Literaturas, Memórias e Oralidade

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Literaturas, Memórias e Oralidade

Organização
Raquel Alves Ishii
João Marcos Vaz Luckner

Nepan Editora
Rio Branco - Acre
2020
Editora do Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-Amazônicas
www.nepaneditora.com.br | [email protected]

Diretor administrativo: Marcelo Alves Ishii


Conselho Editorial: Agenor Sarraf Pacheco (UFPA), Ana Pizarro (Universidade de Santiago do Chile), Carlos André Alexan-
dre de Melo (Ufac), Elder Andrade de Paula - (Ufac), Francemilda Lopes do Nascimento (Ufac), Francielle Maria Modesto
Mendes (Ufac), Francisco Bento da Silva (Ufac), Francisco de Moura Pinheiro (Ufac), Gerson Rodrigues de Albuquerque
(Ufac), Hélio Rodrigues da Rocha (Unir), Hideraldo Lima da Costa (Ufam), João Carlos de Souza Ribeiro (Ufac), Jones Dari
Goettert (UFGD), Leopoldo Bernucci (Universidade da Califórnia), Livia Reis (UFF), Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro (Ufam),
Marcela Orellana (Universidade de Santiago do Chile), Marcello Messina (UFPB/Ufac), Marcia Paraquett (UFBA), Marcos
Vinicius de Freitas Reis (Unifap), Maria Antonieta Antonacci (PUC-SP), Maria Chavarria (Universidade Nacional Maior de
São Marcos, Peru), Maria Cristina Lobregat (Ifac), Maria Nazaré Cavalcante de Souza (Ufac), Miguel Nenevé (Unir), Raquel
Alves Ishii (Ufac), Sérgio Roberto Gomes Souza (Ufac), Sidney da Silva Lobato (Unifap), Tânia Mara Rezende Machado
(Ufac).

Ficha Técnica
Organizadores: Raquel Alves Ishii, João Marcos Vaz Luckner
Revisores: Adriana de Sá Marques, Aline Kieling Juliano Honorato Santos, Ana Cláudia de Souza Garcia, Ednaldo Tartaglia
Santos, Eduardo Alves Vasconcelos, Gisélia Maciel Gabriel, Julia Lobato Pinto de Moura, Keyse Kerolayne Levy, Layla Ka-
rinne Nascimento Silva, Nina Maria de Sousa Veras, Sara Lavinha Vieira Neri, Siméia da Silva Souza, Yurgel Pantoja Caldas,
Queila Barbosa Lopes.
Copidescagem: Estefany France Cunha da Silva
Projeto Gráfico: Raquel Ishii
Diagramação: Marcelo Ishii
Realização e Apoio:

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L776
Literaturas, memórias e oralidade / organização Raquel Alves Ishii, João Marcos Vaz
Luckner. – Rio Branco: Nepan Editora, 2020.

304 p.: il.

E-book em formato PDF.


Inclui referencias bibliográficas.
ISBN: 978-65-89135-02-9

1. Literatura. 2. Memórias. 3. Oralidade. I. Ishii, Raquel Alves. II. Luckner, João Mar-
cos Vaz. III. Título.
CDD 22. ed. 907.2
Bibliotecária Maria do Socorro de O. Cordeiro – CRB 11/667
Sumário

Palavras iniciais
Livia Reis. . ........................................................................................................................................................................ 7
Sobre afetividades transnacionais, luto e luta
Raquel Alves Ishii.........................................................................................................................................................10
Malinche: a “língua” (re)significada na narrativa de Laura
Esquivel e Juan Miralles
Suerda Mara Monteiro Vital Lima, Carlos David Larraondo Chauca. . ....................................................... 11
De eróticas y deseos: Cuando Sara Chura despierte o la negación
de la continuidad perdida
Cesar Augusto Mendoza-Quiñones. . .....................................................................................................................28
La migración y el viaje como forma de desplazamiento en las
Américas en Más Allá del Invierno, de Isabel Allende
Luana Yakira Rodrigues Mendes, Tatiana da Silva Capaverde . . .............................................................. 39
Um olhar decolonial sobre a obra de Flausino Valle
Leonardo Vieira Feichas, Letícia Porto Ribeiro. . .............................................................................................. 49
Recepção dos contos de A cidade ilhada, de Milton Hatoum
Emilly Monique Oliveira Silvano, Juciane dos Santos Cavalheiro. . ......................................................... 60
“Ya somos cuerpos de índias castigadas, para qué más
dolor”: o discurso ameríndio como desar ticulador político da
modernidade nas crônicas de Pedro Lemebel
Carlos David Larraondo Chauca, Suerda Mara Monteiro Vital Lima. . ..................................................... 75
Entre narrativas amazônicas: a Amazônia narrada pelo outro
Emilly Nayra Soares Albuquerque........................................................................................................................92
Leituras sobre a trajetória do Grupo Semente de Teatro Amador
em Rio Branco - Acre
Emilly Nayra Soares Albuquerque...................................................................................................................... 106
O herói cego: Yuyachkani e a leitura da história a contrapelo
Laura Gomes dos Santos..........................................................................................................................................117
Regionalismo em trânsito na obra Dois Irmãos de Milton Hatoum
Ana Maria de Carvalho.......................................................................................................................................... 128
Uma leitura da metaficção historiográfica O filho da mãe de
Bernardo Carvalho
Vinícius Ferreira dos Santos...................................................................................................................................137
Travessias contemporâneas: dinâmicas culturais no romance Munduruku
Randra Kevelyn Barbosa Barros .......................................................................................................................... 148
“O Outro do outro”: considerações iniciais sobre representações
de mulheres negras em veículos acreanos de comunicação
Jaine Araújo da Silva, Francielle Maria Modesto Mendes. . ..........................................................................161
A sexualização do corpo e a inferiorização da figura feminina
em Maibi, de Alberto Rangel
Bruna Wagner. . ........................................................................................................................................................... 177
A bolsa de fio de nylon Maxakali: poética e similitude
Cássia Macieira......................................................................................................................................................... 194
A representação da infância em Clarice Lispector: uma leitura
dos contos Felicidade clandestina e Cem anos de perdão
Patricia de Souza Caboclo, Marta Francisco de Oliveira . . .........................................................................204
Representações, contraposições e poder na literatura indígena
brasileira e na literatura indígena colombiana
Leandro Faustino Polastrini.................................................................................................................................... 216
Oralidade e representação feminina em narrativas do cárcere
Maria Aparecida de Barros. . .................................................................................................................................. 231
Análise do poema Ação e Reação, de Elias Bezerra, a par tir das
perspectivas históricas e pós-coloniais
Henrique Pereira Galvão, Ronilson de Sousa Lopes. . ................................................................................... 242
Fruturbano: um retrato da sociedade manauara por Otoni Mesquita
Karen Rafaela da Silva Cordeiro, Luciane Viana Barros Páscoa............................................................ 253
O luto, a morte e suas representações ar tísticas no filme The Babadook
Rafael Adelino Fortes, Regiane Casusa Louber ...........................................................................................264
Sobre a morte e o morrer: a questão do suicídio assistido no
filme Coração Mudo de Bille August
Rafael Adelino Fortes, Renato Pereira da Silva Junior................................................................................ 276
O Noroeste Amazônico: notas de alguns meses que passei entre
tribos canibais de Thomas Whiffen: uma análise do Capítulo IX
referente à alimentação dos Bora e Uitoto
Quelmo da Silva Lins, Raylan Felipe Macedo Setúbal............................................................................... 288
Sobre os/as autores/as ................................................................................................................. 299
P alavras iniciais

F
oi uma alegria, além de um prazer e uma honra, receber o convite dos
organizadores, para escrever algumas palavras, à guisa de introdução a
este belo livro que a Universidade Federal do Acre está lançando, com
trabalhos de estudantes e pesquisadores que participaram das XIX Jornadas de Literatura
Latino Americanas de Estudantes, JALLA-E. O evento foi realizado na UFAC, em outubro
de 2020, de forma remota, com grande adesão de centenas de estudiosos, não apenas do
Brasil, mas de diferentes países da América Latina.

Em tempos de pandemia, que assola nossa saúde e torna a morte uma presen-
ça nefasta em nossas vidas, e de um pandemônio político-jurídico, que nos rouba a saúde
mental, os eventos acadêmicos remotos, realizados em plataformas on-line, têm se mostra-
do lugar de alegria, de reflexão, de trocas acadêmicas e afetivas, de forma ainda mais con-
tundente do que sempre foram na vida antes do confinamento. A solidão e o afastamento
que vivemos ao longo do ano transformaram esses eventos em um dos poucos espaços que
dispomos para exercitar nossa convivência afetiva, emocional e intelectual, para além do
recolhimento de nossas casas.
Foi um grande acerto a equipe da UFAC ter decidido organizar essas Jornadas,
contra tudo e contra todos, não apenas pela qualidade dos trabalhos apresentados nas di-
ferentes mesas e simpósios e pelo alto nível dos debates que aconteceram ao longo dos três
dias, mas, sobretudo, para reafirmar o lugar das JALLAs como um espaço transnacional,
latino-americano, aberto à reflexão, ao diálogo e ao compartilhamento de sonhos e utopias.
Lugar da amizade, do luto à luta, como nos conta Raquel Ishii, no texto que abre o volume.
Este livro é a prova de que estamos vivos e ainda capazes de pensar, refletir e de
exercitarmos uma crítica aos tempos que nos toca viver.
Os textos que compõem a coletânea são o exemplo dos temas que ocupam a cri-
tica literária, cultural e de estudos linguísticos no momento. Estudos de gênero, literatura
feminina, estudos pós-coloniais, decoloniais, literaturas indígenas e amazônicas, possibili-
tando a construção/invenção de outros olhares, sensíveis, capazes de perceber as diversas
literaturas de todo o continente. Como em outras JALLAs, o mais importante é a ressigni-
ficação do andino em latino-americano.
A utopia, o sonho e os afetos caminham juntos com a reflexão. São esses os pas-
sos da trajetória que este livro trata de resgatar e de consolidar.

Livia Reis
Professora Titular de Literatura Hispano- americana
Universidade Federal Fluminense

Sumário 7
S obre afetividades transnacionais ,
luto e luta

E
sta obra é fruto do trabalho de pesquisa de estudantes e professores de
distintas partes da América Latina que se encontraram virtualmente, por
ocasião da realização da 19ª edição das Jornadas Andinas de Literatura
Latinoamericana de Estudantes, promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras:
Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre, no período de 7 a 9 de outubro de
2020.
Nos marcos do evento, em meio à pandemia de COVID-19, o Brasil atingia mais
de 148 mil mortes oficialmente registradas em decorrência da doença e, ao término do ano
de 2020, no momento em que redigimos esta apresentação, o horror se agrava ainda mais ao
nos aproximarmos das 200 mil vidas perdidas. Além de amargar esse número - que não para
de crescer –, seguimos imersos em um obscurantismo de extrema direita que, por vezes, nos
impede de ver uma luz do fim desse tenebroso túnel. O início da vacinação em vários países,
incluindo alguns da América Latina, e uma clara ausência de planejamento para a imuniza-
ção no Brasil, evidencia cada vez mais a face de um governo negacionista que aposta não
apenas contra a ciência, mas contra a educação.
As universidades públicas têm sido constantemente atacadas com contingencia-
mentos e cortes de recursos financeiros, com intervenções em processos eleitorais de reito-
res, aliadas à uma cruzada ideológica que as define como lugar de balbúrdia e doutrinação
de esquerda, artificializando cenários que justifiquem tais ataques.
Em abril de 2020, pensamos em cancelar a realização das jornadas estudantis, pre-
vistas para ocorrerem presencialmente na cidade de Rio Branco, Acre, na parte sul-ocidental
da Amazônia brasileira. Não poderíamos ter tomado decisão mais acertada ao decidirmos
manter sua realização, ainda que na modalidade on-line, como forma de resistir não ape-
nas ao isolamento social provocado pela pandemia, mas também a uma política de morte,
que se alimenta de nossa tristeza e desânimo para seguir seu curso. Tendo clareza de que os
mortos não são números, mas mundos inteiros que se perderam, nossos encontros virtuais

Sumário 8
tornaram-se, assim, uma homenagem à memória das vidas perdidas pela COVID-19 e pela
negligência de governantes.
Durante três dias, pesquisadores de distintas partes do continente se dispuseram
a debater os mais variados temas, envolvendo especialmente literatura, línguas, práticas de
ensino, memória, oralidade e a própria situação da pandemia, buscando refletir e articular
mundos andinos e amazônicos. Ao mantermos a convocatória das jornadas de estudantes,
419 pessoas atenderam a esse chamado. No Brasil, tivemos inscritos de 23 estados, além do
Distrito Federal, com destaque para os estados do Acre, Rondônia, São Paulo, que tiveram o
maior número de inscrições. De igual modo, atenderam nosso chamado estudantes-profes-
sores-pesquisadores do Equador, Chile, Peru, México, Bolívia, Argentina e Estados Unidos
que se alternaram nas apresentações de 146 comunicações orais apresentadas em nossos
Simpósios Temáticos e Sessões de Comunicações Livres. Este atendimento à nossa convo-
catória, ao mesmo tem em que representou para nós o sucesso do evento, motivou nossa equipe
de organização a transformar luto em luta.
Em um ano tão desafiador, os percalços teriam sido maiores não fosse a constru-
ção coletiva das ações empreendidas até a presente data. A colaboração veio de distintas for-
mas e de diferentes lugares, tecendo uma rede de solidariedade entre pessoas e instituições.
Assim, não seria possível chegar até aqui sem o apoio dos Programas de Pós-Graduação
da Região Norte da Área de Linguística e Literatura que compõem a Rede de Cooperação
Acadêmica Norte, cujas indicações de seus estudantes de pós-graduação para a composição
das Sessões Temáticas possibilitaram a criação de um espaço de trânsito de saberes entre a
pesquisa produzida na Amazônia brasileira e a de outras partes do continente.
De igual modo, a participação dos secretários das Jornadas Andinas de Literatu-
ra Latinoamericana, em especial, dos professores Gerson Albuquerque, Márcia Paraquett e
Lívia Reis, Secretários Jalla-Brasil, Maurício Ostria (Chile), Sophia Yanez (Equador), Maria
del Rosário (Bolívia), Macarena Areco (Chile), Magda Zavala (Costa Rica), Maya Aguiluz
(México) e Elizabeth Monasteiros (Estados Unidos) foi determinante o sucesso do evento. O
cuidado e a generosidade com que acolheram e acolhem as jornadas estudantis poderiam ser
metaforicamente representados pelo aguayo - este tecido de origens andinas que simboliza
as jornadas estudantis e que tem por função, dentre outras, carregar crianças junto ao corpo
de suas mães, até que possam caminhar com seus próprios pés. Mais que uma tarefa acadê-
mica, as jornadas estudantis se constituíram em uma rede de afetividades transnacionais, de
incentivo e solidariedade entre todos os jallistas, sejam estudantes, professores e pesquisado-
res independentes que participaram do evento.
Uma palavra tem sido sempre associada às jornadas andinas: família. Uma famí-
lia transfronteriça e multicontinental, por assim dizer, articulada pela busca de se fortalecer
e manter-se sensível e conectada às muitas realidades – ou muitos mundos – em uma pers-
pectiva não antropocêntrica e não colonial. Aqui os limites e as fronteiras são vistos mais
como lugares de encontros e intercâmbios do que como lugares de delimitações e isolamentos.
A publicação dos E-Books Literaturas, Memórias e Oralidade e Letramentos e Práticas
de Ensino cumpre esse papel de dar continuidade ao movimento de solidariedade que atra-
vessou as jornadas, permitindo o acesso livre a um público amplo dos resultados de pesqui-
sas e reflexões acadêmicas. Os artigos foram selecionados e agrupados por suas temáticas,

Sumário 9
alinhados a partir de uma perspectiva editorial com vistas a difundir resultados de reflexões
e estudos na área da literatura, ensino de línguas, artes e humanidades. É a continuidade de
um chamado ético, artístico, filosófico e político que segue ecoando, desde o mês de outubro
de 2020, e que, ao mesmo tempo, rende homenagem aos que partiram e aos resistem ao caos
político de governos autoritários e fascistas. Um chamado que revigora nossas utopias e nos
incentiva a recriar espaços, ainda que virtuais, para seguir nos encontrando, nos intercam-
biando e sonhando com um mundo em que caibam vários mundos1.
Na esteira das reflexões de Enrique Dussel, esperamos que possamos continuar
a ecoar, ainda que de forma virtual, nossas leituras e vozes em defesa da ética primeira: a
ética da vida.

Inverno amazônico, dezembro de 2020.


Rio Branco - Acre, Brasil.
Raquel Alves Ishii
Universidade Federal do Acre

1  Quarta Declaração da Selva Lacandona, publicada em 1º de outubro de 1996, pelo Comitê Clandestino Revolucionário
Indígena - Exército Zapatista de Libertação Nacional

Sumário 10
M alinche : “ língua ” ( re ) significada
a
na narrativa de L aura E squivel e
J uan M iralles

Suerda Mara Monteiro Vital Lima


Carlos David Larraondo Chauca

C
erteau indica que “escrever é possuir”.1 Tal empresa, para ele, se apre-
senta como a lógica que impulsiona e ordena a “descoberta” do “Novo
Mundo”, por isso é que se estabelece a partir daí uma outra dinâmica
da escrita, que “torna-se o instrumento de um duplo trabalho que se refere, por um lado, à
relação com o homem ‘selvagem’, por outro à relação com a tradição religiosa”.2 Como a
possessão ou domínio se “fabula” /cria/elabora no campo narrativo, Certeau adverte que é
de vital importância fixar-se nas histórias, crônicas ou relatos de viagem, porque a constru-
ção desse discurso ou dessa “lenda científica” indica o que, como e quem deve ler,
recompondo as representações que eles se dão, essas “lendas” simbolizam as alte-
rações provocadas numa cultura pelo seu encontro com uma outra. As experiências
novas de uma sociedade não desvelam sua “verdade” através de uma transparência
desses textos: são aí transformadas segundo as leis de uma representação científica
própria de uma época. Dessa maneira os textos revelam uma “ciência dos sonhos”; formam
“discursos sobre o outro”, a propósito dos quais se pode perguntar o que se conta aí, nessa
região literária sempre decalada com relação ao que se produz de diferente (grifo nosso).3

É possível observar que Certeau indica uma questão fundamental, que diz res-
peito ao método que funda uma prática epistemológica pautada na escrita e no documento,

1 CERTEAU, Michael de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2017, p. 273.
2 Ibid., p. 223.
3 Ibid., p. 224.

Sumário 11
como se o arquivo portasse a “verdade”. No entanto, é preciso atentar para a “maneira de
fazer o texto”,4 porque para ele “ ‘fazer o texto” é ‘fazer a teoria’ e tudo que está perpassado
pela linguagem está distante de ser uma ciência, “a teoria se exerce a partir e no interior
da ficção”, já que tal trabalho se delineia pela capacidade articulatória, sempre traduzida
por deslocamentos e inversões. Portanto a operação escriturária produz, preserva, cultiva
“verdades” imperecíveis, que elaboram e narram o tempo/espaço, fabricando o lugar que o
“selvagem” deveria preencher nessa relação narrada/ficcionalizada com o outro.
Nesse processo escriturário que se converteu na lógica de construção da “verda-
de” e do “mundo”, muitos documentos se monumentalizaram, como problematiza Derrida.5
Entre tais “fontes documentais” poderíamos citar as cartas ou relaciones de Hernán Cortés,
a Historia verdadera de la conquista de la Nueva España, de Bernal Días del Castillo, ou ainda a
Historia General de las cosas de Nueva España, do Fray Bernardino de Sahagún, assim como as
narrativas de Oviedo, Gómara, Torquemada ou Salazar, todas narrativas que se elaboram,
tomando emprestada a metáfora a Walter Benjamin, com a urdidura do esquecimento, uma
tapeçaria tecida pelo esquecimento, ornada de olvido.6 No processo hermenêutico de “in-
venção” da América, comungando com as ideias de Dussel,7 ocorre um encobrimento do
Outro e não sua “descoberta”, posto que se apresenta
uma Europa que se auto-interpreta (...) como “centro’ do Acontecer Humano em
Geral, e por isso desenvolve seu horizonte “particular” como horizonte “universal”
(...) os habitantes das novas terras descobertas não aparecem como Outros, mas
como o Si-mesmo a ser conquistado, colonizado, modernizado, civilizado (...). E foi
assim que os europeus (...) se transformaram (...) “nos missionários da civilização
em todo o mundo, (...) com “os povos bárbaros”.8

Nesse processo colonizatório violento, comprometido com o horror, a morte e a


destruição, Dussel aponta uma figura central, o “ego conquiro”, que ele analisa como sendo
o “primeiro homem moderno, ativo, prático, que impõe sua “individualidade” violenta a
outras pessoas, ao Outro”.9 É essa figura guerreira, bélica, militar, falocêntrica que grafa to-
dos os espaços, sejam corpóreos, sejam geográficos com a tinta do controle. O conquistador
plasma uma “verdade” que se converte em monumento por meio da “tradução” ficcional,
da fabulação. As crônicas, os relatos, as cartas, são todas narrativas que traduzem, “faz[em]
passar a realidade selvagem para o discurso ocidental (...) essa (...) tradução (...) comanda
a análise dos seres vivos”.10
Dussel aponta como sendo o primeiro conquistador-colonizador, que encarna
essa simbologia, a Hernán Cortés, posto que ele foi elemento constitutivo e constituinte des-

4 Ibid., p. 263.
5 DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana/ Tradução, Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.
6 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas.
Vol. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora brasiliense, 1987.
7 DUSSEL, Henrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução Jaime A. Clasen.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
8 Ibid., p. 36.
9 Ibid., p. 43.
10 CERTEAU, Michael de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2017, p. 242.

Sumário 12
sa “primeira “experiência” moderna [que] foi a superioridade quase-divina do “Eu” euro-
peu sobre o Outro primitivo, rústico, inferior”.11 Nesse jogo, outro símbolo será fabricado, o
signo que representa essa outridade violentada pelo processo colonizador e que representará
a vida cotidiana desse violado, deslocando-se, espraiando-se pela “vida do índio, da índia,
da América”,12 que será impresso no significante “Malinche”. Para Dussel a Malinche é o
“símbolo da mulher americana, índia, culta, conhecedora da língua maia e asteca, e que terá
“um filho do seu amo e senhor Cortés”13.
Essa dinâmica de dominação emblematizada por Cortés-Malinche possui uma
“tradução” específica nas narrativas do conquistador, que assume uma fabulação que cria
uma justificativa para o “mito que encobre a violência sacrificadora do Outro”,14 já que o
ego violento, guerreiro e fálico que aniquila, destrói o mundo, os corpos, a subjetividade e a
vida oblitera o horror por meio do discurso falacioso do “desenvolvimento”, “do racionalis-
mo universalista”, “da missão salvacionista das almas bárbaras”.
Hernán Cortés, assim como outros belicosos invasores da “Conquista”, se au-
to-ficcionalizava, justificando suas ações, hiperbolizando seus feitos, tingindo-os de zelo
cristão, como aponta o próprio Dussel. Relatos nos apontam a inscrição que Cortés portava
em seu estandarte: “sigamos a cruz e com este sinal venceremos”.15 Cortés carnalizava a em-
presa “sagrada” que era produzida pela “fabulação”. Essa figura “heroica” do conquistador,
vai sendo elaborada, narrada, cunhada de forma indelével como parte de uma “verdade”
histórica vinculada a fatos e eventos construídos que gestam uma ideia mítica de origem e
de dívida que se perpetua dentro da dinâmica de dominação e poder gestada pelo processo
escriturário, a ponto de que a lógica da violência e da dominação passa a ser “traduzida” por
outras formas e elaborações discursivas como patrimônio cultural, o que inclui uma série
de estátuas em todo o espaço latino-americano que contribui para sua conversão em terri-
tório, assumindo que território, assim como problematiza Glissant,16 remete à ideia de fe-
chamento, filiação, ideia que está alicerçada em concepções de destruição e morte. No caso
específico das representações narradas de Cortés, muito pode ser problematizado a partir da
observação das estatuas ecuestres que foram erigidas e que sustentam um discurso de horror,
violência e morte, obliterado pelo signo do pai-viril-herói-fundador da cidade e da nação.
Uma de suas diversas estátuas, localizada em Medellín, Espanha, alcunhada de
berço de Hernán Cortés, apresenta a figura militar e fálica de Cortés, sempre com suas vestes
de guerra, seus aparatos militares, que se convertem também em signo identitário, como sua
lança sempre em riste, pronta para o confronto e para o assassinato, assim como o cavalo,
que consistia em um dos aparatos bélicos mais importante no processo de tomada de terras,
subjugação de corpos e exploração do trabalho no período de dominação dos territórios hoje
chamados latino-americanos. Para além disso, esse monumento segue narrando até os dias

11 DUSSEL, op. cit., p. 47.


12 DUSSEL, op. cit., p. 51.
13 DUSSEL, Henrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução Jaime A. Clasen.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1993, p.51.
14 Ibid., p. 53.
15 Ibid., p. 44.
16 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. França: Éditions Gallimard, 1996.

Sumário 13
de hoje a subjugação e o extermínio, posto que sob o pé do “conquistador”, jaz eternamente
a cabeça do indígena mesoamericano, que foi violentamente decepada.
Diante dessa hermenêutica de horror, morte e violência, há uma figura impor-
tante, que aparece com bastante frequência nos relatos da “Conquista”, que diz respeito
“ao língua”, essa figura para quem o “conquistador” apela a fim de ter a tradução de um
universo simbólico para ele inalcançável, que só podia ser acessado em alguma medida pela
língua(gem)17. O papel “do língua” era vital na empresa da dominação porque às vistas do
conquistador ele seria a ferramenta de “costura”, que coesionaria as rupturas, o que permi-
tiria que a construção daquele tempo/espaço narrado não deixasse vazar “a voz do outro”,
mantendo assim o “lógico engendramento da “história”, que estabelece e inventa o alto e o
baixo, o lá e o aqui, essa narrativa projetada para inventar o Outro, encobrindo-o, para assim
fabular a centralidade e o direito justificado de domínio e poder dessa Identidade eurocên-
trica que se construía dentro desse jogo.
Segundo Giacomolli,18 ao longo de suas cinco cartas endereçadas ao imperador,
relatando e justificando seus feitos, Cortés só se refere a Malinche, “sua língua”, uma única
vez, na quinta carta, fabricando para ela o lugar de intérprete que o acompanhava quando
ele se apresenta como capitão ao povo de Tabasco. Algumas outras informações sobre ela
são elaboradas por Bernal Díaz del Castillo. No processo de elaboração do discurso de na-
ção, que precisa delimitar um espaço/território sustentado pelo discurso da identidade que
exclui, a embotada “intérprete/tradutora/língua figura das narrativas da conquista segue
sendo outridade, representa tudo de mais abjeto e inumano. Segundo Octavio Paz, ela é
“una figura que representa a las indias, fascinadas, violadas o seducidas por los españoles”.19
No âmbito dessa narrativa histórica, que segundo o próprio Octavio Paz “es in-
sufiente”, Malinche, Doña Marina, Malinalli ou Malintzin, é “la Chingada”, termo muito
pejorativo em suas várias acepções. Todos os múltiplos sentidos que se ligam a ação de chin-
gar entre os latino-americanos se relacionam de modo direto
a la idea de agresión – en todos sus grados, desde el simple (acto) de incomodar,
picar, zaherir, hasta el de violar, desgarrar y matar – se present(a) siempre como sig-
nificado último. El verbo denota violencia, salir de sí mismo y penetrar por la fuerza
en otro. Y también, herir, rasgar, violar – cuerpos, almas, objetos – destruir. Cuando
algo se rompe, decimos: se chingó.20

Por isso, Malinche, la Chingada seria a antítese de La Virgen de Guadalupe, la madre


virgen. Malinche es la madre violada. Ela é a amante de Cortés, o símbolo da passividade abje-
ta, que segundo Octavio Paz é vista como aquela que “no ofrece resistencia a la violencia”
e sua mancha constitucional situada em seu sexo, ou seja, no seu próprio corpo, “es el sím-
bolo de la pasividad abierta al exterior, que le lleva a perder su identidad”21 e complementa:
17 CERTEAU, Michael de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2017.
18 GIACOMOLLI, Dóris Helena Soares da Silva. A representação literária de la Malinche no século XX. In: Letras
escreve: periódicos unifap. Macapá, v.9, n.1, 1º sem., 2019.
19 PAZ, Octavio. El laberinto de la soledad, Postdata, Vuelta a El laberinto de la Soledad. 3 ed. México: FCE, 1999,
p. 94.
20 PAZ, Octavio. El laberinto de la soledad, Postdata, Vuelta a El laberinto de la Soledad. 3 ed. México: FCE, 1999,
p. 84.
21 Ibid., p. 35.

Sumário 14
“Pierde su nombre, no es nada ya, se confunde con la nada, es la Nada. Y sin embargo es la
atroz encarnación de la condición feminina”.22
Diante de um discurso que inventa a justificativa da violência, fabulando um
espaço que constrói como centro a partir da narrativa de sua “periferia”, que funda, institui
uma universalidade descobridora, assumimos como vital a demanda problematizada por
Glissant23, de narrativas outras, de literaturas outras, “uma nova apreciação da literatura
como descoberta do mundo, como descoberta de Todo-o-mundo (...) [que não se restrinja
a repetir e narrar de novo] a errância ocidental, que foi uma errância de conquistas, uma
errância de fundação de territórios”.24 Glissant aponta a literatura como sendo a propulsora
de um processo vital, que consiste na elaboração de sonhos, de novas utopias, que nos per-
mitam a abertura a alternativas vinculadas à poética, a criação e não mais à segregação e
justificação da morte, da violência e horror. Por isso é que assumimos as obras homônimas,
Malinche (2005, 2004), de Laura Esquivel e Juan Miralles, como obras que elaboram tessitu-
ras que fabulam outras formas de narrar, nas quais aqueles que foram despossuídos de suas
“vozes” e de seus corpos carnalizados e narrados, ocupam agora outros lugares, tecendo
outros tempos e performances.
Nos chama muito a atenção que as obras, intituladas ambas, Malinche, se centram
em “traduzir” a narrativa da “Conquista” assumindo uma relação comprometida com as
memórias/apagamentos desses arquivos escriturários, deslocando os vencidos de seu enco-
brimento. No caso específico da narrativa esquiveliana, ela assume como a pedra angular de
sua obra um dos elementos mais estigmatizados e desqualificados até a reificação, o femi-
nino e o universo pautado na lógica mesoamericana e não mais eurocêntrica como a mola
central de sua fabulação, dando à personagem que foi obliterada na narrativa de Cortés,
aquele que a narrava/apagava e se valia de sua força de trabalho escravizado e de seus co-
nhecimentos culturais e linguísticos para converte-los na narrativa de si-mesmo e da lógica
da dominação, o papel central dessa fabulação outra.
No caso da narrativa de Juan Miralles, há uma construção que se pauta em apre-
sentar elementos como a própria dinâmica escriturária ocidental como uma forma de ex-
trema violência, engano e justificativa/ocultação do roubo e assassinato, bem como uma
interessante maneira de apresentar a figura narrada de Malinche, não como aquela figura
feminina tecida desde o imaginário medieval, que vincula a mulher ao perigo, ao diabólico,
à lascívia, mas como alguém cuja condição naquele contexto estava desprovido de toda e
qualquer humanidade, sendo desde seu nascimento, um mero objeto, fosse nas mãos dos po-
vos mesoamericanos, fosse na mão dos atores da “Conquista”. Sua narrativa (re)constrói di-
versos episódios já amplamente escritos/narrados, que por meio de um jogo de montagem,
confrontação, apresenta a matéria-prima da hermenêutica elaborada em todo e qualquer
processo narrativo, a ficção.

22 Ibid., p. 94.
23 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. França: Éditions Gallimard, 1996.
24 Ibid., p. 105-109.

Sumário 15
Malinche: um “sendo” à deriva na tessitura de Esquivel

Esquivel joga com os arquivos monumentalizados da lógica ocidental, produ-


zindo em sua narrativa uma elaboração que relativiza e questiona avatares ocidentais que
foram sendo construídos ao longo de todo o processo histórico dessa fabulação, iluminando
tudo que foi delegado à marginalidade, inscrevendo em sua narrativa o corpo feminino, di-
versos elementos do plano material e simbólico que colocavam a lógica feminina da criação,
da fecundidade, da criatividade, da relação em primeiro plano, retirando também os saberes,
a filosofia e narrativa cosmogônica mesoamericana do peso da catalogação de selvageria,
atraso e incivilidade, questionando a partir de seus elementos as “verdades” e os “saberes”
ocidentais.
Na primeira página que compõe o primeiro capítulo da narrativa, encontramos
os corpos femininos livres do discurso médico e estatal que se apropria do ventre e do poder
(re)produtivo feminino. Em sua narrativa a mulher é apresentada como aquela que não se
associa em nenhuma medida a um ser passivo, que precisa de tutela ou de intervenção da
figura dominadora, que se camufla na figura paternal do Estado ou do especialista médico,
apontando as mulheres como os seres, que por sua abertura e fecundidade são vitais e positi-
vos, corpos e práticas vitais para a organização mesoamericana com o sagrado, mas também
vitais para a lógica violenta do capital, já que as mulheres são também os seres que produ-
zem e acompanham aqueles outros corpos “traduzidos” pela lógica produtiva do ocidente
como mão-de-obra a ser usurpada no âmbito da razão colonial. Laura Esquivel referencia
de forma muito clara e nada sublimada essa condição de abertura feminina, que no discurso
colonial, nacionalista e falocêntrico foi tecido como negativo, agora (re)significado:
(...) una mujer luchaba por dar a luz a su primogénito (…) Su suegra, que actuaba
como partera, no sabía si prestar oídos a su parturienta nuera o al mensaje del dios
Tláloc. No le costó trabajo decidirse por la esposa de su hijo. El parto era complica-
do. A pesar de su larga experiencia nunca había asistido a un alumbramiento como
ese. Durante el baño en temascal – inmediatamente anterior al parto – ella no había
detectado que el feto viniera mal acomodado. Todo parecía estar en orden. Sin em-
bargo, el esperado nacimiento se tardaba más de lo común. Su nuera tenía un buen
rato desnuda y en cuclillas pujando afanosamente y no lograba dar a luz. La sue-
gra, previendo que el producto no pudiera pasar por la pelvis, comenzó a preparar
el cuchillo de obsidiana con el que partía en pedazos el cuerpo de los fetos que no
alcanzaban a nacer. Lo hacía dentro del vientre de sus madres, para que estas los
pudieran expulsar con facilidad y de esta manera al menos ellas salvaran sus vidas.
De pronto, la futura abuela – arrodillada frente a su nuera – alcanzó a ver la cabeza
del feto emergiendo de la vagina y retrocediendo al momento siguiente, lo cual le in-
dicó que probablemente traía el cordón umbilical enredado en el cuello. De repente,
una pequeña cabeza asomó entre las piernas de su madre, con el cordón umbilical
entre los labios, como si una serpiente amordazara la boca del infante…la abuela dio
voces de guerrero para informar a todos que su nuera, como buena guerrera, había
salido vencedora en su combate entre la vida y la muerte. 25

25 ESQUIVEL, Laura. Malinche. México: SUMA de Letras, 2005.

Sumário 16
Neste fragmento há a presença imperativa da mulher e de seu corpo no momento
de prenhez e parto, que segundo Bakhtin26 é o que melhor alegoriza a própria vida, confor-
mando uma típica imagem grotesca (no sentido bakhtiniano), “que consiste em exibir dois
corpos em um”, emblematizando a ambivalência e complexidade do mundo sob a ótica car-
navalesca. Tal corpo é espaço, no entanto espaço de trânsito e impermanência que perpassa
a vida mesma, a experiência da existência. A vagina é portal, limiar; o feminino por sua
abertura sempre possuirá o impulso criador, dissociando-se da lógica militar e falocêntrica
do ego conquiro que promovia a violência e a destruição da empresa conquistadora. Segun-
do Bakhtin, no estado de gravidez e prenhez
a individualidade é mostrada no seu estado de fusão; agonizante já, mas ainda in-
completa; é um corpo simultaneamente no umbral do sepulcro e do berço, não é
mais um único corpo nem são tampouco dois; dois pulsos batem dentro dele: um
deles, o da mãe, está prestes a parar.27

Se propuséssemos uma tradução do feminino tecido por Esquivel, e desse corpo


feminino narrado por sua pena, ele se converteria em língua(gem), discurso marcado pela
crioulização como a entende Glissant, o crioulo glissaniano “possui pelo menos dois ele-
mentos na sua constituição (...) de início absolutamente heterogêneos uns aos outros, com
uma resultante imprevisível”.28 Assumimos que a narrativa da autora (re)elabora, subverte,
inventa outro espaço, outra narrativa para o corpo feminino dessas sujeitas que foram sub-
jugadas, escravizadas, inferiorizadas, violentadas pela exploração de coerção que produzia
um discurso que fabricava/fabrica esse lugar aprisionador. Agora a narrativa do corpo fe-
minino mesoamericano apresenta essa potência criativa e criadora do novo, essa promessa
permanente de esperança e de porvir, que se produz de uma relação entre heterogeneidades
que embora se inter-relacionem, só produzem inter-valorização, sem que isso resulte em
degradação, diminuição, antes a impermanência constitutiva do corpo vivo e vivificante da
mulher carnalizava essa imprevisibilidade sempre fecunda.
Aqui, essa condição de abertura, corpórea ou metafórica se distancia muito de
uma situação de destruição, morte e esterilidade. A mulher, seu corpo, seu sexo, como as-
sim quis chamar Octavio Paz não tem na lógica “sonhada” por Esquivel, qualquer relação
com essa mácula malinchista, de passividade, violação e reificação, antes, se relaciona a
uma imagem rica e complexa por seu transbordamento/extensão, posto que toca os dois
polos principais da metamorfose, do movimento cíclico que acompanha a narrativa tempo-
ral mesoamericana e se contrapõe à narrativa linear ocidental (vida e morte, nascimento e
túmulo), ao mesmo tempo em que traz a própria representação do movimento permanente,
do trânsito. O corpo feminino não pode ser reduzido e encerrado, disciplinado e limitado em
um sistema-conceito, ele assume a performance metafórica, aberta, ambivalente, criadora,
sempre capaz de “criar/fabular/tecer” o novo, a esperança constante da vida e da propulsão
criadora.

26 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradu-
ção de Yara Frateschi Vieira. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2013.
27 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradu-
ção de Yara Frateschi Vieira. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2013, p. 23.
28 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. França: Éditions Gallimard, 1996, p. 25.

Sumário 17
Destacamos ainda que este fragmento elabora uma narrativa sobre mulheres que
como as deusas ancestrais decidiam sobre a vida e a morte, sobre a teia dos destinos, huma-
nos e divinos. A avó de Malinalli, tem o que a narrativa assume como “alumbramiento: el
acercamiento a la luz”. Nesse processo epifânico que se elabora pela experiência de partici-
par ativamente do “alumbramiento”, o nascimento mesmo e todo o seu processo, a avó de
Malinche “comprendió que al estar ayudando a su nuera a dar a luz, se había convertido en
un eslabón más de la cadena femenina formada por generaciones de mujeres que se daban
luz unas a otras”.29 Tal poder de fecundidade e de dar à luz a outras mulheres, no sentido
literal ou metafórico se relaciona ao elemento feminino, sem o qual a vida não pode ser con-
cebida, sempre reafirmação do novo e do imprevisível. Esse corpo aberto, não se limita a ele
mesmo, é o que através do permanente trânsito-movimento gera sem cessar. A avó de Ma-
linche será a porta-voz de tal “alumbramiento” à sua neta, quando na infância lhe explica:
Un cuerpo inmóvil se limita a sí mismo, un cuerpo en movimiento, se expande, se
vuelve parte del todo (...) caminar nos llena de energía y nos transforma para poder
mirar el secreto de las cosas (…) nos convierte en mariposas que se elevan y miran
en verdad lo que el mundo es. Lo que la vida es. Lo que nuestro cuerpo es. Es la
eternidad de la consciencia. Es la comprensión de todas las cosas. Eso es dios en
nosotros.30

Toda a sabedoria transmitida a Malinalli por seu “vento”, seu sopro de sabedoria
divina, sua voz, sua composição oral, apresenta a estrutura filosófica mesoamericana, que
através de uma associação rizomática, se coaduna às ideias desenvolvidas por Glissant, no
que diz respeito à deriva, “derivar refere-se ao (...) apetite do mundo. A deriva nos leva a tra-
çar caminhos no mundo, é também uma disponibilidade do sendo para todas as migrações
possíveis”.31 A mulher, que assume na narrativa esquiveliana o signo de guardiã da memória
e dos saberes, constituindo-se uma sábia e uma filósofa, a avó de Malinalli, compartilha
saberes vitais para que Malinche sobreviva, antecipa a própria composição do “sendo” de
sua neta, aqui fabulada como positiva devido à sua abertura e adaptação ao movimento
da deriva e da errância, posto que Malinche não se fecha. Estabelece relação com outras
línguas, outros corpos, outras formas de existir, jamais assumindo que o outro, para ela,
seja degradado ou inferior. Os diversos elementos que a constituem são tomados a partir de
uma lógica de reciprocidade. Malinche se configura na tessitura narrativa da “crioulização”
glissaniana, ela é uma personagem narrada com a tinta da deriva, da impermanência, da
errância, por esse motivo, em Esquivel, isso não faz dela um ser maculado, aviltado.
A construção esquiveliana não tem qualquer compromisso com uma lógica iden-
titária, com um afã de pureza, que busca um retorno ou a aproximação a raízes profundas
de uma essência indígena. Esquivel assume em sua fabulação que o que faz de Malinche
uma personagem rica, instigante, desordenadora é sua própria composição rizomática, já
que ela passará a ser despojada de sua língua, de seu cotidiano, quando é vendida a outro
grupo mesoamericano e depois é dada como um objeto presenteável a Hernán Cortés, sen-
do ela mesma, diminuída pelo outro, sendo obrigada a abrir-se e estabelecer relações para

29 ESQUIVEL, Laura. Malinche. México: SUMA de Letras, 2005, p. 02.


30 ESQUIVEL, Laura. Malinche. México: SUMA de Letras, 2005, p. 42.
31 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. França: Éditions Gallimard, 1996, p. 26.

Sumário 18
sobreviver e ser capaz de assumir o risco, o imprevisível, experimentando a desestabilização
advinda disso, bastante simbólica, porque esse foi o movimento produzido em todo o espaço
mesoamericano, que permite ainda hoje (re)criar e sonhar as lógicas dos mortos e silencia-
dos pelos resíduos que podemos rastrear nas fendas, nas rupturas de uma narrativa oficial
homogeneizante.
Tais resíduos são capturados por Esquivel, que joga com eles, inventando novos
sentidos, deslocando, confeccionando lugares e lógicas outras, em que Malinalli nasce atra-
vessada pela presença de muitas divindades pré-hispânicas. Os corpos femininos no univer-
so proposto por Esquivel estão conectados aos demais elementos cósmicos, como a terra, a
água, o fogo e o ar, não sendo possível desconsiderar a lógica dos povos originários, que foi
“traduzida” na narrativa do conquistador como irracional ou primitiva. Na trama esquive-
liana o vento, o relâmpago e a chuva são elementos que indicam a presença de poderosas
divindades que marcam seu nascimento, além do detalhe vital de que Malinalli nasce com o
cordão umbilical enredado em sua boca como uma serpente. O símbolo da serpente indicava
a presença do poderoso e complexo deus Quetzalcóatl, a serpente emplumada, que servia de
elo/escada, entre terra e céus, assim como o próprio nome Malinalli, que possivelmente lhe
fora dado por haver nascido em
un día en el calendario azteca que se representaba en forma de caña retorcida. Pero
Malinalli no es solamente el signo de un día; está relacionado también con el sím-
bolo helicoidal que vincula a las dos fuerzas opositoras del cosmos en constante
movimiento, haciendo que las fuerzas del mundo inferior se eleven, y que las de los
cielos desciendan.32

Observe-se então que a natureza da tessitura esquiveliana nada tem a ver com a
narrativa histórica e nacionalista, que dão à Malinche o lugar do apagamento, do silencia-
mento, da mácula, da traição, da abjeção e da vergonha. Na pena esquiveliana, Malinche
sempre esteve ligada as complexas forças cósmicas supra-terrenas, terrenas ou infra-terre-
nas, tendo seu destino marcado no seu corpo, em sua boca, em sua língua, pelo próprio deus
Quetzalcátl. Essa figura, cujo corpo será apagado e convertido em mero artefato utilizado
para os fins belicosos e violentos da conquista, na fabulação esquiveliana decidirá rebelar-se
contra essa figura masculina que, segundo Octavio Paz, é figura “del macho chingón”. Ela,
que foi reduzida à “língua” de Cortés, decide em um dado momento que não servirá mais
às intenções colonizatórias, privando-o do poder, impossibilitando que “sua língua” seja
aprisionada pela univocidade do discurso colonial:
De noche, atravesó parte de la vegetación, hasta encontrar un maguey del cual extra-
jo una espina y con ella se perforó la lengua. Empezó a escupir la sangre como si así
pudiese expulsar de su mente el veneno… a partir de esa noche, su lengua no volvería
a ser la misma… No volvería a ser jamás instrumento de ninguna conquista.33

Na narrativa esquiveliana, Malinche, a figura feminina não tem qualquer relação


com a “madre violada” de que trata Octavio Paz, porque no universo pré-hispânico recriado

32 FRANCO, Jean. La Malinche: del don al contrato sexual. In: Debate Feminista. Universidad Nacional Autónoma de
México. Vol. 11, México, 1995, p. 254.
33 ESQUIVEL, Laura. Malinche. México: SUMA de Letras, 2005, p. 64.

Sumário 19
pela pluma da autora, um mundo patriarcal, possuidor de um único deus pai não é concebi-
do como lógico, pois sem mulher, sem ventre a vida não pode ser concebida:
El día en que Malinalli le preguntó cuál era el nombre de la esposa de su dios, Cortés
respondió:
-Dios no tiene esposa.
-No puede ser.
-Por qué no?
-Porque sin vientre, sin oscuridad, no puede surgir la luz, la vida. Es en lo más pro-
fundo que la madre tierra produce las piedras preciosas, y es en la oscuridad del vien-
tre donde toman forma humana los hombres y los dioses. Sin vientre no hay dios.34

O modo como se tece a narrativa da Malinche esquiveliana evidencia a riqueza,


a complexidade da construção de um outro espaço, que não é fechado, encerrado, territoria-
lizado, que mina, desestabiliza, implode a fixidez de identidades plasmadas e configuradas
ao longo do processo violento colonial. A personagem esquiveliana constitui-se símbolo do
(entre)lugar marcado pela mobilidade, fluidez e contato, pois como nos indica Tomas Tadeu
Silva
(Se) o movimento entre fronteiras coloca em evidencia a instabilidade da identidade,
é nas próprias linhas de fronteira, nos limiares, nos interstícios, que sua precariedade
se torna visível... A possibilidade de cruzar fronteiras e de estar na fronteira, de ter
uma identidade ambígua, indefinida, (é uma demonstração do caráter artificialmen-
te imposto das identidades fixas.).35

Na narrativa esquiveliana, Malinche é trânsito, é errância. Se manteve na imper-


manência da deriva transitando entre maias, astecas, europeus, imperadores, sacerdotes,
servos. Experimentou, como sua mãe e sua avó, a cadeia composta pelas diversas mulheres
que trouxeram à luz a ela mesma e a outras mulheres. Experienciou em seu corpo, em sua
carne bífida a (des)constituição de um ser fixo, antes era um “sendo” na carnalidade de sua
prenhez e de toda sua trajetória. Malinche se constitui fabulação da experiência que confi-
gura tudo aquilo que é vivo em Todo-o-mundo. Após sua língua ser cindida e bifurcada pelo
espinho de maguey, a planta divina, ela só poderia produzir/falar/narrar/traduzir o bífido,
a fissura, o corte, a ruptura.

Doña Marina, Malinche y el Apóstol Santiago: fabulações da hermenêutica


colonizatória em Miralles

Juan Miralles assume os arquivos, os textos monumentalizados pela História, co-


mentadores e críticos, como peças vitais de sua (re)composição. Talvez seria melhor assumir
sua narrativa como uma (des)composição dos mementos monumentalizados, que seguem
ecoando permanentemente o discurso que elabora o espaço distópico em que se situam os
corpos não-brancos, possuídos, dominados pela hermenêutica do relato e da crônica. Ele
joga com o explícito, comparando, encadeando e apresentando narrativas dos cronistas e
dos “conquistadores”, rindo de sua artificial sacralidade, posto que ele assume uma espécie
de colagem, ou uma performance de “instalação” de fragmentos das narrativas arquívicas a

34 ESQUIVEL, Laura. Malinche. México: SUMA de Letras, 2005, p. 28.


35 SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p.98.

Sumário 20
fim de assumir uma lógica do “desordenamento”, que é a escolha de um viés oposto ao da
linearidade, coesão e do ordenamento da narrativa.
Miralles dá relevo em sua tessitura à prática da escrita eurocêntrica, como ela
captura, “traduz” esse universo, que só pode ser apreendido e domesticado pela elaboração
performática dessa narrativa que alienava como parte de sua ação o Outro. Elaborando a
ironia, o riso ao instituído, ele aponta a distância, a ausência de “precisão”, “objetividade”,
ele relativiza a “verdade” da hermenêutica praticada pelo conquistador, bem como a igno-
rância em relação ao universo do “vencido”, do mesoamericano, que gera o escarnecimento
da personagem feminina:
Al anotar el nombre del lugar el escribano escribió Coadnabaced, la mujer señaló
que no se llamaba así, varias veces le repitió el nombre pero no hubo caso; al fin lo
mudó a Cornavaca mientras ella se reía, y más tarde oyó comentar a los soldados
que ya lo habían cambiado a Cuernavaca.36

No registro oficial do escrivão que acompanhava a empresa da conquista de Cor-


tés a narrativa elabora o rasgo que deixa vazar a decalagem entre o que acontecia e o registro
de sua escrita, que deforma a narrativa do lugar desde o signo de sua referenciação, posto
que a impossibilidade de alcançar o dito pela “língua” de Cortés exige que ele “invente” um
significante alternativo, para fabular o espaço no qual Hernán impõe sua expansão, fazendo
com que os indígenas assumam o compromisso do “juramento de vasallaje” que deve ser
também escrito, pois só assim ele pode ser efetivado, pela prática escriturária que precisava
demarcar, dizendo, narrando, nominando esse lugar dominado, conquistado. O escrivão
inventa esse topônimo, o que representa o elemento, a mola ficcional como constituinte de
suas narrativas, o que não poderia ser usado como aspecto de diferenciação e determinação
de lugares hierarquizados, que comprometessem a narrativa dita literária, já que a narrativa
cronística-documental-oficial-histórica é tão fabulada quanto a narrativa literária. Diante da
incapacidade de relação do europeu e de sua escrita e lógica hermética, Malinche produz
um riso que assumimos como desentronador do espaço sacralizado e hierarquizado dessa
escrita monumentalizada.
Juan Miralles se fixa muito no processo escriturário da história, colocando suas
limitações e intenções como um dos pontos centrais da lógica colonizatória. Ao apresentar
em sua fabulação a narrativa de como Cortés fazia uso dos caciques e dos corpos dos indí-
genas para engrossar suas filas militares nas marchas de invasão ele vai listando os nomes
e resolve colocar entre parêntesis um aspecto importante de composição dessa escrita, o es-
quecimento, o apagamento, a impossibilidade de absorver, transmitir o que quer que fosse,
mesmo que isso significasse “apenas” apontar os nomes dos principais que foram envolvidos
por Cortés em seus confrontos: “(...) Chichimecatecutli, Xicoténcatl, Calmecahua y Yeuc-
tépid, por parte de Tlaxcala, Teuch, Tamalli y Mamexi, por los de Zempoala, e Ixtlilxóchitl
por Texcoco (la Historia no recogió los nombres de los demás caudillos indígenas)”.37 Esse parên-
tesis na fabulação de Miralles permite jogar com a estrutura da elaboração da história. As-
sumimos que a escolha da construção do texto, ou seja, escrever em um parêntesis sobre o
como se faz/fez a história e o material desta é simbólico, pois a escrita histórica se faz pelo
36 MIRALLES, Juan. Malinche: la conquista vista por una esclava. México, D. F.: Tusquets Editores, 2004, p. 175.
37 MIRALLES, Juan. Malinche: la conquista vista por una esclava. México, D. F.: Tusquets Editores, 2004, p. 183.

Sumário 21
apagamento e não pela memória, ela não quer registrar, ela oculta e “inventa” os nomes que
deseja destacar e converter em símbolos permanentes. O esquecimento, ocultamento como
material compositivo do discurso histórico parece haver sido tratado como algo de pouca
ou nenhuma relevância, o que se converte em ironia gráfica e textual no fragmento apre-
sentado. Esse parêntesis contém o centro da questão hermenêutica da história do ocidente,
o ocultamento de corpos, modos de vida e existência, violados até hoje, indefinidamente
pela pena letal da elaboração histórica, que é rasurada pela escrita criativa e subversiva da
literatura.
Outro ponto constituinte da narrativa de Juan Miralles diz respeito a como ele
produz um realce em elementos que conformam os textos cronísticos em geral que remetem
a símbolos, figuras da mística peninsular, que servem como testemunho e recurso que en-
dossa a “veracidade” dos relatos, além de justificar as práticas militares atrozes de guerra,
assassinato, destruição e morte como práticas “lógicas”, já que a divindade está ao lado da
empresa da conquista. Esse recurso legitima a dizimação. Na medida em o texto de Miralles
vai se delineando é interessante perceber como ele traça uma espécie de disposição na qual
todos os deuses mesoamericanos são vistos pelo europeu como algo associado à irracionali-
dade e incivilidade, na maior parte do tempo, sendo justificadas as destruições dos templos
e das figuras divinas por sua associação ao sacrifício e ao canibalismo.
O discurso se fabula tendo como pilar a manifestação “divina” ocidental, que
com eles empunha a espada, assassina e dizima. Miralles desenha o texto deixando evidente
que a única diferença é que o “autor” da fabulação histórica autoriza a si-mesmo a decidir
quem vive e quem morre. Tais figuras, como a “del apóstol Santiago’, já estavam envolvidas
na hermenêutica que fabulava o Outro dentro da península, já que como aponta Dussel,38
essa relação que configura o Outro como inferior e inimigo já era exercitada em relação aos
mouros, dentro da península Ibérica:
Corría el año 813 cuando según la tradición se descubrió la tumba del apóstol San-
tiago en (…) Compostela. Aquello despertó un fervor inusitado, imprimiendo un
sello de identidad religiosa a los nacientes reinos cristianos frente al Islam (aunque
nadie pareció preguntarse cómo pudieron llegar sus restos a Galicia, siendo que se le
decapitó en Palestina (…). Pocos años después, en medio de la batalla que se libraba
en los campos de Clavijo (844), hace aparición el Apóstol montando un brioso corcel
blanco, con la espada en la diestra y poniendo en fuga a los sarracenos. Allí surge el
grito de guerra: <<!Santiago y cierra España!>> (…) Por una de esas cosas que po-
cos saben explicar, el Apóstol que en vida fue un pacífico pescador, quedó transfor-
mado en guerrero, convirtiéndose además en el portaestandarte de la lucha contra el
Islam, el alma de la Reconquista. (…) Pero de tanto poner la atención en los festejos
en España se pasa por alto que el caballo del Señor Santiago también cabalgó por
tierras mexicanas. (...) En (...) la iglesia de Tlatelolco se encuentra un retablo esto-
fado del siglo XVI (…) en el que aparece representado el Apóstol arrollando infieles
bajo los cascos de su caballo: el milagro de Centla. Sólo que en este caso no pisotean
sarracenos sino aplastan indios idólatras.39

38 DUSSEL, Henrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução Jaime A. Clasen.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
39 MIRALLES, Juan. Malinche: la conquista vista por una esclava. México, D. F.: Tusquets Editores, 2004, p. 274-275.

Sumário 22
Segundo destaca Dussel, já havia dentro da península Ibérica uma dinâmica de
invenção e descobrimento do Outro, que se carnalizava ali na figura do mulçumano, sempre
dito, cantado, narrado como inimigo, bem como os métodos para o encobrimento e elimi-
nação deste:
Assim como os cristãos ocuparam Málaga (...) cortando à faca as cabeças dos an-
daluzes mulçumanos em 1487, assim também acontecerá com os índios, habitantes
e vítimas do novo continente “descoberto”. Alianças e tratados nunca cumpridos,
eliminação das elites dos povos ocupados, torturas sem fim, exigência de trair sua
religião e sua cultura sob pena de morte ou expulsão, ocupação de terras, divisão dos
habitantes entre os capitães cristãos da “Reconquista”. O “método” violento foi ex-
perimentado durante séculos aqui em Andaluzia. A violência vitimaria e sacrificial
pretensamente inocente iniciou seu longo caminho destrutivo.40

Um dos elementos com os quais Miralles constrói sua narrativa diz respeito à
citação literal de fragmentos das crônicas. Um desses momentos diz respeito à presença
permanente da figura do Apóstol Santiago, que como o próprio autor deixa entrever a partir
do uso de sua permanente ironia, marca do riso desentronador e desordenador, elabora sua
paródia narrativa (a)histórica a partir de retalhos das fabulações cronísticas, que transferem
a figura mítico-sagrada do santo, que como ele mesmo aponta em seu texto, deixa de ser
narrado como pacífico no texto sagrado e agora é capturado por uma hermenêutica que o
configura na lógica bélico-militar, assumindo como inimigos os inimigos do reino de Cas-
tilla, de los reyes católicos. Na península Ibérica, Santiago passa por um processo narrativo
que o retira da figura do vencido descabeçado que agora arranca com sua lança a cabeça do
inimigo, ele agora é tecido como um verdadeiro guerreiro militar, que está sobre seu cavalo
animoso e chegará pelo processo arquívico que conforma a memória/apagamento a pisar as
cabeças e corpos dos ditos índios da América.
Miralles nos apresenta alguns dos fragmentos que ele alinhava a seu texto como
parte de sua composição, para criar as fissuras irônicas que deixam escapar o riso desor-
denador ao discurso oficial da conquista, que dão relevo à total ausência de neutralidade
e “realismo” da fabulação cronística, que se ressente do deus colibri dos mesoamericanos,
porque por sua belicosa índole solicita sacrifícios humanos, enquanto sacrificam incontáveis
vidas em honra de sua “modernidade”, “progresso” e “lógica racional”. Miralles costura as
narrativas de Bernardino Vázquez de Tapia, de Andrés de Tapia, de Gómara, entre outros,
nas quais encontramos os seguintes relatos:
Bernardino Vázquez de Tapia, uno de los que en Centla combatió a caballo, asevera-
ría que el Apóstol se apareció en la batalla y, por tanto, había combatido hombro con
hombro con él:<<y que aquí se vio un gran milagro, que, estando en gran peligro en
la batalla, se vio andar peleando uno de un caballo blanco, a cuya causa se desba-
rataron los indios, el cual caballo no había entre los que traíamos>>. Y Andrés de
Tapia, otro soldado, dijo lo siguiente: <<e como los enemigos nos tuviesen ya cerca-
dos a los peones por todas partes, pareció por la retaguardia dellos un hombre en un
caballo rucio picado, e los indios comenzaron a huir e a nos dejar algún tanto, por el
daño que aquel jinete en ellos hacía (…) volviendo los enemigos sobre nosotros, nos

40 DUSSEL, Henrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução Jaime A. Clasen.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1993, p. 09.

Sumário 23
tornaban a maltratar como de primero, e tornó a parecer el de caballo más cerca de
nosotros, haciendo daño en ellos (…) fueron tres veces las que pareció e le vimos (…)
cuando aparece el libro de Gómara (1552) la identidad del jinete misterioso aparece
desvelada: <<Volvió entonces el de a caballo por tercera vez, e hizo huir a los indios
con daño y miedo (…) creyeron que era el apóstol Santiago, patrón de España>>.41

Na medida em que vai elaborando sua tessitura, Miralles apresenta entre as nar-
rativas acima indicadas a intenção dessa escrita, jamais neutra, jamais ingênua. Como nos
aponta Glissant (1996),42 o papel fundamental desses textos, dessas narrativas é instituir um
mito fundador que consagre a presença de um dado grupo em um território, legitimando,
autorizando o “direito” de tal grupo como “filhos” e “eleitos”, sustentando e alimentando a
generalização de um absoluto que deve se impor e se expandir, aumentando seus domínios,
motor de sustento da lógica colonial:
Se trataba de demostrar que la Conquista fue una empresa que contó con la bendi-
ción de la Providencia (…) Los cascos del caballo, pues, aplastaron a muchos idóla-
tras que se oponían a la prédica del Evangelio en los nuevos territorios. (…) apóstol
Santiago, el santo guerrero que de matamoros pasó a ser mataindios.43

No entanto, Miralles faz uso de uma pergunta retórica tingida de ironia, que
aponta como a violência e a lógica colonial por meio de seu movimento arquívico, vai apa-
gando o horror, a perversão do assassinato e da subjugação, atribuindo uma lógica moral,
que traduz o bom indígena como aquele que estava ao lado da “verdade” espanhola: “¿Y
los indios eran tan tontos que rendían culto a un mataindios? Situémonos en el tiempo: sólo
mataba a los malos, porque los buenos eran los que militaban en el bando español”.44 A
narrativa de Miralles aponta para a subjetivação da lógica colonial, para o domínio que os
europeus exerceriam sobre seu imaginário e o imaginário ocidental, posto que como nos in-
dica Dussel45 o processo era movido pela contradição que consistia em pregar os valores reli-
giosos cristãos do amor por meio da conquista violenta e irracional, que parecia se justificar
por essa figura ontológica moderna com direitos universais e para assegurar tais direitos se
vitimam os índios e se nega a eles o direito a uma existência. A bondade está entranhada na
confecção do mito civilizatório, porque justifica a violência, condena o violentado e traduz
como inocente o assassino. Miralles faz uso de um fragmento de Bernal Díaz del Castillo
para endossar essa narrativa que coloca em xeque a moral colonizadora, apresentando uma
dissidência instalada no âmago da elaboração do discurso cronístico:
Bernal, (...) apunta com sorna [ou seja, com burla, ironia]: <<pudiera ser que los
que disse Gómara fueran los gloriosos apóstoles señor Santiago o señor San Pedro,
y yo, como pecador, no fuese digno de verlo. Lo que yo entonces vi y conocí fue a
Francisco de Morla en un caballo castaño, y venía juntamente con Cortés.46

41 MIRALLES, Juan. Malinche: la conquista vista por una esclava. México, D. F.: Tusquets Editores, 2004, p. 277-278.
42 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. França: Éditions Gallimard, 1996
43 MIRALLES, op. cit., p. 277-2778.
44 MIRALLES, Juan. Malinche: la conquista vista por una esclava. México, D. F.: Tusquets Editores, 2004, p. 279.
45 DUSSEL, Henrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução Jaime A. Clasen.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
46 MIRALLES, Juan. Malinche: la conquista vista por una esclava. México, D. F.: Tusquets Editores, 2004, p. 2778.

Sumário 24
A narrativa de Juan Miralles situa “a língua” de Cortés na dolorosa e subjugada
condição de escrava, o que já é possível perceber no subtítulo da obra “la conquista vista
por una esclava”. Nessa tessitura, Malinche é dita, é contada, é narrada, constitui-se um
mero objeto discursivo na pena dos cronistas. A narrativa mirallesca aponta que muito do
que foi fabricado nos arquivos escriturários sobre Malinche teve uma direta motivação re-
gida por Cortés, já que este tinha interesse de que seu filho com ela pudesse ter assegurada
sua fidalguia. Naquele momento, a insígnia que diferenciava o povo comum daqueles que
eram “superiores” estava vinculada a Ordens de lógica militar associadas ao movimento das
Cruzadas, por isso seria vital que o filho de Cortés fosse aceito como membro da Orden de
Santiago. Para tanto o requisito imprescindível consistia em comprovar a limpeza de sangue,
isso significava que se fazia imperativo forjar provas escriturárias, documentais acerca da
limpeza da linhagem de Martín, o que implicava em fabular uma narrativa que inventasse a
Doña Marina, coisa diversa da narrativa que fabulava a Malinche escrava, regalada.
Había que enaltecer el origen de la madre, ya que por parte paterna no existía pro-
blema, pues él era hijodalgo notorio y, por añadidura, perteneciente a la alta nobleza
(…) Y así (...) se inicia la recopilación de informes sobre el niño don Martín Cortés
con el fin de establecer si reunía los requisitos para el ingreso a la Orden de Santiago
(…) declaran Diego de Ordaz y Alonso de Herrera: (…) doña Marina es considerada
como persona principal y que ha visto a principales de Coatzacolcos que la tienen en
alta consideración, por lo que es de muy buena casta e germinación […] que al presente
se encuentra casada con un español (…) este constituye el primer intento por fabri-
carle a Marina un abolengo honroso (…) se dice que <<fue entregada>>, omitién-
dose cualquier referencia a que hubiese sido esclava (…) detrás de las declaraciones
de los testigos que enaltecen la imagen de Marina está la mano de Cortés.47

Essas considerações passam a ter grande relevo quando observamos que a nar-
rativa mirallesca aponta para as intenções que movem as “invenções”, “fabulações”, assu-
mindo que Malinche, agora convertida na respeitável doña Marina, não passa de uma dentre
as muitas ficções que se inventam nos relatos cronísticos e relaciona tais arquivos a uma
outra fabulação na qual Malinche é só uma entre o grupo de mulheres que foi regalada a
Cortés como um objeto qualquer que “entra en la historia abordando un navio y portando
un metate”, sendo sua tarefa principal “ romper en los metates los granos de maíz para que
(...) comiesen los caballos”.48 Miralles indica qual o lugar construído para as mulheres me-
soamericanas que serviam de bens de negociação na lógica da guerra: “Los caballos tenían
prioridad, por lo que las mujeres debieron instalarse como pudieron”.49
Em nossos arquivos constitutivos, quantos não são os poemas, quantas não são as
odes que tratam da “saudade” daqueles “heróis” que por sua coragem e fidelidade à causa
“divina” vieram “salvar” deixando para trás sua vida, seus entes queridos, sua terra natal.
Sobre essas mulheres nunca houve uma narrativa que contasse/fabulasse/inventasse o mun-
do que deixavam para trás, seres amados, relações, filhos. Elas são referidas por um tipo de
lógica de apagamento que as plasma em sintagmas que Juan Miralles repete até a exaustão
ao longo de sua fabulação: las compañeras de Marina se entregaban a la tarea de moler; las mujeres
47 MIRALLES, Juan. Malinche: la conquista vista por una esclava. México, D. F.: Tusquets Editores, 2004, p. 271-273.
48 Ibid., p. 22-23.
49 Ibid., p. 22.

Sumário 25
del servicio iban entre el contingente de índios aliados, distribuyendo jarros; cerraban la marcha en el
orden acostumbrado las mujeres del servicio; Marina y sus compañeras são algumas construções
que permitem traduzir uma existência que foi obliterada na narrativa e na prática da lógica
colonial.
Assim como Cortés é sempre descrito associado aos elementos que lhe configu-
ram como o modelo do cavaleiro nobre, vigoroso e bélico, fazendo com que em todas as suas
performances não possa jamais ser dissociado de seu cavalo, de sua armadura, espada, de
seus escrivães e documentos oficiais, as mulheres são sempre narradas como uma massa se-
cundaria, apagadas em suas existências e relações, sendo descritas a partir da maneira como
eram usadas naquela empresa, tendo seus corpos subjugados e escravizados nos cuidados
aos homens soldados e aos animais, seus “instrumentos” de guerra. Tais personagens, sem-
pre referidas nesse coletivo de mulheres, de escravas estavam amarradas na narrativa a seus
metates [pedras de moer grãos], jarros, e utensílios para bem servir e atender. No caso espe-
cífico de Malinche, a narrativa se elabora a fim de fabular uma perspectiva alternativa, que
foge da ideia de uma mulher esperta, traiçoeira, sedutora que se aproveitava maliciosamente
de uma posição de prestigio para vincular-se aos invasores. Antes Malinche é narrada como
uma escrava a quem se exige um trabalho incessante, tendo sido roubada a sua “voz”, escra-
vizada a reproduzir uma lógica da qual ela mesma era alheia: “Para Marina no había (...)
tiempo (...) sólo podía andar (...) cuando el Capitán salía y tenía que acompañarlo. Por lo
demás el día se le iba casi entero sirviendo de intérprete”.50
A subjugação de Malinche aos desejos de Cortés se apresenta com força e vio-
lência na narrativa de Miralles, quando mesmo às bordas de parir, a escrava precisa seguir a
Cortés, em seus impulsos de dominar mais territórios. Pariu a María, sua segunda filha em
meio a esse trânsito e “tenía que suspenderle el pecho a la niña y entregarla a otra mujer para
cumplir la tarea de traductora a la que era llamada”.51 No retorno a Coyoacán a narrativa
parece elaborar o prenuncio do que viria a suceder, posto que o primogênito Martín fugia
dela e já não a reconhecia como mãe, recorrendo à ama de leite. Tempos depois a prática
escriturária haveria de encobrir a Malinche para realçar a uma doña Marina com modos
europeizados, inventada em representações imagéticas como loira sempre ornada segundo
a moda peninsular. Portanto, na tessitura mirallesca há mais ênfase na figura inventada de
Malinche e doña Marina, resultando que ela é muito mais traduzida em suas diversas ver-
sões, seja como Malinalli, Malintzin, Marina, Malinche o doña Marina, do que narra ou
traduz.
Encerramos rememorando as palavras de Walter Benjamim: “Contar histórias
sempre foi a arte de contá-las de novo... Assim se teceu a rede em que está guardado o dom
narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida há
milênios”.52 Laura Esquivel e Juan Miralles puxam tal fio da rede narrativa, desmanchan-
do-o, posto que muitas vezes desfazer, desmanchar é em si um ato de reelaboração, desfa-
zem a “língua”, a Malinche da tela histórica para resignificá-la, convertendo a sua trama
em uma nova tessitura que não se restringe à personagem, mas a uma nova significação da
50 MIRALLES, Juan. Malinche: la conquista vista por una esclava. México, D. F.: Tusquets Editores, 2004, p. 128.
51 Ibid., p. 256.
52 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas.
Vol. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora brasiliense, 1987, p. 205.

Sumário 26
literatura latino-americana e do ser latino-americano, assumindo uma constituição bífida
e rizomática, o que Glissant53 elaborou como “identidade rizoma”, que foge ao essencial,
ao universal, ao generalizante, que pode ser “traduzida” na bela metáfora construída pela
narrativa esquiveliana
producto de diferentes sangres, de diferentes olores, de diferentes aromas, de diferen-
tes colores. Así como la tierra daba maíz de color azul, blanco, rojo y amarillo – pero
permitía la mezcla entre ellos – era posible la creación (…) sobre la tierra… que con-
tuviera todas (…) la mezcla de todas las sangres – la ibérica, la africana, la romana,
la goda, la sangre indígena y la sangre del medio oriente – ellos que juntos con todos
los que están naciendo, son el nuevo recipiente para el verdadero pensamiento (…).54

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2013.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Obras escolhidas. Vol. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora brasiliense, 1987.
CERTEAU, Michael de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 3 ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2017.
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana/ Tradução, Claudia de Moraes
Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
DUSSEL, Henrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução
Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
ESQUIVEL, Laura. Malinche. México: SUMA de Letras, 2005.
FRANCO, Jean. La Malinche: del don al contrato sexual. In: Debate Feminista. Universidad Nacio-
nal Autónoma de México. Vol. 11, México, 1995, p. 251-270.
GIACOMOLLI, Dóris Helena Soares da Silva. A representação literária de la Malinche no século
XX. In: Letras escreve: periódicos unifap. Macapá, v.9, n.1, 1º sem., 2019.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. França: Éditions Gallimard, 1996.
MIRALLES, Juan. Malinche: la conquista vista por una esclava. México, D. F.: Tusquets Editores,
2004.
PAZ, Octavio. El laberinto de la soledad, Postdata, Vuelta a El laberinto de la Soledad. 3 ed. Mé-
xico: FCE, 1999.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000.

53 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. França: Éditions Gallimard, 1996.
54 ESQUIVEL, Laura. Malinche. México: SUMA de Letras, 2005, p.72-73.

Sumário 27
D e eróticas y deseos : C uando S ara
C hura despierte o la negación de la
continuidad perdida

Cesar Augusto Mendoza-Quiñones

Nos resulta difícil soportar la situación que nos deja clavados en una individua-
lidad fruto del azar, en la individualidad perecedera que somos. A la vez que te-
nemos un deseo angustioso de que dure para siempre eso que es perecedero, nos
obsesiona la continuidad primera,
aquella que nos vincula al ser de un modo general
(Georges Bataille).

L
as páginas que vienen a continuación son fruto del trabajo realizado den-
tro del proyecto de investigación “La construcción novedosa, provocado-
ra y heterodoxa del imaginario del indio y del entrecruce cultural desde
las novelas de tres autores bolivianos contemporáneos” de la Carrera de Literatura de la
Universidad Mayor de San Andrés en la ciudad de La Paz, Bolivia; proyecto coordinado por
la Dra. Rosario Rodríguez Márquez.1 Uno de los productos finales de este proyecto de inves-
tigación es la publicación de una nueva edición crítica de la novela que hoy viene a nuestra
atención: Cuando Sara Chura despierte, publicada el año 2003 por el escritor boliviano Juan
Pablo Piñeiro (La Paz, 1979). Sea así este ensayo solo uno de los muchos otros acercamien-
tos que se han estado haciendo –algunos presentados aquí– a la novela de Piñeiro.

Esta novela es considerada dentro de la narrativa contemporánea boliviana como


una de las obras fundamentales del siglo XXI. En sus cinco capítulos se cuentan los sucesos

1 No es menos importante destacar que durante la gestión 2019 –año en el que fue gestado este ensayo– el proyecto de
investigación, adscrito al Taller de Literatura Boliviana y Latinoamericana dentro del programa curricular de licenciatura
de la Carrera de Literatura, estuvo a cargo de la Dra. Mónica Velásquez Guzmán. Los agradecimientos también van a ella.

Sumário 28
que anteceden a la fiesta del Señor del Gran Poder, fiesta popular muy conocida en la Ciu-
dad de La Paz.2
La fiesta del Señor del Gran Poder es la más importante de todas [las entradas folk-
lóricas en la Ciudad de La Paz] y renueva ritos y bailes en la fecha variable de la
Santísima Trinidad, que se sitúa en el invernal mes de junio. Nacida bajo el sostén
y apoyo de una nueva y floreciente casta comercial que desde mediados del siglo
XX goza de un envidiable crecimiento económico, el Gran Poder es el reflejo de la
pujanza de una burguesía chola que ahora está presente en el imaginario colectivo,
con más carisma que el poder municipal o el Estado. Agrupando casi un centenar de
fraternidades de danzante y bailarines [...], el Gran Poder toma la ciudad por com-
pleto el día oficial de la entrada [...].3

Esta fiesta, dentro de la novela es el espacio y el tiempo en el que Sara Chura,


personaje principal, despertaría de un largo sueño. Sueño con ciertas connotaciones míticas
dentro de una cosmovisión andina. De sus cinco capítulos, cuatro adentran de manera pa-
ralela al lector a las vidas de los otros personajes principales de la novela: 1. César Amato,
personaje que dentro de su vida cambia constantemente de oficios y “pieles” que en su papel
de investigador privado es contratado por Sara para encontrar al Cadáver que respira; 2. don
Falsoafán, inventor de nada y migrante del campo en la ciudad, que junto a su ayudante el
Puntocom serán actores importantes en el despertar de Sara; 3. Juan Chusa Pankataya, tull-
qa4 de Macha,5 que a su llegada a la ciudad de La Paz se convierte primero en un empleado
público y luego en cadáver postizo en entierros donde el cuerpo del muerto no está presente;
4. el Cadáver que respira, sin duda el más inasible de todos, personaje milenario que deberá
aparecer para que Sara Chura despierte y que, en última instancia, deviene en un concepto.
Dentro de toda esta trama, que a momentos roza con el género policial en tanto se tiene por
objetivo encontrar a uno de los personajes, el capítulo central titulado “El bolero triunfal
de Sara” es el eje principal que por vía de un plano mítico y por medio de una construcción
verbal anuncia y narra los sucesos que acompañarían el día en que Sara Chura despierte, su-
cesos que en el presente de la novela no llegan a darse, sucesos que se presentan en la entrada
triunfal de Sara acompañada de seres mitológicos de las regiones andinas. En relación a esto
último, es importante señalar además que esta novela es un ejercicio de escritura donde Juan
Pablo Piñeiro hace una lectura propia de los mitos, ritos y costumbres de la zona andina que
giran en torno a la construcción de esta mujer denominada Sara Chura.6

2 El 11 de diciembre de 2019 la Unesco declaró Patrimonio Cultural Inmaterial de la Humanidad a la fiesta de la Santísima
Trinidad del Señor Jesús del Gran Poder, o como se la conoce mayormente Fiesta del Gran Poder.
3 VILLAGÓMEZ, Carlos. El espacio de la fiesta y la protesta. La Paz imaginada. Bogotá: Alfaguara. p. 62-69, 2007
4 “Tullqa es, según la cosmovisión de la novela, el que —en la comunidad quechua de Macha— hace de familiar o de
amigo difunto que regresa al mundo de los vivos el día de la cosecha, en la época del carnaval. En la imperfecta traducción
que de esos hechos intraducibles hace la ciudad heterogénea y abigarrada de La Paz, uno de los personajes, Juan Chusa
Pankataya, indio originario de aquella comunidad, pasa a fungir de sustituto de cadáver, porque una familia no encuentra
el cuerpo del difunto, un obrero que se ha llevado el río. En esos traspasos, traducciones defectuosas de una cosmovisión
a otra, de un sentido a otro, de un orden a otro, etcétera, se abre y despierta también el entre-lugar para la paradoja, el
absurdo y la parodia” (RODRÍGUEZ MÁRQUEZ, 2008, p. 236).
5 San Pedro de Macha es una localidad altiplánica ubicada en el norte del departamento de Potosí. Conocida por ser
escenario de ritual andino del Tinku.
6 Como veremos a continuación, ya la crítica literaria ha leído la novela relacionándola con el acto de relectura de la tra-
dición oral andina representada en cosmogonías y personajes mitológicos.

Sumário 29
Cuando Sara Chura despierte, aunque de reciente data, ha llamado la atención lec-
tora debido, sobre todo, a su tratamiento de la narración, de la cosmovisión andina y la
representación de la Ciudad de La Paz. Entonces, no es casualidad que en estos últimos
años hayan proliferado los estudios críticos sobre la novela de Piñeiro –sobre todo a partir
de la publicación de la edición crítica de la novela el año 2018– y tampoco que dos de los
primeros hayan sido de Rosario Rodríguez Márquez que en “De Juan de la Rosa a las múl-
tiples pieles Sara Chura” (2007)7 realiza un acercamiento a la obra, en lectura comparativa
con la novela de Nataniel Aguirre, a partir del espacio urbano-andino visto como lugar de
cambios; y en el capítulo “Pensando y escribiendo el mundo desde Los Andes” de su tesis de
doctorado De mestizajes, indigenismos, neoindigenismos y otros: la tercera orilla (sobre la literatura
escrita en castellano en Bolivia) (2008)8 realiza una lectura de la novela –ahora en comparación
a la Nueva Corónica y buen gobierno escrita en el Siglo XVII por Guamán Poma de Ayala– des-
de la idea que en su escritura se actualizan “una serie de percepciones, sistemas, nociones
y símbolos de la cultura andina”.9 Ambos acercamientos críticos relacionan, además, a la
estructura de la novela con la lógica de los textiles andinos. Lógica que ha de articular a
posterior, cual rizoma, las lecturas de la crítica literaria sobre la obra. Para poder organizar
ordenadamente este corpus es que se han identificado cuatro espacios desde los cuales se ha
escrito sobre la novela: 1. ciudad y espacio (migración, espacio urbano); 2. lenguaje y cam-
bio social (lenguaje local y enunciación); 3. mitología andina (fiesta andina, tiempo mítico y
femenino); 4. contexto e intertexto (tradición literaria, literatura boliviana contemporánea).
En el primer grupo de lecturas que enfatizan la cuestión de la ciudad y el espacio
en la novela de Piñeiro tenemos los textos “Cuando Sara Chura despierte. Paxp’akus y espacio
vivido andino” (2012)10 de Lucía Aramayo y “El entretejido de una literatura boliviana an-
dina desde las novelas Felipe Delgado de Jaime Saenz y Cuando Sara Chura despierte de Juan
Pablo Piñeiro” (2012)11 de Ramiro Huanca. Acá se lee la ciudad desde sus minorías, ima-
ginarios y posibles cambios donde la palabra actuaría como fundadora de espacios andinos
–tripartición andina del espacio– y desde la mirada a las profundidades del mundo andino.
De lenguaje y cambio social tratan los textos: “Cuando Sara Chura despierte: Pachacutic y la
muerte del cadáver que respira” (2012)12 de Lucía Aramayo; “Cuando Sara Chura despierte y

7 RODRÍGUEZ MÁRQUEZ, Rosario. De Juan de la Rosa a las múltiples pieles Sara Chura. Revista de Estudios Bolivia-
nos, n. 13, 2007.
8 RODRÍGUEZ MÁRQUEZ, Rosario. Pensando y escribiendo el mundo desde Los Andes. In: RODRÍGUEZ MÁR-
QUEZ, Rosario. De mestizajes, indigenismos, neoindigenismos y otros: la tercera orilla (sobre la literatura escrita en
castellano en Bolivia). Tesis (PhD in Hispanic Languages and Literatures) - University of Pittsburgh, 2008.
9 Previo a este capítulo, que es el quinto en la tesis, se hacen lecturas relacionadas de los libros Raza de bronce (1919) de
Alcides Arguedas; Juan de la Rosa (1885) de Nataniel Aguirre; Yanakuna (1952) de Jesús Lara; Manchay Puytu, el amor que
quiso ocultar dios (1977) de Néstor Taboada Terán; Manuel y Fortunato: una picaresca andina (1997) de Alisson Sppeding; y
Chojcho con audio de rock p’sshado (1993) de Adolfo Cárdenas.
10 Capítulo 4 de la tesis de maestría Las pieles que habitamos: Chuquiago, la ciudad-mercado donde también se hace una lec-
tura de Imágenes paceñas (1979) de Jaime Sáenz. La tesis, en general, analiza “las tensiones que hay entre las formas de
entender y vivir el espacio en Churubamba” (la zona más antigua de la Ciudad de La Paz). ARAMAYO, Lucía. Cuando
Sara Chura despierte. Paxp’akus y espacio vivido andino. Las pieles que habitamos: Chuquiago, la ciudad-mercado. Tesis
(Master of Arts) - The University of Texas at Austin, 2012.
11 HUANCA, Ramiro. El entretejido de una literatura boliviana andina desde las novelas Felipe Delgado de Jaime Saenz y
Cuando Sara Chura despierte de Juan Pablo Piñeiro. Kipus. Revista Andina de Letras, n. 31, 2012.
12 ARAMAYO, Lucía. Cuando Sara Chura despierte: Pachacutic y la muerte del cadáver que respira. Sin fronteras: Sin-Is-
mos, n. 1, 2012.

Sumário 30
la interseccionalidad de los Andes” (2014)13 de Ruth Bautista; “Más allá de la hibridez: la
ciudad ch’ixi de Juan Pablo Piñeiro” (2011)14 de Hernando Merixtell. Este segundo grupo
de textos pone énfasis en la capacidad que la novela tendría de instaurar un cambio (un pa-
chacutic) en la realidad inmediata desde lógicas –como las del “chixi” y del “abigarramiento
lingüístico”– que entrarían en juego en el mismo texto. El grupo de textos que tratan la
mitología andina en la novela son: “Epifanía del tiempo mítico aymara y conjunción de los
opuestos por mediación de la belleza textual/textil en Cuando Sara Chura despierte de Juan
Pablo Piñeiro” (2011)15 de Camila Bari y “Sara Chura esa tejedora de filigranas” (2018)16 de
Christian Vera. Estos relacionan en la novela un tiempo lineal con un tiempo aymara y la
figura de la Pachamama con la de Sara Chura, siendo esta última “una gran metáfora de lo
femenino”. Por otra parte, el cuarto espacio, y el menos explorado por la crítica literaria de
la novela, contexto e intertexto tiene como lecturas el breve, pero, interesante texto “Libros
clave de la narrativa boliviana (XIV). Cuando Sara Chura despierte de Juan Pablo Piñeiro”
(2009)17 de Marcelo Villena y “Antezana, Hasbún, Piñeiro. Primeras notas en torno a al-
gunas últimas tramas de la narrativa boliviana”18 (2012) de Ana Rebeca Prada. El primero,
encuentra en la novela, dos gestos en esta escritura relacionados al diálogo con la historia y
la tradición y a una escritura compleja en su estructura; todo esto asimilado en una “poética
de la ‘levedad’” –término prestado de Italo Calvino–. Por su parte Prada encuentra en la
novela de Piñeiro, en relación comparativa con la narrativa boliviana contemporánea, una
renovación del intertexto, una gran presencia del humor y del erotismo, donde es primordial
la capacidad libre que estos narradores tienen de leer e interpretar referentes nacionales.
Como es posible observar, las múltiples lecturas que ha generado la novela en
menos de 20 años no son tan diversas entre sí, sino que mantienen ciertas afirmaciones y en-
tradas ya marcadas en un principio por Rosario Rodríguez Márquez. Aquella que puede dar
aún cabida a incursiones de relevancia lectora es la del espacio que he denominado “contex-
to e intertexto”. Es en este sentido que es pertinente profundizar en estos rasgos que ya Ana
Rebeca Prada había señalado en su ensayo del 2012 –aunque extrañamente en la novela de
Piñeiro no menciona rasgo alguno– y que Marcelo Villena el 2009 menciona rápidamente
al referirse al Cadáver que respira “como un objeto oscuro del deseo”. El erotismo es sin
duda un aspecto importante e interesante en Cuando Sara Chura despierte, y que por demás
sobrepasa una lógica andina o regional.
El fuego original y primordial, la sexualidad, levanta la llama roja del erotismo y
ésta, a su vez, sostiene y alza otra llama, azul y trémula: la del amor. Erotismo y
amor la llama doble de la vida.
(Octavio Paz)

13 BAUTISTA, Ruth. Cuando Sara Chura despierte y la interseccionalidad de los Andes. Pensamiento decolonial y litera-
tura. La Paz: Carrera de Literatura-Programa de Posgrado, 2014.
14 MERIXTELL, Hernando. Más allá de la hibridez: la ciudad ch’ixi de Juan Pablo Piñeiro. Estudos de literatura brasi-
leira contemporânea, n. 38, 2011.
15 BARI, Camila. Epifanía del tiempo mítico aymara y conjunción de los opuestos por mediación de la belleza textual/
textil en Cuando Sara Chura despierte de Juan Pablo Piñeiro. Revista de Literatura, História e Memória, n. 9, 2011.
16 VERA, Christian. Sara Chura, esa tejedora de filigranas. Página Siete. La Paz, 25 noviembre 2018.
17 VILLENA, Marcelo. Libros clave de la narrativa boliviana (XIV) Cuando Sara Chura despierte de Juan Pablo Piñeiro.
Centro Virtual Cervantes, jun. 2009.
18 PRADA, Ana Rebeca. Antezana, Hasbún, Piñeiro. Primeras notas en torno a algunas últimas tramas de la narrativa
boliviana. Escritos críticos: literatura boliviana contemporánea. La Paz: Instituto de Estudios Bolivianos / Carrera de
Literatura, 2012.

Sumário 31
La sexualidad, el erotismo y el amor han estado profundamente vinculados desde
nuestras más antiguas concepciones de la vida –sean cual fueren nuestros orígenes–. Arti-
culado este conjunto en el mal temido y bien llamado deseo son experiencias corporales
que son inherentes al ser humano y a los discursos que brotan de su pensamiento. Desde la
literatura y el arte varios son los “clásicos” que tratan el deseo y también el erotismo de uno
u otro modo. Platón ejemplo del primero y Sade del segundo.
Sin afán universal, pero si universalizador –en un intento de “unidad del espíritu
humano”, como diría el entendido en erotismo Georges Bataille– es que el presente ensayo
sobre Cuando Sara Chura despierte de Juan Pablo Piñeiro desarrollará la construcción de diná-
micas eróticas en la narración, a partir del accionar de las presencias femeninas en la novela.
En este caso es necesario, al menos por ahora, entender el erotismo, siguiendo a Bataille,
como aquella actividad dentro del plano de la sexualidad desligada del fin reproductivo y
afianzada en la búsqueda del goce.
Tres dinámicas eróticas son las presentes en los personajes femeninos de la no-
vela (seducción, violencia y reproducción). Y éstas, a su vez, realizan una búsqueda del
objeto del deseo por medio de la palabra y el cuerpo. A continuación, desarrollaremos esta
propuesta desde las figuras femeninas de Sara Chura, las mujeres en las vidas de los otros
personajes y Lucía.

Sara Chura: deseo y seducción

Y si hay en Cuando Sara Chura despierte una importante presencia del erotismo es
porque éste tiene un papel relevante dentro de la trama y el fin último de Sara Chura, la mu-
jer que viste las doce polleras de distintos colores. Y es que Sara se vale en todo momento de
dinámicas de seducción, por medio de la palabra y el cuerpo, para que sus otras “presencias”
(César Amato, Juan Chusa Pankataya, Don Falsoafán, Puntocom) le puedan ayudar a en-
contrar al Cadáver que respira para que así esta “ancestral mujer” pudiera, al fin, despertar
el día de la entrada del Señor del Gran Poder: el Cristo de los tres rostros.19
Por tanto, si son palabra y cuerpo los mecanismos de seducción que Sara Chura
ejerce sobre las presencias de César Amato, Juan Chusa Pankataya, Don Falsoafán y Pun-
tocom estos se manifiestan a lo largo de la novela de diferentes maneras y en diferentes mo-
mentos. El poder de la palabra es quizás el más evidente y el que más ecos tiene luego en la
construcción de la dinámica erótica de la seducción. Recordemos que en el primer encuen-
tro que Sara tiene con César ella se dirige a éste en aymara y en los últimos momentos de
la novela ésta se dirigirá a sus otras presencias en el Illimani desde el mundo de los sueños.
Desde estos dos lugares, una lengua ancestral y un mundo fuertemente relacionado con las
revelaciones, es que Sara Chura ha de convencer a sus presencias para ayudarle a encontrar
al Cadáver que respira. En cambio, el cuerpo en tanto mecanismo de seducción y desde una
19 Esta imagen “tiene sus indicios en la época de la Colonia [que] en un momento dado, fue rechazada. Autoridades
eclesiásticas declararon a la imagen contra el rito religioso por decisión del Concilio de Trento, observaron que el Cristo
tuviera tres cabezas ‘como si fuera un monstruo’”. Después de pasar de conventos a casas de familias acomodadas de la
ciudad “la pintura llegó a la zona Chijini donde fue aceptada y recibida por los habitantes, quienes eran emigrantes del área
rural, y decidieron rendirle culto. En el proceso de evangelización se pretendió que los indígenas entendieran que ese Cristo
era un Dios trino, Padre, hijo y Espíritu Santo. Sin embargo, interpretaron las cabezas como el Alaxpacha (el mundo de
arriba), Akapacha (parte de este mundo) y Manqhapacha (el mundo de abajo). [...] Los emigrantes expresaron su devoción
a la imagen con música, danza y vestimenta, y esta tradición invadió todo Chijini. A medida que el barrio cundió de gente
adinerada (comerciantes), la festividad fue mejorada con la participación de danzas folklóricas” (PIEB, 2011).

Sumário 32
descripción hiperbólica de Sara, es el que mayor poder ejerce sobre el desarrollo de las vidas
de los otros personajes en el presente de la novela. “Misteriosa mujer... [que] medía más de
tres metros”20, Sara Chura es “esa mujer antigua, corazón metafísico de todas las mujeres”21,
esa tejedora ancestral, que con la “dulzura de una niña”22 y el canto poseído por la sirena23
logrará despertar el día de la Entrada del Señor del Gran Poder.
Y si son palabra y cuerpo los mecanismos de seducción de Sara Chura, el Ca-
dáver que respira es en sí el fin último de esta búsqueda que anteriormente señalábamos.
Recordemos que lo que funciona como móvil de la trama es la búsqueda de dicho personaje.
Éste deviene en un “oscuro objeto del deseo”24 por parte de Sara Chura. Esta mujer ances-
tral, además de necesitar al cadáver para poder despertar, necesita de éste en tanto cuerpo y
presencia física. El deseo queda ya manifestado al inicio de la novela cuando César Amato,
bajo los efectos de la lejía dulce, anuncia el despertar de Sara:
Te inquieta esa enferma criatura, la necesitas porque de algún modo se te parece.
Eres aquel que ha tratado de retener tantas veces, incluso encadenándolo a una silla,
y siempre se ha burlado de ti. (...) Tantas veces ha desaparecido y vuelto a ti dis-
frazado con los más extraños atuendos, siempre con el tufo de los que saben que el
mundo es insondable.25

Acá sorprende la relación entre el Cadáver... y Sara Chura por tres motivos. Pri-
mero, porque es el personaje quien, aparentemente, más se parece a la mujer ancestral. Se-
gundo, porque el juego de aparecer-desaparecer que el Cadáver... ejerce sobre Sara no solo
deja a ésta en una posición que la hace parte de un juego, sino que también en tanto objeto,
y no así de jugadora. Esta estrategia, además, el finado habría ejercido ya anteriores veces.
Tercero, porque en esta consciencia de ser parte de un juego, Sara es la que aún desea la
presencia física del Cadáver...; los mecanismos que utilizará luego con sus demás presencias
no funcionarán con él debido a que su inquietante y casi volátil presencia le permite burlarse
en todo momento de la imponente mujer.
Entonces, si a alguien ha de desear realmente Sara Chura es al Cadáver que res-
pira porque solo en él sus mecanismos de seducción no surten efecto y porque en sí el deseo
tiene forma en la búsqueda de algo que realmente no se posee. “En todo encuentro erótico
hay un personaje invisible y siempre activo: la imaginación, el deseo. En el acto erótico
intervienen siempre dos o más, nunca uno” dice Octavio Paz.26 En la novela de Piñeiro la
relación entre Sara y el Cadáver está cuanto menos direccionada a ese anhelo de tener la
presencia física del objeto deseante en un acto que por consumación final daría el despertar
de la ancestral mujer.

20 PIÑEIRO, Juan Pablo. Cuando Sara Chura despierte. 5. ed. La Paz: 3600, 2016, p. 23.
21 Ibid., p. 69.
22 Ibid., p. 24.
23 Ibid., p. 130.
24 VILLENA, op. cit..
25 PIÑEIRO, op. cit., p. 25.
26 PAZ, Octavio. La llama doble. Amor y erotismo. Barcelona: Seix Barral, 1993.

Sumário 33
De mujeres y vidas paralelas: santas y voluptuosas

Pero el erotismo en la novela no solo se limita a la figura imponente de esta mu-


jer, aunque por demás la más importante; hay otras presencias femeninas que igual articulan
las vidas paralelas de estas otras presencias. Las mujeres en las vidas de César Amato, Juan
Chusa Pankataya, Don Falsoafán y Puntocom tienen dentro de los pequeños universos de
los capítulos de la novela lugares más y menos importantes con presencias en menor o mayor
medida eróticas. “Santas y voluptuosas”, figuraciones de la dinámica del cuerpo, serán los
roles que ejerzan sobre las vidas de las “presencias” de Sara Chura: “La santa llena de pavor,
aparta la vista del voluptuoso; ignora la unidad que existe entre las pasiones inconfesables
de éste y las suyas”.27 Ambas, santas y voluptuosas, dentro de esta dinámica de la seducción
juegan entre el cubrir y descubrir del cuerpo, respectivamente.
Si de santas hemos de hablar en la novela de Piñeiro primero debemos remitirnos
a la figura de Doña Elsa, dueña de la pensión Jiramaicu. Esta mujer, aunque de fugaz apa-
rición, encarna en su personaje un rol protector hacía su sobrina que en el momento de la
borrachera de Jerky, un pedazo de charquekán parlante, pasa a ser objeto del deseo de éste.
De “La vida según Juan Chusa Pankataya” traemos a colación a las mujeres en la vida de
Don Joaquín Alicate, compañero de trabajo de Chusa en los oficios burocráticos de la trans-
cripción. La abuela y madre de Alicate serán la razón de la hiperactividad que éste padece;
la primera horneadora compulsiva de galletas y la segunda obsesionada con la limpieza son
la negación de la actividad personal a expensas del beneficio del otro. Las mujeres que lloran
la muerte de Rufino Vargas en su entierro son también la representación de esta negación del
cuerpo en la muerte de aquello que se ha deseado antes. “El erotismo es ante todo y sobre
todo sed de otredad”28, la ansiedad ya no solo tener presente el cuerpo deseado sino también
la necesidad misma de retenerlo.
Y si de voluptuosas hablamos, no debemos olvidar a Marta, esposa del Punto-
com, y Francisca, esposa de Juan Chusa Pankataya. La primera, después de cometer el adul-
terio con Adhemar Méndez y provocar el envenenamiento de éste por parte del Puntocom,
queda con el cuerpo marcado por el territorio de un muerto. La segunda, por su parte, no
menos adúltera y marcada por la muerte, es la que junto a su amante Don Saturnino, her-
mano de su difunto esposo, han de provocar la expulsión de su hijo Juan Chusa Pankataya,
el Tullqa de Macha.
Las santas son así la representación del pavor y del juego del cubrir algo a la mi-
rada del otro. Las mujeres de Rufino marcan la distancia con el velo del duelo, no se desean
vistas por los otros sino solo al finado. La abuela y la madre de Alicate son la representación
de un hogar protector para el niño, ese hogar entendido como espacio que cubre u oculta al
niño del exterior en sus primeros años de vida. Y Doña Elsa es la obstrucción que la mira-
da deseante del Jerki tiene delante del objeto deseado. El temor y el espanto de descubrir el
cuerpo del otro es acá motivo para el accionar de estas santas. Las voluptuosas, en cambio,
son la afirmación del deseo por la mirada del otro y, por ende, la representación del juego
del descubrir. Francisca afirma desde su lugar de esposa viuda su deseo de seguir siendo
deseada. Marta sobrepasa ciertas normas de la sociedad por el deseo de ser deseada por al-
27 BATAILLE, George. El erotismo. Barcelona: TusQuets, 2007, p. 5.
28 PAZ, op. cit..

Sumário 34
guien más que su esposo el Puntocom. Ambas, santas y voluptuosas, son así la afirmación o
negación del cuerpo según sea el caso y la intención.
Pero “con todo no es imposible hallar la coherencia del espíritu humano, cuyas
posibilidades se extienden en un territorio que va desde la santa hasta el voluptuoso”.29 La
construcción de las dinámicas eróticas (seducción, violencia y reproducción) en Cuando Sara
Chura despierte construyen desde estas mujeres en estas vidas paralelas lógicas con diferentes
formas de relacionarse, en un primer nivel, con el otro – en este caso los hombres– y con el
propio cuerpo. Por ejemplo: es innegable la dinámica de seducción y violencia en Francisca
y Marta; o la negación de una dinámica violenta y reproductiva en la abuela y la madre de
Alicate y Doña Elsa.

Lucía Apaza: violencia y reproducción

Y si hay una mujer también importante, pero de diferentes características seduc-


toras, es sin duda Lucía, la joven ciega esposa del candidato a la presidencia Al Pacheco. Si
Sara Chura es “todas las mujeres”, Lucía es una de esas mujeres que representan la totalidad
de ese femenino que se presenta, sobre todo, desde las dinámicas eróticas de la violencia y
la reproducción. Su aparición dentro de la trama de la novela estará relacionada sobre todo
con la representación –en tanto acto de reproducción– de la ciudad de La Paz y el encuentro
final de ésta con Sara Chura.
Recordemos que Lucía dentro de su habitación realiza una re-producción de la
ciudad de La Paz el día de la Fiesta del Señor del Gran Poder. Esta escena no debe parecer-
nos ajena ni mucho menos diferente a la que Ricardo Piglia en el prólogo a El último lector
(2005) nos presenta donde un fotógrafo, llamado Rusell, ha construido una réplica de la
ciudad de Buenos Aires:
No es un mapa, ni una maqueta, es una máquina sinóptica; toda la ciudad está ahí,
concentrada en sí misma, reducida a su esencia. (...) Russell cree que la ciudad real
depende de su réplica y por eso está loco. (...) Ha alterado las relaciones de represen-
tación, de modo que la ciudad real es la que esconde en su casa y la otra es solo un
espejismo o un recuerdo.30

Al igual que Rusell, acá Lucía, por medio de la reproducción, haría que de “sus
numerosas maquetas” dependa el destino de la ciudad. Pues las cosas que suceden en la en-
trada del Gran Poder se pueden ver en las maquetas –que “en verdad se trataba de una sola
maqueta, la maqueta de la Ciudad de La Paz”–, en esa “reproducción perfecta, minuciosa-
mente trabajada, donde cada casa, cada esquina, cada persona estaba fielmente reflejada”.31
Pero también allí donde Lucía se presta a trabajar con la reproducción de la
ciudad se presenta también a las miradas de Don Falsoafán y el Puntocom como un otro
objeto de deseo: “una mujer joven, de ojos grandes y labios carnosos; estaba vestida con un
traje gótico negro, tenía la cara pálida y el pelo trenzado; medía un metro cincuenta”.32 La
hermosa mujer de voz ronca pero muy dulce ejerce, desde su misma capacidad de tejer y

29 BATAILLE, op. cit., p. 5.


30 PIGLIA, Ricardo. Prólogo. El último lector. Buenos Aires: Anagrama, 2005.
31 PIÑEIRO, op. cit., p. 62.
32 Ibid., p. 61.

Sumário 35
entrever en este ejercicio los pormenores que suceden en la ciudad, un poder no solo sobre
su esposo Al Pacheco sino también sobre estos dos personajes. La dinámica de la reproduc-
ción –en tanto representación en este caso– viene de la mano del ejercicio del poder sobre el
otro. El saberse deseada le da este poder a Lucía ya no solo sobre Al Pacheco, como se vio
anteriormente.
Y ya a este punto de la lectura uno puede haber notado tanto las similitudes como
las diferencias entre esta joven tejedora con la ancestral mujer que es Sara Chura. El encuen-
tro entre ambas se deja esperar, y el momento en el que éste se produciría sería aquel en el
que Sara Chura despierte, momento que como dijimos no se da en el presente de la novela.
De este encuentro posible dos dinámicas eróticas son las que se desprenden: la violencia y la
reproducción –esta vez, en tanto acción de producir o fecundar–. La violencia del encuentro
marca no solo la relación de estas dos mujeres sino la iniciación de Lucía en los ejercicios de
la mirada, que como se vio antes son marca y ejercicio de otras dinámicas también eróticas:
Con un vidrio de botella [Sara Chura] pintará heridas en su córnea, como mujer
maquillada por el horizonte, que por primera vez verá, en la distancia gris, la tierna
vergüenza del sol, en el rubor de las nubes rojas, del dialecto secreto de la luna y
las mujeres, el orgullo ancestral, la primera menstruación tiñendo el cielo que será
mujer el día en que Sara Chura resplandezca.33

La reproducción, por su parte, marca acá el sentido y la relación en este encuen-


tro de mujeres hecho carne con la fecundación misma de la vida, la fertilidad y la palabra –y
es que ambas desde el poder del tejido y la palabra no solo son dadoras de vida sino también
de re-producción–. Ya Bataille afirmaba que, aunque erotismo y reproducción se oponen,
“el sentido fundamental de la reproducción es la clave del erotismo”.34 Lucía Apaza y Sara
Chura, la primera que deviene de la segunda en tanto es parte de esta feminidad totalizado-
ra, son así representaciones femeninas que desde su encuentro no ponen ya en contraposi-
ción el erotismo y la reproducción, sino que más bien los conjuncionan.
Ya para finalizar este ensayo es importante recordar que el propósito de éste era
evidenciar cómo se construyen en la novela de Juan Pablo Piñeiro ciertas dinámicas eróticas
desde las presencias femeninas, dinámicas que por lo demás sobrepasan lo andino o regio-
nal.35 Dinámicas que, al mismo tiempo, dejan ver el deseo de representar en el escenario
narrativo de una fiesta popular en el siglo xxi una memoria andina. Vimos que no solo la
figura de Sara Chura, aunque la más importante, es la que construye la narración desde la
configuración de un erotismo; sino que también existen otras presencias: santas y voluptuo-
sas, las hemos denominado en esta ocasión. La figura de Lucía vimos que también cobra
importancia en el desarrollo de la novela desde sus semejanzas, diferencias y su reconfigu-
ración de un erotismo en el encuentro con Sara Chura.
Pero si aún no queda evidenciada en su totalidad la importancia del erotismo en
Cuando Sara Chura despierte es porque aún no se han relacionado estas eróticas con uno de los

33 Ibid., p. 73.
34 BATAILLE, op. cit., p. 9.
35 Sin embargo, no está demás mencionar que, por ejemplo: la relación entre erotismo y sexualidad está fuertemente li-
gada en las comunidades andinas al ciclo agrario y por ende a la reproducción (ALIAGA, 1992, p. 331-334); y la relación
entre erotismo, sexualidad y humor a ciertas danzas del altiplano boliviano (SIGL, 2012 p. 51-86) que justamente son
puestas en escena en fiestas o entradas patronales como las del Señor del Gran Poder, escenario de la novela de Piñeiro.

Sumário 36
“postulados” más importantes de la novela: la negación de un tiempo lineal y finito.36 Es así
que si en la novela de Piñeiro existe una negación de un tiempo lineal y finito ésta está refor-
zada y respaldada, sobre todo, por su relación con las dinámicas eróticas de las presencias
femeninas en la narración. Un gesto, en última instancia, de nostalgia por la pérdida de una
continuidad. Pues, si dentro de la novela de Piñeiro los diferentes hilos de las presencias de
Sara Chura tratan de evidenciar y entretejer un enorme tejido que anularía una concepción
lineal de la vida con nacimiento y muerte, la presencia potente del erotismo, desde la figura-
ción de ciertas dinámicas eróticas, es “una aprobación de la vida hasta en la muerte”37. Una
celebración de la vida en la fiesta que puede ser en sí todas las fiestas.

Referencias
ALIAGA, Francisco. La sexualidad andina. Hispanística XX, n. 9, p. 331-334, 1992.
ARAMAYO, Lucía. Cuando Sara Chura despierte. Paxp’akus y espacio vivido andino. Las pieles que
habitamos: Chuquiago, la ciudad-mercado. Tesis (Master of Arts) - The University of Texas at
Austin, 2012.
— Cuando Sara Chura despierte: Pachacutic y la muerte del cadáver que respira. Sin fronteras: Sin-
-Ismos, n. 1, 2012.
BATAILLE, Georges. El erotismo. Barcelona: TusQuets, 2007.
BARI, Camila. Epifanía del tiempo mítico aymara y conjunción de los opuestos por mediación de
la belleza textual/textil en Cuando Sara Chura despierte de Juan Pablo Piñeiro. Revista de Literatura,
História e Memória, n. 9, 2011.
BAUTISTA, Ruth. Cuando Sara Chura despierte y la interseccionalidad de los Andes. Pensamiento
decolonial y literatura. La Paz: Carrera de Literatura-Programa de Posgrado, 2014.
HUANCA, Ramiro. El entretejido de una literatura boliviana andina desde las novelas Felipe Delga-
do de Jaime Saenz y Cuando Sara Chura despierte de Juan Pablo Piñeiro. Kipus. Revista Andina de
Letras, n. 31, 2012.
MERIXTELL, Hernando. Más allá de la hibridez: la ciudad ch’ixi de Juan Pablo Piñeiro. Estudos de
literatura brasileira contemporânea, n. 38, 2011.
PAZ, Octavio. La llama doble. Amor y erotismo. Barcelona: Seix Barral, 1993.
PIGLIA, Ricardo. Prólogo. El último lector. Buenos Aires: Anagrama, 2005.
PRADA, Ana Rebeca. Antezana, Hasbún, Piñeiro. Primeras notas en torno a algunas últimas tra-
mas de la narrativa boliviana. Escritos críticos: literatura boliviana contemporánea. La Paz: Insti-
tuto de Estudios Bolivianos / Carrera de Literatura, 2012.
PIEB. Un Cristo de tres cabezas, el origen de las expresiones del Gran Poder. Periódico Digital
de Investigación sobre Bolivia, La Paz, jun. 2011. Disponible en: http://www.pieb.com.bo/nota.
php?idn=4977. Accedido el: 21 junio 2020.
PIÑEIRO, Juan Pablo. Cuando Sara Chura despierte. 5. ed. La Paz: 3600, 2016.
RODRÍGUEZ MÁRQUEZ, Rosario. De Juan de la Rosa a las múltiples pieles Sara Chura. Revista
de Estudios Bolivianos, n. 13, 2007.
— Pensando y escribiendo el mundo desde Los Andes. In: RODRÍGUEZ MÁRQUEZ, Rosario. De
mestizajes, indigenismos, neoindigenismos y otros: la tercera orilla (sobre la literatura escrita en

36 Ya varios críticos han abordado el tema del tratamiento del tiempo en la novela Piñeiro. Varios de estos han relacionado
esta idea de un tiempo circular o cíclico en la novela con una concepción andina del mundo. Creo yo, sin embargo, que
para esta ocasión basta solo con aceptar que sí existe una noción no-lineal del tiempo.
37 BATAILLE, op. cit., p. 8.

Sumário 37
castellano en Bolivia). Tesis (PhD in Hispanic Languages and Literatures) - University of Pittsburgh,
2008.
SIGL, Eveline. Erotismo, sexualidad y humor en las danzas del altiplano boliviano. Maguaré, v. 26,
n. 2, p. 51-86, jul./dic. 2012.
VERA, Christian. Sara Chura, esa tejedora de filigranas. Página Siete. La Paz, 25 noviembre 2018.
VILLENA, Marcelo. Libros clave de la narrativa boliviana (XIV) Cuando Sara Chura despierte de Juan
Pablo Piñeiro. Centro Virtual Cervantes, jun. 2009. Disponible en: https://cvc.cervantes.es/el_rin-
conete/anteriores/junio_09/19062009_02.asp. Accedido el: 19 octubre 2019.
VILLAGÓMEZ, Carlos. El espacio de la fiesta y la protesta. La Paz imaginada. Bogotá: Alfaguara.
p. 62-69, 2007.

Sumário 38
La migración y el viaje como forma
de desplazamiento en las A méricas
en M ás A llá del I nvierno , de I sabel
A llende

Luana Yakira Rodrigues Mendes


Tatiana da Silva Capaverde

H
ija del diplomático chileno Tomás Allende, Isabel Allende Llona nasció
el 2 de agosto de 1942, en Lima, Perú. Debido a la separación de sus
padres, se mudó para Chile aun cuando niña, siendo así, considerada de
nacionalidad chilena. Pasó a ser reconocida mundialmente como escritora debido al éxito
de su primer novela La Casa de los Espíritus, publicada en 1982, cuando aún estaba en exilio
después del golpe militar organizado por Augusto Pinochet, ocasión en que se murió su tío,
antiguo presidente de Chile, Salvador Allende. Estudió periodismo, trabajó para periódicos
y para la televisión, escribió obras para el teatro y cuentos infantiles. Sus obras ya fueron
traducidas para más de treinta idiomas y es considerada la escritora viva de lengua española
más leída de la actualidad.

La novela Más allá del Invierno, publicada en 2017, ambientada en los Estados
Unidos, nos presenta la historia de tres personajes centrales: Lucía Maraz, chilena, que
está en Estados Unidos a trabajo; Evelyn Ortega, guatemalteca, que está ilegalmente en el
país; y Richard Bowmaster, amigo de Lucía, nativo del país y descendiente de judíos. Esos
tres personajes tendrán sus vidas entrelazadas debido a acontecimientos inesperados que
os llevarán a convivir y a conocer la historia de vida unos de los otros. La obra presenta el
punto de vista de cada uno de los personajes de forma intercalada. Los capítulos presentan
los tiempos presente y pasado, describiendo los acontecimientos del presente y los recuer-
dos de la vida de los personajes antes del desplazamiento para los Estados Unidos y, por lo

Sumário 39
tanto, antes de que se conocieran. Esa construcción narrativa revela al lector los hechos que
los llevaron a estar donde están en el momento presente de la obra, además de revelar los
motivos y las explicaciones para ciertas características particulares y psicológicas de cada
uno de esos tres personajes.
Para mejor abordar los tipos de desplazamientos emprendidos por Lucía Maraz y
Evelyn Ortega, es necesario definir la migración y el viaje, caracterizando las especificidades
de esas diferentes formas de movilidad. El teórico Onfray nos presenta en su libro Teoria da
Viagem dos tipos de personas: nómada o sedentaria, las que son adeptas al desplazamiento
o al estatismo. Personas que se descubren deseosas de salir por el mundo a explorar o de no
salir de donde se está, permaneciendo arraigada en el mismo lugar1. Esos son principios que
se encuentran en el interior de cada individuo, como él bien caracteriza en la cita abajo:
[…] se vuelven hacia el naciente, se inclinan en dirección al poniente, se saben mor-
tales, es verdad, pero se sienten como fragmentos de eternidad destinados a moverse
en un planeta finito – estos viven de manera semejante a la energía que en ellos actúa
y que anima el resto del mundo; de manera igualmente ciega, otros experimentan el
deseo de arraigamiento, conocen los placeres del local y sospechan del global. Los
primeros aman la carretera, larga e interminable, sinuosa y zigzagueante; los segun-
dos se complacen con la madriguera, sombría y profunda, húmeda y misteriosa. 2 3 4

Los desplazamientos de pueblos entre las Américas siempre ocurrieron, quizá


por diversos motivos como la búsqueda por oportunidades mejores de vida, reunión fami-
liar, para escapar de la violencia o también el caso del exilio. Por eso se puede afirmar que
desde los tiempos de las colonias el movimiento entre los países siempre ocurrió, siendo la
movilidad una característica cultural propia de la América, como afirma Zilá Bernd:
[...] el concepto de movilidad ha sido destacado como una característica dominante
de las culturas americanas, que se manifiesta a través de pasajes, desplazamientos
y transferencias presentes en todos los niveles: cultural, discursivo, temporal, espa-
cial. Del desplazamiento paródico al metafórico, de pasajes de voces narrativas a los
grandes desplazamientos en el espacio y en el tiempo – frecuentes en obras cuyos
personajes son viajantes, caminantes, itinerantes, coureurs des bois, o flâneurs -, las
movilidades configuran la identidad americana. 5 6

El tema del desplazamiento que encontramos en la obra Más Allá del Invierno se
trata de un evento común ocurrido en el mundo hoy, pues vivimos en una época de globa-
lización y composición híbrida debido a los movimientos migratorios, siendo el desplaza-
1 ONFRAY, M. Teoria da Viagem: poética da geografia. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009. p. 9-10.
2 Todos los textos originales en lengua portuguesa fueron traducidos por las autoras del artículo.
3 Cf. o trecho original: “[...] voltam-se para o nascente, inclinam-se em direção ao poente, sabem-se mortais, é verdade,
mas se sentem como fragmentos de eternidade destinados a se mover num planeta finito – estes vivem de forma semelhante
à energia que neles atua e que anima o resto do mundo; de maneira igualmente cega, outros experimentam o desejo de
enraizamento, conhecem os prazeres do local e desconfiam do global. Os primeiros amam a estrada, longa e interminável,
sinuosa e ziguezagueante; os segundos se comprazem com a toca, sombria e profunda, úmida e misteriosa.”
4 ONFRAY, op. cit., p. 10
5 Cf. o trecho original: [...] temos destacado o conceito de mobilidade como uma característica dominante das culturas
americanas, manifestando-se através de passagens, deslocamentos e transferências presentes em todos os níveis: cultural,
discursivo, temporal, espacial. Do deslocamento paródico ao metafórico, de passagens de vozes narrativas aos grandes des-
locamentos no espaço e no tempo – frequentes em obras cujos personagens são viajantes, caminhantes, itinerantes, coureurs
des bois, ou flâneurs -, as mobilidades configuram a identidade americana.
6 BERND, Z. As Américas: nascimento e morte das utopias. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 67 out/dez. 2010.

Sumário 40
miento “asimilado como estado natural, como ejercicio sin fin, consustancial al humano.”
7 8
Y no se trata de un tema recurrente apenas socialmente, que se pasa en la vida real, sino
también lo es en el medio del arte, como tema ficcional. Como afirma Zilá Bernd (2007), “la
utilización constante de estrategias de desplazamientos, pasajes y transferencias culturales
que se verifica en la literatura y en las demás manifestaciones artísticas es factor predomi-
nante en la configuración cultural americana.” 9 10
En ese mismo texto de Zilá Bernd (2007), que trata de las figuraciones de la mo-
vilidad en las literaturas de las Américas, la autora presenta algunos conceptos de desplaza-
miento aplicados a diferentes áreas, como en la Física, en que “el desplazamiento representa
la porción de la trayectoria por la cual el objeto se desplazó.” 11 12. Su significación también
se aplica al área de los estudios culturales, asociada a los tránsitos humanos, en que la pala-
bra “desplazamiento”, para la autora, lleva un sentido de migración que tiene que ver con
persecuciones o violencia.13
Para González (2010), para pensar el concepto de desplazamiento, es primordial
para los estudios en el área de las ciencias sociales y de los procesos culturales tener en cuen-
ta las distintas subdivisiones, física, espiritual y lingüística, que existen dentro del proceso
de movilidad.14 Ese pensamiento se relaciona a lo que Olivieri-Godet (2010) afirma sobre
errancia, que, a pesar de presentar distintos aspectos, constituye la misma idea de desplaza-
miento, sea relacionado al físico o al mental, al desplazamiento voluntario o involuntario.15
De esa forma entendemos que el concepto de “desplazamiento” cubre diferentes
situaciones que se diferencian dependiendo del sujeto, del contexto en que el sujeto está
insertado y su historia vivida hasta ahí. Esa diversidad de abordaje está presente en la obra
aquí analizada, que presenta personajes provenientes de mundos diferentes, que pasaron y
pasan por situaciones diferentes, pero cada uno de ellos está en medio de su proceso de des-
plazamiento, o sea, “el concepto abarca un amplio universo de significados y de relaciones,
siendo la remisión al lugar, o a los neologismos derivados de la desconstrucción de la noción
de lugar, lo que articula esa amplia red conceptual.” 16 17
Tratando del análisis propuesta, se puede constatar que la obra trata del tema del
viaje y de la inmigración a través de los personajes Lucía Maraz y Evelyn Ortega. Por lo
tanto, el presente trabajo tiene como objetivo analizar las representaciones de viaje y migra-
7 Cf. o trecho original: “[...] assimilado como estado natural, como exercício sem fim, consubstancial ao humano”.
8 GONZÁLEZ, E. P. Deslocamento/Desplaçamento. In: BERND, Z. (Org.) Dicionário das mobilidades culturais: per-
cursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 117.
9 Cf. o trecho original: “[...] a utilização constante de estratégias de deslocamentos, passagens e transferências culturais
que se verificam na literatura e nas demais manifestações artísticas é fator predominante na configuração cultural ameri-
cana”.
10 BERND, Z. Figurações do deslocamento nas literaturas das Américas. Estudos de Literatura Brasileira Contemporâ-
nea, Brasília, n. 30, p. 96, julho/dezembro. 2007.
11 Cf. o trecho original: “[...] o deslocamento representa a porção da trajetória pela qual o móvel se deslocou”
12 BERND, op. cit., p. 89.
13 Ibid, p. 89.
14 GONZÁLEZ, op. cit., p. 109.
15 OLIVIERI-GODET, R. Errância/migrância/migração. In: BERND, Z. (Org.) Dicionário das mobilidades culturais:
percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 189-209.
16 Cf. o trecho original: “[...] o conceito abarca um amplo universo de significados e de relações, sendo a remissão ao
lugar, ou aos neologismos derivados da desconstrução da noção de lugar, o que articula essa ampla rede conceitual”.
17 GONZÁLEZ, op. cit., p. 109-110.

Sumário 41
ción presentes en la obra, utilizando como base teórica los conceptos de errancia, migración
(OLIVIERI-GODET, 2010), movilidad (BERND, 2003), viaje (ONFRAY, 2009) y desplaza-
miento (GONZÁLEZ, 2010).

La migración y el caso de Evelyn Ortega

Rita Olivieri-Godet (2010) en su texto Errância/migrância/migração, nos trae el


concepto de errancia como siendo un acontecimiento de múltiples faces, abordado en la
literatura desde los tiempos remotos por medio de diferentes figuras, personajes errantes,
tanto bíblicos como épicos, que tienen en común “la idea del desplazamiento físico o men-
tal, voluntario o involuntario.” 18 19. Debido a esas distintas acepciones, surge la imagen de la
errancia como algo positivo o negativo, siendo los dos casos observados en la obra de Isabel
Allende, a través de la figura de Lucía y Evelyn:
De ahí se deriva la ambivalencia de la imagen de errancia: positiva, como aventura
voluntariamente asumida que, en algunas narrativas posmodernas, evoluciona en el
sentido de la búsqueda de la desterritorialización de pertenencias, como viaje iniciá-
tica a la descubierta de sí mismo y de los otros: negativa como desarraigo involunta-
rio, con foco en las violencias de las travesías impuestas de territorios, representadas
por las figuras del inmigrante, del refugiado, del exilado, del que está al margen,
errantes excluidos. 20 21

Además, la autora trata de la migrancia como algo más allá de los cambios físicos
de un lugar para otro. Es algo más subjetivo y simbólico, relacionado a la construcción de la
propia identidad del sujeto. También presenta el concepto como un neologismo fuertemente
conectado a la actualidad, que lo ha creado para “figurar experiencias de desplazamientos y
modalidades intersubjetivas específicas de los tiempos actuales.” 22 23, teniendo su uso más
enfocado hoy día en el contexto social, del movimiento de individuos entre países.
Evelyn Ortega, personaje de Isabel Allende, es una chica guatemalteca, de origen
amerindia o maya, como lo sospecha Lucía en el libro (que no llega a aclarar eso), nacida en
una aldea llamada Monja Blanca del Valle, que vivía con su abuela, Concepción Montoya,
y sus dos hermanos, Gregorio e Andrés. El padre de Evelyn dejó a la familia emigrando
para la América del Norte en busca de trabajo y nunca más volvió o dio noticias, teniendo
la familia apenas rumores de que se había instalado en California. Cuando Evelyn tenía ya
sus seis años de edad, fue el momento en que su madre dejó a la familia e intentó conseguir
sustento en otro lugar. Esa situación era algo común en la comunidad y al que parece era lo
que la movía económicamente, o por lo menos contribuía en gran parte para la economía
local. La situación de migración entre los guatemaltecos es indicada en la cita abajo:
18 Cf. o trecho original: “[...] a ideia de deslocamento físico ou mental, voluntário ou involuntário”.
19 OLIVIERI-GODET, op. cit., p. 189.
20 Cf. o trecho original: “Daí decorre a ambivalência da imagem da errância: positiva, como aventura voluntariamente
assumida que, em algumas narrativas pós-modernas, evolui no sentido da busca da desterritorialização de pertencimentos,
como viagem iniciática à descoberta de si mesmo e dos outros; negativa como desenraizamento involuntário, enfocando
a violência das travessias impostas de territórios, representadas pelas figuras do imigrante, do refugiado, do exilado, do
marginal, errantes excluídos.”
21 OLIVIERI-GODET, op. cit., p. 189.
22 Cf. o trecho original: “[...] figurar experiências de deslocamentos e modalidades intersubjetivas específicas dos tempos
atuais”
23 OLIVIERI-GODET, op. cit., p. 190.

Sumário 42
Los Ortega no eran los únicos sin madre ni padre; dos tercios de los niños de la es-
cuela estaban en la misma situación. Antes sólo los hombres emigraban en busca de
trabajo, pero en los últimos años también las mujeres se iban. Según el padre Benito,
los emigrados mandaban varios miles de millones de dólares anuales para mantener
a sus familias, contribuyendo de paso a la estabilidad del gobierno y a la indiferencia
de los ricos. 24

En el pueblo, muchos no terminaban sus estudios y acababan uniéndose a pan-


dillas y fue lo que ocurrió con el hermano mayor de Evelyn. La premisa del grupo con el
cual se unió Gregorio era no tener más relaciones con la familia, no sentir afecto. Importaba
apenas mantener el coraje, el honor y la lealtad a la pandilla. Sin embargo, Gregorio seguía
próximo a sus hermanos, lo que acarretó en su asesinato y en la amenaza a su familia por
parte del propio bando al cual pertenecía. Después de lo ocurrido con su hermano, Evelyn
no pudo más hablar y actuar como antes, se convirtió en tartamuda, y ni su abuela conse-
guía entenderla. Posteriormente a un ataque sufrido en su casa en que su hermano menor no
logró sobrevivir y Evelyn se quedó gravemente herida, la abuela decidió enviarla para lejos,
por su propia seguridad, pues como había sobrevivido, corría riesgo de vida si permaneciera
en la comunidad. A partir de ahí se inició la jornada de Evelyn para llegar a los Estados
Unidos, de manera ilegal, escondida y temiendo por su vida.
De esa forma, vemos que el desplazamiento vivido por ese personaje se trata
de un desplazamiento de característica negativa, de desarraigo involuntario, llevándose en
cuenta las condiciones que la “expulsaron” de su país. Onfray (2009), en su obra Teoria da
Viagem, define dos tipos de viajantes: aquellos que en un momento se descubren apasiona-
dos por el inmovilismo, o aquellos que son adeptos al desplazamiento, “amante de los flujos,
el transporte […]” 25 26. Evelyn es el ejemplo del viajante que es “apasionado por el estatis-
mo, la inmovilidad y raíces.” 27 28. Como declara Amaro (2013), “Hay personas a las cuales
lo que les importa es la quietud, la conformidad con sus memorias personales, con su nicho
definido y cultivado de viejos amigos, satisfechos con lo que ya vivieron y experimentaron.
Ellos eligen apenas un lugar para establecer un hogar, para aprehender la realidad.” 29 30
La caracterización del personaje en la obra indica esa negatividad del desarraigo
involuntario, pues diferente de su hermano menor, que soñaba con ir a los Estados Unidos
a ganar dinero para ayudar a la familia, ella, por otro lado, “no deseaba una vida en otra
parte. Sólo conocía su aldea y la casa de su abuela.” 31 Además de eso la composición del
personaje representa lo que afirma Bernd (2007) en su artículo sobre los desplazamientos
en las literaturas americanas, en que la autora apunta la relación de la migración con perse-
24 ALLENDE, I. Más Allá del Invierno. Barcelona: Penguin Random House Grupo Editorial, 2017. p. 48-49.
25 Cf. o trecho original: “[...] amante de fluxos, transportes”.
26 ONFRAY, op. cit., p. 9.
27 Cf. o trecho original: “[...] apaixonado por estatismo, imobilismo e raízes”.
28 ONFRAY, op. cit., p. 9.
29 Cf. o trecho original: “Há pessoas as quais o que importa é a quietude, a conformidade com suas memórias pessoais,
com seu nicho definido e cultivado de velhos amigos. Satisfeitos com o que já viveram e experimentaram. Eles elegem um
só lugar para estabelecer morada, para apreender a realidade.”.
30 AMARO, Fernanda Ribeiro. Escritos de viagem e a construção do espaço vivido por meio do deslocamento. 2013.
131 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Uber-
lândia, Rosa dos Ventos, MG, 2013. p. 29.
31 ALLENDE, op. cit., p. 56.

Sumário 43
cuciones o violencia, ya que Evelyn Ortega pasó por muchas situaciones en su trayectoria
para llegar a los Estados Unidos. No fue una trayectoria fácil o confortable. En la obra, los
que no lograban llegar al destino final y acababan por volver deportados contaban sus histo-
rias y relataban la dificultad del viaje:
El viaje a través de México, a pie o en los techos de los trenes de carga, era una pru-
eba de fuego, había que enfrentarse con asaltantes armados de machetes y policías
con perros. Caerse del tren significaba perder las piernas o la vida y quien lograría
cruzar la frontera podía perecer de sed en el desierto estadounidense o baleado por
los rancheros, que salían a cazar migrantes como si se tratara de liebres. 32

Además de eso, Evelyn estaba todavía con las secuelas del ataque sufrido en la
aldea, del cual sobrevivió por muy poco. Durmió en lugares inhóspitos, apretados y sin se-
guridad, sintió hambre, sed y al llegar a la frontera de México con los Estados Unidos fue
sorprendida por la decisión del coyote (persona responsable por hacer cruces de migrantes)
de que tendría que seguir el resto del camino sola, ya que su madre vivía en el país y los
federales no le iban a deportar por ser menor de edad, sino buscarían y la entregaría a su
madre. La trayectoria de Evelyn resultó mucho más difícil que la de los otros personajes de
la historia, llegando al punto de sentir ganas de morir, cuando estaba sola en el desierto an-
tes de ser encontrada por los federales, como se puede percibir en el trecho: “enroscada en
el suelo, se entregó a la desgracia y la soledad deseando morir pronto, morir dormida y no
despertar más.” 33
Con todo lo que le pasó en el traslado, el personaje siguió teniendo dificultades
en el habla, no volvió a ser como era antes y el miedo todavía persistía mientras estaba en
Estados Unidos. Vivió un período con su madre y la familia que le era tan extraña como a
todos los otros pues no sabía de la existencia de ellos hasta llegar a los Estados Unidos. O
sea, estaba lejos de la única familia que conocía de verdad, su abuela, había perdido los her-
manos y estaba asustada con todo, visto que todo era nuevo y nadie le era confiable. Hubo
un intento de aproximación con la familia, pero en las condiciones psicológicas y emociona-
les en que se encontraba Evelyn, el proceso de intimación no ocurrió de la manera prevista.
El personaje tampoco se unió a otros grupos de latinos que vivían en Estados Unidos, casi
no hablaba ni con los de su casa, “cualquiera que se acercara a menos de un metro ponía
a Evelyn en ascuas […]” 34 El mundo afuera de su casa en el momento tampoco podría ser
receptivo teniendo en cuenta que “la crisis económica de los últimos años había agravado
el antiguo resentimiento contra los latinos; millones de estadounidenses, estafados por las
financieras y los bancos, perdieron la casa o el empleo y encontraron un chivo expiatorio
en los inmigrantes.” 35 Apenas continuó viviendo en su propio mundo, callada, y su único
amigo era Frankie, el hijo de la pareja para quién empezó a trabajar y de quién cuidaba.
Evelyn, al empezar a trabajar como niñera, recibió falsos documentos del señor
Frank Leroy, el padre de la familia para la cual trabajaba, de quien tenía miedo debido a su
mal carácter. Era un hombre peligroso, que tenía una especie de trabajo ilegal y detestaba

32 Ibid, p. 55-56.
33 ALLENDE, op. cit., p. 205.
34 Ibid, p. 231.
35 Ibid, p. 229.

Sumário 44
a su esposa, a quien golpeaba, y a su hijo, por tener una enfermedad. Evelyn no hacía nada
más que trabajar en los tres turnos cuidando del hijo de la pareja y a veces hasta de la señora
Leroy, una mujer infeliz, que cuando no estaba un rato con su hijo, pasaba todo el tiempo
consumida por sus píldoras. Lucía y Richard calculaban que la guatemalteca ganaba mu-
cho menos de lo que debería y trabajaba sin tener un horario fijo, casi como una especie de
trabajo forzado, pero para Evelyn eso era lo de menos, ya que tenía un lugar seguro donde
dormir, que era lo más importante para ella.
Con eso vemos que toda la trayectoria de desplazamiento de Evelyn Ortega está
cargada de innumerables dificultades, sufrimientos, angustias, pierdas y riesgos, que es lo
que caracteriza el desplazamiento involuntario, que no parte de un deseo del individuo que
se desplaza sino de situaciones externas que lo obligan a salir de su lugar de origen.

El viaje y el caso de Lucía Maraz en la obra Más Allá del Invierno

Diferentemente del desplazamiento caracterizado como migración, el viaje tam-


bién se presenta en la obra. Para empezar la reflexión respecto del caso del personaje Lucía
Maraz se hace necesario entender lo que es esa forma de movilidad. Definiciones como “sa-
lir de un lugar para otro”, “moverse; pasar por un camino, carretera, ruta”, son definiciones
que básicamente todos conocemos con base en el sentido común. Todavía Amaro, en su
disertación “Escritos de viagem e a construção do espaço vivido por meio do deslocamento” (2013)
apunta que:
Un viaje no es solamente una acción, ella es acompañada de una interpretación, su
contenido es político y es personal […]. Acompaña la construcción de la(s) histo-
rias(s) y de los espacios. Tomo aquí, el viaje, por el concepto más sencillo encontra-
do, aquél que es la motivación de una persona al salir de su casa, para desplazarse a
otro lugar […] 36 37

En su disertación, Amaro (2013) nos trae una clasificación de algunos tipos de


viajes. Hay los viajes de conquista, de los cuales tenemos los relatos en las historias de des-
cubrimientos de países y continentes, los viajes científicos, los que son por tradición cultural
como los gitanos, los viajes misioneros, o por obligaciones diplomáticas, como hacen cón-
sules, embajadores, etc.38 Además de todos esos, la autora también trae los viajes diletantes,
los que se realizan simplemente por el deseo de desplazarse, de moverse voluntariamente.
En el otro lado de la moneda tenemos el viaje en el que el sujeto se ve obligado a salir de su
sitio en consecuencia de una violencia, directa o indirecta, como en el caso de los refugiados
sirios y muchos otros en el mundo, lo que caracteriza entonces el viajante forzoso.
Como hablamos anteriormente, Evelyn se encuentra en el grupo de los que apre-
cian y prefieren el arraigamiento, permanecer donde se está, pero sale de su país, de su
aldea, por motivos que estaban lejos de su control. En el caso de Lucía Maraz se puede per-
cibir la representación del segundo tipo, de aquellas personas que necesitan del tránsito, del
movimiento, como forma de construcción identitaria. Así, diferentemente de Evelyn, Lucía
36 Cf. o trecho original: “Uma viagem não é somente uma ação, ela é acompanhada de uma interpretação, seu conteúdo
é político e é pessoal [...]. Acompanha a construção da(s) história(s) e dos espaços. Tomo aqui, a viagem, pelo conceito
mais simples encontrado, aquele que é a motivação de uma pessoa ao sair de sua casa, para se deslocar para outro lugar.”
37 AMARO, op. cit., p. 31.
38 Ibid, p. 38.

Sumário 45
Maraz realiza un desplazamiento voluntario, y, según la tipología de Onfray (2009), es una
persona nómada.39 Lucía Maraz es una chilena que salió de su país para vivir en los Estados
Unidos después de la invitación de su amigo Richard Bowmaster, a quien conoció en el me-
dio académico, para trabajar en la Universidad de Nueva York como profesora visitante por
seis meses en el Centro de Estudios Latinoamericanos y del Caribe.
Amaro (2013) afirma en su disertación que “una travesía incluye cuestiones geo-
gráficas, morales, filosóficas, perceptivas. A veces el viaje coincide con la solución próxima
de un conflicto moral o espiritual.”40 41, una característica que se percibe en la construcción
del personaje Lucía, que aceptó la invitación de ir a vivir en los Estados Unidos por diversos
motivos: para quedarse más cerca de su hija que estudiaba y vivía en Miami, por un cierto
interés amoroso en Richard y por querer un cambio en su vida, luego de pasar por pérdidas
(el matrimonio, la muerte de su madre y de su compañera canina de años) y enfrentar un
cáncer, como se relata en el siguiente trecho:
Quería vivir en el extranjero, donde los desafíos cotidianos le mantenían la mente
ocupada y el corazón en relativa calma, porque en Chile la aplastaba el peso de lo
conocido, de las rutinas y limitaciones. Allí se sentía condenada a ser una vieja sola
acosada por malos recuerdos inútiles, mientras que fuera podía haber sorpresas y
oportunidades. 42

De esa forma, Lucía Maraz se encaja en el segundo grupo de personas citadas


por Onfray (2009), que aspiran al movimiento, al desplazamiento. El autor reflexiona en su
libro acerca de la subjetividad presente en el acto de viajar, de desplazarse. ¿Cuáles son los
motivos? ¿Por qué eso importa? En su obra afirma:
Nosotros mismos, esa es la gran cuestión del viaje. Nosotros mismos y nada más.
O poco más. Ciertamente hay muchos pretextos, ocasiones y justificativas, pero en
realidad solo nos ponemos en camino con el propósito, muy hipotético, de reencon-
trarnos o, quizás, de encontrarnos. La vuelta al planeta no siempre es suficiente para
obtener ese encuentro. A veces tampoco una existencia. 43 44

La perspectiva del viajante de Onfray dialoga con la construcción identitaria del


sujeto errante caracterizado por Amaro (2013), ya que “el desplazamiento por el espacio
reconfigura la identidad de aquél que se mueve, pues somos seres que nos establecemos en
el mundo en relación al espacio-tiempo que nos abriga y lo abrigamos en nosotros” 45 46.
El proceso de viaje, de desplazamiento, no solamente configura la identidad del personaje

39 ONFRAY, op. cit., p. 19.


40 Cf. o trecho original: “[...] uma travessia inclui questões geográficas, morais, filosóficas, perceptivas. A viagem coincide
às vezes com a solução próxima de um conflito moral ou espiritual.”
41 AMARO, op. cit., p. 19.
42 ALLENDE, op. cit., p.17.
43 Cf. o trecho original: “[...] Nós mesmos, eis a grande questão da viagem. Nós mesmos e nada mais. Ou pouco mais.
Certamente há muitos pretextos, ocasiões e justificativas, mas em realidade só pegamos a estrada movidos pelo desejo de
partir em nossa própria busca com o propósito, muito hipotético, de nos reencontrarmos ou, quem sabe, de nos encontrar-
mos. A volta ao planeta nem sempre é suficiente para obter esse encontro. Tampouco uma existência, às vezes.”
44 ONFRAY, op. cit., p. 75
45 Cf. o trecho original: “[...] o deslocamento pelo espaço reconfigura a identidade daquele que se move, pois somos seres
que nos estabelecemos no mundo em relação ao espaço-tempo que nos abriga e que abrigamos em nós.”
46 AMARO, op. cit., p. 19.

Sumário 46
Lucía Maraz, sea como una trayectoria de búsqueda por experiencias y sensaciones nuevas
o tentativa de escapar del peso de acontecimientos desagradables, como también configura
la identidad del personaje Richard Bowmaster, que también ya había sufrido el proceso de
desplazamiento cuando joven, enseñado en el libro por medio de los capítulos intercalados
que narran el pasado de los personajes.
La construcción identitaria de Richard, o sea, quién es él en el momento presente
de la trama, tiene toda relación con su experiencia en Brasil y con los acontecimientos que
pasaron ahí. Su trágica historia familiar que al fin culminó con la muerte de su mujer y sus
dos hijos, lo llevó a volver para su país de origen casi que en las mismas condiciones en que
Lucía Maraz sale de Chile para los Estados Unidos, un viaje en búsqueda de algo, algo dife-
rente. Esta búsqueda, como afirma Onfray (2009), es por algo mejor que lo que ya se tiene,
“nadie viaja para curarse de sí mismo, sino para quedarse más valiente, fortalecido, para
sentirse y conocerse de la manera más apurada.” 47 48. Para el autor, el yo es la motivación
para salir, el viaje no tiene otra referencia en su centro que no sea el yo.
Subjetividad, según Amaro (2013), “[…] tiene que ver con la historia personal,
con el sentido estético, condiciones psíquicas y culturales, que determinan, en gran parte,
los modos de vivir del individuo.” 49 50. Por medio de la historia del personaje Richard, se
percibe la innegable presencia de la subjetividad en los procesos de migración y de viaje.
Como afirma Onfray en su libro (2009): “la destinación de un viaje no cesa de coincidir con
el núcleo del ser y de la identidad, imposible de romper. Por detrás del arsenal toponímico
de los mapas geográficos se ocultan increíbles variaciones sobre el tema de la subjetividad.”
51 52
. Además de eso, refuerza:
Viajar guía inexorablemente a la subjetividad. Dividida, fragmentada, dispersada o
compacta, es siempre delante de ella que acabamos por llegar, como delante de un
espejo que nos invita a hacer el inventario de nuestro trayecto socrático: ¿qué aprendí
de mí? ¿Qué puedo saber con más seguridad de lo que antes de mí partida? Los filó-
sofos de la antigüedad griega sabían la función formadora del desplazamiento. 53 54

Los acontecimientos, las pérdidas y los traumas vividos por los personajes de la
obra les transformaron como personas, configurando una movilidad que no es solamente
física, sino identitaria y existencial. A partir de esa perspectiva ser una persona nómada o

47 Cf. o trecho original: “[...] ninguém viaja para se curar de si, mas para ficar mais aguerrido, fortalecido, para se sentir
e se conhecer de maneira mais apurada”.
48 ONFRAY, op. cit., p. 79.
49 Cf. o trecho original: “[...] tem a ver com a história pessoal, com o sentido estético, condições psíquicas e culturais, que
determinam, em grande parte, os modos de vida do indivíduo”.
50 AMARO, op. cit., p. 22.
51 Cf. o trecho original: “[...] a destinação de uma viagem não cessa de coincidir com o núcleo do ser e da identidade,
impossível de romper. Por trás do arsenal toponímico dos mapas geográficos se ocultam inacreditáveis variações sobre o
tema da subjetividade”.
52 ONFRAY, op. cit., p. 79.
53 Cf. o trecho original: “Viajar conduz inexoravelmente à subjetividade. Dividida, fragmentada, espalhada ou compacta,
é sempre diante dela que acabamos por chegar, como diante de um espelho que nos convida a fazer o balanço de nosso
trajeto socrático: o que aprendi de mim? O que posso saber com mais certeza do que antes da minha partida? Os filósofos
da Antiguidade grega sabiam a função formadora do deslocamento. “
54 ONFRAY, op.cit., p. 81.

Sumário 47
sedentaria son estados que ultrapasan los tránsitos físicos e involucran una nueva forma de
relaciones con los espacios y la otredad.

Conclusión

Los estudios sobre los diferentes tipos de desplazamientos e inmigración están


ganando cada vez más espacio en el medio académico en los últimos años, lo que nos ayuda
a comprender y nos lleva a reflexionar sobre una temática que está cada vez más en eviden-
cia en el ámbito mundial. Los desplazamientos presentados en las narrativas literarias son
una buena base para discutirse acerca de esos movimientos tan inherentes en la historia de
la América, como ya vimos en el texto, pues nos trae por medio de la ficción una noción
acerca de esos movimientos en el mundo y abre el espacio para que se intente comprender
las motivaciones, los objetivos, las características de tales procesos y sus consecuencias para
los sujetos que la viven y la comunidad como un todo.
Según Amaro (2013), vivimos en una época en que, al mismo tiempo en que se
incrementa el número de turistas alrededor del mundo - pues sabemos que el turismo es algo
que mueve grandemente la economía de muchos países - el número de inmigrantes forzados,
que son obligados a salir de su lugar de origen por motivos que huyen de su control, como la
guerra, por ejemplo, aumenta en igual grado55. Las experiencias de desplazamiento vividas
por Evelyn Ortega y Lucía Maraz nos lleva a reflexionar sobre el acto de viajar e inmigrar
que se observa en el mundo hoy. Son esos procesos que motivan los estudios sobre el tema
en las humanidades: las experiencias de trayectoria, el ser extranjero, las diferentes formas
de desplazamientos y sus motivos o consecuencias para el sujeto y la sociedad.

Referencias
ALLENDE, I. Más Allá del Invierno. Barcelona: Penguin Random House Grupo Editorial, 2017.
AMARO, Fernanda Ribeiro. Escritos de viagem e a construção do espaço vivido por meio do des-
locamento. 2013. 131 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em
Geografia, Universidade Federal de Uberlândia, Rosa dos Ventos, MG, 2013.
BERND, Z. As Américas: nascimento e morte das utopias. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4,
p. 67-70, out/dez. 2010.
BERND, Z. Figurações do deslocamento nas literaturas das Américas. Estudos de Literatura Bra-
sileira Contemporânea, Brasília, n. 30, p. 89-97, julho/dezembro. 2007.
GONZÁLEZ, E. P. Deslocamento/Desplaçamento. In: BERND, Z. (Org.) Dicionário das mobili-
dades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 109-125.
OLIVIERI-GODET, R. Errância/migrância/migração. In: BERND, Z. (Org.) Dicionário das mo-
bilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, p. 189-209.
ONFRAY, M. Teoria da Viagem: poética da geografia. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.

55 AMARO, op. cit.

Sumário 48
U m olhar decolonial sobre a obra de
F lausino V alle

Leonardo Vieira Feichas


Letícia Porto Ribeiro

B
uscamos, neste artigo, lançar um olhar sob a perspectiva decolonial sobre
a obra do violinista, compositor e escritor mineiro Flausino Rodrigues
Valle (1894 - 1954). Valle seguiu as carreiras de advogado, professor e
músico, mas se tornou conhecido principalmente pelas suas obras: 26 Prelúdios Caracterís-
ticos e Concertantes para Violino Só e Aspectos do Folclore Musical Brasileiro1– respectivamente,
uma coletânea de pequenas peças para violino e um livro no qual narra, através de estudos
e descrições de suas viagens, festas, canções e costumes brasileiros. Ao lado dessas obras,
também escreveu um livro de poemas intitulado Calidoscópio2, no qual se exprime princi-
palmente a respeito de sentimentos relacionados à infância, à música, à natureza, à morte,
ao cotidiano e ao passado. Enquanto em seu livro a respeito do folclore musical, Valle
exterioriza uma grande valorização da música regional, em sua obra para violino se utiliza
desses conhecimentos para a produção de uma música peculiar com formas próprias de se
tocar. Todos os Prelúdios aos quais fazemos referência se encontram no livro escrito por
Feichas3, já que não foram publicados durante a vida do compositor.

Lançando mão da teoria decolonial e em associação com Bakhtin e Volochínov


(2010), pretendemos mostrar que Valle apresentava, tanto em sua obra para violino e em
seus poemas como em sua obra a respeito do Folclore, um viés decolonial, e buscaremos, ao
mesmo tempo, construir pontes entre aspectos dessas três obras.

1 apud FEICHAS, L. V. Da porteira da fazenda ao batuque mineiro: o violino brasileiro de Flausino Valle. Ed. Prismas,
2016.
2 VALLE, Flausino Rodrigues. Calidoscópio: versos. Belo Horizonte: Typ. Do “Diário de Minas”, 1923.
3 Op. cit., 2016.

Sumário 49
O violino, a primeira vista e em uma perspectiva mais comum, é um instrumento
da música “erudita” e ocidental por excelência: tocado em orquestras ou outros conjuntos,
dentro de salas de concerto, requerendo-se silêncio durante sua apresentação, em um ritual
que se tem “hora certa” inclusive para aplaudir – depois dos três ou quatro movimentos que
fazem parte de um concerto, sonata ou de uma sinfonia, por exemplo.
A música “erudita” ou “de concerto” no Brasil e em outras partes do mundo é,
muitas vezes, chamada também de “música universal” ou mesmo de “boa música” – algo
que deixa revela a racialização à qual a música brasileira (ou qualquer música que não se
encaixe no cânone erudito europeu) é submetida.
Bakhtin-Volochínov (2010) afirma todo signo é ideológico e que os conceitos são
instrumentos de disputa da luta de classes. A divisão da música entre “erudita”, “popular” e
“folclórica”, bem como o valor dado a cada um desses gêneros em cada época são, portanto,
também ideológicos, ou seja, são construídos de forma a legitimar essa ou aquela forma de
fazer música ou aquela de determinada região do mundo. López4 afirma que essas denomi-
nações – erudita, universal, “boa” música - se dão como forma de afirmar a superioridade
da música europeia – essa é, portanto, rotulada e “naturalmente” aceita como a música “de
bom gosto”. Essa autora afirma que:
Incluso hasta la valorización de lo ‘popular’ como manifestación sustantiva del pue-
blo, la noción de lo ‘folklórico’ como las prácticas y saberes de una cultura y la
identidad concebida como ‘esencia’ o ‘espíritu’ de una nación, son todas ellas cons-
trucciones del s. XIX y, por ende, románticas y eurocentradas. 5

Nesse sentido, é interessante apontar que o século XIX, apontado por López
como o século da construção dessas noções, é também, principalmente em seu quartel fi-
nal, a do imperialismo6. Os europeus buscavam, portanto, justificar de diversas formas a
manutenção e a conquista de seus impérios e a ideia de superioridade intelectual e cultural
será uma dessas formas. A valorização ou desvalorização dada a certa música, canção ou
gênero musical, portanto, também está suscetível à racialização e ao conceito de ferida colo-
nial. Utilizamos esses conceitos advindos da teoria decolonial para explicar como se buscou
inferiorizar a música produzida fora da Europa como inferior, como “regional” ou como
“exótica”. Como afirma Dussel:
Se se entende que a “Modernidade” da Europa será a operação das possibilidades
que se abrem por sua “centralidade” na História Mundial, e a constituição de todas
as outras culturas como sua “periferia”, poder-se-á compreender que, ainda que toda
cultura seja etnocêntrica, o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode
pretender identificar-se com a “universalidade-mundialidade”. O “eurocentrismo”
da Modernidade é exatamente a confusão entre a universalidade abstrata com a
mundialidade concreta hegemonizada pela Europa como “centro”.7

4 LÓPEZ, I. Una Genealogía alternativa para pensar la expresión musical em A. Latina. In: PALERMO, Z., et al. (comp.).
Arte e Estética en la Encrucijada Descolonial. 2a.Ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Siglo, 2014, p. 17 – 36.
5 Op. cit., p. 21
6 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1875-1914. 25ª. Ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
7 DUSSEL, Enrique. Europa, Modernidade e Eurocentrismo. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais. Perspectivas latino-americanas. CLACSO, Buenos Aires, 2005, pp. 25-34, p. 30

Sumário 50
O conceito de “raça”, como afirma Mignolo8, neste caso, não envolve somente
cor ou sangue, mas a categorização de indivíduos em relação a uma “humanidade ideal”.
Nesse caso, a raça é vista como similar à etnia – sendo que “raça” se refere ao genótipo e
fenótipo, enquanto “etnia” se refere às línguas, às memórias, às experiências compartilhadas
que criariam laços que identificam certa comunidade.
A racialização, dessa forma, envolve línguas, conhecimento, religiões, e mesmo
países e continentes. O europeu (como o “ocidental” por excelência) classifica, explica Mig-
nolo, o restante do mundo de acordo com seus próprios valores e tendo a si mesmo como
centro. A “ferida colonial”, consequência do racismo, advém do sentimento daqueles do
mundo colonizado de não pertencerem e saberem que não pertencem ao “padrão ideal”
europeu.
Devemos salientar também consideramos como ideológicos e palcos de disputa
os signos que representam a música “erudita ocidental” no caso que abordamos: o violino,
a partitura, as técnicas utilizadas (as chamadas “escolas”, por exemplo) que são aprendidas,
principalmente em instituições como conservatórios ou na Academia.
Situamos na obra de Flausino Valle certos aspectos decoloniais – não que o com-
positor/autor tivesse se expressado dessa forma ou nesse sentido, mas trata-se de uma deco-
loniadade que se encontra no conteúdo da sua obra, o que nos possibilita fazer uma leitura
nesse sentido.
É necessário atentar que Valle provavelmente recebeu influência da Semana
de Arte Moderna de 1922 e dos seus ideais antropofágicos, bem como também dos ideais
nacionalistas da Era Vargas, presidente que logrou captar muitos artistas e intelectuais com
o objetivo da construção de uma noção de nacionalidade ou de uma “brasilidade”:
Formar uma consciência nacional, abrasileirar o Brasil, ser inteiramente brasileiro,
estudar o Brasil sob todos os seus aspectos e em todos os seus problemas, tornar o
Brasil mais conhecido para ser mais amado, são alguns dos vários pontos da pauta
cultural que pretendia afirmar a civilização e a cultura nacionais.9

A possibilidade do contato com a Semana de 22 e seu conhecimento acerca do


estilo composicional nacionalista de Villa-Lobos foi levantada por Feichas:
O primeiro Prelúdio composto por Valle, Batuque, é datado de 1922. É possível que
surjam questionamentos e reflexões sobre a influência que Flausino Valle poderia ter
sofrido da Semena de Arte Moderna de 1922 e de Villa-Lobos. Se Villa-Lobos, com
seus interesses sociais, postura cultural e seus valores nacionalistas, desde jovem foi
colocado como nacionalista, Valle, possivelmente, sofreu influência deste, em algum
momento da vida artística. Admirava esse artista a ponto de dedicar-lhe um de seus
prelúdios, Prelúdio XIV – A Porteira da Fazenda. Contudo, a mensuração dessa in-
fluência é impraticável, já que na obra de Valle vem embutida uma forte paixão de
essência nacionalista que se transmite de maneira natural e fluente10.

8 MIGNOLO, Walter. The Idea of Latin America. Kindle Edition. USA; Oxford, UK; Victoria, Australia: Blackwell
Publishing Malden, 2005.
9 DUTRA, Eliana de Freitas. Cultura in Angela de Castro Gomes (Coord) Olhando para dentro: 1930-1964. História do
Brasil Nação: 1808-2010, volume 4, pp. 229-274. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 229.
10 Op. Cit., p. 35

Sumário 51
No entanto, chamamos atenção aqui não para um nacionalismo declarado, mas
para a forma com que Valle utiliza a linguagem violinística, que é bastante particular, e para
isso utilizamos como suporte alguns eixos de sua obra escrita – sua coletânea de poemas
Calidoscópio (1923) e seu livro de estudo sobre folclore Elementos do folk-lore musical brasileiro
(1936).
Feichas11 resume a biografia de Flausino Valle com as seguintes palavras:
Flausino Valle Rodrigues Valle (1894-1954), natural de Barbacena, Minas Gerais,
foi violinista de orquestra de cinema mudo (cine ODEON), no início do século XX
na capital mineira. Paralelo à atividade de violinista, foi compositor, arranjador,
escritor, poeta, professor, advogado e folclorista do Conservatório Mineiro de Músi-
ca (que posteriormente tornou-se Faculdade de Música da Universidade Federal de
Minas Gerais). Como professor catedrático e folclorista do Conservatório Mineiro
de Música, Flausino Valle se destacou na escrita de dois livros: Elementos do Folclore
Musical Brasileiro e Músicos Mineiros. Como compositor, escreveu para diversas forma-
ções como coro misto a quatro vozes, piano e flauta, piano e canto, piano e violino.
Sua principal obra, no entanto, são os prelúdios para violino solo, intitulados 26
Prelúdios Característicos e Concertantes para Violino Só”.

Salles destaca o ambiente interiorano no qual Valle nasceu e se criou, e de onde


tirou maior parte de suas inspirações, tendo recebido influências, posteriormente, também
da capital Belo Horizonte:
No tempo do nascimento de Flausino Valle, a vida em Barbacena era menos trepi-
dante. Trilhava-se penosamente a Mantiqueira em riba pra chegar ao Curral del Rei
onde se plantava Belo Horizonte, a nova capital, inaugurada em 1897, como também
se serpenteava a Serra do Mar, passando Juiz de Fora, caminho da União e Industria,
para se chegar à então capital do país, Rio de Janeiro, onde as coisas aconteciam no
seu relacionamento mais estreito e fecundo com o vasto e longínquo exterior. Penso
que o menino de Barbacena, longe do litoral 12, crescendo entre caipiras tocadores de
viola, cantores de modinha e de antífonas, nos lugares e nos altares das Gerais13.

Ainda de acordo com Salles, o pai e a mãe do compositor se dedicaram também


à música – o pai era clarinetista e a mãe era cantora e pianista, sendo que ambos atuavam
em coros de igreja, “como é da tradição mineira14”, e além, disso, de acordo com a mesma
autora, seus avós e bisavós também teriam sido músicos.
Valle se mudou para Belo Horizonte em 1912, e lá se dedicou aos estudos de ad-
vocacia e, posteriormente, atuou na área, mas continuou se dedicando também ao violino e
às pesquisas sobre folclore, tendo se tornado docente no Conservatório Mineiro de Música:
Durante toda a vida nunca abandonou a música e sua atividade artística foi mais
constante do que se pode esperar de um advogado bem sucedido. Fez parte de or-
questra de salão, na era do cinema mudo, de rádio, nos começos desta novidade

11 FEICHAS, Leonardo; OSTERGREN, Eduardo; TOKESHI, Eliane. As Fichas Interpretativas na obra de Flausino
Valle: a construção de uma interpretação musical. In: Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Música
(ANPPOM), 22, 2012, João Pessoa. Anais da ANPPOM. Campinas: UNICAMP, 2012, p. 1048-1055, p. 1048-1049.
12 Grifo nosso
13 SALLES, Marena Isdebski. Arquivo vivo musical. Nove figuras da música brasileira: O violino e a arte do lutiê.
Brasília: Thesaurus, 2007, p. 39.
14 Op. Cit. p. 40.

Sumário 52
tecnológica. Chegou a spalla da Orquestra da Sociedade de Concertos Sinfônicos de
Belo Horizonte. Realizou recitais em várias cidades e a partir de 1927 até sua morte
ocupou a cátedra de História da Música no Conservatório Mineiro de Música.15

Em Elementos do Folk-lore Musical Brasileiro, Valle afirma que não se pode falar ain-
da de uma “música brasileira”16, pois esta ainda estaria em formação, mas ao mesmo tempo
descreve várias festas, rituais, canções e ritmos brasileiros. Ao escrever sobre o carnaval, se
utiliza de descrições de Graça Aranha e Renato de Almeida, e finaliza criticando aqueles
que consideram a festa como algo inferior:
Como nossa inexperiente e desautorada penna17 não seria capaz de descrever com
tamanha arte esta festa tão querida pela maioria dos brasileiros e tão anathematiza-
da por uma pequena minoria que vê no Carnaval um dos maiores flagellos da patria
e uma vergonha para parte da humanidade que o adopta.18

Aliás, parece que Valle algumas vezes lamenta a influência europeia na música
brasileira, que a impediria de reconhecer seu próprio valor e suas raízes – nesse sentido, a
música litorânea teria um caráter mais “autêntico”:
A musica litoranea differe da do centro do paiz, em que, nesta, o espírito nacional é
mais puro, mais pronunciado; e naquella ha sempre uma côr e caracter mesclados,
devido ao permanente contacto com as ádvenas de toda procedencia. Assim é que
nas grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, o elemento exotico offerece
um constante entrave, com tendencias a vencedor, às expansões autoctones. Feliz-
mente, porém, agora, varios de nossos melhores musicos já se aperceberam disto, e
teem salvo muitas boas, immortalizando-as no pentagramma e perpetuando-as no
disco phonographico.19

E mais adiante, Valle ressalta que a música das pequenas cidades, ricas em mate-
riais para pesquisa, seriam condenadas a serem relegadas a um segundo plano frente à maior
visibilidade daquelas das grandes cidades, que podem usufruir de meios para maior difusão:
Como dissemos, cada cidadezinha poderia fornecer material para um capitulo; en-
tretanto, na obscuridade de sua modestia e pretenção, é natural permaneçam trás as
cortinas, cedendo logar ás metropoles, cujos autores, devido ao meio em, que vivem,
tem a dita e a facilidade de se tornarem conhecidos.20

Os poemas de Valle, os quais já abordamos em artigo anterior (vide publicação a


respeito de aspectos da infância e natureza21), e publicados em Calidoscópio (1923) exaltam
o meio-ambiente (em seus aspectos visuais e sonoros) e a rotina do interior mineiro. Alguns
foram analisados por nós no artigo citado, lembramos aqui a comparação das florestas bra-

15 Op. Cit. p. 41.


16 Op. Cit., p. 136.
17 Mantivemos em todos os escritos de Valle a ortografia original do autor/época.
18 VALLE, Flausino. Elementos do Folk-lore Musical Brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, p. 121.
19 Op. Cit., pp. 135-136
20 Op. cit., pp. 137-138
21 Artigo dsiponível em: https://www.academia.edu/43977353/Flausino_Valle_quest%C3%B5es_da_natureza_e_inf%-
C3%A2ncia_em_seus_poemas. Acesso em 31/08/2020

Sumário 53
sileiras e suas sonoridades com a arquitetura e compositores europeus, característica espe-
cialmente presente no poema intitulado O Pássaro Selvagem (escrito em 1920).
Valle, como faz em sua música, descreve não somente paisagens e sentimentos,
mas também o cotidiano da vida do interior em seus poemas, geralmente com certo humor,
como em Criancice (escrito em 1915):
Uma tarde purpurina.
Foi o pae fazer o chylo,
O que era seu velho estilo,
Em viridente campina.

Levava sua Didina,


Espertinha como um grillo,
Traquinas como um esquilo.
A tarde estava divina.

Porém, como era em Agosto,


Nas bandas onde o sol cáe,
O céo inda estava lóio,

Relampeado o lado oposto.


Disse ella então: ó papae,
O céo tá piscando o zóio!...

Vários outros poemas também descrevem aspectos e histórias cotidianas, como


Uma do Lulu, Outra do Lulu (ambos escritos em 1914), Diálogo Íntimo (escrito em 1915), O
secretareo da Camara (escrito em 1919) e Precaução (escrito em 1916). Com isso, percebemos
uma conexão entre os trabalhos escritos de Valle e sua música: a valorização não somente
da paisagem nacional, como muitos autores o fizeram, mas também do cotidiano do interior
brasileiro, principalmente o rural, a visibilização e valorização de seus personagens, de sua
música, de suas festas, de seus rituais e de seu folclore.
Valle escreveu 26 Prelúdios para Violino Só entre os anos de 1922 e a década de
1940. São pequenas peças que duram em torno de dois minutos cada uma, cujo destaque
está em descrever, imitar e/ou evocar a natureza, a cultura e o cotidiano brasileiro do início
do século XX. Percebemos, nessas obras, que Valle se apropria de uma maneira especial do
violino, hibridizando sua linguagem ao mesclá-la a elementos seu próprio universo. Dessa
forma, escreveu, por exemplo, um prelúdio que relata, em seus aspectos sonoros, um ritual
de umbanda (Pai João, de 1939), um no qual imita o voar e o cantar de um pássaro (Tico-tico,
de 1926) e outro que rende homenagem à tradição dos violeiros (Canto da Inhuma, escrito
durante a década de 1930). Analisaremos um pouco cada uma dessas obras.
O Prelúdio XVII - Pai João (escrito em 1939) se inicia com tambores, abrindo o
ritual de umbanda. Esses tambores são representados por meio de batidas executadas nos
tampos superior e inferior instrumento22 cuja intensidade do som é aumentada em um lento
crescendo, seguido por um diminuendo. Valle ainda representa a incorporação de uma pom-
ba-gira23 realizada por meio de um glissando (ou seja, deslizando o dedo pela corda).

22 https://youtu.be/QKBgBamfTnA
23 https://youtu.be/kYpVzXM9oeQ

Sumário 54
Figura 1: imitação de tambor do prelúdio “Pai João”. Fonte: FEICHAS (2016).

Após uma intervenção do violino tocado de maneira tradicional, que representa


provavelmente os cantos do ritual, há uma nova imitação dos tambores, executada da mes-
ma forma e seguida pela representação da incorporação da pomba-gira.

Figura 2: Representação da pomba-gira. Fonte: FEICHAS (2016).

A representação da incorporação da pomba-gira no meio e no final do Prelúdio


coincide com a descrição do ritual presenciado por Valle e descrito por ele no livro Elementos
do Folk-ore Musical Brasileiro (1936). Devemos salientar que a certeza de que esse Prelúdio
descreve um ritual de umbanda se deu graças às informações presentes nesse livro.
No Prelúdio V - Tico-tico (escrito em 1926), Valle evoca o bater das asas do pássa-
ro24 utilizando uma arcada rápida que perpassa todas as cordas do violino – nesse caso até
mesmo o movimento do violinista lembra o movimento do pássaro, como apontado tam-
bém por Abreu25. A imitação do canto do tico-tico se dá por meio de harmônicos26, que são
notas tiradas do instrumento sem apertar os dedos da mão esquerda na corda (harmônicos
naturais) ou apertando um dedo e deixando outro sem apertar (harmônicos artificiais), que
emitem uma nota mais aguda do que seria se a nota fosse tocada de forma “normal”.
Figura 3: Evocação do bater das asas do tico-tico. Fonte: FEICHAS (2016)

24 Disponível em: <https://youtu.be/vPnrvSi2IFw> Acesso em 27/09/2020


25 ABREU, Vitor Chagas de. Prelúdios Característicos e Concertantes para Violino Só de Flausino Vale [manuscrito]:-
cinco transcrições e análise interpretativas para viola de arco. Belo Horizonte: UFMG. Dissertação de mestrado, 2015.
Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/AAGS-A4YHCN> Acesso 20/07/2020.
26 Disponível em: <https://youtu.be/DSyhteRV3hY> Acesso em 17/09/2020

Sumário 55
Figura 4: Imitação do canto do tico-tico através de harmônicos artificiais. Fonte: FEICHAS (2016)

Já o Prelúdio XII - Canto da Inhuma (sem data de autoria) é uma espécie de home-
nagem aos violeiros que compõe imitando esse pássaro: de forma engenhosa, Valle “imita
a imitação”27. Na verdade, em vários de seus prelúdios o compositor evoca a viola caipira,
utilizando-se não somente dos intervalos utilizados preferencialmente por esse instrumento
(terças e sextas), como do pizzicati (tocar dedilhando as cordas) recorrentes e também a téc-
nica alla guitarra (dedilhando as cordas, com o violino em posição de viola, junto ao corpo).
Nesse caso, Valle evoca uma tradição dos violeiros, que é o canto da inhuma:
Figura 5: “Imitação da imitação” do violão e canto da inhuma. Fonte: FEICHAS (2016).

Flausino Valle tinha a percepção e o entendimento que suas obras eram dotadas
de valor, embora não se considerasse um compositor, já que não teve a formação que ele
considerava necessária, mas sim um folclorista/violinista que descrevia seu cotidiano. Esse
pensamento, de que não tinha o estudo necessário para se considerar compositor, é revelado
diversas vezes em seu livro de poemas, por exemplo:
Não cabe aqui mostrar o quanto a musica paira acima de todas as artes, portanto, da
poesia e da linguagem; si não, eu tentaria provar que só ella é capaz de expressar o
verdadeiro sentimento; bem como de provocar estados dalma nunca sentidos, e que,
sem ella, não seriam ao menos jamais sonhados. Porém, visto demandar a poesia
muito menos aptidão e estudo que a música, e como circumstancias especiaes inhi-
biram-me de estudar a parte scientifica desta arte, imprescindível para ser-se um bom
compositor, escrevo versos já que me falece a competência para produzir musicas.28

O compositor, portanto carregava essa complexa relação de reconhecer o seu va-


lor, mas de se sentir que não era “bom o bastante” por não ter uma formação composicional
idealizada, que chama de “científica”, referindo-se, talvez, a todas as regras estabelecidas
então para uma composição, que só poderia ser aprendida após anos em um conservatório
ou na universidade – o que não foi o seu caso. No entanto, pode ser que tenha mudado, pelo
menos um pouco, de ideia quanto a esse pensamento, pois a maioria de seus prelúdios é de
data posterior ao lançamento de Calidoscópio, de 1923 (seu primeiro Prelúdio, Batuque, foi

27 Disponível em: <https://youtu.be/nfg-lp-fvfw> Acesso em 27/09/2020.


28 VALLE, Flausino Rodrigues. Calidoscópio: versos. Belo Horizonte: Typ. Do “Diário de Minas”, 1923, p. 4.

Sumário 56
escrito em 1922). É possível, mesmo, que tenha sido encorajado, durante o processo de lan-
çamento desse livro, a escrever a música que tanto apreciava e hesitava em compor.
Braga aponta também que a família do compositor, aparentemente, não reconhe-
cia valor de sua obra:
Executava de preferência suas composições, seus arranjos e suas transcrições. Mas
não era compreendido. Seus familiares lhe diziam que tocasse menos suas compo-
sições, que não valiam nada. Não era atingido por essa opinião desanimadora, pois
tinha consciência do que fazia. Dizia apenas: “Depois que eu morrer vocês poderão
julgar melhor se têm ou não valor”.29

Esse apontamento, de que Flausino preferia executar suas próprias composições


e arranjos e que os valorizava pode ser um indício também de que tenha mudado a sua per-
cepção em relação ao seu “treinamento” nesse sentido, que poderíamos considerar como
mais um indício de um pensamento que hoje chamaríamos de decolonial.
Muitas das técnicas que o compositor utiliza em seus Prelúdios – os harmônicos,
os pizzicati, o alla guitarra, as batidas no tampo – não eram novidades em sua época, mas a
forma com que ele as utilizou e combinou constitui, sim, uma peculiaridade do compositor.
Valle, portanto, se apodera de ambos os signos da música “erudita ocidental” – o violino
e sua linguagem técnica e escrita – e os hibridiza, utilizando não somente uma temática
própria (como faz o compositor e violinista Marcos Salles, por exemplo), mas também usos
próprios de técnica, que dialogam com seu contexto mais imediato e com aspectos da cultu-
ra brasileira – realizava, dessa forma imitação de sons como o abrir e fechar porteira de uma
fazenda, de instrumentos como a viola caipira e o tambor, o tocar dos sinos de uma igreja, o
cantar de pássaros. Esse uso do violino é, em sua época, inovador – e cabe aqui dizer, como
afirmamos em uma comunicação oral30, que Valle foi, de certa forma, invisibilizado frente a
outros compositores que fizeram o mesmo que ele posteriormente, mas que, sendo europeus,
foram reconhecidos como “inovadores” em suas épocas e continuam sendo celebrados.
Valle se utiliza dos seus conhecimentos como folclorista (e também como brasi-
leiro que cresceu no interior mineiro) na sua composição instrumental: percebemos isso não
somente nos Prelúdios Pai João (escrito em 1939) e Canto da Inhuma (sem data de autoria),
como também em outros, como Casamento na Roça, Acalanto, Repente, Batuque e Viva São João
(escritos, respectivamente, em1933, sem data de autoria, 1924, 1922, sem data de autoria).
Consideramos os prelúdios de Valle, tanto por sua temática quanto por seu uso
próprio da linguagem violinística, como a síntese dos pensamentos que Valle expõe em seus
poemas e em seu livro sobre folclore. Temos clara a noção que “decolonial” não era um
termo utilizado por Valle, e ele não era e não precisaria, em nossa opinião, ser decolonial
em todos os aspectos de suas obras – no entanto, pensamos que isso não o exclui de poder
ser analisado sob uma perspectiva decolonial. Longe de expor alguma ferida colonial, Valle
se apodera da linguagem musical e a utiliza de uma maneira própria, não buscando imitar
compositores de outros países (mesmo que os conhecesse bem, como evidencia em Elemen-
29 BRAGA apud FEICHAS, L.V. Da Porteira da Fazenda ao Batuque Mineiro: o Violino Brasileiro de Flausino Valle.
Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 33.
30 MESSINA, M.; FEICHAS, L. V. ; RIBEIRO, L. P. . Musique Concrète Instrumentale and Coloniality of Knowledge:
Helmut Lachenmann, Flausino Valle and the Euro-normative Bias of New Music Genealogies. 2019. (Apresentação de
Trabalho/Comunicação).

Sumário 57
tos do Folk-lore Musical Brasileiro, de 1936, e em seus diários pessoais), mas, imitando sons
dos ambientes no qual cresceu e os quais frequentou e evocando tradições musicais, rituais
e festivas próximas. Nesse sentido, encontramos aspectos decoloniais em Flausino Valle.

Referências
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Vale [manuscrito]:cinco transcrições e análise interpretativas para viola de arco. Belo Horizonte:
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Teixeira Wisnik & Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 14a. Ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
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Si2IFw. Acesso em 01/09/2020.
VALLE, Flausino e FEICHAS, Leonardo. Evocação de pomba-gira em Pai João: https://youtu.be/
kYpVzXM9oeQ. Acesso em 01/09/2020.
VALLE, Flausino e FEICHAS, Leonardo. Imitação do pássaro em Tico-tico: https://youtu.be/
DSyhteRV3hY. Acesso em 01/09/2020.
VALLE, Flausino e FEICHAS, Leonardo. Imitação do tambor em Pai João: https://youtu.be/
QKBgBamfTnA. Acesso em 01/09/2020.
VALLE, Flausino e FEICHAS, Leonardo. Imitação viola e inhuma em Canto da Inhuma: https://
youtu.be/nfg-lp-fvfw. Acesso em 01/09/2020.

Sumário 59
R ecepção dos contos de A cidade
ilhada , de M ilton H atoum *

Emilly Monique Oliveira Silvano


Juciane dos Santos Cavalheiro

N
o final do século XX e início da década do século XXI, houve um cres-
cimento de autores nacionais e um interesse por gêneros literários que
estavam à margem do cânone tradicional1. Tal percurso pode ser obser-
vado no escritor Milton Hatoum, que é publicado por uma das editoras de maior renome
nacional, a Companhia das Letras. Ganhador de diversos prêmios nacionais e indicado a
prêmios no exterior, Hatoum insere-se na geração de escritores atuantes na contemporanei-
dade.

Milton Hatoum inicia sua trajetória literária com a publicação de seu primeiro
romance, Relato de um certo Oriente2, seguindo com a publicação dos romances Dois irmãos3 e
Cinzas do Norte4. Em 2006, escreve Crônica de duas cidades5, em parceria com Benedito Nunes.
Em 2008, escreve a novela Órfãos do Eldorado6. No ano seguinte, publica A cidade ilhada7, uma

*Trabalho desenvolvido a partir do projeto de pesquisa “Memória e Alteridade: análise de A cidade ilhada, de Milton Ha-
toum”, com bolsa de iniciação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (FAPEAM), no período de
2019 a 2020. A pesquisa, inserida em projeto maior – “Amazônia – escritas possíveis: memória, interpretação, alteridades”,
vinculado ao Programa Nacional de Cooperação Acadêmica na Amazônia (PROCAD-CAPES) – Edital no. 21/2018, e
proposto por três instituições de ensino superior: UFAM, UEA e UnB –, volta-se para a análise e recepção crítica de A
cidade ilhada.
1 ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e a História da Literatura. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989. p. 194.
2 HATOUM, Milton. Relatos de um certo Oriente (1989). São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
3 HATOUM, Milton. Dois irmãos (2000). São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
4 HATOUM, Milton. Cinzas do Norte (2005). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
5 NUNES, Benedito; HATOUM, Milton. Crônicas de Duas cidades: Belém e Manaus (2006). Pará: Secretaria de Cultura
do Pará, 2006.
6 HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado (2008). São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
7 HATOUM, Milton. A cidade ilhada (2009). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Sumário 60
coletânea de contos. Em 2013, são compiladas 96 crônicas em Um solitário à espreita8. Em
2017 publica a primeira parte da série O lugar mais sombrio: A noite da espera9, e em 2019 o
volume 2: Pontos de fuga10. Entre essas obras, também publicou dezenas de outros textos para
revistas e jornais, além de realizações de entrevistas e palestras.
Dentre suas obras, destacamos para este trabalho A cidade ilhada. O livro reúne
14 contos, alguns publicados anteriormente em jornais e revistas brasileiras e estrangeiras.
Trata-se de contos que em sua maioria retratam o espaço da cidade de Manaus e o interior
do Amazonas a partir de memórias de personagens, inclusive alguns desses de suas obras
anteriores.
Na primeira parte deste trabalho, apresentamos alguns apontamentos da teoria e
metodologia da Estética da Recepção, a partir dos trabalhos de Jauss, abordados no Brasil
principalmente por Regina Zilberman. Logo após, trazemos um breve percurso das princi-
pais publicações do escritor Milton Hatoum. Em seguida, atemo-nos aos resultados e aná-
lises da coleta da fortuna crítica da obra A cidade ilhada, no percurso de 2009 – 2019, abran-
gendo assim sua primeira década de publicação. A partir dos dados coletados, elaboramos
uma síntese-temática para observamos quais os focos de análise sobre a obra. Constatamos
a cidade e a memória como temas mais recorrentes da crítica especializada para analisar a
coletânea de contos. Esses são temas que buscamos articular com a fortuna crítica, as outras
obras do autor e com personagens dos contos, sujeitos ilhados, que entre cidades e lembran-
ças, revelam-nos também imagens de uma Manaus.

Estética da recepção

Na Alemanha, na segunda metade do século XX, Hans Robert Jauss (1921-1997)


realiza ensaios e conferências que marcam o início da Estética da Recepção como um campo
teórico e metodológico da História da Literatura. Em meio à bipolaridade do Ocidente, aos
movimentos estudantis que ganhavam força reagindo aos parâmetros políticas e culturais,
Jauss aponta para novos caminhos de investigação, denunciando “a fossilização da história
da literatura, cuja metodologia estava presa a padrões herdados do idealismo ou do posi-
tivismo do século XIX”11, visando a “promover uma nova teoria da literatura, fundada no
‘inesgotável reconhecimento da historicidade’ da arte, elemento decisivo para a compreen-
são de seu significado no conjunto da vida social12. Para isso, há um deslocamento no foco
de análise, passando da análise do texto para a análise dos “juízos históricos do leitor”13.
No Brasil, em 1979, Luiz Costa Lima publica uma coletânea de textos dos teóri-
cos da Escola de Constança, entre eles Jauss e outros importantes nomes para a formulação
da teoria da Estética da Recepção e de seus desdobramentos, tais como Karlheinz Stierle
(1936), Wolfgang Iser (1926-2007) e Hans Gumbrecht (1948). No mesmo período também

8 HATOUM, Milton. Um solitário à espreita (2013). São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.
9 HATOUM, Milton. A noite da espera (2017). São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
10 HATOUM, Milton. Pontos de fuga (2019). São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
11 ZILBERMAN. Op. cit, nota 1, p. 9.
12 Ibid., p. 9.
13 BARBOSA, João Alexandre: Iser e os efeitos da leitura. Folha de São Paulo, 1997. s/p.

Sumário 61
chegavam ao país os primeiros textos traduzidos do Círculo de Bakhtin, W. Benjamin, J.
Lacan, entre outros, que traziam novos olhares para as humanas e sociais14.
As formulações da Estética da Recepção, de Jauss, são divididas em sete teses,
das quais as quatro primeiras são as bases de sua metodologia. Estas se desdobram nas últi-
mas três que procuram “mostrar que a história deve levar em conta a compreensão progres-
siva da literatura e sua função produtiva”15.
Suas formulações partem de críticas ao formalismo russo, ao marxismo, e outros
teóricos, como Theodor Adorno e Roland Barthes. Porém, não iremos nos aprofundar nes-
sas questões, apenas pontuar alguns aspectos de sua teoria que procuram superar os paradig-
mas da história da literatura que apagavam a atuação do leitor e sua emancipação16.
Na primeira tese temos a defesa da obra literária como um evento divergente
do fato histórico. A obra deve ser vista como um acontecimento literário que se concretiza
somente no processo de leitura, que acontece no diálogo entre o leitor e o texto e entre o
leitor com os demais textos, anteriores e posteriores à obra, pois seu poder de alcance está
nas leituras de cada época, suscitadas por novas recepções em embate ou concordância com
as anteriores17. Esse movimento histórico se torna possível somente por meio de um agente
também histórico, ou seja, o leitor18. Em linhas gerais, portanto, “o texto literário não é um
fato, nem uma ação, mas um ato de recepção”19 que exige a participação do leitor para seu
acontecimento.
Para Jauss, segundo Zilberman20, a experiência literária do leitor pode ser exami-
nada através dos sistemas histórico-literários da época de surgimento da obra, pois “na medida
em que participam de um processo de comunicação e precisam ser compreendidas, elas [as
obras] apropriam-se de elementos do código vigente”21. Nisso se constitui a segunda tese,
que propõe a análise, de modo mais particular, dos horizontes de expectativa que o leitor acio-
na na leitura de cada obra22. A partir disso, dos horizontes de expectativas, a obra pode apro-
priar-se deles para depois subvertê-los, e assim rompendo com os paradigmas da época23.
Na terceira tese é trabalhada a noção de distância estética, por meio da qual po-
demos medir o valor artístico de uma obra. Trata-se do “afastamento ou não-coincidência
entre o horizonte de expectativa preexistente do público e o horizonte de expectativa susci-
tado por uma nova obra”24. Quanto mais distante das expectativas preexistentes do público,
maior seu valor estético. Isso pode ocorrer tanto na “primeira” recepção, como no caso de
obras que transgridem seus sistemas histórico-literários, quanto no decorrer das recepções
que a obra emerge em cada época, suscitando, assim, novos horizontes de expectativas da

14 ZILBERMAN. Op. cit, nota 1.


15 ZAPPONE, Mirian Hisae Yaegashi. Estética da Recepção. In: BONNI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria
literária: abordagem histórica e tendências contemporâneas. 3ed. Maringá: Eduem, 2009. p. 160.
16 FIGURELLI, Roberto. Hans Robert Jauss e a Estética da Recepção. Letras, UFPR, 1988. p. 265-285.
17 ZAPPONE, Op. cit, nota 15.
18 ZILBERMAN. Op. cit, nota 1.
19 ZAPPONE, Op. cit, nota 15, p. 158.
20 ZILBERMAN. Op. cit, nota 1.
21 Ibid., p. 34.
22 ZAPPONE, Op. cit, nota 15.
23 ZILBERMAN. Op. cit, nota 1.
24 ZAPPONE, Op. cit, nota 15, p. 159.

Sumário 62
obra. No entanto, há também obras que se projetam exatamente para não se alterarem, pro-
curam responder ao padrão esperado pelo público, o que Jauss nomeou de arte culinária ou
ligeira25.
Esse é um ponto importante, pois aqui podemos visualizar a dinâmica do sis-
tema das obras literárias, que se superam e renovam através da recepção dos leitores, seja
no primeiro momento seja em posteriores, como aponta Jauss: “o novo horizonte força o
público à transformação de seu horizonte de expectativa, de modo que o horizonte antes
desconhecido transforma-se em obviedade, em expectativa familiar e passa a ser, portanto,
o sistema histórico-literário de referência para leituras posteriores”26.
A quarta tese investiga a história do efeito por meio da reconstrução dos horizontes
de expectativas, pois é através deles que podemos saber quais perguntas o texto se propõe
a responder, ou seja, assim podemos examinar a comunicação entre o público leitor e o
texto27. Nesse momento, busca-se interpretar esse diálogo, já imerso nas interpretações às
quais o texto foi submetido. Sua análise é mais um elo histórico carregado de outros, e nisso
está o potencial de sentido da obra, na sua capacidade de realizar não apenas o processo de
reprodução (dentro da tradição histórica), mas também de produzir novos conhecimentos e
respostas de perguntas que ainda não foram feitas28.
Nas últimas três teses, quinta, sexta e sétima, temos os aspectos que articulam
essa proposta de análise da história literária. São eles, o diacrônico, o sincrônico e o aspecto
da literatura e a vida prática dos leitores.
O primeiro aspecto, o diacrônico, sugere um olhar que “permite um constante
reavaliar dos textos literários”29, já que para Jauss, segundo Zappone30,
o lugar de uma obra na série literária não pode ser determinado apenas em razão
de sua recepção inicial, portanto baseando-se apenas no contraste entre o novo e
o velho no momento de sua aparição. Essa função ou lugar depende, também, da
história das recepções de um texto. [...] às vezes, o valor de uma obra não é percebido
no momento de sua recepção inicial, já que a distância estética entre o horizonte de
expectativa da obra e o do público é muito grande e, talvez, seja necessário um longo
processo de recepção para que a obra venha a ser compreendida.

Assim, a obra por esse aspecto diacrônico, está apta às possibilidades de leituras,
e são essas possibilidades que devem ser examinadas no decorrer do tempo. E isso deve ser
feito em paralelo com o aspecto sincrônico, ou seja, analisar as leituras que sucederam uma
obra em diálogo com seu momento primário, pois são nas interseções entre esses aspectos
que a historicidade pode ser observada31.

25 Ibid.
26 Ibid., p. 160.
27 Ibid.
28 Ibid.
29 Ibid.
30 Ibid., p. 161.
31 Ibid.

Sumário 63
Por último, temos o aspecto da literatura e a vida prática dos leitores. Essa tese
vai além da proposta estética, ela reflete sobre o alcance da literatura na organização da so-
ciedade, na cultura, na vida cotidiana, de forma transformadora32.
A partir desses pressupostos teóricos, apresentamos um panorama da produção
literária de Hatoum, para melhor compreendermos o horizonte de expectativa da obra, visto
que alguns dos contos trazem essa recorrência explícita, portanto, buscamos também os diá-
logos que a obra eleita mantém com seus outros trabalhos, e, principalmente, com os temas
que a obra suscita e se embrenha na vida prática, reformulando, apontando novas perspec-
tivas de subjetividade/identidades. Além de apresentarmos os dados da pesquisa sobre A
cidade ilhada, guiada pelos seus temas principais.

Percurso da produção literária de Milton Hatoum

Milton Hatoum nasceu na cidade de Manaus, capital do Amazonas, no ano de


1952, onde viveu sua infância e parte da adolescência. Em 1967, muda-se para Brasília,
onde termina seus estudos básicos. Já nos anos 1970, em São Paulo, cursa, na Universidade
de São Paulo, Arquitetura e Urbanismo. No início da década 1980, como bolsista, viaja para
outros países, dentre os quais Espanha e França. Entre 1984 e 1999, leciona na Universida-
de Federal do Amazonas, como professor de língua e literatura francesa, e como professor
visitante na Universidade da Califórnia, em 1996. Também foi escritor visitante em algumas
universidades americanas. Desde seu romance de estreia, em 1989, Hatoum vem narrando
histórias de famílias conflituosas, de personagens em trânsito, sobre a “duplicidade do mo-
vimento dos que chegam e dos que se vão, dos que não queriam vir, tampouco partir”33.
Antes dos primeiros três romances bem conhecidos de Milton Hatoum, seu pri-
meiro livro foi uma obra de poemas, chamada Amazonas: palavras e imagens de um rio entre
ruínas34, publicado em 1979. Os poemas falam sobre lugares amazônicos, como a floresta, os
rios, estabelece diálogos com o autor Euclides da Cunha para falar de um mundo em deca-
dência, em ruínas35. Inicia-se aqui o que continuamos a ver em seus trabalhos posteriores, o
que Scramin36 aponta como um compromisso com a história, através da memória, que tais
como ruínas, são espaços que têm histórias a contar, deixando de ser apenas o que foi, e
tornam-se espaços de (re)construção.
Dando sequência, no final da década de 1980, Hatoum lança seu primeiro ro-
mance Relato de um certo Oriente, que narra a história de uma família que têm suas raízes no
Oriente, mas profundos laços com a cidade amazonense dos anos 1950. Temos como narra-
dor principal uma mulher, ainda jovem, que, através de relatos, tenta pintar para seu irmão
mais novo uma tela sobre a família que os acolheu e criou. Para isso, a jovem, na ocasião do
velório de sua avó Emilie, através de histórias suas, do tio Hakim, de um amigo da família
chamado Dorner, de seu avô e da empregada Hindié, visita seu próprio passado e de seus

32 Ibid.
33 LOURO, Francisca de Lourdes Souza; OLIVEIRA, José Aldemir de. Geografando a cidade de Manaus nas obras de
Milton Hatoum. Revista Fórum Identidades, Universidade Federal de Sergipe, v. 28, 2018. p. 217-236.
34 HATOUM, Milton. Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas. São Paulo: Livraria Diadorim, 1979.
35 SCRAMIM, Susana. O livro-mundo. Milton Hatoum e a Literatura do presente. Teresa Revista de literatura brasileira,
v. 10, n. 11, São Paulo, 2010. p. 216-235.
36 Ibid.

Sumário 64
familiares. Nesse romance a família é mais que um símbolo de abrigo, ela se revela como o
ponto central das vidas de seus personagens, que, por mais que fujam, sempre estão presos
aos seus segredos, sustentados principalmente pela matriarca Emilie. Com sua morte, a cada
um restam apenas partes da(s) história(s), versões dos conflitos que são abordados por esses
personagens mutilados pelas lembranças.
Em 2000, Hatoum publica seu segundo livro, Dois irmãos. Nesse romance, mais
uma vez, temos a história de uma família como foco. Em Dois irmãos a família de Zana e
Halim têm suas histórias narradas pelo seu neto Nael, filho de um dos gêmeos com a em-
pregada Domingas. Na busca pela sua origem, Nael se aprofunda nos impasses entre os
irmãos Yacub e Omar, revivendo seus caprichos da infância, a separação abrupta, o cuidado
obsessivo da mãe, as disputas e o ódio alimentado durante toda uma vida. Levando-os a um
desfecho melancólico. Zana leva para o túmulo o desejo de unir os filhos. Nael continua
carregando dúvidas sobre sua origem, mas seu desejo maior torna-se abafar a presença da
família e seus segredos, com ressalvas às lembranças que tinha de Halim e sua mãe Domin-
gas. O fim dos demais personagens nos revela que perdão e vingança são insuficientes diante
do efeito do tempo. Condenados pelo passado, jamais poderiam remendar o presente. Yacub
se ausenta da presença dos irmãos; Nael se distancia dos vivos (da família); Omar termina
vagando pela cidade, encerrando em si os pesadelos da mãe.
As duas obras de romance
narram, em momentos históricos diferentes, fragmentos da história da Amazônia
e do Brasil, enfocando as diversas mudanças por que passam a cidade de Manaus,
marcada pela atividade comercial dessas famílias imigrantes. Mas nos romances de
Hatoum o abismo mais terrível é o que está em casa, entre as paredes que sufocam e
aprisionam os membros do clã37.

Em 2005, temos seu terceiro romance, Cinzas do Norte. Nessa narrativa temos a
história de Mundo rememorada por seu amigo Lavo, anos depois de sua morte prematura.
Entre as memórias de Lavo, há relatos do personagem Ranulfo, que foi apaixonado por
Alícia, mãe de Mundo, nesses episódios, ele conta como foi a chegada das irmãs Delemer à
cidade de Manaus e seus rumos, assim como revela momentos da infância infeliz de Mundo.
Acompanhado disso, também nos é contada a história de uma Manaus em processo, de seu
ambiente físico e econômico no período de pré e durante ditadura militar brasileira. Mundo,
em constante revolta com seu pai Jano, e depois com seu verdadeiro pai biológico Arana,
tenta viver conforme sua vontade. Para isso, viaja para outro país, em miséria e frenesi ar-
tístico se afasta de suas figuras paternas/materna. Hatoum novamente nos envolve em uma
narrativa sobre
A busca da origem (...). Mas, ironia suprema, a busca que alimenta o andamento das
histórias, revelado o segredo, se esvai na pequenez das revelações, nada do descober-
to é tão surpreendente, inusitado ou importante assim. Importante mesmo é o exercí-
cio da palavra, a velha arte de envolver o ouvinte na magia das histórias inventadas38.

37 RICON, Neire Márzia. A caligrafia de Deus e A cidade ilhada: imagens da cidade de Manaus na contística de Márcio
Souza e Milton Hatoum. Dissertação de mestrado. Programa de pós-graduação em Letras e Linguística. Faculdade de
Letras, Universidade Federal de Goiás, 2012. p. 85.
38 Ibid., p. 85-86.

Sumário 65
Em conjunto com o escritor Benedito Nunes (1929-2011), Hatoum publica em
2006 o livro Crônicas de duas cidades: Belém e Manaus. É uma obra que homenageia os 390
anos da cidade de Belém, em que os dois autores escrevem sobre essas duas cidades nortis-
tas, em uma época passada.
Já em 2008 temos sua novela Órfãos do Eldorado, a obra compõe a coleção “Mitos”
da editora Companhia das Letras em parceria com editoras internacionais. O escritor reúne
mitos e lendas amazônicas como pano de fundo de sua história, que dá voz ao imaginário
popular nortista e indígena sobre o paraíso da Cidade Encantada. A narrativa é contada
pelas memórias. Com destaque para a história do personagem Arminto, que tem sua vida
entrelaçada com outros personagens, como seu pai Amando, a empregada Florita, o advoga-
do Estiliano e a órfã Dinaura. Em meio à decadência e desilusão, Arminto persegue o mito
da Cidade Encantada enquanto a imagem de Dinaura não se apaga de seus pensamentos.
Em 2009 temos a publicação dos contos de A cidade ilhada, obra composta por 14
contos, que dentre esses seis são inéditos na língua portuguesa (Um oriental na vastidão; Dois
poetas da província; O adeus do comandante; Manaus, Bombaim, Palo Alto; Encontros na Península;
Dançarinos na última noite). Os outros oito contos tinham sido publicados no Brasil e outros
países, mas editados para esta coletânea. Das datas de publicação que se tem acesso, o conto
mais antigo data 1992, A natureza ri da cultura, também é, dos que compõem a obra, o conto
mais traduzido para outras línguas, e mais, esse é o “embrião” do seu primeiro romance39.
Os mais recentes são Dois poetas e Dois tempos, ambos de 2005. O período de publicação dos
contos está entre os três primeiros romances. Não por acaso, temos a presença de persona-
gens de Relatos de um certo Oriente e Cinzas do Norte, em contos publicados bem próximos às
obras.
Continuando nas narrativas curtas, em 2013, temos o livro Um solitário à espreita,
que reúne dezenas de crônicas publicadas anteriormente em jornais e revistas brasileiras e
estrangeiras, todos revisados para compor este livro. Conforme o autor, os textos dessa obra
“podem ser lidos como crônicas, contos ou breves recortes da memória”40, dividida em cin-
co seções temáticas que contam histórias de personagens novos e de já conhecidos de outras
obras do autor.
Em 2017 é publicado o primeiro volume da série O lugar mais sombrio: A noite
da espera. Em 2019 temos o volume dois: Pontos de fuga. As obras narram a formação de um
grupo de jovens que vivem entre Brasil e França, no período de repressão militar brasileira.

A fortuna crítica de A cidade ilhada

O corpus é constituído por análises críticas acadêmicas e jornalísticas, realizadas


no Brasil. As coletas da fortuna crítica foram feitas em bancos de teses e dissertações e sites
como Google acadêmico, Google, Plataforma Lattes, Repositório Capes e o site do autor,
realizando buscas através de palavras-chave, como “a cidade ilhada”, “tese A cidade ilhada,
Milton Hatoum”, “dissertação A cidade ilhada, Milton Hatoum”, “artigos A cidade ilha-
da, Milton Hatoum”. De cada resultado de busca gerado, foi-se conferido até a página 10,

39 HERRERA, Antonia. Locus amoenus ou lugar de perdição: um estudo dos contos de Milton Hatoum em “A cidade
ilhada”. Anais XIII ABRALIC, 2013.
40 HATOUM, Op. cit, nota 8, p. 9.

Sumário 66
coletando os trabalhos que tratassem especificamente sobre a obra ou em diálogo com ou-
tra(s). Com isso, obtivemos 9 textos de divulgação41 (que são matérias de jornais e revistas,
entrevista e resenha acadêmica), 24 artigos42 (entre artigos de revistas, ensaios e trabalhos

41 BORGES, Julio Dario. A cidade ilhada, de Milton Hatoum. Digestivo Cultural. Disponível em:http://www.digesti-
vocultural.com/arquivo/nota.asp?codigo=1531&titulo=A_cidade_ilhada,_de_Milton_Hatoum. Acesso em: 13 de Nov. de
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Anais semana de letras XIII, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2013.
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Sumário 67
de conclusão de curso) e 5 dissertações de mestrados43, somando ao total 38 trabalhos. No
período de buscas, que duraram quatro meses, entre novembro de 2019 e março de 2020, não
fora encontrada nenhuma tese de doutorado realizada/defendida. Alguns desses trabalhos
não foram localizados na íntegra, pois não estavam disponíveis em formato virtual.
A partir desses dados, dos artigos e dissertações, por comportarem análises mais
densas, separamos os trabalhos por temáticas, isso através das palavras-chave. Para, assim,
realizarmos uma análise sobre os dados e a obra a partir dos temas principais. Os temas
coletados com mais recorrência foram: cidade, memória, juventude, tradição oral, poética, regio-
nalismo, desespero humano, fronteira, floresta, intertexto, espaço, gênero conto, estrangeiro. Dentre
esses, constatamos que as tendências das análises foram os temas cidade e memória.
Deste modo, por meio da síntese-temática selecionada – cidade e memória –,
apresentamos a recepção dos textos de divulgação, estes que partem de jornalistas e pesqui-
sadores, e de trabalhos acadêmicos sobre a obra, onde podemos encontrar leitores já fami-
liarizados à literatura hatouniana.
Dos gêneros literários, o conto foi uma das primeiras predileções literárias de
Hatoum leitor. Segundo o autor, através dos contos de Machado de Assis, e mais tarde com
os do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti, pode constatar que “Leer por primera vez la
obra de un autor genial es como redescubrir la gran literatura”44, e muitas das vezes não são
textos fáceis, visto que é “el arte, el verdadero arte de narrar, es complejo”45.
A riqueza do conto, como argumentou Cortázar, na metáfora entre romance-ci-
nema/ conto-fotografia, está na “arte de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe
determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra
de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende
espiritualmente o campo abrangido pela câmera”46.

SILVA, Layane Serrecena da. A música que espelha um texto: “Barbara no inverno”, de Milton Hatoum. Anais X Semi-
nário de literatura brasileira: literatura, memória, esquecimento, 2016.
SILVA, Nailson Lima as; ALVES Cristiano de Souza; SILVA, Marciclei Bernardo da. A compreensão de lugar no conto
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SOARES, M. L. de A.; PETARNELLA, L. Sociologia e literatura: entre a cidade e a cidade ilhada. Quaestio - Revista de
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43 CARVALHO, Maria Cecília Gonçalves de. Música e sonoridade em A cidade ilhada de Milton Hatoum. UNIMON-
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Programa de pós-graduação em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015.
VASCONCELOS, Marina Arantes Santos. Estrangeiros na obra de Milton Hatoum: leitura dos contos de A cidade ilhada.
Dissertação de mestrado. Programa de pós-graduação em Literatura. Instituto de Letras, Universidade de Brasília, 2013.
44 HATOUM, Milton. Sin miedo y com placer. El País cultural, n. 1029, 2009. Disponível em: http://www.miltonha-
toum.com.br/wp-content/uploads/2011/02/Onetti_ElPaísCultural_14Agosto2009.jpg. acesso em: 13 de Nov. 2019. s/p.
45 Ibid.
46 RINCON, Op. cit, nota 37, p. 27.

Sumário 68
Assim, tal como a fotografia, o conto instaura “uma sensibilidade no leitor para
além da história narrada”47.
Mas ao contrário de outros autores, sua empreitada literária não se deu com os
contos, eles vieram 30 anos após a primeira publicação. Hatoum nos oferece na “pequena
obra-prima”, como Pinto48 chama os contos de A casa ilhada, um trabalho singular, que nos
aproxima e distancia de seus demais trabalhos, como observar Ceccarello49, em que mesmo
tendo a presença de suas obras anteriores,
os temas são redirecionados, aprofundados em certo ponto de vista e abrandados por
outro. Os contrapontos entre estabilidade e deslocamento, entre regional e universal,
colocam-se como norteadores e espelham as obras de Hatoum. O fio condutor da
memória persiste e nele há a obsedante presença de uma cidade que se transmuta e
se desfaz.

As lembranças de uma antiga Manaus é o que persegue Hatoum e se desdobra em


suas narrativas, como comenta em uma entrevista a Brasil50, “A cidade da minha infância
não existe mais. Tentei explorar nos meus romances essa destruição abrupta e brutal da me-
mória urbana”. E assim são seus personagens nos romances e contos, transitam pela cidade,
principalmente dos anos 1950 e 1960 e seguem para um espaço explorado e modificado.
Dos contos somente dois não são ambientados ou se relacionam com a cidade de Manaus
(trata-se de Bárbara no inverno e Encontros na península), os demais se situam entre os períodos
da cidade isolada e exótica e a região cosmopolita, uma das maiores cidades industriais da
América Latina51. No entanto, mostra não um avanço positiva, mas “uma terra em que os
homens trabalham para escravizar-se”52. Como também observa Turrer53, a obra “é uma sín-
tese de seu mergulho no passado e no desencanto com os rumos do país, escritos de modo
ainda mais direto, com cenas curtas e simbólicas. Qualidades que colocam Hatoum, mais
uma vez, à frente de seus companheiros de geração. Agora também no conto”.
Já em Soares e Petarnella54, temos um olhar sobre a cidade como a “forma de
organização social mais tipicamente contemporânea e que melhor representa a maneira
como o homem atual se relaciona com o espaço e o tempo”. O que justifica sua presença
nas narrativas, não apenas como cenário, mas como personagem55. E como tal, observam
que esse personagem muda, transgride com o tempo, dos contos juvenis, como Varandas da

47 RINCON, Op. cit, nota 37, p. 27.


48 PINTO, Manuel da Costa. Contos partem da dinâmica local para reinventar a experiência contemporânea. Folha de
São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1402200909.htm. Acesso em: 13 de Nov. de
2019.
49 CECCARELLO, Vera Helena Picolo. A cidade ilhada. Estudos de sociologia, Araraquara, v. 10, n. 27, 2009. p. 487.
50 BRASIL, Luiz Antonio de Assis. Entrevista com Milton Hatoum. Navegações, v. 2, n. 2, jul.-dez., 2009. p. 169.
51 Ibid.
52 HATOUM, Op. cit., nota 7, p. 24.
53 TURRER, Rodrigo. Milton Hatoum lança seus contos em A cidade ilhada. Época. Disponível em: revistaepoca.globo.
com/Revista/Epoca/0,,EMI27300-15220,00-MILTON+HATOUM+LANCA+SEUS+CONTOS+EM+A+CIDADE+I-
LHADA.html. Acesso em: 13 de Nov. de 2019. s/p.
54 SOARES, M. L. de A.; PETARNELLA, L. Sociologia e literatura: entre a cidade e a cidade ilhada. Quaestio - Revista
de estudos em educação, v. 13, n. 1, 11, 2011. p. 7.
55 Ibid.

Sumário 69
Eva e Uma estrangeira em nossa rua, ao caloroso Dançarinos na última noite, as cidades “não são
lugares que habitamos, mas ideias que carregamos”56.
A narração dessa cidade chamada Manaus, dá-se no movimento de ler as memó-
rias, e isso é possível a partir das respostas que a obra carrega, a partir das perguntas que o
público faz. Como apresentado nos textos de divulgação, Hatoum trabalha com a cidade,
mas não “simplesmente um lugar ou uma região. Representa, de fato, uma condição mar-
cada pelas vicissitudes estruturantes da própria sociedade brasileira e suas heterogeneida-
des”57. Portanto, reescrevê-la é “senti-la e traduzi-la imaginariamente, num processo cons-
tante de literaturização. Para tanto, voltar ao passado pela memória é escolher fragmentos
que lá estão, é a tentativa de juntar os fragmentos que se cindiram pelo vendaval”58.
Entre os outros trabalhos, temos análises voltadas para a obra na íntegra, em
comparação com outros textos e de contos específicos. Há diversos segmentos para realizar
a leitura dessa obra, mas, como apresentamos, cidade e memória são os mais recorrentes.
Eles mantêm ligação e influência sobre seus personagens, que “apresentam-se ligados de
alguma forma a alguns pontos de referência afetiva da cidade de Manaus [...] Essa relação
não é com a urbe do presente vivido, mas a de um passado que habita as lembranças”59.
São sujeitos que aonde vão, Manaus persegue, mas nela percebem que não estão
mais na “cidade encantada”, agora teriam “que andar até o asfalto para pegar dois ôni-
bus”60. São sujeitos ilhados em uma “cidade ilhada, talvez perdida”61.
A construção subjetiva sobre as identidades desses sujeitos dá-se pela alteridade,
pois, nos contos, a
Amazônia é a imagem central que recebe a influência de espaços diversificados do
planeta, por meio do legado de estrangeiros de variadas etnias e nacionalidades,
deixado nos rastros de seus deslocamentos, que incluem a passagem ou mesmo a
estadia fixa em Manaus. É essa atmosférica “babélica” de convivência entre perso-
nagens estrangeiros, nativos, imigrantes e exilados que Milton Hatoum constrói suas
imagens e descreve os acontecimentos62.

Nesta voyage sans fin, há “convivência com o outro, e aí reside a confusão, fusão
de origens, perda de alguma coisa, surgimento de outro olhar”63, ancorados na imaginação
“de coisas distantes no espaço e no tempo”64.

Considerações finais

Pensar a história por meio da literatura, como apresenta a Estética da Recepção,


é realizar uma leitura amparada no presente, pelo momento histórico do pesquisador. Pas-

56 Ibid., p. 9.
57 CECCARELO, Op. cit, nota 46, p. 484.
58 SOARES, M. L. de A.; PETARNELLA, L., Op. cit, nota 51, p. 10.
59 RINCON, Op. cit, nota 37, p. 19.
60 HATOUM, Op. cit, nota 7, p. 95.
61 Ibid., p. 80.
62 VASCONCELOS, Marina Arantes Santos. Estrangeiros na obra de Milton Hatoum: leitura dos contos de A cidade
ilhada. Dissertação de mestrado. Programa de pós-graduação em Literatura. Instituto de Letras, Universidade de Brasília,
2013. p. 36.
63 HATOUM, Op. cit, nota 7, p. 83.
64 Ibid., p. 80.

Sumário 70
sadas as “impressões” românticas e naturalistas, como os trabalhos apontam, em relação
não somente à cidade de Manaus, mas ao imaginário sobre a região Norte, e principalmente
sobre a Amazônia, os discursos dos pesquisadores/divulgadores revelam tendências que
ultrapassam o regional, tratam, em um sentido macro, dos dilemas humanos. A leitura dos
contos reporta-nos a “uma cidade ilhada por um imaginário retrabalhado por Hatoum”65.
Essas são algumas das implicações que a literatura hatouniana vem proporcio-
nando aos seus leitores, respondendo talvez a perguntas ainda não feitas, ou por vezes es-
quecidas.
O aspecto memorialístico, um dos temas mais explorados na recepção pela crítica
dos romances de Milton Hatoum, também é uma tendência quando da análise dos contos.
É, pois, “modificando sua distância do presente que um acontecimento toma lugar no tem-
po”66. De certa forma, é o eixo central de sua obra, como declarado pelo autor em diversos
momentos: “Não há literatura sem memória. A pátria de todo escritor é a sua infância”67.

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65 SEMAAN, Taís Nunes Garcia. Juventude em A cidade ilhada. Revista de Estudos em Linguagens e Literatura, v.
11, n. 2, 2015.SEMAAN, Taís Nunes Garcia. O projeto poético inscrito nos contos de Milton Hatoum. Dissertação de
mestrado. Programa de pós-graduação em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
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66 RICOUER, Paul. Tempo e narrativa: o tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 66.
67 GURGEL, Luiz Henrique. “Não há literatura sem memória”. Revista Na ponta do Lápis. Ano IV, n. 8. AGWM
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Eduem, 2009. p. 153-162.
ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e a História da Literatura. São Paulo: Editora Ática
S.A., 1989.

Sumário 74
“Y a somos cuerpos de índias
castigadas , para qué más dolor ”:
o discurso ameríndio como
desarticulador político da
modernidade nas crônicas de P edro
L emebel

Carlos David Larraondo Chauca


Suerda Mara Monteiro Vital Lima

A
produção escrita de Pedro Lemebel emerge no contexto sócio-político
da ditadura chilena (décadas de 1980-1990) e coincide com os processos
da chamada “transição democrática” do Chile que, para Oscar Godoy,1
jamais foi concretizada. Nesse ambiente de tensões, crispações políticas e de enfrentamentos
populares, o escritor/performer, com agudeza e sensibilidade resgata, do não-lugar da histó-
ria, vozes e corpos produzidos como ausentes nas grandes narrativas da soberania nacional
chilena: mulheres, travestis, maricas,2 corpos periféricos, figuras públicas e anônimas da luta
pelas liberdades individuais. Tal exercício manifesta seu posicionamento (contra)político e
seu embate no campo dos sentidos, enfrentando-se a pensamentos totalitários e fascistas,
estes, alinhados aos projetos desenvolvimentistas e progressistas da modernidade.

É importante localizar que a modernidade aqui referida se analisa a partir de


uma perspectiva decolonial, que a entende arraigada à colonialidade, seu lado sombrio,
1 GODOY, Oscar. La transición chilena a la democracia: Pactada. Estúdios Públicos, n. 74, 1999, p.84. Disponível em
www.cepchile.cl Acesso 07 de agosto de 2020.
2 Popularmente o termo marica, comum nas cartografias “hispano-americanas”, refere-se de forma pejorativa a corpos
reconhecidos como fora do padrão masculino/heterossexual, como uma designação coloquial de “homossexual”. No dis-
curso do escritor Pedro Lemebel, o termo marica é reconhecido desde a “marginalidade” das periferias latino-americanas
como contraposição a uma identidade gay euro-norte-americana.

Sumário 75
sua práxis de violência3, que repercute na criação de corpos “marginais’, pois é indisso-
ciável à matriz colonial de poder que Mignolo4 interpreta em três âmbitos da experiência
humana, político, epistêmico e ontológico. Entrelaçados e indissociáveis pelo domínio do
conhecimento, da enunciação, da composição genérica e das preferências sexuais da elite
que fundou e manteve a ordem do mundo mediante o controle do conhecimento e o capital
articulado ao patriarcado, entendendo que este “regula las relaciones sociales de género
y también las preferencias sexuales y lo hace en relación a la autoridad y a la economía,
pero también al conocimiento: qué se puede/debe conocer, quiénes pueden y deben saber”.
5
Conscientes dos compromissos que Lemebel assume com a “marginalidade”, buscamos
colocar em evidência, dentro da sua escrita-política, de que modo o discurso ameríndio
funciona como desarticulador do discurso da modernidade, porquanto, percebemos que se
entrelaça às resistências dos corpos que Lemebel transcreve/traduz em suas crônicas, cuja
força individual/coletiva desorganiza o(s) espaço(s) dentro de uma sociedade neoliberal,
enfrentando-se à repressão estatal e aos instrumentos modernos de classificação/controle
político, ontológico e epistêmico.
Tal posicionamento é perceptível na frase transcrita no título do presente texto,
retirada de uma entrevista que o escritor/performer concedeu a Daniel Hopenhayn, em 24
de julho de 2014, para uma publicação virtual do diário The Clinic. Na entrevista, Hope-
nhayn interroga-lhe sobre seus processos de escrita e experiência, em particular, questiona
se a doença que o acometeu6 estaria imbuída em tais processos. “Y la enfermedad, ¿se te
ha metido en la escritura?”, questiona o jornalista. Ao que Lemebel rebate “No escribo de
la enfermedad, no soy masoquista, [...] ¡nada de dolor, plisss! Ya somos cuerpos de indias
castigadas, para qué más dolor… dejémoselo a Foucault”.7 A resposta delata um Lemebel
irônico, disposto a desarticular categorias enclausuradoras, dando um revés sagaz às arma-
dilhas discursivas que pretendem desvendá-lo, torná-lo nítido. Salvador Benadava8 já teria
advertido de algumas estratégias da mídia chilena que, mediante titulares sensacionalistas,
buscavam caricaturá-lo, em uma tentativa aparente de docilizar sua imagem e torná-la “irre-
verente”. Talvez, por esse motivo, Lemebel foge de afirmações, contorna a pergunta, subver-
te a ordem do questionamento, diz o que dele se espera, de uma forma inesperada. Jamais é
definitivo, não vacila, mas demostra que não pretende se levar a sério, nem ser coroado com
as láureas que enfeitam as cabeças canônicas da intelectualidade “sul-americana”.
Lemebel não pretende (trans)vestir-se de mártir literário, nem aceita converter-se
em avatar das lutas da “comunidade gay” chilena. “La lucha es para los hombres” como
3 Para Enrique Dussel, a práxis de violência constitutiva da colonialidade produz, inevitavelmente, “vítimas” como ga-
rantia do desenvolvimento dos seus projetos. Em tal caráter civilizatório da modernidade, afirma Dussel, “interpretam-se
como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da “modernização” dos outros povos “atrasados” (imaturos), das
outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil, etecetera” (DUSSEL, 2005, p. 49).
4 MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la
descolonialidad. Buenos Aires: Del Signo, 2010a.
5 MIGNOLO, Walter. Retos decoloniales, hoy. In: M. Borsani; P. Quintero. (Org.) Los desafíos decoloniales de nuestros
días: pensar en colectivo. Neuquén: EDUCO. Universidad Nacional del Comahue, 2014, p.10.
6 Em 2012, Lemebel submeteu-se a uma laringectomia, pois foi diagnosticado com um câncer na laringe que o fez perder
a voz, enfraqueceu sua saúde e causou seu falecimento no dia 23 de janeiro de 2015.
7 LEMEBEL, Pedro. Pedro Lemebel: “El partido de los distintos tiene un uniforme que apesta”. [Entrevista concedida a]
Daniel Hopenhayn. The Clinic, Chile, julho, 2014, n.p.
8 BENADAVA, Salvador. Pedro Lemebel Apuntes para un estudio. In: Revista de Humanidades y Ciencias Sociales, No
50. Segundo Semestre. Dibam, 2001.

Sumário 76
afirma na entrevista, e sua escrita, está atravessada por um devir-mulher que abraça a mar-
ginalidade; que assume no sobrenome materno (Lemebel), desde o qual, toma emprestada
uma voz ventríloqua, polifônica e, através dessa, outras vozes são ouvidas, “sobre todo a
los personajes más estigmatizados de la homosexualidad, como los travestis”. 9 Em sua
escrita se gesta o corte geo-corpo-político da sua experiencia subalterna.10 Tal experiência,
intuímos, desdobra-se a partir da sua diferença colonial, que Zulma Palermo entende como
aquilo que determina o valor do sujeito-outro distinto do eu-sujeito-único—legitimado e nor-
malizado pelo/no discurso da modernidade/colonialidade— “Y ese otro es tanto el marca-
do por la raza, la clase, el lenguaje, el género, como por el lugar en el que vive, las formas
de su convivencia y [...] por la capacidad de participar en el sistema de mercado con sus
peticiones”. 11
Tal registro escrito, delata-o por incorporar uma semiótica errante e marica que
se enfrenta ao discurso binário e tece fios de afinidades afetivas, forças de deslocamentos
alimentadas pelo desejo de corpos fora da lógica moderna. Uma escrita que desencobre seus
atravessamentos identitários de pobre, marica, travesti, de indígena mapuche. Fios de tece-
lã-travesti, transvestida de inúmeros eus que conformam e que resgata em sua narrativa. O
cordão-umbilical da memória que trama e entrelaça as violências de corpos soterrados pelos
projetos progressistas e homogeneizantes da nacionalidade, produto de exclusões históricas,
e de uma política de extermínio.12

Afinidades maricas

Embora as preocupações políticas de Lemebel partam do seu corpo marica, seu


espaço (d)enunciativo, essas extrapolam o recorte das dissidências sexuais e incorrem em
outros embates, vértices das relações de poder que o atravessam. Assim, discute as proble-
máticas das desigualdades sociais, das relações de gênero e da hierarquização étnico-ra-
cial. É importante destacar que o escritor/performer está atento, inclusive, aos processos de
silenciamentos histórico-culturais que lhe negam estabelecer tais discussões, pois, afirma:
“mientras los maricas poeticemos la maricada está todo bien, en el rincón que le asigna la
democracia oficial. Pero cuando se opina sobre etnias, aborto, derechos reproductivos, liber-
tad de culto o políticas económicas, la licencia freak queda cancelada.” 13

9 LEMEBEL, Pedro. Pedro Lemebel, escritor y artista visual: “Es necesario liberar algunas perversiones”. [Entrevista
concedida a] Andrés Gómez. La Tercera, Santiago de Chile, Consorcio Periodístico de Chile (COPESA), 1986. v. 21 sep.
1997, p. 44.
10 Santiago Castro Gomez e Ramón Grosfoguel (2007) definem a experiência subalterna como conhecimentos práticos de
sujeitos racializados/coloniais, gays e movimentos anti-sistémicos que são desconsiderados, submetidos/subalternizados
nas lógicas da modernidade. Estes são reconhecidos como uma corpopolítica do conhecimento sem pretensão de neutra-
lidade nem objetividade.
11 PALERMO, Zulma. Desobediencia Epistémica y opción decolonial. Cadernos de estudos culturais. Campo Grande,
MS, v. 5, p. 237-194, jan./jun, 2013, p. 244.
12 Pensamos, assim, alinhados à postura de Achille Mbembe (2018), para quem, a soberania de um Estado-nação parte
de uma necropolítica ou política da morte, do aniquilamento do outro-diferente. Esse outro representaria um perigo em
potência para a unidade do Estado. E nesse sentido “É a morte do outro, sua presença física como um cadáver, que faz o
sobrevivente se sentir único” (MBEMBE, 2018, p.62). Também, trazemos à baila as reflexões de Juliana Floréz-Floréz,
para quem, os processos de homogeneização na “América-latina” foram produtos “de la exclusión y, algunas veces, elimi-
nación, de una parte importante de la población: indígenas, negros y mestizos.” (FLORÉZ-FLORÉZ, 2007, p. 258).
13 LEMEBEL, Pedro. La rabia es la tinta de mi escritura. [Entrevista concedida a] Flavia Costa. Suplemento Ñ del Diario
Clarín de Buenos Aires, p. 6-9. sábado 14 de agosto de 2004. p. 07.

Sumário 77
Lemebel fala pelas suas feridas, ou poderia se dizer, pela sua ferida colonial.14 Essa
que, tal como indica Walter Mignolo, é difícil de curar apenas com a generosa assimilação
“ofrecida por quienes, desde las instituciones, la prensa, los Gobiernos o la enseñanza, con-
tinúan (ciega o perversamente) afirmando sus privilegios y perpetuando la indignidad, la
herida colonial”. 15 Por isso, o escritor/performer, assume seus locais de falante, importantes
na sua enunciação poética, ele fala pela sua diferença, como afirma no representativo “Mani-
fiesto- hablo por mi diferencia”, texto lido como intervenção em um ato político da esquerda
em setembro de 1980, em Santiago do Chile,16 desde o qual indica “Aquí está mi cara/ Ha-
blo por mi diferencia/ Defiendo lo que soy”. O Manifesto é um poderoso discurso com o qual
ironiza e aponta aquilo que Mignolo sinaliza, que as políticas do discurso moderno, em seus
diferentes mecanismos institucionais, continuam sulcando reiteradamente em suas feridas
Me apesta la injusticia/ Y sospecho de esta cueca democrática /Pero no me hable
del proletariado/ Porque ser pobre y maricón es peor [...] / ¿No habrá un maricón
en alguna esquina/ desequilibrando el futuro de su hombre nuevo? / ¿Van a dejarnos
bordar de pájaros/ las banderas de la patria libre? [...]/ Usted no sabe/ Qué es car-
gar con esta lepra/ La gente guarda las distancias /La gente comprende y dice:/ Es
marica, pero escribe bien/ Es marica, pero es buen amigo/ Súper-buena-onda/ Yo
no soy buena onda/ Yo acepto al mundo/ Sin pedirle esa buena onda/ Pero igual se
ríen/ Tengo cicatrices de risas en la espalda [...].17

Assim, é possível identificar que seu discurso está entrelaçado ao modo como ex-
perimenta a vida e, nesse sentido, seu corpo enfrenta um embate constante e consciente com
as forças discursivas de produção de sentido, nada escapa a su ojo de loca e parece sempre
disposto a desmantelar as armadilhas do sintagma jornalístico—que pretende extirpar dele
o ato confessional— assumindo a ficcionalidade do seu relato. “La biografía de un hombre
pobre, sudaca y aindiado siempre pasa por un gesto de confesión. Yo evito el testimonio
real”, afirma, “pero tampoco podría negar mi origen y lo evoco en la escritura, travestido,
multiplicado en un tornasol engañador”.18
Ressaltamos que, na citação, Lemebel reconhece sua condição de aindiado, de
indígena atravessado pela modernidade, e tal como indica no fragmento da entrevista que
parafraseamos no título do presente trabalho, há certas fronteiras discursivas que demarcam
sua enunciação. Explicamos. Na entrevista concedida a Hopenhayn, Lemebel associa o ma-
soquismo com o “gay gringo” e diz, mediante uma voz coletiva, que seu corpo de “índia
castigada” está constituído pela dor e a violência, da qual pretende se desvincular 19. Isto
14 Para Walter Mignolo “la herida colonial, sea física o psicológica, es una consecuencia del racismo, el discurso hege-
mónico que pone en cuestión la humanidad de todos los que no pertenecen al mismo locus de enunciación (y a la misma
geopolítica del conocimiento) de quienes crean los parámetros de clasificación y se otorgan a sí mismos el derecho a cla-
sificar” (MIGNOLO, 2007, p. 32).
15 MIGNOLO. Walter. La idea de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial. Traducción: JAWER-
BAUM, Silvia; BARBA, Julieta. Barcelona: Editorial Gedisa, 2007, p. 205.
16 Informações extraídas da página web Memoria Chilena da Biblioteca Nacional do Chile, site: http://www.memoria-
chilena.cl/602/w3-article-96700.html. Acesso em 28 de agosto de 2020.
17 LEMEBEL, Pedro. Poco hombre- Crónicas 1989-2012. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2013,
p. 15-17.
18 LEMEBEL, Pedro. Lemebel la yegua silenciada. [Entrevista concedida a] Maureen Shcaffer. Revista HOY, No 1.072,
p. 9 -15 febrero de 1998, p. 15.
19 LEMEBEL, Pedro. Pedro Lemebel: “El partido de los distintos tiene un uniforme que apesta”. [Entrevista concedida
a] Daniel Hopenhayn. The Clinic, Chile, julho, 2014, n.p.

Sumário 78
posto, tornam-se reconhecíveis as imagens de dois corpos, a do gay-blanco e a do marica-ain-
diado. Tal distinção desenhada na ludicidade do seu discurso, se identifica também, no texto
“Crónicas de Nueva York - El Bar Stonewall”. Nele, o escritor/performer, narra a expe-
riência de quando foi convidado a participar das celebrações do 28 de junho que rememora
os enfrentamentos da “comunidade gay” do East Village, em Nova York no ano de 1969,
contra as agressões do aparato policial que pretendia fechar estabelecimentos e prender “las
chicas gay” que frequentavam tal localidade.
[...]Entonces cómo no derramar una lágrima en esta gruta de Lourdes Gay, que es
como un altar sagrado para los miles de visitantes que se sacan la visera Calvin Klein
y oran respetuosamente unos segundos cuando desfilan frente al boliche. Cómo no
fingir al menos una pena si eres visita en Nueva York y te están matando el hambre
y pagándote todo estas gringas militantes tan beatas y comerciantes con su historia
política.20

Lemebel ironiza tais comemorações, pois, está consciente que tal evento pro-
vinciano, ganha um sentido globalizante demarcando as lutas da comunidade LGBTQI+
“mundiais”, devido aos marcos geopolíticos do seu acontecimento. Um espaço produtor de
sentidos de exportação que coloniza sentidos-outros e estéticas-outras mediante a constru-
ção de uma narrativa única, originaria, um acontecimento demarcado como um ponto de
ruptura em escala mundial e, dentro dessa assimilação, se produz também um padrão estéti-
co, relacionado a uma capitalização do desejo e dos corpos. “En este sector de Manhattan,
la zona rosa de Nueva York donde las cosas valen un ojo de la cara, el epicentro del tour
comercial para los homosexuales con dólares que visitan la ciudad”. 21
Interpretamos que na crônica há uma reflexão que delata um sistema global-sexo-
-raça-capital22, pois, a identidade do “gay-norte-americano” se pensa pela possibilidade do
seu poder de compra e, dentro do sistema capital da sociedade de consumo, tal poder lhe
permite, ou, lhe dá a possibilidade de inserir-se na sistemática moderna mediante sua pa-
rodia das relações heteronormativas e, principalmente, pelo patamar que lhe outorga a sua
identidade de homem-branco. “Sobre todo en esta fiesta mundial en que la isla de Manha-
ttan luce embanderada con todos los colores del arcoíris gay. Que más bien es uno solo, el
blanco. Porque tal vez lo gay es blanco”. 23 Dessa forma, Lemebel problematiza a “identi-
dade gay” apenas possível dentro de um padrão cultural branco euro-norte-americano atra-
vessado pelo capital.
Tal problematização incorre em torções de uma estética-gay para uma aiesthesis-
-marica24 que define colocando seu corpo de aindiado em cena e, através deste, (re)produz

20 LEMEBEL, Pedro. Poco hombre- Crónicas 1989-2012. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2013,
p. 188.
21 Ibid., p. 189.
22 Tal expressão é pensada ou emprestada das reflexões que Paul B. Preciado realiza em entrevista a Jesús Carillo em
junho de 2010.
23 LEMEBEL, Pedro. Poco hombre- Crónicas 1989-2012. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2013,
p. 189.
24 Usamos aiesthesis-marica, como forma de denotar um sentido contra-hegemônico se assumimos a estética como um
discurso universal, tal como propõe Mignolo (2010b), uma operação cognitiva que colonizou a aiesthesis (sensação, pro-
cesso de percepção). Assim, dentro da nossa interpretação, a estética-gay estaria relacionada aos padrões hegemônicos de
“beleza” demarcados pela experiencia euro-norte-americana, e, de forma contrastante a aiesthesis-marica estaria definida
por estéticas descentradas, fora de tal padrão.

Sumário 79
outras dissidências perpassadas por hierarquias étnico-raciais. Lemebel negocia identidades
apontando outros vértices de opressão no exercício da sua escrita performática e nela a iro-
nia e autodepreciação são recursos usados para subverter a ordem do discurso dominante.
Tais recursos atuam na contestação de experiências estéticas que são traduzidas, também,
como relações de poder, pois produzem subjetividades pautadas em um ethos. No texto,
Lemebel inverte tais estéticas ao inscrever-se no espaço do “gay-branco”, como um corpo
estranho, racializado. Percebemos isto devido aos campos semânticos que o circundam,
partindo de uma língua(gem) vexatória, habitual em sua escrita25, para autodenominar-se
como: “uno es tan re fea y arrastra por el mundo su desnutrición de loca tercermundista”;
“uno lleva esta cara chilena asombrada”; “indiecita”; “mosquita latina”26.
Autorrepresentações que explicitam suas afinidades com o feminino e o indígena,
que no recorte da modernidade/colonialidade, se opõem aos estereótipos do “gay-branco”,
que seu registro interpreta em alianças com o padrão colonial de poder: a branquitude, a
violência, a performance masculina e a parodia da heteronormatividade, articulada, é claro,
ao capital. Assim, a estética-gay vai sendo demarcada em frases como: “próceres gays”; “una
tonelada de músculos y fisicoculturistas, en minishort, peladas y con aritos”; “parejas de
hombres en patines”; “Olimpo de homosexuales potentes y bien comidos”; “grupo Leader’s
com sus motos, bigotes, cueros, bototos y esa brutalidad fascista”; “potencia masculina que
da pánico”; “barrio del sexo rubio” “clara, rubia y viril, como en esas cantinas de las pelícu-
las de vaqueros”; “oro postal de la clásica estética musculada”27. Uma linguagem que dese-
nha a caricatura burlesca de uma “essência homosexuada”, patamar dos desejos recalcados
pelo imaginário colonizado do marica sul-americano, interpretados pelo escritor/performer
como outras nuances da modernidade/colonialidade.
É interessante pensar/perceber que estas pautas em Lemebel são constantes, o
discurso neoliberal da diversidade é colocado às avessas. Em sua escrita, esse é um discurso
simplório, uma pseudo-emancipação traduzida em uma recolonização sexual, pois, as expe-
riencias maricas parecem sucumbir ante a compulsória produção de bens culturais do “gay-
-euro-norte-americano” e à naturalização de suas estéticas conexas ao capital. Estas criam
estilos, imagens-propaganda que se espalham massivamente pelos meios de comunicação,
uma pauta sexual-mercantilista que vende “identidades”, imagens de representatividade,
exaltando a diversidade através de um discurso neoliberal que controla sua produção cultu-
ral, que ensaia miragens de liberdades, mas que aprisionam os corpos a novas classificações
do controle de experiências, pois não contestam e/ou desarticulam as bases que sustentam
tais sistemas de opressão.
Na escrita lemebeliana, o discurso neoliberal da diversidade sexual refrata-se em
uma sexualidade gay higienizada, binária, heteronormativa e branca, que o escritor/per-
former contamina com os percursos marginais dos corpos maricas e as suas sexualidades à
deriva presentificadas em seu exercício cronístico. Como foi mencionado, Lemebel ressalta

25 Para Carlos Mosiváis o ponto de partida da escrita lemebeliana é “el lenguaje autodegrinatorio (sic) que le va represen-
tando al lector un espejo de restauraciones (Un marica resulta con frecuencia un ser épico, un enfermo de sida puede ser la
metáfora hermosa de la devastación y la dignidad)” (MONSIVÁIS, 2008, p. 17).
26 LEMEBEL, op. cit., p. 188 et seq.
27 LEMEBEL, Pedro. Poco hombre- Crónicas 1989-2012. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2013,
p. 188 et seq.

Sumário 80
seu compromisso com o feminino e com o indígena, constituintes da aiesthesis-marica, para
demarcar um contradiscurso/oposição à assimilação da experiência marica no espaço de-
marcado pela estética-gay. Em “Loco Afán”, crônica presente no livro homônimo, tal vez um
dos textos mais teóricos do escritor/performer, tal comprometimento é explicitado:
Desde un imaginario ligoso expulso estos materiales excedentes para maquillar el
deseo político en-opresión. Devengo coleóptero que teje su miel negra, devengo mu-
jer como cualquier minoría. Me complicito en su matriz de ultraje, hago alianzas
con la madre indolatina y «aprendo la lengua patriarcal para maldecirla» (grifos
nossos).28

“Loco Afán” é um claro exemplo do invólucro (contra)político da escrita leme-


beliana, da torção dos signos academicistas no malabarismo da sua sintaxe e os influxos da
sua experiência marginal, que desde e nas margens, teoriza e contesta os processos de natu-
ralização da violência e a submissão de corpos-outros na falácia da revolução e da liberdade
sexual assimilada no discurso da modernidade. “Porque la revolución sexual hoy reenmar-
cada al estatus conservador fue eyaculación precoz en estos callejones del tercer mundo y la
paranoia sidática echó por tierra los avances de la emancipación homosexual”. 29 Insistindo,
ressaltando, escancarando, às alianças do “gay”, do gay como discurso, com o padrão co-
lonial de poder, espelhos de hierarquias sociais pautadas pelo capital e o branqueamento;
acordos com a genealogia patriarcalista que extirpa dos corpos maricas os traços femininos/
indígenas, contribuindo com as políticas de extermínio.
Cadáveres sobre cadáveres tejen nuestra historia en punto cruz lacre [...] Separando
en estratificacíones de clase a locas, maricas y travestis de los acomodados gays en su
pequeño arribismo traidor. [...] Aterrados por el escándalo, sin entender mucho la
sigla gay con nuestra cabeza indígena. Acaso no quisimos entender y le hicimos el
quite a tiempo. Demasiados clubes sociales y agrupaciones de machos serios. Acaso
estuvimos locas siempre; locas como estigmatizan a las mujeres. [...] Entonces,
¿cómo hacernos cargo hoy de dicho proyecto? Cómo levantar una causa ajena trans-
formándonos en satélites exóticos de esas agrupaciones formadas por mayorías blan-
cas a las que les dan alergia nuestras plumas; que hacen sus macrocongreso en inglés
y por lo tanto nuestra lengua indoamericana no tiene opinión influyente en el diseño
de sus políticas. Asistimos como hermanos menores, desde nuestro tartamudeo
indigenista, Decimos si sin entender, acomplejados por el relámpago pulcro de las
capitales europeas. Nos pagan pasaje y estadía nos muestran su mundo civilizado,
nos anexan a su pedagogía dominante, y cuando nos vamos, barren nuestras huellas
embarradas de sus alfombras sintéticas (grifos nossos).30

Se pensamos sob as pautas do colonialismo, em Lemebel se distingue o recorte


sexo-genérico/étnico-racial da sua diferença colonial. Seu transbordar teórico direciona-se
para o entendimento do feminino/indígena, não apenas como signos da opressão institu-
cional, ou, para reforçar a ideia de vítimas passivas das relações de poder; antes é pensado
como um espaço possibilitador de discursos contra-hegemônicos capazes de transformar
e subverter o poder. Desse modo, identificamos nas discussões suscitadas pelo escritor/
28 LEMEBEL, Pedro. Loco Afán. Barcelona: Editorial Anagrama, 2000, p.117.
29 Ibid., p. 118.
30 LEMEBEL, Pedro. Loco Afán. Barcelona: Editorial Anagrama, 2000, p. 119-120.

Sumário 81
performer um fio de afinidade com os postulados de Silvia Rivera Cusicanqui presentes no
texto Violencias (re)encubiertas en Bolivia (2010). Tal aproximação a fazemos sempre atentos
às diferenças das experiencias geo-corpo-políticas inscritas na materialidade textual dessas
escritas, mas que nos permitem tricotar mediante tais discursos, o entendimento que o femi-
nino/indígena é a antítese desarticuladora da modernidade/colonialidade.
Cusicanqui no texto introdutório do livro mencionado— que traça notas do seu
percurso de vivencias y pensamentos— afirma ter intuído que a opressão feminina e a opres-
são índia (sic) entranhavam-se por sofrimentos similares: “el silencio cultural impuesto o
autoimpuesto, el tener que aceptar una identidad atribuida desde fuera, la paradoja de lu-
char por la igualdad y al mismo tiempo defender la diferencia”.31 Em Lemebel podemos
identificar tal reflexão traduzida no ímpeto de desarticular o “gay” exportado como iden-
tidade imposta, ou como base única para contestar a heteronormatividade, pois, o discurso
do “gay-branco-masculino” não é suficiente para discutir relações de poder nos contornos
geopolíticos nos quais o corpo marica transita (poderia se dizer a periferia da periferia do
mundo), afirmando que sua cabeça indígena não consegue entender a sigla gay, que sua condição
de marica-aindiado não tem espaço nas pautas políticas neoliberais das diversidades sexuais
e isto se traduz nas idiossincrasias advindas, também, de uma hierarquia epistêmica que ele
submete a escrutínio, delatando que, no mundo do gay civilizado, e sua pedagogia dominante,
os corpos maricas são completamente apagados, pois uma retórica masculina e branca não
admite uma semiótica errante, indígena e feminina.
Compreendemos que Lemebel não se sente contemplado nas pautas políticas
“gays-euro-norte-americanas” e isto ajuda a pensar no consumo massivo de teorias euro-
cêntricas que nem sempre respondem às pautas dos nossos contextos “latino-americanos”.
Assim mesmo, Cusicanqui é pertinente ao demarcar, no recorte do seu enunciado que se
refere às teorias feministas, o porquê desse estranhamento, ela diz: “siempre he vivido la
identidad femenina desde el interior histórico y político del colonialismo interno, donde la
mujeridad se construye también colonizada, en los variopintos estratos de la cadena q’ara-
-misti-chola/o-india/o”.32
A ideia em ambas escritas pode ser definida na necessidade de se contrapor ao
regime de autorização discursiva que a modernidade alimenta, cindindo-o mediante um dis-
curso feminino/indígena nos contornos políticos das periferias “latino-americanas”. Pen-
sando que, para Breny Mendoza33, o condicionamento do feminino/indígena como subca-
tegoria moderna foi agenciado pela confabulação entre o colonizador e homem colonizado,
tal subordinação sexo-genérica foi a moeda de troca que os homens colonizados pagaram
para conservar o controle da suas sociedades.
A analogia que se tece no recorte corpo-geo-político da escrita lemebeliana é
similar, pois, coloca em xeque o que denomina como “arrivismo desleal” do gay-branco
que se apropria e replica discursos de opressão. Desse modo, se levamos em consideração
a existência de uma genealogia masculina que perpetua o poder de dominação colonial na

31 CUSICANQUI, Silvia. Violencias (re) encubiertas en Bolivia. La Paz: Editorial Piedra Rota, 2010, p. 66.
32 CUSICANQUI, Silvia. Violencias (re) encubiertas en Bolivia. La Paz: Editorial Piedra Rota, 2010, p. 179.
33 MENDOZA, Breny. La epistemología del sur, la colonialidad del género y el feminismo latinoamericano. In: MIÑO-
SO, Yuderkys (coord.). Aproximaciones críticas a las prácticas teórico-políticas del feminismo latino-americano. 1a ed.
Buenos Aires: En la Frontera, 2010.

Sumário 82
modernidade, é viável pensar que na escrita lemebeliana, metaforizando o termo proposto
por Cusicanqui, há uma parentela feminina/indígena que torce o discurso moderno e devêm
em uma prática que decoloniza as subjetividades maricas.

Práticas descentradas do desejo marica

Lemebel afirma que há um devir-mulher que deixa transitar em sua escrita34,


ressaltando uma aliança que desarticula uma genealogia literária habituada a narrar sob o
signo do masculino. Uma escrita mediada por uma erótica que transcodifica subjetividades
dominantes através de um gesto subversivo, pautando outras políticas do desejo, pois tal for-
ça de deslocamento produz “linhas de fuga” ante sistemas de sexualidades “normalizadas”.
Aqui tomamos emprestadas, as reflexões que Guattari e Rolnik copilam sobre o desejo, en-
tendendo-o como uma força que permeia o campo social em escalas micro e macro políticas.
Em suma, como “todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de
amar, de vontade de inventar outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas
de valores [...] O desejo é sempre o modo de produção de algo, o desejo é sempre o modo
de construção de algo”. 35
Distinguimos tais potencialidades na matéria discursiva lemebeliana, na qual, os
desdobramentos do desejo partem de um corpo que se afeta e é afetado intensivamente pelas
relações que estabelece no entorno social e cotidiano demarcado por uma semiótica mas-
culina e branca que disciplina o desejo, entendendo que, “para a modelização dominante
[...] essa concepção do desejo é totalmente utópica e anárquica”.36 Lemebel produz outras
realidades e outras estéticas (des)reguladas por ações micropolíticas37 que torcem o discurso
hegemônico pela atuação do devir feminino/indígena, discutido em parágrafos anteriores.
Tal dinamismo parece delatar a necessidade de apoderar-se da enunciação e, desse modo,
definir os direcionamentos das incursões desejantes do(s) corpo(s) marica(s) presentifica-
do(s) em sua escrita. Deste modo, é possível compreender que o desejo como pauta política
em seu processo escritural está entretecido aos fios da trama de uma memória marica, regio-
nal, comunitária e “marginal” coletivizada mediante experiências subalternas no cotidiano
que constituem seu imaginário. E desde esse espaço a ruptura com a normalização acontece.
Nas crônicas do livro La Esquina es mi corazón (2008), por exemplo, a cidade é
demarcada como o lugar de embate entre forças. O desejo sexual do corpo marica, na figu-
ra da loca, personagem recorrente em sua narrativa, se contrapõe ao ordenamento espacial
do perímetro urbano, premeditado para o disciplinamento dos corpos e constituído pelos
códigos da sexualidade masculina. Os espaços da cidade transcritos na narrativa lemebelia-
na, podem ser lidos como bens culturais: cinemas, saunas, balneários, estádios de futebol,
quartéis, circos, vias públicas, parques, entre outros. No entanto, esses são reinterpretados,
consumidos e (re)apropriados pelos itinerários cotidianos e desejantes da loca, transgredindo

34 “Tomo prestado una voz, hago una ventriloquia con esos personajes. Pero también soy yo: soy pobre, homosexual,
tengo un devenir mujer y lo dejo transitar en mi escritura.” (LEMEBEL, 1997, p. 44).
35 GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolíticas- Cartografias do Desejo. 4a ed. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 214-
216.
36 Ibid., p. 214.
37 Cf. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely, 1996.

Sumário 83
tais imposições mediante uma poética que diz da sua relação com o espaço permeado pelos
seus deslocamentos e afetividades.
“Anacondas en el parque” exemplifica as micropolíticas de fuga, o desejo de al-
teridade e a apropriação simbólica/espacial proposta na escrita lemebeliana. Na crônica
se narra o parque como um espaço público planejado e como concentração legal do lazer
cidadão, principalmente, familiar. Um cenário altamente vigiado “donde las cámaras de
filmación, que soñara el alcalde, estrujan la saliva de los besos en la química prejuiciosa del
control urbano”.38 E, apesar de toda a parafernália tecnológica, o olho vigilante do estado
não consegue perceber certas incursões eróticas ou ecologias passionais, nas palavras de Le-
mebel, que se desenvolvem entre arbustos e aproveitam o pseudo-anonimato das sombras.
Nesse parêntesis urbano:
Obreros, empleados, escolares o seminaristas, se transforman en ofidios que aban-
donan la piel seca de los uniformes, para tribalizar el deseo de un devenir opaco de
cascabeles [...] Así pene a mano, mano a mano y pene ajeno, forman una rueda que
colectiviza el gesto negado en un carrusel de manoseos [...] Una danza tribal [...] Un
rito ancestral en ronda lechosa espejea la luna llena, la rebota en centrífugas voyeurs
más tímidas, que palpitan en la taquicardia de la manopla entre los yuyos.39

Percebemos no fragmento que os corpos dos sujeitos sociais manifestam um


devir-animal, estes sofrem um processo de involução próprio dos devires. Para Deleuze e
Guattari40 a involução não significa regressão, mas é uma força de criação de outras for-
mas de individuação que diluem os modos de subjetividade dominante. Assim, na crônica,
pedreiros, empregados, colegiais e seminaristas, perdem suas características “civilizadas” e
se entregam à multiplicidade, uma vez que, “não devimos animal sem um fascínio pela ma-
tilha, pela multiplicidade”.41 Tomando essa linha de pensamento, se para Deleuze e Guattari
os “devires minoritários”, principalmente e inicialmente o devir-mulher “chave dos outros
devires”,42 possibilitam o rompimento com os modos de subjetividade social, nos quais o
homem é modelo fixo e dominante, pois, territorializa e subordina outras forças e formas,
na escrita lemebeliana advertimos que a subjetividade dominante, além de masculina é en-
faticamente branca.
Desse modo, percebemos que seu discurso está entretecido a uma cosmovisão
indígena/ameríndia que distinguimos nas associações realizadas com vocabulários que re-
metem a tal afinidade em frases como: “tribalização do desejo”; “uma dança tribal”; “um
rito ancestral”; “yuyos”. Essas associações nos fazem pensar em uma (re)localização fora do
espaço/tempo moderno, em uma aliança ancestral indígena que valida outras práticas do
desejo sexual. É crucial atentar para os significados que envolvem o vocábulo yuyo, uma voz
quéchua que remete a qualquer erva daninha, ou erva silvestre, mas que o Diccionario del Ha-
bla Chilena também associa coloquialmente com “Quedar yuyo [...] Quedar un cadáver sin

38 LEMBEL, Pedro. La Esquina es mi corazón. Chile: Seix Barral Biblioteca Breve, 2008, p. 21.
39 Ibid., p. 25-26.
40 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo esquizofrenia 2, vol. 04. Tradução: ROLNIK, Suely.
São Paulo: Editora 34, 2017.
41 Ibid., p. 21.
42 Ibid., p. 74.

Sumário 84
la rigidez habitual en las primeras horas después de la muerte”.43 Assim, nos parece evidente
a relação que se entretece, na crônica, entre o desejo sexual e a morte.
Desde uma perspectiva ameríndia/indígena/andina, tal elo é mais notório, tendo
em vista que, nesta cosmovisão, o desejo sexual e o mundo dos mortos encontram-se inti-
mamente entretecidos. Para entender esta relação, primeiro, é necessário elucidar que na
cosmovisão andina a noção de mundo se encontra conformada por diferentes planos sim-
bolizados na Pachasofia mediante três círculos concêntricos ou Pachas: Hanan Pacha (mundo
de cima); Kay Pacha (mundo intermediário) e Uku Pacha (mundo de baixo e de dentro).44 É
necessário, também, entender que esses três horizontes das Pachas
circunscriben, como dimensión productiva virtual, todo el mundo visible. En tanto,
es muy significativa su correspondencia en la composición de nuestro cuerpo, defi-
niendo tres regiones de principios valorativos a tres partes del cuerpo, com funda-
mentos e implicaciones ontológicas.45

Em outras palavras, os três planos da Pachasofia possuem uma analogia direta


com o corpo. As regiões às que Fehlauer faz referência são três: Yachay, a parte superior do
corpo, a cabeça, que se associa ao Hanan Pacha; Ruay o Llankay, a parte central do corpo,
peito e abdômen, associada ao Kay Pacha; e Munay, a parte inferior, a dos órgãos sexuais, as-
sociada ao Uku Pacha. Fehlauer interpreta que esta divisão cósmica-corporal indica que não
há um corpo preconcebido, mas que o corpo adquire sentido nas relações que estabelece
com o espaço e com outros corpos, em um processo permanente de recriação e associa este
movimento constante aos processos de individuação e mobilidade propostos por Deleuze e
Guattari, que relacionamos aos “devires”, anteriormente discutidos.
Em razão do recorte feito na nossa leitura da crônica, queremos dar ênfase na re-
lação que se estabelece entre o Uku Pacha e o Munay. A referência ofídica na cosmogonia an-
dina— que bem poderia ser as “anacondas” representadas por Lemebel—está diretamente
associada ao amaru ou serpente cósmica. O animal totêmico que representa o Uku Pacha, o
infra mundo, o mundo dos mortos ou “mundo interior, subconsciente, del mundo andino, el
mundo subterráneo, que está ‘dentro y debajo’”.46 Para Lajo47, o runa (ser humano) que mais
cultiva a região do Munay, a zona púbica ou aparato sexual e membros inferiores, desenvol-
ve uma capacidade e potencialidade para sentir e amar, pois é a região das afetividades, é a
zona do desejo, do vínculo com a terra.
Fehlauer entende que o Uku Pacha define a matriz corporal do desejo, a esfera
dos afetos, que se constitui mediante uma “memoria corporal”.48 Na narrativa lemebeliana
é a memória corporal marica que agencia as forças de ruptura com os modos de subjetivi-
dades dominantes da sociedade moderna (masculinas, brancas e heteronormativas). É essa

43 ACADEMIA CHILENA. Diccionario del habla chilena. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1978, p. 251.
44 FEHLAUER, Tercio. El pensamiento andino de la diferencia- y el acontecimiento de la Universidad “Amalta Wasi”
en Ecuador. Mato Grosso do Sul: Clube de Autores, 2016.
45 Ibid., p.74.
46 QHAPAQ AMARU, Jym. Cosmovisión Andina: Inka Pachaqaway. Lima: Pchayachachiq – Investigación y Estudios
Inkásicos, 2012, p. 48.
47 LAJO, Javier. Qhapaq Ñan: La ruta inka de sabiduría. Quito: Editorial Abya Yala, 2006.
48 FEHLAUER, Tercio. El pensamiento andino de la diferencia- y el acontecimiento de la Universidad “Amalta Wasi”
en Ecuador. Mato Grosso do Sul: Clube de Autores, 2016, p. 95.

Sumário 85
memória corporal que permite a criação de linhas de fuga, nos dizeres de Deleuze e Guat-
tari,49 que estão associadas aos ímpetos sexuais que desorganizam os modos de subjetivação
dominante.
Consideramos que a força de ruptura— agora entendida como a força produzida
no Uku Pacha: uma força de desterritorialização e vinculação com o mundo sensível— pa-
rece estar sempre “na mira” das políticas coercitivas do corpo que a modernidade instru-
mentaliza/institucionaliza. Nos processos colonizatórios, por exemplo, essa força vital foi
constantemente cerceada. Em “Censo y Conquista (¿Y esa peluca rosa bajo la cama?)” Lemebel
discute os mecanismos modernos que interditam, categorizam e aprisionam os corpos e seus
deslocamentos desejantes a uma língua(gem) eurocêntrica, cujos códigos morais os limitam
ontologicamente.
UNO DE LOS PRIMEROS censos de población en América los realizó la Iglesia
Católica en plena Conquista. A medida que la masacre colonizadora arrasaba con
los poblados indígenas, los jesuitas iban recogiendo para la Corona todo antece-
dente que pudiera armar un nativo americano ante la rectoría española. Un perfil
descoyuntado por la estadística, rasgos del Nuevo Mundo desmembrados por la vo-
racidad foránea de agrupar en ordenamientos lógicos y estratificaciones de poder,
el misterio precolombino. [...] Los indígenas se sorprendían ante las preguntas cle-
ricales revistas de dominación y cierta morbosidad blanca. De qué cuantos coitos
semanales. De qué número de masturbaciones al mes. De cómo vivían tantos en
una misma choza. De qué pecados capitales se sumaban en las cuentas de vidrio de
los rosarios. De qué cantidad de oraciones y “padrenuestros” debían rezar para ser
absueltos. De cuántos metros cuadrados de oro pagarían como tributo”.50

Percebemos no fragmento uma série de mecanismos de poder utilizados pelo ho-


mem branco para delimitar os trânsitos dos corpos indígenas. Um assedio direcionado por
um olhar exotista, uma coerção que se estabelece pelo domínio de uma escrita instrumenta-
lista, cujos códigos garantem o apagamento/encobrimento dos corpos e saberes indígenas,
seus modos de experimentar o mundo. Apagamento este que se faz com a tinta autoritária
do eurocentrismo. O exercício do poder colonial que se exerce no corpo e garante sua produ-
tividade mediante sua capitalização. Fehlauer considera que para os missionários da empre-
sa colonizadora foi indispensável associar o Uku Pacha ao inferno cristão, uma vez que, isto
significaria cercear as forças e afetos mais profundos do corpo indígena, pois afirma que,
“la colonización como proceso de sujeción (coerción a la subjetividad) del mundo andino,
puede decirse, gana consistencia a través de este movimiento, siempre insistente (hasta hoy,
como veremos), cuya pretensión es excluir las fuerzas del Uku pacha de la vida de los runa”.51
Ainda na crônica, Lemebel afirma que essas práticas persistem na contempora-
neidade, pois o Estado certifica-se, mediante o censo-demográfico, de avaliar e catalogar em
estratificações sociais as diferentes humanidades, analisando seus índices reprodutivos, seus
hábitos higiênicos, su inserção no mercado laboral, sua escolaridade, sua aglomeração do
íntimo familiar etc. Para Lemebel o Estado insiste em imiscuir-se no íntimo populacional
49 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo esquizofrenia 2, vol. 04. Tradução: ROLNIK, Suely.
São Paulo: Editora 34, 2017.
50 LEMBEL, Pedro. La Esquina es mi corazón. Chile: Seix Barral Biblioteca Breve, 2008, p. 111-112.
51 FEHLAUER, Tercio. El pensamiento andino de la diferencia- y el acontecimiento de la Universidad “Amalta Wasi”
en Ecuador. Mato Grosso do Sul: Clube de Autores, 2016, p. 92.

Sumário 86
para controlar a massa proletária. Uma avaliação de práticas privadas (micropolíticas), que
supõe um perigo para o ordenamento social (macropolíticas) realizada através do “recolo-
nizaje por la ficha”.52 No entanto, na crónica se revelam as táticas realizadas pela massa
anônima para burlar as estratégias institucionalizadas pelas políticas modernas.
Em relação aos processos colonizatórios, ante o assédio sádico dos missionários
jesuítas, Lemebel indica que os indígenas dissimuladamente subvertiam a ordem do inqué-
rito, “desviando elípticamente el ítem paralelo de la encuesta, fugándose de la interpelación
con una aparente idiotez que desbarataba los cálculos góticos de los misioneros’.53 Assim,
para o escritor/performer, “los indígenas ocupaban el viejo arte del camuflaje para defen-
derse de la intromisión, alterando la rigidez del signo numérico con la semiótica de su en-
torno”.54
Em contrapartida, na (re)atualização desses mecanismos de controle na con-
temporaneidade, promovidos pelo censo-demográfico nacional, Lemebel sugere a impos-
sibilidade de traduzir as experiências populares e movimentos dos corpos nos discursos
cientificistas que aspiram produzir registos de “verdade” para usá-los como propagandas
político-partidárias, uma vez que, os corpos interrogados burlam insistentemente esses me-
canismos de controle, com um barroquismo que o escritor/performer acredita ser uma he-
rança pré-hispânica, “que aflora en los bordes excedentes, como estrategias de contención
frente al recolonizaje por la ficha. Acaso micropolíticas de sobrevivencia que trabajan con el
subtexto de sus vidas, escamotando los mecanismos del control ciudadano”.55
Percebemos que, o discurso indígena se traduz na possibilidade de desarticular
e contestar as imposições (i)lógicas e (ir)racionais da modernidade e seus mecanismos de
controle do(s) corpo(s) e do(s) espaço(s), irrompendo com a ideia de um tempo linear, pois,
se refrata na herança de táticas de banalização da ordem mediante um “pre-lenguaje tribal
que clausura hermético el sello de la inobediência”.56 Burlas que os corpos ditos marginais
transformam em micropolíticas de sobrevivência: atos de resistências cotidianas que descon-
tinuam o discurso dominante e estabelecem uma continuidade subalterna a-histórica.

Políticas e poéticas do descontrole

Lemebel resgata, na tecitura da sua escrita-política, a audácia de confrontar uma


epistemologia colonial que obsessivamente ameaça as liberdades e subjetividades da mu-
lher, do marica, do indígena, fortalecendo sua parentela feminina/indígena, como tecido
que abriga, também, outras multiplicidades marginais e suas antidisciplinas, no conflito
inesgotável que a práxis de violência da modernidade/colonialidade demanda. Talvez, as
crônicas que melhor traduzem essas antidisciplinas, a impassibilidade frente aos sistemas
disciplinares, terminologia proposta por Michael de Certeau57, sejam àquelas que fazem
referência às chamadas barras bravas (torcidas organizadas), tais como “ ‘Cómo no te voy a

52 LEMBEL, Pedro. La Esquina es mi corazón. Chile: Seix Barral Biblioteca Breve, 2008, p. 116.
53 Ibid.; p. 112.
54 Ibid., p. 113.
55 LEMBEL, Pedro. La Esquina es mi corazón. Chile: Seix Barral Biblioteca Breve, 2008, p. 116.
56 Ibid., p. 117
57 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 artes de fazer. Tradução: ALVES, Efrain. Petrópolis, RJ: Vozes,
2000.

Sumário 87
querer’ (o la micropolítica de las barras)” presente no livro La esquina es mi corazón (2008); e as
crônicas presentes na seção “Un pellejo aventurar” do livro Zanjón de la Aguada (2003).
Nelas, se distinguem o que Certeau entende como “tática”, a artimanha do fraco,
o “movimento dentro do campo inimigo”, “a ação calculada determinada pela ausência de
um próprio”; que “não tem lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que
lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha”.58 Leia-se, as forças maiores,
macropolíticas, do Estado, que regulam e ameaçam qualquer movimento de força coletiva
da massa “marginal”, a fim de preservar a ordem e a organização do espaço urbano nas
cartografias neoliberais. Para Lemebel, as ações realizadas pelo coletivo malandro das barras
bravas são atos subversivos, pois, usam de um produto cultural institucionalizado pelo Esta-
do: o futebol, como desculpa para desaforar suas frustrações, elas “desbordan los estadios
haciendo cimbrar las rejas o echando por tierra las barreras de contención que pone la ley
para delimitar la fiebre juvenil, la prole adolescente que se complicita bajo la heráldica de
los equipos deportivos”.59 E tomam a cidade, “pateando las señales del orden, meándose en
cada esquina donde la autoridad instaló cámaras para vigilar con ojo punitivo”.60
As torcidas organizadas aparecem isentas de qualquer aliança institucional, an-
tes, são agrupações que emergem do clamor popular e cujo itinerário de violência urbana
se justifica por um histórico de desamparo, ao qual, são submetidos os sujeitos sociais que
ficam de fora dos projetos da nacionalidade. Estes, que identificamos como “homem ordi-
nário”, usando a definição de Certeau61, são corpos inventivos que aproveitam os espaços
da cidade para burlar o poder, são corpos inclassificáveis, deslocados pelo capitalismo, que
criam afeições emparelhadas pelo intuito de preencher seu vazio de pertencimento. Dessa
forma, quando irmanados pelo fervor das barras bravas, quando consolidam suas táticas de
burla ao poder, sua força coletiva não parece interessada em tomá-lo para si, mas “apenas”
deixar seu rastro efêmero como indicativo da sua (re)existência.
Nos chama a atenção que tanto para Lemebel e Certeau, as associações que en-
trelaçam a burla com as táticas indígenas de subversão ante a colonização, são enfáticas.
Sobre isto, Certeau afirma que “a força de sua diferença [a dos indígenas] se mantinha nos
procedimentos de ‘consumo’”,62 dos discursos culturais do colonizador. Nessa mesma lógi-
ca as barras bravas fazem do futebol chileno um ferramenta para “demandar mejoras polí-
tico-culturales en la masa joven heredada de la dictadura”.63 Lemebel afirma que as barras
bravas surgiram com a democracia e essas organizações periféricas estão aquém do simples
fanatismo esportivo. Antes, “[...]en Latinoamérica, y especialmente en Chile, su transcurso
está afectado por causas políticas y desajustes tribales”.64
O discurso indígena que Lemebel sutura a esses coletivos são representados em
signos que estas organizações populares assumem e que estão inscritas nas feições indígenas

58 Ibid., p. 100.
59 LEMBEL, Pedro. La Esquina es mi corazón. Chile: Seix Barral Biblioteca Breve, 2008, p. 51.
60 Ibid., p. 56.
61 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 artes de fazer. Tradução: ALVES, Efrain. Petrópolis, RJ: Vozes,
2000.
62 Ibid., p. 40.
63 LEMEBEL, Pedro. Zanjón de la Aguada. Chile: Seix Barral Biblioteca Breve, 2003, p. 49.
64 LEMEBEL, loc. cit.

Sumário 88
dos indivíduos que integram os grupos de La Garra Blanca e Los de Abajo. “La primera se dice
la más antigua y fundadora de este fanatismo neorromántico, es adherente al Club Deporti-
vo Colo Colo, un equipo que lleva por insignia el perfil del cacique araucano Colo Colo, un
personaje heroico que defendió el territorio mapuche durante la Conquista”.65
No exercício da sua memória social, a narrativa indica a desvinculação de tais
corpos com uma estética moderna. Na crônica, o corpo “marginal” revela, mediante traços
fisionômicos, a vinculação com o “outro” que o discurso etnocentrista considerou superado:
“Esta brava lleva en sí esta épica, y la escenifica en el contexto socio-político de quienes la
componen: mayoritaria jóvenes de la periferia que llevan en sus rasgos faciales la porfiada
herencia mapuche”.66 Os que não partilham das láureas dos projetos triunfalistas da Nação:
“Se llaman a si mismos << INDIOS PROLETAS Y REVOLUCIONARIOS>>, contradi-
ciendo el típico arribismo desclasado de la actual sociedad chilena”.67 As referências às cos-
mogonias indígenas continuam sendo descritas nos rastros que este coletivo deixa nas ruas
da cidades, “una escritura propia de la tribu barrial que mezcla trazos de signos góticos con
letras fluidas de la gramática rockera. Cruces invertidas y vocales de flechas, convocando sa-
tanismo y códigos precolombinos del lenguaje” manchando, desorganizando, com o rastro
da sua presença, a organização e alvura “las murallas recién pintadas de la <<democracia
feliz>>”.68

Considerações finais

Para arriscar um esboço (in)conclusivo dos pensamentos aqui trabalhados— que


entendem a escrita lemebeliana como uma prática política de caráter decolonizador—suge-
rimos que o discurso indígena entretecido na ludicidade da sua escrita performática ganha
expressividade, pois aparece, continuamente, confrontando-se à lógica dominante nos dife-
rentes âmbitos da experiência humana, tanto na parentela feminina/indígena que assume,
nos deslocamentos dos corpos desejantes e nas políticas errantes da multidão marginal. O
resgate do discurso ancestral, indígena e feminino, em Lemebel, devêm em uma poética
constituída por signos— um conjunto de textos— apreendidos nas suas experiências/vi-
vências subalternas. Seu impulso narrativo se nutre da cultura popular, de uma marginali-
dade múltipla, latente, de vozes interpelantes e deslocamentos desejantes que não passam
desapercebidos pela sua agudeza sensitiva, sua intuição de “loca-madre”. Através desses
materiais, detritos urbanos que recolhe e ressignifica, faz contrabando dos seus desejos,
dos seus invólucros sociais e explicita seus pactos com as multidões errantes e vagabundas.
Lemebel poetiza e politiza o cotidiano, recriando, em seu tecido/texto, táticas prófugas,
vitórias efêmeras dos corpos que resistem a-temporalmente às repressões institucionais da
modernidade/colonialidade.

Referências
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1978.

65 LEMEBEL, Pedro. Zanjón de la Aguada. Chile: Seix Barral Biblioteca Breve, 2003, p. 55.
66 Ibid., p. 56.
67 Ibid., p. 56.
68 Ibid., p. 67.

Sumário 89
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Sumário 91
E ntre narrativas amazônicas : a
A mazônia narrada pelo outro

Emilly Nayra Soares Albuquerque

E
ste estudo surgiu a partir das leituras, diálogos e reflexões realizadas du-
rante a realização da disciplina Culturas, Linguagens e Sociedades Amazô-
nicas no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Letras:
Linguagem e Identidade, da Universidade Federal do Acre, no ano de 2018. Com o objetivo
de expandir os estudos sobre as Amazônias, a disciplina apresenta a diversidade que com-
põem a região, no que concerne às populações nativas, bem como as múltiplas vivências dos
sujeitos amazônicos, com suas respectivas culturas e artes. Também refletia sobre a produ-
ção de autores que constituíram olhares que produziram e sustentaram representações sobre
o lugar. Foram discutidas diferentes narrativas que alimentaram uma visão eurocêntrica,
olhando a região a partir de uma perspectiva estereotipada que a classificava como distante,
atrasada em desconformidade ao que estava sendo proposto como desenvolvimento.

Entre as narrativas constituídas sobre a Amazônia, apresentamos alguns autores


com suas respectivas obras, contemplados na bibliografia sugerida da disciplina, para pensar
como suas produções articulavam e legitimavam discursos elaborados a partir de um olhar
exterior, daqueles que não viviam na região, mas narravam e produziam representações so-
bre ela. Assim, alguns dos autores que serão analisados e discutidos ao longo deste trabalho,
não somente foram classificados como obras em destaque que dissertaram sobre o local,
mas também serviram para consubstanciar o imaginário amazônico, influenciando intelec-
tuais a reproduzirem discursos e percepções sobre o que seria a Amazônia.
Entre os autores supracitados, utilizamos Cunha1 pela relevância de suas narra-
tivas, influenciando outros pesquisadores para trabalhar com a percepção que apresentava

1 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins, 1999.

Sumário 92
a Amazônia representava um “vazio demográfico”, um território “sem história”, lugar ne-
cessitado de intervenção e tutela de indivíduos “civilizados”. Relacionando as narrativas de
Euclides da Cunha e a influência das mesmas para com as produções do período, Hardman2
aponta o percurso de escrita do autor do livro À margem da história, ressaltando as principais
impressões acerca da Amazônia.
Lima e Botelho3 nos trazem importantes considerações com relação à relevância
das narrativas de Euclides da Cunha para o escritor Mário de Andrade, que apesar de ser
influenciado pelo pensamento euclidiano, o poeta constrói uma concepção que se distancia
em algumas afirmativas, discordando de parte das perspectivas de Cunha, e construindo
novos pensamentos acerca da Amazônia. Ao acentuar as narrativas que subjugaram a loca-
lidade, Batista4 apresenta sua visão sobre a região, enquanto um ambiente que necessita de
intervenção de cientistas e outros profissionais que segundo ele, são sujeitos que detém a
capacidade e os mecanismos adequados para “salvar” a Amazônia da “barbárie”, ou seja,
através desses profissionais, ela poderia alcançar um desenvolvimento.
Em contrapartida a esses estereótipos empregados para conceituar e classificar
a Amazônia, através de obras que se perpetuaram como “verdades” sólidas e “imutáveis”,
realizamos reflexões através de produções de autores que nos propõem a refletir sentidos,
significados e simbologias que foram e que continuam sendo impostos para se pensar a re-
gião. São trabalhos que nos fazem refutar afirmativas constituídas sobre a região, impostas
como assertivas concretas e inquestionáveis, por estarem naturalizadas enquanto caracterís-
ticas do que seria uma definição de Amazônia.
Albuquerque Júnior5 nos traz relevantes considerações concernentes aos pre-
conceitos e estereótipos constituídos pela “origem geográfica e de lugar”, classificando-os
como discursos generalizantes e depreciativos, inferiorizando a região e os sujeitos que nela
habitam, disseminando narrativas pejorativas, que impedem que o próprio sujeito tenha seu
espaço para narrar suas próprias vivências.
Nenevé e Sampaio6 pontuam que as narrativas construídas por estrangeiros sobre
a Amazônia devem ser compreendidas como um discurso político a fim de obter o controle e
a superioridade sobre a região, ou seja, a imagem da Amazônia de maneira homogênea é um
construto com o objetivo de dominar e se autoafirmar enquanto superior em relação a ela.
Albuquerque7 propõe uma desconstrução das narrativas que buscam classificar
a Amazônia de maneira objetiva, nos levando a repensar o que seria a Amazônia enquanto
um conceito, um enunciado definido a partir do olhar do outro, questionando se a própria

2 HARDMAN, Francisco Foot. A vingança de hiléia. Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura Moderna. São
Paulo: Editora UNESP, 2009.
3 LIMA, Nísia Trindade de. Botelho, André. Duas viagens amazônicas e o espectro de Euclides da Cunha: malária e
civilização em Carlos em Carlos Chagas e Mário de Andrade”, pp. 139-178. In BASTOS, Elide Rugai & PINTO, Renan
Freitas (orgs.). Vozes da Amazônia II. Manaus: Valer/Edua, 2014.
4 BATISTA, Djalma. Amazônia: cultura e sociedade. 3ª edição. Manaus: Valer, 2006.
5 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da dis-
córdia. São Paulo: Cortez, 2012.
6 NENEVÉ, Miguel; SAMPAIO, Sônia. Re-imaginar a Amazônia, descolonizar a escrita sobre a reigão. In: ALBU-
QUERQUE, Gerson; NENEVÉ, Miguel; SAMPAIO, Sônia. Literaturas e Amazônias: colonização e descolonização. Rio
Branco: Nepan, 2015.
7 ALBUQUERQUE, Gerson. Amazonialismo. In: ALBUQUERQUE, Gerson; PACHECO, Agenor Sarraf. Uwa’kürü
Dicionário Analítico. Rio Branco – Acre, Editora Nepan, 2016.

Sumário 93
nomenclatura definida para designar a região consegue incorporar suas especificidades e os
povos existentes, com suas respectivas culturas e as demais diversidades que a integram.
Utilizamos algumas categorias de análises a partir de Certeau8 para refletir os tra-
balhos realizados pelos autores supracitados, pensando como a escrita daquele que escreve
introduz um poder sobre aquele que está sendo narrado. Assim, o autor de A escrita da His-
tória analisa a história enquanto uma construção fictícia, realizada no presente, distante de
ser a representação do real, pois é constituída a partir de escolhas políticas que definirão o
que aparecerá codificado. O outro, enquanto aquele que está posto na condição de narrado,
será apresentado com base em uma estrutura inerente ao produtor das narrativas, no entan-
to, através das ausências, ou seja, a partir do que não se encontra exposto, é possível refletir
sobre os sujeitos para além das relações de poderes que foram imersas, mediante o “fazer
história” em uma relação de dependência à escrita.

A Amazônia construída a partir do olhar do outro

Para compreender as narrativas de Euclides da Cunha, é importante entender-


mos o seu lugar de fala, a sua origem, mas não com o intuito de justificar suas produções e
permanecer reproduzindo suas falas enquanto verdades, mas com a pretensão de entender
o contexto de produção das suas obras de maiores repercussões, bem como suas respectivas
influências para a escrita de outros autores e para compor a representação da Amazônia,
questionando para que e para quem seus escritos estavam direcionados.
Militar, jornalista, engenheiro, poeta e intelectual, natural da cidade do Rio de
Janeiro, Euclides chegou a ocupar cargos em importantes órgãos oficiais no Brasil, como
membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro9 na função de chefe da Comissão
Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. O autor da obra À margem da história era um
estudioso, prestigiado perante a sociedade brasileira, e por ser detentor de tal reputação,
suas obras exerceram influência perante outros autores. Intelectuais vão utilizar das narrati-
vas de Euclides para desenvolver suas pesquisas, não somente em torno da Amazônia, mas
de suas outras obras, como, por exemplo, Os sertões10.
Na parte do livro À margem da história, correspondente ao primeiro capítulo, in-
titulado como Terra sem história, o autor inicia uma descrição do seu desapontamento com
a região, demonstrando decepção, destoando do lugar apresentado como maravilhoso e
fantástico pelos cronistas das expedições que dissertaram sobre a Amazônia, durante suas
viagens expedicionárias. O título do capítulo carrega uma expressão que reduz a Amazônia
a um lugar desconhecido, “sem história” buscando introduzir um sentido de ser “esqueci-
da”, “inacabada” ou “invisível”, e tantos outros adjetivos e conceitos pejorativos utilizados
por Euclides da Cunha em seu julgamento disfarçado de descrição.
Dialogamos com a perspectiva de Michel de Certeau, para pensar a vinculação
de uma “história” à escrita e aos demais procedimentos científicos, articulados para legiti-
mar a existência do sujeito mediante a sua inserção no discurso, amparado cientificamente,
com estruturas que legitimam o fazer historiográfico enquanto representação do real. “Em

8 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
9 https://www.ebiografia.com/euclides_cunha/
10 Obra que retrata a Guerra de Canudos liderada por Antônio Conselheiro.

Sumário 94
poucas horas o observador cede às fadigas de monotonia inaturável e sente que o seu olhar
inexplicavelmente, se abrevia nos sem-fins daqueles horizontes vazios e indefinidos como os
dos mares”11. O escritor apresenta a Amazônia a partir do que seleciona para dizer sobre ela,
realizando recortes e comparações em detrimento de elementos que serão silenciados por
uma escolha política, para sustentar uma historiografia que representa a região a partir de
uma seleção de fragmentos, mas que é posta enquanto apreensão do real e da “realidade”.
O elemento comparativo no olhar do intelectual, segue como uma metodologia
para a construção de significados e sentidos voltados à Amazônia, com a finalidade de
apontar interpretações com base em uma visão eurocêntrica, mas que são expostas como
perspectivas que se enraizaram por um processo de naturalização. Assim, o autor estabele-
ce uma relação de comparação da floresta como, por exemplo, a utilização do mar, e uma
perspectiva cronológica do tempo, definindo “sentidos” sobre o que considera “horizontes
vazios” e “indefinidos”, equiparando as características dos elementos naturais. Constrói
uma narrativa depreciativa da região, com um olhar de superioridade, mas que se articula
como “verdades” e “impressões gerais”.
Euclides da Cunha equipara elementos da sua vivência, relacionando com o que
ele observa sobre a Amazônia. Essa ação comparativa é uma das características encontradas
nos sujeitos que, a partir de um olhar exterior, tentaram traduzir a região, de acordo com
suas vivências e o modelo instituído de civilização. Trata-se dos cronistas de viagem, pes-
quisadores e demais intelectuais que escreveram sobre a região, estabelecendo uma relação
de semelhança com as referências que se tinham da Europa, para dizer que sabiam e adqui-
riram conhecimento. Inclusive utilizavam nestas comparações elementos que não existiam
na Amazônia, mas forçavam essas equivalências para construir narrativas, que como vimos,
instituem o poder, adquirido pela escrita, para emitir algo sobre o ambiente.
Uma estrutura própria da cultura ocidental moderna está, evidentemente, indicada
nesta historiografia: a inteligibilidade se instaura numa relação com o outro: se des-
loca (ou progride) modificando aquilo de que faz seu “outro” – O selvagem, o passa-
do, o povo, o louco, a criança, o terceiro mundo [...] Se desdobra uma problemática
articulando um saber-dizer a respeito daquilo que o outro cala, garantindo o traba-
lho interpretativo de uma ciência (“humana”), através da fronteira que o distingue
de uma região que o espera para ser conhecida.12

O autor de À margem da história buscou descrever com rigor científico a floresta,


na sua condição de pesquisador, ao mesmo tempo, em que apresentava uma caracterização
densa da fauna e da flora Amazônica, estabelecia relações com outros parâmetros territo-
riais que possuía. Assim, exibia a região como um lugar prejudicial à vida humana, argu-
mentando dificuldades concernentes a uma não “conexão” dos elementos naturais com o
homem. Cunha condiciona a existência das atividades de exploração e transformação dos
elementos naturais como requisito para que a região fosse considerada apropriada à vida
humana, desconsiderando e ignorando as demais relações com o meio, vivenciadas pelas
populações nativas e viventes da localidade.

11 CUNHA, 1999, p.01.


12 CERTEAU, 1982, p. 15.

Sumário 95
O autor apresenta o indivíduo na Amazônia como um intruso, vivendo em um
lugar inóspito à vivência humana, por considerar o clima, fauna e flora relacionados a um
estado de selvageria. Dialogamos com a perspectiva de Michel de Certeau, partindo do seu
entendimento sobre a imposição do modelo, para alcançar uma padronização do que se ex-
põe como civilidade, modelo esse que é posto como referência para pensar a humanidade e o
que se configura como progresso. “Tem tudo e falta-lhe tudo, porque lhe falta esse encadea-
mento de fenômenos desdobrados num ritmo vigoroso, de onde ressaltam, nítidas, as verda-
des da arte e da ciência e que é como que a grande lógica inconsciente das coisas”.13 Nessa
relação de superioridade, grupos e sociedades se engrandecem a partir do que excluem de
outros povos e territórios, ou seja, a partir de uma seleção sobre o que dizer, determinando
e articulando o que será representado, subjugando a existência do outro, a partir de suas
referências.
O autor direciona seu olhar a partir de sua referência de cidade, nascido no Rio
de Janeiro, de acordo com sua formação acadêmica nas áreas das ciências naturais e exatas,
com base em suas experiências profissionais, enquanto jornalista professor, ocupante de
cargos públicos, incluindo em instituição militar do país. Assim suas perspectivas perpassam
de um olhar científico para um ambiente que não segue uma ordem constituída por homens,
mas que se conduz por meio dos ciclos dos naturais, ignorando a cronologia imposta para
os sistemas pautados em um chamado “desenvolvimento”. Tem como centralidade os pro-
cessos de urbanização, com implantação de atividades econômicas, assim como se encon-
travam em outras regiões do Brasil.
Para Euclides, na Amazônia, a paisagem ao mesmo tempo amplíssima e inextrin-
cável provoca sobre o olhar do viajante (naturalista, explorador, artista) o emba-
ralhamento de perspectiva entre o infinito e o infinitesimal, espécie de caleidoscó-
pio em que lentes telescópias e microscópia se invertessem e cambiassem de lugar
inesperadamente. Esse tema aparece com força nas famosas páginas de abertura de
seus escritos amazônicos reunidos em À margem da história, intituladas justamente
“impressões gerais”. Pouco antes disso, no seu inspirado prefácio ao livro de contos
amazônicos do amigo Alberto Rangel, Inferno verde, editado em Gênova, em 1908,
expunha reflexão semelhante sobre a precariedade das convenções usuais de esca-
ladas e projeções no que se refere à representação científica e literária de qualquer
região.14

Ao analisar o estilo de escrita de Euclides da Cunha, o autor apresenta que há


uma busca em expor a Amazônia com um rigor científico, pautado em uma visão positi-
vista, utilizando uma descrição densa de detalhes, estabelecendo comparações em termos e
justificativas com amparo cientificista. Desse modo, ao ter contato com uma região que se
distancia de suas referências, há esse estranhamento e um olhar negativo, sobrecarregado,
de quem não encontra os modelos que considerava enquanto padrão, buscando uma “civi-
lidade” à região com seu estado natural, distante de uma ordem ditada por um modelo que
seguia um sistema de acúmulo de bens e exploração de recursos naturais.
Na perspectiva do autor, a Amazônia é um espaço impróprio para a vivência hu-
mana, visto que o homem que se sujeita a habitá-la estaria condicionado a viver em um lugar
13 CUNHA, 1991, p. 02.
14 HARDMAN, 2009, p. 63.

Sumário 96
hostil, solitário, equiparando a uma prisão, mesmo que o sujeito seja livre para se locomover
neste ambiente, acreditando que o sujeito se encontra privado por não residir em um espaço
considerado “desenvolvido” adequado aos padrões do “progresso”. Assim, de acordo com
as percepções de Michel de Certeau, o outro, aquele que está munido do domínio da escrita,
realiza uma construção da sua própria história e de uma história do outro, na proporção que
ignora as vivências dos sujeitos em detrimento de suas construções.
Aquele que escreve, nomeia e classifica, apresenta mais alusões sobre a sua in-
tencionalidade e subjetividade do que sobre o sujeito narrado, por sua representação estar
pautada em referências que não se assemelham às condições de vida daquele que é contado,
mas reporta aos padrões estabelecidos do que escreve. Ao apresentar a região como inapro-
priada para a sobrevivência humana, lugar relacionado a um cárcere, Euclides da Cunha
nos leva a refletir suas produções enquanto representatividade referente à condição que
ocupa na sociedade da época. Cunha produz discursos, apoiado em instituições que legiti-
maram e incorporaram suas percepções enquanto parâmetros necessários a serem seguidos
em qualquer território, suprimindo as especificidades da região em detrimento de relações
comparativas.
Pensar a Amazônia enquanto lugar inapropriado para a vivência humana, justifi-
cando tais assertivas mediante aspectos regionais relacionados às condições climáticas e de-
mais particularidades da região, como a existência de insetos, rios, animais e floresta densa,
significa subjugar a existência do outro, na perspectiva que aquele que narra desconsidera
as experiências daqueles que habitam o lugar e que, para além da ordem que o envolvem,
e regem seu olhar, possam existir relações distintas com o meio, diferente das que utilizam
enquanto parâmetro de “progresso”.
Os nativos que vivem a partir de outras relações estabelecidas com o meio, têm
suas trajetórias de vida, suas respectivas experiências e saberes ignorados, mediante ação
comparativa daqueles que os enquadram a partir de uma ordem não existente na região,
subjugando a existência daqueles que não seguem o padrão estabelecido enquanto ideal.
Assim, a história é tecida a partir de escolhas políticas, padrões selecionados e aspectos
ocultados, o que nos faz refletir que a história se constitui a partir de uma ficção, alimenta-
da por aquele que a estrutura, na medida em que seleciona o que dizer, e o que deverá ser
excluído, recalcado para que outras concepções sejam disseminadas. “O ‘fazer história’ se
apoia num poder político que criou um lugar limpo (cidade, nação, etc.) onde um querer
pode e deve escrever (construir) um sistema (razão que articula práticas)”.15
Para Hardman, enquanto a literatura do século XVI, alimentada pelos cronistas
de viagem, apresentavam a Amazônia enquanto um espaço maravilhoso e fantástico, apesar
de ter sido compreendida enquanto um ambiente excêntrico, a partir do século XIX, por
influência do modernismo, pela literatura ficcional estar em alta no Brasil entre o final do
século XIX e início do XX, há a presença de textos ficcionais em torno da Amazônia brasi-
leira, marcado pela predominância do realismo naturalista enquanto estilo literário produ-
zido sobre a região.
Difícil mesmo para o crítico contemporâneo, seria não enxergar as similitudes dessa
linhagem fantástica, folclorista, com laivos de crônica ficcionalizada e de lirismo

15 CERTEAU, 1982, p. 18.

Sumário 97
fantástico, em obras-primas do modernismo paulista, como Macunaíma (1928) de
Mário de Andrade, Cobra Norato de Raul Bopp, tentativas em boa parte bem-suce-
didas de domesticar algumas imagens do primitivismo, seja pelo humor satírico, seja
pelo apelo ao lúdico e a certo imaginário “infantil-indigenista.16

O autor acentua as produções de Mário de Andrade baseadas em características


predominantemente comparativas, relativizando elementos, como, por exemplo, a malária
e outras doenças existentes no Brasil. No entanto, Andrade se sobressai da influência das
obras euclidianas, mesmo na condição de escritor que narra o espaço amazônico de maneira
irônica e comparando-a com outras regiões do país postas como detentoras de “civilidade”,
consegue alcançar algumas reflexões que estava sendo colocadas, inclusive por Euclides,
como “verdades” para uma apresentação sobre a região.
Botelho e Lima analisam as viagens de Mário de Andrade e Carlos Chagas para
a Amazônia, e suas percepções sobre a região, enquanto posicionamentos relevantes para
entendermos o pensamento social brasileiro amazônico. Trata-se de um imaginário consti-
tuído a partir de sujeitos que estabeleciam experiências com o território, a partir de cargos
e posições sociais, um olhar moldado para observar e fazer uma leitura do que estava apre-
sentado como exótico. Nas condições de médicos, após contato com a região, os sanitaristas
acreditavam que o empecilho para o Brasil alcançar o sonhado “progresso”, e ser reconhe-
cido enquanto país civilizado, eram as patologias existentes, ou seja, na visão de Carlos
Chagas, munido do discurso cientificista, partia do pressuposto que os trópicos poderiam ser
“salvos” das suas condições de lugares de atraso, através da medicina.
Buscando inserir a Amazônia no discurso cientificista, o profissional da área mé-
dica introduz uma perspectiva dos parâmetros da ciência enquanto condicionamento para
que a região alcançasse uma “condição” de adequada para se integrar às demais regiões
do país, seguindo os padrões do sonhado “progresso”. Nesses termos, entendemos como
o discurso da ciência estabelece uma relação de domínio, na proporção em que “A relação
científica reproduz o trabalho que assegura a certos grupos a dominação sobre os outros, a
ponto de fazer deles objetos de sua posse”.17
Nos relatórios elaborados por Carlos Chagas, o desafio posto como problema da
sanitização na Amazônia, se refere às dificuldades de diversas modalidades, como os obs-
táculos para desenvolver ações preventivas contra a malária, justificando a dificuldade de
logística entre habitantes da região, os meios de comunicação lentos, colocações de seringais
e moradias distantes uma das outras. Assim como Cunha, os relatórios médicos também
argumentam as adversidades relacionadas às condições climáticas e ao solo do território, a
oscilação do volume de água dos rios, que dependendo do período do ano, se tornam intra-
fegáveis pelo baixo nível das águas ou pelos transbordamentos.
O desconhecido é esboçado como atraso, na tentativa de interligar a Amazônia às
demais regiões que seguem uma lógica, padrões e aparatos de desenvolvimento, seguindo o
modelo daquela que se encontrava adaptada para ser a centralidade do país e a referência de
progresso. Nesta perspectiva, a Amazônia aparece deslocada, enquanto território que não
acompanha o curso da ordem, condicionada como um ambiente de atraso e incivilizado,
16 HARDMAN, 2009, p. 29.
17 CERTEAU, 1982, p. 47.

Sumário 98
todavia, tais condicionamentos só apresentam um “sentido” a partir do discurso de modelo
ideal de civilização, ou seja, fora do poder da escrita, do plano discursivo da cientificidade,
a região segue seu estado natural, na medida em que existiam outras relações, para além
daquelas pautadas em extração e acumulação para gerar riquezas.
Em Utopia Amazônica de Mário de Andrade, “Em tudo avessa à reificação da
vida, os estigmas que há muito marcam negativamente a civilização tropical sintetizada
na Amazônia como que transfigurados positivamente”.18 Podemos observar que o olhar do
escritor sobre a Amazônia se diferencia das percepções de Carlos Chagas, considerando que
consegue se sobressair de termos e suposições que enquadram o ambiente amazônico ao es-
tigma de atraso. No caso da malária, enquanto o sanitarista pensa a patologia como algo que
precisa ser erradicado, tendo em vista, que a presença da doença resulta na depreciação do
local, como característica de um ambiente atrasado, Mário de Andrade estabelece uma re-
lação da malária com o homem amazônico, alcançando um estado do corpo, possibilitando
virtudes e inspirações para a vida humana, uma experiência com a capacidade de “ver es-
tados fisiológicos e psíquicos capazes de emplacar a curiosidade, que associa negativamente
ao progresso como princípio básico da civilização industrial”.19
O escritor da obra Amazônia: cultura e sociedade, na condição de médico, construiu
suas narrativas na busca de encontrar alternativas, e fazer correções ao que a medicina de-
fendia como inadequado para a constituição de uma sociedade em desenvolvimento, na bus-
ca de fazer com que a região encontrasse o percurso à sonhada civilidade, por parte daqueles
que viviam fora da extensão territorial denominada Amazônia.
Existe uma tendência do autor expor seus argumentos, afirmando que a sua ma-
neira de interpretar a região amazônica é o caminho mais próximo que se tem para chegar a
uma “verdade” com maior exatidão, remetendo críticas às divisões que são feitas em torno
dela, na medida em que essas separações geram rivalidades entre esses espaços que, segundo
seus levantamentos, a Amazônia deve ser pensada de maneira homogênea, com uma mes-
ma e única identidade, “provavelmente com o mesmo padrão de cultura, no Amazonas, no
Pará, no Acre, no Guaporé, no Rio Branco ou Amapá...”.20
O autor ignora as diversidades étnicas, culturas e as múltiplas experiências dos
povos que compõem a região, o que compreende por cultura amazônica está estritamente
ligada ao processo de colonização e economia da região, enraizada na atividade extrativis-
ta. Nesse processo de colonização, ele enxerga o colonizador como um sujeito desbravador,
aventureiro, defendendo esse processo como algo positivo, enquanto necessário para elevar
o território ao progresso.
Em face da diluição do homem na Amazônia, de que decorre não ter sido ainda a
terra dominada – justificando a inquietação de saber se há nela satisfatórias con-
dições de habitalidade – o autor, ao conceituar o problema, mostrou que a região
equatorial americana é um vazio demográfico, embora sozinha tenha uma extensão
territorial maior que as regiões correspondentes da África e da Ásia, que são su-
perpovoadas, havendo de comum, entre elas, apenas, uma população culturalmente
atrasada e a vigência de uma economia tipicamente subdesenvolvida. Para explicar

18 BOTELHO; LIMA, 2014, p. 160


19 Ibid., p.161
20 BATISTA, 2006, p. 67

Sumário 99
a disparidade demográfica – argumentou que a exploração da Amazônia começou
há 3 séculos e meio e tem sido acompanhada da dominação e dizimação do elemen-
to nativo, que não foi substituído por grandes massas de imigrantes, enquanto, nas
nações equatoriais da África e da Ásia os autóctones datam de tempos imemoriais e
são uma maioria superior a 95%. [...] Assinalando caminhos a percorrer, sugeridos
também pela experiência, conclui respondendo afirmativamente à indagação. Sim, a
Amazônia pode e deve ser dominada pela técnica e pela ciência, e o homem pode e
deve aprimorar sua cultura, pela educação e pela higiene.21

O autor compactua com a percepção da Amazônia enquanto um vazio demo-


gráfico, todavia, seu pensamento se diferencia no sentido de enxergar as “condições de
habitalidade”, destoando das percepções que indicavam a região como inapropriada para a
vivência humana. Porém segue afirmando que é necessário passar por um processo de trans-
formação, visando a implantação de atividades econômicas, condicionando estas ações a
uma “prosperidade” regional. Para Djalma Batista, a possibilidade da Amazônia conseguir
se “sobressair” das condições em que se encontra e caminhar em direção a uma sociedade
“ideal”, depende dos recursos e mão de obra para a manutenção de atividades rentáveis,
portanto, a representação da região está condicionada aos discursos instituídos e dissemi-
nados por aqueles que se encontram distantes e desconhecem as especificidades do lugar.
Os preceitos estão pautados em um padrão de civilização que se coloca como
centro, desacreditando das outras formas de organizações e relações humanas estabeleci-
das com o meio. Assim, as populações nativas e as especificidades da floresta são postas
de modo depreciativo, em detrimento de um modelo eurocêntrico, pautado na exploração
dos recursos naturais e implantação de costumes. Nos estudos de Djalma Batista há uma
concordância em afirmar que houveram atos de extermínios sofridos pelos povos indígenas,
todavia, o autor não criminaliza essas ações aos nativos. Estabelece uma crítica a uma não
substituição de contingente humano, pensando nesse aniquilamento apenas como prejudi-
cial ao povoamento da região, afirmando a necessidade de substituir aqueles que perderem
suas vidas, como se fossem objetos, com o intuito de romper com o estigma de “vazio de-
mográfico”.
Uma medicina e uma historiografia modernas nascem quase simultaneamente da
clivagem entre um sujeito supostamente escrito numa linguagem que não se conhe-
ce, mas que deve ser decodificada. Estas “heterologias” (discurso sobre o outro) se
construíram em função da separação entre o saber que contém o discurso e o corpo
mudo que o sustenta.22

Mesmo admitindo a existência das populações indígenas na região amazônica,


o autor desconhece e ignora a herança cultural desses povos, os submetem a uma linguagem
que os aprisionam a uma dependência aos “valores” postos como universais, oriundos da
Europa. Na sua visão, os nativos não possuem ambição em “dominar” o meio, ou seja, não
exploram os recursos naturais com o objetivo de produzir excedente ou transformá-los em
produtos comercializáveis. Por este viés, o autor acredita que os nativos da Amazônia não
contribuem com o sonhado desenvolvimento, e assim, são inseridos em um processo decodi-

21 Ibid., p. 67.
22 CERTEAU, 1982, p. 15

Sumário 100
ficação, em que suas respectivas vivências na região passam a ser equiparadas, estabelecen-
do comparações com os nativos dos Andes, afirmando que esses desenvolveram produções
e por esse feito, os classificam como parte de uma cultura.
Djalma Batista classifica o vazio demográfico como um dos fatores que levam
a região ao atraso, justificando que contingente populacional que migrou para a região era
predominantemente composto por sertanejos, motivados em acumular recursos financeiros
e deixar a região. Desse modo, o autor afirma que não visualiza ambição parte dos trabalha-
dores da terra em “dominar” o meio em que habitam, e assim, o suposto desinteresse dos
próprios moradores é um agravante para o atraso.
É importante pontuar outros elementos regionais vistos como empecilhos para o
desenvolvimento da Amazônia, de acordo com a perspectiva do autor, o clima é apontado
como uma dificuldade, argumentando que as altas temperaturas interferem no rendimento
da mão de obra, assim como a topografia amazônica, que também é colocada como proble-
ma, trazendo transtornos para construções, dificultando na logística com outras regiões. O
autor expõe ainda, características da vivência humana na Amazônia, que são vistas como
prejudiciais ao buscado desenvolvimento, alguns dos exemplos, são os consumos de alimen-
tos enlatados, consumidos em grandes quantidades e que não apresentavam valores nutricio-
nais suficientes para garantir a qualidade de vida, as atividades comerciais, predominando
o sistema de aviamento que se caracteriza enquanto prática unicamente de escambo, consi-
derando que é marcada pelo mercado de troca, não envolvendo moedas entre na relação de
compra e venda.
Ao longo da obra Cultura e Sociedade, o autor projeta uma série de medidas inter-
vencionistas, pautadas em discurso científico, objetivando uma transformação da região, de
acordo com características de outros modelos de sociedades, postas como desenvolvidas,
com parâmetros identificados como ideias para a organização humana, vista como civili-
zada. Apesar de ter nascido em um município da Amazônia brasileira, Djalma Batista tem
seu olhar carregado de modelos e referências eurocêntricas, adotando o discurso do coloni-
zador que observa a região como incompatível com suas percepções, e tecem maneiras de
transformá-las, utilizando como base, sua formação e carreira médica, ocupante de cargos
elitizados de Instituições do país, como, por exemplo, no Instituto Geográfico e Histórico
do Amazonas.
Djalma Batista, nascido em município acreano, tem suas referências ligadas aos
parâmetros exteriores à região, introduzindo medidas e seguimentos que objetivam a inser-
ção e modificação de elementos, inclusive da natureza e articula o espaço a partir de certos
sentidos. Inserindo a Amazônia em um processo que articulamos a partir da reflexão de
Michel de Certeau que considera um processo decodificação, desconsiderando outras for-
mas de organizações de povos e de relações com o meio, e inserindo um padrão, um sistema
empregado como natural, mas que atua de acordo com uma ordem instituída.

O pluralismo amazônico

Em contrapartida às narrativas que evidenciamos, e as demais existentes e pu-


blicadas, que buscaram uniformizar, e utilizar referências exteriores para narrar o que seria
a Amazônia, caracterizando-a de maneira homogênea, constituindo estereótipos, estabele-

Sumário 101
cendo conceitos depreciativos em torno da região, há trabalhos que propõem reflexões sobre
essas narrativas instituídas como obras cânones, autores que ao longo de sua trajetória, fo-
ram e ainda são utilizados como referências, inclusive, integrando as obras que se integram
enquanto literatura amazônica.
Albuquerque Júnior estabelece algumas perspectivas que nos fazem repensar o
preconceito enraizado no discurso articulado por um outro, ou seja, sobre alguém distan-
te, exterior a quem está sendo narrando. Sobretudo, o discurso estrutura percepções sobre
como devemos compreendê-los e é uma ferramenta de poder, com o objetivo de inferiorizar
populações e suas respectivas regiões, estabelecendo assim, uma relação de superioridade.
O preconceito, como a própria palavra deixa entrever, é um conceito prévio, um con-
ceito sobre algo ou alguém que se estabelece antes que qualquer relação de conheci-
mento ou de análise que se estabeleça. É um conceito apressado, uma opinião, uma
descrição, uma explicação, uma caracterização, que vem antes de qualquer esforço
verdadeiro no sentido de se entender o outro, o diferente, o estrangeiro, o estranho,
em sua diferença e alteridade.
O preconceito quase sempre fala mais de quem o emite do que daquele contra qual
é assacado, pois o preconceito fala dos conceitos da sociedade ou do grupo humano
que o utiliza. O grego atribuía ao bárbaro tudo aquilo que em sua cultura era con-
siderado negativo ou atrasado. Ao descrever um bárbaro, um autor grego descrevia
mais que os gregos que julgavam ser os aspectos negativos das sociedades humanas
do que propriamente como o grupo chamado de bárbaro era.23

De acordo com o autor, o preconceito deve ser visto enquanto um conjunto de


ações que se refere mais sobre quem o articula e dissemina, do que para quem e sobre o que
estabelece. Pela necessidade de descrever e se apropriar da narrativa sobre o outro, caracteri-
za-o de forma negativa, estabelecendo elementos comparativos que os colocam na condição
de superior, enquanto aquele que possui a capacidade de dizer algo sobre o outro. Mediante
essa concepção, é necessário pensar o discurso de estereotipia enquanto uma construção
reducionista, apressada e generalizante, de modo que são instaurados elementos que serão
padronizados para pensar sobre uma determinada região e a sua respectiva população.
[...] Muitas das coisas que pensamos, a maneira como imaginamos, vemos e dizemos
certos povos e nações, foram produto de todo um processo histórico marcado pela
colonização, pela produção de sentido para o outro a partir de uma metrópole hege-
mônica, não apenas econômica e politicamente falando, mas inclusive que detinha
o monopólio sobre a escrita e sobre o poder de produzir sentido, de escrever e falar
sobre o outro. Muitos dos conceitos e preconceitos foram produzidos pelos coloni-
zadores europeus, por isso é importante revisá-los e criticá-los. E o primeiro passo é
saber como e por que foram produzidos.24

Há concepções presentes em nossas falas, pensamentos e maneiras de compreen-


der o mundo e o outro, que estão carregadas de simbologias e preconceitos, instituídos de
maneira naturalizada. A cada vez que os reproduzimos estamos os reafirmamos, sem refletir
os seus sentidos, o seu lugar institucional e as escolhas políticas que os fazem de determi-

23 ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 11.


24 Ibid., p. 26.

Sumário 102
nado modo. É sobre esse monopólio da escrita, que utilizamos as perspectivas de Certeau,
pensando como a escrita tece poderes, afirmando padrões de sociedade, comportamento e
sobretudo, se enraíza em nossas percepções, molda nossas relações com o outro, fazendo
com que o nosso olhar seja carregado de estereótipos, interferindo em nossas maneiras de
conceber o que experienciamos.
Nenevé e Sampaio nos fazem refletir sobre como as produções posteriores às
obras conhecidas enquanto “canônicas” em torno da Amazônia, ainda carregam o discurso
de uma região estagnada, sem transformações, de maneira primitiva. No entanto, a região
desperta interesse dos países considerados potências mundiais, pois, seguem uma produção
em larga escala, seguidos apenas pelo crescimento econômico e a usurpação dos recursos
naturais. Assim a região amazônica é cobiçada pelos seus recursos, que são postos como
saída para salvar o mundo, considerando sua abundância de água, floresta e entre outros
elementos da natureza essenciais para a vida humana.
O mesmo discurso de inferioridade, posto para pensar a região a partir das refe-
rências das potências econômicas, argumentando que ela se encontra inalterada, na sua for-
ma “bruta” em desconformidade ao desenvolvimento, também se coloca como um discurso
elaborado por grupos ou nações superiores, em disponibilidade para “transformar” a região.
Interessados em empregar interferências, de modo a projetar explorações dos recursos na-
turais, objetivam manter o expansionismo econômico e o domínio sobre o território, no
entanto, afirmam ser um projeto de ações protetoras, uma tutela para “cuidar” de um bem
que futuramente será a salvação da humanidade.
De acordo com os autores, é necessário provocar uma reflexão para que se con-
siga articular a “re-imaginação” da região, mas de modo que se tenham como referências a
própria Amazônia, “reimaginar de dentro significa redizer e desdizer, significa ressignificar
e repensar as definições e conceitos sobre o local”.25 O ponto de partida para a análise pre-
cisa surgir dentro da própria Amazônia, para que assim se alcance a autonomia para que as
próprias populações consigam dissertar sobre si mesmo, negando as narrativas reducionistas
e generalizadas elaboradas por aqueles que não vivenciam a região.
A descolonização é apontada como o caminho para nos libertarmos das con-
cepções construídas pelo colonialismo, abrindo espaços para a elaboração de narrativas
amazônicas, tendo como referência o seu próprio meio. Assim, será possível refletir sobre o
pluralismo que compõe a região, ou sejam, as narrativas precisam ser substituídas pelas que
não procuram estabelecer “verdades universais”, tampouco com modelos e padrões estabe-
lecidos pela herança europeia, mas que sejam capazes de discutir e disseminar as especifici-
dades da Amazônia, com base em suas particularidades.
O autor da obra Amazonialismo nos leva a refletir sobre os conceitos enraizados
em nossa maneira de pensar e agir de maneira natural, como se não fossem construções po-
líticas, instituídos com base em interesses de grupos. Para que possamos refletir para além
deles, o autor enfatiza a importância de contestá-los, de modo que essas concepções não nos
impeçam de pensar em torno das nossas próprias vivências. É necessário se sobressair das
concepções que institui regras e parâmetros sobre nossos comportamentos, corpos e modos
de viver em sociedade.
25 NENEVÉ; SAMPAIO, 2015, p. 25

Sumário 103
Assim, o autor nos convida a pensar para além do plano instituído pela lingua-
gem, entendendo que nada pode ser prontamente aceito da forma como se encontra estabe-
lecido, ou seja, nos induz a começar o processo de desconstrução, desmontando estruturas
de poderes que nos encarcera a seguir determinados modelos de civilização e de progresso.
É sobre sair do convencional, do tradicional, repensando o nosso lugar enquanto sujeitos
autores da nossa própria trajetória de vida, renegando a tentativa do outro, que se encontra
exterior e escreve de uma região distante, “saber” sobre a vivência dos sujeitos amazônicos
só porque são munidos da condição de alguém que detém o poder de escrever.
O amazonialismo parte da definição prévia ou julgamento prévio do que se conven-
cionou com a expressão/grafia “Amazônia”, como todo o conjunto de imagens e
metáforas que consignaram as formas/suportes de sua invenção do termo. Trata-se,
a rigor, de um significante marcado pela impossibilidade de ter um referente no mun-
do real, entendendo como mundo real tudo aquilo que está entre o chão de barro
sobre o qual os homens e mulheres colocam seus pés e vivenciam suas experiências
seculares e o céu que está – no alto – sobre suas cabeças. Um significante focado
na designação de uma região do mundo que toma como dado em si, como se ali
existisse desde sempre, preexistindo às narrativas históricas que lhe teceram/tecem
os fios dos sentidos ou os difundem na condição de “coisa da natureza”, “um dado
natural”. Um todo abstrato “Amazônia”, idealizado como objeto das faces do pró-
prio discurso que lhe inventa e naturaliza, conferindo um paradoxal sentido lógico
a habitar as mentes dos que vivem fora e dentro dessa invenção, funcionando como
uma das marcas mais profundas da colonialidade do poder e do saber.26

Seguindo a perspectiva do autor, o próprio termo Amazônia precisa ser confron-


tado, considerando o pluralismo que integra a região amazônica, inclusive, abrangendo di-
versos países, no entanto, apresentada apenas por uma palavra, que a reduz a ser pensada
de acordo com conceitos que a ligam a um suposto “atraso”. O conceito Amazonialismo,
também título da obra, é referente ao conjunto de narrativas que versam sobre uma Ama-
zônia inventada, apresentada enquanto um espaço descoberto por viajantes e como objeto
de experimento para pesquisadores “desbravarem” e emitirem suas concepções, de modo a
buscar uma transformação da região.

Considerações finais

Buscamos refletir sobre as narrativas constituídas sobre a Amazônia, elaboradas


e disseminadas por engenheiros, médicos e outros profissionais que buscavam “decifrar” o
território a partir de aspectos científicos, com base no modelo de sociedade eurocêntrica,
pautados em discursos que visavam um esperado desenvolvimento e progresso. Assim, apre-
sentamos algumas narrativas, inclusive obras que influenciaram outros autores a constituir
representações da Amazônia enquanto uma região distante do progresso, por não encontra-
rem traços da “civilidade”, ou seja, por não estarem em conformidade às estruturas estabe-
lecidas enquanto referências.
É por meio dessa escrita enquanto instrumento de poder que decifra e determina
o que é o outro, que impõe uma representação que define a região, que analisamos as narra-
tivas elaboradas por sujeitos que conceituavam seus elementos característicos relacionados
26 ALBUQUERQUE, 2016, p. 78.

Sumário 104
ao atraso, a uma imobilidade do próprio tempo, interpretado como um território em estado
de selvageria, atrasado por não estar alterado e explorado. Estas leituras tomam como parâ-
metros de civilização europeia, com base na exploração de recursos naturais e produção em
larga escala, na busca de se constituir enquanto potência econômica mundial.
Devemos refletir sobre formas de pensar, conceitos e denominações que nos fo-
ram impostas como algo natural, existente como “verdade” e impossível de serem refutadas,
reconduzindo a uma reflexão que se distancia de referências e padrões, constituindo novas
concepções sobre si mesmo, se desprendendo das representações criadas por terceiros e
produzindo nossas próprias interpretações sobre o espaço que ocupamos e as relações que
estabelecemos com ele, a partir de nossa própria condição de sujeitos amazônicos, incompa-
ráveis, por chegarmos ao entendimento que nós mesmos somos nossas próprias referências,
e assim, inaugurando um processo de emancipação da condição de sujeitos narrados.

Referências
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as
fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2012.
ALBUQUERQUE, Gerson. Amazonialismo. In: ALBUQUERQUE, Gerson; PACHECO, Agenor
Sarraf. Uwa’kürü Dicionário Analítico. Rio Branco – Acre, Editora Nepan, 2016.
BATISTA, Djalma. Amazônia: cultura e sociedade. 3ª edição. Manaus: Valer, 2006.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
HARDMAN, Francisco Foot. A vingança da hiléia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura
Moderna. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
LIMA, Nísia Trindade de. BOTELHO, André. Duas viagens amazônicas e o espectro de Euclides
da Cunha: malária e civilização em Carlos Chagas e Mário de Andrade”, pp. 139-178. In BASTOS,
Elide Rugai & PINTO, Renan Freitas (orgs.). Vozes da Amazônia II. Manaus: Valer/Edua, 2014.
NENEVÉ, Miguel; SAMPAIO, Sônia. Re-imaginar a Amazônia, descolonizar a escrita sobre a re-
gião. In: ALBUQUERQUE, Gerson; NENEVÉ, Miguel; SAMPAIO, Sônia. Literaturas e Amazô-
nias: colonização e descolonização. Rio Branco: Nepan, 2015.

Sumário 105
L eituras sobre a trajetória do G rupo
S emente de T eatro A mador em R io
B ranco - A cre

Emilly Nayra Soares Albuquerque

Este trabalho surgiu a partir da pesquisa realizada no curso de Pós-Graduação


em Letras: Linguagem e Identidade, da Universidade Federal do Acre (Ufac), da área de
concentração: Culturas, Narrativas e Identidades Amazônicas – CNA, que resultou na dis-
sertação de mestrado intitulada Grupo Semente: leituras sobre a trajetória de um grupo de teatro
amador de Rio Branco – Acre.
Após a conclusão da dissertação, muitas análises e diálogos surgiram, tornando
evidente a necessidade de realizar uma exposição da pesquisa, a partir de novas perspec-
tivas, apontando uma continuação da investigação em volta da trajetória de um grupo de
teatro existente na cidade de Rio Branco, Acre, de 1978 ao início dos anos 80, constituído
por sujeitos que vivenciaram e constituíram suas experiências individuais em torno das mo-
vimentações políticas, econômicas e sociais no período de atuação.
Realizamos uma pesquisa exploratória, com levantamento bibliográfico em tor-
no da revisão da literatura sobre o tema, em diálogo com trabalhos que investigaram as mo-
vimentações políticas e econômicas da época, e a existência de outros grupos artísticos do
período, que realizavam atividades ligadas à arte, na cidade de Rio Branco. Também foram
realizadas pesquisas no acervo do Jornal O Rio Branco, das publicações de janeiro de 1977 a
dezembro de 1983, material que se encontra disponível para consulta no Museu Universitá-
rio da Universidade Federal do Acre.
Elaboramos entrevistas com participantes do Grupo Semente de Teatro Amador,
sujeitos que fizeram parte da montagem inicial do grupo, e outros atuantes que experiencia-
ram as atividades desenvolvidas por ele. No entanto, ao longo deste trabalho, será analisado

Sumário 106
a entrevista de dois integrantes, mentores que estiveram desde o momento inicial de monta-
gem do grupo.
Utilizamos perspectivas teóricas e metodológicas de três autores, entre eles, Mi-
chel de Certeau1, utilizando as categorias de linguagens, culturas, espaço, lugar, cotidiano,
homem ordinário, indisciplina, burla e tática, enquanto com Raymond Williams2 pensamos
a partir das categorias de linguagens, culturas, experiências e instituições formais.
Com Portelli3 apropriamos perspectivas para refletir sobre a utilização das fon-
tes orais para a realização da pesquisa, do condicionamento de falas à submissão de uma
transcrição, na transformação de pensamentos, gestos e interrupções notáveis, expostas no
momento da entrevista, que se perdem e se calam a partir do ato de transcrever e materiali-
zar a entrevista em um texto codificado.
A partir dessa produção da história oral, se torna necessário refletir as condições
em que se elaboram entrevistas com sujeitos que se debruçam sobre suas memórias para nar-
rá-las em um presente. Imersos em uma estrutura no presente, a entrevista permite que o en-
trevistado repense o vivido, de modo a selecionar e silenciar passagens das suas experiências
que serão eleitas para serem ditas, dependendo da sua subjetividade, ou seja, demonstrando
que essa memória narrada é seletiva.

Movimentações políticas, econômicas e sociais: narrativas sobre a cidade de Rio


Branco

A partir do objetivo de constituir leituras em torno da trajetória do Grupo Semen-


te, com ênfase às relações de linguagem e cultura, surgiu a necessidade de compreender as
movimentações políticas, econômicas e sociais do final da década de 1970. Entende-se que
os integrantes do grupo artístico estavam inseridos nessas determinações que ocorriam na
cidade de Rio Branco, de modo que suas vivências refletiam em suas discussões, debates e
interações estabelecidas por intermédio das atividades desenvolvidas pelo Semente.
Durante a realização das pesquisas em torno das publicações do jornal O Rio
Branco era comum encontrar edições que realizavam exposições de propagandas, incentivan-
do a implantação de atividades econômicas na região amazônica, divulgando os subsídios
fiscais para essa empreitada, assim como outras facilidades de financiamentos para desper-
tar interesses de investidores. Os anúncios utilizavam termos e expressões como integração
nacional, desenvolvimento da Amazônia, Progresso amazônico, para argumentar a exploração de
recursos naturais na região, justificando a necessidade dessas ações, pautadas em represen-
tações e discursos constituídos ao longo do processo de colonização.
Muitas pessoas jurídicas estão tirando todo o proveito que podem das vantagens que
a região amazônica oferece. E não é só porque a Amazônia está na moda. É porque
essa moda dá lucro [...]. Negócios que vão desde enormes projetos agropecuários
com milhões de cabeças de gado, até o sofisticado parque industrial de onde estão
saindo excelentes produtos para o Brasil e para o mundo... [...] agora, que você sabe

1 Certeau, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Artes de fazer.Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 3. Ed., Petrópolis
(RJ): Editora Vozes, 1998.
2 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Tradução de Waltensir Dutra, Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1979.
3 PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letras e Voz, 2010.

Sumário 107
isso tudo sobre a Amazônia, tire proveito das vantagens que ela oferece para a tem-
porada de incentivos. Que outras ofertas dão mais segurança?4

Utilizamos a categoria de Instituições formais, no tocante a sua influência en-


quanto legitimadora de discursos, considerando a representação constituída à Amazônia
como palco de incursões para investidores, especuladores, pecuaristas, ressaltando que as
propagandas de incentivo são expostas de modo que estabelece um convite aberto para
aqueles que tenham desejo de investir e adquirir capital. Para Raymond Williams, as Insti-
tuições formais são altamente incorporáveis, de modo que se apropriam de práticas culturas,
discursos e representações, absorvem em suas estruturas fazendo com que se tornem predo-
minante em relação às demais manifestações existentes.
Assim, compreendemos que o jornal, enquanto meio de comunicação, exerce sua
funcionalidade de veículo de informação que também legitima representações e discursos,
considerando a sua relevância para a disseminação de narrativas, que perpassam enquanto
“fatos”, mas operam a partir de uma seleção do que será publicado, mediante escolha do
que se divulgará enquanto “evidências” do que está sendo vivido na sociedade. No entanto,
difundem representações e discursos que se camuflam de informações ou “verdades”, as-
sim como se expõe a Amazônia enquanto território disponível para acúmulo de bens e em
disponibilidade. A exploração em massa em prol de um “desenvolvimento” é o argumento
empregado para a apropriação e usurpação de recursos naturais.
A imagem abaixo, com o texto publicado no Jornal Rio Branco cujo título é Apro-
veite as ofertas da Amazônia para a temporada de incentivos, expõe a região como um território
aberto para atividades comerciais, implantação de suportes tecnológicos, bem como para a
exploração de recursos naturais. Apresentam o desenvolvimento como ausência da floresta,
incentivo ao desmatamento, na comercialização da madeira, constituindo campos para a
pecuária. Esse “espaço amazônico” é representado como uma oferta, considerando que há
uma intenção de apresentá-lo como disponibilidade para apropriação, enquanto a floresta é
evidenciada através das ações comerciais, com o advento da extração de seus recursos.

Imagem 01
Fonte: Acervo do jornal O Rio Branco da edição de 27 de março de 1977
Museu Universitário da Universidade Federal do Acre

4 Jornal O Rio Branco, 27 de março de 1977).

Sumário 108
Utilizando as categorias de espaço, lugar e estratégia, podemos entender de que
maneira esse espaço da Amazônia passa a ser utilizado através de práticas discursivas que
delimitam os elementos que serão predominantes para definir um lugar, ou seja, de que modo
os lugares serão constituídos como espaços produzidos a partir das escolhas que se fazem para
determiná-lo, articulação às representações compostas sobre ele. Desse modo, a região apare-
ce narrada em sincronia aos discursos de intelectuais que a categorizaram em conformidade à
definição de Euclides de Cunha5, enquanto terra sem história, ambiente de prisão dos sujeitos
que a habitavam, em desconformidade ao que se moldava como progresso.
As populações indígenas, dizimadas em ações de extermínios que se perduram
desde o período de colonização, bem como os sujeitos amazônicos, não são evidenciados
nessa representação da busca pelo considerado “progresso” e de “integração” da região ao
país. Esse processo de integralização se volta ao fator econômico, de enriquecimento ime-
diato aos seus investidores, da Amazônia exposta como oportunidade de “tirar proveito”,
conforme se apresenta a publicação do periódico. Ou seja, incentiva-se a apropriação para o
acúmulo de renda individual, competente aos investidores e empresários que poderiam utili-
zar da conveniência, assegurada pelos discursos predominantes e medidas governamentais,
para a constituição de seus negócios rentáveis.
Sobre a seleção de elementos, que passam a constituir estereótipos, gerindo uma
concepção generalizada sobre grupos ou regiões que se encontram subjugadas a partir dessa
articulação, Albuquerque Júnior6 traz reflexões em torno da instauração dessas construções
discursivas, disseminadas a partir de um olhar exterior, que ao invés de se aproximar, na
tentativa de compreensão desse outro, moldam estruturas para que esses estereótipos atuem
enquanto referências para concebê-los como o diferente, se distanciando com o intuito de
direcionar um julgamento que se dissemina enquanto uma verdade.
O preconceito, como a própria palavra deixa entrever, é um conceito prévio, um con-
ceito sobre algo ou alguém que se estabelece antes que qualquer relação de conheci-
mento ou de análise que se estabeleça. É um conceito apressado, uma opinião, uma
descrição, uma explicação, uma caracterização, que vem antes de qualquer esforço
verdadeiro no sentido de se entender o outro, o diferente, o estrangeiro, o estranho,
em sua diferença e alteridade.
O preconceito quase sempre fala mais de quem o emite do que daquele contra qual
é assacado, pois o preconceito fala dos conceitos da sociedade ou do grupo humano
que o utiliza. O grego atribuía ao bárbaro tudo aquilo que em sua cultura era con-
siderado negativo ou atrasado. Ao descrever um bárbaro, um autor grego descrevia
mais que os gregos que julgavam ser os aspectos negativos das sociedades humanas
do que propriamente como o grupo chamado de bárbaro era.7

Sujeitos amazônicos são expostos em narrativas jornalísticas do O Rio Branco a


partir de estruturas que determinavam o seu condicionamento na região, pela prestação da
sua mão de obra em atividade econômica, como é o caso da condição do seringueiro. Estes
atores sociais, com a desarticulação da atividade de extração do látex, e os incentivos para

5 CUNHA, Euclides da. À margem da História.1999.


6 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar as fronteiras da
discórdia. São Paulo: Cortez, 2012.
7 Ibid., p. 11.

Sumário 109
a implantação de outros negócios tornaram-se dispensáveis nas antigas colocações de serin-
gais, espaços que estavam sendo articulados para a efetivação de novos empreendimentos,
como o caso da pecuária. Estes sujeitos passam a ser narrados mediante um ordenamento da
cidade, estabelecida entre o dualismo de espaços centrais de Rio Branco, em contraste aos
ambientes considerados periféricos.
Para Silva8, desde o período colonial a região do norte estava apresentava como
um ambiente de despejo das pessoas consideradas indesejáveis pelas regiões consideradas
desenvolvidas do país, expondo que essa construção discursiva de vazio demográfico e inu-
tilidade do seu território já se constituía enquanto categorização para se pensar a Amazônia
desde muito tempo.
A Amazônia como recebedora de indesejados é algo que antecede o Estado e a Re-
pública brasileiros. Desde o período colonial Portugal já utilizava o extremo norte da
América portuguesa como desaguadouro de criminosos e desqualificados do Reino
Lusitano. O núcleo formador das cidades de São Luís do Maranhão (1612) e Nos-
sa Senhora de Belém do Pará (1616) foram as suas respectivas fortalezas militares,
construídas a partir da colonização portuguesa com uso significativo dos braços e
degredados (TORRES, 2006, p. 52) que serviram ali como operários. Além do tra-
balho na construção e manutenção dos fortes, ainda no século XVII, os degredados
eram usados nas duas capitanias (Maranhão e Grão Pará) como soldados na defesa
contra a invasão dos holandeses e franceses (ABREU, 2006; DEL PRIORE & GO-
MES, 2003)9.

A região é conceituada como norte, partindo do pressuposto que a própria no-


menclatura desse termo institui uma carga de estereótipos. A partir dessa perspectiva, pode-
mos compreender que, seja na condição de “rebaixados”, ou “indesejados” pelas socieda-
des, adaptados à estrutura de ordem em que se encontravam outras regiões do país, sujeitos
que ali viviam aparecem em narrativas, condicionados à ocupação que desenvolve. Ou seja,
os sujeitos são definidos a partir da sua atuação em atividades econômicas, como o caso da
subordinação ao “ser seringueiro”, reduzindo as demais experiências, que além da atividade
com o látex, também desenvolviam outras atividades, articulando ações que estavam para
além do trabalho com a produção da borracha.
Rocha10 ressalta a relação entre os espaços dos seringais e florestas, destacando
que já havia um trânsito entre esses locais, ou seja, o contato dos sujeitos que moravam nas
regiões das colocações de seringas ou em outros ambientes da floresta já existiam, e não é
iniciada apenas com as movimentações em torno da mudança de atividade econômica pre-
dominante. Assim, essas relações com o que se consolidava como cidade já eram existentes,
de modo que sujeitos vivenciavam a constituição dessa cidade a sua maneira, a partir das
suas experiências individuais, que estavam para além das determinações políticas e econô-
micas hegemônicas.

8 SILVA, Francisco Bento da. Acre, a Sibéria tropical: desterros para as regiões do Acre em 1904-1910. 2 ed. Rio
Branco: Nepan, 2017.
9 SILVA, 2017, p. 217-218.
10 ROCHA, Airton Chaves da. A reinvenção e representação do seringueiro na cidade de Rio Branco – Acre (1971-
1996). 2006. 245 f. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em História Social, Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUCSP), São Paulo, 2006.

Sumário 110
Se acompanharmos o itinerário de parte significativa dos seringueiros que migraram
para a cidade de Rio Branco, no período em estudo, veremos que nem todos migra-
ram diretamente dos seringais para a cidade, inclusive muitos já tinham relação de
proximidade e identidade da cidade11.

Em diálogo à perspectiva articulada pelo autor, identificamos como a linguagem


aparece determinando um condicionamento do sujeito em relação aos espaços que ele ocu-
pa na sociedade. Para Michel de Certeau, o campo da linguagem opera como ambiente de
disputa e dominação, na medida em que se institui como um sistema que se apropria, é pro-
dutora de significação, articulando “sentidos” enquanto concepções naturais, a ponto que
não seja notável como uma construção política, mas que se dissemina como uma possível
relação com o real.
Considerando a existência dessa relação entre o espaço da floresta, contemplando
os seringais, e a cidade que se estruturava através do processo de urbanização, entendemos
que nas narrativas dos jornais, esses espaços aparecem como ambientes opostos e distantes.
As experiências desses sujeitos desaparecem, sendo exposto a uma condição de mão de obra
de alguma atividade econômica existente no período.
Em Albuquerque12 podemos refletir sobre as maneiras encontradas pelos sujeitos
que passaram a procurar o espaço que se constituía enquanto cidade, para a construção de
seus lares, que mesmo diante de determinações políticas, articulavam meios de sobrevivên-
cia, vivendo em um ambiente que se ordenava enquanto à margem do que se delimitava
central.
No caso de Rio Branco, os momentos em que esse tipo de confronto ganhou con-
tornos dramáticos foram as décadas de 1960-90, quando, em meio à ordem do “de-
senvolvimento” e da “modernização” que expropriava seringueiros e outros traba-
lhadores do interior da floresta, a cidade e a própria floresta multifacetada foram
re-ordenadas e transformadas sem simulação, sem consentimento, sem resignação
a uma “legalidade” criminosa. Na capital do Aquiry, mulheres, homens e crianças
expulsas da floresta, constituíram novas sociabilidades e inventaram outras cidades:
Taquary, Cidade Nova, Bahia, João Eduardo, entre outras referências de uma cidade
que habita nas lembranças e nas formas de vida de muitos de seus habitantes13.

São a partir dessas movimentações, e inseridos nesses ordenamentos, que os su-


jeitos se reinventavam, mesmo não sendo detentores dos meios de controle, são norteados
pela apropriação que realizam em volta do que se apresenta enquanto regimento, realizando
adaptações, que para Michel de Certeau, se constitui enquanto maneiras de burlar determi-
nações, sem sair de suas estruturas, considerando que essas regem um sistema que os inte-
gram, mas não atingem as suas formas individuais de experienciar.
O Semente era constituído por esses sujeitos, que vivenciavam as experiências
dessa cidade, jovens com suas respectivas famílias que tiveram relações com os seringais e
demais espaços da floresta, que se reorganizavam e realizavam suas leituras sobre o que es-

11 ROCHA, 2006, p. 46
12 ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues. Uma certa cidade na Amazônia acreana. Rio Branco (AC): CELA/UFAC,
2019. [ Tese para o cargo de professor titular]
13 Ibid., p. 271-272.

Sumário 111
tava sendo experienciado, ou seja, imersos em determinações de ordem política, econômica
e social, mas estabelecendo relações com esses espaços a partir de suas vivências.

O Grupo Semente em atividade

José Dourado de Souza, um dos idealizadores da constituição do grupo de teatro


amador, evidencia em sua fala, como se dava as relações entre os sujeitos que se relaciona-
vam em torno de práticas do campo artístico, e das experiências que culminaram na efetiva-
ção do grupo, com a realização de suas atividades na cidade de Rio Branco.
Então começamos a organizar um grupo de arte, que tinha com orientação o teatro,
então nós começamos a fazer os curso regulares e, com esses jovens, eram pessoas
de diferentes lugares da cidade mas todos eles muito identificados com as questões
e, ligada ao antigo seringal, era pessoas do seringal, ou filho de pessoas que foram
expulsas do seringal, e aí então nós começamos a ter uma certa identidade. Aí nesse,
fizemos algumas pecinhas, e... na época, chamava-se “esquete”, e denunciando a
questão da censura, né da ditadura, né... da opressão, a gente trabalhava com textos
poéticos, textos que a gente mesmo criava, mas surgiu um texto que foi dum colega
meu de ensino médio, o Antônio Manoel, e... esse texto ele fez durante as aulas que
a gente tinha lá, de ensino médio, do Ceseme, que hoje é o CEBRB, era um texto
poético que ficou o título chamado Meritíssimo senhor juiz, senhores jurados, que
era um julgamento de um assassinato que aconteceu, num bairro periférico aqui da
cidade, um caso passional mas que retratava toda uma realidade das pessoas que
tinham sido expulsas do seringal e tinham vindo pra cá né Esse texto então, nos
chamou muita atenção, e aí eu comecei a trabalhar uma possibilidade de transformar
esse texto numa peça de teatro. E aí nós fomos trabalhando, trabalhando, e findou
saindo um texto chamado Vila Beira do Barranco, aí esse texto Vila Beira do Barran-
co é que marca a afirmação do Grupo Semente, como um grupo de teatro.14

Podemos identificar que a fala do integrante é marcada pelas motivações que le-
vavam esses jovens a se reunirem, tematizando questões que estavam sendo vivenciadas pela
sociedade do período, apesar de ressaltarmos que as experiências de cada um dependem das
leituras individuais que faziam. A partir da fala de José Dourado podemos entender que as
primeiras articulações ocorreram em volta de um texto, mediante as interações que já acon-
teciam entre esses jovens, antes mesmo da integração do grupo de teatro.
Entendemos que a modificação do texto, realizando adaptações que julgavam
necessárias para atender as pretensões do grupo, permitiu-os inserir suas inquietações, a par-
tir da proposta de teatro que estavam buscando constituir. Inserindo as alterações, de modo
a alcançar a versão final, apresentaram a Vila Beira do Barranco, marcada como a produção
inicial de efetivação do grupo. Considerando o que Certeau constitui como tática, enquanto
uma necessidade de transformar algo existente em uma consumação própria, mediante ao
que atende às suas inquietações, refletimos sobre essas modificações no texto que, inicial-
mente não surgiu voltada para uma produção teatral de grupo, mas que obteve inserção de
aspectos que culminaram na elaboração teatral do texto.
Quando indagamos Henrique Silvestre, um dos idealizadores do Semente, de
como surgiu essa possibilidade de atuar teatralmente na cidade de Rio Branco. O integrante

14 Entrevista com José Dourado de Souza, em 24.02.2016).

Sumário 112
afirma que antecedendo a ideia de montagem do grupo, havia uma efervescência, jovens que
já tinham experiências com os trabalhos realizados através de dramatização de grupos de
jovens coordenados pela Igreja Católica.
Não, a gente queria fazer teatro, e a gente começou a fazer aquilo que era o que
chamávamos de laboratório. Então a gente reunia pra fazer laboratório, ninguém
tinha nenhuma experiência, com o teatro mesmo, no sentido de.. do que fazer, como
fazer, então, a experiência que a gente tinha era como um ator no mudo, de pegar
um texto da igreja ou a gente fazer.. construir pequenos textos na igreja, com caráter
mais político e encenar. Era aquela coisa, mais amadora no sentido mais profundo
que a palavra possa ter15.

Essas ações de leituras, interpretações e construções de textos, de modo a inserir


o que Henrique ressalta como um caráter mais político a esses trabalhos teatrais, que neste
momento não estavam mais guiados pela Igreja, nos remete a pensar a arte de fazer, que Mi-
chel de Certeau aponta. Trata-se da articulação desenvolvida aos que se reinventam mesmo
quando estão imersos em determinações, rede de vigilâncias e em um sistema de dominação
que os enquadram a consumir o que está sendo imposto de determinada maneira, incor-
porando espaços sociais. “Sem sair do lugar onde tem que viver e que lhe impõe uma lei,
ele aí instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação ele tira daí efeitos
imprevistos”.16
GRUPO SEMENTE
Esse grupo surgiu da necessidade que sentiram algumas pessoas em participarem
da formação sócio-cultural do povo acreano. Como o veículo de expressão dessas
pessoas era o teatro, elas se reuniram em torno do texto de um jovem autor nosso,
Antônio Manoel, para com esse texto concretizarem sua intenção.
ASSIM, SEMENTE DEFINE SEU TRABALHO
“Um jornal da cidade noticia o bárbaro crime acontecido numa vila afastada, dis-
tante da grande movimentação de quem tem seu tempo tomado demais para lem-
brar o quanto está só com a sua única companhia; o lucro. O desenrolar da peça de
Antônio Manoel procura mostrar alguns dos motivos/ sentimentos dos envolvidos
no crime que o jornal ignora e a cidade não sente. Não justifica o crime nem ino-
centa o assassino, apenas denuncia o cúmplice silêncio de uma sociedade geradora
de assassinos e que se fecha aos seus próprios filhos. Mostra os contrastes moralis-
mo/ realidade sofredora dos que lutam contra a fome com suas próprias armas”. A
direção é de José Dourado. Um elenco composto por Henrique Silvestre, Acirema
Oliveira, Maria Vilma, Paulo Carvalho, Clarisse Batista, Carlos de Souza, 74 José
Souza e Luiz Barbosa. A estréia está marcada para o próximo dia 14 (sábado), às 19
horas, no Bairro Bahia.17

Nessa publicação do jornal, além de divulgar a existência do grupo, o local e o


horário da apresentação da peça teatral, o colunista Chico Pop18 relaciona a constituição
do Grupo Semente a uma necessidade de participação “sócio-cultural” do Estado. A partir

15 Entrevista com Henrique Soares Silvestre em 03 de outubro de 2016.


16 Certeau, 1998, p. 93
17 O Rio Branco, 13 de agosto de 1978, p. 07.
18 “A cidade se diverte” era uma coluna jornalística elaborada por Francisco Ventura de Menezes, conhecido como Chico
Pop, jornalista cultural do estado do Acre.

Sumário 113
dessa afirmativa, repensamos o que se apresenta como prática cultural a partir do periódico,
de como ela aparece vinculada a uma produção artística. É como se a cultura não existisse
entre aqueles que não estão ligados com atividades ligadas à arte, ou que não desenvolves-
sem trabalhos coletivos, reconhecidos pelos periódicos.
Para Raymond Williams, os campos conceituais necessitam estar integrados,
considerando que eles existem por intermédio de uma integração, o cultural existe envolvi-
do com o econômico, e assim como os demais existentes. Desse modo, pensamos enquanto
prática cultural, qualquer manifestação que seja resultante da experiência de indivíduos,
ou seja, a partir do meio em que estão inseridos e das relações que estabelecem. “Devemos
compreender “cultura” como “as artes”, como “um sistema de significados e valores” ou
como “todo um modo de vida”? E como relacioná-los com a sociedade e a “economia?”.19
Desse modo, analisamos as atividades do Semente enquanto práticas culturais,
não por estarem dotadas de uma condição de grupo artístico, mas por entender que esse
grupo foi articulado por jovens que viviam as movimentações da cidade de Rio Branco, e
buscavam refletir em torno das leituras que faziam dela. Partindo dessa compreensão, en-
tendemos o quanto o campo cultural se liga aos demais âmbitos, de modo que uma análise
das práticas culturais se volta a identificar e refletir as esferas políticas, econômicas, ou seja,
realizar uma interpretação de que compreenda que o cultural se integra e se realiza a partir
dos outros campos existentes.
As possibilidades totais do conceito de cultura como um processo social constituti-
vo, que cria “modos de vida” específicos e diferentes, que poderiam ter sido apro-
fundados de forma notável pela ênfase no processo social material, foram por longo
tempo irrealizadas, e com frequência substituídas na prática por um universalismo
abstrato unilinear.20

Entre as divulgações das atividades artísticas apresentadas na cidade, o Semente,


frequentemente, aparecia com suas ações teatrais expostas na coluna jornalística, que além
de levadas aos bairros e espaços públicos de Rio Branco, também eram expostos aos muni-
cípios vizinhos.
GRUPO SEMENTE “Semente” está fazendo uma curta temporada nos vizinhos
municípios de Xapuri e Brasiléia, mostrando o seu mais novo trabalho “Vila Beira
do Barranco” de Antônio Manoel. Breve o trabalho estará em cartaz no Colégio
acreano para que o público da cidade possa ver e tomar debates.21

Para além da apresentação teatral, os debates ao final das peças teatrais era uma
característica marcante das atividades do Semente, durante esse período inicial que marcou
sua trajetória de levar os espetáculos ao público. A partir desse “tomar debates”, identifica-
mos a importância desse espaço articulado para reflexão de temáticas que atravessavam a
trama da peça teatral. O diálogo possibilitado entre os atores e os espectadores presentes ar-
ticulava um ambiente de conversa e trocas de reflexões sobre o que estava sendo vivenciado.
O estado do Acre, assim como os demais, também sentia os efeitos o governo di-
tatorial que o país se encontrava durante o regime, com medidas repressivas e políticas des-
19 WILLIAMS, 1979, p. 19.
20 Ibid., p. 25.
21 O Rio Branco, 20 de dezembro de 1978.

Sumário 114
trutivas aplicadas na região. Assim, entendemos essa problematização das peças, enquanto
forma de consumo próprio, por partes dos espectadores. Para essa interpretação, pensamos
a partir do que Michel de Certeau conceitua como burla, consistindo em encontrar maneiras
de realizar sua própria consumação do que está sendo disponibilizado, transformando de
acordo com sua necessidade, procedendo mudanças que insere as suas leituras em torno do
que está sendo posto como produto.
Nessa perspectiva, entendemos a existência do Semente como uma produção
própria, inserida nos aspectos que estavam sendo vividos durante o período , ou seja, as
relações da floresta com a cidade estavam presentes em suas produções e temáticas teatrais.
Analisamos essa trajetória como prática cultural, por estar entrelaçada com as determina-
ções de ordem política, econômica, refletindo ainda, sobre os efeitos dessas diretrizes no
âmbito social.
É dada essas condições que a gente queria fazer uma denúncia, e normalmente a
gente era bem recepcionado, agora obviamente por exemplo, toda vez que a gente
apresentava um espetáculo, a gente abria em seguida para o debate, e as vezes o de-
bate, demorava mais do que o tempo da peça, e aí de acordo com os interesses, tinha
gente que ia pra lá só pra discutir política, as vezes pegava qualquer aspecto da peça e
aproveitava pra fazer aquilo. Mas havia coisas fantásticas, como por exemplo, e pes-
soas que se identificavam muito, com o que tava acontecendo, eu lembro que na Vila
Beira do Barranco, e que o José, que é aquele que mata a Maria e, por uma questão
de amor, e quando esse fato tá acontecendo, a gente ver as pessoas cochichando na
plateia, elas identificando casos da realidade dela com o que ta havendo ali.22

O tempo do debate ser mais duradouro que o período de apresentação da peça


nos leva a refletir em torno da articulação para criar um ambiente que possibilitasse a in-
teração entre os sujeitos e as reflexões. Nesse momento de encerramento, os presentes se
debruçavam sobre questões que estavam no seu cotidiano, mais do que a própria temática da
peça, ou seja, há uma consumação própria, uma leitura individual sobre o que estava sendo
apresentado, de modo a se relacionar com as suas vivências individuais com a cidade, diante
de aspectos que emergiam enquanto questionamentos para discussão e diálogos.

Considerações finais

A composição da análise para entender a trajetória do Grupo Semente de Teatro


Amador na cidade de Rio Branco perpassa por categorias como práticas culturais e burla
que possibilitaram compreender a atuação de sujeitos comuns no processo de reinvenção
do cotidiano. Identificamos enquanto comuns, aqueles que não detinham as ferramentas de
controle das determinações políticas e econômicas, mas que sentiam os efeitos das movi-
mentações empregadas à sociedade daquele período, e se reinventavam mesmo diante das
ordens, determinações, articulando uma experiência própria a partir do meio em que esta-
vam inseridos.
Dessa maneira, propomos dialogar com publicações dos jornais, que dissemina-
vam narrativas sobre a Amazônia, enquanto um espaço de possibilidades para o crescimen-
to econômico de investidores e empresários que se disponibilizassem a implantar alguma

22 Entrevista com José Dourado de Souza em 24.02.2016

Sumário 115
atividade econômica, categorizando-a enquanto um território em disponibilidade para ex-
ploração de recursos, corroborando com a perspectiva de “vazio demográfico”. Também
identificamos de que maneira os sujeitos da região apareciam narrados, interligados a uma
condição de trabalho, com suas experiências reduzidas a uma atividade ou pela falta dela,
expostos como invasores, desocupados, desordeiros, ligados a uma representação de desor-
dem, como os responsáveis por retirar a “tranquilidade” de uma cidade que se estabelecia
por regimento, no entanto, se apresentava como uma construção natural.
Nessa proposição, compreendemos que através da linguagem, tanto a região ama-
zônica, como seus habitantes aparecem narrados, reduzidos a conceitos e determinações
que os condicionavam a ser e ocupar determinados espaços da sociedade. No entanto, é nes-
se cotidiano constituído por ordenamentos e determinações que os sujeitos se reinventavam
como atores e espectadores da cena teatral riobranquense. O Grupo Semente articulando
experiências com os espaços em que viviam, estabelecendo relações com demais sujeitos,
realizando suas leituras individuais sobre essas movimentações que os envolviam, articulou
seus próprios modos de consumir o que estava determinado para ser absorvido, ou seja,
reinventando suas maneiras de se relacionar com essa cidade.

Referências
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar
as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2012.
ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues. Uma certa cidade na Amazônia acreana. Rio Branco (AC):
CELA/UFAC, 2019. [ Tese para o cargo de professor titular]
APROVEITE as ofertas da Amazônia para a temporada de incentivos. O Rio Branco. Rio Branco,
ano 1977, p. 07, 20 jan 2017.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira
Alves. 3. Ed., Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 1998.
CUNHA, Euclides. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ENTREVISTA policial especial – Prostituição em Rio Branco é uma profissão alternativa. O Rio
Branco. Rio Branco, ano 1978, p. 04.
GRUPO Semente – Assim Semente define seu trabalho. O Rio Branco. Rio Branco, ano 1978, p. 07.
PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letras e Voz, 2010.
ROCHA, Airton Chaves da. A reinvenção e representação do seringueiro na cidade de Rio Branco
– Acre (1971-1996). 2006. 245 f. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em História Social,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), São Paulo, 2006.
SILVA, Francisco Bento da. Acre, a Sibéria tropical: desterros para as regiões do Acre em 1904-
1910. 2 ed. Rio Branco: Nepan, 2017.
SILVESTRE, Henrique Silvestre. [03 de outubro, 2016]. Rio Branco, Acre. Entrevista concedida a
Emilly Nayra Soares Albuquerque.
SOUZA, José Dourado de.[24 de fevereiro, 2016]. Rio Branco, Acre. Entrevista concedida a Emilly
Nayra Soares Albuquerque.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Tradução de Waltensir Dutra, Rio de Janeiro:
Zahar Ed., 1979.

Sumário 116
O herói cego : Y uyachkani e a leitura
da história a contrapelo

Laura Gomes dos Santos

Tem sangue retinto pisado


Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama,
Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino

O
Grupo Cultural Yuyachkani é um dos mais proeminentes do nosso sub-
continente sul-americano. Foi fundado em 1971 em Lima, capital do
Peru, e segue em atividade até os dias atuais. O Instituto Hemisférico de
Performance e Política1 define o grupo como vanguarda da “experimentação teatral, da per-
formance política e da criação coletiva.” Além disso, a página do grupo no site do instituto
destaca o trabalho dedicado à memória social peruana, principalmente relacionada a ques-
tões de etnicidade e violência. A existência e a permanência do Yuyachkani são um impor-
tante exemplo de que a relação ativa entre teatro e sociedade pode e deve ser estabelecida.

Desde sua origem, o grupo pretendeu produzir um teatro político e voltado para
os setores populares a fim de promover uma transformação da sociedade, como relata Mi-
guel Rubio Zapata2. A atriz Teresa Ralli, na entrevista Yuyachkani: permanencia viva3, nos
dá um exemplo desse envolvimento do grupo com a transformação social desde os seus
primórdios: eles apresentaram seu primeiro trabalho, Puño de Cobre, uma peça que tratava
de um massacre que aconteceu em uma mina de cobre, em Cerro de Pasco, que é uma lo-

1 INSTITUTO HEMISFÉRICO DE PERFORMANCE E POLÍTICA. Yuyachkani. 2020.


2 ZAPATA, Miguel Rubio. Notas sobre teatro. Lima:Yuyachkani/University of Minesota, 2001.
3 YUYACHKANI: Permanencia viva. [S. l.]: La Mula Reportajes, 2019.

Sumário 117
calidade onde a atividade mineradora se destaca. Após a apresentação e motivados por ela,
os trabalhadores das minas se reuniram em assembleia e decretaram uma greve por tempo
indeterminado.
Para levar a cabo este objetivo de fazer um teatro político e popular, o Yuyachka-
ni precisou estabelecer uma estética própria, na qual “no sólo importa lo que se dice, sino
cómo se dice”4. Assim, para cumprir com esse objetivo, o grupo se apropriou de dois marcos
estéticos principais para construir seu próprio projeto estético-político: o teatro épico brech-
tiano e as formas performáticas.
Walter Benjamin5 apresenta aqueles que, segundo sua análise, são os dois pilares
do teatro épico: o público como tribuna de pessoas interessadas e a transgressão das rela-
ções entre palco, público, texto, representação, ator e diretor. Os espectadores com os quais
Brecht desejava se comunicar – europeus, brancos e urbanos – são muito diferentes daque-
les com os quais o Yuyachkani deseja dialogar, já que se trata de outro país, outro tempo,
outro contexto social. A classe proletária peruana, como aponta Diana Taylor6, é formada
principalmente por grupos de nativos e descendentes de nativos. Assim, como mostra a
autora, esse proletariado é marcado por questões raciais além de econômicas e, por isso, é
discriminado por diversas razões, como, por exemplo, por causa de diferenças linguísticas,
epistemológicas e religiosas. A marginalização desses grupos se dá, então, por uma mescla
das opressões de raça e classe, heranças do processo colonial.
Observando estas especificidades do contexto peruano, seria impossível simples-
mente importar a estética brechtiana tal qual fora idealizada pelo dramaturgo alemão e man-
ter os objetivos de se engajar com um público comprometido. Taylor7 aponta que os grupos
de teatro que se centravam somente em questões de classe na América Latina, desconside-
rando questões raciais e coloniais, geralmente não atingiam os objetivos políticos desejados.
Isso acontecia porque esses grupos costumavam estabelecer uma relação de superioridade
moral com as comunidades às quais se dedicavam, por não as conhecer verdadeiramente.
De acordo com a autora, o Yuyachkani assumiu uma postura diferente da que era tomada
por esses grupos e, em vez de se colocarem em uma posição de líderes e professores destas
comunidades, entenderam que precisavam aprender com elas. Assim, é possível dizer que
o Yuyachkani assume uma posição não-colonizadora e que, como aponta Carla Dameane
Pereira de Souza8, se insere em um movimento existente – a luta dos trabalhadores nativos
– sem se apresentar como líder ou vanguarda dele.
É possível afirmar, então, que o Yuyachkani se apropria do teatro épico brech-
tiano não porque aplica as técnicas desenvolvidas pelo dramaturgo alemão tal qual foram
idealizadas por ele, mas porque se baseia nas concepções subversivas e políticas do teatro
épico observando as especificidades de seu local de ação: o Peru, uma sociedade de

4 ZAPATA, Op. cit., nota 2, p.2.


5 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
6 TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: Performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: UFMG,
2013.
7 Ibid.
8 SOUZA, Carla Dameane Pereira de. A encenação do sujeito e cosmogonia andinos: César Vallejo e Yuyachkani. Belo
Horizonte: UFMG, 2017.

Sumário 118
frágil integración nacional, expresada en la gran fragmentación de sus espacios re-
gionales y la falta de reconocimiento cabal de la diversidad étnica de sus habitantes.
En ese contexto, se constata la imposición de patrones culturales occidentales y la
tendencia a marginar a los demás sectores, especialmente a los rurales indígenas9

Os integrantes do Yuyachkani, no entanto, não formam parte dessa camada po-


pular com a qual desejam se comunicar. Neste sentido, é importante pensar no posiciona-
mento que esses atores, em sua maioria brancos e urbanos, devem assumir para não cair
em didatismos, colonialismo e discursos de superioridade. Souza10 aponta que a saída do
Yuyachkani para tal dilema foi tomar os cuidados necessários para não representar os povos
andinos em cena, mas trazer seus corpos como presença. Seria uma tentativa de falar com
essas populações e não falar delas.
A forma que o Yuyachkani escolheu para falar com essas populações é de extre-
ma relevância, tendo em vista a máxima posta por Zapata11 de que a maneira como se fala
importa tanto quanto o que se fala. Deste modo, o grupo buscou resgatar formas artísticas
que nasceram com as culturas andinas pré-colombianas. Este movimento de resgate, além de
demonstrar o interesse do grupo em falar com essas populações, revela o posicionamento do
Yuyachkani no que se refere ao lugar ocupado pela arte indígena. Com a invasão europeia,
a arte da população nativa do continente americano foi rebaixada a uma posição de pouco
prestígio. Enquanto isso, as formas de arte ocidentais trazidas pelo colonizador passaram
a representar o modelo de arte elevada, de arte de verdade, como apresenta Souza12. Ao es-
colher as formas artísticas indígenas para se expressar, o Yuyachkani se posiciona contra o
genocídio cultural dos povos nativo-americanos e “convida os espectadores a se tornarem
participantes das ricas tradições performáticas do Peru”13.
Essa recuperação das formas artísticas andinas tradicionais inclui o resgate da
performance como forma artística, como postula Souza14. A importância do corpo para o
trabalho teatral do Yuyachkani mostra esta retomada da linguagem performática pelo gru-
po:
Estamos, entonces, ante un movimiento que redescubre lenguajes de siempre pre-
sentes en el teatro popular y los vierte en una concepción, donde el actor hace de su
cuerpo su herramienta fundamental de expresión, y tiene que tenerlo suficientemen-
te entrenado para lograr una presencia viva con todos sus recursos y no sólo con la
palabra, pero también con ella.15

Taylor16 define as performances como “atos de transferência vitais, transmitindo


o conhecimento, a memória e um sentido de identidade social por meio do que Richard
Schechner denomina ‘comportamento reiterado’”. A performance seria, assim, um recep-
táculo de memória e uma metodologia de perpetuação de conhecimentos através do corpo.
9 COMISIÓN DE LA VERDAD Y RECONCILIACIÓN. Informe final. Lima: CVR, 2003, p. 57.
10 SOUZA, Op. cit., nota 8.
11 ZAPATA, Op. cit., nota 2.
12 SOUZA, Op. cit., nota 8.
13 TAYLOR, Op. cit., nota 6, p. 274.
14 SOUZA, Op. cit., nota 8.
15 ZAPATA, Op. cit., nota 2, p. 16.
16 TAYLOR, Op. cit., nota 6, p. 27.

Sumário 119
Para se entender a importância política da adoção da performance como forma
artística, é fundamental compreender os conceitos de arquivo e repertório, como definidos
por Taylor17. De acordo com a autora, o arquivo é uma metodologia de gravação e propaga-
ção de tradições que se utiliza de textos, documentos e semelhantes. O repertório, por sua
vez, tem no corpo sua principal ferramenta de memória e propagação das tradições. Exem-
plos de práticas e conhecimentos que se relacionam ao repertório são a linguagem oral, as
danças, os esportes, os rituais e as performances.
Taylor18 destaca que não existe hierarquia entre arquivo e repertório, e que eles
são somente maneiras diferentes de gravar e produzir conhecimento. No entanto, a pesqui-
sadora aponta que a sociedade ocidental tem a tendência de fazer um discurso em prol do
arquivo e que desvaloriza o repertório, colocando-o na esfera do efêmero e do não-reprodu-
zível. Esta perspectiva ocidental tem a ver com uma visão de poder: o arquivo é a maneira
que os vencedores – os colonizadores europeus – utilizam para guardar sua memória. Desta
maneira, o arquivo recebe a avaliação positiva e é relacionado ao civilizado, enquanto o
repertório é menosprezado e associado àquilo que é primitivo, bárbaro, terceiromundista. A
autora faz o seguinte questionamento:
Os debates sobre o caráter efêmero da performance são, evidentemente, profunda-
mente políticos. De quem são as memórias, tradições e reivindicações à história que
desaparecem se falta às práticas performáticas o poder de permanência para trans-
mitir conhecimento vital?19.

Com esta pergunta, a autora evidencia que interessa aos vencedores que a me-
todologia de propagação de conhecimento daqueles que foram subjugados seja vista como
inferior, uma vez que, desta maneira, eles serão silenciados. O repertório seria, então, uma
possibilidade de se ver os acontecimentos desde outra perspectiva, seguindo a proposta feita
por Benjamin20 de leitura da história a contrapelo. É possível, a partir do repertório, fazer
um “remapeamento das Américas, dessa vez seguindo tradições de prática incorporada”21.
A escolha do Yuyachkani por retomar as formas performáticas é, assim, uma maneira de
se apropriar do repertório peruano para trazer a história desde a perspectiva daqueles que
foram subjugados.
Estudar performances é, de acordo com Taylor22, uma maneira de levar o reper-
tório a sério e de utilizá-lo de forma a expandir os horizontes do arquivo. Estudar o grupo
cultural Yuyachkani e suas performances é, assim, uma maneira de trazer à tona as vozes
daqueles que foram calados no passado, mas que queremos que expressem suas vozes no
presente para a construção de um futuro. A performance estudada neste trabalho foi utiliza-
da como material para a produção de um vídeo pelo grupo, chamado Nunca más contra nin-

17 Ibid.
18 Ibid.
19 Ibid., p.30.
20 BENJAMIN, Op. cit., nota 5.
21 TAYLOR, Op. cit., nota 6, p.50.
22 Ibid.

Sumário 120
guna mujer23. Taylor24 afirma que é impossível gravar a performance por meio do arquivo. Por
isso, o estudado neste trabalho não foi a performance em si, mas o vídeo da performance.
Sabemos das perdas que essa escolha metodológica envolve, mas sustentamos que, devido à
importância do grupo, de seu trabalho artístico e de seu projeto estético-político, é necessá-
rio fazer adaptações metodológicas para trazê-los para os estudos acadêmicos.
A performance Nunca más contra ninguna mujer foi uma ação cênica pensada para
espaços abertos que se insere no momento da Campanha contra a Violência Sexual contra
a Mulher no contexto do Conflito Armado Interno (CAI) no Peru. Nesta performance, o
grupo percorreu algumas praças da capital do país, aquelas com os monumentos aos heróis
da pátria, encenando uma prática de violação sexual. A performance é formada por dois
grupos principais, as mulheres violadas e os homens violadores, e uma figura solitária, o
herói cego, que será tema de análise mais detalhada neste trabalho.
A data escolhida para a intervenção não é vazia de significado: 8 de março de
2004, Dia Internacional da Mulher. Pensar sobre o que simboliza realizar uma performan-
ce-protesto nesta data é importante, visto que, com a cooptação liberal e comercial da data,
passou-se a crer que este é um dia de celebração, no qual mulheres devem ser parabenizadas
e presenteadas com chocolates e flores. Entretanto, se voltarmos às origens da proposição
da data, encontramos sua verdadeira razão de ser: como nos lembra Eva Alterman Blay25, o
Dia Internacional da Mulher foi sugerido pela feminista e comunista Clara Zetkin em 1910
com o objetivo de transformar a data em um marco da luta por direitos das mulheres. A ação
cênica feita pelo Yuyachkani retoma as raízes do Dia Internacional da Mulher e rechaça seu
caráter comercial e comemorativo, colocando-o como um dia de luta.
A ação cênica realizada pelo grupo remonta ao momento do CAI peruano, que
se deu entre os anos 1980 e 2000. Para se compreender esta performance, é importante en-
tender esse período da história peruana, bem como de que maneira este conflito se relaciona
com o passado colonial do país. O CAI teve seu início quando o Partido Comunista Perua-
no – Sendero Luminoso (PCP) iniciou o que denominou de guerra popular, durante a qual o
PCP assassinou principalmente camponeses e líderes rurais locais. De acordo com o Infor-
me Final da Comisión de la Verdad y Reconciliación – CVR26, o número total de mortos e
desaparecidos durante o conflito é superior a 69 mil peruanos. O PCP é o maior responsável
pelas mortes durante o período, acumulando 53,68% da cifra total. O Estado, os Comitês
de Autodefesa e os paramilitares aparecem em segundo lugar, totalizando 37,26% do total.
É relevante destacar que o CAI não afetou a todos os peruanos da mesma ma-
neira, já que os alvos do PCP e dos grupos relacionados ao Estado peruano tinham uma
identidade étnica bem delimitada: de acordo com a CVR, 75% das vítimas do conflito eram
camponeses de língua materna quéchua. Segundo o censo de 1993, os falantes de quéchua e
de outras línguas indígenas representavam somente um quinto da população peruana. Esta
disparidade mostra o tamanho do massacre sofrido pelas populações indígenas durante o

23 GRUPO CULTURAL YUYACHKANI. Nunca más contra ninguna Mujer. Creación, Dirección y Producción Arstís-
tica: Grupo Cultural Yuyachkani, Lima, 2004
24 TAYLOR, Op. cit., nota 6.
25 BLAY, EVA ALTERMAN. 8 de março: conquistas e controvérsias. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 601-
607, 2001
26 COMISIÓN…, Op. cit., nota 9.

Sumário 121
CAI. A seleção étnica das vítimas do conflito evidencia as relações entre o CAI e o passado
colonial peruano, que foi responsável por marginalizar a população nativa e colocá-la em
posição de subalternidade e vulnerabilidade. A CVR, durante suas investigações sobre o
conflito, não encontrou elementos suficientes para afirmar que o CAI teve motivações de
limpeza étnica, no entanto, afirma que
estas dos décadas de destrucción y muerte no habrían sido posibles sin el profundo
desprecio a la población más desposeída del país, evidenciado por miembros del
PCP-Sendero Luminoso y agentes del Estado por igual, ese desprecio que se encuen-
tra entretejido en cada momento de la vida cotidiana de los peruanos.27

A performance Nunca más contra ninguna mujer apresenta uma denúncia dos cri-
mes de violência sexual ocorridos durante o CAI. Esta denúncia se mostra pertinente na
medida em que a CVR dedicou uma seção separada em seu Informe Final para esse tipo de
crime cometido durante o CAI, por considerar seus níveis alarmantes durante o período. Por
mais que a maior parte das vítimas fatais do conflito tenham sido homens e que as violações
sexuais representassem somente 1,53% do total de violações aos direitos humanos cometi-
dos durante o CAI, a análise feita pela CVR para considerar este tipo de crime durante o
conflito como preocupante se mostra muito cuidadosa, por considerar outros aspectos além
das estatísticas.
Para efeito de contabilização, a CVR considerou como crime de violência se-
xual aqueles que envolvessem penetração forçada do corpo da vítima ou do autor do crime
mediante o uso da força, seja com órgãos sexuais, outras partes do corpo ou objetos. Esta
delimitação, que não contabilizou outros tipos de violações sexuais tais como nudez, aborto
e casamento forçados, é um dos fatores que implicou uma porcentagem baixa de registros
desse crime durante o CAI. Outra explicação para o número pequeno é o caráter psicológico
que este tipo de crime costuma ter, provocando vergonha e culpa nas vítimas que, por causa
disso, tendem a não denunciar.
A CVR aponta que os crimes de violência sexual foram cometidos tanto pelo Es-
tado – cerca de 83% dos casos – quanto pelos membros dos grupos relacionados ao Sendero
Luminoso – por volta de 11% do total. A CVR concluiu, a partir desses números, que a prá-
tica de violência sexual pelos agentes do Estado durante o período era não só naturalizada,
como também sistematicamente praticada, mostrando as relações de poder implicadas nesse
tipo de prática. Outra conclusão da CVR é que os crimes de violência sexual cometidos du-
rante o CAI evidenciam a violência de gênero perpetrada durante o conflito, pois não só a
maior parte das vítimas das violações eram mulheres, como elas sofreram com esse tipo de
violência somente pelo fato de serem mulheres.
Da mesma maneira em que o grupo de homens atingidos pela violência do CAI
foi bem delimitado, o mesmo ocorreu com as mulheres vítimas de violência sexual durante
o conflito. De acordo com a CVR, a maior parte das vítimas desse tipo de violência durante
o período eram mulheres analfabetas, falantes de quéchua, de origem rural, camponesas ou
donas de casa. Outro ponto que chama a atenção é a idade das vítimas: meninas a partir de
onze anos de idade. O Informe Final da CVR chama a atenção para o fato de que “fueron las

27 COMISIÓN…, Op. cit., nota 9, p. 13-14.

Sumário 122
peruanas más excluidas, y por lo tanto desprotegidas, las que sufrieron con mayor intensidad
la práctica de la violación sexual.”28.
A performance Nunca más contra ninguna mujer tem o intuito de denunciar esta
situação da história peruana e, justamente, escancarar a prática das violações sexuais como
conduta sistemática durante o CAI. Para tal, o grupo percorreu as praças de Lima per-
formando esteticamente uma ação cênica na qual homens fardados violam mulheres com
vestimentas que fazem referência à indumentária feminina andina tradicional. A escolha do
vestuário dos homens e das mulheres tem o objetivo, justamente, de denunciar quem foram
os principais violadores – guerrilheiros, paramilitares e exército estatal – e as principais vio-
ladas – mulheres indígenas camponesas.
O grupo percorreu as praças da cidade onde estão os monumentos aos heróis da
pátria, tais como José Gavez, herói da independência do país; Francisco Bolognesi e Andrés
Avelino Cáceres, ambas figuras que se destacaram durante a Guerra do Pacífico; Don José
de San Martín, símbolo da independência da Argentina, do Chile e do Peru; além de outros
lugares símbolos da institucionalidade peruana, como o Palacio de la Justicia e o Paseo de los
Héroes Navales.
O fato de realizar a ação cênica nesses espaços públicos salienta um cuidado do
Yuyachkani em fazer com que tudo em sua produção artística tenha significado. Em primei-
ro lugar, isso reforça a ideia do grupo de que o teatro é “algo essencialmente público, que
nunca pode estar destituído da frequência patente da vida, do convívio e da prática social e
política”29. Realizar a obra em lugares públicos é uma maneira de expor ao máximo possível
de olhos o que se quer mostrar. No entanto, para este propósito, bastaria que o grupo rea-
lizasse a performance em qualquer lugar público da capital peruana. A escolha das praças
com os monumentos aos heróis é uma tentativa de revisitar a história e colocar o arquivo
do país diante de seu repertório. Além disso, essa seleção dos lugares se relaciona com uma
personagem que nos é apresentada pela performance: o herói cego.
A ação cênica envolve o momento de preparação, no qual as mulheres dançam
enquanto os homens vestem suas fardas e fazem exercícios militares; o momento da ence-
nação dos estupros, no qual os gestos brutos de violação sexual são reconhecidos por meio
de gestos, expressões faciais e uso de objetos; e um momento final de rebeldia e levante das
mulheres, que gritam nunca más e distribuem panfletos com os dizeres Mi cuerpo no es el cam-
po de batalla. Durante toda a ação, está presente esta figura solitária que poderia não chamar
muita atenção: um ator vestido e pintado com a cor dourada, que se assemelha às estátuas
aos heróis da pátria que estão nas praças que constituem o espaço cênico. A escolha da cor
dourada, além de aproximar a figura dos monumentos reais ali expostos, evidencia um cará-
ter elevado conferido a essa personagem, preciosa por sua cor que nos lembra o ouro. Além
disso, a personagem tem um comportamento de escultura homenageada: ocupa um nível
mais alto que os acontecimentos encenados pelas outras personagens e fica parado em uma
posição semelhante à da estátua da praça.
Em dado momento, um dos homens fardados se aproxima do herói e coloca uma
venda em seus olhos. É a partir do momento em que essa venda é colocada que os episódios

28 COMISIÓN…, Op. cit., nota 9, p. 276.


29 SOUZA, Op. cit., nota 8, p. 53.

Sumário 123
de violência sexual são encenados. Quando o Yuyachkani coloca um herói da pátria venda-
do diante dos acontecimentos violentos do passado recente do país, está denunciando o fato
de que toda a história do Peru é fundada na violência sexual contra as mulheres indígenas
com a conivência desses supostos heróis. É uma maneira de colocar os conflitos – e, com
eles, a violência – do período colonial e da independência do país no mesmo espaço em que
estão os crimes sexuais cometidos durante o CAI, de modo a conectar esses acontecimentos
em momentos diferentes da história do país, mostrando que a existência do CAI está profun-
damente relacionada à violência colonial e, posteriormente, ao nascimento do Peru como
nação. Trata-se de uma imagem dialética e anacrônica, da maneira como foram definidas
por Didi-Huberman30, ela pois confronta passado e presente de modo a gerar um choque
crítico. Além disso, pode-se dizer que ela também é uma imagem crítica, na medida em que
se torna “uma imagem em crise, uma imagem que critica a imagem – capaz portanto de um
efeito, de uma eficácia teóricos –, e por isso uma imagem que critica nossas maneiras de
vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la verdadeiramente”31.
A imagem do herói cego diante das atrocidades cometidas contra as mulheres
indígenas nos faz questionar quem são estes heróis da pátria homenageados com estátuas
e monumentos, mas que permanecem cegos – e, por consequência, mudos – diante desse
massacre. Walter Benjamin32 postula que os monumentos da cultura são, ao mesmo tempo,
monumentos à barbárie. A imagem do herói cego parece coincidir com a premissa do filó-
sofo alemão, uma vez que ela denuncia esses homens homenageados por monumentos da
cultura e venerados por atos heroicos enquanto, na verdade, são cúmplices da violência con-
tra as mulheres indígenas desde os primórdios da história do país. Outra imagem criada pela
performance que denuncia a relação destes heróis com a violência perpetrada durante o CAI
é o fato de que, antes de começarem os abusos sexuais, um dos soldados presta continência
ao herói vendado, mostrando a ideia de conivência com a violência.
O intuito da performance é, então, denunciar como o estupro sistemático das
mulheres indígenas está presente desde muito tempo na história peruana e como ele é um
assunto ignorado e não discutido. Além disso, a performance leva à reflexão sobre quem são
estes heróis da pátria, se eles realmente merecem estátuas e homenagens ou se devem ser
tratados como criminosos de guerra. No início do vídeo que registra a performance, há os
seguintes dizeres: “Sirva esta campaña como un homenaje a las heroínas anónimas”33, evi-
denciando a denúncia de que as vítimas são apagadas da história, enquanto os torturadores
são exaltados e incluídos no arquivo do país.
A imagem do herói cego é uma tentativa de confrontar a história gravada no ar-
quivo e, assim, fazer leitura da história a contrapelo, como proposto por Benjamin34. Mais
do que fazer uma análise da história do país, a performance propõe uma mudança: as mu-
lheres se levantam e gritam nunca más! Este grito ressoa de um passado muito longínquo,
passa pelo presente e exige que o futuro seja diferente. Trata-se de uma reivindicação que

30 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: 34, 2010
31 Ibid, p. 172.
32 BENJAMIN, Op. cit., nota 5.
33 GRUPO…, Op. cit., nota 23
34 BENJAMIN, Op. cit., nota 5.

Sumário 124
parte da análise da história de violência que perpassa o país e do pressuposto de que o futuro
que se quer não trará mais este tipo de conduta.
Este tom de revolta e o questionamento dos heróis do passado têm estado muito
presente em movimentos sociais contemporâneos. É possível citar o caso chileno, no qual
durante as manifestações de 2019 muitas estátuas de heróis da pátria – sobretudo militares
– foram destruídas ou decapitadas. García Hurtado de Mendoza, Francisco de Aguirre, Da-
goberto Godoy e Pedro de Valdivia foram alguns dos monumentos que receberam interven-
ções, de acordo com a reportagem de Huenchumil e Mundaca35. A mesma reportagem relata
outro ato de contestação e, mais que isso, de substituição de heróis: em La Serena, a estátua
do espanhol Francisco de Aguirre foi substituída por um monumento à imagem da Milanka,
a mulher diaguita. Esta substituição tem a ver com um resgate das tradições matriarcais das
populações nativas da região onde está a cidade, pois a Milanka representa uma mulher ama-
mentando que, segundo Carolina Herrera Rojas, em entrevista para a reportagem de Huen-
chumil e Mundaca36, representa o cuidado com as águas, com os rios e com as sementes, o
que seria parte da cosmovisão diaguita.
Ainda no Chile, outro tipo de ressignificação de monumentos aconteceu quando,
durante uma das manifestações em Santiago, uma bandeira do povo indígena mapuche foi
hasteada no alto do monumento ao General Baquedano, na Plaza Italia, centro de Santiago.
A imagem foi capturada pela atriz Susana Hidalgo37 e questiona profundamente quem são
os heróis homenageados e quem são as pessoas apagadas do arquivo.
Com mais cobertura da mídia, houve também a estátua do mercador de escra-
vizados Edward Colston, que foi jogada dentro do rio Avon em Bristol, na Inglaterra, por
manifestantes no contexto das manifestações do Black Lives Matter. A resposta das autorida-
des locais, de acordo com notícia publicada no portal UOL38, foi retirar a estátua do rio e
levá-la para um local seguro para posteriormente incorporá-la ao acervo de algum museu.
Além disso, outras cidades do Reino Unido, preocupadas com o patrimônio da cidade, estão
pensando sobre retirar estátuas para evitar danos.
No Brasil, os questionamento em torno da derrubada de monumentos também
está presente e levou a respostas do poder público muito parecidas com aquelas anunciadas
no Reino Unido. Um exemplo é o descontentamento com a estátua do bandeirante Borba
Gato, presente na zona sul de São Paulo. A resposta da subprefeitura de Santo Amaro a esta
insatisfação, de acordo com notícia de Averbuck39, publicada na Revista Fórum, foi colocar
uma escolta da Guarda Civil Metropolitana para proteger o monumento 24 horas por dia.
O historiador Herson Huinca-Piutrin, em entrevista para à reportagem de Huen-
chumil e Mundaca40, aponta que as ações de retirada, destruição e substituição de estátuas
a personagens históricos, que têm um passado de violência, é uma tentativa de desmonumen-
talizar essas figuras. O historiador ainda defende que esses atos não devem ser vistos como
35 HUENCHUMIL, Paula; MUNDACA, Catalina. Derribar símbolos coloniales: Un nuevo acto político que se suma en
las protestas en Chile. Interferencia, [S. l.], 8 nov. 2019.
36 HUENCHUMIL, Paula; MUNDACA, Catalina. Op. Cit., nota 35.
37 https://racismoambiental.net.br/2019/10/27/fotografia-epica-de-la-lucha-en-chile-fue-tomada-por-actriz-con-su-ce-
lular/
38 UOL. Estátua de traficante de escravos é retirada de rio na Inglaterra. UOL, São Paulo, 11 jun. 2020.
39 AVERBUCK, Clara. Estátua de Borba Gato agora tem segurança 24h da GCM. Fórum, [S. l.], 12 jun. 2020.
40 HUENCHUMIL, Paula; MUNDACA, Catalina. Op. cit., nota 35.

Sumário 125
vandalismo, mas como uma releitura necessária. A fala do historiador acerca dos aconte-
cimentos recentes vai ao encontro das discussões feitas pelo Yuyachkani na performance
Nunca más contra ninguna mujer e das proposições feitas por Walter Benjamin em suas Teses
sobre o conceito da história. O Yuyachkani propõe uma leitura da história a contrapelo através
de sua escolha estética de recuperar as formas artísticas performativas, que correm risco de
apagamento por serem consideradas menos valiosas que as formas artísticas ocidentais, e
também por meio de sua produção de imagens críticas a respeito da história peruana. Um
exemplo disso é a imagem do herói cego, que dialoga com os movimentos atuais de questio-
namento dos monumentos a tais heróis do passado que perpetraram atos violentos, racistas,
misóginos e colonizadores. O Yuyachkani, assim como os manifestantes que questionam os
monumentos, ecoam os dizeres do samba-enredo da escola de samba Estação Primeira de
Mangueira de 2019, presente da epígrafe deste trabalho. Trata-se de gritar contra o apaga-
mento dos povos indígenas, das mulheres, da população afro-americana e de todos aqueles
que ficam apequenados diante da grandeza dos monumentos aos heróis que pouco ou nada
nos representam.

Referências
AVERBUCK, Clara. Estátua de Borba Gato agora tem segurança 24h da GCM. Fórum, [S. l.], 12
jun. 2020. Disponível em: https://revistaforum.com.br/brasil/estatua-de-borba-gato-agora-tem-se-
guranca-24h-da-gcm/. Acesso em: 1 set. 2020.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
7. ed. Tradução: Sérgio Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BLAY, Eva Alterman. 8 de março: conquistas e controvérsias. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v.
9, n. 2, p. 601-607, 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-026X2001000200016&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 7 nov. 2019.
COMISIÓN DE LA VERDAD Y RECONCILIACIÓN. Informe final. Lima: CVR, 2003. Disponí-
vel em: http://www.cverdad.org.pe/ifinal/. Acesso em: 17 sept. 2019.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução: Paulo Neves. São Paulo:
34, 2010, 2ª edição.
GRUPO CULTURAL YUYACHKANI. Nunca más contra ninguna Mujer. Creación, Dirección y
Producción Arstística: Grupo Cultural Yuyachkani, Lima, 2004 (DVD).
HUENCHUMIL, Paula; MUNDACA, Catalina. Derribar símbolos coloniales: Un nuevo acto polí-
tico que se suma en las protestas en Chile. Interferencia, [S. l.], 8 nov. 2019. Disponível em: https://
interferencia.cl/articulos/derribar-simbolos-coloniales-un-nuevo-acto-politico-que-se-suma-en-las-
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INSTITUTO HEMISFÉRICO DE PERFORMANCE E POLÍTICA. Yuyachkani. 2020. Disponível
em: https://hemisphericinstitute.org/pt/hidvl-collections/itemlist/category/22-yuya.html. Acesso
em: 21 ago. 2020.
SOUZA, Carla Dameane Pereira de. A encenação do sujeito e cosmogonia andinos: César Vallejo
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ção: Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
UOL. Estátua de traficante de escravos é retirada de rio na Inglaterra. UOL, São Paulo, 11 jun.
2020. Internacional. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noti-

Sumário 126
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1 set. 2020.
YUYACHKANI: Permanencia viva. [S. l.]: La Mula Reportajes, 2019. Disponível em: https://www.
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ZAPATA, Miguel Rubio. Notas sobre teatro. Lima:Yuyachkani/University of Minesota, 2001.

Sumário 127
R egionalismo em trânsito na obra
D ois I rmãos de M ilton H atoum

Ana Maria de Carvalho

O
regionalismo no Brasil surge com o Romantismo, movimento que mar-
ca a renovação literária brasileira. Essa renovação foi marcada por um
profundo nacionalismo, pela soberania do tema local. Coutinho (1969)
aponta duas concepções de regionalismo: o regionalismo romântico e o regionalismo realis-
ta. O primeiro é apresentado como uma fuga do presente para o passado, por meio de um
desejo de compensação que é marcado por certo saudosismo. Neste sentido, o regionalismo
romântico valoriza o pitoresco, a cor local, o tipo, e ao mesmo tempo modifica a região
agregando qualidades e características que não lhes pertence.

O segundo regionalismo apontado por Coutinho (1969) busca no nacional a com-


preensão de valores e motivos de vidas, também se lança na busca de fontes inspiradoras
intelectuais e se afasta do saudosismo praticado pelos românticos. Esse tipo de regionalismo
passa a representar o homem conforme sua relação com o meio, descrevendo sua lingua-
gem, seus conflitos, suas mazelas não muito idealizadas. Mas com o “senso de verdade” que
segundo Coutinho (1969) foi a contribuição do Realismo para o conceito de regionalismo,
pois com o Realismo percebeu-se que a literatura pode se apropriar de hábitos culturais,
lendas, mitos e os reconfigurar no ambiente ficcional.
Candido (1989), aponta um terceiro tipo de regionalismo, chamado de super-re-
gionalismo que corresponde, ou melhor, representa a condição de país subdesenvolvido e
tem como suporte o mesmo material explorado nas fases anteriores, diferenciando-se delas
pelo trabalho feito com a linguagem. Ele ainda afirma que o regional pode aparecer em
qualquer obra sem ter tendência pitoresca ou nacionalista e muitos dos que se dizem não
regionalista, são.

Sumário 128
Já se discutiu muito a respeito da produção regionalista e em função disto ocorreu
algumas querelas entre supostos grupos representantes da produção literária do Nordeste e
do Sudeste. Esse grupo representante de uma literatura “nacional” e aquele representante de
“ilhas produtivas”, como Ceará, Pernambuco e Bahia.
O texto do Coutinho é antigo, as querelas já passaram, e como afirma Candido
o regionalismo continua presente na produção literária. Após revermos esses pontos já cris-
talizados e lermos o romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, lançamos a seguinte questão:
é possível dizer que essa obra é regionalista? E se é regionalista, é possível identificá-la com
um dos tipos apontados por Coutinho? Ou faz-se necessário criarmos uma nova tipologia
de regionalismo?

Lembranças que se entrelaçam

Vamos por parte, primeiro o autor, depois a obra que servirá de objeto da nossa
discussão e as reflexões sobre regionalismo. O autor dispensa apresentação, mas não custa
nada dizer que Milton Hatoum é filho de um libanês com uma brasileira cristã, nasceu em
Manaus, em 1952. Foi professor de Literatura na Universidade Federal do Amazonas e na
Universidade da Califórnia. Escreveu seu primeiro livro Relato de um certo Oriente, em 1989,
o segundo romance Dois Irmãos, em 2000; o terceiro Cinzas do Norte, em 2005 e o quarto
Órfãos do Eldorado, em 2008. E assim por diante continua a nos presentear com suas obras
excelentes.
A obra Dois Irmãos apresenta a história de uma família de imigrantes libaneses
que mora no Amazonas (AM), precisamente na cidade de Manaus. O assunto central da
trama é o conflito entre os irmãos gêmeos Yaqub e Omar e o consequente desmoronamento
dessa família, tudo narrado pelo filho bastardo, Nael, filho de uma cunhantã agregada da
casa com um dos gêmeos. Ao contar a história dessa família Nael tenta compreender sua
própria história.
O fio condutor da narrativa é a briga dos gêmeos, pautada em suas diferenças.
O narrador tece sua história e a dos personagens através das rememorações deles, “(...) foi
Domingas quem me contou da cicatriz no rosto de Yaqub” 1 e ele ainda ratifica a importância
dessa personagem quando diz: “(...) a minha história também depende dela, Domingas” 2. E
outros fatos que ele testemunhou, “(...) muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque
enxerguei de fora aquele pequeno mundo (...)” 3.
A memória é recorrente em todo texto e de fundamental importância para a cons-
trução do mesmo, por exemplo, quando Halim “(...) contava esse e aquele caso, dos gêmeos,
de sua vida, de Zana (...)” 4, e Nael “(...) juntava os cacos dispersos, tentando recompor a
tela do passado” 5. Percebemos que é por meio desses cacos que Nael constrói sua história
e o texto como um todo. Nesse fragmento é importante atentarmos para uso dos pronomes
demonstrativos “esse” e “aquele” que marca bem a falta de linearidade da memória, quan-
do sabemos que os fatos não são lembrados em sequência ou quando queremos. Assim, a
1 Dois Irmãos, 2006, p. 20.
2 Idem, 2006, p. 20.
3 Idem, 2006, p. 23.
4 Idem, 2006, p. 101.
5 Idem, 2006, p. 101.

Sumário 129
narrativa vai se construindo com esses retalhos das lembranças expostas pelos personagens,
formando um todo.
Outro ponto em que a memória é evocada e que podemos perceber claramente a
dispersão das lembranças é quando o narrador, ao falar dos últimos anos de vida de Halim,
nos diz que:
Nos últimos anos de vida, Halim conviveu com essa6 paisagem no pequeno depósito
de coisas velhas, entregue aos meandros da memória, porque sorria e gesticulava,
ficava sério e tornava a sorrir, afirmando ou negando algo indecifrável ou tentando
reter uma lembrança que estalava na mente, uma cena qualquer que se desdobrava
em muitas outras, como um filme que começa na metade da história e cujas cenas
embaralhadas e confusas pinoteiam no tempo e no espaço.7

Nesse fragmento o termo ‘meandro’ ratifica a memória como a teia que dá sus-
tentação a toda narrativa, tendo em vista que esse substantivo, de acordo com o Dicionário
Aurélio, significa volteio (de curso de água, de caminho, etc.) e no sentido figurado enredo,
intriga, que constrói a narrativa.
O texto é quase todo construído com verbos no pretérito imperfeito o que conso-
lida certa intemporalidade e que favorece a progressão das ações, tendo em vista que esse
tempo verbal caracteriza uma situação que passou, mas que ainda não se concretizou, “ele
bebia, ele comia e escutava” 8, mas não falava porque não entendia ou não relembrava a
sintaxe da língua. E este trabalho com a linguagem e a dificuldade de escrever, de narrar os
fatos é representada no seguinte trecho:
Naquela época, tentei em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem espe-
rar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado laten-
te, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens
que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só
o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras, disse Halim
durante uma conversa (...)9

Com relação ao tempo, embora a narrativa seja construída por meio de idas e
vindas, podemos dizer que o tempo é cronológico e isso é evidenciado de diversas formas,
por exemplo: os acontecimentos políticos que marcaram o país, como a chegada de Yaqub
do Líbano, no Rio de Janeiro, a qual coincidiu com a volta dos pracinhas que lutaram na
Segunda Guerra Mundial, “(...) O cais da praça Mauá estava apanhado de parentes de pra-
cinhas e oficiais que regressavam da Itália (...)”10; a inauguração de Brasília “(...) Noites de
blecaut no norte, enquanto a nova capital do país estava sendo inaugurada (...)”11; a morte
do professor Antenor Laval que ocorreu “(...) na primeira semana de janeiro de 1964”12, fruto
da repressão militar.

6 O pronome essa retoma a baía do Negro citada no parágrafo anterior do livro.


7 Idem, 2006, p. 137.
8 Idem, 2006, p. 19.
9 Ibidem, 2006, p. 183.
10 Ibidem, 2006, p. 11.
11 Ibidem, 2006, p. 96.
12 Ibidem, 2006, p. 139.

Sumário 130
Outro marcador de tempo interessante é a rede vermelha usada por Omar, após
suas farras, que vai perdendo a cor com o passar do tempo, “(...) a rede perdera a cor original
e o vermelho, sem vibração, torna-se apenas um hábito antigo do olhar” 13. Assim como a
rede, há outros indicadores da passagem do tempo, o envelhecer dos personagens, por exem-
plo: “Halim se levantou, apoiado na bengala (...) Deu uns passos meio inseguros, desceu
bem devagar a escada de ferro. (...) Eu o vi cambalear entre os barcos encostados na rampa.
Logo depois, só a cabeça branca movia-se no horizonte escuro do rio” 14. E ainda temos o
envelhecimento da empregada Domingas, que já não tem o mesmo ritmo de trabalho, “Eu
via Domingas esmorecer, cada vez mais, apática ao ritmo da casa (...)” 15. Outro indicador é
o envelhecer da própria casa que “(...) começou desmoronar (...)” 16 com a morte de Halim e
“(...) foi se esvaziando e em pouco tempo envelheceu” 17. Esse fragmento confirma também
o desmoronamento da família de Zana e Halim, temática central do livro.

Regionalismo em trânsito

O primeiro questionamento ao fazermos um estudo sobre a obra Dois Irmãos é se


ela pode ser vista como uma narrativa regionalista. Para respondermos essa pergunta parti-
mos da leitura de O Regionalismo na Ficção, de Coutinho (1969), que define de duas maneiras
o regionalismo: em sentido amplo e em sentido restrito. Em sentido amplo toda obra de arte
é regional por apresentar uma região como pano de fundo e em sentido restrito, uma obra
de arte não precisa necessariamente estar localizada numa certa região, mas também preci-
sa retirar desse ambiente elementos para se construir, mostrando como o clima, o espaço, a
cultura interferem na vida das pessoas de cada região.
Partindo desse posicionamento de Coutinho (1969) acerca do regionalismo, po-
demos dizer, então, que Dois Irmãos é uma obra regionalista em sentido amplo, visto que
está ambientada. As ações, os conflitos se passam na Amazônia. Quanto ao sentido restrito,
podemos dizer que ela é regionalista em parte, pois a narrativa se constrói no espaço amazô-
nico, alguns elementos são retirados desse espaço para a configuração da história, mas esse
espaço não é determinante para o desenrolar das ações, ou seja, os personagens não estão
presos ao espaço amazônico, e seus conflitos poderiam se desenrolar em qualquer outro
espaço do mundo.
Esse regionalismo presente nessa obra de Hatoum, difere-se do regionalismo pi-
toresco, que transforma o exótico em otimismo social, exalta e celebra o elemento regional
e o constrói como uma hipérbole. Como exemplo desse regionalismo, temos a obra O Ser-
tanejo, publicada em 1875, de José de Alencar, que apresenta a figura do homem sertanejo
como um elemento exótico, pitoresco que é mostrado como um tipo social, um símbolo de
homem nacional brasileiro. O que vem a ser exemplificado no trecho abaixo:
(...) E buscou no recôndito da floresta a sua malhada favorita. Era um jacarandá
colossal, cuja copa majestosa bojava sôbre a cúpula da selva como a abóbada de um
zimbório, §Ali costumava o sertanejo passar a noite ao relento conversando com as

13 Ibidem, 2006, p. 182.


14 Ibidem, 2006, p. 136.
15 Ibidem, 2006, p. 179.
16 Ibidem, 2006, p. 165.
17 Ibidem, 2006, p. 184.

Sumário 131
estrelas, e a alma a correr por êsses sertões da terra. §É este um dos traços do ser-
tanejo cearense; gosta de dormir ao sereno, em céu aberto, sob essa cúpula de azul
marchetado de diamantes, como não a têm nos mais suntuosos palácios. §Aí, no seio
da natureza, sem muros ou tetos que se interponham entre êle e o infinito, é como
se repousasse no puro regaço da mãe pátria, acariciado pela graça de Deus, que lhe
sorri na luz esplêndida dessas cascatas de estrelas.18

Podemos observar que no trecho “é este um dos traços do sertanejo cearense”,


tem-se uma assertiva do narrador em demonstrar que a narrativa desse livro é uma repre-
sentação do homem do sertão cearense, dos seus modos, de seus problemas etc. Sobre essa
literatura cheia de elementos exóticos, Antonio Candido (1989) diz que esse foi um estado
de euforia dos intelectuais latino-americanos, que fizeram da literatura uma linguagem de
celebração e apego aos elementos locais, apoiada pelo estilo Romântico, cultivador da hipér-
bole e da transformação do exótico em símbolo nacional. Esse regionalismo para Antonio
Candido (1989) mostrou-se como uma afirmação da identidade nacional, que pode ser uma
maneira insuspeita de oferecer ao europeu o exotismo que ele sempre buscou, como desfas-
tio, uma dependência na independência.
Difere-se também do regionalismo realista de Inglês de Sousa, na obra História
de um pescador: cenas da vida do Amazonas, publicada em 1876, que narra a história do tapuio
José. Nessa narrativa temos a problemática entre brancos e tapuios e as consequências dessa
relação refletida na política, nas relações de trabalho. Devemos ressaltar que há uma mera
descrição sem uma contextualização mais crítica das relações de trabalho exposta na obra,
o que vem a ser exemplificado pelos capítulos Ilusões e O Lago Grande. No capítulo Ilusões a
voz do narrador expõe um quadro das mazelas vividas pelos tapuios, porém isto fica restrito
apenas a sua fala, como podemos observar no seguinte trecho:
(...) Não eram infelizmente só eles que viviam assim. Quase todos os desgraçados
lavradores que deviam ao capitão Fabrício tinham igual ou pior sorte. Ainda hoje
quantas centenas de famílias no Amazonas não passam pelos transes por que passa-
ram a viúva e o filho de Anselmo? Não cessam os livros de falar da grande fertilidade
das nossas terras. Os autores desses livros não chegam a ver senão a superfície das
coisas. Demais eles não conhecem as nossas condições de existência! Sabeis o que
é ser pobre no Amazonas? É ser escravo. É pior do que isso. O escravo tem seguro o
alimento, e portanto a vida. O miserável tapuio nada tem seguro no mundo. (...) São
sempre injustamente acusados os tapuios. Não se fartam de dizer que são indolentes
e preguiçosos, que não se sabem aproveitar dos vastíssimos recursos que lhes oferece
a natureza!... (...) o mal não está no tapuio (...) O mal do Amazonas está nesses ho-
mens vis e infames (...) na escravidão do trabalho (...). 19

Outro ponto importante a respeito dessa discussão sobre a atual concepção de


regionalismo, que devemos levar em conta é a acepção de região de acordo com o ponto de
vista geográfico, e a esse respeito Santos (1997), nos diz que a região já não pode ser mais
vista como uma área geográfica autônoma e isolada, pois com a globalização há uma ten-
dência para a unificação das relações e uma abertura maior e mais intensa entre os países,
consequentemente suas regiões.
18 O Sertanejo, 1997, p. 42-43.
19 História de um pescador: cenas da vida do Amazonas, 1990, p. 67.

Sumário 132
No entanto, Santos (1997) aponta as regiões como uma contraposição a essa uni-
ficação generalizada, pois “se o espaço se torna uno para atender às necessidades de uma
produção globalizada, as regiões aparecem como as distintas versões da mundialização” 20,
uma vez que essa distinta mundialização “não garante a homogeneidade, mas ao contrário,
instiga diferenças, reforça-as e até mesmo depende delas” 21. É dentro dessa perspectiva,
dessa nova visão de região que devemos tentar compreender como esse novo espaço e suas
relações são representadas no texto literário. Pois como afirma Candido (1989), para enten-
dermos melhor o regionalismo é
(...) preciso redefinir criticamente o problema, verificando que ele não se esgota pelo
fato de, hoje, ninguém mais considerar o regionalismo como forma privilegiada de
expressão literária nacional (...) Mas convém pensar nas suas transformações, lem-
brando que sob nomes e conceitos diversos prolongar-se a mesma realidade básica
(...) 22

Neste sentido, podemos observar que a literatura produzida por Hatoum aparece
como um novo olhar sobre a concepção de regionalismo, afastando-se do regionalismo cul-
tivado pelo romantismo, bem como do regionalismo realista. Sua obra é regionalista não só
por ambienta-se na região amazônica, por mostrar o espaço do Amazonas, rios, pássaros.
Podemos dizer que o regionalismo está mais presente nas vozes dentro da narrativa, na for-
ma como o espaço é representado, um exemplo disso é o passeio de Domingas e Nael.
Sentada na proa, o rosto ao sol, parecia livre e dizia para mim: “Olha as batuíras e
as jaçanãs”, apontando esses pássaros que triscavam a água escura ou chapinhavam
sobre folhas de matupá, apontavam as ciganas nos galhos tortuosos dos atuirás e os
jacamins, com uma gritaria estranha, cortando em bando o céu grandioso, pesado
de nuvens. 23

Também, o imaginário da região como a lenda do boto, “No paraná do parauá,


um velho, muito sério, disse: ‘Vai ver que o boto enfeitiçou os dois; devem estar encantadas,
lá no fundo do rio’. Passavam das águas pretas às águas barrentas, atracamos dezenas de
vezes na beirada do paraná do Cambixe”.24 É interessante observar que a lenda do boto é
citada por um personagem sem nome, mas que é caracterizado como um velho muito sério,
o que nos leva pensar em tradição, tendo em vista que os mais velhos de certa forma são
porta vozes dessas narrativas, dessas memórias.
Nesse ambiente de Dois irmãos a paisagem amazônica tem a sua importância, em-
bora não seja o elemento central das ações dos personagens ou um recurso de reafirmação
do exótico na literatura brasileira. Ela aparece como um recurso que se soma a obra para
formar o todo. A paisagem é definida por Milton Santos (1997) como tudo o que a nossa
visão alcança. É formada por cores, “O edifício antigo da Cervejaria Alemã cintilava na
Colina (...) todo branco”; movimentos, “Os catraeiros remavam lentamente”; sons, “é muito
agitado, muito barulhento”; odores, “Quando atracavam, os bucheiros descarregavam cai-

20 Santos, 1997, p. 46.


21 Idem, 1997, p. 46.
22 Idem, 1989, p. 159.
23 Ibidem, 2006, p. 55.
24 Ibidem, 2006, p. 121.

Sumário 133
xas e tabuleiros cheios de vísceras (...) e o cheiro forte, os milhares de moscas”; possui uma
ligação com a memória que também é sinestésica, fato recorrente no texto.
O conceito de paisagem está diretamente ligado ao de dimensão da percepção,
depende de onde, do lugar de onde se vê algo, bem como do processo seletivo de apreensão,
visto que cada pessoa percebe de maneira diferencia a realidade. Neste sentido, a paisagem
apresentada a nós leitores em Dois irmãos passa pela visão e rememoração do narrador Nael
e das pessoas que lhe contam fatos vividos pela família de Halim. A paisagem exposta na
narrativa é montada por meio da memória do homem, Nael, que é sempre deformada, con-
forme as circunstâncias e seus sentimentos.
Em Dois irmãos verificamos uma paisagem que já sofreu mudanças pela ação
do homem, fruto do crescimento desenfreado da cidade, que se mostra como um conjunto
heterogêneo de forças naturais e artificiais. Como exemplo, temos a descrição da Cidade
Flutuante25:
Dali podíamos ver os barrancos dos Educandos, o imenso igarapé que separa o bair-
ro anfíbio do centro de Manaus. Era a hora do alvoroço. O labirinto de casa erguidas
sobre troncos fervilhava: um enxame de canoas navegava ao redor das casas flutuan-
tes, os moradores chegavam do trabalho, caminhavam em fila sobre as tábuas estrei-
tas, que formam uma teia de circulação. Os mais ousados carregavam um botijão,
uma criança, sacos de farinha; se não fossem equilibrados, cairiam no Negro. Um ou
outro sumia na escuridão do rio e virava notícia.26

É importante observar que, a narrativa não está presa a essa construção do es-
paço, da paisagem ou do imaginário, esses elementos da narrativa ambientam as ações e
configuram a história que se desenrola em Manaus, sem transformar o texto em um desfile
de exotismo, tanto do espaço quanto das personagens.
O espaço presente na narrativa não é descrito pelo narrador como uma prioridade
de exaltar a geografia local, os rios, a vegetação, a fauna ou os tipos sociais, pelo contrário o
foco na apresentação do espaço é mostrar o lugar como um ponto de encontro de pessoas, de
religiões diferentes, “(...) As duas rezavam as orações que uma aprendeu em Biblos e a outra
no orfanato de freiras em Manaus. Halim sorriu ao comentar a aproximação da esposa com
a índia” 27. De culturas diferentes, libaneses, nordestinos, descendentes de índios, moradores
de Manaus, assim como um lugar de desencontros, como por exemplo, quando Yaqub deixa
Manaus para passar uns tempos no Líbano, é também um lugar de idas e vindas, em que o
personagem de Yaqub transita hora em São Paulo hora em Manaus. Um espaço de vidas em
trânsitos.
Podemos dizer, ainda, que não há uma preocupação de marcar uma região, mas
de mostrar como pessoas de diferentes lugares e com suas especificidades conseguem viver
em um mesmo local, em uma mesma região, mantendo seus traços culturais e absorvendo
traços de outras culturas, como podemos observar na composição da clientela do restauran-
te Biblos, de Galib:

25 Aglomerado de casas construídas sobre balsas às margens do Rio Negro, criada a partir de 1920 pelos seringueiros
desempregados, sem habitação, que se fixaram na periferia de Manaus, no fim do primeiro ciclo da borracha.
26 Ibidem, 2006, p. 90.
27 Ibidem, 2006, p. 48.

Sumário 134
(...) O pai conversava em português com os clientes do restaurante: mascates, coman-
dantes de embarcação, regatões, trabalhadores do Manaus Habour28. Desde a inau-
guração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus
marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões
que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e
dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de
vozes que contavam um pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num povoado do
rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças remotas e o mais recente: uma dor
ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os
caloteiros saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, fumavam, e as vozes prolongavam
o ritual, adiando a sesta.29

Diante disso é possível afirmar que há regiões em trânsito, representadas pelas


vidas em trânsito dentro da obra, representadas por meio do léxico dos personagens, de
suas diversidades culturais, de suas funções etc., sem uma preocupação descritiva deste ou
daquele tipo social.
Neste espaço também encontramos registrado os conflitos políticos que marca-
ram o Brasil no período militar e a história de Manaus. Na narrativa observamos a Cidade
Flutuante cercada por militares e as mudanças ocorridas na cidade nesse período. “(...) O
pai reclamava que a cidade estava inundada, que havia correria e confusão no centro, que a
Cidade Flutuante estava cercada por militares” 30.
Em outros momentos da narrativa há uma apresentação dos impactos da guerra
sobre a cidade de Manaus, a falta de energia nas casas, a escassez de comida que gerou uma
disputa no mercado por um pedaço de carne, entre outros problemas comuns naquele con-
texto. Vejamos um trecho:
Fora assim durante os anos de guerra: Manaus às escuras, seus moradores acotove-
lando-se diante dos açougues e empórios, disputando um naco de carne, um pacote
de arroz, feijão, sal ou café. Havia racionamento de energia, e um ovo valia ouro.
Zana e Domingas acordavam de madrugada, a empregada esperava o carvoeiro, a
patroa ia ao Mercado Adolfo Lisboa e depois as duas passavam a ferro, preparavam
o pão, cozinhavam. Quando tinha sorte, Halim comprava carne enlatada e farinha
de trigo que os aviões norte-americanos traziam para a Amazônia. Às vezes, trocava
víveres por tecido encalhado: morim ou algodão esgarçado, renda encardida, essas
coisas. 31

No desenrolar da narração encontramos também as mudanças na cidade e na


vida dos moradores dela no pós-guerra com a chegada dos soldados da borracha, assim deno-
minados os imigrantes que vieram para a região amazônica trabalhar nos seringais. Neste
momento há um grande crescimento econômico na região, mas há também um crescimento
desordenado da cidade. Como podemos observar no excerto:
Halim avia melhorado de vida nos anos do pós-guerra. Vendia de tudo um pouco aos
moradores dos Educandos, um dos bairros mais populosos de Manaus, que crescera

28 Porto flutuante situado à margem esquerda do Rio Negro, criado pelos ingleses.
29 Ibidem, 2006, p. 36.
30 Ibidem, 2006, p. 147.
31 Ibidem, 2006, p. 18.

Sumário 135
muito com a chegado dos soldados da borracha, vindos dos rios mais distantes da
Amazônia. Com o fim da guerra, migraram para Manaus, onde ergueram palafitas à
beira dos igarapés, nos barrancos e nos clarões da cidade. Manaus cresceu assim: no
tumulto de quem chega primeiro.32

Nesse fragmento e no restante do texto observamos como já foi citado anterior-


mente, uma representação da história de Manaus, de seu apogeu, de seu crescimento desor-
denado e de uma Manaus irreconciliável com seu passado glorioso.

Considerações finais

De modo geral em Dois Irmãos é recorrente a temática da família, a participação


do imigrante que veio para a Amazônia em busca de melhores condições de vida. Em meio
ao drama da família de Zana e Halim, encontramos na narrativa as relações sociais e de
poder representadas nas práticas dos personagens (os peixeiros, os estivadores do Manaus
Habour, dos moradores da Cidade Flutuante etc.), pois todos são representações sociais que
completam o conteúdo da narrativa. Como podemos observar no livro à medida que conhe-
cemos a história dos personagens Yaqub, Omar e Nael e os outros, conhecemos também a
história de Manaus e como esses diversos tipos humanos contribuíram para a formação da
cultura local.
Diante disso podemos dizer com relação aos questionamentos realizados no iní-
cio deste trabalho, que o regionalismo presente em Dois Irmãos não é pitoresco e nem me-
ramente descritivo. O regionalismo aparece nas ações, nas vozes dos personagens, mas sem
a idealização do homem ou do espaço. É assim que o regionalismo se faz presente nessa
e em outras obras ambientadas em espaços específicos, que tem sua própria história e sua
geografia.
Portanto, é importante ressaltar que a obra Dois Irmãos está para além das ques-
tões regionalistas. É uma obra de representatividade nacional, pois consegue mostrar o per-
manente diálogo de diferentes povos com suas diversidades culturais e psicológicas em um
mesmo espaço dentro da narrativa. Assim, confirma-se o que foi mencionado por Santos
(1997) a respeito do conceito de região, que não deve ser vista como uma área geográfica
autônoma e isolada.

Referências
ALENCAR, José de. O sertanejo. 5. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1997.
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A Educação Pela Noite e outros en-
saios. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989. p.141-162.
COUTINHO, Afrânio. O regionalismo na ficção. In: A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul
Americana, 1969. p. 219-289.
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 198p.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 45-73.
SOUSA, H. Inglês de. História de um Pescador (Cenas da vida no Amazonas). 2. ed.. Belém: SE-
CULT, 1990.

32 Ibidem, 2006, p. 32

Sumário 136
U ma leitura da metaficção
historiográfica O filho da mãe de
B ernardo C arvalho

Vinícius Ferreira dos Santos

F
oram dez obras ao todo publicadas na Coleção Amores Expressos: um
trabalho conjunto entre a produtora RT Features e a editora Companhia
das Letras – a primeira se encarregava de financiar a proposta e a segunda
garantia a publicação dos livros. Em resumo, no ano de 2007, a ideia de ambas, tanto da
produtora quanto da editora, era a de enviar 17 autores brasileiros ao redor do mundo para
que cada um escrevesse um romance ambientado em uma grande capital de um país. Não
somente, mas também era necessário que a narrativa em si fosse ambientada nesse lugar se-
lecionado. Ainda com todos esses critérios, havia um muito emblemático: a de que as obras
seriam adaptadas, posteriormente, aos cinemas, o que pode ter modificado, em certo grau,
a própria linguagem das narrativas. Porém, mesmo com toda ambição por detrás desse pro-
jeto, apenas 10 escritores entregaram no prazo a obra para ser publicada pela Companhia
das Letras.

Não foram poucas as críticas negativas dirigidas ao projeto da editora paulista


que vão desde bancar viagem de autores para realizar “turismo literário” até discussões mais
complexas como a da condição de legitimidade e autoria, visto que os autores receberiam
uma encomenda podendo, então, mitigar a criação literária por conta desse exercício de
mecenato feito pela editora e produtora. Apesar das condições de autoria, de legitimidade e
de criação serem temas bastante pertinentes, o presente artigo não vai se aprofundar nessas
questões, uma vez que essas problematizações foram amplamente debatidas na dissertação
“O filho da mãe, de Bernardo Carvalho, e a figuração do amor na escrita patrocinada da

Sumário 137
Coleção Amores Expressos”1 de Vinícius Ferreira dos Santos. O artigo a ser desenvolvido
aqui, aliás, é um recorte daquele estudo e que chega à conclusão de que muitas das obras
publicadas sob a égide da Coleção Amores Expressos foram bem desenvolvidas em roman-
ces cujos temas e estéticas estão colados ao presente e, em alguns casos, dialogam com a
tradição literária e com as demandas da contemporaneidade.
No geral, embora as obras retratem histórias de amor, elas fogem dos lugares-co-
muns de narrativas do gênero, desmitificando a concepção idealizada e burguesa do discur-
so universal do Amor como aquela de ser, como pontua Rougemont2, um estado apaixonado
de expectativa, advinda da concepção romanesca. Nesse sentido, grosso modo, os temas dos
romances publicados com o selo da Coleção são diversos, mas os principais foram a escassez
de afeto e a sensação de inadequação. Este último vai ao encontro do romance O filho da mãe
– objeto de análise do presente estudo.
O romance de Bernardo Carvalho3, publicado em 2009, após sua viagem à São
Petersburgo, na Rússia, tem como principal característica o modo como lida com a memória
histórica, ao passo que dá voz a personagens desterrados e marginalizados e seus respectivos
afetos. O modo como aborda o tema do amor, aliás, é sob a perspectiva dos amores filiais,
ao retratar a história de mães e de seus filhos no auge da Segunda Guerra da Tchetchênia de
2002. Para fazer isso, a narrativa resgata a história da poeta Anna Akhmátova que teve seu
filho preso nos anos de 1930, durante a Guerra Civil, levando-a a um calvário nas intermi-
náveis filas da prisão de Kriesty, em Leningrado.
Como é possível observar, a narrativa, portanto, opera pela ótica da metaficção
historiográfica4 que consiste, além do recorte do passado na escrita do presente, na auto-
consciência da textualidade da história, isto é, a noção de que o passado só existe por conta
do texto, noção esta muito difundida, em partes, pelos pós-estruturalistas. Além disso, há
um compromisso da narrativa em relação à linguagem e ao modo como são construídas as
personagens no romance.

A metaficção historiográfica

“E agora, antes de desaparecer, vai revelar ao neto uma história de mães e fi-
lhos” . () diálogo de Zainap dirigido ao neto Ruslan, na Tchetchênia, e que se torna emble-
5

mático por retratar o próprio processo narrativo de O filho da mãe. Em vista disso, o romance
tece, desde sua estrutura aos temas que aborda, uma compleição daquilo que pode se cha-
mar: metaficção historiográfica.
Ao se desconstruir essas duas palavras, pode-se perceber que a primeira possui
o prefixo “meta”, cujo significado não existe em si, a não ser quando se junta a um radical
e, por conta disso, modifica seu significado, por exemplo: “metafísico” (transcendência),

1 SANTOS, Vinícius Ferreira dos. O filho da mãe, de Bernardo Carvalho, e a figuração do amor na escrita patrocina-
da da Coleção Amores Expressos. 2016. 147f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Londrina,
Londrina, 2016.
2 ROUGEMONT, Denis de. O amor e o ocidente. Tradução de Paulo Brandi e Ethel Brandi Cachapuz. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara, 1988.
3 CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
4 HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria e ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro:
Imago, 1991.
5 CARVALHO, 2009, p. 37

Sumário 138
“metafonia” (mudança do timbre de uma vogal tônica e da forma radical do verbo) e “me-
talinguagem” (reflexão sobre si).
Este último significado pode muito bem expressar aquilo de que se entende por
“metaficção”, isto é, aquele texto que demonstra em sua própria estrutura os mecanismos
de sua construção. Diferente do significado de “historiográfico”, em cuja estrutura se encon-
tra o sufixo “gráfico” que, claramente, corresponde a noção daquilo que é escrito, grafado.
Logo, a junção de ambas as palavras, “metaficção” “historiográfica”, corresponde àqueles
romances altamente autorreflexivos6 que tem semelhanças com a teoria, a história e a litera-
tura, por contar com o mecanismo da narratividade, por isso:
A metaficção historiográfica incorpora todos esses domínios, ou seja, sua autocons-
ciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção his-
toriográfica) passa a ser a base para seu repensar e sua reelaboração das formas e
conteúdos7.

Dito de outro modo, é como se no próprio mecanismo da narrativa houvesse a


noção da consciência da textualidade da história, isso porque só se conhece ou se sabe da
história por conta do texto. Nas palavras de Linda Hutcheon, só reconhecemos o passado
por conta da acessibilidade textualizada dele. Por isso, é muito comum encontrar em nar-
rativas desse tipo recursos como o da intertextualidade (paródia e pastiche). O passado, no
caso, a história, articula-se com o literário devido, justamente, aos vestígios textuais deixa-
dos pelas historiografias:
Desse modo, a forma como são incorporados esses passados textuais se faz como
elemento estrutural que funciona como marca formal da historicidade. É por meio
desse processo que a metaficção historiográfica consegue, ao mesmo tempo, sacrali-
zar e dessacralizar um texto, pois procura “desmarginalizar” o literário. Isso porque
as afirmações românticas e modernistas acreditavam na supremacia da arte, e, com
isso, outras literaturas foram levadas à margem, que, hoje, os autores de metaficção
historiográfica trazem ao cerne, por meio do confronto histórico.8

Não à toa que Linda Hutcheon tenha se valido da percepção de “texto” das teorias
pós-estruturalistas para quem, em poucas palavras, tudo é construção discursiva, portanto
é carregado de intersubjetividades e interpelado por condições sócio-históricas. Em vista
disso, a noção de uma “verdade” é posta em xeque, quando tenta se valer da objetividade
do discurso histórico, mas também esbarra no processo de ficcionalização: a narratividade
– elemento caro tanto ao campo da história quando ao da literatura. Afinal, ainda que não
pertençam a mesma ordem do discurso, elas utilizam dos mesmos mecanismos de análise.
Na esteira do pensamento de Esteves9, a literatura e a historiografia compartilham dos mes-
mos questionamentos, da mesma inserção de intersubjetividade, ao passo que se relacionam
com o fato histórico por meio das condições de produção e pelos processos identitários e
ideológicos:

6 Cf. Idem.
7 Ibdem,1991, 21-22, grifos da autora.
8 SANTOS, 2016, p. 99-100.
9 ESTEVES, Antonio. O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000). São Paulo: Edunesp, 2010.

Sumário 139
O romance histórico aparece na medida em que a História, propriamente dita, torna-
-se uma mera possibilidade de leitura. Acredita-se, de acordo com o estudioso [ES-
TEVES, 2010], que o romance de extração histórica tende a preencher um vazio que
a historiografia, com suas verdades empíricas, não preenche. É nesse vazio e nessa
incerteza que se instala a narrativa histórica a fim de reconstruir aquilo que se vela. 10

Enfim, como se pode observar, essas discussões são muito valiosas, contudo, o
objetivo é entender de que maneira o conceito de metaficção historiográfica se enquadra no
romance a ser analisado neste artigo. O conceito, ampliado por Linda Hutcheon11, oferece
uma espécie de metodologia para analisar uma obra literária que faz um resgate histórico,
sobretudo nos termos da estrutura do romance e de seus temas.
A obra O filha da mãe traz temas e protagonistas muito comuns em romances
de metaficção historiográfica, seja pelo livro de Carvalho12 trazer personagens ex-cêntricos
(fora do centro), marginalizados e figuras periféricas dos discurso hegemônicos, seja pelos
processos de intertextualidade, como pastiche e paródia, na estrutura do texto a fim de res-
gatar o passado na escrita do presente.

O amor da mater dolorosa e a metaficção historiográfica na obra

A narrativa de O filho da mãe de Bernardo Carvalho se inicia no ano de 2003,


quando uma das personagens, Iúlia, tenta encontrar uma antiga colega chamada Marina
Bóndareva, que é uma voluntária do Comitê das Mães dos Soldados de São Petersburgo.
Ao encontrá-la, solicita uma ajuda para tirar o filho da vizinha, chamado Vássia, da prisão,
porque este tentou invadir o site da agência do governo russo. Marina, então, lê para a sua
antiga colega uma carta de um soldado desertor que conheceu e havia morrido há pouco
tempo num campo de batalha na Tchetchênia:
Iúlia desdobra o papel e lê em silêncio: “Escrevo como o louco que não pode parar
de cantarolar sua ladainha sem sentido, nem que seja para não ouvir o ruído do mun-
do, falar só, mais alto que o ruído do mundo. Escrevo para o caso de você decidir
voltar, para assombrar esta cidade. É a mais artificial de todas as cidades. Em três
séculos, tentaram três nomes, em vão. Um nome por século. Construíram trezentas
pontes, uma para cada ano, mas nenhuma leva a lugar nenhum. Ninguém nunca vai
sair daqui”.
– É Petersburgo – diz Marina. – É uma carta de amor13.

Essa carta vai servir como uma espécie presságio para o leitor sobre o que vai
acontecer no recuo temporal de um ano que a narrativa faz e que acaba contando a jornada
tanto de Andrei, o que escreveu a referida carta, quanto do seu amante Ruslan, personagem
tchetcheno que vai à São Petersburgo encontrar sua mãe. Como é possível perceber, O filho
da mãe é composto por uma estrutura multifocal, isto é, são vários personagens aparente-
mente desconectados, mas que vão, ao longo da leitura, encontrando-se e tendo seus desti-
nos cruzados.

10 SANTOS, 2016, p. 101.


11 HUTCHEON, 1991.
12 CARVALHO, 2009.
13 CARVALHO, 2009, p. 22.

Sumário 140
É interessante também o modo como a narração – na terceira pessoa com
narrador onipresente – se desloca geograficamente. O leitor, portanto, é surpreendido com
esses vários espaços geográficos de São Petersburgo, passando por um campo de refugiados
em Inguchétia, na Tchetchênia, por Vladivostok, por Moscou, pelo mar do Japão e até no
Oiapoque, Amazonas. Tudo isso numa estrutura de obra dividida em três parte (I. Trezentas
pontes, II. Quimeras e um Epílogo) com 23 capítulos, e estes contemplam em seus títulos
uma estrutura semelhante a um roteiro de cinema, com datas e local de onde se ambienta
aquele capítulo – a semelhança da obra com o universo cinematográfico não se esgota aqui,
como será visto posteriormente.
Em voltas com a temática principal da obra, o amor, é importante salientar que
a narrativa carvaliana tem um olhar sobre os afetos familiares, que será chamado aqui de
amor filial. O conceito dos amores filiais é partilhado pelo poeta mexicano Octávio Paz14
quando diz ser um tipo de amor que beira à piedade, à devoção, à caridade, e que justifica
todas as guerras:
O amor filial, fraternal, paternal e maternal não são amor: são piedade, no sentido
mais antigo e religioso dessa palavra. Piedade vem de pietas. É o nome de uma virtu-
de, nos diz o Dicionário de autoridades, que “move e incita a reverenciar, acatar, servir
e honrar a Deus, a nossos pais e a pátria”. A pietas é o sentimento de devoção que se
professava aos deuses em Roma. Piedade significa também misericórdia e, para os
cristãos, é um aspecto da caridade [...]. A piedade ou amor a Deus brota, segundo
os teólogos, do sentimento de orfandade: a criatura, filha de Deus, se sente jogada
ao mundo e procura seu Criador. É uma experiência literalmente pois se confunde
com o próprio nascimento. Muito se escreveu sobre isso: aqui me limito a lembrar
que consiste no sentir e saber que fomos expulsos do todo pré-natal e lançados a um
mundo alheio: esta vida. Nesse sentido o amor a Deus, quer dizer, ao Pai e ao Cria-
dor, é muito parecido com a piedade filial15.

No romance de Carvalho , para demonstrar esse amor filial, há um resgate his-


tórico da poeta russa Anna Akhmátova em alguns momentos da narrativa. Essa referencia-
lidade sobre a poetisa aparece por meio de recursos intertextuais, como os da paródia e do
pastiche, caros a romances de metaficção historiográfica.
A paródia pode muito bem ser empreendida no seguinte trecho:
– Minha avó – Iúlia a corrigiu. – Quando meu tio foi preso, em [19]51, minha avó
encontrou Akhmátova entre as mulheres que esperavam notícias dos maridos e dos
filhos, do lado de fora da prisão de Kresty. Ao reconhecê-la, minha avó se aproxima
de Anna Akhmátova, que ela havia lido e admirado quando era moça, e que tinha
sido silenciada, e pediu que voltasse a escrever poemas, que escreva sobre as mulhe-
res e as mães à espera dos maridos e dos filhos do lado de fora dos muros de Kresty.
Depois de saber da morte do meu tio nos campos, Anna Akhmátova procurou minha
avó e lhe recitou um texto, disse que era uma homenagem, que não podia escrevê-lo
mas podia recitá-lo. Não podia lhe entregar o texto escrito, não podia arriscar mais
uma vez a vida do filho, e por isso tinha decidido dizê-lo para a minha avó. Pediu
que ela o decorasse. Foi logo depois de o filho de Anna Akhmátova ter sido liberta-
do, ao contrário do meu tio, que morreu nos campos. Ela disse que não podia deixar

14 PAZ, Octávio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladyr Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.
15 PAZ, 1994, p. 99, grifos do autor.

Sumário 141
de vir, quando soube da morte do meu tio. Lembrava perfeitamente de quando mi-
nha avó a encorajava a voltar a escrever, na porta da prisão16.

Observa-se, a partir desse trecho, uma referência à vida da referida poeta quando
esta teve seu filho preso da prisão de Kriesty, nos anos de 1930, e esperou em longas filas
para poder visitá-lo. Não à toa que há ao longo do texto de Carvalho referência a filas, imen-
sas e que nunca acabam. Desse modo, a situação retratada por Iúlia se refere a um poema
chamado “No lugar de um prólogo” de Akhmátova e, por meio do recurso de pastiche, a
própria narrativa demarca esse poema:
– Minha avó era a mulher de lábios azuis da introdução ao poema, lembra? Ela reci-
tava de memória: “Passe dezessete meses nas filas das prisões de Leningrado. / Uma
vez, alguém me reconheceu. E então uma mulher de lábios azuis atrás de mim, que
obviamente nunca ouvira ninguém me chamar pelo nome, saiu do estupor ao qual
todos tinham sucumbido e sussurrou no meu ouvido (ali, todo mundo sussurrava):
/ “Você pode descrever isto?”. / E eu respondi: “Sim, eu posso”. / E, então, o que
parecia um sorriso passou pelo que um dia havia sido um rosto”. Os lábios estavam
azuis de frio.17

Assim, a poesia e a biografia de Akhmátova muitas vezes são aspergidas ao longo


do texto de Bernardo Carvalho. A poetisa por meio de uma dor privada18 universalizou as
dores de todas as mães, sobretudo por conta da prisão de seu filho Liev, o que deu início a
um calvário nas citadas filas em frente a prisão de Kriesty, em São Petersburgo. Aliás, como
a prisão tinha um formato de cruz, Coelho19 observa que os poemas de Anna Akhmátova, na
época da prisão de Liev, tinham essa figura emblemática do eu-lírico, a da mater dolorosa,
isto é, figura cristã que fica aos pés da cruz enquanto o Salvador agoniza.
Então, a metaficção historiográfica de Bernardo Carvalho reconstrói os temas
principais da poetisa russa, a fim de simbolizar a angústia e dores das mães e de seus filhos
nos conflitos bélicos. Sobre a coletânea Réquiem: um ciclo de poemas, citado por Carvalho,
em seu romance, percebe-se que: “Mais do que em qualquer outros de seus poemas, fica
patente, nesta obra magistral, como Akhmátova consegue efetuar o trânsito entre o imedia-
tismo da experiência individual e a eternidade de um sentimento universal”20. Além disso,
[...] a dor de todo um povo é transmudada em algo eterno e universal, pelo próprio
paralelo que ela estabelece entre a dor individual de cada mãe e a da Mater Doloro-
sa, ao pé da cruz em que seu Filho é martirizado, símbolo do sofrimento perene de
todas as mães da Humanidade21.

A forma como a obra carvaliana, portanto, resgata a figura de Anna Akhmátova


serve como modo de universalizar as mães nesses espaços beligerantes. Então, é comum no
romance de 2009, encontrar várias figuras maternais, sobretudo aquelas que perderam filhos

16 CARVALHO, 2009, p. 16.


17 Idem.
18 Cf. COELHO, Lauro Machado. Anna: a voz da Rússia. Vida e obra de Anna Akhmátova. São Paulo: Algol Editora,
2008.
19 Idem.
20 Ibidem., p. 187.
21 Ibidem.

Sumário 142
ou de mulheres, mesmo não podendo ser mães, compartilhando esse sentimento filial com
outros personagens. Assim, o modo multifocal pela qual a obra se utiliza para narrar a vida
dos vários personagens, inclusive pela ótica da maternidade, se insere na lógica dos roman-
ces pós-modernos muito interessados nesse aspecto de referencialidade, como no caso aqui
de descontruir o referencial universal “mãe”:
A metaficção historiográfica sugere isso de forma autoconsciente, mas depois o uti-
liza para ressaltar a natureza discursiva de todas as referências – literárias e historio-
gráficas. O referente é sempre já inserido nos discursos de nossa cultura. Isso não é
motivo de desespero; é o principal vínculo do texto com o “mundo”, um vínculo que
reconhece sua identidade como construto, e não como o simulacro de um exterior
“real”22.

Inclusive, a desconstrução desse referencial é tanto em O filho da mãe que a obra


não escapa em querer demonstrar pessoas que, para proteger seus filhos, são capazes das
maiores perfídias, subvertendo, sobretudo, o horizonte de expectativa do próprio leitor. Caso
emblemático é o da personagem Anna cuja semelhança com a poeta russa Akhamátova não
se restringe apenas ao primeiro nome, como a própria obra de Bernardo Carvalho tenta de-
monstrar, de modo paródico, tal semelhança – embora elas não sejam contemporâneas entre
si. Quando o marido da personagem de Carvalho, por exemplo, entrega à esposa um livro
de Maiokóvski, ela o rejeita veementemente, uma vez que, no passado, o reconhecido poeta
futurista, denunciou os poemas de Akhmátova ao Partido Comunista, dirigido, à época, por
Lênin. Isso culminou na morte de seu terceiro marido e na prisão de seu filho Liev.
Essas semelhanças parecem estabelecer uma espécie de ironia na obra, quando,
no decorrer da leitura, aparece um filho bastardo de Anna, Ruslan, filho de Chakban, morto
na Tchetchênia. Ela o havia abandonado aos cuidados de Zainap, avó do garoto, que vivia
em um campo de refugiados em Inguchétia, na região do Cáucaso. Paralelamente a isso,
Anna se casou novamente com o então atual marido Dmítri, com quem teve dois filhos, sen-
do o mais velho o skinhead Maksim. Este selará o destino do irmão bastardo, culminando
num fratricídio ao final da narrativa. Apesar disso, mesmo ciente de que seu filho mais velho
tenha participado do crime, ela resolve fugir com ele para Nova Iorque:
Agiram para salvar a família. E essa cumplicidade garante seu silêncio e aplaca a
culpa de ter usado o filho. Se depender deles dois, Anna nunca saberá de nada. São
capazes de qualquer coisa no mundo para poupá-la da pena. É isso o amor. Mas, no
fundo, não é possível afirmar com certeza que ela não saiba. E o silêncio dela não
deixa de ser uma forma de reconhecimento23 .

Dessa maneira, a narrativa desenha esse amor como aquele acima da justiça, da
ética e da moral, evocando o discurso de Paz24, quando descreve o amor filial como o modo
de piedade:
E Anna tinha vindo para Grózni para se livrar do amor. As mulheres nascem para
um amor que é insustentável e que passam a vida tentando compensar com amores
secundários, para não ficarem loucas. Por isso, querem mais de um filho, para que

22 HUTCHEON, 1991, p. 158.


23 CARVALHO, 2009, p. 183.
24 Cf. PAZ, 1994.

Sumário 143
o amor de um anule o do outro. Quando começam, não podem parar. É estranho
que se esqueçam tão rápido dos filhos que morreram. A morte de Chakban me fez
entender melhor as mães que matam os filhos ao nascer. É melhor não ter um filho
do que perdê-lo. 25

Em linhas gerais, essas histórias maternas resgatadas na obra, cuja marca textual
do passado se vale das poesias e da vida de Akhmátova, e do passado recente da Segunda
Guerra da Tchetchênia, são marcadas não apenas em nível do enunciado, mas também
como modo de explicar o próprio processo de construção do próprio romance, em nível de
enunciação, conforme aparece no seguinte trecho:
As histórias de amor podem não ter futuro, mas têm sempre passado. É por isso que
as pessoas se agarram a tudo o que as remete de volta ao que perderam. Os livros que
elas leem sempre dizem respeito ao passado. Romances históricos, memórias, bio-
grafias, tudo tem que ser escrito em retrospectiva, senão não faz sentido. Ninguém
quer ler o que está por vir, à beira do abismo. As pessoas precisam se agarrar ao que
já conhecem26.

Com efeito, como é possível observar, o referente já está dado, isto é, não se cons-
trói uma história de amor que não tenha um passado, ou que já não tenha sido escrito. Daí
a própria escolha de Bernardo Carvalho em se adequar à Coleção Amores Expressos, pre-
ferindo a extração histórica de um passado recente, tendo como pano de fundo um conflito
armado envolvendo conflitos étnicos e políticos. Em todo caso, a ficção carvaliana, embora
apresente um conjunto de histórias de amor filial, apresenta temas como a intolerância do
poder ao descontruir as estruturas repressoras de uma sociedade beligerante. Ainda assim,
tudo parece canalizar à figura do amor, pois no romance esse sentimento justifica todas as
guerras, todas as crueldades.

A linguagem e a construção dos personagens

Diante de todo esse cenário construído por Carvalho27, por onde caminham esses
personagens, cabe destacar a própria linguagem da narrativa, em cuja estrutura vai além das
observadas anteriormente. O que se quer dizer com isso é que há um compromisso na es-
crita carvaliana, sobretudo na obra de 2009, ao se valer da linguagem cinematográfica para
contar sua história.
A já mencionada dissertação “O filho da mãe, de Bernardo Carvalho, e a figura-
ção do amor na escrita patrocinada da Coleção Amores Expressos”28 de Vinícius Ferreira
dos Santos concluiu como a obra de Bernardo Carvalho foi bem sucedida dentro da emprei-
tada da Coleção Amores Expressos. Assim, o que o autor carioca fez na obra foi unir forma
e conteúdo de maneira a atender o projeto da Companhia das Letras tanto em nível temático
(no caso, o amor) quanto em nível da forma (o cinema, devido à promessa de adaptar todos
os romances lançados naquela empreitada).

25 CARVALHO, 2009, p. 45.


26 Idem, op. cit., p. 186.
27 Ibidem.
28 SANTOS, 2016.

Sumário 144
Desse modo, é importante salientar como toda a construção da escrita de 2009
soube introjetar a linguagem do cinema. O exemplo que mais salta aos olhos se deve pela
presença da nomeação dos capítulos. Estes mencionam o dia e o local de onde aquela “cena”
irá ocorrer. Esses dêiticos temporais lembram, e muito, os roteiros de cinema. Além disso,
outras técnicas derivadas do cinema também estão presentes, haja vista como a narrativa
absorve técnicas semelhantes ao do enquadramento e da montagem em paralelo – contami-
nações possíveis dentro dessa intermidialidade.
Pode-se citar o exemplo a seguir:
Da escada, Roman ouviu os gritos do irmão, que discutia com a mãe [espaço 1]. De-
pois de fechar a porta, assim que tira os sapatos, no hall de entrada, ouve o telefone
e corre para atender. Dmítri lhe diz que não virá jantar. Está atolado de trabalho.
Talvez tenha de virar a noite no escritório. Mente. Na verdade, está pronto para
sair, com a maleta na mão. Despede-se do filho, desliga o telefone e sai do escritório
[espaço 2]. Enfrenta meia hora num trânsito infernal para fazer pouco mais que um
quilômetro entre o trabalho na avenida Litéini e sua casa. Melhor teria sido ir a pé29.

Nesse trecho, é possível observar como aquelas contaminações e aproximações


com a linguagem do cinema estão estreitas, uma vez que no início o espaço 1 que Roman
ocupa, enquanto ouvia as discussões do irmão com a mãe, é diferente de quando o seu pai,
Dmítri, aparece atendendo à ligação telefônica espaço 2. Desse modo, o telefone é o objeto
que conecta dois espaços diferentes, isto é, há uma elipse espacial quando Dmítri atende
o aparelho e logo a história transfere um espaço a outro, num corte rápido e fragmentado.
Claro que isso não é uma prerrogativa do cinema apenas. Sabe-se que, por exemplo, o cineas-
ta Sergei Eisenstein, para as suas técnicas cinematográficas, inspirou-se nas obras de John
Milton e Gustav Flaubert. Porém, devido às exigências da Coleção Amores Expressos, fica
difícil desassociar essas aproximações entre as duas mídias: a literária e a cinematográfica.
Outro ponto a ser destacado na obra, além da linguagem e da metaficção histo-
riográfica, é a construção dos personagens. Como mencionado, as relações entre eles estão
mediadas pelos amores filiais, mas também estão circunscritos em um arrojado modo de
descrever conflitos internos desses personagens. Ao que tudo indica, há uma singela relação
entre esses conflitos às ações deles, isto é, não existe uma descrição detalhada dos sentimen-
tos conflitantes deles, ao contrário, é com as ações dos personagens que o leitor tem contato.
Senta-se à mesa e come diante da TV. É hora de um programa de auditório ao qual
ela raramente assiste. Uma atriz vulgar de televisão, cujo nome ela nunca ouviu, dá
um depoimento emocionado sobre um rapaz que morreu na tragédia de Kursk, o
submarino nuclear, dois anos antes. O marinheiro foi seu namorado na adolescên-
cia. A atriz desfia suas recordações do morto. Há um oportunismo flagrante na voz,
que revolta Anna. O apresentador é um homem gordo e pálido, com um terno cin-
zento e gravata listrada, vermelha e verde. Puxa pelos detalhes. A cena é penosa. A
simples menção ao submarino provoca em Anna uma repulsa automática. Ela troca
de canal. Nos dias imediatamente posteriores ao acidente, causado ao que tudo indi-
ca por uma pane do disparo dos torpedos, quando ainda não se sabia quantos mem-
bros da tripulação presa nas profundezas do mar de Bárents à espera do resgate po-
deriam ter sobrevivido à explosão, houve uma tarde em que ela teve de ser socorrida

29 CARVALHO, 2009, p. 174, inserções deste artigo.

Sumário 145
na rua, com falta de ar, assombrada pela imagem demasiado vívida de marinheiros
e oficiais, sufocante conforme o ar se consumia no interior do submarino avariado,
encurralados no fundo do mar, a quilômetros das paisagens desoladas da costa do
Norte, enquanto ela batia pernas pela avenida Niévski. A imagem dos marinheiros
escrevendo as últimas palavras aos familiares, separados dos colegas mortos num
compartimento hermeticamente fechado, na popa do submarino, mas condenados à
mesma sorte, a menos que ocorresse um milagre, atormentava-a e a perseguia aonde
quer que ela fosse. E foi o que bastou para fazê-la desfalecer no meio da rua. Levada
a uma clínica de urgência, nada foi descoberto em nenhum dos exames30.

É nesse exercício de se sentar frente à TV que mora toda a arquitetura dos conflitos
internos de Anna, por exemplo, e todo o poder simbólico que cerca as cenas vistas no apa-
relho televisivo. Como é sabido, essa personagem na obra aqui analisada tem como capítulo
de sua biografia o abandono de seu filho aos cuidados de Zainap, avó do garoto e sogra
de Anna. Assim, não é de todo estranho ela se sentir, naquele momento, certa culpa que
carrega ao ter abandonado seu filho bastardo, já que aqueles que estão presos no submarino,
na mente de Anna, não conseguiriam escrever cartas aos seus familiares e que se sufocariam
todos antes de redigir a carta.
Aliás, há menções recorrentes, nesse fragmento, à figuras que remontam àquilo
que é profundo e interno – “presa nas profundezas do mar”; “o ar se consumia no interior
do submarino avariado”; “fundo do mar” – e à prisão – “membros da tripulação presa”;
“encurralados no fundo do mar”; “compartimento hermeticamente fechado”. Todas essas
imagens forçam um exercício metafórico muito característico ao longo de toda a narrativa
no tratamento dos conflitos internos dos personagens: as ações prescrevem quem é cada um,
sem com isso verbalizar.

Conclusão

A narrativa de Bernardo Carvalho não se limita a apenas atender às demandas


da Coleção Amores Expressos de maneira simples e superficial. Há, como foi analisado,
um compromisso estético que coadunou numa obra que mergulha o leitor nos conflitos da
história recente da Tchetchênia com os amores filiais num compromisso com a linguagem.
Somado a isso, a relação intertextual com as poesias de Anna Akhmátova que é bem mar-
cada por conta, sobretudo do pastiche e da paródia, categorias caras a teórica canadense
Linda Hutcheon31, para quem a metaficção historiográfica se sustenta pela presença desses
elementos, uma vez que são marcas do passado no presente da leitura. Parte disso se deve a
própria construção narrativa de Carvalho, que não só se aproveita das relações intertextuais
com a poetisa russa em nível de forma, mas também uma conexão temática, ao retratar a
histórias das mães durantes as guerras.
Outro ponto interessante, aproveitando o espaço desta conclusão, a recorrência
do número 300 ao longo do romance. Esse é justamente o número do aniversário de São
Petersburgo no início do livro e que também intitula o primeiro capítulo da obra: “Trezentas
pontes”. Além disso, na poesia de Akhmátova32, essa numeração reitera e simboliza a espera
30 CARVALHO, 2009, p. 50, grifos nossos.
31 Cf. HUTCHEON, 1991.
32 apud. COELHO, 2008, p. 191.

Sumário 146
ao longo das filas das prisões de Kriesty, conforme nos versos retirados do livro Réquiem:
um ciclo de poemas: “tricentésima da fila [...]/ficarias diante de Kriesty” ou em “onde fi-
quei de pé trezentas horas / sem que os portões para mim se destrancassem”33.
O romance O filho da mãe, portanto, de Bernardo Carvalho desenha, pela ótica do
passado, várias vozes nessa narrativa que discute, principalmente, os amores filiais, como
ponto de partida para se enquadrar na Coleção Amores Expressos. Essa perspectiva multi-
focal, então, dando espaço a pessoas à margem dos debates hegemônicos, que cria na ficção
carvaliana um conjunto final desconcertante ao leitor. Não há o amor de laço de fita, amo-
roso e gentil. Ao contrário, esse sentimento está acima da lei e, sendo incondicional, justifica
todos os gestos altruístas além das maiores perfídias.

Referências
CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
COELHO, Lauro Machado. Anna: a voz da Rússia. Vida e obra de Anna Akhmátova. São Paulo:
Algol Editora, 2008.
ESTEVES, Antonio. O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000). São Paulo: Edu-
nep, 2010.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria e ficção. Tradução de Ricardo
Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
PAZ, Octávio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladyr Dupont. São Paulo: Siciliano,
1994.
ROUGEMONT, Denis de. O amor e o ocidente. Tradução de Paulo Brandi e Ethel Brandi Cacha-
puz. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.
SANTOS, Vinícius Ferreira dos. O filho da mãe, de Bernardo Carvalho, e a figuração do amor na
escrita patrocinada da Coleção Amores Expressos. 2016. 147f. Dissertação (Mestrado em Letras)
– Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.

33 Idem.

Sumário 147
T ravessias contemporâneas :
dinâmicas culturais no romance
M unduruku

Randra Kevelyn Barbosa Barros

A literatura indígena no Brasil é fruto da consciência de que somos um na luta pelo


reconhecimento, pela recuperação do nosso território, pelo fortalecimento da nossa
cultura, pela afirmação da nossa identidade, pelo respeito às diferenças e pela defesa
das nossas raízes (Graça Graúna).1

Palavra oral e escrituras

A
s produções literárias de autoria indígena se expandem cada vez mais
no Brasil e mostram a necessidade de esses sujeitos ecoarem a própria
voz, sem intermediários. Como sugere Graça Graúna, esse movimento
está ligado à busca pela retomada territorial, às culturas dos povos e à afirmação identitária.
Escritores indígenas entendem a importância de praticarem um ativismo literário para cons-
truir outras histórias no país.

As histórias que emergem da prática escritural desses sujeitos mostram que, além
do espaço físico da aldeia, outros territórios precisam ser conquistados e demarcados, seja
no mercado literário, na produção intelectual acadêmica, nos museus, entre outros. Por uma
presença indígena nos espaços, os autores buscam circular por diversos lugares hegemônicos
e difundir as próprias perspectivas.
Não podemos esquecer que antes da produção indígena ser expressa por meio
da escrita alfabética e adquirir o formato de livro, sempre houve práticas literárias orais e
diferentes formas de escritura nas comunidades. Seja nos cantos entoados nos rituais, ou nas

1 GRAÚNA, Graça. Poéticas indígenas: lugar, identidade e memória. In:_. CHAGAS, Silvania (Org.). Nas fronteiras da
linguagem: língua, literatura e cultura. Salvador: Edufba, 2017, p. 200.

Sumário 148
histórias ancestrais narradas, notamos que “a palavra indígena sempre existiu”2. A força da
palavra oral foi e ainda é responsável por, em muitas situações, salvaguardar a língua de
um povo e perpetuar saberes milenares. Trata-se de um modo de registro que se inscreve nos
corpos daqueles que cantam, narram e transmitem sabedorias antigas. Levando em conside-
ração a importância dessas palavras vivas e experimentadas no próprio corpo dos sujeitos,
Graúna entende que essas manifestações literárias constituem o período clássico desta pro-
dução, construídas de maneira coletiva3.
Outro modo de comunicar e transmitir saberes ocorre por meio da prática da es-
critura de maneira visual, fazendo uso de códigos relacionados aos contextos socioculturais
das comunidades. Esses sistemas gráficos de comunicação não se enquadram na noção de
escrita como registro da fala e de sons, pois são inscritos simbolicamente em vasilhas e te-
cidos; nas pinturas corporais; entre outros. São modos de escrever que também arquivam a
memória de um povo. Para Márcia Kambeba, “os grafismos tinham seu significado e eram
de fácil leitura e interpretação entre todos. A arte de desenhar não indicava apenas beleza,
mas comunicação pelo imagético. Por desenhos demonstravam sentimentos, informações”4.
Ou seja, no gesto de inscrever símbolos no corpo, artefatos, e outros diferentes suportes, os
indígenas sempre escreveram de seu modo. Isso porque “apreendemos com os nossos an-
ciãos, as nossas anciãs, que os colares, as esteiras, as pulseiras, as redes que nos embalam e
outros artefatos que tecemos fazem parte da nossa escritura. Temos essa ciência”5. Sabedo-
rias ancestrais se fazem presentes nessa forma de exercer as escrituras.
O cenário das produções orais e escritas em outras linguagens começa a se alterar
com a implantação da educação escolar nas aldeias, momento em que ocorre a apropriação
da escrita alfabética por esses sujeitos. Nesse contexto, emergem as literaturas de autoria
indígena, que continuam apresentando relação com os saberes orais, as línguas, a memória
e o pertencimento identitário.

Autoria indígena: demarcação de espaços na literatura

A construção da autoria indígena, em um primeiro momento, atende à neces-


sidade de elaborar material didático específico para ser utilizado nas escolas das comuni-
dades. Os professores indígenas tornam-se pioneiros dessa produção, já que vislumbram a
possibilidade de confeccionar livros com histórias e cantos tradicionais.
Maria Almeida explica que, desde 1979, há um movimento literário empreendido
por educadores que se tornam escritores e coordenam a elaboração de diversos materiais
textuais6. Essas publicações são o alicerce para a construção de uma educação diferenciada
e intercultural, pois os saberes da aldeia são registrados de forma escrita para dialogar com

2 GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013, p. 54.
3 GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.
4 KAMBEBA, Márcia Wayna. Literatura indígena: da oralidade à memória escrita. In:_. DORRICO, Julie et al (Orgs.).
Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção [recurso eletrônico]. Porto Alegre, RS: Editora
Fi, 2018, p. 39.
5 GRAÚNA, Graça. Dos saberes indígenas: nosso papel também é fazer arte. Revista Literatura em debate, v. 12, n. 22,
p. 228, jan./jul. 2018.
6 ALMEIDA, Maria Inês de. Desocidentada: experiência literária em terra indígena. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2009.

Sumário 149
os conhecimentos hegemônicos introduzidos pela escola. Existe, portanto, uma motivação
política que guia o trabalho desses sujeitos:
[...] os índios, pelo esforço de instituição de sua educação escolar, estão entrando em
relação com a chamada cultura letrada de forma contraditória, crítica, porque o que
dão a ver na dimensão literal de suas culturas é o que seus escritores fazem repre-
sentar, em suas próprias expressões e línguas. E não mais o que os conquistadores,
pesquisadores, missionários teimam em ver, para além dos textos concretamente
apresentados, em suas muitas formas de escrita ou oralidade, desde o início da co-
lonização.7

Os gestos de autorrepresentação rasuram a produção colonial sobre os povos


originários, que ainda se impõe para aprendizagem nas escolas, e constroem outras possi-
bilidades de leitura a partir de textos de autoria indígena. Com essa apropriação da escrita
alfabética, as publicações conseguem mostrar uma visão de dentro da comunidade acerca
das próprias culturas. Em um projeto coletivo, reunindo também alunos e os sábios das al-
deias, os educadores confeccionam livros que traduzem um pouco do universo cultural de
cada povo originário do Brasil.
Os textos escritos pelos professores atendem a uma demanda prática da aldeia e
por vezes não alcançam outros espaços. Trata-se de uma literatura elaborada pelos indígenas
para a comunidade, no intuito de circular dentro desses territórios. Embora já demonstrem
transformações culturais em curso na relação oralidade/escrita e idioma indígena/língua
portuguesa, as textualidades são construídas por pessoas que vivem nas aldeias; estão próxi-
mas da tradição, do pensamento e do saber literário próprio daquele espaço.
Paralelamente à prática escritural realizada nas aldeias, indígenas com constru-
ções identitárias marcadas por deslocamentos articulam um projeto literário de autoria in-
dividual. Os sujeitos que demarcam outras configurações nas escritas indígenas vivenciam
diferentes situações de pertencimento: precisaram migrar de suas comunidades para as cida-
des; nasceram no espaço urbano, porém carregam em sua família a marca da ancestralidade;
ou vivem em trânsito entre a cidade e o contínuo retorno à aldeia. Essas situações modulam
experiências diversas que são inscritas no fazer literário.
A necessidade de expressar as próprias vivências impulsiona Eliane Potiguara
a construir sua poética indígena, que emerge na década de 1970. Filha de migrantes nor-
destinos de origem étnica Potiguara, a autora nasceu no Rio de Janeiro e constantemente
enfrenta um processo de negação de sua identidade como indígena pelo fato de não ter sido
criada na comunidade de seus ancestrais. Escrever a resistência do seu corpo como mulher
potiguara urbana, em uma época de extrema repressão no Brasil, é um ato político realizado
de maneira precursora:
Na época, muitos dos parentes de sua etnia e de etnias diferentes ignoravam e al-
guns desconhecem, ainda hoje, a existência de sua poesia. Contudo, a história de
resistência de sua família e de outros parentes indígenas e índio-descendentes foi a
gota d’água para Eliane Potiguara expor o poema “Identidade indígena”, escrito em
1975. É possível dizer que o referido poema inaugurou o movimento literário indí-

7 ALMEIDA, Maria Inês de. Desocidentada: experiência literária em terra indígena. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2009, p. 76.

Sumário 150
gena contemporâneo no Brasil e continua sugerindo um grito indígena em meio aos
contrapontos da palavra em 1975.8

O poema da autora se tornou uma semente que germinou e diversos outros escri-
tores foram surgindo após esse período. À primeira vista, a proposta de Potiguara e outros
agentes desse movimento se assemelha à noção de autobiografia, a qual se caracteriza prin-
cipalmente pelo gesto de falar de si no texto. No entanto, precisamos estar atentos para não
transpormos categorias críticas ocidentais para o texto literário indígena que está, na verda-
de,“gerando sua própria teoria”9. Entendendo a necessidade de revisar conceitos e pensar
em noções alternativas, Graça Graúna explica que o vocábulo autobiografia apresenta uma
perspectiva ocidental, não conseguindo dar conta de explicar as produções autorais indíge-
nas. Isso porque, embora o indivíduo trate de suas vivências, estas são vinculadas aos povos
indígenas; logo, o individual e o coletivo estão conectados.
Para Graúna, o termo auto-história é mais adequado para as reflexões sobre o
trabalho desses autores10. A noção é pensada e discutida pelo ameríndio Georges Sioui, do
povo Horum (Canadá), ao propor uma reconstituição do discurso historiográfico a partir do
ponto de vista indígena11. A crítica potiguara retoma essa ideia no contexto das produções
indígenas no Brasil, acreditando que “a auto-história implica a crítica/escritura, história/
memória do indivíduo da nação indígena”12. Ou seja, nessa perspectiva, trata-se de escrever
poemas e narrativas falando do “eu” (indivíduo) indissociável do “nós” (nação indígena).
A ligação entre ambos por vezes demonstra que falar do coletivo é emitir discurso sobre
si, assim como tratar de sua existência é dizer que esta é vinculada ao grupo. Portanto, a
auto-história, como uma categoria crítica discutida por ameríndios (Georges Sioui e Graça
Graúna), apresenta um importante potencial analítico para o estudo dessas produções.
Qual a importância de as auto-histórias indígenas serem lidas pela sociedade na-
cional? Kaká Werá afirma a necessidade de “a sociedade ouvir diretamente a voz de um
intelectual, de um cidadão, de um pensador, de um curador, de um contador de histórias
vindo de um povo indígena”13. Até porque, nesse processo se inicia o reconhecimento da
cidadania indígena, pouco respeitada no país, mas que está sendo conquistada pelos agentes
do movimento que buscam o diálogo com os não indígenas. Os escritores atuam como me-
diadores culturais: promovem encontros, feiras para divulgar suas produções; estabelecem
parcerias com editoras do mercado hegemônico; difundem a importância dos conhecimen-
tos ancestrais para construirmos uma sociedade mais justa, entre outros. Com isso, os auto-
res não apenas escrevem; estão inseridos também em uma série de atividades que contribui
para esses nomes e rostos saírem do apagamento histórico e mostrarem suas vozes plurais,
indispensáveis na constituição deste país.

8 GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições,
2013, p. 78-79.
9 GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013, p. 16.
10 GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013, p. 63.
11 SIOUI, Georges. Pour une autohistoire amérindienne: essai sur les fondements d’une morale sociale. 4 tir. Canada:
Les Presses de l’Université Laval, 1989.
12 GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013, p. 61.
13 WERÁ, Kaká. Entrevista concedida a Sérgio Cohn. Trajetória de um mensageiro-relâmpago. In:_. Kaká Werá. Rio de
Janeiro, Beco do Azougue editorial. Coleção Tembetá, 2017, p. 26.

Sumário 151
Cabe lembrar que a autoria indígena tem demarcado espaço não apenas na litera-
tura, mas também no ambiente acadêmico. Muitos escritores tiveram acesso à formação na
universidade, fazem pesquisa e causam tensões necessárias na produção científica. Monogra-
fias, dissertações e teses escritas na perspectiva indígena têm enriquecido consideravelmente
diferentes campos do saber, trazendo olhares plurais que causam fissuras no conhecimento
ocidental hegemônico. Um exemplo importante desse processo é o livro Contrapontos da lite-
ratura indígena contemporânea no Brasil (2013), fruto da tese de doutorado de Graça Graúna,
uma obra pioneira na análise das produções autorais indígenas a partir da perspectiva de
uma integrante do grupo. O estudo questiona as representações estereotipadas do indígena
no cânone da literatura brasileira ao mesmo tempo em que apresenta e analisa textos em
verso e prosa escritos por autores indígenas. O trabalho enriquece os estudos no campo da
literatura, tornando-os mais atentos à diferentes manifestações literárias no Brasil que não
podem continuar sendo ignoradas e esquecidas.
Dentro do movimento de demarcar espaços na literatura e na universidade, inse-
re-se o escritor Ytanajé Coelho Cardoso. Em sua obra, o autor nos convida para conhecer
diversas travessias realizadas por indígenas da nação Munduruku.

Canumã: travessias e temporalidades

Ytanajé Coelho Cardoso é filho do povo Munduruku do Amazonas. Possui gra-


duação e mestrado em Letras e Artes, pela Universidade do Estado do Amazonas. Atual-
mente, cursa doutorado em Educação, na Universidade Federal do Amazonas14. Além de
escritor, Cardoso produz conhecimento científico com publicações voltadas para educação
e línguas indígenas, especialmente o idioma munduruku. Com isso, podemos afirmar que
o trabalho do autor tanto amplia o campo da literatura brasileira contemporânea, quanto
expande as investigações nas áreas de Linguística e Educação.
O livro de estreia do autor se intitula Canumã: a travessia (2019), que desde a capa
reivindica a autodenominação “romance munduruku”. Mas o que significa escrever um ro-
mance munduruku? Trata-se de ficcionalizar um universo cultural do qual o autor faz parte,
utilizando suas vivências para produzir a obra. O gesto busca imprimir a auto-história de
Ytanajé Cardoso no plano da escrita.
A aldeia Kwatá, às margens do rio Canumã, é o espaço no qual se desenvolve
a maior parte da trama. O cotidiano de uma família munduruku embala a narrativa, mos-
trando a necessidade constante de essas personagens atravessarem o rio em uma canoa para
trabalhar na roça e, assim, garantir a própria alimentação. Canumã é mais do que um ele-
mento da natureza, possui características humanas. Isso porque oferece comida (peixes),
contribuindo para que as personagens estejam vivas: “o Canumã, majestoso e generoso, é o
grande senhor das conquistas”15. O rio se torna, portanto, um ser vivo fundamental na tra-
ma, já que ele permite as travessias.
Maria e Antônio, seus filhos, outros familiares e moradores da comunidade estão
em relação na história, com características próprias, sendo que cada personagem tem sua

14 CARDOSO, Ytanajé. Currículo Lattes. Disponível em: < http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do >.


Acesso em: 26 ago. 2020.
15 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, 2019, p. 10.

Sumário 152
vivência e pensamento acerca de continuar morando na aldeia. Especialmente os anciãos,
acreditam que permanecer no território é a melhor forma de garantir uma vida digna; mas o
casal discorda e por vezes defende que migrar para a cidade permite outras possibilidades de
formação aos seus filhos. É interessante observar como essas diferentes vozes se articulam
na trama, já que as perspectivas evidenciam posicionamentos ancestrais e contemporâneos
ligados às gerações e à influência da cultura ocidental na comunidade.
A primeira personagem que nos interessa analisar é Felipe, o narrador em primei-
ra pessoa do romance. Pelos comentários realizados na história, notamos que Felipe narra
os acontecimentos a partir de uma distância temporal, pois rememora cenas da época de sua
infância e adolescência. Ao mesmo tempo em que apresenta esta memória, demonstra que
no presente se encontra distante da aldeia Kwatá:
Nos tempos atuais, pratico apenas exercícios intelectuais não mais calafetando ca-
noas, mas calafetando as crateras que se abrem no desentendimento entre um dis-
curso e outro. Agora procuro pescar e digerir conceitos, não mais para meus irmãos
consanguíneos, e sim para meus irmãos universais, e quando digo universal, quero
dizer exatamente isso. No leito das crenças munduruku, até um tatu é digno de hu-
manização.16

Ao falar de si no presente, o narrador utiliza uma linguagem acadêmica, que evi-


dencia o novo lugar ocupado socialmente. O trabalho intelectual realizado na universidade
é fruto de uma formação fora da comunidade, em intenso contato com os pariwát (brancos,
na língua do povo). No entanto, um questionamento emerge dessa situação: como continuar
sendo munduruku nos espaços ocupados majoritariamente pelos pariwát? Nesse trecho, a
personagem responde essa pergunta ao afirmar que o diálogo conceitual que elabora inclui
muitas gentes, seguindo a filosofia munduruku.
Há uma mudança significativa quando o trabalho braçal com a canoa – algo
tão comum na juventude e que alimentava a sua família – é substituído por uma atividade
intelectual. Felipe agora se debruça sobre conceitos e teorias, buscando dialogar com um
número maior de pessoas na academia. A efetividade prática desse trabalho ocorre no plano
de oferecer aos não indígenas uma compreensão sobre a cultura munduruku desconstruindo
estereótipos, até mesmo mostrando como a filosofia deste povo é fundamental para o respei-
to a todos os seres que habitam o planeta.
Ao escutar a sabedoria dos mais velhos narrada em histórias, Felipe conseguia
guardar esses ensinamentos em sua memória. Por isso, possui a habilidade de transmitir as
narrativas que ouvia: “posso não reproduzir cada palavra que ouvi enquanto criança, mas
certamente aquelas imagens, os ensinamentos dos velhos e a meticulosidade com que en-
talho minhas lembranças na História me legitimam a reproduzir tais discursos como se eu
estivesse lá”17. Trata-se de uma reconstituição a partir das palavras gravadas na memória,
que fazem referência às diferentes histórias contadas na aldeia, sejam de assombração; figu-
ras ancestrais que se transformavam em outros animais; episódios de caçadas na floresta; ou
até mesmo de fatos datados. Aqui cabe lembrar que essas narrativas reúnem tanto um tempo

16 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, p. 15.


17 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, p. 40.

Sumário 153
antigo, momento de criação do universo; quanto épocas marcadas em datas, acontecimentos
que expõem a presença dos pariwát na aldeia.
O narrador percebe uma diferença entre a forma de transmitir as histórias para a
sua geração e a maneira como essa prática acontecia na época dos anciãos: “a uns noventa
anos atrás tudo era contado na língua munduruku, mas essa língua, atualmente, já não é uti-
lizada com tanto vigor como antes. Isso se deve ao contato estrondoso ocorrido em tempos
de colonização”18. Ou seja, a violenta influência da cultura colonizadora provoca a perda de
elementos simbólicos importantes, tal como nota-se no próprio idioma. Cabe lembrar que
“esse processo de colonização deixou um abismo na compreensão do que era e do que é o
povo munduruku do rio Madeira”19. Essas transformações culturais induzem a pensar que
esta nação teve sua cultura totalmente apagada em virtude do contato com os não indígenas.
Porém, há um fenômeno cultural que nos ajuda a compreender essa situação: a transcultu-
ração.
Estudando os efeitos das dinâmicas culturais em Cuba, Fernando Ortiz, em 1940,
cunha o termo transculturação, tendo em vista a complexidade deste processo20. Não houve
a imposição total de uma cultura dominante sobre as práticas do subalternizado, acarretan-
do total perda dos valores simbólicos dessas sociedades. Os deslocamentos deste processo
demandam uma compreensão mais ampla, para além de um gesto passivo:
Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as fases do processo
de transição de uma cultura para outra, porque este processo não consiste somente
em adquirir uma cultura diferente, o que, a rigor, significa o vocábulo anglo-saxão
acculturation, porém o processo implica também, necessariamente, na perda, no de-
senraizamento de uma cultura anterior, o que se poderia chamar de uma descultu-
ração parcial, e, além do mais, significa a criação consequente de novos fenômenos
culturais, que se poderiam denominar neoculturação.21

As perdas que acontecem com as raízes culturais conduzem a fenômenos de con-


taminação, que demonstra a sobrevivência desses valores. Ou seja, não se trata apenas de
adquirir uma cultura diferente, abandonando o próprio sistema de práticas, mas sim há um
potencial ativo e criativo nesse processo, que ultrapassa a ideia de uma simples absorção.
Este pensamento é importante para se refletir sobre o contexto não apenas de Cuba, mas
também de toda América Latina, tendo em vista que os conflitos culturais estruturam essas
sociedades.
Para Ángel Rama, o conceito é fundamental para a compreensão das produções
literárias e artísticas latino-americanas, por isso se apropria do termo pensando em uma
“transculturação narrativa”22. O autor acredita que o termo expressa um gesto de resistên-
cia do oprimido, pois demonstra “um esforço de recomposição, manuseando os elementos

18 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, p. 42.


19 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, p. 42.
20 ORTIZ, Fernando. Del fenómeno de la “transculturación” y de su importancia en Cuba/Do fenômeno social da trans-
culturação e sua importância em Cuba. Trad. Lívia Reis. In: ORTIZ, Fernando. El contrapunteo cubano del azúcar y del
tabaco. Cuba: Editorial de ciencias sociales, La Habana, 1983. p. 86-90.
21 ORTIZ, Fernando. Del fenómeno de la “transculturación” y de su importancia en Cuba/Do fenômeno social da trans-
culturação e sua importância em Cuba. Trad. Lívia Reis. In: ORTIZ, Fernando. El contrapunteo cubano del azúcar y del
tabaco. Cuba: Editorial de ciencias sociales, La Habana, 1983, p. 90.
22 RAMA, Angel. Transculturación narrativa en América Latina. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones El Andariego, 2008.

Sumário 154
sobreviventes da cultura originária e os que vêm de fora”23. Esse movimento se imprime li-
terariamente, pois há escritores transculturadores que demonstram em suas obras diferentes
conflitos que compõem as dinâmicas culturais, tais como “perdas, seleções, redescobrimen-
tos e incorporações. Essas quatro operações são concomitantes e se resolvem todas dentro
de uma reestruturação geral do sistema cultural, que é a função mais alta que se cumpre no
processo transculturante”24. Os quatro procedimentos citados por Rama se fazem presentes
na obra de Ytanajé Cardoso e na percepção de Felipe acerca das transformações da cultura
munduruku, que operam na perda da língua indígena para o uso do português, por exemplo.
Notar que está em curso na aldeia uma fase de desculturação parcial (Ortiz) e
perdas (Rama) preocupa o narrador em suas reflexões sobre o futuro da comunidade: “[...]
mas parece que hoje, na medida em que o conhecimento do não indígena, suas tecnologias e
seu modus operandi, adentram o cotidiano dos munduruku [...] parece que as estruturas mile-
nares se descaracterizam, tornando-se cada vez mais claudicantes”25. As análises que Felipe
constrói no presente são importantes para entender como essas transformações funcionam e
maneiras de revitalizar a língua, fortalecer as tradições. Na condição de pesquisador e estu-
dioso, o narrador pode pensar em formas de contribuir para que as pessoas da comunidade
ajam de maneira intercultural, incorporando esses elementos de fora em uma estratégia de
apropriação útil para própria cultura.
A compreensão de Felipe sobre as dinâmicas culturais se intensifica ao lembrar
de uma cena. A imagem, em uma caçada, da luta entre duas cobras (uma cutimboia e uma
coral verdadeira, sendo que a primeira consegue devorar a última) provoca reflexões que
mostram como narrador e autor se confundem na tessitura da história:
Nunca consegui tirar aquele episódio dos meus pensamentos, mesmo depois de uns
trinta e dois anos, aproximadamente. Uma verdadeira dança das estruturas [...] num
processo de incorporação violento. Estruturas mais fracas sucumbem diante de ou-
tras mais poderosas. Só depois de muito refletir é que consegui interpretar aquela
imagem de acordo com a realidade atual dos povos indígenas e, ainda assim, faltan-
do um mês para a defesa da minha dissertação de mestrado, consigo enxergar pos-
sibilidades de visões do mundo, tanto do nosso como do dos pariwát. Talvez tenha-
mos imagens mais amistosas daqui para frente, já que estamos num outro plano da
cadeia biológica. Não somos cobras, somos pessoas. Infelizmente, no outro plano,
nós temos uma cutimboia; ela está com muita fome e, para saciar tal fome, é capaz
de se tornar um monstro [...]. É verdade que a cutimboia já comeu bastante, e isso a
tornou forte, visível, temível, despudorada, cega.26

A partir de uma cena, Felipe elabora uma analogia com a situação de as culturas
indígenas estarem sendo devoradas pela sociedade dominante, a qual, neste caso, desem-
penha a função da cutimboia. Essa cobra há séculos ferozmente pratica a devoração e isso
a cegou, a ponto de não perceber o quanto estava se autodestruindo. Se pensarmos que o
sistemático genocídio e etnocídio dos povos originários torna a natureza mais vulnerável
23 “Un esfuerzo de recomposición, manejando los elementos supervivientes de la cultura originaria y los que vienen de
fuera” (RAMA, 2008, p. 45).
24 RAMA, Angel. Transculturación narrativa en América Latina. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones El Andariego, 2008,
p. 47.
25 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, 2019, p. 51.
26 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, 2019, p. 70.

Sumário 155
e explorada por interesses financeiros, o próprio habitat da cutimboia também está sendo
destruído, acarretando a extinção do animal em um futuro próximo. A cobra precisa alterar
a forma como se relaciona com os seres vivos em seu entorno.
Seria possível uma mudança nessas relações para a construção de “imagens mais
amistosas”? O narrador acredita que existe uma alteração em curso, pois ele admite enten-
der o funcionamento desse conflito às vésperas da defesa de sua dissertação. Circunstância
simbólica, pois mostra que agora o narrador e outros indígenas entendem que os espaços
dos pariwát podem ser devorados. Se a universidade foi um lugar de se apropriar dos conhe-
cimentos indígenas, matando simbolicamente os corpos produtores desses saberes, com a
presença desses sujeitos no espaço ocorre um processo de ressignificação. Isso porque os
indígenas podem absorver essa prática intelectual e transformá-la em arma contra as futuras
e contínuas tentativas de imposição da cutimboia.
Para Ester, as mudanças que estão acontecendo na aldeia eram impensáveis em
algumas gerações anteriores e enfraquecem a cultura. A avó de Felipe é uma anciã narradora
de histórias milenares, sempre em busca de alguém que possa ouvi-la. Ela representa sim-
bolicamente a voz da ancestralidade, que frequentemente tem sido ignorada pelos jovens. A
ausência de escuta a preocupa, pois esse fator é responsável pelo possível apagamento total
dos valores da comunidade. A sabedoria ancestral precisa ser transmitida e a anciã continua
se comunicando em língua munduruku, almejando despertar o interesse dos mais jovens:
- Xik abik Filipe, gã kapedi cekun! – Assim falava minha avó.
- Bença, vó!
- Karosakaybo jaeima bisão!
Era comum vovó convidar, cumprimentar e até mesmo ensinar as pessoas em sua
língua materna, o munduruku. Ela vivia se queixando que a língua estava morrendo
e que os jovens não estavam aprendendo, e isso era uma grande tristeza para ela, já
que durante a infância seus direitos de falar em munduruku foram tirados pela força
da colonização. Agora pelejava para ensinar o mínimo possível às novas gerações.27

A personagem testemunhou uma mudança que fragiliza o povo: o munduruku


não era a língua materna das gerações posteriores a anciã. Além disso, muitas pessoas na
comunidade não entendem a importância de aprender o idioma, que carrega os fundamen-
tos de ser munduruku e dos conhecimentos transmitidos oralmente. A desvalorização da
língua e sua progressiva falta de uso provoca efeitos devastadores nessa sabedoria, visto que
a multiplicidade de histórias antigas contadas pela anciã estavam se extinguindo, muitas
desaparecendo ao acompanhar o movimento realizado pelo idioma.
Ser testemunha de uma transição, da época em que apenas se falava munduruku
para o momento em que o português é imposto na comunidade, se configura como um trau-
ma para Ester:
- Ah, meu filho! Naquela época não existia pariwát por aqui. Os filhos respeitavam
os pais, bastava olhar de banda, aí o filho já entendia o pai. Todo mundo falava na
língua munduruku. Eu não sabia falar português, quase ninguém sabia. Só começa-
ram a falar português quando chegou pra cá um grupo de pariwát que não queria que
ninguém falasse a língua não. Eles maltratavam as crianças, castigavam. [...] Muita

27 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, 2019, p. 50.

Sumário 156
gente já estava falando português, eu mesmo já só falava português, mas eu nunca
perdi a língua, eu só tinha vergonha de falar perto dos missionários.28

Utilizar o idioma ancestral, apesar de toda a repressão imposta para que apenas o
português fosse falado, consiste em uma resistência discursiva da anciã. No artigo intitulado
“Habitus, dialogismo e resistência no discurso das últimas falantes da língua munduruku do
Amazonas”, Ytanajé Cardoso mostra que Ester Cardoso existe na aldeia Kwatá, tendo sido
ficcionalizada no romance; e é uma das últimas falantes do idioma. Ela “faz parte de uma
geração de anciãs que nasceu falando somente o munduruku, vindo a aprender o português
um pouco ainda na adolescência”29, circunstância narrada no livro. Para o autor, o discurso
de resistência e o discurso de ancestralidade se articulam nas vozes de Ester e outras anciãs
que são memórias vivas do idioma munduruku:
Vale ressaltar que o contexto referido aqui é o momento de transformação no cam-
po cultural e político da aldeia Kwatá, especificamente dos discursos de resistência
emergentes: o discurso da ancestralidade. Por discurso da ancestralidade, entende-
mos os enunciados que se constituem pelas vozes das anciãs e pelas vozes que se
constituem a partir dos enunciados engendrados pelas próprias anciãs, agentes da
comunicação.30

Como agente da comunicação na própria língua, Ester conseguiu se tornar bilín-


gue. Esse gesto demonstra a recusa de abandonar o munduruku, mesmo tendo sido obrigada
a usar o idioma colonizador. Continuar reproduzindo a língua na comunidade, entendendo
que ela foi herdada dos ancestrais e contém fundamentos importantes da cultura do povo,
demonstra a resistência da anciã, a qual insiste para a aldeia revitalizar o idioma.
O receio de que os valores culturais munduruku se perdessem conduz Ester a
tecer críticas quando a televisão é introduzida na aldeia, pois “dizia ela que esse ‘negócio
do homem branco’ era coisa do maligno e que não fazia bem pro povo”31. Não fazia bem
porque oferecia costumes outros, principalmente aos jovens que começam a desejar repro-
duzir o que é visto na televisão. De certa forma, o aparelho contribuía para apagar práticas
milenares e ensinava comportamentos que também provocavam o esquecimento do sistema
cultural munduruku.
A sabedoria da anciã foi construída no território, no contato com as gerações
anteriores, não havendo a necessidade de se deslocar da sua aldeia para se tornar mestre
nos conhecimentos munduruku. A aldeia é um lugar importante para Ester, nunca houve
ambição de morar na cidade. E talvez por isso haja um choque de visões quando Felipe re-
torna da universidade, acreditando que os espaços fora da comunidade são melhores do que
a vivência na própria aldeia. O narrador reproduz uma visão etnocentrista, aprendida na
interação com os não indígenas. Mas a anciã sagazmente interrompe o neto para expor sua
filosofia de vida baseada nos costumes do povo:

28 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, 2019, p. 54.


29 CARDOSO, Ytanajé. Habitus, dialogismo e resistência no discurso das últimas falantes da língua munduruku do Ama-
zonas. Revista Moara, Edição 50, ago - jun 2018, p. 129.
30 CARDOSO, Ytanajé. Habitus, dialogismo e resistência no discurso das últimas falantes da língua munduruku do Ama-
zonas. Revista Moara, Edição 50, ago - jun 2018, p. 134-135.
31 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, 2019, p. 52.

Sumário 157
- Filipe, é tu que está aí?
- Uhmhum
- Que tu está fazendo aí, já?
- Estou olhando aquelas fotos ali na parede! A senhora colou tudo aí, né?
- Poisé, meu filho, eu senti muita saudade de vocês. Eu cheguei a chorar de saudade!
Vocês não davam notícia, não passavam rádio!
- Poisé, vovó, estávamos tentando conseguir alguma coisa por lá. A gente aqui vive
longe de tudo...
- Como assim longe? Longe do quê? A nossa família está tudo aqui, nosso rio, nossa
floresta, nossa cultura. A gente está longe do quê? O que é que tem lá pra fora que é
melhor do que aqui? A água lá é mais gostosa, a comida é melhor? As mulheres e os
homens são mais bonitos? Quem decide o que é bonito? A fala deles é mais bonita?
O trabalho...?.32

Com uma linguagem marcada pela oralidade (Filipe, poisé, pra, entre outros),
Ester questiona a hierarquização que seu neto aprendeu na cidade, como se este lugar fosse
superior à aldeia. Felipe estabelece essa relação etnocentrista porque conheceu o universo
dos pariwát. No caso da anciã, ela recusa a ideia de que o seu território seria isolado, atra-
sado e outras características negativas. Isso porque a cultura munduruku é o suficiente para
Ester viver bem, feliz e satisfeita com seu pertencimento identitário. No ápice de seus ques-
tionamentos, ela pergunta: “quem decide o que é bonito?” Nessa frase, a anciã tensiona a
ordem de poder estabelecida porque acredita que na própria comunidade há pessoas bonitas
e correspondem à noção de beleza da aldeia. Não é necessário se enquadrar nos padrões
hegemônicos; ela não almeja ser igual às pessoas da cidade, gosta de ser diferente, de ser
Munduruku morando na aldeia Kwatá.
O diálogo mostra um conflito entre gerações, que foram educadas em espaços
diferentes, apresentando pensamentos que divergem. Na perspectiva de Felipe, o lugar onde
nasceu e foi criado se tornou atrasado em relação à cidade e às possibilidades de comuni-
cação que o ambiente urbano proporciona. Mas Ester entende que essa classificação é uma
forma de inferiorizar as vivências dentro da aldeia, por isso tece inúmeros questionamentos
no intuito de mostrar a fragilidade do pensamento hierarquizado da cultura hegemônica.
Após a exposição da anciã, Felipe consegue perceber a arrogância por trás de sua frase e se
questiona sobre como o saber acadêmico contribuiu para que reproduzisse as ideias hierar-
quizantes da sociedade dominante.

Considerações finais

O trabalho artístico-literário de autores indígenas têm mostrado que escrever é


uma forma de salvaguardar a memória e potencializar a oralidade. A produção escrita emer-
ge de diferentes demandas: confeccionar materiais didáticos para uso nas aldeias; transfor-
mar em versos as dores pela negação do pertencimento identitário; ficcionalizar vivências
como integrante de um povo indígena. E múltiplos outros caminhos que essas produções
nos conduzem e apontam.
Ytanajé Cardoso se insere neste movimento por meio da construção de um ro-
mance. Na verdade, seus textos acadêmicos estão em sintonia com a produção literária,
32 CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, 2019, p. 189.

Sumário 158
ambos mostrando o exercício de um ativismo em prol da nação Munduruku. Em Canumã: a
travessia (2019), notamos que a auto-história de Cardoso é inscrita na trama. Outros termos,
como transculturação, transculturação narrativa e travessias, são noções que nos ajudam
a compreender os fenômenos culturais e anseios das personagens que se desenvolvem na
história. As trajetórias de Felipe e sua avó Ester ilustram a existência de transformações
inevitáveis na comunidade.
Na condição de narrador, Felipe consegue analisar os acontecimentos a partir de
uma distância temporal. Adulto e com formação acadêmica, rememora o tempo em que era
mais jovem e foi criado dentro da aldeia. Sua linguagem é mais rebuscada e reflexiva na bus-
ca de entender as dinâmicas culturais: perda da língua munduruku; mudança de costumes;
entre outros. Já Ester, por ser uma anciã, é a voz da ancestralidade que ainda salvaguarda
o idioma originário e insiste no fortalecimento da cultura do povo. Assustada, observa as
mudanças acontecerem e se preocupa, pois almeja que os valores munduruku não sejam
apagados diante de tantas influências dos não indígenas. A personagem é mestre nos conhe-
cimentos de seu povo e acredita na importância de os munduruku aprenderem novamente a
língua e cultivarem os valores culturais.
Podemos afirmar que Felipe apresenta características de Ytanajé; assim como
Ester é uma personagem homônima a uma anciã que existe. Logo, o fictício constrói sólidas
relações com o universo exterior à narrativa, seja em lugares, personagens, acontecimentos,
entre outros. Porém, é válido destacar que esta é uma estratégia narrativa do autor para cau-
sar desconfiança no leitor a ponto de não conseguirmos distinguir o fictício e o real, embora
ambos sejam trabalhados no plano do imaginário.
Dessa forma, as travessias se fazem presentes no romance, especialmente em Feli-
pe e Ester. O processo se desenvolve nos campos geracional, linguístico e epistemológico. As
novas gerações já têm o português como língua materna e estão mais inclinadas a migrarem
para as cidades em busca do saber dos pariwát. Há uma vontade de querer ser o outro. Mas
como se apropriar dos conhecimentos dominantes e ao mesmo tempo não apagar a própria
identidade munduruku? É possível realizar esse gesto por adição, em busca de transitar
entre línguas e saberes. Ytanajé e Felipe entenderam essa estratégia de devorar a influência
externa para valorizar a cultura munduruku, seja em pesquisas acadêmicas, projetos de re-
vitalização da língua e na escrita literária.

Referências
ALMEIDA, Maria Inês de. Desocidentada: experiência literária em terra indígena. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2009.
CARDOSO, Ytanajé. Canumã: a travessia. Manaus: Editora Valer, 2019.
CARDOSO, Ytanajé. Currículo Lattes. Disponível em: < http://buscatextual.cnpq.br/buscatex-
tual/busca.do >. Acesso em: 26 ago. 2020.
CARDOSO, Ytanajé. Habitus, dialogismo e resistência no discurso das últimas falantes da língua
munduruku do Amazonas. Revista Moara, Edição 50, ago - jun 2018. Disponível em: < https://
core.ac.uk/download/pdf/267988232.pdf >. Acesso em: 29 ago. 2020.
GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte:
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Sumário 159
GRAÚNA, Graça. Dos saberes indígenas: nosso papel também é fazer arte. Revista Literatura em
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php/literaturaemdebate/article/view/2936/2471 >. Acesso em: 20 ago. 2020.
GRAÚNA, Graça. Poéticas indígenas: lugar, identidade e memória. In:_. CHAGAS, Silvania (Org.).
Nas fronteiras da linguagem: língua, literatura e cultura. Salvador: Edufba, 2017, p. 195-201.
KAMBEBA, Márcia Wayna. Literatura indígena: da oralidade à memória escrita. In:_. DORRICO,
Julie et al (Orgs.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção [recur-
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1983. p. 86-90.
RAMA, Angel. Transculturación narrativa en América Latina. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones El
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SIOUI, Georges. Pour une autohistoire amérindienne: essai sur les fondements d’une morale socia-
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WERÁ, Kaká. Entrevista concedida a Sérgio Cohn. Trajetória de um mensageiro-relâmpago. In:_.
Kaká Werá. Rio de Janeiro, Beco do Azougue editorial. Coleção Tembetá, 2017. p. 15- 35.

Sumário 160
“O O utro do outro ”: considerações
iniciais sobre representações
de mulheres negras em veículos
acreanos de comunicação

Jaine Araújo da Silva


Francielle Maria Modesto Mendes

E
ste artigo está vinculado a uma pesquisa de mestrado, atualmente em es-
tágio inicial, que objetiva estudar três veículos de comunicação acreanos,
os sites Contilnet Notícias, G1 Acre e Notícias do Acre – sendo o último um
veículo de assessoria de comunicação vinculado ao governo do estado.

Contudo, neste momento inicial, discute-se, em uma revisão bibliográfica, como


o jornalismo, enquanto forma de conhecimento, constituinte da história do presente e pro-
dutor, reprodutor e difusor de representações pode ser uma ferramenta tanto para fortalecer
as representações hegemônicas, e na maioria das vezes problemáticas, quanto para mobili-
zar novas formas de representar, sobretudo sujeitos marginalizados socialmente.
Para tanto, é abordada a noção de jornalismo como forma de conhecimento.
Além disso, é estudado o conceito de representação. No segundo momento, é feita uma
apresentação da formação social do estado do Acre, com foco nas discussões sobre pessoas
negras. Por fim, discutem-se as dinâmicas que envolvem os conceitos de raça e gênero, de-
sembocando no conceito de interseccionalidade, a fim de explorar o locus social específico
ocupado por mulheres negras.
Apesar de, como argumenta Eduardo Meditsch1, ser difícil mensurar em que me-
dida o Jornalismo de fato influencia as percepções e a vida de quem o consome, o estudo das

1 MEDITSCH, Eduardo. O jornalismo é uma forma de conhecimento? Biblioteca Online de Ciências da Comunicação
– BOCC, 1997.

Sumário 161
representações mobilizadas pelos profissionais deste ofício pode ser levado em conta para
pensar como sujeitos marginalizados/oprimidos – no caso, as mulheres negras –, são postos
no debate público.
Ademais, a partir de pesquisas centradas nos estudos das representações podem
ser pensados outros estudos que objetivem investigar os efeitos delas nos atores envolvidos
no processo comunicacional – veículos de assessoria de comunicação, de jornalismo e públi-
co –, constituindo, assim, uma rede de produção de conhecimento que nos possibilite pensar
alternativas para as realidades que se apresentam na prática jornalística, tendo em vista que
o significado não é fixo, portanto, as representações podem e devem ser constantemente
objeto de reflexão e autocrítica dos profissionais do jornalismo.

Jornalismo como forma de conhecimento

Eduardo Meditsch defende a hipótese de que o Jornalismo constitui uma forma


de produção do conhecimento que, na prática, tem tanto a capacidade de reproduzir outros
saberes quanto de degradá-los. O autor faz uma exposição de três abordagens de interpreta-
ções acerca do jornalismo enquanto produtor de conhecimento.
A primeira abordagem entende o conhecimento “não como um dado concreto,
mas como um ideal abstrato a alcançar”2. Tendo a ciência como esse ideal abstrato, a abor-
dagem conclui que o jornalismo não produz conhecimento válido, atua apenas na degra-
dação do saber. A segunda situa o jornalismo como uma ciência menor, mesmo admitindo
que não seja inútil. Meditsch explica que essa abordagem foi registrada em um artigo escrito
pelo ex-jornalista e sociólogo do conhecimento Robert Park, na década de 1940:
A partir da perspectiva filosófica do pragmatismo de William JAMES, que abandona
o conhecimento como um ideal para observá-lo como um dado da vida humana,
concluindo que as pessoas e as coletividades lidam simultaneamente em suas vidas
com várias espécies de conhecimento, PARK começa a definir o Jornalismo a partir
do que tem de diferente, do que lhe é específico como forma de conhecimento da
realidade.3

Por fim, a terceira abordagem apresentada pelo autor compreende que o Jornalis-
mo não é deficitário no modo como revela a realidade em relação à ciência: apenas revela de
modo diferente. Além disso, o Jornalismo reproduz o conhecimento de modo diferente, não
estando atrelado somente ao conhecimento que é produzido em seu âmbito, mas atuando
também na reprodução do conhecimento construído por outras instituições sociais, segundo
o autor.
O jornalismo opera no campo lógico da realidade dominante e essa característica
lhe confere tanto fragilidade quanto força de argumentação, conforme Meditsch:
É frágil, enquanto método analítico e demonstrativo, uma vez que não pode se des-
colar de noções pré-teóricas para representar a realidade. É forte na medida em que
essas mesmas noções pré-teóricas orientam o princípio de realidade de seu público,
nele incluídos cientistas e filósofos quando retornam à vida cotidiana vindos de seus
campos finitos de significação. Em consequência, o conhecimento do jornalismo

2 Ibid., p. 2.
3 Ibid, p. 3.

Sumário 162
será forçosamente menos rigoroso do que o de qualquer ciência formal mas, em
compensação, será também menos artificial e esotérico.4

Além da crítica ao rigor, Meditsch (1997) aponta outra que o Jornalismo rece-
be: ele não conseguiria revelar o novo, como faz a ciência, pois a argumentação da notícia
parte de premissas oriundas do senso comum, ou seja, está baseada em conhecimentos que
o público supostamente já tem. O autor ressalta que o Jornalismo não é uma ciência, nem
sequer pode almejar sê-la: “Por um lado, o Jornalismo como forma de conhecimento é ca-
paz de revelar aspectos da realidade que escapam à metodologia das ciências [...] por outro,
é incapaz de explicar por si mesmo a realidade que se propõe a revelar”5.
Neste sentido, entende-se que o Jornalismo pode servir como fonte e objeto de es-
tudo da sociedade na qual está inserido e da qual, portanto, é fruto. A partir dele podem ser
estudados, nas diversas áreas do conhecimento, aspectos da vida desenvolvida ali, tomando
por foco de estudo questões sociais, culturais, históricas etc, embora o Jornalismo sozinho
não seja suficiente para aprofundar reflexões sólidas.
Assim como todas as formas de conhecimento, a produzida pelo Jornalismo é
condicionada histórica e culturalmente por seu contexto, além de receber influências subje-
tivas dos atores envolvidos em sua produção. Para Meditsch, a falta de transparência quanto
aos condicionantes que envolvem a produção jornalística é um dos principais problemas que
se apresentam, pois
A notícia é apresentada ao público como sendo a realidade e, mesmo que o público
perceba que se trata apenas de uma versão da realidade, dificilmente terá acesso aos
critérios de decisão que orientaram a equipe de jornalistas para construí-la, e muito
menos ao que foi relegado e omitido por estes critérios, profissionais ou não.6

Velocidade de produção e espetacularização são apontados por Meditsch como


aspectos problemáticos do Jornalismo como conhecimento. Entretanto, o autor ressalta que
a velocidade é uma característica da sociedade em que vivemos, não exclusiva do jornalis-
mo, e que a espetacularização constitui uma estratégia do caráter comunicativo e cognitivo
inerente ao jornalismo. “O problema é quando passam a ser utilizadas em função de ob-
jetivos que não os cognitivos, como a luta comercial por audiência e o esforço político de
persuasão”7.
O autor ressalta ainda que o Jornalismo não é o único responsável pela criação
de preconceitos, estereótipos e ideologias, mas ocupa papel central na reprodução das prá-
ticas partilhadas na sociedade em que está inserido – o que inclui suas contradições e desi-
gualdades. Esta sociedade, por sua vez, constrói e reforça estas problemáticas que também
estão presentes no Jornalismo, assim como em outros tipos de conhecimento, pois nenhuma
forma de conhecimento está totalmente imune a estas interferências, de acordo com o en-
tendimento de Meditsch.
Por fim, o autor destaca as vantagens de se considerar o Jornalismo um meio de
conhecimento, deixando de considerá-lo apenas um meio de comunicação. Para o pesqui-
4 Ibid., p. 7.
5 Ibid., p. 9.
6 Ibid., p. 10.
7 Ibid., p. 10.

Sumário 163
sador, esta mudança poderia influenciar a formação dos jornalistas, pois esses profissionais
passariam a ser vistos não apenas como comunicadores, mas como produtores e reprodu-
tores de conhecimento. Ademais, “A questão do conhecimento que o jornalismo produz e
reproduz e de seus efeitos pode ser demasiado estratégica para a vida de uma sociedade para
ser controlada exclusivamente pelos jornalistas como grupo profissional ou pelas organiza-
ções onde trabalham”8.

Representações e raça

A segunda noção teórica que nos ajudará a pensar o jornalismo enquanto espaço
dotado de capacidade de intervenção social é o conceito de representação. Stuart Hall defi-
ne, resumidamente, a representação como “a produção de sentido pela linguagem”9. Com
base na abordagem construtivista das representações, o autor considera que a linguagem
possui um caráter público e social, o que significa admitir que as coisas não significam por
si só, as pessoas constroem os sentidos por meio de sistemas representacionais, conceitos e
signos.
De acordo com essa abordagem, mundo material e processos simbólicos que per-
mitem a operação de representações, sentidos e linguagens precisam ser compreendidos
como distintos. Não é que os construtivistas neguem a existência de um mundo material, é
que compreendem que o sentido não é transmitido por esse mundo, mas pelos sistemas de
linguagem ou qualquer outro utilizado para representar os conceitos:
A representação é uma prática, um tipo de “trabalho”, que usa objetos materiais e
efeitos. O sentido depende não da qualidade material do signo, mas de sua função
simbólica. Porque um som ou palavra em particular indica, simboliza ou representa
um conceito, ele pode funcionar, na linguagem, como um signo e transportar sentido
– ou, como os construtivistas dizem, significar.10

Não existe relação natural ou direta entre a linguagem e o mundo real, mas o
sentido é construído e repetido tantas vezes que parece natural e fixo. Para que isso ocorra
deve haver a existência de dois sistemas de representação: o primeiro são os conceitos for-
mados na mente, possibilitando organização e categorização do mundo; o segundo é justa-
mente o sistema de linguagem capaz de traduzir inteligivelmente os conceitos por meio de
signos, conforme o autor. O sentido é, então, produzido dentro da linguagem, por meio dos
sistemas representacionais, dos códigos que estabelecem relação entre o sistema conceitual
partilhado socialmente e a linguagem.
Conforme a perspectiva construtivista, deste modo, a representação busca cons-
truir sentido ao forjar ligações entre três elementos: o mundo das coisas, pessoas, eventos e
experiências; o mundo conceitual que carregamos em nossas mentes; e os signos que corres-
pondem a esses conceitos ou os comunicam, explica Hall. A partir disso, entende-se que o
significado não é fixo, ele flutua. Entretanto, por meio de práticas representacionais é pos-
sível buscar a fixação desse significado, intervindo nos vários possíveis significados de uma
imagem, por exemplo, e tentando privilegiar um deles em detrimento dos demais. Como o

8 Ibid., p. 10.
9 HALL, Stuart. Cultura e representação, Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016, p. 53.
10 Ibid., p. 49.

Sumário 164
próprio nome sugere, as práticas representacionais são exercidas, praticadas por atores so-
ciais. Representação é, pois, um conceito e uma prática, segundo Hall.
Em se tratando das representações populares da diferença racial utilizadas du-
rante a escravidão, Hall destaca que tendiam a se organizar em dois eixos: o primeiro era
ambíguo, encarnado na ideia de subordinação e na preguiça inatas às pessoas negras que,
embora naturalmente nascidas para a servidão, não se mostravam dispostas a trabalhar de
forma satisfatória para seus senhores; o segundo dizia respeito ao primitivismo, à simplici-
dade e à falta de cultura. Negros eram vistos como naturalmente nascidos para o trabalho
forçado, preguiçosos e incapazes de “refinamentos civilizados”, nas palavras do autor.
Hall explica que a redução das culturas dos povos negros à natureza e a naturali-
zação da diferença são estratégias representacionais que visam à fixação da diferença. Estas
estratégias são tentativas de paralisar o deslizamento, a flutuação dos significados, encer-
rando, assim, os sujeitos representados definitivamente sob o significado desejado por quem
os representa. Desse modo,
Para os negros, “primitivismo” (cultura) e “negritude” (natureza) tornaram-se inter-
cambiáveis. Esta era sua “natureza” e eles não poderiam escapar. Como tantas vezes
aconteceu na representação das mulheres, sua biologia era seu “destino”. Os negros
não eram apenas representados em termos de suas características essenciais. Eles
foram reduzidos à sua essência. A preguiça, a fidelidade simples, o entretenimento tolo
protagonizado por negros (cooning), a malandragem e a infantilidade pertenciam aos
negros como raça, como espécie (grifos do autor).11

Tomando como objeto de análise o cinema estadunidense, Hall observa que tam-
bém nos produtos culturais as representações encarnavam o regime racializado, de modo
que somente a partir das décadas de 1980 e 1990 os negros conseguiram entrar no mains-
tream do cinema naquele país – por meio dos trabalhos de cineastas independentes entre
os quais cita Spike Lee, Julie Dash e John Singleton –, expondo por meio dos filmes suas
próprias interpretações sobre a figura do negro naquele contexto.
Dois conjuntos de práticas representacionais que marcam as vidas de pessoas
negras são a estereotipagem e o fetichismo. Hall explica que os estereótipos se apossam de
determinadas características das pessoas estereotipadas, em seguida, reduz essas pessoas a
essas características e, por fim, as exagera e simplifica. O primeiro ponto do processo de es-
tereotipagem consiste, deste modo, na redução, essencialização, naturalização e fixação da
diferença. O segundo ponto é a construção de uma estratégia de cisão entre o que é aceitável
e o que não é, ou seja, a diferença constitui o inaceitável. O inaceitável é, então, expulso.
Deste modo, entende-se que “a estereotipagem facilita a ‘vinculação’, os laços, de todos
nós que somos ‘normais’ em uma ‘comunidade imaginária’; e envia para o exílio simbólico
todos Eles, ‘os Outros’, que são de alguma forma diferentes, ‘que estão fora dos limites’”12.
O terceiro ponto destacado pelo autor é que a estereotipagem tende a ocorrer em sociedades
em que existem grandes desigualdades de poder.
Nesta esteira, Hall explana que há poder na representação: poder de marcar,
de classificar e de atribuir. Assim, o autor defende que a estereotipagem constitui um ele-

11 Ibid., p. 173.
12 Ibid., p. 192.

Sumário 165
mento-chave do exercício de violência simbólica por meio do qual determinados sujeitos
são representados somente dentro de um regime de representação pré-definido. Entretanto,
Hall ressalta que o poder não deve ser entendido como pertencente a apenas um grupo que
o lança para os demais. Ao contrário, o poder circula, envolvendo dominador e dominado.
Os negros estão cerrados na estrutura binária de extremos do estereótipo, ora sen-
do considerados infantis, ora, “supersexuados”. Quando tentam escapar de um estereótipo
caem no outro e às vezes são representados das duas formas ao mesmo tempo, de acordo
com Hall. Neste sentido, o fetichismo é outra prática representacional explanada pelo autor.
Para discutir esta prática, Hall apresenta como exemplo o caso de Saartje Baart-
man, mulher africana conhecida como Vênus Hotentote, que foi levada para a Inglaterra
em 1810 por um médico e por um agricultor da região do Cabo. Na Inglaterra, ela fazia
“apresentações”, caminhava numa jaula quando recebia essa ordem num palco. Saartje foi
batizada em Manchester, casou com um africano e teve dois filhos. Morreu em 1815, em
Paris, após contrair varíola.
Em Londres e em Paris, Saartje teve bastante fama em dois círculos sociais: o
público em geral e os naturalistas e etnólogos. O corpo dela foi exaustivamente analisado,
tanto enquanto estava viva quanto depois de morta. Hall argumenta que Saarjt Baartman
teve sua diferença não só obsessivamente marcada como também patologizada. “Simbo-
licamente, ela não se encaixava na norma etnocêntrica aplicada às mulheres europeias e,
estando fora de um sistema classificatório ocidental sobre como são ‘as mulheres’, ela teve
que ser construída como ‘Outro’”13.
Além disso, o corpo de Baartman foi lido como a prova, a verdade absoluta e irre-
versível de sua diferença racial. Quem a observava e representava o fazia a partir de séries de
oposição binárias e polarizadas em uma dinâmica em que Saarjt estava sempre comparada
a animais selvagens e distante dos seres humanos:
Ela foi reduzida a seu corpo e este, por sua vez, resumido a seus órgãos sexuais, que
passaram a ser os significantes essenciais de seu lugar no esquema universal das coi-
sas. Nela, natureza e cultura coincidiam e, portanto, poderiam ser substituídas uma
pela outra. O que era visto como uma genitália sexual “primitiva” dava significado
a seu apetite sexual “primitivo” e vice-versa.14

Por fim, Saartj Baartman foi submetida a um violento reducionismo: “Nos mode-
los e moldes preservados no Museé de L’Homme, ela foi literalmente transformada em um
conjunto de objetos separados, em uma coisa – ‘uma coleção de partes sexuais’. Ela sofreu
uma espécie de desmontagem simbólica ou fragmentação”15. Essa substituição do todo pela
parte é o efeito do fetichismo. Outra característica desta prática representacional é o des-
locamento do olhar. No caso de Saarjt Baartman, o olhar dos observadores era deslocado
da genitália para as nádegas de Saarjt e isso era utilizado e entendido por eles como uma
espécie de álibi, pois eles negavam a natureza sexual desse olhar deslocado.

13 Ibid., p. 203.
14 Ibid., p. 205.
15 Ibid., p. 205.

Sumário 166
Representações no Jornalismo

Conforme Murilo Soares16, todas as realizações humanas podem ser analisadas


a partir do conceito de representação. Devido a isso este conceito é utilizado em diversas
subáreas das Ciências Humanas e Sociais, dentre as quais se destacam a Comunicação e a
Pedagogia. Autores marxistas e sociólogos do conhecimento analisaram o mundo marcado
pelos discursos de livros, jornais e partidos, de acordo com Soares. Com o surgimento do
audiovisual, na segunda metade do século XX,
a questão das representações deixaria paulatinamente esse domínio ligado a ideias e
doutrinas formuladas proposicionalmente e começaria a envolver cada vez mais as
representações visuais e encenações mediáticas, nas quais os conceitos nem sempre
são declarados, nem os argumentos são formulados claramente, estando, pelo con-
trário, implícitos em imagens visuais e estruturas narrativas mediáticas, sendo natu-
ralizados pelo registro fotográfico, ao qual se adicionaram o movimento, os sons, as
cores e a difusão eletrônica17.

Atualmente, a comunicação mediática não deixa aparente as expressões das ideo-


logias, segundo o autor, “elas se manifestam de forma tácita, como vestígios ou traços implí-
citos em narrativas do jornalismo, da ficção, da publicidade e da propaganda”18. Os meios
de comunicação modernos constituem a tecnologia máxima da representação no sentido da
reapresentação, da semelhança, da simulação e, por meio dos produtos por eles construídos
e/ou difundidos, é possibilitada a circulação de estereótipos de gênero, etnia e profissão, por
exemplo. Essas práticas representacionais, das quais os estereótipos são uma possibilidade,
ora são mobilizadas para a instauração de padrões, ora para a constituição de imagens pejo-
rativas ou idealizadas de populações, categorias sociais, minorias etc, segundo o autor:
Os discursos, assim, produzem determinadas composições de imagens pictóricas ou
dramatúrgicas, audiovisuais, aparentemente colhidas no mundo empírico, sem in-
tervenção ativa de ninguém, as quais são elevadas à categoria de “representantes”
de pessoas, situações, fatos. Por esse meio, as intervenções invisíveis do autor de um
discurso são potencialmente capazes de influenciar de maneira sutil as percepções
sobre pessoas, gêneros, grupos sociais e categorias, contribuindo, como dissemos,
para o estabelecimento ou fixação de estereótipos.19

Neste sentido, Soares argumenta que representações não são simplesmente infor-
mações pontuais, mas um relato particular dos acontecimentos. Ou seja, os produtos jorna-
lísticos, dentre os quais os mais conhecidos são as notícias, são uma forma de construção da
realidade social feita pelos jornalistas – embora muitas vezes estes profissionais neguem este
caráter construído das notícias e insistam em defender o discurso de que apenas narram a
realidade sem interferências.
O autor afirma que pelo modo como hoje as organizações se apropriam das re-
presentações sociais da realidade as ideologias são utilizadas de modo mais diluído, menos

16 SOARES, Murilo. Representações, jornalismo e a esfera pública democrática. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009,
p. 18.
17 Ibid., p. 18.
18 Ibid., p. 18.
19 Ibid., p. 20.

Sumário 167
explícito. Apesar disso, é possível ter em veículos de comunicação de massa, por exemplo,
a possibilidade de investigação das ideologias que influenciam a existência de determinadas
representações por eles produzidas, reproduzidas e difundidas.
Nesta esteira, Maria Gregolin20 afirma que as mídias são o principal dispositivo
discursivo por meio do qual a história do presente é construída. A autora compara o tra-
balho de criação discursiva feito pelas mídias ao que antes era feito por meio dos mitos,
baseando-se na integração social dos indivíduos, na reprodução de imagens culturais e na
generalização. Assim, a história do presente formata a historicidade a que estamos expostos,
o que resulta na constituição de nossa identidade história que interliga passado e presente.
Por meio de uma dinâmica de rememoração e esquecimento, a interpretação con-
temporânea nasce a partir do que se sabe do passado, no entendimento da autora. Dito de
outro modo, a história do presente está sendo constantemente influenciada inclusive pelas
mídias que, com o trabalho nelas desenvolvido, contribui para essas constantes movimenta-
ções de sentidos, inclusive ressignificando imagens e palavras.

Há negros no Acre?: contextualização histórica e heranças da miscigenação

Jorge Fernandes21 afirma que a influência de pessoas negras na formação do es-


tado do Acre é inegável. Conforme o autor, a chegada dos negros neste território foi signifi-
cativa desde 1854, a partir da abertura dos seringais. Em 1880 vieram tanto pessoas negras
livres quanto escravizadas, ex-escravizadas e descendentes de pessoas escravizadas. Além
disso, na primeira década do século XX, ocorreu a vinda massiva dos barbadianos – confor-
me Rita Silva22, apesar de terem recebido este nome genérico, os barbadianos eram pessoas
negras vindas de diferentes ilhas do Caribe, como Antilhas, Granada e Barbados, tendo
como principal finalidade trabalhar na construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré.
Além da construção da estrada – que ligaria Porto Velho a Guajará-Mirim para
escoar a borracha produzida no Acre, em Rondônia e no Amazonas –, outros dois acon-
tecimentos históricos estimularam a vinda de negros para o Acre, conforme Fernandes: a
Revolta da Vacina e a Revolta da Chibata. Iniciada em novembro de 1904, na cidade do Rio
de Janeiro, a Revolta da Vacina foi uma reação a uma série de medidas contra as ações com
viés de limpeza social adotadas pelo Estado que teve como estopim um decreto do poder
público que tornava a vacinação obrigatória.
Francisco Bento da Silva23 observa que o Estado, a República recém-iniciada,
agia dessa forma buscando estabelecer uma pretensa ordem social que visava ao apagamen-
to do legado da escravatura, demandando, para isto, a dicotomização de práticas e crenças
para dividir a população entre pessoas adaptadas e inadaptadas, civilizados de um lado e
rudes de outro. Desse modo, todos os sujeitos que de alguma forma se encaixavam no grupo
de inadaptados, rudes e ignorantes, eram vistos de forma negativa pelas elites e pelo Estado
– caso de prostitutas, malandros, desertores do exército e da marinha, entre outros.

20 GREGOLIN, Maria do Rosario. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades. Comunicação, Mídia e
Consumo. Vol. 4, n. 11, p. 11-25. São Paulo: ESPM – SP, 2007.
21 FERNANDES, Jorge. Negros na Amazônia acreana. Rio Branco (AC): Edufac, 2012.
22 SILVA, Rita Clara Vieira da. Mulher barbadiana: um modelo educacional. Revista Zona de Impacto, 2013.
23 SILVA, Francisco Bento da. Do Rio de Janeiro para a Sibéria Tropical: prisões e desterros para o Acre nos anos 1904
e 1910. Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 3, n. 1, p. 161 – 179, jan/jun. 2011.

Sumário 168
Como saldo, a Revolta da Vacina teve ao menos 30 mortes e 945 prisões. Ade-
mais, cerca de 1400 pessoas foram desterradas para o Acre. Não apenas os revoltosos foram
enviados para o Acre, o governo obrigou centenas de pessoas que estavam presas na Casa
de Detenção a embarcarem nos navios rumo ao Acre, conforme Francisco Bento da Silva24.
Já a Revolta da Chibata, iniciada em novembro de 1910, chamou a atenção para
reivindicações de marinheiros – em sua maior parte pobres e negros, não raro alistados à for-
ça, que estavam em um navio aportado na Baía da Guanabara – pelo fim dos maus tratos so-
fridos na instituição militar. Caso não fossem atendidos, ameaçavam bombardear a cidade.
Após o controle da Revolta, um barco saiu do Rio de Janeiro com destino à Ama-
zônia e, finalmente, ao Acre. Quanto à quantidade de pessoas desterradas, há divergência
nos dados. Jorge Fernandes se baseia no livro Cisnes negros: uma história da Revolta da Chibata,
escrito por Mário Maestri em 2000, para afirmar que um barco com 293 homens e pouco
mais de 40 mulheres partiu rumo à Amazônia no dia 25 de dezembro de 1910. Já Francisco
Bento da Silva utiliza como fonte uma carta manuscrita enviada de Olinda (PE) ao Rio de
Janeiro pelo missivista Booz Belfort de Oliveira. O documento registra que havia nos porões
do navio Satellite mais de 300 homens e 41 mulheres.
Conforme a pesquisa de Francisco Bento da Silva, ao longo do trajeto do navio,
na saída do porto baiano, 9 pessoas foram eliminadas: 7 por fuzilamento e outras 2 joga-
ram-se ao mar antes dos tiros. “Tudo ocorreu com carta branca do governo, segundo teria
afirmado o [...] tenente Matos Costa à indagação de Belfort de Oliveira sobre aquela medida
tomada”25. Os sobreviventes às precárias condições da viagem foram, então, colocados à dis-
posição de seringalistas para serem comprados e trabalharem no corte de seringa Amazônia
afora. As mulheres, por seu lado, foram relegadas à prostituição.
Essa observação revela uma faceta da formação racial do Acre, assim como do
Brasil inteiro: o tratamento dado às mulheres, enxergadas como objeto que, após séculos de
violência sexual, resultou na miscigenação conhecida e exaltada do século XX até os dias
de hoje. Além de mulheres negras, as indígenas também foram vítimas dos abusos: “Essa
violência sexual colonial é, também, o ‘cimento’ de todas as hierarquias de gênero e raça
presentes em nossas sociedades”, observa Sueli Carneiro26. 
Para a intelectual, esses acontecimentos históricos não são apagados facilmente,
pelo contrário, permanecem no imaginário social servindo de base para garantir a continua-
ção de “uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as relações de
gênero segundo a cor ou a raça instituídas no período da escravidão”27. Embora se refiram
à situação do Brasil, amplamente, essas considerações podem ser estendidas à situação es-
pecífica do estado do Acre.
A região brasileira que mais influenciou a formação social do estado do Acre foi
o nordeste. Vieram pessoas negras de todos os estados da região para o Acre, com destaque
para o Ceará28. Fernandes também destaca a vinda de mineiros, sobretudo a partir da segun-

24 Ibid., 2011.
25 Ibid., 2011, p. 172.
26 CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva
de gênero. Geledés, 06 mar. 2011.
27 Ibid., 2011, online.
28 FERNANDES, Op. cit., p. 197.

Sumário 169
da metade do século XX quando as terras acreanas podiam ser facilmente compradas. Já
na atualidade, as migrações de pessoas negras para o Acre foram fortemente influenciadas
pelo terremoto que atingiu o Haiti em 2010. Neste caso, seguindo o sentido oposto do que
era feito no século passado, quando, de modo geral, as pessoas tinham o Acre como destino
final e não como rota de passagem. 
Apesar de comprovar a presença de negros no Acre desde os primórdios da ocu-
pação do estado, Jorge Fernandes ressalta que o preconceito racial se manifesta em seus
aspectos sociais, econômicos, educacionais e religiosos como em qualquer outro estado bra-
sileiro. Um exemplo deste preconceito materializado em negação da identidade racial é a
utilização de palavras que tentam amenizar as palavras “negra/o” e “preta/o” no que se
refere à raça.
Sueli Carneiro observa que no Brasil a ausência de definição da identidade racial
é tida, problematicamente, como um dado da nossa natureza, de modo que, “Diferente-
mente de outros lugares, a nossa identidade se definiria pela impossibilidade de defini-la”29.
Neste sentido, a filósofa argumenta que a miscigenação é utilizada como desculpa para que
assim permaneça sendo.
A miscigenação, no pensar de Carneiro, fundamenta o mito da democracia ra-
cial, especificidade da questão racial brasileira, “na medida em que o intercurso sexual
entre brancos, indígenas e negros seria o principal indicativo de nossa tolerância racial, ar-
gumento que omite o estupro colonial praticado pelo colonizador sobre mulheres negras e
indígenas”30. Além disso, é utilizada como ferramenta de embranquecimento do Brasil, de
modo que as pessoas negras retintas estariam na base enquanto as mais claras estariam no
topo. No intermédio desta escala estariam os “sortudos” mais próximos do ideal humano,
o branco:
Isso tem impactado particularmente os negros brasileiros, em função de tal imaginá-
rio social, que indica uma suposta melhor aceitação social dos mais claros em rela-
ção aos mais escuros, o que parece ser o fator explicativo da diversidade de expres-
sões que pessoas negras ou seus descendentes miscigenados adotam para se definir
racialmente, tais como moreno-escuro, moreno-claro, moreno-jambo, marrom-bom-
bom, mulato, mestiço, caboclo, mameluco, cafuzo, ou seja, confusos, de tal maneira
que acabam todos agregados na categoria oficial do IBGE: pardo!31

Esta realidade abordada por Sueli Carneiro revela como a questão racial no Brasil
é complexa, pois não há uma simples cisão entre o que branco e o que é preto. No Acre não
é diferente. A população acreana, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua 201932, é formada por 80% de pessoas negras – sendo 74,1% pardas e 5,9% pretas.
Apesar disso, a maioria da população ignora origens e características da formação do estado
do Acre, pois, de modo geral, a formação do estado é relacionada à vinda de nordestinos,
sem que seja feita uma análise ou reflexão sobre a condição racial desses migrantes.

29 CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011, p. 52.
30 Ibid., p. 55.
31 Ibid., p. 56.
32 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019.

Sumário 170
A partir desta ignorância, muitos acreanos negam suas características vinculadas
à negritude, crendo que ao se autodeclararem pardos afastam-se da categoria de negra – o
que evidencia, mais uma vez, a falta de conhecimento quanto às questões raciais, visto que
as pessoas autodeclaradas pardas compõem a população negra juntamente com as auto-
declaradas pretas. Sueli Carneiro argumenta: “Talvez o termo ‘pardo’ se preste apenas a
agregar os que, por terem sua identidade étnica e racial destroçada pelo racismo, pela discri-
minação e pelo ônus simbólico que a negritude contém socialmente, não sabem mais o que
são ou, simplesmente não desejam ser o que são”33.
Além da autonegação da identidade negra, ocorre a negação de “outros” quanto
a ela. A negritude de alguém que se encaixaria na categoria pardo é facilmente questionada
por outras pessoas que, pelo que aparentam, entendem que ao se autodeclarar negro o su-
jeito estaria colocando a si mesmo numa situação problemática e desfavorável da qual esse
“outro” tenta salvá-lo. É como se as pessoas negras devessem ser todas iguais, o que não é
exigido das brancas. Como defende Carneiro, o fenótipo é reivindicado para demarcar esses
conflitos em que, de um lado, a branquitude é beneficiada e, de outro, a negritude é ques-
tionada:
Morenos de cabelos castanhos ou pretos, loiros, ruivos são diferentes matizes da
branquitude que estão perfeitamente incluídos no interior da racialidade branca,
mesmo quando apresentam alto grau de morenice, como ocorre com alguns descen-
dentes de espanhóis, italianos ou portugueses, os quais, nem por isso, deixam de ser
considerados ou de se sentir brancos. A branquitude é, portanto, diversa e policro-
mática. A negritude, no entanto, padece de toda sorte de indagações34.

Mesmo com a alta taxa de população identificada como negra, o Acre segue a
tendência do restante do Brasil em relação à negação do racismo e da negritude. Em pesqui-
sa de campo na qual entrevistara moradores de todos os municípios do estado, Jorge Fernan-
des registrou que termos como “moreno/a”, “morena clara” e “pardo” não são raros nas
descrições das identidades raciais de seus habitantes. José Gabriel Tavares, habitante do mu-
nicípio de Marechal Thaumaturgo, disse: “eu tenho filhos mais claros, mas o cabelo é ruim
também”35. Percebe-se a referência ao cabelo, provavelmente cacheado ou crespo, como
algo negativo, já que a conjunção “mas” carrega o sentido de oposição. Ou seja, os filhos
serem claros tem um significado positivo, enquanto o cabelo cacheado ou crespo, uma das
possíveis características fenotípicas de pessoas negras, indica problema e recebe reprovação.
Nos relatos apresentados no livro de Fernandes, é possível perceber que o racis-
mo se revela inclusive na esfera cultural. O professor de capoeira Rubenildo Costa do Nasci-
mento, integrante do Grupo Senzala no município de Manoel Urbano, afirma: “Não tenho
mais alunos porque os pais são evangélicos e têm preconceito com a capoeira e não deixam
seus filhos estudarem comigo”36.
Já no que se refere às práticas das religiões de matrizes africanas em Rio Branco,
Fernandes embasa-se na dissertação de mestrado Terreiros de Candomblé na Amazônia Acrea-

33 CARNEIRO, Op. cit., p. 56.


34 Ibid., p. 60.
35 Ibid., p. 139.
36 Ibid., p. 135-136.

Sumário 171
na: Lutas e solidariedade na construção de territórios e identidades, de Italva Miranda da Silva. A
pesquisadora entrevistou Mãe Laura, importante mãe de santo da região acreana, e afirmou
que atividades religiosas de Umbanda e Candomblé eram percebidas desde o final dos anos
1960 na capital acreana. Entretanto, em razão de perseguições das igrejas cristãs e de auto-
ridades políticas e policiais, obrigavam-se a realizar as atividades às escondidas.
Em outra entrevista realizada por Jorge Fernandes (2012), o capoeirista Inaci da
Silva, do município de Sena Madureira, afirma: “Aqui em Sena, as pessoas que fazem esses
trabalhos fazem tudo de maneira oculta, porque aqui todo mundo condena esse tipo de tra-
balho”37. Estes depoimentos confirmam a existência do racismo religioso, com base no qual
as práticas vinculadas à expressão da fé com origem em matrizes africanas são não apenas
desvalorizadas, mas discriminadas, negadas e tidas como inaceitáveis.

Raça, gênero e outros marcadores: breve discussão sobre interseccionalidade

As mulheres negras são negligenciadas em discursos que não dão conta de consi-
derá-las sujeitos, pessoas dotadas de agência, de modo que elas se deparam com “um debate
sobre racismo no qual o sujeito é o homem negro; um discurso genderizado no qual o sujeito
é a mulher branca; e um discurso de classe no qual ‘raça’ não tem nem lugar”38, argumenta a
teórica portuguesa Grada Kilomba. Assim, conclui Kilomba, em um esquema gênero-raça,
a mulher negra encarna uma outridade dupla: “só pode ser a/o ‘Outra/o’ e nunca o eu”39.
Desse modo, gênero e raça são marcadores de análise importantes no que diz
respeito à análise acerca da situação das mulheres negras, pois, no sentido das vivências e
experiências sociais, elas não são iguais às brancas, assim como as experiências de homens
negros são diferentes das de homens brancos. Aqueles estão abaixo das mulheres brancas
na pirâmide social, mas ainda assim permanecem acima das mulheres negras, conforme o
pensamento de Djamila Ribeiro40.
Sueli Carneiro41, por sua vez, apresenta uma explanação da diferença existente
entre mulheres negras e brancas por meio de alguns exemplos:
Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a
proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falan-
do? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavel-
mente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca
fomos tratadas como frágeis [...] Fazemos parte de um contingente de mulheres com
identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de en-
genho tarados42.

A discussão levantada por Carneiro43 reforça o argumento de que mulheres negras


não usufruem os mesmos direitos que mulheres brancas. Os dois grupos estão em patamares

37 Ibid., p. 181.
38 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira, 1ª ed. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2019, p. 190.
39 Ibid., p. 190.
40 RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? – Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
41 CARNEIRO, Op. cit., online.
42 Ibid, online.
43 Ibid., online.

Sumário 172
sociais diferentes, logo, seus motivos e interesses de luta diferem. No caso do trabalho, por
exemplo, o que para as mulheres brancas era um interesse de luta, um direito a ser conquis-
tado, para as mulheres negras era uma obrigação imposta pelas condições socioeconômicas
resultantes das marcas históricas da escravidão às quais elas estavam sujeitas.
Devido à mobilização da raça como categoria de marcação da diferença, o acesso
de pessoas negras a direitos é restrito. Por isso, compreender as diferenças existentes entre
sujeitos negros e brancos, de modo geral, e entre mulheres negras e brancas, especificamen-
te, é importante para uma análise mais profunda das problemáticas que se apresentam. Nes-
te sentido, para Djamila Ribeiro44, a universalidade exclui. A autora defende que não levar
em conta as diferenças existentes entre os sujeitos causa uma espécie de apagamento das
pessoas negras e um afastamento delas dos direitos que lhes cabem e, mais ainda, de serem
aqueles que pensam as políticas que lhes beneficiariam.
A filósofa compreende o deslocamento do pensamento hegemônico e a ressigni-
ficação de identidades de raça, classe e gênero como ferramentas urgentes para a constitui-
ção de novos lugares de fala “com o objetivo de possibilitar voz e visibilidade a sujeitos que
foram considerados implícitos dentro dessa normatização hegemônica”45, de modo que ter
direito à voz é sinônimo de ter direito à vida.
Nesta perspectiva, Jurema Werneck46 critica a forma como os saberes e lutas de
mulheres negras são ignorados tanto pela história do feminismo quanto pela história política
do Brasil e dos demais países. Segundo a autora, embora ignorada, desvalorizada e descon-
siderada, a atuação de mulheres negras é efetiva e se faz presente há muito. Tal exclusão da
presença de mulheres negras deve ser entendida, na visão da autora,
[...] como parte das estratégias de invisibilização e subordinação desses grupos, ao
mesmo tempo em que pretendem reordenar a história de acordo com o interesse dos
homens e mulheres branc@s. Isso permite apontar o quanto tal invisibilização tem
sido benéfica para aquelas correntes feministas não comprometidas com a alteração
substantiva do status quo47.

As mulheres negras são invisibilizadas não só pela hegemonia masculina, mas


também pela ideologia do racismo, conforme Sueli Carneiro48. Neste sentido, a realização
de análises e práticas que englobem as perspectivas racial, de gênero, de classe e de sexua-
lidade, por exemplo, é fundamental para o enfrentamento desse sistema tão eficazmente
articulado ao longo dos séculos. Nas palavras de Djamila Ribeiro, “Seria como dizer que a
mulher negra está num não lugar, mas mais além: consegue observar o quanto esse não lugar
pode ser doloroso e igualmente atenta também no que pode ser um lugar de potência”49. 
Seguindo esta perspectiva, é possível trazer à discussão o conceito de intersec-
cionalidade, considerando que mulheres negras são atravessadas por dois principais mar-

44 RIBEIRO, Op. cit., 2017.


45 Ibid., p. 45.
46 WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o
sexismo e o racismo In: Vents d’Est, vents d’Ouest: Mouvements de femmes et féminismes anticoloniaux. Genève:
Graduate Institute Publications, 2009.
47 Ibid., p. 16.
48 CARNEIRO, Op. cit., online.
49 RIBEIRO, Op. cit., p. 48.

Sumário 173
cadores: raça e gênero. Criado na década de 1990 pela advogada estadunidense Kimberlé
Crenshaw, o conceito diz respeito à compreensão de como políticas e ações específicas re-
sultam em opressões50. A advogada começou a usar o termo “interseccionalidade” para lidar
com o fato de que muitos dos problemas de justiça social, como racismo e sexismo, no con-
texto de seu país, frequentemente se sobrepõem, criando múltiplos níveis de injustiça social.
O parecer de um juiz de um caso em que uma mulher chamada Emma DeGraf-
fenreid processava uma fábrica automobilística por acreditar que não fora contratada devido
a sua condição de mulher negra foi o responsável pela articulação do conceito. A justiça,
por seu lado, entendia que a fábrica não cometia crime, visto que contratava tanto mulheres
quanto homens, tanto pessoas brancas quanto negras. O que a justiça não entendia era o fato
de que as pessoas negras contratadas eram homens, e as mulheres contratadas eram brancas.
Desse modo, a investida de DeGraffenreid em utilizar esses dois marcadores na
denúncia foi negada, porque a justiça entendia que ela teria vantagens em relação aos ho-
mens negros e às mulheres brancas. “Mas é claro que nem homens afro-americanos nem
mulheres brancas precisam combinar discriminação de raça e gênero para contar a história
de discriminação que sofriam”, observa Crenshaw51.
Diante do caso, que Kimberlé Crenshaw nomeia como “injustiça organizada”, a
advogada argumenta que “Sem padrões que nos permitam ver como problemas sociais im-
pactam todos os membros de um determinado grupo, muitos vão passar ao largo de nossos
movimentos, deixados para sofrer em potencial isolamento”52. Assim, era necessário buscar
alternativas que dessem à justiça ferramentas para uma observação menos limitada de casos
como o de Emma DeGraffenreid, superando as falhas da lei. Assim, a advogada antirracista
Kimberlé Crenshaw elaborou uma analogia:
Se pensarmos nessa intersecção, suas ruas seriam o modo como a força de trabalho
foi estruturada por raça e gênero. O tráfego nessas ruas seriam as políticas de contra-
tação e outras práticas que trafegam por elas. Bem, como Emma era negra e mulher,
ela estava posicionada exatamente onde tais ruas se cruzavam, sentindo o impacto
simultâneo do tráfego de gênero e de raça da empresa. A lei é como a ambulância
que prestará socorro à Emma apenas se ficar claro que ela fora ferida na “rua de
raça” ou na “rua de gênero”, mas não no local em que as ruas se cruzam. Então, que
nome se dá ao ser atingido por múltiplas forças e então abandonado à própria sorte?
Interseccionalidade parece-me apropriado53.

A interseccionalidade, portanto, não se aplica apenas a mulheres negras, mas a


todos os sujeitos de alguma forma marginalizados por múltiplas opressões. Entre as dinâ-
micas sociais que se combinam criando desafios, a autora cita raça, gênero, heterossexismo,
homofobia, transfobia, xenofobia e discriminação pela condição física. Deste modo, enten-
de-se que a interseccionalidade é um conceito que se destina compreender as múltiplas for-
mas de discriminação e suas operações combinadas, mas não se limita a isso, busca formas
de reconstituir direitos a esses sujeitos que sofrem as múltiplas discriminações.

50 CRENSHAW, Kimberlé. A urgência da interseccionalidade. Palestra proferida no TEDWoman 2016, out. 2016.
51 Ibid., online.
52 Ibid., online.
53 Ibid., online.

Sumário 174
Considerações finais

Diante do exposto, conclui-se que a discussão racial segue tendo caráter de urgên-
cia no Brasil. Especificamente no Acre, não é diferente. Um estado com alto contingente de
população negra, com presença de pardos tão significativa, necessita de discussões focadas
na questão racial, até mesmo para que se desperte da condição de inércia quanto ao enten-
dimento da identidade racial e às consequências da negação da negritude, considerando os
mais diversos aspectos que as problemáticas dela resultantes podem atingir a exemplo do
campo psíquico e da organização social propriamente dita.
Sueli Carneiro e Jurema Werneck nos ensinam que o feminismo negro, aquele
cujo protagonismo pertence às mulheres negras e às suas demandas, tem longa trajetória no
Brasil, constituindo espaços de debate e articulação dessas mulheres constantemente igno-
radas tanto nos movimentos negros quanto no movimento feminista hegemônico. Enquanto
o conceito de interseccionalidade, elaborado pela estadunidense Kimberlé Crenshaw, é fer-
ramenta útil para não apenas apontar as opressões que se sobrepõem – e não se hierarqui-
zam –, mas, principalmente, para criar estratégias de superação dessas opressões, para dar
assistência às pessoas que têm suas humanidades e seus direitos roubados pelas dinâmicas
problemáticas geradas pelos arranjos sociais.
Com relação à discussão racial no Acre, a breve exposição feita acerca do livro
de Jorge Fernandes mostra que por mais que haja de certo modo um silenciamento quanto à
discussão racial no Acre, o estado não ficou apartado do restante do Brasil no que se refere
à defesa da miscigenação e da suposta inexistência de negros. Os relatos colhidos no livro
evidenciam também que o racismo manifesta-se intensamente, ora na negação da negritude,
ora de modo escancarado em seus diversos vieses discriminatórios, tais como o religioso e o
institucional. Ademais, a forma como se deu a chegada de negros ao estado é também um
indicativo de como esses sujeitos são historicamente tratados neste país, como evidenciou a
pesquisa de Francisco Bento da Silva.
Neste sentido, entende-se que a história do Brasil influencia diretamente a forma
como as representações são construídas acerca dos sujeitos. O modo como são retratados
em programas televisivos, no cinema e no jornalismo, por exemplo, não surge do acaso, pelo
contrário, há toda uma trajetória de construção dessas representações com objetivos bem
definidos, repetidos incansáveis vezes. Afinal, como bem discute Stuart Hall, as represen-
tações são um conceito, mas também são práticas. E como práticas, precisam de atores que
ativamente tragam-nas à existência.
É neste contexto que está inserido o jornalismo. Os entendimentos do jornalismo
enquanto forma de conhecimento, apresentado por Eduardo Meditsch, e de instrumento de
construção da história do presente, como defende Maria Gregolin, nos ajudam a trazer este
ofício para o centro dessa discussão, entendendo que o fazer jornalístico dialoga diretamen-
te com a sociedade na qual está inserido. Assim, o jornalismo influencia ao passo que tam-
bém é influenciado, não sendo, portanto, isento ou totalmente objetivo, embora estes ideais
sejam almejados e reivindicados por muitos dos profissionais da área.
Então, o estudo das representações produzidas, reproduzidas e difundidas pelos
meios de comunicação e de produção de conhecimento deve ser feito levando em conta

Sumário 175
todas as particularidades das questões do local onde ele está inserido. Além disso, o ofício
deve ser entendido para além de seu viés técnico: jornalismo deve ser exercício de reflexão
crítica pautada na responsabilidade social que lhe cabe. Portanto, seus atores – jornalistas
em suas mais diversas áreas de atuação, veículos, órgãos reguladores e até mesmo o público
– devem constantemente exercitar a criticidade, a reflexão e a busca por visão menos racista,
heterossexista e excludente. Somente se esses atores entenderem a importância deste ofício
e sua capacidade de estímulo a mudanças, mesmo que paulatinas, o jornalismo poderá vis-
lumbrar a possibilidade de servir como um instrumento na transformação social.

Referências
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir
de uma perspectiva de gênero. Geledés, 06 mar. 2011. Disponível em: <https://bit.ly/2D8W8oP>.
Acesso em: 07 out. 2019.
CRENSHAW, Kimberlé. A urgência da interseccionalidade. Palestra proferida no TEDWoman
2016, out. 2016. Disponível em: <https://bit.ly/340DkIw>. Acesso em: 14 ago. 2020.
FERNANDES, Jorge. Negros na Amazônia acreana. Rio Branco (AC): Edufac, 2012.
GREGOLIN, Maria do Rosario. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades. Co-
municação, Mídia e Consumo. Vol. 4, n. 11, p. 11-25. São Paulo: ESPM – SP, 2007. Disponível em:
<https://bit.ly/2Dx8rR5>.  Acesso em: 07 ago. 2020.
HALL, Stuart. Cultura e representação. Organização e Revisão Técnica: Arthur Ituassu; Tradução:
Daniel Miranda e William Oliveira. – Rio de Janeiro: Ed: PUC-Rio: Apicuri, 2016.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-
lios Contínua 2019. Disponível em: <https://bit.ly/39zxBKM>. Acesso em: 10 ago. 2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Olivei-
ra, 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MEDITSCH, Eduardo. O jornalismo é uma forma de conhecimento? Biblioteca Online de Ciências
da Comunicação – BOCC, 1997. Disponível em: <https://bit.ly/2ZeLOGh>. Acesso em: 17 out.
2019.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? – Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
SILVA, Rita Clara Vieira da. Mulher barbadiana: um modelo educacional. Revista Zona de Impac-
to.  Ano 15 - 2013 - Vol. I. Disponível em: <https://bit.ly/2PYJ51r>. Acesso em: 12 ago. 2020.
SILVA, Francisco Bento da. Do Rio de Janeiro para a Sibéria Tropical: prisões e desterros para o
Acre nos anos 1904 e 1910. Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 3, n. 1, p. 161 – 179, jan/
jun. 2011. Disponível em: <https://bit.ly/3apJkf1>. Acesso em: 10 ago. 2020.
SOARES, Murilo César. Representações, jornalismo e a esfera pública democrática. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2009.
WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias
políticas contra o sexismo e o racismo In: Vents d’Est, vents d’Ouest: Mouvements de femmes et
féminismes anticoloniaux. Genève: Graduate Institute Publications, 2009. Disponível em: <https://
bit.ly/2Fmm8Tz>. Acesso em: 14 ago. 2020.

Sumário 176
A sexualização do corpo e a
inferiorização da figura feminina em
M aibi , de A lberto R angel

Bruna Wagner

D
esde as primeiras narrativas produzidas a respeito do território brasilei-
ro a imagem da mulher indígena é mostrada de uma forma sexualizada.
Mesmo que homens e mulheres indígenas não fizessem o uso de ves-
timentas para cobrirem seus corpos, apenas os corpos femininos foram significados como
eróticos. As mulheres que nasceram do resultado da miscigenação entre brancos e índios,
as caboclas, não escaparam dessa forma de representação, ainda que não incorporassem
aos seus costumes o hábito da nudez. Tanto no discurso falado quanto em textos literários
a presença da cabocla está geralmente envolta por uma atmosfera erótica. Essa identidade,
essa névoa de significações que as envolvem, não foi construída ou ditada pelas próprias
caboclas, mas por discursos fabricados por um sistema masculinista de significação, criado
e constantemente reafirmado por discursos advindos de homens.

A identidade cabocla é pouco discutida, de modo geral, no ambiente acadêmi-


co. Os estudos encontrados por nós se referem, em grande maioria, aos caboclos homens,
generalizando a construção identitária como equivalente para homens e mulheres caboclas.
Contudo, nas narrativas de temática amazônica em que encontramos as figuras do caboclo e
da cabocla as referências a um ou a outro são notavelmente destoantes. Ainda que o caboclo
não seja equiparado a um homem branco ele possui uma representação que podemos pon-
tuar como “superior” ao que é apresentado/narrado sobre as caboclas.

Sumário 177
Segundo Barros e Araújo1, no que tange a identidade, ela pode ser “[...] enten-
dida [...] como uma representação somatória de significados que dão sentido ao sujeito e,
por conseguinte ao mundo, constituído por culturas e processos sócio-históricos que surgem
ao longo do tempo”. Contudo, quando nos referimos ao processo de construção identitária
dos caboclos da Amazônia, eles, aqueles que são denominados como “caboclos”, não estão
inclusos nesse processo de significação. Ou seja, para Barros e Araújo2, a construção do que
entendemos como caboclo não foi erigida conforme as experiências, linguagens e outras for-
mas de representação presentes no cotidiano desses indivíduos, foram fabricadas por outros
indivíduos que ou negam essa identidade ou não pertencem a ela.
Um dos principais mecanismos para a construção de uma identidade é a lingua-
gem. De acordo com Barros e Araújo3, “todas as relações humanas são linguisticamente
mediadas, sendo a língua o elemento que determina as posições convencionadas pela socie-
dade”. Partindo desse pressuposto, é por meio da língua que atribuímos valores positivos ou
negativos a determinados seres, objetos, sentimentos, estados, entre outros tantos elementos
que envolvem a existência humana. A língua é um instrumento valorativo, por este motivo
“nenhuma língua é isenta de valores, sendo que é também pela linguagem que subsiste o
preconceito ou, pelo contrário, é repassada, além de outros fatores sócio-históricos que con-
tribuem para uma segregação social”4.
Nesse sentido, podemos afirmar que é por meio da língua que construímos ima-
gens, conceitos, preconceitos, diferenciações e semelhanças entre um indivíduo e outro. É
por meio dela, consoante Barros e Araújo5, que cada comunidade repassa por gerações
sentidos e ideologias a respeito de si e do outro. Desse modo, a língua/linguagem é um
mecanismo de poder, é por meio dela que “surgem maquinações de violência de exclusão,
segregação, algo que exprime sempre o outro”6. O caboclo é tido como o outro, ele não se
enquadra nas definições e arquétipos dominantes de homem branco, de origem europeia,
abastado, escolarizado, entre outros atributos. Quanto ao poder, para Barros e Araújo7:
Essa relação entre língua e poder adquire uma conexão lógica, quando o conceito
menorizador ao enxergar o outro e o próprio conceito de subjetivação equívoco de
identidade se estabelecem como formas antecipadas de distinção do que seja melhor
ou não culturalmente, essa é mais uma forma de mecanismos de poder.

Além das relações de poder entre indivíduos de grupos ou estruturas culturais


diferentes, a exemplo os homens brancos e os homens caboclos, existem também as relações
de poder internas a esses grupos (homens brancos sobre mulheres brancas / homens cabo-
clos sobre mulheres caboclas), e as que extrapolam essa primeira barreira (homens brancos
sobre mulheres caboclas). A subjugação do homem caboclo pelo homem branco é evidente,

1 BARROS, Carolina Pinheiro; ARAÚJO, Thays Coelho de. A (des)construção identitária do sujeito caboclo: “que caobo-
quice é essa?”. Revista Memorare. Tubarão, v. 4, n. 3-I, 2017, p. 5.
2 Ibidem.
3 BARROS, Carolina Pinheiro; ARAÚJO, Thays Coelho de. A (des)construção identitária do sujeito caboclo: “que caobo-
quice é essa?”. Revista Memorare. Tubarão, v. 4, n. 3-I, 2017, p. 6.
4 Ibidem.
5 Ibidem.
6 Ibidem. p. 7.
7 Ibidem.

Sumário 178
pois foi este último que contribuiu diretamente para a construção da imagem formada do
que é o caboclo. Porém, quando desviamos nosso olhar e focamos na mulher cabocla, esse
processo de subjugação vai além. Ainda que o homem branco considere o homem caboclo
inferior, o caboclo ainda compartilha com ele o traço de gênero. No que diz respeito a mu-
lher cabocla, nem este traço ela possui com aquele que é considerado o status quo da socie-
dade. Dentro das relações internas entre homens e mulheres caboclas, a cabocla também
é inferiorizada. A mulher cabocla sempre está na escala mais baixa dentro das relações de
significação e poder.
Carlson e Apple8, munindo-se do pensamento de Bakhtin, afirmam que, dentro
dos processos de identificação, entendemos o “eu” como produto de uma produção histó-
rica, que se encontra cultural e discursivamente alocado. Esse produto está sempre em um
processo de reconstrução contínuo, sendo este processo vinculado e estabelecido pelos ou-
tros, os quais nos relacionamos. Com isso:
Na concepção de linguagem de Bakhtin, as ideologias consistem exatamente por ser
uma representação dos discursos constitutivos dentro de uma comunidade linguísti-
ca, como forma de alteridade, ou seja, o indivíduo se reflete no outro, para assegu-
rar-se do que é. E esse processo não surge conscientemente, consolida-se por meio
das interações, das palavras, dos signos, dentro do âmbito social. O sujeito refrata-se
e se transforma sempre através do outro. É isso também que move a língua. No pen-
samento do autor, a voz do outro está sempre determinando o que somos.9

Dessa forma, estamos de maneira constante atrelando a significação que fazemos


de nós mesmos ao discurso de um outro. Na construção identitária cabocla isso também
ocorre. Neste último caso, por se encontrar em uma fronteira entre duas identificações,
entre o branco e o índio, e não sendo especificamente nenhuma delas, a identidade cabocla
é constantemente associada a uma alteridade, ela é o outro em si. O caboclo é aquele que
não é nem indígena nem branco. Assim, “a alteridade é o fundamento da identidade, o que
nos faz pensar que o processo de construção identitária do sujeito, suas opiniões, vivências
de mundo, seus pensamentos, dentre outros, constituem-se a partir das relações dialógicas e
valorativas que se tem com o outro”10.
Dentro das relações entre brancos, índios e caboclos, o caboclo, por ser o produto
da miscigenação entre os dois primeiros indivíduos, encontra-se em um lugar que está na
borda. Barros e Araújo11 frisam que, no meio de mudanças culturais e linguísticas vivencia-
das dentro da comunidade indígenas, muitos desses indivíduos passaram a negar a identida-
de de índio e se identificar com a identidade de caboclo, que se aproximava mais do homem
branco. Isso ocorreu devido a impressão de que “quanto mais se afastava de sua identidade
significava grande conquista de valor social, para incorporar a identidade cabocla, portan-
to, mais próxima da identidade branca, vista como raça superior da civilização humana”12.
8 2000 apud BARROS, Carolina Pinheiro; ARAÚJO, Thays Coelho de. A (des)construção identitária do sujeito caboclo:
“que caoboquice é essa?”. Revista Memorare. Tubarão, v. 4, n. 3-I, 2017.
9 BARROS, Carolina Pinheiro; ARAÚJO, Thays Coelho de. A (des)construção identitária do sujeito caboclo: “que caobo-
quice é essa?”. Revista Memorare. Tubarão, v. 4, n. 3-I, 2017, p. 9.
10 Ibidem.
11 Ibidem.
12 BARROS, Carolina Pinheiro; ARAÚJO, Thays Coelho de. A (des)construção identitária do sujeito caboclo: “que
caoboquice é essa?”. Revista Memorare. Tubarão, v. 4, n. 3-I, 2017 p. 10.

Sumário 179
Contudo, por estar nesse terceiro lugar entre identidades, o caboclo, por não ser índio nem
branco, não está sujeito aos mesmos benefícios ou status daquele que possui a cor da pele
“ideal”.
O caboclo, na definição do dicionário Oxford, é delineado como “indivíduo nas-
cido de índia e branco (ou vice-versa), de pele acobreada e cabelos negros e lisos”. Enquanto
marcação identitária, a identidade cabocla não possui uma definição precisamente delimita-
da. Segundo Barros e Araújo13, “como a identidade cabocla ainda é ambígua de sentidos, ao
designativo caboclo, como marca identitária e cultural, procedemos à divisão por categorias
de classificação: geográfica, étnica, estratificação social e religiosa”. A identidade cabocla
ainda se encontra em debate, em diversas áreas do conhecimento. Ainda de acordo com
Barros e Araújo14, o caboclo pode ser compreendido, de maneira geral, como aquele que
leva sua vida de forma simples, distante dos grandes centros urbanos e que tem por fonte de
renda o trabalho braçal e o extrativismo de produtos provenientes da floresta. Outra defini-
ção de caboclo é dada por Lima-Ayres15:
O termo caboclo é amplamente utilizado na Amazônia brasileira como uma cate-
goria de classificação social. É também usado na literatura acadêmica para fazer
referência direta aos pequenos produtores rurais de ocupação histórica. No discurso
coloquial, a definição da categoria social caboclo é complexa, ambígua e está as-
sociada a um estereótipo negativo. Na antropologia, a definição de caboclos como
camponeses amazônicos é objetiva e distingue os habitantes tradicionais dos imi-
grantes recém-chegados de outras regiões do país. Ambas as acepções de caboclo, a
coloquial e a acadêmica, constituem categorias de classificação social empregadas
por pessoas que não se incluem na sua definição.

Nesse sentido, conforme aponta Barros e Araújo16 “Lima não se refere à cultura
cabocla como única e ímpar, mas a usa nesse contexto como característica dos habitantes
que ainda vivem de uma maneira minimalista”. A conotação negativa atribuída ao termo
caboclo que Lima-Ayres faz referência está ligada ao fato do caboclo ser metade indígena.
Dessa forma, para Barros e Araújo17, “[...] essa associação de sentido inferior ao termo ca-
boclo surgiu pela identificação e designação social que era dado aos fenótipos indígenas”.
São considerados caboclos, de acordo com Barros e Araújo18, aqueles indivíduos que não se
enquadram aos parâmetros estabelecidos pela sociedade branca, urbana e civilizada. Desse
modo, os caboclos são pessoas marginalizadas, é considerado inferior todo aquele que “é
descendente de índio, ou quem vem da zona rural ou de estratificação social menos favore-
cida, sempre prevalecendo uma identificação negativa ao designativo caboclo”19.

13 Ibidem. p. 11-2.
14 Ibidem. p. 12.
15 1999, p. 6 apud BARROS, Carolina Pinheiro; ARAÚJO, Thays Coelho de. A (des)construção identitária do sujeito
caboclo: “que caoboquice é essa?”. Revista Memorare. Tubarão, v. 4, n. 3-I, 2017, p. 12.
16 BARROS, Carolina Pinheiro; ARAÚJO, Thays Coelho de. A (des)construção identitária do sujeito caboclo: “que
caoboquice é essa?”. Revista Memorare. Tubarão, v. 4, n. 3-I, 2017, p. 12.
17 Ibidem. p. 14.
18 BARROS, Carolina Pinheiro; ARAÚJO, Thays Coelho de. A (des)construção identitária do sujeito caboclo: “que
caoboquice é essa?”. Revista Memorare. Tubarão, v. 4, n. 3-I, 2017.
19 Ibidem. p. 13.

Sumário 180
De acordo com Barros e Araújo20, o processo identitário dos caboclos teve sua
origem no período colonial brasileiro. A ideologia do período colonial deixou fortes estereó-
tipos cravados no imaginário coletivo da população. Dessa ideologia, segundo as autoras,
surgiu o pensamento de que a população cabocla era uma raça inferior, incapaz de desenvol-
ver pensamento crítico e atingir os níveis mais elevados de pensamento e cultura. Ainda que
considerasse os caboclos como indivíduos inferiores, o projeto colonial designava a eles um
lugar: a mão de obra barata. Dentro desse contexto de significação e construção identitária
cabocla, a mulher cabocla foi deixada de lado. Como pudemos observar, os relatos, defini-
ções e estudos a respeito desse conjunto populacional, quando realizados, contemplam de
forma quase absoluta o sujeito do sexo masculino. Inserida em um contexto que já remete a
exploração por conta de sua identidade, a mulher cabocla ainda sofre com seu apagamento
e inferiorização causados pela sua marca de gênero.
Nesse sentido, o presente artigo pretende mostrar como, assim como na socieda-
de de modo geral, na literatura a imagem da cabocla sofre com essas marcas de identidade
e de gênero. Existe um apagamento da figura feminina desse conjunto populacional deno-
minado como caboclos. Esse apagamento transpassa a esfera do real e entra no âmbito lite-
rário. Desse modo, abordarmos a questão da mulher cabocla e de como ela é representada
dentro da literatura é uma forma de dar visibilidade ao tema e aos próprios indivíduos. Para
tal tarefa, examinaremos o conto “Maibi”, de Alberto Rangel, presente no livro de contos
“Inferno Verde”21.
Podemos observar no conto de Rangel, assim como em outras narrativas da Ama-
zônia, que a presença da mulher cabocla está muitas vezes associada a uma atmosfera se-
xual. Ao corpo da cabocla, assim como ao da mulher indígena, é atribuído uma aura erótica.
Assim, a subjugação sofrida pela mulher cabocla transpassa os limites da identidade e desá-
gua nos limites corporais. As relações de poder as quais as caboclas estão submetidas dentro
do ambiente amazônico não são apenas de raça ou de classe. A marca do gênero é um dos
determinantes dentro desse tipo de relação.
De acordo com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB22, Alberto
do Rego Rangel (1871-1945) foi um engenheiro e escritor brasileiro. Nascido em Recife,
Rangel teve contato com a Amazônia por intermédio de seu amigo Euclides da Cunha. Veio
para o Amazonas em 1904 desempenhar o cargo de diretor-geral de Terras e Colonização,
após esse período, se tornou diplomata. Além da obra em análise, o autor possui outras 15
obras publicadas, a última delas, “Águas Revessas”, publicada no ano de 1945. Observamos
assim que o autor de “Inferno Verde” possui origens na elite brasileira e suas narrativas tran-
sitam um olhar situado em uma determinada classe, status, raça e gênero.
“Inferno Verde”, cujo subtítulo é “cenas e cenários do Amazonas”, é uma cole-
tânea de contos escritos por Alberto Rangel, com prefácio de Euclides da Cunha, publicado
pela primeira vez em 1908. O livro apresenta 11 contos com temática amazônica, entre eles
encontramos “Maibi”. O conto tem como título o nome de uma das personagens citadas
no texto. Apesar de dar nome ao conto, Maibi não possui nenhuma fala durante o desen-
20 Ibidem.
21 RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 6. ed. Manaus: Valer, 2008.
22 Alberto Rangel. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Disponível em: https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/
arangel.html. Acesso em 31 de ago. de 2020.

Sumário 181
volvimento da narrativa. Desse modo, como veremos, a personagem sofre diversos tipos de
violência por decorrência de suas marcas de identidade e de gênero.

A mulher no contexto Amazônico

No contexto amazônico, as primeiras representações da mulher são homólogas


aos primeiros relatos de viagem feitos na Região, datados em torno de 1541 e 1542. Tais re-
latos foram feitos pelo frei e cronista Gaspar de Carvajal na expedição pela Amazônia reali-
zada por Francisco Orellana. Em suas descrições, a respeito da mulher amazônica, podemos
observar uma conexão com o mito grego das amazonas, mulheres guerreiras. A mescla dos
relatos com o mito das amazonas percorreu as décadas como base da curiosidade de novos
expedicionários, que viajavam à região para obter as riquezas do “Eldorado” amazônico,
bem como com a finalidade de conhecer as mulheres guerreiras da floresta. A teórica Neide
Gondim, em seu livro “A invenção da Amazônia”, apresenta-nos um trecho dos relatos de
Carvajal em que ele descreve as mulheres da região amazônica como:
Estas mulheres são muito alvas e altas, com cabelo muito comprido, entrelaçado e
enrolado na cabeça. São muito membrudas e andam nuas em pêlo, tapadas as suas
vergonhas, com arcos e flechas nas mãos, fazendo tanta guerra como dez índios. E
em verdade houve uma destas mulheres que meteu um palmo de flecha por um dos
bergantins, e as outras um pouco menos de modo que os nossos bergantins pareciam
porco-espinho.23

No trecho acima podemos observar os primeiros relatos a respeito da presença


da mulher na Amazônia. Contudo, notamos que a descrição tecida por Carvajal não con-
diz com o arquétipo de tal indivíduo conhecido por nós nos dias de hoje. Dessa forma, o
cronista transpõe em seu relato os elementos do mito das amazonas presente no imaginário
europeu, aplicando e recriando este mito no território que está sendo explorado. Após essas
primeiras descrições da mulher amazônica, a figura não aparece mais em outros relatos de
forma significativa por um longo período. Com isso, temos poucas informações a respeito
da mulher amazônica.
Tal carência de dados também pode ter sido causada por supressão de infor-
mações por parte daqueles que escreviam sobre essa região do país. Diante deste quadro,
Heloísa Lara Campos da Costa, em seu livro “As mulheres e o poder na Amazônia”, tece o
seguinte comentário:
Dada a nebulosidade de que se revestem as informações sobre a mulher, tentar cap-
tar como se inseriu na realidade social passada da Amazônia, requer um duplo desa-
fio: primeiro, buscar o entendimento das relações sociais políticas e econômicas que,
imbricadas, produziram um determinado ideário sobre a mulher, e, segundo, o ocul-
tamento que cerca as informações sobre a mulher, pela excessiva “naturalização”
como são vistas e registradas pelos observadores as práticas de relações de gênero. É
como garimpar num terreno pedregoso e de difícil acesso ao veio principal.24

A partir do exposto, podemos notar como a falta de informações a respeito da


mulher na Amazônia interfere em nossos conhecimentos sobre a participação desses indiví-

23 CARVAJAL, 1941, p. 60-1 apud GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. Manaus: Valer, 1994, p. 83.
24 COSTA, Heloísa Lara Campos da. As mulheres e o poder na Amazônia. Manaus: Editora EDUA, 2005, p. 26.

Sumário 182
duos no processo de construção das sociedades dos universos amazônicos. Isso faz com que
a importância da mulher nesse contexto político e histórico seja resumida à descrição mito-
lógica, pois a falta de relatos culmina no apagamento da atuação e importância da mulher
dentro destes períodos e sociedades.
Ainda que o conhecimento construído e fixado no imaginário coletivo cultural
popular nos indique a presença de índios e índias ocupando o território em que hoje cha-
mamos de Amazônia, bem como, posteriormente, a presença do caboclo e da cabocla nessa
região, a escassez de relatos a respeito das figuras femininas presentes nesta parte de nosso
país nos motivam a entender como foram construídas as noções e estereótipos que permeiam
tais indivíduos. Costa25 já levantava a questão da dificuldade de se falar sobre a mulher do
contexto amazônico em suas sociedades passadas.
Após esses primeiros relatos da presença da mulher na Amazônia, outras des-
crições são traçadas apenas a partir do período da Amazônia Império-Colonial, momento
histórico da conquista e exploração da Amazônia para exploração do potencial econômico
da região. Neste cenário podemos observar a presença de mulheres de diferentes formas,
etnias e posições sociais, como, por exemplo mulheres brancas, negras, índias e caboclas. A
respeito das figuras femininas presentes em relatos datados deste período histórico, Costa
tece o seguinte comentário:
É muito frequente nos registros de viajantes a referência à lascívia e luxúria encon-
tradas nas mulheres nativas. O espontaneísmo sexual dessas mulheres indígenas e
caboclas, na visão de estrangeiros, em sua maior parte, de formação calvinista, etno-
centricamente era visto como imoralidade. Para a elite regional que pretendia se afir-
mar perante o colonizador, cumpria se distanciar dessas formas de comportamento,
utilizando-se de símbolos como roupas, joias, objetos de decoração, atitudes de re-
cato que cumpriam o papel de diferenciá-las do resto da população empobrecida.26

No trecho acima somos capazes de notar que a mulher no contexto amazônico,


especialmente a índia e a cabocla, eram extremamente erotizadas, vistas como símbolo de
luxúria e pecado. Tal pensamento se dava, provavelmente, devido às referências cristalizadas
no ideário cultural europeu, em que as mulheres estavam sempre cobertas por numerosas
roupas e acessórios, desempenhavam funções pré-estabelecidas pelo contexto social, político
e religioso e se portavam de acordo com uma tradição fixada ao longo dos tempos. Nesse
contexto, a nova figura com a qual esses colonizadores se deparavam causava neles o estra-
nhamento, e, consecutivamente, o desejo que o desconhecido suscita.
Diante disso, a mulher foi utilizada como um artifício de fixação e ampliação
populacional das colônias que estavam sendo fixadas não só na Amazônia, mas também em
outras regiões do país. O comércio e a exploração de matérias primas exigiam uma grande
demanda de pessoas, dessa forma, visando o povoamento da região e a manutenção do
poder da coroa portuguesa no território amazônico, criou-se, no território então conhecido
como Grão-Pará, no ano de 1755, uma capitania denominada São José do Rio Negro. Como
governante desta capitania esta Joaquim de Melo e Póvoas, que atuou como administrador
durante 16 anos, tendo entre os principais objetivos de seu governo fazer com que os nativos

25 COSTA, Heloísa Lara Campos da. As mulheres e o poder na Amazônia. Manaus: Editora EDUA, 2005.
26 Ibidem. p. 152.

Sumário 183
amazônicos se enquadrassem nos moldes e padrões dos europeus bem como a construção
de uma sociedade local firmada por meio do casamento entre mulheres nativas da região e
soldados.
Enxergamos, a partir do exposto, outra “função” atrelada à questão sexual da
mulher amazônica, a da procriação. A mistura das raças no período colonial não se deu de
forma pacífica, os casamentos entre índias, assim como negras, e soldados eram, em sua
maior parte, feitos de forma forçada e agressiva, as mulheres eram estupradas e a partir des-
sa violência nasciam novos habitantes nas colônias portuguesas na Região Norte do país. O
resultado desse passado violento com o corpo do indivíduo feminino indígena amazônico e
feminino negro foi a criação de sujeitos híbridos. Após esse primeiro momento de amplia-
ção populacional, o processo de miscigenação de povos na região ocorreu de maneira mais
ampla.
Ainda no contexto amazônico, no período da exploração e comércio da borra-
cha, as mulheres da Amazônia também tiveram seus corpos vistos como motivo de cobiça
e objeto sexual. O “boom da borracha” atraiu para a Região Norte do país milhares de pes-
soas, principalmente homens, motivados pela esperança de um enriquecimento rápido e de
melhores condições de vida. O ambiente isolado dos seringais e a escassez de mulheres eram
fontes fecundas para a criação de fantasias e desejos pelo corpo feminino quase inacessível
naquele contexto espaço-temporal.
Diversas narrativas literárias apontam para a falta de mulheres nos seringais e,
consequentemente, a objetificação do corpo feminino motivado por esta falta. Nessas nar-
rativas, observamos a mulher como uma “moeda”, ou como um símbolo de poder e rique-
za, pois apenas aqueles seringueiros que possuíam grandes quantidades de “saldo” com os
coronéis da borracha conseguiam pagar pelo luxo do corpo feminino para satisfazer seus
desejos sexuais.
Márcio Souza, em seu livro “A expressão amazonense: do colonialismo ao neo-
colonialismo”27, afirma que “com o extrativismo da borracha, onde a procura era maior que
a oferta, ela seria transformada em bem de luxo, objeto de alto valor, um item precioso na
lista de mercadorias, uma mobília”. No mesmo texto, o autor ainda salienta que no contexto
da Belle Époque, período em que ocorreu o processo de exploração da borracha na Amazô-
nia, as mulheres desta região foram transformadas em objetos, mercadoria, moeda de troca,
transformadas, assim, na personificação da objetificação humana.
Existe um claro contraste no que diz respeito às mulheres que habitavam a Re-
gião Norte do país no período da Belle Époque, bem como em períodos históricos posteriores.
As mulheres brancas, filhas, esposas, mães e de demais graus de parentesco com os homens
brancos eram tratadas de maneira muito distinta das mulheres indígenas, caboclas e negras.
Ainda que as mulheres brancas sofressem a subordinação ao homem branco dentro de seus
ambientes familiares, elas estavam “protegidas”, de certa maneira, de ter seus corpos trans-
formados em objeto, preconceito e escassez de recursos com os quais as mulheres indígenas,
caboclas e negras viviam diariamente.

27 SOUZA, Márcio. A expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Editora Alfa-Ômega,
1978, p. 99.

Sumário 184
Mulheres de outras etnias, que não a branca, eram colocadas como párias dentro
dos mais diversos contextos sociais da época. Diante desse cenário, observamos como a
figura feminina, também dentro do contexto dos universos amazônicos, se enquadrava em
arquétipos que, tanto os mais elevados quanto os menos abonados, sofriam com a opressão
masculina nas mais distintas esferas de suas vidas públicas e privadas.

Marcações corporais e culturais

A sexualização e objetificação do corpo feminino, de acordo com Rita Terezinha


Schmidt, em artigo intitulado “Para além do dualismo natureza/cultura: ficções do corpo
feminino”28, são fruto de um processo de cristalização de noções socioculturais e históricas
de inferiorização da figura feminina das mais diversas etnias e contextos sociais. A partir
disso, os traços naturais da mulher, enquanto representante feminino da espécie humana,
são sobrepostos pelos traços culturais depositados sobre os corpos destes indivíduos.
Encontramos, desse modo, segundo Schmidt29, um dualismo, ou seja, a coexis-
tência entre natureza e cultura no que diz respeito aos corpos das mulheres. Para Schmidt30,
a concepção de mulher criada culturalmente se mesclou com suas características naturais
no imaginário coletivo ocidental. Com isso, as mais diferentes representações artísticas re-
presentam as mulheres de acordo com os arquétipos consolidados culturalmente. De acordo
com a autora:
Tudo o que sabemos sobre o corpo feminino, no passado e presente, existe na for-
ma de representações e discursos, que são efeitos de mediações, nunca inocentes e
nunca isentos de interpretações. Isso quer dizer que o significado cultural do corpo
feminino não se reduz à referencialidade de um ser empírico de carne e osso, mas
constitui um constructo simbólico, produzido e reproduzido na cultura e na socieda-
de ocidental ao longo dos tempos.31

Tanto a objetificação quanto a inferiorização da figura feminina são marcas do


patriarcalismo institucionalizado nas mais diferentes sociedades do Ocidente. Para Schmi-
dt32, a “naturalização” dos arquétipos femininos também está presente nos discursos morais
nos mais distintos âmbitos de sociedades e culturas deste lado do globo. Assim, a reprodu-
ção de discursos de inferiorização, sexualização e objetificação da figura feminina culmina-
ram na cristalização destas noções em diversos contextos socioculturais.
Simone de Beauvoir33, em 1949 questionava: “O que é uma mulher?”. O apaga-
mento e diminuição da mulher fruto dos discursos masculinistas patriarcais atinge mulheres
de muitas sociedades, inclusive as mulheres presentes nos contextos amazônicos. Perguntar

28 SCHMIDT, Rita Terezinha. Para além do dualismo natureza/cultura: ficções do corpo feminino. In: Organização:
Revista da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vol. 27. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, nº 52, 2012. p. 233-261.
29 Ibidem.
30 Ibidem.
31 SCHMIDT, Rita Terezinha. Para além do dualismo natureza/cultura: ficções do corpo feminino. In: Organização:
Revista da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vol. 27. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, nº 52, 2012. p. 234.
32 Ibidem.
33 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Millet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 2016.

Sumário 185
o que é uma mulher amazônica pode ser mais difícil do que o próprio questionamento ini-
cial de Beauvoir. Isto ocorre pelo fato da mulher amazônica, principalmente no período das
expedições colonizadoras e na Belle Époque, estar submetida a outros estigmas e subordina-
ções além daqueles que as mulheres de outras sociedades ocidentais sofreram.
As diferenças entre homens e mulheres estão, em sua maioria, atreladas a uma
concepção de diferença de gêneros. O gênero, de acordo com Butler34, é sobreposto nos indi-
víduos como uma “marca” que o distingue biologicamente de outros indivíduos. Esta “mar-
ca” também determina uma diferença linguística e/ou cultural. Nos casos da diferenciação
linguística e cultural, “o gênero pode ser compreendido como um significante assumido por
um corpo (já) diferenciado sexualmente; contudo, mesmo assim esse significado só existe
em relação a outro significado oposto”35. Com isso, as noções que possuímos a respeito dos
indivíduos de um ou outro sexo ou gênero, são, para Butler36, discursivamente construídos.
Sobre tal afirmação, a autora tece o seguinte comentário:
Se o gênero ou o sexo são fixos ou livres, é função de um discurso que [...] busca esta-
belecer certos limites à análise ou salvaguardar certos dogmas do humanismo como
um pressuposto de qualquer análise do gênero. O locus de intratabilidade, tanto na
noção de “sexo” como na de “gênero”, bem como no próprio significado da noção
de “construção”, fornece indicações sobre as possibilidades culturais que podem e
não podem ser mobilizadas por meio de quaisquer análises posteriores. Os limites da
análise discursiva do gênero pressupõem e definem por antecipação as possibilida-
des das configurações imagináveis e realizáveis do gênero na cultura. Isso não quer
dizer que toda e qualquer possibilidade de gênero seja facultada, mas que as frontei-
ras analíticas sugerem os limites de uma experiência discursivamente condicionada.
Tais limites se estabelecem sempre nos termos de um discurso cultural hegemônico,
baseado em estruturas binárias que se apresentam como a linguagem da racionali-
dade universal. Assim, a coerção é introduzida naquilo que a linguagem constitui
como o domínio imaginável do gênero.37

Diante do exposto, observamos que além de discursivamente construídos, as con-


cepções que englobam o termo não são limitadas. Percebemos, desse modo, como a famosa
frase de Simone de Beauvoir pode ser neste contexto aplicada: “ninguém nasce mulher: tor-
na-se mulher”. A mulher amazônica, cabocla ou indígena, não “é”, foi criada. Assim, tratar
o gênero feminino na Europa ou na América do Norte não é o mesmo que trabalhar com
esta questão no hemisfério sul, ou no Brasil, ou ainda na Amazônia.
A mulher cabocla e indígena passou por diversos tipos de processos discursivos
que erigiram em torno de suas figuras estereótipos e todo um folclore que despertam as mais
diferentes sensações em cada indivíduo que porventura entre em contato com tais indiví-
duos. A arquitetura discursiva que significa a mulher indígena e cabocla dos contextos ama-
zônicos carece ainda de estudos para que possa ser melhor compreendida e, quem sabe, para

34 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. 11. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
35 Ibidem. p. 31. Grifo da autora.
36 Ibidem.
37 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. 11. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 30-1.

Sumário 186
que ocorra um processo de ressignificação dos estereótipos negativos colocados em cima de
seus corpos, marcas do colonialismo e das culturas patriarcais.
Em seu livro “O local da cultura”38, o crítico indo-britânico Homi K. Bhabha tece
diversos comentários a respeito de questões e marcas deixadas pelo colonialismo em nações
que sofreram com este tipo de prática. Assim, desenvolvendo uma crítica pós-colonialista,
Homi Bhabha analisa os efeitos políticos, culturais, entre outros, causados pelo sistema co-
lonial. O Brasil foi um dos diversos países que tiveram suas terras invadidas e colonizadas.
Essa prática se estendeu desde a costa do território nacional até a imensidão da floresta
amazônica.
Ao longo de todo o período colonial o território e a população brasileira foram
submetidos às categorizações, regras e imposições de seus colonizadores. Isso confluiu na
criação de uma alteridade daqueles que estavam submetidos às imposições dos colonizado-
res. De acordo com Bhabha39, “um aspecto importante do discurso colonial é sua dependên-
cia do conceito de ‘fixidez’ na construção ideológica da alteridade”. Diante disso, homens
e mulheres que vivenciaram o regime colonial brasileiro, bem como outros regimes, tiveram
suas identidades ressignificadas pelo discurso colonial hegemônico. Seus costumes, tradi-
ções, identidades, entre outros aspectos, foram realocados em uma alteridade imposta a eles
por seus colonizadores.
Como cita Bhabha40, a construção ideológica da alteridade necessita de uma “fi-
xidez” para obter sucesso. Por este motivo, os discursos a respeito daqueles que eram coloni-
zados e que eram tidos como diferentes de seus colonizadores eram constantemente repeti-
dos e reafirmados. Esse ato de repetição fazia com que a alteridade do colonizado ganhasse
força, quanto mais vezes afirmado maior a probabilidade de se estabilizar como “verdade”.
O estereótipo é um dos principais mecanismos de criação e fixação da alteridade.
Com isso, Bhabha41 observa que, “o estereótipo, que é a sua principal estratégia discursiva
[da alteridade], é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está
sempre no ‘lugar’, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido [...]”. Assim,
mediante o um processo de ambivalência, de fixidez e repetição, a alteridade de uma popu-
lação ou indivíduo é erigida. O que propomos em nossa pesquisa é investigar como esses
processos de estereotipação e fixação da alteridade se deram nas personagens femininas que
estão enquadradas dentro dos arquétipos da cabocla e da indígena da região amazônica.
Para isso, buscamos nos apoiar no método de investigação utilizado por Homi Bhabha, se-
gundo o autor:
Minha leitura do discurso colonial sugere que o ponto de intervenção deveria ser
deslocado do imediato reconhecimento das imagens como positivas ou negativas
para uma compreensão dos processos de subjetivação tornados possíveis (e plausíveis)
através do discurso do estereótipo. Julgar a imagem estereotipada com base em uma
normatividade política prévia é descartá-la, não deslocá-la, o que só é possível ao se
lidar com sua eficácia, com o repertório de posições de poder e resistência, domina-

38 BHABHA, Homi K. O local da cultura. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
39 Ibidem. p. 117.
40 BHABHA, Homi K. O local da cultura. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
41 Ibidem. p. 117.

Sumário 187
ção e dependência, que constrói o sujeito da identificação colonial (tanto coloniza-
dor como colonizado).42

Dessa forma, conforme a estratégia investigativa utilizada por Bhabha, nossa pes-
quisa buscará não apenas reconhecer as imagens, estereótipos e discursos de cristalização
dos arquétipos das mulheres indígena e cabocla da Amazônia como também investigar os
“processos de subjetivação” utilizados para tal ação. Como aponta Bhabha43, “para com-
preender a produtividade do poder colonial é crucial construir o seu regime de verdade e não
submeter suas representações a um julgamento normatizante”, isto quer dizer, ao analisar-
mos discursos que são provenientes de um período colonial devemos apurar quais eram, na
época da escrita, as noções de “verdade” presentes naquele universo.
A partir disso, é importante que não signifiquemos a “verdade colonial” como
verdade absoluta, não façamos dela a “norma” ou o “natural”. Para analisarmos narrativas
que tratem do período supracitado ou que mostrem ainda discursos parecidos com ele deve-
mos ter em mente a investigação do processo que levou esses discursos a serem tidos como
“verdade”. A partir disso, Bhabha44 salienta que uma leitura desempenhada nesses moldes
revela “as fronteiras do discurso colonial, permitindo uma transgressão desses limites a par-
tir do espaço daquela alteridade”. A respeito das noções de sujeito erigidos pelas práticas
coloniais o autor aponta que:
A construção do sujeito colonial no discurso, o exercício do poder colonial através
do discurso, exige uma articulação das formas da diferença – raciais e sexuais. Essa
articulação torna-se crucial se considerarmos que o corpo está sempre simultanea-
mente (mesmo que de modo conflituoso) inscrito tanto na economia do prazer e do
desejo como na economia do discurso, da dominação e do poder.45

A partir do exposto acima, observamos que a questão da construção dos sujeitos


coloniais, tais como a mulher cabocla e indígena, possuem como um de seus alicerces a di-
ferenciação, tanto racial como sexual, embasadas por uma economia de poder. A economia
de poder, como afirma Bhabha46, “é uma forma de discurso crucial para a ligação de uma
série de diferenças e discriminações que embasam as práticas discursivas e políticas da hie-
rarquização racial e cultural”.

Maibi: sexualização e inferiorização da mulher cabocla

As discussões que tecemos até o presente momento nos dão suporte para tra-
çarmos uma análise do conto “Maibi”, de Alberto Rangel. Discutirmos sobre identidade e
gênero, e as marcações corporais e culturais que essas duas esferas do sujeito humano imbri-
cam em um determinado grupo de indivíduos nos dá noção de como esses conceitos foram
erigidos e como eles refletem nas estruturas de poder da sociedade, bem como no âmbito
artístico, como no caso da literatura.

42 Ibidem, p. 118.
43 Ibidem.
44 BHABHA, Homi K. O local da cultura. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 119.
45 Ibidem.
46 Ibidem.

Sumário 188
O conto em análise apresenta a história de Sabino, seringueiro que possui dívi-
das com seu patrão Marciano. Para quitar essas dívidas e poder ter a sensação de liberdade,
Sabino troca sua mulher, Maibi, com outro seringueiro, Sérgio, que ficará responsável pelo
pagamento de seus débitos até o momento contraídos. Contudo, enciumado por sua mulher
estar nos braços de outro homem, Sabino a mata e, segundo o próprio texto, transforma
Maibi em um símbolo da própria exploração que os seringueiros sofriam por parte dos
patrões. Sabino amarra a mulher a uma seringueira, a corta de tal modo a imitar os rasgos
feitos nas cascas das árvores de seringa e coleta o sangue de Maibi em recipientes de coleta
da seiva branca.
O conto apresenta várias temáticas que podem ser discutidas, como a exploração
dos seringueiros e o prejuízo à floresta causado pela extração da seiva da seringueira. Con-
tudo, nosso trabalho volta seu olhar para a objetificação, inferiorização e sexualização da
mulher cabocla que vive nesse ambiente dos seringais. A cabocla, tida como um espécime
inferior dentro das estruturas de poder, é transformada dentro do conto de Rangel em um
objeto de troca, uma moeda. A degradação de seu ser começa logo no início do conto. Na
primeira página da narrativa já observamos o triste destino de Maibi. Isenta de poder sobre
si mesma, Maibi é utilizada como moeda de troca por seu marido Sabino.
Sabino realiza a transferência de seus débitos a Sérgio, outro seringueiro que
possui saldo com o patrão. A mulher (Maibi) foi dada a outro homem como amortização de
dívida, em que seu novo “dono” se incumbira de responsabilidade de pagar os débitos do
“dono” anterior (Sabino). A objetificação da mulher cabocla dentro do ambiente dos serin-
gais é tamanha que a realização de tal operação circula entre as partes envolvidas no acordo,
com exceção de Maibi, de maneira natural. Podemos observar a naturalidade da transação
no seguinte excerto do texto de Rangel:
Mas, que negócio fora afinal firmado? O Sabino devia ao patrão sete contos e du-
zentos, que a tanto montava a adição das parcelas de dívidas de quatro anos atrás, e
cedia a mulher a um outro freguês do seringal, o Sérgio, que por sua vez assumia a
responsabilidade de saldar essa dívida. O mais comum dos arranjos comerciais, essa
transferência de débito, com o assentimento do credor, por saldo de contas.47

A mulher dentro do seringal, a cabocla, deixa seu lugar de indivíduo e passa a ser
tratada como objeto. O autor ressalta no texto que essa inferiorização do feminino é comum
dentro deste ambiente, “o mais comum dos arranjos comerciais”. Nesta nova sociedade
amazônica dos seringais não eram seguidas as leis do sudeste ou do sul do país, o ambiente
firmava suas próprias regras: “o que satisfazia na campanha do Rio Grande, no oeste de
São Paulo, no interior de Pernambuco, não era suficiente no Madeira, no Purus, no Juruá.
Desde logo o que a legislação não previu, a indústria nascente fundou”48.
Além de ser vista como objeto, a mulher, no caso do texto a cabocla Maibi, era
tida como um estorvo para os seringueiros, pois estes não dedicavam-se tanto ao trabalho
por ter alguém os esperando ao final do dia, na visão dos patrões, ou, de outro ponto de
vista, os seringueiros não conseguiam adquirir “salto”, pois além de sustentar a si próprios
precisavam fornecer alimento e outros itens de necessidade básica para mais uma pessoa:
47 RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 6. ed. Manaus: Valer, 2008, p. 121.
48 RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 6. ed. Manaus: Valer, 2008, p. 122.

Sumário 189
“tirar saldo é a obsessão do trabalhador, no seringal. E como não ser assim, se o saldo é a
liberdade? O regime da indústria seringueira tem sido abominável”49. Nesse cenário, obser-
vamos como a mulher é subjugada por diversas frentes, seu valor enquanto indivíduo prati-
camente não existe.
A troca interessava ao patrão, que ficava mais seguro com o Sérgio, rapaz afamado
como trabalhador insigne. E o Sabino iria labutar com ânimo, na esperança, agora
bem realizável, de tirar saldo no fim do ano. Com a mulher, a sua peia maior também
tinha desaparecido: os sete contos e tanto, que neles pensar era se lançar pela certa
num deplorável estado de desalento. Compreendia o Sabino que em companhia da
esposa, por mais que trabalhasse, nunca pagaria a dívida crescente e escravo se tor-
nava. O débito era um par de machos...50

No conto, existem poucas descrições a respeito dos personagens, contudo, quan-


do analisamos as descrições tecidas pelo narrador, observamos que, quando essas descrições
se referem aos homens, elas têm como foco o modo de vida, a luta diária, os desafios enfren-
tados por esses indivíduos. Por outro lado, quando o narrador enfoca Maibi, o delineamento
que é apresentado da personagem é sobre seu corpo, seus traços físicos e comportamentais.
Suas lutas, suas dificuldades e a exploração que sofre dentro do seringal não aparece ao
decorrer da narrativa. Maibi, no conto de Rangel, não recebe sequer voz, ou algum pensa-
mento seu descrito pelo narrador. Tudo o que sabemos sobre a cabocla nos é descrito por
meio do narrador ou de personagens homens presentes no texto. Assim, vemos um contraste
entre as descrições, enquanto a descrição de Sabino aborda sua vida, a de Maibi revela seu
corpo, eroticamente retratado.
Bem tempo fazia que deixara o baixo Amazonas, primeira etapa de seu êxodo de
condenado. Lá trabalhara três anos sem vantagem. Afora um pouco de “tapuru”, a
seringa era “fraca”, “itaúba”. No lago do Castanho, casara-se com aquela cabocla,
linda cunhã, enguiço núbil, tentação que lhe chegara para atrapalhar a vida, pois,
se tivesse vindo sozinho, nessa época, labutar no alto, na seringa, estaria certamen-
te a essas horas no seu querido Ceará. Era verdade que, em companhia da Maibi,
mais doce lhe correra a existência... Contudo, tinha sido um atropelo. Conseguira
desenvencilhar-se, mas, ganhando; tinha saudade, porém, da “danada” cabocla. Ah!
os olhos dela, tingidos no sumo do pajurá; o andar miúdo e ligeiro de um maçarico;
ah! os seus cabelos do negro da poupa de mutum-“fava”; o vulto roliço... As carícias
ardentes da moça iriam agora aplicar-se em outro... Nos braços de outro ela se ar-
rebataria em juras e suspiros... Fora-lhe bem duro apartar-se; mas “era o jeito”. E o
seringueiro procurava abafar pensamentos que o incomodavam...51

Ao entregar Maibi como quitação de dívida, Sabino se sente aliviado, não se ar-
repende de sua decisão. Isso nos mostra como a figura feminina, ainda que escassa dentro
do universo dos seringais, é descartável. Para Sabino, mais valia ter a dívida paga do que
ficar com a mulher com quem era casado e dividia a vida: “o sabino declarou que não se
havia arrependido; não metia o pé atrás [...]”52. Além da exploração e inferiorização da

49 Ibidem.
50 Ibidem.
51 RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 6. ed. Manaus: Valer, 2008, p. 122, p. 123.
52 Ibidem. p. 124.

Sumário 190
figura da cabocla no conto “Maibi”, observamos também uma outra imagem feminina que
é explorada: a floresta. Tida como símbolo de fertilidade, a floresta pode ser associada a
uma figura feminina, explorada o máximo possível pelos homens em busca de capital. Em
um dos trechos do conto de Rangel, observamos que a busca obstinada por riqueza leva os
seringueiros e seus patrões a negligenciarem os danos causados à floresta. A seiva das serin-
gueiras precisava ser retirada ao máximo, não importando a saúde das árvores. Os métodos
de extração usados levavam as plantas à morte.
Diante do cenário em que se encontrava, trocada como mercadoria por seu mari-
do e dada a outro homem, Maibi foge da nova vida a que fora submetida contra sua vontade:
“a cabocla desaparecera; só deixara uma anágua no baú, indagando... chegaria mesmo ao
Umarizal. E o Sérgio, devastado de indignação e angústia, desceu precipitadamente a esca-
da da ponte”53. O narrador não revela explicitamente os motivos que levaram a cabocla a
fugir de sua nova morada, relata apenas que seu novo “dono” estava fora e ela aproveitou a
oportunidade para escapar. Nesse contexto, seu novo “responsável”, Sérgio, vai ao encontro
do patrão para lamentar o ocorrido e buscar uma solução. Nesse momento, mesmo sofrendo
praticamente uma desumanização por ter sido equiparada a um objeto de troca, Sérgio e
Marciano, o patrão, não se compadecem da situação da cabocla.
Após esse episódio, Maibi é encontrada por Zé Magro, outro seringueiro que
aparece no conto, atada a uma seringueira e cortada como se “sangrasse” uma seringueira.
Sabino a matou. A violação do corpo da cabocla retrata a violência sofrida pelo seringuei-
ro, a sua situação de vida análoga à escravidão: “atado com uns pedaços de ambécima à
‘madeira’ da estrada, o corpo acanelado da cabocla adornava bizarramente a planta que lhe
servia de estranho pelourinho. Era como uma extravagante orquídea, carnosa e trigueira,
nascida ao pé da árvore fatídica”54. Os rasgos são feitos no corpo nu da cabocla, crucificada
a uma árvore de seringa: “uma mulher, completamente despida, estava amarrada a certa
seringueira. Não se lhe via bem a face na moldura lustrosa, em jorro negro e denso, dos ca-
belos fartos”55. O corpo nu e violado de Maibi é considerado um espetáculo por Zé Magro,
mesmo após a morte o corpo feminino é sexualizado.
Sobre os seios túrgidos, sobre o ventre arqueado, nas pernas rijas, tinha sido profun-
damente embutida na carne, modelada em argila baça, uma dúzia de tigelas. Devia
o sangue da mulher enchê-las e por elas transbordar, regando as raízes do poste
vivo que sustinha a morta. Nos recipientes o leite estava coalhado – um cernambi
vermelho.56

Mabi sofre diversos tipos de violência ao longo do conto, contudo, sua morte não
é tratada como a morte de um sujeito. Ao invés de se associar o trágico fim da cabocla a
sua condição de mulher-objeto, a morte da personagem ganha uma outra interpretação aos
olhos do narrador. A morte de Maibi é comparada a da floresta, a narrativa ameniza a morte
da mulher, falando que seu martírio é menor do que o da floresta: “tinha esse espetáculo de
flagício inédito a grandeza emocional e harmoniosa de imenso símbolo pagão, com a apa-

53 Ibidem. p. 127.
54 RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 6. ed. Manaus: Valer, 2008, p. 130-1.
55 Ibidem. p. 130.
56 Ibidem. p. 131.

Sumário 191
rência de holocausto cruento oferecido a uma divindade babilônica, desconhecida e terrível.
É que, imolada na árvore, essa mulher representava a terra...”57.
Ainda que a floresta tenha como uma de suas simbologias o feminino, a cabocla
é despersonificada, desumanizada. Dela é tirado até o direito de morrer como mulher. Para
o narrador, a morte de Maibi é um símbolo de denúncia da própria exploração que os serin-
gueiros sofriam:
O martírio de Maibi, com a sua vida a escoar-se nas tigelinhas do seringueiro, seria
ainda assim bem menor que o do Amazonas, oferecendo-se em pasto de uma in-
dústria que o esgota. A vingança do seringueiro, com intenção diversa, esculpira a
imagem imponente e flagrante de sua sacrificada exploração. Havia uma auréola de
oblação nesse cadáver, que se diria representar, em miniatura, um crime maior, não
cometido pelo Amor, em coração desvairado, mas pela Ambição coletiva de milha-
res d’almas endoidecidas na cobiça universal.58

Contudo, apesar dessa associação entre a morte da cabocla e a exploração dos


seringueiros, Maibi morrera principalmente pelo fato de ser mulher, de estar em uma posi-
ção social, racial e de gênero inferior a daqueles que estavam em sua volta no universo do
seringal. Ainda que sua morte venha a simbolizar essa violência em uma dimensão mais
ampla da vida dos seringais, a diminuição de sua morte pela decorrência de seu gênero e dos
significados a ele atribuídos acabam por contribuir para uma perpetuação da normalização
da violência sofrida pelas mulheres caboclas. Maibi é silenciada desde o corpo do texto, em
que não há nenhuma fala da personagem, apesar de seu nome dar nome ao conto. Sexuali-
zada, inferiorizada e silenciada, Maibi é o retrato das caboclas da Amazônia. Sua existência
é transpassada pelos mais diversos tipos de violência: físicas e simbólicas.

Considerações finais

Em estudo crítico publicado na 6ª edição de “Inferno Verde”, Marcos Frederico


Krüger comenta a respeito do conto “Maibi”. De acordo com Krüger, se aproximado das
conclusões ditadas pelo próprio narrador do texto, “Maibi” apresenta o tópico da violência
de modo exacerbado. No conto encontramos a violência contra os trabalhadores braçais
dos seringais, os seringueiros, a violência praticada contra a floresta, bem como a violência
aplicada contra a cabocla Maibi. Outra reflexão que Krüger faz é sobre a metáfora que o
conto tem a intenção de passar. O narrador faz questão de exprimir no texto a mensagem
que almeja transmitir com a narrativa: a da morte da cabocla como um símbolo maior, o da
exploração dos seringueiros e da obstinada busca por riquezas.
Para Krüger, bem como para o narrador do conto, “Maibi” apresenta em suas
entrelinhas a imagem de uma impossível conquista da Amazônia pelos nordestinos, pelos
seringueiros. Krüger59 afirma que “em ‘Maibi’, torna-se evidente que tais indivíduos, que
podem ser brancos na pele mas não no poder econômico, apenas sangrarão, sem nenhum
aproveitamento, as inesgotáveis riquezas que a mentalidade do ‘celeiro do mundo’ atribuía
à floresta”. Contudo, buscamos mostrar, por meio da análise aqui apresentada, que a vida

57 Ibidem.
58 Ibidem.
59 RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 6. ed. Manaus: Valer, 2008, p. 20.

Sumário 192
e a morte de Maibi representa, em primeiro plano, a vida, a sexualização e a inferiorização
da mulher cabocla dentro do cenário dos seringais.
Para nós fica claro que as violências que Maibi sofre, ainda que os seringueiros
também sejam explorados e tenham uma existência análoga à escravidão dentro dos se-
ringais, são maiores do que as cometidas contra os seringueiros. Maibi tem sua existência
diminuída a um objeto, seu corpo é violado por motivos alheios a ela.
Para Euclides da Cunha60, em prefácio a “Inferno Verde”, “Maibi é a imagem da
Amazônia mutilada pelas miríades de golpes das machadinhas homicidas dos seringueiros”.
Para nós, em primeira análise, Maibi é a representação de um grupo de indivíduos silen-
ciados, violentados e explorados: as caboclas da Amazônia. Sua existência é resumida a
erotização de seu corpo e a inferiorização do seu ser (por meio de discursos e ações). Trazer
à superfície essa subjugação da cabocla é uma forma de refletir e denunciar as condições de
vida que muitas dessas mulheres tiveram, ou que ainda tem, dentro do cenário “encantado”
da floresta Amazônica.

Referências
Alberto Rangel. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Disponível em: https://ihgb.org.br/
perfil/userprofile/arangel.html. Acesso em 31 de ago. de 2020.
BARROS, Carolina Pinheiro; ARAÚJO, Thays Coelho de. A (des)construção identitária do sujeito
caboclo: “que caoboquice é essa?”. Revista Memorare. Tubarão, v. 4, n. 3-I esp. dossiê Identidades
e Migrações, p. 14-22, 2017.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Millet. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato
Aguiar. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
COSTA, Heloísa Lara Campos da. As mulheres e o poder na Amazônia. Manaus: Editora EDUA,
2005.
GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. Manaus: Valer, 1994.
RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 6. ed. Manaus: Valer, 2008.
SCHMIDT, Rita Terezinha. Para além do dualismo natureza/cultura: ficções do corpo feminino. In:
Organização: Revista da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Vol. 27. Porto Alegre: Editora da UFRGS, nº 52, 2012, p. 233 – 261.
SOUZA, Márcio. A expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Edi-
tora Alfa-Ômega, 1978.

60 RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 6. ed. Manaus: Valer, 2008, p. 27.

Sumário 193
A bolsa de fio de nylon M axakali :
poética e similitude

Cássia Macieira

Assim como a embaúba, outras matérias encontradas em suas regiões servem à arte
das mulheres tikmu’un. Os sacos de mantimentos hoje são desfeitos e transformados
em novas linhas em um mesmo e contínuo gesto que modela. Surge então um jogo
de cores variadas que permite uma constante surpresa do olhar. É na junção dos
finos fiapos da embaúba e de outros fios, na modelagem de malhas que se entrela-
çam sem nós, na delicadeza e na liminaridade dessa arte que reside a força-estética
tikmu’un (Museu do Indio, 2018).

E
ntender a cultura imaterial e material Maxakali, especificamente a manu-
fatura da bolsa feminina, significa, sobretudo, não apartar as indígenas
do que lhes é próprio: cantar e tecer. A prática do tecer circula, cotidiana-
mente, no grupo feminino; compreendê-la requer, portanto, inteirar-se da dinâmica da vida
social e cultural dessas tecelãs. Não se vislumbra, aqui, a perspectiva utópica de inseri-las
em um contexto sem conflitos e paradoxos, ignorando os efeitos da subjetividade individual
e coletiva, ou nos esforçando para subtrair categorias ocidentais de sujeito e objeto. Tam-
pouco se pretende ver a bolsa de fio de nylon (mimética) como produção artesanal associa-
dos aos valores críticos do Design, tais como função e forma. Ainda, haverá nosso empenho
em evitar a primazia da percepção hegemônica “sempre com referência ao nosso próprio
mundo”1, como faz saber Clastres (2012), o que nos levará, com esforço, à uma análise para
além do ponto de vista eminentemente acadêmico.

1 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado. 1 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Sumário 194
Os Maxakali (Tikmu’un)2 vivem atualmente em áreas reduzidas, descontínuas e
pouco produtivas como os imensos capinzais de fazendas desapropriadas. Os recursos na-
turais são escassos, levando os grupos a uma condição socioeconômica à primeira vista
irreversível. A história Maxakali é marcada pela luta incessante de seu povo há mais de
um século. Os diversos grupos que outrora habitavam extensões férteis foram submetidos a
sucessivas atrocidades: massacres, e escravidão. Suas terras foram roubadas, restando a eles
pastos e montanhas, áreas improdutivas que não lhes permite a práxis de sua economia bási-
ca. Ainda assim, a atividade principal dos Maxakali é a agricultura, seguida da caça e ainda,
cestas básicas doadas pelo governo, sendo que as mulheres Maxakalis produzem artesanato
e tem como primazia a criação de bolsas e colares.

Foto 1 - Bolsa de fio de nylon ( fio do saco de cebola).


Foto 2 - Bolsa de fio da embaúba ( fibra natural) com sementes.
Foto: Acervo e fotografia da autora

Sobre o material usado na criação das bolsas tem-se a embaúba (imbaúba ou


envira) porém não é mais a única matéria-prima das atividades manufatureiras femininas
Maxakali pois tal espécie pouco ocorre no norte de Minas Gerais. Conhecida como plan-
ta têxtil para cordame, a embaúba é “de terrenos úmidos e alagadiços, podendo, contudo,
ocorrer [nos] mais drenados [e nas] bordas e clareiras de matas em processo de regeneração,
[com] preferência pelos locais ensolarados.”3 Para as mulheres Maxakali, o processo de
transformar lascas de madeira em fios requer condições favoráveis4 e o tempo certo para
2 “Tikmu’un é a autodenominação dos Maxacali, nome pelo qual são administrativamente reconhecidos pelo Estado
brasileiro. Nos dias atuais são um conjunto de povos com cerca de 1.500 pessoas, falantes da língua Maxacali, tida como
pertencente ao tronco Macro-jê. Vivem em quatro terras indígenas localizadas ao extremo nordeste de Minas Gerais, na
fronteira com o Estado da Bahia, nos municípios de Santa Helena, Bertópolis, Ladainha e Teófilo Otoni. A soma da ex-
tensão destas terras descontínuas é de 6.020 hectares.” MUSEU DO ÍNDIO. Tikmu’un/Maxacali, 2011. Disponível em:
<http://www.museudoindio.gov.br/educativo/pesquisa-escolar/973-linhas-encantadas-embauba-fibra-mae>. Acesso em:
06 nov. 2018.
3 Disponível em: <https://www.portalsaofrancisco.com.br/biologia/embauba>. Acesso em: 15 jan. 2019.
4 “a condição do terreno determina uma dificuldade intrínseca à busca da embaúba, tornando a retirada da casca uma
operação complexa que implica em cuidados e habilidades específicas (tanto femininas quanto masculinas, já que aos
homens cabe a tarefa de abrir os caminhos para chegar às plantas)”. MAGNANI, Cláudia. Ũn Ka’ok – Mulheres fortes:
uma etnografia das práticas e saberes extra-ordinários das mulheres Tikmũ’ũn ˗ Maxakali. Tese (Mestrado em Educação)
˗ Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018, p.223

Sumário 195
coleta, além de ser sempre acompanhado por rituais. Sobre a atividade artesanal sabe-se
que “os homens confeccionam arcos, flechas, badoques, chocalhos e pequenas esculturas
na madeira; as mulheres, os fios utilizados nos arcos e badoques, redes, sacolas, panelas de
barro, cortinas e colares”.5
O artefato bolsa de fio de nylon faz parte da cultura material Maxakali ˗ produ-
ção de acessórios femininos (bolsas, colares, brincos, pulseiras, redes etc.) com o mesmo
impulso estético com o qual é feita a bolsa de fibra natural (embaúba); todavia, as ma-
térias-primas condicionam diferentes preços6 para as bolsas, conforme tamanho e forma,
quando comercializadas em feiras7 e eventos. As bolsas apresentam as seguintes variações:
formato quadrado, redondo ou retangular; com/sem bolsos internos pequenos para celular;
tamanhos pequeno ou médio; todas têm alças para uso a tiracolo; alguns modelos trazem
enfeites de sementes naturais ou miçanga (objeto industrializado, miniaturizado em forma
de semente, e feito de massa de vidro). As bolsas também são feitas com linhas industriali-
zadas (algodão ou não) adquiridas no comércio, próximo a aldeia. Pode-se contudo afirmar
que a visualidade proporcionada pelos fios grosseiros do nylon; é o que mais se destaca pela
similitude, com a textura dos pontos largos resultantes da tecelagem, sem instrumento, do
fio da embaúba.
O gesto inventivo e perceptivo de decompor embalagens em novos fios, tirando
partido do que está disponível, produz um novo desempenho: o objeto imitativo atado à pro-
dução da diferença, ampliando transformações e a visibilidade de práticas inéditas. A rup-
tura na materialidade típica do fazer artesanal Maxakali, substituindo a fibra da embaúba
pelo fio de nylon (e outros insumos artificiais comprados), ainda assim diz respeito à etnici-
dade, ao ethos, porque a bolsa sintética também faz parte da economia simbólica, da cultura
material feminina Maxakali, configurando-se em um signo identitário: trabalho coletivo e
ritualizado, com a presença dos Ỹamῖy. Segundo, Cláudia Magnani em Ũn Ka’ok -Mulheres
Fortes:uma etnografia das práticas e saberes extra-ordinários das mulheres tikmũ’ũn -maxakali :
Tais saberes femininos, de antigamente e de hoje, entre mudanças e continuidades,
são, a meu ver, emblemáticos para se observar, de um lado, a agência das mulheres
em seu dia-a-dia e suas atuações na produção (ou ruptura) da socialidade do grupo
e do parentesco e, de outro, para compreender o caráter sensorial e incógnito do
conhecimento feminino que atua num plano cosmológico mais amplo; “liminar”
e “inaudível”, usando as palavras de Rosângela deTugny (2011), mas ao mesmo
tempo poderoso e transformador. Neste sentido, emergiram aspectos importantes
que colocam estas práticas no domínio do extraordinário, contemplando atos como:
a interação com agências não-humanas, interdições rituais específicas, fórmulas e
5 ALVES, Vânia de Fátima Noronha. O corpo lúdico Maxakali. Segredos de um “programa de índio”. Belo Horizonte:
FUMEC-FACE, 2003, p.164.
6 A bolsa de embaúba, dependendo do tamanho, valia entre 50 e 100 reais, enquanto a bolsa de fios de nylon custava 50
reais. Ambas estavam expostas na Faculdade de Educação (FALE/UFMG), em novembro de 2018, durante o Curso de
Formação Intercultural de Educadores Indígenas. Renata e Delcida Maxakali, representantes do artesanato feminino Ma-
xakali no local, não falavam a Língua Portuguesa: durante a comercialização, apenas repetiam valores, conforme o objeto:
50 ou 100 reais. Um intermediador ficava encarregado de prestar maiores informações sobre os artigos.
7 Outra possibilidade que os Maxakali encontram para sair da reserva é a participação em feiras, normalmente realizadas
nos finais de semana, em cidades próximas. O grupo do Pradinho frequenta a Feira de Batinga (BA) nas manhãs de sábado;
os indígenas de Água Boa, a de Santa Helena (MG), nas manhãs de domingo. O movimento nas aldeias começa cedo. As
famílias caminham por duas ou três horas até o local do evento, levando consigo o artesanato e uma pequena produção
agrícola para negociar, com feirantes e moradores, produtos de primeira necessidade e cachaça. ALVES, Vânia de Fátima
Noronha. O corpo lúdico Maxakali. Segredos de um “programa de índio”. Belo Horizonte: FUMEC-FACE, 2003, p.109.

Sumário 196
procedimentos xamânicos.A partir da análise de diversos conhecimentos e produ-
ções femininas, e da minha experiência do encontro etnográfico, a investigação teve
como objetivo, então, compreender o que significa ser mulher e agir como mulher
nas esferas cotidianas e rituais –não sendo estas separadas, muito menos opostas –de
seu mundo.8

Na organização social e cosmológica animista Maxakali, após a morte, a alma


humana se transforma em Ỹamῖy9: entidades invisíveis, seres que cantam e curam. Habitam
outra dimensão, mas retornam ao “mundo dos vivos” para cantar e dançar com os humanos.
“Todo o conhecimento, seja este do domínio do sagrado ou não, pertence aos espíritos, são
eles que o trazem aos humanos”10.. Os Ỹamῖy estão conectados com as almas dos mortos e
com a natureza, compartilhando cantos com os espíritos de todos os seres vivos.
A bolsa feminina sintética encanta pela padronagem de cores variadas e pela tex-
tura resultante da engenhosidade da trama sem nós: perícia do que é feito à mão. Às vezes,
o acessório é tecido sem o auxílio de uma agulha de aço; quando isso ocorre, os entrelaça-
mentos são perceptíveis na textura ímpar. De materialidade distinta, uma de fibra natural e
outra, de fio de nylon, as bolsas exibem a virtuosidade da atividade manufatureira feminina
e sua forma de agir no mundo Maxakali e fora dele. Nota-se ainda, no grupo, o uso de em-
bornal conhecido como tuhut, tecido com embira e linha de algodão ou sintética, no qual
homens e mulheres carregam pequenos objetos.
Para entender o material sintético, plástico, integrado à vida Maxakali, deve-se
reconhecer que há outros elementos funcionais e estéticos em seu cotidiano, e que ignorar
tal exogenia poderia incorrer numa perspectiva romantizada. Testemunha-se no grupo a pre-
sença de objetos exógenos como brinquedos de plástico, espingarda, rádio, telefone celular
e uniforme de time de futebol. Também é comum observar materiais coloridos industriais
substituindo tintas naturais (urucum) na pintura dos rostos e corpos deste povo. “Garrafas
Pet se tornam objetos sagrados quando, em ritual, transformam-se em recipientes para o lí-
quido, que pode variar de suco de groselha a refrigerante, a ser ofertado aos Ỹamῖy”11. Essas
incorporações do objeto industrializado é uma resposta a certas exigências da vida comum.
Outro indício da cultura do homem branco entre os Maxakali é a adoção de nomes externos
à etnia para os recém-nascidos da tribo, escolhidos “entre pessoas que próximo ao nasci-
mento ou à gravidez [...] tenham tido um breve contato com os Maxakali”12
8 MAGNANI, Cláudia. Ũn Ka’ok – Mulheres fortes: uma etnografia das práticas e saberes extra-ordinários das mulhe-
res Tikmũ’ũn ˗ Maxakali. 2018, Tese (Mestrado em Educação) ˗ Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2018, p.41
9 Estes espíritos/cantos, os Ỹamῖy, têm um contato intenso com os humanos, de diferentes formas. Os destinos dos huma-
nos estão ligados aos Ỹamῖy durante toda a vida. Os Ỹamῖy são, então, os espíritos cantores e ao mesmo tempo os próprios
cantos .ROSSE, Eduardo Pires. Explosão de xũnĩm. 2007. Dissertação (Mestrado em Etnomusicologia). Universidade Paris
8. Vincennes, Departamento de Música, Saint-Denis, França, 2007, p.11.
10 ALVES, Vânia de Fátima Noronha. O corpo lúdico Maxakali. Segredos de um “programa de índio”. Belo Horizonte:
FUMEC-FACE, 2003, p.167.
11 BICALHO, Charles. Koxuk, a imagem do yãmîy na poética Maxakali. 2010, 229f. Tese Doutorado em Estudos Lite-
rários da Faculdade de Letras da UFMG, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,2010,p.113.
12 “técnicas da onomástica. Todos os nomes Maxakali são extraídos da Língua Portuguesa. São nomes de pessoas com
os quais os índios tiveram algum tipo de contato É dessa maneira que eles demonstram sua afeição. É comum encontrar
índios com nomes de políticos, objetos, frutas ou outras palavras em Português que eles tenham ouvido e gostado. Todos
assinam Maxakali. Alvares (1992) detectou que durante o primeiro ano de sua vida a criança recebe vários nomes e que só
após começar a se locomover sozinha e emitir as primeiras palavras é que um nome se mantém” . ALVES, Vânia de Fátima
Noronha. O corpo lúdico Maxakali. Segredos de um “programa de índio”. Belo Horizonte: FUMEC-FACE, 2003, p.63.

Sumário 197
Na tecelagem feminina Maxakali não se exclui o mundo masculino, tampouco a
comunidade indígena, o cotidiano, as relações harmoniosas, as conflituosas e seus modos
de ocupar o tempo e o espaço social. O companheirismo das artesãs, ao tecerem e cantarem
quase sempre juntas, não impede eventuais desentendimentos e competições entre si: há,
sim, comparações sobre o virtuosismo de cada uma no entrelaçamento dos fios. Por sua vez,
os cantos que acompanham as atividades presentificam o tecer dos fios artificiais, embora de
maneira diferente da “práxis espiritual” com a embaúba ˗ nesta, a retirada da casca vegetal
dá-se pelo encontro, pelo canto, pela presença e pela relação que é estabelecida com a plan-
ta. Para a antropóloga Cláudia Magnani:
a relação da peça com a artesã se revela fundamental para efetuar operações xamâ-
nicas de ordem terapêutica. Isso é possível porque as relações técnicas e afetivas
das quais depende o sucesso de uma peça não se desvinculam de suas finalidades
práticas e de sua eficácia cosmológica, implicando numa relação intrínseca entre as
qualidades estéticas e funcionais, e a agência do artefato.13

Se a tecelagem da embaúba promove toda uma relação espiritual, o ato de tecer


o material sintético, cujo fio não pertence à cosmologia incorpórea, ainda assim pode ser
considerado sagrado, pois vem acompanhado do canto.
Porque a embaúba é espírito, é Ỹamῖy, tem canto. [...] se a mulher não respeitar,
quando ela voltar no lugar, não vai ter mais plantas, e a linha também não vai sair.
A relação de afeto que a mulher cultiva com a embaúba garante o sucesso de suas
tecelagens e, num plano maior, contribui para ativar e manter as relações com o ter-
ritório e os sujeitos que o habitam.14

Contudo, pode-se desconfiar que, cantar para o fio de nylon, à primeira vista
abarcaria um gesto profano devido à materialidade fora de contexto do insumo. Porém,
as mulheres não cantam para o fio artificial, mas por estarem tecendo juntas e por se re-
conhecerem tecelãs Maxakali. Há o canto da coleta da fibra da embaúba e há o canto da
tecelagem; é neste que se enquadra o fio de nylon. Elevar o fio de nylon ao status do sagrado
demanda recontextualizá-lo, dando a ele uma nova dimensão de uso.
Há os cantos que se apresentam como instantes contidos em várias narrativas míti-
cas; outros, os cantos-listas, onde são enumeradas espécies, diversidades de corpos,
partes, lugares; os cantos-viagens, onde se narram o movimento e a visão; cantos-
-histórias; ‘cantos-vazios’, aqueles cujos sons parecem não ter tradução na língua
dos Tikmu’un e que trazem a fala dos yãmiyxop antes de serem alimentados nas
aldeias.15

É na subjetividade feminina e profana Maxakali que o fio sintético se ressignifica:


o material diminuto e insignificante ganha relevância por um canto sagrado. Ressignificar
13 MAGNANI, Cláudia. Ũn Ka’ok – Mulheres fortes: uma etnografia das práticas e saberes extra-ordinários das mulhe-
res Tikmũ’ũn ˗ Maxakali.Tese (Mestrado em Educação) ˗ Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2018,p. 248.
14 MAGNANI, Cláudia. Ũn Ka’ok – Mulheres fortes: uma etnografia das práticas e saberes extra-ordinários das mulheres
Tikmũ’ũn ˗ Maxakali.Tese (Mestrado em Educação) ˗ Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2018,p. 224.
15 TUGNY, Rosângela Pereira de. Apresentação. In: Povo Maxakali. Yãmiyxop Xunin yõg kutex ãgtux xi emex yõg ku-
tex: cantos e histórias do Morcego-espírito e do Hemex. Estudo, organização e versão final de Rosângela Pereira de Tugny.
Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p.Apresentação.

Sumário 198
os fios recuperados na desconstrução dos sacos de cebola confirma-se, pois, como gesto pro-
fícuo. A habilidade e o habitus de tecer fibras artificiais não subtraem a dialética da criação:
tecer é pensar e fazer. Pensar (conhecimento adquirido) e fazer (disponibilidade do mate-
rial, repetição da técnica, previsibilidade do controle do entrelaçamento). Na prática das
mulheres Maxakali notam-se combinações complexas para tecer os fios, conforme aponta
Magnani : “a técnica mais antiga é um tipo de enredo que as mulheres tikmũ’ũn aprenderam
com suas antepassadas e que costumam definir como técnica das ancestrais (de mõnãyxop)
ou, simplesmente, como ‘rede verdadeira’ (tut xe’e nãg)”.16 Empregam-se os movimentos
naturais da mão para agarrar, pinçar (entrançamento dos fios), prender e conter, com ou sem
o auxílio das agulhas. O corpo da mulher Maxakali é o dispositivo para torcer e esticar o fio
da embaúba ou outra fibra, exibindo um domínio no manuseio.
A mulher maxakali não fala sobre religião, poisé assunto “natural” dos homens.
A essencialização biológica dos âmbitos sócio-cosmológicos aqui afirma-se radi-
calmente. Enquanto mulher, a autora teve que redirecionar seus interesses para as
questões de parentesco (embora não íntimas e nem ligadas à esfera erótica), que
pertencem a uma dimensão familiar e secular (definitivamente não ritual) da vida
nativa. Vejamos então, como, a partir daí se reforça a dicotomia que opõe o âmbito
masculino –por natureza extraordinário–ao mundo feminino –por natureza ordiná-
rio.Tratando da “educação” das moças,a autora explica que “não há nenhum rito de
iniciação para indicar que elas estão aptas para o casamento.17

Sobretudo, é preciso entender que o tecer reivindica lugares: a produção artesanal


demarca subjetividades, uma vez que, não obstante o trabalho coletivo, é pensada, também,
como um sistema de comunicação, como um meio simbólico através do qual as mulheres
são aferidas, obtendo status próprio e, consequentemente, sua constituição e posição social
no grupo. Porém, é preciso eliminar dicotomias, quando o objeto artesanal ˗ inventado e
produzido ˗ não é tomado para mediar relações, objetificando habilidades e circunstâncias.
Isso se justifica porque a dicotomia materialidade (bolsa) x imaterialidade (social)
revela que há uma relação dialética entre “sujeito” e “estrutura”’, e geralmente esta última
assume a supremacia que ora refutamos. Segundo o antropólogo Tim Ingold (2012), o con-
ceito de “coisa” é menos cartesiano no entendimento da relação entre humanos e não huma-
nos: a “coisa” (bolsa) move o agente (tecelã Maxakali) e ele a move. E ambos estão integra-
dos aos ciclos dinâmicos da vida e do meio ambiente. Para Ingold, a proposta de revisão do
conceito de ‘objeto’ assenta-se na perspectiva antropológica do termo, criticada por manter
e reproduzir uma divisão metafísica entre sujeitos e objetos, atribuindo-lhes fetichização.
Os sujeitos se criam ao criar os objetos, a materialidade tangível, que, mesmo as-
sumindo vida própria, não deixa de marcar as relações que os constituíram. Deve-
mos pensá-los não como simples “matéria”, apartada das pessoas que os circundam,
mas como cristalizações do entrelaçamento de intencionalidades que possibilitaram
sua existência. A percepção dos objetos por meio dos sentidos deve ser repensada,

16 MAGNANI, Cláudia. Ũn Ka’ok – Mulheres fortes: uma etnografia das práticas e saberes extra-ordinários das mulhe-
res Tikmũ’ũn ˗ Maxakali.Tese (Mestrado em Educação) ˗ Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2018,p. 241.
17 MAGNANI, Cláudia. Ũn Ka’ok – Mulheres fortes: uma etnografia das práticas e saberes extra-ordinários das mulhe-
res Tikmũ’ũn ˗ Maxakali.Tese (Mestrado em Educação) ˗ Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2018,p. 58.

Sumário 199
e não podemos apreendê-los somente pelo seu caráter visível. A visão não consti-
tui o aparelho sensorial total, mesmo que, ainda hoje, represente aquele que recebe
maior destaque em nossa percepção do mundo. A visão merece ser relativizada, já
que algumas “técnicas” específicas permitem um observar que pode ser diferente de
cultura para cultura. Pode-se observar não somente uma diferença de olhar, mas de
perspectiva, no sentido da combinação dos sentidos para uma percepção mais ampla
que não se restringe a si mesma, podendo ser complementada simultaneamente pelo
advento da imaginação. A percepção aparece aqui como que atrelada à subjetivida-
de, e o controle da percepção se faz possível, num cenário onde a objetividade e a
universalidade da percepção estão em cheque.18

Conforme Leroi-Gourhan, em sua sistematização das técnicas, os “meios ele-


mentares de ação sobre a matéria, como agarrar, bater, cozer, umedecer, ventilar, fazer de
alavanca” são “preensões nos diferentes dispositivos que mediatizam a ação direta da mão
humana, seguidamente.”19 Sobre essas “preensões”, o autor ainda destaca as operações à
mão nua por desempenharem um papel preponderante em algumas técnicas como a cesta-
ria, quando é comum agarrar, torcer, esticar, apresentar a matéria à ação do utensílio, ou fi-
xar os elementos de uma montagem. Nesse modo “preensor”, o estudioso agrupa categorias
de gestos: agarrar; pinçar ˗ ministrados pelos dedos, resultando numa preensão interdigital;
e prender com a mão toda ˗ preensão dígito-palmar, podendo dispor as mãos juntas em
forma de recipiente. Nesse, contexto ainda vale acrescentar a defesa do autor a respeito da
atividade material:
A coleta das ferramentas e dos produtos da atividade material não basta para definir
as técnicas, apenas garante que elas a salvaguardam dos materiais científicos que
serão mais tarde interrogados como simples documentos de arqueologia, privados
do tecido dos gestos e das intenções que faziam deles elementos da vida étnica. A
tecnologia interessa tanto à pesquisa de um quadro teórico geral nas operações ma-
nuais como a do papel da técnica na montagem (assemblage) étnica; como os outros
ramos, a tecnologia oferece-se ao mesmo tempo como o estudo das operações co-
muns a uma civilização ou a certa fase de evolução e como a análise dos elementos
incorporados numa fórmula étnica.20

Com extremo domínio, as mulheres Maxakali rolam as fibras entre os dedos e


entre as palmas das mãos, depois as alisam nas pernas para melhor torção dos fios, con-
feccionando peças que “variam em termos de regularidade, largura e técnica dos pontos.
As mãos mais hábeis se distinguem pela regularidade de seus pontos, enquanto as moças
aprendizes produzem enredos menos homogêneos e padronizados”21. Assim, da casca da
embaúba como elemento têxtil passa-se ao estado de torção, ao entrançamento e, por fim,
à tecelagem. A mão que tece a fibra da embaúba ou a linha industrializada de algodão é a
mesma que tece o fio grosso de nylon. O fio de nylon pronto para o uso imediato dispensa
18 ARONI, Bruno Oliveira. Por uma etnologia dos artefatos: arte cosmológica, conceitos mitológicos. In: Revista Proa,
n. 2, v. 1, p. 105, 2010.
19 LEROI-GOURHAN, André. Evolução e técnicas. I ˗ O homem e a matéria. Lisboa: Edições 70, 1971, p. 1820-1821,
p.35.
20 LEROI-GOURHAN, André. Evolução e técnicas. I ˗ O homem e a matéria. Lisboa: Edições 70, 1971, p. 1820-1821.
21 MAGNANI, Cláudia. Ũn Ka’ok – Mulheres fortes: uma etnografia das práticas e saberes extra-ordinários das mulhe-
res Tikmũ’ũn ˗ Maxakali. 2018, 387 pp. Tese (Mestrado em Educação) ˗ Faculdade de Educação, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. p.238

Sumário 200
a coleta da fibra vegetal, o preparo da fiação (meadas), a secagem, mas não oferece a flexi-
bilidade e a maciez do sólido fibroso. A propriedade táctil do nylon, pertencente ao campo
dos polímeros sintéticos, revela-se na gama de texturas e aplicações decorrentes. Na obra A
matéria da invenção, o designer Ezio Manzini defende que após a Segunda Guerra Mundial
o plástico encontrou finalmente sua imagem, quando a noção de “produção” conjugou-se a
de “cultura”. Para ele, o plástico contribuiu para:
o desmantelamento de imagens e hierarquias de valores fundamentados em quali-
dades naturais e consolidadas pela tradição simbólica e perceptiva. [...] de matéria
exótica a produto de consumo, de elemento de progresso a destruidor ambiental, do
saco de supermercado aos componentes aeroespaciais, do kitsch ao design – todas
estas conotações têm se alternado, sobrepondo-se sem se confundirem.22

O artefato mimético (bolsa sintética) é uma partilha; um jogo astucioso que cor-
robora a diversificação da produção material Maxakali. Partilha que se dá na repetição do
fazer e em novas percepções, como os cantos, que também se modificam. O gesto repetitivo,
mimetizado, substitutivo ˗ do fio natural ao fio de sobras da indústria ˗ é a reivindicação
poética do tecer, confirmando o impulso estético feminino. Um gesto micropolítico, de força
ideológica, que se coaduna com a identidade do grupo de mulheres: cantar e tecer.
A bolsa imitada invita a pensar na dualidade do jogo: sério e brincante. Jogo “que
não é gratuito porque a desestruturar os jogos ou opções de jogo diferentes está a pressão
do momento material, que se dilui em jogo, mas que já nasce como coisa bem diferente.” 23.
É no jogo que se instaura o devir do desmanchar e refazer, sem qualquer imputação moral,
com inocência intacta. O jogo efetua a imitação, assume-se como cópia, não tem compro-
misso com uma pretensa originalidade, contrapondo-se a “verdades” de um discurso coloni-
zador que menospreza a cópia, a tradução, a transcriação, a ressignificação.
No modo de produção x recepção, a bolsa imitada é invariavelmente criticada
pela falta de empatia do mercado com o fio artificial da qual instaura-se uma atitude com-
parativa com a fibra natural, provocando um rearranjo perceptivo. Na recepção, a imitação
não funciona sem o percepto da semelhança e da similitude, o que naturalmente levaria ao
poder de escolha do sujeito. Então, sob a perspectiva ingoldiana, a bolsa imitada (novo
objeto) reivindica sua identidade. Certamente a bolsa sintética Maxakali não depende dos
parâmetros de inovação do homem branco para existir como objeto. Antes, torna-se objeto
referencial e se auto representa por seus próprios meios: cores, materialidade e nova textura.
A bolsa sintética, assim como o ato de tecer, faz parte do dia a dia e da constru-
ção do imaginário social Maxakali. Eis um artefato presentificado como uma micropolítica,
capaz de conferir autonomia à economia Tikmu’un. Usar fibras sintéticas é uma resposta
a não fixação e reprodução da vida material de seus antepassados, e uma nova visão ˗ de
resistência, de vitalidade, do presente. Um devir-minoritário em resposta aos brancos que
exterminaram seus direitos, furtando-lhes as terras.
No modo de produção, da ressignificação do fio de nylon a partir do saco de
cebola pode-se entender, tal estratégia e solução artesanal, como profanação (Agamben)
– aquilo que é devolvido ao uso e à propriedade dos homens. Entende-se que tal gesto é
22 MANZINI, Ezio. A matéria da invenção. Porto: Editora Centro Português de Design, 1993, p. 37.
23 ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p;284.

Sumário 201
portador de valor e sentimentos (cantar e tecer) que desperta também significados, capazes
de provocar associações de emoções positivas devido às experiências com o fio da embaúba.
Tal ato mimético e profano configura as mulheres Maxakalis como resilientes sob a pers-
pectiva da escassez e da crueldade do governo frente à demarcação de suas terras. Sobre a
profanação de Agamben, vale reafirmá-la a partir da Introdução de Selvino J. Assmann, na
introdução da edição de Profanação, de 2007.:
(...) Profanar é assumir a vida, como um jogo,jogo que nos tira da esfera do sagrado,
sendo uma espécie de inversão do mesmo. Convidando-nos a profanar, Aganbem
alerta para um fato de termos perdido a arte de viver, que é a da infância, lugar pri-
meiro da mais séria profanação da vida, como já fora anunciado pelo Zaratustra de
Nietzsche, e retomado por Benjamin, de quem Agamben não ó é estudioso , mas se
sente inspirado em seu “messianismo imanente”: as crianças sabem jjogar e brincar,
enquanto os adultos, sérios, perderam a capacidade de ser mágicos e de fazem mi-
lagres.24

Na atual conjuntura, a bolsa sintética é um devir-coletivo ˗ dos cantos, da alteri-


dade, da antropofagia ˗ corroborado pela antidesculturação Maxakali: ato profano. O uni-
verso artefatual deste grupo indígena compõe sua identidade étnica, e é devir-Maxakali, de
modo endógeno ou exógeno, porque os indivíduos também possuem “sensações” e devires
próprios. A exogenia não diminui a capacidade do grupo de conservar e reforçar a coesão
interna: a cosmologia Maxakali expressa uma capacidade agentiva (língua, Ỹamῖy, tecer,
sonhar...), conferindo continuidade e resistência enquanto sociedade.

Referências
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CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado. 1 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

24 AGANBEM, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p.13

Sumário 202
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2010.
_______. Escuta e poder na estética Tikmũ’ũn_Maxakali. Museu do Índio, Rio de Janeiro, 2011.

Sumário 203
A representação da infância em
C larice L ispector : uma leitura dos
contos F elicidade clandestina e C em
anos de perdão

Patricia de Souza Caboclo


Marta Francisco de Oliveira

Introdução

O
ano de 2020 comemoraria 100 anos do nascimento de Clarice Lispector.
Trata-se de um ano simbólico para a literatura brasileira em que nova-
mente serão colocados em evidência textos, a autora e toda a obra clari-
ciana. E enquanto pesquisadores (as), não deixamos este fato de lado, demos a importância
e relevância merecida, apesar das discordâncias quanto a se realmente o ano de nascimento
da autora foi 1920. De qualquer modo, a recordação é válida, e a escolha de Lispector como
tema de trabalho neste encontro de estudantes se justifica porque reconhecemos o valor dos
textos claricianos, por seu grau de reflexão acerca da condição humana, na formação de
jovens leitores. De fato, reforçamos a importância da formação de consciências e sensibili-
dades pelo viés da literatura, como forma de desenvolvimento tanto da expressão quanto da
dimensão simbólica da compreensão dos fatos e ações humanas, dos condicionantes sociais,
culturais, políticos, estéticos etc. presentes em qualquer forma efetiva de observação e inter-
pretação do humano e sua existência e ações em nossa sociedade.

Clarice Lispector é uma escritora que continua conquistando leitores até os dias
atuais, pois mesmo depois de 40 anos de sua morte, a força de sua escrita permanece apesar
do transcurso do tempo, e pode ser considerada atemporal. Observamos, portanto, uma for-
ma de adequação ou adaptação dos textos de Clarice aos anseios, inquietudes e modos de

Sumário 204
percepção dos leitores atuais. Suas obras encantam diversos tipos de leitores, desde crianças
a adultos, e parece se tornar um texto bastante atraente entre jovens leitores, quando estes
o descobrem.
Nádia Battella Gotlib1 e Olga Borelli2 destacam a importância da escritora para
a literatura brasileira e nos ajudam a compreender que a obra clariciana e sua biografia se
relacionam de modo muito próximo, o que significa que aspectos de vivência e experiência
eram utilizados como matéria para produção ficcional, em vários aspectos de sua escrita e
seu fazer poético. Principalmente a infância se converte em rico material para a ficcionaliza-
ção, e neste aspecto seu texto dialoga de modo muito próximo com as sensibilidades infantis
e jovens.
Assim, partindo desse universo de criação literária tão essencial na formação
inicial do ser humano, que deve ser desenvolvido em seu potencial para o desenvolvimento
das habilidades de reflexão crítica também na fase adolescente, para formar jovens mais
conscientes, de pensamento autônomo e atuantes, buscaremos analisar a presença da figura
infantil na literatura primeiramente no sentido mais geral, como se deu essa representati-
vidade das crianças nos textos, direta ou indiretamente, destacando a literatura brasileira,
desde o início dessa representação da infância com a obra do escritor Monteiro Lobato.
Nossa proposta para este artigo consiste em ler e iniciar uma reflexão acerca dos
contos “Felicidade clandestina” e “Cem anos de perdão”, no intuito de perceber os aspectos
literários e estéticos da infância presentes nos contos, evidenciando como é construída, nos
textos claricianos, a poética da infância, especialmente nas protagonistas infantis dos dois
contos analisados. A escolha dos contos se justifica pela relativa facilidade, para o leitor,
de acompanhar as situações narradas, visualizando a sucessão de ações, bem como de se
identificar com as emoções evocadas. Neste aspecto, a leitura se torna agradável, um convite
para iniciar outras leituras mais, angariando a simpatia destes interlocutores para outras ex-
periências leitoras. No entanto, os leitores também intuem, desde o princípio, que há mais a
se observar, perceber, refletir, acerca do texto apresentado, dessas personagens infantis e sua
representação. E, em geral, refaz sua leitura para buscar, entre o dito e o não dito, o expresso
e o sugerido, esses significados intuídos que tocam sua sensibilidade de alguma forma, o que
estimula sua criticidade por ampliar suas formas de interpretação, inferindo significados e
relacionando conhecimentos.
Por outro lado, também analisamos a vertente da maldade presente nas perso-
nagens dos dois contos trabalhados, em paralelo com outros textos claricianos que permi-
tem ver a construção de caracteres desde o viés das diferentes facetas que um indivíduo,
homem ou mulher, criança, jovem ou adulto, pode apresentar segundo as circunstâncias
ou de acordo com situações, reações e desejos pessoais envolvidos na ficção. Deste modo,
as personagens distam de ser figuras infantilizadas ou com percepção limitada de si, dos
outros ou do ambiente ou situações ao redor, mas são constituídas com características de

1 GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2013. 656 p.
2 BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

Sumário 205
esperteza, inteligência, sadismo e até maldade, e para tal leitura nos ancoramos nos estudos
de Rosenbaum3.

Clarice Lispector: traços biográficos e a ficcionalização da infância

A biografia da escritora Clarice Lispector já tornou-se bastante conhecida, em-


bora apresente fatos controversos que, por exemplo, não deixam claro o ano de nascimento
da escritora e se, de fato, nunca pisou em outra terra que não a brasileira, como costumava
afirmar. Nasceu na Ucrânia, especificamente na cidade de Tchetchélnik, e a data provável
foi em dezembro do ano de 1920. Sua família, judia e perseguida pelos pogroms na Rússia
e região4, buscava refúgio em marchas e viagens pelo território e, antes que pudessem con-
seguir imigrar para a América, a menina Haia, posteriormente chamada de Clarice, nasceu
na cidadezinha ucraniana. Dessa forma, quando a família Lispector chegou ao Brasil, os
nomes foram alterados, como um primeiro processo de adaptação, sendo composta pelo Sr.
Pinkas ou Pedro Lispector, a mãe Mania ou Marieta, Clarice e as duas irmãs Elisa e Tânia5.
Instalados em Maceió e logo em seguida no Recife, muitos aspectos da infância no Nordeste
brasileiro se tornaram, posteriormente, elementos para o tratamento artístico, elaborando
em torno de marcas do real o texto ficcional que apresenta personagens infantis como prota-
gonistas, mas cuja narradora já é uma voz adulta rememorando e ressignificando os aspec-
tos e relações transmutadas em ficção.
Segundo Gotlib6, a menina Clarice ficou órfã de mãe aos 9 anos de idade, pois
sua mãe estava lidando com uma longa e debilitante enfermidade desde o nascimento da fi-
lha mais nova, e acabou falecendo, deixando Clarice com o pai e suas duas irmãs. A família
Lispector, algum tempo depois da morte de Marieta, foi morar no Rio de Janeiro.
A escritora conseguiu sua naturalização brasileira após a maioridade, e quando
adulta cursou Direito na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro. Teve diversos
registros trabalhistas, como de jornalista, repórter e funcionária pública. Escreveu para jor-
nais, como Jornal do Brasil e A noite. Também teve outras experiências trabalhistas que não
foram registradas em documentos, como entrevistadora, colunista, cronista, contista, escri-
tora e pintora, mas que possuem registros em textos diversos e foram sendo organizados e
estudados por pesquisadores ao longo dos anos, e divulgados para o público. Um fato mar-
cante sobre Clarice Lispector é que se destacou com sua literatura ainda muito jovem. Aos
23 anos de idade, se considerarmos 1920 o ano de seu nascimento, publicou seu primeiro
romance, Perto do coração selvagem (1943) e continuou escrevendo até sua morte, no ano de
19777.
Olga Borelli, amiga pessoal de Clarice Lispector, e baseada em textos variados e
depoimentos pessoais da autora, fala da relação da escritora com a escrita desde pequena,
antes mesmo de saber ler e escrever:
3 ROSENBAUM, Yudith. A metamorfose do mal em Clarice Lispector. Revista USP, São Paulo, n. 41, p. 198-206, mar-
ço/maio 1999.
4 MOSER, Benjamin. Clarice: uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 752 pp., 2 ils.
5 GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2013. 656 p.
6 Ibid., 2013.
7 GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2013. 656 p.

Sumário 206
Antes de ler e escrever, ela já fabulava. A vocação de escrever aconteceu na infância;
desde os sete anos, não parou: penetrar nas entranhas da língua era seu único poder.
Teria histórias que não acabavam mais e, depois que aprendeu a ler, não havia livros
que não devorasse. Pensava que livro era como árvore, como bicho - coisa que nasce.
Não sabia que havia um autor por trás de tudo. Quando descobriu, disse: “Eu tam-
bém quero”8.

Clarice fabulava desde criança, e isso se reflete também em suas personagens


infantis, constituídas à sua imagem como personagens que fabulam, que são inteligentes,
pensantes e de um raciocínio perspicaz, além de se distinguirem muito entre si devido às cir-
cunstâncias narrativas e de qualquer estereótipo de crianças mais ingênuas e menos atentas
às dúvidas e angústias do universo adulto. Podemos citar como exemplos Joana de Perto do
coração selvagem, Virgínia de O lustre, Sofia de “Os desastres de Sofia”, as duas protagonistas
do conto “Felicidade clandestina”, a menina que roubava rosas e pitangas de “Cem anos
de perdão”, a imaginação e a alegria despreocupada da menina em “Restos do carnaval”,
dentre outros tantos exemplos da poética na construção das meninas na escrita clariciana.
Essa relação entre a menina Clarice e suas personagens infantis se configura como
elemento de extrema importância na análise dessa construção, em como são inseridos traços
pessoais da escritora na construção de suas personagens na ficção. Tratando-se, portanto,
de uma forma de autoficção/autoficcionalização, consideramos que, segundo Klinger9, este
tipo de texto/escrita possui características distintas que devem ser analisadas. Klinger, por-
tanto, considera
a autoficção como uma narrativa híbrida, ambivalente, na qual a ficção de si tem
como referente o autor, mas não como pessoa biográfica, e sim o autor como perso-
nagem construído discursivamente. Personagem que se exibe “ao vivo” no momento
mesmo de construção do discurso, ao mesmo tempo indagado sobre a subjetividade
e posicionando-se de forma crítica perante os seus modos de representação.10

Clarice Lispector faz uso de suas vivências e rememorações para a construção


de suas personagens, principalmente baseando-se nas vivências/experiências da infância.
São perceptíveis esses traços em sua escrita de modo claro, assim como alguns estudiosos
como Lícia Manzo11 já buscaram demonstrar, e não é a toa que Clarice deixa em seus textos
esses rastros: sua intenção nunca foi a de fazer biografia, mas sua percepção de si, de suas
experiências pessoais e mediadas, que aliadas a seu uso artístico da linguagem a levaram à
produção de muitas obras cujos traços pessoais podem ser rastreados12. É assim, pois, que
consideramos que seu fazer ficcional aborda aspectos relacionados a si mesma, ao diálogo
consigo e com o outro, como em uma troca.

8 BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
9 KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras,
2007.
10 Ibid., p. 62.
11 MANZO, Lícia. Era uma vez - eu: a não ficção na obra de Clarice Lispector: ensaio. Editora UFJF: Minas Gerais,
2001.
12 OLIVEIRA, Marta Francisco. Clarice Lispector: a poética de um (in) certo exílio. Campo Grande: Life Editora, 2017.

Sumário 207
Como a infância se sobressai como material sobre o qual a autora produz muito
de sua ficcionalização, consideramos importante entender como a literatura passa a repre-
sentá-la, conforme veremos a seguir.

Representação da infância na literatura

De acordo com Amarilha13, a infância na literatura surge tão somente no sécu-


lo XVIII e vai então ganhando força e representação. Até então, não havia distinção clara
para esta etapa da vida, pois a criança era considerada pela sociedade como um adulto
em miniatura, mas sem direito a voz ou espaço definido em atenção às suas necessidades.
Depois da inclusão da criança na sociedade devido a mudanças sociais, como a Revolução
Industrial e a migração de famílias do campo para as cidades, surgiu também a necessidade
de instrumentalização da infância, sobretudo para o trabalho, o que chamou a atenção para
este grupo.
A literatura infantil então surge como ferramenta de ensino, com caráter pedagó-
gico e moralizante, com poucos elementos lúdicos e voltada para uma educação aos moldes
de uma sociedade interessada em propagar seus valores moralistas14. A literatura que repre-
senta a criança e para ela se volta enquanto público em formação ainda não existia a não
ser, como dito, para ensinar princípios para comportamentos na vida social, com base em
preceitos morais e religiosos. Os primeiros textos voltados para crianças foram as fábulas e
os contos de fadas, alterando-se de acordo com a necessidade de cada época. Porém, a au-
tora destaca que foi com o surgimento da categoria infância que esses gêneros foram sendo
adaptados para atender à educação das crianças no decorrer do tempo, como por exemplo,
os contos dos Irmãos Grimm, os quais em sua versão original não foram concebidos para o
público infantil.
Ainda segundo Amarilha15, Monteiro Lobato foi o primeiro escritor da literatura
brasileira a começar a escrever diretamente para o público infantil, considerando-o como
uma literatura voltada para a criança em sua formação de leitura, a literatura como fim em
si mesma e não apenas como meio para sua educação.
Monteiro Lobato coloca em sua escrita voltada para o público infantil persona-
gens infantis que são inteligentes, como o caso da boneca Emília; à sua semelhança, como
voz que dialoga com o leitor infantil e o convoca a compartilhar os pensamentos, as re-
flexões e as conclusões, muito à maneira das crianças, com sua lógica e raciocínio rápido
e curioso; a personagem é muito independente, falante, tem a capacidade de convencer os
outros com seu discurso, de estabelecer um ponto de vista e defendê-lo. Ademais, questiona
e quebra os padrões pré-estabelecidos na sociedade, e isto constrói uma nova visão acerca da
infância nos novos moldes que se desenvolvem na literatura brasileira para os mais jovens.
O impacto é direto na anterior visão defendida sobre as crianças: como seres ain-
da em formação, eram tratados como receptores das informações e dos conhecimentos que
os mais velhos poderiam repassar e, por isso, ainda incapazes de reflexão diante de um texto

13 AMARILHA, M. (2000). Infância e literatura: traçando a história. Revista Educação Em Questão, 11(2), 126-137.
2000. Recuperado de &lt; https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/9497&gt;.
14 Ibid., 2000.
15 AMARILHA, M. (2000). Infância e literatura: traçando a história. Revista Educação Em Questão, 11(2), 126-137.
2000. Recuperado de &lt; https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/9497&gt;.

Sumário 208
mais complexo, a menos que fossem guiados em sua compreensão, quando não totalmente
direcionados às conclusões já pré-estabelecidas. Com Emília e a turma do Sítio do Picapau
Amarelo, Lobato inaugura uma nova literatura infantil, trazendo novos modos de convocar
a imaginação, a possibilidade de se aventurar com uma leitura mais instigante e não apenas
com orientação didática, inserindo a ideia da leitura literária para construção da imaginação
infantil e, posteriormente, para o desenvolvimento de outras habilidades formativas impor-
tantes para as novas gerações que surgiriam a partir de então.
Desse modo, quando Clarice Lispector escreve crônicas ou contos com persona-
gens infantis, décadas depois dos textos de Lobato e a partir da segunda metade do século
XX, as características diferem muito de qualquer modelo infantilizado. De fato, precisamos
nos lembrar de que aqui mencionamos obras que não são dirigidas ao público infantil, mas
que ficcionalizam a infância de modo muito particular, aprofundado. E, além disso, no con-
to “Felicidade clandestina”, Clarice Lispector homenageia Monteiro Lobato, citando o livro
As reinações de Narizinho como objeto de desejo da menina leitora. Outro ponto importante
a considerar é que a autora também escreveu alguns livros infantis. Numa entrevista ao
jornalista Júlio Lerner para a TV Cultura (1977), Clarice conta que começou a escrevê-los
despretensiosamente, para uso doméstico, quando um de seus filhos pediu-lhe uma história;
posteriormente, sob demanda editorial de um livro infantil, encaminhou para publicação o
que havia escrito para o filho.
Outro aspecto a destacar é que em “Felicidade clandestina” e “Cem anos de
perdão” a infância é representada de modo peculiar, com certo nível de despreocupação,
alegria, prazer e entusiasmo, tanto diante das atividades cotidianas de uma criança quanto
nos momentos em que as reflexões no texto narrado em primeira pessoa mesclam o universo
adulto ao infantil, no jogo entre o relato da infância e as memórias evocadas pela persona-
gem já adulta. Nos dois textos, percebemos que se trata de uma narração intencionalmente
centrada na figura da criança, e em certos momentos o foco está em suas brincadeiras,
divertimentos, e prazeres de criança. No entanto, vale recordar que os contos não são dire-
cionados ao público infantil, e a representação da infância é feita de tal modo que as percep-
ções, sensações e reflexões apresentadas no texto demonstram o processo de constituição do
pensamento e da sensibilidade das personagens, buscando a identificação com os leitores.
Assim, o texto clariciano focaliza um aspecto particular de narração da infância
no interstício como a percepção sensível e contribui, junto com os demais autores e obras
difundidos ao longo do século XX e primeiras décadas do XXI, para que a literatura se volte
para a infância, quer considerando-a do ponto de vista de seu tema e/ou personagens, quer
como público leitor.

Contos: “Felicidade clandestina” e “Cem anos de perdão”

O conto “Felicidade clandestina” foi publicado primeiramente como crônica no


Jornal do Brasil em 1967 com o título de “Tortura e glória” e mais tarde foi (re)publicado na
versão conto no livro com o mesmo título, Felicidade clandestina, em 1971. Trata-se de uma
narrativa construída através de uma recordação da infância, com uma voz narradora adul-
ta que, em tom de conversa com o leitor, rememora um episódio específico da infância no
Recife, ficcionalizando o relato. Duas meninas protagonizam as situações apresentadas e,

Sumário 209
com intenções opostas reveladas por meio de desejos pessoais acerca de um livro, emoções
e sensibilidades, modos de sentir e pensar são relatados.
A antagonista da narradora é “a filha do dono da livraria”16 e, por isso, possui o
livro que a menina que fala ao leitor tanto deseja ler. Este aspecto já demarca uma impor-
tante diferença entre ambas: a dona do livro tem a posse do mesmo, mas não tem a fruição
para a leitura e tampouco o anseio pelo próprio conteúdo, o relato, o texto em si; para ela, o
livro é como um objeto sólido como o qual exercer domínio sobre a outra garota. Esta, por
sua vez, tem a fruição da leitura, consegue estabelecer relações entre os textos e desfrutar do
ato de ler, porém não tem condições de comprar o livro tão desejado. A leitura, portanto, é
sempre um desejo adiado, nunca satisfeito, principalmente porque se estabelece uma relação
de poder entre as meninas, quando a filha do dono da livraria percebe que pode exercer essa
influência sobre a outra, como que a dominando. A narradora revela que, quando soube
que a colega tinha o livro de seu desejo, As reinações de Narizinho de Monteiro Lobato, pediu-
-o emprestado para poder ler. No entanto, a menina detentora do livro sempre adiava esse
empréstimo, em um ato de maldade - e não podemos esquecer que tal percepção é revelado
em um texto em primeira pessoas, o que significa que qualquer julgamento ou construção
de características de personagens está marcado pela subjetividade narrativa, e os leitores são
direcionados por esse ponto de vista.
Sempre dizendo que por pouco ela poderia ter conseguido levar o livro empres-
tado, ou porque demorou para ir à sua casa buscá-lo e outra menina o levou primeiro, ou
porque o livro ainda não foi devolvido, o convite/ordem se repete, fazendo a pobre menina
retornar dia após dia para ver se este seria, finalmente, o dia que voltaria para casa com o ob-
jeto tão ansiado17. O tempo da narrativa não é claro, mas para a percepção da personagem,
um longo tempo de desejo adiado se passa, no qual sua alegria diminuía ou renascia com a
desilusão de ainda não ter a obra em mãos ou a mera ideia de que, amanhã, seria possível
ter o livro. Neste momento, nós leitores nos solidarizamos com a menina e percebemos a
metáfora de nossas vidas, a espera constante, as variações de humor no jogo entre a expec-
tativa e a real possibilidade de alcançar o que se almeja.
No texto, o relato dos dias de espera e expectativa refletem as emoções sentidas
na infância; todavia, a construção do discurso, a linguagem metafórica, simbólica, dizem
respeito às observações, pensamentos e conclusões sobre o ocorrido desenvolvidas tempos
depois e através da passagem do tempo e a maturidade entre a infância e a idade adulta.
Reforçamos que não fazemos a leitura da crônica/conto como um relato pessoal da vida de
Clarice Lispector; o foco, aqui, está no fato de que se trata de uma escritora experiente que
desenvolve a narrativa sob a perspectiva de uma mulher já adulta que rememora o ocorrido
enquanto criança, e tampouco dirige o texto para o público infantil. Essa compreensão da
passagem do tempo entre o fato recordado e o tempo na narração é importante para a leitura
do conto.
Antes da menina ter o livro em mãos, entremeada com a tortura da espera se
entrevê a antecipação da glória de sua leitura por meio da imaginação infantil: a narradora
descreve como, andando pelas ruas do Recife, a menina já sonhava em tê-lo, já o desejava e

16 LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 9.


17 Ibid., 1998.

Sumário 210
chega a descrevê-lo com as seguintes palavras: “era um livro grosso, meu Deus, era um livro
para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas
posses”18. É neste contexto que retomamos a compreensão de que a personagem tem a frui-
ção pela leitura, mas não tem o poder de possuí-lo, estabelecendo um contraponto com sua
antagonista. O livro é, desde o princípio do texto, seu objeto de desejo e de fantasia e, ao
mesmo tempo, a causa de suas ansiedades na crônica/conto.
Assim, o título da crônica é retomado exatamente na descrição do período de
tempo de tortura que dura até que a mãe da filha do dono da livraria teve conhecimento do
que acontecia ao ver as duas meninas em pé à porta. A personagem narradora conta como
ocorre o momento de compreensão da razão pela qual aquela garota aparecia à sua porta
dia após dia, e “aquela boa mãe”19 entendeu que as vindas constantes eram uma forma de
engano e dominação exercido por sua filha e, compassiva, emprestou o livro por quanto
tempo a outra menina quisesse20. Este se converte em aspecto fundamental na narrativa, a
glória, pois demarca o significado simbólico da relação entre sujeito (a menina) e o objeto
de desejo (o livro): a liberdade oriunda da possibilidade de escolha entre o ter e o manter a
posse de acordo com a própria vontade; demarca, portanto, a ausência do risco da obrigação
ou de consequências, pois no exato instante em que a satisfação pela posse cessasse, automa-
ticamente se poderia tomar a decisão de devolução. Até então, a menina poderia se saciar
diariamente com a leitura, com o texto, com o objeto a seu alcance a qualquer momento.
Quando finalmente consegue seu objeto de desejo relata seu prazer em finalmen-
te tê-lo, oscilando entre as sensações/percepções de menina e mulher:
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o
susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo,
fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não
sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais
falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade
sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei!
Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às
vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo,
em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com
o seu amante.21

Naquele momento a menina tinha em mãos seu tão esperado livro e é descrita a
sensação de uma felicidade não expressamente revelada, adiada, clandestina como aparece
no título do conto. Sentindo-se detentora do poder outorgado pela posse do livro, torna-se
a rainha delicada que descreve. Poderia agora vivenciar a realização de seus desejos e fanta-
sias, mas ao mesmo tempo a sensação de clandestinidade se mimetiza no texto, no jogo que
antecipa a felicidade futura sempre fugidia, nunca revelada às claras, apenas pressentida, e
então a menina não queria viver todas aquelas sensações de uma vez só e vê-la acabar, por
isso adiava a leitura para desfrutar momentos de descoberta em puro êxtase.

18 LISPECTOR, 1998, p. 10
19 Ibid., p. 11
20 Ibid.
21 LISPECTOR, 1998, p. 12

Sumário 211
Nesse conto, é perceptível o poder e o prazer que a leitura pode proporcionar
através da imaginação fruitiva e criativa, como também o poder da descoberta do mundo
pela leitura, de sensações e de experiências que podem ser adquiridas. Regina Zilberman
afirma que “a obra literária propõe-se como interpretação do mundo, revelando-se capaz de
fecundar concepções filosóficas duradouras e de impacto sobre o pensamento ocidental”22,
dessa forma, podemos entender o quanto são importantes as obras literárias no desenvolvi-
mento da imaginação, na capacidade de interpretação do mundo e de reflexões acerca de
nós mesmos e de nossa sociedade.
Seguindo esse raciocínio sobre a importância da literatura e seu poder de resgatar
valores históricos e nossa própria humanização, destacamos também a relevância da leitura,
definida como: “instrumento por meio do qual se faz essa passagem, apresentando-se como
capacitação para produção de ideias, que se configuram em obras, aptas a gerar interpreta-
ções, logo, novos textos, numa espiral sem começo, nem fim”23.
Por outro lado, o conto “Cem anos de perdão”, também incluído no livro Felicida-
de clandestina, publicado em 1971, apresenta uma personagem infantil, e da mesma forma é
constituído como um relato que rememora momentos da infância. Trata-se de uma narrativa
sobre uma menina que começa a roubar rosas dos quintais e afirma tomar gosto por isso,
fazendo-o várias vezes, e já no final do conto, rouba também pitangas. E ainda justifica-se
dizendo “Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão”24.
A menina que roubava rosas e pitangas sente grande prazer em seus atos, nas
sensações momentâneas que consegue através do roubo, no coração batendo e na adrena-
lina proporcionada. “Até chegar à rosa foi um século de coração batendo”25. Pelo prazer
das sensações, continua a roubar para tê-las momentaneamente de novo: “Foi tão bom que
simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu
entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo
e sempre com aquela glória que ninguém me tirava”26.
Evidenciam-se pequenos prazeres de criança através das sensações, que se con-
figuram como de grande relevância na construção de experiências que retomam memórias
de fatos e emoções, constituindo elementos de formação da menina e suas compreensões
acerca da vida e das sensações. A menina se sente independente e vai atrás de satisfazer seus
desejos, sem se importar até mesmo com questões de moralidade, ou com as consequências
de seus atos, do roubo. No entanto, é uma construção narrativa que segue uma forma de
descrição e raciocínio nos quais os pensamentos infantis aparecem, mas logo se mesclam às
reflexões mais aprofundadas acerca de aspectos da condição humana, do prazer do proibi-
do representado pelas rosas roubadas e por fim pelo amassar das pitangas entre os dedos.
Novamente, as metáforas se apresentam, e a infância se destaca por sua ingenuidade, mas a
compreensão é construída a partir das reflexões da narradora adulta.

22 ZILBERMAN, Regina. Leitura e produção de conhecimento. Itinerários - Revista de Literatura, Araraquara, 17:
21-34, 2001. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/3446/3198>. Acesso em 27 ago.
2020, p. 29.
23 Ibid., 2001, p. 29.
24 LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.62
25 Ibid., p.61
26 Ibid., p.62

Sumário 212
Nos dois contos são apresentadas protagonistas infantis, e enquanto no conto
“Felicidade clandestina” se destaca a paixão pelos livros, a inocência da protagonista frente
à maldade da outra menina e a descoberta do mundo através da leitura, em “Cem anos de
perdão” outro padrão de comportamento está em foco, indo da percepção do mundo e suas
(im)possibilidades ao sentimento de posse, a sensação de se apoderar de algo que pertence a
outro, porém tal ato não provocaria, em teoria, grandes danos, e inclusive pode trazer certa
medida de felicidade conquistada através das sensações.
Em ambos os contos há algo que se configura como um objeto de desejo: no
primeiro, como já mencionado se trata do livro As reinações de Narizinho, e em “Cem anos
de perdão” as rosas e as pitangas são aquilo que se deseja. A diferença crucial entre os dois
contos é que em “Felicidade clandestina” a menina leitora depende do empréstimo do li-
vro e está à mercê da vontade de outros, quer seja a filha do dono da livraria, quer seja a
mãe desta; já em “Cem anos de perdão” a menina age de modo muito mais independente,
tomando a iniciativa e convocando a cumplicidade de uma amiga para vigiar enquanto se
apropria das rosas, contudo sem depender essencialmente da outra para conseguir satisfazer
seus desejos. Essa independência talvez seja inspirada na Emília de Monteiro Lobato, mas
a quebra de padrões apresentada em “Cem anos de perdão” insere um elemento ao qual
devemos dar atenção agora.

Aspectos de maldade nas obras claricianas

Em ambos os contos se destaca a maldade presente nas crianças, a começar pela


filha do dono da livraria que torturava a outra menina leitora, adiando e negando sempre
o empréstimo do livro. No outro conto há duas meninas que se ajudavam para roubar: en-
quanto uma vigiava, a outra roubava e sentia prazer nisso. Segundo Caboclo e Oliveira27,
as meninas da ficção de Clarice Lispector são constituídas, ou construídas textual-
mente, segundo padrões pouco convencionais, que não agem de acordo com o que
seria esperado que pensassem ou fizessem. Pelo contrário, são meninas que ques-
tionam, que são curiosas, inteligentes e até malvadas, ou com certa propensão para
atos e pensamentos direcionados para o que poderia ser considerado uma faceta do
mal. Podemos ver claramente como Clarice busca desenvolver ficcionalmente suas
meninas com formas de agir determinadas por qualidades como travessura, sadismo,
perversidade, curiosidade, e certa alegria derivada de comportamentos não exata-
mente bondosos28.

Nos contos são colocados em evidência sentimentos como inveja, egoísmo, co-
biça e desejo secreto. Destacando que são personagens crianças, Clarice coloca em sua es-
crita, meninas que são perspicazes, inteligentes e até malvadas, como citado anteriormente.
Rosenbaum (1999) chama o estilo de Clarice narrar de ‘estilo sádico’, “um modo de repre-
sentação que desloca o leitor de seu anestesiado repouso a partir de um incômodo estranha-
mento”29.

27 CABOCLO, Patricia; OLIVEIRA, Marta. Traços de menina: a construção da infância na obra de Clarice Lispector.
2020. Monografia (Licenciatura em Letras - Português) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Coxim/MS, 2020.
28 Ibid., p. 26.
29 ROSENBAUM, Yudith. A metamorfose do mal em Clarice Lispector. Revista USP, São Paulo, n. 41, p. 198-206,
março/maio 1999, p.199

Sumário 213
No conto “Felicidade clandestina”, a personagem malvada é descrita como uma
menina cruel, sádica e invejosa: “Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura
vingança, chupando balas com barulho [...]. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu
sadismo”30. É relatado também a humilhação e tortura que fazia a menina leitora passar: “O
plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico”31.
Já no conto “Cem anos de perdão” a forma de ‘maldade’ da menina ladra de ro-
sas e pitangas é distinta. A personagem se vê diante de uma rosa e tem um enorme desejo de
obtê-la para si, ter a posse de algo que não lhe pertence, a cobiça, de certo modo, por aquilo
que é do outro: “fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem
mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela
rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la”32. Diante do
desejo e da cobiça de obter aquilo que não é seu, a menina começa seu plano de roubo: “o
plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora
que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha”33. A menina rouba pelo prazer que
lhe garante e pelo desejo de tê-la para si: “O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela
era minha”34.

Considerações finais

Clarice Lispector é um dos grandes nomes da literatura brasileira e neste trabalho


buscamos observar sua forma de representação literária da infância. O ano de 2020, por
ser considerado o ano que a escritora completaria 100 anos de idade, sem dúvida é uma
importante ocasião para relembrarmos sua obra e divulgá-la, incentivando sua leitura entre
o público jovem. Assim, buscamos destacar certos modos de representação da infância nos
contos “Felicidade clandestina” e “Cem anos de perdão”.
Os prazeres e a descoberta do mundo através da leitura são destaques no conto
“Felicidade clandestina” e a vivência de sensações momentâneas é destaque em “Cem anos
de perdão”. A autora se reveste, por assim dizer, de persona, e constrói suas personagens com
rastros pautados em suas vivências/experiências. E esses traços são aproveitados através da
autoficcionalização, momento em que podemos perceber em sua escrita, comparando com
a realidade de sua biografia, a autoficção da escritora, a criação de possibilidades de expe-
riência a partir de elementos de vivência.
A representação da infância presente nas obras claricianas e especificamente nos
contos lidos permite uma melhor compreensão a respeito do modo de escrita clariciana e
o fazer literário da escritora. Destacamos também a importância da literatura e da leitura
para uma interpretação de mundo, o desenvolvimento da imaginação criativa e reflexões,
segundo Zilberman (2001).
Analisamos nos contos a presença da maldade nas meninas, algo também presen-
te em outros textos claricianos, baseado em estudos de Rosenbaum (1999), o que nos per-

30 LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 9


31 Ibid. p. 10
32 Ibid. p. 60
33 Ibid. p. 61
34 Ibid.

Sumário 214
mite identificar essa “maldade” como inteligência e quebras dos padrões pré-estabelecidos
socialmente.
A leitura aqui apresentada dos contos analisados pode despertar nos leitores a
curiosidade e o desejo de conhecer outros contos e outros textos claricianos, e mais pesqui-
sas podem surgir sobre a autora, o que demonstra todo o potencial de sua obra. De fato,
tampouco a reflexão sobre a infância se esgota neste trabalho, visto que se trata de apenas
uma parte de um estudo maior a ser desenvolvido como dissertação de mestrado.

Referências
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tão, 11(2), 126-137. Recuperado de &lt; https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/
view/9497&gt;.
BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Frontei-
ra, 1991.
CABOCLO, Patricia; OLIVEIRA, Marta. Traços de menina: a construção da infância na obra de
Clarice Lispector. 2020. Monografia (Licenciatura em Letras - Português) - Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, Coxim/MS, 2020.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. rev. – São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo, 2013. 656 p.
KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2007.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MANZO, Lícia. Era uma vez - eu: a não ficção na obra de Clarice Lispector: ensaio. Editora UFJF:
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MOSER, Benjamin. Clarice: uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 752 pp., 2 ils.
OLIVEIRA, Marta Francisco. Clarice Lispector: a poética de um (in) certo exílio. Campo Grande:
Life Editora, 2017.
ROSENBAUM, Yudith. A metamorfose do mal em Clarice Lispector. Revista USP, São Paulo, n.
41, p. 198-206, março/maio 1999.
ZILBERMAN, Regina. Leitura e produção de conhecimento. Itinerários - Revista de Literatura,
Araraquara, 17: 21-34, 2001. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/
view/3446/3198>. Acesso em 27 ago. 2020.

Sumário 215
R epresentações , contraposições
e poder na literatura indígena
brasileira e na literatura indígena
colombiana

Leandro Faustino Polastrini

Introdução

E
ste artigo tem como objetivo apresentar resultados preliminares da pes-
quisa de doutorado que está sendo realizada no Programa de Pós-gra-
duação em Estudos de Cultura Contemporânea pela na UFMT (Univer-
sidade Federal de Mato Grosso) campus de Cuiabá. É importante destacar que ela teve seu
amadurecimento após o mestrado em Estudos de Linguagens, realizado de 2009 a 2011,
na mesma instituição que tinha como título: Transculturação e identidades na obra de Daniel
Munduruku. Sendo assim, surgiu a hipótese de que as representações identitárias nas narra-
tivas de Munduruku (escritor indígena brasileiro) buscavam pela literatura reconhecimento
e legitimação, deste modo tais representações poderiam ser entendidas como instrumentos
de poder.

Assim, originou-se a proposta desta pesquisa, porém, com um desdobramento,


no qual busca-se entender como isso também ocorre nas produções de outros escritores
indígenas brasileiros e dialogando com a América Latina, por meio de estudo comparado,
em específico, com as produções dos escritores indígenas colombianos. Portanto, o objetivo
geral da pesquisa é realizar um estudo analítico e comparativo sobre como as representações
identitárias são utilizadas, possivelmente, como instrumentos de poder na literatura dos es-
critores indígenas brasileiros e dos escritores indígenas colombianos.

Sumário 216
Para isso estabeleceu-se os seguintes objetivos específicos: eleger as obras/pu-
blicações (líricas ou narrativas) tanto as dos escritores indígenas brasileiros quanto as dos
indígenas colombianos para compor o corpus de análises, baseando-se nas temáticas: repre-
sentações identitárias pela diferença, elementos culturais mitos, cosmologias, danças, can-
tos, pinturas, etc.; buscar as obras/escritos que tenham sido publicados a partir das últimas
décadas do século XX até os dias atuais; descrever como as representações identitárias são
elaboradas como estruturas de poder nas literaturas em questão, evidenciando as diferenças
identitárias a partir da ótica dos autores indígenas a partir de si; problematizar por meio
de estudos comparados quais sãos as contraposições e/ou semelhanças entre as duas mani-
festações literárias e se as suas representações identitárias são (re)elaboradas, positivadas,
questionadas, etc.
Destarte, vislumbra-se nesta pesquisa diálogos interdisciplinares entre a literatu-
ra, os estudos culturais, a filosofia, história, etc. De acordo com Walty1 a interdisciplinarida-
de abre espaço para novos enfoques do estudo das representações que as sociedades fazem
de si mesmas no decorrer da história, ao se construir “ideias-imagens” das quais geram
identidade, divisões, legitimam poderes e elaboram modelos para seus membros.

Questões metodológicas

A pesquisa apresenta os seguintes aspectos metodológicos: a) do ponto de vista


de abordagem do problema é qualitativa (ao considerar as relações dinâmicas entre o sujeito
e o mundo real, assim como entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não
pode ser traduzido em números); b) do ponto de vista de seus objetivos é exploratória (ao
proporcionar maior aprofundamento do problema para torná-lo explícito ao construir hipó-
teses e também por caracterizar-se por levantamentos bibliográficos); c) de acordo com os
procedimentos técnicos é bibliográfica (elaborada a partir de materiais já publicados, como
livros, artigos, etc.).
A priori, para esta pesquisa, elegemos como elemento determinador para seleção
dos materiais que irão compor o corpus das análises livros ou escritos que tenham sido pu-
blicados de autorias indígenas, seja de caráter lírico ou narrativo, preferencialmente, a partir
das últimas décadas do século passado até os dias atuais. Portanto, esta seleção não se baseia
diretamente por regiões ou grupos étnicos.

Algumas bases teóricas

Temos como bases teóricas da filosofia: Bourdieu e Foucault sobre as relações de


representação e de poder, tanto no campo simbólico como no político; da cultura ou estudos
socioculturais: Angel Rama, Stuart Hall, Manuel Castells, Néstor García Canclini, Catheri-
ne Walsh, Walter Mignolo, etc. sobre as identidades culturais, dos processos culturais, como
a hibridação, transculturação, decolonialidade, etc.; da crítica literária: Daniel Munduruku,
Zilá Bernd, Eurídice Figueiredo, Regina Dalcastagnè, Tânia Franco Carvalhal, etc. sobre
as representações étnicas e identitárias na literatura brasileira e latino-americana, literatura
comparada.
1 WALTY, Ivete Lara Camargo. Narrativa e imaginário social: uma leitura das Histórias de Maloca Antigamente, de
Pichuvy Cinta Larga. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 1991. Tese de Doutorado
curso de Pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada.

Sumário 217
Como já dissemos, anteriormente, esta pesquisa busca pela interdisciplinaridade,
principalmente em suas bases teóricas construir caminhos ou possibilidades para que se pos-
sa compreender e atingir seus objetivos, sendo assim a seguir faremos uma breve explanação
destes caminhos, também compreendemos que é importante antes apresentar uma breve
contextualização sobre as escritas de autorias indígenas no Brasil e na Colômbia.

Caminhos possíveis

Podemos dizer que no Brasil, nas últimas décadas do século XX, o movimento
dos escritores indígenas começou a se despontar no cenário nacional, essa organização in-
telectual é fruto de algumas conquistas legais como a Constituição de 1988 e também a Lei
nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB).
Na Constituição Brasileira2 no Título VIII, Da Ordem Social, há o capítulo VIII,
Dos Índios, que concentrará os direitos mais significativos para os povos indígenas brasilei-
ros. De acordo com o Art. 231, deste capítulo, reconhece aos índios o direito às suas orga-
nizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições, assim como os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, ficando a cargo da União demarcá-las. Mas,
destacamos que em pontos tão importantes da constituição os povos indígenas ou questões
relacionadas a eles sequer são mencionados, como no Título II, Dos Direitos e Garantias Fun-
damentais, no Capítulo III no qual está o Art. 12 que trata da Nacionalidade, no Título III,
Da Organização do Estado, na seção II na qual está o Art. 33 Dos Territórios, no Título VII,
Da Ordem Econômica e Financeira, no Capítulo III sobre a Política Agrícola, Fundiária e Reforma
Agrária.
Já na LDB3 no Título VIII Das Disposições Gerais, Artigos 78 e 79, na referida lei
estarão dispostos os direitos de maior de relevância para os indígenas brasileiros, ao eviden-
ciar o direito a uma educação diferenciada que baseia-se no legitimação ou reconhecimento
das línguas indígenas, maternas, uma educação com caráter intercultural integradas às co-
munidades, que busca o fortalecimento e revitalização das práticas culturais e linguísticas
de cada etnia, além de elaborar e publicar materiais didáticos específicos e diferenciados.
Sendo assim, programas de formação e de implementação das escolas indígenas
ocorreram. Neste contexto, foram necessários materiais didáticos que correspondessem às
realidades dessas comunidades, nesse bojo textos e livros de professores e alunos indígenas
começaram a ser publicados em língua portuguesa como material paradidático, pois muitos
grupos mesmo que falantes de suas línguas indígenas não possuíam as codificações escritas
dessas línguas.
Para Luís Donizete Benzi Grupione4 estes escritores (professores e alunos) se
apropriam da “escrita e de procedimentos de pesquisas e sistematização, [...] voltam seu
olhar para os aspectos de seus modos de vida e ‘descobrem’, interpretações e modos de fazer
próprios que não suspeitavam”. Neste contexto de produção estão: os inventários sobre can-
tos, sobre os rituais e danças, além da classificação de plantas, bichos e seres e das descrições
de objetos etc.
2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/constituicao/constituicao.htm
3 BRASIL. Lei Nº 9.394/1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
4 GRUPIONE, Luís Donizete Benzi. Tempos de escrita. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2008.

Sumário 218
Na Colômbia aconteceu algo muito parecido com o que se passou no Brasil, de
acordo com Miguel Rocha Vivas5 na última década do século XX irrompeu uma geração
de escritores e escritoras indígenas “cuyos textos poéticos, autobiográficos y narrativos se
publicaron en español”. Para o autor o interesse de algumas editoras e instituição a este
movimento se deve não somente aos méritos literários, mas também influenciado pela res-
sonância mundial dos debates e comemorações sobre o quinto centenário da chegada dos
europeus a América.
[...] en 1991, Colombia estrenaba una nueva constitución nacional en la que se decla-
raba un país multiénico y pluricultural. Inicialmente, la constitución seria traducida
a siete de las más de sesenta lenguas indígenas actualmente habladas en el territorio
nacional. Así pues, los escritores e escritores indígenas comenzaban a ser “visibiliza-
dos” en el nación diversa, todo un puente entre antiguas y presentes áreas culturales
y geográficas (el Caribe, los Andes, el Pacífico, la Orinoquía y la Amazonía).6

Sendo assim, destacamos pontos importantes que ocorreram nas últimas décadas
do século XX que foram bastante relevantes para o surgimento desse movimento que Vivas-
classifica como “resurgimiento de palabra ancestral y contemporânea, que el contexto de
los escritores indígenas de México ya no dudan en llamar “el renacer de la nueva palabra”,
puede ser entendido como un fenómeno continental, y no necesariamente latinoamericano
[...]”7.
Quando pensamos no contexto sócio-histórico em que as primeiras escritas indí-
genas surgiram até os dias de hoje, constituindo-se como literaturas indígenas, é impossível
não trazer à tona as questões identitárias, culturais, sociais, ideológicas, políticas e econômi-
cas que delas emergem para a reflexão. Nesta pesquisa a identificação entre autores e suas
obras ou escritos é elemento fundamental, pois são vozes que reverberam ou representam
espaços, crenças, práticas socioculturais como cantos, danças, formas de cultivos, de eco-
nomias outras que muitas vezes se diferenciam daqueles das sociedades nacionais. Por isso
entendemos a (auto)representação dos sujeitos como um processo de legitimação e de insti-
tuição de poder, principalmente, no campo da escrita ou da literatura.
Quando falamos de poder e literatura, logo, nos referimos a Bourdieu8 o poder
neste caso como sendo simbólico ou “invisível”. Portanto, utilizaremos os pressupostos de
Bourdieu por entendermos que os escritores indígenas brasileiros e colombianos se valem
do poder instituído pelo campo da escrita literária e da (auto)representação como uma das
formas “sutis” de posicionar-se e de ser reconhecido entre si e pelos outros. O poder em
questão nesta análise parte da órbita ou da ótica dos sujeitos pertencentes a povos, etnias
que foram escravizadas, massacradas, subjugadas, negligenciadas, invisibilizadas, violenta-
das e silenciadas por muitos séculos. Povos que sofreram com as mais terríveis formas mani-
festação de poder “real” das elites europeias ou locais desde suas origens a partir do período
colonial, possuidoras do senso de legitimar e deslegitimar suas ações e estruturas de poderes
para si e para os outros.
5 VIVAS, Miguel Rocha. Pütchi Biyá Uai, Precursores. Antología multilingüe, de la literatura indígena contemporánea
en Colombia. [recurso eletrônico] Bogotá: Instituto Distrital de las Artes (IDARTES), 2016. Volume I.
6 VIVAS, 2010, p. 13.
7 VIVAS, 2010, p.14.
8 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989.

Sumário 219
De acordo com Boudieu “As diferentes classes e frações de classes estão envol-
vidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais
conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas re-
produzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais.”9.
Deste modo, a visibilidade que se tinha das representações identitárias dos indíge-
nas pela literatura era sempre realizada pela ótica e vozes dos nãos indígenas, representações
que se davam de maneiras idealizadas ou estereotipadas negativamente. Esse soterramento
e silenciamento começou a ruir, as vozes indígenas insurgem e pela escrita se instauram no
campo da literatura. Compreendemos que essas vozes indígenas, que sofreram e que ainda
sofrem pelas diversas formas de poder exercidas por esses outros, podem também constituir-
-se como polifônicas.
A respeito desta questão Regina Dalcastagnè nos diz que o silenciamento dos
grupos marginalizados (sejam definidos por sexo, etnia, cor, orientação sexual, etc.) e que
vivenciam uma identidade coletiva negativa dada pela cultura dominante é coberto por vo-
zes que o sobrepõem, “vozes que buscam falar em nome desses grupos, mas também, embora
raramente, pode ser quebrado pela produção literária de seus próprios integrantes”10. Ao se
pensar nessa premissa Bourdieu11 nos diz: “O que faz o poder das palavras e das palavras de
ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras
e daquele que as pronuncia [...].”
Sendo assim, consideramos que as publicações indígenas colombianas e indí-
genas brasileiras, podem estabelecer-se como uma “luta” contra o “monopólio da violência
simbólica, do poder de impor, de inculcar, instrumentos de conhecimento e de expressão”
e ao mesmo tempo esta “luta” também é pela inclusão ou pelo direito de representar-se, do
poder que tal ato institui-se12.
Em umas de suas considerações sobre o poder, neste caso estruturas do Estado,
Foucault nos diz que “é preciso dizer também que não se podem conceber essas relações
13

de poder como uma espécie de dominação brutal sob a forma: “Você faz isto, ou eu o mato.”
Essas não são senão situações extremas de poder.” Ele reconhece que as relações de poder
são também relações de força, enfrentamentos e que, portanto, podem sempre ser reversí-
veis. De acordo com ele não há relações de poder que sejam completamente triunfantes e
cuja dominação seja incontornável.
Para Bourdieu14 as representações conduzidas pelo estudo da identidade estão
impressas de duas maneiras: a) representações mentais, aquela que está associada à visão regio-
nal ou étnica, veiculada às línguas, aos dialetos ou sotaques, pois estão ligadas às maneiras
de “percepção, de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento em que os agentes in-
vestem os seus interesses e os seus pressupostos”; b) representações objectuais, aquela que está
associada à coisas, como por exemplo, em emblemas, bandeiras, insígnias, etc., ou refletidas
9 BOURDIEU,1989, p.11.
10 DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, n.º 26. Brasília, julho-dezembro de 2005, pp. 13-71.
11 BOURDIEU, 1989, p.15.
12 BOURDIEU,1989, p.11-12.
13 FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Ética, estratégia, poder-saber. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Tradução
de Vera Lúcia Avellar Ribeiro.2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. v. 4.
14 BOURDIEU,1989, p. 112.

Sumário 220
em “actos, estratégias interessadas de manipulação simbólica que têm em vista determinar
a representação mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores”.
Neste estudo podemos também fazer aproximações com o campo do discurso
regionalista, referenciando o que Bourdieu chama de “um discurso performativo”, que buscar
legitimar uma nova definição sobre as fronteiras, e desempenha também a função de dar
visibilidade à região que antes era esquecida, ignorada ou desconhecida, fazendo com que
esse discurso seja “contra a definição dominante, portanto, reconhecida e legítima, que a
ignora”.15
Entendemos então, que esses movimentos literários de autorias indígenas rom-
pem com a o discurso de que os “excluídos do universo do fazer literário, pelo domínio
precário de determinadas formas de expressão (...) seriam também incapazes de produzir
literatura”16. Para a autora há sim uma incapacidade de produzir literatura, porque a defi-
nição, ou melhor, o discurso de poder ocidentalizado que se tem de “literatura” acaba por
excluir e/ou desconsiderar as formas de expressão artística desses grupos “marginalizados”.
Portanto, “a definição dominante de literatura circunscreve um espaço privilegiado de ex-
pressão, que corresponde aos modos de manifestação de alguns grupos, não de outros”17.
Podemos inferir que os escritores indígenas brasileiros e colombianos desempe-
nham uma dupla função, a de inserir suas respectivas literaturas nas sociedades envolventes
como um “mecanismo” de infiltração no campo de poder literário dos nãos indígenas ou
ocidentalizado, abalando tal hegemonia, e de estabelecer e legitimar esse mecanismo como
um campo de poder (de resistência ou não) utilizando-se das estruturas desses outros e de
suas próprias culturas. Para Foucault o intelectual nos dias de hoje tem o papel de lutar con-
tra as formas de poder ali onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento disso: na
ordem do “saber”, da “verdade”, da “consciência”, do “discurso”18.
Para que essas narrativas e líricas em suas respectivas literaturas exerçam tais
funções se revestem de discursos como, por exemplo, de resistência cultural e identitária, da
tradição, do “ser indígena” múltiplo (mestiço) e diferente do tradicional, das violências e
preconceitos oriundos das relações de estranhamentos entre não indígenas e indígenas, etc.
Para Foucault19 “o poder é alguma coisa que opera através do discurso, já que o
próprio discurso é um dispositivo estratégico de relações de poder”. Mas para que estes dis-
cursos tenham efeitos, de acordo com Bourdieu20 não depende apenas do reconhecimento
consentido àqueles que os detém (escritores); mas sim, ao grupo que tem a sua identidade
enunciada, desta forma, estes discursos ganham representatividade quando os membros des-
te grupo lhe concedem reconhecimento e crença, assim como nas propriedades econômicas
ou culturais que eles têm em comum.
Ao pensarmos em identidade cultural referenciamos o que nos diz Warnier21 que
define identidade “como o conjunto dos repertórios de ação, de língua e de cultura que per-

15 BOURDIEU, 1989, p. 116.


16 DALCASTAGNÈ, 2005, p. 17
17 idem. p. 17.
18 FOUCAULT, 2006, p. 39.
19 FOUCAULT, 2006, p. 253.
20 BOURDIEU,1989.
21 WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Trad. Viviane Ribeiro. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2003.

Sumário 221
mitem a uma pessoa reconhecer sua vinculação a certo grupo social e identificar-se com ele.
Mas a identidade não depende somente do nascimento e das escolhas realizadas pelos su-
jeitos. No campo político das relações de poder, os grupos podem fornecer uma identidade
aos indivíduos.”22 O autor usar o verbo identificar-se, pois segundo ele seria mais pertinente
falar em identificação ao invés de identidade, por entender que a identificação é contextual e
flutuante.
Sobre o poder de legitimação e produção das identidades, Manuel Castells23 no
primeiro capítulo do livro: O poder da identidade, apresenta três origens possíveis de se cons-
truir identidades são elas: a identidade legitimadora, introduzida por grupos dominantes para
expandir e racionalizar sua dominação na relação com os atores sociais; a identidade de resis-
tência, gerida por grupos contrários aos dominantes, baseando em princípios diferentes ou
opostos; identidade de projeto, em que atores sociais utilizam a comunicação para construir
novas identidades a fim de redefinir sua posição social.
(...) “existir não é somente ser diferente, mas também ser reconhecido legitimamen-
te diferente e em que, por outras palavras, a existência real da identidade supõe a
possibilidade real, juridicamente e politicamente garantida, de afirmar oficialmente
a diferença – qualquer unificação, que assimile aquilo que é diferente, encerra o prin-
cípio da dominação de uma identidade sobre a outra, da negação de uma identidade
por outra”24.

Para Dalacastagnè a importância dos estudos a partir do processo de representa-


tividade, não se resume à honestidade na busca pelo olhar do outro ou ao respeito por suas
peculiaridades, mas sim, em relação à “diversidade de percepções do mundo, que depende
do acesso à voz e não é suprida pela boa vontade daqueles que monopolizam os lugares de
fala”.25
Identificamos também nesta pesquisa um possível caminho que nos aproxima
dos estudos sobre a decolonialidade na América Latina, principalmente, sobre como as es-
truturas e formas de poder se instauraram socialmente e culturalmente a partir do início da
colonização europeia. Pois falar das relações entre indígenas e não indígenas perpassa por
esses lugares históricos, portanto, as formas e estruturas de poderes que conhecemos até os
dias de hoje são resultantes desse percurso marcado pela colonialiade. Segundo Grofoguel26
“La colonialidad no es equivalente al colonialismo. No se deriva de la modernidad ni ante-
cede a ella. La colonialidad y la modernidad constituyen dos lados de una misma moneda”.
Então seria mais apropriado a ideia da coexistência, não do binarismo ou nas dualidades,
já que o pensamento decolonial busca desligar-se deles. Mas parece algo tão difícil de se
romper, principalmente, porque parece que sempre estamos retornando aos mesmos lugares,
quando não estamos entre.

22 WARNIER, 2003, p. 17.


23 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
24 BOURDIEU,1989, p. 129.
25 DALCASTAGNÈ, 2005, p. 16.
26 GROSFOGUEL, Ramón. La descolonización de la economía política y los estudios postcoloniales: Transmoderni-
dad, pensamiento fronterizo y colonialidad global. Tradução de María Luisa Valencia. Tabula Rasa. N 4. Bogotá - Co-
lombia, 2006. Pg.17-48

Sumário 222
Para Mignolo27 o pensamento decolonial emergiu como contrapartida da criação
da modernidade/colonialidade, cita como exemplo o pensamento indígena e afro-caribenho
das Américas. Ele evidencia que o pensamento decolonial e pensamento indígena estariam
na mesma frequência, e que a origem deste pensamento é planetária, portanto, não se limita
aos individualismos, mas é incorporada aos movimentos sociais, no caso aos movimentos
sociais indígenas e afros.
Ressaltamos que não pretendemos definir ou classificar a literatura indígena bra-
sileira e a colombiana com o rótulo de que são decoloniais, mas quiçá futuramente seus
escritores e escritoras assim a entendam e a projetam, porém buscamos fazer aproximação
destas literaturas com o pensamento decolonial ao entendermos que os movimentos destes
autores e destas autoras indígenas no Brasil e na Colômbia possam representar umas das
formas do que Mignolo chama de fratura decolonial da modernidade/colonialidade.

Corpus paras as análises

Têm-se, até o momento, para este estudo publicações dos seguintes escritores e
escritoras indígenas brasileiros e brasileiras: Memórias de índio: uma quase autobiografia (2016),
Todas as coisas são pequenas (2008), O sinal do pajé (2003), Sabedoria da Águas (2004) de Daniel
Munduruku que se autodenomina Munduruku; A terra dos mil povos: história indígena do Brasil
por um índio (1998) de Kaká Werá Jecupé que se autodenomina Tapuia; Metade cara, metade
máscara (2004), O pássaro encantado (2014) e A cura da Terra (2015) de Eliane Potiguara ela
se autodenomina Potiguara; O saci verdadeiro (2000) de Olívio Jekupé que se auto-denomina
Guarani, A pescaria do Curumim e ouros poemas indígenas (2015) de Tiago Hakiy que se auto-
denomina Sateré Mawé; Ay Kakyri Tama eu moro na cidade (2018) de Márcia Wayna Kambe-
ba que se autodenomina Omágua/Kambeba: Eu sou Macuxi e outras histórias (2019) de Julie
Dorrico que se autodenomina Macuxi; Canumã: a travessia de Ytanajé Coelho Cardoso do
povo munduruku; Antologia Indígena (2010); Revista LEETRA Indígena nº1 (2012), nº 3 (2013);
nº 4 (2014), nº 17 (2015).
Já das produções dos escritores indígenas colombianos tem-se: Danzantes del vien-
to (2010) de Hugo Jamioy Juagibioy que se autodenomina Camëntsa; Encuentros en los sen-
deros Abya Yala (2004), En las hondonadas maternas de la piel Shiinalu’uirua shiirua ataa (2010)
de Vito Apüshana que se autodenomina Wayúu; Espíritu de pájaro en pozos del ensueño (2010)
de Fredy Chikangana que se autodenomina Yanacona; Pütchi Biyá Uai Antologia Multilin-
güe de la literatura indígena en Colombia Vol I e II (2016), Antes el amanecer Antología de las
literaturas indígenas de los Andes y la Sierra Nevada de Santa Marta (2010) e El Sol babea jugo de
piña: Antología de las literaturas indígenas del Atlántico, el Pacífico y la Serranía del Perijá (2010)
organizadas por Muiguel Rocha Vivas pesquisador da literatura indígena colombiana; Las
palabras del origen Breve compendio de la mitología de los uitotos (2010) de Fernando Urbina
Rangel também pesquisador da literatura indígena colombiana.
É importante destacar que nessas antologias têm-se publicações de poemas, con-
tos, crônicas, etc. de vários autores e autores indígenas que não tiveram a oportunidade de
realizar publicações individuais ou cujas publicações se deram em meios de circulação mais

27 MIGNOLO, Walter. La opción de-colonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto y un caso. Revista Tabula
Rasa nº 8. Bogotá – Colombia, 2008a. pg. 243-281

Sumário 223
restritos, ou seja, locais ou regionais com baixas tiragens, como por exemplo, em jornais,
revistas, concursos literários, dossiês, etc.
Algumas considerações sobre as publicações escritores indígenas brasileiros
Pode-se dizer que a quantidade de publicações dos escritores indígenas brasileiros
é relativamente maior que as dos escritores indígenas colombianos, logo número de autores
e autoras é também maior no Brasil e só vem crescendo nos últimos anos. As publicações
das escritoras e escritores indígenas brasileiros, grande parte, são catalogadas como literatu-
ra infanto-juvenil. Majoritariamente os livros são publicados em língua portuguesa, muito
raro são os livros bilíngues, mas há obras com algumas palavras nas línguas indígenas. Essa
constatação pode ser reflexo do não domínio das línguas indígenas por alguns escritores/
escritoras ou por questões editoriais e mercadológicas de quem terá acesso a esses livros.
As publicações são normalmente realizadas em editoras pequenas, às vezes com
apoio do próprio grupo de autores indígenas, elas também podem ser por meio de incentivos
de editais de instituições privadas ou públicas. Os livros, em sua maioria, são gênero narra-
tivo: lendas, contos, mitos, crônicas, etc. Mas, há também algumas publicações do gênero
lírico, porém numa tendência menor.
Destaca-se alguns temas que são frequentes nestas publicações como: ancestrali-
dade, a relação índio e natureza/terra, as tradições, memórias e ancestralidades, a educação
indígena baseada nas relações de práticas e com os mais velhos, com os avós e pajés. Outros
elementos que sobressaltam desses escritos são as relações socioculturais e identitárias entre
sujeitos indígenas (dos personagens, seja os de ficção de ou personagens-autores) entre al-
deia e a cidade, entre as tradições de seus grupos étnicos e as estruturas e sistemas da “mo-
dernidade” ou da vida integrada à sociedade nacional.
Para que possamos ilustrar as considerações que fizemos anteriormente traremos
alguns poemas dos escritores/escritoras indígenas brasileiros. O prime poema “Legado de
índio” é de Carlos Hakiy, que na época, em 2009, utilizava-se do nome Carlos Tiago, esse
poema encontra-se na “Antologia Indígena” uma publicação financiada pelo Secretaria de
Estado de Cultura de Mato Grosso para a primeira Feira do Livro Indígena de Mato Grosso
realizada no ano de 2009 em Cuiabá.
Legado de índio
Sou índio, sou cor, sou raça de mil florestas.
Meu tacape, dança da tucandeira, minha tradição,
Se mostra em noites de muitas festas.

Lembranças e madrugadas correm em minhas veias


E preservam o gosto das águas antepassadas
Colhidas nas belas noites de lua cheia.
Chuvas de tradições molham meu rosto.

Sou índio, minha cultura é minha pele.


A mata sobrevive em minha canção;
Faz parte da minha sina, de meu índio coração.

Sou índio, sou sonho, raiz da nação brasileira.


Minha bandeira pela igualdade, minha história renascendo em livros
E minha luta solfejando a sobrevivência. 28.
28 TIAGO, Carlos Legado de índio. In. MUNDURUKU, Daniel; WAPICHANA, Cristino (Orgs) Antologia indígena.
Cuiabá, 2009, p.17.

Sumário 224
No poema de Tiago a afirmação “sou índio” é repetida várias vezes, pois enten-
demos que ele reforça a identidade desse eu lírico, ou seja, quem é que fala e de onde fala.
Temos também a palavra tradição aparece duas vezes, nos mostrando que esse eu lírico fala
ancorado por suas tradições, o tacape e a dança da tucandeira são elementos marcadores
dessa tradição.
A relação índio e natureza é também reforçada pelo poeta no poema “A mata
sobrevive em minha canção/Faz parte da minha sina, de meu índio coração”. Na última
estrofe temos a postulação da origem da nação brasileira a partir da identidade indígena e
no último verso “E minha luta solfejando a sobrevivência” mostra que o eu lírico indígena
ainda encontra-se na situação de luta pela sobrevivência, talvez a caminho do extermínio,
seja pelas forças do Estado ou do sistema socioeconômico em vigência com seus projetos
integracionistas ou de negligenciamentos, de invasão e desapropriações de terras indígenas
para exploração de seus recurso naturais.
Na sequência temos um excerto do poema “União dos povos” de Márcia Wayna
Kambeba que está no livro “Ay Kakyri Tama, Eu moro na cidade” de 2018.
União dos povos
Nós, povos indígenas
Habitantes do solo sagrado
Mesmo sem nossa aldeia
Somos herdeiros de um passado.

Buscamos manter a cultura


Vivendo com dignidade
Exigimos respeito
Também vivendo na cidade.

Somos parte de uma história


Temos uma missão a cumprir
Garantir aos tanu muariry
Sua memória, seu porvir.

Vivendo na rytama do branco


Minha uka se modificou
Mas a nossa luta por respeito
Essa, ainda não terminou.29
[....]

No poema de Kambeba tem-se a representação do indígena urbano, ou seja, aque-


le que mesmo não estando mais na aldeia de alguma maneira ainda mantém suas crenças
língua, memórias, práticas culturais, portanto, a identidade indígena neste caso não é dada
apenas pelo lugar em que se encontra. O poema traz algumas palavras da língua indígena
omágua/kambeba, a exemplo, temos: tanu muariry que em português significa “nossos ne-
tos”, rytama que significa “aldeia” e uka que quer dizer “casa”.

29 KAMBEBA, Márcia Wayna. Ay Kakyritama, Eu moro na cidade. 2 ed. São Paulo: Pólen, 2018ª, p. 36.

Sumário 225
Para Daniel Munduruku30 “O papel da literatura indígena é, portanto, ser porta-
dora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça
e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar
ancestral.” Já sobre a poesia e também a relação entre indígena e a natureza vejamos o que
nos diz a escritora indígena/poetisa Márcia Kambeba.
Uma das vertentes literárias utilizadas por escritores indígenas é a poesia. Mas será
que podemos pensar em uma educação poética? Apresentar um texto em sala de aula
com rimas e versos é estimulante. Pode-se informar e denunciar acerca de temas rela-
cionados à cultura dos povos, à questão ambiental, entre outros. [...] E os indígenas
sempre buscaram poetizar sua vivência. O contato do corpo com a água num banho
de rio à tardinha é uma bela imagem poética a ser apresentada aos olhos atentos de
quem busca narrar a relação homem x natureza. 31

E sobre a memória e ancestralidade Munduruku32 diz que “Não se pode achar


que a memória não é atualizada. É preciso notar que a memória procura dominar novas
tecnologias para se manter viva. A escrita é uma delas (isso sem falar nas outras formas de
expressão e na cultura, de maneira geral).

Sobre as publicações escritores indígenas colombianos

Os materiais que temos dos escritores indígenas colombianos foram conseguidos


por estarem digitalizados e disponíveis online para consultas e também download. As pu-
blicações para análises estão disponíveis em formato digital no domínio: Biblioteca Virtual
Banco de la Republica Colombia na coleção: Biblioteca Básica de los Pueblos Indígenas de Colômbia
(http://babel.banrepcultural.org/cdm/landingpage/collection/p17054coll8).
Essa coletânea foi organizada pelo professor e pesquisador da literatura indígena
contemporânea colombiana Miguel Rocha Vivas e sua editoração e publicação foi financia-
da pelo Ministério de Cultura da Colômbia. Todas as publicações são bilíngues ou multilín-
gues, no caso das Antologias. Nestas estão narrativas míticas transcritas, contos, narrativas
autobiográficas ou de ficção e poemas de escritores/escritoras indígenas de diferentes etnias
e regiões do país. Já todos os livros de autoria individual que estão disponíveis nesta coletâ-
nea são de caráter lírico, somente de poemas.
As temáticas dos poemas e narrativas são variadas: rememorações das experiên-
cias com os taitas, que são anciãos ou médicos tradicionais, pajés, sentimentos nostálgicos,
elementos culturais (canções, ancestralidades, natureza e índio, etc.) as relações entre sujei-
tos indígenas e não indígenas também aparecem em alguns textos de caráter mais reflexivo
e crítico. Também se destaca o termo oralitura que é muito citado nos prefácios das obras.
Segundo Vivas o ato de escrever tem gerado em muitos escritores indígenas um maior inte-
resse pelas formas de composição e transmissão oral que são características de suas culturas.

30 MUNDURUKU, Daniel. Escrita indígena: registro, oralidade e literatura O reencontro da memória. In DORRICO,
Julie; DANNER, Leno Francisco; et al. (Orgs.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção
[recurso eletrônico]. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018, p. 83.
31 KAMBEBA, Marcia. Literatura indígena: da oralidade à memória escrita. In DORRICO, Julie; DANNER, Leno
Francisco; et al. (Orgs.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção [recurso eletrônico].
Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018b, p, 41.
32 MUNDURUKU, 2018, p.83.

Sumário 226
Es en ese sentido que escritores andinos como Jamioy y Chikangana prefieren hablar
de oralitura, reconociendo la oralidad como fuente clásica. Simultáneamente, cada
vez hay mayor conciencia sobre el sabio e irremplazable aporte de los incontables
narradores y narradoras, cantores y cantoras tradicionales, quienes mantienen vivo
el fuego de las artes verbales en sus comunidades de origen.33
Vivas também nos diz que a primeira geração de escritores/escritoras indígenas
que se despontam na Colômbia ganhando maior visibilidade são:
[…] Berichá, escritora uwa; Fredy Chikangana, poeta y oralitor yanakuna (yanaco-
na), y Miguelángel López-Hernández (Vito Apüshana), escritor wayuu. Sus obras,
como las de otros escritores y escritoras de origen indígena (Vicenta María Siosi,
Francelina Muchavisoy, Bárbara Muelas, etc.), fueron precedidas por quienes po-
drían llamarse los precursores de la literatura indígena en Colombia, un reducido
número de escritores que llegaron a publicar adentro o afuera del país, como en el
caso de tres importantes narradores wayuu: Antonio Joaquín López (Briscol), Glice-
rio Tomás Pana y Miguel Ángel Jusayú. De otro lado, la obra de Alberto Juajibioy
Chindoy, narrador e investigador camëntsá, representó el aulatino paso del infor-
mante nativo al escritor indígena en sí.34
Destacamos que nesta pesquisa vamos trabalhar com as versões dos textos, poe-
mas, etc. em língua espanhola. Traremos também alguns poemas dos escritores colombia-
nos para ilustrar as considerações realizadas acima. O primeiro poema é de Hugo Jamioy
Juagibioy está no livro Danzantes del viento de 2010.
Fui sueño en los caminos de ayer
Aún quedan los caminos de ayer
sin los pasos antiguos.

Busco los signos


en las huellas dibujadas por los pies de aquellos
que caminaron llevándome en su sueño.
Busco allá
donde me dicen que los vieron,
solo veo la soledad de la soledad
escondida tras los arbustos del misterio
acompañantes de las voces que susurran
al paso de mis oídos sin idioma.

Ellos dicen
que cuando pasan por aquella oscuridad
escuchan las voces que pintan y repiten
los nombres de nuestra generación
en el canto inventado desde el sueño
de los pasos antiguos.

¿Cómo saber qué sueño somos


si las palabras antiguas
se han ido con sus voces?35
33 VIVAS, Miguel Rocha. Pütchi Biyá Uai, Precursores. Antología multilingüe, de la literatura indígena contemporá-
nea en Colombia. [recurso eletrônico] Vol. I. Bogotá: Instituto Distrital de las Artes (IDARTES), 2016, p. 13.
34 VIVAS, 2016, p. 13.
35 JUAGIBIOY, Hugo Jamioy. Danzantes del viento: poesía bilingüe. [recurso eletrônico] Bogotá: Ministerio de Cultura,
2010, p. 103.

Sumário 227
O poema de Juagibioy nos mostra que o eu lírico busca seguir os caminhos que
seus antepassados já percorreram, ou seja, uma tentativa de seguir a tradição é representada.
Ouvir os sussurros, a voz ancestral para seguir sonhando e existindo no presente e no futu-
ro. Nos versos: “¿Cómo saber qué sueño somos/si las palabras antiguas/se han ido con sus
voces?” a pregunta nos apresente uma certa angústia desse eu lírico sobre o como continuar
a existir sem as palavras dos antigos, logo sua identidade indígena parece ameaçada. Já o
segundo poema é Fredy Chikangana publicado no livro Espíritu de pájaro en pozos del ensueño
de 2010.
Versos de la tierra
De maíz son mis versos
y de agua mi esencia.

Canto hoy como antes cantaron


como fuerte semilla que esquiva la muerte.
Así como gota que alimenta la fuente.

De maíz son mis versos


y de agua mi esencia.

Vivo hoy con la siembra de ayer,


con la dulce insistencia que detiene la muerte.36

No poema acima temos a repetição dos versos “De maíz son mis versos/y de
agua mi esencia” isso representa que a identidade desse eu lírico é atravessada por dois ele-
mentos que lhe parece essenciais, o milho e a água. Podemos interpretar que há uma analo-
gia entre o processo de cultivo da terra, de semear e aguar, com o cultivo da identidade. O
canto é uma forma de existência e resistência, é o mesmo de antes, é a semente/identidade
que seguirá a germinar quando bem regada.

Conclusões parciais

Neste estudo prevê-se que há semelhanças temáticas, ideológicas e até mesmo


estruturais entre as duas manifestações literárias, assim como também aspectos que as dis-
tinguem. Uma das semelhanças é que em ambas estão permeadas pelas relações, com o pas-
sado colonial, como diria Anibal Quijano37, da modernidade, do poder e da colonialidade,
pois trazem as marcas históricas, sociais e culturais do longo processo de contato entre os
não indígenas e indígenas.
Um dos resultados que podemos destacar neste estudo é que as representações
étnico-culturais, respondem às necessidades de afirmação e de resistência sociocultural e
política dos indígenas do presente, mas sem abandonar os elementos míticos e tradicionais
de suas culturas ancestrais, dos seus avós. Outro resultado que se reflete nessas representa-
ções identitárias é a ênfase nas diferenças, ou seja, a valoração de ser indígena e das diversas
possibilidades de se ser indígena.

36 CHIKANGANA, Fredy. Espíritu de pájaro en pozos del ensueño. [recurso eletrônico] Bogotá: Ministerio de Cultura,
2010, p. 55.
37 QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: euro-
centrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO),
2005. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf

Sumário 228
A ânsia, o engajamento ideológico e identitários emergem dessas vozes que fo-
ram silenciadas, soterradas ao longo desses cinco séculos. Portanto, essas vozes indígenas
buscam romper com este silenciamento e com as representações identitárias negativas cons-
truídas pelo olhar branco-ocidental e etnocêntrico colonial, elas buscam representações de
si, dos indígenas do presente.
Sendo assim, entende-se que estas manifestações se instituem como estruturas de
poder a partir da ótica dos sujeitos indígenas que se infiltram no campo artístico-social e de
poder que a literatura ocupa na cultura do não indígena, na sociedade nacional, como forma
de legitimação de suas vozes, existências, de suas identidades. Elas engajam-se num discurso
que pode ser caracterizado pelo regional, local e cultural com objetivo de representar uni-
versos particulares (angústias, crises identitárias, experiências entre a cidade e aldeia, entre
tradição e modernidade etc.) e coletivos (elementos étnico-culturais, sociais, cosmológicos,
demarcações terras, etc.) dos povos indígenas.

Referências
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tudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.º 26. Brasília, julho-dezembro de 2005, pp. 13-71.
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FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Ética, estratégia, poder-saber. MOTTA, Manoel Barros da
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GRUPIONE, Luís Donizete Benzi. Tempos de escrita. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2008.
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______________. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em
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Sumário 229
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Paulo: Angra, 2000.
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In DORRICO, Julie; DANNER, Leno Francisco; et al. (Orgs.). Literatura indígena brasileira con-
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TIAGO, Carlos. Legado de índio In. MUNDURUKU, Daniel; WAPICHANA, Cristino (Orgs) An-
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dissertação. Florianópolis: Laboratório de Ensino a Distância da UFSC, 2001.
WALTY, Ivete Lara Camargo. Narrativa e imaginário social: uma leitura das Histórias de Maloca
Antigamente, de Pichuvy Cinta Larga. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
manas da USP, 1991. Tese de Doutorado curso de Pós-graduação em Teoria Literária e Literatura
Comparada.
WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Trad. Viviane Ribeiro. 2. ed. Bauru: EDUSC,
2003.

Sumário 230
O ralidade e representação feminina
em narrativas do cárcere

Maria Aparecida de Barros

A
realidade das prisões, nos dias atuais, continua tão caótica quanto no
seu início, com o nascimento da sociedade disciplinar, na Europa, no
final do século XVIII e início do século XIX. No Brasil, essa realidade
não é diferente, sendo que as prisões femininas se encontram em condições ainda mais ad-
versas.
A narrativa analisada, neste texto, provém de uma mulher, que, naquele mo-
mento, era mais um número nas estatísticas da evolução da criminalidade feminina e que
se amontoam nas prisões, esquecidas e julgadas precocemente por suas condutas transgres-
soras, tanto da lei penal, quanto dos costumes da tradição patriarcal. O testemunho oral de
Amália se propõe a revelar que há uma pessoa por detrás do crime. Sua voz é o instrumento
eficaz para transcender as muralhas do cárcere, ser ouvida e interromper a invisibilidade que
a encarcera e também a emudece. É a sua verdade compartilhada e representada em suas
memórias.
Analisar como as representações sociais são apresentadas e a forma como o femi-
nino se reflete na narrativa de Amália é o nosso propósito no decorrer deste estudo, conside-
rando o espaço prisional onde a narrativa foi colhida. Informamos que a transcrição fonética
se deu sem símbolos do alfabeto fonético, uma vez que o interesse do estudo não é de cunho
linguístico, e as falas serão marcadas pelo pseudônimo e ano da entrevista, para manter o
anonimato da narradora1.
Para alcançar este intuito faremos uma explanação sobre as prisões e a presença
feminina no cárcere. Abordaremos sobre a oralidade como instrumento para a partilha das

1 Entrevista: AMÁLIA. Gravada em áudio por BARROS, Maria Aparecida de. 07/09/2015. PFRBR (Penitenciária Fe-
minina de Rio Brilhante – Rio Brilhante/MS). as falas de Amália serão referenciadas como Amália, 2015.

Sumário 231
narrativas de si, a possibilidade de usar a voz para expor-se, além do que informa o inquérito
policial. Versaremos também a questão do feminino nas representações sociais, assim como
as imagens escolhidas para revelar os valores e conceitos da narradora.

As prisões femininas

As prisões femininas no Brasil remontam ao século XIX, ainda no Brasil Império,


com a notícia de que 187 mulheres escravas estiveram presas2. Os objetivos teóricos da pena
privativa de liberdade se propõem a reeducar o criminoso, levando-o ao arrependimento e
ao desejo de não voltar a delinquir, no entanto, as consequências da privação de liberdade
são diferentes daqueles pretendidos. No entanto, a premissa de que as prisões nasceram
com o objetivo de recuperar o delinquente e disciplinar o corpo como também de manter a
constante vigilância sob a massa carcerária é o que se tem verificado o decorrer do tempo3.
Desde o surgimento, até as políticas punitivas atuais, as prisões modificaram a
estratégia de linha de produção semelhante a uma fábrica, pois em tempos atuais “as tec-
nologias do disciplinamento não são mais um instrumento eficaz de controle e governo da
dissipação e do desperdício da força de trabalho”4. Outras estratégias são empregadas para
controle das novas classes que ameaçam a ordem social. A constante vigilância, chamada
por Wacquant5 de “social panoptismo” a segregação urbana e a contenção carcerária são
os expedientes empregados para neutralizar as comunidades consideradas mais propensas
ao cometimento de ilícitos, assim como, para prevenir os possíveis riscos. As prisões foram
criadas para não serem vistas, não somente para afastar as pessoas da sociedade, mas para
que a sociedade não veja o que ocorre por detrás das muralhas. As prisões brasileiras, cer-
cadas por uma desigualdade social gritante, sem uma rede de proteção aos mais pobres, e a
insegurança criminal acentuada pela atuação policial e as diversas formas de discriminações
social, racial e de gênero, agravam severamente as condições da vida no cárcere 6.
As prisões femininas são reflexo da forma como as mulheres são tratadas pela
sociedade, na maioria das vezes são espaços caóticos, adaptados e que muitas vezes os im-
provisos que são justificados pela baixa periculosidade representada pelas mulheres. Para
a socióloga Elaine Pimentel, “as prisões femininas, mecanismos sofisticados de controle
dos corpos das mulheres, tendem a reproduzir essa opressão, e dificilmente são planejadas,
estruturadas e geridas a partir das demandas das mulheres, na sua pluralidade e diversida-
de”7. É a reprodução da inferioridade com a qual a mulher é vista. Negar a existência das
especificidades femininas é também uma forma de violência que o Estado comete contra as
mulheres. O público das prisões femininas são as mulheres que não se encaixam nos padrões
sociais estipulados pelo patriarcado para serem seguidos, ou seja, aquelas que se desviam
das normas.

2 SOARES, Bárbara Musumeci; ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades. Rio de Janeiro:
Garamond, 2002.
3 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
4 GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006.
5 WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.
6 Op. Cit.
7 PIMENTEL. Elaine. As marcas do patriarcado nas prisões femininas brasileiras In: Dossiê Punição e Controle Social:
degradações carcerárias em América Latina e Europa. V. 02, N. 2, Jul.-Dez., 2016, p. 169.

Sumário 232
Não raro, após a prisão, muitas mulheres são esquecidas pelas pessoas que deixou
fora. O dia de visitas, o mais esperado da semana, se por um lado é de alegria para algumas,
para a maioria é certificação de que não foram lembradas. O distanciamento provocado por
essa ruptura com o mundo externo fragiliza profundamente as relações afetivas, especial-
mente com os filhos e companheiros. A maternidade passa a ser exercida precariamente
e as relações amorosas passam por reconfigurações, o que pode ser notado por meio dos
relacionamentos homoafetivos, muito comuns, iniciados na prisão. A partir da prisão, além
das questões pessoais e afetivas, é também necessário aprender a lidar com a constante vi-
gilância. Se por um lado se tornam invisíveis perante a sociedade, os familiares, amigos e
entes queridos, por outro são monitoradas por 24 horas pelo sistema penitenciário. Precisam
aprender a conviver com essa nova realidade: constantemente vigiadas e ainda assim, igno-
radas.
Habituar-se com a privação da liberdade e com os pequenos espaços disponíveis é
uma tarefa penosa, afinal, esses ambientes não foram pensados para elas. Ali se encontram,
em sua maioria, mulheres negras, pobres, com pouca ou nenhuma escolarização, de todas
as idades, vindas de vários lugares do país. Em comum, está a não aceitação das normas
sociais, o desvio da ordem. Por algum motivo, não desempenharam os papéis que a socie-
dade já havia estabelecido. Espera-se que tenham um comportamento pacífico, “estagnante
como um belo lago submisso, passiva, amorosa, quieta, instintiva e paciente”8. Ao serem
violentas, frias, estelionatárias, assassinas, se distanciam do ideal desejado, e dessa forma,
merecedora de punições e correção.
Amália se encontra cumprindo pena em uma prisão feminina no interior do es-
tado de Mato Grosso do Sul, acusada de assassinato e ocultação de cadáver. Afastá-la do
convívio social é a forma de puni-la por uma conduta considerada crime. A narrativa oral
de Amália contando suas desventuras, aviva os arquivos da sua memória, rememora as lem-
branças que ficaram guardadas em algum canto do seu passado. Refletir sobre as memórias
e narrativas das mulheres em situação de prisão, conduz a uma reflexão mais profunda:
O estudo crítico das memórias outras, da perspectiva da subalternidade, permite re-
verter a situação vivida dos sujeitos subalternos e, por conseguinte, seu lugar dentro
da discussão crítica contemporânea. Permite, por conseguinte, teorizar a importân-
cia da cultura, das memórias e das sensibilidades dos sujeitos subalternos para e no
mundo moderno, revertendo, inclusive, seu posicionamento dentro desse projeto.9

A posição de Amália ao narrar suas memórias é a de alguém que, naquele momen-


to, em situação de prisão, se volta para o passado e para um tempo que já não existe mais,
o tempo em liberdade. Por subalterno, entendemos “as camadas mais baixas da sociedade
constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política
e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”10.
Nesse momento, Amália fala por si e do espaço social que ocupa, tendo o seu direito à fala e

8 PERROT, Michele. Os Excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Trad.Denise Bottmam. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988.
9 NOLASCO, Edgar Cézar. Perto do coração selbaje da crítica fronteriza. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013, p.
153.
10 SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Tradução Sandra Almeida, Marcos Feitosa e André Feitosa. Belo Hori-
zonte: UFMG, 2010 p. 12.

Sumário 233
o seu espaço de escuta respeitados. Quanto aos seus desvios, ou ao crime cometido, não se
coloca como vítima das situações de violência ou de negligência as quais sofreu, mas como
alguém que lamenta o ocorrido, a distância dos entes queridos, e o desfecho dos fatos11.

Oralidade e narrativa de si

A entrevista realizada em uma das salas da Penitenciária Feminina de Rio Bri-


lhante foi motivada pelo projeto de pesquisa sobre as memórias de mulheres em situação de
prisão, objeto da dissertação de mestrado em Literatura e Estudos Culturais desta pesquisa-
dora. A identidade da narradora foi preservada e o nome substituído. A oralidade foi uma
ferramenta essencial, pois, o
relato oral permite relacionar o passado com o presente de que participa o narrador,
assim como pode criar – e de fato cria – uma expectativa de futuro. O relato guarda
em si o potencial de articular, de modo dinâmico e efêmero, mas também intenso e
rico, toda a temporalidade do sujeito que relata.12

A linguagem favorece que as histórias sejam narradas, revisitando o passado e


buscando as memórias adormecidas e dessa forma revividas, possivelmente ressignificadas,
uma vez que é uma mulher adulta que revisita a infância, adolescência, e o passado em li-
berdade que deixou atrás dos cadeados. Nesse sentido,
A experiência temporal é uma importante dimensão da existência humana, que por
vezes nos custa compreender com clareza. Narrar o vivido permite ao ser humano
dar sentido ao seu lugar no mundo, construir sua historicidade, tornar-se sujeito da
história.13

A trajetória de Amália se assemelha a tantas outras, de mulheres que sofrem vio-


lência, todos os dias, em diversas fases da vida. Inicialmente, é o pai que agride com surras
na adolescência. Na vida adulta, é o irmão que a julga. É também o marido, que a explora
e maltrata. Amália cresce entendendo que o sexo feminino é aquele que precisa defender-se
constantemente.
A história tem início narrando dificuldades na vida da família na roça e a po-
breza em que viviam. A primeira imagem observada na narrativa refere-se a si, quando é
questionada sobre como gosta de se apresentar para as pessoas, ao que ela responde que,
no momento atual, sente-se sem graça e desajeitada devido ao uso do uniforme alaranjado,
que deve ser usado todos os dias. Fala da infância com poucos recursos e da necessidade de
“se virar” para sobreviver, seja trabalhando em casa ou na roça. Na infância não teve opor-
tunidade de estudar, pois seu pai acreditava que “mulher quando estuda é só pra aprender
malandragem”. O pai, às vezes, pagava um professor particular para ensinar os irmãos, mas
ela não podia sequer ficar próxima à mesa. Amália só foi à escola e aprendeu a ler depois de
adulta e separada do marido.

11 GIGLIOLI, Daniele. A crítica da vítima. Tradução Pedro Fonseca. Belo Horizonte: Âyné, 2014.
12 SOUZA, Robério A. do C. Narrativas orais como fontes para uma compreensão histórica da experiência vivida, In:
Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 17, jul./dez. 2017, p. 121.
13 op. cit.

Sumário 234
O trabalho rural era realizado na fazenda de um tio, que fora deixada como
herança para uma filha, mas a prima “era muito doida e perdeu tudo, perdeu tudo”14 . A
fazenda foi vendida e se transformou em pequenos lotes. É possível notar, na fala de Amália,
a ideia de que mulheres não têm aptidão para administrar bens, que evoca tempos antigos,
em que a mulher não tinha o direito a administrar sua herança e era tida como incapaz de
gerenciar bens em seu nome, e dessa forma, deveria ser tutelada pelo pai, ou pelos irmãos e,
posteriormente, pelo marido.
Como meio para se sustentar, ela e a família trabalhavam na agricultura, e quan-
do não havia ganhos por perto, os homens saiam para trabalhar longe, porém, as mulheres
não podiam ir. Ficavam trabalhando na sede da fazenda do tio, fazendo trabalhos domésti-
cos: “era muito difícil eles pará em casa. Quem parava mais lá era só eu e minha mãe, e, meu
irmão mais novo”. As mulheres e as crianças permaneciam no espaço familiar.
Em seguida, ela revela que aos dezesseis anos conheceu o primeiro namorado,
seus irmãos eram tocadores de instrumentos musicais e animavam festas, em uma delas
conheceu o namorado. O pai era rigoroso e por medo de apanhar, se o namoro fosse des-
coberto, ela optou por fugir. Do casamento, resultou a primeira filha, o relacionamento
durou pouco porque segundo ela, “não tem sorte com marido”. Retornou ao convívio com
a família.
Separada e com uma filha, sofreu discriminação e hostilidades por parte do ir-
mão:
Briguei muito feio por causa da filha dele. A filha dele se perdeu lá. Falô, disse que
eu que era a culpada, sendo que eu nunca que tinha saído com filha dele. Nem con-
versá com a filha dele, num conversava. Aí ela ficô grávida e num tava casada, quem
era a culpada era eu15.

Ainda que nem conversasse com a sobrinha, lhe recaiu a culpa pelo “mau exem-
plo” que era. Engravidar antes do casamento era algo repudiado por todos, fato merecedor
de desprezo.
O próximo companheiro, segundo ela, era “mais ruim ainda”. Com esse com-
panheiro teve mais três filhos. Nesse relacionamento também sofreu diversas violências,
inclusive, físicas. Desde trabalhos forçados na lavoura até a violência psicológica de saber
que o companheiro esbanjava o dinheiro da colheita em bordéis enquanto ela passava ne-
cessidades com os filhos. Narra que, por diversas vezes, precisou esconder-se, com os filhos,
em meio às plantações de mandioca, para fugir da violência. Durante os partos de seus
filhos, relata que o companheiro menospreza a sua condição, alegando que as dores eram
fingimento, se demorando em buscar ajuda para ampará-la. No parto do filho mais novo,
foi necessário que uma das filhas pequenas fosse até a casa de vizinhos para procurar uma
parteira, pois o marido se recusava a levá-la ao hospital.
Não suportando a situação, separou-se do companheiro, mudou para outra fa-
zenda, continuou trabalhando na agricultura com os quatro filhos. Após um ano e meio, o
ex-companheiro pede para retornarem à união. Seguindo conselhos da patroa, ela decide
retornar ao convívio com o companheiro, mas antes lhe avisa: “num vô sofrê. A primeira
14 Amália, 2015
15 Amália, 2015

Sumário 235
bobera que você fazê, que cê querê fazê tudo que cê fazia, eu vô largá de você, e aí falei: cê sabe
o que é aquela palavra nunca mais? Vai sê a minha”16.
Após um mês de relacionamento, os maus-tratos voltaram e Amália se separou
definitivamente do companheiro. Mesmo depois da separação o ex-companheiro continuou
perseguindo e fazendo ameaças. Foi então que ela decidiu revidar: “até que um dia eu dei
umas taqua... boa... ripona nas costas dele. Aí ele parô de me atormentá”17. No decorrer desse
relacionamento, os filhos também sofriam os maus-tratos do pai.
Amália conta que perdeu um de seus filhos por negligência do companheiro em
não ajudá-la a levar a criança ao médico. O bebê de três meses estava com pneumonia e
como moravam em uma fazenda, longe da cidade, ele não quis levar a criança ao hospital
alegando que ela estava com “manha”. Como o bebê não melhorava, Amália a pegou nos
braços e partiu em busca de socorro, sozinha em meio a escuridão da madrugada. Ao chegar
à pequena cidade, no hospital não encontrou médico, andou mais alguns quilômetros até a
casa do doutor que foi ao encontro da criança doente. O bebê foi diagnosticado com pneu-
monia dupla, foi medicado, mas não resistiu e faleceu ao clarear o dia.
Seu relacionamento com a avó dos seus filhos também era tenso, pois a sogra
pouco teria ajudado os netos, e quando o fez, os presenteou com bermudas feitas com len-
çóis velhos, diferente do que fazia para outra neta que possuía. Esse gesto soou como um
insulto que merecia ser revidado:
[...] a vó deles, da parte do pai, nunca recibi nada de ajuda, nada, inclusive uma veiz
ela fez uns short dum lençol que rasgô, ela mando lá pra mim, mandei devolvê pra ela
se não eu ia lá dá na cara dela, cê já penso? As outra neta [...] Ela chegava lá na casa
dela, ela corria pra rua cum eles na cidade comprá ropa bonita, calçado bonito, pois
um belo dia ela pegô esses lençol, sempre rasga no meio, né?, sobe essas berada. Ela
num pegô e num mando pra mim um monte de calção das berada desse lençol rasga-
do? Ele chega lá, cum a maior cara de pau, eu falei pa ele: Oh, cê num qué que eu vô
lá dá na cara da sua mãe, cum esse saco de pedaço de, de pedaço de lençol aqui, você
leva agora, porque minha mãe é pobre, mais quando ela vai dá uma coisa, ela dá uma
coisa, não coisa cara, mais é novo, pegô e levô.18

Ver seus filhos sendo tratados como inferiores leva Amália a se sentir ofendida.
Diante da afronta, ela exige que o marido devolva as peças usadas, que representavam um
insulto. Seja diante da violência ou do menosprezo, ela sai em defesa dos filhos.
Amália se orgulha por ser uma pessoa trabalhadora e que nunca deu trabalho
aos patrões: “sorte que as minha patroa foi muito boa comigo, deis’do começo e todas que
eu arrumei era assim...” 19. Revela também que nunca foi demitida do trabalho, e que quan-
do saia era com motivos pessoais. Sempre trabalhando e que “nunca ficou à toa”. Mesmo
durante o tempo em que esteve sem um companheiro, revela que seu foco era o sustento da
família: “toda vida, minha vida foi trabaiá, nunca fui de folia assim, festa...” Nesse sentido,
o trabalho é visto como algo bastante importante e sempre presente em todos os momentos
da vida de Amália.
16 Amália, 2015
17 op. cit.
18 Amália, 2015
19 op. cit.

Sumário 236
O último companheiro, ela já o conhecia há muitos anos. Já tinham trocado olha-
res e algumas palavras em ambientes de quermesses de igreja, no entanto, só começaram a se
relacionar muito tempo depois. Amália tinha um comércio que em que servia lanches e bebi-
das. O companheiro, a quem ela não nomeia, e tinha fama de “mulherengo”, se aproximou e
lhe disse que estava vivendo sozinho. Em resposta à proposta de ficarem juntos, Amália lhe
disse que não desejava mais morar com ninguém, e que conhecia a fama dele: -“eu conheço
a sua fama, cê bate em muié, cê corta muié, cê baleia muié, ixi... eu conheço a sua fama. - Não!
Eu num sô mais aquele, vamo tentá”20. O rapaz insistiu dizendo que havia mudado e que
não tinha mais ninguém. Ele, na verdade, estava se relacionando com uma ex-funcionária
de Amália, a quem ela havia demitido: “eu num quero mais sabê dessa muié. Eu falei assim,
essa muié chega pra trabalhá chega bêbada, falei, a muié num sabe dá um troco...”21. Depois
da demissão, Amália soube o que dois estariam juntos. Ele porém, negou o fato.
Começaram o relacionamento, mas pouco tempo depois surgiram os problemas.
O companheiro chegava em casa bêbado, gritando e agredindo, até que esses episódios vira-
ram rotina, mesmo com os pedidos de Amália para que fosse embora, ele retornava.
O silêncio de Amália diante da violência, conforme ela revela, era em virtude da
postura do filho, pois temia que ele se vingasse:
E como o meu guri tinha falado pra mim: Mãe, o dia que a senhora arrumá um mari-
do, querê arrumá um marido, a senhora sabe escolhê, porque se eu soubé que ele levantô
o dedo, a sinhora já sofreu muito cum meu pai, e se... eu soubé que ele levantô o dedo
pra sinhora, o negócio vai sê comigo. E aí eu fui escondendo tudo, sabe? Ele chegava
era a mesma coisa que nada tava acontecendo, nada tava acontecendo, que eu tinha
medo. Eu falei: eu fiz o meu angu eu tenho que aguentá queta... 22

Amália revela um pensamento determinista muito comum de que as mulheres


devem aceitar com passividade o sofrimento decorrente de suas escolhas e que são merece-
doras dele, por não saberem escolher.
Mesmo com proibição feita por Amália para que ele não frequentasse a sua lan-
chonete, o rapaz aparecia por lá bêbado e atrapalhava o trabalho:
Aí (eu) num falava nada bêbado, chegava ciscano tudo, eu esperava ele sará, levantá
no outro dia. A tarde, eu conversava cum ele, “ai eu num fiz nada disso, cê é muito
conversadera”, hum..., e foi assim, foi até que aconteceu23.

Amália era rotulada como “conversadeira”, ou seja, uma mulher que fala demais
e possivelmente inventa os fatos, que não merece crédito.
Na noite do crime, ela relata que começou como tantas outras vezes. Começaram
as agressões e ela acabou acertando a cabeça do rapaz que revidou mais ferozmente, e, para
se defender, usou uma faca, acertando-o no peito.
Amália foi presa acusada de matar e ocultar o corpo do companheiro, após cor-
tá-lo em partes. No momento da entrevista, aguardava o julgamento. Apreensiva quanto ao
futuro, mas não se lastima pelo ocorrido, pois, sabe que não há como voltar atrás.
20 op. cit.
21 op. cit.
22 Amália, 2015
23 op. cit.

Sumário 237
O espaço doméstico foi o cenário no qual se deram as agressões, as idas e voltas
e, por fim, o crime. A violência doméstica contra as mulheres na grande maioria das vezes
se dá na intimidade do lar, oculta e até disfarçada pelas vítimas, envergonhadas pela humi-
lhação.
Amália era proprietária de um bar. Lugar onde, anos atrás, não era apropriado
que as mulheres frequentassem, quanto mais, serem as donas e administradoras. A atitude
de Amália revela ousadia em descumprir um preceito antigo e machista.
Para o futuro, ela desejava estar com as filhas, o filho e os netos. Recomeçar a
vida, construir um novo lar e seguir a vida adiante, em liberdade.

Representação Feminina

As representações sociais referem-se à maneira como um grupo de indivíduos in-


terpreta a realidade a sua volta, com se posiciona perante as situações e eventos, os códigos,
símbolos e ideologias que utiliza para demonstrar a sua posição social perante os outros.
É importante salientar que estas representações não são estáticas e tendem a evoluir com a
sociedade, alterando conceitos e conteúdos conforme acompanham as transformações da
realidade.
Para melhor aclarar o conceito de representação, nesta comunicação é importan-
te trazer presente a origem latina do vocábulo, que é oriunda de repraesentare, ou seja “tornar
presente” , “apresentar de novo”. Em sua origem clássica, era utilizada apenas para referir-
-se a objetos inanimados, porém, no decorrer do tempo, o significado da expressão passou
a ser utilizada também para referir-se à pessoas, com o sentido de delinear, retratar, estar
em lugar de algo. As representações sociais expressam fenômenos humanos segundo uma
ótica coletiva, mas sem que as individualidades sejam ignoradas, nesse sentido, Ciro Flama-
rion Cardoso afirma que, “as representações mentais constituem a matéria prima das repre-
sentações sociais”24. Para Denise Jodelet, colaboradora do psicólogo húngaro, radicado na
França, Serge Moscovici, investigador da ideia, no final da década de 50, a Representação
Social pode ser compreendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada
e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade
comum a um conjunto social”25.
Para elaboração de uma narrativa, as memórias são recriadas, considerando o
contexto no qual a narradora está inserida e a partir dessa realidade, as representações, de si
e do outro, são constituídas. Sobre a representação da imagem, Pollak afirma que:
é a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a
imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua
própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser
percebida pelos outros.26

As imagens utilizadas para representar as personagens femininas nos relatos re-


velam a percepção que a narradora tem de si e das demais mulheres, com as quais conviveu,
24 CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma opinião sobre as representações sociais. In: Representações - Contribuição a um
debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p. 25.
25 JODELET, D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, D. (Org). Representações sociais.
Rio de Janeiro: Eduerj; 2001. p.22.
26 POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 204.

Sumário 238
revelam a compreensão de Amália diante da realidade. A figura materna, presente desde o
início da narrativa, demonstra o ideal de amor materno que é capaz de se sacrificar e sofrer
para obter o bem-estar dos filhos.
O relacionamento de Amália com a mãe foi marcado pela ajuda mútua. Ela pode
retribuir à mãe os cuidados e a proteção que recebeu. Desde a infância, com um pai violen-
to, a mãe esteve presente para lhe auxiliar “sempre a minha mãe me ajudou,”. No decorrer
e no final da vida da mãe, Amália esteve presente:
Eu que mais cuidava dela, era médico, era banco, era...tudo era eu. Tudo. Tudo.
Tudo. Aí que eu falei pros meu dois irmão: Ah!...Nóis vai tê que pagá uma pessoa pra
cuidá dela, falei cum ele, era ajuda, eu ajudava, sempre sobrava mais pra mim, que eu
que ficava ali né? Saia pro serviço, voltava, sempre tava ali.27

O senso de dever, como filha, de auxiliar os pais na velhice foi uma preocupação
de Amália. Ela cuidou dos pais até morrerem.
O seu papel de mãe, no decorrer da narrativa, também é bastante visível. Relata
que em meio às dificuldades e sacrifícios, os filhos sempre estiveram em primeiro lugar.
Sobre as renúncias e abnegações maternas em favor dos filhos, Elizabeth Badinter28 em Um
amor Conquistado: o Mito do Amo Materno, aponta para o fato de que a ideia do sentimento
inato de amor materno não é verdadeira, mas que ela foi naturalizada no decorrer da histó-
ria. No passado, os sofrimentos maternos eram vistos como uma afirmação da maternidade,
ou seja, o cumprimento de uma missão.
É na apoteose de uma maternidade esclarecida e vigilante que a mulher deve es-
quecer todos os sacrifícios, todas as dores, todos os sofrimentos que comporta a sua
missão, e essa compensação lhe deve ser ao mesmo tempo um estimulante e uma
esperança29.

As atitudes de Amália, em relação aos filhos, demostram a disposição em sacri-


ficar-se em favor do bem-estar dos filhos, nem que para isso precise andar quilômetros, em
meio à escuridão da madrugada, para chegar ao hospital. A disposição em se dedicar aos
filhos, ainda que isso lhe seja doloroso, é uma característica recorrente no relato. As mulhe-
res em geral, com exceção da sogra e da funcionária inapta, são representadas como pessoas
solidárias, e disponíveis para socorrer nas necessidades. A mãe, a patroa, a parteira, as vizi-
nhas, suas filhas, aparecem como personagens femininas dotadas de ações generosas e, por
fim, a si, que se mostrou abnegada, mas também, capaz de matar.
As relações afetivas/amorosas da narradora são representadas por meio de ima-
gens hostis, sendo que as situações recorrentes na narrativa, motivadas por preconceitos,
ciúmes ou simplesmente brutalidade, revelam a violência contínua vivida pela narradora,
culminando num ato de extrema violência praticada por ela, contra o seu agressor.

27 Amália, 2015
28 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
29 SEÉ apud BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1985.

Sumário 239
Considerações finais

A narrativa de Amália revelou a história de uma mulher criminosa, cumprindo


pena privativa de liberdade por ter assassinado e ocultado o cadáver de seu companheiro.
Num primeiro momento em que se espera encontrar apenas uma infratora ou bandoleira,
encontra-se também a mulher por detrás do crime. Alguém que possui uma história para
contar. Suas desventuras, as poucas alegrias e também esperanças podem ser compartilha-
das e possuem o seu valor.
O espaço do cárcere, próspero em amarguras e pesares, é o lar para alguém que,
em inúmeros momentos, anteriores à prisão, teve seu abrigo transformado em ergástulo e
lugar onde sua liberdade igualmente foi tolhida. A privação da liberdade, vivida pela nar-
radora, era sua conhecida quando não podia dormir em casa e se escondia na plantação
juntamente com os filhos para fugir da violência conjugal.
Em todos os momentos que foram narrados atos que feriram a integridade física
ou moral de alguém, é possível afirmar que houve uma postura violenta. Sejam palavras ou
atos, a violência se apresenta na narrativa de forma sutil com pequenos eventos, falas carre-
gadas de preconceitos ou drasticamente como um assassinato.
Finalizando esta análise, para o momento, é possível considerar que a percepção
do feminino, revelada por Amália, avalia que as expressões utilizadas para representar as
mulheres, evidenciam conceitos construídos socialmente, por um determinado grupo de
indivíduos, do qual Amália participou e absorveu seus conceitos e valores. Estes conceitos
apontam para a visão patriarcal na qual a mulher é subjugada e estigmatizada quando agem
contrariando os valores desse sistema.
No relato de Amália, mulher separada do marido, com filhos para criar, trabalha-
dora da roça, posteriormente “dona de bar” e por fim assassina de seu amásio e presidiária,
reúne diversos requisitos para divergir do modelo imposto pela tradição patriarcal. Após
cumprir a penalidade determinada pela justiça, Amália voltará a sua antiga realidade, e con-
tinuará enfrentando os estigmas e a intolerância para com aquelas que desviam das normas.

Referências
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1985.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma opinião sobre as representações sociais. In: Representações -
Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000,9-29.
GIGLIOLI, Daniele. A crítica da vítima.Tradução Pedro Fonseca. Belo Horizonte: Âyné, 2014.
GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Re-
van:ICC, 2006.
JODELET, D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, D. (Org). Repre-
sentações sociais. Rio de Janeiro: Eduerj; 2001. p. 17-44.
NOLASCO, Edgar Cézar. Perto do coração selbaje da crítica fronteriza. São Carlos: Pedro &João
Editores, 2013.
PERROT, Michele. Os Excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Trad.Denise Bott-
mam. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Sumário 240
PIMENTEL. Elaine. As marcas do patriarcado nas prisões femininas brasileiras In: Dossiê Punição
e Controle Social: degradações carcerárias em América Latina e Europa. V. 02, N. 2, Jul.-Dez.,
2016.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n.
10, 1992, p. 200-212.
SOARES, Bárbara Musumeci; ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades.
Rio de Janeiro: Garamond, 2002.
SOUZA, Robério A. do C. Narrativas orais como fontes para uma compreensão histórica da expe-
riência vivida, In: Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 17, p. 118-129, jul./dez. 2017.
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Tradução Sandra Almeida, Marcos Feitosa e André
Feitosa. Belo Horizonte: UFMG, 2010
WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.
Fontes Orais:
Entrevista: AMÁLIA. Gravada em áudio por BARROS, Maria Aparecida de. 07/09/2015. PFRBR
– Rio Brilhante/MS.

Sumário 241
A nálise do poema A ção e R eação ,
de E lias B ezerra , a partir das
perspectivas históricas e pós -
coloniais

Henrique Pereira Galvão


Ronilson de Sousa Lopes

O
poema Ação e reação, do escritor e poeta Elias Bezerra de Souza, rela-
ta denúncias que são muito recorrentes em relação ao meio ambiente,
como desmatamento ilegal, queimadas, destruição da fauna e da flora,
todos esses problemas gerando grandes impactos ambientais. Segundo Fonseca1, o desma-
tamento está inserido dentro de um contexto histórico e cultural, uma vez que se relaciona
com os ciclos econômicos e a exploração de recursos naturais.

Elias Bezerra de Souza revela em sua obra um contexto comum que ocorre na
região da qual nasceu, cresceu e se formou, de modo a reproduzir em suas produções relatos
sobre formas de impactos ambientais que são recorrentes em seu Estado e região. De acordo
com Feranside2, os impactos ambientais estão vinculados à ação governamental de apoio
às práticas agrícolas, que são meios de devastação da flora e, consequentemente, da fauna.
Observa-se, no decorrer dos versos do escritor, uma estrutura poética moderna/
contemporânea, a qual este artigo procura firmar um diálogo entre suas denúncias ambien-
tais e as perspectivas históricas e pós-coloniais, analisando de forma crítica e estabelecendo
uma relação entre ambos.

1 FONSECA, Krukenberghe. Problemas ambientais brasileiros. Brasil Escola, 2007. Disponível em: <https://brasilesco-
la.uol.com.br/biologia/problemas-ambientais-brasileiros.htm>. Acesso em 30 de jul. 2020.
2 FEARNSIDE, Philip. Desmatamento da Amazônia brasileira. História, índices e consequências. Mega diversidade.
V. 1. N. 1. P. 133-123, jul. 2005. Disponível em: <https://www.conservation.org/brasil/publica%c3%a7%c3%b5es/files/
16fearsidepdf>. Acesso em 30 de jul. 2020.

Sumário 242
Elias Bezerra nasceu em 1964 na cidade de Pauini, interior do Amazonas, fi-
lho de seringueiros, foi testemunha ocular das diversas formas de explorações, adquirindo
conhecimento que o inspirou a escrever o livro Verso de sangue em multicores, dando vida a
vários poemas, dentre eles Ação e reação, uma forma de divulgar o descaso que havia, e que
ainda há, com a destruição da floresta Amazônica.
A referida floresta, desde a chegada dos europeus, foi palco das mais variadas
formas de explorações, dentre elas: o grande ciclo da borracha, que segundo Souza3, o mes-
mo foi um dos maiores meios de produções nacionais da época, no entanto, atualmente, há
vários olhares para a Amazônia em detrimento de suas riquezas naturais.
Dentro das perspectivas de Becker:
Em nível regional e local, a Amazônia é percebida como um espaço de projeção para
o futuro, de novas oportunidades, de alternativas, de possibilidades, de ascensão na
qualidade de vida por diferentes grupos sociais, cada qual com seus projetos que re-
gistram as diferentes demandas locais, certamente influenciadas por ações nacionais
e globais.4

Em função do modelo de exploração capitalista, buscou-se analisar o poema,


envolvendo as linhas de pensamentos históricas e pós-coloniais, a fim de revelar a crítica do
autor de uma imagem descolonizada, extraindo das entrelinhas a essência presente em seu
poema, que irá caracterizar, dentro da atualidade, as variáveis entre os discursos dos impac-
tos ambientais que têm sido muito discutidos em conferências nacionais e internacionais.
E realizando também uma leitura crítica, com a intenção de delimitar as ações exercidas e
trabalhadas por diversos autores que aludem aos discursos pós-coloniais e decoloniais, ao se
pensar em soluções para a redução desses impactos.

A vida e a obra do autor

Elias Bezerra de Sousa, segundo as informações contidas nas abas dos livros de
sua autoria: Versos de Sangue em multicores (2010), Educação para a mediocridade e alguns antído-
tos (2012) e Educação e aprendizagem: frases que educam e frases que ensinam (2007), nasceu na ci-
dade de Pauini, no Estado do Amazonas, em 05 de agosto de 1964. Seus genitores são Fran-
cisco Bezerra de Sousa e Valdecir Bezerra do Vale. Ainda na infância, Elias veio com sua
família para a cidade de Lábrea onde pôde dedicar-se aos estudos básicos, e posteriormente
iniciar no mundo do trabalho. Fez licenciatura em Pedagogia pela Fundação Universidade
Federal de Rondônia – UNIR e várias especializações, entre elas: Política e sociedade, pela
Universidade Cidade de São Paulo – UNICID.
Depois de formado, trabalhou no Banco de Brasil, chegando a exercer a função
de gerência. Também atuou como tutor presencial do curso de Bacharelado em Sociologia,
da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, em Lábrea-AM. Atualmente, exerce a fun-
ção de professor no Instituto Federal do Amazonas – IFAM, Campus Lábrea, e cursa Mes-
trado em Ensino de Ciências na Faculdade do Estado do Amazonas – UFAM.

3 SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus: Valer, 2009.


4 BECKER, Bertha. A Amazônia e a política ambiental brasileira. In: SANTOS, M; BECKER, B. (Org.). Território,
territórios-ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de janeiro: Lamparina, 2007. p. 22-40.

Sumário 243
Elias Bezerra de Sousa, além da função administrativa que exerceu no Banco do
Brasil e do trabalho como educador que atuou, e ainda atua, destaca-se como poeta. Iniciou
desde muito cedo a escrita de seus versos. Como poeta, tem se mostrado bastante prolífero.
Existem mais de seis livros de sua autoria e muitas participações em antologias e trabalhos
acadêmicos.
Os versos do escritor demonstram bastante sensibilidade às questões sociais, edu-
cacionais e ambientais. O que se evidencia, por exemplo, no livro Palavras e versos (1998), a
poesia criada para uma de suas filhas, A mensagem da flor:
No mundo a que pertenço,
Que reine o AMOR e a justiça.
Que a solidariedade
Fique a cima da cobiça5.

Os versos do poeta representados na estrofe são bastante significativos, uma vez


que coloca o eu lírico na voz de uma menina que fala de alguns valores relevantes para a
construção de um mundo melhor.
No livro Educação e aprendizagem: frases que educam e frases que ensinam (2007), o
autor seleciona uma coleção de frases de educadores e pensadores da área da educação, e
algumas, dele próprio, com o intuito de provocar discussões a respeito da prática educativa,
como pode se vê:
O objetivo da educação deve ser a realização plena do homem, com o homem e para
o homem. O objetivo do ensino é proporcionar uma aprendizagem sólida e dinâmi-
ca, capaz de preparar o homem para enfrentar, criticamente, as mudanças aceleradas
da atual sociedade da informação e do conhecimento; que o possibilite transitar com
autonomia na sua realidade, sem se deixar enganar por ela6.

Quanto à questão ambiental, que foi ressaltada como um dos temas relevantes
para o autor, além do livro Versos de Sangue em multicores (2010), cuja poesia Ação e reação ana-
lisada neste artigo foi retirada, há um cordel intitulado O Assassinato de Irmã Cleusa que faz
parte do livro Rimas Amazônicas: Antologia de Cordel, organizada por Nilton Azevedo, falan-
do sobre uma personagem histórica, Irmã Cleusa, figura importante na defesa de questões
sociais e ambientais, no Município de Lábrea, e que fora morta de forma cruel justamente
pelo fato de sua luta ir contra a ganância de alguns,
Em toda parte do mundo
No campo, vale ou na serra
Aumentaram os conflitos
Crueldade, morte e guerra
Atos estes motivados
Pelas disputas por terra.

Desse contexto violento


Lábrea não ficou de fora
Um pedaço da Amazônia

5 SOUZA, Elias Bezerra de. Palavras e versos. São Paulo: Scortecci, 1998, p. 14.
6 SOUZA, Elias Bezerra de. Educação e aprendizagem: frases que educam e frases que ensinam. São Paulo: Scortecci,
2007, p. 60.

Sumário 244
Dessa exuberante flora
Que com o sangue derramado
Grafou páginas na história.7

Como se percebe, os textos poéticos de Elias Bezerra de Souza são construídos a


partir das questões sociais, educacionais e ambientais, contribuindo, assim, para uma refle-
xão dos seus leitores direcionada a essas temáticas.

O desmatamento

Segundo Enrique Dussel8, no ano de 1492, nasce a “modernidade”. Foi a partir


da expansão marítima que o europeu chegou às Américas e iniciou o processo de explora-
ção, que vai desde o uso da mão de obra humana à extração mineral e vegetal da natureza.
Durante o processo de colonização do Brasil, descumpre-se o acordo do trata-
do de Tordesilhas, expandindo-se os limites geográficos estabelecidos. Segundo Nabuco9, a
Amazônia foi a conquista mais extraordinária de Portugal, justamente por tantas diversida-
des naturais presentes à sua terra.
O processo de exploração da Amazônia está diretamente ligado aos ciclos
econômicos e à necessidade de descobrir novas fontes de riqueza por meio das bandeiras e
expedições de naturalistas e cartógrafos que, ao avançarem o Eldorado, descobriram diver-
sas espécies nativas. Segundo Acunã:
[..] Tais são o algodão, que se colhe abundantemente; o urucum, do qual se extrai
um excelente corante; açafrão, muito apreciado pelos estrangeiros; a canafístula; a
salsaparrilha; os óleos, que competem com os melhores bálsamos, para a cura de fe-
ridas; as gomas e resinas perfumadas, a pita da qual se obtém uma fibra de excelente
qualidade e que cresce em grande abundância; e muitos outros produtos que a cada
dia a necessidade e a cobiça hão de descobrir... 10

Devidos a esses cultivos, fez-se necessária a derrubada de árvores, fazendo com


que tivesse sucesso o “desenvolvimento” da região Norte do Brasil, e a prática do desmata-
mento tornou-se mais frequente, como ressalta Elias Bezerra nos versos do poema:
Ronca selva adentro o motor serra em fúria
Manipulado pelas mãos do homem
É uma guerra aberta contra a Selva
Que vertiginosamente lhe consome.11

Na referida estrofe, Sousa12 faz menção ao processo de desmatamento e às práti-


cas utilizadas para devastação da floresta. Com uma linguagem metafórica, denuncia essa
“guerra” contra a natureza, que existe desde o período colonial até a atualidade, ainda res-
salta, em seus versos, os sujeitos da ação – “manipuladas pelas mãos do homem”.

7 SOUZA, Elias Bezerra de. Versos de sangue em multicores. São Paulo: Scortecci, 2010, p. 6.
8 DUSSEL, Enrique. 1492 O encobrimento do outro. Tradução de Jaime A. Clasen, Rio de Janeiro: Vozes, 1993.
9 NABUCO, Joaquin. O Direito do Brasil. São Paulo: Companhia editora Nacional, 1941.
10 ACUNÃ, Cristóbal. Novo descobrimento do grande rio das Amazonas. Trad. de Helena Ferreira. Rio de Janeiro:
Agir, 1994 [1961]. p. 91-92.
11 Op. Cit., 2010. p. 16.
12 Op. Cit., 2010. p. 16.

Sumário 245
Eis a questão: quem é esse homem ao qual o poeta se refere? De acordo com as
perspectivas históricas, seria o colonizador ou o colonizado? Para além, ou esse homem se-
ria o pós-colonizado com as características do colonizador?
De acordo com Bartolomé de las casa, apud Dussel13:
A causa (final) por que os cristãos mataram e destruíram tantas e tais e tão infinito
número de almas foi somente por terem como seu último fim o ouro e se encher de
riqueza[..] (a causa) foi pela cobiça e ambição que tiveram... Devo suplicar a sua
Majestade com insistência, que não conceda e nem permita aquela que os tiranos
inventaram, prosseguiram e cometem, e que chama de conquista (Bartolomé de las
Casas, Brevíssima relación de la destrucción de las índias, introducción).

Observa-se que, as palavras proferidas na primeira estrofe do poema Ação e rea-


ção estão ligadas a um contexto histórico de dominação territorial, a fim da exploração dos
recursos presentes ali é provável que o homem citado no poema esteja inserido dentro do
contexto de dominação.
O responsável pelo avanço e o “progresso” da Amazônia é o capitalismo, um
sistema que demanda tecnologia, mão de obra e matéria prima, logo, a serra elétrica é um
sistema de tecnologia para a derrubada de árvores que dará lugar à agricultura ou à pecuá-
ria. Segundo Santos14, o capitalismo abrange o universo complexo e heterogêneo ao seu
domínio, sendo assim, compreende-se que o sistema capitalista está tão apropriado dos
meios quanto das formas de dominação do homem e da exploração da natureza: “[...] É um
atentado frio contra a vida; De um sangue verde em devastação”. 15
Nota-se a forma com a qual o autor demonstra em seu texto a ação desumana
do homem que destrói, atenta contra a vida, ou melhor, as vidas da floresta, de milhares
de espécimes de plantas que constituem a flora amazônica. Segundo Acunã16, a Amazônia
constitui as terras mais férteis e as florestas mais grandiosas, suas águas subsidiam reinos e
mantém homens e mulheres.
Pela perspectiva do contexto histórico, é possível notar que o olhar eurocên-
trico para a região amazônica brasileira (Amazônia legal) e estrangeira é quase sempre um
olhar de exploração e muito pouco, ou quase nada, de preservação e cuidado com as vidas
que ali se encontram presentes, afinal como relata Souza17, há uma frieza contra a vida vege-
tal. Logo, identificamos que essa algidez está direcionada à ganância de extrair as riquezas,
embora para isso as “vidas” sejam avariadas, ou pior, extinguidas do seu seio natural.
Santos18, explana: “[...] o poder é o espaço e uma malha de relações sociais de
exploração/dominação/conflito[...] disputa pelos seguintes meios de existência social: 1) o
trabalho e seus produtos [...] a natureza e seus recursos de produção”. O poder eurocêntrico
impõe correlações do homem com as estruturas capitalistas de modo que a natureza se liga
à matéria prima que se transformará no produto final, justamente atendendo à necessidade
do sujeito, até então essa relação do indivíduo com a natureza é necessária, entretanto, a
13 Op. Cit., p. 42.
14 SANTOS, Boaventura de Souza. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.
15 Op. Cit., 2010.
16 Op. cit.
17 Op. cit.
18 Op. cit., p. 76.

Sumário 246
problemática está justamente nas formas com as quais essas relações afetam e destroem a
fauna e a flora.
Em detrimento da necessidade de resguardar as riquezas presentes nas terras bra-
sileiras, no ano de 1605 surge a primeira lei (carta) de cunho ambiental, com o objetivo de
assegurar e conservar as florestas de países que circundavam as terras brasileiras, segundo
Fearnside19, a preservação da biodiversidade vai além da função comercial, uma vez que
após muitos estudos e pesquisas de ambientalistas e a criação de diversas leis, viu-se a ne-
cessidade de preservação do meio ambiente, e com a Amazônia não foi diferente, em 1911,
expede-se o primeiro decreto que cria a primeira reserva da Amazônia e do Brasil, situada
no Estado do Acre, após isso, surgem várias outras leis de forma cronológica.
Mesmo com todas as leis ambientais criadas na modernidade até a contempo-
raneidade, as florestas continuam vítimas da ambição do homem, as árvores permanecem
sendo derrubadas e a Amazônia desaparecendo pouco a pouco.

As queimadas
Um (B) brasil em chamas consumindo o verde,
Um cenário rubro e ao mesmo tempo negro,
Morte da hileia vítima indefesa,
Triste realidade que nos causa medo20.

As queimadas no brasil têm sido um grande problema, o autor cita de forma re-
presentativa esse fator que todos os anos destroem as florestas, a camada de ozônio e causa
desequilíbrio no ecossistema. Nos versos de Sousa21, “um (B)brasil em chamas consumindo
o verde”, delata uma prática que ocorre desde o século XVIII na Amazônia em decorrência
do processo de agricultura. De acordo com Ferreira22, “por si as produções da terra são o
bem mais real que todas as minas[...] a verdadeira base do comércio”. Para realização de
plantios, desmatavam e realizavam queimadas a fim de limpar a terra.
Com o crescimento de propriedades rurais na Amazônia, as práticas de desflores-
tamentos e queimadas só aumentaram no decorrer dos últimos séculos, atualmente o núme-
ro de queimadas ainda é grande, mas graças ao código florestal brasileiro de 1934 (Decreto
nº 23.793/34)23, que proíbe as queimadas no brasil, esse número vem reduzindo.
As queimadas nos campos são perigosas e podem causar incêndios nas florestas
e reservas, devastando a fauna e a flora, além do desequilíbrio na cadeia animal, causando
grandes consequências, como o aumento de pragas nas lavouras, uma vez que insetos e
animais são obrigados a migrarem para outros biomas. Como ressalta Souza24, a hileia é
uma vítima indefesa, mártir da ação do homem que por ganância e falta de consciência,
desrespeita as leis ambientais, causando, como diz o autor do poema no seu último verso,

19 Op. cit.
20 Op. cit., 2010.
21 Op. cit., 2010. p. 16.
22 FERREIRA. Alexandre Rodrigues. Vida e obra do grande Naturalista brasileiro. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1939. p. 42.
23 PLANALTO. Decreto Nº 23.793, de 23 de janeiro de 1934. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br>
24 Op. cit. 2010.

Sumário 247
uma realidade triste a amedrontadora: “Devasta-se a flora, extingue-se a fauna, Desse ecos-
sistema que já não resiste [...]” 25.
O autor inicia a estrofe apresentando a extinção da fauna, uma vez que quando se
derruba uma árvore, está destruindo o lar de milhares de espécies de insetos, uma variedade
de ninhos de pássaros e plantas hospedeiras que se alojam em árvores. Quando ocorre as
queimadas, não é somente um único tipo de vida que se devasta, mas uma infinitude de ou-
tras vidas presentes naquele ecossistema, uma perda que jamais será restaurada. A formação
de um ecossistema demora milhares de anos para se restabelecer, e várias espécies que ali se
encontravam jamais voltarão a existir, como diz o poeta Sousa26 em seus dois últimos estro-
fes, “é o celeiro verde que é o sonho do mundo,” e “transformar-se-á em uma insônia triste.
Triste destino este da humanidade;
Vendo a terra Santa agonizar indefesa,
E o homem tido como um ser pensante,
Nada está fazendo pela natureza.27

Nessa estrofe, o autor fala sobre o destino da humanidade e da inércia do homem


em relação ao meio ambiente, entretanto há vários questionamentos que se faz diante desta
colocação: Souza28 diz, “e o homem tido como ser pensante,” e “nada está fazendo pela
natureza, eis os questionamentos, quais homens que não estão fazendo nada pela natureza?
Seriam todos os homens?” Ribeiro29 salienta que, são fundamentais os questionamentos
para entendermos o lugar da fala, a partir da seguinte pergunta: “dentro desse projeto de
colonização, quem foram os sujeitos autorizados a falar”.
A partir das perspectivas históricas em diálogo com as pós-coloniais, é possível
responder essas perguntas e questionar os versos do autor do poema ação e reação quanto à
inércia da sociedade. Durante o período colonial, os escravos eram obrigados a usarem uma
máscara que impedia a comunicação oral. Como comenta Ribeiro:
Kilomba explica que, formalmente, a máscara era usada para impedir que as pes-
soas negras escravizadas se alimentassem enquanto eram forçadamente obrigadas a
trabalhar nas plantações, mas segundo a autora a máscara também tinha a função
de impor silêncio e medo, na medida em que a boca era um lugar tanto para impor
silêncio como para praticar a tortura. 30

Desde o período colonial quem tinha a força da fala eram os colonizadores, que
sempre tinham alternativas para calar e reprimir qualquer tentativa de questionamento e
rebelião. Segundo Ribeiro,31 os povos subalternos não têm a liberdade do discurso, uma vez
que o discurso dos mesmos é limitado.
O fato de “o homem não está fazendo nada”, que Sousa32 refere-se em seu poe-
ma, não podemos considerar ao todo uma verdade, uma vez que existem ONG’s, Trata-
25 Op. cit., 2010.
26 Op. cit., 2010. p. 17.
27 Op. cit., 2010.
28 Op. cit.2010. p. 17.
29 RIBEIRO, Djamila. O que é lugar da fala. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017. p. 43.
30 Op. cit., p. 42.
31 Op. cit.
32 Op. cit., 2010. p. 17.

Sumário 248
dos e Conferências internacionais, onde frequentemente reúnem-se para tratar das questões
ambientais, entretanto, trata-se das permanências do passado, pois o que prevalece é a voz
do mais forte, uma vez que as questões ambientais estão diretamente ligadas às questões
econômicas e capitalistas. Nesse contexto, os empresários são os colonizadores e os povos
subalternos são os colonizados que têm as suas falas abafadas pelo poder do capital.
A exploração do homem pelo homem que tínhamos demostrado no passado sob a
sua forma mais directa, a mais grosseira, a escravidão, continua em muito alto grau
nas relações entre proprietários e trabalhadores entre patrões e assalariados[...] O
operário não é, como o escravo, uma propriedade directa do seu patrão; a sua con-
dição sempre precária, está fixada sempre por uma transação entre e eles: mas essa
transação é livre da parte do operário? Não é, uma vez que está obrigado a aceitar
sob pena de vida, reduzido como está a esperar a sua comida de cada dia, nada mais
que do seu trabalho da véspera [...] os economistas tiveram que um dos aspectos
desse fato, a herança da miséria.33

Os tempos mudaram e a escravização acabou legalmente, não obstante, a forma


de dominação sobre o homem continua a mesma, uma vez que os que eram escravos passa-
ram a ser classe proletária e viver às margens da industrialização, essa que domina o homem
e se apropria da natureza. Desta forma, entende-se que existe dois homens: o que domina e
o dominado, o homem que Sousa se refere é o homem que domina e silencia o outro.

Os impactos ambientais

Muitos são os fatores que contribuem para que ocorram os impactos ambientais,
esses impactos estão ligados diretamente à destruição da flora por meio de queimadas, des-
matamento e também por falta de consciência social, políticas públicas e fiscalização efi-
ciente. Esses fatores se agravam a cada ano vem trazendo consequências graves à população,
como problemas de enchentes dos rios, doenças respiratórias, doenças de pele e a destruição
do solo.
A poluição é generalizada,
Desertos na selva, enormes queimadas,
Crateras abertas na atmosfera,
E ondas gigantes despontam do nada34.

O autor generaliza a poluição em seu primeiro verso da estrofe oito, desta forma,
destaca que a poluição não é somente proveniente das queimadas florestais, uma vez que
existem vários tipos de poluições, como a poluição do ar, do solo, das águas, sendo que to-
das elas causam problemas à saúde do homem.
A poluição das águas dos rios e oceanos, além de ser prejudicial à saúde do ser
humano, também mata milhares de espécies de animais aquáticos, reduzindo a quantidade
de peixes que serve de alimentos para às pessoas. O lixo que é jogado na rua vai para os es-
gotos, que são despejados nos rios e desaguados nos oceanos. Uma das formas de combater
essa poluição é a partir da consciência da sociedade.

33 SAINT-SIMON, 1829, citado por Santos, Op. cit., p. 90.


34 Op. cit., 2010.

Sumário 249
Segundo o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA,35 o controle e
monitoramento da qualidade do ar é de responsabilidade dos Estados e Municípios e ainda
salienta no Art. 01 que:
São padrões de qualidade do ar as concentrações de poluentes atmosféricos que,
ultrapassadas, poderão afetar a saúde, a segurança e o bem estar da população, bem
como ocasionar danos à flora e à fauna, aos materiais e ao meio ambiente em geral.
Parágrafo único. Entende-se como poluente atmosférico qualquer forma de matéria
ou energia com intensidade e em quantidade, concentração, tempo ou características
em desacordo com os níveis estabelecidos, e que tornem ou possam tornar o ar: I -
Impróprio, nocivo ou ofensivo à saúde; II - Inconveniente ao bem estar público; III
- Danoso aos materiais, à fauna e flora; IV - Prejudiciais à segurança, ao uso e gozo
da propriedade e às atividades normais da comunidade.

Mesmo com as leis ambientais, ainda falta conscientização coletiva. Quando o


autor generaliza a poluição nos versos anteriores de seu poema, ele cita a estagnação do Ho-
mem em relação ao meio ambiente, uma vez que o mesmo tem responsabilidades sobre esses
acontecimentos, os ecossistemas não se contaminam sozinhos, e é justamente a relação do
ser humano com o meio ambiente que precisa ser trabalhada e modificada.
O homem sobrevive da natureza, segundo Ferreira,36 durante sua viagem filosó-
fica, o naturalista ressalta as maravilhas da Amazônia e cita as áreas agrícolas, mostrando
o meio de sobrevivência da população dessa região, entretanto, o homem vem destruindo
essas maravilhas aos poucos. O capitalismo, juntamente com a industrialização, explora o
homem e a natureza. Mas por que, mesmo após o processo de colonização, o homem con-
tinuou alienado?
Essa é uma questão histórica, segundo Memmi,37 “o colonizado não procura
apenas enriquecer-se com as virtudes do colonizador. Em nome daquilo em que deseja se
transformar, obstina-se em empobrecer-se, em arrancar-se de si mesmo.” Desde o período
colonial, o colonizado se aliena aos padrões do colonizador, essa é uma das explicações
pela qual chegou-se ao século XXI acometido pelas mesmas características de opressões e
explorações do colonizador.
A liquidação da colonização é apenas um prelúdio para a sua libertação completa:
para a reconquista de si mesmo. Para se libertar da colonização, ele precisou partir
de sua própria opressão, das carências de seu grupo. Para que sua libertação seja
completa, precisa se libertar de suas condições, certamente inevitáveis em sua luta.38

Uma forma de mudança, transformação social e de respeito com o meio ambien-


te, direciona-se a questões históricas e pós-coloniais, o resgate da cultura, buscar a intrínseca
do colonizado, e do essencial à sobrevivência.
Geleiras derretem e o mar avança,
Cidades inteiras serão submergidas,

35 CONAMA. Resolução conselho nacional do meio ambiente nº 3, de 28 de julho de 1990. Disponível em: <https://
www.mma.gov.br. Acesso em 24 de jul. 2020.
36 Op. cit.
37 MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador. Trad. de Marcelo Jacques de Moraes.
Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007. p. 163.
38 Op. cit., p. 189.

Sumário 250
É a mãe natureza mostrando pro homem,
A forma indomável da sua vingança.39

O autor finaliza seu poema Ação e Reação, mostrando que os impactos causados
pelo homem na natureza, têm graves consequências, toda ação gera uma reação, e com o
meio ambiente não é diferente, o desflorestamento, as queimadas, o lixo jogados nas ruas,
esgotos, rios e oceanos, a desertificação do solo, o desequilíbrio e a destruição da fauna e
da camada de ozônio, todos esses fatores automaticamente geram uma resposta imediata ao
meio ambiente e, a longo prazo, ao ser humano, pois é da natureza que o homem retira os
recursos para a sua sobrevivência.
Um dia faltará oxigênio na atmosfera, os peixes nos rios, a água potável, os solos
férteis para plantar, essas são as nocivas respostas ao homem cruel, ao opressor e ao oprimi-
do. Um dia faltarão os pássaros e só restarão poluição e sofrimento. Mas tudo pode mudar,
desde que haja uma atitude de transformação do homem pós-colonial.
De acordo com Fanon,40
Não basta apenas combater pela liberdade de seu povo. É preciso também, durante
todo o tempo de duração do combate, reensinar a esse povo e em primeiro lugar
reensinar a si mesmo a dimensão do homem. É preciso percorrer os caminhos da
história do homem condenado pelos homens.

A modernidade trouxe opressão, exploração, “civilização”, progresso, industria-


lização e a devastação dos povos e da natureza, porém, a maior herança das populações que
um dia foram colonizadas é justamente a alienação, e como diz Fanon41, é preciso de uma
reeducação para haver a mudança hoje, no período contemporâneo, pois o futuro pós-con-
temporâneo dependerá dessa reeducação.
O autor chama a atenção ao sofrimento da Amazônia, da biodiversidade, das
plantas, dos animais, dos rios e etc., do mau uso dos recursos minerais e vegetais, esse que
destrói o próprio meio e a reação do planeta é, segundo Souza42, “a forma indomável da sua
vingança”. Dessa maneira, ele finaliza o seu poema. Acredita-se que o autor, tenta chamar
a atenção do leitor, transpassando uma mensagem emotiva, para mexer com o psicológico
do homem opressor, e também do oprimido que, consequentemente, incorporou o papel do
colonizador. Cumpre-se o papel do “homem” citado por Fanon 43, que percorre os caminhos
da história e da atualidade para despertar o Outro.

Considerações finais

O escritor e poeta Pauiniense Elias Bezerra de Souza, em sua poesia Ação e rea-
ção, extraída do livro Versos de Sangue e multicores faz uma denúncia da destruição da floresta
Amazônica. Seus versos podem ser considerados modernos ou pós-modernos, e podem ser

39 Op. cit., p. 17.


40 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. de José Laurêncio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
1968. p. 253.
41 Op. cit.
42 Op. cit., p. 17.
43 Op. cit.

Sumário 251
analisados a partir de um discurso pós-colonial, uma vez que se coloca do ponto de vista dos
oprimidos, nesse sentido, metaforicamente a floresta – animais, plantas e rios.
O discurso elaborado a partir dos versos do poeta encontram ressonâncias em
teóricos como historiadores e pesquisadores pós-colonialistas que falaram e denunciaram
a destruição da Floresta Amazônica ao longo dos últimos séculos. Sabe-se que a degrada-
ção dos ecossistemas amazônicos são cada vez mais frequentes, principalmente nos últimos
anos, por isso, a poesia Ação e reação, de Elias Bezerra de Sousa se torna tão atual e tão pro-
fética, uma vez que denuncia e se coloca do lado dos oprimidos, no caso, a fauna e a flora.

Referências
ACUNÃ, Cristóbal. Novo descobrimento do grande rio das Amazonas. Trad. de Helena Ferreira.
Rio de Janeiro: Agir,1994[1961].
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Sumário 252
F ruturbano : um retrato da sociedade
manauara por O toni M esquita

Karen Rafaela da Silva Cordeiro


Luciane Viana Barros Páscoa

Introdução

F
ruturbano nomeia a primeira exposição individual do artista amazonense
Otoni Mesquita, reconhecido atualmente como um dos principais repre-
sentantes da arte contemporânea amazonense. Mesquita, cuja projeção
artística ocorreu durante a década 1980, acumula em seu currículo mais de quarenta anos
de trajetória, participando de diversas exposições nos circuitos regionais, nacionais e inter-
nacionais.

Este trabalho tem por objetivo apresentar os conceitos gerais em torno da criação
da série Fruturbano, bem como expor as inter-relações das obras ora analisadas com as mu-
danças socioeconômicas vivenciadas pela capital amazonense durante a ascensão do polo
industrial da Zona Franca de Manaus.
A metodologia escolhida para as análises das obras apresentadas neste trabalho
seguirá os preceitos da iconologia de Erwin Panofsky1. O método consiste em três níveis de
análise: pré-iconográfica, iconográfica e iconológica. Na primeira fase, analisam-se as ca-
racterísticas dos elementos encontrados na imagem, como gestos e configurações da forma
que são facilmente identificados por nossa experiência social e cultural. Na segunda etapa,
denominada de análise iconográfica, a interpretação buscará a identificação da mensagem
contida na obra de arte. A última etapa, entendida por Panofsky como análise iconológica,
apresentará os possíveis significados simbólicos envoltos na obra, os quais podem manifes-
tar princípios filosóficos, psicológicos, sociais e/ou religiosos que por vezes são desconhe-
1 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Tradução: Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Pers-
pectiva, 2014.

Sumário 253
cidos pelo próprio artista e que, no entanto, habitam sua criação de modo inconsciente ou
consciente.

Otoni Mesquita e a cidade

Para compreender o universo das composições imagéticas das obras reunidas na


série Fruturbano, é necessário conhecer a trajetória de Otoni Mesquita. Mesquita é um artista
contemporâneo amazonense nascido em 1953 no município de Autazes. Desenho, pintura,
fotografia, gravura, instalação, teatro e performance são algumas das linguagens utilizadas
em sua expressividade artística.
Embora desenhasse desde a primeira infância, a trajetória artística profissional
de Mesquita teve início em 1975, após ter frequentado cursos livres de artes ofertados na
Pinacoteca do Estado do Amazonas, os quais possibilitaram as primeiras participações do
artista em exposições coletivas. Durante os cursos, Mesquita pôde tecer relações com outros
jovens praticantes do mesmo ofício, além de ter contato com artistas inseridos no circuito
artístico local como Manoel Borges2 e Van Pereira3.
Além dos cursos livres, Otoni Mesquita graduou-se em Comunicação Social -
Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em 1979. Posteriormente,
seguiu para a cidade do Rio de Janeiro para cursar graduação em Gravura pela Escola de
Belas-Artes na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concluída em 1983. Em seu
retorno à cidade de Manaus, em 1983, passou a atuar como professor adjunto do curso de
Artes Plásticas da Universidade Federal do Amazonas, aposentando-se em 2016.
Otoni Mesquita também possui mestrado em Artes Visuais – História e Crítica da
Arte (1991) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorado em História
Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), obtido em 2005. Ambas as pesquisas
possuem como objeto de estudo a cidade de Manaus em investigações que abordam os pro-
cessos de reurbanização da cidade durante o ciclo da borracha, período também conhecido
como bélle époque4.
As relações com a cidade se estendem para além das pesquisas acadêmicas de
Otoni Mesquita. Nesse sentido, a cidade se transforma em pano de fundo para suas criações

2 Manoel Borges (1944 -1987) foi desenhista, pintor e fotógrafo amazonense. Borges também foi professor de desenho
e pintura na Pinacoteca do Estado do Amazonas. O artista atuou como membro do Clube da Madrugada, um coletivo
formado por poetas e artistas visuais em meados dos anos 1960 em Manaus. A biografia desse artista e a historiografia
do Clube da Madrugada é abordada por PÁSCOA, Luciane Viana Barros. As artes plásticas no Amazonas: o Clube da
Madrugada. Manaus: Editora Valer, 2011.
3 Van Pereira (1952-2018) foi um artista plástico amazonense, nascido no município de Nhamundá. Entre as linguagens
expressivas utilizadas por esse artista destacam-se o desenho, a pintura e a escultura. Pereira, assim como Manoel Borges,
foi membro do Clube da Madrugada. Para mais informações desse artista consultar Páscoa, op. cit., 2011.
4 A dissertação de Mestrado de Otoni Mesquita foi intitulada “A Belle-Époque manauara e sua arquitetura eclética -
1852/1910”, a pesquisa recebeu orientação da Profa. Dra. Sônia Gomes Pereira e foi defendida em maio de 1992 no
Programa de Pós-Graduação em Arte e Antropologia Visual da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Em 1997, fora publicada em formato de livro que recebeu o nome “Manaus – História e Arquitetura 1669-1915”,
reeditado e publicado outras três vezes, a última edição ocorreu em 2019 pela Editora Valer em Manaus. O interesse pela
história da cidade de Manaus também foi evidenciado em sua tese de doutoramento, a qual recebeu o título de “La belle-
-vitrine - O mito do progresso na refundação da cidade de Manaus: 1890/1910”, pesquisa orientada pelo Prof. Dr. Paulo
Knauss e defendida em 2005 no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense.
Esse estudo também fora publicado em formato de livro em 2009, sob o título de “La belle-vitrine: Manaus entre dois
tempos (1890/1910)”, pela editora da Universidade Federal do Amazonas.

Sumário 254
imagéticas, como observa Reis5 “[...] sob o olhar do artista que se coloca sensivelmente ao
lado da causa poética, a cidade é um sintagma: uma aparição, pura presença de coisas que
somente depois da ação mágica/criadora adquirirão um efeito predicativo”. Na linguagem
expressiva de Mesquita, a cidade pode ser classificada como imagem geradora, empregada
na concepção de cidades imaginárias ou em interpretações das paisagens cotidianas, este
último caso exemplificado em Fruturbano.

Fruturbano: um retrato da sociedade manauara

Em 1980, como parte do projeto Hahnemann Bacelar6, o peristilo do Teatro


Amazonas recebeu a exposição Fruturbano. Tratava-se da primeira exposição individual de
Otoni Mesquita, composta por desenhos de cunho figurativo elaborados durante os anos de
1979 e 1980. De modo geral, as obras reunidas em Fruturbano podem ser relacionadas a uma
das fases estéticas iniciais de Otoni Mesquita, cuja estilística debruçava-se, de forma mais
evidente sob denúncias sociais.
Segundo Mesquita7, o processo de construção da série partiu de observações das
movimentações cotidianas na cidade de Manaus. Como flâneur8, o artista caminhou por
entre os desdobramentos das ruas, registrando rostos, gestos e atividades comerciais, parte
desses registros foram captados em imagens fotográficas que serviram de base para criação
de obras em desenhos e pinturas.
As obras dessa série carregam alto teor crítico, cuja construção expressiva, con-
forme ressalta Otoni Mesquita9, deve-se às experiências advindas com o curso de graduação
em comunicação, sobretudo em torno das discussões fomentadas acerca do processo de
colonização da Amazônia.
Parte das obras de Fruturbano estão localizadas em coleções particulares, o res-
tante encontra-se no acervo de Otoni Mesquita. Faz-se importante mencionar que, após a
exposição ocorrida em 1980, essa temática foi revisitada e alguns dos trabalhos que foram
expostos, modificados. Algumas das criações em torno da temática de Fruturbano, também
foram publicadas em periódicos locais, por vezes ilustrando matérias diversificadas, outrora
acompanhadas de contos escritos pelo próprio artista.

5 REIS, Ronaldo. A cidade do artista. In: Olhares sobre a cidade. PECHMAN, Robert Moses (org.). Rio de Janeiro:
Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999. p. 16.
6 O projeto Hahnemann Bacelar foi executado durante a gestão do governador José Bernardino Lindoso (1920-1993). A
inauguração do projeto ocorreu em 30 de abril de 1979 com a participação do artista visual e dramaturgo Sérgio Cardoso
em mostra individual intitulada “Os artistas”. O encerramento do projeto foi noticiado na matéria LINDOSO encerra
programação de aniversário hoje no T. Amazonas. Jornal do Comércio. Caderno 1 - Política, p. 5. Manaus, 15 de março
de 1980. O nome do projeto foi escolhido para homenagear o artista amazonense Hahnemann Bacelar (1948-1971), cuja
carreira fora tragicamente interrompida aos vinte e três anos de idade. Bacelar foi um dos mais jovens membros a integrar
o Clube da Madrugada. A trajetória desse artista é abordada por Páscoa, op. cit., 2011.
7 MESQUITA, Otoni. A influência da Escola de Belas Artes e a questão da cidade em meu trabalho. [19 abr. 2018].
Manaus - Amazonas. Entrevista gravada e concedida a Karen Rafaela da Silva Cordeiro.
8 Palavra de origem francesa, cujo significado é atribuído a alguém que caminha por entre as ruas sem pressa. O flâneur é
uma figura presente no ensaio “O pintor da vida moderna” do poeta francês Charles Baudelaire. Este personagem, fruto
das cidades modernas, observa as ruas com tranquilidade, sentindo-a de diferentes maneiras, e faz delas sua segunda casa.
Walter Benjamin debruça-se sobre a figura do flâneur em suas passagens publicadas em: BENJAMIN, Walter. Flâneur. In:
Passagens. Trad.: Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
9 MESQUITA, op. cit., 2018.

Sumário 255
Tais obras se inserem em um período marcado por crises econômicas e sociais,
que desencadeavam diversas consequências, dentre elas o aumento da inflação e a desestabi-
lização econômica que levariam a ditadura militar ao esgotamento10. Dentro desse contexto,
Manaus também enfrentava crises com o modelo econômico escolhido para o desenvolvi-
mento da região. Trazendo a promessa de melhoria econômica e desenvolvimentista, criava-
-se a Zona Franca de Manaus.
Depreende-se que as cenas em Fruturbano retratem o entorno do centro da cidade
de Manaus, onde se localizava a maior incidência de atividade comercial nas décadas de
1970 e 1980, sobretudo onde estavam concentrados aqueles que tentavam sobreviver com o
trabalho informal vendendo seus produtos pelas ruas do comércio. Segundo o artista11,
Esta pesquisa é antes de tudo, a tentativa de se fazer um trabalho de cunho críti-
co ecológico, mostrando a relação do homem com o meio, suas condições de vida
social, sua adaptação e a quebra de seu equilíbrio ecológico, quando se desloca do
interior para a capital, lançando-se ao mercado competitivo, resultando na explora-
ção, marginalidade e sub-emprego para eles, que sem algum preparo chegam à Zona
Franca, na esperança de melhorarem de vida.

Implementada durante o período de ditadura militar, a Zona Franca de Manaus


integrava uma série de planos que visavam ao desenvolvimento da Amazônia. O lema de sua
criação foi “integrar para não entregar”, e um de seus objetivos era aumentar a massa popu-
lacional da região amazônica, bem como promover seu desenvolvimento econômico, uma
vez que, aos olhos do governo, a região sempre foi alvo de cobiças internacionais e deixá-la
“vazia” seria um risco constante12.
Uma das etapas adotadas, buscava abrir estradas que trabalhariam na ligação da
região ao restante do país. Tais projetos também tinham como foco a atração de investimen-
tos de grandes indústrias nas áreas “desocupadas”. Buscava-se, portanto, o desenvolvimento
do tripé econômico na área do comércio, da indústria e da agropecuária. A aplicação da
primeira base do plano ocorreu com a zona de livre comércio, que teve seu apogeu princi-
palmente em meados dos anos 1970, colocando em prática o “[...] estímulo à substituição
de importações de bens finais e formação de mercado interno”13.
Conforme Ribeiro14, apesar do discurso utilizado pelo governo indicar que havia
uma preocupação com o bem-estar da população, nota-se que o plano de ação girava em
torno da inserção da Amazônia em grandes planos socioeconômicos e geopolíticos, sucum-
bindo-a aos interesses do capital estrangeiro. Portanto, a luta pela não invasão estrangeira
ocorria de forma contraditória, uma vez que se permitia a instalação de diversas multinacio-
nais na cidade de Manaus.

10 Para aprofundamento no assunto, ver SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Trad.: Mario
Salviano Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
11 MESQUITA, Otoni. O trabalho. 1980. n. p.
12 RIBEIRO, Nelson de Figueiredo. A questão geopolítica da Amazônia: da soberania difusa à soberania restrita. Brasí-
lia: Edições do Senado Federal, 2005. p. 232.
13 Modelo Zona Franca - Disponível em < http://www.suframa.gov.br/zfm_historia.cfm> Acesso em 01 de junho de
2018.
14 RIBEIRO, op. cit., 2005.

Sumário 256
Silva15 destaca que essa primeira fase de consolidação da Zona Franca, além de
possibilitar o desenvolvimento do comércio, permitiu a entrada de produtos importados, o
que, consequentemente, passou a atrair pessoas de todas as regiões do país para o turismo
de compra. Por esse motivo, produtos regionais passaram a ser substituídos por outros de
maior prioridade da globalização, o que é retratado na poética de Peixeiro made in Zona Fran-
ca (Figura 1).

Figura 1 - Peixeiro made in Zona Franca16, nanquim s/ papel, 21 x 29,7 cm, 1979.
Fonte: Acervo de Otoni Mesquita

A bandeja ocupada por peixes divide o espaço com produtos industrializados,


como ventilador, bola de basquete, relógio, aparelho de rádio, boneco de neve e um televisor
que indica sua procedência: Made in Japan. O tamanho dos braços pode simbolizar a impor-
tância desses membros na manutenção da atividade. A presença de três relógios no pulso
esquerdo pode aludir aos excessos de consumo, o que também pode representar a velocidade
do tempo na contemporaneidade. O conflito entre produtos regionais e globalizados revela a
preocupação do artista com os efeitos da Zona Franca que modificaram a rotina da cidade:
Levávamos uma vida pacata de manjá nos quintais, cadeiras e calçadas e fuxico
nas esquinas. Depois chegaram eletrodomésticos e aventureiros, tubos de imagens,
novas culturas e novas maneiras (...). Os turistas deslumbrados consumiam etiquetas
francesas e brinquedos de Hong Kong e Panamá17.

As preocupações de Mesquita com os processos de industrialização demonstram


um sentimento nostálgico que se relaciona com o modo pelo qual o artista enxergava a cida-
15 SILVA, Marilene Corrêa da. Metamorfoses da Amazônia. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999.
16 A obra Peixeiro made in Zona Franca foi premiada no II Salão de Artes Plásticas da Universidade do Amazonas em 1979.
17 MESQUITA, Otoni. Amazônia: Mescla Tropicana. Jornal A Notícia, Manaus, 14 abr. 1985.

Sumário 257
de. Para Vattimo18, tais efeitos se apresentam como reflexos da modernidade que ainda são
sentidos pela sociedade contemporânea, como uma espécie de retomada ao mito moderno,
em busca de emancipação. Desse modo, a problemática mostrada com a industrialização
tardia gera uma relação de desconfiança, o que é classificado pelo autor como arcaísmo. Tal
preceito pode ser relacionado, em parte, às atitudes do artista quanto aos questionamentos
sobre os processos de desenvolvimento de Manaus, uma vez que expressam os conflitos a
partir de sua visão de sociedade e são vistas como violação da conexão autêntica “[...] do
homem com si próprio e com a natureza, e que está inelutavelmente ligada, também ao
sistema de exploração capitalista e às suas tendências imperialistas”19. Essas preocupações
intensificavam-se à medida que os planos de desenvolvimento da Zona Franca de Manaus
eram consolidados.
A segunda fase de desenvolvimento da Zona Franca de Manaus ocorreu com a
instalação do Distrito Industrial nos anos 1970. Segundo Bentes20, essa etapa foi responsável
por concluir um ciclo de projetos que modelaram Manaus em uma grande área de concen-
tração de indústrias multinacionais, causando substancial aumento nas migrações intra e
inter-estaduais.
Os migrantes eram provenientes tanto das cidades pequenas do interior do estado
do Amazonas quanto de outros estados brasileiros, como Pará, Ceará e Acre. Contudo, o
maior número de migração veio com a população interiorana do estado, fato que também
ocorreu após os tempos de ouro da época da borracha21.
Esse fluxo foi responsável pelo superpovoamento da cidade, conforme dados do
IBGE que demonstram que a população urbana de Manaus, nos anos de 1970, era formada
por 311.622 habitantes, número este que nos anos de 1980 duplicou e a cidade passou a ter
634.759 habitantes22.
A migração em massa foi causada principalmente pela abrupta geração de no-
vos postos de trabalho na capital amazonense, que florescia com o aquecimento de sua
economia. Como resultado, a cidade cresceu demasiadamente, de forma desordenada. Em
decorrência da ausência de infraestrutura para comportar o fluxo de migração, o número de
pessoas morando em habitações improvisadas aumentou.
Em diferentes obras da série, Mesquita representa modelos dessas construções
que geralmente serviam de moradia para pessoas de baixa renda, como por exemplo, na
obra Lavadeira (Figura 2).

18 VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Trad.: Hossein Shooja e Isabel Santos. Lisboa: Editora Relógio D’Água,
1992.
19 Ibidem, p. 38.
20 BENTES, Rosalvo Machado. Zona Franca: desenvolvimento regional e processo migratório para Manaus. In: Migra-
ções Internas na Amazônia. ARAGÓN, Luís E. (org.). Belém: Editora da Universidade Federal do Pará, 1986. p. 220-290.
21 BENTES, op. cit., 1986.
22 IBGE Disponível em <https://seculoxx.ibge.gov.br/populacionais-sociais-politicas-e-culturais/busca-por-temas/po-
pulacao.html> Acesso em 15 de junho de 2018.

Sumário 258
Figura 2 - Lavadeira, nanquim s/ papel, 21 x 29,7cm, 1979.
Fonte: acervo de Otoni Mesquita.

A madeira e a palha revelam soluções arquitetônicas que mantêm um diálogo


do homem com a natureza. Isso contrastava com as transformações planejadas durante a
implementação da Zona Franca. A obra também exibe uma das profissões informais recor-
rentes na cidade. Carregando uma trouxa apoiada em sua cabeça, o que se tornou símbolo
dessa atividade, a lavadeira segue acompanhada de uma criança que brinca enquanto cami-
nha. Todos os retratados na cena estão com os pés descalços, o que faz menção à condição
social dessa comunidade.
Menezes23 aponta que esse serviço tem sua origem relacionada ao período de es-
cravatura no país. Contudo, após a abolição da escravatura, a prática passou a ser desenvol-
vida por pessoas livres como uma das formas de gerar renda para o sustento de suas famílias.
As lavadeiras eram figuras comuns nas comunidades de Manaus e, mais do que exercer uma
atividade, o momento de trabalho era um tempo dedicado à socialização. Geralmente, as
lavadeiras tinham um círculo de amigas com as quais se deslocavam às beiras de igarapés
e rios, enquanto lavavam roupas, trocavam experiências umas com as outras, bem como
partilhavam cantorias. As filhas mais novas quase sempre serviam de auxiliares e davam
continuidade às atividades da mãe.

23 MENEZES, Bianca Sotero de. Impressa e Gênero: a condição feminina e as representações da mulher amazonense
na imprensa provincial. Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas defendida em 2014.

Sumário 259
Grobe24 menciona que as lavadeiras foram desaparecendo com o passar do tempo
em decorrência do processo de modernização da cidade, em que essa atividade ficou cada
vez mais distante da região central e passou a ser mais comum em áreas periféricas. Outros-
sim, é possível supor que o processo de industrialização, com os novos aparatos tecnológi-
cos, tenha diminuído a presença desse tipo de atividade na cidade de Manaus.
Em Fruturbano, Mesquita também registra personagens da zona portuária da ci-
dade, como vendedores ambulantes, vendedores de peixes e estivadores, este último caso
retratado na obra Carregador de bananas (Figura 3).

Figura 3 - Carregador de bananas, aquarela e lápis s/ papel, 21 x 29,7cm, 1979-1982.


Fonte: acervo de Otoni Mesquita.

Na pintura de Mesquita (Figura 3), as suaves manchas de aquarela dão forma a


um senhor que em suas costas carrega os frutos de seu ofício. O chapéu na cabeça, item que
nesse caso sugere o valor funcional e não meramente estético do objeto, pode fazer alusão
às altas temperaturas da região, o que também é reforçado pela ausência de vestimenta no
personagem. As marcas do tempo revelam sobre a pele, o que pode indicar os longos anos
de vida dedicados à profissão, que geralmente é exercida por pessoas que não encontraram
vagas em empregos formais. Trata-se de um dos mais antigos trabalhos informais da cidade,
cuja atividade tem sua origem ligada ao ciclo da borracha25.
Trabalhando sob condições climáticas adversas, os estivadores transportam di-
versos tipos de mercadorias. Contudo, o artista elegeu cachos de bananas em sua poética,
o que pode ter relação com a Feira Municipal Col. Jorge Teixeira, popularmente conhecida
como Feira da Banana da Manaus Moderna, onde a força humana é amplamente utilizada
no transporte de cargas da fruta.
O transporte e venda de mercadorias também se estendiam por entre as ruas dos
bairros da cidade. Os vendedores informais saíam carregando suas mercadorias pelas ruas,
muitas vezes as anunciando por meio de pregões, como este descrito por Thiago de Mello:
Escuta, lá vem chegando, é o grito de guerra do seu Messias com a sua voz de tenor:
“Pajurá-de-racha!”. O seu Messias vinha de manhã, mas às vezes também aparecia
24 GROBE, Cristiana Maria Petersen. Manaus e seus igarapés: a construção da cidade e suas representações (1880-1915).
Dissertação de mestrado defendida em 2014 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas.
25 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no Porto de Manaus, 1899-1925. Ma-
naus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999.

Sumário 260
pela noitinha. Caboclo baixo, forte, amorenado. Equilibrava o tabuleiro na cabeça
com ajuda de uma “rodinha” de pano. 26

Caminhando diariamente pelos mesmos lugares, os vendedores eram figuras co-


nhecidas no meio da comunidade e por esse motivo faziam parte da “[...] construção do uni-
verso cultural da cidade”27. Alguns desses personagens ainda podem ser encontrados pelas
ruas da cidade, como, por exemplo, o vendedor de picolés.

Figura 4 – Picolezeiro (vendedor de picolés), aquarela e lápis s/ papel, 29,7x 42 cm, 1979-1982.
Fonte: acervo de Otoni Mesquita.

A partir da suavidade da técnica de pintura em aquarela, Mesquita fez o regis-


tro dessa atividade exercida por um jovem rapaz, com indícios de que se trata de um me-
nor de idade. Caminhantes diários, os vendedores de picolés seguem pelas ruas carregando
consigo uma caixa de isopor adaptada para suportar as altas temperaturas de Manaus. Na
representação do artista, a suavidade da aquarela contrasta com os tons escuros utilizados
para dar cor à cena. A intensidade da cor preta transpõe um aspecto sombrio à obra, o que
é evidenciado pelo olhar do jovem rapaz. Tal aspecto pode ser interpretado como alusão às
dificuldades de quem exerce essa atividade nas margens da informalidade.
Vale ressaltar que as obras da série foram construídas em um período28 em que o
trabalho infantil era encarado como um processo natural do desenvolvimento humano na
sociedade brasileira. Contudo, enquanto a prática era necessária para a sobrevivência das
26 MELLO, Thiago. Manaus, amor e memória. Manaus: Editora Valer, 2004. p. 67.
27 Ibidem, p. 67.
28 Na Constituição Brasileira de 1967, o trabalho infantil passou a ser permitido a partir dos 12 anos de idade, legislação
esta que prevaleceu até 1984, prevendo que as empresas teriam de contratar de 5% a 10% de mão de obra infantil, com o
intuito de levantar renda para as famílias mais vulneráveis. Para um panorama das consequências da ditadura militar em
relação ao trabalho infantil ver PEREIRA, Duarte (org.). A situação do menor e os órgãos de proteção. In: Retrato do
Brasil: da Monarquia ao Estado Militar. Vol. II São Paulo: Editora Política, 1984. p. 301-304.

Sumário 261
famílias com baixa renda, para as pessoas com alto poder econômico o trabalho infantil
consistia em uma realidade distante29.
Desse modo, a cidade retratada em Fruturbano evidencia os conflitos de uma urbe
em plena expansão industrial, demonstrando que, além de prédios e passagens, a cidade
é construída pelas pessoas que ali habitam. Nesse caso, a poética do artista privilegia os
personagens esquecidos pela política do progresso, que os deixava à margem, contrastando
com o discurso em torno de uma cidade rica e próspera. Tais características se assemelham
à cidade Olívia30, descrita pelo personagem Marco Polo, de modo que de um lado há uma
“cidade rica de mercadorias e lucros” e de outro uma cidade que esmaga seus cidadãos em
casas aglomeradas e engorduradas.

Considerações Finais

As obras ora analisadas expressam as posições de cunho crítico-social de Otoni


Mesquita mediante aos problemas enfrentados em plena expansão da Zona Franca de Ma-
naus. Ao delinear os rostos retratados em Fruturbano, o artista exibe outra face da cidade
que confronta os discursos desenvolvimentistas, ressaltando em sua linguagem artística as
pessoas que ficam à margem da sociedade.
Os documentos iconográficos dessa série reforçam – para além de suas funções
estéticas – o conflito entre o local e global, evidenciando as contradições de uma sociedade
desigual. Otoni Mesquita, nesse caso, vivenciou a cidade em sua essência, em uma visão
livre do entusiasmo projetado pelo mercado capital e dessa experiência surgiu um repertório
de imagens que denuncia os dilemas sociais desse centro urbano em linguagem poética, bus-
cando dar representatividade aos personagens marginalizados de uma cidade excludente.
Por fim, a análise iconológica possibilitou que enxergássemos em Fruturbano a
posição ética do artista que ao criticar as profundas mudanças ocorridas com a imersão da
cidade no plano tardomoderno, propõe um retorno à posição ecológica do homem amazô-
nico em harmonia com o meio, como uma possível saída às disfunções decorrentes do mito
do progresso.

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Sumário 263
O luto , a morte e suas representações
artísticas no filme T he B abadook

Rafael Adelino Fortes


Regiane Casusa Louber

B
usca-se neste trabalho fazer uma análise do filme The Babadook (2014), de
Jennifer Kent. Na obra em questão é narrado os sentimentos de Amelia,
a protagonista do filme, que ao ir dar à luz perde seu marido em um aci-
dente de carro. A trama consiste em oscilações entre o cotidiano de Amelia, sua tristeza,
melancolia pela perda do marido, seus afazeres domésticos e seu trabalho. Passado seis
anos, Amelia ainda não se recuperou do luto.

Como de costume, todos os dias a protagonista lê para seu filho, Samuel, uma
história antes de ele dormir, no entanto, em um determinado dia, ela descobre um estranho
livro, de cor vermelha, chamado The Babadook.
A primeira diferença no filme é o fato de o livro ter uma capa em vermelho vivo,
o que contrasta com as cores da fotografia fílmica, tons claros e azuis, os quais demarcam o
estado melancólico de Amelia. Nenhum dos personagens em questão sabe como o livro for
parar na estante, mas por ser algo novo, diferente, Amelia começa a lê-lo para seu filho. Ao
desenrolar da leitura, a cada página lida vai narrando sobre um monstro que quer entrar em
casa e o clima fica tenso, as imagens do livro dialogam com a linguagem verbal, causando o
medo em Samuel. Amelia fecha o livro e vai ler outro.
A tríade: luto, melancolia e Babadook é o que remonta a alegoria do terror no
filme, campo esse que a diretora utiliza muito mais das imagens, sons e cores para produzir
uma atmosfera de terror e medo no espectador.
O monstro Babadook pode ser considerado uma representação da melancolia de
Amélia, algo que ela guarda para si, que a sufoca, rouba suas energias, mas ela guarda para

Sumário 264
si, não se vê traços afetivos ao longo da narrativa, apenas relações interpessoais que ficam
em um plano menos superficial.
Outro aspecto interessante ressaltar é a presença de elementos intertextuais na
obra, principalmente marcas de grandes clássicos do Expressionismo Alemão, essas marcas
ficam evidentes em algumas partes do cenário, na representação do monstro, no jogo/efeito
de luz e cores, dentre demais características.
Ao se tratar de um filme de terror, Babadook não utiliza a receita pronta, susto,
uso abusivos de sons de impacto, mas é um jogo de luz, a própria performance da atriz que
dá a vida a Amélia. O trabalho da direção também é importante no gênero porque Jennifer
Kent mistura uma história que poderia ser extremamente dramática, mas, no entanto, com
os efeitos de som e imagem ela transforma em um filme de terror, criando medo no expec-
tador.

Entre o antigo e o novo

Em Babadook, pode-se ver um argumento sobre as emoções humanas e seus con-


trastes o antigo com o novo. Embora a narrativa fílmica seja após o primeiro decênio do
século XXI, há elementos que remontam às primeiras décadas do século XX. A própria
produtora do filme afirma que:
Sinto-me muito inspirada pelos primeiros filmes de terror mudos. Visualmente, eram
lindos e cativantes, chegando em muitos casos a um nível poético. Este é o nosso
ponto de partida visual para O SENHOR BABADOOK: inspiramo-nos nestes arro-
jados mundos visuais e encontramos a nossa abordagem distinta e moderna. Estes
filmes foram fortemente influenciados pelo Expressionismo Alemão, virando tudo
do avesso - exteriorizando emoções, refletindo-as no trabalho de design e de câmara.
Este estilo cria uma linguagem visual perfeita para o terror psicológico.1

Ao assistir The Babadook há inúmeras semelhanças com alguns filmes do expres-


sionismo alemão, tais como: O gabinete do dr. Caligari (1920); Nosferatu - uma sinfonia do
horror (1922); O Golem (1920), dentre outros. Para Minois2,: “Os expressionistas foram os
primeiros a fixar as feições desse período. Banindo a noção arbitrária de beleza, uma ilusão
de nossa imaginação, eles desmascaram a angústia que está por trás da civilização”3.
O contexto sociocultural contemporâneo produz pessoas com depressão e, ao mes-
mo tempo, as exclui: essa contradição é a raiz do mal-estar social e a explicação para
o progresso do mal-estar. Passamos de uma preocupação de tipo autoritário, onde
os indivíduos têm que se conformar a um modelo e viver de acordo com os valores
impostos de fora pela religião e moralidade, para uma sociedade de autonomia, onde
o indivíduo deve desenvolver o seu “projeto pessoal”, os seus próprios valores, de-
finir o seu próprio ideal, que se impõe a partir de dentro. No primeiro caso, aqueles
que não conseguiram seguir o modelo imposto rebelaram-se contra o sistema. No

1 O depoimento completo pode ser acessado em: http://alambique.pt/uploads/dossiers/dossier_imprensa_the_babadook1.


pdf
2 MINOIS, Georges. Histoire du mal de vivre. França : Éditions de La Martinière, 2003, (2003, p.357).
3 Les expressionnistes ont été les premieres à fixer les traits de cette époque. Bannissant la notion arbitraire de beauté,
illusion de notre imagination, ils démasquent l’angoisse qui se cache derrière de la civilization (Minois, 2003, p.357).

Sumário 265
segundo caso, aqueles que não conseguem atingir o modelo que estabeleceram para
si mesmos se desvalorizam aos próprios olhos e ficam angustiados4.

Essa nova noção de beleza, de estética da arte se deve aos acontecimentos do


início do século XX que vai dos prenúncios da I Grande Guerra até o final dela. Logo, as
pinturas, a literatura e sobretudo o cinema passavam essa noção de instabilidade emocional
evocando sentimentos como o desespero, a dor, a tristeza, melancolia, dentre outros.
Jennifer Kent ao produzir The Babadook, recupera essa noção que os expressionis-
tas deixaram como legado, principalmente, como já citado, o cinema. As emoções, princi-
palmente as de Amelia, são o ponto chave para o desenrolar da trama, ora é vítima de seus
traumas, ora se torna um monstro em não saber lidar com eles.
Com relação ao cenário da casa, onde a maior parte da ação é desenvolvida, é
retrô, a cozinha possui formas geométricas no chão, aludindo um pouco a alguns cenários
de o Gabinete. A paleta das cores em todo o filme são os contrastes entre o preto e o branco,
o claro e o escuro, revelando-se desta forma um estado melancólico na obra.
Existem cenas em The Babadook que são muito próximas, semelhantes a dos fil-
mes do expressionismo alemão, sobretudo Nosferatu (1920), talvez seja um recurso alusivo a
questão de sucção de energias, em um filme é um vampiro que suga o sangue, no outro é um
espectro melancólico que desgasta a personagem física e mentalmente.
Um único ponto que se distingue dos tons claros e escuros é o livro The Baba-
dook sendo representado com uma capa de cor vermelha, uma cor marcante e que é o um
dos objetos que chama a atenção na trama fílmica porque destoa das cores neutras que são
projetadas na tela.
A protagonista é um sujeito do pós-modernismo, uma mulher independente, mas
que tem que lidar com uma realidade totalmente fragmentada, isso fica muito exposto nos
momentos, na maioria durante a noite, assistindo televisão. Amelia é retratada constante-
mente como exausta, em suas feições, a falta de sono, ter que conciliar a perda do marido
com a escola de Samuel, seu filho, o seu trabalho e os afazeres da casa.
No entanto, cada vez que a personagem fica na frente da televisão, ela não está
assistindo, mas zapeando – uma forma de mudar de canais de forma rápida e consecutiva,
uma mudança frenética entre os programas de tal forma que o espectador não se concentra
em uma só programação. Durante as noites de insônia, Amelia zapeia durante o período
noturno, uma forma de transmitir o tédio de sua vida, passando muitas noites em claro tro-
cando de canais frequentemente. Para explicar o conceito de zapping.,
Talvez seja Ferrés (2000, p. 50-62) quem melhor e mais detalhadamente conceitue o
zapping, como um fenômeno que vem gerando modificações na frequência de ondas
das novas gerações [...] Zapping mental. Desde o ponto de vista mental, a cultura da
imagem e do espetáculo tem incitado uma hiperestimulação mental. Ela representa,
pois, uma nova maneira de pensar o mundo, uma percepção distinta da realidade e

4 Le contexte socioculturel contemporain produit des dépressifs et, en même temps, les exclut: cette contradiction esta la
racine du malaise social et l’explication des progrès du mal de vivre. Nous sommes passés d’une souciété de type autoritai-
re, où les individus devainent se conformer à un modèle et se montrer à la hauteur de valeurs imposées de l’exterieur par la
religion et la morale, à une société de l’autonomie, où individu doit élaborer son “projet personel”, ses propres valeurs, fixer
lui-même son ideal, qu’il s’impose de l’intérieur, Dans le premier cas, ceux qui n’arrivaient pas à suivre le modèle imposé
devenaient des révoltés contre le système. Dans le second cas, ceux que échouent à atteindre le modèle qu’ils se sont fixé
se dévaloririsent à leurs propres yeux et deviennent des angoissés (MINOIS, 2003, p. 388-389).

Sumário 266
de organizar o pensamento proporcionado pelas novas tecnologias (multimídia,
hipermídia, hipertexto ou Internet). Cultura que se rege prioritariamente por uma
percepção do tempo polifônico, simultâneo; pelo pensamento global, descontínuo,
disperso, sintético, associativo, intuitivo, sensitivo, emocional, próprios da cultura
mosaico (Abraham Moles). Por um lado, dificuldades de concentração, abstração
e análises e por outro, maior capacidade intuitiva, espacial, simultaneidade, rapidez
de reflexos, capacidade de integração de estímulos visuais e sonoros. Zapping atitu-
dinal: As modificações sensoriais e mentais acabam gerando, pois, mudanças
na esfera atitudinal. O fenômeno do zapping sensorial é ao mesmo tempo a causa
e o reflexo de uma atitude humana mais ampla. É um fenômeno de uma grande
transcendência social. Ele tem deixado de ser uma atitude ante a televisão para
converter-se em uma atitude ante a vida. Dessa forma, define de algum modo, uma
maneira de fazer e de ser, uma cultura, uma maneira de encarar a vida. O zapping
atitudinal remete a uma cultura da fragmentação, da relatividade, da provisorieda-
de. Uma cultura que potencia também o sentido da imediatez e uma atitude de
impaciência na vida cotidiana em geral. É a potenciação de um eu diluído, frágil e
mutável, característico da pós-modernidade5.

Ao zapear, Amelia se demonstra impaciente, a diluição do seu eu entre enfrentar


e aceitar a morte do marido e cuidar de seu filho, sem contar o cotidiano no trabalho. Há
cenas que um colega de trabalho da protagonista entrega-lhe flores e faz uma visita, levando
o espectador entender que supostamente haverá um romance, o que não ocorre. Amelia não
vive, apenas conta dias de existência.
Entende-se por isso que o objetivo da trama era justamente trabalhar com a ques-
tão da perda e sua superação, mas não um final feliz com um novo namorado ou marido
para a protagonista, o que acontece na maioria dos filmes. O filme com uma forma projeta-
do para que tudo no final se resolva.
De certa forma, a diretora, Jennifer Kent, faz possivelmente o espectador refletir
que uma mulher não precisa necessariamente de um marido, namorado, companheiro etc.
para ser feliz e se sentir completa, mas pelo contrário, é preciso ser uma pessoa realmente
decidida, compreendida, e bem-resolvida.
O que Amelia estava passando não era a falta de um cônjuge, mas superar suas
dores, administrar seus sentimentos e cuidar da sua vida. Isso é perceptível ao longo das ce-
nas, como já citado, que demonstra sempre a protagonista cansada, exausta após seis anos
de perda do marido. É um ponto que a diretora discute entre o sofrimento de Amelia com o
sofrimento dos europeus da primeira metade do século XX. Supõe-se que esse jogo intertex-
tual entre aproximações de filmes do expressionismo alemão com as dores de Amelia é algo
que perpassa de uma macroestrutura para uma microestrutura.
Em suas trocas frenéticas de canais, Amelia também se vê atormentada, com do-
res nos dentes, fica massageando a bochecha durante zapeia. O interessante que é mostrado
na televisão desde propagandas de guloseimas, objeto de desejo, mas que se torna insupor-
tável comer com dor, a filmes que remontam ao início do cinema, como por exemplo, um

5 CEZAR, Neura. Recepção de TV: ativa e personalizada, um campo minado. Porto Alegre, v. 24, n. 2, maio, junho,
julho e agosto de 2017. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/
view/24804/15204>. Acesso em 12 de agosto de 2020.

Sumário 267
emaranhado de imagens em movimentos que lembram as primeiras exibições dos irmãos
Lumière, Thomas Edison6, dentre outros.
O interessante destacar é que durante essas apresentações chega um momento
que aparece o monstro Babadook, sempre caracterizado com as mãos muito grandes e os
dedos muito longos, assim como as sombras em Nosferatu; o que remete a ideia de pegar, de
posse, possuir, algo ou alguém. Amélia se assusta um pouco, mas como está na televisão e
ela não está entretida, deixa passar.

A questão do luto e melancolia na personagem

Em todo o filme se remete a ideia de que Amelia está em um processo de luto mal
resolvido, definitivamente ela está, porém esse luto é alimentado pelo estado melancólico
que a personagem está passando. Diante disso, Freud7, argumenta que:
O luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração
que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal, etc. Sob as mesmas influên-
cias, em muitas pessoas se observa em lugar do luto uma melancolia, o que nos leva
a suspeitar nelas uma disposição patológica8.

E realmente, Amelia está doente, sofre com a perda do marido, reserva um espa-
ço da casa, o porão, para guardar os pertences do falecido, impossibilita seu filho de entrar
naquele espaço. Ela sabe que existe, porém não quer tratar esse problema, na verdade, ela
não quer encarar o processo de um luto mal resolvido. Em uma análise histórica sobre o
processo de luto9,
A sociedade exige deles um autocontrole que corresponde à decência ou à dignidade
que impõe aos moribundos. No caso destes, como no do sobrevivente, é importante
nada dar a perceber de suas emoções. A sociedade inteira se comporta como uma
unidade hospitalar. Se o moribundo deve ao mesmo tempo superar seu transtorno e
colaborar gentilmente com médicos e enfermeiras, o infeliz sobrevivente deve escon-
der seu sofrimento e renunciar a recolher-se numa solidão que o trairia, continuando
sem descanso sua vida de relações sociais, de trabalho e de lazeres. De outro modo,
seria excluído, e essa exclusão teria uma consequência totalmente diferente da reclu-
são ritual do luto tradicional.10

Com relação ao s sentimentos da perda, Amelia não demonstra, ela processa seu
luto por meio do porão da casa, onde estão guardadas as coisas de seu marido. A centralida-
de é não deixar Samuel entrar naquele espaço, o qual ela considera íntimo.
Ao falar de luto, destaca-se psiquiatras como Bowlby11, desenvolveu quatro fases
acerca do processo do luto. Esta relação pode ou não acontecer de forma linear. Paralelo a
essas fases, Worden12 observa o processo do luto enquanto tarefa. John Bowlby analisou e
6 Conferir: https://www.youtube.com/watch?v=JWOwkgsw8lY 
7 FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
8 Ibidem, 2011, p. 47.
9 ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2012.
10 Ibidem 2012, p. 241.
11 BOWLBY, John. Apego e perda: Perda, tristeza e depressão. Tradução: Valtensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes,
1998, v3
12 WORDEN, James William. Grief counseling and grief therapy. 4th edition. New York: Spring Publishing Company,
2009.

Sumário 268
organizou as fases da seguinte forma:  1ª o entorpecimento; 2ª o anseio; 3ª a desorganização
e o desespero e 4ª a reorganização. Já Worden compreende as tarefas como sendo: 1ª acei-
tar a realidade da perda; 2ª elaborar a dor da perda; 3ª Ajustar-se a um ambiente onde está
faltando a pessoa falecida e 4ª Reposicionar em termos emocionais a pessoa que faleceu e
continuar a vida.
Para Bowlby em sua obra Apego e perda: A natureza do vínculo, as fases não preci-
sam ser de forma ordenadas estruturais, mas o enlutado precisa passar por esses processos
para que tenham uma recuperação saudável do luto. Worden prefere a nomenclatura tarefa
por achar mais fácil para o profissional atender o paciente em processo de luto.
Entretanto, após seis anos de perda e aparentemente sem nenhum acompanha-
mento clínico, Amelia sofre mais de estágios melancólicos do que propriamente luto. Ela
não aceita a realidade da perda e vive com essa dor, ao pensar na melancolia, a qual se apre-
senta de na personagem é o próprio processo de melancolia, no qual Freud13 elucida que:
A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma sus-
pensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de
toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em
autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição
[...] o luto profundo, a reação à perda de uma pessoa amada, contêm o mesmo esta-
do de ânimo doloroso, a perda de interesse pelo mundo externo – na medida em que
este não faz lembrar o morto - , a perda da capacidade de escolher um novo objeto de
amor – em substituição ao pranteado – e o afastamento de toda e qualquer atividade
que não tiver relação com a memória do morto14.

Como se vê, Amelia não consegue se afastar da memória do morto, ela vive para
ele e se sente culpada por sua morte. Freud argumenta que é no luto que o mundo se torna
vazio, mas é na melancolia que o próprio eu que está vazio. As relações como um todo pa-
rece não ter sentido, Freud defende a ideia de que a melancolia é uma doença e precisa ser
tratada. Ele dá algumas distinções:
A melancolia[...] em uma série de casos é evidente que ela também pode ser reação à
perda de um objeto amado; quando os motivos que a ocasionam são outros, pode-se
reconhecer que essa perda é de natureza mais ideal. O objeto não é algo que morreu,
mas se perdeu como objeto de amor. Em outros casos, ainda nos acreditamos auto-
rizados a presumir uma perda desse tipo, mas não podemos discernir com clareza
o que se perdeu e com razão podemos supor que o doente também não é capaz de
compreender conscientemente o que ele perdeu. Poderia ser também esse caso quan-
do o doente conhece qual é a perda que ocasionou a melancolia, na medida em que
de fato sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nele [no objeto]. Isso nos levaria
a relacionar a melancolia com uma perda de objeto que foi retirada da consciência, à
diferença do luto, no qual nada do que diz respeito à perda é inconsciente.
No luto achamos que a inibição e a falta de interesse ficaram inteiramente esclare-
cidas pelo trabalho de luto que absorvia o ego. Na melancolia um trabalho interno
semelhante será a consequência da perda desconhecida e portanto será responsá-
vel pela inibição da melancolia. Só que a inibição melancólica nos dá uma impres-
são mais enigmática, porque não podemos ver o que absorve tão completamente

13 FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.


14 Ibidem 2011, p.47.

Sumário 269
os doentes. O melancólico mostra ainda algo que falta no luto: um rebaixamento
extraordinário de seu sentimento de autoestima, um enorme empobrecimento do
ego. No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio; na melancolia é o próprio ego15.

Amelia é absorvida pelo seu próprio Eu, uma vez que as noites são intermináveis,
o tédio em casa, a dificuldade em lidar com os problemas escolares que Samuel enfrentam,
dentre outros. Durante o filme, a protagonista está visivelmente doente não é somente a tris-
teza, mas um vazio que permeia seu Eu. Seria o que os antigos chamavam de acídia:
O adjetivo a-kédes se refere ao descuidado, ao que não se ocupa, aquele que não se
dão honras fúnebres, como ocorre nos escritos homéricos. O substantivo akedia apa-
rece no grego tardio, e Cícero o utiliza e na versão grega da Bíblia. Traduz-se como
tristeza, aflição. Nos escritos dos primeiros cristãos esta aflição tem uma matiz de
desalento. Originariamente, a acedia se apresenta como uma experiência solitária
nos eremitas do deserto egípcio – é o caso de Evagrio (Século IV), e logo com algu-
mas transformações na monástica comunitária (Cassiano, os Cenocíticos). Poste-
riormente, a acedia vai se dispersando ao produzir uma mutação na vida religiosa
no século XIII ligada à urbanização e ao diminuir a vida monástica com a Reforma
do século XVI, até desaparecer com a Revolução Francesa. Nesse sentido, Pinel
considera que este tipo de vida constituía para a saúde um foco de melancolia. Desde
o século XVIII a acedia se associa em nível pastoral à melancolia, a qual permite
usar como pretexto àqueles que a sofrem alegando que esse substrato fisiológico da
afeição é independente da liberdade pessoal. A acedia se torna assim um sinônimo
de tristeza, uma tristeza que paralisa o trabalho produtivo, mas sobretudo o amor ao
Outro, e aos outros e a si mesmo.16 17

Tanto a teoria de Freud sobre a questão da melancolia, quanto a percepção dos


estudiosos da Idade Média sobre a questão a acídia vão ao encontro. O quadro no qual
Amelia está inserido não é somente algo da sociedade contemporânea, mas é historicamente
registrado, mas em alguns momentos da história essa condição era vista até mesmo como
um grande pecado, mas não como uma enfermidade.
Ao pensar no quadro de Amelia, além de melancólica, mas também enlutada,
Worden (2009), em sua teoria sobre as tarefas do luto, argumenta que o primeiro estágio é o
de aceitar a realidade da perda como:
Quando alguém morre, mesmo que a morte seja esperada, sempre há uma sensação
de que isso não aconteceu. A primeira tarefa do luto é enfrentar a realidade de que a
15 Ibidem, Freud p. 51-53.
16 El adjetivo a-kedés se refiere al descuidado, al que no se ocupa, aquel al que no se le dan honores fúnebres, como ocurre
en los escritos homéricos. El sustantivo akedia aparece en el griego tardío, y lo utiliza Cicerón y la versión griega de la
Biblia. Se la traduce como tristeza, aflicción. En los escritos de los primeros cristianos, esta aflicción tiene un matiz de
desaliento. Originariamente, la acedia se presenta como una experiencia solitaria en los eremitas del desierto egipcio – es
el caso de Evagrio (siglo IV), y luego con algunas transformaciones en la monástica comunitaria (Casiano, los Cenobíti-
cos). Posteriormente, la acedia va dispersándose al producirse una mutación de la vida religiosa en el siglo XIII ligada a
la urbanización y al disminuir la vida monástica con la Reforma del siglo XVI, hasta desaparecer con la Revolución fran-
cesa. En este sentido, Pinel considera que este tipo de vida constituía para la salud un foco de melancolía. Desde el siglo
XVIII la acedia se asocia a nivel pastoral a la melancolía, lo cual permite excusar a aquellos que la sufren alegando que ese
sustrato fisiológico de la afección es independiente de la libertad personal. La acedia deviene así un sinónimo de tristeza,
una tristeza que paraliza el trabajo productivo, pero sobre todo el amor al Otro, a los otros y a sí mismo (ROVALETTI;
PALLARES, 2014, p. 52-53).
17 ROVALETTI, María Lucrecia; PALLARES, Martín. La acedia como forma de malestar en la sociedad actual. Rev.
latinoam. psicopatol. fundam.,  São Paulo ,  v. 17, n. 1, p. 51 68,  Mar.  2014 . disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141547142014000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em  12  de agosto  2020.

Sumário 270
pessoa está morta, que a pessoa se foi e não vai voltar. Parte da aceitação dessa rea-
lidade é passar a acreditar que o reencontro é impossível, pelo menos nesta vida. O
comportamento de busca, sobre o qual Bowlby e Parkes escreveram extensivamente,
está diretamente relacionado à realização dessa tarefa. Muitas pessoas que sofreram
uma perda descobrem que clamam pela pessoa perdida e / ou às vezes tendem a
identificar erroneamente outras pessoas em seu ambiente. Eles podem andar pela
rua, vislumbrar alguém que os lembra do falecido e, então, ter que se lembrar: “Não,
esse não é meu amigo. Meu amigo realmente está morto. ” Joan Didion (2005) ex-
perimentou isso após a morte de seu marido e escreveu sobre isso em seu livro The
Year of Magical Thinking. O oposto de aceitar a realidade da perda é não acreditar
por meio de algum tipo de negação. Algumas pessoas se recusam a acreditar que a
morte é real e ficam paralisadas no processo de luto nesta primeira tarefa. A negação
pode ser praticada em vários níveis e pode assumir várias formas, mas na maioria
das vezes envolve os fatos da perda, o significado da perda ou a irreversibilidade da
perda (Dorpat, 1973). Negar os fatos da perda pode variar em grau, desde uma leve
distorção até uma ilusão total (WORDEN, 2009, p. 39-40).18 19

Com isso, Amelia se encontra paralisada por muito tempo e incapaz de elaborar
essa perda para que o luto se resolva. Para Worden elaborar a dor da perda é o segundo
estágio das tarefas do luto e caso isso não ocorra, essa dor se manifestará por meio de algum
sintoma físico ou psíquico.
É justamente o que se vê na realidade de Amelia que, em noites que passa zapean-
do, sente fortes dores de dente, isso se revela de forma indireta o seu estado emocional que
também há influências sob a tomada de decisões inconscientemente. Um outro fator que
cabe ressaltar é a presença constante de Amelia mexendo em seus dentes, sente fortes dores,
um reflexo do luto mal resolvido que a psicanálise tem uma teoria que auxilia na compreen-
são de sentidos no que diz respeito às dores de Amelia. De acordo com Lorck20,
Quando nascemos, nosso contato com o mundo vem essencialmente da nossa boca,
nossa única fonte de prazer. Mais ou menos por volta dos seis meses, coincide o
desmame com o nascimento do primeiro dente. Portanto, o dente passa a simboli-
zar não somente situações de amparo e cuidado materno e paterno perdidas, como
também por sua temporalidade, as primeiras experiências de organização genital [...]
A dentição poderá ficar associada ao “abandono”, , à perda do estado simbiótico
com a mãe. Nesta ocasião, quando as fantasias agressivas já existem, o surgimento
do dente torna possível estas manifestações. [...] em suas fantasias a boca é usada

18 When someone dies, even if the death is expected, there is always a sense that it hasn’t happened. The fi rst task of
grieving is to come full face with the reality that the person is dead, that the person is gone and will not return. Part of the
acceptance of this reality is coming to believe that reunion is impossible, at least in this life. The searching behavior, of
which Bowlby and Parkes have written extensively, directly relates to the accomplishment of this task. Many people who
have sustained a loss fi nd themselves calling out for the lost person, and/or they sometimes tend to misidentify others in
their environment. They may walk down the street, catch a glimpse of somebody who reminds them of the deceased, and
then have to remind themselves, “No, that isn’t my friend. My friend really is dead.” Joan Didion (2005) experienced this
after the death of her husband and wrote about it in her book The Year of Magical Thinking. The opposite of accepting the
reality of the loss is not believin through some type of denial. Some people refuse to believe that the death is real and get
stuck in the mourning process at this fi rst task. Denial can be practiced on several levels and can take various forms, but
it most often involves either the facts of the loss, the meaning of the loss, or the irreversibility of the loss (Dorpat, 1973).
Denying the facts of the loss can vary in degree from a slight distortion to a full-blown delusion.
19 WORDEN, 2009, p. 39-40
20 LORCH, Dora. Aspectos inconscientes da oralidade: a psicologia nas disfunções odontológicas. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/abp/article/viewFile/19259/17992> . Acesso em  12  de agosto  2020.

Sumário 271
para propósitos predominantemente sexuais, apesar de acompanhada de sensações
de náusea e horror21.

Não se pode desconsiderar a mania que a protagonista desenvolve ao ficar me-


xendo tanto em seus dentes, o que remete tanto a dor física quanto à psíquica. É necessário
refletir que na questão evolutiva dos seres humanos, os dentes foram e ainda continuam
sendo um instrumento muito importante. Os nossos ancestrais utilizavam-nos como defesa
de territórios, caça, ferramenta para construção de novas ferramentas, dentre outros. Além
do mais, é pela boca que entram os alimentos e são transformados em bolo alimentar.
A metáfora que a diretora de The Babadook utiliza é também usada para expressar
não só a dor dos dentes de Amélia, mas também para dizer que é a partir da boca que saem
os sons, a reprodução da comunicação.
Amelia tem sua relação com Samuel afetada não só pela perda do marido, mas
após a leitura do livro, os medos de Samuel também passam a ser os mesmos de Amelia. Isso
se revela em cenas que a protagonista está dirigindo e começa a ter delírios que o monstro
estaria a perseguindo, com isso Amelia perde o controle e bate o carro, rapidamente volta
ao seu consciente e sai com o carro novamente.
Nas cenas finais do filme, Amelia já se torna parte do monstro que ela mesma
cultivou, o terror psicológico se mostra mais intenso, sai a procura de seu filho que está
escondido no porão, como já falado, local de recordações e objetos do falecido marido.
Amelia desce até o local em busca de seu filho em um grande surto, mas para matá-lo, no
entanto o menino consegue escapar, com uma armadilha amarra Amelia em cordas e ainda
lhe ajuda a se libertar do monstro Babadook.
A protagonista sofre por um estado nauseativo e vomita um líquido preto, dando
a entender que libertou seus sofrimentos guardados pelos seis anos após a morte de seu ma-
rido. Essa alegoria não é ingênua. Os antigos gregos associavam o estado melancólico com
a bile negra conforme aponta Minois22:
Se as religiões se contentam em espalhar mitos que defendem a resignação, as cor-
rentes filosóficas tentam fornecer explicações racionais. Já no século V aC procura-
vam compreender o fenômeno da doença em vida, que designavam por um termo
específico: melancolia.Para os médicos, essa é, sem dúvida, uma disposição fisio-
lógica, refletida na teoria dos humores. Este último vem da teoria de Pitágoras, es-
clarecida por Empédocles, segundo a qual o corpo humano é composto por quatro
elementos: sol, terra, ar, mar. ;O equilíbrio de cada ser depende do equilíbrio nele de
esses quatro elementos aos quais correspondem os quatro humores: a fleuma, frio e
úmido; sangue, quente e úmido. Bile amarela, quente e seca; bile negra, fria e seca.
As proporções desses quatro humores determinam o temperamento da pessoa. A
melancolia é aquela em que predomina a bile negra (melaina cholê). Em excesso, a
bile negra causa sintomas fisiológicos, como pele morena, calvície, gagueira, além
de sintomas fisiológicos, em especial, “ansiedade e depressão constantes”, segundo
o aforismo VI, 23 de Hipócrates. Foi o grande médico grego que, por volta de - 400,
estabeleceu a teoria “humorística” durante séculos. A melancolia, diz ele, é “a con-
dição mais intimamente relacionada à doença”, mas não é em si uma doença. Este

21 Lork 1986, p. 70-71.


22 MINOIS, Georges. Histoire du mal de vivre. França : Éditions de La Martinière, 2003.

Sumário 272
temperamento, que favorece o pessimismo, estaria, portanto, ligado a um excesso
de bílis negra - embora ninguém a tenha visto - excesso devido a uma disposição
natural, da qual o cérebro é a sede, ou a um acontecimento: a choque psicológico,
por exemplo, ou mesmo trabalho excessivo e prolongado. “É o cérebro que causa a
loucura ou o delírio, nos inspira medo e medo, mesmo que seja prejudicado, causa
insônia, nos faz errar, nos deixa ansiosos sem motivo, distraídos, agindo na direção
oposta à nossa hábitos. Todas essas coisas de que sofremos vêm do cérebro, quan-
do não está saudável, mas torna-se incomumente quente, frio, úmido ou seco. “ A
melancolia é, portanto, um fenômeno fisiológico e psicológico. Que um excesso de
bile negra leva a uma visão pessimista da humanidade é confirmado na entrevista
fictícia entre Hipócrates e Demócrito em Pseudo-Hipócrates, um romance epistolar
do século I..23 24

Logo, ao pensar que a boca enquanto entrada de alimentos também é a saída


deles, em alguns momentos de náusea e desconforto no organismo. A melancolia é a perso-
nificação da bílis negra, é o que Amelia coloca para fora no momento de sua redenção. A
protagonista consegue se libertar da doença por meio do vômito, da substância escura, mas
vive com o luto. A questão da aceitação deste. Com isso, a posição de mãe melhora signifi-
cativamente para uma relação afetiva e provavelmente mais saudável.
Ao final da narrativa fílmica, o porão não fica mais trancado como ela deixara
no começo, mas ela por si só o deixa aberto em alguns momentos para que seu filho possa
entrar. Ela juntamente com Samuel cata minhocas e outros animais no quintal, coloca em
uma tigela e deixa no porão; uma alegoria que representa a figura do luto, que ela pode viver
sem o marido, sentir sua falta, desde que não afete a sua saúde.
Nos momentos finais da narrativa, Samuel comemora pela primeira vez o seu
aniversário, sete anos, sete anos de morte do marido e de vida do filho da protagonista. Vê-se
aí a celebração dos ritos de passagem, morte e vida, ambos caminham juntos. Por um lado,

23 Si les religions se contentent de répandre des mythes prônant la résignation, les courants philosophiques tentent de
fournir des explications rationelles. Dès le V siècle avant notre ère, ils cherchent à comprendre le phénomène du mal de
vivre, qu’ils désignent par un terme précis : la mélancolie. Pour les médicins, il s’agit indéniablement d’une disposition
physioloquique, dont rend compte la théorie des humeurs. Cette dernière est elle-même issue de la théorie de Pythagore,
précisée par Empédocle, selon laquelle le corps humain est composé de quatre éléments : soleil, terre, air, mer. L’équilibre
de chaque être dépend de l’équilibre en lui de ces quatre elements auxquels correspondent les quatre humeurs : le flegme,
froid et humide ; le sang, chaud eu humide. La bile jaune, chaude et sèche ; la bile noire, froid et sèche. Les proportions
de ces quatre humeurs déterminent le tempérament de la personne. Le mélancolique est celui chez qui prédomine la bile
noire (melaina cholê). En cas d’excès, la bile noirte entraîne des symptômes physiologiques, tels que la peau sombre, la cal-
vitie, le bégaiement, ainsi que des symptômes physiologiques, en particulier, « l´anxiété et l’abattement constants », selon
l’aphorisme VI, 23 d’Hippocrate. C’est le grand médicin grec qui, vers – 400, fixe des siècles la théorie « humoristique ».
La melancolie, précise-t-il, est « lacondition la plus voisine de la maladie », mais n’est pas en ellemême une maladie. Ce
tempérament, qui favorise le pessimisme, serait donc lié à un excès de bile noire – encore que personne n’ait jamais vu cette
dernière - , excès dû à une disposition naturelle, dont le cerveau est le siège, ou à un événement : un choc psychologique,
par example, ou bien encore un travail excessif et prolongé. « C’est le cerveau qui provoque folie ou délire, nous inspire la
crainte et la peur, jour eu nui, cause l’insomnie, nous fait commettre des erreurs, nous rend anxieux sans raisons, distraits,
agissant à l’inverse de nos habitudes. Toutes ces choses dont nous souffrons viennent du cerveau, quand il n’est pas sain
mais devient anormalement chaud, froid, humide ou sec. » La mélancolie est donc un phénomène à la fois physioologique
et psychologique. Qu’un excès de bile noire entraîne une vision pessimiste de l’humanité est confirmé dans l’entrevue ficti-
ve entre Hippocrate et Démocrite que met en scène le Pseudo-Hippocrate, roman épistolare du 1er siècle.  
24 MINOIS, 2003, p. 16-17.

Sumário 273
Samuel tem o seu primeiro aniversário, por outro, comemoram-se mais um ano de morte de
seu pai.

Considerações finais

De acordo com Freud , o luto não está associado necessariamente com a melan-
colia, mas a melancolia está associada ao luto, seja a perda de alguma pessoa, animal, objeto
etc.
Uma parte das características da melancolia é tomada de empréstimo ao luto e a
outra parte do processo de regressão da escolha narcísica de objeto ao narcisismo.
Por um lado, como o luto, ela é a reação à perda real do objeto de amor, mas além
disso está comprometida com uma condição que falta no luto normal ou que, quan-
do ocorre, o converte em luto patológico 25.

Ao decorrer do filme, Amélia se sente culpada por várias coisas, a falta de aten-
ção que ela dá ao filho, mas isso tem a ver com um estado depressivo pós-parto, o fato de que
sua vida seria melhor com a presença de seu marido, o choque entre a data de morte e vida,
a questão de ela não conseguir se relacionar amorosamente com ninguém, dentre outros
fatores. Quanto a isso Freud explica que:
Se se ouvir com paciência as múltiplas acusações do melancólico, no fim não deixará
de ter a impressão de que as mais violentas dentre elas frequentemente se adéquam
muito pouco à sua própria pessoa, mas que, com ligeiras modificações, se adéquam
a uma outra pessoa, a quem o doente ama, amou ou deveria amar. E, sempre que
se examinar a questão, ele confirmará essa suposição. Desse modo, tem-se à mão a
chave do quadro clínico, na medida em que se reconhecem as autorrecriminações
como recriminações contra um objeto de amor, a partir do qual se voltaram sobre o
próprio ego26.

A proposta de Freud vai ao encontro no que Amelia está passando na narrativa


fílmica. Há um quadro clínico que ela não consegue resolver. O seu ego, seu EU transfere
as emoções para o objeto perdido, que neste caso é o marido. Ela tem a plena convicção de
que se tivesse ainda com seu esposo sua vida seria diferente. No entanto, a doença vai se
agravando gradativamente e isso interfere em suas relações interpessoais.
A sombra do objeto caiu sobre o ego, que então pode ser julgado por uma determina-
da instância como um objeto, como o objeto abandonado. Assim, a perda do objeto
se transformou em perda do ego e o conflito entre o ego e a pessoa amada em uma
bipartição entre a crítica do ego e o ego modificado pela identificação27.

Amelia sofre essa bipartição, tem seu ego, seu modo de viver modificado pela
perda do marido, ela se culpa por isso, arrasta tal fato por longos seis anos, a impressão que
se passa é a de que sua vontade de viver terminou quando seu marido se foi.
Logo nas primeiras cenas do filme, quando é narrado o acidente, de repente apa-
rece Amelia caindo em sua cama, os detalhes são, um quarto escuro, o lençol preto e ela
caindo nesse vazio, uma cena meio surreal, onírica. A partir disso a trama se desenrola.
25 FREUD, 2011, p.65.
26 Freud, 2011, p. 59.
27 Ibidem, 2011, p. 61.

Sumário 274
Portanto, o fato de não aceitar a morte do esposo, algo natural, porém trágico,
reverbera em todo o processo de luto melancólico na vida da protagonista. Ela não procura
uma ajuda profissional e às vezes dá a entender que o seu trabalho é um ponto de fuga da
sua realidade, de sua casa, pois há um contraste de cores entre as cenas do trabalho e as da
casa. Geralmente o ambiente de trabalho é retratado com cores mais claras, ao contrário do
espaço da casa, onde boa parte da trama se desenrola.
A melancolia é algo tão forte e tão presente na vida da protagonista que nos mo-
mentos finais do filme, ela mesma se torna o monstro de que tanto tinha medo. Persegue seu
filho pela casa com a intenção de matá-lo, elemento que demonstra um trauma não resolvi-
do no pós-parto, que desencadeou em uma depressão, levando o espectador a pensar que a
gênese do problema é o próprio filho.
No entanto, são a partir de ações de Samuel que Amélia repensa no final do filme
sobre suas ações e a condução da sua vida. Quando o luto é aceito, sete anos depois, existe
uma alegoria, Amelia juntamente com Samuel catam minhocas no jardim, colocam em uma
vasilha, levam até o porão e as deixam para que o monstro se alimente.
Pode-se inferir com isso que a dor da perda não acabou, a protagonista vai e sente
falta daquilo que perdeu, no entanto conseguiu resolver o seu problema com a melancolia.
O porão que era fechado para Samuel, torna-se um espaço que ele também pode ocupar,
porque faz parte da história de seus pais.
Se não fosse pelos elementos do terror, a narrativa poderia ser classificada como
um drama, no entanto esse gênero terror não é convencional, parte mais para uma veia psi-
cológica do que explorar elementos que causam sustos no espectador, e é isso que faz o filme
The Babadook ser diferente dos filmes tradicionais do gênero.

Referências
ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro:
Nova fronteira, 2012.
BOWLBY, John. Apego e perda: Perda, tristeza e depressão. Tradução: Valtensir Dutra. São Paulo:
Martins Fontes, 1998, v3
CEZAR, Neura. Recepção de TV: ativa e personalizada, um campo minado. Porto Alegre, v. 24, n.
2, maio, junho, julho e agosto de 2017. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/
index.php/revistafamecos/article/view/24804/15204>. Acesso em 12 de agosto de 2020. http://
dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2017.2.24804
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
LORCH, Dora. Aspectos inconscientes da oralidade: a psicologia nas disfunções odontológicas. Dis-
ponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/abp/article/viewFile/19259/17992> .
Acesso em  12  de agosto  2020.
MINOIS, Georges. Histoire du mal de vivre. França : Éditions de La Martinière, 2003.
ROVALETTI, María Lucrecia; PALLARES, Martín. La acedia como forma de malestar en la sociedad
actual. Rev. latinoam. psicopatol. fundam.,  São Paulo ,  v. 17, n. 1, p. 51 68,  Mar.  2014 . disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141547142014000100005&lng=en&nr-
m=iso>. Acesso em  12  de agosto  2020.  https://doi.org/10.1590/S1415-47142014000100005.
WORDEN, James William. Grief counseling and grief therapy. 4th edition. New York: Spring Pu-
blishing Company, 2009.

Sumário 275
S obre a morte e o morrer : a questão
do suicídio assistido no filme C oração
M udo de B ille A ugust

Rafael Adelino Fortes


Renato Pereira da Silva Junior

P
retende-se neste trabalho fazer uma breve análise do filme dinamarquês
Coração Mudo (Stille Hjerte) – (2014) – do diretor Bille August. A obra em
questão fala sobre uma personagem, Esther, que decide se suicidar por ter
esclerose lateral amiotrófica. No entanto, antes de concretizar o ato, o filme deixa subenten-
dido que a decisão foi aprovada pelos membros mais próximos de sua família.

A trama é construída a partir de uma espécie de mosaico: cada personagem tem


suas dúvidas, seus anseios e questionamento sobre a vida e o morrer dignamente. Diferente-
mente da Suíça, da Holanda, da Bélgica, dentre outros países, o suicídio assistido é proibido
na Dinamarca. O marido de Esther, Poul, é médico e vai ajudar a sua esposa a concretizar
seu ato.
Esther ainda está em um nível da doença em que ela consegue realizar algumas
tarefas, e ela quer aproveitar esse momento para dar fim à sua vida antes de a doença evo-
luir. Para isso, ela convida as duas filhas e uma amiga de infância para participarem de uma
suposta festa natalina.
A trama é constituída por oito personagens: Esther, seu marido Poul, a filha mais
velha Heidi, seu marido Michael, o filho do casal, Jonathan, Sanne, a filha mais nova, seu
namorado Dennis e Lisbeth, a amiga de infância. Com a aproximação desses personagens
para viver o último final de semana de Esther, eles tentam manter a serenidade com o pro-
pósito de não deixar a matriarca nervosa/colérica diante da situação; no entanto, é nos
diálogos fora da presença de Esther que os conflitos aparecem.

Sumário 276
Heidi passa a imagem de uma pessoa centrada e acusa Sanne a todo momento
de ser desequilibrada por tomar psicotrópicos e já ter tentado o suicídio. Sanne, em toda a
trama, não aceita a morte da mãe, é muito apegada a sua progenitora e acredita que poderia
esperar um pouco mais.
Mas isso é uma percepção de Sanne, uma vez, com as transformações sociais da
sociedade contemporânea, o morrer em casa é quase que um tabu:
A morte recuou e deixou a casa pelo hospital; está ausente do mundo familiar de
cada dia. O homem de hoje, por não vê-la com muita frequência e muito de perto, a
esqueceu; ela se tornou selvagem e, apesar do aparato científico que a reveste, pertur-
ba mais o hospital, lugar de razão e técnica, que o quarto da casa, lugar dos hábitos
da vida quotidiana1

Essa reflexão do morrer no hospital é algo que está intrínseco na sociedade con-
temporânea onde, de certa forma, somente são “aceitáveis” mortes súbitas em casa. No
filme, os discursos de Sanne deixam essa noção implícita: esperar a mãe definhar um pouco
mais para fazer o procedimento ou deixar que a vida termine de forma “naturalmente”, li-
gada a aparelhos e tubos até que ela sofra no último suspiro?
Atualmente, as pessoas gastam altas quantias em hospitais com equipamentos de
alta tecnologia para manter seus entes vivos, recusando-se a aceitar que uma pessoa benquis-
ta morra, como se isso fosse algo não natural. As pessoas só se preocupam em viver com dig-
nidade, ter uma vida saudável, contudo, esquecem-se de morrer de forma saudável, sempre
alegando ter medo da morte. O ser humano, em geral, preocupa-se com a vida, esquecendo-
-se que um dia ela acabará e, além do mais, qualquer ser vivente, a partir do momento que
nasce, já está morrendo um pouco a cada dia. Epicuro, em sua obra: Carta sobre a felicidade
remetida a Meneceu, adverte sobre não temer a morte:
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justa-
mente porque quando estamos vivos, é a morte que n”ao está presente; ao contrário,
quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada,
nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo
que estes não estão mais aqui 2

Falar sobre a eutanásia, suicídio assistido, ainda mais no Brasil, é um tema que
está ainda fora de cogitação a ser debatido, tanto é que, em sociedades mais “desenvolvi-
das”, como no caso da Dinamarca, ela ainda é um tabu para muitas pessoas. São temas
como esse, o apego, o ser para a morte e o morrer dignamente, que serão tratados no escopo
desse trabalho, com enfoque numa breve análise do filme em questão.

O apego, a morte, a existência e o direito de morrer dignamente

Em Coração Mudo (Stille Hjerte) – (2014) – do diretor Bille August, o espectador


é convidado a refletir sobre as questões existenciais da vida. Na narrativa, de cerca de uma
hora e meia, são projetados temas inerentes sobre a morte e o morrer.
A ideia central consiste na decisão de Esther, a protagonista do filme, em querer
se matar, uma vez que ela está definhando aos poucos por ter esclerose lateral amiotrófica.
1 ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 269
2 EPICURO. Carta sobre a felicidade. São Paulo. Editora UNESP, 2002. p. 29.

Sumário 277
Diante disso, ela chama suas filhas para o último encontro e propõe uma festa de Natal,
mesmo que fora da época.
Logo nas primeiras cenas do filme, chega toda família e mais uma convidada para
passarem todo o final de semana com Esther em uma festa com o tema natalino. A casa é
decorada com uma árvore de Natal, a protagonista ganha presentes, há o preparo da ceia,
dentre outros elementos da confraternização.
Curioso é o antagonismo do que vai acontecer e o que geralmente ocorre no
Natal. Geralmente, em festas natalinas, é celebrada a vida, o nascimento; no entanto, em
Coração Mudo, é comemorada a existência de um sujeito que está prestes a morrer, ideia que
causa um desconforto em três gerações, a partir do diálogo entre eles: o neto, o avô e suas
duas filhas.
Esse antagonismo consiste na forma da celebração, pois se o Natal é sinônimo
de vida, no caso de Esther, trata-se da celebração da morte. Ou, observando por outro viés,
pode-se inferir que é também uma celebração de toda a sua vida. A festividade para o seu
fim enquanto matéria, pois permanecerá viva na memória dos deixados, leva a refletir sobre
o seguinte poema de Fernando Pessoa:
Ricardo Reis
Nada fica de nada. Nada somos. [2]

Nada fica de nada. Nada somos.


Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pesa
Da húmida terra imposta.
Leis feitas, estátuas altas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, porque não elas?
O que fazemos é o que somos. Nada
Nos cria, nos governa e nos acaba.
Somos contos contando contos, cadáveres
Adiados que procriam3.

A ideia é que os convidados para o Natal antecipado se encontrem em razão


da grave doença que acomete Esther, que definha em uma cama de hospital; seu marido é
médico e lhe dará assistência ao ingerir uma quantidade suficiente de remédios para que a
protagonista morra com tranquilidade e em casa.
Ao contrário de suas filhas, Esther se apresenta muito serena diante da situação
que ela escolheu, agindo normalmente como se fosse um final de semana comum. Assim,
ela quer apenas celebrar a vida que teve e morrer sem sofrimento.
Ao longo do filme, há constantes diálogos existenciais sobre a decisão de Esther,
com os conflitos entre as duas filhas e a mãe ainda tentando apaziguar as questões mais pro-
fundas sobre o ser e o existir no mundo. A partir disso, pode-se concordar com Heidegger
quando ele afirma:

3 Poemas de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa: Imprensa Nacional -
Casa da Moeda, 1994. Disponível em < http://arquivopessoa.net/textos/1809> acesso em 21/08/2020.

Sumário 278
A presença dos outros, com sua totalidade alcançada na morte, também constitui um
não-mais estar presente, no sentido de não-mais-ser-no-mundo. Morrer não significa
sair do mundo, perder o ser-no-mundo? Levando -se ao extremo, o não-mais-ser-no-
-mundo do morto ainda é também um ser, na acepção do ser simplesmente dado de
uma coisa corpórea. Na morte dos outros, pode-se fazer a experiência do curioso fe-
nômeno ontológico que se pode determinar como a alteração sofrida por um ente ao
passar do modo de ser da pre-sença (a vida) para o modo de não-ser-mais-presente.
O fim de um ente, enquanto pre-sença, é o seu princípio como mero ser simplesmente
dado4.

O que há de ser levado em consideração em Heidegger é que o ser não termina


com a morte, ele permanece vivo na memória daqueles que irão contar ou narrar sobre
determinados sujeitos. A morte não é o fim em si, mas um rito de passagem. O não estar
presente enquanto matéria não significa que o morto deixou de viver; pelo contrário, a me-
mória e o compromisso com o morto fazem com que ele esteja vivo de forma não presente.
Isso significa que a definição naturalista, ao entendê-la como óbito, não é apenas
extremamente redutor, como também solidária com uma concepção da existência
entendida por ela mesma como simples-presença, excluindo todo o ser-possível, e
portanto derivada da metafísica. A concepção teológica da morte como ingresso
na eternidade fundamenta-se numa teoria metafísica do homem, entendido como
imagem de Deus. Da mesma forma, a concepção humanista da morte, entendida
como óbito (antropológica ou biologicamente considerada), fundamenta-se numa
teoria também metafísica do homem enquanto constante permanência, enquanto
constante simples-presença.5

Há de se pensar que, para Heidegger, a existência e a vida são um processo cons-


tante em desenvolvimento, em que os seres humanos se transformam, evoluem sofrem pro-
cessos de maturidade durante a vida; contudo, o homem diante da morte é a finalização de
um ciclo, é completar o ser-para-a-morte. A morte como propõe Heidegger não é o fim de
tudo, pois, como já apontamos, existe a questão da preservação da memória.
É certo dizer que, na atualidade, quando uma pessoa está entre a vida e a morte,
na maioria das vezes, seus familiares tentam travar uma luta contra o destino, tornando os
últimos momentos de um doente uma verdadeira agonia, chegando até tornar-se uma dista-
násia. Assim, é comum nos seres humanos tentar prolongar sua vida, mesmo que não haja
o mínimo de condição possível.
No caso de Coração Mudo, a narrativa fílmica conduz o espectador a uma ideia de
que não há mais esperanças para que Esther continue viva de uma forma saudável e plena.
Isso fica evidente no diálogo entre seu marido, Poul, e seu neto, Jonathan.
Na cena em questão, Jonathan questiona a legalidade de um suicídio assistido.
Poul, que é médico, explica todos os detalhes, que sua avó irá morrer, para evitar o sofrimen-
to causado pela esclerose lateral amiotrófica, pois Esther já não consegue fazer movimento
em um dos braços e, com o avanço da doença, provavelmente ela irá para o hospital, onde
será alimentada por sonda e morrerá em um leito de UTI. O garoto compreende, mas ainda
fica pensativo com a relação da legalidade do ato.
4 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo parte II. Petrópolis: Vozes Editora. 13ªed. 2005. p.18.
5 PERNIOLA, Mario. Pensando o ritual: Sexualidade, morte, mundo. São Paulo: Studio Nobel, 2000. p. 164-165

Sumário 279
O ser-para-a-morte é antecipação (Vorlaufen) da morte: ser-aí (Dasein) significa para
Heidegger “ser-para-o-fim”. A morte não é uma simples-presença que ainda não se
tornou realidade, mas uma iminência sobranceira que constitui existencialmente o
ser-aí. Ela é o ser-possível mais próximo do ser-aí, irrestrita, insuperável, certa, inde-
terminada. É por essa razão que sua antecipação “o situa diante da possibilidade de
ser ele mesmo, numa liberdade apaixonada, livre das ilusões do Se, efetiva, certa e
cheia de angústia – a liberdade para a morte. O ser-aí enquanto tal é chamado à sua
autenticidade na decisão (Entschlossonheit) de ser culpado e de ser-para-o-fim. A ideia
de culpa em Heidegger nada tem a ver com a violação de uma lei ou a fuga a um
dever – ela designa a nulidade essencial do ser-aí. A decisão é, precisamente, “o
tácito e angustioso projetar-se no mais específico ser-culpado”, é, portanto, decisão
antecipadora da morte, que faz desta senhora da existência. Só mediante tal decisão
antecipadora da morte, o ser-aí assume a dimensão da totalidade, ou, como diz Hei-
degger, de um autêntico poder-ser-um-todo6.

Mesmo com a antecipação da morte, há uma questão de contraste no diálogo de


Poul e seu neto, uma vez que, com os avanços da medicina, Esther poderia ter uma vida mais
prolongada. Diante disso, Ariès reflete que:
O fato essencial é o progresso bem conhecido das técnicas cirúrgicas e médicas, que
utilizam material complexo, pessoal competente, intervenções frequentes. As condi-
ções de sua plena eficácia só se encontram reunidas no hospital; pelo menos assim
se acreditou com convicção até os nossos dias. O hospital não é apenas um lugar de
grande saber médico, de observação e de ensino; é também o lugar de concentração
de serviços auxiliares (laboratórios farmacêuticos), aparelhos aperfeiçoados, dispen-
diosos e raros, que dão um monopólio local. Logo que uma doença parece grave,
o médico tende a mandar o doente para o hospital. O progresso da cirurgia trouxe
processos de reanimação, de atenuação ou supressão do sofrimento e da sensibili-
dade. Esses processos não já são aplicados apenas antes, durante e depois de uma
cirurgia; estendam-se a todas as agonias, com a finalidade de aliviar o sofrimento.
Por exemplo, o moribundo era hidratado e alimentado por perfusões intravenosas, o
que lhe poupava o sofrimento da sede. Um tubo ligava a uma bomba, que aspirava
as mucosidades e não o deixava sufocar. Os médicos e enfermeiras administravam
calmantes, cujos efeitos podiam controlar, variando também as doses. Tudo isso é
hoje bem conhecido e explica a imagem deplorável, que se passou a ser clássica, do
moribundo eriçado de tubos [...] O hospital já não é, pois, apenas um lugar onde se
cura e onde se morre por causa de um fracasso terapêutico; é e lugar da morte nor-
mal, prevista e aceita pelo pessoal médico.7.

Percebe-se, ao longo do filme, que a preocupação é simular um suicídio, uma vez


que a prática do suicídio assistido é proibida na Dinamarca. Tem-se então uma questão de
valores, pois o Estado regulamenta a vida de seus cidadãos, mas não respeita suas decisões;
nesse caso, provavelmente seria entre a paciente e seu médico. Não se importa como viva,
mas o importante é o viver. Ao pensar na questão do suicídio, pode-se inferir que:
O suicídio se refere a qualquer comportamento que busca e encontra solução para
um problema existencial no atentado contra a vida do sujeito. É um ato que envolve
toda a personalidade, e é mais do que provável que ninguém jamais tenha se matado
6 PERNIOLA. 2000, p. 168-169
7 ARIÈS, Phillipe. O homem diante da morte. São Paulo: Editora Unesp, 2013. p. 787-788

Sumário 280
por raciocínio abstrato. A psiquiatria atrai o suicídio para hiperemotividade - um
estado de ansiedade e insegurança que faz as pessoas reagirem exageradamente às
demandas do meio ambiente - ou para a ciclotimia. Neste último caso, distingue-se
a melancolia, ou ansiedade permanente, e a constitucional deprimida, marcada por
uma profunda tristeza. 8

No entanto, no decorrer do filme, Esther não apresenta sinais de melancolia ou


tristeza. As pessoas que lhe cercam estão muito mais tristes com a decisão da protagonista,
por vezes tentam fazer com que ela mude de ideia. No entanto, já está decidido, pois o ca-
minho é certeiro à morte dolorosa e cheia de sofrimentos. Entretanto,
Da mesma forma, é raro que pessoas com depressão suicida se matem durante uma
crise séria; em vez disso, eles o fazem depois, quando recuperam suas capacidades
de ação e análise. O suicídio não é o último recurso da mente deprimida, escreve
Andrew Salomon. O suicídio é a revolta da mente contra si mesma, uma dupla
desilusão que está além do alcance da mente deprimida. Assim, a mente suicida
pode ser um sintoma de depressão; também é um fator atenuante. O pensamento de
suicídio permite cruzar a fase depressiva. [...] Todos aqueles que se julgam respon-
sáveis pelos
​​ outros - autoridades religiosas, morais, políticas - veem frequentemente
nestes discursos um perigoso incitamento ao suicídio. Eles têm medo de perturbar o
equilíbrio social eminar a autoconfiança da sociedade, que se sente culpada, ou pelo
menos acusada.9

Durante a trama, infere-se que a decisão de Esther foi passada para seus filhos e
sua amiga de infância, Lisbeth. Logo se percebe que a questão da protagonista, em querer
tirar sua própria vida, já havia sido discutida entre os familiares mais chegados, porém antes
de acontecer o fato, ela queria celebrar com uma suposta festa de Natal.
O enredo opera como uma forma de mosaico, em que as peças vão se encaixan-
do a partir da fala dos personagens. Assim, temas como a precipitação da protagonista, o
medo de perder a mãe, a não concordância com sua atitude, a continuação do pó- morte da
matriarca são exemplos do que acontece durante o filme.
Outra característica apresentada no filme é o conflito de gerações em uma con-
versa na sala de estar, onde Poul pergunta a seu neto Jonathan sobre a decisão de sua avó.
Heidi, mãe do adolescente, afirma que ele não estaria preparado para falar sobre o assunto,
pois seria muito difícil para ele. O garoto rebate dizendo que concorda com a avó. Numa
mudança de ângulo, aparece Esther entrando na sala e afirma que realmente o menino a
entende. Há um silêncio, todos esperam o que a protagonista irá dizer.
8 Le suicide designe tout comportement qui cherche et trouve la solution d’un problème existentiel dans le fait d’attenter
à la vie du sujet. C’est un acte qui met en jeu l’ensemble de la personalité, et il est pus que probable que personne ne s’est
jamais tué par un raisonnement abstrait. La psychiatrie attiribue le suicide soit à l’hyperémotivité – état d’inquiétude et
d’insécurité qui fait réagir de façon excessive aux sollicitations du milieu - , soit à la cyclothymie. Dans ce dernier cas, elle
distingue les mélancoliques, ou anxieux permanents, et les déprimés constitutionnels, marqués par une profonde tristesse,
(MINOIS, 2003, p. 417- 418).
9 De même, il est rare que les dépressifs suicidaires se tuent pendant une grave crise ; ils le font plutôt après, lorsq’ils
retrouvent leurs capacités d’action et d’analyse. Le suicide n’est pas le dernier recours de l’esprit dépressif, écrir Andrew
Salomon. Le suicide est la révolté de l’esprit contre lui-même, une double désilusion qui est hors de portée de l’esprit
dépressif. Ainsi, l’esprit suicidaire peut être un symptôme de dépression ; c’est aussi un facteur d’atténuation. La pensée
du suicide permet de travesser la phase dépressive. [...] Tous ceux qui se croient responsables des autres – autorités reli-
gieuses, morales, politiques – voient souvent dans ces discours de dangereuses incitations au suicide. Ils ont peur qu’ils ne
perturbent l’equilibre social et ne sapent la confiance en ellemême de la société, qui se sent coupable, ou du moins mise en
accusation (MINOIS, 2003, p. 422- 423).

Sumário 281
O foco muda, pois agora os que estão no interior da casa esperam a chegada da
filha mais nova, Sanne, acompanhada de seu namorado Dennis - este último, persona non
grata por Heidi. A câmera muda para o exterior da casa e são retratadas as ações do casal
dentro do carro. Ambos chegam na casa de Esther.
Com a chegada do casal, o plano é o diálogo entre Heidi e Sanne, no qual a irmã
mais velha não aprova o relacionamento e muito menos que ela tenha trazido o namorado
para uma festa íntima. Heidi tenta a todo tempo manipular sua irmã, chegando até mesmo
a afirmar que o relacionamento dela é tóxico para Esther. Sanne rebate, afirmando que é
graças a Dennis que ela tem condições de suportar o que está para acontecer. A preocupação
de Heidi é criar um clima perfeito, alegre e harmonioso durante o último final de semana
de sua mãe.
A cena agora é na sala onde Esther pede uma dose dupla de conhaque, mas deixa
cair a bebida no chão quebrando a taça. A mesma sorri e fala que, mesmo que quebrassem
todos os copos da casa, ela se negaria a tomar a bebida com canudo; em seguida, a perso-
nagem ri. Dennis também acha graça e a acompanha, os demais ficam com um semblante
sério diante da gravidade do problema; porém Esther não se importa, uma vez que não há
razões para se preocupar.
Na segunda metade do século XX, a médica e pesquisadora suíça Elisabeth Kü-
bler-Ross, após ouvir vários doentes em estágios terminais, elaborou uma teoria sobre a
questão da doença e dos pacientes. Ao saber da enfermidade, o doente passa por cinco está-
gios, lembrando que isso não é uma regra, pois alguns não passam por isso de forma linear, e
outros pulam alguns estágios. Para a pesquisadora os estágios são: I – negação e isolamento;
II – raiva; III – barganha; IV – depressão e o V – aceitação.
O que leva a entender no filme Coração Mudo é que Esther já passou por essas
fases, no entanto, suas filhas ainda não aceitaram o fato de a mãe estar diante da morte. Em
vários trechos da obra, é possível ver diálogos entre as filhas sobre esperar mais um pouco,
a raiva diante da doença e a decisão da mãe, a negação. Sanne, em algumas cenas, se isola
para refletir sobre o fato de que o fim está próximo, mesmo tendo o consentimento da esco-
lha da mãe. Em outras cenas, as filhas chegam até a dizer que, no momento em que a mãe
for tomar os remédios, elas chamarão uma ambulância para que a levem com a tentativa de
impedir o desejo de Esther.
Essa não aceitação de Sanne e também de Heidi, em alguns momentos, pode
ser observada por dois pontos de vista: não querer perder a existência física da mãe ou por
vergonha diante da sociedade, uma vez que a prática do suicídio ainda é um tabu em muitas
culturas e gera certo constrangimento para os “deixados”.
No entanto, volta-se a reflexão: até que ponto o Estado e a família podem ter
direitos sobre a vida dos outros? Onde permanece o sentido e o desejo individual de cada su-
jeito? Como morrer de forma digna e sem sofrimentos, respeitando o desejo do moribundo
de não querer morrer entubado em um hospital, mas em casa diante daqueles que o amam?
Esses questionamentos são levantados de forma implícita durante a narrativa fílmica.
Barbagli10 corrobora com a ideia do aumento de suicídios entre os séculos XVII
ao XIX, que não estavam condicionados à uma patologia social, mas eram “uma conse-
10 BARBAGLI, Marzio. O suicídio no Ocidente e no Oriente. Petrópolis: Vozes, 2019.

Sumário 282
quência do aumento da autonomia individual, da afirmação de um novo direito, o direito de
“vida ou morte sobre si mesmo”’11
Coração Mudo é um filme modesto, em grande parte confinado a um único local,
onde uma família se reúne para enfrentar um evento trágico. O diretor Bille August criou
uma obra quase silenciosa que é inegavelmente sobre algo tão desanimador quanto a eu-
tanásia ativa, mas ainda parece uma afirmação da vida. Porque a crise é vista nos olhos,
vivida e culmina em novas forças espirituais. E porque os personagens são desenhados com
sua própria força silenciosa e nada sentimental, enquanto eles, mais ou menos esclarecidos,
enfrentam o inevitável. A transmutação da pre-sença à memória dos vivos.
Outro fator pertinente à obra condiz com a questão da afetividade e do apego, a
qual se embasa em Bowlby12, cuja teoria foi formulada a partir do término da Segunda Guer-
ra Mundial, quando muitas crianças foram separadas de seus pais. Por meio de observações
e também dos estudos darwinistas, Bowlby conclui que o apego se dá desde o ventre da mãe,
evocando raízes instintivas. Em um simples conceito, o apego é constituído por uma forma
de sobrevivência, a qual consiste de laços de união que vão surgindo diante da necessidade
de segurança e proteção oriunda do indivíduo. Como exemplo, temos o feto que está ligado
ao cordão umbilical e necessita da saúde da mãe para vir à vida, mas quando nasce, ele já
não precisa estar literalmente preso ao corpo da mãe.
Apego é um tipo de vínculo no qual o senso de segurança de alguém está estreita-
mente ligado à figura de apego. No relacionamento com a figura de apego, a segu-
rança e o conforto experimentados na sua presença permitem que seja usado como
uma “base segura”, a partir da qual poderá se explorar o resto do mundo13.

Em outras palavras, trazendo para o contexto do filme, qualquer elemento ou


situação que possa ameaçar um laço afetivo causa uma ação de querer preservá-lo. Isso se
consegue constatar nos diálogos entre Sanne e Dennis, e em muitas partes do filme, no qual
a filha mais nova diz ao seu namorado que irá dar um jeito de sabotar a vontade da mãe.
Com isso, pode-se inferir que, quanto maior for a ameaça da perda, mais intensas
são as vontades para manter e preservar o laço afetivo. Uma vez que a ameaça da perda cau-
sa certos graus de ansiedade e isso é perceptível na personagem Sanne, que constantemente
faz uso de psicotrópicos. Vale ressaltar que Sanne já havia tentado o suicídio, mas agora não
consegue administrar o que a sua mãe irá fazer. A personagem, além de estar em um estado
melancólico, não está preparada para o luto que virá a enfrentar. Freud14 diferencia essas
duas nomenclaturas, pois, segundo o autor,
O luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração
que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal, etc. Sob as mesmas influên-

11 Idem, 2019, p. 108


12 BOWLBY, John. Apego e perda: Perda, tristeza e depressão. Tradução: Valtensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes,
1998, v3.
13 RAMIRES, Vera Regina Röhnelt; SCHNEIDER, Michele Scheffel. Revisitando alguns conceitos da teoria do apego:
comportamento versus representação.. Psic.: Teor. e Pesq.,  Brasília ,  v. 26, n. 1, p. 25-33,  Mar.  2010. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722010000100004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 
21  de agosto  2020
14 FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

Sumário 283
cias, em muitas pessoas se observa em lugar do luto uma melancolia, o que nos leva
a suspeitar nelas uma disposição patológica15.

Com a relação ao apego, cada personagem reage de uma forma: a filha mais ve-
lha, Heidi, que deseja ter o controle de tudo, passa a imagem de uma pessoa centrada, mas
questiona a decisão da mãe mesmo aceitando a decisão da matriarca. Heidi tenta manter
o equilíbrio e o controle da situação ao mesmo tempo. Sanne, por ter problemas de ordem
emocional e psicológica, quer interromper o plano que já fora discutido pela família, pois
ela ainda tem esperanças de que a mãe possa continuar saudável por um bom tempo. Sanne
teme perder a mãe não apenas por conta da doença, mas porque é na matriarca que ela en-
contra refúgio nas suas crises existenciais. Assim,
Quanto mais adequada for a apreensão fenomenal do não-mais-estar-presente do
finado, mais clara será a visão de que justamente esse ser-com o morto não faz a
experiência do ter-chegado-ao-fim do finado. A morte se desentranha como perda
e, mais do que isso, como aquela perda experimentada pelos que ficam. Ao sofrer
a perda, não se tem acesso à perda ontológica como tal, “sofrida” por quem morre.
Em sentido genuíno, não fazemos a experiência da morte dos outros. No máximo,
estamos apenas “junto”16.

E é justamente o que acontece no filme, onde os convidados estão lá para pre-


senciar a morte da matriarca e o grande evento será a suposta festa natalina. Após o jantar,
todos irão regressar às suas respectivas casas, enquanto Poul administra os medicamentos
que se tornam veneno em Esther.
Mesmo que fosse possível e viável esclarecer “psicologicamente” a morte dos outros
mediante o ser e estar junto, não se poderia, absolutamente, apreender esse modo de
ser como um chegar-ao-fim. A questão que se coloca é sobre o sentido ontológico da
morte de quem morre enquanto uma possibilidade ontológica de seu ser, e não sobre
o modo da co-pre-sença e do ainda estar-pre-sente do finado junto aos que ficam. A
indicação para se tornar a experiência da morte dos outros como tema para a análise
do fim e da totalidade da pre-sença não é capaz de propiciar, nem ôntica e nem on-
tologicamente, aquilo que pretende ter condições de fornecer 17.

Outro ponto a ser destacado é que, em todo o filme, se consegue perceber Sanne
passando por fases instáveis sobre a aceitação da morte de mãe. O interessante é que no
filme, ao invés do doente, são alguns dos presentes que querem negar. Isso faz lembrar a fa-
mosa teoria de Elisabeth Klübe-Ross sobre os estágios de um doente com uma enfermidade
crônica.
A pesquisa desenvolvida por Elisabeth Kübler-Ross com seus pacientes propor-
cionou uma melhor compreensão sobre como as pessoas lidam com suas perdas. Ela classi-
ficou em cinco estágios, tais como:
1. Negação: reação imediata que os pacientes têm quando se cria uma resis-
tência para aceitar que se perdeu um ente. É usado como um mecanismo de
defesa para se proteger da dor, não encarar a realidade, acreditando que a pes-
15 Ibidem, 2011, p. 36
16 HEIDEGGER, 2005 p. 19.
17 Ibidem, 2005 p. 19

Sumário 284
soa não morreu. Acontece com os pacientes que recebem a notícia de forma
inesperada, o que faz ocorrer a negação.
2. Raiva: caracterizado por uma grande revolta de admitir e acreditar que há um
culpado por trás do fato, um anseio, uma busca por um novo objetivo.
3. Barganha: geralmente, ocorre numa fase em que se está inconformado(a) com
a perda e busca-se refúgio em divindades ou em si mesmo através de pactos
simbólicos.
4. Depressão: quando a pessoa não consegue mais ver propósito e/ou sentido
em nada, como se o mundo girasse em torno do ente perdido.
5. Aceitação: quando se sente a necessidade de um recomeço, ou seja, algo que
acontece gradualmente com o passar do tempo; quando o fato é percebido
como algo já passado, entende-se que continuar será o melhor caminho18.

O outro ponto de conflito se dá quando Heidi descobre que Sanne quer sabotar
a morte de sua mãe. Sanne ainda está passando pelo que Klüber-Ross chama de segundo
estágio (a raiva). Isso acontece porque, de acordo com a referida pesquisadora, muitas veze o
primeiro estágio (a negação) não foi superada por completo. Vale ressaltar que Klüber-Ross
parte de uma crítica a partir do paciente e não dos que estão à sua volta, mas nesse caso
em específico, isso se aplica nas ações de Sanne, que se coloca no lugar de sua mãe. Diante
disso, Klüber-Ross afirma que:
O problema aqui é que poucos se colocam no lugar do paciente e perguntam de onde
pode vir esta raiva. Talvez ficássemos também com raiva se fossem interrompidas
tão prematuramente as atividades de nossa vida; se todas as construções que come-
çamos tivessem de ficar inacabadas, esperando que outros a terminassem; se tivés-
semos economizado um dinheiro suado para desfrutar mais tarde de alguns anos de
descanso e prazer, viajando ou nos dedicando a passatempos prediletos, e, ao final,
nos deparássemos com o fato de que “isso não é para mim”. Que faríamos de nossa
raiva, senão extravasá-la naqueles que desfrutarão de tudo isto? 19.

Outro ponto que chega no clímax da narrativa é a hora em que Heidi vê, por uma
fresta, seu pai acariciando Lisbeth, o que dá a entender que os dois têm um caso amoroso.
Heidi compreende que a decisão de seu pai é também de se livrar de Esther para continuar
o romance com a melhor amiga de infância. Nesse episódio, abalam-se as estruturas emo-
cionais de Heidi.
Heidi, desde o início, teve Sanne como descontrolada, ou seja, temeu que sua
irmã pudesse fazer algo que prejudicasse na morte de Esther, uma vez que Sanne já havia
tentado suicídio e toma remédios para manter o controle. Há aí uma inversão de valores,
pois Heidi, que era tida como uma pessoa centrada e serena, desaba após descobrir o supos-
to romance entre seu pai e Lisbeth, amiga de infância de Esther. Muito pensativa e confusa,
Heidi se alia a Sanne contra o próprio pai, após tirar a conclusão de que esta é uma manobra
para “se livrar de Esther”; contudo, Sanne é quem compreende Esther.
Heidi deixou de pensar com clareza quando suas emoções tomam conta de si,
sem pensar em Esther, uma vez que ela fica obcecada com a ideia de que seu pai traiu sua a
18 Kübler-Ross, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
19 KÜBLER-ROSS, 1996, p, 64.

Sumário 285
mãe e que tentara contra a sua vida. Assim Heidi se deu conta do que fez quando Esther re-
velou o motivo da relação de Poul com Lisbeth. Arrependida, Heidi já havia chamado a am-
bulância que levaria Sanne em seu último ato por sua mãe. Pode-se dizer que, no desfecho
da trama, Sanne passa pelo quinto estágio, que Elisabeth Klüber-Ross chama de aceitação,
uma vez que a personagem acaba entendendo os motivos da sua mãe.

Considerações Finais

Em Coração Mudo, percebe-se o fato de as pessoas lidarem com a morte enquan-


to tabu, considerando o direito de morrer de acordo com os princípios individuais de cada
sujeito. A escolha de Esther não foi apenas individual, mas teve que passar pelo crivo da
família. Subentende-se que foram meses de discussões até que a aceitação fosse aprovada.
Sendo Poul um médico e Esther decidida a cometer suicídio, a trama apresenta
longos discursos que envolvem a bioética e o direito de viver e de morrer. Mesmo com a
aprovação da decisão da matriarca, ainda retrata no filme uma série de problemas familiares
que estão alheios ao tema principal, o suicídio assistido. A questão levantada é como ficarão
os deixados após a morte de Esther? Diante disso, Heidegger discute que:
Se, no entanto, o “findar”, enquanto morrer, constitui a totalidade da pre-sença, o
próprio ser da totalidade deve ser concebido como fenômeno existencial de cada pre-
sença singular. No “findar” e no ser-todo da pre-sença assim constituído, não se dá
nenhuma possibilidade de substituição. O recurso proposto, que toma a morte dos
outros como tema sucedâneo para a análise da totalidade, não reconhece esse fato
existencial. Assim, a tentativa de tornar a pre-sença mais uma vez. Entretanto, o re-
sultado dessas reflexões não é negativo. Pois estas se realizaram, orientando-se, em-
bora seu modo grosseiro, pelos fenômenos. A morte se mostrou como um fenômeno
existencial. Isso obriga a invenção a se conduzir de maneira puramente existencial
por cada pre-sença singular20.

Uma das principais reflexões do filme é a de que “nunca se esqueça de que você
vai morrer”. Na trama, os sentimentos de tristeza, alegria, raiva, frustração e medo tocam
uma ampla gama de emoções, atuando o tempo todo com certa credibilidade. É fácil se
relacionar com a situação complexa em que se encontram e por que reagem dessa maneira.
No entanto, os sentimentos são externados pelos personagens secundários, pois
em Esther o espectador nunca sabe realmente o que ela sente. Somente se sabe do seu desejo
e que ele deve ser cumprido antes que a doença evolua.
Trata-se então de uma decisão forte, que toda a família tenta respeitar, aceitar
e cumprir. Com vários graus de frustração, raiva e tristeza evocando na superfície. Afinal,
ninguém pode ou deve decidir sobre os sentimentos dos outros. A redenção é tudo e, embora
o confronto final - em comparação com o resto do ritmo do filme - seja muito rápido e desa-
jeitadamente resolvido, o drama em si é doloroso.
Interessante perceber que, em várias cenas, é possível ver relógios pela casa, um
sinal de que o tempo está correndo O tempo está se esgotando para Esther, e sua família está
em uma área moral cinzenta fora da lei e da ordem do país, onde a eutanásia ativa está em

20 HEIDEGGER, 2005, p.20-21

Sumário 286
discussão, não só como o tema geral do filme, mas também como uma batalha furiosa nas
duas filhas que amam sua mãe.
A possibilidade de escolher o ilegal e escapar impune, fazendo com que a morte
de Esther pareça suicídio, deixa a família com questões existenciais abismais como “por que
agora?” e “se ela ainda tiver seis meses bons?”. Mas a mão esquerda de Esther já desistiu,
qualquer um pode ver, e Poul estima que seu declínio logo se acelerará.
Em particular, a dinâmica doentia das irmãs se desenrola um pouco previsivel-
mente. Heidi cegamente mantém sua irmãzinha autodestrutiva Sanne em um papel de víti-
ma impotente - enquanto ela mesma diz à sua mãe que Sanne é a única responsável por seus
problemas, numa espécie de jogo duplo.
Há um grande enfoque no quotidiano, nas carícias, nos olhares, nos gestos, em
todas as banalidades e códigos que nos rodeiam, no filme Coração Mudo. E acontece que é
em todos os pequenos detalhes e hábitos, nos sinais camuflados e nas alusões distorcidas,
que comunicamos as coisas mais importantes da vida.
Coração Mudo lentamente rasteja sob a pele do espectador, que é sugado para um
ambiente bem escolhido, mais um estado do que uma localidade; uma bolha de luto isolada
do mundo exterior e não menos da moralidade prevalecente.

Referências
ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
________. O homem diante da morte. São Paulo: Editora Unesp, 2013
BARBAGLI, Marzio. O suicidio no Ocidente e no Oriente. Petrópolis: Vozes, 2019.
BOWLBY, John. Apego e perda: Perda, tristeza e depressão. Tradução: Valtensir Dutra. São Paulo:
Martins Fontes, 1998, v3.
< h t t p : / / w w w. s c i e l o . b r / s c i e l o . p h p ? s c r i p t = s c i _ a r t t e x t & p i -
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EPICURO. Carta sobre a felicidade. São Paulo. Editora UNESP, 2002.
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo parte II. Petrópolis: Vozes Editora. 13ªed. 2005.
KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
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MINOIS, Georges. Histoire du mal de vivre. França : Éditions de La Martinière, 2003.
PERNIOLA, Mario. Pensando o ritual: Sexualidade, morte, mundo. São Paulo: Studio Nobel, 2000.
Poemas de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1994.  - 168a. Disponível em < http://arquivopessoa.net/
textos/1809> acesso em 21/08/2020.
RAMIRES, Vera Regina Röhnelt; SCHNEIDER, Michele Scheffel Revisitando alguns conceitos da
teoria do apego: comportamento versus representação.. Psic.: Teor. e Pesq.,  Brasília ,  v. 26, n. 1, p.
25-33,  Mar.  2010. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000100004
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo parte II. Petrópolis: Vozes Editora. 13ªed. 2005.

Sumário 287
O N oroeste A mazônico : notas de alguns
meses que passei entre tribos canibais
de T homas W hiffen : uma análise do
C apítulo IX referente à alimentação
dos B ora e U itoto

Quelmo da Silva Lins


Raylan Felipe Macedo Setúbal

L
ançado em 1915, o relato de viagem do inglês Thomas Whiffen – que
contou com auxílio do estadunidense John Brown para entender a língua
dos nativos – foi traduzido para o português em 2019 por Hélio Rocha, es-
pecialista em tradução e em relatos de viajantes nas Amazônias, sendo intitulado O Noroeste
Amazônico: notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. Esse lapso temporal culminou
sobre essa obra quase desconhecida para os leitores de língua portuguesa, um grande leque
de possibilidades de análises nas culturas desses povos originários da América Latina.

Whiffen não tinha propriamente a intenção de um cientista, percorreu a Europa


favorecendo a construção simbólica do que era esse lugar amazônico nas terras próximas
aos rios Içá e Apaporis entre os anos de 1908 e 1909, e “[...] pensou em tentar concluir a
viagem inacabada de Wallace até o rio Uaupés”1. Wallace, dentre outras obras, escreveu,
Viagens pelo Amazonas e Rio Negro2, relato que serviu de inspiração para a viagem de Whiffen
na América Latina.
Conforme já afirmado neste texto, o recorte no qual nos debruçamos nesta breve
análise é o capítulo IX, da obra que diz respeito à alimentação dos Bora e Uitoto. O texto

1 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, 2019. p. 56.
2 WALLACE, Alfred Russel. Travels on the Amazon and Rio Negro. Ward, Lock, 1889.

Sumário 288
retrata a busca por alimentos e a afirmação de Whiffen em que os indígenas são onívoros.
A anta e outros animais usados como alimento, a caça aos macacos, a pluralidade do provi-
mento indígena (aves, rãs, larvas, peixes, mandioca), a falta de sal e os temperos utilizados
e o modo como as refeições eram preparadas e em que horário aconteciam. É de suma im-
portância saber que essa linguagem tradutória feita pelo viajante repleta de simbologias, vai
além da alimentação em si.
Ao examinar a pesquisa de campo de Whiffen, vemos seu contato com várias tri-
bos amazônicas, como os Muinane, Ocaina, Resígaro, Nonoya, Carijona, Andoque, Meni-
mehe, Maku, Kanamari entre outras. No entanto, seu olhar voltou-se especialmente para os
povos Bora e Uitoto, habitantes do interflúvio Putumayo-Caquetá. Por consequência, o au-
tor realizou um levantamento amplo desses locais através de outras ciências e “[...] anotou
tudo o que lhe pareceu interessante, seja no campo da Geografia, da Ictiologia, Ornitologia
e principalmente das culturas desses dois grupos indígenas”.3
Dentre tantas observações a respeito dos grupos indígenas Bora e Uitoto, é possí-
vel que haja indícios de preconceitos do viajante em relação aos povos citados em sua narra-
tiva, mas isso só é percebido quando se examina o relato por um viés Pós-colonial. Depois
de leituras e releituras do capítulo IX, observamos que o olhar do autor se encaixa mais para
uma observação relativista cultural do que para atitudes colonizadoras de um estrangeiro
europeu nas amazônias.
Segundo o pesquisador Celso Castro4, durante muitos séculos, os povos “não oci-
dentais”, “selvagens” ou “tradicionais” os quais eram chamados pelos “centros civilizados”
de “museus vivos” – eram postos em uma escala de inferioridade – para que dali obtivesse
uma base de prova de como poderia ter ocorrido à evolução humana durante o passar dos
séculos.
Com frequência, os estudiosos de literaturas produzidas sobre os indígenas nas
amazônias comentam-se acerca dos povos chamados civilizados e os selvagens, isto é, os
povos do centro da Europa como os civilizados, e os nativos de suas colônias como os sel-
vagens. Acreditamos que Whiffen deixa essa impressão de indiferença em relação a esses
povos, em algumas partes da narrativa, pelo fato de conviver em um espaço cultural domi-
nado pelo eurocentrismo. Desse modo, logo no prefácio, o autor afirma que os “[...] grupos
indígenas nômades são, de fato, canibais em certas ocasiões e isso nos fornece evidências de
um estado de selvageria que dificilmente pode ser encontrado em outro lugar do mundo do
século XX”5. Assim, temos refletido sobre os enunciados que compõem o capítulo IX, e vi-
mos que sua preocupação estava centrada, a maioria das vezes, em relatar tudo o que podia
ser examinado, relacionado à alimentação dos Bora e os Uitoto.
Falando-se ainda na mesma linha de pensamento eurocêntrico identificado algu-
mas vezes no relato do escritor, para Paulo Meneses6, o etnocentrismo se justifica por razões
preconceituosas. É quando uma determinada cultura torna-se padrão para outra cultura,

3 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, 2019. p.57.
4 CASTRO, Celso. Evolucionismo cultural: Textos de Morgam, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005.
5 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, 2019. p.9
6 MENESES, Paulo. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Revista symposium, UNICAMP. 1999

Sumário 289
sem ao menos fazer uma possível análise de que existam percepções de comunidades com
culturas diferentes às suas. Descarta essa diferença entre determinados povos e apoiam seus
argumentos na superioridade de seus costumes, hábitos e em relação a outros povos. Portan-
to, seus pensamentos de “cultura modelo” vão além de uma simples cosmovisão de culturas
alheias, eles negam a cultura do Outro.
Quando Meneses discorre sobre o Relativismo Cultural, ele esclarece que esse
tipo de percepção pertence à esfera da ciência, e, por meio da compreensão do Outro que
se entende que todas as culturas são importantes. Os conhecimentos coletados e percebidos
nessa percepção de diversidade cultural fazem alavancar o estudo científico quando aplica-
dos na análise do ser humano, é o que Meneses chama de um “objeto pensável”. E é nessa
abordagem que indicamos que a alegação do pensamento de Whiffen em algumas partes da
narrativa está ligada diretamente ao relativismo cultural.
Para entendermos como funciona uma determinada cultura, especialmente as
culturas das tribos citadas no relato de Whiffen, temos que considerar que cada registro de
um etnógrafo é uma tradução cultural. Para situar este conceito, entendemos que a con-
cepção deste termo surge dos questionamentos e respostas feitos por Peter Burke e Ronnie
Po-chia Hsia7, acerca do que eles abordam em Tradução Cultural nos primórdios da Europa
Moderna. Em síntese, pode-se entender que:
A tradução cultural pode ser aqui entendida no contexto amplo como o processo
interpretativo que visa o entendimento de objetos estrangeiros no sentido da tra-
dução strictu sensu das obras escritas. Esta é uma realidade de forma consciente ou
inconsciente por todo estudioso das ciências humanas.8

Além disso, esse tipo de registro etnográfico varia conforme o conhecimento em-
pírico ou científico do escritor. Sabe-se, por vez que, quando Rocha fez a tradução da obra
The North-West Amazons: notes of some months spent among cannibal tribes para o português
falado no Brasil, teve que mudar algumas formas de escrita do registro que coletou para que
a tradução ficasse mais condizente com a realidade amazônica e, que também, ficasse mais
fluente e compreensível no português. Então Rocha explica que “[...] para que a tradução
ficasse fluente, algumas modificações sintáticas, também foram necessárias [...]”.9
É importante abordar o tipo de tradução utilizada, pois, é através dela que pode-
mos entender o que se escreve, quem traduz, como traduz, e para quem se traduz. Andréa
Costa10 cita a importância dos Estudos da Tradução vinculada aos Estudos Culturais para
que se chegue a uma Tradução Cultural. Costa entende que:
Os Estudos da Tradução, quando embasados na perspectiva dos Estudos Culturais,
atentam para a relação entre linguagem e pensamento, distanciando-se dos modelos
tradicionais e prescritivos preocupados com os elementos estruturais do texto. À luz
dessa nova perspectiva, os estudos tradutológicos consideram a história e o contexto

7 BURKE, Peter, HSIA,Ronnie Po-chia (orgs.). A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna [Trad. Roger
Maioli dos Santos] São Paulo: UNESP, 2009.
8 REGO, Luiz Felipe Urbieta. Peter Burke e seu conceito de tradução cultural. Revista Literis, n.8, p. 1-6, set., 2011., p.
2, grifo nosso
9 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, 2019. p. 59.
10 COSTA, Andréa. John Gledson Reescreve Milton Hatoum: A Teoria e Experiência da Tradução Cultural. São José
do Rio Preto – UNESP, São Paulo, 2016.

Sumário 290
sociocultural em suas investigações, o que implica em conferir atenção especial aos
aspectos extratextuais11.

A proposta de Costa relacionada à forma de se fazer uma tradução; é que seja


necessário que se considerem questões culturais de alteridade, para que não se cometam
erros em rotular povos como os europeus sempre fizeram. O cuidado ao descrever questões
linguísticas de natureza indígena em um relato – por intermédio de uma tradução – deve-se
atentar aos aspectos culturais de outros povos que vivem em comunidades totalmente dis-
tantes e diferentes dos viajantes protagonistas dos relatos de viagem.
Desse modo, durante o percurso de Whiffen nas regiões do noroeste amazônico,
várias considerações foram apresentadas ao leitor a respeito dos costumes e hábitos dos
povos indígenas daquela região, a fim de exemplificar a cultura de grupos que eram desco-
nhecidos de outras sociedades.
Whiffen percorre um caminho que perpassa o espaço que os indígenas habita-
vam, dos espécimes de plantas e animais, dos rios, dos solos, da moradia, do vestuário, dos
afazeres e além de várias especificações da cultura dos indígenas expressadas em seu relato
e outras tantas informações que o autor e viajante julgou importantes. A seguir, a explicação
da importância da Diversidade Cultural utilizada nos relatos de viagem fomenta reflexões
direcionadas a este capítulo IX analisado neste artigo.

Diversidade cultural e alimentação indígena

Com o propósito de apresentar uma investigação da parte da culinária indígena,


é preciso entender que cada cultura possui um ponto de vista em relação à outra. Nessa
perspectiva, esse recorte expõe sobre a alimentação e as formas simbólicas com as quais,
tanto os indígenas originários da terra, quanto o europeu viajante em um espaço alheio às
suas convicções, encaravam – segundo relato de Whiffen – os tipos de alimentos consumidos
pelos Bora e o Uitoto.
Os estudos que envolvem a alimentação e suas competências, nem sempre foram
conceituados de maneira justa, levando em consideração que todos os seres vivos precisam
se alimentar e que a escolha sobre como fazer isso é intrínseca de cada povo. Entendemos,
portanto, que na cultura indígena não é diferente. Todos precisam se alimentar, mas nem
todos se alimentam de maneira igual, e essas diferenças nas escolhas revelam também uma
das diretrizes da formação da identidade dos grupos.
Dessa forma “[...] a alimentação configura-se como um objeto legítimo de análise
social e de compreensão das premissas implícitas do viver em sociedade”12. Os estudos que
envolvem a alimentação e seus significados foram menosprezados durante muito tempo, por
serem considerados irrelevantes, pois, segundo a mencionada autora:
A alimentação foi, por muito tempo, uma temática social negligenciada. Tal condi-
ção pode ser explicada por seu vínculo a uma atividade doméstica, mundana e sem
glamour, de domínio tradicional das mulheres, cuja produção remete ao meio rural,

11 COSTA, Andréa. John Gledson Reescreve Milton Hatoum: A Teoria e Experiência da Tradução Cultural. São José
do Rio Preto – UNESP, São Paulo, 2016. p. 20.
12 AZEVEDO, Elaine de. Alimentação, sociedade e cultura: temas contemporâneos. Sociologias 2017. p. 227.

Sumário 291
distanciado do apelo intelectual de teóricos masculinos atuando no meio urbano que
dominaram historicamente as Ciências Sociais, especialmente no seu início13.

A narrativa sobre a alimentação dos Bora e Uitoto pode nos revelar mais do que
a taxonomização dos alimentos. Para realizar essa abordagem sobre as práticas alimentares
dos grupos indígenas citados, utilizaremos a teoria do Perspectivismo Ameríndio, conceito
elaborado e trabalhado por Eduardo Viveiros de Castro14. Essa linha de raciocínio traz à
tona a visão sobre a formação do conhecimento indígena e a forma como esse grupo pro-
duziu e desenvolveu seus conhecimentos. O Perspectivismo ameríndio de Castro questiona
algumas convicções etnocêntricas e revela um rico arcabouço de ideias, juízos e princípios
que regem as condutas dos indígenas, as formas como esses grupos se enxergam no mundo e
como veem as outras criaturas que habitam os locais amazônicos, sejam animais ou fazendo
parte do espectro espiritual. No excerto abaixo, Viveiros de Castro afirma que:
Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase
sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um mero en-
velope (uma “roupa”) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível
apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transpecíficos, como os xa-
mãs. Essa forma interna é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetivida-
de formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em
um esquema corporal humano oculto sob a máscara animal15.

Os indígenas, segundo o conceito previamente mencionado, acreditam que tanto


os animais quanto os espíritos possuem certa “humanidade”, e que, ao contrário de algumas
teorias ocidentais, esses animais foram perdendo suas características humanas, e isso tem
tudo a ver com o que se entende sobre a alimentação dos indígenas, pois, tudo que eles co-
mem tem que ter um equilíbrio social para que não se perca a dimensão mística de vivências
entre eles e os animais. Então, podemos entender que, “Em primeiro lugar, pensar em ali-
mentação indígena significa reportar-se, antes de tudo, à imensa diversidade que caracteriza
as sociedades indígenas [...]”16.
Viveiros de Castro17 também promove uma dúvida da escala valorativa na qual os
indígenas geralmente são fixados como uma sociedade primitiva. Podemos observar que a
perspectiva humana, assim como a dos animais e a dos espíritos têm sua própria concepção
de cosmo, visto que nesta explanação Viveiros de Castro sintetiza essa ideia:
Tipicamente, os humanos, em condições normais, vêem os humanos como humanos,
os animais como animais e os espíritos (se os vêem) como espíritos; já os animais
(predadores) e os espíritos vêem os humanos como animais (de presa), ao passo que
os animais (de presa) vêem os humanos como espíritos ou como animais (predado-
res). Em troca, os animais e espíritos se vêem como humanos: apreendem-se como
(ou se tornam) antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e ex-

13 AZEVEDO, Elaine de. Alimentação, sociedade e cultura: temas contemporâneos. Sociologias 2017. p. 278.
14 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Pronomes Cosmológicos e O Perspectivismo Ameríndio. Mana. Rio de Ja-
neiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996.
15 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Pronomes Cosmológicos e O Perspectivismo Ameríndio. Mana. Rio de Ja-
neiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996. p.117.
16 LEITE, Maurício Soares. Alimentação e nutrição indígena.ed. Fiocruz. Rio de Janeiro, 2007. p. 03.
17 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Pronomes Cosmológicos e O Perspectivismo Ameríndio. Mana. Rio de Ja-
neiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996.

Sumário 292
perimentam seus próprios hábitos e características sob a espécie da cultura — vêem
seu alimento como alimento humano (os jaguares vêem o sangue como cauim, os
mortos vêem os grilos como peixes, os urubus vêem os vermes da carne podre como
peixe assado etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.).18

Viveiros de Castro aponta uma cosmovisão indígena nos espaços que abran-
gem seu próprio local, e, por consequência, cria uma forma de como um “vê” o outro e a
si mesmo, englobando os animais, espíritos e o ser humano. No entanto, esse pensamento
não abrange todos os animais, mas somente aqueles que possuem um papel intrínseco e
importante em sua comunidade, ou seja, os grandes predadores rivais dos seres humanos e
as presas principais dos humanos. Esse pensamento nos ajuda a compreender a relação dos
indígenas com os animais e seus alimentos.
Em suma, enxergando certa “humanidade” nos animais, os indígenas entendem
que esses estão em harmonia com a natureza e que a caça faz parte de toda vida que habi-
ta as florestas. Compreendemos então, que em um momento os indígenas estão caçando e
em outro estão sendo caçados, sendo necessário o respeito com a vida natural e, em certos
casos, chega a ser indispensável uma purificação dos alimentos para que estes não levem a
alguma punição espiritual.
Em todo momento que nos deparamos com narrativas feitas por europeus refe-
rentes aos povos indígenas percebemos o não cuidado desses estrangeiros à concepção de
etnia. Portanto, para não desprezarmos determinados povos e exaltarmos outros por defini-
ções próprias, entendemos que a “[...] etnia também compreende fatores culturais, como a
nacionalidade, afiliação tribal, religião, língua e as tradições de um determinado grupo”19.
Logo, o que se entende por diversidade cultural é totalmente oposto das visões de alguns
estrangeiros. Cada população vive em local de sua origem, significando sua particularidade,
que é o caso das comunidades Bora e Uitoto.
O antropólogo estruturalista Claude Lévi–Strauss20 aborda questões importantes
a respeito do cuidado que os antropólogos, sociólogos ou qualquer outro tipo de cientista
– que venha estudar um determinado tipo de cultura – deve ter: a de não analisá-las definin-
do-as a partir de sua própria cultura.
Argumentamos a favor deste pensamento de Lévi-Strauss sobre o que é a Di-
versidade Cultural por meio de seus importantes estudos. A cautela que devemos ter sobre
categorizar outros povos. Lévi-Strauss, em seu ensaio citado acima, escreve que:
Quando procuramos caracterizar as raças biológicas mediantes propriedades psico-
lógicas particulares, afastamo-nos da verdade científica, quer a definamos de uma
maneira positiva quer de uma maneira negativa. Não devemos esquecer que Go-
bineau, a quem história fez o pai das teorias racistas, não concebia, no entanto, a
“desigualdade das raças humanas” de uma maneira quantitativa, mas sim quali-
tativa. Para ele, as grandes raças primitivas que formavam a humanidade nos seus

18 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Pronomes Cosmológicos e O Perspectivismo Ameríndio. Mana. Rio de Ja-
neiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996. p.117.
19 SANTOS, Diego Junior da Silva, p. 1. Raça versus etnia: diferenciar para melhor aplicar. Revista Dental Press J. Or-
thod, n. 15(3), 2010. p. 121.
20 LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In. Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, capítulo
I, 1976.

Sumário 293
primórdios- branca, amarela, negra – não eram só desiguais em valor absoluto, mas
também diversas nas suas aptidões particulares21.

Lévi-Strauss utiliza-se dos pensamentos racistas de Gobineau enfatiza na peculia-


ridade de cada cultura. Entende que esses desenvolvimentos culturais devam ser compreen-
didos como processos separados e relativos a si mesmo, ou seja, é um grande erro partirmos
do etnocentrismo para definirmos outros povos, outras culturas. Dizer que a maneira de
viver de uma etnia possa ser considerada “selvagem” ou “absurda” é um grande erro.
Lévi-Strauss22 crítica o Evolucionismo Social, concordando com a mesma ideia
de Castro23, no que diz respeito que precisa existir uma “evolução cultural” de uma cultura
“menor”. Em um determinado momento, Whiffen descreve sobre a situação dos alimentos
dos Bora e Uitoto, comete um equívoco ao utilizar as aspas como uma forma de “negação”
em algumas passagens. Quando relata que “[...] a mandioca, então, é o “pão da vida” do
indígena. O complemento é o ensopado, ou o picadinho apimentado, que é um caldo “subs-
tancioso” de carne”24. Ao utilizar as aspas, podemos inferir que Whiffen demonstra que ele
está avaliando aquela culinária partindo de um possível pensamento etnocentrista.
A utilização da forma linguística no contexto da narrativa constata que em certas
ocasiões o etnógrafo faz uma comparação seguindo do seu ponto de vista, quando afirma
que “[...] é bom para os indígenas o fato de serem onívoros, pois a incerteza de abastecimen-
to de alimento é algo mais certo nas matas amazônicas do que a fartura”.25
Maurício Leite26 esclarece que essa afirmação aplicada para as comunidades in-
dígenas é equivocada. Não se pode entender como uma regra geral para as populações
indígenas, pois, em outros lugares do Brasil, por exemplo, essa assertiva de Whiffen que os
indígenas podem comer de tudo é contrariada, conforme revela o excerto:
Outro engano frequente é imaginar que os povos indígenas comem tudo o que há à
sua volta. Algo como: se no meio ambiente em que vive há rios, lagos ou mar, então
comem peixe. Se houver caça de pêlo (antas, porcos-do-mato, veados, macacos etc),
então se imagina que os índios comem caça. Para a lógica dos não-índios, nada mais
natural pensar que se há “comida” disponível ela será utilizada na alimentação do
grupo. Nada mais equivocado. Se fizéssemos uma revisão das práticas alimentares
dos povos indígenas que vivem no país e as comparássemos com o que a socieda-
de não indígena considera alimento disponível em seu ambiente, iríamos encontrar
enormes divergências. No Xingu, por exemplo, as proibições atingem os animais de
pêlo27.

21 LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In. Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, capítulo
I, 1976. p.1.
22 LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In. Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, capítulo
I, 1976.
23 CASTRO, Celso. Evolucionismo cultural: Textos de Morgam, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005.
24 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, 2019. p.223
25 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, 2019. p.215
26 LEITE, Maurício Soares. Alimentação e nutrição indígena. ed. Fiocruz. Rio de Janeiro, 2007.
27 LEITE, Maurício Soares. Alimentação e nutrição indígena. ed. Fiocruz. Rio de Janeiro, 2007. p. 7.

Sumário 294
Segundo a historiografia, nota-se que apesar de algumas etnias terem alimentos
“disponíveis” na mata, isso não quer dizer que se alimentam de todas as caças disponíveis
daquele recinto. Através do relato de Whiffen, entendemos que, dependendo da caça e o
período do ano em que elas acontecem, essa alimentação, para os grupos Bora e Uitoto não
é saudável, podendo acarretar em doenças e maldições, e por isso, eram evitadas.
Há uma diversidade de animais citados na narrativa como fonte de alimentação
das etnias Bora e Uitoto, como exemplo: as pacas e cotias, as capivaras, os macacos, os ta-
manduás e os bichos-preguiça dentre outros. Há carnes, por exemplo, que são consideradas
boas para se comer. Seu cozimento é feito em um tempo considerável, outras carnes são
mais duras na hora do preparo da caça. Dependendo qual animal é caçado, seu preparo
segue uma forma adequada de ser cozido ou assado. A carne do macaco, por exemplo, é as-
sada, “[...] embora geralmente muito dura e invariavelmente insípida, não é de modo algum
desprezada”.28
Uma das dificuldades que os indígenas passam ao ficarem por muito tempo em
um determinado local, é quando a caça que eles obtêm naquele espaço geográfico começa a
migrar para outras regiões. “A migração da caça é uma questão séria para o indígena, pois
todos os animais ali estão sujeitos a deslocamentos periódicos, como observado no capítulo
anterior. Isso pode resultar no abandono de uma maloca”29.
No relato referente às caças que não podem ser consumidas por completo, Whif-
fen aponta a carne do queixada (um tipo de porco selvagem) é um animal que os indígenas
têm medo, porque, quando é ferido, emite um som em que ecoa pela floresta e através desse
grito, alerta todo o seu bando para atacar o possível predador. Sobre esse animal, Whiffen
não percebeu nenhum tabu relacionado à carne do queixada, “[...] embora digam que, às ve-
zes, a carne é imprópria para a alimentação por causa de uma glândula próxima à cauda”30.
Assim, toda vez que o Whiffen faz suas observações sobre a alimentação dos
povos estudados por ele, sempre procura deixar um comentário com seu parecer de estran-
geiro. Especificando duas partes que aparece em seu relato, ele faz um comentário sobre a
carne do macaco, por exemplo, e diz que “[...] embora um macaco assado seja horrivelmen-
te sugestivo em aparência humana, pois com muita frequência, a sua carne será o único plat
31
do menu do jantar” . Em outra passagem onde expõe que os indígenas não comem carne
putrefata, mas em compensação, “[...] essa delicadeza é compensada pelos gostos que aos
nossos olhos seriam igualmente ou mais imundos, pois os indígenas comem insetos repug-
nantes, e os piolhos das cabeças são vistos como bonbouche”32. Fica nítido nas palavras de
Whiffen que ele escreve para o povo europeu, e mesmo assim faz uma distinção entre sua
cultura e a cultura dos indígenas quando usa o termo o qual grifamos acima.

28 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, 2019 p. 216.
29 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, 2019 p. 217.
30 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, p. 217.
31 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan,p. 216-217.
32 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, p. 218.

Sumário 295
A mandioca é outro alimento indispensável na mesa do nativo, portanto, está,
extensivamente, descrita no relato de Whiffen considerando-se que esse tubérculo é consu-
mido não apenas pelos Bora e os Uitoto, mas por vários povos amazônicos. A origem da
mandioca tem o reconhecimento em terras brasileiras, e dessa iguaria existem dois tipos de
mandiocas, as “mansas ou doces, também chamadas macaxeiras ou aipins, com baixo teor
de ácido cianídrico nas raízes, e as venenosas ou bravas, com teor mais elevado de ácido
cianídrico, capazes de causar envenenamento [...]”33.
Mesmo que a mandioca doce seja conhecida pelas tribos do Iça-Japurá, essa não
é cultivada, pois os povos dessa região “[...] preferem as espécies venenosas, que como im-
plica seu nome botânico, Manihot utilissima, pode ser consumida de várias formas”34.
Por conseguinte, quando é mostrado sobre os ensopados, a panela é “[...] reabas-
tecida diariamente com porções da caça abatida. Partes que não podem ser comidas – san-
gue, cérebro, intestino – são usadas no ensopado”35. Nesta passagem, percebe-se que há uma
diversidade cultural que, talvez, para o etnógrafo Whiffen pareceu-lhe estranho, mas para
os povos ameríndios do noroeste amazônico eram os tipos de alimentos que faziam parte de
sua sobrevivência. Lévi-Strauss destaca bem esse desdenho que um europeu poderia sentir
ao se deparar com formas diferentes de sua cultura.
A atitude mais antiga e que repousa, sem dúvida, sobre fundamentos psicológicos
sólidos, pois que tende a reaparecer em cada um de nós quando somos colocados
numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas cul-
turais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daqueles com que nos
identificamos. “Costumes de selvagem”, “isso não é nosso” “não deveríamos per-
mitir isso”, etc., um sem número de reações grosseiras que traduzem este mesmo
calafrio, esta mesma repulsa, em presença de maneira de viver, de crer ou de pensar
que nos são estranhas36.

Lévi-Strauss comenta pontos-chaves sobre a diversidade cultural já observado por


ele nas pesquisas realizadas no campo da etnografia. Por muitos séculos, os locais coloniza-
dos por povos europeus causavam-lhes a estranheza de uma determinada cultura em relação
às suas. Era notório esse parecer de repulsa caso eles tivessem contato com povos desconhe-
cidos. Entendemos então, no sentido de perceber as diferenças entre povos, o pensamento
sobre cultura de Lévi-Strauss e o Perspectivismo Ameríndio de Castro se convergem. No re-
lativismo, cada teórico nos apresenta um ponto de vista lógico relacionado a outras culturas,
outros povos. No Etnocentrismo, constatamos que não se pode concluir que uma etnia ou
um grupo possa ser uma base cultural para outras populações. O que existe entre esses con-
ceitos são subjetividades e interpretações diferentes no cosmo em que cada um está inserido
ou na sociedade observada, estudada.

33 NORMANHA, E. S. e PEREIRA. A. S.Aspectos agronômicos da cultura da mandioca. (manihot utilíssima) Instituto


Agronômico. vol 10, n. 07, 1950. p. 01.
34 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan. p.219.
35 WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos canibais. / Thomas Whi-
ffen, John Brown; tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan. p.223
36 LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In. Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, capítulo
I, 1976. p. 4.

Sumário 296
Não obstante, de tudo que se abordou sobre o alimento dos Bora e Uitoto incluin-
do sua visão eurocêntrica, não se deve de maneira alguma desmerecer a importância que
teve esse relato ao narrar os costumes e o modo de vida desses povos ameríndios. Etnografi-
camente, toda a escrita tem sua importância, mesmo que em alguns casos se note um ponto
de vista colonizador nessas narrativas, devemos levar em conta os dados coletados. Sobre os
trabalhos etnográficos em um modo geral, Lévi-Strauss comenta:
Enfim, não devemos esquecer que as sociedades contemporâneas que continuam a
ignorar a escrita, aquelas a que nós chamamos “selvagens” ou “primitivas”, foram,
também elas, precedidas por outras formas, cujo conhecimento é praticamente im-
possível, mesmo de maneira indireta; um inventário consciencioso deverá reserva-
-lhe um número de casas em branco infinitamente mais elevado do que aquele em
que nos sentimos capazes de inscrever qualquer coisa. Impõe-se uma primeira cons-
tatação: a diversidade das culturas é de fato no presente, e também de direito no pas-
sado, muito maior e mais rica que tudo o que estamos destinados a dela conhecer37.

Esta passagem explora bem sobre a importância da escrita etnográfica, pois sem
ela, não saberíamos como determinada etnia viveu ou vive em determinado local. Fez-se ne-
cessário buscar elementos dos relatos de viagens como o caso da etnografia para que pudés-
semos abordar os assuntos cosmológicos ameríndios com mais precisão. Mais importante
do que dizer que determinada tribo utiliza-se de determinados tipos de alimentos para sua
sobrevivência, é fazer esta ligação entre tradução cultural, diversidade cultural e o trabalho
etnográfico.

Considerações finais

Explorou-se neste texto a questão do alimento dos Bora e dos Uitoto do noroeste
amazônico. Assim, o capítulo IX, dedicado a essa temática, foi selecionado para a discus-
são e apresentar um trecho dos relatos de Thomas Whiffen. Utilizamos a narrativa cole-
tada como base desta análise e os teóricos dos estudos culturais e de tradução. A pesquisa
supracitada evidencia que os teóricos aqui expostos para que se compreendesse como uma
determinada comunidade ameríndia vivia no início do século XX – quando o trabalho etno-
gráfico de Whiffen foi realizado.
Buscou-se também exemplificar a diversidade cultural dos povos ameríndios em
relação à percepção de Whiffen. Por fim, nessa percepção do relativismo cultural e o pers-
pectivismo ameríndio, as duas linhas teóricas conseguem juntar outras formas de pensar este
relato analisado. Dessa forma, se compreende que existem sim, diferenças culturais e não
uma cultura padrão. Podemos chegar à conclusão que, ao contrário do que Whiffen acredi-
tava, a relação dos indígenas com os animais e com a floresta não os tornavam “primitivos”,
mas sim, adaptados ao meio em que viviam. Apresentando as formas de se alimentar dos
Bora e Uitoto, a narrativa revela como é representada a relação entre humanos e animais e
mostram que o perspectivismo ameríndio e a diversidade cultural estão presentes nesse tra-
balho etnográfico de Whiffen.

37 LEVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In. Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, capítulo
I, 1976. p.2

Sumário 297
Referências
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line]. v. 19, n. 44, p. 276-307, 2017.
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outro. Revista terceira margem, UFRJ, v. 7, n 9, p. 138-154, 2003.
BURKE, Peter, HSIA, Ronnie Po-chia (orgs.). A tradução cultural nos primórdios da Europa
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COSTA, Andréa. John Gledson Reescreve Milton Hatoum: A Teoria e Experiência da Tradução
Cultural. 172 f. Tese (Doutorado em Letras) São José do Rio Preto – UNESP, São Paulo, 2016.
CASTRO, Celso. Evolucionismo cultural: Textos de Morgam, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge
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LEITE, Maurício Soares. Alimentação e nutrição indígena. Ed. Fiocruz. Rio de Janeiro, 2007. Dis-
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NORMANHA, Edgard. Sant’ana. e PEREIRA. Araken. Soares. Aspectos agronômicos da cultura
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SANTOS, Diego Junior da Silva. Raça versus etnia: diferenciar para melhor aplicar. Revista Dental
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Pronomes Cosmológicos e O Perspectivismo Ameríndio.
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WALLACE, Alfred Russel. Travels on the Amazon and Rio Negro. Ward, Lock, 1889.
WHIFFEN, Thomas. O Noroeste Amazônico: Notas de alguns meses que passei entre tribos cani-
bais. / Thomas Whiffen, John Brown. Tradução Hélio Rocha. Rio Branco: Nepan, 2019.

Sumário 298
SOBRE OS/AS AUTORES/AS

Suerda Mara Monteiro Vital Lima


Professora Mestra do Curso de Letras/Espanhol do campus de Cruzeiro do Sul da Universidade
Federal do Acre. Doutoranda vinculada ao Programa de Pós-graduação em Letras: Linguagem e
Identidade. Pesquisadora na área de Linguagens, Identidades e Narrativas da Literatura Hispano-a-
mericana. Atua no Ensino de Espanhol como Língua Estrangeira, Literatura espanhola e Hispano-
-americana.
E-mail: [email protected]

Carlos David Larraondo Chauca


Professor Mestre do Curso de Letras/Espanhol do campus de Cruzeiro do Sul da Universidade Fe-
deral do Acre. Pesquisador na área de Linguagens, Identidades e Narrativas da Literatura Hispano-
-americana. Atua no Ensino de Espanhol como Língua Estrangeira, Literatura espanhola e Hispa-
no-americana.
E-mail: [email protected]

Cesar Augusto Mendoza-Quiñones


Pesquisador da Área de Literatura, vinculado a Universidad Mayor de San Andrés (La Paz, Bolivia).
Membro do Grupo de Pesquisa “La Crítica y el Poeta”. Atualmente realiza estudos sobre a poesía
de Eduardo Mitre. Entre seus temas de pesquisa, destacam-se: Poesía boliviana, Estudos latinoame-
ricanos, Imagem e cultura, Escrita poética e Tradução literária.
E-mail: [email protected]

Luana Yakira Rodrigues Mendes


Graduanda do Curso de Letras Português e Espanhol da Universidade Federal de Roraima - UFRR.
É bolsista do Programa de Iniciação Científica (PIBIC - CNPq), no qual desenvolve pesquisa na área
dos Estudos de literatura hispano-americana. Possui interesse pelos seguintes temas: Literaturas
de língua espanhola, Deslocamentos culturais nas literaturas de fronteira e Português como língua
estrangeira.
E-mail: [email protected]

Sumário 299
Tatiana da Silva Capaverde
Professora dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Rorai-
ma (UFRR). Possui Mestrado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Dou-
torado em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense. É membro do grupo de
pesquisa Narrativas Estrangeiras Modernas (Unesp) e Leituras Contemporâneas: narrativas do séc.
XXI (UFBA). Desenvolve pesquisa em Literatura Hispano-americana, atuando principalmente nos
seguintes temas: Autoria, Apropriação, Hibridismo estético e Mobilidade cultural.
E-mail: [email protected]
Leonardo Vieira Feichas
Professor de violino no curso de Licenciatura em Música na Universidade Federal do Acre (Ufac). É
graduado e mestre em música pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sendo atualmen-
te doutorando pela Universidade Nova de Lisboa (UNL) e Unicamp em regime de cotutela. Seu ob-
jeto de investigação envolve a interpretação de obras de Flausino Valle (1894-1954). Vem realizando
diversos recitais e recitais-palestra com foco na música de Valle e também na música contemporânea
para violino. Temas/áreas de atuação/estudo incluem Investigação artística, Musicologia, Perfor-
mance musical, Pedagogia do violino e Música.
E-mail: [email protected]
Letícia Porto Ribeiro
Graduada em História pela Universidade de Brasília (UnB) e em Música pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). É Mestre em Letras: Linguagem e Identidade pela Universidade Federal
do Acre (Ufac), sendo atualmente doutoranda na mesma universidade. Atua como técnica admi-
nistrativa em música na Universidade Federal do Acre. Temas/áreas de atuação/estudo incluem
Música, Performance musical, Música de protesto e Estudos decoloniais.
E-mail: [email protected]
Emilly Monique Oliveira Silvano
Aluna de graduação em Letras da Universidade do Estado do Amazonas e bolsista de Iniciação
Científica – FAPEAM. As áreas de interesse são: Círculo de Bakhtin, Estética da Recepção, Milton
Hatoum e Hilda Hilst.
E-mail: [email protected]
Juciane dos Santos Cavalheiro
Professora Associada do Curso de Letras da Universidade do Estado do Amazonas. Docente do Pro-
grama de Pós-graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas e do Programa
de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Acre. Realiza pesquisa de Pós-doutorado
no Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade de Brasília. Desenvolve suas pesqui-
sas na perspectiva dos Estudos enunciativos, ancoradas, sobretudo, nas ideias de Mikhail Bakhtin e
Émile Benveniste.
E-mail: [email protected]

Emilly Nayra Soares Albuquerque


Graduada em História Bacharelado e Licenciatura pela Universidade Federal do Acre – Ufac e
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da mesma instituição.
Atuante nas seguintes áreas: Estudos amazônicos, Culturas, Linguagens e Pesquisa histórica.
E-mail: [email protected]

Sumário 300
Laura Gomes dos Santos
Mestranda no Programa de Pós Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (CNPq). Sua pesquisa está inserida na área de Literaturas Modernas e Contem-
porâneas e na linha de pesquisa Literatura, outras Artes e Mídias.
E-mail: [email protected]

Ana Maria de Carvalho


Professora na Faculdade Cosmopolita, Doutoranda em Estudos Literários do PPGL-UFPA, mem-
bro do Grupo de Estudos e Pesquisas Culturas e Memórias Amazônicas - CUMA da Universidade
do Estado do Pará - UEPA. Linhas de pesquisa incluem Literatura, Memória e Identidade.
E-mail: [email protected]

Vinícius Ferreira dos Santos


Professor efetivo de Educação Básica de Língua Portuguesa pela Secretaria de Educação do Mato
Grosso (SEDUC-MT). Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e graduado
em Letras pela mesma instituição. Atualmente, estuda as noções de Metaficcionalidade em narrati-
vas decoloniais, além das Relações de legitimidade que envolvem o campo literário.
E-mail: [email protected]

Randra Kevelyn Barbosa Barros


Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PP-
GLCC), pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). Bolsista CNPq. Se in-
teressa pelos seguintes temas: Artes indígenas contemporâneas, Produções autorais indígenas, Cul-
turas dos povos originários, Interseções entre a crítica latino-americana e as Literaturas indígenas.
E-mail: [email protected]

Jaine Araújo da Silva


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade
Federal do Acre e bacharela em Comunicação Social com habilitação para Jornalismo pela mesma
instituição. Comunicação, Jornalismo e Raça são suas áreas de interesse.
E-mail: [email protected]

Francielle Maria Modesto Mendes


Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Mestre em Letras: Linguagem e Iden-
tidade pela Universidade Federal do Acre, onde atua como professora do curso de Jornalismo e do
Programa de Pós-graduação em Letras: Linguagem e Identidade. Jornalismo, Culturas, Representa-
ções sobre as Amazônias brasileiras são suas áreas de interesse.
E-mail: [email protected]

Bruna Wagner
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade
Federal do Acre – Ufac. Mestra em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Es-
tudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Atua nas áreas de estudo:
Feminismo, Narrativas Amazônicas e Literatura Comparada.
E-mail: [email protected]

Sumário 301
Cássia Macieira
Artista Visual e professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Doutorado em Literatura
Comparada: Literatura, outras Artes e Mídias, Mestrado em Artes e Graduação em Artes Visuais
pela mesma instituição. Membro do Grupo Intermídia UFMG/CNPq. Coordenadora do Grupo
de Pesquisa Artefatos Lúdicos CNPq. Áreas de interesse incluem Arte, Design, Artefatos lúdicos,
Bonecas, Artesanato.
E-mail: [email protected]

Patricia de Souza Caboclo


Acadêmica de graduação do Curso de Letras-Português. Aluna especial da disciplina “Memória e
representação” do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Áreas de atuação incluem Língua Portuguesa e
Literatura Brasileira.
E-mail: [email protected]

Marta Francisco de Oliveira


Professora do Curso de Letras Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutora em Estudos
Literários e pós-doutoranda no PPGEL/UFMS e professora credenciada do Programa de Pós-Gra-
duação em Estudos de Linguagens, Mestrado. Áreas de atuação incluem Língua Portuguesa, Litera-
tura Brasileira, Línguas Estrangeiras Modernas, Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas.
E-mail: [email protected]

Leandro Faustino Polastrini


Licenciado em Letras Português/Espanhol. Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT). Atualmente é doutorando no Programa de Estudos de Cultura
Contemporânea da UFMT. Professor Assistente na área de Língua Espanhola na Universidade do
Estado de Mato Grosso (UNEMAT) Campus de Alto Araguaia. Temas/áreas de interesses/estudos:
Ensino-aprendizagem de língua espanhola, Literatura brasileira e latino-americana, Estudos cultu-
rais e identidades.
E-mail: [email protected] / [email protected]

Maria Aparecida de Barros


Servidora pública do sistema penitenciário estadual em Mato Grosso so Sul. Consultora de projetos
ad hoc (UEMS). Graduada em Letras (UFMS, 2003). Mestre em Letras (UFGD, 2016) e doutoranda
em Letras área de Literatura Comparada (UEL).
E-mail: [email protected]

Henrique Pereira Galvão


É professor da Seduc do Estado de Rondônia. Formado em História, com especialização em Me-
todologia do Ensino, da História e da Geografia. Tutor Tutoria em EAD – Ensino a Distância, e
Docência do Ensino Superior pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante – FAVENI. Atualmente
cursa o mestrado em Estudos literários, pela Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR.
E-mail: [email protected]

Sumário 302
Ronilson de Sousa Lopes
É professor de Filosofia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas -
IFAM Campus Lábrea. Cursou Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, em Belo Ho-
rizonte MG (2010). Possui Pós-Graduação em Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia pelo
Centro Universitário Barão de Mauá. É mestrando em Estudos Literários pela Fundação Universi-
dade Federal de Rondônia – UNIR. É o autor do Livro Contos do meu sertão pela Editora o Lutador.
E-mail: [email protected]

Karen Rafaela da Silva Cordeiro


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazo-
nas (2020) e graduação em Artes Visuais pela Universidade Federal do Amazonas (2016). É artista
visual, desenvolve sua expressão por meio da fotografia digital.
E-mail: [email protected]

Luciane Viana Barros Páscoa


Graduação em Artes Plásticas (Licenciatura) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho (1992). Graduação em Música (Licenciatura) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (1993). Mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1997) e doutorado em História Cultural pela Universidade do Porto (2006). Atualmente é professo-
ra adjunta da Universidade do Estado do Amazonas e coordenadora do Programa de Pós-graduação
em Letras e Artes.
E-mail: [email protected]

Rafael Adelino Fortes


Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Doutorando em Estudos de Lin-
guagem pela Universidade Federal de Mato Grosso. Professor adjunto do Instituto Federal de Edu-
cação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso, campus Juína.
E-mail: [email protected]

Regiane Casusa Louber


Estudante do Curso Técnico em Comércio no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de Mato Grosso, campus Juína.
E-mail: [email protected]

Renato Pereira da Silva Junior


Estudante do curso de Agropecuária no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Mato Grosso, campus Juína. É bolsista de Iniciação Científica Junior.
E-mail: [email protected]

Quelmo da Silva Lins


Graduação em Letras Inglês pela Universidade Federal de Rondônia e mestrando em Estudos Lite-
rários pela mesma universidade.
E-mail: [email protected]

Sumário 303
Raylan Felipe Macedo Setúbal
Graduado em História pela Universidade Federal de Rondônia e mestrando em Estudos Literários
pela mesma universidade.
E-mail: [email protected]

Sumário 304

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