As Crónicas Jornalísticas de Horácio Bento de Gouveia
As Crónicas Jornalísticas de Horácio Bento de Gouveia
As Crónicas Jornalísticas de Horácio Bento de Gouveia
Ponta Delgada
2014
i
Universidade dos Açores
Ponta Delgada
2014
ii
AGRADECIMENTOS
Chegada ao fim mais esta etapa letiva, não podia deixar de agradecer às pessoas
e instituições que me motivaram e apoiaram durante a elaboração desta investigação.
Foi um ciclo de trabalho e consolidação de conhecimentos, mas foi também um período
que me proporcionou um enorme desenvolvimento pessoal.
À Professora Doutora Ana Cristina Gil pela orientação científica, pelas inúmeras
indicações e pela sua disponibilidade e palavras de estímulo.
À minha família, em especial aos meus pais e irmã, pelo carinho e amor de
sempre e pelos incansáveis incentivos. Ao Diogo e família por todo o suporte e
amizade.
Aos amigos e colegas da jornada açoriana agradeço-lhes a amizade, a ajuda e o
excecional acolhimento. Sem todo este afeto tenho a certeza que a conclusão destes dois
períodos de estudos, licenciatura e mestrado, seria muito mais difícil. Um
agradecimento particular à Joana e à Érica, amigas e companheiras nesta aventura.
Aos professores do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da
Universidade dos Açores que muito contribuíram para a minha aprendizagem.
Apraz-me ainda expressar gratidão às funcionárias da Biblioteca Municipal do
Funchal pela paciência, disponibilidade e trabalho que tiveram comigo na consulta de
alguns dos textos jornalísticos citados nesta dissertação. Igualmente, uma palavra de
agradecimento à RDP/RTP Madeira pela cedência de três dos programas radiofónicos e
televisivos apresentados por Horácio Bento de Gouveia, ao Dr. Rui Nepomuceno que
amavelmente me disponibilizou um artigo da sua autoria sobre a temática bentiana e à
Dr.ª Maria de Fátima Gouveia Soares por me prestar alguns esclarecimentos sobre a
vida e obra do seu pai.
2
RESUMO
3
ABSTRACT
4
ÍNDICE
Agradecimentos .................................................................................................................2
Resumo ..............................................................................................................................3
Abstract ..............................................................................................................................4
Introdução ..........................................................................................................................7
1. A crónica......................................................................................................................12
1.1. Os géneros jornalísticos ............................................................................................12
1.2. A crónica...................................................................................................................16
1.2.1. Génese do conceito ................................................................................................16
1.2.2. Do relato histórico ao âmbito literário e jornalístico .............................................19
1.2.3. A crónica enquanto género jornalístico .................................................................23
1.2.3.1. Entre o jornalismo e a literatura .........................................................................28
2. Jornalismo e Identidade: a crónica de Horácio Bento de Gouveia ..............................34
2.1. Em torno da identidade madeirense .........................................................................34
2.2. As crónicas jornalísticas bentianas e a afirmação da identidade madeirense ...........44
2.2.1. Horácio Bento de Gouveia: aspetos biobibliográficos ..........................................44
2.2.2. A crónica bentiana: principais características e traços marcantes .........................54
2.2.3. Análise dos traços da identidade madeirense nas crónicas jornalísticas de Horácio
Bento de Gouveia ............................................................................................................68
2.2.3.1. A ilha, ruralismo e cosmopolitismo....................................................................69
2.2.3.2. Costumes, atividades e festividades tradicionais ................................................76
2.2.3.3. Emigração madeirense ........................................................................................87
2.2.3.4. Particularidades dialetais da ilha ........................................................................88
Conclusão ........................................................................................................................93
Referências Bibliográficas ...............................................................................................97
Anexos ...........................................................................................................................106
Anexo 1- “A Crónica” ...................................................................................................107
Anexo 2- Civilização madeirense ..................................................................................109
Anexo 3- A Madeira: visão de ontem e de hoje ............................................................112
5
Anexo 4- Estradas e Turismo: o miradoiro da Roça e a Levada Grande da
Boaventura...…………………………………………………………………………..114
Anexo 5- Regionalismo e Turismo ................................................................................119
Anexo 6- Em São Vicente – festa da vindima: a apoteose do regionalismo no manter da
tradição .........................................................................................................................121
Anexo 7- Aspectos rurais em Ponta Delgada ................................................................123
Anexo 8- Natal ..............................................................................................................126
Anexo 9- Lapinhas e Pastores .......................................................................................129
Anexo 10- Natal de ausência .........................................................................................132
Anexo 11- O Natal na Cidade, a Festa no Campo .........................................................136
Anexo 12- Festas da Cidade ..........................................................................................140
Anexo 13- Do meu afecto pela terra II ..........................................................................141
Anexo 14- Cantigas populares .......................................................................................143
Anexo 15- Regionalismo: ranchos folclóricos ..............................................................146
Anexo 16- Um livro de Carlos Santos: o traje regional da Madeira .............................149
Anexo 17- Os madeirenses e o Brasil ............................................................................151
Anexo 18- Respigos de fonética no linguajar da gente: freguesia da Ponta Delgada ...155
6
INTRODUÇÃO
1
Esta afirmação encontra-se presente nas “orelhas” da obra Alma Negra e Outras Almas.
8
romarias, a comida, o folclore, entre outros. Para além disso, na obra, constam também
registos mais saudosistas acerca da sua localidade, escritos, sobretudo, na época em que
o cronista vivia no continente português. Estas crónicas explorando algumas
comparações entre a vivência na ilha e na grande metrópole reforçam as peculiaridades
do ser madeirense. Nelson Veríssimo conclui que estas crónicas de Horácio Bento
demonstram a enorme afeição do seu autor «a recantos da freguesia-mãe e a itinerários
do seu percurso existencial» 2.
Por sua vez, O Natal na Cidade, a Festa no Campo, publicada em 2001, é uma
obra que reúne escritos jornalísticos e alguns trechos literários bentianos que dizem
respeito à quadra natalícia, mas, tendo em conta o facto de a minha análise incidir
apenas nos escritos jornalísticos, os trechos dos romances não serão alvo de escrutínio.
Sobre esta antologia, João David Pinto-Correia diz: «ao longo dos vinte e um escritos,
dinamizam-se episódios, dramatizam-se sequências de acentuado rigor, registam-se
movimentos de devoção, fervor, alegria, comunhão e saudade» (2002: 141).
Posteriormente a estas compilações, a filha de Horácio Bento de Gouveia, Maria
de Fátima Gouveia Soares, tem também publicado obras que agrupam os diversos
escritos jornalísticos bentianos espalhados por periódicos madeirenses e também
continentais. A este respeito convém realçar que, ainda que assumidamente seja o pai o
autor dos textos, as fichas técnicas destas obras catalogam-na como a autora. Tendo em
conta esta situação, para facilitar a pesquisa bibliográfica futura, optei por respeitar o
que constava nos livros, isto é, mencioná-la como autora, mas ressalvo que o autor das
crónicas é efetivamente Horácio Bento de Gouveia.
O primeiro volume das compilações apareceu em 2001, intitulado Escritos de
Juventude (1919-1930), e reúne algumas das primeiras crónicas bentianas. Embora o
livro abarque o período em que o escritor produz escritos de «fervor romântico»,
existem também crónicas cuja temática é marcadamente regional (Soares, 2001: 12).
Sobre esta obra, Agustina Bessa-Luís afirma no prefácio: «Eu considero Horácio Bento
de Gouveia um bom escritor de crónicas, um Sterne das Ilhas» (ibidem).
Segue-se, em 2007, Escritos 2 (Horácio Bento de Gouveia 1930-1939) que
agrega evocações a personalidades portuguesas (a maioria do âmbito das letras) e a
espaços da sua memória na ilha. Também se incluem neste livro crónicas acerca de
2
Nelson Veríssimo, “Horácio Bento e as Crónicas do Norte”, Diário de Notícias da Madeira, 18 de
setembro de 1994.
9
algumas vilas e cidades de Portugal continental e outras ainda que revelam um pendor
mais filosófico do cronista. Marcelo Rebelo de Sousa, responsável pelo prefácio da
obra, afirma que «o Dr. Horácio Bento de Gouveia contou à Madeira o que se vivia no
Continente, em especial em Lisboa, e no Mundo, e contou ao Continente,
particularmente a Lisboa, o que se passava na Madeira. Como sempre, culto, ponderado,
atento, sabedor» (Soares, 2007: 16-17).
Na continuação deste trabalho de compilação, surge Escritos 3 (Horácio Bento
de Gouveia 1940-1949) que, uma vez mais, é composto por diversos escritos bentianos,
divididos em três partes: “em prol da boa linguagem”; “sobre a ilha e outros temas” e
“conferências e outras intervenções”. Neste caso, será sobretudo acerca da segunda
parte deste livro que recairá a minha investigação.
No ano de 2011, sai a público Escritos 4 (Horácio Bento de Gouveia 1950-1959)
que compila textos sobre a língua e a gramática, sobre personalidades madeirenses,
nacionais e do Brasil, sobre as tradições da Madeira e também algumas críticas que
foram feitas aos romances de Horácio Bento de Gouveia.
Por último, no início de 2014, foi publicado Escritos 5 (Horácio Bento de
Gouveia 1960-1969), que conta com uma lista extensa de artigos e crónicas bentianos.
De resto, folheando as páginas do Diário de Notícias da Madeira, tive oportunidade de
verificar que, pelo menos nesta publicação, a década de 60 foi aquela em que a escrita
do madeirense foi mais assídua.
Apesar de Horácio Bento de Gouveia ter publicado textos até 1983 — o ano da
sua morte —, estas compilações abarcam somente as cinco primeiras décadas da sua
carreira jornalística3, pelo que, em termos cronológicos, a minha análise abrangerá o
período compreendido entre os anos vinte e os anos sessenta.
Estudando um conjunto de vinte e cinco crónicas jornalísticas, tento descortinar
o modo como as práticas socioculturais madeirenses descritas por Horácio Bento de
Gouveia contribuem para a afirmação da identidade da ilha. E, para facilitar a
compreensão do presente trabalho, disponibilizo em anexo a cópia das crónicas,
retiradas das diversas compilações, à exceção das que integram a obra Canhenhos da
Ilha, pelo facto de esta se encontrar acessível para consulta online no sítio do Arquivo
3
Tenho conhecimento de que está prevista a edição do material jornalístico dos restantes anos.
10
Regional da Madeira4 e por estar também disponível na biblioteca da Universidade dos
Açores.
Importa ainda esclarecer que sempre que me refiro à identidade madeirense
abordo apenas os traços inerentes à ilha da Madeira e não ao arquipélago no seu todo.
Embora não cite nenhum trecho, para me inteirar teoricamente sobre a região consultei
o Elucidário Madeirense, do Pe. Fernando Augusto da Silva e de Carlos Azevedo de
Meneses, uma obra que reúne informação sobre os grandes temas e hábitos da ilha. Do
mesmo modo, para melhor entender a vida e obra de Horácio Bento, tive a preciosa
ajuda do número 30 da revista Islenha (inteiramente dedicado a este madeirense) e do
sítio da Universidade da Madeira dedicado à sua figura5.
Por fim, tenho a acrescentar que todos os textos recolhidos nos diversos
periódicos madeirenses que foram citados na pesquisa estão referidos em nota de
rodapé, juntamente com as demais informações adicionais.
4
http://armdigital.arquivo-madeira.org/armdigital/descricoes-
bibliograficas/monografia.html?bid=1920&obj=9231&pkg=11905&offset=3.
5
http://www3.uma.pt/hbento/.
11
1. A CRÓNICA JORNALÍSTICA
Assim sendo, ao dizer-se que um texto é uma notícia, por exemplo, o leitor,
mesmo antes de efetuar a leitura, já estará à espera de encontrar um texto com
determinadas características, entre elas o rigor e a objetividade. Se o texto em questão
for uma crónica jornalística, o leitor sabe, à partida, que mais do que informação
encontrará subjetividade, comentário e reflexão.
Embora a linguagem jornalística tenda a ser clara, rigorosa, concisa e
informativa, a verdade é que os jornais — mesmo os considerados de referência, que se
pautam pela seriedade e que se afastam nitidamente do sensacionalismo — não nos
apresentam apenas notícias, existindo, para além deste género eminentemente
informativo, outras formas textuais. Ainda que a notícia possa ser apontada como o
suporte dos demais géneros jornalísticos, é nos restantes textos que serão
proporcionadas abordagens mais profundas e diversificadas dos assuntos. Neste sentido,
tentando condensar as principais características inerentes à noção de género jornalístico,
Fernando Cascais define-a como:
12
as rotinas de trabalho a realizar pelos jornalistas consoante os géneros para
que são solicitados (2001: 98).
Los géneros para Lorenzo Gomis cumplen dos funciones que respondem a
dos necessidades sociales distintas: la necessidad de saber qué passa e
intentar saber qué significa cada uno de los hechos en el conjunto de los
conjuntos de los acontecimentos actuales; y formar-se una opinión de las
cosas y comentarlas para saber en qué puden afectarnos (Arranz, 2000: 41-
42).
13
dividem em mais categorias. Adriano Rodrigues, Eduardo Dionísio e Helena Neves, por
exemplo, discordam desta divisão, pois, segundo eles, a categorização clássica entre
opinião e informação não tem em conta o contexto social, económico, cultural e
ideológico em que estão inseridos:
14
categorias básicas em que se fundamentava a expressão da mensagem jornalística, ao
ponto de se afirmar que a construção da actualidade se faz a partir deles, com eles e
graças a eles» e, apoiando-se na célebre divisão de Ángel Benito, afirma que «o
aparecimento histórico dos géneros jornalísticos está intimamente ligado às várias
etapas do jornalismo enquanto facto cultural» (2002: 80).
Benito divide a história do jornalismo a partir de 1850 em três grandes fases: a
ideológica, a informativa e a interpretativa. Na fase do jornalismo ideológico, datada
entre 1850 e 1918 e minada pelos ideais políticos e religiosos, proliferavam os textos de
comentários e terão surgido os géneros de opinião. No período que o autor apelidou de
jornalismo informativo — que durante anos coexistiu com o jornalismo ideológico e
que se reafirma após a 1.ª Guerra Mundial — emergem os géneros informativos: a
notícia, a crónica e a reportagem. Já após o término da 2.ª Guerra Mundial, com a
emergência da rádio e da televisão, surgem na imprensa textos com maior profundidade
e nasce o jornalismo interpretativo (idem: 80-81).
Embora recorrentemente se aponte a origem dos géneros jornalísticos para
meados do século XX, terá sido pelas mãos do jornalista inglês Samuel Buckley que foi
elaborada esta divisão. Buckley, enquanto diretor do jornal político The Daily Courant
(1702-1735), «separou notícias de comentários e fez da informação dita objectiva a
alma do periódico. Buckley acreditava que as informações não deviam ser
“contaminadas” pela opinião», nas palavras de Paula Lopes (2010b: 9).
A separação entre factos e opiniões parece estar assim na origem da catalogação
dos textos jornalísticos em géneros como, de resto, explica Fermín Arranz:
15
Apontando somente as principais características de cada género e tendo em
conta o pensamento deste último autor, a notícia, enquanto género puramente
informativo, é o texto jornalístico que comunica com rapidez, eficácia, exatidão e
clareza; a reportagem cumpre a função de completar e aprofundar com rigor os factos
noticiados e, introduzindo, por exemplo, citações das fontes direta ou indiretamente
envolvidas nos factos, transporta o leitor para o local do acontecimento. A entrevista
aproxima o entrevistado dos leitores e a crónica está destinada para o comentário de
factos e acontecimentos com impressões do próprio autor do texto (idem: 48-49).
Para além da distinção entre opinião e informação, cada género possui as suas
próprias características formais e, mesmo dentro de cada género, podemos efetivamente
encontrar outros tantos subgéneros. No caso concreto da crónica, por exemplo,
dependendo do tema esta vai assumir diversas tipologias: a crónica de costumes, a
social, a desportiva, a policial, entre outras.
1.2. A crónica
1.2.1. Génese do conceito
6
Informação acedida em http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/os-guardas-mores-da-torre-do-
tombo/ a 2 de junho de 2014.
17
De entre muitas outras crónicas requisitadas pela corte portuguesa, é pela mão
do muitas vezes catalogado pioneiro da historiografia nacional que surgem crónicas dos
reis portugueses desde a Crónica de El-Rei D. Pedro I, a Crónica de El-Rei D.
Fernando e ainda a primeira parte da Crónica de El- Rei D. João I. Estes trabalhos, em
especial o dedicado ao Mestre de Avis (D. João I), escrito por Fernão Lopes em meados
do século XV, marcam o início de uma nova forma de fazer crónica em Portugal,
incutindo-lhe a ordem cronológica que faltava às antecessoras, como também
introduzindo subjetividade, o comentário e as situações de diálogo no decurso dos
acontecimentos. Instaura-se, portanto, a figura do cronista que narra e comenta os
acontecimentos históricos, conferindo assim um maior dinamismo aos textos. Até então,
e citando um diálogo do programa “Falar Português”, da RDP Internacional, transcrito
pela Sociedade da Língua Portuguesa, «o termo “crónica” empregava-se em referência a
qualquer narração sistemática de acontecimentos, com pouco ou nenhum empenho na
sua análise e interpretação»7.
Acerca das novidades introduzidas por Fernão Lopes, Ilídio Rocha justifica que
«a vontade de explicar cabalmente os acontecimentos leva-o a interessar-se pela
psicologia das suas personagens — tanto pelas figuras centrais como D. João, Mestre de
Avis, e Leonor Teles, como pela psicologia das multidões, cujos movimentos o seu
temperamento de artista nos consegue fazer presentes» (apud Lopes, 2010a: 2-3).
Assim sendo, a “Era Fernão Lopes” irá abrir caminho a novas formas de redigir
em crónica o quotidiano dos reis e da corte e os principais acontecimentos ocorridos em
Portugal e nas terras além-mar. Neste trabalho sucede-lhe Gomes Eanes de Zurara,
nomeado também Guarda-Mor da Torre do Tombo em junho de 14548 (que fica
incumbido de terminar a Crónica de El-Rei D. João I), entre tantos outros. Além dos
documentos enumerados, apareceram também em Portugal diversos registos escritos
apelidados de “crónicas”, mas, em termos teóricos, parece ter sido a partir destes
trabalhos historiográficos que se cimentou o conceito de crónica que abrange o relato
cronológico dos factos com explicação e conhecimento dos mesmos.
7
Este documento foi-me facultado em PDF com a seguinte indicação bibliográfica
http://www.slp.pt/Variavel/A_Cronica_QL.html, contudo o mesmo já não se encontra acessível online e
por isso disponibilizo-o em anexo I.
8
Informação acedida em http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/os-guardas-mores-da-torre-do-
tombo/ a 2 de junho de 2014.
18
1.2.2. Do relato histórico ao âmbito literário e jornalístico
20
com melhoramentos nas técnicas e na reprodução dos periódicos, com o crescimento do
número de jornais e jornalistas e com a consequente profissionalização da atividade
jornalística. Neste sentido, a criação do Diário de Notícias nacional11 em dezembro de
1864 por Eduardo Coelho revelou-se um marco crucial no jornalismo português pois,
sendo um dos primeiros diários a ter uma distribuição alargada (aproximando ainda
mais os leitores dos jornais), estimulou a literacia e o interesse da população pelos
acontecimentos da atualidade (Henriques, 2010: 31).
Em termos culturais, os jornais irão ter um papel fundamental, na medida em que
reservavam no seu interior espaços próprios para a ficção e para as crónicas: o Diário de
Notícias tinha já em 1865 uma secção denominada Chronica, em que se «fala[va] da
chuva e do bom tempo, das efemérides e assuntos comezinhos» (Rodrigues, 2002: 100).
Nos anos posteriores à criação do Diário de Notícias foram introduzidos géneros
jornalísticos como o editorial e a reportagem para cobrir e aprofundar as diversas
ocorrências (Henriques, 2010: 29). Este periódico terá também uma importância
particularmente reconhecida porque reservava nas suas páginas espaço para a
participação de diversos escritores, promovendo a ligação entre a literatura e o
jornalismo, conforme atestam as palavras de Pina Martins: «todos os nomes da
literatura portuguesa do século XIX estão mais ou menos ligados à influência que este
[Diário de Notícias] exerceu sobre a vida política e cultural da Nação» (apud
Rodrigues, 1998: 21).
Também em outras publicações se estabeleceu uma estreita ligação entre o
jornalismo e a literatura; uma relação que no caso concreto da crónica se mantém até os
dias de hoje. A título de curiosidade, O Distrito de Évora, fundado por Eça de Queirós
em 1866, publicou uma série de crónicas deste autor que foram reunidas em 1981 na
obra Páginas de Jornalismo: «O Distrito de Évora» (1867). Constam neste volume
algumas “crónicas sobre a crónica” em que Eça disserta sobre as características deste
género híbrido. Numa delas, publicada a 17 de fevereiro de 1867, Eça destaca:
11
Existe o Diário de Notícias da Madeira, um periódico fundado a 11 de outubro de 1876 pelo Cónego
Alfredo César de Oliveira (Henriques, 2010: 23).
21
noticiários, arregalando os olhos para o mais pequeno artigo, a ver se
encontra um facto interessante ou mesmo somente assombroso (1981: 61).
Nos jornais, o espaço dedicado aos escritores acolhia géneros de escrita como a
novela, o conto, o romance, poesia, o folhetim e a crónica. Embora estes dois últimos
géneros tenham surgido como um só, as “crónicas-folhetim”, como já mencionei,
existem claras diferenças entre eles e posteriormente haverá uma separação entre os
géneros, conforme explica Manuel Henrique Almeida: «a crónica passa a ocupar-se da
realidade social, política, cultural, etc. e a surgir noutro local do periódico, num lugar
seu e como género jornalístico» (2001: 168). O autor refere ainda que o folhetim
assumir-se-ia como modalidade mais literária dedicada a contos e excertos de obras
(ibidem). A escrita de folhetins era encarada por parte dos autores como um meio de
promoção das próprias obras, uma vez que o público dos jornais era muito mais vasto e
diversificado do que aquele conjunto de pessoas que nesta época tinha acesso aos livros;
uma situação que aconteceu inclusivamente com os romances de Horácio Bento de
Gouveia. Outras vezes, os folhetins serviam também como um esboço preparatório para
a versão final das obras editadas em livro.
É neste contexto que emerge a crónica nos jornais, que por sua vez se encarrega de
relatar factos diários a partir do ângulo subjetivo de quem escreve — o cronista —,
conforme afirma José Marques de Melo: «da História e da Literatura, a crônica passa ao
jornalismo, sendo um gênero cultivado pelos escritores que ocupam as colunas da
imprensa diária e periódica para relatar os acontecimentos cotidianos ou conjunturais,
numa perspectiva eminentemente pessoal» (1988: 42).
Através desta evolução e destes sucessivos avanços e recuos (provenientes da ação
do poder régio como forma de controlar as publicações), podemos perceber que é
somente na chamada imprensa oitocentista que a crónica se afasta do âmbito histórico e
se afirma como género ambíguo que “vive” na fronteira entre o jornalismo e a literatura.
Esta conclusão é igualmente comungada por Manuel Henrique Almeida:
22
De resto, pelo facto de não existir um passado linear, ainda na contemporaneidade
assistimos a uma latente dificuldade em definir o âmbito da crónica — se jornalístico, se
literário —, como está subjacente nas palavras de Paula Lopes:
Assim sendo, com bases nas opiniões dos diversos autores, podemos concluir que
a crónica, apesar de poder ser assumida como um género jornalístico, não deixa de ter
no seu âmago ligação à história e, acima de tudo, à literatura. Neste contexto, Fernando
Figueiredo, Leonor Martins Coelho e Thierry Proença dos Santos afirmam:
Hoje em dia o público tem acesso aos principais factos e ocorrências através da
televisão e da internet e, assim sendo, como forma de combater o monopólio destes
media, os jornais têm necessidade de marcar a diferença, optando muitas vezes por
acrescentar aos conteúdos noticiosos outros que cumprirão a missão de desenvolver e
aprofundar dados e juntar opiniões sobre os assuntos noticiados. Para este fim, fazem-se
valer sobretudo dos géneros de natureza opinativa, como é o caso da crónica.
Contrariamente aos géneros informativos, a crónica jornalística pode conter
interpretação dos factos e mostrar uma perspetiva mais pessoal aos leitores, como
afirma José Luis Martínez Albertos: «en la crónica el autor de la información impregna
23
los acontecimentos narrados de su versión de los hechos» (apud Arranz, 2000: 101). De
referir também que é esta subjetividade que leva à constante comparação entre a crónica
e o artigo, ainda que existam diferenças evidentes, conforme comprovam as palavras de
Luís Carmelo:
Não se pode confundir crónica com artigo. As diferenças daquela face a este
último passam pela heterogeneidade do conteúdo e por um âmbito que não
se confina à esfera estritamente informativa. A crónica é, pois, sobretudo,
um entreposto breve de registos, ou uma verdadeira arte de composição que
se joga entre níveis diversos de observação, informação e comentário (2008:
37).
12
Como tive oportunidade de verificar na minha pesquisa no Diário de Notícias da Madeira, alguns dos
escritos de Horácio Bento de Gouveia aparecem com a indicação “artigo do Dr. Horácio Bento de
Gouveia”, embora, pelo seu conteúdo, periodicidade e subjetividade, se perceba claramente que são
crónicas.
24
O papel do cronista não é a busca da novidade nem o relato de ocorrências em
primeira mão. Tem sim como função observar a realidade, tirar conclusões e exprimi-las
ao leitor, fazendo, no fundo, a interpretação e explicação pessoal de determinados factos
e situações (reais ou ficcionadas). Para atingir este objetivo, o cronista deve sentir-se,
conforme atesta Joaquim Letria, «livre de estilos, regras ou preceitos formais,
comunicando da forma como sente os factos e tirando partido do mais próprio do seu
estilo» (1999: 51-52). Luís Carmelo, resumindo os atributos da crónica, diz que a
crónica é uma «síntese regular e permanente do trabalho jornalístico — e literário —
baseada na auscultação plural e criativa da realidade» (2008: 38).
Segundo Fernando Cascais, a liberdade de interpretação e de escolha dos factos
a comentar pelo cronista fica apenas condicionada pelo interesse que o assunto terá para
o leitor (2001: 63). E, no âmbito deste “interesse público” e abordando assuntos factuais
do quotidiano, a crónica também afirma e reforça a sua ligação ao jornalismo. Para Juan
Gargurevich, a crónica não é mais do que um «relato sobre pessoas, fatos ou coisas
reais, com fins informativos, redigidos preferentemente de modo cronológico e que,
diferente da nota informativa, não exige atualidade imediata mas sim vigência
jornalística» (apud Melo, 1988: 45).
Outra das características da crónica, tal como explica Paula Lopes, é o facto de o
«foco narrativo» se situar na primeira pessoa do singular e no testemunho do próprio
cronista. Segundo a autora, «o ‘eu’ está sempre presente de forma directa ou na
transmissão do acontecimento segundo a visão pessoal» (2010a: 8).
De resto, esta pessoalização contraria, uma vez mais, a imparcialidade exigida
aos textos informativos. Alex Grijelmo estabelece a diferença fulcral entre os dois tipos
de géneros jornalísticos (informativo e opinativo):
25
vivências e o contacto direto com os assuntos para elaborar a sua exposição. A este
respeito, Luís Carmelo esclarece:
O jornalista (ou autor) que redige uma crónica é, ele mesmo, a fonte
principal daquilo que se relata; esta é a grande especificidade da crónica.
Mesmo quando se socorre de outras opiniões – ou das fontes mais
inimagináveis – para fundar as suas interpretações, digressões e inferências,
o cronista relata sobretudo o que experimenta, o que reflecte, o que vive e o
que conhece numa condição essencialmente testemunhadora (2008: 38).
26
remate, feita muitas vezes de forma irónica e humorada, pretende reforçar a mensagem
do texto e despertar a reflexão no leitor.
A crónica é também um género jornalístico que se pode subdividir consoante o
seu tema e especificidades no entender de Joaquim Letria:
Há dois tipos de crónicas: as que respeitam a um lugar e as que têm que ver
com um tema. As primeiras competem a um correspondente, a um repórter
em viagem, aos correspondentes de guerra./13 O segundo grupo relaciona-se
com as chamadas crónicas de sucessos, a crónica judicial, a crónica
tauromáquica, a crónica social, a crónica de cidade (1999: 53).
13
O traço “/” será utilizado para marcar a divisão dos parágrafos das citações.
27
1.2.3.1. Entre o jornalismo e a literatura
28
isto é, pelos factos verídicos, muito embora possa incorporar também no seu texto
reflexão, subjetividade e algumas técnicas próprias da literatura (2002: 74).
Assim, contrariamente ao produto literário, a crónica jornalística, não
camuflando a subjetividade14, nem seguindo a estrutura noticiosa da pirâmide
invertida15, tenta afastar-se dos factos e personagens meramente imagináveis e cingir-se
ao real, comentando os factos e acontecimentos que marcam ou têm pertinência para a
atualidade e para a discussão. É, no fundo, uma escrita que valoriza a interpretação.
Em termos estruturais, as opiniões acerca da crónica são também divergentes.
José Rebelo, por exemplo, é da opinião que a estrutura da crónica jornalística «segue de
perto o célebre triângulo invertido», explicando que «começa-se por reunir a [sic]
máximo de informações e de comentários sobre a ocorrência. Depois, à medida que se
avança na narrativa, vão-se retendo, apenas, os aspectos mais relevantes até se chegar ao
decisivo. Que mais não é do que a conclusão» (apud Lopes, 2010a: 9).
Já Daniel Ricardo é categórico a afirmar que a crónica, à semelhança dos demais
textos opinativos, «não se subordina às exigências da técnica do lead e da pirâmide
invertida, mas deve incluir uma abertura em que se exponha o assunto a tratar e um
desenvolvimento em que as ideias apareçam por ordem crescente de complexidade»
(apud Lopes, 2010a: 9).
Em termos sumários, é também nesta corrente de proximidade entre o
jornalismo e a literatura que se inserem os escritos de diversos cronistas
contemporâneos e dos profissionais do chamado “Novo Jornalismo” ou “Jornalismo
Literário”; uma forma de fazer jornalismo (divulgada nos Estados Unidos da América
nas décadas de 60 e 70 do século XX) que desconstrói a forma tradicional de informar o
público e que incorpora ao facto noticiado técnicas e métodos associadas à literatura,
14
A subjetividade é de resto um elemento transversal ao jornalismo em geral – mesmo em publicações e
meios que se pautam pelo rigor e objetividade – na medida em que tanto a simples seleção das matérias a
ser noticiadas, como a própria disposição e alinhamento das notícias e artigos nos diversos meios de
comunicação já pressupõem um olhar pessoal e subjetivo. No caso concreto da crónica, esta perspetiva
pessoal é mais visível e ainda mais alargada servindo inclusivamente de base à relação de proximidade e
ao diálogo constante que existe entre o cronista e os seus leitores (Melo, 2007: 2).
15
Segundo o Manual de Jornalismo de Anabela Gradim, «a pirâmide invertida é a técnica mais comum
de construção das notícias e segue-se naturalmente da elaboração de um bom lead directo. Significa,
muito simplesmente, que numa notícia, a seguir ao lead, todas as restantes informações são dadas por
ordem decrescente de importância, de forma que, à medida que se vai descendo no corpo da notícia, os
factos relatados se vão tornando cada vez menos essenciais. Pirâmide invertida porque a base desta,
aquilo que é noticiosamente mais importante, se encontra no topo – em ordem muito distinta à que
seguem por exemplo a novela, o drama ou o conto». Citação obtida em http://bocc.ubi.pt/pag/gradim-
anabela-manual-jornalismo-2.html#b512 a 9 de setembro de 2014.
29
conferindo assim ao texto jornalístico maior dinamismo e envolvência. Ao abrigo desta
corrente (encabeçada por nomes como Tom Wolfe, Truman Capote e Gay Talese)
géneros como a reportagem, o perfil e a crónica ganham um novo fulgor e versatilidade
(Fakazis, 2009: 946-950 e Forde, 2009: 854-858).
O timing de escrita de um texto jornalístico — mesmo no caso da crónica — é
também muito mais reduzido do que aquele de que dispõem os escritores. Nas palavras
de Mar de Fontcuberta, «um escritor pode levar anos a escrever um romance; o
jornalista tem que executar o seu trabalho num prazo curto e improrrogável» (2002:74).
Até mesmo no caso das crónicas de periodicidade semanal (como são a maioria
dos escritos jornalísticos de Horácio Bento de Gouveia) há a necessidade de cumprir a
hora de fecho dos órgãos de comunicação social. A este respeito, Ernesto Rodrigues,
numa análise que faz à obra bentiana Crónicas do Norte, afirma que o «sentido
jornalístico do vário que se equivale é a metodologia de qualquer cronista, que não pode
esperar pelo raro ou singular, porquanto não advinha, e a hora de fecho não se
compadece» (Rodrigues, 2002: 100).
Outra das diferenças latentes entre o jornalismo e a literatura reside, para muitos
estudiosos, no critério da atualidade. Lázaro Carreter e Fontcuberta são apenas dois dos
teóricos dos que consideram que o texto literário nunca morre, ao passo que o
jornalístico «morre diariamente, até hora-a-hora, e deve estar contido num espaço e num
tempo rigidamente fixados» (Fontcuberta, 2002: 75).
Mas, dado o objeto da minha dissertação incidir sobre a afirmação da identidade
madeirense nas crónicas jornalísticas de Horácio Bento de Gouveia, discordo destes
autores acerca da efemeridade destes textos, uma vez que parte destas crónicas quando
foram publicadas incentivaram de alguma forma a valorização do património, usos e
costumes madeirenses e até mesmo nos dias de hoje constituem um importante recurso
no estudo e afirmação dos aspetos identitários da ilha. A imortalização destes e de
outros escritos jornalísticos em livro pode ser também uma forma de combater a
fugacidade associada ao jornalismo, como de resto afirmam Adriano Rodrigues,
Eduardo Dioníso e Helena Neves:
30
uma vez passada a sua funcionalidade efémera, a obra jornalística […] não
venha transformar-se em texto consagrado (1981: 143).
16
Luís Calisto, “Horácio Bento de Gouveia e o seu novo livro: «Margareta» vingará em Portugal porque
é dinâmico e está bem escrito”, Diário de Notícias da Madeira, 29 de junho de 1980.
31
típicos da sua terra. Assim, surgem nos textos jornalísticos diversos regionalismos e
passagens ilustrativas das particularidades dialetais madeirenses, conjugadas com a
escrita do português corrente e acessível ao comum dos leitores.
A crónica jornalística, como costuma estar vinculada à atualidade, incide sobre
temas polémicos e atuais como forma de alimentar a inquietude dos leitores e, por isso
mesmo, o cronista (à semelhança dos demais profissionais dos jornais) tem também de
dominar minimamente as diversas áreas do saber e apreender a generalidade dos
assuntos que constituem a ordem do dia, ao contrário do escritor, a quem não é exigido
este domínio sobre a atualidade. Apesar disto, a crónica jornalística (sobretudo aquela
que é assinada por elementos exteriores à redação), aproximando-se da literatura, goza
ainda de uma certa liberdade temática e de estilo e, assim sendo, não está submetida de
forma tão vincada às mesmas normas sob as quais se regem os restantes géneros,
sobretudo os informativos, como é o caso da notícia.
Em Noções de jornalismo: histórias e técnicas, José Jorge Letria e José Goulão
concluem: «as crónicas aligeiram os jornais, muitas vezes sobrecarregados com os
factos. Se a reportagem reproduz a vivência pessoal do jornalista, a crónica transmite a
reação pessoal, com a qual muitas vezes os leitores se identificam, através do humor da
ironia, do elogio emocionado, de todas as formas de sentimentos» (1982: 86).
No seio da velha relação entre jornalismo e literatura, Baptista-Bastos sintetiza
os papéis e explica: «O escritor conta uma história. O jornalista desmonta-a. O escritor
não tem de pesquisar o erro: tem de o assinalar, criando situações e fazendo inflectir
essas situações nas personagens. O jornalista tem de investigar o porquê das coisas, para
compreender o que acontece. Mas ambos, escritor e jornalista, trabalham com homens e
para homens» (apud Rodrigues, 1998: 83-84).
Mas, com esta enumeração de pontos divergentes entre a literatura e o
jornalismo, não quero comprovar a não existência de semelhanças entre estes dois
géneros, uma vez que estou consciente que tanto uma modalidade como outra partilham
características entre si e a fronteira que existe entre a literatura e o jornalismo é muitas
vezes permeável e híbrida, sobretudo nos textos de âmbito opinativo, como é o caso da
crónica jornalística. Neste sentido, Nelson Veríssimo diz: «a crónica constitui um
género do jornalismo de opinião, muito cultivado na imprensa diária, que prestigia o
32
periódico e simultaneamente implica o reconhecimento, por parte deste, dos pontos de
vista, valor literário e espírito crítico de quem a subscreve»17.
Comprova-se, deste modo, que existem opiniões radicalmente opostas em
relação à crónica: umas não concordam com a sua existência enquanto género
jornalístico — justificando que os cronistas não participam do ambiente do jornal e
escapam da produção e das determinações de espaço e tempo inerentes ao jornalismo —
e outras, pelo contrário, atribuem à crónica jornalística um âmbito eminentemente
informativo (Lopes, 2010a: 7).
Contudo, na minha perspetiva, a crónica jornalística desvia-se das normas
rígidas dos géneros puramente informativos e no âmbito do jornalismo opinativo segue
também estruturas e modelos normalmente ligados à literatura. A este respeito, da
análise que fiz aos escritos bentianos, concluí que o cronista utiliza introduções capazes
de fascinar o leitor, elabora no seu texto interrogações retóricas, críticas, sátiras e
comentários e, no término do texto, nunca dá por concluído o diálogo com o leitor,
deixando em aberto um próximo encontro. Este suspense, de resto, irá também conferir
à sua crónica continuidade e ao mesmo tempo um caráter fragmentário.
Acima de tudo, mais do que um género próximo da literatura, a crónica
jornalística assume-se pela simplicidade, eficácia, proximidade e pelo facto de se aliar à
atualidade para promover a reflexão e cumprir, por assim dizer, o papel social do
jornalismo — que é o de informar e formar o público. Já em 1978 Horácio Bento dizia
que «comunicar é uma necessidade primária do homem»18, e talvez por isso ele tantas
vezes, nas suas crónicas, advirta para a importância da leitura e do jornal, o meio de
comunicação de excelência das primeiras décadas do século XX. Numa delas afirma:
17
Nelson Veríssimo, “Horácio Bento de Gouveia e as Crónicas do Norte”, Diário de Notícias da
Madeira, 18 de setembro de 1994.
18
Horácio Bento de Gouveia, “A gazeta é comunicação”, Diário de Notícias da Madeira, 11 de outubro
de 1978.
19
Horácio Bento de Gouveia, “A leitura do jornal”, Diário de Notícias da Madeira, 21 de janeiro de
1962.
33
2. JORNALISMO E IDENTIDADE: A CRÓNICA DE HORÁCIO BENTO DE
GOUVEIA
Ainda que o mundo contemporâneo seja uma autêntica “aldeia global”, nas
palavras de Marshall McLuhan, e que sejamos confrontados com o fenómeno da
globalização, assiste-se paralelamente a uma maior consciencialização das
especificidades e características de cada cultura, país, região, povo ou raça. É também
no reconhecimento da diversidade que emergem e se consolidam determinados
conceitos, entre eles o de identidade — entendido como o conjunto de características
que identificam e diferenciam determinado grupo ou território.
Já desde há muitos séculos que muitos países (sobretudo europeus, pelo seu
passado de lutas e conquistas e pelo facto de terem sido colonizadores) reclamam e têm
vindo a afirmar a sua identidade nacional. No entanto, na maior parte dos casos, a
proclamação das identidades fazia-se apenas por questões eminentemente políticas e
não por especificidades socioculturais.
Hoje em dia, para além de se consagrarem identidades mais abrangentes —
como é o caso da europeia — e para além das características, símbolos e traços dos
países fazerem parte da noção de identidade nacional, existe uma especial atenção em
relação ao artesanato, gastronomia, tradições, usos e costumes dos territórios mais
pequenos e das diversas regiões. No entender de Claude-Gilbert Dubois, a identidade
regional é «a consciência que têm os homens de partilhar um certo número de bens,
recordações e valores comuns, de maneiras de viver, de referências a um discurso que
reenvia a imagens familiares»20.
É neste quadro mais específico que se insere a noção de identidade madeirense,
que traduz não só um conjunto de especificidades e traços sociais e etnográficos da
região, como também é determinada pela configuração geográfica e pela insularidade. A
este respeito, Alberto Vieira afirma:
20
Citação obtida em http://www.academia.edu/1153139/o_discurso_da_identidade_insular a 2 de julho
de 2014.
34
mundo insular, assente numa singular personalidade, numa particular cosmo
visão, ou melhor ainda, numa forma de ser e estar no mundo21.
De resto, esta mesma conclusão foi também partilhada por Horácio Bento de
Gouveia na crónica “Civilização Madeirense”, quando afirma que as ilhas são espaços
privilegiados na preservação de tradições:
21
Idem.
22
Idem.
35
Assim sendo, mais do que em qualquer outra parcela territorial, nas ilhas as
características geográficas determinam a vida, o modo de ser e agir e, no fundo, a
identidade. No entender de Amílcar Pereira, é o facto de as ilhas serem periferias, isto é,
espaços que são influenciados por diversos determinantes, sobretudo de «ordem
geográfica», que as torna territórios únicos:
36
são vistos como um pequeno grupo de privilegiados, parte integrante de um
mundo particular (Teixeira, 2001: 18).
37
Apesar de serem ambos arquipélagos portugueses e partilharem um conjunto de
valores e símbolos da identidade nacional — como é o caso da língua —, os Açores e a
Madeira têm traços identitários diferentes. As ilhas da Madeira não têm, por exemplo,
uma relação tão intrínseca com o mar como têm as ilhas açorianas. Nas palavras de João
Afonso, as realidades destes espaços insulares não podem ser linearmente equiparadas:
Em relação aos Açores, tal como já foi referido, Vitorino Nemésio criou a
açorianidade, isto é, um termo próprio para definir a identidade ou insularidade
açoriana. Já no que diz respeito à ilha da Madeira, embora ainda não exista nenhum
conceito oficial que sintetize o modus vivendi destas ilhas, alguns autores já têm vindo a
teorizar implicitamente sobre a “madeirensidade” (Rodrigues, 2012: 3). Paulo Miguel
Rodrigues, docente da Universidade da Madeira, por exemplo, é a favor da existência da
“madeirensidade” como um conceito operatório que ajuda a «reflectir sobre as múltiplas
modalidades identitárias (sincrónicas e diacrónicas) identificáveis no Ser madeirense»
(idem: 4).
A “madeirensidade”, na conceção de Paulo Miguel Rodrigues, não sendo uma
abordagem concetual essencialista, apoia-se na interdisciplinaridade proporcionada
pelas diversas áreas do saber — entre elas a filosofia, a etnografia, a linguística, a
antropologia, a sociologia, a história e a geografia — para melhor esboçar a realidade e
os traços característicos das ilhas da Madeira. Contrariando o ceticismo que existe em
relação a este assunto, o autor acrescenta que «só o desconhecimento e o preconceito
acrítico poderão justificar esta resistência a discutir construtivamente a identidade
insular madeirense, pois a História já mostrou a falácia de tais posições». Já para o facto
de ainda não ter sido criado um termo para a realidade insular madeirense, Paulo Miguel
Rodrigues alega questões de ordem política, nomeadamente a ação «coerciva» do
Estado Novo e a divisão que existia entre o sistema político e alguma «elite
madeirense» (idem: 3-4).
38
Ainda que por vezes se atribua a criação da identidade madeirense ao momento
da fundação da Autonomia político-administrativa do arquipélago, isto é, à criação da
Região Autónoma da Madeira em 1976, e que este estatuto tenha sido fundamentado em
condicionalismos geográficos, económicos, sociais e históricos23, a verdade é que desde
sempre o ilhéu madeirense teve noção da sua própria condição. No entender de Maria
Mónica Teixeira, «o ilhéu madeirense (também denominado “insulano”, para Cabral do
Nascimento; ou o “insulado” para Agustina Bessa-Luís) é o que herdou dos seus
antepassados, pelo legado da tradição, uma consciência insular inata, a qual não pode
ser transmissível» (2001: 27).
Num âmbito político, Maria do Céu Alves, apesar de reconhecer que a
Autonomia representa uma expressão da identidade madeirense porque reconheceu
determinados símbolos (a bandeira, as praças e o hino), adverte também para existência
de outras particularidades e, apesar de erradamente se referir ao dialeto falado na
Madeira como “língua”, afirma:
Também, neste sentido, Thierry Proença dos Santos reconhece que os ideais e
liberdades conquistadas após a revolução de 25 de abril de 1974 e a própria Autonomia
trouxeram uma «nova dinâmica» e fomentaram o «interesse crescente pelos valores
culturais insulares» (2004: 109).
Os habitantes da Madeira foram, desde há várias décadas, conhecedores das suas
especificidades etnográficas e da sua diferença. Mesmo antes de ser decretada a sua
autonomia, a exaltação do folclore, da ruralidade, do artesanato e da gastronomia
madeirense era já uma constante, sendo todas estas peculiaridades transmitidas não só
de geração em geração, como também em manifestações culturais, nas festas e romarias
e também em alguns registos escritos, quer em jornais, quer em obras.
Assim sendo, a identidade madeirense chega até nós por duas vias paralelas. Por
um lado, foi a tradição oral que se encarregou de transmitir, desde os primeiros tempos,
23
Nelson Veríssimo, “Autonomia, História e Identidade”, Diário de Notícias da Madeira (artigo acedido
em http://www.dnoticias.pt/impressa/diario/opiniao/53814-autonomia-historia-%07e-identidade a 15 de
julho de 2014).
39
os costumes etnográficos da ilha de pais para filhos e, por outro lado, foi o «labor
intelectual de padres, altas patentes militares, professores, advogados, jornalistas, raros
autodidactas e filhos de família que iam para Portugal continental ou para a Europa
cursar a Universidade» que registaram em papel a mundividência madeirense (Santos,
2006-2008: 562).
A nível jornalístico — consequência da já abordada revolução liberal — em
1821 foi criado o Patriota Funchalense, uma publicação pioneira do jornalismo na
Madeira, e que representou o primeiro passo na revindicação da cultura madeirense, até
então negligenciada.
Ainda no século XIX foi editada a antologia Saudades da Terra, de Gaspar
Frutuoso, contendo um volume dedicado ao arquipélago da Madeira e, mais tarde, em
1921, foi publicado o Elucidário Madeirense, uma obra do Pe. Fernando Augusto da
Silva e de Carlos Azevedo de Meneses, que ainda hoje se assume como um documento
histórico da vivência das ilhas de Zarco e que contribui de alguma forma para a
afirmação da identidade madeirense. Em 1930, saiu também a público Freguesias da
Madeira, do Tenente-coronel Alberto Artur Sarmento, onde o autor descreveu as
características e costumes das freguesias do arquipélago. Para além destes livros de
caráter mais histórico, foram publicadas outras obras que, ou sendo escritas por
madeirenses ou tendo a ilha como cenário, assumindo-se como produtos de interesse
cultural, bem podem ser consideradas como testemunho da memória coletiva.
As primeiras décadas do século XX foram também pródigas no aparecimento de
tertúlias e grupos de discussão intelectual na Madeira. César Pestana atribui a
emergência destes movimentos ao isolamento a que a ilha está sujeita:
40
Nos últimos anos, para além do mencionado avanço político e da criação de um
estatuto autonómico na Madeira, o aparecimento de meios de comunicação social mais
abrangentes — como é o caso da televisão e dos novos media — também tem
contribuído para o conhecimento e afirmação da identidade madeirense, na medida que
estreitaram a comunicação e as relações que existiam entre as ilhas, o território
continental, a diáspora e o resto do mundo.
Assim sendo, podemos verificar que a definição da identidade madeirense não
foi um processo linear. Socorreu-se de diversas iniciativas de âmbito cultural e político
e ancorou-se na história, no quotidiano, nas particularidades dialetais, na arte, no
artesanato, na gastronomia e em outros traços e símbolos característicos da ilha da
Madeira, como esclarece João Henrique da Silva:
41
No entanto, embora a identidade madeirense não seja consensual e existam
poucos documentos sobre a temática (comparativamente àqueles que se debruçam sobre
a açorianidade), há de facto um modo sui generis de ser e agir típico na região. Ainda
que os limites físicos da ilha condicionem o viver e os hábitos dos seus habitantes,
também é verdade que, ausentando-se da sua terra natal, o madeirense reproduz
simbolicamente o “viver” da sua terra. Não causa por isso estranheza que a mesa
natalícia de um emigrante da Madeira na África do Sul apresente o tradicional bolo de
mel, os licores ou a carne de vinho e alhos. De igual modo se justifica o facto de uma
comunidade de emigrantes madeirenses no Havai ter erguido uma igreja de Nossa
Senhora do Monte (padroeira da ilha), como é explicado na crónica de Horácio Bento
“Emigração de Outrora: madeirenses em Hawai” (Gouveia, 1966: 102).
E este sentimento de pertença à ilha é tão presente que mesmo os autores e
intelectuais tendem, na sua maioria, a escrever sobre a condição e o drama do ilhéu.
Neste sentido, em Madeira: a epopeia rural, Vieira Natividade resume parte das
manifestações e traços identitários da região, enumerando diversos momentos e rituais
típicos: «a Madeira das Festas de S. Silvestre»; a «Madeira dos turistas apressados que
vai do cais da Pontinha a Câmara de Lobos, sobe ao Monte e ao Terreiro da Luta ou que
dobra, quando muito, a cordilheira central até ao Ribeiro Frio»; a «Madeira dos Reid,
dos Savoy, dos Golden Gate»; a «Madeira inglesada, com o seu perfume de whisky e de
tabaco loiro, com a sua estranha fauna cosmopolita»; a «Madeira folclórica, dos seus
carros pitorescos, com boieiros aperaltados como brasileiros de torna viagem; das
viloas, de garridos trajos, vendedeiras de flores» e a «Madeira dos vinhos raros, dos
bordados e dos vimes — estalagem nas rotas do oceano e onde os barcos se detêm um
momento, como gaivotas que poisam num recife, para logo partirem, recuperadas as
forças, e de novo se perderem na solidão do mar» (1954: 27-28).
Na obra A ilha da Madeira vista por intelectuais e artistas portugueses, também
Natália Correia faz questão de mencionar os aspetos que, na sua conceção,
identificavam o território madeirense:
42
Não obstante tudo o que já foi dito anteriormente, e não menosprezando tudo o
que desde há muitas décadas tem vindo a ser feito em prol da devida catalogação do ser
madeirense, é necessário alertar para a conservação, afirmação e divulgação da
identidade dos pequenos territórios. De modo a que as gerações vindouras possam ter
acesso ao património identitário, urge a necessidade de combater a homogeneidade do
mundo contemporâneo. Onésimo Teotónio de Almeida, ilhéu de nascença e estudioso
sobre as questões da identidade dos espaços insulares, adverte para o facto de o mundo
estar cada vez mais uniformizado e aconselha as comunidades a darem «um mergulho
para dentro de si mesmas à procura do enraizamento que lhes permita enfrentar a
avalanche da mesmização ameaçadora» (2001: 190). Opinião semelhante partilha
Thierry Proença dos Santos quando fala na «necessidade de vitalizar a identidade
cultural da comunidade madeirense para se sobreviver num mundo cada vez mais
globalizado» (2006-2008: 580).
Dada esta carência, parece-me pertinente a análise dos traços típicos da Madeira
presentes nos registos jornalísticos de Horácio Bento de Gouveia, os quais, por sua vez,
contribuem para a afirmação da identidade madeirense.
Proença dos Santos, questionado pelo Diário de Notícias da Madeira sobre os
escritos bentianos, é categórico ao afirmar que estes constituem «um acervo muito rico
em tudo o que diz respeito ao enquadramento cultural da ilha, seus usos e costumes»24.
Horácio Bento, pelo orgulho que tem de pertencer à ilha25, pela sua extensa vida
e pela obra vinculada à ilha, é inclusivamente apontado como «retratista fiel do modus
vivendi do homem real e do homem citadino madeirense» (Silva, 2002: 82).
24
Luís Rocha, “Obras de Horácio Bento de Gouveia são a “expressão da insularidade”, Diário de
Notícias da Madeira, 30 de julho de 2006.
25
Numa situação de diálogo entre Horácio Bento de Gouveia e João França, o primeiro, quando
questionado se a sua próxima obra teria a ilha como cenário, não hesita em afirmar: «Certamente. Tem
mesmo de ser ilhéu. De contrário, sentir-me-ia traidor à minha terra. Tenho orgulho em ser madeirense».
João França, “Entre um e outro banco: diálogo entre dois escritores madeirenses”, Diário de Notícias da
Madeira, 18 de setembro de 1981.
43
2.2. As crónicas bentianas e a afirmação da identidade madeirense
Vocacionado para as lides jornalísticas, desde a mais tenra idade que Bento
de Gouveia, ainda em Ponta Delgada, S. Vicente, foi experienciando as
agruras técnicas dessa cativante actividade de índole social. Primeiramente,
de forma artesanal, lá se foi realizando com a confecção de um jornalinho
que, um a um, em jornadas previamente preparadas, vendia nas cercanias da
casa dos pais. Merecia-o, pois era inteiramente por si produzido e, ao ser
distribuído na localidade, levava aos seus fiéis leitores notícias sobre a
chegada dos barcos, os casos mais evidentes de que tinha conhecimento na
freguesia e até apresentava material recreativo, à boa maneira dos mais
estimados magazines mundanos (2002: 133).
De Ponta Delgada, e uma vez que a família era detentora de algumas posses
económicas que lhe permitiam prosseguir os estudos, Horácio Bento de Gouveia veio
com 16 anos para a cidade do Funchal. Ingressou primeiro no Instituto de D. Georgina e
mais tarde no Curso Complementar de Letras no Liceu Nacional do Funchal e no ano de
1918 voltou a criar mais um jornal, O Torpedo. Sensivelmente um ano depois iniciou a
sua colaboração com alguns títulos da imprensa madeirense. Segundo o sítio da
Universidade da Madeira dedicado a Horácio Bento de Gouveia e a avaliar pelos
escritos recolhidos e posteriormente publicados pela sua filha, Maria de Fátima Gouveia
Soares, O Desporto, O Radical, Correio da Madeira e o Diário da Madeira são os
periódicos da região que acolhem os primeiros escritos jornalísticos de Horácio Bento.
Para além destas participações, levadas a cabo nos anos 20, consta também
(segundo o supracitado sítio da Internet) que, sob o pseudónimo “Trêvo”, o madeirense
publicou artigos no jornal académico Gente Nova. No ano de 1920, fundou com outros
colegas, entre eles, Manuel Ferreira Rosa, o jornal Os Novos (Silva, 2002: 27).
Nesta altura, sem as vias de comunicação atuais, a ida à sua terra natal era uma
autêntica aventura. Na ausência de ligação marítima do Funchal para o porto de Ponta
Delgada, os nortenhos iam de barco até à Ribeira Brava e a partir daí, dobrando a
45
Encumeada, faziam o restante caminho a pé, por entre veredas. A caminhada era difícil,
mas o desejo do regresso a Ponta Delgada era mais forte, como relatou Horácio Bento:
29
Citação obtida em http://www3.uma.pt/hbento/ent_retrato.html a 28 de maio de 2014.
30
S/A, “A obra e a figura do escritor e jornalista na palavra do Dr. Marques da Silva”, Diário de Notícias
da Madeira, 24 de outubro de 1980.
46
1941, da conferência intitulada “Aspectos da Moderna Literatura Brasileira”. Acerca
deste documento Margarida Macedo Silva, sua ex-aluna, refere:
31
Informações obtidas em http://www3.uma.pt/hbento/ent_retrato.html a 28 de maio de 2014.
32
Atualmente designado Jornal da Madeira.
33
Horácio Bento de Gouveia, “Doutor Hernâni Cidade”, Diário de Notícias da Madeira, 20 de maio de
1971.
47
rápida incidência sôbre realidades como as tocadas ao de leve no capítulo da
Vida Afectiva […] Tudo isto, já o insinuei, está fechado a dentro do círculo
áureo dos seus interesses afectivos, ainda mais do que os seus interesses
intelectuais; o próprio Brasil, que lhe merece páginas comovidas, é sob o
ângulo visual das suas saudades de estudante excursionista que o evoca – tão
coberto de capas negras, que mal se entrevê… (apud Gouveia, 1933: II).
34
Informação acedida em http://www3.uma.pt/hbento/cronologia.html a 28 de maio de 2014.
35
Horácio Bento de Gouveia foi nomeado diretor do semanário político-regionalista A Voz da Madeira
em maio de 1953 por iniciativa da Comissão Distrital da União Nacional. Como relata Thierry Proença
dos Santos, «o poder, que apoiava o Estado Novo, procurou reunir os intelectuais madeirenses em torno
do semanário, oferecendo-lhes um espaço para as suas criações literárias. Em contrapartida, subentendia-
se que não lhes era dado falar em política. Em A Voz da Madeira muitos se estrearam na escrita literária e
muitos colaboraram com Horácio Bento» (Santos, 2007: 71). Mais tarde, em 1969, descontente com as
linhas editoriais que a publicação ia adotando, pede a demissão, numa carta aberta, afirmando o seguinte:
«Como nada permanece tudo está sujeito, pois, ao devir, as ideias e as políticas dos homens evoluíram, e
eu por natureza com costela de escritor e não de político, porque nunca o fui, na ilha onde nasci, sinto que
o profissionalismo e o meu ascetismo dirigido para a cultura do espírito me divorciam inteiramente de
ocupar a direcção de um semanário que na política criou profundas raízes» (idem: 72).
36
Citação obtida em http://www3.uma.pt/hbento/ent_retrato.html a 28 de maio de 2014.
48
Aquilino Ribeiro, considerado por muitos dos que se dedicaram ao estudo da obra
bentiana uma das suas grandes influências. Após esta nova experiência na capital
portuguesa, em 1948, Horácio Bento de Gouveia foi nomeado professor efetivo e
vice-reitor do Liceu Nacional do Funchal (atualmente Liceu Jaime Moniz), onde
lecionou até ao ano de 1976. Dotado do dom da oratória e de confirmados
conhecimentos culturais, coube a Horácio Bento proferir diversas orações de sapiência
nas habituais cerimónias de abertura dos anos escolares na referida instituição de ensino
e, em termos jornalísticos, nesta altura colaborou também no já mencionado Diário de
Notícias da Madeira, no Diário da Madeira, no Eco do Funchal, no Jornal e na revista
cultural Das Artes e da História da Madeira, entre outros.
Paralelamente à atividade jornalística e docente, Bento de Gouveia dedicou o
seu tempo à escrita de romances. Em 1949, sob a chancela da Coimbra Editora37, foi
publicado seu primeiro romance intitulado Ilhéus38. A trama situa-se nos anos 20 do
século XX e, em jeito de crítica social e moral, gira em torno das desigualdades sociais
e económicas que o regime de colónia provocava na Madeira 39. O protagonista, Manuel
Esmeraldo, à semelhança de várias personagens da obra bentiana, revela traços
autobiográficos e coloca a nu a miséria e a fome enfrentadas pelos colonos e o caráter
desumano de alguns senhorios da costa norte da ilha. Para além do cariz social, esta
obra tem, à semelhança dos restantes romances, a particularidade de fazer, através das
palavras, quadros vivos da paisagem madeirense, de revelar o linguajar e as tradições
37
Segundo Thierry Proença dos Santos a Coimbra Editora foi uma «instituição de prestígio afecta ao
regime político, mas que editou nomes insuspeitos como Miguel Torga, Fernando Namora, Carlos de
Oliveira… » (Santos, 2002: 57).
38
O título previsto para a obra era Canga mas, segundo consta, este título não agradara aos censores pela
sua conotação negativa, de sofrimento e dor. Anos depois, em 1976, numa 3ª edição da obra e terminado
o regime ditatorial em Portugal, é reposto o título inicial da obra — Canga— e são repostos os capítulos
anteriormente retirados (Santos, 2007: 35). A este propósito, Aquilino Ribeiro no prefácio que faz à obra
na sua primeira edição (intitulada então Ilhéus) alega mesmo: «Aproveitou optimamente o pitoresco da
ilha, o seu viver – e este é um dos aspectos mais interessantes da sua lucubração. O título é que me parece
não corresponder, embora de acordo com o contexto. É muito restritivo» (Gouveia, 2008: 29).
39
Antigo regime agrário que vigorava até 1977 na Madeira. Ao abrigo do contrato de colónia, os colonos
trabalhavam a terra dos senhorios e em troca tinham o direito de retirar para si parte da produção agrícola
e ficavam detentores das benfeitorias, isto é, dos melhoramentos que fizessem nas parcelas de terrenos.
Acontece que, para além dos terrenos serem de muito difícil acesso, muitas vezes o senhorio exigia para
si as melhores colheitas e outras vezes, quando o colono decidia vender os seus direitos no terreno, o
senhorio usava as suas redes influentes de relacionamentos e inflacionava o preço das benfeitorias paras
as poder adquirir por um preço baixo.
Informação obtida em http://ruinepomuceno.blogspot.pt/2010/02/horacio-bento-de-gouveia-e-escola-
neo.html a 7 de setembro de 2014.
49
tipicamente madeirenses e tem como ponto forte o facto de misturar a ficção com dados
reais. Sobre esta particularidade João David Pinto-Correia afirma:
Horácio Bento de Gouveia na crónica, podemos com certeza notar que, neste
autor, ficção e crónica não se situam tão longe uma da outra como à partida
poderá parecer. Direi mesmo que uma implica a outra. De facto, na obra
bentiana, os romances poderão ser considerados como momentos
importantes e vastos da cronística (2002: 138).
40
As «Missas do Parto» são liturgias celebrativas dos 9 meses da gravidez da Virgem Maria e decorrem
entre os dias 16 a 24 de dezembro. Realizadas nas madrugadas destes nove dias, têm a particularidade de
misturar a faceta religiosa com a pagã, nomeadamente com música e comes e bebes após a missa.
41
O termo “Festa” refere-se à época do Natal, iniciada na Madeira nos primeiros dias de dezembro e que
se estende sensivelmente até ao dia de Santo Amaro (15 de janeiro), altura em que se desmancham os
presépios/ “lapinhas”.
51
Menos presente na vida jornalística na Madeira, no final da década de 70,
Horácio Bento dedicou o seu tempo não só à escrita de romances mas também à
apresentação do seu programa televisivo “Dentro do Espaço e do Tempo” na recém-
criada RTP-Madeira (1976-1981). À avaliar pelas crónicas enviadas de diversas
capitais europeias para o Diário de Notícias da Madeira, sob o título “Jornadas”, em
1977 o madeirense visitou alguns países da Europa e a ilha de São Miguel, nos Açores.
Em maio de 1979 apresentou o romance Torna-Viagem, desta feita exaltando,
em jeito de epopeia, a emigração e o emigrante madeirense. Curiosamente, Torna-
Viagem é a obra que muitos consideram ser o vértice de uma suposta “trilogia do drama
do ilhéu madeirense”, iniciada em Canga/Ilhéus e Lágrimas Correndo Mundo, facto
confirmado pelo próprio autor: «Nos três romances a vida socio-económica da Madeira
[sic], estão realçados. Não é só a vida das bordadeiras, como a vida do colono e agora a
vida do emigrante. Todos eles contêm factos que são a projecção da própria vivência do
homem na terra»42. Neste mesmo ano (1979) foi apresentada, na Universidade de
Harvard, a dissertação de Doutoramento de Gregory F. Rocha Jr. intitulada A Novelist
of the Madeiran Experience: The Life and Works of Horacio Bento de Gouveia. No ano
seguinte, surgiu a lume ainda outro romance, Margareta, uma obra ligeiramente
diferente como, aliás, refere o próprio Horácio Bento:
Para além de ter sido o ano de publicação da última obra (em vida) de Bento de
Gouveia, 1980 foi, de alguma forma, o ano das homenagens, com destaque para o mês
de outubro, altura em que recebeu a medalha de Ouro da Cidade do Funchal e em que
foi também homenageado pela Câmara Municipal de São Vicente, com a colocação, na
casa onde nasceu, da seguinte inscrição em lápide:
42
S/A, “Horácio Bento de Gouveia ao «F.I»”, Farol das Ilhas, de 6 a 28 de junho de 1979.
43
Luís Calisto, “Horácio Bento de Gouveia e o seu novo livro”, Diário de Notícias da Madeira, 29 de
junho de 1980.
52
Na cerimónia foi igualmente lançado o livro Horácio Bento de Gouveia, ilhéu e
populista: ensaio de entendimento, de Manuel Ferreira Rosa. Nesta altura foi também
constantemente requisitado para entrevistas, prefácios e colóquios, apresentou o
programa radiofónico “A Ilha e o Homem” na RDP (1891/1982)44 e participou
regularmente no Diário de Notícias da Madeira; uma participação que começou nos
anos 60 e que terminou no dia 13 de janeiro de 1983 com a crónica “Da linguagem: mau
português”, a qual termina com um apelo: «Torna-se necessário o conhecimento
discursivo da língua; as desportuguesadas já não caem no papel como as pragas do
Egipto. Funchal, Janeiro de 1983»45.
A 14 de janeiro de 1983 sofreu um AVC, falecendo a 23 de maio do mesmo ano.
No dia seguinte à morte do cronista, o Diário de Notícias da Madeira publicou:
Contudo, a morte física não apagou o legado escrito de Horácio Bento. Depois
de ter deixado um manancial de escritos, quer em romance, quer em crónica, em 1986
foi publicada postumamente a sua obra Luísa Marta – Ficção e Memória, romance que
curiosamente intercala aspetos ficcionados com a própria biografia do autor.
Embora por concretizar tenham ficado algumas propostas, como a adaptação de
Canga para o teatro radiofónico (da autoria de Judite Navarro) e para o cinema (por
Luís Cabrita)47, a verdade é que têm existido, em torno da sua obra, algumas iniciativas
— impulsionadas sobretudo pelos familiares — realizadas nas efemérides do
nascimento e morte do madeirense. Foram lançadas em 1994 as Crónicas do Norte
(seleção de crónicas jornalísticas de Bento de Gouveia sobre a região norte da Madeira)
44
Eu própria tive acesso, com cedência da RTP/RDP Madeira, a dois dos programas apresentados por
Horácio Bento de Gouveia.
45
Horácio Bento de Gouveia, “Da linguagem: mau português”, Diário de Notícias da Madeira, 13 de
janeiro de 1983.
46
S/A, “Morreu o dr. Horácio Bento de Gouveia”, Diário de Notícias da Madeira, 24 de maio de 1983.
47
Ambas as iniciativas foram projetadas em 1978, ainda em vida de Horácio Bento de Gouveia.
53
por José António Gonçalves. A Casa do Ladrilho tornou-se Casa-Museu em 1998 e um
ano depois acolheu a primeira exposição biobibliográfica e desta iniciativa resultou a
publicação da Coletânea de conferências e artigos da 1.ª exposição bio-bibliográfica na
casa-museu Dr. Horácio Bento de Gouveia. Pelo 100.º aniversário do seu nascimento,
em 2001, foi realizado um colóquio evocando a sua obra e a figura e foi igualmente
lançado o livro de crónicas bentianas O Natal na Cidade, a Festa no Campo, com a
organização de Nelson Veríssimo que, um ano depois, coordenou também o número da
revista Islenha (30) dedicado integralmente à vida e obra do madeirense.
Além disso, acerca do autor, no âmbito de trabalhos académicos, foram ainda
publicadas, segundo o que pesquisei, pelo menos três monografias de mestrado e uma
dissertação de doutoramento48. Atualmente, como já referi, pela mão da filha têm sido
recolhidos e publicados os artigos e as crónicas jornalísticas de e sobre Horácio Bento;
um trabalho que, de resto, será uma mais-valia para a presente investigação.
48
Maria Graziela Fernandes Camacho, (1999), A Insularidade no Romance de Horácio Bento de
Gouveia, dissertação de mestrado, Funchal, Universidade Católica Portuguesa.
Natália Gouveia Nascimento Gonçalves, (2004), O Itinerário Linguístico nas Crónicas em Prol da
Língua Portuguesa de Horácio Bento de Gouveia: tradição e criatividade, dissertação de mestrado,
Funchal, Universidade da Madeira.
Valentina Gonçalves de Freitas, (2007), A diáfora em «Lágrimas Correndo» de Horácio Bento de
Gouveia, dissertação de mestrado, Funchal, Universidade da Madeira.
Thierry Proença dos Santos, (2008), De «Ilhéus» a «Canga», de Horácio Bento de Gouveia: a narrativa e
as suas (re)escritas ( com uma proposta de edição crítico-genética e com uma tradução parcial do
romance para francês), dissertação de doutoramento, Funchal, Universidade da Madeira (dissertação
acedida em http://repositorio.uma.pt/bitstream/10400.13/57/1/DoutoramentoTHIERRY.pdf a 23 de
outubro de 2013).
54
crónicas ter preocupação com preservação da história e da cultura madeirenses. A título
de exemplo, num destes escritos, datado de janeiro de 1937 e intitulado “Em prol da
Madeira: educação regionalista”, o cronista evidencia a necessidade de serem criadas
iniciativas e espaços dedicados ao património e cultura local para os alunos da Madeira:
Ainda que existam estas referências, não podemos catalogar de forma total o
autor/jornalista num estilo em concreto. O próprio, apesar de manifestar interesse por
49
S/A, “Diálogo com Horácio Bento de Gouveia: novo romance «Torna-Viagem», Diário de Notícias da
Madeira, 11 de outubro de 1976.
56
determinados autores, nunca revelou quaisquer filiações literárias, conforme atesta
Natália Gonçalves:
Neste sentido, uma vez que o próprio Horácio Bento de Gouveia revelou que o
homem que luta pela sua sobrevivência fez parte do seu mundo de infância, é natural
que esta labuta tenha influenciado a sua escrita. Sobre a estética neorrealista, Bento de
Gouveia afirma:
57
Depois do realismo do Eça, do Fialho e Aquilino, ingressou-se, neste
terceiro quartel do século, em um neo-realismo e numa forma de romancear
que, por ser vazada noutros moldes, aguça o apetite das gerações que
espontam. No fundo explica-se pela tendência própria do espírito a sua
versatilidade, a ansiosa busca do original. São os temas da mesma natureza
humana quanto ao conteúdo se confrontarmos o romance eceano com os
contos de Fialho ou qualquer dos romances de Aquilino50.
Embora todas estas temáticas sejam um pouco abordadas por Horácio Bento de
Gouveia, sobretudo em Ilhéus, e ainda que haja, por vezes, associação ao romance
Gaibéus de Alves Redol, o madeirense não pode efetivamente ser catalogado como um
seguidor desta estética, conforme afirma Rui Nepomuceno:
Apesar de algumas afinidades com aqueles autores, o romancista madeirense
não poderá ser classificado como um membro dessa escola. Desde logo
porque todos os neo-realistas seguiam a ideologia marxista, tomando como
guia filosófico os princípios do materialismo dialéctico; e tendo uma visão
da história como permanente e progressiva luta de classes, que encaminharia
a humanidade para um futuro de inevitável vitória do socialismo e depois do
comunismo (2002: 96).
50
Horácio Bento de Gouveia, “ «Três semanas em Maio»: nova forma de romancear”, Diário de Notícias
da Madeira, 18 de novembro de 1969.
51
A relação entre Horácio Bento e Aquilino Ribeiro é comprovada pelo prefácio que Aquilino escreveu
para o romance Ilhéus/Canga. A par disto, no Diário de Notícias da Madeira, a 9 de maio de 1971,
Horácio Bento publica também uma carta que o escritor beirão lhe enviara em 1948, aquando da leitura
da obra, na qual escreve «Meu caro Dr. Horácio Bento: O seu livro só tem os defeitos das suas imensas
qualidades: exuberância, riqueza de descritivo, emaranhamento psicológico».
Horácio Bento de Gouveia, “Uma carta de Aquilino Ribeiro”, Diário de Notícias da Madeira, 9 de maio
de 1971.
58
Madeira e em especial na freguesia de Ponta Delgada, revela também na sua escrita
traços do regionalismo, uma escola caracterizada pela valorização e defesa dos valores e
da identidade regional. O próprio assume na crónica “Regionalismo: ranchos
folclóricos” que esta estética constitui a «manifestação desentranhada do sentimento
colectivo, afecto da terra amoitado nas profundezas do inconsciente» (Gouveia, 1994:
142). E a Madeira, sendo um território insular, com determinismos que condicionam os
seus habitantes e a sua cultura, é um espaço propício ao despontar de sentimentos
regionalistas. Bento de Gouveia, como um dos defensores da identidade madeirense,
exaltou ao longo da sua vida a afeição à sua terra, como afirma Nelson Veríssimo:
52
Nelson Veríssimo, “Horácio Bento de Gouveia e as Crónicas do Norte”, Diário de Notícias da
Madeira, 18 de setembro de 1994.
53
Octaviano Correia, “Horácio Bento de Gouveia: o mais universalista dos escritores madeirenses”,
Jornal da Madeira, 8 de setembro de 2005.
54
Ibidem.
59
personagens são transportadas para países como o Reino Unido, a Áustria e a
Dinamarca.
A par da estética regionalista, e dado o permanente apego à terra subjacente na
narrativa de Horácio Bento de Gouveia, podemos associá-lo também ao provincialismo
português do final do século XIX. Segundo Evelina Verdelho, foi com esta estética (que
ganhou força com o Ultimato Inglês de 1890 e com as comemorações dos 300 anos do
falecimento de Vasco da Gama e Luís de Camões) que o país se deparou com a
necessidade de exaltar a nacionalidade e se entregou «a um movimento geral de
interesse pela aldeia, pela província, o qual, em verdade, desde Garrett não se tinha
ainda extinguido. Foi a hora do popularismo, do etnografismo e do folclorismo em que
participou a generalidade de poetas, prosadores e estudiosos dos mais variados
domínios» (1982: 19).
Para além destas influências — regionalista e provincialista — há também no
madeirense um visível interesse pelo Brasil55 e pelos seus intelectuais, manifestado nos
jornais com evocações e manifestações de apreço por nomes como Francisco Silveira
Bueno ou Agrippino Grieco e com a caracterização do romance brasileiro, comprovado
no seguinte excerto:
Pra além destes enquadramentos estéticos, e uma vez que o madeirense não se
assumiu como discípulo de nenhuma escola em concreto, há ainda quem o identifique
com o memorialismo. E o próprio Horácio Bento de Gouveia, quando confrontado
sobre se o seu romance Torna-Viagem estaria próximo do memorialismo, confirma-o:
55
Reconhecendo semelhanças entre o dialeto da Madeira e o dialeto falado no Brasil, na crónica “A
língua: do Brasil e de Portugal”, Horácio Bento de Gouveia diz que «há uma analogia entre a sintaxe do
habitante da ilha e a do povo brasileiro», nomeadamente a «construção gerundial. O gerúndio entra que
inteiramente na maneira de toda a gente se expressar: vinha andando, ia correndo, estava saltando, esteve
jogando» (Gouveia, 1966: 286-287).
56
Horácio Bento de Gouveia, “Acêrca do romance brasileiro”, Diário de Notícias da Madeira, 12 de
fevereiro de 1943.
60
«Sim, há memorialismo, o qual se exterioriza através de lances da natureza afectiva, por
uma parte, e, por outra, ao longo da descrição e da narração de cenas que foram
vivências profundamente objectivas»57.
Ernesto Rodrigues, dissertando acerca das Crónicas do Norte, destaca a
componente de ensaio histórico da escrita jornalística de Bento de Gouveia e situa-a na
«na diversidade social do século XIX» (2002: 100). Por sua vez, Irene Lucília de
Andrade reconhece que o madeirense possui uma linguagem erudita, repleta de
regionalismos, que manifesta interesse pelos aspetos populares e regionais e que dá
também primazia à genuinidade do camponês: «ao longo do tempo, verifica-se que a
sua escrita se foi apurando no contacto com novas influências sem, apesar de tudo,
nunca o autor abdicar da sua exigência pessoal relativamente ao gosto pelo
vernaculismo e pela riqueza lexical da língua portuguesa» (Andrade, 2013: 136).
Mas, independentemente da corrente em que queiramos inserir Horácio Bento de
Gouveia, no entender de Proença dos Santos, a sua escrita — quer a de ficcionista (a
mais estudada), quer a jornalística — é marcada por três aspetos transversais: o apego à
terra, as vivências pessoais e a conceção naturalista da vida (2007: 77).
Com uma escrita regular, Horácio Bento de Gouveia faz também questão de
relatar as características dos locais para onde viaja. Foi assim durante a viagem aos
Açores, em 1922, com as “Chronicas de um Estudante”, nas quais se nota já a tendência
para o uso do discurso figurado, neste caso a imagem metafórica do Pico comparado a
um charuto: «Ao longe o Pico é um enorme charuto escuro que se prolonga
esfumadamente no azul do mar. […] Agora vamos a caminho do Faial, para a cidade da
Horta, onde por lá se passeia o meu caminho… Já conheço a Horta de fotogravura e o
seu aspecto lembra o Funchal» (Soares, 2001:60).
Posteriormente à viagem que fez com o Orfeão Académico de Lisboa ao Brasil,
em 1925, saem também a lume diversas crónicas sobre as Terras de Vera Cruz, como é
o caso de “Do meu afecto pelo Brasil”.
Também nas suas estadias em Portugal Continental, o madeirense não deixava
de fazer a crónica do que via para a imprensa madeirense, criando assim as “Cartas de
Portugal”. A título de exemplo, em “Cartas de Portugal V” relata: «Óbidos, que é uma
vilasinha velhusca e pinturesca, fica enclausurada dentro das muralhas abocanhadas e
57
S/A, “Horácio Bento de Gouveia: novo romance «Torna-Viagem»”, Diário de Notícias da Madeira, 11
de outubro de 1976.
61
torreadas do antigo castelo. A sua construção parece remontar, possivelmente, aos
tempos recuados e penumbrosos dos túrdulos e dos celtas» (Soares, 2001: 184).
De igual modo procedeu Bento de Gouveia quando (em regime de
correspondência) manda para os jornais madeirenses as crónicas “Canárias, ilhas
afortunadas”; “Madrid: o que vi e pensei”; “Toledo- cidade medieval”; “Viagem a
Berlim” e “Viagem a Paris”58.
Com um interesse vasto pela cultura em geral, o madeirense escreveu sobre
questões históricas, sobre filosofia (disciplina que lecionou durante alguns anos) e sobre
alguns intelectuais do continente e da Madeira. Fez igualmente digressões a espaços
culturais e transmitiu as impressões aos seus conterrâneos, como, de resto, aconteceu
com as seguintes crónicas: “Herculano: a casa de Alexandre Herculano”; “A casa de
Camilo” e “A casa de Teixeira de Pascoais”59.
A par disto, escritos como “A origem do alfabeto” e “Do emprego das palavras”,
com uma índole linguística, fazem também parte da crónica de Horácio Bento de
Gouveia, que, como já foi referido anteriormente, tinha preocupações com o bom uso e
emprego da língua portuguesa. Sobre esta vertente, Natália Gonçalves afirma: «os seus
escritos estão repletos de comentários filológicos, de notas gramaticais, de observações
etimológicas, esclarecimentos lexicais (cujo objectivo visa a vernaculidade de certos
vocábulos), e de reflexões sintáctico-semânticas» (2004: 70).
Além destas temáticas, refiro ainda que, sobretudo nas primeiras décadas da sua
atividade jornalística, existem crónicas bentianas com um pendor mais descritivo, em
que a temática central do texto é a natureza:
De resto, esta mesma tendência inicial foi registada por Maria de Fátima
Gouveia Soares: «o período de 1919 até 1922 é, posso afirmar, o período de maior
58
Estas crónicas podem ser consultadas na obra Alma Negra e Outras Almas.
59
Idem.
62
pujança, mais rico na produção de escritos, de fervor pós-romântico com frases
engenhosamente adjectivadas» (Soares, 2001: 7).
Na cronística bentiana encontramos ainda situações de diálogo que cumprem a
intenção de reforçar os assuntos abordados. De resto, é muitas vezes nas situações de
diálogo que o cronista revela as particularidades do dialeto madeirense, conforme se
pode observar em “Bom Jesus da Ponta Delgada”:
Para além disso, uma vez que a crónica jornalística não é um texto rígido, em
Horácio Bento é também comum o uso de personagens, de imagens, de figuras de estilo
e de formas de narrar mais literárias. Neste caso, em “Vindimas: arranja bom Setembro,
com a burra te ficarei eu (provérbio do mês)”, o cronista utiliza a personificação,
quando se refere às “manhãs lívidas”, e o animismo “nuvens pardas e amorfas”:
63
desdobrado, aqui, em foneticista, além, historiador local, rememorador e, sempre, voz
que etnografa uma quadra festiva, reflecte sobre um provérbio, opera analogias espácio-
temporais» (2002: 101).
A respeito destas características, Maria Margarida Macedo Silva salienta ainda
que o tom quase coloquial que a crónica bentiana possui deve-se também ao uso «de
numerosos substantivos, os raros adjectivos qualificando apenas uma faceta do objecto,
verbos estatísticos, metáforas e animismos conducentes a um maior visualismo e, por
vezes, neologismos que nos transmitem o popularismo, a rusticidade, o regionalismo»
(2003: 64). A autora exemplifica ainda estas mesmas especificidades em passagens
como estas: «o clarim do galo»; «entumesciam-se os ares»; «a noite afogava a
povoação»; «as lanternas andavam»; «uma luz furava a noite»; «aldeolas sumidas nos
calcanhares das serras». Igualmente passagens como «o arraial descoloriu-se»
comprovam o poder expressivo dos verbos no cronista (ibidem).
Analisando as particularidades formais encontradas na crónica bentiana, João
David Pinto-Correia revela:
60
Arraial/romaria realizada tradicionalmente no primeiro domingo de setembro na freguesia de Ponta
Delgada (Madeira).
64
“Tradição: a matança do porco” (publicada a 12 de janeiro de 1964) quando o cronista
inicia o texto com a frase «passada a quadra mais pulcra do ano» para abordar o que
houve de tradicional naquele mês (Gouveia, 1966: 37).
Assim sendo, percebemos a polivalência dos assuntos e formas inerentes à
crónica de Horácio Bento de Gouveia, embora para esta dissertação venham a ser tidas
em conta apenas as crónicas que revelam o seu apego à terra, e no fundo, as que
evidenciam a identidade madeirense.
Tido como «um homem que acima de tudo exaltou a sua terra, descrevendo com
profundo realismo as paisagens, a mentalidade, os costumes, o folclore, a etnografia e
todas as facetas das alegrias, dos dramas e da vida das suas gentes, com quem, aliás,
sempre fez questão de se identificar», Bento de Gouveia vai evidenciar estas facetas na
sua escrita jornalística, sobretudo na imprensa regional da Madeira (Nepomuceno, 2002:
96-97).
A verdade é que também o facto de Horácio Bento de Gouveia escrever
maioritariamente em periódicos regionais e para um leitor demarcado geograficamente
favorece a exaltação dos temas regionais e locais e das características identitárias da
Madeira nas suas crónicas. Também o facto de ter escrito no século XX, em que a
atividade económica madeirense ainda dependia de setores tradicionais como o vime, o
bordado, o vinho, o turismo, entre outros, pode ter contribuído para a definição do tema
central da sua escrita.
Ao abrigo da função social da imprensa local, Horácio Bento de Gouveia teve
também nos jornais madeirenses um meio de excelência para dar a conhecer a sua
opinião sobre a região e para proceder à divulgação do seu ponto de vista sobre os
diversos assuntos que marcavam a atualidade. Foi no jornal — que o próprio afirmava
ser um dos melhores “hábitos do espírito”61 — que, por vezes, Bento de Gouveia
alertou as consciências madeirenses para determinadas situações que considerou
reprováveis, como atesta Proença dos Santos: «embora talvez a maioria das pessoas se
lembre dele como um cronista com um cunho memorialista, de vez em quando, porém,
publicava crónicas mais interventivas, onde alertava para o evoluir das coisas, para
aspectos que considerava menos positivos»62.
61
Horácio Bento de Gouveia, “ A leitura do jornal”, Diário de Notícias da Madeira, 21 de janeiro de
1962.
62
Luís Rocha, “Obras de Horácio Bento de Gouveia são a ‘expressão da insularidade’”, Diário de
Notícias da Madeira, 30 de julho de 2006.
65
Neste sentido, ciente da responsabilidade social dos jornais e do seu alcance,
numa crónica intitulada “Uma campanha bairrista”, publicada em abril de 1926 no
Diário da Madeira, o madeirense reprovou em tom irónico a extinção da Estação
Telegráfica de São Vicente e saiu em defesa dos seus conterrâneos:
A par deste senso crítico, foram também as vivências pessoais do ilhéu que se
tornaram tema da crónica jornalística bentiana e frequentemente, evidenciando a
subjetividade e envolvência do cronista com o universo narrado, eram publicados
escritos em que Horácio Bento de Gouveia evocava precisamente a sua adoração à
terra-natal. A terra-mater tornou-se, como teorizou Thierry Proença dos Santos, no
«centro geográfico-sentimental da sua insularidade» (2002: 56). E, tendo em conta o
exposto por Proença dos Santos, numa das crónicas cujo título é “S. Vicente, capelinha
à beira mar…” Horácio Bento chega mesmo a referir:
Ninguém pode contrariar esta verdade: o meio físico, quando fechado pela
natureza do relevo que dificulta as idas e vindas a outras póvoas, actua no
seu consciente, em sua parte psíquica, e de tal modo que o escraviza em
gosto amargo de infelizes se algum dia sai da terreola e se adapta a outro
mundo. É que o haver nascido aos bafejos familiares dos ascendentes e
espigado até à adolescência debaixo do mesmo tecto e da visão do mesmo
quintario, da mesma hora, ribanceira ou colina, cria um apego inquebrável à
emoção geográfica que esperta e vibra com a mais delida lembrança do
berço (Gouveia, 1966: 261-262).
66
diferente daquela criatura que sempre sentiu, em tôrno de si, o domínio da cidade, o seu
brouhaha, a nevrose da multidão» (Gouveia, 1933: 9).
Por diversas vezes o cronista fez questão de referir que mesmo sendo a ilha um
espaço pequeno, existiam diferenças latentes entre o ambiente citadino e o rural,
sublinhando as dificuldades de comunicação que existiam entre a capital madeirense e
as províncias mais distantes. Em “Funchal d’outrora”, Bento de Gouveia referiu:
67
2.2.3. Análise dos traços da identidade madeirense nas crónicas jornalísticas de
Horácio Bento de Gouveia
68
2.2.3.1. A ilha, ruralismo e cosmopolitismo
69
Referindo-se a este percurso como a “fuga da ultrainsularidade”, António Fournier e
Duarte Correia Joaquim afirmam:
Segundo nos relata ainda Horácio Bento, nos dias em que o “vapor” chegava, no
caso de se antever a visita de um familiar ou amigo ou simplesmente para observar
quem vinha da cidade, a ida ao cais era obrigatória (idem: 47-48). Na despedida, isto é,
na jornada de volta ao Funchal, embora as viagens se fizessem dentro da mesma ilha,
acenavam-se lenços brancos «como se aquele fosse grande paquete em direitura ao
largo, para a travessia do Atlântico, rumo de um país remoto» (idem: 48).
Através destas passagens percebemos claramente que as viagens pedestres e
marítimas entre as zonas rurais e a cidade, apesar de serem feitas dentro do mesmo
espaço territorial — a ilha —, representavam também a ida para uma outra realidade,
existindo, desta forma, uma demarcação evidente entre a ruralidade e pureza de hábitos
e costumes destas freguesias isoladas e a mundividência da turística capital madeirense.
De resto, apesar das melhorias operadas no âmbito da comunicação e transportes
na ilha e do próprio cronista mencionar em 1962 que se estava perdendo «o carácter
próprio, arcaizante, que distinguia as povoações», esta dualidade entre as cidades e as
zonas rurais é, ainda hoje, latente e pode mesmo ser apontada como uma das
características identitárias deste espaço (anexo 3, p. 113).
O turista que na contemporaneidade aterra ou aporta na ilha, num espaço
geograficamente reduzido, tanto tem à sua espera um ambiente cosmopolita no Funchal,
como também se depara com formas arcaicas de vivência nas freguesias mais afastadas
dos grandes centros urbanos. E a crónica bentiana, sendo um texto que não se dissocia
da realidade, vai também refletir a existência destes dois ambientes distintos — a cidade
e o campo. Se nas crónicas de âmbito citadino o palco é inevitavelmente o Funchal, nos
textos que têm temáticas rurais o cronista escolhe como cenário as freguesias e
localidades a norte da ilha da Madeira por, no seu tempo, ainda conservarem a natureza,
os costumes e tradições no seu estado pleno.
71
Neste sentido, em “Estradas e Turismo: o miradoiro da Roça e a Levada Grande
da Boaventura”, o cronista “serve-se” das vias de comunicação terrestes para ilustrar a
dicotomia sul/norte da ilha. Segundo o autor, contrariamente às estradas do sul da ilha
— onde se insere o Funchal — que seguem “incaracterísticas”, as ligações nortenhas
são únicas e refletem o esforço que o ilhéu madeirense fez para contornar a hostilidade
dos terrenos: «na face norte, vertente fragosa, acantilada e arrogante, a via de cintura a
custo prossegue, porque tem de segurar-se á rocha, fincar-se nela a machadadas de
picareta que a vão escalavrando dificultosamente, arreganhando, esboroando, furando»
(anexo 4, p. 115).
Já em “O Norte da Ilha”, por exemplo, dissertando acerca dos tradicionais
refúgios de verão das famílias mais abastadas da Madeira, Horácio Bento de Gouveia
não só faz uma ode ao clima nortenho na estação de maior calor, como também o
valoriza em relação às condições climatéricas de verão no sul da ilha:
72
Apesar de a ilha no seu todo ser reconhecida «na estranja por sua tapeçaria
vegetal», no entender de Horácio Bento os melhores «viveiros de floricultura»
encontram-se essencialmente nas zonas mais afastadas: «É nas adjacências dos casais
aldeãos que os jardins se esboçam: Quintalzinhos com seus canteiros de brincos-de-
princeza, açucenas e maravilhas» (idem: 29). E, concluindo o seu pensamento, em tom
de ironia, o cronista crítica o facto de nas monstras das casas de comércio serem
expostas flores artificiais numa ilha mundialmente consagrada pela sua colorida
floricultura: «Flores naturais, para quê? Querem-se das que não precisam de água
aparentando uma frescura que não envelhece» (idem: 31).
Ao apontar estas críticas, o cronista está também a tentar ressalvar a
autenticidade dos aspetos que identificam e singularizam mundialmente a região, neste
caso as estradas vertiginosas, o clima ameno e a flora diversificada.
Como já vem sendo dito, a costa norte, nomeadamente o concelho de São
Vicente e a freguesia de Ponta Delgada, foi efetivamente o palco preferencial da crónica
bentiana e, em muitos destes textos, o autor demonstrou ter profunda afeição por estes
locais, em detrimento dos ambientes mais cosmopolitas, mas não quero com isto dizer
que a cidade do Funchal não tivesse merecido o apreço de Horácio Bento e que o
próprio não tivesse mencionado locais, edifícios e rituais citadinos da capital
madeirense.
Em “Da cidade: roteiro sentimental”, de novembro de 1963, destacando o facto
de a cidade ter atraído os “pachorrentos” turistas que chegaram à ilha nos inícios dos
anos 20, logo após a 1.ª Guerra Mundial, o cronista faz uma excursão pelas ruas da
capital madeirense e estrategicamente leva o leitor até recantos turisticamente
conhecidos, como é o caso do Largo do Chafariz onde tinha lugar uma feira que vendia
as tradicionais e garridas botas de vilão, um dos muitos objetos associados ao povo
madeirense:
73
O turismo, sendo uma realidade na Madeira, é também um dos temas da crónica
jornalística de Horácio Bento de Gouveia. Afirmando que a ilha tem um poder
«centripetante sôbre o peregrino que busca longes terras no mar-oceano», o cronista
realça todo o potencial turístico da sua terra em “Estradas e Turismo: o miradoiro da
Roça e a Levada Grande da Boaventura”:
Fora da ilha, como os senhores sabem, quaisquer que sejam as paragens mais
longínquas, o nome Madeira é sinónimo de Beleza e para nós êste vocábulo
liga-se à ideia de turismo./ Eis por que, se a Madeira é o centro de turismo
por razões de sua situação geográfica, de ordem climática, orográfica e de
revestimento vegetal, forçosamente a estrada é órgão primário de vitalidade
da nossa terra como é do domínio das classes dirigentes (anexo 4, p. 115).
74
Horácio Bento não está a retirar a singularidade e a identidade madeirense, está,
sim, a referir que, contrariamente ao pensamento do senso comum que cataloga as ilhas
como espaços extremamente fechados sobre si mesmos, na Madeira existiu sempre o
contacto permanente com o exterior. Devido às suas características naturais, e sobretudo
ao facto de se acreditar que o clima madeirense tinha propriedades terapêuticas e
curativas, a ilha, ao longo dos séculos, foi inclusivamente o destino de descanso de
diversas personalidades, entre elas a princesa D. Maria Amélia, filha de D. Pedro IV, o
imperador Carlos I da Áustria e a imperatriz Sissi do Império Austro-húngaro.
Ainda que seja um espaço insular, a ilha não tendeu a assumiu uma postura
isolacionista e talvez seja esse o motivo que dificulta a definição da sua identidade e que
leva a alegada perda das suas raízes, como explica José António Gonçalves:
A Madeira foi sempre um espaço aberto ao mundo. Foi talvez dos mais
abertos ao mundo. Os nossos esforços, os nossos contactos com o exterior
eram enormes. De certa forma, uma subcolonização inglesa logo a seguir ao
povoamento fez com que nós nos abríssemos, mais do que outros povos,
para o resto do mundo. Tal facto deu origem a que o madeirense aprendesse
muito depressa a comunicar com o exterior, daí resultando a perda das suas
raízes» (Gonçalves, 2008: 142).
75
2.2.3.2. Costumes, atividades e festividades tradicionais
63
O norte da ilha, a par com o Estreito de Câmara de Lobos, é a zona onde se concentram mais
produtores de vinho Madeira.
76
Vindima: a apoteose do regionalismo no manter-se da tradição”, Horácio Bento destaca
diversos momentos desta comemoração ao deus Baco que provoca «cascalhadas de riso
no culmínio da alegria»:
Como o próprio cronista menciona, a cultura vinícola pode ser encarada como
uma das vertentes do regionalismo madeirense sendo o vinho um dos produtos que
identificam a Madeira mundo fora. Neste sentido, Horácio Bento de Gouveia exaltando,
uma vez mais, o néctar madeirense em “Vindimas – arranja bom Setembro, com a burra
te ficarei eu” também menciona mais uma série de tradicionalismos da ilha associados à
elaboração do vinho:
77
E, com estas passagens, tornam-se também claras as características da crónica
bentiana, nomeadamente o uso de figuras de estilo, como é exemplo a comparação
«cachos fartos como tetas de rês», e o recurso às expressões regionais: “molhelha”64 e
“Festa”.
Em termos identitários, indústria vinícola não foi a única atividade tradicional da
ilha que mereceu a atenção de Horácio Bento de Gouveia. O trabalho desenvolvido
pelas bordadeiras madeirenses foi também referenciado pelo cronista em “Aspectos
rurais em Ponta Delgada”:
As raparigas ocupam-se no bordado todo o santo dia e pela noite dentro até
às três ou quatro da manhã, alcachinadas, à luz bruxoleante dum candeeiro
de petróleo, fixando a vista que acaba por cansar, adquirindo oftalmias, para
arrecadarem, por fim, uns míseros escudos que não chegam para a compra
duma blusa ou duma saia, ao vendilhão (anexo 7, p. 124).
64
Termo referente a uma espécie de almofada que o madeirense fazia com a saca de serapilheira para
colocar no cimo das suas costas quando fazia o transporte de cargas pesadas.
78
madeirense e, à semelhança de outros usos, para se afirmar revelou-se vulnerável à
influência estrangeira.
No âmbito etnográfico, a crónica bentiana também foi frutífera na exaltação das
principais festividades religiosas e pagãs da ilha e, neste sentido, uma das mais
mencionadas pelo cronista foi sem dúvida a “Festa”, isto é, o Natal. Não tendo
quaisquer dúvidas acerca das particularidades do Natal madeirense, Horácio Bento de
Gouveia faz quase sempre questão de assinalar a época natalícia com crónicas em que o
grande tema era a “Festa”. Anos mais tarde, a título póstumo, estes textos foram
editados na obra O Natal na cidade: a festa no campo.
Na crónica “Natal”, publicada a 24 de dezembro de 1953, por exemplo, Horácio
Bento destaca a singularidade da época na região:
Certa vez, por noite, saíram em terra, no mês de Dezembro, o pai Natal e a
árvore de Natal. A novidade foi recebida dos funchalenses que nela ficaram
embelezados. E cegos, vá de profanar a «lapinha» com a árvore
inexpressiva, vá de insinuar e criar na imaginação dos pequenos a ideia do
pai Noel (idem, p.127).
65
Na crónica “Lapinhas e Pastores”, Horácio Bento de Gouveia refere que a “lapinha” é uma criação de
S. Francisco de Assís que remonta ao século XIII (anexo 15).
66
Fruto do pereiro, equivalente a maçã.
79
Posteriormente criou-se também a “rochinha”, isto é, um presépio com relevo,
estruturado com madeira e forrado com papel castanho. Aproximando-se nitidamente da
morfologia da ilha, a “rochinha” mistura o tema do Nascimento de Jesus com as
vivências da ilha, como referem Luiza Helena Clode e José Victor Adragão:
É êste o período das Missas do Parto, ante-manhã, que são anunciadas pelo
toque cadenciado do sino da igreja e pelo estoirar de alguns morteiros. A
garotada, quando ainda não são quatro horas, já vagabundeia pelas
azinhagas, retoiçando e modulando as mòdinhas mais em voga e outras
regionais, em pifes de cana-vieira e harmónios. É esta a quadra por
excelência dos divertimentos: as guitarradas, o fôgo de artifício, as bombas e
a visita às “lapinhas” pela boca da noite, com o pretexto muitas vezes de se
jogar às cartas até a deshoras, sob o patrocínio da imagem de Jesus Menino,
colocado no cimo de um altar armado sobre uma mesa que fica geralmente
situada num angulo da melhor sala da casa, quer seja rica ou humilde (anexo
9, p. 129).
Depois das nove missas do parto, um ritual religioso praticado na região que
celebra a gestação da Virgem Maria e que anuncia a vinda do menino, chega a vez de
exaltar o nascimento de Jesus na Missa do Galo onde os populares recriam épocas
passadas: «Dentro de poucos minutos, rapazes e raparigas, novos e velhos, tornados
pastores, procuram apresentar, nas vestimentas e nas botas, o aspecto de quem acaba de
jornadear por povoados distantes e ignorados» (idem, p. 131).
67
As searinhas, no estudo de Luiza Helena Clode e José Victor Adragão, são «plantas verdes de trigo,
lentilha, milho e centeio que foram semeadas por volta do dia 8 de Dezembro depois de estarem uns dias
de molho» (1989: 222).
80
Durante o ritual religioso, conduzem-se até ao altar ovelhas, simbolizando as
zonas rurais, apresentam-se oferendas de anonas e “semilhas” e os grupos de romeiros
cantam algumas trovas e desfilam até o dia clarear (ibidem).
Ao descrever o facto de o madeirense aliar a celebração litúrgica à festa e à
romaria popular, Horácio Bento está também a afirmar a alegria do ilhéu madeirense e
consecutivamente a sua identidade.
Embora em outros âmbitos identitários já referidos Horácio Bento tenha sido
recetivo às influências do cosmopolitismo, observei que, no que concerne ao Natal, o
cronista é mais retraído. No seu entender, na época natalícia, a Madeira deveria
orgulhar-se e manter-se fiel à “lapinha” e à “rochinha” e deixar de parte os novos
símbolos pagãos e comerciais, o “Pai Natal” e o “Pinheiro”:
Para nós, madeirenses, estas inovações são uma afronta ao nosso sentimento
religioso./ Armemos a lapinha, coloquemos uma rochinha sobre a mesa,
construamos o presépio e esbulhemos para longe a árvore que não é nossa,
que não faz parte da nossa tradição. E quanto ao velho barbaçudo remetamo-
lo para as regiões do sol da meia-noite (anexo 8, p. 128).
O cronista revela assim um especial apreço por esta quadra que, aliás, é
comprovado em “Natal de Ausência”. Recordando a época em que frequentava a
Universidade em Lisboa, Horácio Bento descreve o que observou do descaracterizado
ambiente natalício da capital portuguesa, num ano em que ficou impossibilitado de
voltar à ilha, e revela toda a nostalgia que sentira do Natal madeirense: «a festa, a
verdadeira Festa, superior a todas que Lisboa celebrava em suas casas, passava-se na
ilha e eu vivia na ausência dela, a reconstituição consciente de sensações que iam
criando o fundo da minha vida emotiva» (anexo 10, p. 135).
Assim, com esta declaração de saudade, o cronista mostra também a importância
que a quadra natalícia tem na vida dos madeirenses. Dezembro assume-se efetivamente
como o mês mais festivo da ilha e por esta altura todos os recantos da Madeira acolhem
a celebração do Natal. Durante os restantes meses do ano vão-se lentamente levando a
cabo preparativos para o grande mês de celebração e, aliás, o período da “Festa” é
muitas vezes utilizado como referência temporal, como explica Horácio Bento na
crónica “O Natal na Cidade, a Festa no Campo”:
81
— Para a Festa terás o que prometi!
— Mãe, quando se compra o porquinho para Festa?
— E a lapinha, mãe? Vai-se guardar o Menino Jesus….
— Sim, agora para a Festa….
E o ano tem a Festa como fundamento de marcação do tempo: — Faz 5 anos
para a Festa; foi 1 mês depois da Festa; faz dois anos, 3 meses antes da
Festa. E a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo
(anexo 11, pp. 138-139).
Horácio Bento explica também nesta crónica a utilização simultânea dos termos
“Festa” e “Natal”: o primeiro resume os rituais rurais e ancestrais e o segundo abarca as
novas influências civilizacionais, nomeadamente as luzes e os brinquedos e restantes
distrações. Segundo ele, embora a palavra Natal ainda não seja usada massivamente na
ilha, com o tempo previa-se o seu incremento no linguajar madeirense:
A palavra Natal posto que inda não entrasse em uso, não seja termo comum,
não se generalizasse, já pretende substituir a Festa, mormente na convivência
da gente grada e mais letrada com a privança dos jornais e senhores de torna-
viagem, naturais da cidade e seus arredores (anexo 11, p. 137).
O Natal, sendo uma quadra marcante na ilha, com todas as suas tradições, cores,
musicalidade e alegria, é também a altura em que o madeirense mostra aos seus
visitantes e ao mundo em geral a sua diferença, o seu modo batalhador, simples e
divertido de viver. A época natalícia pode ser encarada como uma representação da
personalidade madeirense e Horácio Bento de Gouveia, ao escrever mais de uma dezena
82
de crónicas jornalísticas cuja temática central é o Natal, está também a exaltar esta
mesma identidade.
Mas, além desta importante festividade, a crónica bentiana mencionou ainda
outras tantas celebrações em que não faltavam os tradicionais comes e bebes, as
desgarradas, o folclore e o convívio entre ilhéus. Ainda hoje, não obstante algumas
alterações feitas ao abrigo dos novos tempos, é possível observar estas mesmas
características identitárias nas dezenas de festas e arraiais que se fazem um pouco por
toda a ilha. Horácio Bento, consciente desta singularidade, expressou em diversas
crónicas o modo particular de festejo dos ilhéus madeirenses de outrora.
Em “Crónica de Outono: A romaria do Rosário”, Bento de Gouveia menciona
que esta festividade lhe faz lembrar uma “festarola minhota” pela sua cor, paisagem e
musicalidade, mas também ressalva que é uma das romarias mais típicas da ilha e o
culminar dos arraiais de verão:
84
popular da Madeira está por fazer» e, não obstante o que já foi feito em prol desta área,
há necessidade de as compilar:
Horácio Bento acrescenta ainda que a comparação das trovas madeirenses com
as demais existentes em Portugal poderia revelar a originalidade do cancioneiro
madeirense, nomeadamente «a essência da quadra ou da redondilha, a maneira de dizer,
a literância musical do verso, a sinopsia colorida» (ibidem).
Uma vez compilado, o cancioneiro da Madeira revelaria a personalidade do
ilhéu e todas as manifestações do seu psiquismo afetivo: «o amor, o ciúme, o ódio, etc»
(idem, p. 145).
Para finalizar, o cronista alega ainda que os arraiais, onde se cantam as trovas
típicas, são os «maiores reveladores do psiquismo do povo rude e franco, quer na
religiosidade, quer nas tendências afectivas» (ibidem). E, no fundo, nesta passagem,
Horácio Bento de Gouveia confirma que os arraiais são efetivamente um meio de
afirmação da identidade madeirense e, assim sendo, urge preservar todas as
exteriorizações populares que se criam em torno deles, entre elas as cantigas.
Já em “Regionalismo: Ranchos folclóricos”, o cronista aborda a faceta da
música e dança madeirenses levadas a cabo pelos diversos grupos de folclore existentes
na ilha. Horácio Bento reforça, uma vez mais, a ideia de que, com o crescimento do
cosmopolitismo, o regionalismo tende a exteriorizar-se, e alega que os ranchos
folclóricos são também uma forma de regionalismo:
86
2.2.3.3. Emigração madeirense
Outras das vertentes identitárias exploradas por Horácio Bento de Gouveia foi a
emigração, isto é, a saída do ilhéu madeirense para outras partes do globo.
No âmbito desta temática, em “Os Madeirenses e o Brasil”, por exemplo, o
cronista destaca o facto de os seus conterrâneos tentarem recriar os seus hábitos nas
terras de acolhimento, dando como exemplo o caso da igreja de Nossa Senhora do
Monte, erguida por madeirenses que se fixaram na serra de Chela, em Moçambique: «O
nosso ilhéu, quer por motivos de ordem económica, quer por espírito de aventura, desde
tempos remotos se deslocou para longes terras e nessas paragens não esqueceu sua
religiosidade, seus costumes avoengos, seus hábitos rústicos» (anexo 17, p. 152).
O ilhéu da Madeira, ao ter este tipo de iniciativas, está também a tornar presente
a sua própria identidade; por outras palavras, não é pelo facto de ter de viver numa outra
região que ele esquece todos os hábitos e costumes do local onde nasceu e do qual faz
parte. Não obstante esta situação, o madeirense soube sempre adaptar-se à terra
estrangeira, tendo como primeiros destinos de emigração África, Brasil e Havai:
Ainda que gostasse muito sua terra, o ilhéu madeirense estava consciente das
suas limitações económicas e, por isso, decidia embarcar para outras terras onde
pudesse ter condições de vida melhor. Em “Emigração de Outrora: Madeirenses em
Hawai”, Horácio Bento de Gouveia, fazendo uma reflexão sobre o êxodo dos
madeirenses para aquelas ilhas do designado arquipélago de Sandwich, explica:
O cronista revela também que o povo madeirense era reconhecido pela sua
astúcia: «as sociedades americanas reconhecendo as qualidades de temperamento
submisso, tenaz, e clamo, e de musculatura rija e expedita necessária à exploração
87
agrícola das ilhas oceânicas, mandaram agentes à Madeira a fim de organizar contratos
de trabalho» (idem: 102).
Horácio Bento conta ainda que foi mandada construir no Havai uma igreja em
honra de Nossa Senhora do Monte, padroeira da ilha da Madeira. Tentando também
explicar o sentimento do emigrante, chama à crónica a história de João do Tanque, um
madeirense que embarcou da ilha em 1880 e que após a sua chegada ao Havai escreveu
a seguinte carta à família, citada por Horácio Bento de Gouveia:
Depois de três meses menos cinco dias aqui cheguei à cidade de Honolulu.
Se soubessem cuma perdi o animo dentro de um navio cheio de passageiros,
parado no meio do mar com calmaria, e ao depois, quando vinha uma brisa,
lá ia andando o navio para tornar a parar. Cantas vezes marrependi de deixar
a nossa fraguezia. Estua aqui com o Senhor Jasus (ibidem).
Um dos fatores que mais identifica a região no exterior é, sem dúvida, o seu
demarcado dialeto e nele se inclui não só as singulares pronúncias, mas também uma
variedade de regionalismos e formas sintáticas diferentes daquelas que são usadas na
norma-padrão da língua portuguesa.
E a crónica de Horácio Bento de Gouveia, apesar de ter uma linguagem corrente,
é, por vezes, pautada pela exemplificação de algumas destas particularidades dialetais
próprias da Madeira. A transcrição das formas de dialeto madeirense é, de resto,
transversal a toda a obra de Horácio Bento, como avança António Marques da Silva:
88
Horácio Bento, guiado pelo amor à terra, vai sobretudo expressar, nas suas crónicas, o
linguajar típico das zonas do norte, em especial o de Ponta Delgada, a sua terra natal,
que ele tão bem conhece.
Pelas condicionantes orográficas, o linguajar da Ponta Delgada revelava também
ainda toda a sua autenticidade, ou seja, o cronista utiliza estas formas dialetais para
expressar o genuíno linguajar madeirense, aquele que não sofreu influências exteriores.
Por uma questão de acessibilidade, farei o levantamento destes momentos nas crónicas
anteriormente analisadas e que constam em anexo, às quais juntarei “Respigos de
Fonética no linguajar da gente – freguesia da Ponta Delgada”, pelo seu caráter
explicativo.
Ao fazer a distinção entre a linguagem corrente e as expressões da pronúncia
madeirense, Horácio Bento de Gouveia, por norma, assinalava as passagens a itálico,
como é visível no diálogo já citado da crónica “Bom Jesus da Ponta Delgada”:
89
Em “Lapinhas e Pastores”, o cronista escreve que «o Menino Jesus repoisa
deitado na cafurna de um presépio» e demonstra a maneira peculiar do dialeto
madeirense, com o vocábulo “repoisa”, quando ao u associado à vogal o a substitui por
i (anexo 9, p. 130). Igual situação acontece com a palavra “miradouro” que neste
processo de transformação é verbalizada de miradoiro (anexo 4, p. 114).
Em “Crónica de Outono: a romaria do Rosário”, Horácio Bento de Gouveia
apresenta mais um momento de diálogo entre duas nortenhas, onde se pode verificar a
singularidade do dialeto madeirense:
«Depois de três meses menos cinco dias aqui cheguei à cidade de Honolulu.
Se soubessem cuma perdi o animo dentro de um navio cheio de passageiros,
parado no meio do mar com calmaria, e ao depois, quando vinha uma brisa,
lá ia andando o navio para tornar a parar. Cantas vezes marrependi de deixar
a nossa fraguezia. Estua aqui com o Senhor Jasus» (Gouveia, 1966: 102).
Com esta passagem podemos perceber que o emigrante escreve a carta tal como
fala. Assim aparecem as expressões “cuma”; “cantas”: “marrependi”; “fraguezia” e
90
“Jasus”, que equivalem, no português norma padrão, aos vocábulos como; quantas; me
arrependi; freguesia e Jesus. Sobre a expressão “cuma”, o próprio cronista dá uma
explicação em “Respigos de Fonética no linguajar da gente – freguesia da Ponta
Delgada”:
Para além destas expressões, nas crónicas bentianas encontramos ainda outras
particularidades dialetais. O uso dos regionalismos “semilha”, “cabrinhas”,
“barreleiros”, “pifes”, “molhelha” e “pêro”, para designar a batata, o feto-dos-
carvalhos, um cesto de vime, uma espécie de flauta, uma almofada de serapilheira e a
maçã, respetivamente.
Igualmente utiliza o sufixo inha, tão recorrente no linguajar madeirense, nas
palavras “lapinha”; “rochinha”, “escadinha” e “friagenzinha”69. Sobre a formulação de
palavras com diminutivo, Maria Elisabete Almeida diz:
69
O mesmo que aragem.
91
fonético, com esta exposição percebemos também que o autor pretende chamar a
atenção para a singularidade do dialeto regional, e, deste modo, para outra das suas
características identitárias.
Sobressai de toda a análise que o cronista aclama algumas das características
identitárias da ilha, mas é sobretudo visível o facto de o autor fazer a distinção entre os
valores tradicionais presentes no campo e os novos e cosmopolitas hábitos da cidade. A
Festa do campo é a mais autêntica, o linguajar das zonas rurais tem mais peculiaridades
e as romarias das zonas mais afastadas são as mais expressivas. Com isto, percebemos
também que o cronista não disfarça o seu amor à terra que o viu nascer, a rural freguesia
da Ponta Delgada.
Apesar de o regionalismo ser uma constante na crónica bentiana e de o cronista
manifestar algum desagrado pelas interferências exteriores nos hábitos e costumes
madeirenses, há também o reconhecimento de que a ilha não se pode isolar sobre si
mesma e que se devia afastar do regionalismo fechado que não é capaz de perceber o
Outro. No fundo, o que concluo é que Horácio Bento de Gouveia reconhecia a
importância do turismo para a Madeira.
92
CONCLUSÃO
93
E é neste âmbito permeável que se inserem as crónicas jornalísticas de Horácio
Bento de Gouveia, como pude comprovar na segunda parte da presente dissertação. Do
mesmo modo que acontece com a sua escrita literária, também os textos jornalísticos
bentianos revelam as diversas tendências estéticas seguidas pelo cronista, em especial a
sua preferência pela corrente do regionalismo. Nas suas crónicas, incorpora situações de
diálogo, aproveitando, muitas vezes, estas conversas para transcrever para o papel
muitas das expressões e formas típicas do dialeto madeirense camponês. As extensas
descrições, os provérbios e adágios populares e o uso de imagens, figuras de estilo e
múltiplos substantivos são também traços transversais à crónica de Horácio Bento.
Apesar de conter todas estas características mais literárias, a crónica bentiana
assume também a sua vertente jornalística e procura opinar sobre a realidade
madeirense e sensibilizar o leitor para a reflexão sobre os mais diversos temas. Em
alguns casos, os textos chegam a revelar explicitamente o seu caráter interventivo.
Espelhando a sua condição de ilhéu e o amor à terra do próprio Horácio Bento
de Gouveia, grande parte das suas crónicas têm como temática central a ilha da Madeira
e mais concretamente o concelho de São Vicente. Muitas vezes, inclusive, o cronista
revela que é neste espaço nortenho que se mantêm quase intactas algumas das mais
ancestrais tradições e usos madeirenses, ao contrário do que acontece na cada vez mais
cosmopolita cidade do Funchal, que por esta altura — meados do século XX — se ia
moldando ao setor do turismo.
Para fazer esta comparação entre campo e cidade, tradição e modernidade,
Horácio Bento de Gouveia recorre também às suas memórias e vivências pessoais e,
com base neste conhecimento, consegue revelar-nos um conjunto de especificidades
naturais, etnográficas e sociais da região, entre elas o clima, a floricultura e a orografia
da ilha, as vindimas e o vinho madeira, o Natal, a gastronomia, o folclore, a emigração,
o turismo, os arraiais e as festividades.
Por um lado, ao exaltar um conjunto de atividades tradicionais e de trabalhos
morosos, por exemplo as vindimas e os bordados, Horácio Bento de Gouveia
implicitamente revela a firmeza e o caráter destemido do ilhéu da Madeira. Neste
sentido, também a hostilidade dos terrenos madeirenses e o facto de o ilhéu ter tentado
medir forças com a própria morfologia revelam, igualmente, o espírito lutador do povo
madeirense.
94
Por outro lado, ao escrever sobre as festividades madeirenses, o cronista vai
desvendar a outras faces da personalidade e vida madeirenses: o facto de misturar o
pagão com o religioso, a alegria, a peculiaridade e a vivacidade das comemorações. Em
termos identitários, o ilhéu madeirense usa inclusive um vocábulo próprio para resumir
todos os costumes da quadra natalícia: a Festa. Contrariamente ao Natal cosmopolita, a
Festa madeirense mune-se de todas as ancestrais tradições, entre elas a “lapinha”, a
“rochinha”, as missas do parto, os comes e bebes após as celebrações religiosas, a
música popular em consonância com o ritual litúrgico.
Também os arraiais, que se fazem um pouco por toda a ilha, merecem destaque
na crónica bentiana através da descrição de todo o ambiente que envolve as
manifestações religiosas e populares. A gastronomia, a música e o folclore, a alegria e a
brejeirice são alguns dos traços da festa e da identidade madeirense descritos nos textos
jornalísticos de Horácio Bento. Como observador atento ao mundo que o rodeava, o
cronista usa o seu espaço nos jornais para chamar a atenção para a necessidade da
preservação de algumas destas particularidades, como é o caso do cancioneiro
madeirense.
Abordando as dificuldades comunicacionais a que a ilha esteve sujeita, o
cronista dá a entender que estas barreiras fizeram com que a natureza e os costumes
arcaicos fossem preservados nas povoações mais recônditas e que nas zonas mais
urbanas fossem alterados. A Madeira, sendo um território insular, esteve, desde há
muitos anos, exposta à visita estrangeira e à consequente e irremediável modificação de
alguns dos seus traços e hábitos, mas foi também através desta procura turística que o
ilhéu madeirense tomou consciência da sua própria singularidade.
Assim sendo, como Horácio Bento de Gouveia alega, a ilha exaltou a sua
autenticidade perante o Outro, mas não assumiu uma atitude isolacionista nem um
regionalismo fechado. Tendo em conta a teorização acerca da identidade referida nesta
investigação, esta postura recetiva pode também ser apontada como uma das causas da
não consolidação da identidade madeirense.
Embora numa análise à sua vida e obra seja percetível a tendência regionalista, o
cronista mostra também, por diversos momentos, estar conformado com nova era da
globalização que se instalou a partir de meados do século XX. Deste modo, é apologista
da construção do aeroporto — para facilitar as comunicações com o exterior e a vinda
de mais turistas para a região —, do casino madeirense e de outras tantas infraestruturas
95
civilizacionais. De igual modo, é a favor do espetáculo pirotécnico que acontece na ilha
na passagem do ano. Por outras palavras, apesar de proclamar os aspetos mais antigos
da sua terra, o cronista revela também ser recetivo às mudanças.
Ao fazer o levantamento e explicitação de todo este património natural, material,
social e cultural, Horácio Bento de Gouveia está também a dar o seu contributo para a
afirmação da identidade autóctone. Embora o conceito de “madeirensidade”, ao
contrário do que acontece com a açorianidade, não esteja ainda afirmado, a verdade é
que a ilha da Madeira e os seus habitantes possuem um conjunto de características
socioculturais que a demarcam dos restantes territórios e povos: o dialeto, a
gastronomia, as festividades, as atividades tradicionais, o folclore, a música, o clima,
entre outras. Esta identidade não se restringe somente à ilha porque, como tive
oportunidade de explicar, o ilhéu madeirense, ao ter de emigrar, faz questão de recriar
os rituais, e até mesmo monumentos, madeirenses nos espaços de acolhimento.
Por fim, realço que a análise feita em torno das crónicas jornalísticas de Horácio
Bento de Gouveia constitui apenas um contributo para o esclarecimento da identidade
madeirense, isto é, dos traços e particularidades regionais. Pelo facto de ainda não estar
totalmente cimentado, achei importante debruçar-me sobre este assunto, aliando-o, de
certa forma, à área do jornalismo, mas estou consciente que ainda há muito caminho a
percorrer para que se possa um dia chegar à “madeirensidade”.
96
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97
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98
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a intersubjectividade” (documento acedido em http://www.bocc.ubi.pt/pag/melo-
isabelle-intersubjectividade.pdf a 9 de setembro de 2014).
100
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101
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_______, (2002), “Nótula sobre Crónicas do Norte”, Islenha, n.º 30, Funchal, Direção
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Islenha, n.º 30, Funchal, Direção Regional dos Assuntos Culturais, pp. 76-82.
102
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http://www.bocc.ubi.pt/pag/tuzino-yolanda-uma-interseccao.pdf a 28 de março de
2014).
CALISTO, Luís, “Horácio Bento de Gouveia e o seu novo livro: «Margareta» vingará
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Diário de Notícias da Madeira, 18 de setembro de 1981.
103
GOUVEIA, Horácio Bento de, “Acêrca do romance brasileiro”, Diário de Notícias da
Madeira, Funchal, 12 de fevereiro de 1943.
104
Sítios consultados:
http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/os-guardas-mores-da-torre-do-tombo/ —
acedido a 2 de fevereiro de 2014;
http://www.academia.edu/1153139/o_discurso_da_identidade_insular — acedido a 2 de
julho de 2014;
http://www.dnoticias.pt/impressa/diario/opiniao/53814-autonomia-historia-%07e-
identidade — acedido a 15 de julho de 2014.
http://ruinepomuceno.blogspot.pt/2010/02/horacio-bento-de-gouveia-e-escola-neo.html
— acedido a 22 de agosto de 2014 e a 7de setembro de 2014;
http://bocc.ubi.pt/pag/gradim-anabela-manual-jornalismo-2.html#b512 — acedido a 9
de setembro de 2014.
105
ANEXOS
106
ANEXO 1
107
108
ANEXO 2
109
110
SOARES, Maria de Fátima Gouveia, (2011), “Civilização Madeirense”, Escritos 4
(1950-1959 Horácio Bento de Gouveia), Braga, Edição da Autora, pp. 51-53.
111
ANEXO 3
112
SOARES, Maria de Fátima Gouveia, (2014), “A Madeira: visão de ontem e de hoje”,
Escritos 5 (1960-1969 Horácio Bento de Gouveia), Braga, Edição da Autora, pp. 157-
158.
113
ANEXO 4
114
115
116
117
SOARES, Maria de Fátima Gouveia, (2008), “Estradas e Turismo: o miradoiro da Roça
e a Levada Grande da Boaventura”, Escritos 3 (1940-1949 Horácio Bento de Gouveia),
Santo Tirso, Edição da Autora, pp. 126-130.
118
ANEXO 5
119
SOARES, Maria de Fátima Gouveia, (2014), “Regionalismo e Turismo”, Escritos 5
(1960-1969 Horácio Bento de Gouveia), Braga, Edição da Autora, pp. 138-139.
120
ANEXO 6
121
GOUVEIA, Horácio Bento de Gouveia, (1994), “Em São Vicente: Festa da Vindima: a
apoteose do regionalismo no manter da tradição”, Crónicas do Norte, (organização de
José António Gonçalves), São Vicente, Câmara Municipal de São Vicente, pp. 114-115.
122
ANEXO 7
123
124
GOUVEIA, Horácio Bento de Gouveia, (1994), “Aspectos rurais em Ponta Delgada”,
Crónicas do Norte, (organização de José António Gonçalves), São Vicente, Câmara
Municipal de São Vicente, pp. 56-58.
125
ANEXO 8
126
127
GOUVEIA, Horácio Bento de Gouveia, (2001), “Natal”, O Natal na Cidade, a Festa no
campo, (organização de Nelson Veríssimo), Funchal, Direcção Regional dos Assuntos
Culturais, pp. 19-21.
128
ANEXO 9
129
130
GOUVEIA, Horácio Bento de Gouveia, (1933), “Lapinhas e Pastores”, Páginas de
Jornalismo, Alcobaça. Papelaria e Tipografia Minerva, pp. 4-6.
131
ANEXO 10
132
133
134
GOUVEIA, Horácio Bento de Gouveia, (2001), “Natal de ausência”, O Natal na
Cidade, a Festa no campo, (organização de Nelson Veríssimo), Funchal, Direcção
Regional dos Assuntos Culturais, pp. 15-18.
135
ANEXO 11
136
137
138
GOUVEIA, Horácio Bento de Gouveia, (2001), “O Natal na Cidade, a Festa no
Campo”, O Natal na Cidade, a Festa no campo, (organização de Nelson Veríssimo),
Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, pp. 45-48.
139
ANEXO 12
140
ANEXO 13
141
SOARES, Maria de Fátima Gouveia, (2001), “Do meu afecto pela Terra II”, Escritos de
Juventude: 1919-1930, Funchal, Editorial Eco do Funchal, pp. 99-100.
142
ANEXO 14
143
144
SOARES, Maria de Fátima Gouveia, (2007), “Cantigas populares”, Escritos 2 (1930-
1939 Horácio Bento de Gouveia), Penafiel, Edições Cão Menor, pp. 42-44.
145
ANEXO 15
146
147
GOUVEIA, Horácio Bento de Gouveia, (1994), “Regionalismo: ranchos folclóricos”,
Crónicas do Norte, (organização de José António Gonçalves), São Vicente, Câmara
Municipal de São Vicente, pp. 142-144.
148
ANEXO 16
149
SOARES, Maria de Fátima Gouveia, (2011), “Um livro de Carlos Santos: o traje
regional da Madeira”, Escritos 4 (1950-1959 Horácio Bento de Gouveia), Braga,
Edição da Autora, pp. 219-220.
150
ANEXO 17
151
152
153
SOARES, Maria de Fátima Gouveia, (2008), “Os Madeirenses e o Brasil”, Escritos 3
(1940-1949 Horácio Bento de Gouveia), Santo Tirso, Edição da Autora, pp. 145-148.
154
ANEXO 18
155
156
157
GOUVEIA, Horácio Bento de Gouveia, (1994), “Respigos de Fonética no linguajar da
gente – freguesia da Ponta Delgada”, Crónicas do Norte, (organização de José António
Gonçalves), São Vicente, Câmara Municipal de São Vicente, pp. 59-62.
158