”, mas prin-
cipalmente por pretender que o progresso da ciência moderna tenha resol-
vido definitivamente a contenda entre o mundo inteligível e o mundo sen-
sível em favor das determinações da matéria. Na época moderna, a metafí-

87
sica aristotélica encontrou sua mais importante revisão por meio da filoso-
fia de Friedrich Hegel, que contestou a filosofia primeira em suas qualida-
des de fixidez e imobilidade, apresentando o Absoluto como sujeito infi-
nito que se realiza em uma relação dialética com o mundo finito. Mas é
importante observar que a contestação da imobilidade do Primeiro Motor
nem por isso prescindiu de uma referência fundamental e absoluta situada
para além do mundo físico. Em outras palavras, Hegel contestou a imobi-
lidade do Primeiro Motor, mas preservou o Absoluto, o motor em si
mesmo, como movimento eterno: “o verdadeiro é o todo. Mas o todo é
somente a essência que se implementa através de seu desenvolvimento”
(HEGEL, 2002, p. 36).
Na história da filosofia, uma das mais consistentes objeções ao ma-
terialismo foi formulada de maneira concisa por Gottfried Leibniz, ao
atentar para os abusos intelectuais que se comete sempre que conceitos da
metafísica são empregados para a explicação de fenômenos de natureza me-
canicista, ou, ao contrário, quando conceitos científicos são extrapolados
para o âmbito suprafísico. A reflexão de Leibniz é suficientemente ilustra-
tiva sobre a impossibilidade de que uma contestação filosoficamente con-
sequente da metafísica possa ser realizada mediante fundamentos materiais.
Demonstrando plena compreensão sobre a delimitação das fronteiras entre
metafísica e ciência moderna, o filósofo evidencia a existência de dois tipos
de saber, um baseado em formas substanciais que pesquisam a natureza
ontológica do ser, e outro fundamentado nos aspectos mensuráveis dos fe-
nômenos causais da natureza:

Já havia me aprofundado no oceano dos escolásticos, quando


matemáticos e autores modernos trouxeram-me à tona nova-
mente, enquanto ainda era muito jovem. Enfeitiçou-me o belo
modo como explicavam mecanicamente a natureza e, com ra-

88
zão, desprezei o método daqueles que apenas faziam uso de for-
mas substanciais ou faculdades, das quais nada aprendemos.
Mas, posteriormente, tentando ir mais profundamente nos
próprios princípios da mecânica, buscando explicar as leis da
natureza que são conhecidas mediante experiência, percebi que
a consideração da mera massa extensa é insuficiente, e que tam-
bém se deve empregar a noção de força, que é perfeitamente
inteligível, embora pertença à esfera da metafísica. Dei-me
conta, também, de que a opinião daqueles que transformam ou
rebaixam os animais a simples máquinas, embora isso pareça
possível, é implausível. É, na verdade, contrária à ordem das
coisas (LEIBNIZ, 2009, p. 56).

Em grande medida, a filosofia de Leibniz pode ser definida


como uma grandiosa síntese entre o mecanicismo moderno e a me-
tafísica antiga, além de propor uma rigorosa delimitação entre os
dois âmbitos. O mecanicismo da ciência moderna demonstra-se
como um paradigma adequado para o conhecimento da causalidade
eficiente dos fenômenos relativos à extensão. A metafísica perma-
nece válida como alicerce da racionalidade pela sua propriedade de
explicar o finalismo do mundo, que não pode ser extraído dos fe-
nômenos mecânicos. A distinção entre os dois âmbitos, bem como
o primado da metafísica como alicerce do conhecimento filosófico,
evidencia-se na diferença entre a causalidade eficiente, relativa ao
mecanicismo, e a causalidade suficiente, que remete as explicações
teleológicas para além do mundo material. O grande equívoco ori-
ginado da Revolução Científica, e, podemos acrescentar, comparti-
lhado pelos materialismos modernos, do positivismo ao marxismo,
reside em buscar explicações substanciais para a origem dos fenô-
menos físicos exclusivamente no âmbito da extensão. Esse equívoco

89
invalida o materialismo como campo ontológico, pois por sua pró-
pria natureza, a pesquisa materialista deve se restringir a uma se-
quência infinita de causas contingentes que condenam a explicação
do ser à completa impossibilidade. A renúncia obstinada a uma pes-
quisa de natureza substancial acerca da origem última do ser obriga
o materialista a assumir o pressuposto absurdo de que a matéria
possa ser causa de si mesma, proposição traidora da afinidade do
materialismo com a mentalidade dogmática que ele intenta denun-
ciar. A distinção lógica entre a causa eficiente e a causa suficiente,
que ao mesmo tempo explicita a impossibilidade do materialismo
se justificar no campo filosófico, é claramente apresentada por Leib-
niz:

Não poderíamos achar na matéria uma razão para o movimento


e menos ainda para qualquer movimento em particular. E desde
que qualquer movimento que se encontra na matéria no pre-
sente vem de um movimento prévio, e este também de um ou-
tro anterior, não avançaremos muito se assim procedermos in-
terminavelmente, pois a mesma questão sempre permanecerá.
Portanto, a razão suficiente, que não necessita de qualquer ra-
zão adicional, deve situar-se fora daquela série de coisas con-
tingentes e deve encontrar-se em uma substância que é a causa
das séries: deve situar-se em um Ser necessário, que traz em si
a razão de sua própria existência. Do contrário, ainda continu-
aríamos a não possuir uma razão suficiente na qual poderíamos
finalizar. E a razão final para as coisas é o que denominados
Deus (LEIBNIZ, 2009, p. 48).

90
A delimitação precisa entre os campos concernentes à meta-
física e à pesquisa experimental da matéria, realizada por Leibniz,
assim como sua reiterada advertência sobre a natureza mutuamente
irredutível entre os dois campos, possibilita uma compreensão ade-
quada dos equívocos do materialismo dialético ao extrapolar o âm-
bito da economia política e das mediações materiais, pressupondo
que elas possam se constituir como verdadeiras determinações do
ser. Na Ideologia alemã, há uma transição sutil, porém falaciosa, da
análise da esfera da produção e circulação de mercadorias na eco-
nomia, para o âmbito especificamente filosófico, e, portanto, espe-
culativo e teorético da estrutura do ser. Em um primeiro momento,
Karl Marx e Friedrich Engels criticam severamente o idealismo ale-
mão por produzir ilusões da consciência completamente desconec-
tadas da realidade material da sociedade alemã. Em oposição ao ide-
alismo, justificam que os pressupostos materialistas não se consti-
tuem como arbitrariedade ou dogmas, pois seus protagonistas “são
os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida,
tanto aquelas por eles já encontradas, como as produzidas por sua
própria ação. Estes pressupostos são, pois, verificáveis por via pura-
mente empírica” (MARX; ENGELS, 1999, p. 26-27). O critério
empírico é realçado como âncora epistemológica que diferencia as
fabulações extravagantes da análise idealista do rigorismo em rela-
ção à crítica material. Em um segundo momento, porém, a base
material da sociedade deixa de ser considerada um campo de medi-
ações influenciadoras da consciência, para se tornar uma esfera de
determinação do próprio ser:

91
O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, apare-
cem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O
mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na lingua-
gem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um
povo. (...) Totalmente ao contrário do que ocorre na filosofia alemã,
que desce do céu à terra, aqui se ascende da terra ao céu. (...) E mesmo
as formações nebulosas do cérebro dos homens são sublimações neces-
sárias do seu processo de vida material, empiricamente constatável e
ligado a pressupostos materiais. (...) A moral, a religião, a metafísica e
qualquer outra ideologia, assim como as formas de consciência que a
ela correspondem, perdem toda a aparência de autonomia. (...) Não é
a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a cons-
ciência (MARX; ENGELS, 1999, p. 36-37)

O texto citado, que figura entre os mais consagrados da teoria mar-


xista, sintetiza o aspecto filosoficamente problemático do materialismo di-
alético, quando este exorbita os limites da crítica da economia política e
sustenta, em termos puramente teoréticos, e, portanto, empiricamente in-
demonstráveis, a tese da determinação material dos conteúdos da consci-
ência. O caráter especulativo do argumento de Marx e Engels pode ser
evidenciado quando se considera o papel de mediação da base material em
relação à consciência no contexto das reflexões de Hegel sobre a dialética
entre senhor e escravo. Na fenomenologia do Espírito, o antagonismo en-
tre senhor e escravo representa o desdobramento das experiências humanas
na história como parte do desenvolvimento da autoconsciência: “toda a
vida espiritual repousa sobre essas experiências que estão hoje superadas na
história humana, mas que permanecem como sua base profunda” (HYP-
POLITE, 1999, p. 184). O paradigma hegeliano expõe o horizonte que se
abre para o escravo quando este, ameaçado pelo terror diante da morte, se
submete ao senhor, aceitando a atividade laboriosa sobre o mundo. “A di-
alética do Senhorio e da Servidão faz, desta sorte, surgir a figura da cons-
ciência da liberdade da consciência de si como verdade da certeza que ela

92
tem de si mesma: uma verdade que passa do sujeito ao mundo pela ativi-
dade da cultura” (VAZ, 1981, p. 23). Mediante a ampliação dos conheci-
mentos e capacidades humanas, a esfera do trabalho proporciona condi-
ções potenciais para a superação da escravidão e do sofrimento, e para a
realização da liberdade. Como para Hegel a realização da razão não se cons-
titui como fato consumado, mas como tarefa histórica dos sujeitos huma-
nos, a superação da opressão jamais pode ser automática, pois depende da
capacidade dos espíritos de converterem os potenciais de liberdade em re-
alidade histórica. Sob termos rigorosamente distintos do mecanicismo ma-
terialista de Marx e Engels, que pressupõe a relativa passividade da consci-
ência em relação aos imperativos objetivos do trabalho, Hegel expõe os
horizontes de liberdade potencialmente abertos à consciência pela supera-
ção dialética da atividade servil. Na dialética hegeliana entre senhor e es-
cravo, a esfera material não se constitui como infraestrutura determinante
dos conteúdos da consciência, pois esta permanece potencialmente autô-
noma em relação à base material da sociedade. Se os homens da era mo-
derna converteram os produtos do trabalho social em valores de uso que
assumem uma aparência fantasmagórica e fetichista, negligenciando as ne-
cessidades mais básicas da humanidade, atribuir à esfera material a quali-
dade duvidosa de determinação dos conteúdos da consciência equivale a
fetichizar o próprio fetichismo da mercadoria. Ao extrapolar o âmbito da
análise empírica, e expor a tese teorética e especulativa da determinação da
consciência pela base material da sociedade, Marx e Engels inauguraram o
ofício da prestidigitação materialista, elevando o fetichismo da mercadoria
à segunda potência.
Anteriormente, à Ideologia alemã, os Manuscritos econômico-filosó-
ficos apresentaram o pano de fundo teorético-especulativo para que a base
material fosse abusivamente elevada à condição de determinação não ape-
nas dos conteúdos da consciência, mas também da própria subjetividade,

93
fornecendo os subsídios intelectuais para a teoria da reificação de Lukács.
Nos Manuscritos, Marx empreende o mais importante e consistente traba-
lho de crítica rigorosa dos pressupostos da economia política de sua época,
que compreendia de maneira abstrata a relação entre trabalho e capital. A
principal contribuição da crítica endereçada por Marx ao funcionamento
da economia consiste na aplicação do conceito originalmente hegeliano de
alienação para a análise das contradições materiais no capitalismo. A alie-
nação deixa, então, de se referir unicamente à esfera da consciência com a
realidade, passando a expressar a relação de estranheza do trabalhador com
os produtos de seu próprio trabalho. Estes adquiriram a propriedade ideo-
logicamente encobridora de aparecer como um poder estranho, indepen-
dente e antagônico em relação ao conjunto de trabalhadores. O processo
de fetichização da mercadoria, decisivamente envolvido na alienação do
trabalho, foi dissecado por Marx através de uma análise empírica porme-
norizada, traduzida nas conhecidas equações que descrevem a transforma-
ção do trabalho concreto em trabalho abstrato. O aspecto problemático
em termos metodológicos da análise de Marx sobre o fetichismo da mer-
cadoria, reside em estender a validade da análise materialista para além dos
limites empíricos em que ela se demonstra indiscutivelmente legítima, isto
é, expandindo a crítica materialista para o domínio especulativo da filosofia.
O fenômeno da coisificação, adequadamente comprovado no plano da ali-
enação do trabalho, converte-se em uma tese desprovida de fundamentos
empíricos quando almeja estender sua validade para o âmbito do espírito.
Uma vez reduzida a dimensão espiritual a um domínio amplamente vul-
nerável a determinações materiais, o argumento de que a revolução nas
relações entre capital e trabalho pudesse automaticamente provocar uma
transformação radical no âmbito da subjetividade é exposto sem que seus
fundamentos lógicos e especulativos sejam problematizados: “Portanto, to-
dos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela alienação de

94
todos os sentidos, pelo sentido do ter. (…) A supressão da propriedade
privada constitui, desse modo, a emancipação total de todos os sentidos e
qualidades humanas. Mas só é esta emancipação porque os referidos senti-
dos e propriedades se tornaram humanos, tanto do ponto de vista subjetivo
como objetivo” (MARX, 2002, p. 142). O método especulativo de pensa-
mento, originalmente próprio à metafísica, assimilado pela dialética mate-
rialista, faz tábua rasa do inatismo espiritual, convertendo o espírito hu-
mano em instância amplamente condicionável pelos fatores materiais da
sociedade. Com a sonhada superação da propriedade privada, o pensador
materialista se sente autorizado a supor que “a necessidade ou o prazer per-
deram portanto o aspecto egoísta e a natureza perdeu a sua mera utilidade,
na medida em que a sua utilização se tornou humana” (MARX, 2002, p.
142). Embora a referência ao domínio empírico dos fatos concretos da so-
ciedade seja o argumento mais importante empregado por Marx para legi-
timar sua análise materialista em relação ao idealismo hegeliano e à meta-
física em geral, ao hipostasiar o espírito como simples matéria-prima mol-
dável pelo capital, sua argumentação é privada de consistência filosófica.
Negligenciando o caráter específico do ofício filosófico, o pensador mate-
rialista lança contra a filosofia acusações irrefletidas que omitem sua pró-
pria inconsistência.

Berkeley e a crítica do caráter substancial da matéria

Na esfera especificamente filosófica o primado do espírito em de-


trimento da matéria não se constitui somente como herança metafísica dos
primórdios da filosofia, no registro platônico, aristotélico e escolástico, mas
igualmente foi objeto de ampla reflexão no período moderno. A esse res-
peito, não é desprezível que justamente a escola empirista britânica do sé-
culo XVII, ao mesmo tempo em que produziu a mais contundente crítica

95
de natureza antimetafísica, foi também aquela que concluiu pela rigorosa
impossibilidade de que a matéria, por ser incapaz de afetar os sentidos hu-
manos, pudesse abandonar seu estatuto de objeto bruto e passivo. No âm-
bito da filosofia empirista, embora John Locke tenha se baseado na distin-
ção antiga inaugurada por Demócrito entre qualidades primárias, que se-
riam intrinsecamente objetivas e originadas dos objetos materiais, e quali-
dades secundárias, subjetivas e diretamente herdadas das primeiras, Berke-
ley dedicou-se a uma crítica detalhada e amplamente desfavorável a uma
suposta existência das qualidades primárias nos objetos materiais. Em Três
diálogos entre Hilas e Filonous, Berkeley desenvolveu às últimas consequên-
cias o argumento fundamental da filosofia empirista, que consiste na pri-
mazia das sensações como fundamento irredutível das ideias. O filósofo
inicia discorrendo sobre a natureza subjetiva das qualidades secundárias,
expondo o caráter impreciso inerente a cores, sons, sabores, ruídos, os quais
se mostram variáveis de acordo com contextos e condições dos sujeitos sin-
gulares. Em um segundo momento, o filósofo contesta o caráter objetivo
das próprias qualidades primárias, como extensão, solidez, peso e movi-
mento, argumentando que basta refutar o caráter primário da extensão
como atributo inerente aos corpos, para que os demais atributos sejam
igualmente contestados, uma vez que são insustentáveis sem a extensão. O
argumento apresentado pelo personagem berkleyano Filonous, que repre-
senta o empirismo como instância cética da filosofia, consiste em alegar a
impossibilidade ontológica da concepção da extensão como ideia geral e
universal, vale dizer, desconectada de qualquer corpo singular. A ideia de
extensão, assim como as demais ideias gerais, somente faz sentido se estiver
anexada a um objeto específico, argumento de natureza nominalista, con-
trário à universalidade das ideias, e demonstrador da impossibilidade de
que a extensão possa ser uma categoria absoluta, um substrato qualificativo
que exista primariamente na matéria em si mesma:

96
H. Ora, se bem que se reconheça que grande e pequeno só consistem na
relação de outros corpos extensos com tais ou tais partes do nosso corpo,
não sendo portanto realmente inerentes às próprias substâncias a que
se reportam – nada nos obriga a pensar o mesmo por aquilo que se
refere à extensão absoluta, que a algo extraído de pequeno e de grande,
desta ou daquela particular figura, desta ou daquela particular grandeza.
(…) F. Peço que me digais o que distingue um movimento, ou um
pedaço de extensão, de qualquer outro? Não será algo sensível, como
certo grau de rapidez ou de lentidão para o primeiro, ou certa grandeza
ou certa figura particular para cada parte de extensão? (…) É uma má-
xima universalmente recebida que tudo que existe é particular. E nesse
caso, como é que o movimento em geral ou a extensão em geral podem
ter existência numa substância corpórea? (BERKELEY, 1980, p. 63-
64).

A argúcia e penetração profunda da argumentação filosófica de


Berkeley é altamente relevante para que se possa compreender os aspectos
falaciosos do materialismo dialético, quando este extrapola o campo da crí-
tica empírica da economia política e atribui à matéria a propriedade de
determinar conteúdos da consciência e da subjetividade. O primeiro as-
pecto a ser considerado reside na delimitação estritamente teorética e espe-
culativa do argumento de Berkeley quanto ao alcance do domínio da ex-
periência humana com os objetos. O máximo que é possível dizer acerca
da relação entre a consciência humana e os objetos da experiência é que
aquela se relaciona unicamente com as sensações, não sendo possível à
mente humana relacionar-se com substâncias materiais independentes da
mente. Mesmo quando se considera o caráter subjetivo das qualidades se-
cundárias (cor, sabor, olfato, etc.) e se busca refúgio nas qualidades primá-
rias (extensão, peso, movimento, etc.), o filósofo assevera que estas consis-
tem igualmente em sensações empíricas, unicamente relativas à mente, e
que não podem ser atribuídas aos objetos como qualidades primárias, su-
postamente objetivas e inerentes à matéria. A partir da filosofia de Berkeley,

97
portanto, a própria empiria é reduzida ao domínio subjetivo das sensações,
que são a matéria-prima fundamental mediante a qual é possível constituir
o conhecimento objetivo do mundo. O nominalismo de Berkeley autoriza
somente a constituição de um conhecimento objetivo derivado das sensa-
ções experimentadas pela mente, impossibilitando que a matéria possa ser
considerada um substrato de qualidades primárias do próprio objeto. Em
segundo lugar, é lícito concluir que, do ponto de vista rigorosamente teo-
rético e especulativo, as inferências supostamente empíricas de Marx sobre
a vulnerabilidade dos sentidos humanos aos fatores materiais da sociedade,
constituem-se como uma hipótese filosófica insustentável, pelo fato de ine-
xistir um substrato material capaz de coisificar o espírito. Em nome do
empirismo a que recorre para desqualificar o idealismo, Marx e seus segui-
dores teriam que apresentar as provas empíricas de uma tal influência, o
que é rigorosamente impossível.
É importante esclarecer que a exposição do argumento de Berkeley
acerca da inconsistência da tese cartesiana sobre o caráter substancial da
extensão na presente pesquisa não tem o objetivo de endossar a tese ima-
terialista do filósofo. O objetivo visado consiste somente em expor que, se
o único conteúdo das relações dos homens com os objetos materiais e dos
homens entre si, consiste nas ideias derivadas das sensações experimentadas
por meio dos sentidos (visão, audição, tato, etc.), isso significa que o do-
mínio das relações materiais deve ser entendido como domínio das relações
entre espíritos humanos, mediados pelas sensações. Em outras palavras, a
esfera material do trabalho influencia decisivamente o destino dos homens
singulares e da civilização, porém essa influência é determinada pela quali-
dade da relação que os espíritos estabelecem com o produto do trabalho,
não sendo uma determinação da matéria em si mesma. Em um mundo
dotado de elevada produtividade material e extrema abundância de riqueza
sob a forma de mercadorias e serviços, se a opressão, a fome e o sofrimento

98
persistem, tais padecimentos não podem ser atribuídos a supostas determi-
nações emanadas da matéria, mas sim à qualidade das relações estabelecidas
pelos espíritos humanos entre si e em sua relação com o produto de seu
trabalho. A esse respeito, é altamente relevante recordar a advertência con-
cisa e esclarecedora de Freud sobre o caráter rigorosamente secundário da
alteração no regime de propriedade como condição para uma vida mais
justa e pacífica. Abordando o problema sob o ponto de vista do aparato
conceitual da psicanálise, a análise freudiana aproxima-se consideravel-
mente dos pressupostos hegelianos que valorizam a inteireza da consciência
na relação com os produtos do trabalho:

Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de


nossos males. Segundo eles, o homem é inteiramente bom e bem-
disposto para com seu próximo, mas a instituição da propriedade pri-
vada corrompeu-lhe a natureza. Se a propriedade privada fosse abo-
lida, possuída em comum toda a riqueza e permitida a todos a parti-
lha de sua fruição, a má vontade e a hostilidade desapareceriam entre
os homens. Como as necessidades de todos seriam satisfeitas, nin-
guém teria razão alguma para encarar outrem como inimigo; todos,
de boa vontade, empreenderiam o trabalho que se fizesse necessário.
Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema co-
munista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é
conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as pre-
missas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão insus-
tentável (MARX, 1974, p. 134-135).

Reconhecendo-se a validade e elevada relevância da análise de


Marx sobre o funcionamento da economia política, especialmente em sua
propriedade de denunciar o estado de alienação na esfera do trabalho, e,
como decorrência disso, o empobrecimento e aviltamento da vida hu-
mana em diversos campos essenciais da existência, é preciso reconhecer
igualmente que a persistência da miséria e do irracionalismo, sob o ponto

99
de vista teorético e especulativo da filosofia, deve ser atribuída a uma rei-
ficação espiritual que não é determinada pelas contradições entre capital
e trabalho, mas pela pobreza ética e moral de homens que se rebaixam à
transformação do espírito em coisa. Da esfera das relações materiais ori-
ginam-se influências que tanto podem ampliar o domínio da liberdade e
da felicidade entre os homens, caso estejam teleologicamente afinadas
com o progresso do Espírito, como podem disseminar a barbárie e a
opressão. Se a esfera da atividade material manifesta-se empiricamente
como uma autêntica maldição que parece determinar inteiramente os as-
pectos qualitativos da vida humana, disseminando opressão e sofrimentos
físicos e emocionais dos mais diversos, isso se deve sobretudo à passivi-
dade dos espíritos humanos que se contentam em transformar a realidade
em uma aparência fantasmagórica e fetichista, omitindo-se à realização
dos potenciais de liberdade do Espírito na presente época.

Lukács e a ontologia do ser social

Ao pretender derivar, da análise realizada por Marx e Engels, os


fundamentos de uma crítica à metafísica, o pensamento de Lukács distorce
o conceito filosófico de ontologia, que em seu sentido original e aristotélico
apresenta-se como estudo das determinações necessárias do ser, correspon-
dendo à prioridade do ser divino em relação a todas as outras formas de
existência. A ontologia esteve originalmente entrelaçada com a teologia,
pois pressupõe uma hierarquia dos saberes relacionada com a excelência ou
perfeição de seus respectivos objetos, quando confrontados com a perfeição
divina. A ontologia corresponde ao estudo da substância, isto é, das deter-
minações do ser enquanto ser e não de suas manifestações acidentais, no
duplo âmbito do espírito e da extensão. No sentido originalmente aristo-
télico, a ontologia, portanto, é inseparável de horizontes finalistas, que

100
pressupõem o ordenamento inteligente de todas as coisas com vistas ao
atingimento da perfeição do Primeiro Motor Imóvel. A verdadeira causa
de todas as coisas, e de todo devir existente, é a imitação do ser divino, o
que implica, portanto, que a realidade não é determinada por meros even-
tos casuais, mas pelo finalismo intrínseco ao ser. A versão materialista pro-
posta pelo pensador húngaro simplifica e reduz o conceito aristotélico de
ontologia ao circunscrevê-lo exclusivamente à esfera do trabalho e, em con-
sequência, ao âmbito da extensão e da materialidade. Para Lukács, todas as
determinações do ser originam-se do trabalho, entendido como ação ori-
entada pela transformação de objetos naturais em valores de uso, em detri-
mento do finalismo metafísico. Baseando-se no significado atribuído por
Marx, que nega a existência de qualquer teleologia extrínseca à práxis,
Lukács propõe que “o trabalho não é uma das muitas formas fenomênicas
da teleologia em geral, mas o único ponto onde se pode demonstrar onto-
logicamente um pôr teleológico como momento real da realidade material”
(LUKÁCS, 2013, p. 51). Isso significa que o finalismo, categoria filosófica
originalmente relacionada com a imitação da perfeição divina pelos seres,
passa a corresponder a um ato consciente mediado pela base material da
sociedade, em outras palavras, a um “pôr” teleológico. A esfera do finalismo
é então rebaixada ao arbítrio e ao engenho humano.
Após redefinir o significado do conceito filosófico de ontologia,
restringindo-o às determinações materiais do ser, Lukács se empenha em
explicar o próprio dualismo entre mundo espiritual e mundo material não
como pressuposto ontológico essencial para o pensamento filosófico, mas
como concepção abstrata em si mesma, exclusivamente derivada das con-
tradições materiais intrínsecas à esfera do trabalho. A concepção hegeliana
do desenvolvimento da história da filosofia como processo necessário do
espírito rumo à autoconsciência, seria, nos termos de tal análise materia-
lista, um conjunto de visões desorientadoras que buscaram resolver, no

101
plano lógico-gnosiológico, problemas filosóficos que somente podem ser
corretamente propostos mediante uma compreensão ontológica relativa
aos imperativos do trabalho. Decorrente desse autoengano filosófico, a for-
mulação de um sustentáculo espiritual autônomo e autárquico, identifi-
cado como “alma” faria parte de um conjunto de dogmas teológico-trans-
cendentes ideologicamente comprometidos com o fetichismo da dualidade
entre pensamento e extensão. Assumindo uma posição antagônica frente a
tal dualismo, Lukács propõe uma compreensão da consciência humana
desdobrada em duas dimensões fundamentais. Em primeiro lugar, contra
todo finalismo transcendente, ela é concebida como portadora exclusiva
dos “pores teleológicos da práxis” (LUKÁCS, 2013, p. 13). Em segundo
lugar, embora dotada de relativa autonomia que impede sua caracterização
como mero epifenômeno biológico, a consciência permanece “indissocia-
velmente ligada ao processo de reprodução biológico do seu corpo”
(LUKÁCS, 2013, p. 130). A origem e a finitude da consciência são consi-
derados por ele fatos objetivamente ontológicos, indissolúveis do desen-
volvimento biológico do organismo humano, perspectiva que não dá mar-
gem a especulações teológicas acerca da imortalidade da alma.
O primado materialista adotado por Lukács na análise da sociedade
é acompanhado de um ponto de vista monista sobre a relação entre cérebro
e consciência. O argumento apresentado para defender essa posição baseia-
se na tese fisicalista desenvolvida no campo investigativo da biologia: “evi-
dentemente, o desenvolvimento da ciência biológica fornece sempre argu-
mentos novos e melhores a favor da inseparabilidade entre consciência e
ser, a favor da impossibilidade da existência da ‘alma’ como substância au-
tônoma” (LUKÁCS, 2013, p. 133). Ao manifestar uma confiança irrestrita
na viabilidade científica de uma demonstração empírica do monismo entre
cérebro e consciência, o pensador húngaro expõe uma confiança ingênua

102
que se mostraria injustificada pelo próprio progresso das pesquisas neuro-
científicas a partir dos anos 1990. Em sentido antagônico às esperanças por
“argumentos novos e melhores” em favor do monismo, as técnicas de ima-
geamento do cérebro desde então aplicadas na pesquisa da correlação entre
atividades neurais e processos cognitivos, demonstraram-se um fracasso no
tocante à comprovação experimental do fisicalismo. A grande dificuldade
para se demonstrar uma relação de causalidade mecânica entre o metabo-
lismo cerebral e as experiências subjetivas reside no fato de a introspecção
não fornecer acesso diretor às conexões físicas entre os neurônios (TEI-
XEIRA, 2012, p. 19). O entusiasmo científico expressivamente notável
desde o aparecimento das técnicas de escaneamento da atividade cerebral
tem sido acompanhado até o presente momento pela existência de um hi-
ato explicativo entre mente e cérebro, altamente sugeridor não somente da
irredutibilidade dos processos mentais às conexões neuronais, como tam-
bém da própria incomensurabilidade do cérebro (TEIXEIRA, 2012, p.
20;59).
O caráter irredutível das categorias conceituais metafísicas para o
conhecimento ontológico do ser explicita os obstáculos que se colocam
para o materialismo sempre que se pretende derivar dos aspectos materiais,
sejam eles relativos ao positivismo científico ou ao marxismo, os funda-
mentos substanciais da realidade. Não é somente no que se refere às con-
tradições materiais da sociedade ou quanto às limitações do fisicalismo no
campo da neurociência que se coloca a fragilidade das hipóteses materia-
listas para explicar os fundamentos do ser. Mesmo no âmbito das explica-
ções de natureza químico-biológica para a origem da vida, embora os cien-
tistas naturais tenham orgulho de seus modelos reducionistas graças aos
quais é possível compreender o desenvolvimento dos seres vivos através das
interações físico-químicas entre moléculas, e por meio das metáforas com-

103
putacionais baseadas na síntese do DNA, é forçoso reconhecer a insufici-
ência do código genético para explicar o processo de desenvolvimento dos
seres vivos. As informações genéticas em si mesmas, embora coadunadas
com a causalidade mecânica são completamente insuficientes como fun-
damento explicativo da precisão milimétrica que preside o desenvolvi-
mento embrionário das espécies, pois seria necessário explicar como tais
processos se desenvolvem de maneira exata e rigorosamente planejada. Essa
insuficiência do materialismo como paradigma explicativo dos fundamen-
tos dos fenômenos vitais é apropriadamente superada no sistema filosófico
de Hegel, em que a natureza é compreendida como exteriorização da Ideia,
e, portanto, é entendida como parte da vida do Espírito. Sob essa perspec-
tiva mais ampla os diversos tipos de materialismo devem ser entendidos
em seu caráter especulativo, como conjuntos de postulados, vale dizer,
como proposições empiricamente indemonstráveis e portanto incapacita-
das para valer como fundamento filosófico da natureza do ser. A conside-
ração desse princípio simples, inspirado na economia de meios proposta
na navalha de Ockham seria suficiente para poupar a muitos pensadores o
esforço de demonstrar o materialismo por meio de argumentos materialis-
tas.
Materialismo, reificação e vida danificada

A inconsistência filosófica do materialismo é abordada no presente


trabalho com o objetivo primordial de problematizar a teoria da reificação
de Lukács, em virtude de seu papel central na análise de Adorno sobre o
fascismo e a vida danificada. A tese do pensador húngaro sobre o condici-
onamento da subjetividade e da experiência dos homens entre si pelo apa-
rato material é amplamente apropriada por Adorno em sua análise da vida
danificada. Na Dedicatória de Minima Moralia, endereçada a Horkheimer,
a dissolução do sujeito e o processo de danificação da subjetividade são

104
explicitamente atribuídos às mediações materiais: "quem quiser saber a ver-
dade acerca da vida imediata tem que investigar sua configuração alienada,
investigar os poderes objetivos que determinam a existência até o mais re-
côndito dela" (ADORNO, 1992, p. 7). Na Dialética do esclarecimento, ao
analisar o processo de manipulação das massas, Adorno e Horkheimer ca-
racterizaram a coisificação como confisco previamente realizado pela in-
dústria cultural, da própria capacidade do indivíduo em realizar interna-
mente a correspondência entre intuições sensíveis e categorias lógicas do
entendimento, processo originalmente denominado por Kant como "es-
quematismo":

a função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber,


referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamen-
tais, é tomada ao sujeito pela indústria. Ela executa o esquematismo
como primeiro serviço a seus clientes. (...) Tudo vem da consciência,
em Malebranche e Berkeley da consciência de Deus; na arte para as
massas, da consciência terrena das equipes de produção (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 117).

Ainda na Dialética do esclarecimento, a coisificação é retratada em


suas implicações psicanalíticas, pela formulação da tese sobre a obsolescên-
cia da tópica freudiana que postula o ego como entidade mediadora dos
conflitos entre id e superego. No capitalismo tardio, a individualidade au-
tônoma, tornada um empecilho para o bom andamento da reprodução do
capital, é anulada por uma administração diretamente exercida pelo apa-
rato econômico sobre as pulsões do sujeito: "os sujeitos da economia pul-
sional são expropriados psicologicamente e essa economia é gerida mais
racionalmente pela própria sociedade. A decisão que o indivíduo deve to-
mar em cada situação não precisa mais resultar de uma dolorosa dialética
interna da consciência moral, da autoconservação e das pulsões"

105
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 189). É no âmbito do aparato
conceitual freudiano que Adorno leva às últimas consequências o alcance
das mediações materiais sobre a intimidade subjetiva, em outras palavras,
o alcance da coisificação, tal como postulada por Lukács: "para as pessoas,
na esfera profissional, as decisões são tomadas pela hierarquia que vai das
associações até a administração nacional; na esfera privada, pelo esquema
da cultura de massa, que desapropria seus consumidores forçados de seus
últimos impulsos internos" (ADORNO;HORKHEIMER, 1985, p. 190).
A leitura de duas obras seminais de Adorno, Minima Moralia e Di-
alética do esclarecimento, explicita a importância nuclear da teoria da reifi-
cação de Lukács na análise da vida danificada e da anulação da individua-
lidade no capitalismo tardio. A concepção do indivíduo como subjetivi-
dade singular dotada de autonomia no capitalismo tardio, para Adorno, é
aparência social encobridora da determinação coletiva de todas as formas
e conteúdos da consciência. As reações subjetivas, "há muito tempo, não
passam de produtos secundários dessa universalidade que celebra habil-
mente os homens, a fim de poder se dissimular melhor por trás deles e
melhor retê-los em andadeiras"(ADORNO, 2009, p. 261). Por outro lado,
em uma posição rigorosamente antagônica ao materialismo de Adorno,
quando se considera o conjunto da história da filosofia ocidental, é possível
atestar que uma interpretação da realidade humana que concede primazia
à matéria em detrimento do espírito é fenômeno historicamente muito re-
cente, propagado desde o contexto da Revolução Científica dos séculos
XVI e XVII. Em contraste com a valorização do materialismo, na história
da filosofia, a substância extensa cartesiana ocupou um lugar predominan-
temente secundário, que será aqui muito brevemente recapitulado em seus
aspectos mais relevantes. A partir da recuperação das referências metafísicas,
será possível compreender com maior clareza os aspectos problemáticos do
materialismo de Adorno em relação à concepção de sujeito.

106
Capítulo 6

A esfera metafísica
__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Contrariamente ao materialismo, desde Platão, a história da filoso-


fia foi marcada pela primazia do espírito sobre a matéria. Na acepção pla-
tônica, a supremacia do mundo inteligível das formas e ideias absolutas em
relação ao mundo sensível dos corpos teve como principal justificativa a
insuficiência das causas mecânicas e físicas como explicação para as ques-
tões filosóficas mais fundamentais. Da impossibilidade de explicação dos
fenômenos do mundo sensível unicamente mediante o apelo a causas me-
cânicas, originou-se a atribuição de tais causas à esfera suprasensível, pos-
teriormente batizada por Aristóteles como metafísica. O filósofo estagirita,
embora tenha criticado os fundamentos do esquema platônico, principal-
mente mediante a destituição do mundo inteligível como núcleo explica-
tivo do ser, manteve a matéria em uma esfera secundária e dependente de
qualidades inteiramente extrínsecas a ela. Sua teoria das quatro causas su-
bordina a matéria ao finalismo divino, considerando-a portadora de po-
tências a serem atualizadas, e tornando-a dependente do movimento imi-
tativo da perfeição do Primeiro Motor Imóvel. Posteriormente, Santo
Agostinho inaugurou o trajeto subjetivista que se tornaria decisivo para a
filosofia moderna, apresentando a certeza da existência e potencialidade
intrínseca da alma como premissa indubitável e rigorosamente superior à
própria certeza da existência do mundo material. O argumento agostini-
ano seria posteriormente retomado por Descartes, cujo dualismo entre
substância pensante e substância extensa, tornou-se a mais importante re-

107
ferência filosófica acerca da relação entre mente e mundo material. A filo-
sofia cartesiana não somente considerou, mediante uma cadeia argumen-
tativa análoga à de Agostinho, a alma humana como realidade mais clara e
distinta, e portanto superior à esfera sensível dos corpos físicos, como tam-
bém, ao reduzir a matéria unicamente à qualidade da extensão, determinou
a existência "de uma realidade global dividida em duas vertentes clara-
mente distintas e irredutíveis uma à outra: a res cogitans no que se refere ao
mundo espiritual e a res extensa no que concerne ao mundo material. Não
existem realidades intermediárias" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 377).
No mundo moderno, Leibniz encarregou-se de delimitar com cla-
reza a heterogeneidade entre conhecimentos metafísicos e conhecimentos
científicos modernos. Diante do prestígio do mecanicismo oriundo da Re-
volução Científica, Leibniz retomou a segunda navegação platônica para
demonstrar a insuficiência ontológica do paradigma materialista. O meca-
nicismo jamais poderia explicar as verdadeiras causas dos fenômenos sen-
síveis, pois estas são de natureza não-sensível, e portanto, radicadas na es-
fera do finalismo metafísico. Por outro lado, análoga advertência foi diri-
gida pelo filósofo às pretensões dos pensadores metafísicos de desprezar as
explicações mecanicistas em favor de hipóteses ontológicas. Para Leibniz,
a mesma inadequação que compromete a ciência quando esta despreza o
finalismo metafísico, igualmente compromete a filosofia quando esta se
intromete na explicação dos fenômenos físicos. O filósofo reconhece a re-
levância das teorias mecanicistas modernas para a formulação de conheci-
mentos válidos sobre o mundo material, porém ressalta sua completa ina-
dequação para explicar os acontecimentos do espírito e o finalismo do
mundo. Assim como no passado os filósofos metafísicos incorreram em
enganos sucessivos ao tentar compreender os fenômenos mecânicos por

108
meio de explicações substancialistas, da mesma forma, os cientistas moder-
nos falham quando reduzem os fenômenos espirituais à causalidade mecâ-
nica:
Estou de acordo em que a consideração destas formas [substanciais] de
nada serve no pormenor da física, e não deve empregar-se na explicação
dos fenômenos em particular. Foi nisto que erraram os nossos escolás-
ticos. (...) Mas este mau uso das formas não nos deve levar a rejeitar
uma coisa cujo conhecimento é tão necessário em metafísica que, sem
ele, não se poderiam conhecer bem os primeiros princípios, nem elevar
suficientemente o espírito ao conhecimento das naturezas incorpóreas
e das maravilhas de Deus; (...) de igual modo um físico pode dar razão
das experiências mais simples (...) sem precisar de considerações gerais
que são de uma outra esfera; e se para isso empregar o concurso de
Deus ou alguma alma, arché ou outra coisa dessa natureza, é tão extra-
vagante como aquele que, numa deliberação prática importante, qui-
sesse entrar em grandes raciocínios sobre a natureza do destino e da
nossa liberdade (LEIBNIZ, 2004, p. 28).

Idêntica incomensurabilidade e irredutibilidade entre espírito e


matéria é subjacente à explicação dada pelo filósofo acerca da diferença
entre coisas espirituais e coisas materiais desde o âmbito de sua natureza
ontológica, sob uma análise teológica:

Em comparação com estas [formas materiais], os Espíritos e as Almas


racionais são como pequenos deuses, feitos à imagem de Deus e que
possuem dentro de si um raio de luz divina. É por isso que Deus go-
verna os Espíritos como um príncipe governa seus súditos ou como um
pai cuida de suas crianças; enquanto Ele se ocupa de outras substâncias
como um engenheiro manipula seus engenhos. Assim, os Espíritos têm
leis especiais que os elevam acima das operações mecânicas do reino da
matéria (LEIBNIZ, 2009, p. 58).

109
A relação de independência entre a esfera material e a esfera espiri-
tual encontrou equivalência na história da filosofia ocidental no dualismo
kantiano entre razão pura e razão prática. No âmbito da razão pura, o filó-
sofo de Konigsberg circunscreveu como limites para o conhecimento inte-
lectivo dos objetos materiais o domínio da experiência fenomênica. Por
outro lado, no âmbito da razão prática, a possibilidade de ir além dos limi-
tes fenomênicos torna-se legítima, uma vez que a determinação da vontade
mediante a lei moral não pode ser condicionada pelo domínio empírico, e,
portanto, exige acesso à realidade numênica, que é interditada à razão pura.
A incondicionalidade do imperativo categórico como lei universalmente
válida para todos os seres humanos deriva, assim, de sua completa inde-
pendência das condições acidentais e relativas a contextos históricos e so-
ciais específicos. A razão prática kantiana, ao postular o dever moral como
princípio rigorosamente autônomo frente a condicionamentos empíricos,
pressupõe, em consequência, idêntica independência do espírito em rela-
ção à base material de uma dada sociedade. Em sua Metafísica dos costumes,
a virtude de caráter, considerada como qualidade em constante progresso,
embora objetivamente inatingível em sua máxima potência, é definida a
partir do fundamento da liberdade do espírito: "visto que a virtude está
baseada na liberdade interior, encerra um comando positivo dirigido a um
ser humano, a saber, submeter todas as suas capacidades e inclinações ao
controle (de sua razão) e assim dominar a si mesmo" (KANT, 2010, p.
171).

Espírito e autoconsciência

A autonomia do espírito frente à realidade material foi levada às


últimas consequências no idealismo hegeliano. Na Fenomenologia do espí-

110
rito, a concepção da consciência como instância capaz de autoconheci-
mento é elevada à condição de autoconsciência absoluta, ou Espírito. Na
obra Razão e revolução, Herbert Marcuse descreve com clareza o percurso
hegeliano de desenvolvimento dos potenciais da consciência rumo ao está-
gio maior da autoconsciência, pela análise da dialética entre senhor e es-
cravo. O encontro entre dois homens que aparentemente se empenham
em uma luta de vida ou morte pelo poder, é abordado por Hegel como
necessidade mútua de identidade por meio do reconhecimento pelo outro.
Segundo Marcuse, "Hegel desenvolveu a relação entre a condição de se-
nhor e a de escravo como uma relação em que cada um dos termos reco-
nhece que tem sua essência no outro, e que só atinge sua verdade pelo
outro" (MARCUSE, 1978, p. 118). A necessidade de realização de uma
autoconsciência por meio de um reconhecimento que somente pode se
tornar possível por meio de outra consciência, é entretanto obstruída por
um estado de alienação mediado pelo trabalho. Com efeito, o reconheci-
mento desejado pelo senhor somente poderia ser proporcionado por um
outro senhor, e não por um simples escravo. Na relação dialética entre se-
nhor e escravo, aquele "vem a perceber que não é ser-por-si, independente,
mas depende essencialmente de outro ser, da ação de quem trabalha para
ele" (MARCUSE, 1978, p. 117). Na obra de Hegel, a esfera objetiva é
instância intermediária entre duas consciências contraditórias: "a relação
entre senhor e escravo não é eterna nem natural, mas enraizada em um
modo definido de trabalho, e na relação do homem ao produto de seu
trabalho" (MARCUSE, 1978, p. 116).
A mediação entre as duas consciências potencialmente pode pro-
porcionar ao escravo a superação da angústia experimentada pela perspec-
tiva da morte na luta com o senhor. Além disso, embora o imperativo do
trabalho imposto pela condição de escravidão, em princípio pareça signi-
ficar, de um lado, sujeição do escravo à matéria-prima da natureza, e, de

111
outro lado, liberdade fruitiva para o senhor, ocorre efetivamente algo bem
diferente dessa situação. Pois o trabalho constitui-se como esfera formativa
que proporciona ao escravo uma condição potencial de autonomia, ao
passo que o senhor constitui apenas uma consciência dependente do reco-
nhecimento por um simples escravo e não por um outro senhor: “no tra-
balho, ele transforma as coisas e, ao mesmo tempo, se transforma: ele forma
as coisas e o mundo, ao se transformar, ao se educar; e ele se educa, se
forma, ao transformar as coisas e o mundo” (KOJÉVE, 2002, p. 26). A
sujeição escrava significa a condição para todo progresso humano, social e
histórico, desde que o escravo assuma sua tarefa histórica de se suprimir
como escravo e se fazer reconhecer como homem pelo senhor. Embora a
interpretação materialista de Alexandre Kojéve tenha consagrado a negação
revolucionária como momento essencial da luta do escravo pela liberdade,
é forçoso reconhecer que o texto hegeliano não apresenta elementos sufi-
cientes para que dele se extraia esse tipo de conclusão. A dialética entre
senhor e escravo é sobretudo uma etapa histórica e filosófica no itinerário
da consciência infeliz rumo ao estágio da consciência de si. Sendo o tema
fundamental da Fenomenologia do espírito, a consciência infeliz compre-
ende-se a si mesma como consciência duplicada, imagem eloquente para
que se compreenda o dilema da consciência do escravo: “ora se eleva acima
da contingência da vida e aceita a certeza imutável e autêntica de si, ora se
rebaixa até o ser determinado, vê-se a si mesma como uma consciência
engajada no ser-aí” (HYPPOLITE, 1999, p. 209). Assim, de maneira mais
condizente com o idealismo hegeliano, em vez de se concluir precipitada-
mente pela suposta primazia do materialismo, é relevante filosoficamente
compreender a educação da consciência servil como momento de elevação
da singularidade à universalidade: “o reconhecimento recíproco dos eus é
um momento da verdade, assim como é um momento de todas as virtudes”
(HYPPOLITE, 1999, p. 234). O trabalho é esfera em que o eu se aliena

112
somente para conquistar a universalidade da razão, e esta “aparece, por-
tanto, como o primeiro resultado da mediação exercida pelas consciências
de si umas sobre as outras, mediação que constitui a universalidade da
consciência de si” (HYPPOLITE, 1999, p. 235). A dialética entre senhor
e escravo é uma longa sucessão de oposições históricas que não podem ser
reduzidas pura e simplesmente ao momento material de antagonismo entre
classes sociais, pois seu locus essencial reside na exigência do reconheci-
mento universal que habita a razão: “a originalidade de Hegel consiste em
pensar o problema do reconhecimento ou do advento histórico de uma
sociedade pensada sobre o livre consenso – na qual tenha lugar a efetiva
supressão da relação Senhor-Escravo – como um problema cujos termos se
articulam e se explicitam ao longo de todo o desenvolvimento histórico da
sociedade ocidental” (Vaz, 1981, p. 25). O trabalho de forma alguma é
instância determinante do processo de desenvolvimento da autoconsciên-
cia, pois escravo e senhor mantém-se em uma condição potencial de auto-
nomia frente à base material. Para Hegel, é a consciência e não o trabalho
que constitui a substância do mundo: "o sujeito que realmente pensa, com-
preende o mundo como 'seu' mundo. Neste, as coisas só atingem sua ver-
dadeira forma como objetos 'compreendidos', isto é, como parte essencial
do desenvolvimento de uma autoconsciência livre. A totalidade dos objetos
que compõe o mundo humano tem de ser libertada da sua 'oposição' à
consciência, e os objetos devem ser tomados de tal maneira que venham a
fazer parte do desenvolvimento da consciência" (MARCUSE, 1978, p.
118).
Além de descrever a dialética entre senhor e escravo como processo
contraditório entre duas consciências que lutam por reconhecimento,
Marcuse assinala a clara compreensão de Hegel acerca das relações contra-
ditórias desenvolvidas na sociedade capitalista a partir da esfera material.

113
De maneira inclusive apaixonada, a análise de Hegel antecipa os contornos
centrais da análise de Marx sobre a luta de classes:

A riqueza... torna-se um poder predominante.(...) O lucro desenvolve-


se em um sistema multiforme que se ramifica por setores nos quais o
pequeno negócio não pode lucrar. A máxima atratividade do trabalho
penetra nos tipos de trabalho mais individuais, e segue ampliando sua
esfera. Esta desigualdade entre riqueza e pobreza, esta indigência e ne-
cessidade, tem como resultado a desintegração completa da vontade, a
rebelião interna e o ódio (Hegel apud MARCUSE, 1978, p. 85-86).

Embora tenha reconhecido as contradições materiais da sociedade


burguesa, Hegel ressalvou que as relações de troca, mediadas pelo contrato,
pelo mercado e pela autoridade do Estado, ainda assim seriam preferíveis
e dotadas de superioridade em relação à apropriação bruta da riqueza pelos
mais fortes, tão comum em estágios históricos anteriores. Mesmo reconhe-
cendo a importância da esfera do trabalho como mediadora da relação en-
tre os homens, Hegel não atribuiu às relações materiais o lugar determi-
nante que iria caracterizar a posterioridade da crítica da economia política.

Do fetichismo da mercadoria à reificação

Posteriormente, como se sabe, a dialética materialista de Marx se


encarregaria de inverter as categorias filosóficas hegelianas, substituindo o
Espírito pela luta de classes e afirmando a primazia das contradições mate-
riais como núcleo de explicação da realidade histórica e social. É impor-
tante assinalar a esse respeito que a extensa e detalhada análise sobre o fe-
tichismo da mercadoria e sua relação com o trabalho abstrato em nada
contradizem o sistema filosófico de Hegel, que, é preciso repetir, reconhe-
ceu a existência de contradições entre capital e trabalho. Nesse sentido, é

114
importante assinalar que o ponto de efetiva ruptura do materialismo dia-
lético com o idealismo hegeliano não consistiu em apresentar as equações
da mais-valia e da hegemonia do valor de troca, mas em postular a primazia
teórica da esfera do trabalho sobre a autonomia da consciência. A grande
inovação teorética do materialismo dialético consistiu em desenvolver da
forma mais drástica as consequências do fetichismo da mercadoria, ele-
vando as contradições materiais ao papel de elementos mediadores decisi-
vos das relações entre as consciências humanas.
Conforme o capítulo anterior, a teoria da ideologia proposta por
Marx e Engels carece de precisão conceitual no que se refere ao alcance das
mediações materiais como elementos deformadores da consciência. O “in-
tercâmbio espiritual” diretamente emanado do “comportamento material”
é identificado com a linguagem da superestrutura jurídica, moral, religiosa
e filosófica, porém sem que se esclareça se tal linguagem se esgota no plano
da cognição intelectual ou se ela determina igualmente a dimensão espiri-
tual e privada das paixões. Em outras palavras, a perda de autonomia é
claramente referida ao âmbito intelectual das representações sistematica-
mente distorcidas pela ideologia, ficando apenas sugerida a possível inter-
ferência da vida material no âmbito da subjetividade. Seria apenas com a
publicação de História e consciência de classe por Lukács que a interferência
da base material seria explicitamente estendida à esfera da subjetividade,
que se tornaria estranha e coisificada aos próprios homens. Integrando a
teoria do fetichismo da mercadoria com as reflexões de Max Weber acerca
do processo de racionalização na modernidade, Lukács estendeu o fenô-
meno objetivo da coisificação ao conjunto da personalidade, de tal maneira
que o homem se tornou não apenas um átomo social ideologicamente sub-
metido, mas também simples espectador impotente dos acontecimentos
de sua própria vida: “até as suas propriedades psicológicas são separadas do

115
conjunto de sua personalidade e objetivadas em relação a esta, para pode-
rem ser integradas em sistemas racionais especiais e reduzidas ao conceito
calculador” (LUKÁCS, 1989, p. 102).
Dessa forma, se na teoria materialista original as relações mercantis
determinam o conjunto das atividades humanas, impedindo que os ho-
mens compreendam intelectualmente as mediações materiais que regem a
constituição da vida social e econômica, na teoria de Lukacs, a mercadoria
é convertida em "categoria universal do ser social total" (LUKÁCS, 1989,
p. 100). Nessa nova acepção, o valor de troca não é apenas uma mediação
material que obstrui a inteligibilidade da consciência sobre o mundo, tal
como Marx definiu a atividade de encobrimento das contradições materi-
ais pela ideologia, mas passa a ser agente mediador da própria subjetividade:
"a personalidade se torna espectador impotente de tudo o que acontece à
sua própria existência, parcela isolada e integrada num sistema estranho"
(LUKÁCS, 1989, p. 100). Em termos frankfurtianos, a racionalidade ins-
trumental atinge o homem em sua dimensão psíquica de forma profunda,
subtraindo-lhe quaisquer qualidades que pudessem ser consideradas origi-
nalmente inatas ao espírito: "Subjetivamente, a atividade do homem -
numa economia mercantil realizada - objetiva-se em relação a ele, torna-se
numa mercadoria regida pela objetividade das leis sociais naturais estranhas
aos homens e deve efetuar os seus movimentos tão independentemente dos
homens como qualquer bem destinado à satisfação de necessidades, que se
tornou coisa mercantil" (LUKÁCS, 1989, p. 101).
Conforme abordamos, em sua apresentação da dialética entre se-
nhor e escravo, Hegel reconheceu o papel mediador da esfera do trabalho
na luta entre as duas consciências, mas nem por isso deixou de preservar a
primazia destas frente às relações materiais. Por outro lado, na formulação
de seu conceito de ideologia, Marx e Engels autorizaram tacitamente os
diversos tipos de interpretação que viriam a consagrar as relações materiais

116
como base explicativa e condicionadora das produções do espírito. Dentre
tais postulados, a teoria da reificação de Lukács destaca-se como aquela que
levou às últimas consequências o mecanicismo originalmente presente na
teoria de Marx e Engels para a relação entre espírito e matéria. Embora a
teoria do fetichismo da mercadoria contenha uma descrição detalhada das
mediações que conduzem ao encobrimento do trabalho humano como
fundamento do capital, a extensão dessa teoria como protótipo da subjeti-
vidade carece de consistência filosófica.
Não se pode desprezar a hegemonia do valor de troca no âmbito
das relações entre os homens na sociedade capitalista, nem tampouco des-
considerar o lugar simbólico e afetivo da mercadoria como objeto de desejo
e como símbolo de prestígio social. Não se trata, portanto, de desqualificar
a teoria do fetichismo e a análise pormenorizada do funcionamento do
capital, que são conhecimentos essenciais para a compreensão da moder-
nidade. O que está em questão no presente trabalho é o postulado de uma
relação de determinação das coisas materiais em relação ao espírito. Se a
sociedade burguesa, desde suas origens, ostenta uma indiscutível degrada-
ção nas relações entre os homens, notadamente pela mediação dos bens
materiais, esse fenômeno pode ser explicado a partir das relações de frieza
e animosidade próprias aos homens desde que o mundo é mundo. Para
demonstrar a improcedência da tese de Lukács sobre a reificação, vale a
pena nos remetermos uma vez mais, embora muito brevemente, à teoria
moral de Kant, e também às reflexões filosóficas de Freud, para indagar se
os conteúdos originais de ambas teorias autorizariam uma influência a tal
ponto invasiva das determinações materiais sobre a consciência e a subjeti-
vidade.
Mesmo considerando a heterogeneidade em termos conceituais e
metodológicos entre o pensamento kantiano e freudiano, não se pode des-

117
prezar o caráter de independência da consciência em relação ao campo ma-
terial da sociedade em ambas as teorias. No âmbito do idealismo kantiano,
no plano intelectivo e no plano moral, a perspectiva de autonomia do su-
jeito coloca-se acima de possíveis influências de natureza material. Segundo
Kant, os obstáculos para o conhecimento do mundo pela razão intelectiva
referem-se ao uso adequado das categorias lógicas da sensibilidade e do
entendimento, que devem restringir-se ao campo fenomênico. No âmbito
da moral, os impeditivos da autonomia consistem nos vícios e demais es-
torvos emocionais que impossibilitam ao indivíduo um comportamento
reto. Tanto no âmbito intelectivo, quanto no âmbito moral, a centralidade
do sujeito é um pressuposto solidamente estabelecido pelo idealismo kan-
tiano, tornando inválidas possíveis hipóteses defensoras do materialismo.
Sob o ponto de vista da reflexão freudiana, as mediações materiais
apresentam um alcance bastante restrito como elementos influenciadores
das atividades mentais. A limitação das relações materiais em relação aos
processos subjetivos é suficientemente evidenciada quando Freud discorre
sobre a consistência emocional da utopia comunista. Em Mal-estar na ci-
vilização, ao considerar a eliminação da propriedade privada como funda-
mento da utopia comunista, Freud assevera que sua simples abolição como
condição para uma humanidade solidária e pacífica baseia-se em premissas
psicológicas insustentáveis, uma vez que "a agressividade não foi criada pela
propriedade" (FREUD, 1974, p. 135). A primazia das pulsões sobre as
relações materiais é um pressuposto irredutível no âmbito do pensamento
freudiano: "se eliminarmos os direitos pessoais sobre a riqueza material,
ainda permanecem, no campo dos relacionamentos sexuais, prerrogativas
fadadas a se tornarem a fonte da mais intensa antipatia e da mais violenta
hostilidade entre os homens" (FREUD, 1974, p. 135).
Dessa forma, a não ser que uma suposta contaminação prévia do
pensamento de Kant e de Freud pelas determinações materiais da sociedade

118
burguesa seja dogmaticamente mobilizada para desqualificar a primazia da
consciência no pensamento de ambos, a teoria da reificação fica exposta a
obstáculos conceituais muito significativos.

Da teoria da reificação às paixões da alma

Vale a pena citar uma vez mais a Dedicatória de Minima Moralia,


em que Adorno expõe incisivamente sua convicção sobre a primazia das
relações materiais na relação com os demais domínios da vida: "Quem qui-
zer saber a verdade acerca da vida imediata tem que investigar sua configu-
ração da vida alienada, investigar os poderes objetivos que determinam a
existência individual até o mais recôndito nela" (ADORNO, 1992, p. 7)
Em seu texto sobre o trabalho científico em terras americanas, idêntica de-
terminação material é enunciada com a mesma clareza: "por certo que, ao
contrário de certa ortodoxia economicista, não nos tornamos ariscos em
relação à psicologia, mas sim lhe outorgamos em nosso projeto o valor que
lhe correspondia como um momento de explicação. Mas nunca duvidamos
da primazia dos fatores objetivos sobre os psicológicos” (ADORNO,
1995a, p. 160). Em ambas formulações, Adorno se expressa muito mais
como pensador marxista afinado com o alcance das determinações materi-
ais da sociedade em relação à esfera subjetiva, do que como um filósofo
capaz de ponderar a primazia da infraestrutura à luz de conteúdos autôno-
mos do espírito. Em Elementos de antisemitismo, Adorno e Horkheimer re-
duziram a pó não somente qualquer resquício de autonomia individual no
sentido kantiano do termo, como também a própria existência de um ego
independente capaz de administrar seus conflitos internos: "na era das
grandes corporações e das guerras mundiais, a mediação do processo social
através de inúmeras mônadas mostra-se retrógrada. Os sujeitos da econo-
mia pulsional são expropriados psicologicamente e essa economia é gerida

119
mais racionalmente pela própria sociedade" (ADORNO; HORKHEI-
MER, 1985, p. 189). Para uma compreensão mais detalhada das implica-
ções dessa depreciação da independência do espírito por Adorno, é impor-
tante uma breve consideração sobre o conceito filosófico de alma.
Um dos textos mais emblemáticos e repletos de repercussões filo-
sóficas e educacionais da filosofia ocidental é a parte VII da República de
Platão, que expõe a alegoria da caverna. Conforme interpretações consa-
gradas no campo filosófico, trata-se de um escrito composto de múltiplos
significados, desde uma didática divisão da realidade entre o mundo inte-
ligível e o mundo sensível, até sua dimensão política, relacionada ao perfil
do governante filósofo, virtuoso e amante da sabedoria. Segundo Werner
Jaeger, o ponto de maior alcance da alegoria platônica está em sua propri-
edade de expor com clareza as implicações contidas no diálogo Mênon,
relacionadas à natureza inata da virtude e da razão. Na alegoria da caverna,
a centralidade do sol aponta para a necessidade de purificação da alma
como condição essencial para a contemplação do ser supremo. Ao contrá-
rio de versões anteriores da paidéia, em que a educação era concebida como
saber derramado em uma alma ignorante, na visão platônica a verdadeira
educação consiste em “despertar os dotes que dormitam na alma" (JAE-
GER, 1986, p. 609). A paideía platônica é conversão no sentido original
do termo, significando um direcionamento de toda a alma para a luz do
Bem. O termo grego que traduz mais adequadamente o significado de vir-
tude nesse contexto platônico é phronesis, que se diferencia das virtudes
passíveis de aquisição pelo hábito e pelo exercício. A phronesis é inata, "está
adstrita à parte mais divina do Homem, que sempre está presente nele, mas
cujo desenvolvimento depende da atuação correta da alma e da sua essen-
cial conversão para o Bem" (JAEGER, 1986, p. 610).
A identidade do bem e da felicidade na alegoria da caverna marcou
a inauguração da teologia como "estudo dos problemas supremos pela alma

120
filosófica" (JAEGER, 1986, p. 611). A visão das sombras, aparências e có-
pias imperfeitas que caracteriza a vida na dimensão da caverna deve ser
suplantada pela vida da alma na pureza e plenitude da luz, em uma supe-
ração que não é somente de natureza cognitiva, mas principalmente de
natureza ética e teológica. A paideía platônica é uma pedagogia do olhar,
em que a alma descobre no interior de si mesma a phronesis como virtude
que permite diferenciar os bens verdadeiros daqueles que são falsos. Para a
alegoria da caverna converge a tese exposta no Mênon, de que a virtude
não pode ser ensinada por ser um tipo de conhecimento "que nasce da
própria alma de quem o inquire com base numa orientação correta de seu
pensamento" (Jaeger, 1986, p. 492). Trata-se um saber de natureza inata,
pois é aquele que "a alma descobre dentro de si própria, quando medita
sobre a essência do bom, do justo, etc., e tem força bastante para determi-
nar e orientar a vontade" (JAEGER, 1986, p. 491).
A problematização da mediação propriamente dita entre alma e
corpo, como se sabe, tornou-se tema de reflexão filosófica com a virada
subjetivista implementada por Descartes. A partir de então, a consciência,
ou substância pensante, passa a ser considerada a via de acesso privilegiada
à alma, entendida em seu caráter substancial, incorpóreo e independente.
Descartes inaugurou a primazia ontológica da alma em relação à matéria,
pois "a via de acesso à realidade da alma tem o privilégio de ser a mais certa
porque possui a certeza do cogito. Comparada a esta, a certeza das outras
coisas, isto é, das substâncias extensas, é secundária e derivada, porque me-
diada pela consciência" (ABBAGNANO, 2000, p. 30). A primazia carte-
siana da alma não se limitou a estabelecer alicerces metafísicos para o co-
nhecimento claro e distinto do mundo, pois, além disso, o filósofo estabe-
leceu os fundamentos a partir dos quais a relação entre substância pensante
e substância material pode ser pensada. Segundo a teoria das paixões de
Descartes, embora alma e corpo estejam interligados, de tal modo que o

121
corpo cause paixões na alma, e esta provoque voluntariamente os movi-
mentos do corpo, entre a inextensão da alma e a extensão do corpo existe
um dualismo, uma separação irredutível e substancial. Para o filósofo, os
conteúdos primários da alma, vale dizer, as paixões, embora sejam causados
pelo corpo, em si mesmas são eventos irredutivelmente subjetivos que não
se traduzem sob fenômenos fisiológicos. Assim, embora as paixões possam
ser materialmente originadas, sua existência é exclusivamente subjetiva e
irredutível ao mecanicismo: "tudo o que existe em nós, e que não imagi-
namos de forma alguma pertencer a um corpo, deve ser atribuído à nossa
alma. Pelo fato de não reputarmos que o corpo pense de alguma maneira,
temos motivo para acreditar que toda sorte de pensamento em nós exis-
tente pertence à alma" (DESCARTES, 2000, p. 106-107). O dualismo
cartesiano, com sua primazia da alma como entidade substancial e inde-
pendente em relação ao corpo, estabeleceu, com três séculos de antecedên-
cia em relação ao materialismo dialético, os elementos básicos da mediação
entre mente e matéria: "pensamentos, como são as paixões, cartesiana-
mente falando, não podem ser tocados, o que é necessário para se estabe-
lecer um movimento mecânico. Assim, enquanto o processo que as desen-
cadeia é mecânico, a experiência subjetiva na alma não é" (PINHEIRO,
2016, p. 107). Assim, sendo as paixões passíveis de mediação por objetos
materiais, sejam eles o próprio corpo, um corpo alheio, ou um objeto ex-
terno, tais objetos de modo algum apresentam a propriedade de determi-
nar o conteúdo específico das paixões que podem ser desencadeadas em
uma subjetividade singular: "a mesma impressão que causa na glândula a
presença de um objeto apavorante, e que provoca o medo em alguns ho-
mens, pode estimular, em outros, a coragem e a ousadia" (DESCARTES,
2000, p. 129).

122
Enquanto a teoria marxista original restringiu-se a extrair do feti-
chismo da mercadoria suas implicações mediadoras no âmbito da consci-
ência, Lukács extrapolou o nível intelectual e cognitivo da deformação ide-
ológica, estendendo a categoria trabalho como núcleo determinante das
atividades subjetivas do espírito. Ao pretender que as qualidades subjetivas
possam ser determinadas por aspectos materiais, o pensador húngaro recai
justamente no equívoco categorial apontado há mais de três séculos por
Leibniz, que consiste em explicar os fenômenos inextensos mediante o me-
canicismo. Assim, de um ponto de vista filosófico, a teoria da reificação
incorre em um abuso metodológico que sobrecarrega o materialismo dia-
lético do ônus de justificar como ocorreria tal contaminação da esfera es-
piritual pelo âmbito da matéria. Enquanto a internalização da ideologia na
sociedade burguesa pode ser explicada pelo peso dos imperativos materiais
no que se refere à autoconservação individual, e principalmente pelos pro-
cessos educacionais fortemente indutores de uma concordância tácita com
os valores e símbolos que tendem a legitimar a dominação econômica, a
demonstração da contaminação da própria esfera subjetiva por determina-
ções materiais é significativamente mais difícil e complexa, por ter primei-
ramente que refutar importantes pensadores da filosofia ocidental. Ao
passo que a teoria marxista da ideologia para ser justificada teria somente
que recorrer aos diversos recursos mobilizados pela escola, pelas igrejas, pe-
los preconceitos do senso comum e pela indústria cultural para explicitar
as estratégias de convencimento empregadas para a produção de uma cons-
ciência sintonizada com os valores e pontos de vista hegemônicos na soci-
edade burguesa, a teoria da reificação tem de enfrentar obstáculos muito
maiores para se justificar. Em primeiro lugar, porque a teoria materialista-
dialética não dispõe de instrumentos teóricos capazes de explicar como os
imperativos materiais da sociedade interferem na esfera subjetiva das pai-
xões de maneira a fazer humanos se relacionarem com outros humanos e

123
consigo próprios como coisas. Em segundo lugar, porque a mesma teoria
não dispõe de recursos teóricos suficientes para contestar o conceito meta-
físico de alma entendida como princípio autônomo, inextenso e irredutível
ao mecanicismo da matéria. Em terceiro lugar, porque ao materialismo di-
alético é impossível demonstrar que as disposições subjetivas perversas,
conceitualmente catalogadas como frieza burguesa, que ocupam o centro
das reflexões de Adorno sobre a vida danificada, comporiam uma configu-
ração espiritual especificamente relacionada com a sociedade burguesa, di-
ferenciando-se de uma frieza intrínseca ao espírito humano como tal.
Em que pese a apropriação realizada pelo materialismo dialético do
estilo teorético e especulativo da metafísica para a realização de reflexões
no campo filosófico, é sensato constatar que materialismo e metafísica exa-
minam a realidade mediante aparatos conceituais distintos e irredutíveis
um em relação ao outro, e é isso que torna toda teoria materialista, seja ela
de natureza marxista ou proveniente das ciências da natureza, irredutivel-
mente incapacitada para examinar a esfera do espírito humano. Para que
se compreenda a improcedência metodológica da teoria da reificação de
Lukács, é suficiente atentar para a extrema atualidade do dualismo cartesi-
ano em sua propriedade de impor dificuldades até hoje intransponíveis
para as teorias que propõem explicações mecanicistas e fisicamente redu-
toras aos eventos subjetivos. A impossibilidade da redução das paixões da
alma a processos materiais impõe severas restrições, tanto para o materia-
lismo dialético, em especial no tocante à teoria da reificação de Lukács,
quanto para as teorias fisicalistas da neurociência que postulam a redutibi-
lidade dos fenômenos subjetivos a sinapses neuronais. Apesar do notável
progresso da neurociência nas últimas décadas, em grande parte proporci-
onado por tecnologias de escaneamento do cérebro, mesmo os mais im-
portantes modelos neurais de consciência no campo neurocientífico, em-

124
bora assumam pressupostos fisicalistas, não são capazes de demonstrar em-
piricamente a suposta correspondência entre as qualidades subjetivas e os
mecanismos neurobiológicos: "a maioria assume que o cérebro causa o
comportamento, como se fosse autoevidente, e, nessa perspectiva, saltam
para suas narrativas cuja aceitação requer autos de fé” (SOUZA 2015, p.
110). As mesmas dificuldades que afetam o trabalho da neurociência igual-
mente comprometem a tese materialista da reificação da consciência. Di-
ante de ambos reducionismos, do fisicalismo e da reificação, o dualismo
cartesiano permanece como um obstáculo teórico irredutível: "Para Des-
cartes, as paixões, enquanto são eventos mentais, comportam a mesma ca-
racterística da irredutibilidade a elementos físicos que quaisquer fenôme-
nos subjetivos" (PINHEIRO, 2016, p. 109). A independência dos proces-
sos espirituais em relação à matéria também é fundamentada por Leibniz
em suas reflexões sobre a interação entre a alma e o corpo:

Entretanto, é bom mostrar como essa dependência das ações voluntá-


rias não impede que no fundo das coisas haja em nós uma espontanei-
dade maravilhosa, a qual, em certo sentido, torna a alma, nas suas de-
cisões, independente da influência física de todas as outras criaturas.
(…) Para concluir este ponto sobre a espontaneidade, é preciso dizer
que, considerando as coisas com rigor, a alma tem nela o princípio de
todas as suas ações e até de todas as suas paixões; e que o mesmo é
verdade em todas as substâncias simples espalhadas por toda a natureza,
embora só haja liberdade naquelas que são inteligentes (LEIBNIZ,
2017, p. 173).

125
Capítulo 7

Frieza burguesa ou frieza humana?


_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

A abordagem materialista-dialética de Adorno acerca do fascismo


e da vida danificada pressupõe uma crítica incisiva das concepções subs-
tancialistas que se desenvolveram ao longo da história da filosofia ocidental.
Uma das discordâncias mais contundentes refere-se ao conceito leibniziano
de mônada, que concebe o indivíduo como unidade real inextensa, indivi-
sível, desprovida de partes, sem portas nem janelas. Um argumento repe-
tidamente empregado por Adorno contra a concepção monadológica de
indivíduo diz respeito ao caráter ideológico da individualidade concebida
como singularidade pura e independente da totalidade social. Considerar
a sociedade burguesa como um conjunto de seres únicos e absolutos im-
plica, para Adorno, negligenciar a existência de relações materiais que en-
gendram a individualidade monadológica como aparência socialmente ne-
cessária e materialmente produzida. Em vez de existir como unidade onto-
lógica encerrada em uma profundidade psicológica, o indivíduo é uma das
mais acabadas e ilusórias produções de uma sociedade irracional que o
eleva ao patamar da independência irredutível somente para humilhar a
suposta soberania que o legitima.: "a intransparência da objetividade alie-
nada empurra os sujeitos de volta a seu eu restrito e os ilude ao lhes colocar
seu ser-em-si separado, o sujeito monadológico e sua psicologia, como es-
sencial" (ADORNO, 2015, p. 86). Os processos materiais que engendram
a fragilização da individualidade no capitalismo tardio, e que assim tornam
as pessoas vulneráveis ao fascismo, produzem também a soberania do in-
divíduo como aparência social, mascarando o estado reinante de heterono-
mia: "na medida em que as ações sociais, através das quais a vida dos seres

127
humanos se reproduz, separam-se deles mesmos, ficam impedidos de com-
preender a fundo a maquinaria social e são entregues à fórmula de que
tudo se resumiria ao ser humano" (ADORNO, 2015, p. 86). Para Adorno,
a concepção do indivíduo como mônada independente do todo social é
simultaneamente falsa e verdadeira. Falsa, pois omite as mediações materi-
ais que assujeitam e produzem o homem na sociedade burguesa. Verda-
deira, na medida em que esse indivíduo singularizado, ao mesmo tempo,
representa em si mesmo o caráter totalitário de seu mundo: "ele é uma
mônada em sentido estrito, ao representar o todo com suas contradições,
mas sem dele estar consciente" (ADORNO, 2015, p. 88). Suas qualidades
supostamente atestadoras de uma singularidade absoluta não passam de
momentos da totalidade social: "tão logo se expliquem a partir da psique
os processos que, na verdade, se subtraem à espontaneidade individual e
que incidem em sujeitos abstratos, humaniza-se, como consolo, o que é
reificado" (ADORNO, 2015, p. 89).
Como já foi exposto em capítulo anterior, Adorno caracteriza
como obsoleta a concepção freudiana que atribui ao ego certa autonomia
relativa como instância capaz de administrar as tensões internas entre o id
e o superego. No aforismo Novissimum Organum de Minima Moralia, a
teoria da reificação atribui ao ego o simples papel de gerenciamento de
impulsos passionais amplamente cooptados pelo processo material de pro-
dução. As reações emocionais mais simples e aparentemente espontâneas,
como a “cordialidade genuína” ou o “acesso de raiva histérico”, são objeti-
vamente mediadas, até o ponto em que a subjetividade é reduzida a “caixas
de emoções leves, rígidas e vazias, matéria transformável à vontade, sem
qualquer impulso próprio” (ADORNO, 2008, p. 227- 228). A integração
inexorável dos homens à totalidade não se realiza como mera manipulação,
pois esta ainda estaria a pressupor a existência de um ego autônomo a ser
induzido mediante condicionamentos externos. A crítica de Adorno não

128
somente abala a instância autônoma racional, uma vez que esta teria su-
cumbido juntamente com o declínio da era liberal, mas também a existên-
cia de uma “interioridade ôntica sobre a qual mecanismos sociais apenas
interviessem de fora” (ADORNO, 2008, p. 226).
A concepção de um sujeito monadológico, autosuficiente e intei-
ramente independente das mediações materiais, que não é comum apenas
à metafísica e à teologia, mas igualmente presente no campo da psicologia,
“é o complemento da desumanização, a ilusão dos impotentes de que seu
destino dependeria de sua própria constituição” (ADORNO, 2015, p. 86-
87). Ao adotar a existência do indivíduo como ponto de partida incondi-
cional, em detrimento das mediações materiais, a psicologia “enfeitiça a
forma individualista da socialização como uma determinação extrasocial,
natural, do indivíduo” (ADORNO, 2015, p. 89). O conceito da individu-
alidade como totalidade independente e inacessível expõe como entidade
absoluta algo que é produzido e convenientemente recortado de maneira a
impedir potenciais autoreflexivos acerca dos mecanismos sociais edificado-
res da individualidade burguesa: “tão logo se expliquem a partir da psique
os processos que, na verdade, se subtraem à espontaneidade individual e
que incidem sobre sujeitos abstratos, humaniza-se, como consolo, o que é
reificado” (ADORNO, 2015, p. 89).
O elogio do sujeito como instância histórica real e potencialmente
autônoma, quando contraposto à crítica incisiva da filosofia de Leibniz, e
aos fundamentos da psicanálise freudiana, conduz o pensamento de
Adorno a um paradoxo desconcertante. Por um lado, Adorno considera
que a concepção monadológica leibniziana, assim como o idealismo kan-
tiano, são reflexos de relações materiais que demandam uma aparência ilu-
sória de autonomia individual. Da mesma forma, a interioridade postulada
pela tópica conceitual freudiana foi condenada ao anacronismo pelo capi-
talismo monopolista. Por outro lado, a denúncia adorniana de tal caráter

129
ideológico justifica-se, em última instância, pela fidelidade aos potenciais
de emancipação do sujeito. Perante tal horizonte reflexivo é cabível inter-
rogar sobre a substancialidade da concepção de sujeito em Adorno. Em
oposição aos conteúdos positivos que a sociedade burguesa atribui ao su-
jeito somente para difamá-lo como simples entidade dedicada à autocon-
servação, Adorno expõe sua concepção de sujeito: "toda imagem de ser
humano é ideologia, exceto a negativa" (ADORNO, 2015, p. 103). A
compreensão do paradoxo entre a confiança nos potenciais de autonomia
do sujeito e a obsolescência histórica dos processos de individuação requer
uma breve exposição acerca da extrema importância da mediação dialética
para a compreensão do pensamento de Adorno.

Adorno e a mediação dialética

A compreensão adequada das reflexões de Adorno depende do en-


tendimento sobre a importância da mediação dialética como núcleo de seu
pensamento filosófico. Um ponto de partida para isso reside no aspecto
central da dialética de Hegel, que a diferencia dos demais sistemas metafí-
sicos, que é a ausência de um fundamento imóvel do ser a partir do qual
todas as demais coisas possam ser pensadas. Embora o Geist ou Espírito
Absoluto consista na totalidade espiritual que realiza o movimento que
constitui toda a realidade finita, na medida em que põe a si mesmo como
sujeito, o Geist não é ponto fixo, mas automovimento que se efetiva no vir-
a-ser de si mesmo. Nas palavras de Adorno, “Hegel nos mostrou que a
origem não é o verdadeiro, pois a origem se converte em engano no ins-
tante mesmo em que é tomada como verdadeiro. Engano, porque não é
nenhuma origem, pois tudo o que afirma ser o primeiro absoluto é algo já
mediado em si” (ADORNO, 2013b, p. 195). A primeira implicação ex-
traída por Adorno sobre o caráter irredutivelmente mediado de todos os

130
pensamentos é a impossibilidade da intuição de conhecimentos absoluta-
mente claros e distintos: “podemos dizer em princípio contra esta clara y
distincta perceptio que de nenhuma maneira há um algo último semelhante,
dado absoluto e limpo de todas mediações, seja isso consciência pura, seja
dado sensível” (ADORNO, 2013b, p. 196). Uma segunda implicação a
ser destacada sobre o tema nos conduz diretamente ao aspecto enigmático
da mediação dialética, e é explicado por Adorno a partir da relação entre o
todo e as partes. O entendimento adequado da mediação dialética como
uma relação em que o particular e a totalidade coexistem mutuamente re-
quer antes de mais nada considerar que não essa relação não se dá como
mera inculcação ideológica, pela qual as ideias da classe social dominante
convertem-se em padrões hegemônicos no campo cultural. A mediação di-
alética diz respeito, de maneira muito mais profunda, à coerção exercida
pela totalidade já no âmbito da própria organização da experiência do su-
jeito com o mundo. A dialética hegeliana apresenta a relação entre o parti-
cular e a totalidade sob termos radicalmente contrários ao senso comum,
uma vez que nas mais prosaicas experiências cotidianas, embora os mais
simples gestos pareçam expressar reações imediatas, tais momentos em si
mesmos já são mediados pela totalidade, pois quando “nos referimos às
relações dentro de uma sociedade completamente desenvolvida, o que
ocorre é que, na realidade, o imediato, isso que é o primeiro que percebe-
mos, são muito mais as relações gerais que as relações particulares”
(ADORNO, 2013b, p. 186). O entendimento da relação entre o geral e o
particular é imensamente problemático e difícil, pois embora ambos te-
nham de ser compreendidos em uma relação mútua, esta não pode ser
pensada como simples subsunção, de maneira análoga aos segmentos de
um círculo com o mesmo círculo, “pois é uma relação dinâmica: esses dois
momentos se produzem mutuamente um ao outro e não estão aí um com
o outro, por assim dizer, de forma atemporal, coisal, simultânea”

131
(ADORNO, 2013b, p. 174). Eis o aspecto surpreendente e assombroso da
mediação dialética, radicalmente contrário à estabilidade do senso comum,
assim resumido por Adorno: “e é o problema – e esta é uma das grandes
dificuldades que a dialética lhes apresenta – como devo conceber a parte a
partir do todo que, como tal, nunca está dado completamente”
(ADORNO, 2013b, p. 174). O aspecto enigmático posto pela mediação
dialética consiste na presença insondável da totalidade como algo abarca-
dor que exerce pressão e coerção sobre comportamentos cotidianos e
mesmo no âmbito íntimo da subjetividade: o todo “está sempre aí como
um antecedente, assim como os dados específicos que lhe seguem e que
por sua vez estão mediados por esse todo” (ADORNO, 2013b, p. 188). Se
os pensamentos e emoções são necessariamente mediados pela totalidade,
de tal forma que o próprio conhecimento da coisa singular, seja no âmbito
cotidiano ou no plano investigativo da ciência, já é mediado pelo todo,
sem que o indivíduo esteja consciente disso, torna-se importante saber que
é a definição sobre o conceito de totalidade que diferencia a dialética he-
geliana, idealista, da dialética materialista de Adorno. Para Hegel, não há
nada sob o céu que não esteja mediado pelo Espírito, e assim é possível
compreender como os espíritos humanos finitos são mediados pela infini-
tude do Absoluto. Para Adorno, conforme exposição mais detalhada no
capítulo seguinte, a totalidade é a própria sociedade, entendida pelo prisma
de suas contradições materiais e sobretudo pelo primado do trabalho como
mediação essencial do mundo. É a partir dessa reinterpretação da mediação
dialética como momento irredutivelmente materialista do mundo que po-
demos compreender os fragmentos reflexivos da vida falsa em Minima Mo-
ralia. Na decadência da amabilidade cotidiana e sua correspondente indi-
ferença implícita na existência de lojas de presentes e de portas feitas para
serem batidas e não para serem fechadas com firmeza, já está presente a

132
coerção da totalidade falsa que segundo Adorno anuncia a presença insidi-
osa da frieza que leva à cumplicidade com os campos de concentração.
Ao defender de maneira irredutível a versão materialista da dialé-
tica, Adorno parece não se dar conta que os aspectos surpreendentes e em
certa medida misteriosos da mediação dialética originalmente hegeliana
são elevados ao quadrado quando a totalidade do Espírito absoluto é subs-
tituída pela sociedade totalmente administrada. Sob os parâmetros idealis-
tas, mesmo que pareça insólito e surpreendente que os mínimos gestos co-
tidianos sejam previamente condicionados por fatores insondáveis situados
para além da experiência imediata, no sistema hegeliano, a concepção de
que os espíritos finitos são em si mesmos, substancialmente, veículos de
realização do Absoluto, fornece um fundamento lógico confiável para a
mediação dialética. O conceito hegeliano de espírito do mundo, altamente
depreciado por Adorno, estabelece parâmetros muito mais organicamente
integrados à consciência individual do que a hipótese especulativa de uma
totalidade misteriosamente anônima e burocrática de trustes e cartéis a go-
vernar a vida humana em direção ao horizonte inescapável da catástrofe
total. Sob a concepção de Hegel, o centro de gravidade do indivíduo é
deslocado de uma visão atomística para um conceito que o define como
momento situado para além da subjetividade em si mesma: “a comunidade
é uma corporificação do Geist, e uma corporificação mais plena, mais subs-
tancial que o indivíduo” (TAYLOR, 2014, p. 413). Em termos lógicos,
estamos diante de dois polos idênticos (espirituais) e não idênticos (espírito
finito e espírito infinito). Mas ao conceber os sujeitos como reflexos sub-
jetivos do princípio de troca das mercadorias na sociedade capitalista,
torna-se dificilmente concebível tal substituição do Espírito absoluto pela
totalidade social, pois nesse caso estamos diante de polos completamente
heterogêneos um em relação em ao outro. Quando se procura justificar em

133
termos lógicos como se efetiva a dialética materialista, evidenciam-se difi-
culdades insuperáveis, pois ambos os termos são não idênticos (espírito e
matéria), e a demonstração lógica de sua interconexão esbarra em uma cir-
cularidade viciosa: a única prova de que as contradições materiais interfe-
rem na subjetividade espiritual é materialista em si mesma, pressupondo
previamente a validade indiscutível da tese a ser demonstrada. Em outras
palavras, o materialismo é a prova de si mesmo, pois ao tentarmos demons-
trar a validade do materialismo, somente podemos empregar argumentos
em si mesmos materialistas. Adorno admite tacitamente essa dificuldade
insuperável da dialética materialista, ao apresentar para seus alunos uma
ilustração insólita sobre tais dificuldades:

por exemplo, na maneira que um cachorro reage, em geral do seguinte


modo: quando gente bem vestida entra na casa, se põe a mover a cauda,
que se move menos quando se trata de gente não bem vestida, e quando
alguém realmente andrajoso aparece na porta, começa a latir. Creio que
dessa maneira se pode organizar em geral a experiência humana
(ADORNO, 2013b, p. 186).

Quando adotou a teoria lukcasiana da reificação como horizonte


conceitual de análise das condições danificadas de vida no capitalismo tar-
dio, Adorno apresentou argumentos historicamente consistentes para de-
fender sua tese, pois a dialética materialista está perfeitamente afinada com
a secularização imposta pelo esclarecimento na modernidade. O conjunto
de aforismos de Minima Moralia contempla muito apropriadamente a
configuração alienada da existência em sociedades plenamente corporifica-
doras da realização do Espírito como catástrofe permanente. A expressão
“vida danificada” sintetiza da maneira mais eloquente possível de que ma-
neira os mais prosaicos gestos cotidianos são mediados pela totalidade falsa,

134
tornando os homens simples exemplares representativos de comportamen-
tos condizentes com aquele do cachorro relatado por Adorno. A vida sob
o capitalismo tardio remete a uma contradição sintetizada com grande cla-
reza em um dos textos dedicados à análise do fascismo: "os seres humanos
modernos retornam a padrões de comportamento que contradizem fla-
grantemente seu próprio nível racional e o presente estágio da civilização
tecnológica esclarecida” (ADORNO, 2015, p. 159). O irracionalismo da
totalidade social é considerado o elemento mediador decisivo dos compor-
tamentos de egoísmo, indiferença e oportunismo, que são resumidos sob a
expressão "frieza burguesa". Esta expressão sintetiza o deficit ético e emo-
cional subjacente aos diversos cenários analisados e criticados pelo filósofo
em seu livro de aforismos sobre o cotidiano na sociedade administrada. O
pano de fundo histórico e material que sustenta a análise de Adorno fun-
damenta-se em dois pressupostos básicos, de longo alcance. Em primeiro
lugar, a vulnerabilidade dos indivíduos à frieza e ao fascismo deriva de sua
conversão em insignificantes átomos sociais submetidos ao gigantesco apa-
rato burocrático dos monopólios econômicos e estatais que governam a
sociedade e administram as pessoas do berço ao túmulo. Em segundo lugar,
e justamente em decorrência direta do declínio do capitalismo liberal e sua
substituição pela esfera monopolista do capital, a família burguesa e a au-
toridade paterna entraram em decadência como núcleo de formação de
uma individualidade autônoma. A danificação da vida, portanto, é conse-
quência direta da reificação material.
Por outro lado, malgrado a consistência histórica da análise de
Adorno, é relevante interrogar acerca da relação de determinação entre a
base material do capitalismo tardio e os comportamentos de indiferença e
apatia reinantes na sociedade burguesa. Em outras palavras, é passível de
dúvida a tese lukcasiana da reificação, no sentido de nos perguntarmos se
tais deformações do espírito não podem ser explicadas a partir de outros

135
pressupostos que não as reduzam a simples reflexo das condições materiais.
Um possível caminho alternativo, diante do caráter insubstancial do con-
ceito de sujeito em Adorno, consiste em considerar a tópica freudiana que
propõe o ego como núcleo racional e consciente da personalidade. Embora
Adorno tenha descartado o modelo freudiano de personalidade, argumen-
tando que a introjeção da irracionalidade social no capitalismo tardio per-
mite uma administração direta da sociedade sobre a subjetividade, desde
que não se aceite inteiramente a obsolescência da tópica freudiana, a pre-
servação da validade do conceito de ego apresenta perspectivas frutíferas
para a presente reflexão.

Freud e o primado dos processos emocionais

O aparato conceitual freudiano, em seus pressupostos de autarquia


dos processos emocionais em relação a condicionamentos materiais, e de
centralidade do ego na relação do indivíduo com a realidade, apresenta
uma interpretação mais ampla da frieza emocional, de maneira a não res-
tringi-la à análise de uma sociedade específica, como propõe Adorno com
sua noção de "frieza burguesa". No texto Mal-estar na civilização, para
compreender os motivos que levam a vida civilizada a impor severas restri-
ções sobre o campo emocional, Freud se interroga acerca das razões pelas
quais o mandamento cristão do amor ao próximo ser tão dificilmente rea-
lizável, malgrado sua existência datar de épocas anteriores ao cristianismo.
A resposta freudiana ao problema explica tais dificuldades a partir dos fun-
damentos intrinsecamente egoicos do amor. Trata-se de um sentimento
cuja existência requer que ao menos uma das seguintes condições estejam
dadas: identificação (amar alguém semelhante ao ego) ou idealização (amar
alguém capaz de encarnar o ideal de ego). Se nenhuma dessas condições

136
estiver presente, o outro converte-se em um estranho sem nenhuma signi-
ficação emocional, e portanto merecedor primeiramente de hostilidade,
uma vez que ele próprio demonstrará idêntica indiferença e má vontade
em relação ao eu. O ceticismo freudiano diante da gratuidade do amor ao
próximo fundamenta-se na frieza e apatia como vínculo mais imediato na
relação entre estranhos:

os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que no
máximo podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são cria-
turas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa
quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles,
não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também
alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar
sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente
sem seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, cau-
sar-lhe sofrimento e matá-lo. Homo homini lupus (FREUD, 1974, p.
133).

A mútua hostilidade entre seres humanos que não tenham estabe-


lecido vínculos egoicos é o fator explicativo da ameaça permanente de de-
sagregação no interior da vida civilizada, propriamente denominada como
mal-estar na civilização. Seu alcance é suficientemente amplo para que
Freud lhe atribua uma dimensão filogenética, própria ao desenvolvimento
em si mesmo da civilização repressiva, sem restringi-lo a qualquer contexto
histórico específico. Na ausência de tais vínculos, o narcisismo próprio ao
amor é decisivamente dificultado, uma vez que a relação com o outro não
é permeada pela identificação amorosa. Uma confrontação entre a análise
adorniana, que explica a vida danificada no capitalismo tardio apelando à
frieza burguesa, diretamente relacionada a um fenômeno de coisificação

137
originado da base material da sociedade, e o enfoque freudiano, que carac-
teriza a frieza como estado intrínseco à relação entre humanos mutuamente
estranhos, coloca sérias dificuldades para a interpretação de Adorno. Para
Freud, a hostilidade mútua entre seres humanos que não tenham laços de
identificação emocional é um fator filogenético e invariável, que não se
sujeita a contextos culturais, ao passo que, para Adorno, o fetichismo da
mercadoria teria imposto aos homens fatores de desprezo e indiferença su-
perlativos e exclusivamente relacionados com a sociedade burguesa. Para
Adorno, em virtude da abolição das mediações materiais que no capita-
lismo liberal conduziam à formação da personalidade, no capitalismo tar-
dio, o indivíduo é governado pelo aparato material, e os impulsos do Id
são diretamente administrados e canalizados a serviço da totalidade social.
Essa tese, conforme vimos, é sintetizada pela captura do esquematismo
kantiano realizada pela indústria cultural, que conduz a uma falsa reconci-
liação com a realidade repressiva por meio da manipulação diretamente
exercida sobre o psiquismo.
Embora conceitualmente fundamentado em solo externo à meta-
física, o pensamento de Freud oferece uma das mais sólidas formulações
acerca da independência entre a subjetividade e os fatores materiais da so-
ciedade, justamente no momento em que o médico vienense discorre sobre
os condicionamentos materiais e sua influência sobre o mal-estar na civili-
zação. No texto O futuro de uma ilusão, ainda que sem explicitar o pano de
fundo conceitual mobilizado em suas reflexões, Freud comenta sobre o im-
pacto da luta de classes como fator decisivamente dificultador da absorção,
por populações materialmente oprimidas, dos imperativos impostos pela
vida em civilização. Em contextos materiais de nítida exploração do traba-
lho e de concentração de renda por parte das elites, “não é de esperar uma
internalização das proibições culturais entre as pessoas oprimidas. Pelo
contrário, elas não estão preparadas para reconhecer essas proibições, têm

138
a intenção de destruir a própria cultura e, se possível, até mesmo aniquilar
os pressupostos em que se baseia” (FREUD, 1974, p. 23). De maneira sur-
preendente para um pensador tantas vezes rotulado como “burguês con-
servador”, Freud explicita em seguida uma posição que poderia ser incor-
porada a um eventual manifesto proletário: “Não é preciso dizer que uma
civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de seus participan-
tes e os impulsiona à revolta, não tem nem merece a perspectiva de uma
existência duradoura” (FREUD, 1974, p. 23).
Em seguida a essa digressão acentuadamente materialista, Freud re-
cupera a natureza narcísica dos ideais culturais, apontando sua importância
não somente como fator xenófobo que proporciona a unidade de uma cul-
tura em sua relação aversiva com outras, mas também como fator capaz de
anular a hostilidade política no interior da própria cultura. A satisfação
narcísica, vale dizer, o orgulho derivado pelo pertencimento a uma deter-
minada unidade cultural, é decisivo a ponto de neutralizar as frustrações
ocasionadas pela dominação econômica, engendrando a frieza em relação
a povos estrangeiros. Freud exemplifica o fenômeno referindo-se à satisfa-
ção desfrutada pelas classes oprimidas pelo simples fato de que

o direito a desprezar povos estrangeiros as compensa pelas injustiças


que sofrem dentro de sua própria unidade. Não há dúvida de que al-
guém pode ter sido um plebeu infeliz, atormentado por dívidas e pelo
serviço militar, mas, em compensação, não deixava de ser um cidadão
romano, com sua própria quota na tarefa de governar outras nações e
ditar suas leis (FREUD, 1974, p. 24).

Apesar da hostilidade em relação aos dominadores, as classes opri-


midas “podem ver neles seus ideais. A menos que tais relações de tipo men-
talmente fundamentalmente satisfatório subsistam, é impossível compre-

139
ender como uma série de civilizações sobreviveu por tão longo tempo, mal-
grado a justificável hostilidade de grandes massas humanas” (FREUD,
1974, p. 25). É importante notar que a digressão materialista de Freud,
justificada pela persistência da dominação econômica e política na história,
encaminha conclusões diametralmente opostas às premissas do materia-
lismo dialético. A sobrevivência das estruturas de opressão não é evidência
do caráter determinante dos fatores materiais sobre a consciência, pois, na
visão freudiana, a dominação econômica e política atesta justamente o con-
trário disso, ou seja, a primazia dos fatores subjetivos, sob a forma da iden-
tificação emocional dos oprimidos com os opressores. A primazia dos fa-
tores subjetivos sobre as mediações materiais postulada por Freud involun-
tariamente articula o pensamento freudiano ao conjunto de teses metafísi-
cas aqui apresentadas em favor da independência da subjetividade frente à
base material da sociedade. Além disso, é um argumento contundente con-
tra a tese da reificação postulada por Lukács, pois se baseia fortemente na
independência da esfera subjetiva em relação à base material da sociedade.

Dialética e especulação filosófica

Por estar fundamentada no materialismo dialético, e mais precisa-


mente na teoria da reificação de Lukács, a tese de Adorno sobre a existência
específica de uma frieza burguesa expõe-se aos mesmos problemas no
campo filosófico que afetam a análise do pensador húngaro. Atestar a ine-
xistência da alma e a vulnerabilidade da subjetividade aos condicionamen-
tos materiais nos termos propostos por Lukács são teses de natureza tão
teorética e especulativa quanto o argumento metafísico que lhe é antagô-
nico e sustenta a autonomia da alma frente às determinações materiais. Em
outras palavras, ao esposar a teoria da reificação de Lukács, a análise de

140
Adorno assume conotações especulativas análogas àquelas que comprome-
tem o materialismo dialético, dada a impossibilidade de legitimação dessa
teoria no campo materialista pela verificação empírica. O núcleo da inter-
pretação adorniana sobre a vida danificada é tão teorético e especulativo
quanto a tradição filosófica fundamentada na independência do espírito
em relação à matéria. Adorno. Desde a metafísica platônica e aristotélica
até o pensamento moderno de Descartes, Leibniz, Kant e Hegel, prevale-
ceu uma relação de autonomia potencial da consciência frente ao mundo
material. Sobretudo no sistema filosófico de Hegel, embora o estado de
alienação mediado pela esfera do trabalho fosse impeditivo da autoconsci-
ência, nem por isso esta deixou de conter uma condição potencial de au-
tonomia em relação à base material. Nesse sentido, postular a pura e sim-
ples coisificação da consciência originada das contradições materiais da so-
ciedade na fase monopolista do capitalismo, implica fazer tábua rasa de
pressupostos sólidos da filosofia ocidental em prol de uma tese materialista
que se fundamenta em alicerces tão especulativos quanto aqueles que ori-
ginalmente pretendeu contestar.
O caráter especulativo da dialética materialista é claramente reco-
nhecido e assumido por Adorno, em face da impossibilidade da demons-
tração empírica das teses filosóficas: “de fato, nenhuma filosofia, nem
mesmo o empirismo extremo, pode arrastar pelos cabelos os facta bruta e
apresentá-los como casos na anatomia ou experimentos na física”
(ADORNO, 2009, p. 18). Embora seja o resultado necessário do processo
de secularização da modernidade, a filosofia é impedida por sua natureza
intrínseca de recorrer à certeza sensível como atestado de objetividade, o
que a torna necessariamente uma atividade do espírito: “mesmo depois de
recusar o idealismo, a filosofia não pode abdicar da especulação – ainda
que em sentido mais amplo do que aquele hegeliano por demais positivo
– que o idealismo exaltou e que se tornou mal afamada juntamente com

141
ele” (ADORNO, 2013b, p. 22). Mas nem por isso a especulação filosófica
deixa de ser uma atividade do espírito atenta aos fatos objetivos. Porém, de
maneira diferente da ciência positivista, que se satisfaz com a simples cons-
tatação e classificação de dados, a filosofia negativa de Adorno assume a
distância necessária entre pensamento e realidade justamente para que as
leis objetivas que governam os fatos possam ser compreendidas como me-
diações necessárias a serem consideradas pela reflexão: “é apenas na distân-
cia em relação à vida que se desenvolve o pensamento que realmente atinge
a vida empírica” (ADORNO, 1992, p. 110). Contrariamente ao culto po-
sitivista dos fatos, para o pensamento filosófico não existe objetividade que
não esteja fundamentada na especulação.

Personalidade autoritária, freudismo e teoria da reificação

A teoria da reificação de Lukács é o pano de fundo teórico decisivo


para explicar a vigência da personalidade autoritária e das fortes tendências
irracionalistas que lhe são inseparáveis, mesmo em contextos de acentuada
tecnicização e individualização. A interrogação explicitada por Adorno, so-
bre como é possível que seres humanos condicionados a uma individuali-
dade liberal integrem-se voluntariamente em aglomerados fascistas, encon-
tra resposta na emergência de processos emocionalmente defensivos e rea-
tivos frente a uma realidade material reificada. Por outro lado, nos textos
em que se propõe a analisar o conteúdo do discurso e os recursos oratórios
mobilizados pelos líderes fascistas norte-americanos nos anos 1940,
Adorno baseia-se em larga medida nos aspectos emocionais envolvidos na
adesão ao fascismo. Enquanto a teoria freudiana sobre a psicologia grupal
baseia-se essencialmente na promoção de uma união coletiva em torno do
líder, graças à projeção do ideal de ego dos integrantes do grupo na figura

142
do líder, Adorno considera que essa dinâmica psicológica antecipa de ma-
neira exemplar o fenômeno fascista. A idealização do líder detalhadamente
descrita por Freud no texto Psicologia de massas e análise do eu mediante
identificações de natureza libidinal, é em grande medida favorecida no
contexto da sociedade de massas na era fascista pelo conflito peculiar aos
indivíduos entre “uma instância do eu racional, fortemente desenvolvida e
autoconservadora, e o contínuo fracasso em satisfazer as demandas de seu
próprio eu” (ADORNO, 2015, p. 169). As frustrações narcísicas ocasio-
nadas pela defasagem entre a autoimagem individual e as demandas sociais
irrealizáveis por qualquer ser humano, são então compensadas imaginaria-
mente pelo engrandecimento do eu: “ao fazer do líder seu ideal, ele ama a
si mesmo, por assim dizer, mas se livra das manchas de frustração e mal-
estar que desfiguram a imagem de seu próprio eu empírico” (ADORNO,
2015, p. 169).
Em sua análise, Adorno enfatiza a notável afinidade da descrição
freudiana do líder grupal com a imagem fascista do líder, tanto no que se
refere à encarnação do pai narcisista da horda primitiva, como também
pela autocomplacência apontada por Freud, que permite ao líder fascista
tornar-se a encarnação ambígua de um super-homem e de um barbeiro de
subúrbio. O conceito de narcisismo das pequenas diferenças, descrito por
Freud como traço característico da rivalidade entre populações que habi-
tam territórios contíguos, é mobilizado por Adorno para explicar o sado-
masoquismo das oposições in-group/out-group, habilidosamente manipula-
das pelo líder fascista para provocar a união grupal e despertar a rivalidade
contra as vítimas do momento. Em mais de um momento, Adorno destaca
a genialidade da teoria freudiana, em sua capacidade quase clarividente de
antecipar, na década de 20 do século passado, os fundamentos básicos da
dinâmica emocional que envolve as coletividades fascistas. A categoria psi-
cológica da “impostura”, atribuída aos jitterbugs, é empregada também

143
para caracterizar o empobrecimento psicológico envolvido na performance
dos integrantes da comunidade fascista, ao encenarem uma identificação
farsesca com o líder. A conclusão do texto sobre teoria freudiana e propa-
ganda fascista coroa uma análise em que o fascismo é pensado, em seus
traços fundamentais, majoritariamente mediante a mobilização de catego-
rias psicológicas extraídas da psicanálise: “a hipnose socializada cria em si
mesma as forças que eliminarão o fantasma da regressão através de controle
remoto e que, no fim, despertarão aqueles que mantêm seus olhos fechados
embora não estejam mais dormindo” (ADORNO, 2015, p. 189).
A análise de Adorno sobre as técnicas psicológicas de manipulação
empregadas pelo líder fascista é fundamentada muito mais em conceitos
freudianos do que no aparato conceitual do materialismo dialético. Assim
como na análise da personalidade autoritária, em que os mecanismos de
defesa de estereotipia e personalização assumem o primeiro plano como
grade explicativa do autoritarismo e do preconceito, nos textos dedicados
à oratória do líder, embora o conceito de reificação esteja presente, os fa-
tores emocionais claramente assumem o primeiro plano da fundamentação
conceitual. Embora Adorno ressalve que Freud tenha negligenciado as me-
diações materiais envolvidas em uma socialização aniquiladora da indivi-
dualidade, ele não deixa de reconhecer que a perspicácia freudiana na aná-
lise da psicologia grupal é tributária de uma imanência psíquica em estilo
metafísico: “enquanto o próprio Freud não se preocupou com as mudanças
sociais, pode-se dizer que ele desenvolveu, no interior do confinamento
monadológico do indivíduo, os traços de sua crise profunda e sua disposi-
ção para ceder inquestionavelmente às poderosas instâncias coletivas exter-
nas” (ADORNO, 2015, p. 157). Na conclusão do texto Teoria freudiana e
propaganda fascista, Adorno introduz o conceito de reificação como pano
de fundo explicativo da “expropriação do inconsciente pelo controle social”
exercida pelo líder mediante a manipulação psicológica (ADORNO, 2015,

144
p. 187). Após servir-se do pensamento de Freud para explicar os funda-
mentos da psicologia de massas fascista, Adorno anuncia a reificação como
configuração material e social do fascismo, porém sem demonstrar de que
maneira a base material da sociedade poderia penetrar e determinar a perda
de substância da mônada psicológica freudiana: “em uma sociedade com-
pletamente reificada, em que virtualmente não há nenhuma relação direta
entre os seres humanos, e na qual cada pessoa foi reduzida a um átomo
social, a uma mera função da coletividade, os processos psicológicos, em-
bora ainda persistam no indivíduo, não mais aparecem como as forças de-
terminantes do processo social” (ADORNO, 2015, p. 187). Mesmo que
tal interpretação materialista seja condizente com inúmeras declarações de
Adorno contra a autarquia pura e simples da subjetividade, o conceito de
reificação é empregado de maneira especulativa, uma vez que é impossível
demonstrar empiricamente a primazia de fatores materiais sobre processos
emocionais. A reificação social teria assumido traços totalitários plena-
mente caracterizáveis como “vida falsa”, a ponto de abolir a interioridade
psicológica dos indivíduos, agora convertidos em “átomos sociais desindi-
vidualizados e pós-psicológicos que formam as coletividades fascistas”
(ADORNO, 2015, p. 187). A manipulação fascista, embora envolvendo
processos irracionais e inconscientes, é em si mesma de natureza não psi-
cológica, “sistematicamente controlada e absorvida pelos mecanismos so-
ciais que são dirigidos a partir de cima” (ADORNO, 2015, p. 186). Em-
bora Adorno atribua ao conceito de reificação um papel determinante para
a explicação da atmosfera fascista, os aspectos materialistas permanecem
externos à análise, exercendo o papel de um pano de fundo explicativo que
não se integra organicamente ao conjunto freudiano da explicação. Uma
demonstração involuntária dessa exterioridade pode ser observada na parte
conclusiva do texto sobre teoria freudiana e propaganda fascista, em que o

145
conceito de “impostura” ou “falsidade” (phonyness), originariamente em-
pregado por Freud para caracterizar a consciência do paciente acerca do
teor farsesco da relação hipnótica, exerce um papel absolutamente central
na explicação da sedução exercida pelo líder fascista. Mesmo assumindo
parâmetros declaradamente materialistas, a análise de Adorno sobre a at-
mosfera fascista é puramente psicológica e compatível com uma relação de
reconhecimento entre duas consciências em que uma comunidade de in-
divíduos aceita volunta-riamente submeter-se a uma só consciência que
desempenha o papel de senhor. A primazia dos aspectos materialistas da
análise de Adorno não impede que o fascismo seja pensado como relação
entre uma comunidade de espíritos finitos submetidos a um só espírito que
se apresenta como líder, sendo assim compatível com o itinerário dialético
da consciência de si descrito na Fenomenologia do Espírito de Hegel.

Aspectos sombrios de uma educação após Auschwitz

Para além das dificuldades teóricas em demonstrar a possibilidade


de uma determinação direta das relações materiais da sociedade sobre o
espírito, um segundo problema transparece na análise de Adorno. Educa-
ção após Auschwitz descreve oficiais nazistas como pessoas dotadas de certo
tipo de subjetividade caracterizada "pela fúria organizativa, pela incapaci-
dade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo
de ausência de emoções, por um realismo exagerado" (ADORNO, 1995b,
p. 129). Há no caráter manipulador um fetichismo prático acentuado que
é completamente indiferente à finalidade das ações. Para descrever com a
máxima exatidão possível a essência desse tipo de personalidade, Adorno
recorre ao conceito de reificação descrevendo o caráter manipulador ou
autoritário como consciência coisificada. Ao analisar o fenômeno da reifi-
cação no capitalismo tardio, o filósofo adota um ponto de vista dialético-

146
materialista, acentuando o determinismo material na constituição da sub-
jetividade: "é certo que todas as épocas produzem as personalidades - tipos
de distribuição da energia psíquica - de que necessitam socialmente"
(ADORNO, 1995b, 132). No que se refere à consciência coisificada espe-
cífica ao fascismo, Adorno destaca o vínculo irracional com a técnica, apre-
sentando o fetichismo técnico como aspecto decisivo para a compreensão
da frieza burguesa:

Os homens inclinam-se a considerar a técnica como algo em si mesma,


um fim em si mesmo, esquecendo-se que é a extensão do braço dos
homens. Os meios - e a técnica é um conceito de meios dirigidos à
conservação da espécie humana - são fetichizados porque os fins - uma
vida humana digna - encontram-se encobertos e desconectados da
consciência das pessoas (ADORNO, 1995 b, p. 132-133).

O vínculo dos homens com a técnica envolve um ponto de transi-


ção obscuro entre uma relação racional e a fetichização pura e simples, em
que uma supervalorização leva, "em última análise, quem projeta um sis-
tema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz a esquecer o que
acontece com estas vítimas em Auschwitz" (ADORNO, 1995b, p. 133).
A caracterização da consciência coisificada como núcleo explicativo do fas-
cismo é perfeitamente coerente com uma definição conceitual apresentada
por Adorno em outro texto, no qual a psicologia social é definida como
"mediação subjetiva do sistema social objetivo" (ADORNO, 1995a, p.
161). Por outro lado, após apontar com precisão a confluência do feti-
chismo técnico com o tipo de subjetividade afinada com o fascismo,
Adorno inicia, em Educação após Auschwitz, um percurso digressivo, entre
tais aspectos de insensibilidade emocional, relacionados com a vulnerabi-
lidade ao fascismo, e a falta de amor ao próximo, em si mesmo, um tema
intrínseco à metafísica e mais precisamente à teologia. Embora explique a

147
fetichização da técnica como fenômeno materialmente mediado e atinente
à consciência coisificada, Adorno acrescenta em seguida a explicação de
que pessoas assim são simplesmente "incapazes de amar", afetadas pela "ca-
rente relação libidinal com outras pessoas" e "inteiramente frias", "seu
amor era absorvido por coisas, máquinas enquanto tais" (ADORNO,
1995b, p. 133). Plenamente consciente das dificuldades teóricas implica-
das em uma análise da personalidade autoritária baseada na apatia e na
carência amorosa, explicação que oscila entre o aparato conceitual marxista
e a espiritualidade cristã, Adorno adverte que o combate ao fascismo, assim
definido, envolve aspectos perturbadores, uma vez que se trata de opor-se
a tendência ligada ao conjunto da civilização: "Combatê-la equivale a
opor-se ao espírito do mundo; mas com isso repito apenas algo que des-
crevi inicialmente como o aspecto sombrio de uma educação contra Aus-
chwitz" (ADORNO, 1986, p. 42).
Assumida a obscuridade do problema, nos parágrafos seguintes, o
filósofo Adorno expõe sua complexidade a partir dos fatores de natureza
material, relacionados com o capitalismo tardio, e a temática cristã, associ-
ada à redenção da humanidade. O problema da frieza emocional é então
tratado como núcleo das dificuldades teóricas envolvidas em uma educação
contra a desbarbarização. Por um lado, a frieza é tratada como condição
essencial da catástrofe de Auschwitz, uma vez que, sem a indiferença como
componente central das relações entre os humanos, o holocausto não teria
sido possível. Por outro lado, a perseguição dos próprios interesses em de-
trimento dos interesses alheios é uma tendência sedimentada no caráter
humano e própria à civilização desde milênios. A dimensão teológica do
problema é claramente abordada: "um dos grandes impulsos do cristia-
nismo, a não ser confundido com o dogma, foi apagar a frieza que tudo
penetra. Mas esta tentativa fracassou"(ADORNO, 1995b, p. 135). Um
trabalho educativo voltado para a dissolução da frieza deveria ser iniciado

148
na infância, mas Adorno adverte para a impossibilidade de se mobilizar
para o amor pais que são eles próprios produtos da frieza social, e, portanto,
inaptos para a mobilização do calor humano. Por outro lado, coerente com
a constatação consagrada em Minima Moralia, acerca da impossibilidade
de vida verdadeira na vida falsa, Adorno adverte mais uma vez para a aporia
envolvida nesse tipo de conclamação: "O incentivo ao amor provavel-
mente na forma mais imperativa, de um dever - constitui ele próprio parte
de uma ideologia que perpetua a frieza" (ADORNO, 1995b, p. 135).
Embora Adorno admita a obscuridade e a dimensão sombria do
problema que perpassa a superação do fascismo e da vida falsa, sua análise
permanece restrita a uma ótica materialista que atribui primazia aos fatores
materiais na configuração de realidades sociais em que as pessoas se tratam
como coisas. Seu escrúpulo materialista impediu que a frieza que atravessa
a vida falsa pudesse ser pensada sob a perspectiva mais ampla relacionada
com os mistérios do espírito humano e da metafísica. Como Adorno não
se propôs a reflexões filosóficas tematizadoras do mistério metafísico en-
volvido na vida falsa, tal reflexão, que se apresenta como exigência intrín-
seca à compreensão do mal próprio ao fascismo, será desenvolvida a seguir.

149
Capítulo 8

O mal
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________-

A reflexão filosófica sobre o mal pressupõe, antes de mais cada, a


superação do problema do dualismo entre bem e mal, e tal questão foi
resumida em seus aspectos fundamentais pelo teólogo contemporâneo Carl
S. Lewis (LEWIS, 2018). Segundo o autor, a teoria dualista é defeituosa, e
deve ser rejeitada, pois a simples coexistência de dois poderes absolutos,
um bom, outro mal, em si mesma é um fato inexplicável, pois se ambos
são mutuamente condicionados, não podem ser absolutos, e seria necessá-
rio explicar como eles se originaram de um primeiro poder supremo. Esse
problema remete logicamente a um poder absoluto do qual eles teriam se
originado, devolvendo a pergunta sobre a origem do mal. Além disso, sob
o ponto de vista moral, se o bem e o mal existirem de maneira substantiva
e positiva, não seria logicamente possível realizar julgamentos morais. É
possível acrescentar às reflexões do teólogo que em um mundo em que a
moral fosse impossível, em virtude do relativismo absoluto da diferença
entre bem e mal, igualmente seria obsoleta a própria racionalidade, e sem
ela, a própria indagação em si mesma sobre a existência do mal se tornaria
impossível. O mesmo problema não afeta o bem, pois sua existência é
aceita pelos homens de maneira intransitiva, o que revela sua associação
intrínseca com a própria natureza humana.
A impossibilidade lógica do dualismo entre bem e mal remete à
incompatibilidade da existência do mal perante um Deus infinitamente
bom e perfeito. Na história da filosofia ocidental, a indagação acerca das

151
razões da existência do mal encontrou em Santo Agostinho sua mais pre-
cisa enunciação, tornada referência para as mais importantes reflexões pos-
teriores. A questão do mal é desenvolvida pelo filósofo em graus crescentes
de problematização, que localizam como má a própria pesquisa de uma
substância má criada por Deus, que sendo infinitamente bom, somente
pode ter criado coisas boas. O mal, então, pode ser explicado pela corrup-
ção que é intrínseca a todas as coisas boas criadas por Deus, e a própria
corrupção é um argumento a favor da beatitude original, pois as coisas “não
se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam cor-
romper se não fossem boas” (AGOSTINHO, 2010, p. 102). Da impossi-
bilidade de existirem coisas completamente privadas de todo o bem, uma
vez que não poderiam ter se originado de Deus, que é o criador do universo,
Agostinho enuncia seu conceito clássico do mal como privação do bem:
“todas as coisas que existem são boas e aquele mal que eu procurava não é
uma substância, pois se fosse substância seria um bem” (AGOSTINHO,
2010, p. 102). Não sendo substância, o mal é “perversão da vontade desvi-
ada da substância suprema” (AGOSTINHO, 2010, p. 104). As reflexões
posteriores de São Tomás de Aquino concordam com os termos gerais pro-
postos por Agostinho, acerca da inexistência do mal como substância, o
que leva a pensar que as coisas más não o são em si mesmas, e, portanto, o
mal é fenômeno contingente, resultante de um estado de privação do bem:
“o mal significa carência de perfeição no sujeito em que se dá, algum bem que
este deveria possuir, mas do qual se encontra privado. O mal é no sujeito,
mas não existe como sujeito” (FAITANIN, 2005, p. x).

Kant

Kant obviamente não poderia recorrer aos termos metafísicos dos


dois pensadores medievais, pois para ele tais conceitos eram em si mesmos

152
um problema filosófico digno de reflexão, e não propriamente uma res-
posta racional sobre o problema do mal. Por isso, diante de Santo Agosti-
nho e Tomás de Aquino, para quem o bem é realidade suprema, ontologi-
camente relacionado com a perfeição absoluta de Deus, Kant introduz a
exigência racional da lei moral como referência conceitual validadora da
noção de bem. Para o filósofo de Konigsberg, os homens possuem em sua
natureza uma disposição originária para o bem, universalmente determi-
nada pela lei moral, bastando que esta seja admitida como máxima pelo
arbítrio para que as ações de certo homem particular sejam boas em si mes-
mas. A referida disposição da natureza humana para o bem consiste na
mais alta e refinada dimensão da moral, uma vez que o bem também é
determinado pela disposição natural para a animalidade (relacionada com
a autoconservação, a reprodução da espécie e a vida social) e para a huma-
nidade (relacionada com ideais de igualdade) (KANT, 2008, p. 31-33).
Porém, é somente quando a "razão prática incondicionalmente legisla-
dora" torna-se "único móbil do arbítrio" que o bem pode ser realizado em
sua máxima potência, embora restrito à imperfeição intrínseca da natureza
humana (CUNHA, 2017, p. 256).
Em oposição à disposição originária para o bem, existem, segundo
Kant, três graus de propensão para o mal, igualmente presentes na natureza
humana. O primeiro deles decorre da fragilidade em observar e cumprir as
máximas determinadas pela lei moral; embora estas sejam reconhecidas em
sua validade, e desejadas como ideal válido para a conduta, o arbítrio não
consegue realizar escolhas compatíveis com o bem. A segunda propensão
para o mal relaciona-se com a impureza do coração humano, quando este
acolhe a lei moral, porém necessita de móbiles imorais para a consecução
das ações, como interesses pessoais e instrumentais. A terceira propensão
para o mal, que o representa em sua maior dimensão, consiste no estágio
de malignidade, ou estado de corrupção e perversidade do coração humano.

153
Neste nível, o arbítrio rebaixa a lei moral a aspecto rigorosamente secun-
dário em favor de móbiles imorais relacionados ao puro prazer, a vícios,
interesses pessoais etc. Este terceiro estágio é o único em que a lei moral é
simplesmente depreciada em sua validade universal, deixando de ser assu-
mida, mesmo imperfeitamente, como imperativo regulador das ações, ra-
zão pela qual Kant a denomina "mal radical", uma vez que a vontade foi
corrompida na raiz. Embora a reflexão kantiana sobre o mal seja funda-
mentada em conceitos racionais, nem por isso ela se distancia do pensa-
mento escolástico de Santo Agostinho e Tomás de Aquino, que negaram
ao mal qualquer dignidade ontológica ou substancial, pois o mal radical
kantiano de forma alguma pode ser entendido como "mal absoluto". O
mal radical expressa um estado contingente de perversidade do arbítrio,
porém não implica uma condição em que o mal pudesse ser considerado
um fim em si mesmo desatrelado de condicionantes definidos pela vontade,
nem tampouco que consistisse em um estágio de recusa e negação da vali-
dade imperativa e incondicional da lei moral. Embora agindo contra a lei,
os homens permanecem seres racionais, aos quais é impossível converter o
mal em lei universal. Nesse sentido, para Kant, em virtude de serem os
homens sujeitos à finitude e às inclinações da natureza sensível, lhes é fa-
cultado agir em inobservância da lei moral, mas é impossível agir pelo mó-
bil de uma vontade diabólica afirmadora da nulidade da lei moral. Por esse
motivo, "quando se afirma que o homem é mau por natureza, se está di-
zendo, segundo o pensamento kantiano, que o sujeito conhece a lei moral
e a ignora. Não significa que ele está, desde sempre, determinado para o
mal. Não há determinação; há predisposição que pode não se realizar"
(CUNHA, 2017, p. 257).
As reflexões kantianas sobre o bem como disposição originária de-
terminada pela incondicionalidade e universalidade da lei moral, e sobre o
mal como inclinação perversa, porém contingente e evitável, no texto A

154
religião nos limites da simples razão, confluem para uma concepção otimista
análoga àquela formulada no texto O que é o esclarecimento. Sendo o ho-
mem suscetível de sucumbir a vícios e comportamentos moralmente rebai-
xados, por outro lado, sua disposição originária para o bem jamais pode
ser eliminada de sua natureza. "Para se adquirir a virtude é preciso mudar
os costumes, não o coração. O coração é originariamente bom; perverteu-
se com as escolhas feitas, mas pode retornar à disposição original com a
mudança dos costumes" (CUNHA, 2017, p. 258). A simples possibilidade,
uma vez tornada possível pela razão, torna-se ao mesmo tempo um impe-
rativo, "pois se a lei moral ordena que devemos agora ser homens melhores,
segue-se de modo ineludível que devemos também poder sê-lo" (KANT,
2008, p. 60). O filósofo almeja nada menos que o homem corrompido no
fundamento de suas máximas possa transformar-se, mediante uma revolu-
ção em sua disposição de ânimo, em um sujeito suscetível de alcançar o
bem e a virtude moral. O melhoramento moral apresenta teor aristotélico,
pois baseia-se uma prática habitual da virtude, por meio de uma ascética
firmemente voltada para uma constante progressão do mal para o bem.
Para esta ascética "não podemos partir de uma inocência que nos seria na-
tural, mas temos de começar pelo pressuposto de uma malignidade do ar-
bítrio na adoção de suas máximas contra a disposição moral originária, e
visto que a propensão para tal é inextirpável, começar por agir incessante-
mente contra ela" (KANT, 2008, p. 60).
A reflexão de Kant sobre o mal descarta rigorosamente qualquer
dimensão metafísica associada a potências malignas ou a uma ontologia da
culpa nos moldes agostinianos e tomistas. O mal é explicado mediante o
apelo à fragilidade humana e à perversidade do coração, sendo passível de
superação pelo ativamento da disposição originária para o bem. Este, por
sua vez, é fundamentado racionalmente e relacionado ao caráter firme-

155
mente voltado para a obediência irrestrita da lei moral. O parâmetro defi-
nidor da diferença entre bem e mal na filosofia de Kant remete exclusiva-
mente à interioridade do sujeito e sua boa vontade em assumir como prin-
cípio determinante do conteúdo de suas ações a máxima do bem.

Leibniz

Diferentemente de Kant, que aborda a existência do mal como um


problema passível de resolução pela observância da lei moral racionalmente
fundamentada, Leibniz enfrentou a questão a partir de sua delimitação
metafísica relacionada à justificação da existência de Deus e do mundo.
Leibniz se propõe a problematizar e resolver o conhecido dilema atribuído
a Epicuro acerca da existência simultânea de um Deus onipotente, onisci-
ente e sumamente bom, com a existência do sofrimento, infelicidade e dor
reinantes no mundo. A contradição entre a existência de um Deus dotado
das três qualidades citadas e a existência do mal expõe um problema lógico
relacionado à própria consistência interna do discurso teísta. A solução
proposta por Leibniz baseia-se em dois pressupostos básicos, intrinseca-
mente associados: 1) Entre os vários mundos possíveis, Deus escolheu para
a existência o melhor mundo possível. 2) O melhor mundo possível com-
porta males contingentes, a serem compensados por bens maiores (Arruda,
2011, p. 224).
A tese leibniziana do melhor dos mundos possíveis é deduzida pelo
filósofo a partir da existência de Deus como causa extramundana e neces-
sária de todas as coisas contingentes. Para Leibniz, na matéria não pode ser
encontrada a razão suficiente da existência do Universo, pois cada causa
contingente leva a outra causa contingente, e, dessa forma, somente fora
da sequência de uma série interminável de contingências poderá ser encon-
trada a origem da totalidade da existência, vale dizer, em Deus como causa

156
necessária e absoluta. A existência do melhor mundo possível é logica-
mente deduzida por Leibniz da "perfeita cognitio a priori de todas as coisas":
"o intelecto divino, epistemologicamente não-limitado, é capaz de vislum-
brar todas as possibilidades lógicas" (Arruda, 2011, p. 224). Considerando,
então, que a "suprema sabedoria, aliada a uma bondade que é infinita, não
pode escolher senão o melhor", de todas as coisas realmente possíveis de
existir, pensadas pela inteligência divina, "aquela que existe é aquela por
intermédio da qual o máximo de essência ou possibilidade é levado a exis-
tir" (LEIBNIZ, 2009, p 71). O pressuposto da absoluta perfeição divina
torna logicamente impossível que Deus possa ter escolhido para a existên-
cia um universo carente de perfeições ou que não levasse à máxima felici-
dade das criaturas, pois isso implicaria irracionalidade ou imoralidade na
escolha divina. Como consequência,

segue-se da Suprema Perfeição de Deus que, na produção do Universo,


tenha Ele escolhido o melhor projeto possível, no qual há a maior va-
riedade junto com a maior ordem. O terreno, o lugar e o tempo usados
para a obtenção do maior proveito: o máximo efeito foi produzido pe-
los métodos mais simples. às coisas criadas foram dispostos os mais al-
tos níveis de poder, conhecimento , felicidade e bondade que o uni-
verso poderia permitir (LEIBNIZ, 2009, p. 49).

Na história da filosofia ocidental não poderia ser encontrado texto


mais profundamente contundente contra o argumento de Leibniz do que
Diálogos sobre a religião natural, de Hume, que expõe as misérias e sofri-
mentos do mundo como argumento radicalmente dirigido contra o oti-
mismo leibniziano. Na boca de Filo, personagem que dialoga com Cleantes,
Hume convida o leitor a imaginar a existência de uma inteligência não
familiarizada com o Universo, e que não estivesse previamente convencida
de que ele seria obra de uma inteligência suprema, benevolente e poderosa.

157
A simples observação empírica seria então o único recurso de que esse via-
jante imaginário poderia dispor para avaliar o grau de perfeição do Uni-
verso.

Se eu lhe mostrasse uma casa ou um palácio onde não houvesse um


único aposento confortável ou aprazível, onde as janelas, portas, larei-
ras, corredores, escadas e toda a organização do edifício fossem causa
de ruído, fadiga, obscuridade, frio e calor extremados, você com certeza
culparia o projeto do edifício, sem perder tempo em maiores averigua-
ções. Seria inútil que o arquiteto exibisse sua perspicácia provando que
maiores males decorreriam da alteração desta porta ou daquela janela.
(...) Ao constatar quaisquer inconveniências ou defeitos na construção,
você invariavelmente culpará o arquiteto, sem entrar em maiores con-
siderações (HUME, 1992, p. 148)

A confrontação entre o otimismo de Leibniz e o ceticismo de


Hume evidencia que ambos partem do exame das mesmas vicissitudes da
realidade empírica para produzir argumentos rigorosamente antagônicos.
Perante os sofrimentos inerentes ao mundo, Leibniz expõe a incompletude
humana como fator decisivo para que tais misérias não sejam o critério
decisivo para a avaliação da obra de Deus: "conhecemos apenas uma parte
da eternidade, que se estende sem medida, pois curta é a memória de mui-
tos milhares de anos que a História nos concede. E, todavia, de tal escassa
experiência precipitadamente formamos juízos a respeito do imenso e do
eterno, como pessoas nascidas e criadas na prisão" (LEIBNIZ, 2009, p.75).
Hume, por outro lado, descarta o inatismo metafísico, assim como pressu-
postos ontológicos ou substanciais, vale dizer, o pensador escocês recusa a
validade lógica de ideias que não sejam originadas das percepções. O
abismo entre os dois pensadores diz respeito à confiança na universalidade
e necessidade da razão, plenamente confirmada pela metafísica de Leibniz,

158
porém rigorosamente descartada por Hume. Este, com seu empirismo ra-
dical, reduziu a universalidade da razão, assim como a própria categoria
metafísica da substância, fiadora de toda compreensão universalista do
mundo, a mero subproduto do hábito em estabelecer relações de causali-
dade entre as sucessivas percepções captadas pelos órgãos dos sentidos.
Por outro lado, a confiança de Leibniz em uma razão metafisica-
mente fundamentada é tributária do empreendimento cartesiano de de-
monstração da confiabilidade das faculdades intelectivas humanas. Sendo
a razão um instrumento plenamente confiável para a produção de ideias
claras e distintas, o que significa que a razão não é uma faculdade enganosa
engendrada por um gênio maligno, Leibniz não hesita em garantir que este
é o melhor dos mundos possíveis, a partir de argumentos logicamente an-
corados na metafísica. Leibniz deduz a existência de perfeição nos fenôme-
nos naturais fundamentando sua análise na própria perfeição divina, que
impossibilita que este mundo possa ser imperfeito, pois nesse caso o pró-
prio Deus estaria ludibriando os homens, o que é logicamente impossível.
O ceticismo de Hume, por outro lado, simplesmente despreza um empre-
endimento tal como o realizado por Descartes acerca da confiabilidade da
razão como instrumento de conhecimento do mundo, pelo simples fato de
considerar que a razão é uma faculdade falível, incerta, inclinada ao erro, e
que "a natureza, por uma necessidade absoluta e incontrolável, determi-
nou-nos a julgar, assim como a respirar e a sentir" (HUME, 2001, p. 216).
O ceticismo humiano recorre unicamente aos fatos empíricos do mundo
observável e conclui pela imperfeição e precariedade intrínsecas do mundo,
atribuindo-as à incompetência do arquiteto. Leibniz, por sua vez, despreza
a observação humana pelos mesmos motivos apresentados por Hume, vale
dizer, por suas limitações e fortes inclinações ao erro, preferindo confiar na
capacidade especulativa do intelecto de transcender os fatos empíricos e
afirmar a perfeição divina do mundo.

159
Hegel

No sistema filosófico de Hegel, o melhor dos mundos possíveis as-


sume caráter historicamente irredutível sob uma compreensão determi-
nista da temporalidade, em que os fatos históricos são tratados como etapas
do progresso racional da humanidade. Enquanto Leibniz foi um dos pri-
meiros filósofos a enfrentar o abismo cartesiano configurado no dualismo
e irredutibilidade entre substância pensante e substância extensa, o Espírito
hegeliano constituiu-se como uma síntese magistral entre subjetividade e
mundo material. A mônada, pedra angular da metafísica de Leibniz, repre-
sentou, juntamente com o Espírito em Hegel, a perspectiva filosófica de
superação da dicotomia própria à Revolução Científica entre a esfera espe-
culativa da metafísica e a esfera mecanicista do mundo sensível. O mundo
natural, na concepção hegeliana, deixa de ser mero substrato da dominação
patriarcal postulada por Bacon, para tornar-se o próprio palco de emergên-
cia lenta e paciente da Ideia. Ao elevar-se sobre a natureza e assumir sua
forma amadurecida e autoconsciente, tornada possível pela mediação da
consciência humana, o Espírito retorna a si. A natureza, sendo "ideia na
forma do ser-outro", corporifica o espírito existindo em-si, mas não para-
si, razão pela qual, no mundo natural, é não-livre, existindo sob o impera-
tivo da necessidade e da contingência” (HEGEL, 2002, p. 305-306). A
racionalidade e a liberdade tornam-se propriedades específicas do Espírito,
quando este, suprassumido sob a forma da consciência humana, torna-se
capaz de autocompreender-se, assim como ao mundo concreto em que
existe. Marcuse apresenta de maneira muito clara a evolução qualitativa do
Espírito, quando, em seu processo negativo de diferenciar-se de si próprio
tornando-se o que é em si mesmo, ele assume a condição do entendimento
racional: "a planta, porém, não 'compreende' este desenvolvimento e, por

160
conseguinte, não pode racionalizar suas próprias potencialidades até o es-
tado de ser. Tal 'realização' é um processo do verdadeiro sujeito, e só é
atingida pela existência do homem" (MARCUSE, 1978, p. 22).
Na filosofia hegeliana, a concepção de "verdade" desprende-se das
amarras epistemológicas que a restringiam a simples conhecimento externo
ao objeto para apresentar-se como "sujeito" capaz de desenvolver-se na his-
tória pelo desdobramento de suas próprias contradições internas. A razão
assume força objetiva na medida em que todas as formas de ser convertem-
se em espécies de subjetividade que almejam a realização de suas potencia-
lidades (MARCUSE, 1978, p. 23). A substância, sendo então sujeito que
se torna real ao por-se-a si mesmo, é negatividade pura em que o conceito
exige a expansão da liberdade e da razão no mundo humano. Porém, "a
realização da razão não é um fato e sim uma tarefa. A forma pela qual os
objetos aparecem não é, ainda, sua forma verdadeira. O simplesmente dado
é, de saída, negativo, isto é, diferentes de suas reais potencialidades. É no
processo de superação de sua negatividade que ele se torna verdadeiro; o
nascimento da verdade requer, pois, a morte do estado, que é dado, do ser"
(MARCUSE, 1978, p. 37). A realização da verdade, da substância como
sujeito, corporifica-se na história como palco da realização do Absoluto,
cuja natureza se efetiva como "vir-a-ser-de-si-mesmo" (HEGEL, 2002, p.
36). Mas se a história está destinada a ser a realização do Espírito como
sujeito, como progressiva realização da razão e da liberdade, como pode ela
ser, como se sabe, lugar de expansão permanente da barbárie e do sofri-
mento, em que os homens lutam por satisfazer seus próprios interesses e
paixões? A resposta de Hegel a essa questão apresenta sabor nitidamente
leibniziano: "ao seguir seus próprios interesses, os indivíduos promovem o
progresso do espírito, isto é, realizam uma tarefa universal que favorece a
liberdade (MARCUSE, 1978, p. 212). O melhor dos mundos hegeliano é
aquele em que se realiza a astúcia da razão: "os indivíduos levam uma vida

161
infeliz, trabalham arduamente e morrem; entretanto, embora jamais reali-
zem seus desígnios, seu sofrimento e seu fracasso são os meios mesmos de
sustentação da verdade e da liberdade. Um homem jamais colhe os frutos
de seu trabalho: eles sempre ficam para as gerações futuras" (MARCUSE,
1978, p. 215).
Segundo o sistema filosófico de Hegel, a realidade do mal moral
deve ser compreendida em conexão com o próprio movimento imanente
do espírito infinito na finitude humana. A abordagem hegeliana diferen-
cia-se dos termos leibnizianos, em que a existência do mal é explicada pela
contingência humana perante uma totalidade perfeita e absoluta, assim
como dos termos kantianos, que a concebem a partir de estágios de malig-
nidade em relação a uma lei moral incondicionalmente válida e universal.
Para Hegel, o Absoluto não deve ser pensado como transcendência inaces-
sível que contempla os homens com o melhor dos mundos possíveis, ou
mediante uma lei racional abstrata e universal. Os sistemas filosóficos de
Leibniz e de Kant padecem do dualismo entre finitude e infinitude que é
justamente o obstáculo desenvolvido pela própria razão para seu autoco-
nhecimento como Espírito autoconsciente. Ao conceber o Absoluto, ou
verdadeiro como sujeito, Hegel estabeleceu as condições conceituais para
uma compreensão não-dualista da relação entre infinito e finito, pois a ca-
tegoria metafísica da substância passa a ser compreendida como Espírito
corporificado nas entidades finitas: “o Geist ou Deus não pode existir sepa-
radamente do universo que ele sustém e no qual ele se manifesta a si mesmo”
(TAYLOR, 2014, p 113). A compreensão da posição reciprocamente me-
diada entre o mundo das coisas contingentes e finitas e o Espírito infinito
requer considerar que a finitude é totalidade corporificadora das próprias
condições de existência de Deus, que como Espírito infinito alcança sua
plena realização e seu retorno a si por meio dos seres finitos, e mais ampla-
mente mediante a subjetividade humana. A superação de certo solipsismo

162
e transcendência divina, pela caracterização de Deus como consciência de
si racional e livre, que cria o mundo corporificando-se em objetos finitos e
realizando-se através de seres racionais, é essencial para a compreensão ade-
quada da fenomenologia do Espírito:

Assim, a vida de Deus e o conhecimento divino bem que podem ex-


primir-se como um jogo de amor consigo mesmo; mas é uma ideia que
baixa ao nível da edificação e até da insipidez quando lhe falta o sério,
a dor, a paciência e o trabalho do negativo (…) O verdadeiro é o todo.
Mas o todo é somente a essência que se implementa através de seu re-
sultado. Sobre o absoluto, deve-se dizer que é essencialmente resultado;
que só no fim é o que é na verdade (HEGEL, 2002, p. 35-36).

Se Deus é consciência de si infinita que se realiza plenamente como


Espírito por meio dos seres finitos, então o finalismo se expressa como ne-
cessidade racional e liberdade radical do espírito, que põe a existência da
subjetividade racional. Razão e liberdade estão entrelaçadas de tal maneira
que a plena realização da necessidade racional e ontológica implica na li-
berdade radical, vale dizer, que o Espírito se corporifique em entidades fi-
nitas, racionais e livres: “o Geist pode ser concebido no sentido de ter como
seu alvo básico precisamente que esse espírito ou essa subjetividade racional
exista”(TAYLOR, 2014, p. 119). A liberdade radical do espírito divino de
pôr a si mesmo como mundo formado por coisas vivas, finitas, contingen-
tes e submetidas à necessidade racional, é inseparável da concepção ima-
nentista de que Deus não cria o mundo de fora, como ser transcendente
“em amor consigo mesmo”, pois os espíritos humanos são veículos da plena
realização da consciência de si divina. O finalismo posto pelo Espírito em
seu desenvolvimento necessário, concebe a realização do Bem como obje-
tivo final absoluto. Em tais condições, a existência do mal reflete o desa-

163
cordo entre as condições de existência no mundo das coisas finitas e o ho-
rizonte racionalmente necessário de superação da alienação do espírito, em
direção à reconciliação. Isso significa não somente que os homens estão
destinados a superar seu desacordo contingente com a perfeição, mas tam-
bém que o próprio espírito divino, cuja existência é inseparável da corpo-
rificação em coisas finitas, não poderá alcançar sua plena realização sem
que seu veículo essencial, o espírito humano, supere o estado de negativi-
dade. Assim, o vir-a-ser de Deus “é revelação do espírito a si mesmo”
(HYPPOLITE, 1999, p. 569). A contradição dialética não existe somente
nos termos da realidade humana, em que os fins últimos da existência se
colocam em desacordo intrínseco com a finitude, pois também o sujeito
absoluto, para realizar-se plenamente, necessita experimentar a oposição
com a finitude e superá-la mediante a consciência de si própria aos espíritos
racionais humanos. Sendo o homem veículo de realização do Espírito, a
tragédia da existência humana é também a tragédia de um sujeito cósmico
que é idêntico e não-idêntico ao mundo (TAYLOR, 2014, p. 131). O in-
finito não existe para além do homem infinito e pecador, pois a infinidade
verdadeira pressupõe a queda e sua superação:

Como todos os românticos, o que Hegel quer pensar é a imanência do


infinito no finito. Mas isso o conduz a uma filosofia trágica da história;
o espírito infinito não deve ser pensado para além do espírito finito, do
homem ativo e pecador, mas ele próprio é ávido de participar do drama
humano. Sua infinidade verdadeira, sua infinitude concreta não é sem
essa queda. Deus não pode ignorar a finitude e o sofrimento humanos.
Inversamente, o espírito humano não é um aquém, ele supera a si
mesmo, atraído constantemente rumo à sua transcendência, e tal supe-
ração é a cura possível de sua finitude (HYPPOLITE, 1999, p. 553).

164
Capítulo 9

Adorno, o materialismo e o mal


____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

A crítica de Adorno à autarquia metafísica da alma, e à concepção


de indivíduo como substrato não mediado pela totalidade social, justifica-
se não somente pela importância atribuída à teoria da reificação de Lukács,
como também pela crítica aos elementos reconciliadores próprios ao sis-
tema filosófico de Hegel. A compreensão adequada da crítica de Adorno a
Hegel requer considerar que os fundamentos críticos da fenomenologia do
Espírito são mobilizados pelo frankfurtiano para um entendimento anta-
gônico a toda harmonização idealista entre objetos e conceitos, principal-
mente aquela possivelmente extraída da própria especulação hegeliana.
Para Adorno, a qualidade filosófica da dialética de Hegel reside sobretudo
em opor-se ao significado tradicional da ontologia como estrutura funda-
mental e passiva do ser, revelando-se como instrumento determinante do
caráter negativo da realidade, pois os objetos, uma vez confrontados com
seus conceitos, revelam-se dotados de potencialidades internas cuja reali-
zação efetiva exige a superação das condições estabelecidas em uma dada
realidade. O conceito de verdade originado da dialética hegeliana estabe-
lece um rompimento fundamental com o significado ontológico tradicio-
nal, cuja maior realização está na concepção da filosofia primeira aristoté-
lica, que busca identificar um substrato permanente da identidade. A dia-
lética hegeliana, animada pelo movimento negativo do Espírito, revela-se,
antes de mais nada, como um processo intrínseco ao desenvolvimento das
contradições intrínsecas ao próprio objeto. Antagônica à concepção de um
princípio originário subsistente para além da contradição do objeto con-

165
sigo mesmo, a dialética “é o esforço imperturbável para conjugar a consci-
ência crítica que a razão tem de si mesma com a experiência crítica dos
objetos” (ADORNO, 2013b, p. 81).
Embora Adorno tenha adotado o materialismo dialético como sua
principal referência metodológica no campo da sociologia e da filosofia, o
filósofo mais representativo em suas reflexões é Hegel. A relação estabele-
cida por Adorno com Hegel é perpassada por críticas severas, endereçadas
aos elementos de reconciliação do idealismo com a sociedade burguesa,
mas também por um reconhecimento e admiração profundos que não en-
contram paralelo junto a outros grandes pensadores da filosofia ocidental.
O aspecto mais incisivamente crítico de Adorno em relação a Hegel, reside
em sua capacidade de exposição sistemática de contradições insanáveis da
sociedade burguesa, que é antagônica a uma obstinada tendência reconci-
liadora das mesmas contradições que sua filosofia condena: “a dialética é,
no essencial, necessariamente crítica, mas se torna falsa no instante em que
se põe a si mesma e se afirma como uma filosofia positiva” (ADORNO,
2013b, p. 148). Porém, na obra filosófica de Adorno, não se encontrará
comentário tão reconhecedor da grandeza filosófica de um pensamento:
“nenhuma filosofia foi tão profundamente rica, nenhuma filosofia se man-
teve tão imperturbável no coração da experiência, à qual ele se entregou
sem reservas. Mesmo as marcas de suas falhas são moldadas pela própria
verdade” (ADORNO, 2013a, p. 131). Dessa forma, uma vez que as res-
salvas críticas à filosofia de Hegel, são inseparáveis de tais momentos de
explícito assentimento, é importante observar que alguns fundamentos
idealistas do pensamento de Adorno, que neste trabalho acadêmico se pro-
cura apontar, são justificados por esse claro alinhamento hegeliano.
O conceito de dialética originalmente presente no idealismo hege-
liano é empregado por Adorno como método que se volta contra os ele-
mentos de reconciliação peculiares ao pensamento do próprio Hegel,

166
sendo o principal deles o conceito de espírito do mundo, que se traduz na
concepção de uma totalidade racionalmente constituída e identificada com
a reconciliação entre sujeito e objeto. O espírito do mundo hegeliano tra-
duz, em termos históricos, a primazia da universalidade sobre a contingên-
cia dos indivíduos particulares, pois se o objetivo maior do Espírito é a
realização da autoconsciência, o processo histórico torna-se necessaria-
mente desenvolvimento da razão e da liberdade. Isso significa que a perpe-
tuação da opressão, e das diversas formas de barbárie na história, está su-
bordinada ao objetivo maior da realização das potencialidades das coisas e
dos homens na direção de um mundo justo e livre. Para Hegel, a história
é subordinada à lei incondicional do progresso, sob os auspícios de uma
razão objetiva ligada à providência divina: “a verdade de que uma Provi-
dência, ou seja, uma Providência divina, preside aos acontecimentos do
mundo corresponde ao nosso princípio, pois a Providência divina é a sa-
bedoria dotada de infinito poder que realiza o seu objetivo, ou seja, o ob-
jetivo final, racional e absoluto do mundo. A Razão é o Pensamento deter-
minando-se em absoluta liberdade” (HEGEL, 2001, p. 56). Para criticar
os horizontes conciliadores do conceito de espírito do mundo, Adorno
fundamenta-se no princípio fundamental da dialética hegeliana: o caráter
irrevogavelmente mediado de toda produção do espírito, sendo este um
dos caminhos mais produtivos para se compreender sua dialética negativa:
“a não-verdade de toda identidade obtida é a figura invertida da verdade”
(2009, p. 131). A identidade estabelecida por Hegel, entre espírito do
mundo e realidade histórica, compõe a verdade sob forma invertida, por-
que a totalidade invocada por Hegel identifica-se com barbárie e opressão,
pois corresponde à sociedade totalmente administrada. Para Adorno, “a
força cognitiva de sua filosofia [de Hegel] desaparece ao mesmo tempo
com o direito da experiência. A pretensão de saltar sobre o particular por
meio do todo se torna ilegítima, pois esse todo não é propriamente, como

167
quer a famosa sentença da Fenomenologia, o verdadeiro. A referência afir-
mativa e assegurada desse todo, como se fosse possível possuí-lo segura-
mente, é uma ficção” (ADORNO, 2013a, p. 173).
Conforme apontamento preciso de Luiz Repa, para Adorno, “a to-
talidade é apenas recusada em seu sentido normativo e aceita em seu modo
explicativo. Ela é recusada em seu sentido normativo porque não repre-
senta, de modo algum, um estado de reconciliação do espírito. Nesse as-
pecto a totalidade é somente uma má-totalidade” (REPA, 2011, p. 5-9).
Em outras palavras, ao afirmar que “o todo é o não-verdadeiro”, Adorno
aplica sobre Hegel o método hegeliano da negação determinada, confron-
tando a identificação entre totalidade e liberdade com a experiência histó-
rica do mundo reificado pelo capital, o que o leva a observar a efetividade
da não-identidade necessária em um mundo administrado pelos monopó-
lios econômicos. Adorno recusa a totalidade em sentido normativo mas a
aceita em termos explicativos, pois a reconciliação hegeliana, quando con-
frontada com a realidade histórica antagônica, converte-se em “atentado
contra a conciliação real” (ADORNO, 2013a, p. 102). Não obstante sua
falsidade objetiva, o conceito hegeliano de totalidade permanece válido
para explicar o resultado histórico da hegemonia da racionalidade instru-
mental, desde que tomado como verdadeiro exatamente por sua não-ver-
dade objetiva: “apenas hoje, cento e cinquenta anos depois, o mundo com-
preendido pelo sistema hegeliano é revelado literalmente como sistema,
nomeadamente de uma sociedade radicalmente socializada, e isso de modo
diabólico. Um dos méritos mais notáveis da empreitada de Hegel é o fato
de ela ter inferido, a partir do conceito, esse caráter sistemático da socie-
dade, muito antes que ele pudesse impor-se no campo acessível à experi-
ência de Hegel, campo que era ainda este de uma Alemanha deveras atra-
sada no que se refere ao desenvolvimento social” (ADORNO, 2013a, p.
103).

168
A recusa de uma aplicação literal do conceito hegeliano de totali-
dade para a análise do capitalismo tardio por Adorno, explicita sua crítica
materialista do idealismo absoluto de Hegel. Um aspecto saliente da crítica
de Adorno, é que, nesse aspecto, ela não se diferencia da interpretação en-
caminhada primeiramente por Lukács em História e consciência de classe,
que apresenta como argumento justamente a defasagem social na Alema-
nha aos tempos vividos por Hegel. Assim como Adorno, Lukács antes já
havia assinalado o caráter pré-monopolista do capitalismo na era vivida por
Hegel: “Hegel não conseguiu chegar às forças verdadeiramente motrizes da
história, porque, na época em que nasceu o seu sistema, estas forças não
eram ainda suficientemente visíveis” (LUKÁCS, 1989, p. 33). Seguindo a
interpretação consagrada por Lukács, Adorno, da mesma forma que o pen-
sador húngaro, fundamenta sua crítica ao idealismo hegeliano apoiando-
se na crítica de Marx a Hegel nos Manuscritos econômico-filosóficos, baseada
na negligência hegeliana do trabalho e da sociedade como momento essen-
cial para a compreensão do processo histórico (ADORNO, 2013a) Em-
bora reconheça o trabalho como percurso da consciência rumo ao saber
absoluto, o idealismo hegeliano “se torna falso na medida em que trans-
forma a totalidade do trabalho em algo existente em-si, quando sublima
seu princípio em um princípio metafísico, em um actus purus do Espírito,
transfigurando tendenciosamente aquilo que é produzido pelos homens,
transfigurando tudo o que é contingente e condicionado, inclusive o pró-
prio trabalho, que é o sofrimento dos homens, em algo eterno e certo”
(ADORNO, 2013a, p. 97). Ao criticar o negligenciamento do trabalho
como momento primordial e estruturante do Espírito, Adorno se apoia
nos aspectos básicos da crítica de Marx, em especial no que se refere às
implicações do silenciamento acerca da divisão entre trabalho físico e tra-
balho intelectual, considerada responsável pelo enredamento da metafísica
do Espírito nas malhas da ideologia burguesa (ADORNO, 2013a, p. 100).

169
A terminologia então assumida por Adorno é manifestamente afinada com
o campo do marxismo: “não há nada no mundo que não apareça ao ho-
mem pelo trabalho e apenas por meio dele. (…) Apenas a autoconsciência
disto tudo poderia conduzir a dialética hegeliana para além de si mesma.
(…) Pois a absolutização do trabalho é a absolutização da sociedade de
classes: uma humanidade livre do trabalho seria uma humanidade livre de
dominação. O Espírito sabe disso sem ter o direito de saber; eis toda a
miséria da filosofia” (ADORNO, 2013a, p. 101). Baseando-se em longa
citação extraída da Crítica ao Programa de Gotha, de Marx e Engels, Adorno
censura Hegel por silenciar sobre a separação entre trabalho físico e espiri-
tual, omissão responsável por negligenciar o trabalho como momento ne-
cessário do Espírito: “a metafísica do trabalho e a apropriação do trabalho
alheio são complementares” (ADORNO, 2013a, p. 99). Na Fenomenologia,
o trabalho é integrado ao absoluto, de maneira a impedir uma compressão
mais ampla e verdadeira dos fundamentos materiais do Espírito: “seria ne-
cessário apenas um mínimo – a lembrança do momento ao mesmo tempo
mediado e irredutivelmente natural do trabalho -, e a dialética hegeliana
teria feito jus ao seu nome” (ADORNO, 2013a, p. 100).
Embora a crítica de Adorno a Hegel seja análoga à de Lukács, ao
basear-se na primazia do trabalho defendida por Marx originalmente em
seus Manuscritos, no tocante à conceituação filosófica, há uma diferença de
grande importância entre os dois pensadores. Contra o idealismo, Lukács
propõe o trabalho como fundamento ontológico do ser, considerando que
a esfera material apresenta determinações suficientemente consistentes
para uma crítica radical do finalismo metafísico. Nesse aspecto, Adorno
permanece hegeliano frente ao materialismo irredutível de Lukács, pois
considera que a dialética, por sua qualidade metódica de estabelecer medi-
ações recíprocas entre sujeito e objeto, torna impossível a redução da reali-

170
dade a substratos fixos cristalizados sob a forma de uma ontologia. Ao re-
cusar o conceito hegeliano de espírito do mundo, por seu teor fortemente
reconciliador, e substitui-lo pelo conceito de totalidade negativa, mais con-
dizente com a sociedade administrada peculiar ao capitalismo tardio,
Adorno situa sua reflexão a partir de fundamentos materialistas. Em opo-
sição ao espírito do mundo hegeliano e sua concepção de uma astúcia da
razão, para a qual o conteúdo verdadeiro da história identifica-se com a
realização da liberdade e da razão na universalidade, em detrimento dos
interesses e da felicidade do indivíduo, Adorno contesta o caráter irredutí-
vel do universal: “Hegel suprimiu a diferença entre condicionado e abso-
luto e emprestou ao condicionado a aparência do incondicionado. Mas ao
fazê-lo, ele foi no fim injusto com a experiência da qual se nutria sua filo-
sofia. A força cognitiva de sua filosofia desaparece ao mesmo tempo com o
direito da experiência, pois esse todo não é propriamente, como quer a
famosa sentença da Fenomenologia, o verdadeiro. A referência afirmativa e
assegurada desse todo, como se fosse possível possuí-lo seguramente, é uma
ficção” (ADORNO, 2013a, p. 173). Contra a concepção hegeliana do Es-
pírito como sujeito capaz de realizar o progresso racional da humanidade
na história, Adorno ressalta o caráter antagônico de uma totalidade perpas-
sada por um princípio de identidade baseado na troca mercantil. O prin-
cípio de identidade, sendo fundamentado na falsa equivalência entre “seres
singulares não-idênticos”, explicita o antagonismo estrutural da sociedade
burguesa, e, com ele, o irracionalismo da totalidade: “a difusão do princí-
pio transforma o mundo todo em algo idêntico, em totalidade”
(ADORNO, 2009, p. 128). A totalidade antagônica, configurada sobre
juízos identificadores falsamente reconciliadores do particular com o uni-
versal, produz a ilusão nominalista de que os indivíduos seriam a substân-
cia do mundo: “o princípio universal é o princípio da singularização. Esse
princípio acredita ser algo indubitavelmente certo e é obnubilado porque

171
não se dá conta, sob o preço de sua existência, do quanto é mediatizado”
(ADORNO, 2009, p. 260). O pressuposto da contaminação da subjetivi-
dade pelas mediações materiais é inseparável da crítica de Adorno ao espí-
rito do mundo hegeliano, realizada na Dialética Negativa. A universalidade
de um processo histórico irredutivelmente direcionado pelo progresso da
razão e da liberdade em Hegel, é reinterpretada por Adorno como catás-
trofe permanente: “não há nenhuma história universal que conduza do sel-
vagem à humanidade, mas há certamente uma que conduz da atiradeira à
bomba atômica. Essa história termina com a ameaça total da humanidade
organizada contra os homens organizados, na suma conceitual da descon-
tinuidade” (ADORNO, 2009, p. 266). A interpretação do processo histó-
rico como catástrofe permanente, e não como espírito do mundo capaz de
reconciliar o particular com o universal, atesta o rompimento de Adorno
em relação aos vários tipos de idealismo metafísico aqui abordados, de Des-
cartes a Hegel.
Ao integrar os pressupostos da dialética materialista em suas refle-
xões, o pensamento de Adorno submete-se a idêntico conjunto de proble-
mas que afetam a crítica materialista originalmente encaminhada por Marx
e Engels à metafísica, uma vez que o materialismo é constrangido a se servir
do aparato conceitual da própria metafísica para criticá-la. Embora Adorno
possa mobilizar argumentos consistentes para justificar sua tese nuclear
acerca da totalidade administrada e da vida falsa, e sob esse aspecto Minima
Moralia é uma descrição suficientemente eloquente e demonstrativa, a par-
tir do momento em que a análise exorbita o nível sociológico e se eleva ao
estatuto filosófico, seu desenvolvimento argumentativo assume uma con-
sistência teorética e especulativa análoga à metafísica. Em termos rigorosa-
mente filosóficos, a reflexão de Adorno é tão comprometida quanto o ma-
terialismo, em suas pretensões de extrapolar a crítica política, econômica e
sociológica, almejando que a experiência histórica possa constituir-se como

172
fundamento para o pensamento especulativo. Se da antiguidade até Hegel,
os principais sistemas filosóficos julgaram mais conveniente o primado
aristotélico da substância divina sobre todas as qualidades de ser submeti-
das ao devir e ao movimento, quando o materialismo intenta transgredir
essa sabedoria, ele se sujeita necessariamente a obstáculos intransponíveis,
não sendo o menor deles a obrigação de sustentar sua argumentação em
termos especulativamente convincentes.

Materialismo e malabarismo

Adorno evidencia pleno conhecimento do abismo entre os âmbitos


da substância pensante e da substância extensa. Em primeiro lugar, ao dis-
correr sobre a disputa entre espírito e matéria pela primazia ontológica,
Adorno compara o campo especulativo à atividade do malabarismo: “o
passo por meio do qual o trabalho se transforma em princípio metafísico
não é outro senão a eliminação subsequente daquele ‘material’, ao qual
todo trabalho se sente ligado e que lhe prescreve seus próprios limites, que
lhe prende num nível inferior e relativiza sua soberania. Por isso a teoria
do conhecimento fez piruetas por tanto tempo, até o dado dar a ilusão de
ser ele próprio produzido pelo Espírito” (ADORNO, 2013a, p. 101). O
argumento é suficientemente expressivo para transmitir que, na concepção
de Adorno, a disputa filosófica que envolve a primazia acerca da estrutura
do ser implica considerar mediações recíprocas facilmente comparáveis a
giros copernicanos. A esse respeito, conforme veremos adiante, é impor-
tante notar que o próprio método adorniano, ao criticar o idealismo de
Hegel, e situar a primazia do objeto, não está menos sujeito às piruetas por
ele apontadas e atribuídas à teoria do conhecimento. Em segundo lugar,
no aforismo 22 de Minima Moralia, A criança com a água do banho,

173
Adorno explicita seu conhecimento sobre as sutilezas que envolvem o pen-
samento que desconfia de sua própria autenticidade e se mobiliza para a
crítica de seus condicionamentos materiais. Ao criticar as determinações
materiais como elementos irredutíveis de corrupção da atividade pensante,
a própria crítica expõe-se ao risco de “jogar a criança com a água do banho”,
vale dizer, condenar à nulidade “toda antecipação quimérica de uma situa-
ção mais nobre”, todo esforço de transgredir as restrições instrumentais que
condenam o pensamento à impotência (ADORNO, 1992, p. 37). No afo-
rismo, Adorno refere-se textualmente aos riscos assumidos pela própria crí-
tica marxista quando esta acusa irrefletidamente o idealismo, sem buscar
compreender o quanto suas próprias invectivas estão contaminadas pelo
princípio que pretendem combater: “acentuar o elemento material por
contraposição ao Espírito enquanto mentira é desenvolver uma espécie de
afinidade eletiva duvidosa com a economia política, de que faz a crítica
imanente, comparável à conivência que existe entre a polícia e o submundo”
(ADORNO, 1992, p. 37). Esse texto é um dos mais importantes da cole-
ção de aforismos dedicados à dissecação da vida danificada, não somente
por expor o momento irrefletido da crítica materialista, mas principal-
mente por se constituir como modelo crítico aplicável ao próprio pensa-
mento de Adorno, quando o filósofo assume a categoria trabalho como
essência do Espírito.
As controvérsias suscitadas pelo esquema interpretativo materia-
lista em sua posição antagônica ao idealismo filosófico, assim como as pi-
ruetas peculiares ao método adorniano, são evidenciadas na crítica ao ide-
alismo kantiano. Para Adorno, o sujeito transcendental kantiano, em sua
qualidade de possuidor das categorias a priori de todo conhecimento raci-
onalmente possível, deve ser concebido como reflexo invertido da coisifi-
cação social. Com o objetivo de permitir uma compreensão dos aspectos
ideológicos subjacentes ao conceito idealista de sujeito, Adorno propõe

174
uma inversão do esquema transcendental kantiano. Nesse sentido, as cate-
gorias lógicas do intelecto, justificadoras da centralidade e autonomia do
sujeito transcendental, em sua relação cognoscente com o mundo, devem
ser vistas como abstração filosófica que encobre a primazia das relações de
troca no mercado. O a priori kantiano é, na verdade, a posteriori, pois a
centralidade do sujeito encobre as determinações materiais que previa-
mente o constituem como objeto, invalidando as pretensões transcenden-
tais do criticismo kantiano. O idealismo kantiano é epifenômeno da reifi-
cação social: “sua fixidez e invariabilidade que, segundo a filosofia trans-
cendental, produz os objetos, - ou, ao mesmo lhe prescreve as regras – é a
forma reflexa da coisificação dos homens, consumada objetivamente nas
relações sociais” (ADORNO, 1995a, p. 186). Adorno dirige ao idealismo
kantiano a acusação de recair em uma petição de princípio: “é evidente que
o conceito abstrato de sujeito transcendental – as formas do pensamento,
a unidade destas e a produtividade originária da consciência – pressupõe o
que promete instituir: indivíduos viventes, indivíduos de fato”
(ADORNO, 1995a, p. 185). Porém, embora a dialética materialista possa
contar com o prestígio intelectual da secularização a seu favor, o problema
crucial do método de Adorno em sua denúncia dos aspectos ideológicos da
razão pura kantiana, consiste na impossibilidade filosófica de justificar a
superioridade do primado materialista sobre o idealismo filosófico. Ao de-
fender um segundo giro copernicano, que reinstaure a condição central do
objeto como núcleo determinante das qualidades subjetivas, de maneira
análoga a Marx, Engels e Lukács, Adorno se vê diante da impossibilidade
de defender em termos especulativos a superioridade do primado materia-
lista, pois, conforme abordamos anteriormente, o materialismo dialético
não é capaz de apresentar categorias alternativas àquelas que são próprias
ao campo conceitual originado da metafísica aristotélica. Diante do impe-

175
dimento estrutural de demonstrar as supostas qualidades superiores do mé-
todo materialista frente ao idealismo filosófico, o primado do objeto é in-
capaz de explicitar os critérios que poderiam justificá-lo como postulado
filosoficamente mais adequado para a relação entre sujeito e objeto no âm-
bito da teoria do conhecimento. Em outras palavras, embora a tese mate-
rialista seja indiscutivelmente válida no âmbito da crítica econômica e so-
ciológica, a primazia dos parâmetros materialistas no campo filosófico não
consegue se justificar de maneira convincente. A tese materialista é tão es-
peculativa, e, portanto, tão idealista, quanto a própria metafísica.
Exposto aos limites da crítica materialista quando se trata de justi-
ficar suas pretensões no campo das determinações do ser, Adorno valida a
teoria lukácsiana da reificação, sem explicar como é possível que as contra-
dições materiais da sociedade possam atuar como elementos determinantes
na constituição da subjetividade: “a inversão copernicana de Kant consegue
expressar exatamente a objetificação do sujeito, a realidade da coisificação”
(ADORNO, 1995a, p. 185). Em nenhum outro momento de sua obra a
acusação dirigida à teoria do conhecimento de realizar piruetas para atestar
a legitimidade desta ou daquela concepção filosófica, é mais aplicável ao
pensamento de Adorno do que em suas reflexões sobre a mediação recí-
proca entre sujeito e objeto. Ao inverter a revolução copernicana de Kant,
com o objetivo de relevar supostas determinações materiais que reduziriam
o idealismo transcendental a efeito especulativo da reificação, Adorno pre-
tende explicitar a centralidade efetiva do sujeito, capaz de restituir o pri-
mado do sujeito, mediante a autoconsciência acerca de seus condiciona-
mentos materiais. Uma vez que o fetichismo da mercadoria, afetando o
sujeito pela reificação, converte em a posteriori o que a teoria filosófica kan-
tiana postulou ser a priori, a compreensão do momento material condu-
ziria, mediante a superação dialética, ao primado do sujeito que o idea-

176
lismo intentou realizar. A crítica materialista de Adorno defende a necessi-
dade de um giro copernicano adicional, não com o objetivo restrito de
perpetuar a condição periférica do sujeito em relação ao objeto, mas vi-
sando a explicitar que os objetivos do idealismo de estabelecer a centrali-
dade do sujeito, requerem consciência acerca dos elementos materiais que
travam a revolução copernicana de Kant.

Impossibilidade ontológica do materialismo

Em um dos argumentos centrais da Dialética negativa, Adorno ar-


gumenta que, se a realidade em si mesma é contraditória, a síntese recon-
ciliadora representada pelo Espírito absoluto torna-se idealista e apologé-
tica, ao pacificar precipitadamente os antagonismos necessariamente cons-
titutivos da realidade. É por esse motivo que Adorno recusa a síntese hege-
liana e apresenta a proposição não menos especulativa que concebe a rea-
lidade como totalidade antagônica, cujo desenvolvimento é mediado pelo
princípio da troca capitalista. A identificação hegeliana entre totalidade e
liberdade, ao ser confrontada com a experiência do mundo histórico reifi-
cado pelo capital, revela que as mercadorias e os próprios homens são sis-
tematicamente mediados por um princípio abstrato que os converte em
simples coisas comensuráveis. Adorno submete tanto o idealismo transcen-
dental kantiano, quanto o idealismo absoluto de Hegel, a um giro coper-
nicano, subsumindo ambos os sistemas filosóficos ao primado materialista.
Nas palavras do próprio filósofo, cabe referir à dialética um antigo adágio
francês, que prescreve, “a farsante, farsante e meio, isto é, a construção co-
ercitiva exigida pela dialética não é de fato outra construção que a da coer-
ção objetiva que exerce sobre nós o mundo encadeado culpadamente em
si mesmo” (ADORNO, 2013b, p. 158). Dando razão a Kant e a Hegel, a
realidade deve ser compreendida como uma totalidade determinada pelo

177
homem; mas contra ambos, os parâmetros dessa determinação não são as
formas e categorias transcendentais do sujeito, nem o idealismo do Espírito,
mas sim os imperativos impostos pelo trabalho abstrato:

Isso pressupõe que a realidade, tal como determinada, tal como a en-
tende a filosofia, seja compreendida ela mesma como uma realidade
determinada essencialmente pelo homem, mas não no sentido do ob-
jeto constituído em forma abstrata pelo sujeito transcendental, mas de
forma prática no sentido de que o mundo deve ser entendido como
um mundo mediado essencialmente pelo trabalho do homem.(...) E se
vocês pedissem agora uma interpretação do conceito hegeliano de me-
diação no sentido da experiência, conceito do qual quisera hoje expor
algumas coisas, então bem se poderia dizer que aquilo que em Hegel é
referido com o termo ‘mediação’ isso ao que se refere a proposição ‘não
há nada sob o céu que não seja mediado’, na realidade já significa que
não há nada humano que em determinado sentido não esteja marcado
pelo momento do trabalho humano (ADORNO, 2013b, p. 157).

O primado materialista defendido por Adorno implica, portanto,


em uma inversão dos fundamentos da filosofia de Kant e Hegel, signifi-
cando que não são as categorias idealistas que determinam a realidade, mas
sim o trabalho humano e material que determina os conteúdos espirituais.
É possível afirmar que o calcanhar de Aquiles da dialética materialista de
Adorno apresenta-se na circularidade viciosa de seu argumento acerca da
primazia da esfera material sobre o espírito. Adorno pressupõe que a de-
monstração das determinações materiais do sujeito é suficiente para atestar
a pobreza do idealismo e consequente superioridade do materialismo: “O
objeto só pode ser pensado por meio do sujeito, mas sempre se mantém
como um outro diante dele; o sujeito, contudo, segundo sua própria cons-
tituição, também é antecipadamente objeto. Não é possível abstrair o ob-

178
jeto do sujeito, nem mesmo enquanto ideia; mas é possível esvaziar o su-
jeito do objeto” (ADORNO, 2009, p. 158). Sujeito e objeto seriam cate-
gorias heterogêneas uma relação à outra, sendo o objeto um princípio fun-
damental e incondicionalmente mediador do sujeito, pois o próprio sujeito
já é, antecipadamente, objeto. Para Adorno, se partirmos do sujeito, vale
dizer, de homens corporificados, chegaremos ao objeto. Porém, a recíproca
não é verdadeira, pois partindo do objeto não se chega ao sujeito.
De maneira distinta a Lukács, o materialismo dialético adorniano
recusa a aplicação do conceito de ontologia à esfera do trabalho, pois redu-
zir a realidade a substratos fixos, mesmo que materiais, significaria subli-
mar a metafísica sob a forma de algo existente em si mesmo, e eternizado
na esfera do puro ser. A crítica de Adorno ao idealismo hegeliano, e, mais
amplamente, à metafísica como um todo, almejou pura e simplesmente a
dissolução da esfera ontológica, porém sem abrir mão de estabelecer um
princípio fundamental e explicativo da existência em sua totalidade.
Mesmo não atribuindo à categoria trabalho uma qualidade ontológica
como fez Lukács, o aspecto central da crítica antiidealista realizada pelo
pensador húngaro manifesta-se amplamente na análise materialista de
Adorno. Para o frankfurtiano, o idealismo hegeliano dissolve o momento
intrinsecamente material do trabalho, elevando-o a uma dignidade meta-
física que mascara sua substância efetiva, a qual consiste em ser o funda-
mento concreto do real: “não há nada no mundo que não apareça ao ho-
mem pelo trabalho e apenas por meio dele. (…) Apenas a autoconsciência
disto tudo poderia conduzir a dialética hegeliana para além de si mesma”
(ADORNO, 2013a, p. 101).
A circularidade entre idealismo e materialismo parece enunciar
dois pontos de vista igualmente comprometidos por uma petição de prin-
cípio em que a conclusão do enunciado, estando previamente contida na
premissa do argumento, torna logicamente inviável que se possa escolher

179
entre uma das perspectivas. Contra o idealismo, é possível dizer que suas
pretensões de origem, que podem ser logicamente resumidas no argu-
mento “o espírito origina o mundo”, estão previamente viciadas, pois a
categoria “espírito” é logicamente derivada de “mundo”, uma vez que so-
mente seres humanos vivendo em um “mundo” podem atribuir ao espírito
a qualidade ontológica pressuposta no argumento. Por outro lado, contra
o materialismo, ao se inverter o argumento, sob a fórmula “o mundo ori-
gina o espírito”, verifica-se facilmente que a categoria “mundo” é logica-
mente derivada de “espírito”, posto ser impossível encontrar, na sequência
da causalidade mecânica da finitude, um momento ontológico de origem.
Os dois argumentos tendem a permanecer estruturalmente viciados pela
falácia lógica, o que impede que um primado fundamental possa ser esta-
belecido em favor de um ou de outro. Entretanto, a resolução da contenda
filosófica entre idealismo e materialismo pode ser alcançada, se recuperar-
mos o argumento de Leibniz, que consiste não apenas em destacar a hete-
rogeneidade entre espírito e matéria, como também em apontar a impos-
sibilidade de explicar os fundamentos ontológicos do ser a partir da causa-
lidade mecânica. Nesse sentido, é possível defender de maneira consistente
o primado de um dos dois polos da disputa entre idealismo e materialismo,
desde que tal heterogeneidade seja observada. Em outras palavras, o argu-
mento será ontológico e purificado do vício peculiar à petição de princípio,
desde que, dada a heterogeneidade entre espírito e matéria, a conclusão
seja logicamente derivada de seu ponto de partida, sem que esteja previa-
mente pressuposta já na premissa do argumento. É dessa forma que a cir-
cularidade viciosa poderá ser rompida e o primado de um dos dois polos
poderá ser estabelecido com consistência lógica.
A demonstração da qualidade especificamente ontológica do Espírito
hegeliano é apresentada muito claramente por Charles Taylor. De maneira
inteiramente diversa do argumento materialista, em que os termos “mundo”

180
e “espírito” são de natureza homogênea, pressupõem finitude e estão mu-
tuamente implicados em uma petição de princípio, no argumento hegeli-
ano, os termos “Espírito” e “mundo” são heterogêneos e independentes,
coexistindo sem que se tenha de pressupor previamente a existência de um
para obter o outro:

Falamos de argumentar em círculo quando as conclusões aparecem nas


premissas que são essenciais para derivá-las (…) Ora, os argumentos de
Hegel não são circulares nesses termos (…) A necessidade do Geist que
põe a si mesmo decorre da existência de coisas finitas na dialética sem
que tenhamos de pressupor o Geist ou pelo menos pretender fazer isso.
E a necessidade de coisas finitas flui dos requisitos do Geist sem que
pressuponhamos a finitude (TAYLOR, 2014, p. 124-125).

Não obstante a ausência de circularidade viciosa, Espírito e mundo


coexistem em uma relação de mediação recíproca, e é somente nesses ter-
mos que a dialética pode ser compreendida em seu sentido ontológico e
cósmico:

O Absoluto, aquilo que é real em última instância ou aquilo que está


na base de tudo é sujeito. E o sujeito cósmico é constituído de tal ma-
neira que é tanto idêntico quanto não idêntico ao mundo. Há identi-
dade no fato do Geist não poder existir sem o mundo; e, não obstante,
também há oposição, porque o mundo enquanto exterioridade repre-
senta uma dispersão, uma inconsciência que o Geist tem de superar
para ser ele mesmo, para cumprir seu objetivo como razão autoconsci-
ente. A vida do sujeito absoluto é essencialmente um processo, um mo-
vimento, no qual ele põe suas próprias condições de existência, e então
supera a oposição dessas mesmas condições para realizar seu objetivo
de autoconhecimento (TAYLOR, 2014, p. 131).

181
Espírito Absoluto e necessidade ontológica

Embora Adorno enfatize que a qualidade fundamental da dialética


de Hegel consiste na recusa de reduzir a realidade a substratos fixos e on-
tológicos, é importante observar que isso não significa que o sistema filo-
sófico de Hegel seja completamente estranho a fundamentos ontológicos.
Se o verdadeiro não é substância, porém sujeito, que é “movimento do por-
se-a-si-mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro” (HE-
GEL, 2002, p. 35), há que se considerar que a relação do Espírito absoluto
com o mundo finito apresenta necessidade ontológica, e é isso que a diferen-
cia da relação entre o trabalho e a realidade humana. O Espírito absoluto
é sujeito cósmico que em seu pôr a si mesmo produz o mundo finito como
sua corporificação necessária, e ao mesmo tempo antagônica. “Porém, o
Geist está na raiz de tudo e, em consequência disso, a mediação torna-se
um princípio cósmico” (TAYLOR, 2014, p. 131). Dizer, então, que o Ab-
soluto é sujeito, implica considerar que a mediação dialética hegeliana é
um princípio ontológico pelo qual o sujeito se faz negatividade pura e sim-
ples no movimento de pôr a si mesmo, porém sem se constituir como subs-
trato fixo e ontológico à maneira metafísica tradicional. “Só essa igualdade
reinstaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro é que são
o verdadeiro; e não uma unidade originária enquanto tal, ou uma unidade
imediata enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo
que pressupõe seu fim, como sua meta, que o tem como princípio, e que
só é efetivo mediante sua atualização e seu fim” (HEGEL, 2002, p. 35). É
a qualidade ontológica do círculo hegeliano, em que o Absoluto é princípio
e meta ao mesmo tempo, e, portanto, sujeito, que a diferencia da circula-
ridade viciosa entre o espírito finito e o trabalho, quando se pretende que
este possa ser o núcleo da atividade espiritual. Conforme abordamos,

182
“mundo” e “espírito”, em sua finitude irredutível, remetem a uma circula-
ridade viciosa quando pensados em uma relação de mediação recíproca
pela dialética materialista. Por outro lado, o Espírito infinito e o mundo
finito, em sua heterogeneidade estrutural, podem ser pensados em uma
relação de mediação recíproca sem que se corra o risco de recair em uma
falácia lógica, uma vez que o Espírito Absoluto é categoria substancial que
em seu pôr a si mesmo tem sua origem completamente independente da
finitude do mundo.
O ponto de maior discordância de Adorno em relação ao idealismo
de Hegel relaciona-se ao conceito de Absoluto. É possível que o bildeverbot,
termo originalmente judaico empregado para justificar a impossibilidade
de representação por imagens do Absoluto, influenciou o pensamento de
Adorno a ponto do filósofo recusar a propriedade filosófica de um conceito
que identifica o Absoluto em sua corporificação na própria finitude. O
abandono da concepção transcendental em favor de uma forma auto-or-
ganizadora do Espírito, que é inseparável de sua corporificação necessária
na finitude, expressa a ruptura de Hegel em relação aos dualismos que ao
longo da história da filosofia estabeleceram a oposição entre o espírito fi-
nito e o espírito infinito. Uma das qualidades centrais de sua Fenomenologia
consistiu justamente em buscar a superação de dicotomias como mundo
inteligível e mundo sensível, ou espírito e extensão, que quando examina-
das mais atentamente, se revelam idênticas a seu oposto, pois não existem
em si mesmas, senão conjugadas com seu polo antagônico. Compreender
o Absoluto como corporificação necessária de Deus no mundo finito, tal-
vez tenha sido uma forma inaceitável de profanização da esfera espiritual,
que Adorno preferiu manter em imagem negativa, como inteiramente Ou-
tro. Adorno recusa o absoluto hegeliano por entender que se trata de um
conceito que reconcilia as contradições materiais da sociedade sob o signo
do princípio de identidade. O Espírito sublima metafisicamente o trabalho

183
humano, apropriando-se de contradições que se dão na base material da
sociedade, pois o trabalho é “mediação radical, mediação entre os homens
e a natureza, assim como do Espírito consigo mesmo, que não tolera nada
que esteja fora dele, e que proíbe a recordação daquilo que lhe seria exterior”
(ADORNO, 2013a, p. 101).

“Era um princípio básico do pensamento de Hegel que o sujeito e todas


as suas funções, por mais ‘espirituais’ que fossem, estavam inescapavel-
mente corporificadas; e isso em duas dimensões relacionadas: como
animal racional, isto é, um ser vivo que pensa; e como ser expressivo,
isto é, um ser cujo pensar sempre e necessariamente expressa a ele pró-
prio em algum meio. Esse princípio de corporificação necessária, como
podemos designá-lo, é central para a compreensão do Geist, ou espírito
cósmico”. (TAYLOR, 2014, p. 108).

Essa concepção sobre o Espírito permite compreender o idealismo


de Hegel a partir de uma relação de não-identidade entre o particular e o
universal, o finito e o infinito, pois os dois polos estão integrados negati-
vamente de tal maneira que o próprio Absoluto está em desacordo consigo
mesmo, tanto quanto o mundo humano. Ao considerarmos essa interpre-
tação, as ressalvas materialistas de Adorno ao idealismo de Hegel tornam-
se uma ilusão interpretativa, pois se os espíritos finitos são veículo de rea-
lização do Espírito, o trabalho material humano, que segundo Adorno é o
núcleo oculto do idealismo, já é em si mesmo trabalho do Espírito. O Es-
pírito põe a si mesmo, e é assim que Deus está criando eternamente as
condições de sua própria existência:

Ora, o mesmo conflito [identidade de identidade e diferença] básico


afeta o sujeito absoluto. Ele também se encontra sob condições de exis-
tência que estão em desacordo com seu télos. Porque esse sujeito tem
de ser corporificado em realidades finitas, externas, em espíritos finitos

184
que vivem num mundo de coisas finitas, materiais. E, não obstante, a
sua vida é infinita e ilimitada. Seu veículo é um espírito finito, que de
início, possui apenas uma consciência extremamente tênue de si
mesmo e se depara com um mundo que é tudo menos imediatamente
transparente, cuja estrutura racional está oculta. E, não obstante, o seu
télos é o conhecimento claramente racional do racionalmente necessá-
rio. Ele é a unidade de espírito e matéria, pensamento e extensão; e,
não obstante, no mundo, os seres pensantes deparam-se com a reali-
dade exterior como algo diferente (TAYLOR, 2014, p. 129-130).

Sob tal interpretação acerca do conceito de Absoluto, o trajeto do


Espírito se realiza como dilaceramento contínuo da consciência de si, e se
a fenomenologia de Hegel descreve as etapas da experiência da consciência
na história, estas são em si mesmas indissociáveis das contradições materi-
ais da sociedade, sem que seja necessário dissociar os processos sociais ob-
jetivos, e em especial o princípio de troca, que Adorno considera ser o nú-
cleo material da coisificação, da própria atividade do Absoluto. Não é ca-
sual que assim como a única justificativa apresentada para o conceito ma-
terialista de reificação é a existência do próprio espírito reificado, da mesma
forma, o argumento empregado para justificar o materialismo contra o ide-
alismo de Hegel, é a validade em si mesma do materialismo como princípio
de explicação da realidade.

O Espírito põe a si mesmo

O motivo pelo qual Adorno não trata a categoria trabalho em ter-


mos ontológicos, pode ser compreendido de maneira ainda mais clara ao
confrontarmos o alcance da dialética materialista, em suas restrições ao âm-
bito da finitude, com os horizontes bem mais amplos da dialética hegeliana.
Ao acusar o idealismo de dissolver o caráter primordial do trabalho como
simples momento fetichizado do Espírito, Adorno lembra que à filosofia

185
de Hegel bastaria um passo atrás que remetesse à mediação material do
Espírito: “seria necessário apenas um mínimo – a lembrança do momento
ao mesmo tempo mediado e irredutivelmente natural do trabalho -, e a
dialética hegeliana teria feito jus ao seu nome” (ADORNO, 2013a, p. 100).
Diante dessa acusação de cegueira deliberada, para cuja superação seria ne-
cessário um mínimo senso materialista, põe-se uma vez mais a diferença
entre idealismo e materialismo: deve-se partir do Espírito para explicar o
trabalho, ou partir do trabalho para explicar o Espírito? O dilema entre as
duas perspectivas pode ser esclarecido quando se atenta para o caráter es-
trutural e propriamente ontológico da contradição dialética tal como pen-
sada por Hegel. Ao passo que a dialética materialista parte da finitude do
homem, que em sua relação com a natureza necessita produzir recursos
para a sobrevivência material, o idealismo de Hegel denota um ponto de
partida recuado para a relação cósmica entre o homem como sujeito finito
e suas demandas teleológicas. Em outras palavras, para Hegel, à existência
humana é intrínseca uma contradição fundamental inexistente para os de-
mais seres vivos, pois o homem é um sujeito racional que tem, ao mesmo
tempo, uma vida biológica que o circunscreve a uma corporificação. De
maneira inteiramente distinta do que ocorre com as demais espécies ani-
mais, para a existência humana, a relação entre racionalidade e corporifi-
cação não é apenas de simples oposição, pois uma representa o limite irre-
dutível da outra. Hegel expõe, em termos dialéticos, idênticos motivos que
levaram Aristóteles a definir a metafísica como “filosofia primeira”, para a
qual o objeto de estudo situa-se para além do movimento inerente às coisas
finitas. Para o filósofo alemão, ao passo que a necessária corporificação e
finitude circunscreve o homem aos limites da vida biológica, e, portanto,
à irredutível mortalidade, sua racionalidade instala demandas de liberdade
e de perfeição que são rigorosamente antagônicas com aqueles limites. A
contradição hegeliana entre finitude e infinitude é estrutural à condição

186
humana e determina todos os demais âmbitos de sua existência: “As con-
dições de sua existência estão em conflito com as demandas de sua perfei-
ção; e, não obstante, para ele, existir é buscar a perfeição. O sujeito é, então,
necessariamente a esfera do conflito interno, digamos, da contradição? He-
gel não hesitou quanto a isso” (TAYLOR, 2014, p. 111).
A diferença entre a dialética materialista e a dialética hegeliana não
diz respeito somente a um problema lógico de natureza formal, relacionado
com a circularidade viciosa própria às petições de princípio. O conflito
entre ambas dialéticas não se esgota em eventuais querelas ideológicas aca-
dêmicas, nem tampouco na simples oposição entre teísmo e ateísmo. A
contradição nomeada pelo materialismo restringe-se ao âmbito da finitude
das relações entre homem e natureza, ao passo que a contradição dialética
a que se refere o sistema hegeliano apresenta alcance ontológico, relacio-
nado com o antagonismo das coisas finitas perante o automovimento do
Absoluto. A contradição dialética nos termos apresentados por Hegel é on-
tológica, porque expressa o choque irredutível das coisas finitas com seu
télos, antagonismo que no mundo humano se apresenta entre a mortali-
dade e as demandas de perfeição e liberdade. O problema fundamental
examinado por Hegel, diz respeito ao fato de que as coisas finitas, sendo
mortais, e não podendo existir por si mesmas, necessitam ter sua existência
explicada a partir de um princípio fundante que necessariamente não pode
ser situado no âmbito da causalidade mecânica, que é finito em si mesmo.
Por esse motivo, a única explicação logicamente satisfatória para a origem
do ser é o Espírito ou Geist, entendido como “realidade espiritual que per-
petuamente põe o mundo como sua corporificação necessária e perpetua-
mente o nega de igual maneira visando retornar a si mesma” (TAYLOR,
2014, p. 123). A concepção hegeliana do Espírito como sujeito instala a
contradição ao mesmo tempo nos dois planos, o da finitude das coisas
mortais e o da infinitude do Absoluto. No âmbito da finitude, por meio

187
da existência humana, a meta de que a subjetividade racional exista e possa
atingir a consciência de si, sob a forma da compreensão de ser veículo cor-
porificado do Espírito, mergulha a vida em sua inescapável dimensão trá-
gica, posto que a existência de seres racionais necessariamente os coloca em
antagonismo perpétuo com a vida. No âmbito da infinitude, por outro
lado, o próprio Espírito, sob as condições necessárias de sua corporificação
em coisas finitas e materiais, existe sob condições antagônicas a seu télos,
uma vez que, sendo hegelianamente impossível conceber a existência de
Deus como alma cósmica em vida de amor consigo mesma, o próprio Es-
pírito depende das consciências humanas para atingir sua autoconsciência.

Assim como o sujeito finito, o sujeito absoluto tem de passar por um


ciclo, um drama, no qual ele sofre divisão, visando retornar à unidade.
Ele experimenta oposição interna, visando superá-la e elevar-se por in-
termédio dos seus veículos à consciência de si mesmo como necessidade
racional. E esse drama não é uma história paralela ao drama da oposi-
ção e da reconciliação no ser humano. É o mesmo drama, de uma pers-
pectiva diferente e mais ampla. Pois o ser humano é o veículo da vida
espiritual do Geist (TAYLOR, 2014, p. 130).

A superioridade filosófica da dialética idealista sobre a dialética ma-


terialista pode ser demonstrada por meio de um dos argumentos mais sim-
ples e ao mesmo tempo mais consistentes da história da filosofia ocidental,
acerca da identidade imediata e consciente do eu. Sua formulação mais
precisa no período moderno foi realizada por Descartes, que nas Meditações,
expõe de maneira precisa e sucinta a consciência imediata da subjetividade
como fundamento do eu: “Mas o que sou eu, então? Uma coisa que pensa.
Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que
afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina e que também sente.
(…) É por si tão evidente que sou eu quem duvida, quem entende e quem

188
deseja que não é preciso acrescentar nada aqui para explicá-lo” (DESCAR-
TES, 2000, p. 262-263). Idêntica economia de meios e clareza foram em-
pregadas por Fichte para substancializar metafisicamente o eu e defendê-lo
como princípio absoluto que põe a si mesmo como substrato absoluto e
incondicionado que produz a realidade a partir de seu próprio agir: “O eu
é o que põe a si mesmo e nada mais; e o que põe a si mesmo é o eu e nada
mais” (FICHTE, 1988, p. 180). Na medida em que o eu é absoluto, ele é
infinito e ilimitado. Tudo o que é, é posto por ele; e o que ele não põe, não
é. (…) Por conseguinte, sob esse aspecto, o eu abrange em si toda a reali-
dade, isto é, uma realidade infinita, ilimitada” (FICHTE, 1988, p. 137).
A proposição da infinitude do Eu absoluto é exposta de maneira clara e
consistente por Fichte, a partir de um exercício realizável por qualquer ser
humano. Seu conteúdo é essencial para a compreensão adequada do pró-
prio conceito de Espírito formulado por Hegel. O exercício fichteano ini-
cia-se pela constatação da necessidade de que toda percepção, de todo e
qualquer objeto, tem como condição o pensar realizado pela consciência
como um “agir”: “ao teres consciência de um objeto qualquer – seja, por
exemplo, a parede que tens diante de ti – tens propriamente consciência,
como acabas de admitir, de teu pensar dessa parede, e só na medida em
que tens consciência dele tens consciência da parede” (FICHTE, 1988, p.
180-181). Em seguida, o filósofo apresenta a consciência imediata do eu
que se segue ao pensamento do objeto: “Mas, para teres consciência de teu
pensar, tens consciência de ti mesmo. Tu tens consciência de ti mesmo,
dizes; logo, distingues necessariamente teu eu pensante do eu pensado, no
pensamento do eu” (FICHTE, 1988, p. 180-181). A capacidade do eu de
se desdobrar em eu pensante e eu pensado, em um agir prolongável ao
infinito, expõe a qualidade substancial e absoluta do eu, de pôr a si mesmo:
“só tens consciência de ti mesmo, como aquele do qual há consciência (…);
mas, nesse caso, aquele que tem consciência se torna, novamente, aquele

189
do qual há consciência, (…) e assim ao infinito” (FICHTE, 1988, p. 180-
181). Hegel caracterizou a síntese de Fichte como momento da consciência
infeliz que permanece carecendo do saber adequado de sua própria insufi-
ciência (HYPPOLITE, 1999, p. 215), pois faltou a ela a compreensão de
que o movimento do pôr a si mesmo próprio ao espírito humano finito, é
igualmente válida para caracterizar a relação de Deus com o mundo. Porém,
mediante esse simples exercício, Fichte enunciou a pedra angular do idea-
lismo hegeliano, pois o finalismo do Espírito absoluto expressa-se como
movimento de pôr a si mesmo como subjetividade racional e radicalmente
livre:

o Eu põe o não-Eu porque isso é condição para a consciência. Hegel se


apropria desse princípio, que faz parte de sua exposição geral de uma
visão de que a consciência racional requer separação. A consciência só
é possível quando o sujeito é posto em oposição a um objeto. Porém,
para ser posto em oposição a um objeto, ele tem de ser limitado por
algo diferente dele e, em consequência, tem de ser finito. Disso decorre
que o espírito cósmico só poderá alcançar a consciência plena através
de veículos que são espíritos finitos. Consequentemente, sujeitos limi-
tados, finitos, são necessários. A noção de um espírito cósmico que se-
ria diretamente consciente de si mesmo, sem estar em oposição a um
objeto, condição inelutável dos sujeitos finitos, é incoerente. Tal espí-
rito teria, na melhor das hipóteses, uma vida de surdo autosentimento.
Não haveria nada que merecesse o nome de ‘consciência’, muito menos
de ‘consciência racional’ (TAYLOR, 2014, p. 115).

Quando nos referimos à superioridade filosófica da dialética idea-


lista, isso significa, nos termos da presente reflexão, que é somente por
meio do fundamento do espírito como atividade substancial que põe a si
mesmo, que se torna possível explicar a reificação sem recair no círculo
vicioso que afeta a teoria materialista. Uma vez que o espírito é a atividade
de pôr a si mesmo, o fenômeno da coisificação espiritual, sendo pensado

190
como agir alienado da consciência infeliz, pode ser compreendido em sua
inteireza lógica, pois a realidade material em si mesma é uma produção do
Espírito. A impossibilidade de justificar a existência de uma subjetividade
reificada sem pressupor antecipadamente que a realidade material que su-
postamente a produz já tem que ser pensada como premissa da mesma
subjetividade, somente pode ser superada pelo conceito idealista de uma
consciência que reifica a si mesma, pondo-se como coisa, e demonstrando-
se incapaz de reconhecer os produtos de seu automovimento. A oposição
materialista entre a subjetividade e o mundo exterior reproduz, no âmbito
da dialética materialista, abismo análogo àquele anteriormente produzido
pelo cartesianismo (consciência e extensão) e pela razão pura kantiana (su-
jeito transcendental e coisa em si). No sistema filosófico de Hegel, a opo-
sição entre consciência e mundo exterior é convertida em obstáculo a ser
superado pela própria consciência, que ao reconhecer tal antagonismo
como resultado de seu próprio agir, alcança um nível dialético superior de
síntese, que em última instância, diz respeito ao antagonismo entre a sub-
jetividade pensante e a vida corporificada.

Alma e consciência

A reflexão realizada nesta tese acadêmica sobre a improcedência fi-


losófica do materialismo dialético em sua crítica à metafísica, poderia ser
concluída pelo apontamento da alma como conceito idealista dotado de
fundamentos suficientes para uma compreensão mais ampla dos problemas
aqui tratados. O pressuposto da existência de uma unidade substancial da
consciência viabiliza a formulação de horizontes finalistas para a humani-
dade, e permite que o tema do fascismo seja concebido em sua conjugação
intrínseca com o tema metafísico do mal, ampliando os horizontes reflexi-
vos que circunscrevem o problema no âmbito da Teoria Crítica. Porém,

191
uma consideração atenta da análise hegeliana da razão, explicita os proble-
mas próprios ao conceito de alma. O aspecto central do idealismo de Hegel
requer considerar que a substância é sujeito “na medida em que é o movi-
mento do por-se a si mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se
outro” (HEGEL, 2002, p. 35). A plena compreensão da vida do sujeito
absoluto como movimento eterno de pôr a si mesmo expressa uma inter-
pretação do idealismo de Fichte em que a atividade do eu absoluto é trans-
ferida para o interior do próprio Espírito, sendo então entendida como
produção das próprias condições de existência do sujeito absoluto: “a vida
do sujeito absoluto é essencialmente um processo, no qual ele põe suas
próprias condições de existência, e então supera a oposição dessas mesmas
condições para realizar seu objetivo de autoconhecimento” (TAYLOR,
2014, p. 131). A concepção finalista tal como concebida no sistema filo-
sófico de Hegel pressupõe a meta de que a subjetividade racional exista
como veículo corporificado do Espírito, e possa realizar suas possibilidades
intrínsecas relacionadas à consciência de si. Ao mesmo tempo, a vida do
sujeito humano finito, da mesma forma que o Espírito infinito, é um pro-
cesso de autoreconhecimento que se desenvolve mediante o movimento
espiritual de pôr a si mesmo. Ora, se o movimento espiritual de pôr a si
mesmo caracteriza tanto o espírito finito quanto o Geist, sempre que a ra-
zão isola um determinado momento espiritual como produto fixo e isolado
de suas condições de realização, estamos diante de uma coisa supostamente
dada e artificialmente separada desse movimento intrínseco ao ser. Adorno
destaca esse elemento essencial do movimento dialético para explicitar a
ausência de um princípio ontológico em sua filosofia, e também para de-
marcar os parâmetros da dialética negativa: “Hegel nos mostrou que a ori-
gem não é o verdadeiro, pois a origem se converte em engano no mesmo
instante em que é tomada como o verdadeiro. Engano, pois não é nenhuma
origem, uma vez que tudo o que afirma ser o primeiro absoluto é um algo

192
já mediado em si (ADORNO, 2013b, p. 195). Se o conceito de alma pres-
supõe a concepção de uma natureza originária e ontológica da individua-
lidade, isso equivale a pressupor que o espírito possua uma natureza dada
e anterior a esse próprio movimento do pôr a si que produz toda a realidade,
o que é rigorosamente impossível. O conceito metafísico de alma como
individualidade ôntica e independente do movimento de pôr a si mesmo
que é próprio do espírito, torna-se inconsistente nos termos hegelianos,
porque estabelece uma oposição mecânica entre um “interior” e um “exte-
rior”, supostamente independentes um em relação ao outro. O que a filo-
sofia de Hegel apresenta de original, quando confrontada com a metafísica
clássica, é uma concepção do espírito como movimento de pôr a si mesmo
em que o mundo supostamente empírico e exterior ao indivíduo já é em si
mesmo um mundo que somente pode ser concebido a partir do próprio
indivíduo, de tal maneira que a oposição entre um interior substancial e
um exterior contingente, não pode se sustentar. O sistema filosófico de
Hegel desautoriza tanto concepções inatistas próprias à metafísica, quanto
as concepções empiristas, pelas quais o indivíduo é simples produto da so-
ciedade:

A individualidade é o que é seu mundo como um mundo seu: é ela o


círculo do seu agir, em que se apresentou como efetividade. É pura e
simplesmente a unidade do ser enquanto dado e do ser enquanto cons-
truído: unidade em que os lados não incidem fora um do outro – como
[ocorria] na representação da lei psicológica em que um dos lados era
o mundo em si como presente, e o outro, a individualidade como para
si essente. Ou seja: se forem considerados esses lados, cada um para si,
não se dá mais nenhuma necessidade, e nenhuma lei de sua relação
mútua (HEGEL, 2002, p. 221-222).

A oposição entre o mundo exterior como ser-em-si, e o mundo


espiritual como ser-para-si, entendidos como esferas independentes, omite

193
o pôr a si mesmo que é próprio à atividade espiritual, e consiste em uma
das muitas oposições a serem superadas pela consciência infeliz em seu tra-
jeto fenomenológico. Na crítica da razão observadora, Hegel realiza uma
análise suficientemente penetrante dos equívocos da frenologia de sua
época, que antecipa os equívocos posteriores do materialismo dialético no
campo filosófico. Em sua pretensão de estabelecer uma correspondência
direta entre as faculdades mentais e o cérebro, a frenologia baseou-se em
um pressuposto considerado por Hegel rigorosamente vazio e desprovido
de significado, que consiste em supor a coisificação do espírito vivo. Tanto
a frenologia, que parte da exterioridade entre espírito e cérebro, para pro-
por relações mecânicas de correspondência entre um e outro, quanto a te-
oria da reificação de Lukács, que pressupõe o condicionamento da ativi-
dade espiritual pelos fatores materiais da realidade exterior, postula aquela
mesma oposição entre a subjetividade e a realidade exterior, que Hegel
apresenta como mecanicismo a ser superado pela consciência infeliz, me-
diante o reconhecimento da dialética em que “’o interior é imediatamente
exterior e reciprocamente’” (Hegel apud HYPPOLITE, 1999, p. 285). Um
dos fundamentos da interpretação materialista de Adorno sobre a filosofia
de Hegel substitui o pôr a si mesmo do Espírito pela elevação do trabalho
como atividade mediadora essencial dos homens entre si e deles com a na-
tureza: “não há nada no mundo que não apareça ao homem pelo trabalho
e apenas por meio dele(…) Apenas a autoconsciência disso tudo poderia
conduzir a dialética hegeliana para além de si mesma” (ADORNO, 2013a,
p. 101). Nos termos hegelianos, uma interpretação materialista dessa na-
tureza, equivale a uma atitude observadora do espírito sobre si mesmo, que
recusa sua própria negatividade infinita. Ao opor a si mesma um mundo
exterior dotado de atividade material anônima e capaz de interferir e dis-
torcer as representações subjetivas do próprio espírito, de modo a confi-

194
gurá-lo como simples coisa materialmente determinada, a consciência des-
conhece sua própria atividade, atribuindo a ela uma existência indepen-
dente. O fenômeno da coisificação, cujas determinações Lukács e Adorno
entendem ser de natureza material, expressa em termos hegelianos uma
coisificação que é obra do próprio espírito, como incapacidade de reconhe-
cimento de seu próprio movimento. A conversão do espírito vivo em coisa
passível de manipulação a partir das condições da práxis material é, por-
tanto, obra do próprio espírito. A análise materialista de Adorno ratifica
essa alienação espiritual a partir de categorias teóricas como vida falsa e
totalidade administrada, de tal maneira que se torna muito difícil para a
consciência o reconhecimento de seu próprio movimento de autoengano.
Nesse sentido, a própria dialética negativa de Adorno se insere no movi-
mento fenomenológico da consciência de si, fazendo do materialismo uma
etapa necessária do percurso de elevação do espírito à autoconsciência ne-
cessária: “sem dúvida, a reflexão que se opõe à vida, à beleza do imediato,
é uma dilaceração, mas dilaceração necessária para que o espírito alcance
uma figura mais elevada. ‘Com efeito, o espírito é tanto maior quanto
maior for a oposição a partir da qual ele retorna a si mesmo’” (HYPPO-
LITE, 1999, p. 291).
O exercício crítico realizado pelo materialismo dialético contra os
parâmetros fundamentais da metafísica, assim como o conjunto de argu-
mentos idealistas que podem ser mobilizados contra o materialismo, pare-
cem se constituir como uma disputa monumental, na qual, em certos mo-
mentos a práxis humana se qualifica como núcleo oculto das atividades do
espírito, ao passo que em outros momentos o espírito assume o lugar on-
tológico, apresentando-se como o lugar legítimo de onde se origina toda a
realidade. É pensando nessa alternância que o termo “malabarismo”, suge-
rido por Adorno para ilustrar as “piruetas da teoria do conhecimento”, foi
adotado como metáfora ilustrativa dessa disputa filosófica. Mas talvez o

195
embate entre materialismo e metafísica possa ser mais adequadamente pen-
sado como um jogo de xadrez, em que cada argumento posto pela consci-
ência, constitui-se como um movimento cuidadosamente pensado no ta-
buleiro do Espírito. Se for assim, talvez seja importante lembrar Walter
Benjamim e advertir o jogador materialista que ele está enfrentando um
grande mestre no xadrez.

Adorno e o mal

Se na pesquisa sobre a personalidade autoritária, Adorno enfoca as


raízes emocionais do autoritarismo e do preconceito, e na análise da pro-
paganda fascista, ele trata das técnicas psicológicas de manipulação exerci-
das pelo líder, será em Elementos de anti-semitismo que a problemática do
mal será mais diretamente abordada. Nessa obra, o tema do mal não recebe
um tratamento metafísico, como aquele dedicado pelos filósofos tratados
no capítulo anterior, uma vez que é abordado como resultado direto do
acúmulo de pulsões destrutivas, relacionado ao mal-estar na civilização.
Sob referências da psicanálise, a explosão agressiva do antisemitismo é en-
focada por Adorno e Horkheimer mediante o cruzamento de dois concei-
tos fundamentais: retorno do reprimido e unheimlich.
Inicialmente, o retorno do reprimido é consequência direta do acú-
mulo de frustrações, culpa e infelicidade, decorrentes do imperativo de re-
pressão pulsional exigido pela própria vida civilizada. O mal-estar na civi-
lização manifesta-se como ressentimento coletivo traduzido sob a forma de
uma ameaça destrutiva subterrânea que na história se manifesta mediante
um rol de descontamentos adequadamente sintetizados por Marcuse: “um
ciclo ampliado de guerras, perseguições ubíquas, antisemitismo, genocídio,
intolerância e a imposição de ‘ilusões’, trabalho forçado, doença e miséria,
no meio de riqueza e conhecimento crescentes” (MARCUSE, 1981, p. 83).

196
A exigência de sublimação contínua da libido imposta pelo progresso da
civilização, enfraquece Eros e libera pulsões de morte, fazendo da civiliza-
ção, em especial sob sua modalidade mais bem sucedida, vale dizer, o modo
de vida burguês e ocidental, o palco de difusão e canalização do ressenti-
mento, sob formas frequentemente brutais. Em Elementos de anti-semi-
tismo, Adorno e Horkheimer enfocam o retorno do reprimido sob o viés
das idiossincrasias associadas a alergias e repugnâncias resultantes da re-
pressão pulsional imposta pela civilização. Embora muitos dentre tais res-
quícios da repressão pulsional possam ser identificados como meros traços
de repugnância compulsiva, notadamente relacionados com a higiene, a
sexualidade e a gestos corporais indisciplinados, a mais sombria de tais ma-
nifestações diz respeito à aversão perante todos aqueles que significam a
proscrição exigida pela vida civilizada. O retorno do reprimido articula-se
com os sintomas projetivos sintetizados por Adorno e Horkheimer na re-
ferência ao unheimlich freudiano: “o que repele por sua estranheza é, na
verdade, demasiado familiar” (Freud apud ADORNO; HORKHEIMER,
1985, p. 170). Conjunto de idiossincrasias racionalizadas, o anti-semi-
tismo é a coagulação do retorno da violência civilizatória internalizada e
canalizada sobre os judeus no contexto do nacional-socialismo alemão, po-
rém expressando uma flexibilidade projetiva que pode incidir sobre diver-
sos setores populacionais suscetíveis de identificação com a estranheza re-
primida.
O comício fascista, caracterizado não apenas por uma retórica pa-
dronizada e repetitiva de estereótipos estigmatizantes da diferença e por
clichês nacionalistas, mas também por momentos de gargalhada organi-
zada, em que o líder celebra cenas de imitação venenosa dirigidas contra
os judeus, constitui-se como ritual de liberação autoritária dos impulsos
reprimidos. O abandono prazeroso da comunidade participante aos comí-
cios a comportamentos miméticos proscritos pela civilização, constituiu

197
momentos de catarse sinistra, alimentada pela cumplicidade entre a audi-
ência e o líder. “Hitler pode gesticular como um palhaço; Mussolini pode
arriscar notas erradas como um tenor da província (…) O fascismo é tota-
litário na medida em que se esforça por colocar diretamente a serviço da
dominação a própria rebelião da natureza reprimida contra essa dominação”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 172). No texto de Adorno e
Horkheimer, a barbárie nazifascista é expressão do mal sob condições emo-
cionalmente patológicas que assumem a roupagem da normalidade social,
graças a um delírio coletivo, em que diversas utopias de reconciliação com
a civilização são alvo de comportamentos projetivos perversos, que as trans-
formam em objeto de ódio cego:

pouco importa como são os judeus realmente; sua imagem, na medida


em que é a imagem do que já foi superado, exibe os traços aos quais a
dominação totalitária só pode ser hostil: os traços da felicidade sem
poder, da remuneração sem trabalho, da pátria sem fronteira, da reli-
gião sem mito. Esses traços são condenados pela dominação porque são
a aspiração secreta dos dominados. A dominação só pode perdurar na
medida em que os próprios dominados transformarem suas aspirações
em algo de odioso” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 185-186).

O antídoto contra a barbárie antisemita, que é extensivo a todos os


tipos de segregação fascista, consiste na capacidade de autoreflexão que pu-
desse reverter a projeção à sua verdade substancial, por meio de um movi-
mento que permitisse aos algozes o reconhecimento de suas próprias ver-
dades e necessidades mais íntimas. “Essa passagem realizaria, ao mesmo
tempo, a mentira fascista, mas como a sua contradição: a questão judia se
revelaria, de fato, como o momento decisivo da história” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 186).

198
Toda a descrição do mal de natureza antisemita por Adorno e
Horkheimer, entendido na vertente psicanalítica como um gigantesco con-
junto de regressões atinentes ao retorno do reprimido e à projeção do
unheimlich nas vítimas do nazismo, poderia encerrar-se na parte VI de Ele-
mentos de anti-semitismo, que é concluída pelo pensamento acima estam-
pado acerca da questão judia como verdade invertida da história. Na parte
seguinte do texto, os autores desenvolvem uma argumentação paradoxal-
mente destinada a dissolver a própria consistência de uma interpretação do
anti-semitismo nazi-fascista como fenômeno emocionalmente projetivo
dirigido contra a interioridade subjetiva autárquica. Em outras palavras, a
pretensão de que exista um ódio dirigido aos judeus sob o capitalismo mo-
nopolista, implica pressupor a existência de um âmbito psicológico autô-
nomo, porém, este já se tornou anacrônico e obsoleto sob contextos sociais
inteiramente reificados. O antisemitismo “espontâneo” do passado foi
substituído por uma versão mais eficiente e rigorosamente indiferente ao
sofrimento das vítimas humanas. Adorno e Horkheimer apresentam sua
versão da banalidade do mal sob a forma da mentalidade do ticket, para a
qual a pauta anti-semita está inserida em um conjunto de slogans subordi-
nados às demandas do Estado e dos monopólios econômicos: “o anti-se-
mitismo praticamente deixou de ser um impulso independente, ele não é
mais do que uma simples prancha da plataforma eleitoral: quem dá uma
chance qualquer ao fascismo subscreve automaticamente, juntamente com
a destruição dos sindicatos e a cruzada antibolchevista, a eliminação dos
judeus” (ADORNO;HORKHEIMER, 1985, p. 187).
Enquanto até a parte VI de Elementos de anti-semitismo, Adorno e
Horkheimer tratam da barbárie nazifascista sob a ótica do retorno de traços
arcaicos e anticivilizatórios da humanidade, consumados na projeção pa-
tológica da estranheza sobre as vítimas, na parte VII do texto, o conceito

199
de mentalidade do ticket introduz a reificação como pano de fundo mate-
rial da barbárie. O antisemitismo na versão nazifascista é resultado direto
da liquidação do indivíduo como sujeito, fenômeno intimamente relacio-
nado com a transformação dos homens em simples coisas disponíveis para
a manipulação exercida pelo Estado e pelos monopólios industriais: “não
lhe foi concedendo a plena satisfação que os colossos desencadeados na
produção superaram o indivíduo, mas extinguindo-o como sujeito”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 191). O processo de liquidação
do sujeito é inseparável da transformação dos homens e de sua subjetivi-
dade em objetos passíveis de administração, consumada na reificação que
perpassa a sociedade burguesa de ponta a ponta: “a base da evolução que
conduz à mentalidade do ticket é, de qualquer modo, a redução universal
de toda energia específica a uma única forma de trabalho, igual e abstrata,
do campo de trabalho ao estúdio cinematográfico” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 193). A análise do antisemitismo na era nazi-
fascista, a exemplo das reflexões sobre os temas da vida falsa, da frieza bur-
guesa e da personalidade autoritária, confluem para a intromissão das de-
terminações objetivas da base material da sociedade na subjetividade indi-
vidual, configurando a plena confiança depositada por Adorno na análise
desenvolvida por Lukács. Uma vez mais, o caráter indiscutível do conceito
de reificação é um pressuposto a ser tacitamente aceito pelo leitor de
Adorno, sem que o filósofo se dedique a maiores explanações acerca da
suposta contaminação da subjetividade pela base material da sociedade.
Considerando as reflexões já desenvolvidas no presente trabalho, acerca do
conceito metafísico de alma em Descartes e Leibniz, e sobre a autarquia
emocional subjacente ao pensamento freudiano, torna-se insuficiente a ca-
racterização adorniana depreciativa da individualidade como simples
“reino das sombras da imanência psíquica” (ADORNO, 2015, p. 125). A
confiança depositada por Adorno não apenas na análise de Lukács, como

200
também no assentimento tácito do leitor, não é suficiente diante da neces-
sidade de que o emprego do conceito materialista de reificação seja acom-
panhado de argumentos que possam demonstrar como se daria a contami-
nação da subjetividade por mediações materiais.
Para além das dificuldades teóricas que se ergueriam para uma jus-
tificação da teoria da reificação, um simples exame antropológico do pro-
blema é suficiente para que se constatem as fortes tendências do ser hu-
mano de segregar a diferença, sem que seja necessário recorrer à transfor-
mação de homens e mulheres em meras coisas na sociedade burguesa. Já
nas sociedades primitivas, a diversidade cultural é apreendida como mons-
truosidade e sistematicamente repudiada em nome de uma concepção cul-
turalmente narcísica, que estabelece as fronteiras da tribo como limites
para a circunscrição da humanidade. Segundo Lévi-Strauss, povos estran-
geiros são invariavelmente repudiados, o que faz do etnocentrismo um dos
traços mais arcaicos da espécie humana: “a atitude mais antiga e que re-
pousa, sem dúvida, sobre fundamentos psicológicos sólidos (…) consiste
em repudiar pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas e
estéticas mais afastadas daquelas com que nos identificamos” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 53). De maneira análoga ao antropólogo fran-
cês, Freud formulou seu conceito de narcisismo das pequenas diferenças,
recorrendo unicamente às tendências xenófobas e agressivas entre comuni-
dades que ocupam territórios fronteiriços. O próprio Adorno, na Dialética
do Esclarecimento, caracteriza o antisemitismo com base nos componentes
arcaicos do retorno do reprimido. Tais fundamentos, de natureza antropo-
lógica e psicanalítica, apontam para a presença de tendências de coisifica-
ção do estranho entre todas as populações humanas que em certo mo-
mento de sua existência são forçadas ao contato com povos estrangeiros.
Muito antes do surgimento do capitalismo monopolista, a estigmatização
da diferença, e sua correspondente redução do estranho a mera coisa sobre

201
a qual podem ser canalizadas as pulsões de morte, configura-se como ca-
racterística intrínseca às mais diversas culturas. A esse respeito, é cabível,
uma vez mais, recorrer a Freud para caracterizar o arcaísmo das tendências
de coisificação entre humanos. Diante do próximo, vigoram tendências de
“explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexual-
mente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo,
causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo” (FREUD, 1974, p. 133). Lévi-
Strauss e Freud souberam captar o fenômeno da coisificação de maneira
mais precisa e consistente do que o materialismo de Lukács.
O fenômeno descrito por Adorno e Horkheimer como mentali-
dade do ticket, traduz uma modalidade de estereotipia corresponde a uma
manipulação política sintonizada com o anonimato da sociedade de massas
na era do capitalismo monopolista, que não apresenta maiores traços de
frieza e de transformação do estranho em simples coisa, do que aqueles já
presentes em diversas culturas humanas do passado. A coisificação do
unheimlich expressa-se como projeção patológica perfeitamente correspon-
dente à manifestação do mal no estágio kantiano radical, em que a perver-
sidade do arbítrio se opõe ao reconhecimento do outro como semelhante.
É preciso considerar que a compreensão do fenômeno do fascismo implica
levar em conta não somente a coisificação contemporânea ou mentalidade
do ticket, mas sobretudo a presença do mal como fenômeno intrínseco aos
espíritos humanos. Considerando a humanidade em si mesma, vale dizer,
como espécie altamente propensa ao mal radical kantiano, é possível com-
preender o nazifascismo como ressurgência de uma frieza intrínseca ao es-
pírito, sem que se tenha de recorrer a conceitos da teoria materialista-dia-
lética. A grandeza da análise crítica do fascismo empreendida por Adorno,
tanto no que se refere à dissecação da personalidade autoritária, à análise
das técnicas psicológicas mobilizadas pelo líder e ao apontamento da am-
biguidade psicológica pressuposta na impostura, é perfeitamente deduzível

202
de conceitos freudianos, dispensando o recurso ao conceito de reificação.
Embora o nazifascismo possa ser adequadamente caracterizado como prá-
tica da barbárie no grau mais elevado e insuportável, intrinsecamente rela-
cionada com a coisificação dos espíritos humanos, sua explicação teórica
prescinde do insondável efeito das mediações materiais sobre a subjetivi-
dade. Não há dúvida de que, para diferenciar Torquemada de Eichmann,
é imprescindível relevar mediações históricas e sociais que explicam mani-
festações muito contrastantes entre o mal medieval e o moderno. Mas é
muito difícil ignorar que, em nome de Deus, ou da obediência canina à
racionalidade burocrática, desde o medieval, até o moderno, não parece ter
havido nenhuma transformação significativa do espírito humano, em seu
repúdio arcaico e patologicamente projetivo da diferença.

A diferença e o mal

Na Dialética do Esclarecimento, a crítica do fascismo oscila entre


dois momentos distintos, um deles relativo à barbárie arcaica que marca a
história humana, outro relacionado com as mediações materiais específicas
ao capitalismo monopolista. Embora o antisemitismo seja interpretado por
Adorno e Horkheimer como projeção patológica, originada de impulsos
arcaicos relacionados com a repressão mimética característica da pro-
tohistória do gênero humano, na era do nazifascismo, a psicologia anti-
semita foi substituída pela simples adesão ao ticket fascista: “quando as
massas aceitam o ticket reacionário contendo o elemento anti-semita, elas
obedecem a mecanismos sociais nos quais as experiências de cada um com
os povos judeus não têm a menor importância” (ADORNO;HORKHEI-
MER, 1985, p. 187). Ao mesmo tempo, o alcance do antisemitismo ultra-
passa em grande medida os limites desse contexto histórico, revelando-se

203
como questão decisiva para a humanidade. A superação da patologia anti-
semita representa uma questão decisiva para que se possa atingir um pata-
mar ético qualitativamente superior. Se as vítimas do fascismo são inter-
cambiáveis a ponto de representarem apenas um item do ticket eleitoral,
isso implica que, para a mentalidade suscetível à segregação agressiva do
fascismo, a questão decisiva a ser enfrentada pela humanidade diz respeito,
em seu alcance conceitual mais preciso, ao estranhamento da diferença.
Para uma humanidade que se tornasse capaz de superar a mentira fascista,
“a questão judia se revelaria, de fato, como o momento decisivo da história”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 186). O problema decisivo a ser
enfrentado pela humanidade, apresenta-se sob um alcance muito superior
à conjuntura material do capitalismo monopolista, pois diz respeito à re-
presentação do unheimlich sob estereotipias patologicamente projetivas:
“superando a doença do espírito, que grassa no terreno da autoafirmação
imune à reflexão, a humanidade deixaria de ser a contra-raça universal para
se tornar a espécie que, embora natureza, é mais do que a simples natureza,
na medida em que se apercebe de sua própria imagem”
(ADORNO;HORKHEIMER, 1985, p. 186).
Ao remeter a superação do antisemitismo ao âmbito da universali-
dade, relacionado a uma humanidade capaz de se aperceber de sua própria
imagem, Adorno e Horkheimer apontam para aspectos que claramente ex-
trapolam o âmbito material da reificação na sociedade capitalista. Nas re-
flexões sobre a vida danificada, o aforismo Exame é concluído mediante
uma fórmula concisa e simples, porém desmesuradamente difícil, pela qual
seria possível aos humanos a realização de uma humanidade emancipada:
“a liberdade seria não a de escolher entre preto e branco, mas a de escapar
à prescrição de semelhante escolha” (ADORNO, 1982, p. 86). Em suas
reflexões sobre as dificuldades inerentes ao amor ao próximo, Freud assi-

204
nala que seres humanos estranhos e sem significado emocional são forte-
mente sujeitos a sentimentos de hostilidade e agressividade, dada a ausên-
cia de vínculos egoicos capazes de estabelecer laços de amizade e solidarie-
dade. Em termos freudianos, os seres humanos são fortemente propensos
ao estabelecimento de uma atmosfera de frieza e hostilidade diante de es-
tranhos, e tais tendências se expressam com grande nitidez nos conflitos
grupais marcados pelo narcisismo das pequenas diferenças: “é sempre pos-
sível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem
outras pessoas para receber as manifestações de agressividade” (FREUD,
1974, p. 136). Sob a perspectiva filosófica de Kant, o estranhamento agres-
sivo da diferença pode ser explicitamente caracterizado como manifestação
peculiar do mal radical, condição em que a malignidade e perversidade do
arbítrio autoriza comportamentos sistemáticos de ignorância da lei moral.
A estigmatização da diferença que caracteriza o fascismo pode ser
compreendida sob a perspectiva mais ampla possível a partir do sistema
filosófico de Hegel, como momento inseparável do processo de autocons-
ciência do Espírito. É importante esclarecer que, em termos hegelianos, a
concepção de Kant sobre a existência de uma lei moral universal equivale
a transcendência inacessível, incapaz de abarcar o espírito concreto e finito
cuja existência é irredutivelmente antagônica às demandas de liberdade e
perfeição que constituem seu horizonte finalístico. O aspecto trágico pres-
suposto pela filosofia de Hegel exige a confrontação dialética entre a fini-
tude moralmente imperfeita e a infinitude do Absoluto, não podendo ser
reduzido à defasagem entre o solipsismo de uma consciência pecadora e a
lei moral abstrata. A referência para a reflexão filosófica sobre o mal, em
termos hegelianos, prescinde do antagonismo entre homem particular e lei
universal, pois a corporificação do Espírito pressupõe a concepção do mal
como estado de alienação necessária do espírito finito: “o Singular é o ho-

205
mem de ação cujo ato é sempre finito, a consciência ativa que, em conse-
guinte, não pode deixar de descobrir em si mesma, em sua visão particular
tomada como absoluta, o próprio mal” (HYPPOLITE, 1999, p. 523). Na
concepção de Hegel, é a partir da consideração da existência da comuni-
dade das consciências de si, em sua finitude e imperfeição intrínseca, que
é possível entender o mal: “a consciência do mal está, portanto, vinculada
à oposição entre a finitude na ação e o elemento do reconhecimento mútuo
das consciências-de-si que é uma exigência imanente” (HYPPOLITE,
1999, p. 548).
No percurso da fenomenologia do Espírito, o dilaceramento cons-
tante da consciência infeliz se desenvolve por meio do antagonismo entre
diferentes figuras da consciência que expõem, em níveis crescentes de au-
toconsciência, a oposição paradigmática entre consciências de si viventes
que são animadas pelo desejo mútuo de reconhecimento. A defasagem
kantiana entre o indivíduo singular e a lei moral universal dá lugar, no
idealismo hegeliano, à descoberta de que o desejo, que é uma carência hu-
mana que o homem inicialmente procura satisfazer por meio de objetos
materiais, contém uma insaciedade irredutível que impõe o imperativo do
reconhecimento de uma consciência de si por outra consciência de si: “o
desejo se refere aos objetos do mundo; depois, a um objeto mais próximo
de si mesmo, a Vida; enfim, a uma outra consciência de si, é o próprio
desejo que se procura no outro, o desejo do reconhecimento do homem
pelo homem” (HYPPOLITE, 1999, p. 175). O apetite sensível desliga-se
da monotonia dos objetos mundanos, constata o caráter insaciável do de-
sejo, e descobre a existência de uma verdade espiritual muito mais ampla
do que a simples satisfação material: “a própria consciência de si procura-
se no fundo desse desejo e procura-se no Outro” (HYPPOLITE, 1999, p.
175). O desejo de reconhecimento ilustra da maneira mais fiel possível o

206
caráter trágico da existência, pois sua substância ultrapassa a particulari-
dade dos objetos materiais, revelando-se desejo de autoconsciência que se
realiza no interior da pluralidade das consciências humanas: “o eu encontra
a si mesmo, o que é decerto a mais profunda visada do desejo” (HYPPO-
LITE, 1999, p. 177). A consciência de si é “potência negativa”, que recusa
toda particularidade imediata, movida pela necessidade mútua de reconhe-
cimento: “somente sou consciência de si quando me faço reconhecer por
outra consciência de si, e se reconheço a outra do mesmo modo” (HYP-
POLITE, 1999, p. 180).
Como se sabe, o significado profundo e próprio ao mútuo antago-
nismo entre as consciências de si na história foi exposto por Hegel medi-
ante a dialética entre senhor e escravo, em que o desejo de reconhecimento
deve conduzir uma das partes a elevar-se acima da consideração da própria
vida e fazer-se reconhecer pelo outro. A necessidade de reconhecimento
por parte de duas consciências de si que se opõem, representa a oposição
entre duas figuras da consciência, e tal antagonismo é central no desenvol-
vimento da fenomenologia do Espírito: “assim como o Senhor e o Escravo
se opõem como duas figuras da consciência, também opor-se-ão a consci-
ência nobre e a consciência vil, a consciência pecadora e a consciência ju-
dicante, até que, enfim, ambos os momentos de toda a dialética distin-
guem-se e unificam-se como a consciência universal e a consciência singu-
lar” (HYPPOLITE, 1999, p. 186). Esse caráter paradigmático atinente à
formação da humanidade em si mesma, seu progresso racional, do estado
de barbárie à vida civilizada, é mediado por um processo em que uma das
partes, inicialmente inessencial, é elevada ao caráter de verdade da consci-
ência de si. O espírito enfrenta os desafios postos pela necessidade de sua
perpétua superação, e é somente pela mediação dessa finitude que o espí-
rito, finitamente corporificado, realiza a si mesmo. É por esse motivo que
no sistema filosófico de Hegel o mal na consciência do indivíduo singular

207
não é pensado pelo contraste com a lei moral universal, mas pela referência
à comunidade das consciências de si, dilaceradamente envolvidas na luta
pelo reconhecimento. Os aspectos trágicos percorridos pela humanidade
na história são compreendidos como uma cadeia necessária de fatos enca-
deados pelo imperativo racional de realização de um mundo livre e racional.
O mal pode ser traduzido como estado histórico e contingente de alienação
do espírito humano finito, como consciência infeliz, que em seu trajeto
como sujeito, detém-se perante obstáculos que não são simples acidentes
do percurso, mas momentos necessários da verdade:

Como todos os românticos, o que Hegel quer pensar é a imanência do


infinito no finito. Mas isso o conduz à filosofia trágica da história; o
espírito infinito não deve ser pensado para além do espírito finito, do
homem ativo e pecador, mas ele próprio é ávido de participar do drama
humano. Sua infinitude verdadeira, sua infinitude concreta, não é sem
essa queda. Deus não pode ignorar a finitude e o sofrimento humanos.
Inversamente, o espírito finito não é um aquém, ele supera a si mesmo,
atraído constantemente rumo à sua transcendência, e tal superação é a
cura possível de sua finitude (HYPPOLITE, 1999, p. 553).

Se a luta por reconhecimento entre as consciências de si, embora


se constitua como origem de diversas tragédias e violências na história hu-
mana, pode ser compreendida como parte do processo de superação da
alienação do espírito, a estigmatização radical do unheimlich, realizada pelo
fascismo, autoriza caracterizar a catástrofe genocida como etapa de aliena-
ção da autoconsciência do Espírito. A relação de antagonismo entre duas
consciências de si em sua necessidade mútua de reconhecimento pressupõe
a aceitação da alteridade e a entrega dos homens ao processo de realização
de suas potencialidades intrínsecas: “visando desempenhar o seu papel na
superação da oposição do mundo ao Geist, os seres humanos devem educar
a si mesmos, tornar-se seres capazes de usar a razão, abandonar a vida

208
imersa na natureza e dominar o impulso, ir além de suas perspectivas aca-
nhadas e imediatas rumo à perspectiva da razão” (TAYLOR, 2014, p. 130).
Sendo “o que repele por sua estranheza demasiado familiar”, pode-se de-
preender que a relação patologicamente projetiva estabelecida diante da
diferença pelos agentes do fascismo, corresponde à exata negação de uma
luta pelo reconhecimento. Para que esta ocorra, mesmo em meio aos sub-
produtos nefastos que a história testemunha, é necessário pressupor a aber-
tura da consciência de si ao processo de esclarecimento e de formação do
espírito finito. Porém, na perspectiva freudiana já abordada, a violência
fascista é inseparável de uma brutal e deliberada incapacidade de espelha-
mento no Outro. A violência fascista pode ser definida, antes de mais nada,
pela recusa radical do reconhecimento perante aqueles que representam o
estranhamento de cada um diante de si mesmo: “os não-autênticos, os bas-
tardos, os mal-cheirosos, aqueles que são próximos dos bichos (e das bi-
chas), os piolhos; e todos aqueles que não trabalham direitinho: os vaga-
bundos. Assim, cada sociedade constrói e escolhe seus negros, seus judeus,
seus travestis, segundo suas angústias e necessidades” (GAGNEBIN, 2006,
p. 85).
No texto Mal-estar na civilização, ao discorrer sobre as dificuldades
que se opõem ao cumprimento do mandamento do amor ao próximo,
Freud assinala, conforme vimos, que essa é a meta mais dificilmente reali-
zável, pelo simples fato de que os homens não são criaturas gentis, o que
converte o estranho em inimigo potencial a ser explorado, escravizado e
morto (FREUD, 1974, p. 133). Em Por que a guerra?, carta endereçada a
Einstein a propósito da criação da Liga das Nações, Freud assinala que a
resolução dos conflitos humanos por meio da violência e da consequente
vitória da parte mais forte, é uma regra geral diversas vezes observada na
história. Posteriormente, a transição da violência para o estabelecimento
de regulamentos jurídicos capazes de arbitrar os conflitos e prevenir a

209
guerra, teve como condição a fundação de instituições amparadas na união
estável da comunidade. O reconhecimento comum dos interesses levou ao
surgimento de vínculos emocionais que se constituíram como o verdadeiro
princípio fundador do direito estatal. Em termos hegelianos, basta lembrar
que o desenvolvimento da autoconsciência do Espírito na história se realiza
por meio dos indivíduos históricos, mesmo que estes sejam movidos por
seus próprios interesses econômicos e políticos imediatos. A astúcia da ra-
zão garante o progresso da totalidade em meio aos episódios de violência e
barbárie: “os indivíduos levam uma vida infeliz, trabalham arduamente e
morrem; entretanto, embora jamais realizem seus desígnios, seu sofrimento
e seu fracasso são os meios mesmos de sustentação da verdade e da liber-
dade” (MARCUSE, 1978, p. 215). Tanto quanto na perspectiva freudiana,
no sistema filosófico de Hegel, a realização da liberdade e da razão pressu-
põe um primeiro momento de conflito aberto entre duas autoconsciências
e sua posterior superação dialética, potencialmente realizável de maneira
racional, pela mediação do reconhecimento dos interesses comuns.
A dialética entre senhor e escravo é um modelo paradigmático para
a compreensão dos conflitos entre os homens na história, pois pressupõe o
mal como momento contingente de alienação do espírito finito rumo à sua
realização como sujeito livre e racional. O fascismo, por outro lado, baseia-
se na plena recusa de reconhecimento entre as consciências humanas, uma
vez que pressupõe a mais completa degradação e coisificação do outro, im-
possibilitando a própria instauração das condições que permitem que se
estabeleçam relações minimamente dignas entre humanos. Nesse sentido,
podemos tomar de empréstimo a denominação kantiana e assinalar que,
em virtude da recusa prévia da perspectiva de reconhecimento entre as
consciências em conflito, o fascismo constitui-se como mal radical no sen-
tido hegeliano do termo. Vale dizer: o fascismo pressupõe a impossibilidade
radical de reconhecimento do unheimlich como o estranho-familiar a ser

210
superado para que uma relação digna entre seres humanos racionais e livres
possa ser estabelecida. Por estar fundamentado na perpetuação de um es-
tado de cegueira emocional que impede a superação do estranhamento do
sujeito em relação a si próprio, o fascismo neutraliza na raiz os potenciais
racionais da dialética do senhor e do escravo, impedindo que os elementos
trágicos inerentes à vida humana possam desdobrar a consciência de si na
história. O fascismo paralisa o movimento dialético que impulsiona toda
relação de diferença entre sujeitos, por esse motivo, constitui-se como mal
radical também em um sentido hegeliano.

211
Capítulo 10

Educação contra o mal


______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

O Barão de Münchhausen como modelo para o sujeito

No aforismo 46 de Minima Moralia, Para uma moralidade do pen-


samento, Adorno propõe uma imagem emblemática para expor a “duplici-
dade” que afeta a dialética hegeliana, pois esta deve simultaneamente ex-
pressar os fenômenos mediante uma “contemplação atenta”, e preservar a
relação destes com a reflexão realizada pela consciência. Para estar na ime-
diatidade dos fenômenos observáveis como categoria mediadora da objeti-
vidade, a consciência deve extrair forças de si mesma: “de quem pensa hoje
não se exige menos do que em cada momento esteja nas coisas e fora das
coisas – o gesto do Barão de Münchhausen ao puxar-se para fora do pântano
pelos cabelos torna-se o esquema de todo pensamento que almeje ser mais
do que constatação ou projeto. E depois ainda vêm os filósofos funcioná-
rios e nos censuram por não termos posição firme” (ADORNO, 2008, p.
70).
O gesto do Barão de Münchhausen, referenciado com ironia para a
compreensão da dialética hegeliana, é, contudo, emblemático para a com-
preensão da dialética do sujeito no pensamento de Adorno. Conforme
abordamos, por um lado a autonomia do sujeito está condenada à impos-
sibilidade, em virtude das mediações materiais que engendram uma indi-
vidualidade monadológica somente como aparência social, mascarando o

213
estado real de heteronomia. Por outro lado, a crítica de Adorno às concep-
ções substancialistas de sujeito apenas se justifica em nome dos potenciais
de emancipação do sujeito. A imagem caricata do Barão de Münchhausen,
que consegue sair do pântano por um gesto contrário às leis da física, é
ilustração concisa da negação determinada, que Adorno nomeia como
“nervo da dialética”: “somente é fecundo o pensamento crítico que libera a
força armazenada em seu próprio objeto” (ADORNO, 2013a, p.165). Seu
gesto expõe de maneira exemplar o pôr a si mesmo do sujeito, em sua ca-
pacidade de superação das amarras impostas pela vida falsa. O sabor fi-
chteano do gesto do Barão de Münchhausen, aponta para potenciais de su-
peração da reificação que não passaram desapercebidos por Adorno, e que
requerem pensar a liberdade irredutível que persiste em meio ao rolo com-
pressor da existência reificada. No texto Educação após Auschwitz, Adorno
afirma que uma educação para a desbarbarização requer autonomia, no
sentido kantiano (ADORNO, 1986, p. 37). Embora o filósofo não escla-
reça nesse texto específico os contornos de uma educação voltada contra o
princípio da barbárie, proponho que subsídios importantes para uma abor-
dagem sobre o tema no campo educativo podem ser encontradas nas refle-
xões teológicas de Horkheimer, notadamente quanto ele discorre sobre a
relevância do pensamento de Kant no plano moral.
O pensamento tardio de Horkheimer apresenta o idealismo kanti-
ano, por sua recusa ao fanatismo das massas, e pela valorização da autono-
mia, como o mais fiel representante da Ilustração: “à Ilustração pertence a
convicção de que o progresso da humanidade se mede segundo o desen-
volvimento das forças espirituais dos indivíduos, e que, por sua vez, con-
verte este progresso em obrigação de cada um” (HORKHEIMER, 2000,
p. 74). Sob uma perspectiva distante da crítica materialista dos anos 1930,
Horkheimer atribui, em seus escritos tardios, uma importância decisiva
para o pensamento de Kant, em um momento histórico decisivo para a

214
Alemanha: “se nas formações sociais que nas próximas décadas se expandi-
rão pelo mundo não sobrevivem as ideias teóricas e práticas desenvolvidas
por Kant, se elas não se opõem ao que nos ameaça, a recaída será inevitável”
(HORKHEIMER, 2000, p. 74). A valorização do pensamento de Kant
por Horkheimer é suficientemente consistente para poder ser caracterizada
como fundamento para uma educação após Auschwitz sob termos mais
eloquentes que aqueles postos por Adorno: “o esforço geral para que a Ilus-
tração seja assumida plenamente em seu sentido e se faça eficaz, não em
último termo na educação, bem poderia denominar-se ‘domínio do pas-
sado’. Seria uma garantia de que este não voltaria a ocorrer” (HORKHEI-
MER, 2000, p. 74). Dada a importância e extrema atualidade das reflexões
de Horkheimer no campo teológico, e o papel central da filosofia de Kant
no sentido de configurarmos a educação após Auschwitz como uma educa-
ção contra o mal, é relevante discorrermos com maiores detalhes os funda-
mentos kantianos nesse campo específico da filosofia e da educação.

Kant e a fé racional

Conforme abordamos anteriormente, Kant explica a inclinação do


homem para o mal como “propensão” a ações moralmente corrompidas,
decorrentes da fragilidade da natureza humana, que nem sempre é sufici-
entemente robusta para observar os princípios da universalidade moral. O
mal radical não apresenta natureza substancial ou ontologicamente consti-
tuída, assim como também não se constitui como simples impulso natural.
Sendo a lei moral uma regra universal existente a priori no indivíduo,
quando o arbítrio destitui a razão prática incondicionalmente legisladora
como móbil da conduta moral, seu comportamento terá sido corrompido
na raiz, em favor de inclinações moralmente menores ou perversas. O mal
radical, em sua indignidade, “constitui a mancha pútrida da nossa espécie,

215
mancha que, enquanto não a tirarmos, estorva o desenvolvimento do gér-
men do bem” (KANT, 2008, p. 46). Se a recaída no mal radical é resultado
exclusivo de decisões moralmente corrompidas realizadas pelo arbítrio,
comparáveis a uma árvore originariamente boa que produz maus frutos, o
reerguimento moral depende apenas de decisão contrária do mesmo arbí-
trio, em favor da disposição originária da natureza humana para o bem.
Importa esclarecer que, por mais que um homem esteja moralmente reca-
ído, o “gérmen do bem” não pode ser extirpado ou corrompido, persistindo
em estado de total pureza: “devemos tornar-nos melhores; devemos, por-
tanto, também poder fazê-lo. (...) O restabelecimento da originária dispo-
sição para o bem em nós não é, portanto, aquisição de um móbil perdido
para o bem; pois tal móbil, que consiste na reverência pela lei moral, jamais
o poderemos perder” (KANT, 2008, p. 53-55). O bem originário, em seu
caráter inextirpável na natureza humana, é “santidade das máximas no se-
guimento do dever próprio”, cujo acolhimento pelo arbítrio, sob a forma
de reformas graduais do comportamento orientadas pela prática da virtude,
direcionam o homem em um progresso infinito do aproximar-se ao estado
de santidade.
Kant reconhece a enormidade dos obstáculos para que o renasci-
mento do caráter possa restaurar a disposição originária para o bem: “mas
se o homem estiver corrompido no fundamento das suas máximas, como
é possível que leve a cabo por suas próprias forças esta revolução e se faça
por si mesmo um homem bom?” (KANT, 2008, p. 56). Embora Kant des-
carte a existência de inatismo no tocante ao mal, a reforma moral do ho-
mem deve tratar do mal radical como uma tendência a ser devidamente
considerada e combatida com firmeza de caráter: “na formação moral da
inata disposição para o bem, não podemos partir de uma inocência que
nos seria natural, mas temos de começar pelo pressuposto de uma malig-
nidade no arbítrio (…) e começar por agir incessantemente contra ela”

216
(KANT, 2008, p. 60). O renascimento moral do homem, para Kant, está
subordinado a uma decisão voltada para o combate da malignidade no ar-
bítrio, mas é também um processo de aperfeiçoamento do caráter que ex-
pressa em si mesmo o finalismo divino de uma “humanidade agradável a
Deus”, pensada sob “a ideia de um homem que estaria pronto não só a
cumprir ele próprio todo o dever do homem e a difundir ao mesmo tempo
à sua volta, pela doutrina e pelo exemplo, o bem no maior âmbito possível,
mas também, tentado pelas maiores atrações, a tomar sobre si todos os
sofrimentos, até a morte mais ignominiosa, pelo bem do mundo e, inclu-
sive, de seus inimigos” (KANT, 2008, p. 70).
O finalismo divino, entendido como aperfeiçoamento progressivo
do caráter na direção da santidade, é, ao mesmo tempo, um objetivo infi-
nitamente distante do homem, motivo pelo qual Kant enumera as três
grandes dificuldades que se erguem para tal realização, e a solução para as
mesmas. Em primeiro lugar, sendo a santidade uma meta infinitamente
distante a ser atingida por homens largamente suscetíveis de recaídas no
mal radical, tal horizonte não pode ser alcançado em época alguma na his-
tória dos homens comuns. Kant soluciona o problema atentando para a
defasagem irredutível entre o ato e a santidade da lei, porém amenizando
tal deficiência pela valorização da intenção, ou disposição de ânimo, que
acompanha todo comportamento benevolente: “pelo que o homem, pese
à sua constante deficiência, pode esperar ser em geral agradável a Deus, seja
qual for o momento em que a sua existência se interrompa” (KANT, 2008,
p. 77). Em segundo lugar, por mais que esteja sinceramente imbuído da
persistência de um comportamento virtuoso animado pelo bem e pela as-
piração ao reino de Deus, o homem jamais pode ter certeza sobre o sucesso
de sua empreitada moral, pois “em nenhuma parte alguém se engana mais
facilmente do que naquilo que favorece a boa opinião acerca de si mesmo”
(KANT, 2008, p. 78). Para Kant, dada a impossibilidade de uma certeza

217
empírica sobre o sucesso da perfeição moral, o homem deve contentar-se
com a consolação de que a intenção boa e pura lhe proporciona a confiança,
porém jamais a certeza, de uma apreciação infalível de seu estado moral.
Em terceiro lugar, Kant expõe o que considera ser a maior dificuldade do
homem firmemente orientado para o bem perante a justiça divina. Esta
consiste na dívida irredutível, referente a suas faltas morais anteriores ao
momento de sua transformação rumo ao bem. As culpas antigas são exclu-
sivamente pessoais e intransferíveis, formando um conjunto de falhas mo-
rais irreparáveis, diante das quais “todo o homem teria de se sujeitar a um
castigo infinito e à exclusão do reino de Deus” (KANT, 2008, p. 83). A
solução encontrada por Kant para esse terceiro problema recorre à miseri-
córdia divina como recurso capaz de considerar as dívidas morais anteriores
quitadas mediante a firmeza do caráter voltado para a transformação moral
no sentido da realização do bem: “só é possível conceber uma absolvição
perante a justiça celeste para o homem carregado com a culpa sob o pres-
suposto da total mudança de coração” (KANT, 2008, p. 87).
O caráter virtuoso voltado para o aperfeiçoamento moral progres-
sivo assume vontade e comportamentos definidos essencialmente como
fins, jamais como instrumentos dirigidos por interesses pessoais. Seu fun-
damento é a fé pura ou beatificante, livremente baseada na pura disposição
do coração, e independente de pertencimentos eclesiais. Kant diferencia a
fé pura ou beatificante, que se sustenta nas qualidades intrínsecas do caráter,
da fé religiosa comum, que é habitualmente extorquida pelo temor ao cas-
tigo divino e implementada mediante cultos e orações esvaziadas de signi-
ficado autêntico, e comprometidas pela mesquinhez de uma esperança na
absolvição gratuita dos pecados, desassociada do esforço moral na direção
da reforma do caráter. A fé pura e racional fundamenta-se na obediência
ao imperativo moral que o homem prescreve a si próprio, e que não de-
pende do pertencimento eclesial, mas sim da reforma gradual e firme do

218
próprio caráter, orientado pela disposição de derrotar a inclinação para o
mal. Sendo a fé racional fundamentada em princípios autenticamente vol-
tados para o enaltecimento da vontade de Deus, os atos de benevolência e
compaixão são animados pelo dever racional e moral, e, portanto, desa-
companhados da esperança de recompensa futura, pois esta poderia reves-
tir a caridade de intenções instrumentais contrárias ao imperativo de tratar
os homens sempre como fins, nunca como meios.

Horkheimer e a teologia

Em seus escritos e entrevistas sobre teologia, Horkheimer apresenta


a definição mais sucinta sobre a concepção teológica comum a ele e a
Adorno. O pensamento de ambos os filósofos manteve-se fiel a uma con-
cepção da existência de Deus irredutível a qualificações positivas como jus-
tiça e bondade, pelo fato de que a natureza divina não pode ser traduzida
pela linguagem humana. Sob a perspectiva de uma teologia negativa, capaz
de predicar o que Deus não é, dada a impossibilidade de sua representação
positiva, cabe pensá-lo como Outro: “a afirmação da existência de um Deus
todo poderoso e infinitamente bom deveria transformar-se em esperança
[anelo] da existência de um ser todo poderoso e infinitamente bom, que
cuidará para que a injustiça cometida na história não permaneça à larga
como tal” (HORKHEIMER, 2000, p. 211). No discurso radiofônico Te-
ísmo-ateísmo, publicado em homenagem a Adorno no ano de 1967, a
crença na existência de Deus é problematizada dialeticamente por
Horkheimer, sob termos análogos ao primado da fé racional kantiana e sua
depreciação do alinhamento explícito a determinada igreja ou religião. As-
sim como Kant valoriza a firmeza do caráter voltado para o aperfeiçoa-
mento moral em detrimento da fé eclesial, Horkheimer denuncia o amor
e a caridade abstratas e baseadas unicamente no narcisismo instrumental

219
do crente. Para Horkheimer, a vontade autêntica voltada para a superação
da miséria, da fome e da injustiça, é mais concreta que “o discurso vazio
sobre os valores, sobre seu significado eterno e sobre o ser autêntico”
(HORKHEIMER, 2000, p. 86). À luz da consistência real e do alcance da
solidariedade, a oposição entre teísmo e ateísmo revela-se anacrônica e se-
cundária, pois é na “teoria de Marx e Engels, na psicanálise e naquelas obras
denominadas niilistas, que estão no Leste e no Ocidente nas listas negras e
suscitam a ira dos poderosos, como em outro tempo as provocadoras pala-
vras do Fundador para seus contemporâneos, não menos que em determi-
nados escritos teológicos, que adquiriu forma o pensamento de uma reali-
dade mais justa” (HORKHEIMER, 2000, p. 86). Por um lado, no passado
e em contextos totalitários, ateísmo significa independência interior de in-
descritível valor. Por outro lado, nos mesmos contextos totalitários, o te-
ísmo honrado é suficientemente determinado para que se qualifique a hi-
pocrisia daqueles que disseminam o ódio. “Se o teísmo toma a justiça
eterna como desculpa para a injustiça temporal, é tão mau como o ateísmo
que não deixa espaço para o pensamento de um Outro” (HORKHEIMER,
2000, p. 86). O tensionamento dialético entre teísmo e ateísmo, tanto
quanto a fé racional kantiana, expõem elementos fundamentais para uma
educação voltada contra a desbarbarização: “é esperançoso o esforço pelo
qual, no período de blocos de massas administradas, possam encontrar-se
ainda alguns homens que oponham resistência como as vítimas da história,
das quais forma parte o Fundador do cristianismo” (HORKHEIMER,
2000, p. 86). A atualidade do teísmo deriva do próprio ateísmo: “somente
os que em outro tempo usaram o ateísmo como injúria o entenderam
como o contrário da religião. Os afetados que o professaram quando a re-
ligião ainda possuía poder, identificam-se mais profundamente com o
mandato teísta, o amor ao próximo e à criatura como tal, que a maior parte

220
dos partidários e simpatizantes das confissões” (HORKHEIMER, 2000, p.
86-87).
O ponto de maior confluência entre as abordagens de Kant e de
Horkheimer sobre a teologia, e que torna o pensamento de ambos alta-
mente relevante para uma educação após Auschwitz, está na constatação de
que em ambos pensadores o horizonte teológico não se fundamenta em
uma afirmação pura e simplesmente positiva do Absoluto. Em Kant, o
fundamento para o restabelecimento da disposição originária para o bem
é a reforma do caráter, que prescinde do pertencimento eclesial. Em
Horkheimer, a base teológica é o comportamento genuinamente solidário
com o sofrimento humano universal, para o qual é pouco relevante a ati-
tude teísta ou ateísta em si mesma. Ao recusarem à religião tradicional
qualquer caráter afirmativo para seus conteúdos tradicionais, realçando a
autonomia individual e o compromisso com a universalidade da lei moral
(Kant), e com a esperança no inteiramente Outro (Horkheimer), os dois
filósofos apresentam os fundamentos para uma educação voltada contra o
mal de Auschwitz. Nos escritos de Kant sobre a religião, e de Hokheimer
sobre a teologia, sobressaem elementos muito importantes para que se
compreenda as implicações apontadas por Adorno para a desbarbarização
do mundo, no tocante a combater a inclinação arcaica para a violência, a
educação pela dureza e a frieza do caráter.
Se o aspecto sombrio de uma educação após Auschwitz remete ao
pano de fundo do mal como questão decisiva a ser enfrentada, as aborda-
gens de Kant e Horkheimer apresentam horizontes fecundos no tocante ao
tema adorniano da desbarbarização. As reflexões teológicas de Horkheimer
apresentam afinidades com o texto de Kant sobre religião, pois ambos fi-
lósofos denotam significativa oposição em relação aos contornos tradicio-
nais da fé religiosa. Kant assinala que o renascimento espiritual do homem,

221
voltado para o combate da malignidade no arbítrio, e consequente edifica-
ção de um caráter virtuoso dirigido ao aperfeiçoamento moral progressivo,
prescinde inteiramente da fé religiosa comum, caracterizada pelo medo,
comodismo espiritual e mesquinhez. Sua defesa de uma fé racional, ani-
mada pela benevolência e compaixão, e desassociada das esperanças de re-
compensa futura, é plenamente compatível com a autenticidade e despren-
dimento idealizados por Horkheimer, notadamente quando o ateísmo é
pensado em comunhão com o inteiramente Outro. Se o ponto de vista
teológico de Kant e Horkheimer for assumido como baliza reflexiva para
uma educação após Auschwitz, o conceito metafísico de sujeito deixa de ser
entendido como elemento ideológico de mascaramento da socialização
burguesa, podendo então ser compreendido como tradução autêntica do
pôr a si mesmo do sujeito.
À revelia da abordagem materialista de Adorno, porém de maneira
condizente com os potenciais teológicos da Teoria Crítica, o pôr a si
mesmo do sujeito prescinde de fundamentos materialistas e torna-se con-
dizente com o Barão de Münchhausen, pois este, em seu enigmático gesto
rigorosamente desafiador do mecanicismo das leis físicas, explicita a intei-
reza da alma que retira forças de si mesma para afirmar sua autonomia no
mundo. A obra teológica de Horkheimer corporifica um momento essen-
cial, atestador dos potenciais espirituais contra o fascismo. No texto Salmo
91, Horkheimer aponta a existência de uma dialética da fé, segundo a qual
um jovem progressista conhecedor dos processos psicológicos e sociológi-
cos que envolvem a fé em Deus, é perfeitamente capaz de reconhecer a
utilização da fé religiosa como justificativa maligna para massacres e injus-
tiças. Entretanto, sua própria capacidade de indignação e de rebelião pe-
rante esse tipo de manipulação em si mesma já pressupõe a mesma fé que
ele denuncia. O “amargo sarcasmo com que ele nega a plenitude reconhece

222
inconscientemente a nostalgia que é inseparável do paraíso” (HORKHEI-
MER, 2000, p. 107). Embora a impossibilidade de representação do Ab-
soluto permaneça como princípio fundamental da Teoria Crítica,
Horkheimer integra a doutrina judaica do reino messiânico e a doutrina
cristã da alma individual autônoma, como testemunhos de redenção e de
realização da justiça sobre a terra (HORKHEIMER, 2000, p. 108). Fun-
damentando-se em passagens das Lições sobre estética de Hegel, para alicer-
çar sua confiança no Salmo bíblico, Horkheimer prioriza a teologia como
esfera essencial, em detrimento de sua confiança materialista do passado:
“nada no mundo deve pretender a autonomia, pois tudo é e se mantém
somente pelo poder de Deus, e está aí para servir de alavanca a seu poder”
(HEGEL apud Horkheimer, 2000, p. 109).
A análise de Horkheimer sobre o salmo 91 é fundamentada igual-
mente em Kant, pois os mandamentos morais são momentos da razão prá-
tica inatos e universais, razão pela qual o imperativo categórico torna-se
conceito problemático caso seja despojado da fé em Deus: “quem toma
como necessária e verdadeira a exigência de tratar o outro nunca apenas
como meio, mas sempre como fim, máxima desde a qual Kant, posto ser
inata no homem, postula a ideia do indivíduo autônomo e do Deus justo,
esse não rechaçará a confiança proclamada no salmo como arbitrariedade”
(HORKHEIMER, 2000, p. 109). Horkheimer esclarece que o pensa-
mento de refúgio sob as asas de Deus, tal como expressado no Salmo 91,
contém, para além da simples racionalidade categórica, obediência e amor
que conferem sentido à vida e ao sofrimento: “Te cobrirás com suas plumas,
sob suas asas...” (HORKHEIMER, 2000, p. 109). A análise de Horkhei-
mer acerca dessa passagem bíblica é essencial para a compreensão de seus
textos teológicos, pois tem caráter biográfico. O filósofo relata o brilho dos
olhos de sua mãe quando recitava o texto, e expõe a importância dessa

223
recordação da infância para a formação de sua personalidade adulta. A es-
perança de felicidade infinita, de entrega real à bondade de Deus, torna-se
o fundamento da autonomia individual e da possibilidade de sobrevivência
digna em um mundo perpassado pela barbárie: “de outro modo não pode-
ria manter-se o pensamento de que há que se conformar com o mundo do
horror” (HORKHEIMER, 2000, p. 110).

Mal, tragédia humana e esperança

O pressuposto hegeliano do Absoluto como sujeito, vale dizer,


como vir-a-ser de si mesmo que se realiza na história, impede a formulação
de qualquer tipo de universalidade abstrata que contenha uma lei moral
transcendente de caráter formal e puro, despida de conteúdo. Assim, se a
realização do conteúdo é dimensão inseparável e substancial do dever, os
dilemas morais do homem singular finito somente podem ser confronta-
dos com o próprio movimento do Espírito, personificado na humanidade
histórica. No âmbito da moralidade, a dialética do senhor e do escravo
assume a forma da oposição entre a boa consciência, que na certeza imedi-
ata de si mesma, adota o dever puro como guia infalível, e a consciência
pecadora, que se sabe finita, e cujo agir é atravessado pelo engajamento nas
limitações do mundo sensível. A oposição entre as duas formas de consci-
ência explicita a cisão do espírito, entre a universalidade da lei moral e a
dimensão finita e imperfeita do homem particular. O antagonismo entre a
consciência moral e a consciência pecadora na filosofia de Hegel, não tem
como palco o solipsismo kantiano, em que o homem singular se vê con-
frontado com o imperativo moral abstrato, pois tal como na dialética do
senhor e do escravo, esse conflito é atravessado pela imanência da comuni-
dade das consciências de si em mútuo reconhecimento: “assim como a

224
consciência do senhor se revela como uma consciência escrava que se ig-
nora, ou a consciência nobre acaba se descobrindo como uma consciência
baixa, também aqui a consciência universal, sob a forma da consciência
judicante, vai se descobrir para nós como idêntica à consciência pecadora
que ela pretende julgar” (HYPPOLITE, 1999, p. 549). O confronto mú-
tuo entre as duas formas de consciência encaminha uma nova etapa da
superação do espírito na direção da consciência de si, pois ao se verem es-
pelhadas uma na outra, ambas reconhecem sua incompletude. Por um lado,
a consciência pecadora deve reconhecer os erros de seu engajamento passi-
onal no mundo; por outro lado, a bela alma deve romper seu isolamento e
reconciliar-se com o mundo. A superação dialética da oposição entre as
duas formas de consciência é realizada no interior da comunidade das cons-
ciências de si, de tal maneira que o infinito deixa de habitar a transcendên-
cia abstrata da lei moral, sendo explicitado na imanência da própria fini-
tude: “o espírito finito não é um aquém, ele supera a si mesmo, atraído
constantemente rumo à sua transcendência, e tal superação é a cura possí-
vel de sua finitude” (HYPPOLITE, 1999, p. 553).
Se a contradição dialética pressuposta no sistema hegeliano indica
o antagonismo irredutível entre a realidade corporificada do espírito hu-
mano e suas demandas de perfeição e liberdade, e se, ao mesmo tempo, a
consciência humana é veículo da vida espiritual do absoluto, então o mal
diz respeito não somente ao sofrimento dos homens, uma vez que à tragé-
dia do mundo corresponde igualmente o sofrimento do ser divino. A opo-
sição das consciências no interior da comunidade humana representa o
solo imanente em que o mal, entendido como momento temporário de
alienação do espírito, pode ser superado mediante o exercício mútuo do
reconhecimento de si mesmo pela mediação do Outro. Porém, conforme
abordamos, se a atmosfera fascista alimenta-se da perpetuação da cegueira
emocional que impede o estranhamento do sujeito em relação a si próprio,

225
isso significa que o fascismo paralisa a dialética do reconhecimento entre
as consciências, e o próprio desenvolvimento da consciência de si na histó-
ria. Não será exagerado dizer que o mal radical do fascismo é contrário não
somente à vida em seu sentido biológico, mas também antagônico à vida
do espírito. Por outro lado, se ao mesmo tempo, o espírito humano finito
jamais poderá deixar de ser veículo da consciência de si do Geist, e como
tal é irredutivelmente atraído pela cura de sua finitude e imperfeição, então
é justo que a definição hegeliana seja confrontada com a constatação dolo-
rosa de Adorno, no sentido de que, diante de Auschwitz, os homens perde-
ram as qualidades que até então permitiam à morte ser um fato suportável:
“a morte nos campos de concentração tem um novo horror: desde Aus-
chwitz, temer a morte significa temer algo pior que a morte” (ADORNO,
2009, p. 306). Ao se referir à teologia negativa como anelo da esperança
de redenção, Horkheimer expressou-se de maneira correspondentemente
trágica, acentuando a consciência do abandono e a impossibilidade de afir-
mação da existência de Deus: “Nós não podemos provar a existência de
Deus. A consciência de nosso abandono, de nossa finitude, não é nenhuma
prova para a existência de Deus. Ela pode somente suscitar a esperança de
que exista um Absoluto” (HORKHEIMER, 2000, p. 166).
O paradoxo entre a certeza de que o espírito finito humano está
destinado à cura de sua finitude, e a consciência do abandono dos homens
aos sofrimentos inenarráveis da barbárie fascista, requer considerar que,
mesmo ao atingir níveis insuportáveis de coisificação e sofrimento, o mal
não deixa de representar um momento no desenvolvimento da consciência
infeliz. Embora Horkheimer considere o sofrimento do mundo como mo-
tivo suficiente para a consciência de que a finitude seja um universo aban-
donado por Deus, esse tema encontrou no pensamento de Pascal um apon-
tamento teológico relevante. Para o filósofo, o mundo humano é suficien-

226
temente repleto de baixezas morais para que, mesmo sob a humildade apa-
rente, muitos homens dediquem-se a ostentar a sua própria presunção ao
requerer de Deus demonstrações inequívocas de sua existência. Segundo
Pascal, dada a corrupção da natureza humana, é tão insuficiente e perigoso
que um homem conheça a Deus sem ter consciência de sua própria miséria,
assim como conhecer a própria miséria sem conhecer a Deus. “Um só des-
ses conhecimentos faz, ou a soberba dos filósofos, que conheceram a Deus
e não a sua miséria, ou o desespero dos ateus, que conhecem a sua miséria
sem o Redentor” (PASCAL, 2015, p. 74). O abandono é ilusão correspon-
dente a corações e mentes endurecidos para os quais o modo manifesta-
mente divino de aparecer permanece inacessível. Por esse motivo, afirma
Pascal, “há bastante luz para aqueles que não desejam senão ver e bastante
obscuridade para aqueles que têm uma disposição contrária” (PASCAL,
2015, p. 87).

Educação e liberdade radical do espírito

O contraste entre o pessimismo trágico de Horkheimer e a formu-


lação teológica de Pascal, pode ser compreendido se considerarmos as im-
plicações teleológicas da filosofia de Hegel. Se para Aristóteles o finalismo
divino consistia na imitação da perfeição do Primeiro Motor Imóvel, para
Hegel, ao pôr o mundo como sua corporificação, o Espírito está fundado
na liberdade radical e na necessidade racional. A liberdade radical do Geist,
seu finalismo essencial, consiste em “ter como alvo básico simplesmente
que esse espírito ou essa subjetividade racional exista” (TAYLOR, 2014, p.
119). Toda a corporificação do Espírito, sob a forma da natureza inani-
mada, da flora, da fauna e dos espíritos humanos, é realização de um pro-
jeto racional e necessário em que todas as suas manifestações confluem para

227
o objetivo maior da existência da subjetividade racional e radicalmente li-
vre: “tudo isso é necessário, para que haja uma subjetividade que conhece
a si mesma racionalmente, isto é, que tem consciência conceitual de si
mesma” (TAYLOR, 2014, p. 119). A existência da subjetividade racional
radicalmente livre, corporificada em seres racionais finitos, manifesta a
substância do finalismo hegeliano, pois somente sendo livre e racional é
que ela pode se realizar como consciência de si do Espírito.
A liberdade radical como substância espiritual é a qualidade intrín-
seca do ser, que permite compreender da forma mais ampla possível a exis-
tência do mal em suas diversas modalidades históricas, e não há motivos
suficientes para excluir o nazifascismo do processo de desenvolvimento da
consciência de si na história. A resposta de Leibniz ao conjunto de provo-
cações céticas formuladas por Pierre Bayle, é um argumento suficiente-
mente lúcido para explanar esse problema em suas implicações mais pro-
fundas. Em sua Teodiceia, Leibniz expõe o seguinte argumento, proposto
por Bayle: um ser infinitamente bom não deveria conceder a suas criaturas
o livre-arbítrio, pois sabe que essa faculdade pode mergulhar a vida em
uma sucessão de desgraças. Leibniz responde que, no melhor dos mundos
possíveis, em que deve existir não somente espíritos, mas também matéria,
movimentos e leis fixas, a não existência do livre arbítrio impossibilitaria a
existência mesma de seres racionais. Para que as criaturas fossem perma-
nentemente beatíficas, seria necessária a perpétua intervenção milagrosa de
Deus, e um mundo de milagres perpétuos seria irracional. Podemos acres-
centar que, em um mundo assim, a própria realização do Espírito como
sujeito seria impossível, pois os espíritos humanos não seriam elevados à
dignidade de serem veículos da consciência de si do próprio Absoluto. Se-
guindo a tradição metafísica de explicação do mal como estado contin-
gente de privação do espírito, Leibniz pensa o mal moral a partir da im-
perfeição intrínseca da criatura humana. O mundo em que seres espirituais

228
finitos são racionais e dotados de uma subjetividade livre, capaz de lhes
elevar às alturas da infinidade, mas igualmente capaz de lhes rebaixar à
contingência da catástrofe do holocausto, ainda assim é o melhor dos mun-
dos possíveis, pois é somente nele que a bondade pode prosperar, mesmo
em meio à imperfeição. Todos os males originados pelo exercício da liber-
dade radical do espírito são compensados pela existência da liberdade e da
razão como finalismo da existência. Para ilustrar de maneira perfeita a re-
lação entre a perfeição e onipotência de Deus e a presença do mal no
mundo, Leibniz apresenta uma metáfora bastante significativa:

Admitamos que a corrente de um mesmo rio leva consigo muitos bar-


cos que não diferem entre si senão pela carga, uns estando carregados
de madeira, outros de pedra, e uns mais, outros menos. Sendo assim,
acontecerá que os barcos mais carregados seguirão mais lentamente que
os outros, desde que se suponha que o vento, ou o remo, ou algum
outro meio semelhante não os ajude. (…) E, por conseguinte, visto que
há mais matéria movida pela mesma força da corrente quando o barco
está mais carregado, é preciso que ele siga mais lentamente. (…) Com-
paremos agora a força que a corrente exerce sobre os barcos com a ação
de Deus que produz e conserva o que há de positivo nas criaturas, e
lhes dá a perfeição do ser e da força. (…) A corrente é a causa do mo-
vimento do barco, mas não de seu retardamento; Deus é a causa da
perfeição na natureza e nas ações da criatura, mas a limitação na recep-
tividade da criatura é a causa dos defeitos existentes na sua ação. (…)
A corrente do rio é a causa da velocidade do barco, sem ser a causa das
limitações dessa velocidade. E Deus é tão pouco a causa do pecado
quanto a corrente do rio é a causa do retardamento do barco (LEIBNIZ,
2017, p. 153-154).

Se a contradição dialética fundamental que perpassa a existência


humana se traduz no antagonismo entre a finitude biológica do corpo e as
demandas espirituais de perfeição, liberdade e racionalidade, isso implica

229
que o processo educativo e formativo é a própria substância mediante a
qual o espírito humano pode realizar a consciência de si: “visando desem-
penhar o seu papel na superação da oposição do mundo ao Geist, os seres
humanos devem educar a si mesmos, tornar-se capazes de usar a razão,
abandonar a vida imersa na natureza e dominada pelo impulso, ir além de
suas perspectivas acanhadas e imediatas rumo à perspectiva da razão” (TAY-
LOR, 2014, p. 130). Por outro lado, se ao mesmo tempo em que os ho-
mens devem se entregar ao cultivo de si mesmos, para se realizarem como
veículos do Espírito, o espírito é substancialmente perpassado pela liber-
dade radical, isso significa que a autoformação espiritual deve ser entendida
em sentido literal, implicando que a realização da razão é uma tarefa in-
transferível de cada ser humano na relação consigo mesmo. O gesto do
Barão de Münchhausen permanece emblemático para a compreensão mais
precisa da dialética do sujeito, apontando que, mesmo em meio aos impe-
rativos instrumentais da vida reificada, os potenciais irredutíveis do pôr a
si mesmo do sujeito permanecem historicamente atuais e metafisicamente
eternos.

230
Considerações finais
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Ao longo do desenvolvimento desta tese acadêmica, procuramos


argumentar que em virtude da impossibilidade de uma demonstração con-
vincente da superioridade do método materialista em relação à metafísica,
a análise de Adorno assume conotações tão especulativas quando mobiliza
o conceito de reificação, quanto a metafísica ao enunciar o finalismo divino
e a imortalidade da alma. As diversas formas de idealismo metafísico ges-
tadas na história da filosofia encontraram um fundamento sólido em prin-
cípios ontológicos externos à sequência de eventos contingentes próprios à
causalidade mecânica. Na interpretação de Adorno, o materialismo dialé-
tico encontra justificativas suficientes para se opor à ontologia, mediante
um trajeto que não passa pela apresentação do trabalho como fundamento
de uma ontologia social, mas pela dissolução da própria esfera ontológica.
Adorno argumenta que “não há nada no mundo que não apareça pelo tra-
balho e apenas por meio dele” (ADORNO, 2013a, p. 101), o que significa
que as contradições materiais são uma referência suficientemente explica-
tiva não somente da estrutura da sociedade, mas também da própria filo-
sofia, uma vez que os idealismos modernos seriam perfeitamente explicá-
veis por meio de giros copernicanos. Contrariamente a Adorno, argumen-
tamos que a deficiência do materialismo dialético para se justificar como
paradigma antimetafísico no campo filosófico, está em sua incapacidade
de apresentar justificativas sólidas para a suposta interferência dos fatores
materiais como esfera de mediação no campo espiritual. Essa fragilidade é
explicitada na impossibilidade de uma demonstração de natureza especu-
lativa da teoria da reificação, originalmente formulada por Lukács, e larga-
mente empregada por Adorno, não somente no campo da sociologia, mas

231
também em suas reflexões filosóficas antiidealistas. Conforme argumenta-
mos nesta tese acadêmica, a única demonstração da origem materialista da
coisificação do espírito é a existência do próprio espírito reificado, o que
equivale a pensar que o materialismo é constrangido a se apresentar com
as roupagens metafísicas da causa sui.
Embora Adorno renuncie a explicar os fundamentos do ser a partir
de substratos fixos, por entender que estes representariam meras tentativas
evasivas de sublimação da metafísica, é forçoso reconhecer que o emprego
da categoria trabalho como fundamento explicativo da consciência não
deixa de sugerir uma espécie de mimetização do estilo metafísico de com-
preensão do ser. Em outras palavras, mesmo quando a reflexão filosófica
intenta escapar aos parâmetros metafísicos de reflexão, e sob pretextos ma-
terialistas alega o alcance de uma compreensão concreta da realidade, o
estilo especulativo originalmente adotado pela metafísica permanece sendo
um pressuposto irredutível do pensamento. Mesmo que a crítica da eco-
nomia política de Marx e Engels tenha demonstrado objetivamente a exis-
tência de contradições materiais na base de funcionamento do capitalismo,
quando se almeja explicar os fenômenos do espírito sob parâmetros mate-
rialistas, as equações da mais-valia tornam-se obsoletas. Para demonstrar a
insuficiência da categoria trabalho como argumento central do primado
materialista na dialética adorniana, não é preciso argumentar que a ativi-
dade mecânica de transformação da natureza está inserida de maneira irre-
dutível em uma sequência causal eficiente, que Leibniz demonstrou esten-
der-se ao infinito. Pois basta considerar os próprios termos empregados por
Adorno para explicar a dinâmica de funcionamento do fascismo. Mesmo
que nosso filósofo compreenda o fenômeno do fascismo como resultado
de um processo de reificação materialmente determinado, seus critérios ex-
plicativos da barbárie fascista remetem à natureza emocional do sujeito: o
fascismo é uma hipnose socializada, em última instância apoiada em uma

232
encenação farsesca, denominada impostura. O materialismo dialético se
revela insuficiente para explicar por que um ser humano mobiliza grandes
quantidades de energia para se manter sob a condição espiritualmente des-
prezível de um inseto. De maneira análoga, a possível superação dessa con-
dição, mediante uma afirmação dissonante do sujeito frente à coisificação,
requer o emprego do conceito dialético de negação determinada, nos ter-
mos originalmente empregados por Hegel:

segundo o resultado mais durável da lógica hegeliana, ele [o existente


singular] não é pura e simplesmente por si, mas é em si seu outro e está
ligado a um outro. Aquilo que é, é mais do que ele é. Esse mais não lhe
é anexado de fora, mas permanece imanente a ele enquanto aquilo que
é reprimido. Nessa medida, o não-idêntico constituiria a própria iden-
tidade da coisa em face de suas identificações (ADORNO, 2009, p.
140).

Mesmo que Adorno apresente argumentos numerosos e muito


bem encadeados para justificar sua confiança integral na capacidade da di-
alética materialista de explicar o nazifascismo sobretudo como efeito sub-
jetivo de fatores materialmente determinados, ao discorrer sobre os desa-
fios próprios a uma educação direcionada para a desbarbarização, seus lei-
tores são expostos à existência de aspectos sombrios relacionados a Aus-
chwitz. Na medida em que a própria análise de Adorno sobre o fascismo
aponta para elementos de natureza espiritual que não podem ser simples-
mente reduzidos a epifenômenos materiais, neste trabalho acadêmico pro-
curamos demonstrar que o fascismo somente pode ser adequadamente
compreendido em sua conexão com o tema metafísico do mal, sobretudo
sob parâmetros relacionados com o idealismo de Hegel. Almejando que

233
essa hipótese teórica tenha sido suficientemente demonstrada, encaminha-
mos em seguida algumas questões de natureza razoavelmente conclusiva
sobre o tema.

O materialismo como momento de dilaceração da consciência infeliz

Adorno justifica sua empreitada materialista envolvida na elabora-


ção de uma dialética negativa constituída à altura de fazer justiça ao não-
idêntico, porém é metodologicamente discutível se seria necessária a for-
mulação de uma dialética materialista para pôr em relevo momentos críti-
cos e negativos da razão em grande medida já presentes no idealismo de
Hegel. Conforme propomos neste trabalho acadêmico, sob termos origi-
nariamente hegelianos, na medida em que o fascismo pressupõe uma at-
mosfera relacional instauradora da coisificação, e, portanto, bloqueadora
da possibilidade de reconhecimento entre as consciências humanas, isso
significa que o fascismo configura-se como mal radical, pois neutraliza na
raiz o movimento dialético da autoconsciência. O fascismo impede que o
unheimlich seja reconhecido como estranho e familiar ao sujeito, perpetu-
ando uma cegueira emocional que não é apenas produto das mediações
materiais, posto ser constituída pelo movimento do espírito no mundo. O
reconhecimento do diferente em si mesmo, pela mediação necessária do
Outro, expõe o finalismo metafísico do desejo, que é travado pelo ressen-
timento que caracteriza o fascismo. Adorno destaca essa necessidade de au-
toconsciência ao referir-se ao recolhimento doentio do jitterbug como uma
tendência ao mesmo tempo próxima e distante de sua superação: “as atuais
reações das massas são bem pouco veladas da consciência. O paradoxo da
situação é que é quase insuperavelmente difícil romper esse fino véu”
(ADORNO, 1986, p. 146). No texto em que analisa as peculiaridades da
propaganda fascista a partir de conceitos freudianos, Adorno apresenta

234
uma conclusão similar, advertindo sobre a necessidade de despertar as pes-
soas “que mantêm seus olhos fechados embora não estejam mais dormindo”
(ADORNO, 2015, p. 189). O teor solipsista atribuído ao narcisismo do-
entio alimentado pelo fascismo, aproxima a análise de Adorno do percurso
idealista hegeliano associado à autoconsciência como finalismo do espírito.
Quando se considera essa afinidade da análise de Adorno sobre o fascismo
com o idealismo de Hegel, o gesto do Barão de Müncchausen permanece
emblemático como ilustração dos potenciais irredutíveis do pôr a si mesmo
do sujeito como ato de resistência à reificação do espírito.
Uma vez que o trajeto descrito pela fenomenologia do Espírito re-
presenta as etapas de formação da consciência de si para atingir seu fina-
lismo essencial, que consiste em compreender-se como veículo do Geist, e
portanto como expressão da verdade do mundo, cabe pensar um pouco
mais sobre os motivos que animam o materialismo dialético a solapar o
Absoluto como fundamento da razão. Assim como o materialismo dialé-
tico pretende ser o portador de uma verdade derradeira acerca da falsidade
objetiva da metafísica, reduzindo-a a reflexo distorcido das determinações
materiais, não será ocioso inverter essa perspectiva e indagar acerca do sig-
nificado do materialismo como um dos momentos de dilaceramento da
própria consciência infeliz. A consciência infeliz é o tema essencial da ex-
periência histórica, ela é “subjetividade erigida em verdade, mas tal subje-
tividade deve descobrir sua própria insuficiência, experimentar a dor do Si
que não chega à unidade consigo mesmo” (HYPPOLITE, 1999, p. 205).
A experiência histórica da consciência infeliz nas diversas etapas de seu de-
senvolvimento, representa uma negação determinada, e, ao mesmo tempo,
uma nova posição suprassumida em relação aos conteúdos antecedentes. A
menos que se pretenda assumir o materialismo dialético em suas proposi-
ções críticas à metafísica, como última etapa do conhecimento filosófico,

235
a dialética materialista fica sujeita a ser interpretada como um dos momen-
tos, e de forma alguma o definitivo, do desenvolvimento da fenomenologia
do Espírito: “ora, se é verdade que toda posição determinada é uma nega-
ção (‘omnis determinatio est negatio’), não é menos verdade que toda nega-
ção determinada seja uma posição” (HYPPOLITE, 1999, p. 30). Nesse
sentido, se a teoria da reificação se mostrou incapaz de justificar seus parâ-
metros materialistas de maneira satisfatória no campo filosófico, é relevante
pensá-la como momento da fenomenologia do Espírito em que a consci-
ência infeliz põe para fora de si o resultado de seu próprio movimento.
Para Adorno, a qualidade fundamental do sistema filosófico de He-
gel está em se constituir em idealismo antagonicamente constituído contra
a metafísica tradicional. Ao caracterizar o Espírito como sujeito, a dialética
assume conteúdo e forma radicalmente críticos em relação às pretensões
ontológicas tradicionais de constituir uma filosofia primeira enrijecida.
Quando o Absoluto é resultado, e não Motor Imóvel, a verdade passa a ser
entendida simultaneamente como processo antagônico, e também como
resultado desse mesmo processo. A mediação dialética converte-se então
em momento do devir necessariamente posto de todo ser: “se a dialética é
a filosofia da mediação universal, então isso equivale a que, em realidade,
não há ser que não se converta, ao mesmo tempo, quando se procura de-
terminá-lo como tal, em um devir” (ADORNO, 2013b, p. 60). Quando
o materialismo dialético decreta a nulidade do idealismo, esse movimento
equivale a mais um dos momentos em que a consciência infeliz aprofunda
sua própria duplicação entre a elevação que lhe permite saber-se parte in-
separável da vida do Absoluto, e o rebaixamento às contingências do
mundo finito. Quando a filosofia se declara viva porque perdeu o instante
de sua realização, ela ao mesmo tempo testemunha, de uma forma que
necessita tornar-se transparente para si mesma, o conteúdo histórico de sua

236
dilaceração diante da catástrofe nazifascista. Anunciar o cativeiro do espí-
rito em favor das determinações materiais, equivale a momento de abstra-
ção da consciência infeliz, quando esta necessita pôr para fora de si o resul-
tado de seu próprio movimento. O materialismo dialético, e em particular
a teoria da reificação e a dialética negativa de Adorno, testemunham ins-
tantes fundamentais da inquietude da consciência que permanece presa às
oscilações de um incessante ceticismo. Não é outra a natureza intrínseca
do trajeto do Espírito na história:

A consciência nada sabe, nada concebe, que não esteja em sua experi-
ência, pois o que está na experiência é só a substância espiritual, e em
verdade, como objeto de seu próprio Si. O espírito, porém, torna-se
objeto, pois é esse movimento de tornar-se um Outro – isto é, objeto de
seu Si – e de suprassumir esse ser-outro. Experiência é justamente o
nome desse movimento em que o imediato, o não-experimentado, ou
seja, o abstrato – quer do sensível, quer do Simples apenas pensado –
se aliena e depois retorna a si dessa alienação; e por isso – como é também
propriedade da consciência – somente então é exposto em sua efetivi-
dade e verdade (HEGEL, 2002, p. 46).

Pensar o materialismo dialético adotado por Adorno como mo-


mento de dilaceração da consciência de si, é algo que pode ser adequada-
mente compreendido se considerarmos que o materialismo da Teoria Crí-
tica em grande medida é um dos mais importantes resultados do próprio
movimento de secularização da razão produzido pelo esclarecimento.
Quando a razão é despojada de seus fundamentos metafísicos, ela é forma-
lizada e convertida em simples instrumento de conhecimento do mundo,
porém incapacitada como agente ético capaz de estabelecer princípios uni-
versais de julgamento crítico. Horkheimer apontou com precisão as impli-
cações devastadoras da secularização e instrumentalização da razão: “quais

237
são as consequências da formalização da razão? Justiça, igualdade, felici-
dade, tolerância: todos os conceitos, que, como mencionado, supunham-
se, nos séculos passados, inerentes à razão ou por ela sancionados, perde-
ram suas raízes intelectuais” (2015, p. 32). Conforme desenvolvimento
mais detalhado no item seguinte, tais consequências nefastas decorrem do
declínio da metafísica como estrutura abrangente e fundamental do ser. A
esse respeito, vale lembrar a imagem que se tornou clássica para a filosofia
ocidental, em que Descartes qualifica a metafísica como raiz da árvore fi-
losófica, dada sua capacidade de explicar os atributos de Deus e da imor-
talidade da alma (DESCARTES, s/d, p. 21-22). Para o filósofo moderno,
o critério de confiabilidade da razão somente pode ser estabelecido de ma-
neira sólida pelo conceito de alma como manifestação necessária do inte-
lecto infinito de Deus. É a partir da prova ontológica da existência de Deus
como causa de si, cuja existência não pode ser separada de sua própria es-
sência, e também da própria perfeição de Deus, que é possível atestar a
confiabilidade da instância racional, sua qualidade de estabelecer a corres-
pondência entre a certeza subjetiva e a verdade acerca do real. O alcance
da proposição cartesiana como fundamentação da capacidade humana de
conhecer o mundo mediante a razão, pode ser devidamente avaliado
quando se leva em consideração que o argumento da existência de Deus
como fundamento da razão representa a derrota definitiva da ideia de exis-
tência de um gênio maligno que seria capaz de corroer, mediante o engano
absoluto, a possibilidade do homem confiar plenamente na razão. A garan-
tia da confiabilidade das faculdades racionais somente pode ser atestada
pela prova ontológica da existência de Deus, pois apenas assim é possível
excluir a possibilidade de que a razão possa estar estruturalmente compro-
metida: “o Deus criador impede que se considere que a criatura seja porta-
dora de um princípio dissolutório dentro de si ou que suas faculdades não
estejam em condições de cumprir suas funções” (REALE; ANTISERI,

238
1990, v. 2, p. 373). A concepção da razão como alicerce de toda objetivi-
dade possível, diretamente fundamentada na existência de Deus, estende-
se ao idealismo hegeliano: “a filosofia demonstrou através de sua reflexão
especulativa que a Razão – esta palavra só poderá ser aceita aqui sem maior
exame de sua relação com Deus – é ao mesmo tempo substância e poder
infinito, que ela é em si o material infinito de toda vida natural e espiritual
e também é a forma infinita, a realização de si como conteúdo” (HEGEL,
2001, p. 53). Embora nessa passagem Hegel não se dê ao trabalho de ex-
plicitar o caráter objetivo da relação entre a razão e Deus, é possível apre-
sentar, em favor do argumento aqui exposto, a mais substancial demons-
tração da existência de Deus, formulada por Anselmo de Aosta no século
IX, exclusivamente a partir do funcionamento interno do espírito:

Certamente, aquilo de que não se pode pensar nada de maior não pode
estar só no intelecto. Porque, se estivesse só no intelecto, poder-se-ia
pensar que estivesse também na realidade, ou seja, que fosse maior. Se,
portanto, aquilo de que não se pode pensar nada de maior está só no
intelecto, aquilo de que não se pode pensar nada de maior é, ao con-
trário, aquilo de que se pode pensar algo de maior. Mas certamente isso
é impossível. Portanto, não há dúvida de que aquilo de que não se pode
pensar nada de maior existe tanto no intelecto quanto na realidade
(ABBAGNANO, 2000, p. 263).

Quando não pode recorrer ao argumento metafísico da substância


divina como fundamento da razão, o pensamento filosófico se vê refém da
causalidade mecânica, vale dizer, a uma sequência infinita de causas con-
tingentes que impossibilitam a formulação de um princípio absolutamente
necessário que justifique a confiança humana na razão. Diante da impos-
sibilidade de encontrar um fundamento externo à sequência infinita de
causas contingentes do mundo empírico, a razão fica exposta ao risco de se
apresentar como causa sui, causa de si mesma, fundamento que somente

239
não se torna problemático quando atribuído a Deus. Apresentar-se como
causa de si mesma expõe a razão a uma confiança puramente dogmática, e,
portanto, irracional. Conforme abordamos anteriormente, Adorno sub-
mete o idealismo a um giro copernicano que instala a reificação como com-
ponente de origem material previamente comprometedor do idealismo,
pois, para o filósofo, todo a priori idealista é em si mesmo a posteriori, vale
dizer, efeito reflexo do trabalho humano. Entretanto, Adorno apresenta o
argumento da reificação sob termos tão especulativos quanto aqueles do
idealismo, uma vez que o materialismo dialético é estruturalmente incapa-
citado para apresentar fundamentos filosoficamente legítimos. Impossibi-
litado de recorrer à metafísica para justificar suas próprias bases racionais,
o materialismo dialético se apresenta como causa sui, causa de si mesmo
que se torna tão dependente de um assentimento dogmático quanto os
irracionalismos aos quais pretende se opor.
Se o materialismo dialético se revela incapaz de justificar funda-
mentos racionais que não sejam emprestados da metafísica que ele critica,
e se, de acordo com Hegel, a desigualdade que se estabelece no interior da
própria consciência é a contradição do espírito consigo mesmo, o materi-
alismo é uma abstração que impede à consciência compreender que os fa-
tores de seu sofrimento resultam da própria atividade do espírito: “de fato
aquilo que Hegel quer aqui descrever é a educação da consciência de si, o
aprofundamento da subjetividade reconduzindo à consciência do ser”
(HYPPOLITE, 1999, p. 211). Tal educação da consciência de si requer,
no que se refere ao materialismo dialético, compreender por que foi neces-
sário que o conhecimento imprescindível das contradições materiais do ca-
pitalismo moderno, proporcionado pela crítica da economia política, al-
mejasse certo tipo de abstração tão contrária à sua efetividade e verdade. O
aspecto essencial a ser desvelado pela própria consciência, consiste em es-
clarecer como o fenômeno da coisificação, adequadamente denominado

240
por Adorno como vida danificada, pôde ser entendido abstratamente como
resultante da circulação das mercadorias no mercado e não em sua dimen-
são concreta, vale dizer, como resultado de uma coisificação e de uma frieza
dos próprios espíritos humanos. A tal processo de educação da consciência,
será parte integrante e essencial compreender que a interpretação materia-
lista abstrai da análise dos processos materiais da sociedade, certas justifi-
cativas que são inseparáveis de um movimento em que sua atividade per-
manece oculta a si mesma.
Se nos permitirmos uma interpretação do capitalismo tardio intei-
ramente antagônica àquela que é própria ao pensamento de Adorno, talvez
seja possível compreender a inverdade do materialismo dialético. No texto
Progresso, Adorno resume a contradição retumbante do mundo contempo-
râneo entre o elevado grau de desenvolvimento tecnológico e superprodu-
tivo e a predominância das condições sociais de miséria material:

a penúria material, que, durante tanto tempo, pareceu zombar do pro-


gresso, está potencialmente afastada: tendo-se em conta o nível alcan-
çado pelas forças produtivas técnicas, ninguém mais deveria padecer de
fome sobre a face da terra. Que continuem ou não a escassez e a opres-
são – ambas são a mesma coisa – dependerá exclusivamente de que se
evite a catástrofe mediante a organização racional da sociedade total,
como humanidade (ADORNO, 1995b, p. 38).

No texto Teoria da semiformação, o filósofo expõe um argumento


análogo, relativo à defasagem entre o progresso técnico e a formação espi-
ritual: “na verdade, o progresso evidente, a elevação geral do nível de vida
com o desenvolvimento das forças produtivas materiais não se manifesta
nas coisas espirituais com efeito benéfico (ADORNO, 2010, p. 27). Em
uma leitura dialético-hegeliana dessas duas citações de Adorno, é forçoso
reconhecer que a ausência de correspondência entre o desenvolvimento

241
técnico e produtivo e o progresso humanitário e espiritual é perfeitamente
explicável pela simples constatação de que as mediações materiais não são
suficientes para explicar o estado de barbárie no mundo contemporâneo.
Pelo contrário, se a realidade fosse determinada sobretudo pelas mediações
materiais, dado o grau de progresso técnico e a quantidade de riqueza ma-
terial alcançada, a mais prosaica consideração dos interesses materiais de
autoconservação obrigaria a humanidade a uma condição de paz em que a
fome fosse superada e o progresso formativo do espírito se tornasse um
imperativo no campo da educação. Assim, é justamente porque a coisifica-
ção é um fenômeno relacionado com o desacordo da consciência de si
frente a sua substância como veículo de realização do finalismo divino, que
o desenvolvimento das condições materiais não é afim com o progresso
humanitário. É possível pensar que, em um mundo no qual os homens
perseguissem seus próprios interesses econômicos, talvez a própria miséria
material não tivesse oportunidade de existir, uma vez que os problemas
sociais gerados pelo irracionalismo capitalista constitui-se como uma grave
ameaça a tais interesses. Em outras palavras, se os homens necessitassem de
pretextos materiais para se odiarem, provavelmente estaríamos em um
mundo em que a própria miséria material já teria sido superada, e em nome
da preservação dos interesses materiais, o fascismo não seria uma realidade
histórica. O próprio Adorno compreende perfeitamente que a atmosfera
fascista envolve a mobilização de impulsos destrutivos para cuja explicação
não são suficientes explicações baseadas em fatores externos. Na citação a
seguir, mesmo que em última instância a teoria da reificação contenha a
chave explicativa para a irrupção dos impulsos destrutivos que constituem
a matéria prima da barbárie fascista, não se pode ignorar que Adorno re-
conhece a primazia dos fatores espirituais em detrimento da manipulação
exercida pela indústria cultural:

242
Há mais de trinta anos delineia-se nas massas dos países industrializa-
dos a tendência de se entregar a políticas catastróficas, em vez de per-
seguir interesses racionais, dentre eles, em primeiro lugar, a preservação
da própria vida. (…) Não é suficiente apenas a velha explicação de que
os interessados controlam todos os meios da opinião pública, pois as
massas dificilmente seriam cativadas por falsas propagandas, toscas e
capciosas, se nelas mesmas não houvesse algo que correspondesse às
mensagens de sacrifício e vida perigosa (ADORNO, 2015, p. 71).

Física quântica e dialética

Em um dos mais importantes momentos da filosofia de Hegel, a


experiência dialética se revela radicalmente avessa a uma compreensão clara
e distinta, pela qual os objetos singulares possam ser concebidos de maneira
estática, e dogmaticamente subsumidos ao pensamento conceitual. A ne-
gação determinada, que traduz a experiência dialética genuína, consiste
justamente em dissolver o que foi endurecido e coisificado. Por outro lado,
o campo formativo da educação é uma área especificamente perpassada por
elevado grau de incerteza no que se refere à concretização de objetivos re-
lacionados à emancipação do sujeito, malgrado o elevado teor de planeja-
mento de atividades curriculares direcionadas à produção de clareza e dis-
tinção. É possível afirmar que os educadores, mesmo quando imbuídos de
intenções formativas que possam apontar para além do simples ajusta-
mento à sociedade, são obrigados a conviver com horizontes rigorosamente
indeterminados no que se refere à ampliação dos horizontes de liberdade
do sujeito, pois o enfrentamento altivo das contradições do mundo é uma
decisão incontornavelmente condicionada pela liberdade radical do sujeito,
e sua realização escapa completamente à clareza e distinção almejadas pelo
planejamento escolar. A elevada indeterminação que perpassa o campo for-
mativo foi explicitada por Adorno em suas reflexões sobre a semiformação.

243
Aos obstáculos sistematicamente produzidos pela semiformação para a afir-
mação autônoma do espírito, podemos acrescentar o estado irredutível de
incerteza acerca da geração de espíritos livres por meio da educação.
Adorno se refere à espiritualização formalística vigente na República de
Weimar, lembrando a observação atenta de Max Frisch, de que na Alema-
nha “havia pessoas que se dedicavam, com paixão e compreensão, aos cha-
mados bens culturais, e, no entanto, puderam encarregar-se tranquila-
mente da práxis assassina do nacional-socialismo” (ADORNO, 2010, p.
10). Para o filósofo, a dissociação entre a dedicação à cultura e a sensibili-
dade e delicadeza que deveriam ser sua contrapartida inseparável, é justa-
mente o que caracteriza a semiformação, processo propagador de relações
fetichistas com os bens culturais, que impede a realização de apropriações
vivas e autônomas da cultura. Aos obstáculos sistematicamente produzidos
pela semiformação para a afirmação autônoma do espírito, podemos acres-
centar o estado irredutível de incerteza acerca da geração de espíritos livres
por meio da educação.
Os aspectos sombrios relacionados a uma educação para que Aus-
chwitz não se repita, remetem justamente ao teor de incerteza que é intrín-
seco a todo processo formativo. Diante da inexistência de horizontes de
clareza e distinção para a superação da vulnerabilidade emocional ao fas-
cismo, é forçoso reconhecer que é sobretudo por meio da coragem indivi-
dual do indivíduo singular em vencer as próprias sombras enclausuradoras
do espírito, que a desbarbarização pode ocorrer. Os processos formativos
do espírito constituem-se como mediações essenciais para que o pôr a si
mesmo do sujeito possa se realizar como afirmação da liberdade e da auto-
nomia moral, porém o sucesso da empreitada formativa depende sobre-
tudo da boa vontade e da energia do indivíduo singular em puxar-se para
fora de seu pântano monadológico. É por esse motivo que a primeira parte
da presente tese acadêmica foi encerrada com o apontamento de horizontes

244
aporéticos, resultantes da análise de Adorno acerca das contradições que
envolvem a problemática de uma educação antifascista. Pela sua importân-
cia para as considerações finais desta tese, é importante resgatar um breve
resumo de tais aporias. 1) O indivíduo é núcleo impulsionador da resis-
tência ao fascismo, porém não é possível recorrer a um conceito de indiví-
duo que não seja produto das mediações materiais. 2) A desbarbarização
requer processos emocionais autoreflexivos, mas estes são bloqueados pela
satisfação narcísica doentia própria ao fascismo. 3) A superação da estere-
otipia peculiar ao preconceito requer relações pessoais diretas com as víti-
mas, porém a própria possibilidade da experiência é lesada pela dissemina-
ção de preconceitos e opiniões patológicas. 4) O caráter farsesco do com-
portamento fascista está sempre muito próximo de uma consciência crítica,
mas esta é ressentida como prejuízo narcisista. Esse conjunto trágico de
patologias emocionais que bloqueia a superação da vulnerabilidade emoci-
onal ao fascismo, delimita com clareza os contornos do mal radical no con-
texto da personalidade autoritária. Seja em termos kantianos, no tocante à
corrupção da capacidade de observação da lei moral, seja em termos hege-
lianos, como incapacidade de reconhecimento do unheimlich como estra-
nho e familiar, esse conjunto de tendências de perpetuação da cegueira
emocional do sujeito assinala a paralisação de um movimento do espírito
humano na direção da ampliação dos horizontes de racionalidade e liber-
dade. Ao depararmos com esse conjunto de aporias resultantes da análise
de Adorno sobre o fascismo, embora possa parecer que a impossibilidade
teórica de caminhos claros e distintos para a superação do fascismo e do
preconceito se constitua como argumento desqualificativo do pensamento
teórico, é importante observar que, em termos dialético-hegelianos, não
poderia haver teoria mais adequada, e diagnóstico mais objetivo sobre a
realidade. Pois esses são os antagonismos intrínsecos à realidade, expostos

245
pela análise precisa de Adorno e desafiadores da coragem de enfrentamento
e superação.
A qualidade da dialética hegeliana, de estabelecer horizontes de re-
flexão rigorosamente antagônicos à clareza e distinção almejadas pelo senso
comum e pelo positivismo científico, foi contemplada por uma inesperada
correspondência no âmbito das investigações da física de partículas, apenas
algumas décadas após a morte de Hegel. Nos anos 1920, as experiências
científicas no campo das partículas subatômicas denotaram a existência de
processos decisivamente comprometedores da estabilidade e previsibili-
dade dos fenômenos físicos. Em meio a sucessivos sobressaltos diante da
atividade imprevisível das partículas quânticas, os pesquisadores tiveram
de se render à inesperada descoberta da completa invalidade da física new-
toniana no âmbito quântico. O maior dos enigmas com que se depararam
os investigadores da ciência, consistiu na impossibilidade de estabeleci-
mento da posição exata de uma determinada partícula no tempo e no es-
paço. No caso clássico do elétron, quando se procura estabelecer sua posi-
ção precisa em um determinado instante, isso obviamente requer que ele
seja iluminado, para que possa ser observado. Mas de maneira muito di-
versa do que ocorre quanto ao comportamento da matéria no nível ma-
croscópico e cotidiano, para o qual o mecanicismo newtoniano demonstra-
se perfeitamente adequado, no nível subatômico, a própria energia contida
nos fótons, que são as partículas de luz, interfere na velocidade e no posi-
cionamento do elétron em determinado instante. Os físicos puderam cons-
tatar, mediante incontáveis experimentos, que quando se emprega fontes
de luz com frequência alta, é possível visualizar o elétron, porém sua velo-
cidade aumenta, impedindo que ele seja localizado com precisão. Quando
se diminui a frequência das fontes de luz, a velocidade não é afetada, mas
sua localização espacial é comprometida. Diante da relação inversamente
proporcional entre a velocidade e o posicionamento dos elétrons, e de todas

246
as partículas subatômicas quando elas são submetidas a experimentos de
observação, o cientista Werner Einsenberg formulou seu “princípio de in-
certeza”, que estabelece não somente a impossibilidade de descrição precisa
dos fenômenos quânticos, mas também a inexistência mesma de um tal
posicionamento e velocidade precisos em determinado instante.
O princípio de incerteza nomeia a impossibilidade de determina-
ção precisa dos fenômenos subatômicos em virtude das próprias partículas
existirem em um estado denominado superposição quântica, que significa
que um mesmo sistema físico existe em todos os estados teoricamente pos-
síveis ao mesmo tempo, sem que seja possível determinar objetivamente a
configuração desse estado antes que ocorra a observação do fenômeno. Um
exemplo clássico da superposição quântica é dado pela metáfora do “gato
de Schrödinger”, experimento mental proposto pelo físico Ervin Schrödin-
ger, para simular um fenômeno em que certo estado físico assume duas
condições aparentemente impossíveis do ponto de vista dos fenômenos
macroscópicos. O evento simula um gato colocado em uma caixa lacrada
e quanticamente isolada, em que um frasco de veneno poderia ser que-
brado, dependendo do movimento de uma substância radiativa no interior
da mesma caixa. Como os átomos dessa substância estão em superposição
quântica, sob o ponto de vista de um observador externo, os acontecimen-
tos no interior da caixa não podem ser diretamente observados enquanto
ela não for aberta. Sob tal condição, em que os fenômenos físicos que ocor-
rem no interior da caixa são rigorosamente indeterminados, é possível afir-
mar que, enquanto a caixa não for aberta, o gato nem está vivo, nem está
morto, uma vez que a própria diferença entre vida e morte é inteiramente
tributária da física newtoniana, cujas leis são invalidadas no âmbito quân-
tico. Quando a caixa for aberta, somente um desses estados será possível,
pois então a própria condição objetiva da observação terá provocado o co-
lapso do fenômeno. O paradoxo do gato de Schröndiger é eloquente para

247
ilustrar não somente a impossibilidade de estabelecimento de um conheci-
mento exato dos fenômenos quânticos pela ciência, como também para
expor da maneira mais clara possível o caráter objetivo e ontológico da
dialética hegeliana. A coexistência simultânea de estados rigorosamente
opostos em um mesmo ser particular no âmbito quântico indica que o
caráter estável e enrijecido habitualmente atribuído aos objetos pelo senso
comum, e mesmo pelo conhecimento científico, é somente uma concep-
ção artificial e metafórica que se mostra completamente inadequada para
representar a realidade. A formulação do princípio de incerteza de Einsen-
berg significou uma insólita comprovação do caráter abstrato da precisão
científica, e uma involuntária homenagem ao pensamento de Hegel, que
enunciou em termos especulativos o dinamismo da realidade física: “a apa-
rição é o surgir e passar que nem surge nem passa, mas que em si constitui
a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro é assim o
delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio” (HEGEL,
2002, p. 53). A esse respeito, vale a pena expor a clareza pela qual Marcuse
soube expressar o caráter essencialmente dinâmico da realidade tal como
concebida por Hegel, acentuando concepções especulativas surpreenden-
temente afinadas com os fenômenos do mundo quântico: “a realidade apa-
rece como uma realidade dinâmica, na qual todas as formas fixas se revelam
meras abstrações. (...) Se perseguirmos o verdadeiro conteúdo de nossas
percepções e conceitos, toda delimitação de objetos estáveis desaparecerá.
(…) A dialética está inteiramente ligada à ideia de que todas as formas do
ser são perpassadas por uma negatividade essencial, e que esta negatividade
determina seu conteúdo e movimento” (MARCUSE, 1978, p. 36-37).
O experimento imaginário do gato de Schrödinger apresenta o mé-
rito de sintetizar, sob aparência bizarra, a estranheza que é intrínseca aos
fenômenos físicos em sua esfera íntima e ultramicroscópica. Uma das pro-

248
priedades mais surpreendentes dos elementos físicos nessa dimensão quân-
tica, consiste em assumir um estado dualista que é completamente estra-
nho à capacidade humana de compreensão lógica do mundo. Um elétron,
um fóton, e todos os demais constituintes do universo quântico, ou, mais
claramente, toda a matéria do universo, em sua mais íntima natureza, ma-
nifesta um estado de superposição entre a condição de partícula punti-
forme e a condição de onda. Em outras palavras, todos os elementos quân-
ticos comportam-se, simultaneamente, como partícula e como onda, sem que
seja possível determinar, em um instante isolado do tempo e do espaço,
uma dessas condições específicas. Na verdade, a própria condição empírica
da observação humana estabelece o colapso da superposição quântica, con-
duzindo à manifestação de uma dessas duas condições: onda ou partícula.
A relação direta entre a observação humana e o colapso do fenômeno em
si mesmo, de modo a impossibilitar a produção de um conhecimento ver-
dadeiro acerca dos fenômenos quânticos, aprofunda a correspondência
apontada no parágrafo anterior entre a especulação hegeliana e a realidade
tal como ela é em si mesma. No capítulo dedicado à “percepção” na Feno-
menologia do Espírito, o filósofo expõe o trajeto da consciência infeliz em
sua recusa de aceitação da contradição como estado ontológico do mundo.
A consciência é forçada a oscilar entre a experiência do objeto como mul-
tiplicidade à qual a própria consciência atribui uma unidade, e a experiên-
cia contrária, em que o objeto parece ser uma unidade à qual a consciência
atribui uma condição múltipla de várias qualidades. Essa dupla experiência
é um dos argumentos centrais de Hegel para demonstrar o caráter negativo
e contraditório do ser: “é a coisa que se reflete em si e para si mesma como
o que é diferente do que ela é para outro (para nossa consciência precisa-
mente). Ora é una quando se mostra múltipla, ora é múltipla quando se
mostra una: inclui em si uma verdade oposta a si, ela é uma contradição; é
simultaneamente para si e para outro” (HYPPOLITE, 1999, p. 129-130).

249
A unidade entre o monismo e o pluralismo na própria unidade do objeto,
antecipou, nos termos especulativos da filosofia, o caráter indissociável en-
tre a verdade do fenômeno e a observação humana. Isso correspondeu, no
âmbito da pesquisa da física quântica, a uma completa invalidação dos
pressupostos positivistas da ciência. Antes mesmo que a Teoria Crítica de-
monstrasse, mediante o instrumental teórico do pensamento dialético, o
caráter rigorosamente ilusório da separação entre sujeito e objeto, pressu-
posta pelo positivismo científico, foi durante a década de 1920, do interior
do laboratório de Einserberg, Schrödinger, De Broglie e Niels Bohr, dentre
outros pesquisadores, que a dialética encontrou sua mais autêntica de-
monstração lógica.
A descoberta do dualismo onda-partícula, além de representar uma
inesperada confirmação da estrutura dialética do universo físico, acarreta
igualmente importantes implicações acerca da própria natureza daquilo
que convencionalmente é denominado “matéria”. Um primeiro aspecto a
ressaltar consiste no aspecto rigorosamente ilusório da aparência estável e
contínua dos objetos materiais, tal como experienciados no cotidiano. No
nível macroscópico, em que corpos e demais objetos apresentam-se à per-
cepção humana, a estabilidade e previsibilidade dos fenômenos físicos, pas-
sível de compreensão e mensuração pelas leis da mecânica newtoniana, re-
presenta apenas uma aparência encobridora da essência dualista dos fenô-
menos quânticos no âmbito microscópico. A aparência sólida e concreta
dos objetos materiais, oculta sua natureza dualista, em virtude da dimensão
infinitamente minúscula do comprimento de onda no universo quântico.
Como a capacidade humana de percepção da realidade é rigorosamente
inabilitada para acessar os fenômenos mais recônditos do universo quân-
tico, é possível à humanidade representar a realidade como se esta fosse
composta por uma “matéria” contínua, concreta e estável. A percepção hu-
mana é tão incapaz de acessar a constante de Planck (unidade de medida

250
trilionesimamente minúscula, empregada para medir a relação entre fre-
quência de onda e quantidade de energia) quanto a velocidade da luz, “por
essa razão, o caráter ondulatório da matéria só se torna apreciável mediante
cuidadosas pesquisas microscópicas. Assim como o enorme valor da velo-
cidade da luz oculta, em grande medida, a verdadeira natureza do espaço e
do tempo, o valor mínimo da constante de Planck oculta os aspectos on-
dulatórios da matéria no mundo cotidiano” (GREENE, 2001, p. 125). A
esse respeito, é notável observar que as pesquisas da física quântica, desde
os anos 1920, reduzem a concepção da matéria em si mesma à qualidade
perceptiva da espécie humana, fazendo do mundo material um simples
epifenômeno da percepção, ou, como preferiu Berkeley, esse est percipi.

O sujeito monadológico e sua incerteza substancial _

O horizonte de indeterminação próprio ao universo da física de


partículas sugere perspectivas interessantes de reflexão no campo formativo
da educação. Se a existência de subjetividades racionais traduz o finalismo
essencial do ser, e se estas necessariamente devem ser radicalmente livres
para que possam efetuar o trajeto de reconhecimento da consciência que é
próprio à fenomenologia do Espírito, isso significa que os horizontes de
incerteza que atravessam o processo de formação são inseparáveis da pró-
pria liberdade. Em outras palavras, que entre humanos nunca se possa ob-
ter um conhecimento claro e distinto acerca da distância que os separa da
plenitude do Absoluto, não constitui uma restrição da liberdade humana,
mas sua mais autêntica realização. Se no próprio âmbito da realidade das
partículas quânticas as expectativas de regularidade e previsibilidade dos
fenômenos físicos se revelam amplamente frustradas, após quase um século
da formulação do princípio de incerteza de Heisenberg, talvez já tenha
chegado o momento para que os educadores se despojem de seus últimos

251
resquícios do mecanicismo cartesiano-newtoniano. Ao assinalar a indeter-
minação como um estado ontológico, que a razão procura contornar para
que possa conhecer e manipular a realidade, temos uma condição signifi-
cativamente reveladora no âmbito dos fenômenos educacionais, pois os
processos formativos, notadamente quando direcionados para a evolução
ética do espírito, chocam-se com horizontes insondáveis, uma vez que é
rigorosamente impossível aferir o nível de progresso espiritual desde um
olhar exterior ao sujeito, que é o único ponto de vista possível para os edu-
cadores.
A metáfora do gato de Schröndiger apresenta potenciais salutares
para reflexões acerca do insucesso educacional no campo ético. No que se
refere ao problema do mal no interior do fascismo, tal metáfora, desde que
consideradas certas restrições que serão esclarecidas mais à frente, se apre-
senta de maneira relevante para refletir sobre a ambivalência comporta-
mental que se tornou emblemática em relação ao nazifascismo. O fenô-
meno é sintetizado por Bruno Pucci, que faz referência ao livro El misterioso
caso alemán, de Sala Rose. Na Alemanha nazista, um homem chamado
Ruppert, funcionário no campo de concentração de Dachau, era capaz de
cometer atos monstruosos, como incendiar a barba de um ser humano,
mas ao mesmo tempo revelava-se como pai de família amoroso, bom ma-
rido, homem de sensibilidade estética e suficientemente sensível para en-
cher de cuidados um pequeno animal ferido (PUCCI, 2018, p. 597). Para
bem compreendermos em termos filosóficos os aspectos trágicos de ho-
mens como Ruppert, que eram extremamente comuns no contexto nazi-
fascista, observemos como Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, apresenta
o espírito livre como causa de si mesmo: “depende de nós praticar atos
nobres ou vis, e se é isso que se entende por ser bom ou mau, então de-
pende de nós sermos virtuosos ou viciosos.(…) Do contrário, teremos de
negar que o homem seja princípio motor e pai de suas ações como o é de

252
seus filhos” (ARISTÓTELES, 1991, p. 47). O que faz o caso alemão assu-
mir contornos enigmáticos e dramáticos é a ambivalência espiritual que
torna possível que um mesmo homem pratique atos nobres e vis, sendo ao
mesmo tempo, bom e mal, praticante de virtudes e vícios de natureza pro-
fundamente maligna. Em Educação após Auschwitz, Adorno adverte para o
fato de que “a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que
têm de fundamental as condições que geram esta regressão” (ADORNO,
1995, p. 119). Talvez seja possível afirmar que nosso filósofo ainda é oti-
mista, ao apontar as condições materiais como fatores decisivos da barbárie.
Embora o progresso ético do espírito tenha como condição essencial o fa-
vorecimento de processos educativos voltados para a desbarbarização, é for-
çoso reconhecer que estes nada representam em si mesmos perante os as-
pectos insondáveis da mônada espiritual. Assim como somente se torna
possível saber se o gato está vivo ou morto abrindo a caixa, uma vez que o
próprio evento da observação humana provoca o colapso do fenômeno
quântico, da mesma forma, é somente pelo acesso às formas de linguagem
da fala e do corpo que é possível aferir o teor ético de um espírito. No
tocante ao fascismo, a diferença entre um homem decente e um canalha
está igualmente inscrita no interior do mesmo espírito singular, e suas in-
sondáveis ambivalências não são menos surpreendentes que aquelas relati-
vas ao dualismo entre onda e partícula.
A comparação aqui sugerida, entre o espírito humano e os fenôme-
nos quânticos, se revela sinistra no tocante ao sucesso de uma educação
voltada para propósitos de formação ética, pois assim como somente po-
deria ser possível saber se o gato está vivo ou morto abrindo a caixa que o
encerra, da mesma forma, a qualidade ética e sensível de um espírito hu-
mano só pode ser avaliada sob contextos frequentemente trágicos. As ex-
periências grupais próprias ao fascismo configuram-se como eventos elo-
quentes acerca do caráter epidêmico da catarse agressiva direcionada contra

253
as vítimas intercambiáveis do delírio fascista. Por outro lado, a metáfora do
gato de Schröndiger somente pode ser mobilizada para reflexões no campo
educativo, desde que observemos a distância infinita entre o espírito hu-
mano e um conjunto de partículas físicas. O recurso comparativo res-
tringe-se a pensar de maneira análoga o isolamento monadológico do es-
pírito e o isolamento dos elementos quânticos em relação às condições ex-
ternas da observação humana. Se é tão impossível a um observador externo
o conhecimento objetivo acerca do teor ético de um homem singular,
quanto ao cientista a superação da dualidade onda-partícula, não se pode
ignorar que o espírito humano apresenta indiscutíveis capacidades de evo-
lução que o diferenciam dos demais elementos e espécies do mundo natu-
ral. A esse respeito, um dos mais expressivos conceitos da história da filo-
sofia, o de potencialidade da alma, de Santo Agostinho, descreve os graus
de evolução do espírito, desde o mais simples, relacionado com o estado
vegetativo, que é comum a outras espécies da flora e da fauna, até o sétimo
grau, que traduz a capacidade de realização da virtude em seu grau máximo,
e a contemplação da verdade em sua dimensão suprema. Sob esse ponto de
vista é possível considerar a diferença entre as baixezas morais de um Rup-
pert, com as virtudes de Nicholas Winton, um cidadão britânico, que no
ano 1939, organizou o resgate de 669 crianças em sua maioria judias, para
serem adotadas por famílias inglesas. Wintom se destaca não somente por
ter salvo a vida de crianças que tiveram os pais originais assassinados em
campos de concentração, mas também porque nunca divulgou publica-
mente sua iniciativa humanitária, pelo simples fato de considerar nada ter
feito que não fosse sua obrigação ética como ser humano. O fato de que
Rupperts e Wintoms tenham sido personagens históricos contemporâneos
e submetidos a idênticas mediações materiais, é suficientemente eloquente
acerca da potencialidade da alma de Santo Agostinho.

254
Os diversos tipos de materialismo se revelam precários não somente
em termos filosóficos, como pretensão especulativa de constituir a matéria
como princípio causal, dada sua impossibilidade de fundamentação onto-
lógica, como também a partir do próprio ponto de vista científico, em vir-
tude da inexistência física de uma substância sólida, extensa e contínua,
que possa ser adequadamente denominada “matéria”. A esse respeito, vale
lembrar a definição de “matéria” por uma autoridade cientifica, e que po-
deria perfeitamente ser atribuída ao conceito metafísico de mônada for-
mulado por Leibniz: “o que impressiona nossos sentidos como matéria na
realidade é uma grande concentração de energia em espaço relativamente
limitado” (Einstein-Infeld, apud ABBAGNANO, 2000, p. 649). Se por
“materialismo” somente é possível compreender um conjunto de diferentes
proposições especulativas incapazes de se fundamentar na experiência ou
na observação empírica, é lícito concluir que o irracionalismo explicita-
mente evidenciado nas condições materiais de existência subjacentes ao ca-
pitalismo contemporâneo, não pode ser atribuído às contradições materiais
em si mesmas. De maneira contrária aos pressupostos do marxismo, as
condições materiais de vida são o resultado das mediações do espírito.
Mesmo estando sujeito às influências comportamentais mais diver-
sas, desde o âmbito familiar e escolar até o universo mais geral dos meios
de comunicação de massa, o recolhimento íntimo e subjetivo de cada es-
pírito humano se revela como uma instância monadológica indecifrável à
observação externa. O tema socrático-platônico da impossibilidade de se
ensinar as virtudes, ainda que não possa ser tomado como um princípio
absoluto, deve ser levado a sério pelos educadores, e talvez possa ser bem
compreendido ao se conceber cada espírito humano como um universo
imponderável em sua intimidade recôndita. Para além do fetichismo téc-
nico, que Adorno entendeu ser o fator gerador da frieza do homem capaz

255
de construir trilhos ferroviários para transportar seres humanos até os cam-
pos de concentração nazistas, sem se preocupar com o sofrimento das víti-
mas, a indeterminação quântica do espírito talvez possa ser um pano de
fundo explicativo para elucidar os aspectos sombrios de uma educação após
Auschwitz. A ideia de uma indeterminação quântica do espírito, como
forma de compreensão de sua liberdade radical, apresenta correspondência
com a concepção monadológica do espírito segundo Leibniz, que tem o
mérito de apontar a tendências passionais que escravizam o espírito, mas
também à sua potencialidade de superá-las:

A propósito, tudo o que se passa na alma dependendo apenas dela,


conforme esse sistema, e seu estado seguinte não vindo senão dela e de
seu estado presente; como é possível lhe dar uma maior independência?
É verdade que ainda resta alguma imperfeição na constituição da alma.
Tudo que acontece à alma depende dela, mas não depende sempre de
sua vontade; isso seria demais. (…) Pois nela há não apenas uma ordem
de percepções distintas que faz seu domínio, mas também uma sequên-
cia de percepções confusas, que ocasiona sua escravidão, e não é preciso
estranhar isso; a alma seria uma divindade, se ela tivesse apenas percep-
ções distintas. Ela tem, no entanto, algum poder também sobre essas
percepções confusas, mesmo que de maneira indireta; pois embora ela
não possa mudar suas paixões prontamente, ela pode trabalhar nisso
com considerável antecedência e bastante sucesso, e se dar novas pai-
xões, e mesmo novos hábitos. (…) Tão grande é a profundidade do
espírito do homem (LEIBNIZ, 2017, p. 172-173).

Razão objetiva e o daimon socrático

Em termos filosóficos, o materialismo dialético sintetiza um mo-


mento do agir da consciência, em que ela necessita compreender, negati-

256
vamente, que ao defender o primado do trabalho como princípio determi-
nante das formas conceituais que estruturam o pensamento, isso implica
renunciar ao Absoluto como fundamento da razão. Adorno justifica o pri-
mado do materialismo contra o momento afirmativo e apologético da fi-
losofia de Hegel, argumentando que uma afirmação do não-idêntico é in-
compatível com a apologia da totalidade como identidade absoluta. Por
outro lado, a posição de Adorno é significativamente controversa ao afir-
mar-se na defesa de um pensamento que intenta fazer justiça ao não-idên-
tico, e, ao mesmo tempo, abdicar dos fundamentos espirituais da razão: “a
elaboração de uma constituição não contraditória da realidade é um as-
sunto da práxis humana e não um assunto da filosofia” (ADORNO, 2013b,
p. 169). Por outro lado, a própria Teoria Crítica possibilita entender as
dificuldades intrínsecas à dialética materialista quando ela pretende se des-
pojar da herança filosófica idealista. No texto Meios e Fins, a versão escrita
por Horkheimer sobre a dialética do esclarecimento, a razão objetiva, en-
tendida como princípio inerente à realidade, é pensamento dedicado à
compreensão do bem supremo, dos fins últimos visados pela vida humana,
como “poder espiritual vivendo dentro de cada homem” (ADORNO,
2015, p. 18). A atividade especulativa da metafísica constituiu-se na histó-
ria da filosofia ocidental como lugar em que originalmente foi possível des-
cobrir a natureza essencial das coisas, e os modos mais adequados de rela-
ção entre os homens e destes com o mundo natural, a partir de uma pers-
pectiva ética centrada na virtude:

Grandes sistemas filosóficos, como os de Platão e Aristóteles, a escolás-


tica e o idealismo alemão, foram fundados sobre uma teoria objetiva
de razão. Visava-se a desenvolver um sistema abrangente, ou uma hie-
rarquia de todos os seres, incluindo o homem e seus objetivos. O grau
de razoabilidade da vida de um homem poderia ser determinado de
acordo com sua harmonia em relação a essa totalidade. Sua estrutura

257
objetiva, e não apenas o homem e seus propósitos, era a régua dos pen-
samento e suas ações individuais (HORKHEIMER, 2015, p. 12).

A reflexão de Horkheimer, acerca do primado da metafísica para a


formulação de um conceito de razão suficientemente consistente, oferece
uma justificação salutar para uma concepção substancialista de sujeito, tão
criticada por Adorno. Com o objetivo de demonstrar a validade da razão
objetiva como estrutura inerente à realidade, Horkheimer refere-se ao dai-
mon socrático como princípio espiritual dotado de potencialidade negativa,
capaz de se opor de maneira radical às convenções sociais, até o ponto de
sacrificar a própria vida: “O daimonion, por sua vez, transformou-se em
alma, e a alma é o olho que pode perceber as ideias. Ela revela-se como a
visão da verdade ou como a faculdade do sujeito individual de perceber a
eterna ordem das coisas e, consequentemente, a linha de ação que deve ser
seguida na ordem temporal” (ADORNO, 2015, p. 19). A Teoria Crítica
não poderia encontrar uma formulação mais adequada para a “imagem
negativa” de ser humano, do que esta, historicamente encarnada pela figura
filosófica mais representativa do poder de afirmação da razão como atitude
prática e teórica de resistência contra o poder das instituições.
O daimon socrático, concebido como poder espiritual objetivo, do-
tado de potencialidade negativa em sua relação com o universo estabele-
cido de fatos e instituições, torna-se um conceito essencial para que se possa
compreender o caráter fundamental do sujeito como instância real e po-
tencialmente autônoma. Por outro lado, se o espírito humano finito per-
manece mesmo assim substancialmente constituído pela capacidade de ser
veículo da consciência do Espírito, isso significa que a prática reiterada do
mal não compromete a existência substancial da liberdade radical do espí-
rito finito. Uma vez que a liberdade radical implica no pôr a si mesmo do
sujeito, que afeta tanto o Geist, quanto os espíritos humanos finitos, então

258
a contradição ontológica entre a finitude biológica do corpo e as demandas
espirituais de perfeição, liberdade e racionalidade, necessariamente impul-
sionam o homem para o finalismo da realização da consciência de si, me-
diante processos educativos e formativos. A contradição dialética que im-
põe o imperativo de educar para que Auschwitz não se repita, mesmo que
não se possa contar com nenhuma garantia de sucesso, torna possível à
humanidade, e em especial aos educadores, acalentar esperanças animadas
pela energia e desprendimento espiritual do gesto do Barão de Müncchau-
sen. Entretanto, para sair do pântano puxando-se pelos cabelos, são neces-
sários não somente os rudimentos formativos proporcionados pela educa-
ção escolar, e pela vida em si mesma, mas principalmente a coragem e pre-
sença de espírito de despertar o próprio daimon.
O desprendimento espiritual necessário para a realização da cons-
ciência de si, parece condenado ao fracasso quando retornamos a uma aná-
lise atenta da vida danificada. No aforismo 5 de Minima Moralia, Adorno
expõe a aporia aparentemente insolúvel que envolve todo comportamento
que almeje se desprender das amarras da reificação. No capitalismo tardio,
a vida é falsa não somente porque a sociabilidade foi inteiramente absor-
vida por deformações neuróticas harmonicamente sintonizadas com as ten-
dências instrumentais do sistema, mas também porque os mais inocentes
impulsos de espontaneidade e afabilidade, que possam expressar resistência
em meio ao convencionalismo, estão previamente comprometidos com a
danificação da vida: “a própria sociabilidade é participação na injustiça, na
medida em que finge ser este mundo morto um mundo no qual ainda
podemos conversar uns com os outros, e a palavra solta, sociável, contribui
para perpetuar o silêncio, na medida em que as concessões feitas ao inter-
locutor o humilham de novo na pessoa que fala” (ADORNO, 1992, p. 19).
Os próprios comportamentos que intentam restaurar o calor humano em
meio ao automatismo dos sorrisos e cumprimentos convencionais, embora

259
procurem se constituir como antídotos contra a frieza, resultam em uma
involuntária reafirmação do sufocamento geral das relações entre humanos.
Uma passagem de Educação após Auschwitz traduz a claustrofobia resul-
tante das tentativas de escapar à vida falsa: “quanto mais densa é a rede,
mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua den-
sidade impede a saída” (ADORNO, 1995a, p. 122).
Em vista desses entraves a relações autênticas e não distorcidas en-
tre humanos, a análise de Adorno parece condenar ao fracasso toda tenta-
tiva de subtrair-se à apatia e frieza generalizadas do mundo administrado.
Mas é preciso considerar que é justamente nas aporias da vida danificada
que a autonomia do sujeito emerge como momento de negação determi-
nada, em que a própria contradição entre a frieza da vida falsa, e o anseio
por calor humano, converte-se em uma potência negativa que impulsiona
o sujeito para fora do pântano. Adorno não deixa de reconhecer que os
potenciais negativos de uma experiência dissonante e afirmadora do sujeito
são extraídas do idealismo de Hegel, na capacidade altiva da consciência
de enfrentar os antagonismos da realidade. Hegel “pegou o touro pelos
chifres, isto é, para dizer de maneira simples, fez cumprir o pensamento
segundo o qual a reconciliação do mundo, na realidade, não pode prospe-
rar por uma igualação que passe por cima da contradição objetiva, mas sim
atravessando essa mesma contradição” (ADORNO, 2013b, p. 150). Em-
bora parecendo assumir ares derrotistas, o conjunto de reflexões de Adorno
sobre a vida danificada, nesse momento representada pela aporia exposta
no aforismo 5, permite compreender o movimento da consciência de si
como potência negativa que impulsiona o sujeito a lutar contra a coisifica-
ção e enrijecimento do mundo. É na fenomenologia do Espírito e não no
materialismo dialético que Adorno extrai o conteúdo e forma essenciais da
negação determinada como impulsão do “pensamento até o ponto onde,
em certo modo, descobre sua própria finitude, sua própria falsidade, e, em

260
virtude disso, se alavanca para além de si mesmo” (ADORNO, 2013b, p.
80).

Do materialismo ao primado da metafísica

Os motivos materialistas de Adorno foram perfeitamente justifica-


dos por Horkheimer, que em entrevista após sua morte, lembrou que a
esperança depositada pelo amigo no inteiramente Outro não poderia ser
suficientemente honrada mediante expressões positivamente vazias como
“céu, eternidade e beleza” (HORKHEIMER, 2000, p. 163). Corrobo-
rando a visão de seu parceiro intelectual, em uma de suas aulas ocorrida
pouco tempo após o retorno à Alemanha, Adorno declarou a seus alunos
sua aversão pessoal pelo conceito de síntese, gravada no espírito desde os
primeiros anos da infância (ADORNO, 2013b, p. 120). Porém, mesmo
depreciando a metafísica pelo teor de harmonização e pacificação da reali-
dade, Adorno por vezes aponta a convergência entre metafísica e materia-
lismo, uma vez que ambos, sendo confrontados com seus próprios limites,
convergem para horizontes de liberdade somente compreensíveis na pers-
pectiva da não-identidade. “o curso da história conduz necessariamente ao
materialismo aquilo que tradicionalmente foi o seu oposto imediato, a me-
tafísica” (ADORNO, 2009, p. 303). A metafísica que converge para o ma-
terialismo é aquela que rompe com os horizontes sagrados da teologia: “a
possibilidade de uma experiência metafísica é antes irmanada com a possi-
bilidade da liberdade, e dessa liberdade, somente o sujeito desenvolvido é
capaz, o sujeito que destruiu os laços louvados como sagrados. (…) Uma
experiência metafísica e uma experiência subjetivamente liberta convergem
em humanidade” (ADORNO, 2009, p. 328-329). O ponto de cruza-
mento entre materialismo e metafísica situa-se na experiência da negação

261
determinada, que Adorno entende como momento essencialmente mate-
rialista, pelo qual o sujeito enfrenta o princípio de troca como foma con-
ceitual abstrata universal. O pensamento que se eleva além de si mesmo é
aquele relacionado à experiência com os elementos mais débeis da realidade,
segundo Eduardo Losso, “o olhar micrológico de Adorno se põe à caça do
elemento empírico mas delicado, que é justamente onde a metafísica, em
seu estado mais débil, refugia-se por meio de sua própria queda” (LOSSO,
2007, p. 72). Adorno entende que a metafísica se converte em experiência
de liberdade quando se desembaraça dos elementos teológicos tradicionais
e se dedica ao olhar atento voltado para objetos profanos do mundo: “os
menores traços intramundanos teriam relevância para o absoluto, pois a
visão micrológica desencobre aquilo que, segundo os critérios do conceito
superior em sua dinâmica de subsunção, permanece desesperadamente iso-
lado, e explode a sua identidade, a ilusão de que ele seria um mero exemplar”
(ADORNO, 2009, p. 337).
Adorno reconhece já no idealismo hegeliano a potencialidade crí-
tica da negação determinada: “que a antítese não é algo que alguém oponha
à proposição desde fora, como uma afirmação contrária, isso Hegel o re-
chaçaria como uma mera querela sofística de opiniões. (...) Pensar dialeti-
camente, então, não significa, diante de uma proposição de algum tipo,
opor-lhe desde fora outra opinião, mas impulsionar o pensamento até o
ponto de onde, em certo modo, descobre sua própria finitude, sua própria
falsidade, e, em virtude disso, se projeta para além de si mesmo”
(ADORNO, 2013b, p. 80). Diante disso, é cabível discutir a necessidade
de recorrer ao materialismo para enunciar a queda da metafísica como res-
gate micrológico. Embora Adorno argumente que a reconciliação do pen-
samento com o não-idêntico imponha à metafísica a passagem para o ma-
terialismo, é preciso considerar que essa condição somente se sustenta por-
que, em virtude do bilderverbot, o tabu originalmente judaico que proíbe

262
a representação do Absoluto por meio de imagens, Adorno recusa qualquer
tipo de determinação positiva da redenção: “uma determinação positiva
trairia a ideia enfática de salvação, recortando-a à realidade existente e com
isso trairia também as esperanças das vítimas da história, por amor das
quais unicamente nos é permitido ter esperança” (ADORNO, 2008, p.
293). Por outro lado, à luz da concepção hegeliana de Deus como ser
necessariamente corporificado no mundo finito, aquilo que habitualmente
é denominado como esfera metafísica, é rigorosamente inseparável do
mundo material. Adorno argumenta que para uma relação pacificada com
o não-idêntico é imprescindível uma virada materialista que possa sintoni-
zar metafísica e redenção: “enquanto os outros procuram o cálice sagrado,
o Santo Graal, nas joias mais ricas, exuberantes e poderosas, Adorno en-
contra-o no vaso mais insignificante e desprezível: nas miudezas profanas,
que guardam a preciosa debilidade da metafísica” (Losso, 2007, p. 72).
Porém, se considerarmos a relação originalmente indissociável entre meta-
física e finitude humana, é cabível questionar Adorno acerca da própria
necessidade de que a metafísica retorne a uma dimensão que sempre cons-
tituiu sua mais autêntica substância. Para Hegel, Deus põe a si mesmo, e o
mundo finito nada mais é que autocriação de suas condições necessárias de
existência: “um Deus que pudesse existir sem o mundo, sem qualquer cor-
porificação externa, é uma impossibilidade” (TAYLOR, 2014, p. 127). Na
concepção hegeliana, a finitude é condição indissociável da existência do
Espírito:

O Absoluto, aquilo que é real em última instância ou aquilo que está


na base de tudo, é sujeito. E o sujeito cósmico é constituído de tal ma-
neira que é tanto idêntico quanto não idêntico ao mundo. Há identi-
dade no fato de o Geist não poder existir sem o mundo; e, não obstante,
há oposição, porque o mundo enquanto exterioridade representa uma
dispersão, uma inconsciência que o Geist tem de superar para ser ele

263
mesmo, para cumprir seu objetivo como razão autoconsciente (TAY-
LOR, 2014, p. 131).

O movimento do espírito, no desenvolvimento das etapas de sua


fenomenologia, é nomeado por Hegel como “consciência infeliz”, porque
descreve um percurso acidentado e doloroso de desgarramento da consci-
ência, que inicialmente se prende aos objetos mundanos, mas deles é obri-
gada a se separar, na direção de sua mais autêntica realização, que é a uni-
dade consigo mesma. A consciência de si é desejo pelo encontro de si
mesma, que somente pode se realizar mediante o reconhecimento de outra
consciência de si: “o que deseja, sem que ainda o saiba explicitamente, é
ela mesma; é seu próprio desejo, e, precisamente por isso, só poderá alcan-
çar a si mesma ao encontrar um outro desejo, uma outra consciência de si”
(HYPPOLITE, 1999, p. 175). O trajeto da consciência de si, desde o en-
gajamento no mundo sensível, até a descoberta de seu finalismo intrínseco,
é uma maneira primorosa pela qual o idealismo de Hegel traduz a distância
entre o estado de privação, ou carência de perfeição do ser, imprecisamente
denominado como “mal”, e a suprema realização de suas potencialidades,
ou Bem. O que a tradição filosófica nomeou como “mal” sempre foi, antes
de mais nada, a fragilidade da consciência de si em se compreender e se
realizar como veículo do Absoluto. De maneira complementar, o que re-
petidamente foi caracterizado no presente trabalho como “inconsistência
filosófica do materialismo”, pode ser compreendido como um percurso
histórico de ilusões da consciência, seu autoengano no engajamento obses-
sivo pelos objetos concretos do mundo, em detrimento do sentido infini-
tamente maior, que é compreender-se como veículo de realização do Espí-
rito Absoluto. O materialismo dialético, ao elevar o trabalho humano de
transformação da natureza em princípio ontológico (Lukács), ou em ori-
gem dos antagonismos sociais (Adorno), espelha um estado contingente
do espírito, que lhe dificulta reconhecer-se como mediação essencial da

264
negatividade do mundo. “A dialética teleológica da Fenomenologia expli-
cita, progressivamente, todos os horizontes desse desejo que é a essência da
consciência de si. O desejo se refere aos objetos do mundo; depois, a um
objeto mais próximo de si mesmo, que é a Vida; enfim, a uma outra cons-
ciência de si, é o próprio desejo que se procura no outro, o desejo do reco-
nhecimento do homem pelo homem” (HYPPOLITE, 1999, p. 175).
Se o Espírito é idêntico e não idêntico ao mundo, infinitude que é
inseparável da finitude, a valorização das “miudezas profanas” visada pelo
olhar micrológico de Adorno, sempre foi inseparável da metafísica, desde
que Aristóteles substituiu o mundo inteligível platônico por um finalismo
intrínseco ao devir. Mesmo que o fascismo se constitua como mal radical,
por seu teor de neutralização do movimento dialético da consciência de si,
isso não significa que a atmosfera fascista paralise inteiramente o movi-
mento progressivo do desejo, de desgarramento dos objetos mundanos,
pois este lhe é essencial. É o movimento do desejo no interior da consciên-
cia de si que contém o potencial de efetuar a transformação de um inseto
em um homem, e mesmo que a servidão voluntária que alimenta o fas-
cismo apresente a tendência nefasta de se perpetuar em meio à humanidade
contemporânea, ela é incapaz de suprimir esse movimento substancial da
consciência: “o que há de doloroso na dialética é a dor em relação a esse
mundo, elevada ao âmbito do conceito” (ADORNO, 2009, p. 14). Se a
fenomenologia do espírito explicita a dialética em que o desejo progressi-
vamente se desgarra dos objetos mundanos para assumir a necessidade de
reconhecimento do homem pelo próprio homem, isso significa que a cons-
ciência de si é irresistivelmente atraída ao encontro do Outro. O primado
do materialismo no pensamento de Adorno talvez seja de menor impor-
tância perante sua explicitação da utopia de um mundo reconciliado, como
superação necessária da intolerância fascista à diferença, em termos perfei-
tamente compatíveis com o trajeto da consciência de si hegeliana:

265
É possível dizer que o conhecimento da diferença representa uma sorte
de utopia, ou melhor, não o conhecimento da diferença, mas a dife-
rença mesma. Que o diferente exista um junto ao outro sem destruir-
se mutuamente, que um diferente dê lugar a outro para que este se
instale e que, - se poderia acrescentar -, o diferente se ame, este seria na
realidade o mundo reconciliado; do mesmo modo que, então, o signo
de um mundo culpado, preso em um contexto funesto é que, neste
mundo, não seja tolerado isso que é o distinto em sentido agravante”
(ADORNO, 2013b, p. 147).

O modo mais simples de explicar isso é através da definição de huma-


nidade como aquilo que não exclui coisa alguma. Se ela se tornasse uma
totalidade que não contivesse em si mesma mais nenhum princípio li-
mitador, seria, simultaneamente, uma totalidade livre da coação que
submete todos seus membros a tal princípio e já não seria mais ne-
nhuma totalidade: nenhuma unidade forçada” (ADORNO, 1995b, p.
40).

É a esperança desse encontro incerto, do sujeito com sua própria


substância infinita, que justifica a educação, notadamente quando todas as
ilusões do materialismo estiverem dissolvidas. É parte integrante do melhor
dos mundos possíveis que a realização do bem, ou do Absoluto como su-
jeito, seja inexoravelmente um enfrentamento doloroso da distância entre
o humano e o divino. O pôr a si mesmo do sujeito é horizonte rigorosa-
mente indeterminado no âmbito monadológico da interioridade espiritual,
pois nunca é possível saber quando um ser humano singular, animado por
seu daimon, poderá extrair forças de si mesmo para contrariar o irraciona-
lismo social e impulsionar, para fora do pântano, não o intelecto, mas o
próprio coração, atolado em misérias seculares.
O espírito é potência negativa que “suporta a morte”, “nela se con-
serva”, e “só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo
no dilaceramento absoluto” (HEGEL, 2002, p. 44).

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Pareceristas
______________________________________________________________________________________________________________________

Este livro foi submetido ao Edital 01/2020 do Programa de Pós-


graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, câmpus
de Marília e financiado pelo auxílio nº 0798/2018, Processo Nº
23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES. Contamos com o apoio
dos seguintes pareceristas que avaliaram as propostas recomendando a publicação.
Agradecemos a cada um pelo trabalho realizado:

Adriana Pastorello Buim Arena Irineu Aliprando Tuim Viotto Filho


Alessandra Arce Hai José Deribaldo Gomes dos Santos
Alexandre Filordi de Carvalho Jussara Cristina Barboza Tortella
Amanda Valiengo Lenir Maristela Silva
Ana Crelia Dias Livia Maria Turra Bassetto
Ana Maria Esteves Bortolanza Luciana Aparecida Nogueira da Cruz
Ana Maria Klein Márcia Lopes Reis
Angélica Pall Oriani Maria Rosa Rodrigues Martins de
Eliana Marques Zanata Camargo
Eliane Maria Vani Ortega Marilene Proença Rebello de Souza
Fabiana de Cássia Rodrigues Mauro Castilho Gonçalves
Fernando Rodrigues de Oliveira Monica Abrantes Galindo
Francisco José Brabo Bezerra Nadja Hermann
Genivaldo de Souza Santos Pedro Laudinor Goergen
Igor de Moraes Paim Tânia Barbosa Martins
Tony Honorato

Comissão de Publicação de Livros do Edital 001/2020 do


Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus de Marília
Graziela Zambão Abdian, Patricia Unger Raphael Bataglia,
Eduardo José Manzini e Rodrigo Pelloso Gelamo
SOBRE O LIVRO

Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno – CRB 8/8211

Normalização
Nathanael da Cruz e Silva Neto

Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva

Assessoria Técnica
Renato Geraldi

Oficina Universitária Laboratório Editorial


[email protected]

Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Sinésio Ferraz Bueno
Um dos pensadores do século XX que mais se dedicou ao estudo crítico
do fascismo foi o filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno. Seu tra-
balho detalhou a vulnerabilidade emocional do cidadão comum a pre-
Adorno,
conceitos, apelos de adesão grupal e de fúria destrutiva dirigidos contra
as vítimas da perseguição fascista. Na realização de sua análise crítica,
Adorno empregou principalmente conceitos da psicanálise freudia-
o fascismo
e o mal
na e do materialismo dialético. Este livro apresenta o estudo crítico de
Adorno sobre o fascismo, mas também procura demonstrar que a des-
trutividade e crueldade do fascismo extrapolam a análise proposta por Supondo que você, leitor ou leitora, esteja
me lendo aqui, quero te dizer, te preparar e
Adorno, e por isso requerem o emprego do conceito de mal metafísico
te incentivar a ir em frente, pois ao final da
para sua compreensão mais ampla. Com esse objetivo, a primeira parte
leitura deste livro estarás como o homem
do trabalho expõe os elementos teóricos centrais utilizados por Adorno que tomou banho no rio de Heráclito: não
para entender e criticar o fascismo. Na segunda parte, são expostos os serás mais o mesmo. Terás mudado algu-
conceitos filosóficos mais importantes para se compreender o conceito Sinésio Ferraz Bueno mas de tuas convicções, talvez superado e
metafísico de mal e também suas implicações relacionadas com o campo problematizado algumas de tuas certezas e
da educação. edificado uma nova postura diante da exis-

Adorno, o fascismo e o mal


Sinésio Ferraz Bueno é doutor em filoso- tência humana. Portentosos, os argumen-
fia da educação e professor do departa- tos e o enredo teórico trazidos pelo meu
mento de filosofia da Unesp de Marília. amigo Sinésio, nos abrem a um novo hori-
Atua como pesquisador e orientador de zonte e nos conduzem a pensar, a sentir e a
mestrado e doutorado na pós-gradua- agir de uma maneira nova. Com o objetivo
ção em educação da Unesp. Desenvol- de continuar o diálogo entre a Teoria Crí-
ve projetos de pesquisa no campo da tica e a Educação, o texto tem a sensibili-
filosofia da educação, adotando as refe- dade e o compromisso de apresentar um
rências conceituais da Escola de Frank- novo olhar para a questão da crueldade
furt, em especial sob a ótica dos pensado- sem limites do nazifascismo. Defende que
res Theodor Adorno e Max Horkheimer. o processo de coisificação do espírito, ex-
plicado como fruto das contradições ma-
teriais da sociedade, não é suficiente para
entendermos a catástrofe humana que
Auschwitz significa. É preciso incorpo-
rar um olhar metafísico a partir do qual
a experiência do mal ali manifesta seja
conceitualmente melhor compreendida.

Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0798/2018
ALONSO BEZERRA DE CARVALHO | UNESP
Processo Nº 23038.000985/2018-89

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