O Homem Que Viu o Disco Voador

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RUBENS TEIXEIRA SCAVONE

O Homem que viu o


Disco-Voador

Nota explicativa de Maria de Lourdes Teixeira

Capa de Vicente di Grado

CLUBE DO LIVRO
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NOTA EXPLICATIVA

FICÇÃO-CIENTÍFICA, GÊNERO CAÇULA


DA LITERATURA UNIVERSAL

Fenômeno notório para quantos acompanham o movimento


lítero-editorial dos diversos países é o prestígio desfrutado, atual-
mente, pela ficção-científica, gênero que exerce verdadeiro fascínio
sobre a maioria do público de todos os idiomas.
Se é verdade, conforme asseguram os especialistas, que essa
modalidade novelística não constitui uma criação desta nossa era
atômica, sendo filha da velha Grécia e contando na antiguidade au-
tores da categoria de Luciano de Samosata e Plutarco, é também
verdade que ela se veio multiplicando e enriquecendo através dos
tempos, cada época lhe dando sua contribuição específica. Desde
Voltaire com o seu Micromegas, onde se trata da descida dos habi-
tantes de Sírius e de Saturno ao nosso planeta; e da inglesa Mary
Godwin Shelley, criadora do famigerado Frankenstein, tão explorado
pelo cinema; até Poe, Júlio Verne e H. G. Wells, a chamada science-
fiction viu sempre crescer o seu número de adeptos.
Senão os povos de língua inglesa os maiores produtores e os
maiores consumidores dessa nova semântica literária, pode-se, con-
tudo, afirmar que o seu prestígio é universal, numa coincidência de
gostos que abrange todos os quadrantes da terra.
Prova da seriedade com que já se encara o gênero é o fato
de haver nos Estados Unidos, na Universidade de Harvard, uma
cátedra especial de science-fiction aplicada à engenharia, de que é
titular o professor Dwight Wayne Batteau. Outra prova é o debate
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que o assunto tem despertado na imprensa de vários países. Há
poucos anos, o jornal parisiense Nouvelles Littéraires promoveu um
inquérito entre os intelectuais franceses sobre a validade da ficção
científica como gênero literário de primeira categoria, ou a sua classi-
ficação como gênero menor, e também sobre os motivos da sua imen-
sa aceitação pelo público. Opinaram, entre outros escritores, Camus,
Giono, Sartre, Cocteau e todos os membros da Academia Goncourt,
tendo os juízos se dividido, não faltando os mais apaixonados prós e
contras. Inclusive a alegação de que a science-fiction constitui certa
forma de romantismo cientificista, em que tudo aquilo que no velho
romantismo se referia à natureza, principalmente à flora e à paisa-
gem, hoje se refere à aparelhagem, aos produtos técnicos — aviões,
foguetes, robots, plataformas, teleguiados, discos-voadores, etc. — o
que traria em conseqüência a desumanização da novelística, que
assim perderia o contato com as criaturas e com os problemas onto-
lógicos.
Enquanto discutem críticos e estudiosos, as edições se suce-
dem e os leitores as devoram com insaciável interesse.
É óbvio que o Brasil não poderia fugir ao imperativo da influ-
ência mundial que vem dia a dia mais difundindo tais obras por
meio de livros, revistas, secções especializadas na imprensa, além
de outros meios de divulgação e pragmática. E o interesse dos leito-
res encontra reciprocidade no movimento editorial, onde romances,
novelas e contos desse gênero começam a surgir com freqüência,
inclusive sob a forma de antologias.
Ora, “O Diálogo dos Mundos” — contos de Rubens Teixeira
Scavone, que figuram na coleção de ficção científica das Edições
G.R.D. e editado, em abril de 1965, pela coleção do “Clube do Livro”,
— iniciou milhares de leitores no apaixonante gênero bem represen-
tativo da época da cibernética e da eletrônica.
Ao selecionar a obra em apreço, sem dúvida, acertou a direção
da Editora. Pois nesses contos se unem, com adequação perfeita, a
riqueza imaginativa (indispensável para o gênero), a problemática
científica e a sensibilidade literária, que às vezes, alcança mesmo
altitudes de verdadeira poesia, como por exemplo nas páginas de “O
Menino e o Robot” ou “Flores para uma Terrestre”.
Certamente nestes capítulos de “O homem que viu o Disco-
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Voador” encontrarão os leitores um veículo, não apenas de fuga ao
cotidiano, através da empolgante leitura, como também um acervo
de informações das mais atuais, que se incorporarão aos conheci-
mentos de cada um por meio desta história que alia o maravilhoso
ao cientifico, o cósmico ao terrestre, o mágico ao humano. E nessa
simbiose, segundo me parece, consiste a realização da verdadeira
obra de arte nesse gênero caçula da literatura universal.

MARIA DE LOURDES TEIXEIRA

Rubens Teixeira Scavone estreou, literàriamente, em 1958, sob o


anagrama Senbur T. Enovacs, com este romance de ficção-científica, “O
homem que viu o Disco-Voador”, que foi muito bem recebido pelos críticos
e pelo público. Em 1961, lançou um romance do mesmo gênero, “Degrau
para as estrelas”. No referido ano, apareceu “O Diálogo dos Mundos”, que
foi publicado em abril ds 1965 pela nossa rede, em edição revista pelo au-
tor. Em 1963, Rubens Teixeira Scavone edita “Ensaios Norte-Americanos”,
como súmula de seus conhecimentos acerca da produção literária des Es-
tados Unidos da América do Norte, tendo em preparo o segundo volume da
mesma série e um novo romance publicado — “O Lírio e a Antípoda”.
Colaborador de vários e importantes jornais do País, o escritor bra-
sileiro Rubens Teixeira Scavone é natural de São Paulo, sendo Procurador
da Justiça do Estado e Professor de Direito.
Como verão os nossos leitores, confirma-se o que diz em seu bri-
lhante prefácio a escritora Maria de Lourdes Teixeira: o autor consegue,
em certas páginas deste palpitante e oportuno romance “O homem que viu
o Disco-Voador”, aliar a riqueza imaginativa, a problemática experimental
e a sensibilidade literária, atingindo aqueles planos superiores e imponde-
ráveis da criação, sem os quais a narrativa se confina nos estreitos limites
de uma inexpressiva forma gráfica.

São Paulo, 10 de abril de 1966.

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PRIMEIRA PARTE

O MISTÉRIO

“O homem branco riscou na areia um círculo pequeno e


falou ao pele vermelha: Isto é o que os índios sabem. Depois,
riscando um círculo maior em tomo do pequeno, acrescentou:
E isto ó o que o branco sabe. O selvagem tomou o bastão e
traçou um círculo ainda maior, abrangendo ambos os círcu-
los, e disse: Isto é o que o branco e o vermelho não sabem”.
CARL SANDBURG - “The people, yes”

I — CREPÚSCULO SOBRE SÃO PAULO

Tudo começara naquela tarde fria e nevoenta.


Mesmo sendo o início do inverno, um calor anormal manifes-
tara-se durante o dia inteiro e somente quando a tarde principiava
a cair a temperatura se alterara bruscamente em mudança bem
característica de São Paulo. Nuvens baixas e ameaçadoras cobri-
ram a cidade e um vento frio varreu os arrabaldes mais elevados,
antecipando a queda de uma garoa fina.
O quadrimotor contornava os limites da metrópole.
O comandante Eduardo Germano de Resende vinha cansado.
Manobrava os controles quase mecanicamente, deixando para des-
ligar o piloto automático o mais tarde possível.
O contato para a aterragem já havia sido mantido há uns
quinze minutos de vôo, quando se inteiraram da existência do teto
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baixo e ameaçador, com possibilidades imediatas de interdição do
aeroporto. Assim, se quisessem dormir em São Paulo, não tinham
tempo a perder. O problema da aterragem estava resolvido e ne-
nhuma espera havia proveniente do tráfego.
Com os olhos nos instrumentos e pressão leve sobre os co-
mandos, Eduardo preparou-se para a aproximação, já enquadrado
o aeroporto.
Entravam na reta final.
As nuvens, agora, pairavam sobre a aeronave e já se podia
ver o casario pelas janelas molhadas de garoa.
O mais preocupado com os instrumentos era o primeiro-ofi-
cial, vigiando o altímetro e os tacômetros. O único que descansava
por antecipação era o navegador, já guardando seus mapas e ins-
trumentos, sabendo que mais aquela missão fôra cumprida com
êxito.
Ao ser atingida a reta final marcavam os relógios, precisa-
mente, dezoito horas e quarenta minutos.
Nesse momento exato, é que tudo começou.
Eduardo, concentrado no balizamento da pista, somente
prestou atenção ao primeiro-oficial quando êle começou a agitar-se
no assento. Gusmão curvou-se sobre os instrumentos e pôs-se a
dar golpes com o punho fechado junto ao altímetro.
— Que diabo você está fazendo? Que é isso?
O primeiro-oficial demorou vários segundos para responder,
limitando-se a apontar o painel com ar assustado.
— Veja! olhe que coisa doida está acontecendo!
Eduardo firmou o comando nas mãos e fixou um dos altíme-
tros. Vinham a mil e trezentos pés. Tudo até a esse instante indi-
cava altitude correta. Mas o altímetro alterava inexplicavelmente a
situação, marcava quase quatro mil pés e ia, poupo a pouco, regis-
trando altitude mais elevada, em ascensão assustadora.
O comandante a princípio, não acreditou no que viu.
Numa fração de segundo, examinou o segundo altímetro e,
pasmado, constatou idêntico fenômeno. Reagiu da mesma forma
que o primeiro-oficial, passando a dar golpes nervosos sobre a base
do instrumento.
Aparentemente, o vôo não se modificara. A aproximação era
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normal e a pista já vinha bem perto, a pouco mais de um minuto de
distância, quando a segunda anormalidade aconteceu.
O compasso passou a girar doidamente, como se a aeronave
tivesse entrado em torvelinho descontrolado, solicitadas as agu-
lhas por magnetismo desconhecido.
Desnorteado com esse segundo fato, Eduardo agiu mecani-
camente interrompendo a aterragem.
Levou as manetes à frente, dando toda a aceleração aos mo-
tores, que responderam com um rugido atroador. Compreendendo
a emergência, o primeiro-oficial levantou os flaps1, ao mesmo tem-
po que Eduardo ajustava a mistura e recolhia o trem de pouso. O
violento impulso ascensional dos profundores abalou toda a ae-
ronave, não demorando a reação os passageiros e da tripulação,
surpreendidos com a manobra inesperada.
A comissária largou seus pacotes e quase caiu sobre uma
poltrona. Os passageiros inquietaram-se e indagaram em voz alta
o que havia acontecido. O navegador e o rádio-telegrafista corre-
ram para a cabine, amontoando-se junto ao segundo-oficial atrás
dos assentos de pilotagem.
Desprezando as informações dos instrumentos e procurando
ganhar altitude outra vez, o comandante não deu atenção aos tri-
pulantes e concentrou-se no exame do que estava acontecendo.
— Que aconteceu? Por que é que arremetemos dessa forma?
Quem respondeu foi o primeiro-oficial, não ocultando certo
nervosismo indisfarçável.
— Olhem! Olhem nos altímetros e no compasso!
— Que é que há com eles? Não vejo nada de mais! É lógico
que depois da arremetida já devemos estar pelas alturas que eles
registram, três ou quatro mil pés! — exclamou o segundo-oficial,
após examinar os instrumentos.
O comandante e o primeiro-oficial tiveram aí a terceira sur-
presa.
Novamente conferiram os instrumentos e pelas condições de

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Flaps; vocábulo inglês que significa: borda, aba. Consiste na parte móvel,
posterior, das asas das aeronaves, e que tem por finalidade agir como freios, au-
mentando a resistência à passagem do ar. (Nota do “Clube do Livro”).

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vôo não verificaram mais irregularidade de espécie alguma.
O altímetro indicava quatro mil e duzentos pés, altitude real
em que deviam estar depois da ascensão violenta, e o compasso
repousava, tranqüilo, indicando rumo constante.
Os dois homens trocaram olhares mudos e, sem revelarem o
que havia acontecido, agora de credibilidade duvidosa, limitaram-
se a dar explicações não muito convincentes. Gusmão ficou confu-
so e Eduardo explicou titubeante:
— Não foi nada de grave. Tive a impressão de que a torre ha-
via se enganado nas instruções. E como não via bem a cabeceira
da pista com esse teto baixo, resolvi subir para obter confirmação
da ordem de aterragem. — A seguir, como que dando as explica-
ções por encerradas, em atitude áspera e não condizente com o seu
temperamento, voltou-se para a comissária, ainda pálida, junto à
entrada, e gritou uma ordem:
— Não fique parada aí como uma múmia. Vá dizer aos pas-
sageiros que não houve nada. Que subi para receber novas instru-
ções por causa do teto. Vá logo e feche a porta!
A moça engoliu em seco e não chegou a responder, estra-
nhando a atitude áspera do aviador, concluída a determinação com
a batida forte da porta.
O navegador Novais e o rádio-telegrafista Stuck não se deram
por satisfeitos com a explicação. Novais esperou que Eduardo ou-
tra vez se comunicasse com a torre e, depois de ajustadas as novas
instruções, arriscou uma pergunta:
— Como é, comandante! Que foi, realmente, que aconteceu?
Você sabe que nós o conhecemos há muito tempo e sabemos que
não arremeteria assim a não ser em estado de emergência. Que foi
que houve aí com vocês dois?
A essa altura, o navegador, o rádio-telegrafista e o segundo-
oficial já tinham observado pelas fisionomias de ambos que alguma
coisa errada havia acontecido ou estava acontecendo.
Gusmão limitou-se a olhar para o comandante e, como se
tivesse recebido consentimento, não mais se conteve:
— A coisa foi dos diabos! Vocês não podem imaginar. Tudo ia
indo muito bem, lá pelos mil e quinhentos pés, quando os altíme-
tros endoideceram e passaram a marcar uma altura absurda, sem
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subida alguma, ou melhor ainda: em plena descida. E não foi só o
altímetro. As bússolas também. Passaram a marcar outra rota, in-
clusive o girosin, e no compasso o quadrante começou a rodar feito
maluco, como se tivesse perdido o magnetismo.
O rádio-telegrafista e o navegador olharam os instrumentos
e, nada vendo de anormal, ficaram indecisos perante a explicação.
Eduardo sentiu essa dúvida e veio em auxílio de Gusmão.
— É isso mesmo. Vocês podem pensar que perdemos a ca-
beça, mas a coisa foi assim mesmo. Quando vi a anormalidade
resolvi arremeter, pois não podia prever o que iria sobrevir. Afinal
de contas, com este cansaço em que estou, poderia estar havendo
erro de minha parte na localização e tomada de campo. Os instru-
mentos não falham e, na dúvida, busquei segurança aqui no alto. A
coisa foi mesmo inexplicável! Imaginem que o defeito se manifestou
nos altímetros e nas bússolas, inclusive o girosin, terminando de
repente, minutos depois da arremetida.
— Mas isso não pode ser! Em todos esses instrumentos no
mesmo instante? Você tem certeza absoluta? Não teria sido uma
distração, um equívoco? .
— Tenho tanta certeza quanto Gusmão! Se engano houve,
só posso admiti-lo nos meus cálculos de tomada, mas nunca na
leitura dos instrumentos!
Nesse momento da torre veio nova ordem de descida. Todos
retornaram aos seus postos e o comandante concentrou-se mais
uma vez na tomada de campo, depois do grande círculo que reali-
zava.
O possante quadrimotor foi perdendo gradativamente altura,
comportando-se agora todos os instrumentos convenientemente.
Ao entrar na reta final a névoa e a garoa dissiparam-se, dirigida a
aeronave para o balizamento da pista.
Refeito do susto, Gusmão não se cansava de bater e de exa-
minar os altímetros e os instrumentos de direção, procurando ex-
plicação plausível para o caso. A nenhuma conclusão chegou e
no momento resolvera dar tudo por encerrado, quando lhe falou
Eduardo:
— A coisa é muito simples. Relatei pormenor por pormenor,
sugerindo o teste dos aparelhos, tanto em relação aos altímetros
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como em relação aos compassos. Sei que eles não vão acreditar,
mas para isso invoco o seu testemunho. Foi você quem notou o
descontrole em primeiro lugar e apurei tudo com segurança. Pegue
isto, leia com toda atenção e depois assine.
Gusmão apanhou a prancheta, onde estava o formulário mi-
meografado, e correu os olhos sobre as anotações.
— É exatamente isso. O diabo é que vamos ser tidos como
mentirosos. Os instrumentos devem estar com defeito, ou seria im-
possível ter acontecido a coisa!
— Também acho, mas — hesitou um instante — defeito em
todos de uma só vez? Não dá sentido e confesso que estou encabu-
lado. Vamos lá! Entregarei o relatório e procurarei ter calma quan-
do as perguntas irônicas vierem. Nada mais podemos fazer.
Ao chegar à sala do tráfego o aviador viu logo nos funcio-
nários certo ar de interrogação, notando que a desobediência das
instruções fora observada por todos. Pouco se deteve na sala, es-
quivando-se de comentar a razão da arremetida.
Estava por demais cansado para considerar o fato e pediu a
Gusmão que também se abstivesse de explicações, limitando-se a
entregar a folha de vôo.
Todavia, ao passar junto do encarregado não pôde furtar-se
a um esclarecimento.
— Sei que vocês estranharam o acontecido, mas não tive cul-
pa alguma. O meu relatório é completo e amanhã cedo poderei
prestar outras informações, caso o D.A.C. queira saber pormeno-
res. Pedi exame e substituição de vários instrumentos e amanhã
saberemos o que houve com eles. Gusmão já assinou e poderá tam-
bém prestar declarações.
Dando assim, provisoriamente, tudo por encerrado, Eduardo
afastou-se da sala do tráfego, procurando a saída do aeroporto. A
violência da chuva amainava, e o vento, cada vez mais frio, ia lim-
pando a atmosfera.
O automóvel ali estava no estacionamento em frente ao aero-
porto e em alguns minutos o aviador guiava com pressa, em dire-
ção ao seu apartamento.

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*

Nessa noite, sem levar em conta o cansaço que o possuía, o


comandante Eduardo Germano de Resende não conseguia ador-
mecer. A sensação era de insegurança e envolvia-o como uma teia
avassaladora. Irritava-se ao reconhecer a impossibilidade de en-
contrar qualquer explicação para o fato, que se impunha à sua
experiência profissional como uma realidade absurda e ilógica.
A luz de cabeceira estava ligada e os cigarros acumulavam-se
no cinzeiro, ao lado do livro abandonado.
Por mais que se ajeitasse, Eduardo não conseguia encontrar
na cama uma posição que lhe desse tranqüilidade. Compreendeu
que o desconforto não era material, mas sim pura conseqüência de
seu estado de espírito.
“Aquilo” teria sido uma ilusão provocada pelo cansaço acu-
mulado pelas vinte e duas horas de vôo?
Sabia que não podia aceitar tal solução.
Quem observara o início do descontrole tinha sido Gusmão.
O primeiro-oficial era um excelente piloto e nunca se desviara um
milímetro sequer de sua conduta.
Esmagando, nervoso, no cinzeiro, o último cigarro que tinha
à mão, Eduardo notou que já estava sendo traído por seu raciocí-
nio. Afinal de contas, que é que tinha que ver a conduta de Gusmão
com as loucuras dos instrumentos de direção e altitude?
O que o desconcertava é que a pane2 se verificara também
nas duplicatas dos instrumentos. Como séria isso possível? Esta-
riam ambos loucos, êle e Gusmão?
Desistiu de pensar no mistério e afogou-se no travesseiro,
disposto a dormir. Mas durante toda a noite não conseguiu liber-
tar-se da sensação de insegurança, tendo a impressão, entre a vigí-
lia e o sono, dentro da madrugada, de que se achava à beira de um
despenhadeiro, temendo ser empurrado por mãos. desconhecidas,
de um instante para outro.
Quando acordou, Eduardo ainda sentia o mesmo mal-estar
2
Pane, parada, por defeito do motor de avião, automóvel, motocicleta, etc.
Adaptação do francês, panne. (Nota do “Clube do Livro”).

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angustiante. Buscando esquecer o incidente da véspera, procurava
deixar a respectiva solução para o momento oportuno, pois tinha
certeza de que seria chamado pelo chefe da manutenção, assim
que os instrumentos fossem conferidos. De antemão, sabia tam-
bém que os instrumentos estavam em ordem, pressentimento esse
que contribuía para aumentar seu mal-estar.
Voava desde a adolescência. Nascido em uma cidadezinha do
interior, nas proximidades de um campo de pouso, sempre se in-
teressara por aviões, a ponto de ter deixado os estudos superiores,
numa faculdade de engenharia, para dedicar-se exclusivamente à
aviação.
E nem se diga que voasse por necessidade.
Eduardo Germano era filho de pais abastados, de situação
sólida, que poderiam proporcionar-lhe outro meio de vida, talvez
mais rendoso e compensador, administrando a fazenda que pos-
suíam no norte do Paraná. O moço, entretanto, tinha um encontro
marcado. A aviação bem cedo interferira em sua vida, desde sua
infância, manifestando-se das maneiras mais variadas possíveis.
No princípio, ao tempo da conquista da Abissínia, as revistas,
os jornais e as coleções. Guardava e recortava todas as fotografias
de aviões que estivessem ao seu alcance, sabendo com apenas oito
anos, para espanto dos familiares, distinguir um biplano Fokker de
um aparelho de caça Camel. Depois, os livros e os aero-modelos.”
Começou com uma ensebada história da aviação, presente de um
tio milionário e excêntrico, revoltando-se contra o autor alemão que
nem mesmo mencionava o nome — para êle sagrado — de Alberto
de Santos Dumont. Seus conhecimentos aperfeiçoaram-se. Com
doze anos, sabia dizer quais os recordes de velocidade, descrevia
com pormenores os incidentes da travessia de Lindbergh, discutia
os feitos de Bleriot e Balbo, conhecendo as características dos
aviões do almirante Byrd e de Sacadura Cabral.
Depois, ainda a descoberta de Saint-Exupéry. Seus livros
eram os companheiros de todas as horas, deixados de lado somen-
te pelo manual de vôo.
Os aero-modelos foram sua última fase. Construiu miniatu-
ras de aviões de todos os tipos e de todos os sistemas de propulsão.
Desde o clássico modelo de elástico embebido em glicerina, até o de
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motor a gasolina. Do Demoiselle ao DC-3, do Espírito de São Luis
ao Waco cabine, do Thunderbolt ao Spitfire.
Depois desse período veio a pilotagem. Percorreu toda a es-
cala de aparelhos que teve ao seu alcance, desde o minúsculo Pi-
per até o veloz Bonanza, só sossegando quando ingressou em uma
companhia de navegação aérea como co-pilôto.
Integrara-se em seu elemento.
De co-pilôto a comandante foi uma trajetória rápida, não
faltando mesmo os invejosos que dissessem que a promoção fora
devida aos favores de um dos acionistas da companhia, amigo de
seu pai. Mas, em verdade, todos sabiam que isso era inexato. A
capacidade de Eduardo era bem conhecida, e dois anos depois das
coberturas das rotas internas passou a integrar a equipe dos vôos
internacionais.
Saiu do chuveiro para atender ao toque do telefone, cuidando
que era do aeroporto, e reconheceu o seu mau humor ao bater o
fone depois de verificar que se tratava de engano.
Vestiu-se à pressa, resolvendo enfrentar logo a situação.
Ao chegar, foi diretamente ao departamento de manutenção.
Eram quase dez horas da manhã e os instrumentos já deveriam ter
sido retirados e substituídos, não só em conseqüência do livro de
bordo, mas também de acordo com as anotações feitas na ficha de
vôo.
Assim que foi visto por Braga teve a resposta, sem qualquer
indagação.
— Os instrumentos que o senhor mencionou foram retirados
e eu mesmo os testei. Examinei peça por peça, desde os diafragmas
até à regulagem dos ponteiros, inclusive os tubos de vácuo. Não
notei defeito de espécie alguma. Em todo caso, tendo-se em conta
seu relatório, todos os aparelhos foram substituídos, conforme o
nosso sistema de segurança.
— Já desconfiava do resultado dos testes. Pois embora a alte-
ração tenha durado mais de um minuto, quando arremeti, segun-
dos depois todas as indicações voltaram à normalidade. Franca-
mente, meu caro: não sei o que pensar do incidente.
— Estou a par do sucedido, comandante. Além de ver a ficha
de vôo e o livro de bordo, conversei com Gusmão. Êle já esteve aqui
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bem cedo e demonstrou certa preocupação quando lhe contei que
todos os instrumentos estavam em ordem.
O aviador verificou, então que não era o único obsidiado pelo
caso. Gusmão também deveria estar, pois se assim não fosse não
teria se levantado tão cedo, depois do longo vôo, e vindo para a ma-
nutenção, a fim de saber o resultado dos exames.
O comandante Monteiro, responsável pelo tráfego, saiu de
sua sala e acenou para os dois tripulantes, convidando-os para
entrarem.
— Entre, comandante! Entre, que vou lhe contar um fato
curioso. Mas antes quero que me dê uns esclarecimentos. — E, de-
pois de uma pausa: — Vi a folha de seu vôo de ontem e determinei
a substituição imediata dos instrumentos. Gostaria, entretanto, de
ser posto a par de outros pormenores. Diga-me: foi a primeira vez
que isso se verificou em sua carreira de piloto?
Eduardo hesitou, de início, mas resolveu desabafar:
— Somente aconteceu esta vez. Do contrário eu teria comu-
nicado. Foi o fato mais inexplicável a que assisti em toda a minha
carreira de aviador, e estou dando tratos à bola para explicá-lo. Se
Gusmão não estivesse ao meu lado, admitiria até que fui vítima
de uma alucinação causada pela fadiga. Gusmão é testemunha e
se não fosse isso suspeitaria de minha sanidade mental. Foi tudo
um absurdo, uma coisa ilógica. Como e por que até o girosin ficou
descontrolado?
O comandante Monteiro levantou-se da poltrona giratória,
apanhou uns papéis sobre a mesa e dirigiu-se em atitude confor-
tadora para Eduardo:
— Vocês estavam aterrando mais ou menos pelas sete horas,
não é?
— Exatamente, dezoito horas e quarenta minutos — infor-
mou Gusmão. — Gravei até o minuto exato.
— Pois bem. Ouçam lá: nessa mesma hora, apenas uns dez
minutos antes, um DC-3 de outra companhia, regressando de um
vôo doméstico, registrou fato idêntico.
Eduardo levantou-se acercou-se da mesa demonstrando agi-
tação, não só não acreditando no que. acabava de ouvir, mas tam-
bém julgando que se tratava de uma brincadeira de mau gosto.
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— Acalme-se, Eduardo, e leve a coisa mais a sério ainda, pois
não se pode admitir, em condições de saúde mental perfeita, a re-
petição do mesmo fato, sobre o mesmo aeroporto, na mesma hora.
Também estou preocupado, pois é coisa extraordinária uma epide-
mia contagiosa de defeitos em quase uma dezena de instrumentos
da mais alta precisão, em dois aviões distintos.
Eduardo e Gusmão ficaram sem fala, percebendo que o chefe
das operações não estava brincando.
— Veja a folha de vôo do DC-3. Em coincidência, a sua e a
do Renato — esse é o nome do outro piloto — foram entregues na
mesma hora. E as mesmas anotações surpreenderam os que as
viram. A única diferença é que vocês estavam entrando na reta
final, ao passo que o bi-motor estava bem em cima da cabeceira,
a poucos metros do solo, razão pela qual Renato não arremeteu,
completando a aterragem.
Eduardo examinou com Gusmão a ficha de vôo e o espanto
estampou-se-lhes nas respectivas fisionomias, tornando o piloto a
sentar-se ao lado do primeiro-oficial ao fim da leitura.
— E os instrumentos desse DC-3? Foram retirados e exami-
nados? Apresentavam algum defeito?
— Nada, absolutamente nada! Como no seu caso, foram tes-
tados e substituídos.
— Temos que admitir uma ocorrência idêntica nos dois apa-
relhos, o que nos leva desde logo a buscar a mesma causa, que por
sua vez não pode ser encontrada no interior dos aviões. Pela coin-
cidência da hora, é inegável que ambos os fatos tiveram uma única
origem. Mas qual será essa origem?
Gusmão, silencioso até ao momento, resolveu quebrar seu
mutismo:
— O senhor falou com o comandante do DC-3?
— Não. Não consegui localizá-lo. Êle apenas reportou o vôo e
decolou hoje bem cedo rumo a Belém. Fiquei sabendo no balcão da
companhia que só regressará daqui a uns dois ou três dias.
— É uma pena — acrescentou Eduardo. — Gostaria de con-
versar com êle. Diga-me uma coisa mais, Monteiro. Além de nós,
quem mais ficou sabendo da coincidência?
— Que eu saiba, nós e mais duas ou três pessoas aí do tráfe-
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go. Mas não deram importância alguma, pois desconhecem o fun-
cionamento dos instrumentos e acham coisa de rotina o relato de
defeitos. Na manutenção, ninguém sabe, pois os serviços da outra
companhia são do outro lado do campo.
— De uma coisa agora estou certo. Podemos firmar um ponto
de partida na pesquisa para a solução. A causa foi única e não deve
ser procurada nas aeronaves. Vocês não acham que estou certo?
— Não tem dúvida, — concordou Monteiro — mas qual a cau-
sa externa que poderia ter agido sobre os dois aparelhos?
— Esse é o mistério. Poderíamos falar em interferência. Inter-
ferência elétrica ou magnética, mas isso não dá o menor sentido.
Todos os instrumentos são blindados e principalmente o girosin é
imune de qualquer interferência, pelo menos conhecida...
— E desconhecida? — aparteou o primeiro-oficial.

II — NOITE SOBRE O ATLÂNTICO

Esse foi o primeiro fato da cadeia misteriosa de incidentes da


qual passou a ser personagem principal o comandante Eduardo
Germano de Resende e que, pela repetição e aspectos absurdos,
veio dentro em breve a transformar-se em uma inimaginável aven-
tura.
Os dias passaram-se.
Eduardo considerou o fenômeno — como se habituou a no-
mear a ocorrência — sob todos os ângulos possíveis, não chegando
a conclusão racional de espécie alguma. Conversou com o coman-
dante do DC-3, que não deixou de estranhar o fato mas não lhe deu
maior importância, pois, envolvido em complicações sentimentais,
pouco tempo tinha para tentar a solução de problemas insolúveis.
Continuando em suas pesquisas, o piloto procurou obter informes
meteorológicos seguros sobre o tempo naquela tarde, inteirando-se
de que tudo era normal, desde a queda repentina da temperatura
até à velocidade dos ventos, não tendo sido verificadas alterações
atmosféricas incomuns, tais como vendavais, tempestades magné-
ticas ou coisas equivalentes. Examinou a seguir todos os informes
dos vôos daquele dia e nada também apurou que pudesse ser tido
como anormalidade. Ao fim de uma semana, resolveu dar tudo por
20
encerrado.
Mas, nos vôos seguintes, passou a prestar atenção invulgar
aos altímetros, aos compassos e ao girosin, procedendo até a um
registro metódico das marcações desses instrumentos, considera-
ção essa fora das regras convencionais.
Todavia, nada mais de anormal se verificou.
O segundo fato, ou o segundo fenômeno — como o nomeava
Eduardo — manifestou-se de forma diferente.
Naquele crepúsculo do mês de junho haviam decolado de Re-
cife, última etapa continental antes da travessia do Atlântico, com
os compassos ajustados no rumo de Dakar, nas costas africanas.
O aparelho era o mesmo tipo de quadrimotor e deveria cobrir
a rota em mais ou menos oito horas, dependendo da direção do
vento e das condições atmosféricas.
A tripulação compunha-se dos dois oficiais — Nunes e Car-
doso — do navegador Gomes, do rádio-telegrafista Sertório e dos
comissários Leila e Gama.
A aeronave ia lotada, utilizando-se tanques adicionais nas
extremidades das asas.
Os passageiros, quase todos nacionais, eram na maioria mé-
dicos que se dirigiam à Europa para um congresso científico, como
delegados do governo. Além deles e de suas famílias, viajavam tam-
bém três figurões políticos, alguns comerciantes e uma conhecida
artista de cinema, que monopolizava os olhares masculinos, inclu-
sive do próprio comandante.
Quanto aos demais, cinco ou seis eram novos-ricos.
O quadrimotor decolou com forte vento pela proa, vencendo
a altura já sobre o mar, com facilidade, não se ressentindo do peso
máximo que levava.
A noite já baixara e as primeiras luzes iam ficando para trás,
cedendo lugar à escuridão do oceano.
Para frente e para cima, tudo se mostrava tranqüilo. As infor-
mações meteorológicas previam tempo frio e estável, com correntes
contrárias à altura de três mil metros. A tripulação conferia os ins-
trumentos e revia a navegação, procurando Eduardo atingir o mais
depressa possível a altitude de cruzeiro para rendimento máximo
dos motores. Quando chegou a quatro mil metros, estabilizou a ae-
21
ronave, tornou a conferir a rota e, depois de uma hora de pilotagem
mergulhado dentro da noite, ligou o piloto automático e foi ter com
o navegador, deixando Nunes e Cardoso vigiando o vôo.
Estavam na quarta hora de vôo oceânico e já tinham deixado
para trás, sem erro algum de navegação e de cálculo da deriva, os
rochedos de São Paulo e, mais para trás ainda, o posto de rádio de
Fernando de Noronha, que confirmara as informações atmosféricas
favoráveis.
O piloto automático desempenhava bem suas funções; e Nu-
nes, sempre na cabine, vigiava os instrumentos, conferia a cober-
tura da rota e equilibrava periodicamente a distribuição do com-
bustível.
O recinto reservado aos passageiros estava às escuras, que-
brada a escuridão apenas pelas luzes individuais, como também
acontecia no compartimento da classe turística. Leila, em um dos
últimos assentos, dormitava, enquanto o outro comissário conver-
sava no último banco com a artista de cinema. Eduardo, na parte
destinada à tripulação, subira ao leito superior e procurava repou-
sar, tendo antes pedido a Nunes que o chamasse quando atingis-
sem o ponto de retorno, o meio da travessia.
Foi aí que o segundo incidente começou.
Desta vez, entretanto, a tripulação não foi a única testemu-
nha. Todos os passageiros viram e sentiram o fenômeno e o pânico
só foi evitado pela pronta interferência de Eduardo que, auxiliado
pela tripulação, encontrou uma justificativa verossímil, mas falsa,
a fim de explicar a ocorrência.
A coisa durou cerca de dez minutos, desaparecendo da mes-
ma forma como surgiu.
Todos verificaram o fato de forma semelhante. Apenas, o co-
mandante e o primeiro-oficial viram algo mais, também visto pela
comissária, sem poder aquilatar a relação desse pormenor com o
fenômeno principal.
Eduardo estava deitado e, depois de tirar o paletó, procura-
va cobrir-se com a manta. O frio era intenso dentro da cabine e a
pressurização não melhorava a temperatura.
Fechara os olhos, sentira o embalo confortador e monótono
dos motores, compenetrando-se de que tudo ia bem, quando per-
22
cebeu uma claridade, a princípio fraca e depois mais intensa, que
começou a brotar do lado de fora e em seguida invadiu a cabina.
Essa claridade era primeiro pàlidamente azulada e depois foi
se tornando de tonalidade branca, lembrando a luz incandescente
do magnésio.
O aviador custou a entender o que estava se passando. Pen-
sou em luar, mas logo ficou sobressaltado, saltando incontinenti do
leito. Entrou na cabina e já encontrou toda a tripulação afobada,
conferindo os instrumentos. Nunes desligara o piloto automático,
segurava os comandos com firmeza, e procurava localizar a causa
da violenta luminosidade que a essa altura invadira inteiramente
o aparelho.
Eduardo tomou o lugar de Cardoso e conferiu num relance
todos os instrumentos: os quatro motores funcionavam em sincro-
nismo absoluto. Todas as temperaturas e pressões estavam nor-
mais, o mesmo sucedendo com todos os outros instrumentos de
navegação.
O rádio-telegrafista e o navegador examinaram seus apare-
lhos e a posição foi conferida. Tudo foi encontrado em ordem, não
havendo motivo para pânico.
A luz era de um azul opalescente e não só se infiltrava pelo
interior da aeronave como também iluminava intensamente sua
estrutura externa, como se o quadrimotor estivesse sendo atingido
pelo foco de possantes refletores. A tripulação, perplexa, procurava
encontrar a causa externa do fenômeno, tentando dominar o as-
sombro.
— Deus do céu! Que estará acontecendo?
— Aqui dentro, tudo está em ordem. A luz vem de fora, deve
estar se passando algum fenômeno atmosférico desconhecido!
Curvado sobre o painel e prevendo o pânico entre os passa-
geiros, o comandante tomou as primeiras providências:
— Vão lá atrás e procurem acalmar os passageiros! Expli-
quem que no avião tudo está em ordem e que não existe nenhum
incêndio a bordo. Inventem qualquer explicação. Leila, diga ao co-
missário que vá até à cauda e examine tudo por lá, deixando os
extintores de incêndio fora das braçadeiras. Vamos! Corram! Não
percam um segundo, que não sabemos o que está acontecendo e o
23
que poderá acontecer!
Leila e Sertório saíram precipitadamente da cabina, ouvindo
as últimas recomendações de Eduardo.
— Digam que o que está acontecendo é comum por estas al-
turas. Que isso acontece toda vez que um avião em grande altitude
e em grande velocidade penetra em uma camada de ar ionizado.
Digam que isso é comum e que não se assustem!
De fato, pouco faltou para que o pânico desarvorasse os pas-
sageiros. No compartimento central, a situação era pior ainda.
De início, pensaram em luar filtrado pela altitude, mas instantes
depois alguém lembrou a possibilidade de um incêndio, surgindo
grande confusão. Ao manifestar-se a luminosidade, somente uns
quatro ou cinco passageiros estavam acordados. Destes, dois liam
e os dois outros jogavam cartas. Assim que a claridade brotou, que-
brando a escuridão da cabina, todos se atiraram às janelas, procu-
rando localizar sua origem, chamando a atenção dos demais, que
foram acordados perplexos. Quando a claridade atingiu o auge a
idéia de incêndio tinha sido admitida, começando a surgir reações
de todos os tipos.
A velhinha de óculos escuros começou a gritar por socorro,
ao mesmo tempo que muitos homens, completamente descontrola-
dos, puseram-se a correr pela cabina, ajustando coletes salva-vidas
e tentando desamarrar os botes de ar comprimido que se achavam
nas extremidades do corredor. A ausência momentânea dos comis-
sários contribuiu para aumentar o pavor, certos quase todos os
passageiros de que o quadrimotor já se consumia em chamas.
A tripulação agiu como devia. Depois de esclarecimentos ge-
rais da situação, proferidos em altos brados pelo comissário e por
Leila, que pediam calma, esclarecimentos individuais foram dados,
procurando demonstrar que tudo ia bem a bordo.
A velhinha de óculos chegou a ser sacudida por Leila, ao pas-
so que o comerciante gordo e de gravata borboleta quase teve de
ser agarrado pelo comissário, pois de forma alguma queria largar o
extintor de incêndio.
— Mantenham-se em seus lugares, por favor! O avião está
em ordem e o que está se passando é um fenômeno muito comum,
devido à ionização do ar na altitude em que nos encontramos. Não
24
se assustem, que tudo isso é normal, Não há nenhum perigo! Cal-
ma, por favor!
Logo que a explicação foi dada e incutida veementemente no
ânimo dos passageiros mais renitentes, o ambiente retornou à nor-
malidade, sem que se procurasse entender o fenômeno. Somente
alguns sabiam o que era ar ionizado, e mesmo estes não cuidaram
de verificar a exatidão da justificativa. De uma forma ou de outra a
calma voltou à cabina, atirando-se todos às janelas, a fim de con-
templar a luminosidade.
Eduardo e Nunes, atentos aos comandos, não encontraram a
causa do fenômeno.
Mas nessa fase final, quando a claridade parecia diminuir,
verificou-se outro acontecimento inexplicável.
Bem em cima da aeronave, ainda no meio da luz esbran-
quiçada que circundava o quadrimotor como uma névoa, impedin-
do a visão antes nítida das estrelas, viu-se um círculo de luz mais
distinto ainda. Esse círculo não estava fixo, nem acompanhava o
movimento da aeronave. Com um halo secundário ao redor, des-
locava-se com fantástica velocidade perpendicular, como se vies-
se em direção ao teto da fuselagem. Eduardo não teve tempo de
examinar a aparição, mal contendo o assombro segundos depois,
quando esse círculo de luz radiante como que estacou acima e ao
lado da fuselagem, e a seguir, numa fração de segundo, tomando
a direção da parte traseira do aparelho, saiu do campo visual dos
tripulantes.
Ao mesmo tempo, sempre em frações de segundo, a lumino-
sidade começou a decrescer, como se comandada pela ação au-
tomática de um reostato3. Em menos de um minuto, eclipsou-se,
dissipou-se a névoa luminosa, ficando tudo como antes, imerso em
escuridão mais profunda ainda e reaparecendo as estrelas em seus
primitivos lugares, como se nada tivesse acontecido.
Logo que Eduardo divisara o halo de luz mais intensa com a
respectiva movimentação fantástica, sem dizer nada, olhara para
Nunes, procurando verificar se também êle vira a aparição. O pri-
3
Reostato ou reóstato, aparelho que permite fazer variar a intensidade da
corrente elétrica e que se utiliza para manter constante o fluxo do circuito; estabili-
zador de corrente elétrica (Nota do “Clube do Livro”).
25
meiro-oficial todavia não dava demonstração de ter notado esse
pormenor, absorto na vigilância dos instrumentos. Ia indagar de
Nunes, quando Leila entrou correndo na cabina:
— Eduardo, eu estava lá atrás, espiando o fenômeno, quando
vi uma coisa incrível...
— Já sei. Não precisa falar. Você viu uma espécie de bola lu-
minosa passar voando para trás em grande velocidade, não foi?
—- Isso mesmo. Você viu também? Que seria aquilo? Não
seria um cometa? Um meteoro?
Podia ser uma explicação razoável para o caso. Quem sabe se
o avião tinha sido interceptado pela queda de um aerólito? É mais
do que sabido que esses corpos celestes, de origem desconhecida,
ao penetrarem na atmosfera terrestre se incendeiam devido à ve-
locidade e ao atrito com o ar, provocando apreciável luminosidade
até se consumirem. Não teria sido isso?
Eduardo discutiu essa possibilidade com a tripulação, es-
quecendo-se todavia do tempo de duração da luz. Se houvessem
passado nas proximidades da trajetória de um bólido ou de um
meteoro, a luz teria sido momentânea, com duração de fração de
segundos e pelo menos com algum deslocamento do ar. A ilumina-
ção durara, porém, quase dez minutos e não houvera turbulência
atmosférica de espécie alguma, não tendo a aeronave sofrido a mí-
nima oscilação.
Foi aí então que o comandante Eduardo se lembrou do inci-
dente de mais de um mês atrás, sobre o aeroporto de São Paulo.
Deixou de comentar o fato e ficou quase meia hora impassí-
vel, mergulhado em profundas cogitações, alheio a todos os comen-
tários desencontrados que surgiam entre a tripulação.
O vôo decorria tranqüilo.
Leila e o comissário preparavam o café e agora a maioria dos
viajantes estava acordada.
Eduardo, acabara de cruzar o compartimento da classe turís-
tica, quando foi chamado por um dos passageiros.
Voltou-se e localizou um senhor grisalho, de aspecto afável
e dono de uns óculos de aro de ouro com uma das lentes bastante
espessa.
— Senhor comandante, gostaria de saber uma coisa.
26
O aviador sentou-se na poltrona vizinha, vaga no momento:
— Pois não, estou às suas ordens.
— Bem, o que eu queria saber relaciona-se com o fenômeno
a que assistimos. Aquela luminosidade acontece com freqüência?
Será realmente do ar ionizado?
Antes de responder, Eduardo olhou discretamente para os
lados e viu que apenas os dois meninos, nas poltronas dé trás,
prestavam atenção à conversa. Nos assentos do lado, o casal jo-
gava uma partida de damas e os ocupantes do banco em frente
dormiam.
— Falando com toda franqueza e deixando de lado a explica-
ção que lhe foi dada, confesso que nunca vimos nada igual.
— Então o senhor admite que foi a primeira vez?
— Sim. Foi a primeira vez e confesso mais que não temos
certeza da explicação dada.
Nesse momento, o homenzinho segurou com delicadeza o
braço do aviador e esticou-se todo, buscando altura para indagar
em voz baixa, no ouvido do comandante:
— O senhor acredita na existência de discos-voadores? Hou-
ve, apenas, uma troca muda de olhares. Eduardo nada disse, pois
já temia a indagação. Nada respondeu e tomou a direção da cabina
de comando.
Cruzando com Leila que saía com uma bandeja de café, pe-
diu-lhe discretamente a relação dos passageiros.
Examinou as três folhas seguras na prancheta, tentando
identificar o homenzinho de óculos de aro de ouro. Os lugares eram
numerados e fácil foi a identificação. Lá estava: “Augusto-Michel
Vaugirard, professor universitário, brasileiro, casado, sessenta e
dois quilos”.
Com efeito, sua previsão fora exata. O homem era um espe-
cialista, como desconfiara ao ouvi-lo referir-se ao ar ionizado. Fa-
lara nesse fenômeno com absoluta naturalidade. Na certa, deveria
ser professor de física ou de química.
Quase automaticamente, Eduardo sentou-se no lugar de co-
mando, pela força do hábito ajustou o cinto de segurança, exami-
nou o painel, conferiu a distribuição do combustível, resolvido a
ficar em seu posto até a última etapa.
27
O vôo continuava orientado pelo cérebro mecânico do piloto
automático.
Eduardo, apenas, vigiava o comportamento das agulhas que
se sustinham nos mostradores, impelidas pelos fluxos que ema-
navam do avião como se fosse um monstruoso organismo vivo, ao
mesmo tempo que tentava dar um balanço aos acontecimentos.
Começou relacionando os dois fenômenos que presenciara. Um so-
bre São Paulo e agora outro sobre o Atlântico. Dois casos absurdos
e sem explicação. Se no primeiro duas foram as testemunhas, já no
segundo as testemunhas atingiam a quase uma centena. E quanto
à segunda parte do último fenômeno — o aparecimento da bola íg-
nea — pelo menos quatro pessoas haviam comprovado o fato. Êle, o
professor, Leila, e, ao que parece, também Nunes. Procurou ligar a
luminosidade à passagem do corpo não identificado. O círculo, ou
a bola ígnea, tinha uma luminosidade mais intensa ainda e podia
assim ser tido como a fonte da claridade que inundara o aparelho.
Era certo que somente vira o círculo durante meio tempo da clari-
dade. Mas também era certo que a luz começara a perder a força
logo depois do desaparecimento de tal bola ígnea.
O comandante Eduardo dispunha de razoáveis conhecimen-
tos sobre quase todos os fenômenos atmosféricos, mas não con-
seguia relacionar o que presenciara com nenhum dos fenômenos
conhecidos, ou pelo menos convencionalmente descritos.
Através dos estudos de meteorologia, sabia da existência de
nuvens quase luminosas devido a intensa carga elétrica contida
em seus bojos. Esses tipos raríssimos de nuvens tinham sido ob-
servados em várias partes do mundo e seu aparecimento precedia
grandes tormentas e até mesmo terremotos.
Mas — considerava Eduardo, imerso em seu solilóquio —
isso também não explicava o fenômeno que acabava de presenciar.
Não houvera agitação atmosférica nenhuma e nem por um milí-
metro o quadrimotor se desviara de sua rota. Considerou, então,
a possibilidade de uma extraviada aurora boreal, deixando de lado
esse raciocínio ao lembrar-se da passagem do corpo incandescen-
te. Relacionando esses dois fatos — a luz e a passagem do corpo
incandescente — logo lhe veio à memória a descrição de certo fe-
nômeno ocorrido em 1860, na India, na localidade de Dhurmsalla.
28
A rigor, foram vários fenômenos consecutivos. Em primeiro lugar,
uma queda demorada de pedras em formas de esferas, de tamanho
reduzido. Depois, uma precipitação de peixes e de certa substância
vermelha não identificada. Ainda em seguida, milhares e milha-
res de observadores, apavorados, tinham visto surgir uma nítida
mancha escura na superfície do sol e propagar-se violenta lumino-
sidade — pois tudo se passara ao entardecer — tida como aurora
boreal.
Eduardo considerou, examinou e relacionou todas essas
ocorrências, inclinando-se mais para a hipótese da passagem de
um meteoro, sem levar em conta o desvio ilógico de sua queda ao
aproximar-se da aeronave.
Estava bem ciente de que esses corpos celestes, de várias
magnitudes, se projetam aos milhares sobre a crosta terrestre, po-
dendo um observador atento anotar até a média de dez meteoros
por hora nas noites tranqüilas, calculando-se mesmo que caiam
sobre a superfície de nosso planeta mais ou menos seis mil tonela-
das, segundo os cálculos dos astrônomos.
Seus tamanhos variam, desde centésimos de milímetros —
raramente atingindo diâmetro de mais de um centímetro — até os
de proporção considerável, não pulverizados ao penetrar na capa
protetora da atmosfera.
Sabia que esses corpos produzem vários tipos de fenômenos
luminosos, devido não só ao atrito violento no rompimento das ca-
madas mais altas da atmosfera, mas também ao gás vaporizado
que envolve o núcleo dos meteoritos, podendo a luminosidade em
alguns casos atingir até quatro mil velas.
Todavia, Eduardo considerava que a explicação caía pela
base. Pois se os meteoritos produzem extraordinários fenômenos
luminosos, isso ocorre nas camadas superiores da atmosfera, bem
acima de cem quilômetros de altitude, desaparecendo normalmen-
te entre cinqüenta e setenta quilômetros de altura. Ora, a aeronave
estava muito abaixo e não podia assim ter sido envolvida pela lumi-
nosidade, admitindo-se a passagem de um desses corpos cósmicos.
Restava ainda um ponto que destruía por completo tal hipótese: o
fenômeno durara quase dez minutos, e seria absurdo supor que o
meteoro tivesse seguido o avião.
29
*

O comandante Eduardo resolveu interromper essa ordem de


pensamentos. Compenetrou-se de que não poderia explicar a ocor-
rência pelo exame dos fenômenos atmosféricos e celestes conheci-
dos, apelando para um tipo mais fantástico ainda de raciocínio.
Ajustou o sincronismo do motor número dois, verificou as
pressões e temperaturas e consultou o relógio. Tinham pouca ho-
ras para divisar a costa africana pela proa. O Atlântico estava sen-
do vencido.
Acomodou-se melhor na poltrona, soltou o cinto, preparan-
dô-se para encarar a questão por um prisma absurdo.
O professor de óculos de aro de ouro tinha indagado dele se
acreditava na existência dos discos-voadores.
Não respondera, e agora, pela primeira vez, resolvia encarar
friamente a questão.
O comandante Eduardo Germano de Resende sempre fora
cético nesse assunto. Não que ignorasse — nesse ano de 1958 — o
que vinha acontecendo em todas as partes do globo, mas sim por-
que considerava todos os relatos confusos e divergentes, cuidando
que tais aparelhos deveriam ser novas armas de guerra ultra-aper-
feiçoadas, não apanágio exclusivo do ocidente, mas também dos
povos orientais.
Reconheceu consigo próprio que o fenômeno poderia ser des-
crito como a passagem de um disco-voador e que deveria assim
enfrentar essa hipótese, por mais fantástica que pudesse parecer.
Logo que as aparições de discos-voadores começaram a ser
noticiadas, o moço tratara de analisar e colecionar tudo o que lia
a esse respeito. Depois de certo tempo e pela repetição dos relatos,
desinteressara-se da questão.
Contudo, três casos o haviam impressionado sobremaneira,
a ponto de abalarem o seu ceticismo. O primeiro foi exatamente
a primeira notícia que se teve no mundo — pelo menos no mun-
do moderno — sobre o aparecimento de tais aparelhos. Os jornais
debateram o assunto e a ocorrência foi descrita milhares de vezes,
em todas as latitudes e em todas as línguas, iniciando-se o que já
chamava — a era do disco-voador. Tal caso fora o ponto de partida
30
e merecia ser relembrado:
Em 21 de junho de 1947, o comerciante Kenneth Arnold, da
cidade de Boise, Estado de Idaho, nos Estados Unidos, voava em
seu aparelho particular nas proximidades do monte Rainier, no
Estado de Washington, costa do Pacífico. Voava de Chehalis a Yaki-
ma, desviando-se alguns graus de seu roteiro, a fim de efetuar pes-
quisas na região do monte Rainier, visando a localização de certo
avião-transporte desaparecido naquele ponto. Em dado momento,
ao contornar em grande altitude os contrafortes do maciço gelado,
coberto de neves eternas, divisou, destacando-se contra os flancos
brancos da encosta, uma formação estranha de nove objetos que
voavam em linha, com a mesma formação com que se deslocam os
patos selvagens.
Mr. Arnold fixou melhor a vista e observou que os objetos
tinham forma circular, como um pires ou um prato, do tamanho
aproximado de dois C-54, deslocando-se em velocidade fabulosa,
por êle calculada em mais ou menos três mil quilômetros horários.
Mr. Arnold estava na mesma altura dos objetos, a cerca de trinta
ou quarenta quilômetros de distância.
Descrevendo publicamente a visão, o comerciante relatou
que os misteriosos aparelhos eram metálicos e refletiam a luz solar
como se fossem espelhos.
O segundo fato que impressionou Eduardo e constituiu ver-
dadeiro choque para a humanidade inteira — pois apresentou re-
sultados concretos — foi o ocorrido a 7 de janeiro de 1948 sobre
a base aérea de Godman, no Estado de Kentucky, também nos
Estados Unidos.
Nesse dia, um objeto não descrito foi localizado a grande al-
titude sobre as instalações da base, evoluindo em velocidade incal-
culável, sem emitir um único som. A aparição foi verificada pelas
centenas de pessoas que se achavam na base e examinada por
grande número de instrumentos ópticos, sem que se chegasse à
conclusão alguma sobre sua natureza.
Para identificar a aparição, o coronel Hix, comandante da
base, determinou imediatamente a subida de três aviões a jato. A
esquadrilha decolou sem perda de tempo, sob o comando do capi-
tão Thomaz Mantell, ganhando altitude e procurando acercar-se
31
do corpo estranho, que permanecia na mesma posição, dando, às
vezes, a impressão de estar parado. Desenvolvendo a máxima ve-
locidade, com toda a força de sua turbina, o oficial desgarrou-se
do grupo, buscando aproximação maior do objeto não identificado.
Desde a decolagem estava em contato com a torre pelo rádio e ia
descrevendo o que via, à medida que se aproximava.
Informou então o capitão Mantell que a “coisa” era imensa
e metálica, calculando um raio de duzentos a trezentos metros de
diâmetro, com velocidade que avaliou em trezentos quilômetros
horários. A seguir, anunciou que ia acercar-se mais do fantástico
engenho, imprimindo ao avião velocidade superior. Mas, quando
tentava aproximar-se, cessou subitamente o contato pelo rádio,
desaparecendo o avião da visibilidade de terra devido à altitude
em que se achava, nos limites máximos do teto praticável. Não só
o rádio silenciou, mas também o aparelho desapareceu, tendo os
outros dois aviões aterrado normalmente.
As pesquisas iniciaram-se em seguida e algum tempo depois,
em uma larga área, foram encontrados os destroços do avião, in-
teiramente destruído, dando a idéia de que uma força tremenda
e desconhecida lhe desintegrara a estrutura. Examinaram-se os
destroços em absoluto segredo, instaurou-se inquérito e a morte do
piloto foi anunciada oficialmente.
O terceiro caso que perturbara Eduardo e agitara o mundo
científico foram as declarações do inglês F. W. Potter, astrônomo
amador, membro da Associação Astronômica Britânica e da Socie-
dade Astronômica de Norwich, relatadas em carta endereçada em
11 de outubro de 1953 ao The Observer, jornal publicado na cidade
de Norwich, na Inglaterra.
Declarou esse pesquisador que, enquanto observava os céus
sobre Norwich, mais ou menos pelas sete horas da noite, a olho nu,
localizara certo objeto vultoso e brilhante que se movimentava para
sudoeste. De início, supôs que se tratasse de uma estrela de grande
magnitude, com luz amarelada, passando, então, a focalizá-la por
meio de um telescópio de três polegadas e meia. Mas se surpreen-
deu ao apurar que não se tratava de uma estrela, mas sim de uma
espécie de aeronave em forma de disco, com uma protuberância
na parte central. Nessa parte central, viam-se aberturas como es-
32
cotilhas ou janelas, das quais saía intensa iluminação. Informou
mais que o objeto se mantinha sempre na mesma altitude e que
não deixara no espaço traço algum revelador do seu tipo de pro-
pulsão. Adiantou ainda que o objeto permanecera sob a objetiva
quase quatro minutos, estando o firmamento límpido, estrelado,
sem traços de nuvens, o que favorecera sobremodo a observação.
Corroborando tais declarações, indicou Mr. Potter grande número
de habitantes de Norwich que testemunharam a ocorrência.
Mas de todas as notícias que Eduardo colecionara, de todos
os fatos que lhe chegaram ao conhecimento, o mais fabuloso, dig-
no de revistas de histórias em quadrinho e de filmes de ficção, fora
aquele divulgado por jornais dos Estados Unidos, de uma fantásti-
ca aventura nas cercanias da cidade do México.
Diziam os jornais, em espetaculares manchetes, que certo
indivíduo chamado Roy L. Dimmick, de Los Angeles, ao cruzar uma
região desolada nas proximidades da capital do México deparara
com os escombros de um aparelho que seria um disco-voador. Exa-
minando os destroços, que davam a idéia de um engenho de pelo
menos quinze metros de raio, teria o homem descoberto os corpos
dos tripulantes do disco, inteiramente carbonizados e do tamanho
de apenas vinte e três polegadas. As mesmas notícias esclareciam
ainda que as autoridades militares teriam se apoderado dos destro-
ços, a fim de encobrir o achado sensacional.
Eduardo, como o resto da humanidade, não tomara a sério
a notícia, levando-a na conta de balela bem engendrada por um
indivíduo de imaginação, ávido de publicidade.
A essa altura, os pensamentos do comandante foram inter-
rompidos pela entrada do navegador, que lhe passou as informa-
ções meteorológicas recebidas de Dakar. Estavam já no fim da
travessia e de um momento para outro a mancha de luz deveria
aparecer na linha do horizonte, pela proa da aeronave.
Os cálculos pareciam exatos e logo mais uma tênue lumino-
sidade destacou-se junto ao horizonte, quebrando a escuridão em
que se fundiam o céu e o oceano.
Eduardo pediu que chamassem o primeiro-oficial e começou
a conferir os instrumentos para a aproximação e aterragem.
As luzes foram se acentuando e os primeiros pontos princi-
33
piaram a destacar-se na mancha luminosa. Não havia tráfego so-
bre o aeroporto e, com o vento soprando em direção ao oceano, a
aproximação seria direta.
O aviador foi preparando o quadrimotor para o pouso, redu-
zindo a rotação das hélices, tendo já desligado uma hora antes o
piloto automático.
Dakar ia surgindo cada vez mais nítida. Já se distinguiam a
ilha Madalena e a protuberância do cabo Manuel. As luzes do aero-
porto acentuaram-se além da cidade, bem destacadas ao redor do
farol giratório, adivinhando-se a posição das pistas.
A imensa aeronave arrefeceu o ímpeto e foi se acercando da
terra como um pássaro cansado.
Os pneus cantaram na pista e o avião deslizou, agora ampa-
rado pelo solo africano.

III — MADRUGADA EM DAKAR

A escala em Dakar levaria mais de uma hora. O quadrimotor


tinha que ser reabastecido e era hábito um rápido exame dos mo-
tores.
Os passageiros desembarcaram e espalharam-se pelo aero-
porto, sentindo que as vitrinas de curiosidades e lembranças, nos
corredores internos das instalações, estivessem fechadas e ausen-
tes os vendedores. O único que ali permanecia, impassível ante a
noite e o sono, era o negrinho das esculturas de ébano, dos poti-
ches misteriosos, dos deformados totens tão característicos da arte
nativa dos africanos. Envolto nos panejamentos brancos de suas
vestes, parecia êle também, com o crânio ovalado, um pequeno
deus estático na penumbra que antecedia o salão de refeições.
O restaurante e o bar funcionavam parcialmente e a maio-
ria dos passageiros espalhou-se pelas mesas, ressentindo-se do ar
morno e abafado, preferindo a temperatura interna do avião.
Eduardo e Leila escolheram um canto mais vazio do bar e pe-
diram refrescos, ao mesmo tempo que o aviador examinava as úl-
timas informações meteorológicas vindas de Casablanca. Absorto
no exame do papel, não notou a aproximação furtiva do professor
Augusto-Michel Vaugirard.
34
Timidamente, perguntou este ao comandante se a demora ia
ser longa e aceitou o convite para sentar-se junto à mesa.
Eduardo dobrou o boletim meteorológico, já pressentindo às
verdadeiras intenções daquela aproximação discreta. Sabia qual o
assunto a ser abordado e, como também queria reexaminar outros
aspectos da ocorrência, provocou a questão sem maiores delon-
gas.
— O senhor me perguntou no avião se eu acreditava na exis-
tência dos discos-voadores. Não respondi, mas admito que esse
assunto já me preocupou muito. Antes de responder, gostaria de
saber sua opinião. O senhor acredita neles?
O professor foi tomado de surpresa. A pergunta, de início,
perturbou-o, mas, segundos depois, assenhoreando-se da situa-
ção, respondeu, calmo:
— Bem, para um começo de conversa, não direi que acredito
e nem que não acredito. Nós, homens dedicados à ciência, só di-
zemos que acreditamos numa realidade palpável, quando temos
conhecimento próprio e direto dessa realidade; ou então quando
encontramos dados sensíveis e racionais que demonstrem a exis-
tência dessa realidade. Do mesmo modo que o senhor me confes-
sou, posso adiantar também que essa questão já me preocupou
demais e na verdade continua me preocupando. Antes, porém,
devo apresentar-me; dando-lhes pormenores sobre minha pessoa e
minha profissão, explicando-lhes assim porque me interesso e me
interessei pelo assunto.
Fêz uma ligeira pausa, voltou-se como que procurando o gar-
ção, e continuou:
— Sou professor de astrofísica numa universidade de São
Paulo e tenho ultimamente me dedicado a pesquisas no campo
de energia nuclear. Trabalho em estudos reservados, não tornados
públicos devido à sua fase experimental. Minha viagem foi dada
como sendo para um congresso. Mas a verdadeira finalidade dela é
a compra de materiais para o aperfeiçoamento de nosso laboratório
atômico.
Parou de falar outra vez e, localizando o garção, pediu um re-
fresco igual ao que o aviador e a comissária tinham à sua frente.
— Vê pois o senhor que me dedico a vários ramos de pes-
35
quisas e, portanto, desde o início, precisamente desde 1948, não
poderia deixar de considerar o fenômeno “disco” como uma das
coisas mais sérias de nossa época. Para mim, tudo começou por
simples curiosidade. Depois, os fatos foram se complicando e ao
lado dessa curiosidade inconseqüente começou a aparecer outro
interesse, que eu chamaria de “espírito de pesquisa”. Depois, ain-
da, movido por objetivos superiores, passei a investigar as apari-
ções com ordenação e método, chegando a resultados espantosos.
Não direi que acredito na existência dos discos-voadores. Mas, res-
pondendo à sua pergunta, direi que não elimino a possibilidade de
sua existência. E é por isso que o fato que presenciamos está me
preocupando.
— Já me compenetrei de que o senhor é uma autoridade no
assunto, disse Eduardo, e poderá auxiliar-me no esclarecimento
do que nos aconteceu. Que é que nos iluminou daquela forma?
Que foi aquela “coisa” mais luminosa ainda e que desapareceu na
retaguarda do avião?
O professor apanhou de vagar o copo de refresco que o garção
colocara à sua frente, girou a colher espalhando o açúcar deposi-
tado no fundo e, medindo bem as palavras, respondeu pausada-
mente:
— Não sei dizer-lhe o que se passou. Conheço várias dezenas
de fenômenos atmosféricos, desde os mais simples até aos mais
complexos, mas não conheço nenhum que se assemelhe ao que
assistimos. Como o senhor deve também ter imaginado, pensei em
aerólitos, bólidos, auroras boreais, fenômenos de refração, até em
miragens, mas logo reconheci que nada disso poderia ter produzido
aquela fantástica luz côr de magnésio, e menos ainda a passagem
daquela bola ígnea de trajetória desigual. O fenômeno que mais se
assemelha a essa bola foi o observado pelos aviadores, durante a
segunda guerra mundial, nos vôos de grande altitude. O senhor,
como piloto que é, já deve ter ouvido falar nisso, com certeza.
Eduardo respondeu afirmativamente:
— Sim, por mais de uma vez. Os aviões em missões de grande
altitude, durante a noite, eram acompanhados às vezes por grande
número de bolas luminosas que não produziam dano algum aos
aparelhos. Os norte-americanos passaram a denominar a ocorrên-
36
cia de foo-fighters e começaram as tais bolas a ser observadas e
estudadas no fim da guerra. As aparições foram sobretudo verifica-
das pelos bombardeadores que em vôo noturno, saindo da Inglater-
ra, demandavam os pontos centrais da Alemanha.
— Exatamente — concordou o professor — essas bolas de
fogo, de tamanhos variáveis, surgiam ora como glóbulos ora como
manchas sem rotundidade, acompanhando paralelamente os
aviões durante longo tempo. Foram também observadas sobre o
Pacífico, por pilotos que se dirigiam em missão de guerra às ilhas
do Japão. Inúmeros estudos se fizeram e logo se concluiu que nada
mais eram senão produto da refração das próprias luzes das aero-
naves, causadas por certos tipos de camadas de ar que envolviam
as esquadrilhas. Anotados os fatos e elaboradas as estatísticas,
comprovou-se mais que essas aparições seguiam de preferência os
aviões danificados pelos combates aéreos e pelo fogo das baterias
de terra. Concluiu-se, então, que as estruturas desses aparelhos
danificados criavam uma turbulência anormal durante a passa-
gem de certas correntes de ar, quebrando o perfil aerodinâmico e
possibilitando assim a gênese do fenômeno, também auxiliado pela
formação de partículas de gelo nas grandes altitudes e pela con-
densação do ar. Este agia como superfície refletora.
— No nosso caso não se pode cogitar desse fenômeno — ata-
lhou Eduardo — a “coisa” que vimos passou por nós. A bola ou dis-
co era uma só e o avião viajava em condições normais. A tempera-
tura fora era comum e não havia gelo nas asas. Sinto-me vencido.
Em minha carreira, nunca vi nada igual ou parecido, e não acho
explicação lógica de espécie alguma.
— Sinto desapontá-lo, comandante. Ignoro também as cau-
sas do fenômeno a que assistimos. Não sei se o senhor sabe, mas a
Força Aérea Norte-Americana, estudando seriamente as aparições
dos discos-voadores, no famoso projeto denominado blue-book,
examinou mais de mil e oitocentos casos, concluindo que oiten-
ta por cento dos relatos foram devidos a fenômenos atmosféricos
naturais, ou ocorrências normais não identificadas pelos obser-
vadores. Nessa última hipótese, muitos dos objetos tidos como
discos-voadores nada mais eram senão balões-sondas extraviados
nas grandes alturas, pedaços de papéis e vegetais elevados por cor-
37
rentes ascendentes e redemoinhos, ilusões de óptica e defeitos vi-
suais, reflexos de luzes distantes, meteoros e ar ionizado, nuvens
lenticulares ou então simples corpos celestes em condições favorá-
veis de observação, como o planeta Vênus ou as Perseidas, e ainda
enxames de estrelas filantes. Todavia — continuou o professor —
em declarações prestadas em julho de 1952, o general Sanford,
porta-voz autorizado da Força Aérea Norte-Americana, divulgando
os resultados dos exames e inquéritos, afirmou que vinte por cento
das aparições investigadas permaneceram sem explicação plausí-
vel, constituindo mesmo fenômenos misteriosos e desconhecidos.
Penso que o nosso caso está melancòlicamente destinado a aumen-
tar essa percentagem inquietadora dos vinte por cento, o que vem
dar certa vantagem aos adeptos dos engenhos voadores. Não acha,
comandante?
— O senhor mencionou o general Sanford. Sei também que
inúmeras outras personalidades de relevo no campo da ciência não
negam a existência dos discos-voadores. Li em algum lugar que o
professor Hermann Oberth, matemático e físico famoso, responsá-
vel pelos mais avançados estudos sobre navegação interplanetária,
num congresso internacional de astronáutica realizado em Inns-
bruck, em 1954, declarou que estava convencido da existência dos
chamados discos-voadores, não negando a possibilidade de terem
origem extra-terrena.
O aviador já havia relacionado o fato recente com aquela pri-
meira ocorrência no céu de São Paulo. Ligou mais uma vez os acon-
tecimentos e resolveu contar ao professor, pondo-o a par de todas
as minúcias.
Augusto-Michel ouviu silencioso e admirado o relatório e ten-
tou uma explicação:
— De fato. Mas não deixe de levar em conta que isso já pode-
ria ter ocorrido com outros aviadores. Existe em torno do assunto
uma espécie de mistério e certo receio muito compreensível, aliás,
das testemunhas de tais ocorrências, quanto à divulgação desses
fatos. Receiam naturalmente ser tachadas de mentirosas, imbe-
cis, anormais ou mesmo pessoas sem escrúpulos e desejosas de
publicidade. Não se esqueça de que muitos indivíduos alardearam
ter visto coisas incríveis, tais como restos mortais de homúnculos
38
de outros planetas encontrados em escombros de discos-voadores,
não faltando as histórias dos que chegaram a voar nessas naves
do espaço. O senhor já deve, por certo, ter ouvido falar naquele
cidadão que garantiu ter sido transportado pelo disco até o planeta
Vênus...
Eduardo consultou o relógio. Vendo que dispunham ainda de
muito tempo e sabendo que Nunes e Cardoso se encarregavam de
fiscalizar o reabastecimento do avião, resolveu provocar o professor
para aquilatar o grau dos seus conhecimentos sobre o assunto, e
também para esclarecer uns tantos pontos que considerava inso-
lúveis:
— O senhor falou em homenzinhos de outros planetas. Diga-
me uma coisa, professor. Admitindo-se a existência desses enge-
nhos, qual poderia ser sua origem, de acordo com o seu ponto de
vista pessoal?
O professor parou de rodar nas mãos o copo vazio.
— Eu não disse que acreditava na existência dos discos-vo-
adores — retorquiu Augusto-Michel — disse que não afastava a
possibilidade de sua existência. Mas admito a pergunta. Partindo
da existência comprovada desses engenhos, posso declarar por ex-
clusão que eles não vêm de parte alguma do nosso planeta, não se
tratando assim de engenho bélico ou experimental de propriedade
de qualquer povo da face da terra. Quando faço esta afirmação me
baseio em fatos concretos, originários das próprias descrições que
vêm sendo feitas desses objetos. Em primeiro lugar, a velocidade.
Em segundo lugar, a altitude. E em terceiro lugar, os movimentos
do engenho.
Fêz uma pausa, aprumou-se melhor na cadeira e continuou
no mesmo tom prudente e sereno, como se estivesse desenvolvendo
uma tese perante seus alunos, em uma das aulas na Universida-
de:
— Como sabe o comandante, em dois pontos identifica-se a
totalidade das descrições, sem discrepâncias. Os discos cruzam o
espaço em alturas elevadíssimas e em velocidade espantosa, sem
emitir um ruído sequer. E contudo, até hoje, até os dias que cor-
rem, não produziu a inteligência humana nenhum aparelho que ul-
trapassasse a velocidade de cerca de dois mil quilômetros horários,
39
capaz de transportar seres humanos. Velocidades mais elevadas
já foram produzidas, mas fora da atmosfera e sem seres viventes.
Existe pois — continuou — antes de mais nada, um problema de
velocidade ligado à questão do material, ligado também ao tipo de
propulsão a ser utilizado. Temos que admitir que a equação não foi
ainda solucionada.
À medida que a conversa se ia aprofundando, o aviador come-
çou a perceber que o homenzinho era realmente grande conhece-
dor da matéria — mesmo expondo fatos primários — confirmando-
se assim as suspeitas de Eduardo. Este, sempre procurando obter
maiores elementos, simulando ignorância do assunto, limitava-se
a provocar o professor, obrigando-o nas respostas a examinar uma
série de questões que só um especialista poderia elucidar.
Raros passageiros ainda permaneciam no restaurante e mui-
tos passeavam lá fora, procurando alívio ao calor. Eduardo consul-
tou o relógio. Lembrou-se de ajustá-lo de acordo com a transposi-
ção dos fusos horários. E, vendo também a mudança de ânimo do
professor, aproveitou o pretexto para mudar de assunto:
— Dizem que a madrugada africana, principalmente na orla
do deserto, é sempre purpúrea e rápida. Esta que começamos a as-
sistir é um exemplo típico. Nunca vi tonalidade de vermelho assim
tão intenso!
— Partiremos logo, comandante?
— Acho que tudo já está em ordem no avião. Se me permite,
irei para lá, a fim de verificar pessoalmente.
O professor levantou-se, acompanhando Eduardo e chamou
o garção. Enquanto o senegalês alto e imponente providenciava
a conta, Augusto-Michel tirou do bolso um livro de cheques de
viagem e lançou sua assinatura numa cédula, antecipando-se ao
aviador no pagamento da despesa.
— Comandante, aqui lhe deixo meu cartão com o endereço
em São Paulo. Ficarei na Europa mais ou menos uns vinte dias e
ao regressar gostaria de vê-lo.
E, sem mais palavras afastou-se, deixando Eduardo e a
comissária perplexos com essa inesperada mudança de atitude.
Quem falou então foi Leila, pela primeira vez:
— Puxa! Que tipo esquisito! Fala à vontade, faz uma infin-
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dável conferência, depois se fecha de repente e se retira como se
o tivéssemos ofendido, ou como se tivesse cometido alguma falta
imperdoável...
O aviador não prestou atenção às palavras da companheira.
Mergulhado em suas cismas, acompanhava com o olhar a silhueta
do homenzinho que se destacava agora na saída lateral do aeropor-
to contra o céu que ganhava aos poucos tonalidade avermelhada.
Leila apanhou o cartão de visitas, deixado sobre a mesa, e leu
em voz alta, procurando chamar a atenção do piloto:
— Professor Augusto-Michel Vaugirard. Alameda Arumani,
número 3.722 — São Paulo.

IV — O PERSONAGEM DE TOULOUSE-LAUTREC

Durante as duas últimas etapas — Dakar a Lisboa e Lisboa a


Paris — nada mais de anormal se verificou a não ser uma alteração
de rota nas alturas do Rio do Ouro, quando enveredaram mais para
o oceano, desviando-se de violenta tempestade de areia, que vinha
do lado do deserto.
O contato com os passageiros foi o mínimo possível nessas
últimas etapas, mas o suficiente para que Eduardo verificasse que
o professor Vaugirard procurava esquivar-se à continuação da con-
versa. Todas as vezes que o comandante passou pelo corredor em
direção à parte posterior do avião, não teve uma única oportunida-
de sequer de trocar outras palavras com o professor. Este ou estava
dormindo ou estava com o rosto enfiado num livro enorme de capa
vermelha, como absorto pelo seu conteúdo, alheio aos demais, in-
clusive ao aviador.
Eduardo, ao notar essa atitude quase ostensiva, não procu-
rou entabular outras conversas com o homenzinho, não deixando
contudo de estranhar tal procedimento.
No fundo, o comandante buscava outro contato. Tinha se im-
pressionado com os conhecimentos do professor e alguma coisa
dentro de si lhe dizia que aquele era o homem indicado, que aquela
era a pessoa colocada pelo destino dentro do seu aparelho para
solucionar os dois enigmas que lhe haviam sido propostos. Mas,
notando a nova atitude do homem, como que de retraimento, tal-
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vez arrependido da conversa em Dakar, conteve-se e não mais o
procurou.
Em Lisboa, no aeroporto de Sacavem, a parada foi rápida.
E fora do avião Eduardo mal teve tempo de ver o professor numa
banqueta alta, ao fundo do bar, preocupado com um enorme copo,
cujo conteúdo branco contrastava com vários canudinhos verme-
lhos.
Em Paris, logo depois dos desembaraços alfandegários, o
comandante cruzou inesperadamente com Augusto-Michel. Este
preparou então o seu melhor sorriso e, antes que aquele tomasse
qualquer atitude, estendeu-lhe a mão e proferiu algumas palavras
de agradecimento e despedida.
Eduardo chocou-se com tal procedimento e mal pretendia
corresponder à despedida, quando o professor se afastou à pressa,
misturando-se com a pequena multidão que disputava a preferên-
cia no recebimento das bagagens.

Paris, para o comandante Eduardo, era apenas o fim da via-


gem.
No começo, havia anos, a cidade tinha para êle outro signi-
ficado. Era a realização de muitos de seus sonhos da juventude
e em si só personificava toda a Europa. Vagamente se recordava
desse primeiro período, do descobrimento da cidade imensa. Desde
o momento em que rodava os motores em solo brasileiro já tinha o
pensamento fixo na meta final. Nas primeiras vezes, nem mesmo
conseguia dormir, tanto a cidade o impressionava e lhe avassalava
a imaginação. Queria conhecê-la inteiramente, queria reconhecer
os locais e ambientes já familiares através de leituras e fotografias.
Queria, em poucos dias dominar todos os seus segredos e encan-
tos, esquecendo-se dos aviões e dos horários, vivendo intensamen-
te todos os minutos dessa almejada escala final.
Nesse dia, mais do que nunca, sentia saudades do hotelzinho
simples e burguês da Rue du Bac, escondido ao lado do Boulevard
Saint-Germain, incrustado no meio de edifícios solenes e vetustos
que iam até ao Pont-Royal espiar indiscretamente as águas turvas
42
do Sena.
No fundo, Eduardo era conservador e seu temperamento jus-
tificava a escolha desse hotel, cuja fachada carcomida e modesta
ostentava um nome dos mais imponentes — Hotel Richelieu.
Desde a primeira vez, freqüentava o mesmo hotel. Fora indi-
cado pelas outras tripulações, que viam na hospedagem da velha
Geneviève uma espécie de pensão, onde o modesto aspecto exterior
era bem compensado por camas macias e pelo trato familiar, tudo
isso coroado pelo preço modesto, aliado a um incrível garção ca-
rioca, que há mais de vinte anos desertara de um navio do Lóide.
Transformado em autêntico parisiense, era agora popular entre as
tripulações que freqüentavam a casa.
Na saída de Orly, Eduardo despediu-se de Leila, não indagan-
do dos companheiros a que hora iriam para o hotel. Todos ficavam
também no Richelieu, a exceção da comissária que se hospedava
num minúsculo apartamento, mantido pela companhia para a tri-
pulação feminina no Champs-EIysées, a uma centena de metros da
nossa embaixada.
Deviam ser mais ou menos umas três horas da tarde, quando
se despediram. O aviador combinou com Leila um telefonema na
hora do jantar para marcar encontro.
O comandante Eduardo não tinha por hábito a convivência
com as comissárias fora das horas de serviço, ao contrário do que
acontecia com quase todos os outros colegas. Todavia, Leila era
um caso especial e desde há muito tempo êle se convencera de que
aquela moça não era como as demais, e sentia que num futuro bem
próximo teria que tomar uma atitude em relação a ela. A amizade
era antiga, nascida não por interesses sentimentais, mas por afini-
dade de temperamentos. Ambos se buscavam instintivamente, da
convivência emergindo uma afeição segura, com evolução anteci-
padamente prevista.
No hotel, o comandante foi recebido com as palavras de sem-
pre.
A porteira pôs a cabeça fora do postigo, ajustou os óculos de
aro de tartaruga remendados com esparadrapo e, estirando um
braço fino e enrugado, passou as chaves do cômodo do segundo
pavimento.
43
Um banho de imersão numa banheira imensa e um repouso
de poucos minutos foram suficientes para demonstrar a Eduardo
que não podia ficar só aquela noite, a ruminar os fatos que agora já
se iam transformando em perigosa idéia fixa. Ligava os dois fenô-
menos e sentia-se desamparado no centro dos acontecimentos.
Apanhou a carteira. Revirou-a e tirou do interior o cartão
grande de pele da cabra.
—Hum... hum... Augusto-Michel Vaugirard, Alameda Aru-
mani, 3.722... Que tipo curioso! Por que será que êle sabe tanta
coisa? Parece que sabe, mais ainda sobre os discos-voadores e não
quer contar. Qual será realmente sua profissão? Será mesmo pro-
fessor?
Não tinha mais dúvidas. Não podia ficar só. Precipitou-se
pela escada, assustou dois gatos no segundo andar e nervosamen-
te ligou o velhíssimo telefone para o apartamento de Leila.
— Alô, Leila? Escute, vamos sair mais cedo. Não estou cansa-
do e poderíamos dar umas voltas antes do jantar. Sim? Encontre-
me no Rond-Point, no lugar de sempre, às cinco. Certo. Até já.
Mal largou o aparelho e ouviu a voz fanhosa e desarticulada
da porteira de braços longos e magros. Parou nos primeiros de-
graus da escada.
— Minutos atrás esteve aqui uma pessoa indagando do se-
nhor. Disse-lhe que estava no segundo andar e que poderia avisá-
lo, dando-lhe conhecimento da visita. Êle não quis dizer o nome
e, mal lhe dei a informação, saiu rapidamente. Penso que apenas
queria saber se o senhor estava mesmo hospedado aqui.
— Não falou mais nada? Não disse quem era? Não deixou
nenhum recado?
— Não, senhor. Não deu tempo para nada. Apenas obteve mi-
nha resposta, foi embora com a mesma rapidez com que entrou.
— Curioso! — retrucou Eduardo. — Não tenho amigos em Pa-
ris e nem outros negócios. Da companhia não viriam indagar se eu
estava aqui, pois sabem meu endereço há muitos anos. Diga-me,
como era esse senhor? Tinha jeito de estrangeiro? Usava óculos de
aro de ouro?
— Não, nada disso. Observei que usava chapéu-côco e que
tinha um nariz mal feito e vermelho, anormalmente rubro mesmo.
44
Pela pronúncia não parecia estrangeiro, mas...
— Mas o que? — insistiu Eduardo.
— A voz, a voz tinha um sotaque diferente. Falava com cor-
reção, mas tinha alguma coisa fora do comum que não sei dizer
exatamente o que era. Bem, isso é um pormenor sem importância.
Se precisa falar com o senhor não se preocupe que voltará. Na cer-
ta, retirou-se porque lhe disse que o senhor estava de chegada e
repousando.
— Diabo! — exclamou Eduardo, visivelmente intrigado. — É
muito curioso! Quem poderia ser? De uma maneira ou de outra, se
êle voltar, quero que a senhora indague o seu nome ou então o que
êle quer comigo. Isso na hipótese de eu ter saído...
— Fique tranqüilo, senhor! Se voltar, procurarei saber tudo.
Novo ponto de interrogação veio adicionar-se à mente do
perplexo aviador. Não atinava quem pudesse procurá-lo em Paris,
poucas horas depois de sua chegada.
Ganhou a rua e fêz parar o táxi no Boulevard Saint-Germain,
demandando o local onde deveria estar Leila.
Quem visse a comissária naquele instante vespertino, sem o
uniforme azul e sóbrio da companhia, mas com um vestido justo e
estampado, bem de acordo com a primavera que dominava Paris,
não diria tratar-se de uma estrangeira. Muito ao contrário, diria ser
uma genuína parisiense, de gosto apurado, imaginando mesmo,
devido ao porte airoso e esguio, que talvez se tratasse de um mode-
lo profissional de alguma casa de modas da Rue de la Paix.
Eduardo mesmo, conquanto preocupado com os últimos
acontecimentos, não deixou de notar a elegância da companheira.
— Muito bem. Ótimo! Você não sabe como esse vestido lhe
assenta! Não resta dúvida que é bem mais elegante que o uniforme!
Você está uma parisiense autêntica...
— Deixe de brincadeira e diga logo por que razão está tão
impaciente. Marcamos o encontro para a hora do jantar e mal teve
tempo de chegar ao hotel já me telefonou. Que houve? Alguma coi-
sa de especial ou o programa de sempre?
— Não, não existe nada de extraordinário, a não ser ainda o
tal professor. Aquele homem me intrigou e reconheço que não pos-
so me conformar com o incidente havido na viagem.
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— De fato, o homem é esquisito. Mas não vejo motivos para
essa preocupação. Quanto ao incidente, também não há motivo
para nervosismo. Nada de anormal ocorreu com o avião e você não
deve impressionar-se tanto com o fenômeno.
— Não, Leila, a coisa não é simples como você está pensando.
Existe aquele outro fato. Aquele outro acontecimento também mis-
terioso sobre São Paulo. Vamos para um local mais sossegado para
podermos conversar. Sinto que necessito de um desabafo. Nem
mesmo consegui ficar sozinho no hotel.
Tomou a comissária pelo braço e ambos enveredaram pela
avenida Montaigne em busca de um restaurante tranqüilo, onde
pudessem conversar à vontade. Detiveram-se em frente ao Café du
Théâtre, abriram caminho entre as mesinhas repletas da calçada,
sob os castanheiros, e descobriram, afinal, uma mesa de canto,
próxima à vitrina. Depois de exame rápido do cardápio, escolheram
as mesmas coisas de sempre.
— Em poucas palavras: não posso deixar de relacionar os
dois fenômenos. Sinto-me preocupado, como se estivesse sendo
transformado em espectador e testemunha de fatos misteriosos.
Que será que existe atrás disso tudo?
Leila ficou séria, compreendendo de pronto que o aviador não
brincava e que estava realmente impressionado com as duas ocor-
rências.
— Sim, mas não se esqueça que no outro avião, no DC-3,
também houve um descontrole dos instrumentos. Logo, você não
foi o único espectador nem a única testemunha. E quanto ao pro-
fessor, não sei porque o impressionou tanto. Tudo o que disse é
mais ou menos sabido. No fundo, agiu como um grosseirão, ao sair
sem ao menos se despedir de nós lá em Dakar. Você está superes-
timando os fatos, vendo mesmo fantasmas.
— Não sei por quê. Posso estar enganado, mas alguma coi-
sa me diz que aqueles dois fatos têm relação entre si. Quanto ao
professor, tive a certeza de que sabe mais coisas sobre os discos-
voadores e que interpretou a passagem daquela bola de fogo como
sendo mesmo um disco...
Leila de novo começou a rir, apertando levemente uma das
mãos de Eduardo.
46
— Não me diga que você está assim devido aos discos-voado-
res. Você não é nenhum leigo em matéria de aviação, e já passou
da idade de impressionar-se com aventuras literárias.
A moça sentiu que os acontecimentos estavam empolgando a
fundo o aviador e resolveu agir com mais cautela, procurando con-
tornar a situação, analisando os fatos não superficialmente mas
com a possível lógica, não deixando de admitir que a ocorrência
fora deveras misteriosa.
— Desculpe-me. Não quis ofendê-lo quando falei em aventu-
ras literárias. Vimos tudo também e não podemos negar o aconte-
cido. Mas concorde comigo que tudo não teve conseqüências e que
você não tem razões ponderáveis para relacionar os dois fenôme-
nos. Quanto ao professor Vaugirard, para mim é apenas um curio-
so que se aproveitou da oportunidade para fazer uma demonstra-
ção de conhecimentos pseudamente científicos. E quanto ao disco,
que nos interessa a sua existência?
A essa altura da conversa, Leila parou de repente. Desviou os
olhos de Eduardo e fixou alguma coisa na rua, do lado de fora da
porta de vidro, mais ou menos a uns cinco metros do lugar onde
estavam. Eduardo notou-lhe o desvio do olhar e perguntou o que
havia lá fora.
— Curioso. Uma pessoa encostou-se junto ao cristal, passou
a mão sobre a superfície, procurando limpá-lo e ficou olhando em
sua direção, de forma tão fixa que dava a impressão de conhecê-
lo.
Eduardo virou-se na cadeira bruscamente. O ambiente es-
tava mal iluminado, mas assim mesmo conseguiu vislumbrar pelo
vidro um vulto alto e magro, de chapéu-côco, que, ao sentir-se sur-
preendido, se afastou rápido e pôs-se a caminhar ao lado da pas-
sagem estreita, junto às mesinhas.
O aviador não perdeu tempo. Levantou-se e correu para a
porta, mas teve a passagem interceptada por um grupo que entra-
va. Perdeu mais tempo, esgueirando-se entre as mesinhas, ganhou
a rua quase correndo e tomou a direção seguida pelo personagem
de chapéu-côco. Chegou até à esquina da Rua Bayard, onde perdeu
a esperança de localizar o vulto, devido ao intenso movimento em
todos os sentidos. Ficou parado mais de um minuto e, desanimado,
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surpreendido, voltou ao local onde se achava a comissária.
— Que foi, Eduardo? Você conhecia aquela pessoa?
— Não consegui alcançá-la. Não sei quem é, mas desse jeito
acabarei maluco. Momentos antes de sair do hotel a porteira me
disse que lá tinha estado à minha procura um tipo de nariz verme-
lho e de chapéu-côco. Apenas perguntou se eu estava hospedado
lá e foi embora sem dizer quem era e o que queria comigo. Agora,
você dá com esse mesmo tipo me espiando pelo vidro. Deve ser o
mesmo. Não vi o tal nariz vermelho, mas vi o chapéu. Não tenho
dúvidas. Era o mesmo. Se êle me procurava, por que correu quan-
do levantei?
A moça mudou visivelmente de atitude. O ar irônico e confor-
tador que irritara o comandante no começo da conversa transfor-
mou-se em preocupação e logo dominou-lhe o rosto.
— É esquisito mesmo. Pelo modo com que o vulto espiava se
tinha a impressão de que estava muito interessado em você. Quem
seria?
Terminaram a refeição quase em silêncio, convencendo-se
Leila de que o aviador estava realmente impressionado. Passou a
preocupar-se, também. Sentia pelo companheiro mais do que uma
simples amizade e aquele encadeamento de mistérios passou tam-
bém a obsidiá-la por ver nos fatos mais do que uma série de coin-
cidências.
Saíram. O movimento ainda era intenso. A noite estava lím-
pida e agradável e um ar fresco, e perfumado denunciava a incon-
fundível primavera de Paris.
Não tocaram mais no assunto e foram andando devagar em
direção ao Sena. Na praça de Alma, o movimento foi diminuindo
e a comissária não deixou de notar que Eduardo de vez em quan-
do, embora procurando dissimular, olhava para trás, como se des-
confiasse de estar sendo seguido pelo vulto de nariz vermelho e
chapéu-côco.
Embora o desejassem, ambos não conseguiam evitar o as-
sunto.
— Acho melhor levá-la para o apartamento e voltar para o
hotel. A tal pessoa talvez ainda esteja me procurando e o melhor
que devo fazer é regressar ao Richelieu e ficar lá. Êle sabe que me
48
hospedo lá e logicamente irá procurar-me. Assim pelo menos des-
cubro o que êle quer e fico de uma vez sossegado.
Leila previa essa atitude. Muito a contragosto já tinha sentido
que a noite estava estragada e prejudicado o passeio. Reconhecia
que Eduardo estava sobremaneira preocupado e no fundo o des-
culpava. Não viu outro remédio senão concordar, arranjando até
uma desculpa para não desapontá-lo. Procurou, pois, não demons-
trar sua decepção:
— Você tem razão. Além disso, estou muito cansada, pre-
cisando de um bom repouso, tanto ou mais do que você. Não faz
mal. Só partiremos depois de amanhã à tarde e faremos o nosso
programa amanhã. Vamos.
Em frente ao apartamento, Eduardo nem mesmo desceu do
táxi. Esperou que Leila tomasse o elevador e deu ordem ao moto-
rista que o conduzisse, o mais depressa possível, ao hotel da Rue
du Bac.
Ao localizar a porteira, foi de pronto interrogando:
— Alguém tornou a procurar-me?
— Procurá-lo, propriamente, não. Assim que o senhor saiu, vi
outra vez o tal homem de nariz vermelho. Encostou-se ali em fren-
te, na vitrina daquele antiquário, e ficou um bom tempo parado,
como se estivesse esperando alguma coisa. Depois, saiu.
Eduardo mostrou-se mais aflito ainda.
— A senhora não falou com êle? Não perguntou o que queria?
Êle não disse nada, não deixou nenhum recado?
Quem agora não gostou foi a velha. Empertigou-se toda e
respondeu de má-vontade, ferida em seu amor-próprio de porteira,
replicando como se tivesse sido censurada pela sua discrição:
— Absolutamente, Senhor, absolutamente. Êle não chegou
até aqui e nada me perguntou. Nada tinha eu, pois, que indagar.
Afinal de contas, eu nada tenho que ver com seus assuntos par-
ticulares. Se êle indagasse de mim qualquer coisa, então, sim, eu
poderia ter perguntado quem era e o que desejava. Caso contrário,
como sucedeu, não. Eu não tinha obrigação de saber coisa algu-
ma!
O aviador caiu em si e reconheceu razão nas palavras da
velha. Deu dois ou três passos em frente ao postigo, acercou-se da
49
escada, alisou o corrimão, esperou alguns segundos e justificou-se
em voz baixa:
— Desculpe-me. Não quis censurá-la e nem tampouco ofen-
dê-la. A senhora nada tem que ver com minhas preocupações.
Desculpe-me.
Começou a subir os degraus e, no quarto, um tanto decep-
cionado, depois de tirar o paletó, atirou-se na larga cama de ferro,
de fofos colchões.
Como naquela primeira noite, em São Paulo, viu-se possu-
ído pela mesma sensação de medo, de insegurança e de pavor. A
perseguição avassalou-o, dominou todos os seus sentidos, mesmo
inconsciente. Periodicamente, Eduardo acordava e consultava o re-
lógio, tornando outra vez aos pesadelos, após um ou dois cigarros
nervosos, que iam sendo depositados no cinzeiro de propaganda
no criado-mudo ao lado. E nos intervalos curtos em que o moço
conseguia dormir via o personagem de nariz vermelho, a persegui-
lo em silêncio.
Ah!... Já sabia agora onde tinha visto o indivíduo parecido
com o homenzinho de chapéu-côco. Já conhecia aquele tipo.
Lembrou-se de um cartaz de Henri de Toulouse-Lautrec, aque-
le que representava uma cena de dança no velho Moulin-Rouge, e
onde se vê de perfil, no primeiro plano, em um passo desordenado
de cã-cã, uma figura alta e esguia, de nariz grotescamente recurvo,
ensaiando passos com uma dançarina — a famosa La Goulue.
Sim, o seu perseguidor tinha o aspecto da figura do desven-
turado artista. Só não sabia exatamente qual a côr do nariz do
modelo, mas devia certamente ser vermelho, mais do que isso —
rubra, incandescente.
As coisas tocavam as raias do absurdo no pesadelo: o coman-
dante Eduardo Germano de Resende estava sendo caçado por um
homem foragido de um cartaz de Henri de Toulouse-Lautrec!
Pela madrugada, somente, quando os sinos da igreja de São
Tomás de Aquino marcaram as primeiras horas do dia, é que Edu-
ardo conseguiu dormir, escapando à perseguição, aos dois misté-
rios, esquecendo tudo, mergulhado em sono profundo, embora por
pouco tempo.

50
V — O VISOR-TRANSMISSOR

O novo episódio da incrível aventura que cada vez mais ia as-


soberbando o comandante Eduardo decorreu mais ou menos uns
quinze dias depois de seu regresso da Europa, de retorno daquela
viagem que deu azo ao “segundo fenômeno” — conforme passara a
designar tais fatos.
De volta a São Paulo, como aconteceu pela primeira vez, não
comentou com ninguém as ocorrências.
Eduardo procurou esquecer a perseguição e o enigma da lu-
minosidade. Mas, mesmo se impondo essa auto-disciplina, andava
com todos os sentidos atentos, observando tudo o que lhe aconte-
cia, como se temendo outras ocorrências extraordinárias.
Naquele mês, ia entrar em férias. Havia deixado, depois do
último vôo à Europa, a linha internacional e estava ministrando
um curso de navegação na escola de pilotagem mantida pela com-
panhia.
As aulas eram dadas no aeroporto de Congonhas, em um
local amplo, nos fundos do hangar principal, e se prolongavam dia-
riamente até as sete horas da noite.

Era uma segunda-feira. Momentos antes, Leila havia chega-


do de um vôo doméstico e foi até à sala das tripulações, a fim de
encontrar-se com Eduardo para aproveitar a condução até ao apar-
tamento.
Quando saíram, a garoa fina começou a cobrir a cidade, di-
ficultando o trânsito e deixando uma camada escorregadia sobre
o asfalto. A visibilidade tornava-se quase nula e todo o movimento
se processava devagar, sob as luzes dos faróis, antes de escurecer
completamente.
Já havia deixado Leila no Jardim Paulista e estava a quadra
e meia do apartamento, quando um automóvel vindo em sentido
oposto, sem necessidade aparente, ligou os faróis altos, desviando-
se em direção ao carro do comandante, como se pretendesse atingi-
lo.
51
Ofuscado pela luz alta, Eduardo instintivamente freou, ao
mesmo tempo em que desviou a direção o mais que pôde para a
direita, quase vindo a alcançar o meio-fio.
O automóvel que vinha em sentido contrário — um carro pre-
to de modelo antigo — sempre de farol ligado, retornou à sua mão
e passou a menos de um metro do lado esquerdo do carro do avia-
dor.
O comandante irritou-se com a manobra absurda, perigosa-
mente intencional, e voltou-se para o motorista do carro preto, a
fim de verberar-lhe o procedimento.
Tudo se passou em segundos.
De repente, Eduardo engoliu em seco e reteve na garganta
metade dos impropérios que pretendia dizer ao motorista. Arre-
galou os olhos e voltou-se, acompanhando a passagem rápida do
automóvel preto: lá estava o homem mais uma vez. Sim, tinha ab-
soluta certeza. Não se enganara. O motorista era o sujeito de nariz
vermelho, o homenzinho saído do cartaz de Toulouse-Lautrec!
Perplexo, Eduardo parou e tentou fazer a volta, iniciando a
sua perseguição. O movimento era intenso nas duas vias e o carro
preto já se perdera no tráfego em alta velocidade, contornando a
fila de veículos, sem levar em conta o chão escorregadio.
O aviador teve que desistir. Qualquer tentativa seria inútil e
perigosa.
Tudo se passara num abrir e fechar de olhos, mas fora o su-
ficiente para deixar-se vislumbrar o nariz grotesco, vermelho, gros-
seiramente talhado, como se pertencesse a um rosto caricatural
esculpido em madeira, a emergir da face semi-oculta por uma capa
de chuva.
Eduardo tinha também certeza de que o homem o vira. No
momento em que os dois veículos se cruzaram, a menos de um
metro de distância, o homem voltara-se para seu lado num movi-
mento brusco que nada tinha de acidental.
Deus do céu! — considerava Eduardo, atônito — as coisas
estavam se complicando terrivelmente! Da Rue du Bac até ali a
distância era enorme. Como é que fora localizado em São Paulo?
Que pretendia o seu perseguidor? Como e por que teria vindo da
Europa a São Paulo? Por que não aparecia logo frente a frente e não
52
esclarecia o que desejava? A manobra fora perigosa. Se não fosse o
desvio rápido, seu carrinho teria sido atingido. Teria o vulto agido
com intenções de abalroá-lo?
Foi com tais indagações fervilhando na cabeça que subiu até
ao seu apartamento, localizado num oitavo andar.
A última indagação foi a mais problemática. O carro preto
vinha em marcha forçada, talvez em segunda ou mesmo em primei-
ra. Dava a impressão de que estava estacionado nas imediações do
apartamento, do lado oposto à mão em que Eduardo trafegava, e
que de lá tinha se deslocado ao pressentir a chegada do Volkswa-
gen.
Seria isso possível? Como poderia seu carro ser identificado
através da garoa? De que forma o homem conheceria seu automó-
vel?
O enigma era, de fato, desconcertante e desafiava a inteligên-
cia do mais experimentado detetive.
À entrada de seu apartamento, na mesinha de canto próxima
à porta, junto ao telefone, Eduardo deu com um embrulho de papel
preto. Não se conteve e exclamou em voz alta:
—-Que será isso?
Apanhou o pacote e procurou abrí-lo, antes mesmo de tirar a
capa respingada da chuva.
O embrulho era do tamanho de uma caixa de sabonetes e
Eduardo estranhou-lhe o envoltório. A coisa estava acondicionada
numa espécie de papel elástico, que foi se encolhendo à medida
que ia sendo retirado. O comandante custou a completar a opera-
ção e não observou o invólucro que, depois de liberto do conteúdo,
ficou reduzido ao tamanho duma caixa de fósforos. Dentro, havia
uma espécie de estojo metálico, de aparência compacta.
O aviador segurou o bloco nas mãos, empurrou a porta com
o pé até que ela se fechasse, entreabriu a capa e acercou-se do sofá
para examinar melhor o objeto.
A aparência era de uma pequena caixa ou de um estojo. O
metal, branco e leve, com um brilho ligeiramente azulado. Edu-
ardo verificou que havia uma fenda horizontal, cortando a peça,
indicando que ela se abria. Mas não se localizava dobradiça al-
guma. Apenas, uma saliência num dos lados. Não esperou mais.
53
Comprimiu com força o ponto saliente e tentou remover a parte de
cima, que seria a tampa do estojo. Esta se deslocou com um leve
estalido e apareceu o interior do objeto. A metade era toda furada,
com orifícios do tamanho de uma cabeça de alfinete, e, na outra
metade, via-se uma superfície polida, como se fosse de vidro grosso
e translúcido, inteiramente facetada, dando a idéia de um grande
brilhante engastado na base do estojo. Eduardo procurava melhor
examinar a peça, quando um zumbido se espalhou pelo quarto,
como se um aparelho elétrico tivesse sido ligado. Sua reação foi a
mais lógica possível. Atirou a caixa sobre o sofá e colocou-se de pé,
assustado e sem compreender o que estava acontecendo.
Assistiu a tudo o que se seguiu, estático, como que petri-
ficado: depois do estalo e do zunido, uma voz partiu da caixa e
espalhou-se por todo o apartamento. Revela-se como uma espécie
de transmissor ou gravador, de tipo e aspecto desconhecidos.
Sem fazer inúteis preâmbulos, a voz passou a desenvolver
este insólito convite:
— Comandante Eduardo, não se assuste. Não se assuste.
Isto nada mais é senão um transmissor, coisa já conhecida aí por
vocês na superfície do planeta. Não se assuste e procure ter cal-
ma. Não se trata de nenhuma brincadeira. Ao contrário. É a coisa
mais séria que poderia ter acontecido em sua vida. Foi este o me-
lhor meio que encontramos para a comunicação. Antes, o nosso
contato foi prenunciado por vários outros acontecimentos. Lem-
bra-se, comandante? Instrumentos desgovernados sobre São Pau-
lo. Incandescência sobre o Atlântico. Lembra-se, comandante, de
nosso enviado em Paris? Sim. Esse homem foi o portador desse
visor-transmissor, o mesmo que investiu hoje contra o seu carro.
Lembra-se, comandante?
Eduardo estava gelado. Ouvia a mensagem, pasmo, de lá-
bios semi-abertos, de olhos esbugalhados e garganta seca, fazen-
do o possível para manter o controle e entender aquela voz clara,
mas que parecia vir de um outro mundo. O suor não se limitava
a escorrer-lhe pela testa. Sentia a camisa molhada e em torno do
colarinho a umidade criava uma sensação quase sólida, como se
tivesse uma corda áspera atada ao pescoço.
Pela primeira vez em sua vida, reconheceu que estava des-
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controlado, paralisado pela emoção. Nos momentos que se segui-
ram não agüentou mais ficar em pé e deixou-se cair sobre uma das
poltronas, enquanto a voz, estranha e imperturbável, continuava a
apresentação da mensagem:
— Poderíamos ter-lhe feito este convite por intermédio do
nosso emissário. Mas essa maneira poderia causar complicações.
O comandante poderia ter exigido pormenores, fazer indagações
prematuras e perigosas. Poderia desconfiar e, em conseqüência,
criar embaraços ao emissário e ter reações indesejáveis. Além dis-
so, comandante, justificamos seu estado, depois das duas primei-
ras provas a que foi submetido. Sua reação poderia ser violenta e
por todas estas razões escolhemos este meio para o convite.
O aviador foi pouco a pouco se identificando com a situação e
recobrando o controle. Afinal, a caixa era uma espécie de transmis-
sor, ou então a mensagem era gravada. O aparelho nada tinha de
fantástico. Fantástica era a mensagem que ouvia. Mais calmo, foi
se concentrando e procurando reter tudo o que lhe dizia a voz.
— Comandante, o senhor foi um dos escolhidos. A razão dis-
so ser-lhe-á comunicada em tempo oportuno. Agora, tome um lápis
e um papel. Atenção. A mensagem não será transmitida outra vez.
Isto é um visor-transmissor. Também nós o vemos neste momento
e observamos os seus mínimos movimentos.
Eduardo novamente se levantou, surpreendido com as re-
velações do aparelho. Seria verdade que estava sendo visto? E de
onde? A primeira resposta não se fez esperar:
— Pegue aquele lápis junto ao telefone. Use o bloco que está
na estante. Vamos!
O aparelho via tudo! A voz não mentia. Estava sendo visto! Lá
estavam o lápis ao pé do telefone e o bloco na estante. Apanhou-os
nervosamente, e tornou a sentar-se.
— Pronto. Atenção, comandante Eduardo. Nosso encontro
será em pleno Atlântico. Atenção! Anote, por favor. Vinte graus e
trinta minutos de latitude, e vinte e nove graus e vinte e dois mi-
nutos de longitude a oeste do meridiano de Greenwich. Repetimos:
vinte graus e trinta minutos de latitude, e vinte e nove graus e vinte
e dois minutos de longitude oeste. O comandante poderá levar duas
ou três pessoas de confiança. Mas cuidado na escolha. Não pode-
55
mos correr nenhum risco. Esteja lá no dia 8 de julho. Repetimos:
8 de julho. O resto fica a nosso cargo. O convite lhe proporcionará
uma grande revelação. Não tenha medo. Como já lhe dissemos, o
senhor foi um dos escolhidos. Não levem armas, porque serão des-
necessárias. Atenção! Repetimos: escolha bem seus companheiros.
Pessoas que estejam a par dos acontecimentos anteriores e que
não sejam incrédulas. Anotou a posição certa e a data?
Eduardo levantou os olhos das anotações e balançou a ca-
beça afirmativamente, sem pronunciar frase alguma, certo de que
realmente estava sendo visto.
— Muito bem. O visor-transmissor ficará em seu poder como
um traço material deste primeiro contato. Por enquanto, digo —
por enquanto — não servirá para nada, dependendo seu funciona-
mento exclusivamente de nós.
Fêz-se um silêncio momentâneo e breves palavras antecede-
ram o silvo final, ficando a caixa silenciosa em seguida.
— Confira as notas. Latitude vinte graus e trinta minutos.
Longitude oeste, vinte e nove graus e vinte e dois minutos, dia 8
de julho.
O aviador não se moveu durante vários minutos. Não se le-
vantou da poltrona e nem consultou as anotações. Voltou à reali-
dade, como após um transe hipnótico.
Apanhou a caixa, agora inerte. Sim, como dissera a voz, o
misterioso aparelho era uma prova material de que não tinha en-
doidecido. Examinou-o mais uma vez. Sacudiu-o junto ao ouvido.
Tentou remover a semi-esfera translúcida e facetada. Não localizou
um só parafuso, um só encaixe, um ponto sequer que demons-
trasse a maneira pela qual poderia ser desmontado. Era uma peça
inteiriça e de grande resistência. De que material seria feito?
Não tinha ainda pensado na aquiescência ao convite. Mas
sentia necessidade de desabafar, de contar tudo-a alguém, de exi-
bir a caixa.
Largou o visor-transmissor sobre o sofá e discou para o apar-
tamento da comissária.
— Leila? Sim, é Eduardo. Que é que você está fazendo? Pre-
cisamos nos encontrar urgentemente. Quando? Já, incontinenti.
Passarei dentro de meia hora por aí. Como? Que aconteceu? Nem
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queira saber! Pessoalmente lhe contarei. Quem está aí com você?
Hummm... A conversa é reservada. Desça e espere na porta do pré-
dio. Conversaremos dentro do carro.
Desligou, apanhou a caixa metálica, destacou e enfiou no
bolso a folha de papel com as anotações das coordenadas do ponto
marcado.
No andar térreo, procurou o zelador. O responsável pelo pré-
dio estava no saguão perto do elevador, limpando um aquário.
— Boa noite, José. Cheguei do aeroporto e encontrei lá em
cima um pacote preto. Foi você que o recebeu?
— Sim, comandante. Há cerca de meia hora esteve aqui uma
pessoa, um sujeito alto e magro, com um chapéu esquisito, de cara
comprida, e pediu que lhe entregasse o pacote. Não disse quem era
e não quis esperar, recomendando apenas muito cuidado. Abri o
quarto do senhor e pus a encomenda perto do telefone. O senhor a
encontrou? Estava tudo em ordem?
— Estava, obrigado. Foi uma coisa que um amigo havia pro-
metido.
Fora, a chuva continuava. As ruas estavam agora completa-
mente encharcadas e os veículos, passando pelo chão escorrega-
dio, produziam um chiado característico.
A noite descera e os perfis dos arranha-céus iam se diluin-
do aos poucos dentro da garoa, que assumia as proporções duma
chuva fina e contínua.
Antes de entrar no carro o aviador espiou para os lados. Não
viu nenhum carro preto nas proximidades e muito menos o ho-
menzinho. Apertou a capa, sentiu a caixa no bolso e pôs o carro
em movimento.
De longe, distinguiu a comissária parada à porta do prédio,
sob a marquise, toda encolhida dentro de uma capa vermelha. Edu-
ardo fêz a curva, estacionou e abriu a porta, já localizado por Leila.
A moça entrou correndo no carro, sem esperar o guarda-chuva que
Eduardo ia levar-lhe.
— Que aconteceu? Conte logo, pois quase tenho certeza que
sei do que se trata. O homem de Paris apareceu de novo, não é?
— Adivinhou. E mais do que isso ainda. Apareceu de novo e
largou no prédio para mim, com o zelador, esta lembrança aqui —
57
disse Eduardo, revirando-se no assento estreito e tirando do bolso
da capa a caixa de metal.
Leila olhou com atenção o objeto.
— Que vem a ser isso? Você chegou a falar com o tal homem
de nariz vermelho?
— Não. Mais uma vez êle me escapou. Quando cheguei ao
apartamento dei com esta coisa embrulhada, perto do telefone, e
que havia sido deixada lá pelo meu perseguidor. Imagine só que
isso aí é um transmissor que capta também as imagens ao redor,
agindo como uma espécie de câmera de televisão.
A comissária escutava boquiaberta. Tão impressionada esta-
va que nem se apercebia da chuva que entrava pela janela do carro,
ensopando-lhe o braço direito e espalhando-se por todo o assento.
— Quando abri essa coisa — prosseguiu o aviador — ela li-
gou e começou a transmitir uma espécie de mensagem. Primeiro,
falou nos dois incidentes com o avião internacional, sem entrar
em pormenores, esclarecendo apenas que os fatos que presenciei
foram intencionais, provocados, e explicando mais que a caixa foi o
melhor meio que eles acharam para se comunicar comigo.
— Mas — interrompeu Leila — quem são “eles”?
— Aí é que começa novo mistério, minha cara. Esse ponto a
mensagem não esclareceu. Falou em poderes ilimitados, na esco-
lha que havia recaído sobre mim para um encontro em pleno Atlân-
tico, dizendo ainda que eu poderia levar dois ou três companheiros
de minha inteira confiança.
— Mas qual a finalidade desse encontro? Por que não se en-
contram aqui mesmo?
— Disso sei eu tanto quanto você. Nada me foi esclarecido.
A voz declarou que dentro de pouco tempo eu estaria a par de
tudo, mas somente depois do tal encontro. Marcaram a data de
8 de julho e deram-me os dados geográficos para a localização do
ponto combinado. Veja, aqui, anotei as coordenadas nesta folha de
bloco. Preciso pegar um mapa do Atlântico Sul para localizar esse
ponto, pois não me recordo da existência de ilha nenhuma nessa
latitude.
A moça voltou-se e procurou fechar a parte aberta do vidro do
carro, afinal dando pela entrada da chuva.
58
— E agora, Eduardo, que pretende você fazer? Não vai ao
encontro dessa gente, não é? Sabemos lá o que pretendem de
você?!...
— Sei lá! Estou desorientado completamente. Se não tivesse
ficado em meu poder esta “coisa” diria que tudo não passou de mais
um pesadelo ou alucinação, dos muitos que me vêm atormentan-
do ultimamente. Este instrumento, entretanto, dissipa quaisquer
dúvidas. Não tenho alternativa senão acreditar em tudo e esperar
o desenrolar dos acontecimentos. Não posso deixar de admitir que
todos esses fatos são elos de uma só cadeia.
— Escute aqui, Eduardo, você se lembra do professor? O
moço estava tão absorvido pela questão que não se recordou de
pronto do companheiro de viagem.
— Que professor?
— Aquele professor de óculos de aro de ouro que ia para a
Europa e com o qual tivemos aquela conversa em Dakar.
Eduardo recordou-se então prontamente.
— Sim, lembro-me muito bem, como não! Já estou compre-
endendo sua idéia.
— É isso mesmo, Eduardo. No começo, duvidei, mas acho
que êle deve ser mesmo um grande cientista. Por aquela conversa,
logo vimos que entende muito de aviação e que sabe inúmeras coi-
sas sobre os discos-voadores. Pareceu-me, e isso reconheço agora,
um homem correto e honesto. E se fôssemos procurá-lo? Mostrou-
se seu amigo e chegou a convidar você para uma visita aqui em São
Paulo. Êle não lhe deu um cartão?
— De fato. O cartão deve estar guardado no apartamento.
Acho ótima a idéia. Vamos procurá-lo. Contar-lhe-ei todas as ocor-
rências e levarei esse transmissor para um exame nos laborató-
rios da Universidade. Um exame completo! De que material é feito,
como funciona, enfim, tudo o que fôr possível saber. Depois, então,
numa segunda etapa, consideraremos a possibilidade ou não de
ser aceito o convite. Sua idéia foi ótima. A mim também o professor
pareceu uma pessoa de confiança. De que não gostei na atitude
dele foi o rompimento brusco da conversa. Depois de todos os es-
clarecimentos que me prestou, calou-se de repente, como que se
tivesse tocado em assunto proibido. Em todo caso, vou procurar
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o cartão e saber se já regressou da Europa, pois me lembro ter êle
declarado que ia ficar poucos dias. Veremos se faço isso ainda hoje.
Depois telefonarei a você.
O local escolhido para o encontro com a comissária não era
dos mais próprios. O interior do carro estava abafado e a água
penetraria se os vidros fossem descidos. Leila abriu a porta e com-
binaram os passos que deveriam ser dados no dia seguinte. O avia-
dor procuraria localizar o professor Vaugirard e telefonaria para a
moça contando o resultado da entrevista. Isso se ela não pudesse
também ir.
Despediram-se e a comissária ficou ainda algum tempo na
porta do prédio, vendo o carro sumir no meio da chuva.

VI — ALAMEDA ARUMANI, 3.722

Não foi difícil a Eduardo encontrar o cartão de visitas dado


pelo professor. Estava ainda em sua carteira e, ao retirá-lo, o avia-
dor leu o nome do personagem: “Augusto-Michel Vaugirard, Ala-
meda Arumani, número 3.722”. Não havia número telefônico e
Eduardo consultou a lista, a fim de ver se conseguia comunicar-se
com aquele que ora considerava uma espécie de tábua de salvação,
pois poderia auxiliá-lo a elucidar o enigma obsidiante. Percorreu
a lista e logo encontrou o número desejado. Em poucos segundos,
obtinha a ligação.
— Pronto! De onde falam? É da residência do professor Vau-
girard? Êle está? E, depois de um silêncio: — Gostaria de falar-lhe
pessoalmente. É favor dizer-lhe que é o comandante Eduardo, pilo-
to do avião que o conduziu à Europa no mês passado. — Calou-se
e aguardou: — sim, pois não.
Depois de vários minutos reconheceu, afinal, a voz do profes-
sor Augusto-Michel, através dos fios:
— É o comandante Eduardo? Como está o senhor?
— Não queria mais incomodá-lo, professor, mas trata-se de
assunto muito sério. Poderíamos marcar uma entrevista? Seria
possível?
— Pois não, comandante. Estou inteiramente às suas ordens
e terei imenso prazer em recebê-lo.
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Eduardo não deixou de surpreender-se com a boa acolhida e
combinou a visita, inteirando-se de que a Alameda Arumani ficava
para os lados de Santo Amaro.
— Ótimo. Amanhã às nove horas, então. Gostaria de agrade-
cer-lhe a gentileza...

Bem cedo, comunicou-se com Leila. Contou-lhe que havia


marcado o encontro, combinando apanhá-la meia hora antes da
hora aprazada, a fim de levá-la em sua companhia.
Não foi coisa difícil localizar a residência do professor. A ala-
meda saía de local não muito distante do aeroporto e prolongava-se
por vários quilômetros em direção a Santo Amaro e Interlagos.
Ao contrário da véspera, estava uma noite límpida e clara,
e mesmo na parte final da alameda, onde não havia iluminação,
encontraram logo o número 3.722.
Ao ver a casa, Eduardo teve uma decepção. Metido em toda
essa série de acontecimentos misteriosos, tinha imaginado a mo-
radia do homenzinho ilustre como alguma coisa de fantasmagóri-
co. Fantasiava um solar em ruínas, escondido em meio a imenso
parque, cercado por muros altos, com pesado portão de ferro na
entrada, ocultando dentro de seus limites parcelas imponderáveis
de mistério. Nem mesmo teria estranhado se surgissem à porta
— que deveria ter necessariamente pesada aldraba — um par de
mastins dignos do criador de Sherlock Holmes; e que, ao ressoar
das batidas, surgisse um mordomo corcunda, de rosto deformado,
com uma lanterna nas mãos.
Sentiu verdadeira decepção. A residência do professor Au-
gusto-Michel Vaugirard era a coisa mais despida de mistério deste
mundo; uma casa moderna e funcional, cercada, não por árvores
tétricas e frondosas, mas sim por lindíssimo gramado. De fora, do
lugar onde Leila e Eduardo se achavam, podiam ver a grande pis-
cina e uma sala de estar toda envidraçada, dando para a frente, e
cujas luzes se refletiam no jardim.
Somente numa coisa acertou o aviador: realmente, havia ca-
chorros. Não molossos de histórias policiais, mas um par de ultra-
61
civilizados bassets, que nem mesmo latiram ao dar com a presença
dos estranhos.
O aviador não chegou a fazer uso da campainha. Augusto-
Michel já os esperava na porta, e, assim que viu o carro estacionar,
apressou-se em direção ao portão.
À medida que se aproximavam da casa os recém-chegados
iam observando requintado bom gosto. Tudo na residência era o
mais apurado possível. A disposição do jardim, as flores, os dese-
nhos formados pela grama, o cordão de ferro ao redor da piscina,
tudo se equilibrava harmônicamente, demonstrando um inequívo-
co toque feminino.
Ao ver a comissária, o professor demonstrou algum constran-
gimento:
— Se o comandante houvesse me prevenido de que a senhori-
ta também viria eu teria avisado minha filha e minha esposa. Elas
saíram e fico assim impossibilitado de recebê-la de modo condigno.
Foram a um cinema, mas creio que não demorarão.
— Não se preocupe, professor. Esteja inteiramente à vontade.
Não faça cerimônia de espécie alguma e não se esqueça de que es-
tou envolvida nesse assunto tanto quanto Eduardo — apressou-se
a tranquilizá-lo a moça.
Foram ter à sala-de-estar, compenetrando-se os visitantes de
que o bom-gôsto não era apenas no exterior. Tudo era de um mo-
derno sóbrio, equilibrado em cores harmônicas. As cortinas largas,
com desenhos abstratos; a mesa de cristal azul, no centro de um
dos ambientes; as estantes ao fundo; os móveis de linhas funcio-
nais e discretas; o quebra-luz sustentado por uma raiz autêntica,
tudo era, de fato, duma beleza discreta, apanágio de estudo minu-
cioso.
O comandante e a comissária correram os olhos pelo am-
biente, não escapando ao comandante uma grande reprodução de
uma tela de Toulouse-Lautrec. Felizmente, não se tratava daquela
cena de baile no Moulin-Rouge, ausente portanto o vulto de nariz
vermelho...
Augusto-Michel conduziu-os até a um dos ângulos da sala.
Sentaram-se junto a uma mesinha de laca, onde se viam cinzeiros
e caixas de cigarros. O dono da casa iniciou a conversa, sem mais
62
preâmbulos:
— Antes de mais nada, comandante, devo-lhe uma desculpa.
Reconheço que fui meio grosseiro no fim de nossa conversa no res-
taurante de Dakar. É curioso. Não sei esclarecer o que se passou
comigo naquele instante e devo tê-los chocado, com razão, por meu
procedimento injustificado.
O aviador confessou com lealdade o que sentira:
— Em verdade, ficamos sentidos. Não que tivéssemos inter-
pretado sua atitude como demonstração inamistosa. Não. Longe
disso. Sentimos porque ficamos privados de obter novos conhe-
cimentos sobre um assunto que o senhor conhece com tamanha
profundidade.
Vaugirard cortou as palavras de Eduardo, procurando me-
lhor justificar-se:
— Contei-lhes muita coisa superficial e depois de alguns mo-
mentos fiquei na dúvida, e é aí que encontro explicação para minha
conduta. Fiquei na dúvida se o senhor estaria ou não levando a
sério a conversa. Por instantes, temi ser tomado por um maníaco.
Afinal de contas, o senhor não me conhecia e calei-me com receio
de cair no ridículo. Cortei a palestra bruscamente, e em vez de
derivar para outro assunto inconseqüente e mais. palpável, errei
quando me levantei, deixando de procurá-lo pelo resto da viagem.
Mais uma vez, reconheço que fui um grosseiráo e agora me peni-
tencio pedindo-lhe desculpas. — Parou por momentos e logo voltou
a falar, mudando de rumo, como que impedindo Eduardo de tecer
outras considerações sobre o incidente:
— A respeito daquele nosso fenômeno sobre o Atlântico, te-
nho uma novidade que deverá interessá-lo muito. Veja só. A coisa
se passou pela madrugada, não foi? Na madrugada do dia 18 de
maio.
— Sim. Não marquei a hora exata, mas me recordo que foi
depois da meia-noite.
— Pois bem. Cinco dias depois, em Paris, encontrei esta notí-
cia em um jornal. Aqui está. Veja.
Tirou um recorte meticulosamente dobrado de dentro da car-
teira, e passou-o a Eduardo. Antes que êle chegasse a ler, anteci-
pou-se:
63
— A notícia veio de uma aldeiazinha localizada na costa
atlântica da África, na Mauritânia, chamada El Memrhar. Descreve
a passagem por ali de certo objeto não identificado, em alta velo-
cidade e de forma circular, dado como sendo um disco-voador, to-
mando a direção do oceano. Veja que as testemunhas do fato falam
em duas horas da madrugada mais ou menos. Informa ainda a
notícia que quase todos os habitantes do lugarejo assistiram à pas-
sagem desse objeto, por ter sido dado alarme pelo primeiro que o
localizou. Esclarece mais o recorte que o disco ficou parado algum
tempo sobre a aldeia antes de deslocar-se rumo ao mar, havendo
até um começo de pânico, falando a maioria dos habitantes em fim
do mundo. Isso não lhe sugere nada, comandante?
Eduardo acabou de ler o recorte e passou-o a Leila, olhando
Vaugirard e balançando a cabeça afirmativamente:
— É deveras extraordinário! Tudo leva a crer que foi esse
mesmo objeto, essa coisa tida como sendo um disco-voador, aquilo
que passou junto a nós sobre o Atlântico!
— Exatamente — concordou Vaugirard. — Essa notícia de
certa forma me confortou e, por mais absurdo que pareça, acho
que fomos testemunhas de mais uma aparição dos discos-voado-
res. Assim, acho que não poderemos mais duvidar da existência
desses engenhos. Não lhe parece certo meu raciocínio, senhor co-
mandante?
— Por incrível que pareça, não vejo outro remédio senão ad-
mitir que aquela coisa era mesmo um disco-voador. Aliás, confesso
que já tinha elementos para não duvidar da existência deles. E
minha visita se prende a essa questão.
Eduardo não se conteve mais. Em troca da notícia que lhe fora
dada por Vaugirard passou a relatar-lhe todos os acontecimentos
de Paris, contou-lhe em seguida o aparecimento do homenzinho
em São Paulo, o recebimento da caixa metálica com a respectiva
mensagem e o insólito convite. Em seguida, tirou do bolso o visor-
transmissor bem como o invólucro elástico preto e depositou-os so-
bre a mesa de laca, provando assim a veracidade de sua história.
Augusto-Michel ficou estupefato. Não interrompeu a narrati-
va um instante sequer e por várias vezes retirou e limpou os óculos,
como que procurando concentrar-se mais. Ao fim da história, apa-
64
nhou com extrema delicadeza o transmissor, examinou-o detida-
mente, chegando mesmo a tentar riscar a superfície do metal com
uma faca de papel.
— Espantoso, incrivelmente espantoso! Ante tais aconteci-
mentos vejo que tudo o que sei sobre os discos-voadores passa
para plano secundário. Desde já, com sua aquiescência, solicito e
mesmo exijo o privilégio de assistir a esse encontro.
O aviador foi apanhado de surpresa.
— Mas, professor, eu não disse se aceitarei ou não o convite.
Não sei o que pensar disto tudo. Vim aqui para obter uma orienta-
ção, pois já estou ficando meio doido no centro dessa atrapalhada
toda. Que acha o senhor disso tudo? Com franqueza.
— Que acho, meu filho? Que acho? Acho que isso é a coisa
mais rara e mais fantástica que aconteceu até hoje a um ser huma-
no! Não tenho dúvidas. Será o primeiro contato efetivo de um ha-
bitante da Terra com seres racionais de outras partes do universo!
Veja. Veja este metal e este invólucro. Isto não lhe diz nada?
Eduardo, meio assustado com a reação explosiva e entusias-
ta de Vaugirard, de novo apanhou o transmissor.
— Veja esse metal. Sem mesmo necessidade de exame de la-
boratório, arrisco-me a afirmar que tal tipo de material não foi ain-
da produzido pelo engenho humano. Observe, veja! Quando procu-
ro riscá-lo com a faca de papel êle afunda-se pela pressão, voltando
em seguida ao estado inicial, não ficando marca nenhuma. Obser-
ve! É um metal elástico. Só esse detalhe revela a existência de seres
dotados de inteligência superior à nossa. Se o senhor me permite,
amanhã bem cedo tentarei nos laboratórios da Universidade abrir
esta caixa e examiná-la em seus mais ínfimos detalhes. Eu no seu
lugar não hesitaria um minuto. Esqueceria e largaria tudo, dedi-
cando-me única e exclusivamente aos preparativos da expedição,
na qual, como disse, solicito o privilégio de tomar parte,
O comandante não deixou de impressionar-se com a euforia
incomum do professor, que continuou:
— Tudo é fantástico demais para ter sido forjado. Começo a
perder o medo de parecer um imbecil ao admitir a existência dos
discos-voadores e de uma categoria superior de seres que estão
tentando entrar em contato com a Terra.
65
Augusto-Michel procurou ser mais convincente pondo-se de
pé.
— Meu filho. Os discos existem desde longa data. As provas
da existência acumulam-se às dezenas e centenas. A coisa não é de
hoje. Dia a dia, as aparições renovam-se e o homem não acredita
por comodismo, por ter a pretensão imbecil de que é, êle próprio, a
coisa mais genial do universo. Mas, por favor, passem para aquela
sala. Vamos até ao escritório.
Eduardo e Leila levantaram-se e foram conduzidos a uma
sala contígua, cuja presença não tinham antes notado devido à
existência de pesado reposteiro.
O cômodo era amplo e bem iluminado. Aspecto geral de imen-
sa biblioteca, cujas paredes eram inteiramente revestidas de estan-
tes repletas. Os raros vãos eram ocupados por várias reproduções
de telas famosas e alguns troféus de caça.
— Estão vendo aquela estante menor, lá no fundo? Junto
ao arquivo? Todos aqueles volumes e todo o arquivo se referem
exclusivamente ao fenômeno “disco-voador”. Há vários anos, desde
antes de 1947, dedico-me ao estudo da questão. Cartas, depoi-
mentos, fotocópias de documentos oficiais, relatórios, fotografias,
livros, impressões, certidões de notários, fraudes, equívocos, solu-
ções propostas, teorias certas ou erradas, de insanos e de sábios,
depoimentos de crianças e estadistas, tudo, tudo tenho aqui cata-
logado, estudado e valorizado. Creia que isso gerou em mim uma
convicção inabalável: os discos-voadores existem! Não são, como
querem muitos, um mito ou a fábula do século vinte. Ao contrário.
São uma realidade terrível. E considere-se, assim, ter o senhor em
suas mãos a chave do problema!
Eduardo compreendeu como a questão vinha apaixonando
Vaugirard e, deixando de lado as reservas que ainda mantinha, foi
pouco a pouco se sentindo atraído pela personalidade do profes-
sor.
Augusto-Michel abriu então a parte superior do arquivo e,
apanhando uma pasta de couro, extraiu dela duas grandes fotogra-
fias cheias de anotações no verso.
— Veja com cuidado esta primeira fotografia, comandante.
O aviador pegou a maior das duas e começou a examiná-la com
66
atenção.
Tratava-se de uma ampliação de trinta por quarenta centí-
metros. A imagem estava borrada, mas a falta de nitidez não pre-
judicava a visão integral do objeto. O que estava ali evidente era
o que se convencionou chamar de disco-voador: um engenho de
forma ligeiramente cônica, com a parte mais aberta voltada para
baixo e coroado por uma espécie de cúpula circular no plano su-
perior. Mesmo com a imagem tremida, podiam ser claramente dis-
tinguidas na parte central e superior, onde devia ser a cabina de
comandos, várias aberturas circulares, de onde se projetava in-
tensa luminosidade, prejudicando os contornos dessas escotilhas.
O aparelho estava meio inclinado e na parte de baixo viam-se três
semi-esferas, como se fossem um tipo desconhecido de trem de
pouso. No primeiro plano da fotografia, apareciam galhos de árvo-
res e, pelo tamanho dos mesmos, podia calcular-se mais ou menos
a distância do disco e suas proporções, talvez pouco maior que um
avião DC-3.
— Essa fotografia, comandante, foi tirada no dia 13 de de-
zembro de 1952, em Palomar Gardens, no Estado da Califórnia,
às nove horas e dez minutos da manhã, por certo personagem que
o senhor já deve conhecer de nome, George Adamski, aquele as-
trônomo amador que mora nas proximidades do Observatório de
Monte Palomar. Quando os jornais anunciaram a tomada das foto-
grafias — e existem outras tiradas pelo mesmo cidadão, todas em
meu poder — escrevi ao mesmo e obtive estas ampliações. Poste-
riormente, Adamski escreveu também um livro, onde as fotos fo-
ram reproduzidas e os discos bem descritos. Bem, anote com aten-
ção os pormenores. O disco tem a forma de um ligeiro cone com
a cabina na parte central e com várias escotilhas redondas. Estas
semi-esferas aqui de baixo funcionam como trem de aterragem e
estão bem visíveis.
Interrompendo a explicação, Vaugirard passou às mãos de
Eduardo uma segunda fotografia, pouco menor que a primeira. Era
mais tremida ainda, e revelava ter sido tirada com uma câmara de
qualidade bastante inferior, de lentes primárias, provavelmente um
menisco. Mas, mesmo tremida e fora de foco, podia distinguir-se
um engenho semelhante ao da fotografia anterior.
67
— Examine, comandante. As duas fotografias não mostram
dois aspectos do mesmo objeto?
— Sim, não há dúvida. Veja esta, Leila. A linha geral é idên-
tica, o mesmo acontecendo com o perfil, bem como os pormenores.
Os da segunda coincidem em tudo com os da primeira, da maior.
Não tenho dúvidas em afirmar que são dois flagrantes de um só
objeto.
— Pois é isso, meu caro comandante — concluiu calorosa-
mente o professor — essa é uma das provas materiais mais sérias
da existência dos discos-voadores. Escute. Essa segunda chapa
não foi tirada, nem pelo famoso Adamski e nem mesmo nos Es-
tados Unidos. Foi obtida por um menino de treze anos de idade,
Stephen Darbishire, no dia 15 de fevereiro de 1954, na localidade
de Coniston, em Lancashire, na Inglaterra. Esse menino, acompa-
nhado de outro — seu primo Adrian Myers — de oito anos de idade,
naquele dia estava no alto de uma montanha de pouco mais de
oitocentos metros, o Coniston Old Man, para onde ambos tinham
subido em busca de passarinhos, quando viram o disco. Logo que
este foi avistado, sem saber o que seria, o menor não perdeu tempo
e comprimiu o disparador de sua máquina, uma câmara do tipo
inferior, denominada vulgarmente “caixão”. Aqui está o resultado.
A milhares de quilômetros de distância, em outro continente, com
grande diferença de tempo, obteve-se imagem idêntica à de Palo-
mar Gardens. Tudo foi investigado com cuidado. O menino nunca
tinha ouvido falar nas fotos de Adamski; não estava a par do que
diziam os jornais sobre os discos, e entregou o filme para ser reve-
lado a um laboratório comum, na localidade em que residia. Ficou
comprovado que não houve fraude alguma. A conclusão só pode
ser uma, insofismável. Ou foi o mesmo engenho ou então outro
análogo o fotografado por essas duas pessoas, evidenciando-se que
os discos andam rondando misteriosamente o nosso planeta.
— O senhor obteve outras informações sobre o menino? In-
formou-se bem sobre a revelação do filme? Tem certeza de que Ste-
phen Darbishire não sabia da existência dos discos e não tinha
visto as fotos de Adamski?
— Sim, examinei tudo, ponto por ponto, como já lhe disse
comandante. Pensei mesmo ir a Lancashire. Mantive correspon-
68
dência com os pais do menor e com uma casa de fotografias de um
certo Mr. Pattison, na vila de Coniston, onde a película foi mani-
pulada. Toda a possibilidade de fraude e contrafação está afasta-
da. Aqui faço um parêntese: lá naquelas outras pastas, naquelas
de couro vermelho, tenho perto de trezentas fotografias exibindo
discos, todas elas falsas e forjadas. Vão desde o truque ingênuo e
grosseiro, até ao truque tecnicamente bem realizado, como aquela
série, publicada por certo periódico, de um disco sobre o Estado do
Rio de Janeiro. Esse tipo de material eu o coleciono por curiosidade
e para valorizar o que pode ser considerado autêntico. Veja. Tru-
ques às dezenas. Miniaturas fotográficas com fundos pretos depois
montadas sobre paisagens, duplas exposições, veladuras intencio-
nais, e até erros não provocados, cujo efeito pode apresentar um
disco-voador. O senhor não calcula como a imaginação humana é
fértil nesse sentido. De quase um milheiro de fotografias recebidas
de todas as partes do mundo, posso assegurar-lhe que pelo menos
oitenta por cento são mistificações, na maioria primárias e gros-
seiras. Estas que lhe exibi, de Coniston e Palomar Gardens, são
autênticas. Tenho certeza de que foram obtidas sem truques de es-
pécie alguma. A de Adamski foi obtida com uma câmera miniatura,
acoplada ao visor de um telescópio, justificando-se a abundância
de detalhes. Mais um argumento ainda: o senhor já ouviu falar nas
observações do astrônomo inglês Potter, de Norwich?
O aviador, que já conhecia o caso, limitou-se a mover afirma-
tivamente a cabeça.
— Pois então. Esse astrônomo observou um disco por seu
telescópio e deu em linhas gerais a mesma descrição dos objetos
fotografados por Adamski e Darbishire. A única diferença é que
viu a imagem do disco de cabeça para baixo, e isso porque o teles-
cópio, devido ao tipo óptico de construção, dá as imagens celestes
invertidas. Então, comandante? Foram três observações honestas
e independentes, no tempo e no espaço, do mesmo objeto. Não é
convincente?
Eduardo ainda tinha em mãos as duas fotografias obtidas
nos Estados Unidos e na Inglaterra, e percebia-se claramente por
sua fisionomia que aceitava a argumentação de Vaugirard. Este,
cada vez mais empolgado, como se procurasse convencer um júri,
69
ia pondo em revista os argumentos com que contava.
— O senhor deve ter ouvido falar de certo questionário dis-
tribuído pela Força Aérea Norte-Americana. Esse documento é do
domínio público e a sua simples publicação demonstra o interesse
que têm as forças armadas norte-americanas no fenômeno “disco”.
Naquela gaveta, ali, tenho um livro com uma fotografia desse ques-
tionário.
Abriu uma segunda gaveta do arquivo e, remexendo inúme-
ras outras pastas numeradas, tirou debaixo da última um volume
de capa azul.
— Olhe, aqui. É a célebre instrução número 200-2, de 12 de
agosto de 1954, dispondo a respeito das comunicações sobre os
objetos aéreos não identificados. Examine os itens. Não só define
quais seriam os objetos não identificados — objetos com comporta-
mento e características aerodinâmicas diversas dos conhecidos —
mas também determina como devem as aparições ser reportadas,
quais os dados que devem, ser estudados, quais os objetivos da in-
vestigação, explicando até como devem ser enviadas as fotografias
eventualmente obtidas e as cópias dos gráficos das telas do radar,
caso tenham sido os discos localizados por esse instrumento.
Fechou o livro e tornou a colocá-lo em seu lugar primitivo.
Continuou:
— Eu também imprimi um questionário e passei a enviá-lo a
todas as pessoas que disseram ter visto no espaço corpos não iden-
tificados. Veja aqui estas quatro pastas menores. Tenho aí colecio-
nadas, em ordem cronológica, mais de mil respostas. Essa provi-
dência tomou-me um tempo enorme, mas obtive dados incríveis.
Verifique o senhor mesmo. Vieram respostas de todas as partes do
mundo. Do norte da África, do Brasil Central, dos Estados Unidos,
da França, das ilhas Majorca e até mesmo de países da cortina de
ferro. Só de uma região da África, na orla do Sahara, nas proximi-
dades de Tessalit, em outubro de 1951, vieram na mesma semana
oito relatos idênticos! Vi as primeiras notícias num semanário fran-
cês e enviei os questionários incontinenti, pois as notícias mencio-
navam os nomes das testemunhas. As respostas não se fizeram
esperar. Somente um não foi devolvido. Todas as testemunhas fa-
laram na aparição de um disco sobre o deserto, a grande altura,
70
durante três dias, e aparentemente imóvel. Examinado com auxílio
de instrumentos ópticos, comprovou-se que estava animado de in-
crível velocidade circular, sobre seu próprio eixo, emitindo reflexos
de várias cores. Esse tipo de aparição foi observado na Sibéria, em
vários locais da Índia e até aqui no Brasil, num campo de aviação
no Rio Grande do Sul, como o senhor deve ter visto nos jornais.
— Nunca fui cético a esse respeito, professor, e agora não
tenho mais dúvidas quanto à existência de tais objetos. Não pos-
so, entretanto, ocultar uma grande preocupação: por que fui eu
escolhido para esse encontro? Por que só eu recebi esse fantástico
convite?
O professor recolocou as pastas e fotografias no arquivo, me-
ticulosamente, e pegando pelo braço Eduardo e Leila reconduziu-
os ao sofá, onde antes se achavam, junto à mesinha de laca repleta
de utensílios para fumantes.
— Vamos por partes, comandante. Veja que tudo, desde
aquela tarde em Congonhas, vem tomando rumo normal...
— Normal? — estranhou Eduardo, reagindo à calma e pe-
remptória afirmativa do seu interlocutor.
— Sim, não se espante, normal dentro da anormalidade que
cerca tais fatos, se assim me posso exprimir. Normal porque o se-
nhor vem sendo o centro de todos esses acontecimentos inexplicá-
veis. Pouco a pouco, vai-se aprofundando mais e não é de espantar
que “eles” — pois também não sei e nem faço idéia de quem “eles”
sejam — apareçam naquele ponto marcado no Atlântico e lhe fa-
çam revelações espantosas. Um pouco mais de paciência e tudo se
explicará.
— O senhor tem aí um mapa do Atlântico Sul? Antes de qual-
quer resolução, quero localizar o ponto que “eles” me deram. —
Eduardo tirou a carteira do bolso de dentro do paletó. Procurou a
anotação e passou-a ao professor.
— Hum... hum... Vinte graus e trinta minutos de latitude, e
vinte e nove graus e vinte dois minutos de longitude oeste. O se-
nhor deve ter razão. Deve ser ao largo das costas do Rio de Janeiro
ou do Espírito Santo. Não tenho nenhum mapa do Atlântico Sul.
Tenho vários mapas, mas nenhum alcança essa porção central do
Atlântico, entre a América do Sul e a África. Além do mais, precisa-
71
mos é de uma carta de navegação, com as profundidades, corren-
tes, e outros dados, para considerarmos uma viagem a esse ponto
por via marítima.
O professor custava dissimular sua impaciência a respeito
da decisão de Eduardo. Por várias vezes, tirava e recolocava os
óculos, percebendo o aviador que esse gesto era típico de seu ner-
vosismo.
— O senhor deve decidir o quanto antes. Não podemos perder
um momento sequer. Não estamos muito longe da data marcada e
uma expedição dessa natureza não se improvisa. Há que se desco-
brir embarcação adequada, tripulação...
O comandante interrompeu tal raciocínio em voz alta:
— Não se esqueça da parte financeira, professor. Esse é para
mim um dos pontos de maior importância. Um empreendimento
desses não custa pouco. Não sabemos nem mesmo qual a distância
que devemos percorrer. Vamos ver um mapa. Lá no aeroporto te-
nho um, completo, com todos os pormenores. Esperemos mais uns
dias, pois tudo isso deve ser muito bem examinado.
— Meu caro amigo, a parte financeira não deve preocupá-lo.
Com sua permissão, no caso da ida e de sua anuência em minha
companhia, colocarei ao seu dispor os recursos necessários ao em-
preendimento. A questão financeira não é problema. Ficará inteira-
mente ao meu cargo.
Augusto-Michel pôs-se novamente em pé. Encostou o isquei-
ro no cigarro apagado, soltou uma profunda baforada e mais uma
vez repetiu o que já era uma constante. Tirou os óculos de aro de
ouro e examinou-os contra a luz.
— Vou anotar as coordenadas do ponto no Atlântico. Ama-
nhã, bem cedo, providenciarei o mapa para a localização.
— Não se preocupe, professor. No aeroporto, tenho uma car-
ta completa do Atlântico Sul. Está no meu armário. É a mesma que
uso nos vôos da Europa. Logo cedo lhe darei um telefonema.
A comissária consultou o relógio e sugeriu a Eduardo que
deveriam dar por encerrada a visita. O professor não mais insistiu
em obter uma decisão imediata e acompanhou-os até ao portão do
jardim.
Depois que o carro saiu, Vaugirard retornou em passos vaga-
72
rosos à sua residência.
Quase na porta de entrada, parou. Tornou a retirar os óculos
e lançou o olhar para o céu profundo e estrelado. Não havia ilu-
minação alguma fora e a luz do interior ali chegava fraca e difusa.
Pôde assim observar bem o firmamento. Correu os olhos pelo man-
to tênue da Via Látea e deteve-se ao localizar o brilho incomparável
de Sírius. Ficou parado alguns minutos em atitude atenta, os olhos
cheios de intenso brilho, como se estivesse notando alguma coisa
de anormal no manto de astros que recobria a terra.
Logo a seguir, penetrou na casa com o semblante vincado,
imerso em raciocínios absorventes e complexos, certo de que se
aproximava, afinal, a grande oportunidade e, talvez, mesmo a razão
de ser de sua vida.

VII — 20 GRAUS E 30 MINUTOS DE LATITUDE,


29 GRAUS E 22 MINUTOS DE LONGITUDE OESTE

No íntimo, o comandante Eduardo Germano de Resende ha-


via tomado uma decisão. Já que estava envolvido nessa cadeia mis-
teriosa de acontecimentos, não via razões para que não devesse
continuar na trilha enigmática dos fatos, chegando assim a um
ponto que possibilitasse conclusões positivas. O principal era li-
bertar-se do estado de angústia em que se encontrava. Em muitos
momentos, tinha a impressão de que havia perdido o juízo; mas
depois, ao lembrar-se das inúmeras testemunhas, esquecia esse
raciocínio perigoso e procurava deduzir a conclusão das premissas
já ordenadas.
Conquanto soubesse que todos os acontecimentos eram pris-
mas de uma só realidade, não conseguia, nem podia imaginar qual
fosse essa realidade.
Mais uma vez assoberbado por tais raciocínios, acordou na
manhã seguinte e dirigiu-se ao aeroporto. Ali chegando, abriu seu
armário na sala das tripulações e imediatamente procurou o mapa
do Atlântico Sul.
Era bem cedo e a sala estava vazia. O dia surgia magnífico
como a noite anterior prenunciara, e todos os aviões partiam den-
tro dos horários normais.
73
Eduardo apanhou a carta e desdobrou-a sobre a mesa maior
da sala. Em poucos momentos, com a régua de cálculos na mão,
localizou o ponto determinado. Mais uma vez se surpreendeu. As
coordenadas transmitidas pela caixa metálica cruzavam-se exata-
mente sobre uma ilha conhecida. Lá estava ela. Um pontozinho
insignificante perdido no mapa, afogado na imensidão do Atlântico,
entre as costas do Brasil e o litoral africano — a ilha da Trindade.
A localização não deixou de assombrá-lo.
Mais uma vez, os fatos completavam-se com exatidão absolu-
ta, como peças bem medidas de um brinquedo de armar. Mais um
fato verídico lhe havia sido transmitido, pois temia que as coorde-
nadas fossem dar em pleno oceano, suscitando dúvidas quanto ao
atendimento ao convite.
O ponto geográfico existia. Existia e era conhecido, não sendo
afinal de contas de tão difícil acesso.
Fechou o armário, dobrou o mapa, guardou-o no bolso e di-
rigiu-se ao balcão para saber a que horas Leila chegaria do Rio de
Janeiro.
Enquanto esperava não conseguiu dominar a impaciência.
Àquela hora mesmo resolveu ligar para Augusto-Michel e falar-lhe
a respeito da ilha. Aproveitaria o telefonema o já marcaria novo en-
contro para os primeiros entendimentos, agora que havia resolvido
a problemática aventura.
Sua impaciência encontrou eco na atitude do professor. Mal
obteve a ligação, nem teve a oportunidade de informar qual o local
apontado pelas coordenadas.
— Sim, meu caro amigo. Já sabia que o local coincide com
a ilha da Trindade, aquela ilhazinha brasileira jogada em alto mar
nas costas do Estado do Espírito Santo. Não foi difícil obter algu-
mas informações preliminares. Todos os mapas que consultei de
início nada serviram. A costa do Brasil era registrada apenas até
certo ponto, não abrangendo a zona onde estava a ilha. Lembrei-
me, então, de um amigo que trabalha no Instituto Geográfico e
ainda ontem falei com êle. Não só obtive um mapa adequado, como
também inúmeras informações de interesse, ficando ainda de dar-
me um mapa completo de Trindade. Veja uma coisa, comandante.
A travessia não é fácil, mas também não é coisa impraticável. O
74
senhor mediu a distância?
O aviador limitou-se a grunhir no aparelho, concordando
com a afirmativa do professor. Este, pelo tom da resposta, de pron-
to percebeu que Eduardo se mostrava desanimado ao considerar a
quase dois mil quilômetros de distância compreendida entre a ida
e a volta.
Procurou encorajá-lo, temendo a desistência do plano.
— Reconheço que a viagem não é fácil, caro amigo, mas che-
garemos a uma conclusão. Repito mais uma vez, como já lhe disse,
aqui, em casa, que a parte financeira não constitui obstáculo de
espécie alguma.
Eduardo estava realmente desanimado. Queria e pretendia ir,
mas ao ver a distância a ser vencida em alto mar e ao considerar os
riscos de uma empresa de tal ordem, logo se viu tomado de pessi-
mismo. Espírito comunicativo, incapaz de esconder suas emoções,
não pretendeu ocultar ao professor seu estado de ânimo.
— Não se preocupe — continuou Vaugirard — não fique pes-
simista que arranjarei tudo...
— Não se trata bem de pessimismo, professor. A coisa é
que...
Não chegou terminar a frase. Augusto-Michel interrompeu-o,
sugerindo um encontro imediato para meticuloso exame da ques-
tão.
O aviador olhou o relógio e não teve outra alternativa senão
aceitar a nova entrevista, marcada para depois do almoço. Nada
sabia ainda sobre a chegada de Leila, mas combinou encontrar-se
com Vaugirard às duas e meia, em sua residência. Despediu-se,
sem todavia deixar-se contagiar pela animação do interlocutor.
Leila só chegou ao meio-dia.
Durante esse intervalo, Eduardo ficou vagando pelas instala-
ções do aeroporto, conversando com amigos, folheando livros e re-
vistas na banca de jornais, não conseguindo, em momento algum,
alhear-se do pensamento dominante.
Na banca de jornais, viu até mesmo muitos livros sobre dis-
cos-voadores. Alguns, eram seus conhecidos, mas descobriu pelo
menos meia dúzia de outros recentes, que ainda não lera. Apa-
nhou-os e começou a folheá-los.
75
Havia literatura para todos os gostos. Desde a divulgação ho-
nesta e bem intencionada até ao folhetim cheio de segundas inten-
ções e de moralidade duvidosa, onde se descrevia a aparição de um
disco a um casal de namorados.
Leila veio correndo. Cruzou a passagem do pátio, deteve-se
um minuto no balcão, desincumbiu-se de suas obrigações entre-
gando a relação dos passageiros e apressou-se mais ao ver Eduar-
do perto da livraria.
— Bom-dia. Está esperando há muito tempo? No Rio, o tem-
po estava fechado e a volta atrasou mais de uma hora. Então, como
é, já localizou o lugar?
— Sim. Imagine só que o tal ponto marcado por “eles” coinci-
de com a ilha da Trindade, nas costas do Espírito Santo.
— Você já se comunicou com o professor? Contou-lhe isso?
— Telefonei-lhe e marcamos um encontro depois do almoço,
às duas e meia. Você pode ir também?
— Acho que sim. Vamos fazer o seguinte: almoçaremos aqui
mesmo e desmarcarei por telefone o encontro que tinha na cidade
com a Ruth. Daqui para a casa do professor, é mais perto e assim
teremos tempo de sobra para a refeição, pois já é quase meio-dia
e trinta.
Eduardo aceitou a sugestão e, pegando Leila pelo braço, en-
caminharam-se para o restaurante.

Quando entraram pela segunda vez na residência do profes-


sor o relógio da sala marcava duas e meia.
Dessa vez, foram recebidos pela filha de Augusto-Michel Vau-
girard. Se a Eduardo não passaram despercebidos os dotes físicos
da jovem e seus belíssimos olhos azuis encimados por sobrance-
lhas negras, Leila observou logo o bom gosto com que a moça se
apresentava. Calça comprida preta, bem justa, realçando suas for-
mas esguias, blusa decotada em proposital desalinho e sandálias
vermelhas de brilho chocante.
— Sou Diana. Queiram fazer o favor de entrar. Papai está lá
em cima e não tardará a descer. Já os conhecia de nome. Papai me
76
contou tudo e confesso que estava ansiosa para conhecê-los poste-
riormente. Estejam à vontade, que vou chamá-lo.
Eduardo acompanhou-a com o olhar e seu interesse não dei-
xou de ser notado por Leila que, ao ver a moça desaparecer no alto
da escada, assobiou significativamente, desapontando o aviador.
Augusto-Michel não se fêz esperar.
Com um chambre pomposo, um grosso volume debaixo do
braço e um sorriso dos mais acolhedores, conduziu os visitantes à
biblioteca, ao mesmo tempo que, voltando-se para a filha, lhe pediu
que providenciasse um café.
— Meu caro comandante, as coisas talvez não sejam tão mis-
teriosas assim. O diabo é bem menos feio do que parece. O local in-
dicado existe, o que torna verídica a mensagem que lhe enviaram.
Além disso, a ilha da Trindade não é no fim do mundo.
O comandante escolheu uma posição melhor na poltrona, fi-
xou o professor e não pôde disfarçar seu desânimo.
— O senhor sabe que tudo isso me intriga. De dias para cá,
ando doido com tudo isso e não consigo pensar em outra coisa. É
uma verdadeira mania, uma obsessão. Mas essa ilha está tão lon-
ge, que não sei se valerá a pena o sacrifício.
— Nem pense nisso, comandante. Imagine se não valerá tal
sacrifício! O senhor está subestimando sua posição. Veja só seu
papel nisso tudo. Sem explicação alguma viu-se envolvido nessa
trama fantástica e agora, no fim, quando a explicação se aproxima,
quando surge a chave, fica desanimado, achando que o sacrifício
não compensa! Ora, ora, meu amigo! Que é isso?
Eduardo tornou a mudar de posição na poltrona. Vaugirard
prosseguiu, convincente:
— O caso deve ser examinado não como satisfação de mera
curiosidade, mas como uma grande, uma imensa, experiência cien-
tífica. Considere que esse problema há mais de dez anos vem preo-
cupando a humanidade. O senhor tem agora nas mãos a chave do
enigma, o que não só constitui um privilégio fabuloso, mas também
poderá contribuir para verdadeira revolução na história do homem.
Considere o que representará para a ciência um contato com outra
civilização mais adiantada. Considere os novos passos, os novos
rumos, as novas perspectivas que serão desvendadas. Acha então
77
que não valerá a pena? Ou não leva mais a sério a existência dos
discos-voadores?4
— Não é bem isso, professor, é que...
Não chegou a concluir a frase. Vaugirard não lhe deu tempo
de falar, procurando afogá-lo na maré crescente de seus argumen-
tos.
O aviador respondeu, insistindo no assunto:
— Não nego a existência desses engenhos. Faço questão de
frisar isso. Depois do que me aconteceu, depois do que testemu-
nhei, seria a última pessoa no mundo a não acreditar nos discos-
voadores. Mas uma viagem a tal distância, por via marítima, re-
quer tempo. Tempo e dinheiro, além de uma série de providências
difíceis, que vão desde o encontro da embarcação adequada até à
escolha duma tripulação de confiança.
Augusto-Michel não se deu por achado. Compreendeu que
Eduardo se referia também aos gastos e mais uma vez esclareceu
suas intenções:
— Comandante, com relação ao lado financeiro, reafirmo
que não há obstáculos. Não fui bem claro ainda. Caso me permi-
ta, todos os gastos correrão por minha conta. Considere-se meu
convidado e leve consigo as pessoas que quiser; pois, custear o
empreendimento será o menor tributo que pagarei em retribuição
ao privilégio de participar da expedição. Afinal de contas, os gastos
não serão elevados. Um bom barco oceânico, uma tripulação pe-
quena e treinada, algum equipamento, certos instrumentos e uns
dez dias de férias. O que temos a dar é insignificante em proporção
ao que iremos receber. Não se preocupe, comandante. Deixe tudo
por minha conta, insisto. Sua parte será a navegação, que não será
das mais fáceis. Trindade é um ponto perdido no mar. Como o se-
4
Sobre a fascinante história dos “discos-voadores” que mostrou este belo
livro do escritor brasileiro, Rubens Teixeira Scavone do qual editamos, com grande
aplauso, em abril de 1965. “O Diálogo dos Mundos”, recomendamos a obra de Des-
mond Leslie e George Adamski, “Discos Voadores — A história de suas aparições
— Seu enigma e sua explicação”, Editora Globo, Porto Alegre, 1957, na tradução
de Fernando de Castro Ferro e Alzira Vallandro, em que os autores estudam esse
assunto desde a lendária Atlântida, com os seus “vimanas”, carros celestes, até à
reunião dos oficiais da Reserva da Força Aérea, em Washington, realizada a 1 de
junho de 1953. (Nota do “Clube do Livro”).

78
nhor sabe melhor do que eu, navegar no oceano é bem mais difícil
do que navegar no espaço. Vamos examinar todos os aspectos da
questão e ajustar os mínimos pontos.
Apanhou o livro grosso que estava sobre a mesa e que trou-
xera em baixo do braço ao descer as escadas. E puxando a mesa
para junto de si, afastou os cinzeiros e as caixas, abriu o volume e
procurou uma das páginas. Eduardo, Leila e Diana acercaram-se,
debruçando-se sobre o mapa que ia sendo aberto pelo professor.
— Aqui, está a ilha da Trindade. Mais ou menos a mil e cem
quilômetros do litoral do Espírito Santo. Uma pequena ilha rocho-
sa, destituída de qualquer interesse, com três milhas de noroeste a
sudeste e um perímetro de mais ou menos seis milhas. É o ponto
mais elevado de um estreito platô submarino rodeado por grandes
profundidades oceânicas variáveis entre mil e duzentos e mais de
três mil metros. Observem aqui. Este lado possui uma praia alvís-
sima, segundo dizem, um dos raros pontos onde um desembarque
é possível.
Vaugirard interrompeu-se. Escolheu pachorrentamente um
cigarro na caixa de cima da mesa, apertou-o a fim de amolecer o
fumo, acendeu-o devagar após batê-lo umas três vezes, deixando a
piteira de âmbar de lado. Tirou uma baforada, e continuou em tom
de conclusão:
— O resto para o leigo em geologia não tem mais interesse.
Rocha íngreme e escalvada, de origem vulcânica, onde predomina
o piroxênio e a fonolita, com rara vegetação rasteira, sem árvores
de maior porte.
— Mil e cem quilômetros de travessia, — interrompeu Eduar-
do — é uma boa distância, professor. Não entendo muito de embar-
cações, mas uma travessia dessa natureza exige uma embarcação
de casco duplo, um bom motor com velas auxiliares, de preferência
Diesel, com força de quase cem cavalos, além de reservas especiais
de combustível.
— Isso tudo não é difícil — ponderou, o professor, sempre
pronto a contornar as dificuldades previstas pelo aviador, bem
como a responder-lhe às objeções. — Basta uma viagem a Santos
e uma volta pelo porto. Esse é o tipo comum dos barcos de pesca
de alto-mar e não faltará quem se interesse em aceitar o transpor-
79
te. Se não achar, farei um anúncio nos jornais. Prometerei bom
pagamento e tenho certeza de que os interessados aparecerão às
dezenas. Que acha?
Leila, que até então assistia calada à conversa, apresentou
uma sugestão:
— Escutem. Tenho uma idéia que poderá ser aproveitada.
Eduardo, você sabe que o rádio-telegrafista Santos tem uma barca?
Parece que não é só dele. É uma espécie de sociedade entre alguns
tripulantes. Sei disso porque o Santos, que é doido por pescarias,
passa todos os dias de folga metido nessa embarcação correndo o
litoral. Não sei que tipo de barca é, mas creio que é grande e sólida,
porque no ano passado eles fizeram um cruzeiro até o norte. Por
que você não conversa com êle?
— De fato, — concordou Eduardo — de fato. Já ouvi o pessoal
falar várias vezes nessa embarcação. É um cúter movido a motor
Diesel. Mais de uma vez em vôo tive que agüentar as conversas
intermináveis e repetidas do Santos, do Américo e dos outros, con-
tando as pescarias nesse barco. Sua idéia foi ótima, Leila. O senhor
não acha, professor?
— Também acho ótima a lembrança. Sendo o barco de um
conhecido e possuindo as características indispensáveis para a tra-
vessia, creio que os gastos serão bem menores. Além disso, assim,
a viagem não terá publicidade alguma. A questão é saber se esse
moço ou o grupo nos emprestará ou alugará a embarcação. Quais
são suas relações com esse rádio-telegrafista, comandante?
— Não é dos meus amigos mais chegados, mas tenho certeza
de que não fará objeção ao meu pedido. Isso se a barca servir, é
claro, mas tenho ainda outra idéia. Penso até que o Santos pode-
rá ser um dos participantes da expedição. O professor faz alguma
objeção?
— Comandante, não se esqueça de que o senhor será o chefe
da expedição, e nessa qualidade é quem determinará quais os seus
coparticipantes. A mensagem do transmissor deixou tudo ao seu
cuidado, facultando inclusive a presença de dois ou três amigos
pessoais, ao seu critério. Não faço objeção alguma a quem quer
que o senhor escolha para tomar parte na travessia. Sendo esse
moço um dos proprietários da embarcação, é de presumir-se que
80
conheça bem a navegação oceânica e o manejo do barco, o que é de
capital importância para nós.
Cada vez mais à vontade agora e demonstrando crescente
entusiasmo, Eduardo ia pouco a pouco superando seu pessimismo
anterior, empolgando-se com a idéia.
— Tenho certeza de que Santos é o homem indicado... Quan-
to aos discos, não direi que êle acredite na sua existência, mas te-
nho a impressão de que não é inteiramente cético. Mais de uma vez
o apanhei discutindo o assunto e, mesmo sem ter prestado atenção
ao que dizia, vi que seus argumentos não eram dos mais primários.
Além disso, parece-me bastante inteligente. É doido por pescarias e
só por esse motivo, pela oportunidade de grandes pescas, acabará
aderindo.
Augusto-Michel de novo debruçou-se sobre o mapa.
— Veja. A ilha tem poucos lugares para uma ancoragem fá-
cil. Nossa embarcação, além de ser valente, precisará de um piloto
exímio, conhecedor dos segredos do alto-mar, capaz de abordar
em pontos difíceis. Veja. Todos estes contornos são altas rochas,
escarpas íngremes, na maioria de puro basalto. Pois, segundo afir-
mam os especialistas, Trindade é constituída quase exclusivamen-
te de rochas vulcânicas. Neste local, na Ponta do Paredão, dizem
que existe a cratera de um vulcão extinto. Nessas encostas abrup-
tas bate sempre um mar revolto. E ainda não é só. À violência
das águas adicionam-se areias movediças, recifes ocultos, rochas
móveis, tudo isso fazendo com que a aproximação seja coisa real-
mente difícil fora da costa norte. Precisamos conversar com o tal
Santos, examinar com êle todos esses pontos e saber antes de tudo
as características da embarcação.
O aviador levantou os olhos da superfície do mapa e, vendo
que Vaugirard estava bem informado sobre a ilha, resolveu saber
outros pormenores.
— Como é a superfície da Trindade, professor? Existe boa
água? E caça?
— Trindade é uma ilha incomum. Desabitada, a não ser du-
rante os raros períodos em que para lá se dirigem expedições cien-
tíficas, esteve ocupada somente ao tempo da última guerra, consi-
derada como ponto estratégico. Ao que me consta, foi descoberta
81
em 1501, por um navegador espanhol chamado João da Nova. Seu
clima, segundo li, é dos mais sadios, semi-úmido e tropical, com
temperatura média de vinte e três graus. A vegetação é rasteira,
do tipo denominado alpino. A água potável é abundante e, afora
as aranhas e tartarugas, que infestam a ilha, o que lá existe com
fartura são os porcos selvagens e cabras. Além de caranguejos de
todos os tipos.
A filha do anfitrião não mais se conteve. Até então se limi-
tara a escutar a conversa, arriscando de vez em quando um olhar
mais demorado para o aviador, o que não passava despercebido à
comissária.
— Ora, papai! Por que “eles” escolheram esse ponto? Não é
preciso ser cientista para responder! Uma ilha assim desconhecida
e longínqua deveria mesmo ser o local indicado. Devem querer o
maior mistério possível. A pista de Congonhas é que não iria servir,
não acham?
Augusto-Michel surpreendeu-se com a intromissão da filha.
Limpou um pigarro expressivo, mas não deixou de concordar com
a explicação.
— Deve ser isso mesmo. Um lugar desconhecido de quase
todo o resto do mundo e relativamente perto de nós. Afastado das
rotas marítimas e aéreas. Que haverá por aquelas bandas?
— Vamos deixar para cogitar disso depois — atalhou Edu-
ardo. — Confesso que nem durmo direito mais, sempre procuran-
do resposta para todas essas dúvidas. Já acertamos que iremos e
como iremos. Agora, se me permite, vou meter mãos à obra. Irei
direto ao Santos, explicarei em linhas gerais o caso, pedirei ab-
soluta reserva e examinarei as possibilidades do barco. Depois,
estudaremos os demais pontos. Instrumentos, materiais, víveres,
combustível, enfim, tudo o que fôr necessário para a travessia. Se
o cúter servir e o Santos concordar, êle poderá auxiliar-nos nesses
cálculos, pois deve ter bem mais experiência do que nós. Assim que
souber alguma coisa de positivo lhe telefonarei.
— Nesse meio tempo, comandante, de minha parte providen-
ciarei o material científico necessário na ilha e mesmo a bordo,
e tomarei as medidas financeiras que se fizerem necessárias. O
senhor tem carta-branca para os gastos, fazendo tudo sem ser pre-
82
ciso consultar-me.
Leila e Eduardo levantaram-se. E quando saíam, ao atra-
vessarem o jardim, a comissária não se conteve e comentou, com
indisfarçável azedume o interesse ostensivo da filha de Augusto-
Michel pelo aviador:
— Puxa! Aquela menina quase devorou você com os olhos!
Eduardo sorriu, não sem discreto prazer e, puxando Leila
pela mão, entraram no carro.

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84
SEGUNDA PARTE

A ILHA

VIII — O CÍRCULO MAIOR

Não foi coisa fácil localizar o rádio-telegrafista Santos. Nesse


dia êle partira em vôo para o sul e somente no dia seguinte, pela
tarde, Eduardo conseguiu encontrá-lo. Convidou-o para um jantar
e, durante a refeição, explicou-lhe todo o plano, pondo-o a par dos
acontecimentos em linhas gerais, sem chegar a minúcias.
Santos desde logo se interessou vivamente pela expedição.
Quis saber se na ilha havia pesca em abundância, entusiasmando-
se mais por esse aspecto do que pelo encontro misterioso. Quanto
à embarcação, era de fato adequada para a viagem. Pertencia a
mais seis tripulantes e era do tipo cúter, com um motor Diesel de
noventa cavalos, além de velas auxiliares. Media doze metros de
comprimento por quatro de boca, dispondo de acomodações para
seis pessoas, além duma pequena cozinha e instalações sanitárias.
Contava dois tanques laterais de duzentos e cinqüenta litros cada
um e havia além disso, espaço de sobra no convés para quatro ou
cinco tambores de duzentos e cinqüenta litros, para serem utiliza-
dos na volta. Eduardo ficou sabendo, também, que o casco era re-
forçado, preenchendo a embarcação todos os requisitos para uma
travessia oceânica do tipo da que iam empreender. A velocidade,
em condições normais e com vento de popa, usando-se a bujarrona
e a vela mestra, podia atingir a mais de trinta e cinco quilômetros
85
por hora, o que possibilitaria a travessia em cerca de dia e meio a
dois dias, no máximo.
O rádio-telegrafista ficou de conversar com os demais pro-
prietários da embarcação, aceitando, porém, o convite.
Quanto ao aviador, marcaria em seguida um encontro, na
residência do professor Vaugirard, a fim de ultimarem os planos e
pormenores da expedição.

Desde o primeiro dia, no mar, não tinham ainda assistido a


um pôr-de-sol tão magnífico. O céu estava, aquela tarde, absolu-
tamente límpido e uma tonalidade de azul, que ia do mais claro
ao mais profundo, rivalizava com o tom de turquesa que o oceano
adquiria naquele momento.
Do local em que se encontravam, divisavam grande parte da
costa norte. Embora não sendo elevado, o local permitia uma vi-
são ampla que ia desde a Ponta da Pedra até à Pedra do Tubarão,
enquanto desta se avistava a extremidade norte da ilha — a Ponta
da Crista do Galo — próxima ao Monumento, rocha de mais de
quatrocentos metros de altura.
O local onde se encontravam não podia ser considerado pre-
cisamente uma praia. A areia grossa misturava-se com rochas e
seixos de todos os tamanhos, que se espalhavam desde a orla marí-
tima até às elevações interiores. A areia era áspera e avermelhada,
esparramada em faixas ou depositada no fundo de pequenos man-
gues. Ali onde estavam havia uma diminuta praia com três ou qua-
tro coqueiros, quebrando a monotonia da paisagem rude. Armaram
as barracas no ponto em que a faixa costeira começa a inclinar-se
em rampa, a uma distância de cerca de seiscentos metros dum
platô que abria caminho para as escarpas interiores.
A tarde caia rapidamente e a lua-cheia já se entremostrava
sobre a linha do horizonte, impondo pouco a pouco seu brilho e
lançando reflexos cambiantes sobre o oceano e sobre a marola agi-
tada em espuma nas rochas e nos seixos, que iam adquirindo uma
tonalidade de carvão.
Não havia uma única brisa sequer e o barulho rítmico e ime-
86
morial do mar em choque com as rochas criava uma atmosfera de
irrealidade selvagem.
Estavam ali instalados há mais de doze horas.
A travessia, depois do mar grosso encontrado logo na saída,
se fizera em condições normais e de acordo com os planos prees-
tabelecidos.
O “Alcíone” desincumbira-se bem de sua tarefa. Tinham zar-
pado do Rio de Janeiro, para onde havia sido conduzido o cúter,
aproando para o Cabo Frio, enveredando em seguida para o alto-
mar. O rumo e a declinação foram meticulosamente estudados e os
três tripulantes revezaram-se na roda do leme durante o percurso.
Logo de saída tiveram o auxílio de ventos fortes, que aumentaram
de vários nós a potência do motor, para logo entrarem numa zona
de mar agitado. Depois do Cabo Frio os ventos haviam deixado de
soprar e o barco enfrentara uma longa faixa de mar espelhado,
onde os expedicionários passaram a contar apenas com o motor.
Toda a navegação ficou a cargo de Eduardo. A deriva foi mí-
nima e aproaram afinal na ilha na hora esperada, com diferença
insignificante de cálculos. Chegaram pela madrugada e aguarda-
ram o raiar do dia para a ancoragem, buscando a Enseada dos
Portugueses depois de contornarem a Ponta do Paredão e a Ponta
das Tartarugas, na parte sul da ilha.
Logo de manhã escolheram o local para as barracas e de-
sembarcaram os instrumentos e víveres. Pois, conforme os planos,
ficariam em Trindade pelo menos até ao dia 9, caso nada viesse a
acontecer naquele imprevisível 8 de julho.
Armadas as barracas, do tipo militar, os três homens pre-
pararam durante o dia inteiro uma tenda para os instrumentos
e a grande fogueira que poderia arder durante toda a noite. Num
círculo largo em volta do acampamento foram ainda colocados qua-
tro lampiões de querosene. Ao centro, perto da barraca de Leila,
instalaram a luneta de trinta aumentos e ao lado, fora do estôjo e
devidamente preparada para qualquer emergência, a câmara-mi-
niatura, com filme ultra-rápido e tele-objetiva. Um contador Geiger
de radiação estava a postos desde os primeiros momentos do de-
sembarque, e durante todo o dia o professor correra vários pontos
da ilha procurando medir a radioatividade, sem obter efeitos posi-
87
tivos.
Mesmo atarefados nas instalações, os homens não deixavam
um só momento de vigiar o espaço e os horizontes. Não se esquece-
ram de que estavam no dia marcado e, assim, tudo poderia acon-
tecer a qualquer instante.
A expectativa aumentava minuto a minuto, criando uma at-
mosfera de mal-estar e ansiedade entre os membros da expedição.
Só Augusto-Michel Vaugirard não deixava aflorar tal estado
de espírito. Desde que se fizera ao mar vinha se revelando o mais
ativo e dinâmico membro da expedição. Infatigável no preparo dos
instrumentos, incansável no registro das condições meteorológi-
cas, pensava até em realizar um levantamento do litoral da ilha,
ocupando boa parte da tarde em registros topográficos.
Já os demais mantinham atitude de reserva.
Eduardo não estava totalmente convencido do acerto da
expedição. É verdade que pensara muito no assunto e resolvera
atender ao insólito convite, sendo certo também que acreditava na
existência dos discos-voadores. Todavia, o que ainda o preocupava
era a razão pela qual fora envolvido nessa estranha aventura. No
fundo, sua atitude era ditada mais por natural curiosidade do que
por espírito especulativo, como se dava com o professor. Assim,
mesmo admitindo a existência dos discos, mesmo acreditando na
existência de seres superiores vindos de outras partes do universo,
Eduardo não se sentia atraído pela verificação desse fato. O que o
intrigava, o que desejava esclarecer mais do que tudo era a razão
da sua escolha e os motivos que levaram tão fantásticas criaturas
a envolvê-lo nas malhas desse episódio inacreditável. Em duas pa-
lavras: estava possuído de um misto de ceticismo e credulidade e
deixava a sua opinião final sobre os fatos para depois desse dia 8
de julho.
Com a comissária a situação era a mais diversa possível. Não
seria necessário raciocínio profundo e nem conhecimento de psico-
logia para se aduzirem as razões que nortearam o procedimento da
moça. Não fora ter àquela ilha deserta, com aspectos de paisagem
lunar, por motivos de ordem científica, por curiosidade ou espírito
de aventura. Não. As causas eram mais primárias e humanas: que-
ria estar ao lado de Eduardo, pois há muito tempo, como também
88
acontecia com o aviador, sabia que seus destinos estavam ligados
para sempre.
Dessa forma, de todos os componentes do grupo era ela quem
menos se interessava pelo disco-voador e por seus tripulantes,
pouco se importando com o que na ilha viesse a acontecer, desde
que não pusesse Eduardo em perigo.
Quanto ao rádio-telegrafista, sua posição também era diver-
sa. Santos conhecia a questão dos discos. Sua informação a respei-
to era, todavia, bastante primária. O que sabia fora lido no notici-
ário de jornais e revistas, jamais tendo êle se preocupado em obter
conhecimentos mais profundos ou mais exatos sobre o assunto.
Quando recebeu o convite, em verdade, não se impressionou mui-
to. Aceitou o pacto de silêncio e viu na expedição, antes de mais
nada, boa oportunidade para tomar parte num passeio com ares de
aventura. No fundo era uma criança grande, que seguia filmes se-
riados e se impressionava com histórias em quadrinhos. Recebeu o
convite, arranjou a embarcação e viu em tudo aquilo um bom meio
de gozar suas férias.
Para o rádio-telegrafista, a questão dos discos-voadores era
um pretexto, pouco também lhe importando, como à comissária,
que os misteriosos engenhos surgissem ou não sobre as escarpas
da ilha. Sentia-se já mais do que compensado com os dias bem
aproveitados sobre o mar, com a visita à ilha desconhecida, e com
a coleção de peixes que ia sistematicamente arrancando do fun-
do das águas e espalhando pelo convés, ao lado dos tambores de
óleo.
Augusto-Michel desconfiava às vezes, que Santos não levava
a sério a expedição; mas não conseguiu jamais apanhá-lo em de-
monstração evidente desse estado de espírito.
Do lugar em que se encontravam, viam bem a embarcação
ancorada. O “Alcíone” estava ao largo, seguro, com a âncora de en-
golir, e tinham chegado à terra com o emprego do bote de borracha
de ar comprimido, do mesmo tipo dos utilizados nos vôos transo-
ceânicos. Em duas viagens, tinham transportado todo o equipa-
mento, ficando o barco de borracha guardado debaixo da barraca
de instrumentos.
Às seis e vinte da tarde, o sol acabou de desaparecer. No ho-
89
rizonte marítimo, restou, apenas, uma larga cortina de luz, que se
assemelhava à claridade zodiacal. A tonalidade vermelha foi ceden-
do a cores róseas, descambando para o azul e o violeta.
Com o desaparecimento do sol, uma leve brisa começou a
soprar e o frio, já intenso, aumentou mais ainda, razão pela qual
Santos lançou mais lenha na fogueira, cujas labaredas bailavam
na semi-obscuridade.
Leila, debruçada ao lado de um fogareiro de querosene, pre-
parava uma cheirosa sopa em lata, enquanto Eduardo, depois de
ligar o rádio de bateria, procurava uma estação que estivesse irra-
diando música.
As notas alegres e claras da música de jazz inundaram o
acampamento e perderam-se pelos rochedos. Todos eles tinham
quase certeza de que aquela era a primeira vez que sons musicais
se faziam ouvir na ilha. A música como que os reanimou e logo
mais se agruparam junto ao fogo para a sopa reconfortante.
— Meus amigos, chegamos com a noite à etapa final dé nossa
espera — anunciou solenemente o professor Vaugirard, enquanto
esfregava as mãos, procurando esquentar-se, depois de já ter en-
fiado um sueter vermelho de lã.
— Logo a coisa vai acontecer! Sinto que a viagem não foi em
vão!
Quem respondeu foi Eduardo:
— Já estou ficando melo desapontado. Ainda há pouco disse
a Leila que estava com a impressão de quem espera muito por uma
festa a qual no momento exato é transferida...
O rádio-telegrafista apanhou seu prato de sopa e, enquanto
procurava esfriá-lo com a colher, indagou:
— Que é que vocês esperam que aconteça? Isso vocês não
me esclareceram ainda. Como é que vocês acham que “eles” vão
aparecer?
— Não sabemos bem o que irá ou o que poderá acontecer —
respondeu o aviador. — O convite nada esclareceu a esse respeito.
Apenas me foi dito que viesse para encontrar aqui a explicação dos
fenômenos que venho presenciando ultimamente. Também aqui
em Trindade com certeza saberei a razão de minha escolha. Tudo
está por pouco. Ou testemunharemos fatos extraordinários ou se-
90
remos logrados e a nossa expedição será transformada em ridícula
viagem de recreio forçado...
O professor encarou seriamente os dois e ponderou em tom
seguro, que chegou a perturbá-los:
— Não se preocupem. Tenho absoluta convicção de que den-
tro em pouco assistiremos a coisas sensacionais. Esqueçam-se de
tudo por algum tempo, tomem a sopa e depois me auxiliem na
vigilância do espaço. Pressinto que a “coisa” está para aparecer!
Convém que não percamos tempo. O comandante não perderá um
segundo sequer com a máquina fotográfica. Assim que surgir al-
guma coisa de anormal fotografe imediatamente. Use foco para o
infinito e a abertura máxima do diafragma, empregando uma ve-
locidade média que congele qualquer movimento sem prejudicar a
sensibilidade do filme. Eu me encarregarei do teodolito, registrando
a posição, ao passo que Santos se encarregará da observação com
a luneta. Quanto a você, Leila, não se afaste de nós, haja o que
houver.
A comissária trocou olhares com Eduardo e com Santos, sen-
tindo um calafrio percorrer-lhe a espinha dorsal e uma ainda não
sentida sensação de medo. Acercou-se de Eduardo e procurou-lhe
o braço como em busca de proteção, indagando de Vaugirard:
— Mas, afinal, que poderá suceder, professor?
— Não sei, minha filha. Mas o certo é que estou começando a
ficar arrependido de não ter trazido alguma arma de fogo.
Ouvindo a afirmativa, Santos não pôde reprimir um sorriso
dúbio.
— Vocês me desculpem. Mas não pude resistir. É um velho
hábito e não deixa de ser dos bons, principalmente em determina-
das circunstâncias...
— Que quer você dizer com isso, Santos? — interrompeu
Eduardo.
O rádio-telegrafista não se conteve. Levantou-se e foi ter à
sua barraca. Depois de remexer na sacola de viagem, regressou
para junto do fogo com dois enormes revólveres, de calibre trinta
e oito.
— Vejam. Uma dessas eu já tinha. É minha velha compa-
nheira desde antes da campanha da Europa. Quanto à outra, meu
91
caro amigo Eduardo, é um presente que lhe faço neste momento.
Balas eu tenho à vontade. Ponha-a na cintura e verá logo que esse
frio não será tão intenso assim. Que tal?
Eduardo, Leila e o professor, que estavam a par da recomen-
dação de não levarem armas, regozijaram-se com a lembrança, mas
no fundo passaram a sentir algum receio de ter sido a recomenda-
ção burlada. Afinal de contas, sentiam-se desprotegidos; pois não
sabiam ao certo o que iam deparar e não calculavam nem mesmo
que valor poderia ter uma arma de fogo perante a natureza desco-
nhecida dos esperados visitantes.
— “Eles” recomendaram que não trouxéssemos armas — ad-
vertiu Eduardo — mas esconda bem a sua, que procurarei fazer
outro tanto com a minha. Elas são um tanto volumosas, mas se as
enfiarmos na cinta, debaixo da camisa, dificilmente serão notadas
em virtude da escuridão. Porque será que fizeram esse pedido?
— Ótimo, ótimo — concordou Augusto-Michel. — Guardem
isso bem escondido. Na ilha pode haver animais selvagens, cobras,
e outras coisas...
— Que outras coisas? — interrogou Leila, manifestando visí-
vel temor.
— Outras coisas... Isto é, feras, cobras...
A esse ponto da conversa o rádio, que permanecia ligado,
passou a produzir uma série de ruídos incômodos de estática. De
início estalidos rápidos e curtos, depois barulhos fortes que supe-
raram totalmente a música que vinha sendo captada.
Eduardo levantou-se e procurou mudar de estação. Correu
toda a faixa e não obteve melhores resultados. A interferência tor-
nava-se cada vez mais violenta e o barulho cada vez mais freqüen-
te.
— Bem, isto já é uma novidade — exclamou o professor, en-
caminhando-se para o rádio, colocado sobre um caixote de manti-
mentos. — Não desligue, comandante, não desligue. Vamos ver o
que é isso.
Foi aí que o contador Geiger começou a emitir sons pausados
e estridentes que foram aumentando até se transformarem num
chiado ininterrupto.
— É a “coisa”! — murmurou entredentes o professor. — Aten-
92
ção! Cada um em seu posto!
Leila sentia-se presa de crescente pavor e procurava acercar-
se mais do comandante, quase lhe tolhendo os movimentos. Este
apanhou a máquina fotográfica, desprendeu-a do tripé e colocou-
se longe da fogueira, perscrutando o espaço sobre a ilha.
Santos mudou de atitude. Largou o prato de sopa e aproxi-
mou-se da luneta, sem saber o que devia fazer, limpando desajeita-
damente as mãos na calça amarrotada.
Augusto-Michel Vaugirard era o único que se mostrava à
vontade. Como se fosse executar um trabalho conhecido e de roti-
na, acercou-se do lugar onde se achava o teodolito e destampou a
ocular, puxando antes para junto de si o medidor de radioativida-
de, que estalava de forma inconcebível.
— Vejam! É espantoso! Nunca vi coisa assim. A emanação
é incrível! Não sei de substância alguma capaz de emanar tanta
energia!
O que se passou a seguir foi coisa das mais fantásticas.
Um ponto luminoso destacou-se sobre a linha do horizonte,
vindo do lado Este, como se fosse uma estrela que se separasse de
sua constelação. Movimentou-se em direção à ilha em menos de
um minuto, aumentando assustadoramente de tamanho.
Seu formato foi logo observado. Era um disco perfeito, ani-
mado de grande movimento circular em torno de seu próprio eixo,
e de tamanho superior a duas vezes a lua no plenilúnio.
O objeto voador — indiscutivelmente um disco — expandia
forte luminosidade de várias cores, com um ponto central verme-
lho na parte superior. Deslocou-se em rápido movimento circular
sobre Trindade, como se procedesse a um reconhecimento. Depois,
retornou, aproximando-se do lugar, onde se encontravam os quatro
assombrados espectadores, estabilizando-se a cerca de quinhentos
metros de altura, como se estivesse seguro à abóbada celeste por
um fio invisível.
Não emitia um ruído sequer e deixava em torno de si uma
leve fosforescência que desaparecia em segundos. Parado, animado
apenas de movimento circular sobre o respectivo eixo, o misterioso
engenho assumia aspecto nebuloso, sem contornos nítidos, como
se fosse um objeto sem consistência.
93
Os quatro imóveis assistentes presenciavam à cena e às evo-
luções, transidos de pavor. Eduardo não se moveu e esqueceu de
obter as primeiras chapas, limitando-se a abraçar â comissária
num gesto instintivo de proteção. Santos não chegou a ajustar a
luneta. Deixando o aparelho de lado, postou-se estático ante as
manobras do objeto luminoso. Augusto-Michel também não se
lembrou de utilizar o teodolito, o que seria mesmo impossível devi-
do ao movimento rápido do disco-voador.
Este se estabilizou por alguns minutos, sempre girando sobre
si mesmo, e pairou acima do pequeno platô existente há mais ou
menos quatrocentos metros do local onde estava o acampamento.
Parecia indeciso, sem saber ainda qual o deslocamento que adota-
ria.
Ninguém pronunciou uma só palavra.
A aparição do disco-voador — pois aquilo só podia ser o que
se convencionou chamar por tal designação — deixou inertes os
quatro observadores. Pairando ainda, suspenso, como se contives-
se uma força misteriosa aniquiladora da força da gravidade, o disco
não cessava de girar, destacando-se apenas em sua parte superior
um ponto de luz vermelha, que se acendia e apagava de forma in-
termitente.
Eduardo foi o primeiro a mover-se. Separou-se delicadamen-
te de Leila, sem deixar de fixar um só momento o objeto, e levantou
a câmera-miniatura. Enquadrou a imagem no visor e disparou —
uma, duas, três vezes — automaticamente, sem dar-se conta do
número de disparos, agindo como hipnotizado.
Vaugirard era o único que não se descontrolava. Seu mutis-
mo escondia um raciocínio intenso, procurando analisar a apari-
ção em seus mínimos pontos. Foi o primeiro a falar, sem despregar
os olhos do objeto, que continuava em seu giro assombroso.
— Vejam! Vejam! Um disco-voador! Um disco-voador! Não
disse! Não disse! Não tinha razão?
Mesmo aparentemente controlado e procurando dominar a
situação, não se apercebia que gritava mais do que falava e seus
brados, perdendo-se pela orla marítima e pela encosta junto ao pla-
tô, ecoavam nas rochas lá no fundo, deixando transidos de terror
os outros espectadores.
94
— Vejam! Vejam! Vejam à vontade! Lá está êle! Ai dos incré-
dulos! Ai dos céticos!
A voz chegava a ser mórbida e histérica, mas em suas atitu-
des e gestos o professor continuava a demonstrar perfeito controle
da situação.
— Atenção, comandante Eduardo! Não se esqueça da máqui-
na! Não perca um instante!
Eduardo pouco a pouco foi saindo do torpor que o possuíra.
Apenas Leila e Santos, de olhos esbugalhados e presos no espaço,
continuavam alheios a tudo que ao redor se passava.
A visão assombrava, de fato, justificando o impacto geral.
Era, efetivamente, o que se convencionou chamar um disco-
voador. Ali estava êle, parado naquele momento, naquela ilha de-
serta, exposto aos olhos de quatro espectadores. Deixava de ser um
mito, amálgama de lenda e realidade, de fantasia e ciência.
Suas linhas não fugiam a muitas das descrições feitas por
dezenas de testemunhas: um disco de diâmetro ainda não bem
calculado devido à distância, tendo ao centro, na parte superior,
uma espécie de cabina circular com várias escotilhas, que já ti-
nham sido vistas pelo professor por meio do binóculo e por Santos
através da luneta.
Nos momentos que se seguiram, Eduardo esgotou o rolo do
filme e foi puxado por Augusto-Michel, que lhe colocou o binóculo
nas mãos.
— Veja, comandante! Dê uma espiada através das lentes e
examine o disco! É inacreditável!
O aviador não pôde esconder seu espanto. O disco era exata-
mente igual às fotografias de Adamski e de Coniston. Lá estavam
as semi-esferas que serviam de trem de pouso. Lá estavam, bem
recortadas, as portinholas que deixavam escapar uma luz interior
bem branca. Não conseguiu reprimir uma exclamação ao observar
outros detalhes:
— Por Deus! Dentro daquilo existem tripulantes! Tome, veja
— disse, passando o binóculo novamente às mãos de Vaugirard.
— É fantástico! Estão lá dentro! Movem-se! Vejo duas silhue-
tas que se mexem!
Pela primeira vez, Santos rompeu o mutismo, dando sinal de
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vida, sem tirar os olhos da ocular da luneta.
— Não tem dúvida alguma. Não é um teleguiado, como pensei
desde o começo. Tem gente lá dentro! Vi, claramente, os vultos se
movimentarem. Que vamos fazer?
— Vamos nos aproximar e examinar melhor. Acho melhor
Leila ficar aqui enquanto nós nos avizinhamos dele. Vamos tentar
um contato com os tripulantes.
A comissária movimentou-se do lugar, onde estava e reuniu
todas as suas forças para conseguir articular algumas palavras:
— Não fico aqui sozinha! Se vocês forem para lá, também
vou.
O aviador lembrou-se então de um ponto:
— Professor! E a radioatividade? Não será perigosa a aproxi-
mação?
Só nesse instante se lembraram do contador Geiger. Este,
entretanto, estava agora tão silencioso como se a fonte que antes o
excitara tivesse se extinguido por completo.
Augusto-Michel acercou-se do aparelho, movimentou os
botões e examinou os ponteiros. Cientificou-se de que nenhuma
radioatividade era agora acusada, tudo fazendo crer que as ema-
nações registradas deveriam ter vindo da fonte propulsora do dis-
co-voador.
— Não acusa mais nada. A agulha está inerte. Não vejo perigo
em nos aproximarmos. É chegado o momento de nos entendermos
com eles, afinal. Vá na frente, comandante. Nós o seguiremos. Va-
mos dar uma espiada bem de perto.
Santos e Eduardo pegaram as duas lanternas de mão e os
quatro puseram-se a caminho do platô, onde pousara o aparelho.
À medida que venciam a distância, tropeçando pelo solo irre-
gular e pedregoso, iam observando melhor o disco, tendo uma idéia
mais exata do seu tamanho.
Deveria ter pelo menos uns vinte metros de diâmetro.
Quando se achavam a uns dez metros, os quatro pararam.
Cada vez mais procuravam examinar o engenho, lançando sobre
a superfície polida os raios das lanternas. Logo verificaram que a
parte inferior, onde se ajustavam as esferas de pouso, dava a idéia
de uma grande peça autônoma, com movimento independente do
96
resto do bloco.
O disco estava inerte e nenhum movimento denunciava a
presença de seres vivos em seu interior. Mas de súbito, um zunido,
a princípio fraco e depois mais forte, começou a sair de dentro do
objeto.
Os quatro personagens continuaram imóveis, possuídos de
intensa apreensão. Eduardo e Santos apagaram as lanternas e es-
peraram, pois havia chegado o grande momento.
Assim que o zunido aumentou abriu-se uma lenda de alto a
baixo num dos bordos do disco e surgiu em seguida uma espécie
de entrada que se foi abrindo, dando a idéia de um bolo do qual
tivesse sido retirada uma fatia.
Não foi só.
Do lado direito desse vão, onde antes se via uma superfície
compacta, esta deslizou, dando lugar a uma segunda passagem,
que se comunicava com o interior do disco e por onde se libertou
uma réstia de luz branca.
Os quatro olharam perplexos e viram surgir nessa segunda
abertura, contra a luz, o perfil alto e fino de uma figura com aspec-
tos humanos.

IX — “CHAMO-ME ALIK”

Durante alguns momentos, permaneceram imóveis.


O aparecimento da figura alta e esguia na fenda que se abriu
no disco-voador veio coroar o fantástico dos acontecimentos.
Mais uma vez, Augusto-Michel foi o primeiro a recuperar-se.
Depois da parada momentânea, continuou a caminhar em direção
à aeronave, sem demonstrar o menor receio.
Santos afastou-se um pouco, chegou a enfiar a mão dentro
da camisa onde se achava a garrucha, mas não chegou a comple-
tar o gesto. Logo que viu o professor encaminhar-se em direção à
silhueta, Eduardo acompanhou-o, puxando consigo a comissária,
que relutava, em segui-lo.
A cena era de fato impressionante.
O disco, bem no centro do pequeno platô, refletia fortemente
o luar, como se toda a sua superfície fosse espelhada, e a silhueta
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do tripulante, destacando-se na abertura, quebrava a linha aerodi-
nâmica do engenho. Na parte superior, sobre a cabina, o ponto ver-
melho continuava a acender-se de forma intermitente, espalhando
seus reflexos na parte superior da estrutura.
Augusto-Michel Vaugirard estava fascinado. Como que atra-
ído pela presença da aeronave se aproximava cada vez mais, não
demonstrando temor algum.
Leila e Eduardo continuavam a segui-lo, sempre de olhos fi-
xos na estranha silhueta que continuava impassível. O rádio-tele-
grafista não se movia e de longe aguardava, em atitude defensiva.
Quando estavam bem próximos, a silhueta moveu-se. Sem
sair do lugar, levantou um dos braços, como se saudasse os ho-
mens da terra que se aproximavam.
Eduardo, Leila e o professor pararam mais uma vez, procu-
rando melhor observar a figura.
Não restava dúvida que sua aparência era humana. Do lugar
onde se achavam podiam distinguir alguns pormenores.
Seu aspecto era normal, a não ser o tamanho da cabeça,
excessivamente larga na fronte. O traje era branco, de uma algi-
dez metálica, refletindo também os raios do luar, como se fosse
recoberto por uma camada de tinta fosforescente. Nessa segunda
parada, uma voz fêz-se ouvir:
— Chamo-me Alik. Aproximem-se. Não tenham medo. Nos-
sas intenções são pacíficas.
A voz não era inumana, contrariando a expectativa das qua-
tro perplexas criaturas.
O professor, como que automatizado, deu mais alguns pas-
sos à frente, enquanto o comandante e a comissária hesitavam.
— Aproximem-se. Nada lhes sucederá. Compreendemos sua
posição e seu espanto. Nossa missão, porém, é de paz.
Com estas palavras, o local onde o personagem se encontra-
va apoiado, uma espécie de plataforma, deslocou-se em direção ao
solo, como se fosse um elevador. O tripulante saiu de onde estava
e, ganhando a terra, encaminhou-se para o professor e estendeu-
lhe a mão.
Vaugirard não hesitou. Aceitou o cumprimento e teve na sua
mão pequena e ossuda uma palma — longa, fria, musculosa, ines-
98
quecível. Não pronunciou uma só palavra e, sempre com os olhos
esbugalhados, procurou analisar nos menores traços a aparência
daquela estranha personalidade.
Face a face, à luz do luar, via-se que o personagem era de fato
humano. Lá estavam os olhos, a boca e as orelhas. Havia, contu-
do, algumas diferenças: os olhos eram maiores e mais brilhantes,
desprovidos de cílios; os cabelos, de um branco prateado, da côr
aproximada do vestuário; o nariz, afilado e longo; os lábios, inteira-
mente lisos, sem comissuras.
O tripulante do disco-voador suportou, imóvel, a análise atô-
nita do professor. Continuou onde se achava, em silêncio, subme-
tendo-se ao exame. Com a mão trêmula, Vaugirard tentou ligar a
lanterna, sem coragem de focalizá-la sobre êle. O outro também
compreendeu o gesto. Delicadamente retirou o farolete das mãos
do professor e o apontou em direção de sua própria pessoa, colo-
cando-se debaixo do foco de luz.
Augusto-Michel deu um passo para trás, agora mudo e trê-
mulo. Viu que a pupila do outro era enorme, quase do tamanho do
globo ocular, não se retraindo debaixo da luz. Viu que a pele era in-
crivelmente branca, como se nunca tivesse sido tocada pelos raios
solares. Além de branca, era de brilho invulgar. Parecia lubrificada
por cosmético. Parecia mesmo revestida por esmalte brilhante.
O traje, todo liso, era quebrado, apenas, por um cinto onde se
ajustava certo objeto circular de côr azulada. Como sapatos havia
qualquer coisa inteiriça e branca.
Enquanto o professor procedia, boquiaberto, ao exame, Leila
e Eduardo começaram a aproximar-se, também, convencidos de
que não os ameaçava nenhum perigo.
O rádio-telegrafista imitou-os. Deslocou-se do lugar onde es-
tava e foi se acercando, com a lanterna ligada.
De novo, ouviu-se a voz:
— Não tenham medo. Viemos em missão de paz. Vocês são
nossos amigos e aqui estamos para um primeiro contato. Aproxi-
mem-se, que nada lhes sucederá.
Augusto-Michel, satisfeito com os resultados da inspeção,
quebrou o silêncio por fim. Suas primeiras palavras demonstraram
porém o seu descontrole. Titubeava, visivelmente perturbado por
99
todas as questões que lhe assaltavam a mente:
— Quem é você? De onde veio? Que deseja de nós? Como
consegue falar a nossa língua?
O tripulante do disco estendeu a lanterna em direção ao avia-
dor, que timidamente a recolheu.
— Compreendo a situação e a estranheza. Tudo isso não
pode deixar de parecer-lhes fantástico, em verdade. Mas vamos por
partes. A noite terrestre é longa e teremos tempo de conversar. —
Voltou-se a seguir para o comandante como se já o conhecesse,
continuando em tom ameno:
— Comandante Eduardo, o senhor foi um dos escolhidos. Já
o conhecemos a fundo e o recebemos como amigo, o que também
fazemos em relação aos seus companheiros. Mantenham-se, pois,
calmos, que pouco a pouco hei-de satisfazer a curiosidade de todos
antes de entrarmos propriamente no motivo deste encontro.
O professor, sempre de olhos esbugalhados, com os óculos
na mão, insistia em suas perguntas, agitando-se ao redor do per-
sonagem.
— Por Deus! Diga-me de onde vieram e o que pretendem!
Compreendendo o pânico que se apossara de Vaugirard, o
tripulante fêz as duas primeiras e sensacionais revelações:
— Viemos da terra mesmo. O seu planeta é também o nos-
so...
Eduardo interrompeu-o, falando pela primeira vez:
— De que país procedem? Como é que fala português?
— Não se perturbem. Repito: o seu planeta é também o nosso
abrigo na galáxia solar, mas de uma forma diversa. Nossos domí-
nios são outros, desconhecidos pelos habitantes da Terra.
Augusto-Michel e Eduardo entreolharam-se, perplexos. Não
compreendiam o que o estranho personagem queria dizer.
— Vocês têm por plataforma a crosta terrestre, ao passo que
nós nada temos que ver com a superfície. Nossa civilização é sub-
terrânea. Nosso habitat fica no interior do planeta. Não se espan-
tem. Esta é uma informação provisória, para responder às primei-
ras perguntas.
Eduardo e Vaugirard não podiam mais esconder o espanto.
Viviam dentro de um pesadelo. E aquele personagem fantástico
100
era certamente um produto onírico que não podia ser tomado em
consideração.
Alik calou-se e esperou que Santos se aproximasse. Sujeitou-
se ao mesmo exame, em silêncio e, depois de novo pedido de calma
e confiança, convidou-os a penetrar no interior do disco para con-
tinuarem a conversa.
Os quatro entreolharam-se, como que procurando resposta
ao convite. Eduardo não titubeou. Sempre puxando a comissária
pela mão e seguido por Santos e Augusto-Michel, encaminhou-se
para a plataforma debaixo do aparelho. O tripulante guiou-os.
Assim que os quatro ocuparam a plataforma, com um zunido
quase imperceptível ela se deslocou, elevando-se à altura do dis-
co e parando em frente à fenda lateral. O tripulante continuou a
indicar-lhes o caminho e todos ingressaram no interior da aerona-
ve. Aquele esperou que alguns minutos se passassem, a fim de que
os quatro habitantes da superfície da terra pudessem examinar
à vontade o compartimento onde se achavam. Procurava, assim,
incutir-lhes confiança.
O compartimento tinha forma quase triangular, como se fos-
se uma seção, a terça parte da circunferência que constituía o cor-
po do aparelho. Não havia duvida: estavam na parte superior do
engenho, na protuberância que seria a cabina. Todo o revestimento
era metálico, de um branco polido, idêntico ao metal do exterior. Ao
lado da passagem oval, em relevo na parede, firmava-se um painel
repleto de instrumentos, quase todos feitos de material transpa-
rente, onde se agitavam agulhas e líquidos. Como mobiliário, havia
no centro três peças com aspecto de camas ou divas, inteiramente
lisas, sobre pés metálicos, cercadas de alavancas e comutadores,
lembrando mesas cirúrgicas.
— Fiquem à vontade. Não são os primeiros habitantes da
superfície a penetrarem em nossa nave do espaço. Mas é justo que,
ao ingressar pela primeira vez, sintam curiosidade, principalmente
se tratando de um aviador, de um professor de astrofísica e de um
rádio-telegrafista.
Mais uma vez, os três entreolharam-se significativamente,
desconcertados ante as informações exatas do tripulante sobre
suas profissões.
101
Leila foi a única que não se interessou pelo exame minucioso
da cabina. Recostou-se naquilo que lhe pareceu um diva embora
não muito ajeitado, e não conseguia despregar os olhos do absurdo
personagem.
Sentindo que chegava o momento das explicações, procura-
ram acomodar-se, à exceção de Santos que se encostou numa das
paredes da cabina, sempre demonstrando atitude de receio e auto-
defesa.
— Como já lhes disse, viemos das profundidades da terra.
Antes que me submeta às suas perguntas darei alguns esclareci-
mentos provisórios: a superfície da terra não é, conforme vêem e
como todos pensam, o único campo de um tipo de vida superior,
racional, representado pelo espécime denominado “homem”. Não.
A vida, — condição de atividade contínua, comum aos seres or-
ganizados — é também possível no interior da crosta e em várias
profundidades. O globo terrestre, como sabem, não é uma massa
compacta, inteiriça. Milhares e milhares de vazios, de bolsas, exis-
tem em seu interior. Nessas bolsas é que se situam as nossas sete
cidades.
Fêz uma pausa, correu aqueles olhos imensos e desprovidos
de cílios pelos quatro espectadores atônitos, e continuou no mesmo
tom:
— Meu nome, como já lhes disse, é Alik. Venho com meu
veículo espacial da terceira cidade de Agarta e empreendo um dos
vôos de rotina na parte exterior, como sempre em missão de paz e
reconhecimento. — Parou por segundos, deu alguns passos pelo
compartimento e continuou: — Sei que tudo isso lhes parece ab-
surdo e que seria mais fácil admitir uma origem extra-terrena para
nossa nave espacial, que vocês chamam de “disco-voador”. Assegu-
ro-lhes, porém, que milhares e milhares de habitantes da superfí-
cie já estiveram conosco em contato idêntico, e suas reações foram
iguais às vossas. Logo esclarecerei tudo. O senhor aí, comandante
Eduardo, foi o elemento escolhido para esta missão. Através de
nossos contatos anteriores, com as ligações com outros homens
da terra, periodicamente elegemos novos iniciados. Escolhemos os
que julgamos dignos de conhecer a nossa civilização, procurando
assim, por um processo lento e constante, obter a ligação total com
102
a superfície. Depois então, conseguida a pacificação e a paz inte-
gral, a conquista da Suprema Harmonia, passaremos às demais
etapas do Grande Bem, com destino aos demais corpos do nosso
sistema, para depois ainda rumarmos para as novas galáxias. Sin-
to que estou sendo prolixo. Tentarei ir mais devagar, não me afas-
tando de um esquema lógico. — Fêz uma pausa, com certeza para
dar tempo a que seus assombrados interlocutores se refizessem e
se pusessem em estado de raciocinar e reter sua exposição. Depois
continuou:
— Sim, comandante Eduardo Germano de Resende, o senhor
foi um dos escolhidos. Recorda-se do descontrole dos instrumentos
de seu avião sobre a cidade de São Paulo? Recorda-se da nossa
passagem junto ao seu antiquado aparelho sobre o Oceano Atlân-
tico?
Eduardo não respondeu, limitando-se a balançar afirmativa-
mente a cabeça.
— Esses dois fatos, que lhes pareceram misteriosos e feno-
menais, foram provocados por nós, por esta mesma nave espa-
cial que vocês chamam de “disco-voador”. Os instrumentos de seu
avião foram descontrolados pela criação de um campo magnético
gerado intencionalmente por esta nave. Sobre o oceano, como de-
monstração de nosso poderio, nós nos aproximamos de seu avião
e o inundamos com luz projetada por nosso engenho. Esses dois
primeiros passos, como nos contatos anteriores com outros ho-
mens da superfície, antecedem habitualmente o encontro e servem
como preparação espiritual e material. Criam um clima favorável
à aceitação do nosso convite. Comandante Eduardo, lembra-se do
homenzinho de Paris? Da perseguição que lhe foi movida?
Mais uma vez o aviador não respondeu, pasmado ante o que
ouvia.
— Aquele personagem era uma criatura terrena idêntica a
vocês, já incorporado à nossa civilização como acontece com mi-
lhares e milhares de outros, e que nos vêm ajudando em nossos
altíssimos desígnios. O visor-transmissor foi um dos tipos de co-
municação que escolhemos e que achamos mais próprios para seu
caso. Quanto à escolha dos outros companheiros — declarou Alík,
correndo os olhos sobre Leila, Vaugirard e Santos — já é trabalho
103
seu, risco que não podemos deixar de correr.
O professor agitou-se todo em seu lugar, dando demonstra-
ção de que pretendia começar a formular perguntas.
— Um pouco mais de paciência, professor. Preciso ainda es-
clarecer outros pontos. Como vêem, falo a mesma língua dos ho-
mens da superfície neste ponto da crosta denominado “Brasil”. Se
é certo que nossa civilização está lá em baixo, completamente ig-
norada, já conosco sucede o contrário. Conhecemos toda a crosta
terrestre e a humanidade que a povoa, pois estamos em contato
permanente com ela. Os nossos homens confundem-se com vocês.
Isso faz parte de nossos planos, que vêm sendo desenvolvidos há
séculos, desde períodos imemoriais. Nossa civilização teve origem
na crosta. Há milênios, o grupo primitivo, por circunstâncias que
por enquanto não posso esclarecer, desgarrou-se da superfície do
planeta com a descoberta acidental da primeira passagem. Surgiu
assim a primeira cidade no grande vazio. Criou-se Agarta. Nos-
so progresso foi depois uma questão de tempo. As outras cidades
apareceram e logo conseguimos um avanço incomensuràvelmente
superior ao conseguido pelo homem da superfície. Mas, deixando
de lado esse aspecto material, mais longe foi ainda nosso avanço
espiritual. Se a vossa humanidade marchava sempre em função da
destruição e do mal, nós progredíamos em função da Fraternidade
e do Bem Supremo. Progredíamos para criar, ao passo que vocês da
superfície progrediam para destruir. Agora neste século aproxima-
se a intervenção, de uma forma ou de outra. O homem da super-
fície já não se contenta em dominar a crosta. Vai se atirando ao
espaço. Esse progresso é lento em comparação com o nosso, mas
admitimos que já se avizinha o dia em que o homem da superfície
se desgarrará de sua plataforma sideral em busca de outras mora-
das cósmicas. Isto seria a antecipação de nossos planos para o Su-
premo Bem. Os homens da superfície, sem terem ainda encontrado
solução para os males que os afligem e os destroem, buscam novos
limites no espaço, para onde consequentemente levarão os mesmos
problemas, os mesmos males. Só uma humanidade perfeita poderá
emigrar para o espaço. Essa não é a humanidade da superfície,
evidentemente. Tal missão cabe a nós, exclusivamente, e não pode-
mos permitir que os homens da crosta terrestre se antecipem aos
104
nossos planos, obtendo resultados negativos e prejudiciais.
Alik calou-se, mais uma vez, aguardando a reação dos seus
assombrados convivas. Como estes permanecessem calados, inca-
pazes de qualquer refutação, prosseguiu a sua estranha e calma
exposição:
— Creio que ainda estou sendo confuso. Tentarei outra vez
ser mais claro. Vejamos. A humanidade da superfície tem ainda
em sua formação a semente do mal e da destruição, simbolizada
pela guerra. Todo seu progresso na ciência tem por objetivo a des-
truição, isto é, o mal e não o bem. A conquista do espaço nessas
circunstâncias seria, apenas, mais um passo no caminho do ani-
quilamento. Nós seguimos por caminhos diversos. Nossa civiliza-
ção subterrânea desconhece o mal. Constrói e progride em função
do bem. Desconhecemos doenças e guerras, ódios e perseguições
e, com um sistema político perfeito, criamos o que vocês nomea-
riam — um Estado Ideal. — Agora, queremos a conquista pacífica
da Terra para o bem. Para isso, devemos impor-lhes nossas idéias.
Esse é o primeiro passo da passagem de milênios de intervenção
lenta e segura, temos que nos apressar. Poderíamos interferir vio-
lentamente. Nossas naves do espaço comprovam o nosso poderio.
Mas repudiamos a força e só agiremos pacificamente. Antes que o
homem da superfície atinja qualquer planeta irmão, do mesmo sis-
tema, ou mesmo antes que se fixe na órbita do seu primeiro satélite
artificialmente construído, como primeiro marco de suas conquis-
tas exteriores, é preciso que haja paz, que haja unidade, que haja
compreensão, banindo-se do planeta todos os ódios e preconceitos.
Que sucederia ao resto de nosso sistema se vocês saíssem da terra?
Que aconteceria se dessem esse passo sem terem primeiro obtido o
controle sobre vocês mesmos?
Esperou por segundos qualquer resposta ou objeção. Nin-
guém falou e Alik mesmo respondeu à sua pergunta:
— O mal expandir-se-ia fora da terra e iria instalar-se tam-
bém em outros mundos, destruindo o nosso ideal. Estamos ten-
tando impedir isso, o que justifica as nossas aparições e as nossas
interferências cada vez mais freqüentes.
Augusto-Michel não se conteve mais. Levantou-se, deu al-
guns passos como se estivesse medindo o comprimento, inteira-
105
mente à vontade e, sem pedir licença, lançou a primeira pergunta:
— Antes de mais nada, quero saber duas coisas primárias
sobre essas cidades subterrâneas. De onde provém o ar que vocês
respiram? Como resolvem o problema da luz?
— Tudo é mais simples do que o senhor imagina. As cidades
não estão em pontos muito profundos. Dentro dessas bolsas, de
centenas e centenas de quilômetros, já havia uma atmosfera de
gases aprisionados, onde se incluía o oxigênio. Não se esqueça de
que todas as cidades possuem saídas secretas por onde, além de
nós sairmos, circula o ar por um sistema que reputamos perfeito.
Muitas das cidades têm mais de uma saída, tanto naturais como
feitas por nós. Quanto à luz, como cientista o senhor sabe que luz
é vibração. Essa luz que no momento nos ilumina é idêntica à das
nossas cidades. Nós a produzimos por meio de aparelhos especiais,
que, futuramente, o senhor e seus companheiros conhecerão.
— Diga-me, quais as dimensões dessas bolsas de ar onde
estão as suas cidades? São todas iguais? Que tipos de construção
possuem?
— Vamos por partes, professor. As dimensões variam segun-
do as profundidades. Não estou ainda autorizado a informá-los so-
bre a respectiva localização e a profundidade, mas posso esclarecer
que a maior delas tem mais de cinqüenta quilômetros de largura
por mais de vinte de altura. Vê o senhor que temos praticamen-
te uma atmosfera. Nossas construções são bem diversas das da
superfície. Não enfrentamos o problema do sol e da chuva, bem
como do desgaste e variação da temperatura. Nossa luz é uniforme
e dosada de acordo com as necessidades vitais, produzindo-se o
ciclo do dia e da noite artificialmente, também de acordo com os
nossos imperativos biológicos, diferentes das exigências da superfí-
cie. Nossa água vem das correntes e oceanos subterrâneos. Nossos
materiais vão desde os mais leves e transparentes até os terrivel-
mente resistentes, não encontrados na crosta e temperados pelas
altas pressões interiores. Exemplo desses materiais são as paredes
deste aparelho. Resistem a impactos de qualquer natureza, e ven-
cem as condições das barreiras sônicas e térmicas, problema esse
ainda não superado por vocês. Nossas construções são na maioria
translúcidas. Aproveitamos a fonte geral das nossas usinas lumi-
106
nosas. Podem esses materiais translúcidos aumentar ou diminuir
a refração da luz externa, uniformemente espalhada.
Eduardo viu que era tempo de entrar na conversa a fim de
dissipar suas dúvidas:
— Fale-nos, agora, sobre este aparelho, por favor. Como foi
construído, como se desloca no espaço, qual seu meio de propul-
são, como é comandado. Como aviador que sou, essas questões me
intrigam.
— Este aparelho é o tipo mais comum de transporte de que
nos utilizamos fora de nossas cidades, dentro da atmosfera ter-
restre. Sua invenção data de centenas de anos, e tipos ainda mais
aperfeiçoados existem, com outras formas. Os homens da superfí-
cie de há muito vêm verificando a nossa presença, localizando nos-
sos aparelhos, pois nem sempre é possível cumprir nossa missão
sem sermos vistos. Porém vocês de cima são incrédulos. Felizmen-
te, a maioria nunca levou a sério nossas aparições, e somente em
poucos casos fomos obrigados a tomar atitude violenta ao sermos
pressentidos. Repito: a violência nos repugna. Mas quando ela é
necessária em função da Grande Missão, não temos alternativa
senão utilizá-la. Nossas bases ficam junto às sete cidades e nossas
saídas são feitas pelas comunicações secretas, cuja localização ne-
nhum sêr da superfície jamais chegou ou chegará a saber. O disco
é a síntese de um grande número de pesquisas e de estudos dos
nossos sábios. É construído de um minério especial, centenas de
vezes mais resistente do que o níquel, e não encontrado na superfí-
cie da terra: a mesma substância indestrutível de que são formados
os centros dos meteoros. Este aparelho tanto pode voar na atmos-
fera quanto fora dela, sendo-lhe possível o vôo na órbita elítica ou
parabólica, pois escapamos ao campo de gravidade da terra.
— Diga-me uma coisa. Vocês já conseguiram chegar a outro
planeta?
— Infelizmente, não posso ainda responder a essa pergunta.
Este é o nosso primeiro contato e muito cedo ainda para abor-
darmos aspectos secundários. Por enquanto, só direi que nestes
aparelhos é possível escaparmos à atração da terra. Veja aqui. Es-
tamos aparelhados para o vôo cósmico. Estes leitos onde vocês es-
tão sentados são os acomodadores de aceleração. Deitados sobre
107
eles, os nossos passageiros e tripulantes obtêm todas as posições
possíveis e necessárias para diminuir sobre o corpo humano os
efeitos do deslocamento inicial, à entrada das grandes velocidades
de libertação para o avanço sideral.
O comandante, como o professor, mostrava-se cada vez mais
impaciente em suas indagações.
— E a propulsão? Como se dá o deslocamento do disco no
espaço?
— Nosso aparelho, em linhas gerais — pois não devo ain-
da entrar nos pormenores — utiliza-se de dois tipos de propulsão.
Uma para o deslocamento horizontal e outro, que não chega bem
a ser um sistema, para o deslocamento vertical e que constitui um
dos pontos mais elevados de nossa ciência, uma das descobertas
responsáveis pelo nosso progresso. Conforme declarei, consegui-
mos dominar e vencer a força da gravidade.
Augusto-Michel, ante essa afirmativa, arregalou os olhos ain-
da mais. Levantou-se do lugar onde estava, agitou-se todo, não
conseguindo sufocar a exclamação:
— Dominar a gravidade! Mas como?
— Professor, tudo é uma questão de se aceitar uns tantos
princípios não descobertos ainda por vocês, sábios da superfície.
Como o senhor sabe tão bem quanto eu, grande número de radia-
ções espalham-se pela superfície do planeta. Essas radiações vão
desde as conhecidas até às desconhecidas e propagam-se por meio
do movimento que vocês, intuitivamente, denominam ondas. Vão
desde as cores do espectro solar, incluindo as ultra-violetas e infra-
vermelhas, até às ondas elétricas, magnéticas, passando pelo que
vocês denominam de raios X, e raios Gama, até os raios cósmicos,
alta energia integrada de corpúsculos e raios Gama, com vários
biliões de elétrons-volts em aceleração, que varrem os espaços si-
derais dentro dessa ficção que vocês denominam éter.
Alik continuou, depois de ligeira pausa, procurando medir o
efeito de suas explicações:
— A força da gravidade, força que atua sobre todos os corpos
de modo a atraí-los para o centro da terra, é também, de acordo
com a nossa teoria, uma radiação. Age, pois, através de raios cuja
fonte é o centro do planeta, propagando-se uniformemente em to-
108
dos os sentidos.
Nesse ponto da explicação Vaugirard não se conteve e aduziu
alguns argumentos, reforçando a tese exposta por Alik:
— A teoria não deixa de ter certa base. Recordo-me de que,
por volta de 1700, o sábio Laplace formulou a teoria da existência
dos raios de gravidade, acentuando que havia certa analogia entre
o comportamento dos raios de luz e a força da gravidade. Se a luz
perde seu poder de iluminação e sua intensidade à medida que
o objeto se distancia do foco luminoso, o mesmo acontece com a
gravidade. Quanto mais se distancia um astro do outro menor é a
atração exercida.
— Exatamente — concordou Alik. — Ora, se assim é, e se é
possível interromper o avanço da luz e do calor pela interposição
de um corpo opaco, não seria possível também descobrir um corpo,
uma substância, um anteparo, que não fosse cruzado pelos raios
da gravidade? E se isso fosse possível criar-se-ia uma espécie de
zona neutra, de zona de sombra, onde a gravidade deixaria de atu-
ar, entrando o corpo assim protegido dentro de um cone e surgindo
o que vocês na superfície denominam levitação. Este é o princípio
do movimento vertical do disco. Todo o nosso aparelho repousa
sobre um material que, além de não poder ser varado pelos raios
da gravidade, gera, quando devidamente excitado por um siste-
ma especial, uma força anti-gravitacional que aumenta ou não, de
acordo com o deslocamento pretendido. Professor, recorda-se do
efeito que vocês chamam de foto-elétrico?
Vaugirard não respondeu, mas, pela sua fisionomia sentia-se
que compreendia bem aonde queria chegar o tripulante do disco.
Alik continuou, impassível:
— Dessa maneira o disco, por sua base, torna-se um antepa-
ro que corta a ação dos raios da gravidade, ficando suspenso sobre
uma espécie de coluna invisível onde a atração não se exerce. Não
lhes parece claro?
— E o movimento horizontal? — indagou o aviador.
— Esse é mais simples ainda. Toda a parte inferior do disco
tem um movimento giratório que produz um deslocamento na dire-
ção que se tem em vista, orientando-se o fluxo de escape no mesmo
sentido desejado. Esse movimento, aliado à ausência de gravidade,
109
possibilita ao aparelho velocidade tremenda e maneabilidade in-
concebível.
Novamente Vaugirad aduziu um argumento favorável ao tri-
pulante do disco, já convencido do acerto de suas explicações:
— E isso sendo possível, sendo possível anular-se a atra-
ção da terra, será fácil o deslocamento fora da atmosfera terrestre,
atingindo-se com facilidade a velocidade circular, elítica ou mesmo
parabólica. A questão foi fabulosamente bem resolvida. Que não
diriam nossos cientistas!?
Eduardo arriscou uma pergunta que desde o começo trazia
na ponta da língua. Aproximou-se de Alik e indagou em voz baixa,
como que receando sua reação:
— Seria possível voarmos no disco?
— Isso faz parte de nossos planos. Antes de qualquer outro
passo, tínhamos essa idéia, como já fizemos com outros habitantes
da superfície. Queríamos antes dar-lhes as noções gerais, não só
para colocá-los à vontade, mas também para melhor compreende-
rem o que daqui em diante venha a suceder. O disco tem mais dois
tripulantes. Estão lá, como já devem ter visto, na cabina dos co-
mandos, do outro lado daquela passagem. Somente lhes peço que
fiquem aqui, nesta sala reservada aos passageiros.
Encaminhou-se em direção à porta oval de material translú-
cido, que automaticamente se abriu pela sua aproximação, como
se acionada por uma célula foto-elétrica.
— Que lhe parece tudo isso, professor? — indagou Santos,
quebrando por fim o seu mutismo.
— Fabuloso! Inacreditável! Fantástico! Não lhes dizia? Não
tinha razão?
— Será que tudo o que êle nos contou é verdade? Será que
vamos voar neste aparelho? Vocês acreditam que a missão deles é
mesmo de paz?
— Pssst... — segredou Eduardo. — Lá vem êle de novo. Fi-
quem quietos; depois, conversaremos.
De novo, a passagem abriu-se e fechou-se.
— Vamos fazer um pequeno vôo, dentro da atmosfera terres-
tre, em velocidade reduzida. Não haverá aceleração, pois sairemos
em velocidade mínima.
110
Alik aproximou-se de um dos acomodadores de reação, abai-
xou-se e tirou de baixo do mecanismo, junto ao chão, uma caixa
que antes não tinha sido notada. Abriu-a e extraiu da mesma qua-
tro pares de um tipo de sapato idêntico ao que usava, de um bran-
co brilhante e de solas grossíssimas.
— Peço-lhes que calcem estes sapatos. São leves, não causam
incômodo algum e são necessários para que os efeitos da não gra-
vidade não os atinjam. Não se esqueçam de que dentro da atmos-
fera terrestre, graças à interrupção da gravidade, tudo se comporta
dentro do disco como se estivéssemos no espaço sideral, dentro da-
quela zona que vocês chamam de “queda livre”. Estes sapatos res-
tituem a gravidade ao corpo de cada um, impedindo a flutuação.
O professor foi o primeiro a pegar o seu par, examinando-o
atentamente antes de calçá-lo.
— Ficarei aqui, para explicar-lhes os pormenores do vôo. Ve-
jam! — Ao mesmo tempo que chamava a atenção de todos para
certo ponto no chão, onde havia uma espécie de moldura, próxima
a uma das ogivas, comprimiu dois dos botões no painel de relevo,
ao lado da passagem oval.
Logo em seguida, abriu-se no chão, dentro da moldura, junto
ao lugar onde se achava a comissária, uma abertura de quase um
metro quadrado, revestida por material transparente idêntico ao
das portinholas, ficando como uma tela ajustada sobre o solo que
ainda tocavam.
— Esta é uma abertura inferior de observação direta. Destina-
se mais aos passageiros e não tem função técnica, pois lá na cabina
existem outros recursos mais perfeitos para obtenção de completa
visibilidade em torno. Por aqui, poderão ver o solo durante a subida
e a descida. Poderão, também, observar a paisagem vertical.
Nesse momento, a luz esbranquiçada que vinha dos orifícios
da parte superior, como se fossem produtos de determinado tipo de
eletroluminescência, diminuiu de intensidade, até ficar reduzida
ao mínimo. Leila inquietou-se, aproximando-se mais de Eduardo e
do professor. Intensa expectativa envolveu os quatro.
— Não se assustem. Vamos decolar na vertical e está haven-
do a concentração de energia para a provocação inicial da anti-
gravidade.
111
Um zumbido propagou-se pelo ambiente. Aumentou rapi-
damente, depois estabilizou-se num limite tolerável. Em seguida,
sentiram que estava se dando forte movimento ascensional.
Os quatro correram para as ogivas e tiveram ainda tempo
de ver, sob a luz intensa do luar, a paisagem áspera da ilha, que
ia ficando para baixo celeremente e desaparecendo do ângulo de
visibilidade.
A sensação de subida era agora mais violenta, mas ainda su-
portável. Saindo das escotilhas, rodearam a espécie de tela aberta
no chão. Em menos de um minuto, viram os contornos integrais
da ilha da Trindade, cercada pela massa oceânica azulada pelos
reflexos do luar. Dois minutos depois, Alik anunciou:
— Estamos a oito mil metros,
— E a presssão interna? O ar? A sensação nos ouvidos? —
indagou Eduardo.
— Temos pressurização absoluta, bem mais perfeita do que
os seus aviões. Nenhum de vocês sentiu nada, nem um ligeiro zum-
bido no ouvido sequer, não é? Observem que tudo é perfeito.
Depois da violenta ascensão vertical, o disco estabilizou-se e
passou ao movimento horizontal, disparando em direção ao conti-
nente.
— O segundo elemento propulsor entrou agora em ação. Es-
tamos já em alta velocidade. O sistema de pressurização mudou
automaticamente. Observem pelas escotilhas, deste lado. A ilha da
Trindade não tardará a desaparecer na linha do horizonte.
Eduardo e Leila quase colaram o rosto nas escotilhas e viram
a mancha escura da ilha se perdendo na imensidão do oceano, que
reverberava lá na profundidade, sem uma nuvem sequer a toldar a
visão verdadeiramente onírica.
Os vinte e dois minutos que se passaram quase não os sen-
tiram os passageiros, recordando-se nesse meio tempo o professor
a teoria famosa de que não se pode escapar do tempo a não ser
que se escape do espaço ou — em outras palavras — que se deixe
de existir. Citava a afirmação de Einstein de que o tempo vai se
tornando mais vagaroso à medida que nos aproximamos da veloci-
dade da luz.
No instante seguinte, Santos, da escotilha do lado oposto,
112
chamou a atenção de Eduardo e do professor para a aproximação
do litoral, nitidamente demarcado por extensa faixa de praia.
— Inacreditável! Inacreditável! — exclamou o aviador.
— Estão vendo aquelas luzes amontoadas lá? — apontou Alik
pela escotilha.
— Custo a acreditar, mas parece o Rio de Janeiro!
— Parece, não. É o Rio de Janeiro — atalhou o rádio-telegra-
fista. Vejam os contornos da baía! Parece que estamos baixando!
— Sim, baixamos nos últimos três minutos quase dois mil
metros, para que vocês pudessem ver melhor. Alguém sentiu algu-
ma coisa? Alguém sentiu a perda de altitude?
Todos estavam absortos na contemplação da magnífica pai-
sagem. A cidade estava aos seus pés. Milhares e milhares de pon-
tos de luz, despersonalizados pela altura como se estivessem pai-
rando sobre uma ilha-universo, sobre uma galáxia com sistemas e
planetas de todas as categorias, perdidos no espaço a centenas e
milhares de anos-luz.
Alik, à direita, sentado num dos acomodadores de acelera-
ção, olhava em silêncio aqueles quatro homens da superfície. Dei-
xava que se maravilhassem com o espetáculo, que tirassem suas
próprias conclusões e se humilhassem com a pequenez e a insigni-
ficância de seus conhecimentos. Deveriam lembrar-se de que aque-
le aparelho, aquele disco, era apenas uma amostra, uma parcela,
uma pequena demonstração do saber e do poderio dos habitantes
das cidades subterrâneas de Agarta.
O disco pairou alguns minutos sobre a cidade e de novo ele-
vou-se. Descreveu uma curva ampla em direção ao oceano, toman-
do o rumo este.
Assim que o engenho se imobilizou sobre o solo vulcânico, o
zumbido extinguiu-se por completo.
Antes que alguém proferisse alguma palavra, a passagem que
dava para a cabina abriu-se. Um segundo tripulante, com trajes
idênticos ao de Alik, apareceu. E fazendo-lhe um sinal como a cha-
má-lo, desapareceu de novo, sem dar tempo de ser suficientemente
observado.
Alik levantou-se, atendendo ao chamado e penetrou na cabi-
na, sem nada dizer aos seus convidados.
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114
TERCEIRA PARTE

A AMEAÇA

X — O TELEGUIADO

Assim que Alik se retirou, depois de ter trocado olhares mis-


teriosos com seu companheiro, Eduardo acercou-se do professor,
ladeado pela comissária e pelo rádio-telegrafista.
Antes de pronunciar qualquer palavra, espiou pela ogiva
translúcida, que se comunicava com o outro compartimento, pro-
curando ver se o tripulante do disco não os espreitava junto à pas-
sagem. Divisou, apenas, três vultos debruçados sobre uma espécie
de mesa, não podendo notar outros pormenores.
— Professor, desde que entramos em contato com o disco e
seus tripulantes esta é a primeira vez que ficamos a sós. Não temos
tempo a perder, considerando o assunto e tudo o que vimos. Que
será que houve? Êle retirou-se sem dizer nada e com ar meio preo-
cupado. Terá acontecido alguma coisa?
Augusto-Michel levantou-se, acercou-se da passagem de ma-
terial translúcido e concordou com o aviador:
— Não estou gostando disso. De fato, êle saiu meio apressa-
do, depois do sinal que lhe fêz o companheiro, e, sem cerimônia
alguma, deixou-nos a sós aqui neste aparelho fabuloso...
O rádio-telegrafista resmungou monossílabos ininteligíveis,
ajeitou o cinto onde trazia oculta a pistola e aproximou-se, tam-
bém, da passagem para a cabina de comando.
— Não estou gostando deste negócio. Tudo foi bem até agora,
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mas parece que houve alguma novidade fora do programa.
De novo, a sombra de Alik projetou-se sobre a passagem,
porém, com maior nitidez, indicando que regressava ao comparti-
mento, onde estavam os personagens.
— Afastem-se! Depressa! Sentem-se de novo! Êle vem vindo
— advertiu Eduardo. — Não deixemos que eles notem que percebe-
mos qualquer anormalidade.
— Meus amigos, desculpem-me a saída. Tive que atender a
um assunto importante.
Os outros entreolharam-se, ante a confirmação das suas
suspeitas, mas não ousaram proferir qualquer indagação, pressen-
tindo que Alik lhes daria o esclarecimento.
Em verdade, este não se fêz esperar:
— O fato que exigiu minha presença na cabina motora liga-
se a outros acontecimentos anteriores, que ainda não lhes rela-
tei. Para nós, componentes da humanidade subterrânea, é a parte
mais desagradável da nossa missão. Mas essa parte é inevitável e
foi prevista.
Este prólogo misterioso e confuso serviu para aguçar mais
ainda a curiosidade dos convidados. Eduardo acomodou-se melhor,
onde se achava. Augusto-Michel retirou os óculos, preparando-se
para limpá-los. Santos aguardou impassível, sem afastar a mão da
cinta. E a comissária, como sempre fazia quando via aproximar-se
o medo, buscou a proximidade do comandante.
— Como desde o início lhes expliquei, temos uma missão a
cumprir. Essa missão é de paz e de concórdia e objetiva, antes de
mais nada, o bem-estar e a felicidade integral da humanidade. Já
lhes contei que nossa interferência tem sido paulatina e incisiva.
Nossos aparelhos já vêm rondando a superfície da terra há mais de
vinte séculos, e por milhares de vezes nossos homens se confun-
diram com os homens terrenos, influindo até em algumas de suas
resoluções nas fases mais críticas de sua história, como em outras
oportunidades poderei demonstrar. Já lhes falei, também, que mi-
lhares e milhares de homens da terra já nos conhecem, e sabem
nossa missão, transformando-se em ativos cooperadores. Assim
como eu e meus companheiros com esta nave do espaço vasculha-
mos a superfície e promovemos novos contatos, dezenas de naves
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idênticas desempenham missão igual, obtendo relativo êxito.
Como um hábito observado todas as vezes que falava, Alik fez
uma pausa de alguns segundos. Procurava, assim, notar a reação
de suas palavras sobre os habitantes da crosta terrestre, ao mesmo
tempo que lhes dava uma pausa para assimilarem a complexidade
dos seus raciocínios.
— Êxito relativo, disse eu. Relativo, porque nem sempre fo-
mos bem recebidos. Nem sempre nossos contatos tiveram êxito.
Principalmente porque este nosso meio usual de transporte fora
das nossas cidades foi mais de uma vez pressentido por forças hos-
tis e, em muitos casos, ante a recepção belicosa que tivemos, vimo-
nos forçados a usar de violência, mesmo esta sendo contrária aos
nossos princípios.
Ao ouvir a palavra “violência” o comandante alongou o olhar
em direção ao professor, olhar esse que não passou despercebido
a Alik.
— Sim, “violência”, eu disse, mas não se assustem. Procurarei
explicar em outras palavras. Acontece que, localizadas as nossas
naves do espaço muitas vezes, fomos alvos de ataques imprevistos
com todas as armas de que vocês dispõem. Não creio que essas
armas pudessem destruir-nos. Vocês já conhecem alguma coisa do
nosso engenho e viram seu poder sob muitos aspectos. Mas, infe-
lizmente, em tais casos fomos obrigados a reagir para demonstrar-
mos desde logo nossa infinita superioridade. Nunca pretendemos
impor nossas idéias com emprego da força. Mas fomos obrigados a
revidar esses ataques injustificados. Vocês devem ter ouvido falar
em aviões misteriosamente desintegrados, em embarcações desa-
parecidas. Devem ter ouvido referências a pessoas e expedições
desaparecidas sem deixar vestígios. Sim, lamentavelmente, mais
de uma vez fomos obrigados a usar outros métodos, levando-se em
conta nossos altíssimos desígnios. Anulamos, também, os que não
souberam ser dignos de nossa confiança e todos os que poderiam
ter prejudicado nossos planos milenares para a conquista do Bem
Supremo, do nosso sistema e das galáxias.
Vaugirard levantou-se agitado, procurando demonstrar que
pretendia fazer perguntas.
— Não, professor, continuou Alik. Desculpe-me, mas ago-
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ra, neste momento, não pergunte mais nada. Já não dispomos de
muito tempo. Temos que nos movimentar, restando-nos apenas
alguns minutos deste primeiro encontro. Limitem-se a escutar. Fu-
turamente, esclarecerei todas as demais perguntas. Escutem. Fui
avisado por Ikal que um grupo de belonaves de certa potência da
superfície aproxima-se a grande velocidade da ilha. Desde ontem,
desde o momento em que nos projetamos da terceira cidade e cru-
zamos o Atlântico em direção ao norte, antes de demandarmos esta
ilha, já havíamos pressentido as belonaves hostis, cuja presença foi
assinalada no localizador universal. O grupo era composto de vá-
rias naves de guerra, do tipo mais moderno de que vocês dispõem,
preparadas para a missão especial de destruir-nos. São movidas
por energia nuclear, com um tipo de propulsão que abandonamos
há mais de duzentos anos. Como vêem, mais uma vez a sede de
destruição, a ânsia da força e da violência. O nosso localizador
universal vem seguindo a aproximação dessas belonaves inimigas.
Estão agora a menos de quinhentos quilômetros de distância e,
como não sabemos que atitude vão tomar, e como não nos convém
correr mais esse risco, vamos logo nos deslocar, frustrando assim
a perseguição.
Eduardo não se conteve mais. Levantou-se e tentou uma per-
gunta, esquecendo-se da advertência de Alik.
De quem são os navios? Quantos são? Que vão fazer vocês?
— Nada mais posso esclarecer-lhes no momento. Vou desem-
barcá-los em seguida, e aconselho que se escondam para não se-
rem localizados pelas belonaves que por certo chegarão até aqui.
Poderia adotar outra solução. A um simples comando meu, poderí-
amos nos deslocar a grandes altitudes onde jamais seríamos loca-
lizados e de lá faríamos atuar parte do nosso poderio. Poderíamos
destruí-los com o auxílio de outras naves do espaço. Poderíamos
anulá-los. Porém, esse procedimento contraria nossos princípios.
Não nos sentimos ameaçados. Nosso deslocamento será uma me-
dida preventiva no próprio interesse dos terrestres.
Alik procurou um botão junto à série de comutadores, ao
lado da passagem para a cabina dos comandos, e comprimiu-o.
Ao lado, como já acontecera quando da entrada, a parede
movimentou-se e a parte móvel inseriu-se dentro da outra, como
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se ambas as superfícies se fundissem. De novo, surgiu a fenda com
aspecto de corte num bolo, e imediatamente divisaram lá fora uma
nesga da ilha.
— Homens da superfície. Esta é uma despedida temporária.
Logo mais nos encontraremos, ocasião em que continuaremos a
lançar-lhes as sementes da nossa alta finalidade universal.
Com um gesto rápido estendeu a mão a Eduardo e passou-
lhe uma espécie de cartão, cuja presença não tinha sido notada.
— O nosso visor-transmissor ficou em seu poder. Será daqui
por diante o nosso meio de comunicação. Nesse apontamento, que
lhe dei, estão anotados três novos contatos pelo visor-transmissor.
Vejam as datas, reúnam-se. Basta que abram a caixa e logo, au-
tomaticamente, nos colocaremos em contato. Assistam às novas
comunicações apenas os quatro. Não se esqueçam de que estare-
mos também vendo tudo ao redor. Apenas, exigimos em retribuição
uma coisa: silêncio absoluto. Nem uma palavra sequer aos demais,
haja o que houver. Tudo o que se passou nesta ilha deve ser manti-
do no mais profundo segredo. Se falarem — e fiquem certos de que
isso saberemos — temos elementos para anulá-los.
Deu uns passos para trás, fixou insistentemente Eduardo,
empurrou com os pés os sapatos que haviam sido deixados no chão
pelos quatro, e repetiu com voz grave, agora em tom de ameaça:
— Sim, se falarem poderemos anulá-los. Não se esqueçam
disto jamais.
Alik tornou à extremidade da plataforma, enquanto os quatro
visitantes eram reconduzidos pelo degrau móvel ao solo da ilha.
Durante a descida, o aviador não deixou de fixar o rosto branco e
brilhante de Alik.
Momentos depois distinguiram o mesmo zumbido, ao mesmo
tempo que a superfície externa do disco se unia, como se feita de
uma só peça. As paredes começaram a adquirir um brilho azulado
e, antes mesmo que o engenho se deslocasse do solo, foi todo envol-
vido numa espécie de gaze luminosa, que lhe ocultou o perfil.
Nesse mesmo instante, um segundo fato surpreendeu os es-
pectadores.
A par do ligeiro ruído, produzido pelo disco ao entrar em ação,
um rumor atordoante inundou o espaço.
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Instintivamente, Eduardo puxou Leila pelo braço e gritou ao
rádio-telegrafista, que estava paralisado, advertindo também Vau-
girard, que não despregava os olhos do disco, alheio a tudo o que
se passava.
— Vamos! Corram! Deitem-se debaixo daquela pedra! O grito
surtiu o efeito desejado. Sem procurar saber o que sucedia, sem
indagar a causa do ruído, os quatro buscaram abrigo junto a uma
formação rochosa ali existente, colando-se ao solo, possuídos de
pânico.
Duas das lanternas foram largadas, uma delas indo espati-
far-se aos pés de Leila.
Santos, mais do que aterrorizado, atirou-se entre as reen-
trâncias da rocha, junto a uma inclinação, ferindo o braço com a
violência da queda. Augusto-Michel deitou-se sem mesmo procurar
as pedras e Eduardo, arrastando Leila, foi o que melhor se abrigou,
sempre tentando descobrir a causa daquele estrondoso barulho.
Lançou os olhos para cima e viu um traço enfumaçado cor-
tando a porção mais escura do céu, bem junto ao zênite, e que com
grande velocidade demandava o oceano.
Não tiveram tempo de trocar uma só palavra, nem de fazer
um único gesto.
O auge do espanto foi atingido, quando um estampido frago-
roso reboou por toda a ilha. O solo de Trindade chegou a tremer
com a intensidade da explosão. Uma fração de segundo antes, lá na
extremidade do traço enfumaçado que corria em direção a leste so-
bre o mar, surgiu uma claridade vermelha seguida de denso fumo,
da qual partiu o estrondo. A claridade vermelha expandiu-se, lan-
çando reflexos intensos sobre a superfície do oceano. Depois, pou-
co a pouco, perdeu a intensidade e cedeu lugar à fumaça.
Nem uma exclamação sequer. O comandante pensou que fora
o único que vira o traço a deslocar-se em direção ao mar e assistira
à explosão nas alturas. Tratava-se de um projétil e deveria andar
pelo menos a mais de mil metros de altitude e a uns dois ou três
mil metros de distância. Ou mais ainda.
Esqueceram-se momentaneamente do disco. Apenas o pro-
fessor se preocupava mais com a nave do espaço do que com a ex-
plosão. Em dado momento levantou-se e gritou em voz alta, como
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se estivesse fora de si.
— Lá vai êle! Vejam! Vejam!
A comissária e o rádio-telegrafista nem chegaram a levantar
o rosto, transidos de pânico.
O comandante, com a testa banhada em suor e todo sujo de
terra, levantou-se também e teve tempo de ver ainda o disco, em
plena ascensão vertical, envolto na fosforescência azulada que, à
medida que o espaço ia sendo vencido, adquiria um tom averme-
lhado. Em menos de um minuto, o aparelho perdeu-se nas alturas,
cruzando para o centro da ilha, em direção ao Pico Desejado.
Tudo retornou ao silêncio, como se nada houvesse aconteci-
do. Do disco, não ficara nenhum traço ao passo que da explosão
sobre o mar restava, apenas, um amontoado de nuvens escuras
que se destacavam sob a luz forte do luar e que se iam espalhando
e diluindo em todas as direções.
Contudo, ninguém se movia. Durante mais de cinco minu-
tos, os quatro permaneceram silenciosos, gelados pela emoção,
desorientados, banhados em suor e sujos de terra, sem coragem
para encarar a realidade e sem disposição para procurar entender
a causa da explosão.
A comissária tinha os lábios trêmulos e ofegava. Santos per-
manecia de bruços, com a cabeça enterrada nas mãos. Vaugirard
encostou-se nas rochas, sempre a olhar o céu, enquanto Eduardo
procurava sentar-se junto de Leila, a fim de ampará-la.
O primeiro que ousou falar foi o professor:
— Vocês viram e sentiram o mesmo que senti? Eduardo abai-
xou os olhos, respirou fundo e custou a responder depois de reto-
mar o fôlego.
— Santo Deus! Tudo tem um limite! O que vem acontecen-
do conosco já ultrapassa tudo quanto a imaginação pode sonhar.
Nem sei se estou vivo ou morto...
Augusto-Michel aprumou-se melhor. Bateu a terra aderida
à calça e ao pulover vermelho e lançou os olhos para Santos, que
não se movia. Procurou a lanterna em volta, ergueu-a e focalizou-a
sobre o rádio-telegrafista.
— Que é isso, moço? Vamos!. Olhe seu braço, está escorren-
do sangue. Que lhe aconteceu?
121
O rádio-telegrafista, como que voltando dum transe, agitou-
se todo, procurando ver o que havia em seu braço. Com a agitação
e o nervosismo nem mesmo sentira o ferimento recebido ao atirar-
se sobre as rochas. Ficou de joelhos e arregaçou a camisa, para
localizar o ferimento donde corria sangue em abundância.
Vendo a lesão, a comissária deu sinal de si. Levantou-se, am-
parada por Eduardo, sacudiu os cabelos cobertos de torrões de
terra, procurou limpar a blusa, e aproximou-se de Santos para
ver-lhe o braço.
— Não é nada grave. A escoriação foi superficial, apesar de
abranger uma área grande. Vamos para o acampamento para fazer
um curativo. Deixe que o sangue escorra, Santos. Até é bom.
Todos se encaminharam para o local, onde estavam as barra-
cas, tropeçando nos seixos e rochas, sob as luzes da lanterna, que
não se danificara, desconcertados ainda pela sucessão violenta dos
acontecimentos, exaustos por tantas emoções imprevistas.
Mais uma vez, Vaugirard foi o primeiro a falar:
— Não tenho dúvidas quanto à natureza da explosão. Pri-
meiro, o silvo agudo e atroante, depois a detonação. Não foi evi-
dentemente libertação de energia nuclear ou coisa parecida, pois
se assim fosse a estas horas estaríamos de há muito torrados com
as radiações. Algum de vocês observou o que se passou antes da
explosão?
— Sim, professor — respondeu Eduardo, ao mesmo tempo
que remexia os bolsos, procurando o maço de cigarros — vi a explo-
são e o traço enfumaçado que o projétil deixou no espaço. Não te-
nho dúvida de que foi um teleguiado o responsável pelo distúrbio.
— Também não tenho dúvidas — arrematou Augusto-Michel.
— Foi um teleguiado com explosivo comum. E tudo indica que foi
lançado em direção ao disco.
— O tripulante não mentiu. Estavam mesmo sendo perse-
guidos. E decolaram no momento exato! Os perseguidores, como
nos disse Alik, estavam a menos de quinhentos quilômetros e um
lançamento a essa distância é coisa comum.
No acampamento, tudo foi encontrado em ordem. A fogueira
central já se extinguira e das brasas que restavam elevava-se um
tênue fio de fumo. Os lampiões permaneciam acesos, clareando o
122
limite das barracas.
Santos, devidamente medicado, estendido na cama de vento
e com o braço enfaixado, entrou na conversa, depois de acender
um cigarro.
— Tudo isso é o fim do mundo. Custo a crer no que vi. O
disco! Os homens lá do fundo! O vôo! Aquelas histórias o explica-
ções meio confusas! A explosão! Nunca na minha vida senti medo,
mas desta vez arredei! E eu, meus amigos, e eu que não acreditava
nessa história de disco-voador! Que aceitei a viagem somente pen-
sando na minha vara de pescar! Que dirão os meus amigos? Natu-
ralmente, vou ganhar fama de mentiroso ou de maluco...
— Seus amigos — interveio Eduardo — seus amigos não dirão
nada, pois nunca virão a saber da aventura. Que houve, Santos?
Não se lembra do que disse Alik? Não viu que êle chegou a amea-
çar-nos? Ameaçou, sim, não precisa ficar assustado. Ameaçou-nos
falando em anular-nos, anular-nos, caso abríssemos a boca para
contar a aventura. Nossos amigos não saberão nunca. Nunca, está
ouvindo? Não se esqueça que embarcamos para a ilha da Trindade
em férias para uma viagem de pesca, aproveitando esta bela época
do ano.
Santos retraiu-se todo, reconhecendo seu erro.
Leila continuava agitada e não muito convencida com a opi-
nião de Eduardo e do professor, relembrando a necessidade do re-
gresso imediato.
— Não tem dúvida, comandante — apoiou Vaugirard — va-
mos zarpar o quanto antes. A madrugada não tarda. Vamos come-
çar as arrumações assim que clarear. Descansem enquanto isso,
que vou aproveitar o que resta da noite para fazer uma coisa, caso
não se incomodem.
Augusto-Michel já estava com o cartucho do filme nas mãos
e carregava a câmara com outra película.
— Tudo está muito bem, mas quero tirar uma cisma. Não
pensem que enlouqueci. Mas gostaria de revelar o filme antes de
irmos. Temos todo o equipamento para a revelação, inclusive o tan-
que. Dissolverei as drogas em poucos minutos e usarei um reve-
lador enérgico para poupar tempo. Estou curiosíssimo para ver os
resultados.
123
— Ótima idéia — concordou Eduardo. Nem me lembrava
mais do filme. Acho que bati pelo menos umas vinte chapas. Usei
a tele-objetiva de nove centímetros, foco no infinito e cento e cin-
qüenta avos de segundo, com a abertura no máximo. Não se pre-
ocupe conosco, professor. Vamos descansar um pouco e, quando
amanhecer, começaremos a providenciar o reembarque.
Vaugirard, sem pressa alguma, com a característica paciên-
cia de fotógrafo veterano, alheou-se a todos, concentrando-se no
trabalho, como que protelando o prazer final que lhe ia proporcio-
nar a revelação.
Juntou dois caixões de mantimentos ainda não abertos, co-
locou sobre o menor um dos lampiões de querosene e ajustou a
chama, procurando obter a maior claridade possível.
Pegou os vidros, envelopes e cálices, mediu a água potável,
escolheu os preparados. Diluiu o hipossulfito, filtrando o fixador.
Dissolveu as drogas do revelador e, indo para o fundo escuro de
sua barraca, retirou a película do respectivo invólucro e ajustou-a
no tanque de material plástico. Após onze minutos, deslocou o car-
retei de encaixe e desenrolou a película. Antes de examinar, cha-
mou os companheiros:
— Atenção, atenção! Está pronto! Venham ver os resultados.
Eduardo aproximou-se logo, seguido de Santos que, acen-
dendo a lanterna, encaminhou-lhe o foco em direção ao filme es-
ticado nas mãos do professor. Vaugirard não teve pressa, Pediu
a Leila um grampo e ajustou-o numa das extremidades do rolo,
procurando esticá-lo. Aproximou-o do foco de luz, incerto ainda
quanto aos resultados.
— É inacreditável!
Lá estava êle com toda a nitidez e perfeição! Não se tratava
agora de fraude ou de brincadeira de pobres de espírito, mas sim
de um documento assombroso. Nas pequenas imagens de tons in-
vertidos, podia-se ver claramente os contornos do disco em todas
as fases da aterrissagem. Sua forma destacava-se como uma man-
cha preta sobre a superfície branca de cada um dos quadros.
Augusto-Michel passou a película às mãos de Eduardo e não
mais se conteve. Sentia-se que ia desabafar.
— Até que enfim! Até que enfim! Vejam! Vejam! Não é pesade-
124
lo, loucura ou alucinação! Eu não dizia?! — Ao mesmo tempo que
exteriorizava a euforia que vinha sendo calcada desde a aparição
do disco-voador, quase pulava, rodeando com passos agitados o
filme, que agora estava sendo examinado por Santos.
— Não dizia?! Não foi alucinação! — exclamou Vaugirard. —
Vivemos mesmo todos esses episódios! Calculem só! Farei uma am-
pliação bem grande que colocarei em todas as paredes de minha
casa! Distribuirei a todos os jornais e revistas! Ficarei famoso em
todo o mundo! O primeiro ser humano que viu e revelou fotografias
de um disco-voador em circunstâncias tão excepcionais!
O comandante afastou-se para melhor observar a inesperada
reação do professor. Era a primeira vez que o via assim. Olhos bri-
lhantes e esbugalhados, sem os óculos que tinha agora nas mãos
trêmulas, sempre rodeando o filme em passadas grotescas, como
se estivesse fora de si, rompendo de súbito toda a composta sereni-
dade de seu comportamento anterior.
Antes de falar, Eduardo esperou que Vaugirard se aquietas-
se. Trocou olhares com Leila, que também se mostrava chocada
com aquele incongruente procedimento. Somente o rádio-telegra-
fista nada notou, absorvido pelo exame da película que mantinha
nas mãos, elevada contra a linha do horizonte que já clareava, pre-
nunciando a madrugada.
— Professor! Professor! — interferiu Eduardo, quase aos ber-
ros, de tão irritado. — Não se esqueça das ameaças do tripulante.
Das ameaças de Alik, da nossa promessa, do nosso acordo inicial.
Não vimos nada. Não fotografamos coisa alguma. Não vamos dar a
ninguém nenhuma ampliação. Ninguém saberá de nossa aventura.
Não se esqueça, professor, de que viemos pescar em férias. Pescar,
entendeu? Pescar tubarões e meros.
Augusto-Michel reagiu às palavras como se tivesse levado
uma descarga elétrica.
Parou de saracotear ao redor do filme, em volta de Santos.
Recolocou os óculos e seus olhos despiram-se do brilho metálico.
Os dedos pararam de tremer-lhe e buscou os bolsos, como se pro-
curasse qualquer coisa. Ficou alguns momentos parado, respirou
fundo, limpou um longo pigarro e fitou de frente o comandante:
— Sim, é verdade. Agora me lembro. O nosso trato. A promes-
125
sa. A ameaça. — Parou de novo, respirou outra vez ruidosamente,
deu mais alguns passos, parou de revolver os bolsos e continuou,
como que caindo em si depois de sua agitação descontrolada.
— Sim, perdoe-me. Agora me lembro bem. O tripulante do
disco disse que poderia anular-nos. Como vocês vêem, fiquei agi-
tadíssimo perante esse filme extraordinário. Afinal de contas, meu
sonho realizou-se. Minhas teorias se comprovaram. Que mais
poderia exigir do meu destino?
Mais uma vez a comissária e o aviador entreolharam-se, pas-
sando esse gesto despercebido por Vaugirard, que se foi encami-
nhando para sua barraca.
— Ei... professor! Professor! — gritou o rádio-telegrafista, com
o filme molhado nas mãos. — Que faço com êle agora? Não entendo
nada disso. Como se faz para secar?
Augusto-Michel parou repentinamente e voltou-se.
— Que se faz? Espere um pouco.
Tornou ao local, onde estavam os dois caixotes e os líquidos,
pegou uma garrafa de álcool e esvaziou parte do conteúdo num dos
cálices vazios.
— Que se faz? Vejam só.
Tomou a película das mãos de Santos e mergulhou-a várias
vezes no álcool.
— Vejam agora. Aqui está a grande prova irrefutável que aba-
laria a humanidade. Vejam só!
Inesperadamente, sem que nenhum dos companheiros ten-
tasse impedir-lhe o gesto, acendeu o isqueiro e levou a chama junto
ao filme. Uma língua de fogo enroscou-se na fita escura, transfor-
mando-a em menos de um minuto numa tira de carvão malcheiro-
so e lambuzado.
— Por que fêz isso, professor? — bradou Eduardo.
— As ameaças, comandante, as ameaças! Não se lembra?
Não vimos; nada e não fotografamos nada. Discos? Quem falou
em discos-voadores? Viemos aqui para pescar badejos e pirás.
Lembram-se? — finalizou, correndo os olhos pelos três espantados
companheiros.
Depois de tais palavras, tornou a enfiar o isqueiro no bolso e
voltou-se em direção ao teodolito, procurando ajustá-lo no estojo,
126
como que ignorando a presença dos amigos.
O aviador nada mais disse. Acompanhou Leila até a entrada
da barraca, e ao voltar-se viu o rádio-telegrafista que procurava
apanhar no chão os restos do filme carbonizado.

Os primeiros sinais do dia iam cercando a ilha. Os contor-


nos abruptos, os picos eriçados como agulhas, as aglomerações
escuras das rochas pouco a pouco emergiam da obscuridade. A
luminosidade crescente tornava o cenário irreal. Dir-se-ia que es-
tavam em outro mundo, que haviam despertado em outro planeta,
ou então que haviam retrocedido no tempo, lançados numa época
pré-histórica.
Eduardo parou em frente de sua barraca, esquecido do sono
e da fadiga. Acendeu um cigarro e acompanhou com os olhos uma
grande tartaruga que se arrastava pela orla oceânica.
O sol emergia do seio das águas e a atmosfera surrealista foi
se dissipando com a invasão da luz.

XI — O CÍRCULO MENOR

Era pleno meio-dia, quando se fizeram ao mar. Um calor for-


te, contrastando com o frio da noite anterior, bafejava toda a ilha
e a luminosidade reverberava sobre a areia avermelhada da praia,
dando ao Atlântico, não mais o azul profundo, mas um amare-
lo opalescente. Ao contrário do que acontecia com freqüência as
águas ao redor da ilha estavam calmas e espelhadas, facilitando o
carregamento da embarcação. O pequeno barco de borracha ama-
rela já tinha feito três viagens da praia ao “Alcíone”, completan-
do-se assim todos os preparativos para a partida. Quem primeiro
embarcara fora Santos que, às voltas com os tambores de óleo,
providenciara o reabastecimento dos tanques, experimentando e
esquentando o motor.
Mal a âncora foi levantada, o rádio-telegrafista — a quem ca-
bia o primeiro turno na roda do leme — imprimiu toda a rotação ao
motor. Eduardo, orientado por Santos e auxiliado por Leila, aquar-
127
telava a bujarrona e a vela-mestra, a fim de aproveitar o vento que
soprava favoravelmente para auxiliar o impulso da hélice e obter
alguns quilômetros a mais na velocidade. Augusto-Michel, por sua
vez, com a carta sobre a prancheta, reconferia os elementos da
rota, calculando a declinação.
Os quatro estavam silenciosos, animados da mesma inten-
ção: afastarem-se da ilha o quanto antes e na velocidade maior
possível. Afinal de contas, não se sabia o que poderia ainda aconte-
cer, e depois daquela noite terrível os ânimos estavam abalados.
Eduardo sentia agora o cansaço. Não tinha sono e não queria
falar com ninguém, assoberbado por nova preocupação. Acendeu
um cigarro, acomodou-se melhor junto à calheta e voltando-se lan-
çou o olhar para Trindade, que se ia diluindo na distância. Não,
não era mais a ilha vulcânica de píncaros ásperos e aglomerados.
Vista dali, a cerca de cinqüenta quilômetros, parecia uma imensa
catedral gótica com um amontoado de flechas lançadas para o céu.
Buscou posição melhor e para não ser incomodado cerrou os olhos,
simulando um sono incoercível. Ao mesmo tempo, mediante o exa-
me retrospectivo dos fatos, procurava tirar conclusões da aventura
fantástica que acabavam de viver.
Alik fora bem claro ao recomendar e impor segredo absoluto.
Aceitando-se as premissas, tinham forçosamente de aceitar o sigilo
integral. Pois, embora independente da ameaça, o sigilo era uma
das condições para os contatos e revelações futuras. O tripulante
da nave do espaço em verdade tinha proferido uma terrível adver-
tência. Falara em “anulá-los”, caso divulgassem o ocorrido. Anular
queria dizer — silenciar. Seria talvez tornar sem efeito, qualquer
denúncia... Mas, também podia ser: destruir, matar, desintegrar...
O aviador ficou gelado com o rumo tomado por seus pen-
samentos. Agora, depois de tais reflexões, passava a considerar a
gravidade dos fatos. Que sucederia a cada um individualmente se
um deles revelasse os fatos a terceiros? Que queria dizer Alik com
a expressão anular? Caso as ocorrências fossem delatadas, como
agiriam os homens das cidades subterrâneas?
Já nas últimas conseqüências de seus raciocínios, lançou a
indagação final: se um dos quatro denunciasse a espantosa ocor-
rência, a reação recairia sobre todos, ou somente sobre o delator?
128
Exausto, nervoso, perplexo, Eduardo resolveu pôr um ponto
final em suas cogitações. Não adiantava preocupar-se. Não tinha
alternativa alguma senão esperar o desenrolar dos acontecimen-
tos.
Levantou-se, pois, atirou o segundo cigarro pela calheta e
resolveu quebrar a pesada atmosfera de inquietação que envolvia
seus companheiros.
— Como vamos, Santos? Qual a nossa marcha?
— Até aqui, íamos muito bem. Mas agora o mar ficou picado
e perdemos um pouco a velocidade com que saímos. O odógrafo até
há pouco marcava mais de trinta e cinco quilômetros. De uma hora
para cá, diminuímos bastante essa velocidade,
— Quando estiver cansado, avise-me, que ficarei em seu lu-
gar. Não estou com sono e se você quiser posso ficar no leme até
bem tarde.
— Obrigado. Não estou cansado também. Se o sono vier, avi-
sarei.
Augusto-Michel abandonou o binóculo que pegara e agora,
coaptado ao seu procedimento habitual, bem longe da reação im-
pulsiva de momentos antes na ilha, aproximou-se de ambos:
— Desisto. Vasculhei toda essa parte de cá de Trindade e
todo o horizonte. Tudo está calmo como ao chegarmos. Nem sinal
de discos, navios ou teleguiados. Até parece um sonho o que nos
aconteceu!
Eduardo sentiu que todos os ânimos retornavam à tranqüili-
dade e que, afinal, poderiam trocar impressões sobre a aventura.
— Professor, de todos nós é o senhor o melhor informado so-
bre a questão dos discos. E não só sobre eles, mas também sobre
física, astronáutica, geologia e outras especializações. Diga-nos,
portanto: qual foi a sua impressão sobre tudo isso? Afinal, não
tivemos ainda oportunidade de considerar a questão com a devida
calma.
Augusto-Michel não se fêz de rogado:
— Quanto ao disco, como vocês sabem, mesmo antes eu não
tinha dúvidas sobre sua existência. O que me assombrou foi a ori-
gem dele. Poderia admitir tudo. Da Lua, de Vênus, de Marte, da
face desconhecida do nosso satélite, de planetas desconhecidos
129
chamados Clarion ou Etária, enfim de todos os lugares, inclusive
da própria face da terra. O que não poderia jamais sonhar é que
eles viessem das profundidades, dessas tais cidades subterrâne-
as.
— O senhor fêz tantas perguntas quanto eu e todas foram, ao
que me pareceu, respondidas satisfatoriamente. Diga-nos agora:
podemos admitir a existência dessas cidades debaixo da terra?
— Sim. Penso que isso é possível. E dar-lhe-ei em poucas
palavras os motivos de minha convicção. Como sabem, a Terra teve
sua origem, há milhões e milhões de anos, de um fragmento do
Sol, como querem uns; ou de uma nebulosa primitiva, como que-
rem outros; ficando presa ao sistema chamado solar, pela força
da gravitação. Com o decorrer desses milhões e milhões de anos
foi se processando um resfriamento da massa ígnea até se formar
essa crosta sobre a qual vivemos, casca superficial de um grão
de poeira minúsculo que rola pelo espaço cósmico. Com esse res-
friamento, ocorreu toda uma série de fenômenos, desde o apare-
cimento da vida, com aquele tão discutido protoplasma primitivo.
Se hoje a superfície do globo é inteiramente conhecida, inclusive
as calotas polares, o mesmo não acontece com seu interior. O ho-
mem é curioso e já pensa em sair de sua morada apoiando-se em
primeiro lugar nos satélites artificiais, mas nunca se preocupou
como devia em saber o que vai no porão de sua casa. Geralmente
se afirma que o centro da Terra é uma massa ígnea. A expressão é
equívoca e pode dar margem a muitas interpretações. Massa ígnea
significa metais em combustão, gases comprimidos, enfim, massa
idêntica à encontrada na superfície, quando do tempo da criação,
tudo aí pela casa aproximada dos seis mil graus centígrados. To-
davia, hoje é notório que, segundo tudo indica, o centro da Terra
não é só fogo e gases, mas também massa sólida, com muitos dos
minerais encontrados na superfície. Mas vamos por partes, pois
não quero aborrecê-los com uma aula complicada de geologia. É
verdade que à medida que nos aprofundamos no interior da Terra
vai aumentando progressivamente o calor. Assim nas grandes pro-
fundidades conhecidas, no interior das mais fundas galerias, como
nas minas de diamantes da África do Sul, a temperatura eleva-se a
mais ou menos um grau centígrado para cada cento e oito pés. Se
130
esse ritmo fosse mantido nessa proporção, no centro, no núcleo,
depois das várias camadas existentes, encontraríamos uma tempe-
ratura inimaginável, de mais de cem mil graus. Mas isso não está
bem demonstrado. Tudo indica que nas camadas mais profundas
a temperatura não se eleva a mais de seis mil graus, dependendo
da localização inferior. O interior do nosso planeta é um dos mis-
térios ainda insolúveis. Outro mistério é a questão da densidade.
Fora, na superfície, a densidade é uma, ao passo que no interior,
devido à tremenda pressão exercida no centro — dois milhões de
toneladas por pé quadrado — é outra, aumentando de cima para
o centro, gradativamente, numa proporção de mais ou menos três
gramas e meia por centímetro cúbico abaixo da crosta até o manto.
Nas partes centrais eleva-se mais ainda, calculando-se que ande
pela casa fabulosa dos quatro milhões de atmosferas, bem no âma-
go do planeta. Mas se deixarmos de lado esse aspecto, muitas pro-
vas e observações demonstram que o interior da Terra é sólido e
não em estado de fusão. Os terremotos são disso uma demonstra-
ção evidente. Assim, produzida a convulsão inicial, suas ondas se
propagam dentro de um meio sólido por vastas regiões, o que não
seria possível em outro meio sem consistência ou maleável. O estu-
do dos centros e propagação dos tremores revela que pelo menos lá
pelos mil e oitocentos quilômetros de profundidade tudo é sólido.
Destroem-se assim as crenças antigas.
Augusto-Michel fêz um pausa, tirou e tornou a colocar os
óculos e continuou a explicação preliminar para responder à per-
gunta do comandante:
— Vêem portanto vocês que o calor lá dentro não é progressi-
vo e que o interior não é chama, lavas, fusão, pelo menos até os li-
mites dos dois mil quilômetros, por onde campeiam os terremotos.
Ora, todo corpo em fusão ao resfriar-se não consegue libertar-se
das porções de gases contidas em seu interior. Sabem vocês que,
por exemplo, quando se processa o resfriamento de uma lente ou
de um bloco de aço, ficam em seu interior pequenas partículas de
ar, de gases, que permanecem como ilhas dentro do corpo sólido,
A Terra foi se esfriando com o fluir dos séculos e não é nada im-
possível, é mesmo muito razoável, que tenha abrigado dentro de si
essas bolsas vazias, imensas bolhas de ar, que ficariam retidas no
131
interior, criando enormes cavernas.
Eduardo e Santos entreolharam-se sem trocar palavra, com
tal silêncio estimulando o prosseguimento da preleção de Vaugi-
rard.
— E essa coisa de cidades no interior da Terra não é novida-
de. Muitas civilizações antiquíssimas, como a da India por exem-
plo, registraram a existência dessas cidades. O mesmo acontece
com muitas das civilizações pré-colombianas, como a dos astecas e
dos incas. Vocês alguma vez ouviram falar em Atanasius Kircher?
Não? Pois bem. Esse ilustre cavalheiro, espécie de sábio seiscentis-
ta, precisamente em 1665, certa ou erradamente, traçou um mapa
do interior da Terra, muito divulgado na época. No âmago, lá estava
o clássico fogo central, em volta um complicado sistema de rios e
lagos e enormes vazios, onde bem poderiam ter sido localizadas
as sete cidades de Agarta do nosso anfitrião Alik. Em nossa época
mesmo, um escritor-aventureiro chamado Ferdinando Ossendo-
wski, nascido em Vitebsk, depois da primeira guerra mundial in-
ternou-se pela Sibéria atingindo regiões inexploradas do Tibet. Em
seu livro, publicado em 1923, fala das cidades subterrâneas e de
um chefe-supremo que denomina de “Rei do Mundo”. A meu ver, a
coisa não é tão absurda assim. Seguirei todas as instruções recebi-
das, com licença do comandante, para poder, como disse o homem
do disco, adquirir o direito de conhecer uma dessas cidades...
— Deus do céu! — exclamou Santos — que diriam meus ami-
gos se soubessem disso tudo? Reconheço que sou bem pouco culto,
mas depois dessas explicações quase que começo a acreditar na
história do tal Alik.
— Você começa? — interferiu Eduardo — Eu, desde o mo-
mento em que vi o disco e sua velocidade deixei de lado o pouco que
ainda tinha de ceticismo. Não ponho em dúvida mais nada. Ficarei
calado, seguindo as instruções, para ver no que vai dar tudo isso.
Não tenho dúvida alguma. Passamos bons dias de férias e a pesca-
ria foi magnífica!
O professor riu, demonstrando agora mais uma vez que rea-
dquirira a calma.

132
XII — TRÊS HOMENS E UMA AMEAÇA

Duas semanas depois da viagem e daqueles fantásticos acon-


tecimentos, nada mais havia surgido que alterasse o curso normal
dos fatos. Cada qual com suas próprias conclusões havia retorna-
do aos seus afazeres, depois da reunião realizada na residência de
Augusto-Michel, logo no dia seguinte à chegada. Essa conferên-
cia veio acentuar certa circunstância que Eduardo, desde o conta-
to com o disco, vinha comprovando: se ao traçarem os planos da
viagem, nos trinta dias mais ou menos que a antecederam, havia
entre todos acentuado espírito esportivo, revelador de confiança e
camaradagem, esse espírito inicial desaparecia pouco a pouco, sem
a existência de qualquer causa justificável.
O aviador há muito raciocinava sobre semelhante fato. So-
mente na comissária nenhuma transformação havia se operado,
ou, se isso tivesse ocorrido, não fora sentido por Eduardo, talvez
pela existência de laços mais íntimos que os ligavam. Um afeto pro-
fundo há muito substituía entre ambos a amizade.
Examinando todos os pontos da questão, somente podia atri-
buir a mudança ao aparecimento do engenho voador. A impressão
e o trauma causado tinham sido tão fortes a ponto de provocarem
reações imprevisíveis e desencontradas. O próprio rádio-telegrafis-
ta não mantinha uma linha firme e coerente de conduta. Às vezes,
mostrava-se leviano, resolvido a revelar tudo, visando mais os bai-
xos interesses, ou mergulhava em enigmático mutismo; às vezes,
ainda, proclamava fidelidade ao compromisso assumido.
A viagem, o aparecimento do disco, as revelações espantosas
do homem das cidades de Agarta, a explosão do projétil teleguiado,
as promessas dos contatos posteriores, as intenções e planos ain-
da não muito bem delineados, todos esses acontecimentos desper-
taram nos três personagens reações profundas e desiguais, cujas
conseqüências não poderiam ser previstas.
Além disso, havia a ameaça. Cada um reagia conforme seu
temperamento e seu caráter. Todos esses fatores, levados para o
comportamento coletivo da equipe, criavam um ambiente de mal-
estar, de insegurança, de receio, de desconfiança recíproca.
É certo que havia o compromisso inicial, anterior à expedi-
133
ção, para ser mantido, fossem quais fossem, as conseqüências da
viagem. O segredo ajustado visava, não só a verificação dos fatos
concretos, mas também a possibilidade de um fracasso, afastando-
se uma publicidade ridícula. Mas, depois da aventura, o rádio-te-
legrafista Santos já se mostrara hesitante, falando repetidas vezes
em lucros, dinheiro e vantagens de toda ordem.
Eduardo não deixava de penitenciar-se pela escolha desse
companheiro. Lamentavelmente não deixava de reconhecer que fa-
lhara no conhecimento do homem. Talvez, devido à excitação dos
preparativos, da dúvida nascida da adesão ao insólito convite, ao
nervosismo geral e ao interesse na obtenção do barco, tinha supe-
restimado as qualidades do colega de serviço.
Reconhecia agora seu erro.
Devia ter conversado longamente com Santos antes de diri-
gir-lhe o convite e a proposta. Devia ter procurado medir suas rea-
ções e conhecer-lhe a índole, a fim de poder aferir qual seria a sua
conduta após os resultados da viagem. Porém, nada disso havia
feito e, duma amizade que sempre fora superficial e contingente,
deduzira um caráter forte e adequado para enfrentar todas as pe-
ripécias da inédita aventura. Nada havia dito a Vaugirard, tendo
comentado apenas com Leila sua decepção, não escondendo seus
temores, que aumentavam dia a dia, à medida que se aproximava
a data marcada para o novo contato, de acordo com as quatro ano-
tações entregues por Alik.
Quanto a Augusto-Michel, o aviador não deixava de reconhe-
cer que também lhe estranhara o procedimento em dado instante
dos episódios. Desde o início, desde a primeira conversa no avião,
sobre o Atlântico, pareceu-lhe o professor um caráter sólido, since-
ro a toda prova, amparado por cultura incomum, qualidades essas
a que a idade adicionava grande respeitabilidade. Nesse encontro
inicial, não notara desequilíbrio ou variação alguma na conduta do
professor, a não ser na atitude repentina assumida no aeroporto de
Dakar, quando cortara a conversa precipitadamente. Mas a justifi-
cativa apresentada eliminava o deslize. Afinal de contas, o profes-
sor ainda não o conhecia e não deixara de ter certa razão receando
não ser levado a sério. Vaugirard era no fundo um obcecado. Acre-
ditava nos discos-voadores com a mais obstinada convicção. Toda-
134
via, a seu ver, não chegava a ser um fanático, porque alicerçava a
sua crença em motivos individuais, baseados na experiência e no
conhecimento. Sempre se mostrara sincero e honesto. Desviara-
se dessa conduta, apenas, uma vez, voltando logo em seguida ao
comportamento anterior, com mostras de ter-se punido pelo desli-
ze. Esse instante fora na ilha, logo em seguida à revelação do filme
com as imagens do disco. Augusto-Michel descontrolara-se. Sua
fisionomia, sempre compenetrada e serena, capaz de aceitar e ana-
lisar todos os tipos de ocorrências, transformara-se por minutos,
evidentemente sem controle.
Aliás, Eduardo não contava elementos para afirmar se o pro-
fessor aparentava exagerada capacidade de auto-censura ou se
possuía exagerada dissimulação, capaz de esconder suas reações
mais profundas, encarando tudo com idêntica passividade. O pro-
blema era complexo demais, e demandava a opinião de um psicó-
logo e não do aviador, por mais aguçado que fosse o seu senso de
observação. Mas, mesmo descontrolado momentaneamente, falan-
do em glórias advindas do encontro com o disco, triunfo de suas
incansáveis pesquisas, mesmo ao recordar-se de seus passos ao
redor do filme nas mãos de Santos e de seus olhos esbugalhados,
distorcidos pelas lentes grossas dos óculos, não se assustou Edu-
ardo com a reação. Afinal, haviam testemunhado acontecimentos
inacreditáveis e somente um anestesiado ou um débil mental fi-
caria indiferente e apático perante a importância das ocorrências.
O nervosismo era geral e o descontrole em tais condições não se
afastava da normalidade.
Já em relação ao comportamento do rádio-telegrafista Santos
sua atitude era outra. A grande incógnita, a grande questão agora,
cujas conseqüências seriam imprevisíveis, era a atitude de Santos.
Até que ponto o homem ficaria calado? Qual a reação dos habi-
tantes das sete cidades subterrâneas de Agarta se êle desse com
a língua nos dentes? E, principalmente, Eduardo não se cansava
de rememorar a indagação mais séria: a ameaça de Alik recairia
somente sobre um ou sobre todos?

135
Depois da chegada, no dia seguinte, haviam se reunido na
casa de Vaugirard. Num ambiente frio, notado por todos, onde
cada um falou o menos possível e nada demonstrou do que lhes ia
no íntimo, renovaram a promessa de sigilo absoluto, lembrando-se
não só das palavras de Alik, mas sobretudo esperando a continua-
ção dos contatos e da fantástica viagem prometida.
De acordo com as instruções fornecidas pelo tripulante do
disco, o próximo contato pelo visor-transmissor seria dali a onze
dias. Nesse intervalo, não mais se encontraram, a não ser Eduardo
e Leila, que intencionalmente combinaram não discutir o assunto
entre si.
O único que não aguardava com ansiedade o correr dos dias
era o rádio-telegrafista. Na reunião na casa de Augusto-Michel,
sempre demonstrando ilógico ceticismo, depois de reiterar suas
dúvidas sobre a origem do disco, teimara em afirmar que o apa-
relho deveria pertencer a uma potência terrestre. Afirmava, teimo-
samente, que não haveria nenhum outro encontro e que a ameaça
não passava duma “conversa”.
O professor e Eduardo não mais comentaram suas dúvidas
quanto ao procedimento de Santos; mas começaram a convencer-
se de que o homem não teria a necessária compostura para calar-
se.
Eduardo havia discutido com Leila e esta, sempre que havia
oportunidade, investigava das tripulações e dos amigos do rádio-
telegrafista se este nada tinha relatado sobre a “pescaria” na ilha
de Trindade. Nenhuma informação foi obtida, e assim, aparente-
mente, tinha-se a impressão de que por enquanto — como dizia
Eduardo — Santos estava calado, ruminando sua inquietação. As
apreensões do aviador passaram-se pois a concentrar-se nas ocor-
rências posteriores à data do novo contato.
Nesse dia, todos estavam de folga. Eduardo terminando suas
férias, Leila apenas de plantão para vôos domésticos, e Santos na
véspera de um vôo na linha da Europa.
Não houve nenhum aviso posterior, visto a data marcada es-
tar bem nítida na memória de cada um.
O contato havia sido previsto para a noite. Exatamente para
a meia-noite. Era uma quinta-feira e desde as quatro horas da tar-
136
de chovia a cântaros.
O professor não saíra nesse dia e providenciara tudo de for-
ma a que nenhuma visita inesperada ou qualquer compromisso
viesse atrapalhar o recebimento da mensagem. Sobretudo, não se
esqueceu da recomendação de que só os quatro deveriam estar
presentes. Despediu os criados mais cedo e não teve preocupações
com a esposa e a filha, pois estavam na Praia Grande, numa casa
de veraneio de sua propriedade.
Com o cair da tarde chuvosa e melancólica, não pôde mais
Augusto-Michel conter sua crescente impaciência. Suspendera os
estudos a que se entregava para uma aula na Universidade no dia
seguinte, e nada mais conseguia fazer a não ser andar pela casa
deserta, consciente do seu nervosismo. Não que receasse qualquer
coisa. Mas temia que não viesse comunicação alguma. Para êle, os
fatos ainda eram um prólogo. A meada principiava a desenrolar-
se e daria tudo o que estivesse ao seu alcance — a própria vida
se necessário fosse — para atingir as últimas conseqüências da
aventura, isto é, visitar uma das cidades subterrâneas. Desde que
chegara tinha revisado todos seus conhecimentos sobre geologia e
espeleologia, relendo tudo o que possuia sobre as lendas das sete
cidades de Agarta, do continente perdido de Lemúria, dos mundos
inferiores das lendas do alto Tibet e das tradições milenares dos
toltecas e astecas sobre a origem desconhecida daquele quase deus
que foi o lider Quetzalcoatl, sábio de pele branca que se opunha a
atos de sangue e violência. Seu nervosismo decorria do pavor de
uma decepção. Não aquilatava qual seria a sua reação se o visor-
transmissor, quando os ponteiros se juntassem na meia-noite, não
desse sinal de vida como da vez anterior.
Encostado à vidraça, com todas as luzes da casa apagadas,
olhava a chuva cair sobre o gramado do jardim, quando notou a
aproximação do carro de Eduardo. O aviador foi o primeiro a che-
gar, com antecedência exagerada que também demonstrava a sua
impaciência.
Vaugirard não esperou o toque da campainha. Desligou a
rádio-vitrola, que espalhava uma melodia suave, em surdina, e
quebrou a escuridão, acendendo todas as luzes da sala.
— Viemos cedo demais — disse Eduardo assim que entrou,
137
ao mesmo tempo que auxiliava Leila a tirar a capa de chuva com-
pletamente encharcada.
— Nada disso. Fizeram bem em ter vindo cedo. Estou sozinho
desde depois do almoço, e de algumas horas para cá não consi-
go suportar a expectativa — respondeu o professor, apanhando a
capa da comissária e o guarda-chuva do comandante.
— Vínhamos mais cedo ainda. Quando passei pelo aparta-
mento de Leila eram ainda oito horas. O trânsito estava dificílimo
devido à chuva, e penso que levamos quase uma hora de lá até
aqui. Diga-me, professor, o senhor está sozinho?
— Não se preocupe. Vamos passar para o escritório. Minha
mulher e minha filha estão em Santos com uns parentes, e despedi
os empregados, alegando uma reunião reservada dos membros da
congregação da Universidade. Tudo está bem preparado. Vamos
para a outra sala.
Ao entrar na biblioteca, Augusto-Michel foi diretamente ao
bar e, não vendo objeção alguma por parte das visitas, foi logo mis-
turando umas bebidas.
— Estiveram hoje com o rádio-telegrafista? — perguntou o
professor.
— Eu, não — respondeu Eduardo. — Desde ontem que não
vou ao campo. Cedo estive na agência da cidade para pegar a cor-
respondência, mas nem me lembrei de saber do Santos. Dias atrás,
Leila examinou a escala e me disse que hoje êle estaria em São
Paulo.
— Sim — confirmou a moça — êle vôa amanhã para a Eu-
ropa. Hoje cedo estive no aeroporto de plantão até às duas horas,
mas não vi o Santos por lá.
— O senhor acha que êle virá, comandante?
— Não tenho dúvida. Se não viesse teria nos avisado. Não
chegará tão cedo como nós, mas aposto que não faltará.
— Não sei, não — resmungou o professor. — Desde o nosso
último encontro me convenci de que êle não leva a coisa muito a
sério. Acredita que o disco pertence a uma nação não identificada e
creio que só está quieto, sem ter espalhado aos quatro ventos o que
se passou, em seu interesse próprio, para acumular mais dados
que lhe tragam posteriormente proveito maior. Não é essa também
138
sua impressão?
— É. O senhor está com a verdade. Vamos ver como procede-
rá depois do contato de hoje. Seja lá o que estiver tramando, acho
que não ficará quieto por muito tempo. Antes disso, nada podere-
mos fazer.
Augusto-Michel depositou o cálice sobre a bandeja de prata,
encaminhando-se para o canto da biblioteca, onde estavam os ar-
quivos.
— Quase ia me esquecendo. Tenho aqui uma noticia bem sig-
nificativa, relacionada com a nossa viagem de pesca. — Folheou a
pasta azul e retirou um recorte de jornal, passando-o ao aviador.
— Vejam. É o recorte de um jornal do Rio de Janeiro, publi-
cado três dias depois que chegamos. Guardei-o para lhes mostrar
e ia me esquecendo. Leiam.
Eduardo correu os olhos pelo papel e leu, em voz alta:
— “Estranho objeto visto à grande altura e em fantástica ve-
locidade. Encontro com unidades de guerra não identificadas”.
O comandante, perplexo, passou ao texto da notícia: — “Pes-
cadores vindos do alto-mar ao chegarem à Ponta de Monsaras, na
foz do Rio Doce, Estado do Espírito Santo, declararam ter visto so-
bre o oceano, à grande altura, uma estranha aeronave circular, que
se movimentava com impressionante velocidade. Informaram mais
que, horas depois, viram à distância uma formação de vasos de
guerra com numerosas unidades. A notícia causou sensação na ca-
pital do Estado, tendo sido levada ao conhecimento da Marinha”.
— Que lhe parece, comandante? Mais uma vez se repete a
coincidência daquela cidadezinha do norte da África, que viu o dis-
co depois de nossa passagem.
— Não tem dúvida. Esses pescadores assistiram ao final do
nosso espetáculo. Veja aqui. A notícia foi publicada no dia onze,
mas o telegrama é do dia nove, portanto, do dia em que saímos
da ilha. Isto vem comprovar que o tripulante do disco não mentiu,
quando disse que estavam sendo perseguidos. Aliás, nunca tive
dúvidas. A explosão já confirmara suas palavras,
Leila consultou o relógio, dando demonstração de impaciên-
cia. Os minutos custavam a passar, tornando-se cada vez mais
longos à medida que a hora marcada ia se aproximando.
139
— Onde está o visor-transmissor?
Vaugirard levantou-se. Foi em direção a um quadro de Re-
noir que havia na parede maior, ao lado duma pequena discoteca.
Segurou a tela com ambas as mãos e deslocou-a para a esquerda.
Em baixo, viram, então, surgir a tampa de um cofre-forte, em nível
inferior à parede. O professor girou durante alguns segundos os
discos do segredo e, com ligeiro estalido, acionou o trinco. Inseriu
a mão, direita no esconderijo e com todo o cuidado retirou do in-
terior a pequena caixa envolta por um pedaço de veludo vermelho.
Tornou á fechar o cofre e recolocou o quadro no lugar.
— Aqui está. Como vocês sabem, este aparelho foi examinado
de todos os modos possíveis. É feito de material desconhecido. É
impossível de abrir-se, e é ignorado o seu funcionamento, portan-
to.
Eduardo apanhou a caixa nas mãos e depositou a solene-
mente na mesinha de laca, à sua frente.
— As duas últimas horas estão custando a passar — lasti-
mou-se o professor, ao mesmo tempo que se dirigia para a vitrola
— vocês gostam de Debussy?
Antes que obtivesse resposta ligou a rádio-vitrola, espalhan-
do-se os sons em surdina.
— Assim é melhor. O tempo passa mais depressa.
Eduardo levantou-se, acendeu um cigarro e acercou-se da
janela, a fim de ver a chuva que continuava a cair, sempre com a
mesma intensidade.
Todos estavam sob forte tensão e a meia-hora seguinte pas-
sou-se em silêncio, absorvidos pela música e por seus pensamen-
tos.
Meia hora antes da meia-noite, o rádio-telegrafista chegou.
A chuva passara e Santos tocou insistentemente a campainha, de-
pois de despedir o carro de aluguel.
— Cheguei em cima da hora, não? Foi difícil encontrar con-
dução. Jantei com uns amigos na cidade e quase errei no cálculo
do tempo que levaria até aqui. Eduardo e Leila já chegaram?
— Sim, há algum tempo. Faça o favor de dar-me sua capa...
Santos, meio atrapalhado, esquivou-se ao pedido do profes-
sor.
140
— Não, muito obrigado. Prefiro ficar de capa mesmo. Sei que
é falta de educação, mas ela não está molhada e estou com uma
gripe incubada, sentindo um frio incrível. Deixe-me acostumar com
a temperatura. Se sentir calor, tirarei.
Vaugirard não deixou de estranhar essa conduta, ao condu-
zir Santos para a biblioteca.
— Boa noite, como vão?
— Como vai, Santos? Estávamos com medo de que você não
viesse, de que tivesse esquecido o nosso encontro.
— Não deixaria de vir de forma alguma. Mas vocês vão ver
que eu é que tinha razão. Acho que não vai acontecer nada.
O rádio-telegrafista sentou-se na poltrona em frente ao sofá
onde estavam Leila e o aviador. E ao ver a caixa sobre a mesa de
laca tomou-a nas mãos.
— Sou o mais curioso e mais cético de vocês três. Não assisti
a caixa transmitir coisa alguma. Diga-me, Eduardo, como é que ela
irradia? A comunicação é em voz alta ou baixa?
O comandante, sentindo certa ironia nas palavras de Santos
e não interpretando bem o que pretendia êle com tal atitude, res-
pondeu lacônicamente:
— Transmite como um rádio comum. Logo mais você verá.
— Ouve-se bem? Pode graduar-se o volume?
— Não. Acho que não. Ouvi claramente. Não existe nenhum
botão ou controle por fora.
Augusto-Michel retirou delicadamente a caixa das mãos do
rádio-telegrafista, como se pretendesse examiná-la, e depositou-a
novamente sobre a mesa, bem ao centro, procurando disfarçar seu
gesto.
— Quer tomar alguma coisa, Santos?
— Obrigado. Não faz nem uma hora que acabei de jantar.
Mais tarde, talvez.
Santos e o professor sentaram-se também ao redor da mesa
de laca, ficando os quatro em torno da caixa.
— Como é? Mudou de ponto de vista a respeito do que nos
aconteceu? — indagou Eduardo, para provocar o companheiro e
forçá-lo a definir-se.
O rádio-telegrafista, como no “Alcíone”, não se fez de rogado,
141
mais uma vez demonstrando seu temperamento extrovertido.
— Vocês é que deveriam ter mudado de opinião. Vou ser claro
e dizer com toda franqueza o que penso de tudo isso. O disco existe,
mas, como já lhes disse aquela noite na ilha, não creio que seja ver-
dade a história do homenzinho. Afinal de contas, êle é uma criatura
igual a nós e os motivos pelos quais nos pediu silêncio devem ser
mais simples do que os alegados.
Vaugirard aparteou veementemente:
— Quais seriam os motivos? Você, como nós, ouviu toda a
conversa e não pode deixar de pôr em dúvida que o motivo aponta-
do pelo tripulante foi bastante razoável.
— Não. Não acredito na história. O disco-voador só pode per-
tencer a uma potência não identificada que busca o domínio total
do mundo. Acho que para a própria segurança nacional devíamos
divulgar o que nos aconteceu, não nos esquecendo de que o apa-
relho é uma arma poderosíssima, que não pode ser subestimada
ou levada em brincadeira. Pessoalmente, digo-lhes, poderíamos ter
bons lucros com essa divulgação.
Eduardo, que até então vinha apenas escutando e medindo
as reações de Santos, não se conteve mais. Levantou-se, apertou
o que restava do cigarro dentro do cinzeiro e interpelou o amigo,
fitando-o bem de frente:
— Que quer dizer com a palavra “lucros”? Já é a segunda ou
terceira vez que você vem com essa história. Será que pensa que
estamos interessados em ganhar dinheiro com a publicidade dos
fatos? Seu procedimento tem sido bem estranho! Esqueceu-se do
nosso acordo?
Meio constrangido, Santos revirou-se na poltrona, desviou os
olhos do aviador, puxou para si a capa de chuva como se estivesse
com frio e respondeu, quase procurando uma justificativa para sua
atitude:
— Não me julguem mercenário ou uma pessoa somente in-
teressada em dinheiro. Desculpem-me, se causei essa impressão.
Em duas palavras, o que penso é o seguinte: acho que o disco re-
presenta uma pavorosa ameaça contra as nações livres e por isso
devíamos denunciá-lo. Ao mesmo tempo, os jornais, o rádio e a
televisão muito poderiam nos dar pelas informações. Imaginem o
142
furo que seria, o maior furo do século! Vocês já imaginaram por
quanto poderíamos ter vendido as fotografias, caso o professor não
as tivesse queimado? Não podem deixar de admitir que foi uma
pena.
Augusto-Michel, ao ver relembrado o episódio da queima do
filme, não perdeu a oportunidade para justificar-se:
— De fato, em parte concordo com o senhor. As fotografias
não deviam ter sido destruídas. Agi irrefletidamente, por impulso
incontido, temendo por nosso procedimento uma vez na posse das
cópias. Elas nos seriam úteis, não para publicidade, mas somente
para estudos, análises e confrontos. Penitencio-me pela conduta
impensada.
O rádio-telegrafista, por mais que pretendesse, não conseguia
desviar suas palavras da verdadeira intenção que o avassalava:
— Para mim, elas representavam dinheiro. Somente isso.
O comandante estava cada vez mais impaciente e irritado com a
atitude de Santos. Leila compreendeu esse estado de irritação e,
conhecendo o temperamento explosivo do aviador, segurou-o pela
mão como a pedir-lhe que nada mais dissesse, pois uma discus-
são com outras conseqüências poderia advir da troca áspera de
palavras. Procurou desviar a atenção do comandante das últimas
palavras do rádio-telegrafista.
— Vamos até à vitrola. O disco está terminando. Vamos es-
colher outro.
Ambos se levantaram e foram de mãos dadas para o canto
da sala, enquanto Augusto-Michel se encaminhava para o bar e se
servia de outra bebida.
Longe do rádio-telegrafista, Leila falou em voz baixa a Edu-
ardo:
— Não dê importância ao que êle está dizendo. Está obcecado
pela idéia do lucro e de nada adiantará qualquer discussão. Vamos
ver o que vai acontecer.
— Desculpe-me, querida, mas quase não me contive. O ho-
mem é um imbecil completo. Não sei onde estava com a cabeça,
quando o convidei para a nossa viagem. Mas o melhor mesmo é
não ligar. No ponto em que êle chegou, os argumentos não mais
adiantam, somente a força.
143
— Acalme-se. O tipo é mesmo um ignorante completo. No
fundo, sinto-me culpada por tudo...
— Você? Culpada? Por quê?
— Não fui eu que sugeri o empréstimo do barco deles?
— Ora, isso é bobagem. Nem pense nisso. Culpado fui eu.
Não se esqueça de que sou o responsável por tudo. Eu é que tive os
primeiros contatos com eles e eu é que fui o escolhido. Tudo o que
de errado aconteceu deve ser-me atribuído. Eu é que me afobei na
escolha de Santos. E se êle falar, se alguma coisa acontecer, sinto-
me preocupado como o inteiro responsável pelo fracasso. Se isso
acontecer, ajustarei com Santos minhas contas...
— Não pense mais nisso, meu bem. Alguma coisa me diz que
no fim tudo dará certo. Vamos aguardar os acontecimentos. Se êle
falar, isso é com êle. Você não pode ser responsabilizado por atos
alheios. Vamos escolher outra gravação ...
O professor consultou o relógio e vendo o casal que procu-
rava colocar novo disco na vitrola, procurou fazer uma “blague”,
risonho, a fim de desanuviar o clima opressivo que se formara.
— Acho que não teremos mais tempo de ouvir outra música.
Vejam aqui. Faltam dez minutos para meia-noite e, ao que parece,
vamos entrar em contato com outra espécie de disco que não o de
vitrolas... Vamos, tomemos outra vez nossos lugares em volta da
mesa.
Santos não se havia movimentado de seu lugar. E, ao escu-
tar as palavras de Vaugirard, acomodou-se melhor na poltrona,
abrindo um pouco a capa de chuva que continuava a envergar. O
professor esperou alguns minutos em silêncio e depois, como se
procedesse a um ritual, apanhou a caixa metálica, abriu-a e depo-
sitou ao centro da mesa, equidistante dos quatro.
O silêncio era absoluto e podia distinguir-se o barulho da
chuva, que recomeçara, nas janelas da biblioteca. Santos aproxi-
mou-se mais, esticando o punho fechado para junto da mesa. Leila,
a mais impressionada dos quatro, afundou-se no sofá e segurou o
braço do aviador. Vaugirard tirou os óculos e começou a limpá-los,
enquanto Eduardo mastigava um cigarro entre os dentes.
Cinco minutos passaram-se, quando, como da vez anterior,
um zumbido começou a sair do interior do objeto. A expectativa
144
atingiu o auge e nenhum dos quatro fêz um único gesto. O zumbido
diminuiu e uma voz clara, nítida e de timbre metálico esparramou-
se pelo cômodo, como se proveniente de uma quinta pessoa ali
presente, ao lado deles mas invisível.
— Vejo que tudo decorreu bem até agora. Todos estão aí e de
novo estamos aqui cumprindo nossa promessa.
Os quatro estavam perplexos e imóveis, a não ser Santos, que
se revirava na poltrona, demonstrando intensa emoção.
— Hoje, como da primeira vez, seremos breves. Um segundo
encontro será possível. Nossos entendimentos deverão continuar
para que a missão recíproca seja coroada de êxito. Desta vez, o
lugar será bem mais acessível. Já somos amigos e podemos pôr de
lado um pouco da nossa cautela inicial. Professor, pegue o mapa
do Estado de São Paulo.
Augusto-Michel sentiu-se apanhado de surpresa. Ao ouvir
seu nome levantou-se bruscamente, deixando cair os óculos no
tapete.
— Não se assuste, professor. Primeiro pegue seus óculos que
caíram e depois o mapa. Não se assuste.
Todos estavam transidos. A caixa via tudo. Era idêntica a um
organismo vivo que estivesse sobre a mesa. Falava, via e sentia.
Vaugirard foi em direção à escrivaninha, abriu uma das ga-
vetas e voltou com um mapa dobrado.
— Aproxime-se, professor. Abra o mapa em frente a mim.
Assim mesmo, bem próximo ao visor. Agora, escutem com atenção.
Estão vendo lá em cima o rio Grande, na divisa do Estado de São
Paulo com Minas Gerais? Lá em cima, onde o rio descreve essas
duas fortes curvas, estão vendo? Lá existem inúmeras ilhas de ta-
manho pequeno. São todas desertas e em torno, num vasto círculo,
não existem habitantes. Vejam bem. O próximo encontro será aqui
nesta ilha maior que o mapa assinala. Estejam lá, daqui exata-
mente a trinta dias, à meia-noite. Nesse segundo encontro, novas
revelações serão feitas, sempre necessárias à nossa Grande Mis-
são. Entenderam bem? Daqui a trinta dias, à meia-noite nessa ilha
maior do rio Grande. Mais uma vez, recomendo-lhes silêncio abso-
luto sobre todos os fatos. Não se esqueçam de que podemos vigiá-
los. Sou forçado a mais uma vez declarar-lhes que, se divulgarem o
145
que está acontecendo, poderemos anulá-los. Sim — declarou a voz
em tom mais incisivo e metálico ainda — poderemos anulá-los.
Inesperadamente, a voz calou-se, propagandose outra vez
pela biblioteca o zunido inicial, ao qual sucedeu um silêncio com-
pleto.
O primeiro a falar foi professor:
— Que tal, meus amigos? Que tal?
Foi Eduardo quem respondeu:
— Nunca duvidei do recebimento da segunda mensagem.
O rádio-telegrafista embrulhou-se mais uma vez na capa como
se o frio tivesse voltado e tomou o visor-transmissor nas mãos.
— Vocês examinaram bem isso? Do que é feito? Como fun-
ciona?
— Não sabemos — respondeu o professor. — É de um ma-
terial desconhecido na face da Terra, praticamente indestrutível.
Você acha que algum povo da superfície poderia fazer uma coisa
dessas?
Santos não respondeu. Pôs-se em pé.
— Agora que pretendem fazer?
Foi ainda Eduardo quem respondeu:
— Eu e o professor pretendemos continuar. Tencionamos ir
ao segundo encontro. Você é que deve explicar às claras o que pre-
tende — concluiu Eduardo em tom de desafio.
— Não quero discutir mais o caso — replicou Santos, esqui-
vando-se à provocação. — Acho que vou largar essa história toda.
Estou cansado de tudo isso e não quero continuar nessa brinca-
deira, como joguete nas mãos de homens que não sabemos quem
são e de onde vêm...
O professor e o comandante continuaram calados, à espera
de que o rádio-telegrafista continuasse a explicação.
— Estou cansado de tudo isso e não quero mais discutir hoje
o assunto. Sinto-me gripado e, com licença de vocês, já vou indo.
Amanhã, pensarei melhor e direi a Eduardo o que pretendo fazer.
Santos levantou-se, cingiu bem o impermeável, ensaiou uma
tosse frustrada como se a ocultar certo vexame, e foi se dirigindo
para os lados da porta de entrada, seguido por Vaugirard, que per-
manecia mudo frente à nova atitude do rádio-telegrafista, agora de
146
absoluta falta de boas maneiras.
Eduardo encaminhou-se também para a porta seguido de
Leila, mostrando-se ambos também dispostos a retirar-se.
— O melhor é todos irmos, professor. Deixemos que êle reflita
bem sobre o caso e durma pensando no significado das palavras
pronunciadas por “eles”. Escute, aqui, Santos, você sabe o que sig-
nifica a palavra anular”?
Santos não se deu por achado. Parou bruscamente, voltou-
se, revirou o chapéu na mão e respondeu com displicência e visível
má-vontade:
— Não tenho medo de ameaças. Sempre agi de acordo com a
minha cabeça.
Eduardo ia insistir, aceitando o desafio, mas Leila, prudente-
mente, apertou-lhe a mão, de novo procurando evitar o atrito.
— Vejam, a chuva parou. Vamos aproveitar e ir também,
Eduardo. Você amanhã procura o professor para traçarem os no-
vos planos, pois dessa vez não precisamos de nenhum barco.
O rádio-telegrafista despediu-se de Vaugirard, apertou mais
a capa e, fingindo não ter escutado as últimas palavras da comis-
sária, saiu a toda pressa pelo jardim alagado.
— Bem, professor, hoje não devemos mais comentar o as-
sunto. Também estou cansado e amanhã lhe telefonarei para mar-
carmos novo encontro. Quanto ao nosso homem, não se preocupe.
Acho que êle já se decidiu. Irá amanhã de tarde para a Europa e
antes disso obterei sua palavra final no aeroporto.
Despediram-se e também apressadamente tomaram a dire-
ção do carro, estacionado do outro lado da rua.

XIII — O VÔO 412

No dia seguinte, como naquela primeira manhã depois do


descontrole dos instrumentos sobre São Paulo, Eduardo acordou
com a mesma sensação de insegurança e mal-estar. Não dormira
grande parte da noite, e todos os jornais e revistas que adquirira na
banca da esquina acumularam-se ao lado da cama sem que tives-
sem cumprido a função de conduzi-lo ao sono.
Saindo da residência de Augusto-Michel, depois de ter levado
147
a comissária, viera diretamente para seu apartamento. Estava can-
sado. Em seu cérebro fervilhavam os últimos fatos e, de tal ordem
eram suas preocupações, que nem mesmo conseguira desprender-
se delas e entregar-se à leitura dos magazines.
Previa, agora, grandes acontecimentos. O segundo encontro
certamente proporcionaria revelações mais profundas e, como o
professor, estava decidido a ir até ao fim, fossem quais fossem as
conseqüências.
Nos poucos instantes, que conseguira dormir, tivera um so-
nho agitado. Vira-se amarrado no interior do disco-voador, em ple-
no vôo no espaço sideral, enquanto era torturado pelo personagem
de chapéu-côco, pelo agente dos homens das cidades subterrâneas,
sempre com aquela aparência do dançarino de Toulouse-Lautrec.
Várias vezes, acordou, acompanhando a passagem das horas pela
consulta repetida do relógio de pulso colocado no criado-mudo.
Quando despertou, quase ao meio-dia, sentiu-se mais cansado do
que ao deitar-se e ficou ainda muito tempo na cama, seguro pelos
prolongamentos perigosos do sonho.
Fêz a barba, à pressa, acabou de vestir-se e fechou a porta
do apartamento só com o trinco, pois de novo subiria assim que
tomasse um café no bar, em baixo. No elevador, continuou a sentir
o mesmo mal-estar, chegando a suspeitar de que estivesse doente.
O bar ficava no mesmo prédio, junto ao jornaleiro. Quando passou
pela banca de jornais Eduardo não observou a aglomeração em vol-
ta de certo periódico afixado na parede. Entrou no bar, sentou-se
no banco alto junto à máquina registradora e pediu ao garção, já
seu conhecido, somente uma xícara de café, sempre mais preocu-
pado com suas idéias do que com o que se passava em torno.
Foi aí que o homem da caixa, baixo e gordo, barbudo como
um ouriço, lhe dirigiu a palavra:
— Bom dia, comandante. Que acha o senhor na notícia do
jornal?
O aviador respondeu distraído, sem prestar muita atenção à
pergunta:
— Bom dia, José. Notícia? Que notícia?
— Como? — Então, o senhor não viu ainda? Não viu toda
essa história do disco-voador?
148
Eduardo teve um sobressalto e largou a xícara sobre a
mesa.
— Notícia sobre disco-voador? Onde está isso? Deixe-me ver
esse jornal — disse, levantando-se e aproximando-se mais do lugar
ocupado pelo caixa.
— Sim. Notícia sobre o aparecimento de um disco-voador.
Deve interessá-lo muito. Olhe, aqui, veja a primeira página. Já li
duas ou três vezes! Pode ver.
Num segundo, o comandante inteirou-se de tudo. Lá estava.
Tudo viera por água abaixo. Santos, aquele imbecil, aquele cretino,
dera com a língua nos dentes. E muito mais do que isso: tinha che-
gado ao máximo em suas declarações à imprensa.
Eduardo pegou o jornal, afastou-se sem dizer nada ao ho-
mem da caixa e foi sentar-se junto a uma mesinha de canto. Cus-
tava a acreditar no que lia. As manchetes imensas tomavam todo
o cabeçalho da primeira página, cheia de subtítulos também em
letras garrafais. Tratava-se de um segundo clichê de última hora.
Foi lendo devagar, procurando entender linha por linha, tão atônito
se sentia:

“Esclarecido o mistério dos discos-voadores. Rádio-te-


legrafista de uma companhia de aviação narra a espantosa
aventura que viveu, juntamente com um professor da Univer-
sidade, quando esteve em contato com um desses objetos que
aterrissou na ilha da Trindade. Entre as inúmeras provas
apresentadas, exibiu o rádio--telegrafista Santos a gravação
completa duma entrevista obtida ontem com os tripulantes
do disco, por intermédio de um aparelho misterioso chama-
do visor-transmissor”.

Então, o homem tinha falado mesmo. E mais do que isso:


tinha gravado a conversa com Alik na casa do professor. Imediata-
mente, o aviador lembrou-se do impermeável de Santos. Lembrou-
se de sua teima em não ter querido tirá-lo, bem como do cuidado
com que se envolvia nele, como se estivesse com frio. Sim. Santos
ocultara no bolso da capa de chuva um desses gravadores por-
táteis de pouco menos de um palmo. O microfone era pequeno e
149
fácil também tinha sido ocultá-lo nas mãos, com o fio entrando
pela manga. Sim, o rádio-telegrafista fora deveras esperto. Planeja-
ra bem todos os pormenores do golpe que pretendia desencadear.
Tudo agora estava perdido, e, principalmente, qual seria a conse-
qüência dessa patifaria?
Eduardo continuava a ler, agora com mais calma.
A entrevista falava apenas da viagem e do vôo no disco, men-
cionando somente o nome do professor. Não deixou de estranhar
esse fato. Por que Santos não mencionara Leila e êle, Eduardo?
Mencionava o professor como a pessoa que recebera o convite e que
providenciara a expedição. Falava, em linhas gerais, sobre o disco,
sua origem e sua tripulação, relatando o segundo contato, indican-
do até o lugar em que se daria o novo encontro. Sim. Não restava
dúvida. Tudo se tinha desmoronado. Santos deveria ter entrado em
dinheiro graúdo. A notícia informava que o rádio-telegrafista ven-
dera ao jornal a gravação e os direitos da reportagem e informava
que uma grande expedição seria preparada, sob o patrocínio de
conhecido deputado, para ir ao encontro do disco, quando da apa-
rição anunciada na ilha do rio Grande. Só não se fazia referência
ao nome de Eduardo e de Leila. Qual seria a intenção de Santos
ao esconder esse pormenor? Teria sido proposital a omissão? Se
procurava a todo custo provar a veracidade da aventura e de sua
palavras, seria lógico que houvesse indicado o maior número de
testemunhas possível, citando êle — Eduardo — e Leila. Que teria
acontecido?
Não havia mais tempo a perder. Um antídoto deveria ser
encontrado. Eduardo levantou-se precipitadamente e devolveu o
jornal ao caixa, dirigindo-se ao jornaleiro. O homem da máquina
registradora não deixou de estranhar essa atitude.
— Leu, comandante? Como aviador, que acha o senhor dessa
história? Será verdadeira?
— Depois conversaremos José. Agora, estou com muita pres-
sa.
Adquiriu dois exemplares na banca, onde uma pequena mul-
tidão já comentava a notícia, e subiu para o apartamento.
Viu que suas suspeitas tinham sido confirmadas. Santos pla-
nejara tudo muito bem. Se não obtivera as fotos, tinha pelo menos
150
obtido a gravação. A rigor, esta não chegava a provar muita coisa
para quem não estivesse a par de todos os fatos. Mas significava
alguma coisa de sensacional que lhe deveria ter dado boa recom-
pensa. Com esse episódio compreendeu o caráter do homem que
considerara bom o leal companheiro. Dissimulara tudo desde o
princípio e certamente desde então já vinha tramando o golpe sór-
dido e traiçoeiro. Que pensaria disso tudo o professor? Seu nome
em manchete, indicado como testemunha? Augusto-Michel Vaugi-
rard era um cidadão respeitável sob todos os aspectos e como rece-
beria a notícia tão espalhafatosamente lançada? Não havia tempo
a perder. Os acontecimentos precipitaram-se. Tinha que localizar
Santos e tirar tudo a limpo, nem que fosse necessário empregar a
violência.
Entrou no apartamento e discou o número de Leila. A ligação
não durou um minuto e ficou sabendo que a comissária havia
saído, sem ter dito para onde ia. Ligou em seguida para o professor.
Augusto-Michel também não estava. Informaram que bem cedo o
professor saíra para a sua aula na Universidade. Eduardo olhou o
relógio. Quase uma hora. Restava apenas localizar Santos. Tentou
uma terceira comunicação para o aeroporto, chamando a seção do
tráfego.
— Quem? Com quem o senhor deseja falar? Com o rádio-tele-
grafista Santos? Êle não está no momento. Esteve aqui há mais ou
menos uma hora e foi para a manutenção, pois sai dentro de mais
ou menos uma hora para o vôo da Europa. Se êle volta? Não sei.
Só lhe posso informar que esse é o décimo telefonema para Santos.
Todo mundo parece que hoje quer falar com êle.
Desligou apressadamente e tentou uma última ligação com
a manutenção. Se pegasse o carro e corresse ao campo, por mais
depressa que fosse levaria pelo menos uma hora e o avião já teria
partido.
— Alô! É da manutenção? Quem está falando? É o Spinelli?
Escute, aqui, quem fala é o comandante Eduardo. A coisa é urgen-
te, chame-me o Santos. Sim, o rádio-telegrafista, preciso falar com
êle.
— Comandante, Santos já esteve aqui e foi com o aparelho e o
resto da tripulação para o pátio de embarque. O senhor leu a entre-
151
vista que êle deu? O senhor não sabe como aquela historiada toda
foi recebida por aqui! Ninguém levou a sério e o chefão está danado
com o homem. Disseram até que êle vai ser despedido. Como? Se
posso chamá-lo na torre? Acho que não. É muito difícil e não dá
tempo. Está certo. Às ordens, comandante. Obrigado.
Desanimado, Eduardo largou o fone e recostou-se na cama.
Acendeu um cigarro, tirou uma longa baforada e procurou ordenar
os acontecimentos. Que sucederia agora? Imediatamente, chegou a
uma conclusão: o segundo encontro estava de antemão fracassado.
Depois do acontecido, jamais poderiam ir ao local. Chegariam a
saber os homens do disco?
O melhor era esperar. O professor logo chegaria e antes de
qualquer contra-medida a ser adotada deveriam trocar idéias e es-
tudar o que fariam para evitar as conseqüências da leviandade de
Santos.
Tornou a ler a notícia. Em muitos pontos, afastava-se da re-
alidade do que haviam presenciado.
Nisso, a campainha da porta soou com insistência. O moço
saltou da cama e deparou com Leila, com o jornal amassado nas
mãos.
— Você já leu? Viu a notícia?
— Sim, não fique assustada, vi tudo agora pouco. O procedi-
mento do homem foi de um cão! Se eu tivesse encontrado com êle
não sei o que teria sucedido. Mas liguei para todas as dependências
do aeroporto e não o localizei. A estas horas já deve estar saindo.
— Você não pode calcular como a reportagem estourou lá
no aeroporto! Quando chegaram os jornais, foi um Deus nos acu-
da. Os exemplares esgotaram-se em poucos minutos e toda aquela
multidão que esperava embarque ficou apavorada e a comentar o
assunto. Alguns passageiros chegaram mesmo a não querer mais
embarcar, com medo de encontrar o tal disco durante o vôo. Quan-
do dei com a notícia, procurei falar com o Santos, mas não conse-
gui. Choveram repórteres de todos os lados, mas êle se escondeu
no próprio avião. Não foi visto por ninguém de fora e todo o pessoal
da companhia, logo que êle apareceu, começou a ridicularizá-lo e
a indagar onde é que tinha sido a farra e quantos litros de bebida
havia engolido.
152
— Se eu o apanho! Se eu o apanho teríamos que acertar
nossas contas! O imbecil pôs tudo a perder. Você acha que “eles”
vão agora aparecer lá no rio Grande? Nunca mais! Nunca mais! E
as conseqüências? Não quero assustá-la, mas não posso deixar
de acreditar nas palavras de Alik, quando falou naquela coisa de
“anular” os que falassem.
— Que poderá acontecer? Tudo isso já me vem apavorando
tanto! E agora ainda mais esta. Que acha você que poderá aconte-
cer?
— Desculpe-me, Leila, não quis assustá-la. mas não posso
esconder que temo a reação dos homens das cidades subterrâneas.
Santos contou tudo, infringindo todas as sanções. Revelou de onde
vêm os aparelhos, contou a história de Alik, falou sumariamente
sobre o sistema de propulsão do disco, envolveu o professor em
tudo e só não entendo porque não nos mencionou. Isso deve tam-
bém fazer parte de seus planos. O diabo do homem não dá ponto
sem nó. O que me preocupa agora é o que poderá acontecer...
— Vamos procurar, o professor, Eduardo. Êle poderá, sugerir
alguma coisa.
— Esperaremos por enquanto. Já liguei para lá e êle ainda
não tinha voltado da aula.
— Ligue para a Universidade. Temos que agir com urgência
para ver se podemos fazer alguma coisa.
— Ótima idéia. Não tinha pensado nisso. Veja a lista telefôni-
ca aí na mesa de cabeceira, em baixo.
Em segundos, a ligação estava feita.
— Sim, é da Universidade, sala dos professores. O profes-
sor Augusto-Michel não poderá atendê-lo. Além de estar em aula,
deixou ordens expressas a respeito. Não atenderá hoje a nenhum
telefonema, seja lá de quem fôr.
Desanimado, Eduardo colocou de novo o fone no gancho.
— Está vendo? O professor está a par de tudo. Se deu ins-
truções para que não o chamassem é porque já deve estar sendo
perseguido pelos representantes de todos os jornais do Brasil. Não
se esqueça de que êle é conhecidíssimo, muito considerado nos
meios universitários e científicos, e foi mencionado nominalmente
como testemunha da aparição do disco.
153
Mal o aviador acabara de pronunciar a última frase o telefone
tocou.
— Alô! Sim, sim. Aqui quem fala é o comandante Eduardo.
Quem? Professor Vaugirard! — não se conteve, tapou o fone com
a mão e quase gritou para Leila: — é o professor! É o professor! —
Acabei de telefonar-lhe. Liguei antes para sua casa e depois para
a Universidade. Já leu o jornal? Sim? Onde é que o senhor está?
Ótimo! Ia pedir-lhe. exatamente isso. Moro bem perto de onde está,
mais ou menos a duas quadras. Sim. Oitavo andar, apartamento
três. Até já, então.
Recolocou o fone no lugar e esfregou as mãos de puro desa-
fogo.
— Êle nem terminou a aula! Não conseguiu, de tão nervoso!
Está aqui perto e vem para cá. Que sorte! Já sabe de tudo e pa-
rece apavorado com as conseqüências da notícia. Disse-me que
está sendo procurado por uma legião de repórteres do rádio, da
imprensa e da televisão, e que nem mesmo pode ir para sua casa.
Telefonou antes para lá e ficou sabendo que estão à sua espera
mesmo na porta.
— Com razão o coitado deve estar apavorado! Foi citado como
testemunha e, bem mais do que isso, como elemento de ligação
entre o disco e os homens da terra! Imagine só como os repórteres
devem estar à sua procura, dando-lhe caça!
— E mais do que os jornalistas, a entrevista de Santos deve
ter preocupado as forças armadas. A esta hora, o rádio-telegrafista
já deve andar longe e todos os interessados irão cair sobre o po-
bre professor, como abutres ávidos por carniça. Imagine se aquele
tratante nos tivesse mencionado na entrevista! Como é que esta-
ríamos a esta hora? E veja só que o salafrário se safou de fininho,
deixando Augusto-Michel bem no meio da fogueira!
— Por que será que não nos citou?
— Já procurei encontrar uma causa para essa atitude, mas
não achei. Na certa ficou com medo de minha reação, ou então
tudo faz parte de seus planos de patife. Só queria saber quanto
ganhou e por quanto vendeu a fita com a gravação!
Momentos depois, a campainha da porta tocou duas vezes.
Eduardo deu um pulo da poltrona.
154
— Ótimo! ótimo, o professor está aí! Augusto-Michel Vau-
girard mal viu a porta abrir-se embarafustou rapidamente pelo
cômodo a dentro, como se acuado procurasse um refúgio seguro
depois de estafante perseguição. Entrou, tirou o sobretudo, jogou
o jornal sobre a mesa, deixou-se cair numa poltrona ao lado do
telefone. Ficou bem um minuto quieto, sem ser perturbado pelo
aviador, respirando fundo e descompassado, inflando as narinas
grotescamente, procurando ganhar forças para a primeira frase.
Depois, ainda antes de falar, tirou e tornou a colocar os óculos,
aprumou-se melhor e não mais se conteve:
— Então? Viram o que o miserável fêz? Nossos prognósticos
realizaram-se, mas confesso que nunca esperaria que êle chegasse
ao extremo de gravar em minha residência a conversa que tivemos.
E de mais foi capaz ainda esse miserável! Contou tudo. Tudo! Com
todos os pormenores que sua inteligência obtusa pôde compreen-
der. Que acham vocês?
— A nossa reação foi idêntica. Antes da divulgação dos acon-
tecimentos, já me penitenciava pela escolha desse homem e ago-
ra me considero culpado pelo que aconteceu, professor. Não tive
a devida calma para escolher um companheiro adequado. E, ao
convidar Santos, somente pensei no barco e naquele episódio do
acidente, quando êle se revelou bom companheiro. Sinto-me o res-
ponsável por tudo, repito, principalmente por ter envolvido o se-
nhor nesse escândalo que está acontecendo e que só não é ridículo
para nós.
— Não o culpo por nada e nem me considero uma vítima. O
que me atormenta nisso tudo não é a caçada que os jornalistas
estão me movendo por todos os cantos de São Paulo. É não mais
podermos continuar os contatos, vindo assim a saber a verdade
completa sobre o mundo subterrâneo. E, principalmente, por ter-
mos perdido a oportunidade de fazer alguma coisa em prol da des-
graçada humanidade aqui de cima. O resto não me interessa de
maneira alguma. Reconheço que estou acuado, fugindo dos que
me procuram para obter dados e esclarecimentos. Santos fêz muito
bem a coisa, mas essa perseguição não me incomoda. Só não en-
frentei meus perseguidores porque não sei ainda que atitude devo
tomar. Não me esqueço de que entrei para a equipe — o que para
155
mim foi um privilégio, repito — por suas mãos e consideraria gran-
de falta, análoga à do rádio-telegrafista, tomar qualquer atitude
sem antes conversarmos.
Aqui estou para isso e não por medo de ser encontrado. Que
devemos fazer?
Vendo-o embaraçado e ao mesmo tempo lhe admirando a
hombridade e a coragem, Eduardo foi em seu auxílio:
— Uma atitude precipitada em verdade viria complicar tudo
mais ainda. O senhor observou que êle não mencionou nem a mim
nem a Leila? Que teria pretendido com isso? Não lhe ocorre nada?
— Não sei também. Logo verifiquei essa circunstância, mas
não encontrei explicação alguma.
— Para nós foi ótimo, mas alguma coisa me diz que essa
omissão faz parte dos planos diabólicos do homem. Diga-me, pro-
fessor, quando o senhor resolver avistar-se com os jornalistas, o
que é inevitável, que dirá sobre a notícia? Negará tudo ou admitirá
sua participação na viagem e no encontro?
— Bem, esse é o ponto central que me toca. Queria antes en-
contrar Santos para saber precisamente seus desígnios. Já sei que
o miserável, provavelmente com uns bons dinheiros no bolso, ba-
teu asas para a Europa e só escalará pela primeira vez em Dakar.
Já que não posso saber o que êle pretendeu, a bem da verdade e
arrostando todas as conseqüências, penso que não negarei os fa-
tos. Ao contrário, serei mais exato e divulgarei tudo, sem envolver
sua pessoa.
— Mas, professor, e as ameaças? Já pensou no que poderá
acontecer? O senhor não levou a sério o que Alik nos disse? Aquela
coisa de “anular” quem falasse? Não seria melhor esperarmos um
pouco para ver no que tudo isto vai dar?
— Não me esqueci das ameaças, não. Uma vez que Santos
falou, tenho a impressão de que todos somos responsáveis pela
delação. Que nos adiantará querer ocultar alguma coisa se a esta
hora o Brasil inteiro comenta o acontecido? Você acha que depois
disso “eles” irão ao local do segundo encontro? Acho que tudo está
perdido e que nunca mais darão sinal de vida, a não ser que... — A
essa altura o professor interrompeu a frase e ficou momentanea-
mente calado. Eduardo insistiu, curioso:
156
— A não ser o quê, professor?
— A não ser que apareçam de novo para anular-nos. Não foi
isso que Alik prometeu?
A frase suspendeu por minutos a conversa. O aviador calou-
se e mudou de poltrona procurando no bolso um maço de cigar-
ros amassado. Leila não escondeu mais o nervosismo e, pondo-se
em pé, aproximou-se da janela, fingindo observar o movimento da
rua.
O aviador quebrou o silêncio.
— E a caixa, professor? Onde está o visor-transmissor?
— Está aqui comigo. Quando saí de casa automaticamente
a coloquei no bolso. Não tive tempo de devolvê-lo ao cofre, pois o
deixei ontem a noite inteira sobre a mesa, para o caso de alguma
comunicação...
Leila não se conteve mais. Voltou-se da janela, largou frené-
ticamente o cordão da cortina que segurava e dirigiu-se, veemente,
para Eduardo:
— Se existe o perigo de alguma coisa nos atingir, porque não
entramos em contato com “eles”? Contaremos o que aconteceu e
salvaremos assim a nossa responsabilidade.
O comandante concordou com a idéia.
— Estava pensando exatamente nisso, quando perguntei pela
caixa. Mas como faremos para entrar em comunicação com o disco
ou então com as cidades lá de baixo?
Augusto-Michel tirou o aparelho do bolso, desembrulhou-o
do veludo vermelho e abriu-o, como havia feito na véspera. Colo-
cado com cuidado em cima da mesa, ficaram todos em silêncio,
possuídos por intensa expectativa. Mas os minutos se escoaram
e o visor-transmissor não emitiu um único som. Nem um chiado.
Nem uma palavra. Ali estava, inerte como se fosse uma pedra ou
um cinzeiro, absolutamente sem vida e sem função.
— Estão vendo? A coisa só funciona quando “eles” querem,
nas horas por “eles” prefixadas. Não sei como poderemos nos co-
municar com Alik — declarou Vaugirard, jogando o corpo como que
vencido sobre a poltrona forrada de plástico.
— Professor, acho que o melhor por enquanto é mesmo es-
perarmos. O senhor não deve dizer nada. Deve mesmo evitar a im-
157
prensa. Escute, tenho uma idéia. O senhor fica alguns dias instala-
do aqui m meu apartamento. Minhas férias acabam amanhã e devo
voar imediatamente, amanhã mesmo à tarde. O senhor ficará aqui.
Irei à sua casa com Leila, explicarei à sua esposa e à sua filha, e
traremos de lá tudo o que lhe fôr necessário para essa estada. Te-
nho certeza de que nesse meio tempo as coisas se aclararão. Vou
tentar comunicar-me com Santos e assim, de uma maneira ou de
outra, teremos mais tempo para pensar e para achar uma solução
adequada. Que lhe parece minha idéia?
Vaugirard reanimou-se.
— Não me interprete mal, professor, mas acho que o senhor,
caso resolva contar tudo, terá uma série de grandes aborrecimen-
tos. Não se esqueça de que esse assunto “disco-voador” não é ainda
levado a sério como devia, e que muitas das pessoas que declara-
ram publicamente tê-lo visto cairam no ridículo, ganhando fama
de desequilibradas. Hoje em dia a busca do disco-voador eqüivale
à invenção do moto-contínuo, ou mais remotamente à descoberta
da fórmula do ouro pelos alquimistas, ou seja: qualquer coisa ina-
tingível e insana como esse mito medieval. O senhor deverá consi-
derar muito bem esse aspecto da questão. Se Santos é um imbecil
que nada tem a perder, e mesmo eu além do meu emprego nada
tenho a perder, o mesmo não acontece com o senhor. Seu nome
é internacionalmente conhecido e não será coisa agradável uma
reação negativa em torno dessas ocorrências, prejudicando o seu
conceito.
— Quem está sendo cético é o senhor. Com base em meu
nome e nesse meu prestígio, que não posso deixar de admitir em-
bora sem vangloria, tenho certeza de que serei levado a sério. Afinal
de contas, não sou nenhum ignorante. Não se preocupe por mim,
comandante. Seu nome e o de sua companheira não serão citados,
pois não vejo a essa altura outra solução senão confirmar e esclare-
cer melhor as declarações daquele indivíduo, um leigo na matéria.
Repito que só sinto uma coisa: duvido que apareçam novas mensa-
gens e outros contatos. Quanto à ameaça, é um risco que deverei
correr. Enfim, sua solução foi ótima. Aguardaremos uns dois dias
para ver o que acontece. Para mim é melhor ainda, pois poderei
antes de uma tomada de posição saber qual a atitude da imprensa
158
e qual a reação das declarações de Santos. Esperemos.
Em seguida, pegou o telefone e ligou para sua residência.
Leila desencostou-se novamente da janela e perguntou a
Eduardo:
— Como é que você pretende entrar em comunicação com
Santos?
— Não sei bem ainda. Hoje é sexta-feira e nesse vôo a primeira
escala é Dakar. Somente no vôo de sábado, que será provavelmente
meu, é que Recife é a primeira parada. Irei ao aeroporto e mandarei
um rádio em caráter reservado, pedindo a Santos, via Recife, que
nada mais declare sobre esses acontecimentos. Falarei com o chefe
do tráfego e direi que a mensagem é um pedido do professor.
Augusto-Michel já havia recolocado o fone no gancho.
— Já acertei tudo lá em casa. Disse que ia para a praia e
pedi ao Cesário que me preparasse a mala pequena com o essen-
cial para alguns dias. Informou-me que continua uma romaria de
repórteres de todos os jornais de São Paulo à minha procura. Mui-
tos não acreditam em minha ausência e tentam invadir a casa.
Os automóveis acumulam-se na porta, estando lá até mesmo uma
rádio-patrulha e um carro da televisão. Disse que o trânsito está
difícil e quase impedido em frente à minha residência. Foi ótima a
idéia do comandante!
— O senhor ficará aqui inteiramente à vontade. Tenho ali um
rádio de cabeceira e naquela estante encontrará revistas e livros.
Não saia, de forma alguma.
Despediram-se. Eduardo e Leila desceram, apanharam o car-
ro e encaminharam-se para o aeroporto de Congonhas.
Ao chegar, Eduardo foi diretamente ao tráfego. Ficou logo sa-
bendo da partida de Santos, como havia sido prevista pela escala,
três horas atrás, no vôo número 412, com destino a Paris e primei-
ra etapa em Dakar. Tinha esperança ainda que a primeira etapa
fosse Recife. Para Dakar a remessa da mensagem seria mais difícil.
Todavia, tentaria.
Quando entrou na sala do tráfego e procurou saber de San-
tos, logo percebeu os resultados da malfadada entrevista. Todos
os funcionários da companhia ridicularizavam a notícia, tachavam
o homem de doido varrido, exibicionista, cabotino, e procuravam
159
encontrar razão para tamanho sensacionalismo.
Um dos funcionários, amigo íntimo de Santos e um dos do-
nos do “Alcíone”, sabedor da viagem, perguntou a Eduardo se êle
não tinha visto o disco, pois também estava na expedição descrita.
O aviador respondeu com duas palavras e não teve outra saída se-
não admitir, como os outros, que o rádio-telegrafista devia ter tido
alguma alucinação.
O chefe do tráfego não estava e somente uma hora depois é
que Eduardo conseguiu falar com esse encarregado. Explicou-lhe
que conhecia ligeiramente o professor e que este lhe pedira que se
empenhasse com Santos para calar-se. Disse mais que o professor
nada tinha a ver com os fatos descritos na notícia e que atribuía
tudo a um desequilíbrio mental do operador.
— Pode tentar, comandante, mas a coisa não vai ser fácil. O
avião não escala em Recife e mensagem direta não será possível.
Terá que ser via Rio e Recife e creio que não chegará em tempo.
A esta hora, já levam umas cinco horas de vôo e o controle, como
você sabe, já passou por várias estações.
Eduardo não se deu por satisfeito e, obtendo a permissão
desejada, encaminhou-se para o centro das comunicações.

XIV — QUE SIGNIFICA “ANULAR”?

A noite já havia caído e o apartamento de Eduardo permane-


cia às escuras, como se estivesse vazio.
Augusto-Michel Vaugirard, sentado em frente à janela, com-
pletamente absorto em seus pensamentos, observava o intenso trá-
fego que se congestionava pela rua abaixo e pela praça adjacente. O
frio úmido e intenso da véspera diminuíra e a atmosfera começava
a limpar, dissipando-se as nuvens baixas que pela tarde pairavam
sobre a cidade.
Uma hora antes, o professor havia descido. Fora ao jornaleiro
e comprara a segunda edição do matutino que divulgara a entrevis-
ta de Santos. Comprara, além disso, todos os jornais da tarde. Tudo
estava sfe desenrolando como havia previsto. Os jornais espalha-
fatosamente comentavam a entrevista e já informavam o “estranho
desaparecimento do conhecido professor universitário que depois
160
dos fatos não fora localizado em sua residência”. Um dos periódi-
cos, o mais sensacionalista, verificando a ausência do professor,
chegava mesmo a sugerir que a polícia tomasse providências, pois
as notícias divulgadas, “estavam a exigir melhores esclarecimentos
e, se confirmadas pelo professor Vaugirard, providências concretas
deviam ser tomadas, a bem da segurança nacional”. Outro, mais
honesto e cético, limitava-se a tecer ligeiros comentários sobre a
notícia estampada no outro diário, e reproduzia considerações dos
entendidos sobre o disco, manifestando não só dúvidas sobre a
veracidade das informações do rádio-telegrafista, como também
sugerindo que o mesmo fosse submetido a um exame psiquiátrico.
Quanto ao jornal responsável pelo furo, reproduzia mais uma vez
na íntegra todas as informações de Santos e anunciava uma reu-
nião de peritos para a audiência pública da gravação, onde a con-
versa com o tripulante do disco fora captada. Esse mesmo jornal,
como já alardeara na primeira edição, organizaria uma expedição
“fortemente armada” para receber a nave do espaço, quando da
aterragem na ilha do rio Grande.
Augusto-Michel estava desconcertado com o curso dos acon-
tecimentos. Sem mais nem menos, via-se como centro de toda essa
complicação, caçado por um número incrível de repórteres que já
chegavam de todos os pontos do Brasil, dado como desaparecido
ou raptado, e sem saber ainda ao certo qual seria sua atitude. Tudo
era bem mais grave do que pensava. Que estariam a essa hora pen-
sando seus amigos? Como seus colegas da Universidade encara-
riam os fatos? Já saberia sua família de todos esses acontecimen-
tos inacreditáveis? Fizera bem em esconder-se no apartamento? E,
principalmente, a indagação que o afligia: qual seria a reação dos
habitantes do mundo subterrâneo?
Depois de ler e reler os jornais, estava ali junto à janela há
muito tempo, alheio ao transcurso das horas. Parecia interessado
no movimento lá em baixo, mas em verdade nem mesmo notava o
que se passava, esquecendo-se da fome e do regresso do coman-
dante. Quase tinha achado a solução, mas hesitava ainda, pensan-
do e analisando todos os ângulos do procedimento escolhido.
Às sete e meia, Leila chegou. Vaugirard assustou-se com o
toque da campainha e abriu a porta sem acender as luzes, depois
161
de ter espiado pela fresta, como se temesse algum estranho. Após
a entrada da moça, acendeu os dois quebra-luzes.
— Estava dormindo, professor? Estava tudo às escuras...
— Não. Ali da janela observava o movimento lá de baixo. Já
viu os jornais?
— Li às pressas alguns e os trouxe para o senhor, juntamente
com o lanche.
— Obrigado, não precisava incomodar-se. Quebrei minha
promessa e fui até lá em baixo comprar os jornais da tarde. Não
posso deixar de admitir que as coisas estão cada vez mais compli-
cadas, Você viu que já me dão como desaparecido, como seqüestra-
do? Sabe Deus no que irá dar tudo isso!...
A comissária colocou sobre a mesa da cozinha o pacote que
trazia e começou a preparar a refeição do professor.
— Não se preocupe. Venha comer alguma coisa que eu lhe
trouxe e depois esperaremos por Eduardo. Desde a hora em que
saímos, não tive mais notícias dele. Foi ao aeroporto e já deve es-
tar chegando. Vamos ver se conseguiu comunicar-se com Santos e
quais as outras novidades.
— O senhor quer ovos fritos ou quentes, professor?
— De qualquer modo, não se preocupe. Não estou com ape-
tite algum — respondeu Augusto-Michel, ao mesmo tempo em que
ligava o rádio de cabeceira.
— Às sete e meia, várias estações transmitem noticiário. Va-
mos ver se há alguma novidade.
Correu a faixa da onda devagar e deteve-se quando a voz
pausada do locutor esparramou pelo quarto uma série de informa-
ções políticas, de mistura com anúncios e resultados de futebol.
— Está aqui. Vamos esperar.
Minutos depois, vieram as notícias aguardadas. Inegavel-
mente, o acontecimento era a sensação do dia. O locutor anunciou
o assunto, reproduzindo em linhas gerais tudo o que os jornais
diziam e informou que a divulgação de tais notícias já causava in-
quietação nos altos círculos militares e já produzia efeitos inter-
nacionais, alarmando grande parte da população. Terminava por
informar que o professor Augusto-Michel Vaugirard — celebridade
científica internacional — estava sendo procurado pela reportagem.
162
E, por fim, mencionava uma notícia ainda sem confirmação: a po-
lícia estaria auxiliando a localização do sábio, em face de fundadas
suspeitas de rapto.
Vaugirard desligou, mal-humorado, o aparelho e dirigiu-se à
comissária:
— Não sei se fiz bem em esconder-me. Essa ausência está
causando mais sensação ainda. Minha família já deve estar a par
de tudo. De uma forma ou de outra, cheguei a uma resolução. Não
tenho outra alternativa: vou esperar Eduardo e depois irei à reda-
ção do jornal. Contarei tudo, com todos os pormenores possíveis,
e ficarei assim pelo menos livre dessa perseguição ao que parece
até policial.
Eduardo chegou no momento em que o professor acabava de
tomar a sumária refeição. Abriu a porta sem bater e logo contou o
que estava acontecendo e que veio trazer nova parcela a ser acres-
cida ao já fantástico desenvolvimento das ocorrências.
Vaugirard e Leila ouviram-no estáticos.
— A situação complica-se cada vez mais. Não consegui ne-
nhuma comunicação com Santos e, o que é pior ainda, há mais de
quatro horas que não se tem notícia alguma do avião da linha da
Europa. Imaginem só que as estações de controle perderam o con-
tato com êle há várias horas e nenhuma comunicação veio da aero-
nave. As coisas na torre estão sérias! Há um corre-corre tremendo
e esperam por notícias das estações do norte minuto a minuto.
— Que poderia ter acontecido, comandante?
— Não sei, mas a falta de contato somente pode prenunciar
coisa grave. Como o senhor sabe, o aparelho em vôo está em conta-
to permanente com os pontos de controle. Não só transmite dados
sobre sua posição e condições do vôo, como também recebe infor-
mes meteorológicos sobre a rota, altitude a ser mantida, e outras
informações eventuais. O quadrimotor saiu de São Paulo direta-
mente na rota de Dakar, sem escala alguma no Brasil. Essa rota
não é uma reta perfeita, como acontece quase em todos os vôos.
Vai costeando o litoral até mais ou menos à altura de Pernambuco,
e então se desvia e entra na reta sobre o oceano, rumo à África.
Tal procedimento é o mais aconselhável devido às alternativas, aos
campos de pouso no continente em caso de uma emergência.
163
— Qual foi o último contato?
— Foi na altura do Espírito Santo. Depois um silêncio inte-
gral envolveu o vôo número 412. O avião não expediu nenhuma
mensagem e não respondeu aos chamados. A última chamada re-
latou vôo normal, cobertura perfeita da rota e condições atmosféri-
cas excelentes. Depois o silêncio, um silêncio que já excede a esta
altura mais de cinco horas. Logo mais telefonarei ao aeroporto para
saber se há novidade. O tráfego já considerou a situação como de
emergência e, sem publicidade alguma e com toda a discrição pos-
sível, estão sendo expedidos avisos de buscas e localização a todas
as estações de controle e ao barco-farol para cima de Fernando de
Noronha, se é que o avião atingiu esse ponto...
— É comum acontecer isso?
— Não, de maneira alguma. Pelo tempo decorrido, mesmo
que tivesse havido desarranjo nos rádios, o avião já devia estar em
Dakar. Além disso, se ambos os rádios estivessem defeituosos o
comandante tinha obrigação de descer na primeira alternativa, que
seria Vitória ou Salvador ou mesmo Recife. A última mensagem
foi das costas do Espírito Santo. Depois o silêncio... A coisa não
está bem e não se pode deixar de admitir que alguma coisa grave
aconteceu.
Augusto-Michel ia se compenetrando da seriedade da si-
tuação, procurando inteirar-se de outros pontos. — O avião estava
lotado, comandante?
— Inteiramente lotado. Além da carga e da tripulação comple-
ta, levava setenta passageiros, todos com destino a Paris e Lisboa.
Leila, visivelmente perturbada, pediu os nomes dos tripulan-
tes e sugeriu a Eduardo que telefonasse mais uma vez ao tráfego.
Mas durante mais de quinze minutos a linha estava sempre
ocupada, até que foi conseguida a comunicação.
Eduardo ficou um bom tempo escutando as informações, que
lhe davam da companhia. Depois, em atitude desanimadora, diri-
giu-se a Leila e ao professor:
— Não resta dúvida. A coisa é mesmo séria. Depois que o
avião passou por Vitória desapareceu completamente. De acordo
com a última comunicação, tudo ia muito bem e não havia dificul-
dade de espécie alguma. O quadrimotor já foi dado como perdido e
164
todas as providências foram e estão sendo tomadas. Assim que o
dia clarear a força aérea e a companhia iniciarão a limpeza integral
da rota, auxiliadas pela Marinha, que já está a par dos fatos. A
coisa é lamentável!
— Se tivesse havido algum incidente com os motores o avião
não poderia ter descido?
— Poderia, mas quando acontece alguma coisa com os mo-
tores, o que aliás é freqüente e não obriga a descida imediata pois
aquele tipo de avião vôa até com dois motores, a primeira provi-
dência é comunicar-se com a estação mais próxima. Depois, então,
conforme a distância do campo imediato, as condições do motor e
do avião, é que se resolve se é preferível descer de qualquer ma-
neira, com todos os riscos, ou continuar até a próxima alternativa.
Permanece no entanto o contato com as estações de rádio, que
ficam a par de todos os pormenores, sabendo de antemão qual a
providência a ser tomada. Só em casos absolutamente imprevistos,
em que se exige ação imediata, é que o rádio não é usado. Mas,
mesmo assim, depois da operação as informações são divulgadas.
A coisa é bem grave. Não veio nenhuma comunicação e o aparelho
não foi visto em nenhum ponto previsto no plano do vôo.
— E se tivesse descido no mar? Quais seriam as possibilida-
des?
— Não existe regra sobre a amerissagem. Tudo depende do
estado do mar, das condições de pouso. Assim como o avião pode
flutuar por horas e horas sem perigo para os seus ocupantes, pode
também submergir em poucos minutos. Tudo depende das condi-
ções do contato com a superfície e, sobretudo, das condições do
mar. Em águas calmas e espelhadas a descida tem noventa por
cento de probabilidades; ao passo que num mar agitado a situação
se inverte.
O professor encaminhou-se de novo para a janela. Espiou
para fora por segundos e retornou à poltrona, ao lado da qual es-
tavam os jornais. Olhou demoradamente Eduardo e lembrou um
novo ponto a ser adicionado ao fato, ponto esse que lhe pareceu de
suma importância.
— O senhor não acha muito estranho o desaparecimento do
avião em que viajava Santos? A coincidência não é aterradora?
165
— Já relacionei os dois fatos, mas não quero tirar qualquer
dedução antes de saber o que aconteceu. Com desastre ou sem
desastre, logo saberemos o paradeiro do quadrimotor. Um avião
daqueles, novo, de grande autonomia de vôo e grande segurança,
não pode desaparecer sem mais nem menos. Logo algum indício
surgirá. Depois, então, pensaremos nessa coincidência. Mas, pro-
fessor, o senhor acha que teria havido alguma interferência do dis-
co?... — indagou Eduardo, em voz tensa e baixa, não resistindo ao
fluxo do seu próprio pensamento.
Augusto-Michel desde a primeira notícia do desaparecimento
do avião já estabelecera a relação entre os fatos. Santos, o delator,
estava a bordo, e a aeronave desaparecera em condições misterio-
sas.
— Também não quero chegar a nenhuma conclusão preci-
pitada. Mas considero a coincidência de fato aterradora! Não nos
esqueçamos das ameaças de Alik. Consideremos que Santos divul-
gou o que deveria ser mantido em sigilo até ao momento oportuno,
e que o homenzinho falou em “anular”. Desgraçadamente, parece
que o avião sofreu algum desastre. Santos estava a bordo, logo...
— Logo — concluiu o aviador — logo, deve também a esta
hora estar destruído, ou melhor, usando a linguagem do tripulante
do disco, deve ter sido “anulado”.
Leila, ante tais fatos, não conseguia esconder o pavor que a
possuía.
— E nós então? Que irá acontecer-nos? Também seremos
destruídos! Que faremos, Eduardo? Não tenho coragem de entrar
mais num avião. E nós que amanhã à noite vamos voar! Não su-
porto mais tudo isso! Tudo tem um limite. Que faremos, diga, pelo
amor de Deus?
— Calma, calma! Não sabemos ainda nem mesmo o que
aconteceu com o avião. Estávamos apenas exagerando o pessimis-
mo dos nossos prognósticos. Qualquer conclusão é precipitada an-
tes que se saiba o que realmente aconteceu durante o vôo número
412.
— Que faremos agora? — indagou o professor.
— Acho que o senhor deve continuar a pernoitar aqui. Leva-
rei Leila para o apartamento dela e depois irei outra vez ao aero-
166
porto em busca de notícias. Depois, então, conversaremos sobre a
atitude final a ser tomada, principalmente pelo senhor, em face dos
jornais e de sua família.
— Não será melhor avisar a polícia e dizer que estou aqui?
— Acho que não. Durante a noite pouco eles poderão fazer e
antes que amanheça já estaremos com a nossa resolução firmada.
Eduardo e Leila despediram-se do professor e este foi mais
uma vez postar-se junto à janela.
Augusto-Michel Vaugirard já havia chegado a uma decisão.
Não tinha dúvidas de que o avião fora destruído pelo disco, des-
truído ou “anulado” de qualquer maneira, e tinha certeza de que
a destruição visava o cumprimento das ameaças. Santos pagara a
sua leviandade arrastando consigo quase oitenta vidas inocentes.
Alguma coisa dizia a Vaugirard que nunca mais seria encontrado
traço algum do quadrimotor, cujo misterioso desaparecimento iria,
como em inúmeros casos semelhantes, figurar nos anais da histó-
ria da aviação como acontecimento inexplicável. Era preciso agir
rapidamente, pois temia agora também por sua vida. A decisão era
simples: arcaria com todas as conseqüências. Esperaria comuni-
cação de Eduardo e depois iria à redação do jornal que divulgara
a história. Contaria todos os acontecimentos, revelaria tudo o que
sabia sobre os discos e os seus tripulantes, entregaria os seus ar-
quivos aos interessados, enfim, nada mais seria mantido em se-
gredo. Não revelaria, apenas, a participação de Eduardo e Leila.
Quanto àquela caixa de transmissão, não lhe pertencia. Havia sido
enviada a Eduardo e com êle a deixaria. Essa era a única atitude a
tomar. Depois, depois, então aguardaria as conseqüências. Se pre-
ciso, solicitaria proteção policial e somente tinha certeza de uma
coisa: os fatos relatados por êle, professor universitário, cientista
de renome, teriam conseqüências bem mais sérias do que relata-
dos pelo obscuro rádio-telegrafista. Seu prestígio estaria em jogo e
talvez conseguisse ainda abrir os olhos da humanidade e salvá-la
do fim pavoroso que a ameaçava. Disso tinha certeza. Ninguém
ousaria duvidar de seu prestígio, de sua ética científica e de suas
palavras. Talvez pudesse ainda fazer alguma coisa antes que as
sanções de Alik desabassem sobre a sua pessoa. O essencial era
cumprir o seu dever de homem de ciência. Com a decisão tomada,
167
o professor passou a sentir algum alívio e nova sensação de bem-
estar invadiu-lhe o corpo. Ajeitou-se melhor na poltrona, cerrou as
persianas e procurou dormir por algumas horas.
Eduardo deixou Leila em seu apartamento e dirigiu-se à pres-
sa ao aeroporto. No fundo, já desvendava toda a tragédia do vôo
412 e dava o quadrimotor como destruído. Não quis dizer nada ao
professor, sobretudo para não amedrontar a comissária, mas tinha
certeza de que uma força imponderável devia ter atuado sobre a
aeronave e provocado o seu desaparecimento. As ameaças tinham
se concretizado. Como piloto, mais do que ninguém sabia o que re-
presentava uma perda de contato por algumas horas. Quando isso
ocorria era um prenuncio de desastre.
Ao subir à sala do tráfego, viu que a confusão era grande. A
imprensa já estava a par do desaparecimento do avião e tinha as-
sim um segundo grande assunto para as edições matutinas. Edu-
ardo fêz ligeiras indagações a vários funcionários seus conhecidos
e viu que a situação estava cada vez mais complicada. A aeronave
tinha sido dada como perdida e as buscas oceânicas já haviam co-
meçado por parte da Marinha, mas até agora sem resultado algum.
Felizmente, ninguém tinha até o momento estabelecido relação en-
tre a presença de Santos na tripulação e a história do disco-voador.
Procurou contornar a multidão que ali estava, inclusive dezenas
de parentes de passageiros, e penetrou na sala do encarregado do
tráfego. Uma vez lá dentro, não teve coragem de aproximar-se da
mesa ao redor da qual estava grande parte da diretoria da empresa.
Encostou-se ao canto, ainda em tempo de escutar as últimas pala-
vras do encarregado aos diretores:
— Todas as providências foram tomadas. Até agora, quase
uma hora da manhã, nada de novo soubemos. Infelizmente, penso
que a aeronave pode ser dada como perdida, embora as buscas
devam intensificar-se com o clarear do dia. Consulto os senhores
se devo fazer o clássico comunicado à imprensa, pois lá fora eles já
sabem de tudo.
Eduardo não quis ouvir mais nada. Considerava o caso en-
cerrado. O que o preocupava agora era o seu vôo no dia seguinte,
bem como qual o fim que tivera o rádio-telegrafista. Se antes de
decolar soubesse pelo menos o que acontecera à aeronave! Pelo
168
menos que tipo de acidente sofrerá! Onde caíra ou onde descera!
Resolveu ficar no aeroporto até ao amanhecer. Sua preocu-
pação era tanta que não tinha sono algum. Iria para a sala do
plantão, tomaria um comprimido e procuraria dormir um pouco.
Assim, pelo menos, se houvesse alguma novidade saberia imedia-
tamente. Ao contrário do professor que com a sua resolução firma-
da encontrara a calma, o aviador estava agora possuído de intensa
agitação. Pensava no seu vôo. Iria dentro de vinte e quatro horas
cobrir a mesma rota. Santos havia delatado e tivera a recompensa.
Êle também integrara a expedição. E, de mais a mais, era o res-
ponsável por tudo. Que lhe sucederia? Como surgiria a destruição
no espaço?
Tomou um sedativo, deitou na cama desmontável, na sala
de plantão, mas não conseguiu pregar os olhos, esperando que as
primeiras luzes da madrugada produzissem reflexos na linha de
aviões que lá fora repousavam cobertos pelo sereno da noite, agora
fria e úmida.
Nada mais restava senão uma longa espera.

O dia custou a surgir. Primeiro, uma leve claridade lá pelo


fim da pista número um, a qual foi pouco a pouco aumentando e
delineando os contornos indecisos de nuvens escuras acima da li-
nha do horizonte. O frio aumentara e uma névoa rasteira escondia
os aviões espalhados pelo pátio de manobras, junto aos hangares e
em linha paralela à pista principal.
As estruturas emitiram os primeiros brilhos, com seus con-
tornos duvidosos, como se fossem monstros metálicos dissimula-
dos na penumbra. Eduardo acomodou-se melhor na cama de vento
e dali de onde estava não podia deixar de contar os aviões que
via esparramados por todos os cantos. O enorme quadrimotor era
o que mais brilhava e, à medida que a luz ia aumentando, já se
podiam distinguir suas asas molhadas, escorrendo orvalho pelos
bordos de fuga, como se acordando de um grande sono. Os BC-3,
pequenos esguios, contrastavam com os Curtiss-Comando e os
Convairs, e os três ou quatro quadrimotores logo se destacavam
169
pelo porte alto e majestoso.
De fato, o aviador passara a noite sem dormir. O comprimido
só lhe produzira certa letargia, graças a qual conseguiu esquecer
a fantástica realidade que tinha a enfrentar. Mas logo que tomou
consciência da realidade, Eduardo recordou-se dos fatos e, erguen-
do-se, foi ao cômodo ao lado para uma ablução sumária. Quando
chegou ao tráfego, somente encontrou os operadores.
— Tiveram alguma notícia do vôo 412?
— Nada, comandante. Nenhuma notícia. As buscas continu-
am, mas já perdemos as esperanças de uma aterrissagem bem su-
cedida. Penso que até ao meio-dia teremos novidades. A força aérea
já iniciou as buscas e três aparelhos nossos, do Rio e de Recife,
estão vasculhando a rota.
Eduardo encaminhou-se para o bar semi-deserto e de luzes
ainda acesas e resolveu ir para o apartamento. Nada mais poderia
fazer ali e poderia esperar em qualquer lugar. Logo mais, pela tarde,
teria que decolar e devia tomar antes algumas providências. Estava
quase resignado. A sensação que sentia não era bem de medo. Era
como se estivesse no escuro, perseguido por um inimigo invisível
que o atingiria inapelavelmente. Não havia como defender-se.
Até àquele momento não sabia que Leila, a comissária, es-
tava escalada na mesma tripulação. Se o soubesse, estaria ainda
mais aturdido.
Esquentou o motor do carro e quando procurou a saída do
aeroporto já os primeiros aviões da madrugada começavam a mo-
vimentar-se. Roncos surdos e cavernosos vinham da cabeceira da
pista, como que vaticinando ao aviador tenebrosos acontecimen-
tos. Fêz o trajeto automaticamente. Ao chegar, abriu a porta do
quarto sem fazer barulho.
Antes de despertar Vaugirard pretendia tomar um banho e
barbear-se. A janela filtrava já uma luz forte e não conseguiu ver
o professor em parte alguma do apartamento. Estranhou o fato e
chamou em voz alta. Nada. Abriu a porta do banheiro e, como res-
posta, encontrou um bilhete colado no espelho sobre a pia.
Leu:

170
“Caro amigo. Não se preocupe por mim. Já tomei minha
decisão. Seu nome e o da sua companheira não serão jamais
mencionados. Irei a todas as redações de jornais agora à noi-
te e contarei tudo, sim, tudo o que nos aconteceu. Não tenho
dúvida de que serei bem recebido e que, graças ao meu nome
e ao meu prestígio científico, não serei tido como louco. Não
encontrei outra solução. Arcarei com as conseqüências de
meu ato e, haja o que houver, sentir-me-ei bem recompen-
sado por ter revelado à humanidade o mistério dos discos--
voadores. A caixa, o visor-transmissor, deixo ern seu poder.
Ela lhe pertence e só o senhor poderá dar-lhe destino. Deixo,
também, a relação das outras comunicações, que ficarão ao
seu critério. Repito: não revelarei seu nome em hipótese al-
guma. Em troca só lhe peço um favor: nada também revelar
a meu respeito e nada divulgar sobre sua participação na
aventura. Declaro solenemente que assumo inteira responsa-
bilidade de meu ato, o que deve deixá-lo tranqüilo”.

Por essa Eduardo não esperava! Eram mais de seis horas da


manhã e não tinha dúvida de que todos os jornais daquele incrível
sábado publicariam sensacional relatório do professor. Estava tão
aturdido que nem podia raciocinar. Sentou-se e mais uma vez ficou
inerte, aguardando o decorrer das horas.
Nesse segundo repouso, viu-se surpreendido por um sono
profundo.
Às nove horas, tornou à realidade com o tilintar insistente do
telefone. Meio sonolento, ainda, compreendeu que era Leila.
— Alô, Eduardo? Eduardo? Viu os jornais? Que aconteceu
com o professor?
— Já sei de tudo, Leila. Acalme-se. Não vi os jornais, mas
sei exatamente o que aconteceu. Vaugirard saiu daqui logo depois
que fomos embora, deve ter sido lá pela uma hora, e foi a todas as
redações. Deixou um bilhete explicando a razão desse procedimen-
to, dizendo que enfrentaria todas as conseqüências de seu ato. Os
jornais dão alguma novidade do avião?
— Nada. Sabem apenas que está perdido e que são mínimas
as esperanças de ser encontrado. O pior de tudo é o que estão di-
171
zendo a respeito do professor...
— Que é que estão dizendo?
— Você nem calcula! Você tinha razão quando disse a êle que
suas declarações poderiam não ser levadas em consideração. O
coitado, se já viu os jornais, deve estar arrasado! Nenhum dos três
jornais que comprei levou a coisa a sério. Um deles fala mesmo que
“continua a epidemia de loucura em torno dos discos-voadores”,
acrescentando que a mania atacou agora, lamentavelmente, um
professor íntegro, conceituado e honesto. Imagine que outro, como
fizera com Santos, aconselha um exame mental na pessoa de Vau-
girard e sugere que a Universidade providencie sua interdição. Ou-
tro jornal, então, o mesmo que deu a notícia de Santos, passou a
levar tudo no ridículo, chamando o professor de “gênio alucinado”.
Um deles chama-o de “professor de história em quadrinhos”.
Eduardo mal podia crer no que escutava. Despediu-se de Lei-
la, marcou um encontro para o almoço e dirigiu-se ao chuveiro
para um banho reconfortador.
Sim. Não se enganara. O professor evidentemente tinha ca-
ído em desgraça. Para êle, para um homem do seu temperamento
e com a sua honestidade, a reação do público era uma sentença
condenatória final. Bem que advertira Augusto-Michel. O nome, a
capacidade, o prestígio científico, o cargo que ocupava não eram
elementos suficientes para convencer a opinião pública e dar um
mínimo de credibilidade à fantástica aventura. Se, pelo menos,
restasse o filme! — lamentou Eduardo. — Augusto-Michel Vau-
girard fora crédulo demais. Saindo de dentro de sua honestidade,
superestimara a honestidade alheia e ali estava agora, livre de seu
segredo e em paz com a sua consciência, mas caído em desgra-
ça, acossado por uma legenda de ridículo. Sua história aniquilaria
todo o seu passado e destruiria sua vida. Eduardo deteve-se neste
pensamento. Sim, destruiria sua vida. Depois de tais entrevistas,
quem mais poderia levar a sério o eminente professor da Univer-
sidade? Lembrou-se num relâmpago das palavras de Alik, em pé,
com aquele perfil esguio e luminoso, junto à porta de entrada do
disco. O professor tinha sido em verdade arrasado, destruído.
Não seria essa, porventura, uma forma positiva e moral de
anulação?
172
Lendo os jornais no café inteirou-se do que lhe havia afirma-
do Leila. Ninguém levara o homem a sério. Lá estavam as notícias
lançando o professor num purgatório de irrisão e chacota.

“Professor alucinado declara que viajou no Disco-Voa-


dor. Aumenta a epidemia dos contagiados. Quem será o outro
a aparecer? O professor da Universidade deve ter sofrido uma
alucinação. Recado ao governador: providencie-se imediata-
mente um exame mental nos professores da Universidade”.

Não havia dúvida. A ameaça de Alik caíra sobre a segunda


vítima. Nada mais seria preciso. A desforra fora inteira e perfeita.
Crime bem planejado, sem traço algum da respectiva autoria. O
honesto e ilustre professor Augusto-Michel Vaugirard fora aniqui-
lado, destruído como homem e como ser pensante. Em duas pala-
vras — caíra no ostracismo — fora “anulado”.
E agora, que mais aconteceria?
Dois dos personagens da fantástica aventura já se encontra-
vam fora do cenário, como castigo pela traição. Que aconteceria
agora aos dois restantes?
A essa altura final dos acontecimentos, o comandante Edu-
ardo Germano de Resende já chegara, também, à sua resolução
definitiva e, portanto, não mais queria pensar no assunto. Enquan-
to andava em direção ao carro, com a maleta de mão já preparada
para o vôo, não mais pensava em discos e nem no destino do avião
da linha internacional, mas somente acariciava no bolso o visor-
transmissor dentro de seu invólucro de veludo vermelho.
No decorrer do dia, nenhuma novidade se soube a respeito
do quadrimotor. As buscas tinham sido infrutíferas e era já oficial-
mente reconhecido que o aparelho número 1.853, das Linhas Aé-
reas Reunidas, desaparecera sobre o oceano, com perda de muitas
vidas. A companhia distribuíra o comunicado oficial e as buscas
visavam agora os destroços da aeronave.
Cada vez mais consciente da sua resolução, Eduardo contou
a Leila o que pretendia fazer. Era o que lhe restava, rompendo-se
inevitavelmente todos os traços de ligação com a aventura.
O vôo dessa tarde vinha mesmo a calhar e poria um fecho nos
173
malfadados acontecimentos.
Era a única solução possível. Sozinho, nada mais poderia fa-
zer. De que valeria sua palavra contra o resto da humanidade?
Os homens que esclarecessem por si mesmos o grande mis-
tério ou, então, que pagassem com o final pavoroso o penhor de
seus reiterados desatinos e crueldades. Êle nada poderia fazer. A
humanidade haveria de descobrir, um dia, por si mesma, o gran-
de mistério e, se antes não se autodestruísse, talvez desse crédito
ao ultimato dos discos-voadores e retornasse ao caminho do bem.
Quanto a êle, Eduardo, estava resolvido: quando voassem em pleno
oceano, romperia o derradeiro laço que o ligava aos habitantes das
cidades subterrâneas.
Depois da última escala, estavam já na quarta hora do vôo,
nas alturas do ponto de retorno. A tripulação inteira dormia, a ex-
ceção do navegador e do segundo-oficial. Tudo decorria dentro da
mais absoluta normalidade. As agulhas equilibravam-se em seus
pontos exatos, os quatro motores rugiam harmônicamente, e pelos
trezentos e sessenta graus ao redor da aeronave, a dois mil metros
de altitude, uma redoma azul profunda, recamada de astros, pre-
nunciava tempo magnífico.
Eduardo ligou o piloto automático e comprimiu o botão, cha-
mando a comissária. Leila não se fêz esperar. Estava a par de tudo.
Passou devagar ao lado dos companheiros adormecidos e foi ter
à cabina, na ponte de comando, onde só Eduardo se encontrava.
Quando entrou, Eduardo não pronunciou uma só palavra. Esprei-
tou o navegador e executou rapidamente o plano: tirou o visor-
transmissor do bolso, desembrulhou-o do veludo vermelho e abriu
parte da escotilha lateral, por onde se viam lá um pouco para trás
os dois motores estrugindo, com os escapamentos em brasa. Olhou
um segundo para Leila e, com um impulso forte e resoluto, atirou
no espaço a, caixa metálica.
O último laço havia sido rompido. A aventura pertencia agora
ao passado e o mistério retornara sobre a última prova material do
fantástico episódio.
O comandante apertou bem o braço de Leila e rumou para
fora da cabina, deixando que o quadrimotor mergulhasse cada vez
mais na escuridão hiante da noite.
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