Tese Katiuscia Quirino Barbosa
Tese Katiuscia Quirino Barbosa
Tese Katiuscia Quirino Barbosa
DOUTORADO EM HISTÓRIA
VOLUME 1
Niterói - RJ
2017
1
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
DOUTORADO EM HISTÓRIA
Niterói - RJ
2017
2
B238 Barbosa, Katiuscia Quirino.
A África sob o olhar do outro: a Guiné nas representações literárias e
cartográficas portuguesas do século XV / Katiuscia Quirino Barbosa. – 2017.
349 f. ; il.
Orientadora: Vânia Leite Fróes.
Bibliografia: f. 234-250.
3
KATIUSCIA QUIRINO BARBOSA
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Niterói – RJ
2017
4
DEDICATÓRIA
5
AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª. Vânia Leite Fróes, por seu apoio, dedicação e paciência.
Ao Professor Doutor Edmar Checon de Freitas e à Professora Doutora Priscila
Aquino da Silva pelas contribuições dadas no exame de qualificação.
À professora doutora Gracilda Alves e ao professor doutor Douglas Mota Xavier
de Lima por aceitarem, gentilmente, integrar a banca de avaliação desta tese.
Aos familiares e amigos cujo apoio e compreensão foram fundamentais para a
realização deste trabalho.
À CAPES pela concessão da bolsa.
À secretaria do PPGH-UFF.
6
EPÍGRAFE
Tzevetan Todorov
7
RESUMO
8
ABSTRACT
Considering the advance of the Portuguese navigations in the central Atlantic in the
15th century, this work aims to understand the relations between Portuguese and Africans
during the Portuguese expansion of the fifteenth century, in order to analyze the impact
of these relations in the construction of a new perspective of the world, by cultural aspects,
as well as by geo-spatial aspects.We highlight the ways in which Africa was represented
by the travelers of the period in order to understand how the continent and its inhabitants
were apprehended by Europeans and how the new cultural contacts established at the time
contributed to the formation and consolidation of the Portuguese identity, based on
Christian values, built on the relationship of otherness with the peoples of the Guinean
region.
9
RESUMEN
10
SUMÁRIO GERAL
VOLUME 1
Introdução ......................................................................................................................17
11
2.3.2. A construção da África no imaginário ocidental ..............................................86
2.4. O Atlântico e a Costa Ocidental Africana: aproximações atuais .......................90
VOLUME 2
12
5.1. Identidade e Alteridade- .......................................................................................190
5.2. A Guiné nos relatos de Zurara e Cadamosto: representações, espaço e
alteridade .....................................................................................................................197
5.3 Os portugueses e os guinéus: identidade e alteridade .......................................208
Conclusão ....................................................................................................................230
Bibliografia ..................................................................................................................234
Apêndices .....................................................................................................................251
13
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES E MAPAS
3 55 Capa da edição de
1841 da Crônica dos Biblioteca Nacional de Portugal.
descobrimentos e
conquistas da Guiné.
4 77 A Terra na obra de
Macrobius Fonte: Commentarii in Somnium Scipionis, C.1150.
Biblioteca real de Dinamarca.
6 81 Mapa-múndi de BNF, Ge AA 21 77
Ebstorf
7 92 Mapa da África Disponível em http://mapsof.net/africa/west-
Ocidental africa-regions-map.
8 95 Mapa dos principais AIRAUD, Fréderic; SY Oumar; CAMPREDON,
biomas da costa Pierre. Descobrindo o ambiente costeiro da África
ocidental africana Ocidental — Caderno dos Conhecimentos.
Programa Regional de Educação Ambiental. UICN
Guiné-Bissau, 2011
9 98 Mapa das principais WOOD, Stephen. The Gambia River. In
bacias hidrográficas HOWARTH, Robert. W. Biomes and Ecosystems
da costa ocidental An Encyclopedi.Ipswich: Salem Press, 2013, pp:
africana 584-586. P. 585
10 105 La baleine prise pour Fonte: Bestiairelatin. Londres, The Britich
uneîle. Library, MS. Harley 4751, fol 69.
11 106 Une sirene-oiseau au Fonte: Bestiaire Latin. Paris. BNF, ms, latin 2495
found des flots. B, fol.44.
14
13 109 Mapa do Beato de Manuscrito de Saint-Sever
Liébana.
14 149 Mapa do Império do NIANE, Djibril Tamsir. História Geral da África.
Mali em 1325. Brasília: UNESCO, 2010. Volume IV
15 150 Mapa das principais NIANE, Djibril Tamsir. História Geral da África.
rotas transaarianas Brasília: UNESCO, 2010. Volume IV
no século XIV.
15
Lista de Tabelas
2 A percepção do espaço nos textos de Zurara, cadamosto e Diogo Gomes Sintra. 165
16
INTRODUÇÃO
Até o século XV, a África foi uma região pouco conhecida e, por conseguinte,
pouco explorada pelos europeus. O norte do continente era o território dos “infiéis”
muçulmanos; a parte subsaariana, praticamente desconhecida, sendo, por tal razão, alvo
de especulações míticas sobre a existência de terras e habitantes na região. Seis séculos
depois das primeiras incursões europeias no continente, a África continua desconhecida
de boa parte da população ocidental.
Hoje entendemos que todo povo tem História e que cada civilização conheceu
formas distintas de praticar e compreender a noção de História. Contudo, tal perspectiva
é fruto do próprio desenvolvimento da disciplina, através de gerações de historiadores e
de diversas escolas e correntes historiográficas. A elevação da História à categoria de
ciência no século XIX e o estabelecimento do método histórico tradicional fez com que a
sua escrita e a própria noção de “História” fosse uma espécie de domínio europeu1. Nessa
perspectiva, a proposição de Hegel de que a África não possui história se insere
perfeitamente em um contexto em que o conceito de História e o pensamento histórico
são entendidos de forma inflexível a partir de um único ponto de vista, cujas vias de
análise são limitadas.
A ideia de “povos sem história” transcende à conjuntura em que foi elaborada,
deixando marcas nessas sociedades, as quais podem ser observadas na forma como
encaramos a história de povos não europeus, como os asiáticos, os ameríndios e os
africanos. Como exemplo disso, podemos citar a História do Brasil da forma como ainda
é veiculada no Ensino Básico. Aprendemos que ao chegarem neste território os
portugueses se depararam com “índios” e que esse contato foi amistoso em alguns casos,
mas conflituosos em outros. Fala-se brevemente da escravidão indígena e da catequização
dos mesmos. Mas em nenhum momento se fala das etnias, das línguas e das lutas
indígenas, da violência da aculturação etc. A mesma lógica é observada no que se refere
aos africanos e ao continente como um todo, o qual sendo incessantemente tratado como
1
WESSELING, Hank. História de Além-mar In: BURQUE, Peter (org). A escrita da História. Novas
Perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 2011.P.102.
17
um bloco monolítico, não dá conta da miríade de povos e culturas que foram trazidos para
o Brasil durante o período colonial e imperial.
Por outro lado, a história dos colonizadores nos parece bastante familiar. Nesse
sentido, nós, brasileiros, nos identificamos muito mais com a história dos portugueses do
que com a dos guaranis ou a dos iorubas, por exemplo. O que se explica por razões
diversas, que não cabem neste trabalho. O que nos instiga é entender o porquê de tal
identificação não ser questionada. Desse modo, a questão que colocamos primeiramente
é a do estabelecimento dessas relações de identidade e, por conseguinte o estabelecimento
das relações de alteridade. Como surgem o “eu” , o “nós” e os “outros”? Quais são os
elementos que os estruturam? Como essas formulações se dão em relação ao espaço?
Como o eu representa o outro? Essas são algumas das questões norteadoras deste trabalho
que tem por finalidade compreender as relações entre portugueses e africanos durante a
expansão quatrocentista, a fim de analisar o impacto dessas relações na construção de
uma nova perspectiva de mundo, que passa tanto por aspectos culturais, quanto por
aspectos geográfico-espaciais. Destacamos as formas como a África foi representada
pelos viajantes do período com o intuito de compreender como o continente e seus
habitantes foram apreendidos pelos europeus e de que modo os novos contatos culturais
estabelecidos à época contribuíram para a formação e consolidação da identidade
portuguesa, pautada em valores cristãos, erigida na relação de alteridade com os povos da
região da Guiné.
O desconhecido sempre fascinou os seres humanos. Ao depararmo-nos com algo
novo não conseguimos compreendê-lo de pronto, logo buscamos em nossas experiências
fatos, fenômenos, eventos, objetos ou qualquer outra coisa já elaborada para explicar
aquilo que nos é externo. O encontro com o novo estabelece de imediato uma relação de
alteridade que se dá diante de um lugar ou de indivíduos diferentes. A alteridade está
diretamente vinculada à noção de identidade, na verdade ela é o seu oposto, e ambas
constituem as principais questões que nortearam esta pesquisa que se propôs a analisar o
encontro dos guinéus com os portugueses quatrocentistas. De forma geral, tratamos da
relação da Europa com a África em sua plenitude, abarcando aqui não só as relações
sociais, mas também a relação entre homem e espaço no novo mundo que surgia com o
avanço das navegações do século XV e , consequentemente, com a conquista da Guiné
pelos portugueses.
A navegação pelo Oceano Atlântico ao longo da costa africana era feita somente
no chamado “Mar Pequeno” que fica entre o norte do continente e o Mediterrâneo, sendo
18
portanto desconhecidas ou ao menos inexploradas as rotas oceânicas que ficassem abaixo
do Magreb. Não havia, até o século XV embarcações suficientemente fortes para navegar
pela costa ocidental da África, o que dificultava a exploração do continente. No entanto,
ao longo desse século, tal situação se modifica.
No reino de Portugal observa-se uma série de novas demandas políticas e
econômicas com a ascensão da Dinastia de Avis e nesse contexto insere-se a expansão
territorial, a qual ultrapassou os limites ibéricos, apresentando-se como uma forma de
escoar as tensões internas causadas pela emergência de uma nova nobreza que surge com
a revolução de 1385. Iniciada em 1415, com a tomada da praça marroquina de Ceuta, a
expansão portuguesa sobre a África avançou ao longo do século XV. Esse fato será
extremamente representativo não só para os portugueses, mas para toda a Cristandade
Medieval que doravante, inicia um processo de profundas transformações no que tange
ao desenvolvimento tecnológico e as percepções geográfico-espaciais, marcando a era
das grandes navegações europeias e o alvorecer da era moderna.
Se no início do século XV era impensável navegar no Atlântico, notadamente na
costa africana, fosse por dificuldades técnicas ou em razão de especulações míticas acerca
da região, fomentadas pelo desconhecimento geográfico, ao final do quatrocentos os
portugueses haviam alcançado o tão cobiçado caminho alternativo para Índias exercendo
um grande domínio da navegação atlântica.
Neste trabalho nosso intuito foi o de compreender de que forma os cristãos do
final da Idade Média lidaram com a “redescoberta” de um continente que eles julgavam
conhecer, sobretudo a partir de relatos de viajantes e das escrituras sagradas, bem como
o impacto das constatações “reais” acerca de seus habitantes, sua geografia, sua natureza
e suas dimensões espaciais diante de dados imaginados, outrora considerados como
verdades instransponíveis.
Entender como o contato com o “outro” contribuiu para a formulação da
identidade portuguesa, compreender os significados da noção de espaço e de que forma
os medievais o apreendiam, bem como as mudanças das perspectivas geográfico-
espaciais ao longo do século XV e a formulação de uma nova percepção de espaço com
o avanço da exploração atlântica e africana constituíram os objetivos gerais desta tese.
Cronologicamente limitamo-nos ao período entre 1438 e 1481 e espacialmente
ao estudo da região da Guiné. No que concerne ao nosso recorte temático, vinculamo-nos
à História da Cultura, especificamente a Nova História Cultural, abordando temáticas
associadas a essa corrente como identidade, representações sociais e história das viagens.
19
Nosso corpus documental baseou-se nas seguintes fontes : a Crônica do
descobrimento e conquista da Guiné, escrita por Gomes Eanes de Zurara, o livro viagens
do navegador italiano Luís de Cadamosto e o relato do navegador português Diogo
Gomes de Sinta, intitulado “O descobrimento primeiro da Guiné”, a Carta náutica de
Módena, de autoria anônima, a Carta náutica de Pedro Reinel, a Carta náutica de Jorge
Aguiar.
O trabalho norteou-se a partir da hipótese de que o contato com o “outro” serviu
para consolidar a identidade portuguesa, e em última instância europeia, com base em
valores caros ao universo cristão baixo-medieval. Nesse sentido, o projeto expansionista
e tudo o que o envolvia atuaram como elementos de coesão. Sustenta-se também que a
partir do processo de Expansão Marítima, desenvolveu-se uma nova forma de
compreensão do espaço oceânico que passa pela cristianização deste e pela sua apreensão
como um espaço do vivido, construído a partir das práticas sociais. Dessa forma, O espaço
oceânico foi, paulatinamente, apropriado pelo reino português, tornando-se um espaço de
confrontos, mas também de trocas, onde a hegemonia portuguesa se afirmou. Nessa
perspectiva, destaca-se a importância da região da Guiné na configuração desse espaço
Atlântico, que por muito tempo teve Portugal como protagonista.
Para melhor apreciação do tema, a tese está dividida em duas partes, dispostas em
cinco capítulos. A primeira parte, intitulada África, Portugal e a Expansão
Quatrocentista: Espaço e Imaginário é formada por três capítulos. No primeiro capítulo,
denominado Historiografia e fontes de pesquisa sobre a expansão atlântica portuguesa
e a exploração da Guiné dedicamo-nos a apresentação e discussão das questões
historiográficas que envolvem o tema desta pesquisa. Nesse sentido, enfatizamos as
problemáticas referentes não só à História da Expansão Marítima Portuguesa
Quatrocentista, mas também aos estudos sobre a importância da navegação na costa
africana no período e principalmente aos estudos sobre a História da África pré-colonial.
Além disso, neste capítulo apresentamos nosso corpus documental, com descrição das
fontes, considerando as suas especificidades e as problemáticas que envolveram a sua
produção, além de apontar de que forma elas podem ser utilizadas para o estudo da Guiné
no século XV.
O capítulo apresenta-se dividido em quatro tópicos, quais sejam: 1) As grandes
questões historiográficas; 2) A África e a Expansão Marítima: abordagens possíveis; 3)
As fontes: entre textos e mapas; o primeiro item apresenta e discute os principais debates
da historiografia portuguesa “clássica” sobre História dos Descobrimentos, circunscrita,
20
cronologicamente, entre a primeira metade do século XIX e meados do século XX, além
de analisar as abordagens contemporâneas do tema. O segundo item discute questões
referentes ao estudo da História da África, com ênfase na perspectiva da produção
historiográfica brasileira sobre o tema. O terceiro tópico faz um balanço das principais
correntes historiográficas e aponta os eixos seguidos em nossa pesquisa. O quarto item
refere-se às fontes utilizadas para a elaboração desta pesquisa.
Nosso segundo capítulo, intitulado Entre o medievo ocidental e a África: espaço
e imaginário na Baixa Idade Média, toma como eixo as problemáticas referentes ao
espaço e as percepções do espaço a Idade Média. Construindo-se como um capítulo de
caráter teórico. Além disso, analisamos de que forma a África se construiu no imaginário
europeu medieval e de que maneira essa construção reflete na percepção que a Sociedade
Ocidental possui, ainda hoje, em relação ao continente africano, tanto em relação às
questões espaciais, quanto no que se refere às sociedades africanas.
No terceiro capítulo, intitulado O mar como missão: a Dinastia de Avis e a
expansão sobre a África analisamos o desenvolvimento do processo de expansão
marítima portuguesa no século XV e sua relação com as formas de conceber uma nova
realidade espacial e o “outro”. Considerando o fenômeno da expansão marítima,
sobretudo, pelo seu caráter cultural, contemplamos aqui a relação estabelecida, tanto no
plano simbólico quanto prático, entre a dinastia avisina e o Atlântico, bem como, a
apropriação desse espaço, gradativamente transformado em um espaço de missionação.
A partir de tais considerações, inicia-se a segunda parte da tese cujo título é “Nós”
e os “Outros”: Portugal e Guiné entre o Imaginário e as Representações, na qual
aprofundamos as questões referentes à construção das identidades (portuguesa e
europeia), bem como a relação de alteridade entre portugueses e africanos, na Guiné,
durante o século XV. Esta parte encontra-se disposta em dois capítulos. O quarto capítulo,
intitulado, Imagens da África: as representações da Guiné nos relatos quatrocentistas,
consiste na análise das representações da África observadas nas fontes coevas. Nosso
intuito é demonstrar como dados imaginados se confrontam com dados reais e como se
dá o processo de atualização do imaginário, conforme as navegações portuguesas vão
avançando até alcançarem a região da Guiné. Desse modo, as “imagens da África”
presentes no imaginário baixo medieval vão se transformando conforme os portugueses
conquistavam novos territórios no continente africano. Isto fica claro tanto em fontes
textuais, como nas crônicas e nos relatos de viagem, como em fontes imagéticas, como
os documentos cartográficos. Neste capítulo utilizamos como fontes a carta de Módena,
21
a carta de Pedro Reinel e a Carta de Jorge Aguiar, além dos relatos de Cadamosto, Diogo
Gomes Sintra e a Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, de Zurara.
Em nosso capítulo final, intitulado Nós e os Outros: identidade e alteridade nos
relatos quatrocentistas sobre a Guiné analisamos como as noções de identidade e
alteridade se expressam nas crônicas e relatos de viagem quatrocentistas, compreendendo
como se dá a marcação de diferença do “nós” para os “outros”. Nosso objetivo é a
compreensão dessa relação entre espaço e alteridade estabelecida a partir da penetração
dos portugueses em regiões além do Cabo Bojador. Nesse sentido, analisamos também
de que forma os europeus quatrocentistas se apropriam do espaço do “outro” e integram
a região da Guiné ao seu mundo. As fontes quatrocentistas que relatam os primeiros
contatos entre os europeus e os africanos da região subsaariana evidenciam a construção
de uma autoimagem europeia através da construção da imagem do outro, a qual se dá a
partir da diferenciação entre o “nós” (europeus/cristãos) e o “outro” (africano). Nesse
sentido, destaca-se que essa alteridade não se estabeleceu apenas na relação homem e
homem, mas também na relação homem e espaço. Estrutura-se assim o espaço do eu e o
espaço do outro. A medida em que as navegações avançam, e com elas o conhecimento
dessas novas regiões, observa-se o processo de apropriação desses espaços por parte dos
portugueses. Processo este que envolve a exclusão e a alienação do “outro”. Para tanto,
utilizamos os relatos de viagem de Cadamosto e de Diogo Gomes Sintra e a Crônica da
Guiné, de Zurara.
Dessa forma, nossa pesquisa procura contribuir não apenas para os estudos sobre
a História da Expansão Quatrocentista, mas também para os estudos de História da África
Ocidental pré-colonial, especificamente a região que os portugueses chamavam
genericamente de “Guiné” ou “Terra dos negros”, considerando o processo de construção
e apropriação do espaço Atlântico em sua totalidade, envolvendo não só os aspectos
técnicos do domínio desse espaço, mas sobretudo o desenvolvimento de práticas sociais
e a criação de um eixo euroafricano que envolve tanto a navegação e as trocas comerciais,
como também o confronto e a conquista.
22
Parte 1
África, Portugal e a expansão quatrocentista: espaço e
imaginário
23
Capítulo 1.
Historiografia e Fontes de Pesquisa sobre a Expansão
Atlântica Portuguesa e a Exploração da Guiné.
24
Capítulo 1. Historiografia e Fontes de Pesquisa sobre a Expansão Atlântica
Portuguesa e a Exploração da Guiné.
1. 1 - A Historiografia
2
Destaca-se nesse processo a incorporação do Atlântico Central e da Costa Ocidental Africana às rotas
comerciais europeias.
25
sobretudo, políticas, durante o século XX, principalmente ao longo do Regime
Salazarista.
Nesse sentido, destaca-se o prefácio da edição de 1841 da Crônica da Guiné, feito
pelo Visconde de Santarém, no qual o autor dedica-se à exaltação dos “grandes feitos”
dos portugueses, durante o século XV, ressaltando a importância da expansão no que
tange ao contato com outras culturas e regiões, além do caráter missionário e senhorial
do movimento. Essa perspectiva que valoriza o viés religioso e cavaleiresco do
movimento foi observada, também, no século XX, destacando-se os trabalhos de Joaquim
Bensaúde e do padre António Brásio.
Em A Cruzada do Infante D. Henrique, Bensaúde3 afirma ser a ação do Infante
Navegador na África motivada por um ímpeto cavalheiresco-cruzadístico, enfatizando o
papel do infante D. Henrique na expansão quatrocentista. Os estudos do padre António
Brásio4 concentram-se na ação missionária dos portugueses na África, durante o século
XV. Assim como Bensaúde, Brásio orienta suas análises com base na atuação do infante
no continente africano. O autor é responsável pela compilação de documentos que
compõem a Monumenta Missionária Africana.
Em 1919, António Sérgio5 nos oferece uma posição distinta acerca das razões da
expansão, afirmando que a sua causa motriz fora econômica e não religiosa. O autor nega
a razão senhorial da conquista, apontando como principal razão a crise econômica no
reino. De acordo com Sérgio, a carência de pão que era causa de sobressalto para as
gentes do reino 6,rebatendo, portando as teses cruzadistas e religiosas.
Outro importante autor a ampliar o campo de possibilidades explicativas à
conquista de Ceuta foi David Lopes, em 1925, apontado três razões para a empresa - não
isoladas, mas complementares- capazes de justificar a expansão, quais sejam:
3
BENSAÚDE, Joaquim. A cruzada do Infante D. Henrique. [S.l] : [s.n.], 1959.
4
BRÁSIO, António. A ação Missionária no período henriquino . [S.l] : [s.n.], 1958.
5
ALBUQUERQUE, Mário. O significado das Navegações. Lisboa: Sociedade Nacional de Tipografia
1930, p.50.
6
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Lisboa: Editorial verbo, 1980, p. 25. Volume II.
7
Ibidem, p.26.
26
Na década de 1930, Mario de Albuquerque busca em sua obra O significado das
navegações8 estabelecer as razões e o impacto das navegações portuguesas do século XV,
a partir de um ponto de vista mais abrangente do que os observados nos estudos que o
antecederam. Para o autor, as motivações principais para as grandes navegações foram a
crise econômica, que abatia o reino naquele período, a necessidade guerreira da nobreza
e os ideais cruzadistas e religiosos.
No quadro da história econômica, destaca-se Jaime Cortesão, que, de acordo com
Mario de Albuquerque, apresenta uma tese eclética, pois agrega elementos das teses de
António Sérgio e David Lopes reconhecendo a preponderância do aspecto material sobre
os espirituais, vendo na tomada de Ceuta um meio de reforçar o comércio com o norte da
África. Sua contribuição para o estudo do tema foi de grande importância, pois, ao longo
de sua vida acadêmica, o autor produziu uma vasta obra acerca da Expansão Marítima
Portuguesa. Muito embora enfatizasse o aspecto econômico e social do reino português,
considerou também outros elementos do movimento, como os recursos técnicos e
científicos, a cartografia e o impacto cultural da expansão, a partir do estabelecimento de
relações entre povos tão distintos.
Acerca da produção historiográfica portuguesa sobre o mar e o conhecimento do
oceano, notadamente, no final da Idade Média, esta encontra-se vinculada aos estudos
sobre a Expansão Marítima. De fato, o Oceano e especificamente o Atlântico, como
objeto de pesquisa tem sido pouco explorado pelos medievalistas.
De acordo com o historiador português António dos Santos Pereira9, o estudo do
tema a partir da perspectiva dos descobrimentos portugueses é redutor e não dá conta de
sua amplitude. Pereira atenta para a importância de enquadrar a temática no campo da
História da Cultura, da Ciência e da Técnica e do desenvolvimento do conhecimento
científico. A maior parte dos trabalhos acerca do movimento expansionista português
tomam o mar por coadjuvante, no máximo um obstáculo físico que fora vencido pelos
navegadores portugueses.
Vitorino Magalhães Godinho e Luís de Albuquerque destacam-se como os
precursores dos estudos que relacionam os descobrimentos e a ciência, ou melhor, as
ciências. Godinho, conforme aponta Pereira, enquadrou o tema na ciência econômica,
8
ALBUQUERQUE, Mário. O significado das navegações, op.Cit, p.51.
9
PEREIRA, Antônio dos Santos. O conhecimento do mar no século XV: entre a fantasia e a esquadria, o
Bojador e o pego do mar. ARQUIPÉLAGO. História, vols. 9-10,2ª série,.2005-2006, pp43-67. P.49.
<http://repositorio.uac.pt/handle/10400.3/410>. Acessado em 10 de outubro de 2015.
27
valorizando também os aspectos geohistóricos do movimento, analisando-o a partir do
complexo histórico-geográfico seguindo o modelo braudeliano10. Os trabalhos de
Vitorino Magalhães Godinho figuram como obras de referência no que tange aos estudos
de história econômica portuguesa no período das grandes navegações. Em A economia
dos descobrimentos henriquinos11, o autor analisa a importância do fator econômico para
o processo de expansão marítima, considerando também a relevância dos outros aspectos
que motivaram o movimento.
Luís de Albuquerque possui uma vasta obra sobre a História dos Descobrimentos,
sua ênfase foi na história das navegações e das técnicas, contribuindo imensamente para
a História da Ciência dos Descobrimentos. Dentre as suas inúmeras obras sobre o tema,
destacamos o Dicionário da História dos Descobrimentos12. A obra possui dois volumes
e reúne uma série de verbetes relacionados à Expansão Marítima, incluindo desde
cartógrafos quatrocentistas a tipos de embarcação.
Indubitavelmente Albuquerque e Godinho abriram caminhos para os estudos da
Expansão marítima a partir de novas perspectivas. Doravante, passou-se a considerar os
aspectos técnicos e geográficos do movimento, dando espaço para reflexões maiores
acerca do conhecimento do Oceano, o que também se relaciona com os estudos náuticos,
em especial estudos sobre modelos de embarcação, instrumentos de navegação e
cartografia náutica.
A partir da década de 1970, com o desfecho da revolução dos cravos em Portugal,
observa-se uma nova tendência na historiografia portuguesa sobre o tema. A começar
pela despreocupação dos autores em buscar argumentos que legitimem a presença
portuguesa em território africano. Valoriza-se então os agentes do movimento, tal quais
os marinheiros - ou como querem as fontes “mareantes”-, os astrônomos, cartógrafos e
toda a sorte de estudiosos que estiveram envolvidos nesse processo, bem como a presença
de especialistas de outras partes da Europa, especialmente da Itália, em Portugal durante
o período das grandes navegações. Nesse sentido, merecem destaque as contribuições
feitas por Joel Serrão, José Mattoso, António Henrique de Oliveira Marques, Francisco
Betencourt , Kirt Chaudhuri, Luís Krus e Luís Adão da Fonseca.
10
Ibidem, p.50.
11
GODINHO, Vitorino Magalhães. A economia dos descobrimentos henriquinos. Lisboa: Livraria Sá da
Costa Editora, 1962.
12
ALBUQUERQUE, Luís. Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Editorial
Caminho, 1994.
28
Luís Adão da Fonseca é, atualmente, uma das grandes referências sobre os estudos
do Oceano Atlântico durante a expansão quatrocentista. Em Os Descobrimentos e
a formação do Oceano Atlântico,13 o autor analisa de que forma o movimento
expansionista corroborou para a construção do espaço oceânico. Além da referida obra o
autor possui diversos artigos sobre o tema.
Na obra História da Expansão Portuguesa, organizada por Kirt Chaudhuri e
Francisco Betencourt14, encontram-se vários artigos de autores como Francisco
Domingues15, Maria Fernanda Alegria e João Carlos Garcia16, Diogo Ramada Curto17,
que representam uma nova geração da historiografia portuguesa sobre a expansão.
Observa-se na obra, um viés muito mais relacionado à História Cultural e a História da
Ciência e das práticas náuticas do que à História Política e Econômica, abordando temas
como o imaginário das viagens durante a Idade Média, a importância da literatura na
consolidação de padrões sociais, a história das práticas navais, e o impacto do contato
com outras civilizações.
António Henrique de Oliveira Marques, em A expansão quatrocentista, analisa as
conquistas portuguesas no continente africano, revelando os diferentes contornos que o
processo expansionista tomou ao longo do século XV. O autor dedica capítulos para a
discussão de técnicas navais, antes e durante o processo de expansão, além de fazer
análises do cotidiano dos marinheiros nas embarcações quatrocentistas. Trata-se de um
estudo riquíssimo dos aspectos políticos e, sobretudo, cultural do movimento
expansionista, onde a navegação no Atlântico e a sua construção como espaço de práticas
sociais e intercâmbios culturais aparecem de forma marcante.
Outra obra de relevo de Oliveira Marques intitula-se Portugal na crise dos séculos
XIV e XV18. Nesse livro o autor aborda toda a conjuntura portuguesa desde a ascensão de
Avis até o final do século XV, abarcando as várias fases da expansão quatrocentistas, o
13
FONSECA, Luís adão da. Os Descobrimentos e a formação do Oceano Atlântico. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.
14
BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirt (Orgs). História da Expansão Portuguesa. Lisboa:
Círculo dos leitores, 1997.Volume I.
15
DOMINGUES, Francisco Contente. Da exploração do Atlântico à demanda do oriente: caravelas, Naus e
galeões nas navegações portuguesas. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirt (Orgs).
História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo dos leitores, 1997. Volume I.
16
ALEGRIA, Maria Fernanda; GARCIA, João Carlos; RELAÑO, Fracesco. Cartografia e viagens. In:
BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirt (Orgs). História da Expansão Portuguesa. Lisboa:
Círculo dos leitores, 1997. Volume I.
17
CURTO, Diogo Ramada. “A literatura e o império: Entre o espírito cavaleiresco, as trocas da corte e o
humanismo cívico.”In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirt (Orgs). História da Expansão
Portuguesa. Lisboa: Círculo dos leitores, 1997. Volume I.
18
MARQUES, A. H. de Oliveira. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Editorial Presença, 1987.
29
papel da realeza e o da nobreza nesse contexto, além do impacto do movimento na
sociedade portuguesa.
Os trabalhos de José Mattoso não são direcionados especificamente para a
Expansão Quatrocentista, contudo, estando o autor voltado para a sociedade portuguesa
da Baixa Idade Média, em obras como “História de Portugal”19 ele acaba por entrar em
questões que se vinculam ao tema como a consolidação da Casa de Avis, no final do
século XIV. No artigo “Antecedentes medievais da expansão portuguesa”20, Mattoso
dedica-se à análise do imaginário medieval europeu, notadamente o português, sobre
viagens e a concepção de natureza, universo, mar e espaço no início do século XV.
Ainda sobre o imaginário do mar, destacamos o artigo de Luís Krus, intitulado o
imaginário português e os medos do mar21, que integra o livro a descoberta do homem e
do mundo. A obra fora organizada por Adauto Novais, por ocasião dos V centenário do
descobrimento do Brasil e traz uma série de artigos sobre o movimento expansionista,
escrito por grandes historiadores portugueses contemporâneos, como Maria Helena da
Cruz Coelho, Luís Felipe Barreto, Francisco Contente Domingues e Luís Felipe de
Alencastro.
Joel Serrão, no segundo volume de História de Portugal, faz um levantamento dos
principais debates da historiografia portuguesa sobre as razões das conquistas
ultramarinas, abordando os aspectos, políticos, econômicos, sociais e ideológicos do
movimento, destacando o papel da nobreza e também da mentalidade cavaleiresca da
época.
Destaca-se também o livro do historiador português João Marinho dos Santos,
intitulado A guerra e as Guerras na Expansão portuguesa: Séculos XV e XVI, no qual o
autor analisa a função da guerra nos primeiros anos de expansão. A hipótese principal de
Marinho é de que a guerra externa e sua assimilação como “cruzada” converteu-se em
um meio de fomentar a identidade nacional pautada na “vocação guerreira” e na missão
evangelizadora a qual estariam destinados o povo português. O autor relaciona essa
missão ao mito fundador de Portugal, o “Milagre de Ourique”, segundo o qual o primeiro
rei, D. Afonso Henriques, auxiliado por Deus, venceu cinco reis mouros que lideravam
19
MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. Lisboa: editorial Estampa, 1993. Volumes: 1,2 e 3.
20
MATTOSO, José.Antecedentes medievais da expansão portuguesa.In: BETHENCOURT, Francisco &
CHAUDHURI, Kirt (Orgs). História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo dos leitores, 1997. Volume
I.
21
KRUS, Luís. O imaginário português e os medos do mar. In: NOVAIS, Adauto. A descoberta do homem
e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 95-106.
30
um vasto e poderoso exército. Quanto a essa relação e seus traços de continuidade,
Marinho assinala o seguinte
22
SANTOS, João Marinho dos. A guerra e as Guerras na Expansão portuguesa: Séculos XV e XVI. Lisboa:
GTMECDP, 1998, p.109.
23
QUEIRÓS, Silvio Galvão de. Pera espelho de todollos Uiuos: A imagem do infante D. Henrique na
Crônica da tomada de Ceuta. 1997. 267 f Dissertação (Mestrado em História) - Programa de pós-graduação
em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1997. Cópia reprografada.
24
AMARAL, Clinio. A Construção de um Infante Santo em Portugal.2005. Dissertação (Mestrado em
História) -Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005,
p.32. Cópia reprografada.
31
assim as demandas do período Afonsino e eternizando a imagem do dito príncipe como
o grande herói da expansão em África.
Na dissertação de Clinio Amaral, o autor busca em Zurara as especificidades do
discurso cronístico em relação à sacralização da monarquia avisina. Para Amaral, a
segunda metade do século XV, em Portugal, foi um momento em que havia uma demanda
pela santidade de um membro da dinastia. Nessa perspectiva, o autor faz uma longa
discussão sobre o processo de Expansão, seus impactos internos no reino de Portugal e,
principalmente, seus usos político-ideológicos, enfatizando o viés propagandístico do
discurso monárquico acerca do movimento e assinalando que para além do caráter
agregador da ideologia Avisina, o discurso monárquico constituiu um poderoso
mecanismo simbólico por apresentar em sua estrutura narrativa alguns elementos da
tradição cristã, visando legitimar e sacralizar a guerra na África.25
Além da produção acadêmica luso-brasileira sobre a temática , destacam-se também
os trabalhos do historiador inglês Charles R. Boxer, cujos estudos foram voltados para a
História Colonial Portuguesa e Holandesa, durante a Idade Moderna. Acerca do
movimento expansionista e a colonização ultramarina, o livro intitulado the portuguese e
seaborns empire, publicado pela primeira vez em língua inglesa, em 1969,26 e que possui
diversas edições em português, é ainda hoje uma grande referência sobre o tema e uma
das principais publicações em língua estrangeira. Outro autor britânico que possui uma
importante obra sobre a atuação dos portugueses na África durante o movimento
expansionista é Anthony John R. Russell-Wood que em 1992 publicou o livro A world
on the Move: The Portuguese in Africa, Asia and America, 1415-180527.
São intensas as discussões na historiografia acerca das motivações e impactos da
expansão e, como observa Clinio Amaral, a maioria dos autores tende a apontar uma
multiplicidade de causas para a expansão, contudo os historiadores estão longe de chegar
a uma resolução para a questão28. Como já dissemos, não constitui nosso objetivo apontar
uma ou várias causas para a expansão, nem tampouco advogar em prol de uma específica.
Nosso intuito com esse balanço historiográfico é dar luz as principais discussões acerca
do movimento expansionista, sobretudo, as mais recentes que contribuem para pensar a
História da Expansão Marítima a partir de uma perspectiva mais culturalista que priorize
25
Ibidem, p.53.
26
BOXER, Charles. R. The portuguese e seaborn empire. Nova York: Knopf, 1969.
27
RUSSEL-WOOD. A world on the Move: The Portuguese in Africa, Asia and America, 1415-1805.
London: Johns Hopkins University Press, 1992.
28
AMARAL, Clinio. A Construção de um Infante Santo em Portugal.Op. cit., p.49.
32
não os “feitos” individuais, mas o movimento como um processo complexo, considerando
o seu impacto em todos os agentes envolvidos, sejam europeus, africanos ou o próprio
Atlântico.
Thomas que à altura do trecho supracitado já possuía mais de trinta anos de pesquisa
e docência na área, fez parte de uma geração de historiadores portugueses que, em razão
dos centenários dos descobrimentos e do interesse governamental em exaltar esses feitos
, tiveram a oportunidade de trabalhar em pesquisas de grande vulto sobre o tema. Entre
as décadas de 1960 e 1990, muitas pesquisas sobre a Expansão Marítima portuguesa
foram impulsionadas em decorrência de incentivos governamentais e nesse período
muitas obras importantes foram compostas, muitos documentos foram catalogados e
muitos destes documentos foram revisitados, como as crônicas de Zurara e os relatos de
Viagem de Luís de Cadamosto e de Diogo Gomes Sintra, por exemplo.
É certo que a geração de Thomas fez muito pela historiografia da História da
Expansão Marítima, portuguesa e europeia, no entanto, como o próprio ressalta, muita
ainda há de ser feito e refeito.
29
THOMAS, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, p.13.
33
Nessa perspectiva, o medievalista francês Jean Devisse e o africanista egípcio Shubi
Labibi ressaltam que no lugar do termo “descobertas,” usado para se referir ao fenômeno
das grandes navegações europeias durante o século XV, seria preferível utilizar
“redescoberta”30. Relativiza-se assim a própria noção de descoberta, no que tange à
exploração europeia, notadamente portuguesa, sobretudo, na Costa Atlântica Africana.
No mesmo sentido converge o pensamento do historiador congolês Elikia M’Bokolo,
segundo o qual “o descobrimento” é um tema a ser “reapreciado”, elencando três razões
para se revisitar a problemática do descobrimento.
Primeiramente o autor afirma que muito antes dos portugueses, os árabes já
tentavam há muito explorar a costa africana; a segunda razão se deve ao fato de os
próprios africanos que habitavam o litoral Atlântico não terem alimentado, nas relações
31;
com o mar, a irreprimível fobia que lhes foi durante muito tempo atribuídas assim,
segundo M’Bokolo:
30
DEVISSE, Jean; LABIBI, Shubi. A África nas Relações Intercontinentais. In: NIANE, Djbril Tamsir
(Org).História Geral da África. África do século XII ao XVI. Brasília: UNESCO, 2010, p.751.Volume IV.
31
M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações.Salvador: EDUFBA, 2011, p.257.
32
Ibidem, p.257.
34
na sociedade ocidental, sendo percebida, ainda hoje, em estudos sobre o assunto 33.
Quanto a tal questão, Elikia M’Bokolo faz as seguintes considerações:
33
KI-ZERBO, Joseph (org). História Geral da África.Brasília: UNESCO, 2010, p.10. Volume I.
34
M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. Op.cit, pp. 50-51.
35
à produção acadêmica de História da África no Brasil, Mauricio Waldman e Carlos
Serrano apontam que por muito tempo ouve um “vazio” na produção de estudos nessa
área, segundo os autores:
Tal lacuna é evidente tanto na ausência pura e simples de uma visão realista
sobre o continente quanto em seu desdobramento direto na persistência de
uma visão estereotipada e preconceituosa impingida, sem maiores
delongas, à África. Não seria demasiado sublinhar, essa perspectiva
associa-se à exclusão de parcela ponderável da população brasileira do
pleno exercício dos seus direitos enquanto cidadãos, veredito que recai de
forma marcante sobre os nacionais de origem africana, isto é, os
afrodescendentes.35
Além de destacar a importância da lei para o fomento dos estudos sobre a História
da África e para a disseminação do conhecimento acerca desse continente, o qual embora
tenha sido essencial para a formação de nossa sociedade é deveras ignorado e/ ou
desconhecido para a mesma, Macedo também sinaliza para a falta de disponibilidade de
materiais publicados no Brasil ou em português sobre o tema.
Ressalta-se, por fim, o salto da produção historiográfica acerca do movimento
expansionista, observado no Brasil a partir das comemorações dos quinhentos anos dos “
descobrimento” da América (1492) e da chegada dos portugueses ao Brasil (1500).Diante
35
WALDMAN, Maurício; SERRANO, Carlos. Memória d’África: a temática africana em sala de aula.
São Paulo: Cortez editora, 2013, p.11.
36
MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Editora Contexto, 2014, p.7.
36
disso, nossa pesquisa procura contribuir não apenas para os estudos sobre a História da
Expansão Quatrocentista, mas também para os estudos de História da África Ocidental
pré-colonial, especificamente na região da Guiné, considerando o processo integração
desse espaço ao universo europeu e a própria afirmação de uma identidade europeia, com
base na afirmação da alteridade em relação aos guinéus.
37
CORTESÃO, Armando. História da cartografia portuguesa. Coimbra: Junta de investigações do
ultramar, 1969.
38
MARQUES, Alfredo Pinheiro. Origem e desenvolvimento da cartografia à época dos descobrimentos.
Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1988, p.63.
37
marítima. O que se pode provar é a presença de muitos especialistas, sobretudo,
maiorquinos e italianos, no reino ao longo século XV , contudo não é possível afirmar
que houve produção de cartas por especialistas portugueses antes do primeiro quartel
desse século.
A cartografia que se desenvolve em Portugal está atrelada às necessidades do
movimento expansionista. Em um primeiro momento, ainda é embasada nos padrões
mediterrânicos, mas com o avanço das “descobertas”, novas técnicas devem ser aplicadas
as cartas que precisam se expandir geograficamente para darem conta das novas
realidades espaciais que se apresentam aos mareantes. Doravante, nasce uma cartografia
que, gradativamente, distancia-se das escolas mediterrânicas para ganhar um novo
contorno, conforme assinala Pinheiro Marques:
39
Ibidem, p.74
40
ALBUQUERQUE, Luís de. Introdução. In: MARQUES, Alfredo Pinheiro. Origem e desenvolvimento
da cartografia à época dos descobrimentos. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1988, p. 09.
41
Ibidem, p.10.
38
Origem e desenvolvimento da cartografia portuguesa na época dos descobrimentos, de
Alfredo Pinhero Marques, publicado em 1987, destaca os estudos de A. Teixeira da Mota,
A. Fontoura da Costa e do próprio Alfredo Pinheiro Marques sobre o tema. Ao rol dos
historiadores da cartografia portuguesa podemos acrescentar Joaquim Alves Gaspar,
investigador português que há mais de uma década vem apresentando diversas
publicações consistentes na área.42 Note-se que a relativa escassez de pesquisadores não
corresponde há uma escassez de obras sobre o assunto, nem tampouco análises das cartas,
dos cartógrafos e do contexto social em que estavam inseridos. Nesse sentido destaca-se
a vasta produção de Armando Cortesão e em especial a compilação intitulada Portugalia
monumenta cartográfica realizada em esforço conjunto com A. Fontoura da Costa entre
1955 e 1960.
Trata-se de uma coletânea que reúne fac-símiles de Mapas portugueses do período que
vai da segunda metade do século XV até o século XVIII. Os mapas compreendem as
regiões conquistas pelos portugueses entre finais da Idade Média e ao longo da Idade
Moderna. A obra está disposta em cinco volumes, sendo publicada em 1960 sob a
coordenação de Armando Cortesão. A coletânea foi lançada à época das comemorações
dos quinhentos anos das navegações Henricinas. A envergadura do projeto e a sua
concretização, coloca a Portugaliae Monumenta Cartográfica dentre as maiores obras da
História da Cartografia, pois além de apresentar centenas de mapas, possui um estudo
crítico para cada um deles.
A obra apresenta os quatro mapas portugueses do século XV que chegaram ao
nosso conhecimento, quais sejam: o Fragmento anônimo da Biblioteca Nacional, a Carta
Anônima de Modena, a Carta de Pedro Reinel43 e a Carta de Jorge Aguiar.44 Neste
trabalho utilizamos a Carta Anônima de Modena, a Carta de Pedro Reinel e a Carta de
Jorge Aguiar. Os três mapas foram produzidos na segunda metade do século XV e
39
apresentam características que começam a distancia-los dos mapas mediterrânicos, muito
embora ainda seja possível observar a influência das escolas Maiorquina e Italiana em
suas composições. Estas obras constituíram as primeiras produções cartográficas
genuinamente portuguesa, além de constarem entre os primeiros mapas europeus
conhecidos atualmente a representar a Costa Ocidental Africana, à época genericamente
chamada de Guiné, e o Atlântico Central.
Figura 1
Fragmento século XV
40
1.2.2. As fontes literárias: as literaturas na Idade Média
45
ZINK, Michel. Literaturas. In: LE GOFF, Jacques; SCHIMITT, Jean Claude. Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2002, 79.
46
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, s/d.,p.135.
41
transmitida, o que, segundo Paul Zumthor, irá “reatulizar” e “reescutar” mais e melhor
do que a escrita, favorecendo, nesse sentido, a migração de mitos, linguajares e estilos
sobre determinados grupos47.
Dessa forma, a oralidade constitui uma noção fundamental para a compreensão da
literatura medieval, considerando que grande parte das composições que chegaram até
nossos dias apresentam caráter oral, como as canções de gesta, as poesias trovadorescas
e etc. De acordo com Zumthor, os especialistas admitem que o termo oralidade não faça
referência somente à questão da transmissão poética, mas também implica a
improvisação. Outra consideração que o autor faz diz respeito à necessidade de
diferenciação entre tradição oral e transmissão oral, estando a primeira situada no campo
da duração e a segunda relaciona-se com a performance no presente48.
No livro a “Letra e a voz”, Zumthor faz um estudo elaborado acerca das
especificidades da literatura medieval, tomando como eixo a relação da escrita com a
transmissão oral. Nesse sentido, o autor enuncia três tipos de oralidade que seriam
correspondentes a três tipos de cultura:
47
ZUMTHOR, Paul. A letra e voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 15.
48
Ibidem, p.17.
49
Ibidem,p.18.
42
chamando a atenção para a questão da vocalidade, conceito que aparece de forma
complementar a noção de oralidade, considerando que esta, segundo ele, não compreende
toda a complexidade da transmissão literária na Idade Média 50. Destaca-se, nesse
contexto, a importância da performance na transmissão literária durante o período
medieval.Acerca da noção de vocalidade, Zumthor assinala que se trata da historicidade
da voz, exercendo uma importante função como portadora da linguagem e organizadora
do pensamento a partir das palavras.51
Tanto Zumthor quanto Zink deixam claro, em seus trabalhos, a essencialidade da
relação entre a letra e voz, os sentidos da visão e da audição e o papel da oralidade para a
compreensão da Literatura Medieval. Entretanto, embora essa relação tenha sido
observada durante toda a Idade Média, isso não significou a ausência de mudanças na
forma de composição das obras literárias. No final do século XII surge o romance,
primeiro gênero composto com a intenção de ser lido e não cantado. Contudo, trata-se de
uma leitura em voz alta, uma leitura, portanto, coletiva 52. Observa-se que a mudança no
objetivo da composição literária não exclui a sua relação com a transmissão oral.
Sendo a oralidade uma das características principais da Literatura Medieval, a
determinação da autoria das obras literárias torna-se bastante imprecisa. Não havia no
período uma preocupação com a autoria dos textos. Embora muitas obras tenham sido a
autoria identificada, como eram transmitidas oralmente elas sofriam interpolações ao
longo do tempo e ao gosto do narrador, modificando-se de tal maneira que se
transformavam em outra história.
Também era comum que muitos autores incluíssem em suas obras textos de outrem,
sem que se fizesse qualquer tipo de referência. Na crônica da Tomada de Ceuta, por
exemplo, Zurara fez uso de apontamentos de Fernão Lopes para compor a sua obra 53.
Também Ruy de Pina e Garcia de Resende se valeram da mesma “técnica” para a
composição de suas crônicas, utilizando manuscritos de outros cronistas.
Mesmo com a criação da imprensa no século XV e com o surgimento de cronistas
oficiais, como ocorre no caso do reino de Portugal, a literatura do final da Idade Média
ainda continua a apresentar traços de uma produção que é destinada à transmissão oral.
Algumas mudanças nessa produção literária refletem o amadurecimento de línguas
50
Ibidem,p.19.
51
Ibidem, p.21.
52
ZUMTHOR, Paul. Essai de Poetique Medievale. Paris: Edition du Seuil, 2000. P32.
53
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Cronistas portugueses posteriores a Fernão Lopes.Lisboa: Instituto da
Cultura e da Língua Portuguesa, 1977, p. 28.
43
vernáculas, como o português, destacando-se o surgimento da prosa no limiar do século
XIII. Este gênero, tal qual o romance tem sua origem relacionada ao desenvolvimento da
escrita e da leitura.54 O caráter linear da prosa fez com que ela se tornasse a forma
privilegiada para a escrita de narrativas históricas, as quais obtiveram muito espaço na
Baixa Idade Média, sobretudo com as crônicas, gênero predominante do nosso corpus
documental.
Em Portugal é possível observar, entre meados do século XIV e início do XV, um
desenvolvimento acentuado da literatura escrita, em grande parte apoiada e patrocinada
pelo poder régio. Com o advento da Casa de Avis ocorre um aumento da produção de
livros na corte portuguesa, antes mesmo do surgimento da imprensa. D. João I e os
príncipes da Ínclita Geração inovam a literatura em prosa com a redação de tratados
doutrinários e moralistas que abordam temas como religião, política e normas de conduta.
A criação do cargo de cronista-mor do reino de Portugal revela não só o amadurecimento
da prosa, mas, sobretudo, uma consciência por parte da realeza, da importância ideológica
e simbólica de registrar por escrito os fatos históricos.
Ao optarmos pela utilização de fontes literárias em nosso corpus entendemos a
literatura como um elemento da cultura e esta, por sua vez, é compreendida como parte
constitutiva do todo social, portanto inserida em um contexto histórico específico que
deve ser considerado. Há muito a Literatura vem sendo utilizada como fonte à pesquisa
histórica, destacando-se em Idade Média a história social da arte e da literatura de
Arnold Hausser na década de 50 e os estudos do historiador holandês Johan Huizinga na
década de 20 que analisou a influência dos romances de cavalaria na percepção da
realidade social e política.55 A partir da década de 1970, a utilização da Literatura como
fonte histórica vai se tornar mais abundante graças à contribuição da “Nova História”,
tendo como principal expoente o medievalista Jacques Le Goff, o qual apresenta uma
nova concepção de documento histórico, segundo a qual o documento não é inocente, não
decorre apenas da escolha do historiador, ele próprio parcialmente determinado por sua
época e seu meio; o documento é produzido consciente ou inconscientemente pelas
sociedades do passado, tanto para impo ruma imagem desse passado quanto para dizer
a “verdade”.56
54
ZINK, Michel. Literaturas. Op.cit., p.81.
55
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 250.
56
LE GOFF, Jacques. A Nova História. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2005, p.76.
44
Le Goff aponta que a busca por uma história total e do imaginário necessita da
consideração de todos os documentos de uma sociedade, destacando nessa perspectiva
aos documentos artísticos e literários.57 No final da década de 1980, o surgimento da
“Nova História Cultural” vai aproximar ainda mais a História da Crítica Literária, além
de propor novos campos de pesquisa como a História da leitura, contribuindo ainda mais
para a utilização da Literatura como fonte de investigação em História.
57
Ibidem, p.77.
58
SARAIVA, António José. O crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1988, p.41.
59
ACCORSI, Paulo. Do Azambujeiro bravo à mansa oliveira.Dissertação (Mestrado em História) -
Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1997, p.56. Cópia
reprografada.
45
Já em meados do século XV é possível observar o florescimento do humanismo na
corte portuguesa, o que se observa, sobretudo, na produção literária do período. Nesse
sentido, destacam-se as já citadas produções literárias da corte avisina em língua
vernácula, notadamente, os tratados técnicos e a prosa moralística, além das diversas
traduções de autores clássicos greco-romanos como Cícero e Sêneca. Ao longo do reinado
de D. Afonso V esse movimento se consolida não apenas na corte portuguesa, mas em
diversas regiões da Europa, especialmente naquelas onde há uma intensa atividade urbana
e burguesias bem consolidadas. Acerca desse período de amadurecimento dos
“humanismos” europeus, o historiador português Saul António Gomes fez os seguintes
apontamentos:
60
GOMES, Saul António. D. Afonso V. Lisboa: Temas e Debates, 2009, p.181-182.
61
REBELO, Luís de Sousa. Língua e Literatura no Império Português.In: BETHENCOURT, Francisco;
CHAUDHURI, Kirt (Orgs). História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo dos leitores, 1997. Volume
I.
62
CURTO, Diogo Ramada. Cultura Imperial e Projetos Coloniais. Campinas: Unicamp, 2009, p.59.
63
Ibidem, p.61.
46
Outra novidade do período é a criação do cargo de cronista-mor do reino, fato que
se relaciona com a necessidade de legitimar a nova Dinastia. Nesse contexto, o paço
tornou-se o centro de irradiação do poder monárquico estruturado a partir de um discurso
ordenador que atua como sustentáculo ideológico da dinastia, servindo como propagador
do projeto político avisino, veiculado, em grande parte, a partir da referida produção
literária. A esse “discurso”, presente na literatura portuguesa quatrocentista patrocinada
pela realeza, a historiadora brasileira Vânia Leite Fróes denominou “Discurso do Paço”.
O paço constituiu-se como um espaço simbólico, capaz de absorver a demandas dos
“novos tempos”, fornecendo explicações ao novo quadro social e político que se
configurou com a ascensão de Avis, além de fornecer elementos capazes de legitimar o
poder da nova casa.
O “discurso do paço” constitui um modelo ordenador, atuando como sustentáculo
ideológico da dinastia e servindo como propagador do seu projeto político, abarcando a
prosa moral, os tratados técnicos, crônicas, peças teatrais, trovas, etc. De acordo com
Fróes, esse discurso pretende legitimar o poder régio a partir da consolidação de um
modelo messiânico onde o rei figura como salvador, não só do reino, mas também de toda
a Cristandade64 além de fornecer “um substrato ideológico, através de seus mecanismos
de consolidação e de resolução dos conflitos políticos, por meio de uma releitura da
tradição cristã, conferindo uma sacralidade à monarquia.”65
Diretamente ligada ao movimento de expansão portuguesa, a literatura em prosa
circulante no reino de Portugal possui importante papel legitimador dessa expansão e
consequentemente das guerras empreendidas na África ao longo dos séculos XV e XVI,
sendo, dessa forma, um poderoso instrumento político. O domínio da produção literária
significava o controle dos discursos veiculados nas obras. Dessa forma, torna-se evidente
a intenção da monarquia de criar um campo literário que atue como propaganda política
dos feitos dinásticos66. A literatura doutrinária, ao mesmo tempo em que expressa os
ideais do grupo dominante, constitui uma forma eficaz de controlá-lo.
Nesse sentido, o discurso do paço e suas implicações sociais são aqui entendidos
como expressão do poder simbólico exercido pela realeza. Esta forma de poder é, na
64
FRÓES, Vânia Leite. Era no tempo do rei. Niterói: UFF, 1995, p.4.
65
Ibidem, p.49.
66Adotamos aqui a concepção de propaganda política de Nieto-Soria que a define como: “o conjunto dos
processos de comunicação pelos quais se difundem os valores, as normas e as crenças e que formam as
ideologias políticas”. Cf NIETO-SORIA, José Manuel. Fundamentos Ideológicos del poder real em
Castilla( siglos XIII-XV).Madri: 1988, p.42.
47
concepção de Pierre Bourdieu, um poder de construção da realidade que tende a
estabelecer uma ordem gnosiológica. Assim, o poder simbólico estabelece instrumentos
de dominação sem a utilização da força física, sendo ainda mais eficaz no sentido de que
sua constituição se dá, sem a percepção clara daqueles que estão sendo dominados.67
Produzidas nesse contexto de legitimação, consolidação e exibição do poder da
Casa de Avis ao longo do século XV, as crônicas revelam preocupação com a necessidade
de criar uma memória oficial do reino e, por conseguinte, uma identidade portuguesa,
bem como marcar, em um primeiro momento, um traço de continuidade dinástica. Nesse
sentido Saul Antônio Gomes assinala que:
67
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p.10.
68
GOMES, Saul António. D. Afonso V. Lisboa: Temas e Debates, 2009,p. 184.
48
1.2.4. A produção cronística de Gomes Eanes de Zurara
69
BARRETO, Luís Filipe.Gomes Eanes de Zurara e o problema da ‘crónica da
Guiné’.Studia, Lisboa, vol.47,pp. 311-369,1989, p.313,
70
ZURARA,Gomes Eanes. Crônica de D. Pedro de Meneses. Reprodução fac-similada com nota de
apresentação de J. Adriano de Freitas Carvalho. Porto: Programa Nacional de edições Comemorativas dos
Descobrimentos Portugueses, 1988, p.213.
49
algumas das razões pelas quais se pôs a escrever sobre o governo do Conde D. Pedro de
Meneses na Cidade de Ceuta:
E porque nós escrepvemos esta Istoria primeiro duas vezes que fosse trazida a
seu proprio lugar,emendando sempre no que conheciamos errado, como se
costuma de fazer nas couzas, em que muitos ham de jugar, postoque os em alãs
partes ouçais desviando alguma couza, do que aqui achardes escrito, entendes,
que se faz por se mais apurar a verdade, e temos que do que realmente pertence
á sustancia, naõ póde em outra parte ser mais verdadeiramente escrita, que
aqui, leixando as particularidades , em que nunca se pode achar verdadeira
certidão, o que de necessidade, er muitos há de ser sabido.71
É possível encontrar na produção de Zurara uma série de temas que possuem como
lugar-comum a ideologia cruzadística portuguesa, quais sejam a valorização dos feitos de
armas, a guerra contra o infiel muçulmano e a sua relação com a missão salvacionista do
reino.
Em todas as suas obras o segundo cronista mor do reino enfatiza as noções de
honra e proveito, típicas da cavalaria e a ideia de serviço prestado a Deus, não somente
71
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica de D. Pedro de Meneses. Op.cit.
72
BARRETO, Luís Filipe. Gomes Eanes de Zurara e o problema da ‘crónica da Guiné’.Op. cit., p. 318.
50
por parte dos príncipes e reis de Avis, mas também pelos nobres que lutavam nas praças
africanas e, principalmente, os dois primeiros capitães de Ceuta, os Condes D. Pedro e D.
Duarte de Meneses. As crônicas compostas por Gomes Eanes de Zurara, encontram-se
circunscritas na perspectiva daquilo que Fróes denominou “discurso do paço”.
73
LEITE, Duarte. Acerca da crônica da Guiné. Lisboa: livraria Bertrand, 1941. P. 10
74
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do descobrimento e conquista da Guiné. P. 249.
75
DUARTE LEITE, op. Cit, p 18
76
Ibidem, p. 19.
51
No que concerne ao códice de Paris, pouco se sabe de sua origem e de como
chegou até ali. Além do Códice parisino existem outros três manuscritos de conhecimento
público, são eles: o manuscrito de Valentim Fernandes, da Biblioteca de Munique. O
manuscrito da Biblioteca Nacional de Madrid e o manuscrito da Biblioteca de Munique.
O primeiro é o mais antigo, com data de 1506, registrando parcamente a crônica. Tratam-
se de extratos da crônica reunidos pelo impressor alemão Valentim Fernandes, o qual se
estabeleceu em Portugal no final do século XV, e no mesmo período iniciou uma
compilação com textos sobre as navegações portuguesas em África que ficou conhecida
como o Manuscrito de Valentim Fernandes. O referido manuscrito foi descoberto em
1845 pelo Dr J. A. Schmeller, na biblioteca de Munique.
De acordo com Duarte Leite, existe uma cópia fiel desse texto na Biblioteca
Nacional de Lisboa 77. Segundo Reis Brasil, a versão da Crônica da Guiné presente no
manuscrito de Valentim Fernandes deve ter sido copiada dos papéis de João de Barros 78.
O manuscrito da Biblioteca Nacional de Madrid é uma cópia do século XVIII,
reproduzindo quase na íntegra o manuscrito de Paris. O último, data do final do século
XVII, sendo correspondente ao manuscrito parisiense79. Em 1841, foi publicada uma
edição crítica pelo Visconde de Santarém, com base no manuscrito de Paris. A edição
ficou conhecida como Princeps, que somente foi sucedida por outra em 1937, dirigida
por José de Bragança, o qual modernizou a escrita de Zurara e juntou à crônica uma
introdução, notas e glossário.80As versões modernas da crônica são baseadas no
manuscrito de Paris, por ser, até hoje, o mais completo já encontrado, e na edição de
1841.
77
Ibidem, p, 20
78
REIS BRASIL. Introdução. InZURARA, Gomes Eanes. Crônica do Descobrimento e Conquista da
Guiné. Lisboa: publicações Europa América, 1989, p.14
79
REIS BRASIL. Introdução. In ZURARA,Gomes Eanes. Crônica do Descobrimento e Conquista da
Guiné. Lisboa: publicações Europa América, 1989, p.15.
80
DUARTE LEITE.Acerca dascrônica dos feitos da Guiné. Lisboa: 1941, p.20
52
Figura 2- Retrato do infante D.Henrique
In: “crônica dos descobrimentos e conquistas da Guiné”
Biblioteca Nacional de Paris.
53
Na conclusão da crônica, Zurara assinala ser a obra o primeiro volume da crônica,
deixando clara desde o penúltimo capítulo a intenção de escrever um segundo volume, ao
afirmar o seguinte: e desde i por nos parecer razoado volume aqueste que já temos
escrito, fizemos aqui fim, como dito é, com a intenção de fazermos outro livro que chegue
até o fim os feitos do infante (...).81 No entanto, acerca deste suposto segundo volume
nenhuma notícia chegou até nós. De modo que não é possível saber se o autor declinou
da tarefa ou se simplesmente o outro tomo se perdeu.
O grande valor histórico da Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné.reside
do fato de ser ela a primeira obra europeia a retratar a África para além do Cabo do
Bojador, levando à Portugal e à Europa notícias das “novas” terras e dos “novos” povos
que começavam a ser explorados pelos portugueses. A crônica também é considerada por
alguns estudiosos, como Luís Felipe Barreto, uma das primeiras obras literárias
portuguesa com características renascentistas. Quanto a inovação literária que a escrita
de Zurara apresenta na Crônica da Guiné, Barreto assinala o seguinte:
A Crônica da Guiné é sem dúvida uma obra de dominante escrita
Medieval, mas é também e ao mesmo tempo um campo teórico onde uma
dominada forma nova de escrever e pensar a história flui clandestinamente
por entre as tradicionais ideias. Lugar de paradoxo onde se conjugam
alguns dos primeiros enunciados renascentistas da cultura portuguesa com
toda um forma e limite tradicional de pensar a realidade natural e social. 82
É, pois a esta singular e gloriosa exceção que devemos o precioso monumento que
vamos dar pela primeira vez ao público: a Crónica da Conquista de Guiné por
Gomes Eanes d’Azurara, escrito que é incontestavelmente não só o primeiro livro
escrito por autor europeu sobre países situados na costa ocidental d’África além do
cabo do bojador, e no qual se coordenaram pela primeira vez as relaçõesde
testemunhas contemporâneas dos esforços dos mais intrépidos navegantes
portugueses que penetraram no famoso mar tenebroso dos árabes, e passaram além
da meta que até então tinha servido de barreira aos mais experimentados marítimos
do Mediterrâneo, ou das costas da Europa.Com efeito, tendo sido os portugueses os
primeiros descobridores dos países situados além do cabo do bojador, a honrosa
missão de primeiro recontar estes descobrimentos competia a um português 83.
81
ZURARA, Gomes Eanes de.Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Lisboa: Publicações
Europa-America, 1989. p.246
82
BARRETO, Luís Felipe. Gomes Eanes de Zurara e o problema da ‘crónica da Guiné’. Op. cit, p. 212.
83
Ibidem, p. 15.
54
Figura 3- Crônica dos feitos e conquistas da Guiné. Capa da edição de 1841.
Biblioteca Nacional de Portugal
55
Note-se que a Crônica da Guiné foi escrita em um contexto político conturbado,
após a crise que resultou na batalha de Alfarrobeira e na morte do Infante D. Pedro.
Portanto, um momento extremamente delicado no campo político português, marcado
pela mudança de atitude em relação à empresa ultramarina e pela consolidação das forças
senhoriais no poder84.
A partir de uma forte propaganda política, que tem como principal instrumento a
produção cronística de Zurara, edificou-se um discurso que exaltava a ação militar na
África, reverenciando tipos ideais de comportamento identificados como genuinamente
portugueses, como por exemplo, a postura da cavalaria e o compromisso desse grupo com
o rei, o reino e Deus. Nesse sentido, a obra de Zurara exerce um papel de extremo relevo,
pois consolida a ideia de vocação messiânica do reino português e o próprio projeto
expansionista.
84
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Cronistas Do Século XV Posteriores A Fernão Lopes. Porto: Instituto de
Cultura Portuguesa, 1977, p.35.
85
PERES, Damião. Introdução. In: CADAMOSTO, Luís de. Viagens. Lisboa: Academia Portuguesa de
História, 1988.
56
Embora seja um relato de suas viagens, a obra de Cadamosto não é um diário, mas
sim uma crônica. Os manuscritos de Cadamosto foram divulgados pela primeira vez em
1507, juntamente com a descrição de outras viagens ultramarinas do século XV e início
do XVI , nas sucessivas edições quinhentistas da obra intitulada paesi novamente ritrovati
et novo mondo da Alberico vesputio florentino. Intitulado Os Escritos de Cadamosto
foram posteriormente incluídos por Ramusio, na sua coletânea dele navigazioni et viaggi,
cuja primeira edição se fez em 1550.
Modernamente, a versão ramusiana é a que tem sido unanimemente seguida, quer
em italiano, quer em traduções. Quanto às cópias do original, tem se conhecimento de
duas , ambas encontram-se na Biblioteca Marciana de Veneza, sendo uma de princípios
do século XVI e a outra de finais do século XV. A primeira tradução portuguesa da obra
é do final do século XIX, feita por Mendo Trigoso. A versão utilizada de Viagens de Luís
de Cadamosto e Pedro de Sintra é uma edição de Damião Peres, impressa pela Academia
Portuguesa de História, em 1988, e traduzida por Giuseppe Carlo Rossi.
Note-se que a obra de Cadamosto e a Crônica da Guiné, de Zurara, foram os
primeiros relatos de Europeus acerca de terras além do Bojador. O relato de Cadamosto
é rico em elementos práticos de navegação, tais como a distância de uma paragem a outra,
detalhes sobre ventos e correntes marítimas, entre outros. Ressalta-se, por fim, que após
o retorno de Cadamosto à Veneza, em 1463, muitos mapas do Atlântico Ocidental foram
produzidos por cartógrafos italianos o que, para alguns especialistas, denota a influência
do autor e sua obra na concepção desses mapas.
57
manteve a capitania da ilha até a sua morte, em 149986. Seu falecimento se deu entre os
anos de 1499 e 1502, sendo a narrativa de seus feitos em África relatada já no fim de sua
vida, portanto, muitas décadas após a realização de sua viagem.
A versão original do texto está em latim. Trata-se de um relato ditado do autor para
um copista, que no caso fora o comerciante e cosmógrafo alemão Martim de Behaim.
Behaim, nasceu em Nuremberg por volta de 1454, chegando em Portugal, provavelmente,
em 1484, tendo acesso à corte, à cosmógrafos e navegadores do reino. 87 Ascendendo
rapidamente no espaço cortesão, o cosmógrafo fora sagrado cavaleiro, pelo rei d. João II,
em 1485. Há quem advogue em prol de uma coautoria entre Behaim e Sintra em relação
à Prima Inventione Guinea, contudo, não há elementos probatórios desse fato. Há questão
que foi colocada por muitos historiadores, a exemplo de Luís de Albuquerque, diz respeito
às interpolações que o texto primitivo, escrito em “mau latim”, visto que não era língua
materna de nenhum dos dois intervenientes, sofrera.88
De fato, levando em conta as especificidades da (s) “literatura (s)” do período
medieval, considera-se que a presença de interpolações nos textos era deveras comum,
sobretudo, se as obras tivessem mais de um interveniente, como é o caso da narrativa em
análise, da qual, se tem o conhecimento de ao menos três intervenientes, quais sejam:
Diogo Gomes de Sintra, a quem se atribui a autoria; Martim de Behaim, que traduziu o
texto para o Latim; e por fim, Valentim Fernandes, o famoso tipógrafo alemão
responsável pela compilação conhecida como Manuscrito de Valentim Fernandes, onde
a narrativa de Sintra fora primeiramente editada, em princípios do século XVI.
O Manuscrito de Valentim Fernandes foi, como já dissemos, descoberto em
Munique pelo Dr. J. A. Schmeller, em 1845. Quando se teve notícias acerca desta obra
em Portugal, O Marquês de Resende encomendou uma cópia ao paleógrafo José
Klausner. Em 10 de dezembro de 1448 a cópia ficou pronta e hoje se encontra na
biblioteca Nacional de Portugal. Em 1940 a obra fora publicada pela Academia
Portuguesa de História com o título de Manuscrito de Valentim Fernandes. Em 1997,
outra edição da obra fora feita, desta vez intitulada códice de Valentim Fernandes. O texto
de Sintra foi primeiramente editado em português, no fim do século XIX, por Gabriel
Pereira.89 A edição que ora utilizamos é uma edição bilíngue em latim-português
86
NASCIMENTO, Aires. A. In: SINTRA, Diogo Gomes de. Descobrimento primeiro da Guiné. Lisboa:
Edições colibri, 2002.
87
Ibidem, p.16.
88
Ibidem, p.34.
89
Ibidem, p.35.
58
organizada por Aires A. Nascimento e Henrique Pinto Rema, sendo publicada em Lisboa,
no ano de 2002.
No que concerne ao conteúdo da obra, trata-se de uma narrativa sobre as viagens
portuguesas na região da Guiné, ao longo do século XV, principiando em 1416, logo após
a conquista de Ceuta. O autor exalta bastante a figura do Infante D. Henrique e, em
diversos pontos do texto, a sua própria participação como agente da expansão, tendo sido
ele feito capitão-mor de expedições para África. Ao longo da obra observam-se muitos
dados sobre o trato comercial na costa da África, os povos que ali viviam, os territórios
que começavam a ser explorado pelos portugueses, dados da geografia do local,
percepções espaciais, técnicas navais e militares, etc. Juntamente com o relato de
Cadamosto e a crônica de Zurara, o Descobrimento Primeiro da Guiné constitui uma
fonte riquíssima para o estudo da região no século XV.
90
ALMEIDA, Manuel Lopes de; BROCHADO, Idalino Ferreia da Costa; DINIS, António Joaquim Dias.
59
Trata-se, portanto de uma estruturação que obedece à um critério ideológico,
claramente eivado por uma perspectiva nacionalista da História de Portugal, sobre a qual
já discutimos neste capítulo. Para os autores as “descobertas” devem ser analisadas com
base na noção de missionação, entendendo, portanto, as navegações, as conquistas e a
exploração do Atlântico e da costa africana no século XV como uma missão
evangelizadora e de expansão da fé cristã a ser perpetrada pelo reino português.
A organização dos documentos, sobretudo os pontifícios, remontam aos primórdios
do reino, uma vez que a expansão quatrocentista é apreendida como uma continuação do
movimento cruzadístico que resultou na expulsão dos mouros e na formação do reino de
Portugal. Os autores seguem, portanto, a perspectiva do historiador alemão Carl Eardman,
defendida em seu estudo intitulado “A idea de cruzada em Portugal”, publicado em 1940.
A obra encontra-se dividida em quinze volumes. Cada volume possui uma
introdução crítica, na qual os autores apresentam a periodização escolhida para o tomo e
a sua justificativa. Até o terceiro volume foram utilizados na compilação documentos
anteriores ao processo expansionista. A partir do quarto volume os documentos
coadunam-se com a ação do Infante d. Henrique na África. Os documentos referentes à
Guiné encontram-se a partir do sétimo volume da obra.
No decorrer deste capítulo, destacamos as principais discussões historiográficas
que envolvem a expansão quatrocentista portuguesa sobre o continente africano e as
primeiras relações dos europeus com a Guiné. Buscamos problematizar também a questão
da produção historiografia sobre a História da África, notadamente, os limites de tal
produção em nosso país. Além disso, apresentamos aqui as principais fontes a serem
exploradas em estudos que contemplem o tema proposto. Procuramos não só resgatar as
discussões e fontes já, tradicionalmente, trabalhadas em estudos acerca do movimento
expansionista, mas, sobretudo, apontar para os limites e possibilidades que as pesquisas
e documentos destacados nos oferecem. Nosso intuito foi apresentar uma tipologia dos
documentos e seus usos e possibilidades como fonte de pesquisa. Note-se que a
problematização desses documentos será feita nos capítulos posteriores.
Desta forma, demonstraremos ao longo dos próximos capítulos, de que modo os
estudos sobre as grandes navegações do século XV podem ganhar novos contornos,
sobretudo a partir da maior exploração das fontes cartográficas e de sua combinação com
as fontes textuais. Considera-se também a maior participação de agentes, que por muito
60
tempo foram relegados como meros coadjuvantes na construção dessa história, a saber,
os africanos, notadamente os guinéus e principalmente destaca-se a importância da
temática inserida não apenas como um estudo referente à História Europeia e/ ou
portuguesa, mas também como um estudo de História da África, deslocando um pouco a
visão estritamente eurocêntrica, observada na maior parte dos trabalhos aqui citados.
61
CAPÍTULO 2
Entre o Medievo Ocidental e a África: espaço e imaginário na
Baixa Idade Média
62
CAPÍTULO 2- Entre o Medievo Ocidental e a África: espaço e imaginário na Baixa
Idade Média.
As fontes portuguesas do século XV dão conta de que o termo “ Guiné” era utilizado
para referir-se às terras localizadas entre o atual Senegal e a Guiné Equatorial. Segundo
o historiador congolês Elikia M'Bokolo, o termo“ “Guiné” é uma corruptela portuguesa
da palavra Djinawa, termo utilizado em fontes árabes do século XII para definir um
determinado povo que habitava o sul do Saara e que , de acordo com o cronista islâmico
Al-Zuri, seguia o cristianismo”91. A Guiné circunscreve-se na parte mais ocidental da
região que os árabes denominavam Bilad el-Sudan, que significa terra dos negros e refere-
se ao território situado abaixo do Saara.92
O estudo da Guiné no século XV compreende o estudo não só do espaço, mas
sobretudo, da sua apreensão quer pelos navegadores europeus quer pelos nativos que
habitavam a região. Sendo assim, entende-se que para a análise aqui proposta são
necessárias algumas considerações acerca da noção de espaço. Trata-se de um tema de
grande complexidade e extremamente relevante não só para nossa pesquisa, mas também
para os estudos históricos, considerando que o espaço figura como uma categoria
essencial para a compreensão da História, embora muitas vezes apresente-se como uma
problemática circunscrita no campo geográfico e nesse sentido, uma primeira questão que
se coloca é a relação entre História e Geografia.
“ “ciências dos homens” dissemos. É ainda vago demais. É preciso acrescentar: “dos
homens no tempo”93. Assim Marc Bloch define a ciência histórica, enaltecendo a sua
relação entre a humanidade e o tempo. Com base no entendimento de que o tempo
constitui um elemento essencial da História, podemos afirmar que o espaço está para a
Geografia, assim como o tempo está para a História e a sociedade figura como elemento
comum a essas duas ciências.
A concepção de tempo é deveras abstrata, podendo ser apreendida tanto no plano
objetivo, especialmente a partir das ciências naturais, como no plano subjetivo, sobretudo,
com base nas análises das ciências humanas. Ao contrário do tempo, o espaço é
91
M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. Tradução de Manuel Resende. Salvador:
EDUFBA; São Paulo: Casa das Áfricas, 201.,P.125.
92
MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Editora Contexto, 2014P.51
93
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2002. P55.
63
caracterizado por sua concretude. Nessa perspectiva, Ciro Flamarion Cardoso atenta para
o seguinte:
Problematizando essa relação entre tempo e espaço que enfatiza a apreensão dessas
categorias no plano da materialidade, Milton Santos assinala que “não se trata
propriamente de apurar qual dos dois é mais concreto. A questão da medida recíproca
pode ser vista como uma maneira de dizer que tempo e espaço são uma só coisa,
metamorfoseando-se um no outro, em todas as circunstâncias”. 95
Apontando para a
importância do fator humano nessa relação, Santos afirma que:
O espaço é, portanto, marcado pelo seu caráter concreto, ao passo que o tempo
pode ser apreendido no seio da noção de espaço, considerando que referências espaciais
são muitas vezes aplicadas para a mensuração do tempo. Assim, tomando por base a
perspectiva de Santos, entende-se que o tempo é materializado a partir da sua relação
94
CARDOSO, Ciro. Um historiador fala de teoria e metodologia. Bauru, SP: Edusc, 2005. P. 12.
95
SANTOS, Milton. A Natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 1996. P.53.
96
Ibidem. P.54.
64
intrínseca com o espaço e ambas as categorias devem ser consideradas na análise das
sociedades humanas.
Considerando essa relação estreita entre o tempo e o espaço, José D’assunção
Barros, ressalta a sua importância, sobretudo, no que tange à aplicação das noções de
espaço e espacialidade para os estudos históricos. Entendendo a História como a ciência
que estuda o homem no tempo e no espaço, Barros atenta para a necessidade de
intensificar a sua interdisciplinaridade. Dessa forma, o autor destaca a importância da
geografia, da psicologia, da crítica literária, da semiótica, dentre outros campos do saber
para o fazer histórico, visto que oferecem novas possibilidades metodológicas,
enfatizando a relevância da noção de espacialidade, que segundo ele “foi se alargando
com o desenvolvimento da historiografia do século XX: do espaço físico ao espaço social,
político e imaginário, e daí até a noção do espaço como “campo de forças” que pode
inclusive reger a compreensão das práticas discursivas”97
Como Barros aponta, o termo “espaço” é amplamente utilizado pelo senso
comum, adquirindo particular significado para várias ciências, inclusive, para a geografia.
Tal qual Barros, David Harvey, geógrafo cuja noção de espaço constitui o eixo de suas
pesquisas, atenta para a polissemia, bem como, para os múltiplos usos do termo na
contemporaneidade, figurando como uma “palavra-chave”, em muitos aspectos, assim:
97
BARROS, José D’Assunção. História, espaço e tempo: interações necessárias. Varia hist. [online]. 2006,
vol.22, n.36, pp.460-475. ISSN 0104-8775. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
87752006000200012. Acessado em 16 de julho de 2016.
98
HARVEY, David. O espaço como palavra-chave. Revista GEOgraphia, Vol. 14, No 28 (2012).
Disponível em http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/view/551. Acessado em 12
de julho de 2014.
65
Diante disso, procuramos aqui definir um conceito para a noção espaço,
entendendo como esta vem sendo aplicada pelas ciências humanas e de que modo a
entendemos neste trabalho. A começar, pela noção de espaço dentro da geografia, ciência
a qual o conceito encontra-se tradicionalmente relacionado. Discorrendo sobre a
problemática do conceito de espaço, o geógrafo brasileiro Roberto Lobato Corrêa revela
que a expressão espaço aparece de maneira vaga ora estando associada a uma superfície
específica da terra identificada “seja pela natureza, seja por um modo particular como
o Homem ali imprimiu as suas marcas, seja como referência à simples localização” 99.O
autor acrescenta assinalando que “a palavra espaço tem o seu uso associado
indiscriminadamente a diferentes escalas, global, continental, regional, da cidade, do
bairro, da rua , da casa e de um cômodo no seu interior”100
Como podemos observar, a partir das considerações de Corrêa, são muitas as
acepções que a noção de espaço possui, mesmo no bojo da ciência geográfica. De fato, o
“espaço” não fora sempre o objeto privilegiado pela geografia. Note-se que do século
XIX, quando a geografia ascende como disciplina acadêmica, até meados do século XX,
o conceito de espaço não figurava dentre as principais questões discutidas pelos
acadêmicos da chamada Geografia Tradicional. Esta privilegiou os conceitos de
paisagem, região-natural e região-paisagem.101
Ainda que não fosse o cerne dos estudos da geografia tradicional, a noção de
espaço pode ser observada em obras de importantes geógrafos do período, muito embora
não se apresentasse como o objeto central de seus estudos, destacando-se, nesse sentido,
o geógrafo alemão Friederich Ratzel e o geógrafo estadunidense Richard Hartshorne.
Ratzel desenvolve dois conceitos fundamentais vinculados à noção de espaço e a
ideia de interação entre o ser humano e a natureza, são eles: território e espaço vital. Na
obra Geografia Política, publicada em 1897, Ratzel concebe o Estado de forma orgânica,
necessitando de um território, denominado espaço vital, em razão da sua essencialidade
para a manutenção do Estado.102 Baseado nesses dois conceitos, Ratzel cria a noção de
antropogeografia, a qual sustenta o determinismo geográfico. A partir de Ratzel, de
99
CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000
p.15
100
Ibidem, p. 15.
101
Ibidem, p. 17.
102
CASTRO, Iná Elias de. Geografia e Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 15-94.
66
acordo com Corrêa, “o espaço transforma-se, assim, através da política em Território, em
conceito-chave para a geografia.”103
Para Hartshorne, o espaço é o espaço absoluto, ou seja,“um conjunto de pontos que
que tem existência em si, sendo, independentemente de qualquer coisa. É um quadro de
referência que não deriva da experiência em si, sendo apenas intuitivamente utilizado da
experiência”104, o que significa dizer que é apenas um elemento abstrato.
O espaço só aparecerá como conceito-chave da geografia na década de 1970, com o
surgimento da geografia crítica, sendo esta fortemente influenciada pelo marxismo. Será
Henri Lefebvre que trará de vez o espaço para as discussões marxistas. Nesse momento,
o espaço deixa de ser entendido como absoluto, para se tornar um produto das práticas
sociais. Em sua obra Espaço e Política, Lefebvre argumentará que o espaço, entendido
como espaço social, se constrói também na prática social105. O espaço não deve ser visto
como espaço absoluto. Ele não é nem ponto de partida, nem ponto de chegada é sim “o
locus da reprodução das relações sociais.”106
Para Henri Lefebvre, o espaço é experimentado, define-se e produz-se pela
experiência humana. O filósofo ainda identifica três variantes de espaço, quais sejam: o
espaço real, o espaço da natureza e o espaço mental. O primeiro constitui o espaço das
práticas sociais, aquele que é socialmente construído. O espaço da natureza é espaço físico
e, por fim, o espaço mental é aquele formal, construído através de abstrações
matemáticas107. Acerca da noção de espaço como produto social, Lefebvre aponta o
seguinte:
103
Corrêa, Roberto Lobato. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. P.18.
104
Ibidem, p.18
105
Ibidem, p.24
106
Ibidem, p.25.
107
LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original:
La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000. Primeira versão: início - fev.2006)
67
permanecer estático. Ele se dialética: produto-produtor, suporte de relações
econômicas e sociais. 108
O espaço absoluto é fixo, sendo ele herdado das concepções de Newton e Descartes,
geralmente representado como uma grade imóvel, permitindo padronizar medições.
Trata-se, portanto, de um espaço físico, pois constitui o espaço primário de individuação,
referindo-se à todos os fenômenos delimitados, e também de um espaço social e como tal
configura-se como o espaço da propriedade privada e de outras entidades territoriais
delimitadas, como Estados, unidades administrativas, planos urbanos e grades urbanas. 110
De acordo com Harvey, “quando o engenheiro de Descartes contempla o mundo com um
sentido de domínio, trata-se de um mundo de espaço (e de tempo) absoluto onde todas as
incertezas e ambiguidades podem em princípio ser banidas e onde o cálculo humano pode
florescer sem entraves.”111
108
Ibidem
109
HARVEY, David. Justiça social e a cidade, p. 13.
110
HARVEY, David. O espaço como palavra-chave, op. Cit, p.10
111
Ibidem, p;10
68
O espaço relativo associa-se às concepções einsteinianas e as geometrias não-
euclidianas, desdobrando-se em dois sentidos, primeiramente, “de que há múltiplas
geometrias que podemos escolher”112 e, em segundo lugar, “de que o quadro espacial
depende estritamente daquilo que está sendo relativizado e por quem.” 113 A concepção de
espaço relativo abandona a ideia de simultaneidade do universo físico, sendo impossível
compreender o espaço independente do tempo. Consolida-se, dessa forma as noções de
espaço-tempo e de espaço-temporalidade.
Para Einstein, o tempo permanece como elemento fixo, sendo o espaço o elemento
que se dobra, de acordo com determinadas condições. No entanto, tal perspectiva não
exclui a capacidade de mensuração e de cálculo, contudo faz-se necessário considerar que
todas as formas de medição dependem do modelo de referência do observador.114O último
elemento do modelo tripartite de Harvey é o espaço relacional. Tal conceito relaciona-se
ao pensamento de Leibniz, a que faz sérias objeções a noção de espaço absoluto
estruturada por Newton. De acordo com Harvey, a principal objeção de Leibniz aos
estudos de Newton é de cunho teológico, nesse sentido:
Newton dava a entender que até mesmo Deus estava dentro do espaço
e do tempo absolutos mais do que no comando da espaço-temporalidade.
Por extensão, a visão relacional do espaço sustenta que não há tais coisas
como espaço ou tempo fora dos processos que os definem. (Se Deus faz o
mundo então Ele também escolheu fazer, fora de muitas possibilidades,
espaço e tempo de um tipo particular). Processos não ocorrem no espaço
mas definem seu próprio quadro espacial. O conceito de espaço está
embutido ou é interno ao processo. Esta formulação implica que, como no
caso do espaço relativo, é impossível separar espaço e tempo. Devemos,
portanto, focar no caráter relacional do espaço-tempo mais do que no
espaço isoladamente. A noção relacional do espaço-tempo implica a ideia
de relações internas; influências externas são internalizadas em processos
ou coisas específicos através do tempo (do mesmo modo que minha mente
absorve todo tipo de informação e estímulos externos para dar lugar a
padrões estranhos de pensamento, incluindo tanto sonhos e fantasias
quanto tentativas de cálculo racional). Um evento ou uma coisa situada em
um ponto no espaço não pode ser compreendido em referência apenas ao
que existe somente naquele ponto. Ele depende de tudo o que acontece ao
redor dele (do mesmo modo que todos aqueles que entram em uma sala
para discutir trazem com eles um vasto espectro de dados da experiência
acumulados na sua relação com o mundo. Uma grande variedade de
influências diferentes que turbilham sobre o espaço no passado, no presente
e no futuro concentram e congelam em um certo ponto (por exemplo, em
112
Ibidem, p.11
113
Ibidem, p.11
114
Ibidem, p.12
69
uma sala de conferência) para definir a natureza daquele ponto. A
identidade, nesta argumentação, significa algo bastante diferente do sentido
que temos dela a partir do espaço absoluto.115
115
Ibidem, p.12.
116
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2006, p.61
117
Ibidem, p. 62.
118
Ibidem, p. 62.
119
SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado. São Paulo: Hucitec, 1997
70
Para os geógrafos a cultura é rica em significados porque é tida como
um tipo de resposta, no plano ideológico e espiritual de existir
coletivamente em determinado ambiente natural, num espaço e numa
conjuntura histórica e econômica colocada em causa a cada geração. Por
isso o cultural aparece como a face oculta da realidade: ele é ao mesmo
tempo herança e projeto e, nos dois casos, confrontação com uma realidade
histórica que, às vezes, o esconde e, outras , o revela, como parece ter sido
o caso nesses últimos anos.120
Para o autor, o papel central da cultura se afirma, pois entende que o espaço é subjetivo
e relaciona-se “à etnia, à cultura e à civilização regional”121. O autor aponta para os
estudos em torno da noção de “espaço vivido”, atentando para a importância dos
conceitos de etnia e território nos estudos de geografia cultural. Dessa forma, segundo
Bonnemaison:
120
BONNEMAISON, Joel. Viagem em torno do território. In In: CORRÊA, Roberto Lobato &
ROSENDAHL, Zeni. (ORG.). Geografia Cultural. Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 2002. P. 281.
121
Ibidem, p.283.
122
Ibidem, p.285.
123
Ibidem, p.287.
71
Harvey e Milton Santos bem como da noção de espaço vivido e território tal qual
preconizadas pela geografia cultural
Tabela 1
72
2.2- O imaginário e as percepções do espaço na Idade Média
124
DELORT, Robert. “Structures mentales et vie sociale”, in DELORT, Robert. La vie au Moyen Age. Paris:
Seuil, 1982
125
CROSBY, Alfred. P.99.
126
IBIDEM, P.99
127
DELORT, Op. Cit. P 73.
73
Jacques Le Goff afirma que “os homens da Idade Média entram em contato com a
realidade física por intermédio de abstrações místicas e pseudocientíficas”,128 entendendo
a natureza como os quatro elementos que constituem o universo e o homem.
O simbolismo e a idealização constituem elementos estruturantes do imaginário
medieval, sendo constantemente representados, seja em textos literários ou em expressões
gráficas, como os mapas, por exemplo, o que contraria o pragmatismo racional que
embasa as sociedades modernas. Nesse sentido, cabe ressaltar a noção de maravilhoso
como estrutura desse imaginário medieval. De acordo com Jacques Le Goff:
128
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983.
129
LE GOFF, Jaques. Maravilhoso. In Dicionário temático do Ocidente Medieval.São Paulo: Edusc, 2002.
P.110.
130
DELORT, Robert. La vie au Moyen Age. Paris: Editions du Seuil, 1982, pp78-79.
74
Durante grande parte Idade Média algumas contribuições dos geógrafos da
Antiguidade Clássica foram esquecidas ou relegadas a segundo plano, destacando, nesse
sentido, a noção de esfericidade da Terra, teorizada por Anaximandro e o cálculo da
circunferência do planeta, feito por Erastóstenes131. No entanto, outras teorias, mais afins
com a concepção de Universo do período medieval, tiveram grande voga como, por
exemplo, a teoria de Parmênides, resgatada por Macróbio, da divisão da terra em Zonas,
sendo estas definidas pelo clima.
De acordo com Parmênides, eram cinco as zonas que compunham o mundo, quais
sejam: “septentrionalis”, referindo-se à região Ártica; “solstialis”, a região temperada;
“equinocialis”, definindo a região tórrica; “brumalis”, região temperada Sul; “australis”
referindo-se à região Antártica. Segundo a teoria de Parmênides, as únicas Zonas
habitáveis eram as temperadas.132
Além da teoria das zonas habitáveis, o Ocidente medieval também adotou outras
concepções geográficas e cosmográficas da antiguidade, consideradas pelo historiador
português Armando Cortesão como menos sãs, tais como a representação da Terra na
forma de um disco plano, circundada pelo “rio Oceano”, 133
de acordo com a descrição
apresentada por Homero ou a existência dos homens monstros, típicos das mitologias
gregas e latinas, presentes nas representações cartográficas medievais. 134
A forma da Terra que mais se adequava às sagradas escrituras era aquela que
representava a imagem do tabernáculo de Moisés, isto é quadrada. Considera-se que ao
longo da Idade Média muitas foram as maneiras de representar a terra, de quadrada a
triangular, todavia, aquela que fugisse ao modelo paradigmático era entendida como fruto
de espíritos orgulhosos em busca de glória pessoal. É interessante ressaltar que a
ortodoxia cristã não impediu a proliferação de representações contrárias ao paradigma
religioso e que tais representações não se sucederam, mas coexistiram, notando-se que
nenhuma dessas formas era considerada impossível 135, sendo apresentadas por inúmeros
pensadores, mesmo os eclesiásticos, em diferentes momentos do período medieval. No
século VII, Isidoro de Sevilha, um dos mais influentes teóricos do cristianismo medieval,
deparou-se com a questão ao analisar a teoria antiga das zonas climáticas.
131
AZNAR VALLEJO, Eduardo. Viajes y descubrimientos en la Edad Media, Madrid: Síntesis, 1994. P. 92
132
Ibidem, p.93.
133
Oceano Atlântico
134
CORTESÃO, Armando. Portugalia monumenta cartográfica. Edição comemorativa do V centenário da
morte do Infante D. Henrique Lisboa:1960.
135
KAPPLER, Claude Monstros Demonios e Encantamentos no Fim da Idade Média. São Paulo: Martins
Fontes, 1994. pp.18-20.
75
Isidoro dedica dois dos vinte volumes de Etimologiae à análise dos aspectos
geográficos da Terra. De acordo com o autor, a Terra é redonda, tal qual uma roda, sendo
cercada por água e composta por três continentes: Europa, África e Ásia. Em
Etymologiae, Isidoro situa o Paraíso na Ásia, fazendo uma descrição pormenorizada do
mesmo. Fato interessante, pois denota que no pensamento medieval não havia uma
barreira fisicamente intransponível entre o “Além” e o mundo dos vivos. Tal apreensão
espacial se mostra presente ainda no trecento italiano, mais de seiscentos anos após a
composição de Etymologiae, na Divina Comédia de Dante Alighieri. 136
Ressalta-se que a obra de Isidoro fora utilizada como referência por muitos
cartógrafos e cosmógrafos até o século XV. A maioria dos mapas-múndi medievais,
anteriores ao século XIV, foram diretamente inspirados pela Etymologiae. Esta obra foi
de extrema relevância na formulação de concepções cosmográficas, geográficas e
espaciais ao longo de todo o período medieval, sendo inclusive citada nos diários de
viagem de Cristóvão Colombo. Ressalta-se que no Ocidente Medieval, a despeito de todo
o conhecimento geográfico adquirido na Antiguidade Clássica, bem como sua
disseminação no mundo islâmico, o universo, sua organização e seu funcionamento eram
explicados por teóricos eclesiásticos. Em um período de quase dez séculos, as
representações cosmográficas não sofreram nenhuma transformação revolucionária137.
136
KAPPLER, Claude.Monstros, Demônios e Encantamentos no Fim da Idade Média. São Paulo: Martins
fontes, 1994, p.20
137
Ibidem, p. 13.
76
Figura 4- A Terra na obra de Macrobius, Fonte: Commentarii in Somnium Scipionis,
C.1150. Biblioteca real de Dinamarca.
77
2.2.1 - Cartografia e apreensão do espaço no Ocidente Medieval
No que concerne à forma com a qual esses mapas eram apresentados, observa-se
a prevalência dos mapas T.O ( Terrarum orbis), ainda no século XV. Neles, o Oceano
rodeia como um grande O os três continentes, Europa, Ásia e África, separados entre si
por duas faixas aquáticas ( o Mediterrâneo e os rios Don e Nilo), que formam a letra T.
Há quem associe esse formato à paixão de cristo, a Santa Trindade, entre outros elementos
da simbologia cristã. Não se trata de uma representação fiel da realidade espacial; ao
138
No período medieval não é possível falar de cartografia, considerando o seu caráter científico.
139
ALEGRIA, Maria Fernanda; GARCIA, João Carlos; RELAÑO, Francesco, “Cartografia e viagens”. In
BETHENCOURT Francisco e CHAUDHURI Kirti. História da Expansão Portuguesa 5 vols., Lisboa,
Círculo de Leitores, 1998.1º vol.
78
contrário, está muito longe disso, figurando como a representação gráfica das escrituras
sagradas, apresentando no centro do mapa a cidade de Jerusalém, como forma de
demonstrar a sua importância no mundo cristão.
Essa concepção de mundo tripartido irá perdurar mesmo após a descoberta da
América. A concepção espacial do mundo, enraizada na mentalidade cristã europeia, não
fora totalmente superada no início da era moderna e, nesse sentido, vemos no século XVI,
cartógrafos bem constituídos e esclarecidos tentando explicar os dados objetivos que lhes
são postos, através de velhos mitos.
FIGURA 5 -- Mapa em T.O de Santo Isidoro Etymologiarum sive originum Livro XX.Augsburg:
Gunther Zainer, 1472.
79
Nos séculos XII e XIII os mapas tentaram reproduzir graficamente o mundo
natural. Contudo, permanecem como representações pouco realistas, considerando as
fontes utilizadas que iam desde romanos, como Plinio e Antonimo Pio a Santo Isidoro.
Nessa perspectiva, destacam-se os colossais mapas de Hereford, e de Ebstorf, com mais
de três metros de extensão140. Quanto a este último, notável não só pela sua extensão, mas
sobretudo, por sua complexidade, José Mattoso o resume da seguinte forma:
Ibidem, p. 31.
140
141
MATTOSO, José. Antecedentes da Expansão Portuguesa. In História da Expansão Portuguesa 5 vols.,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1998.1º vol.
80
Figura 6- Mapa de Ebsfort. Século XIII. Fonte: ROSIEN, Walter. Die Ebstorfer Weltkarte.
Hanover: Niedersachsisches Amt fur Landesplanung und Statistik, 1952.
81
No portulano, como bem aponta o historiador Eduardo Aznar Vallejo, o
empirismo substitui o conceitual. Como o nome já nos informa, a carta portulano tem
como objetivo apontar os principais portos comercias da Europa mediterrânica, surgindo
em um contexto de crescimento urbano e de grandes intercâmbios comerciais. É criado a
partir da necessidade dos mercadores medievais de saber a localização exata dos portos
onde deveriam desembarcar as suas mercadorias, dotado, portanto, de um caráter
utilitário, o qual nunca foi a preocupação dos mapa-múndi até, pelo menos o século XV.
Os portulanos constituíam-se em listas de localidades costeiras, apresentando a distância
entre elas e as direções de rota.
A utilização do portulano era associada à bússola e juntos conferiam maior
precisão aos navegantes, como nunca antes na história da navegação ocidental. A
conjugação destes instrumentos funcionou muito bem nas navegações mediterrânicas,
mar sobre o qual os europeus possuíam um domínio de séculos. No entanto, para
aventurar-se no Atlântico, foi necessária uma evolução das técnicas navais e
cartográficas. Um longo processo que teve início com a utilização da bússola e da carta
portulano, no século XIII, concretizando-se com o aperfeiçoamento das embarcações e
com a criação na navegação astronômica, que permitirá calcular a latitude e confeccionar
cartas náuticas mais precisas, o que só veio a ocorrer em meados do século XV. No mais,
o Atlântico e suas representações cartográficas anteriores a expansão marítima será pouco
explorado. O mar, em especial o Oceano Atlântico, é um tema capcioso no mundo
medieval, o que pode ser sentido em suas expressões literárias e gráficas.
142
OLIVA, Anderson Ribeiro. Da Aethiopia à África : as idéias de África, do medievo europeu à idade
moderna. Fênix : revista de história e estudos culturais, v. 5, n. 4, p. 1-20, out./dez. 2008. Disponível em:
<http://www.revistafenix.pro.br/PDF17/ARTIGO_02_ANDERSON_RIBEIRO_OLIVA_FENIX_OUT_
NOV_DEZ_2008.pdf>. Acesso em: 10 de novembro de 2015. P 07.
82
viajantes mulçumanos sobre a região durante a Idade Média eram muito mais precisos do
que os conhecimentos dos europeus, contudo, demoraram a integrar o pensamento
cristão.143 Deste modo, conforme, aponta o historiador José Rivair Macedo,
143
Ibidem, p.08.
144
MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Editora Contexto. 2014, p. 6
145
OLIVA, Anderson, op. Cit, p. 04.
146
Ibidem, p.04.
83
“grandes desertos”, “montanhas selvagens”, “grande calor do sol”, “grande
número de serpentes”, “mar oceano fervente” 147
147
MACEDO, José Rivair, op. Cit, p.09.
148
Ibidem, p.14.
149
Ibidem,p, 14
150
Ibidem, p.13.
151
Ibidem, p13.
84
posteriores, em concepções etnocêntricas e racistas. 152 Se estabeleceu no imaginário
medieval uma relação direta entre a geografia e o clima com os habitantes de cada região
do mundo. Nessa perspectiva, segundo Macedo:
152
Ibidem, p.14
153
Ibidem, p.15
154
OLIVA, Anderson, op. Cit, p.04.
85
Nessa perspectiva, Oliva afirma que “a transposição da Cosmografia Celestial
sobre a geografia terrestre, nascida das interpretações teológicas cristãs, articulava-se à
difusão da teoria camita sobre as origens das populações negro-africanas.”155 Tal
pensamento, de acordo com o autor levou a associação dessas imagens a“idéia de que a
cor negra representaria a escuridão bíblica ou a maldade em seu estágio
demoníaco.”156Somente a partir de meados do século XV, o discurso acerca do continente
africano e de sua população começa a se modificar, quando, de acordo com Macedo:
O desconhecimento do continente africano fez com que por muito tempo ele fosse
representado nos mapa-múndi e portulanos de forma marginal, muitas vezes ostentando
a frase “Ibi sunt leonês”158, a qual, segundo o historiador burquinabe Joseph Ki Zerbo,
resumia o conhecimento dos “sábios” de outrora sobre a região. 159 Por séculos, todas as
fontes de conhecimento sobre a África eram de origem estrangeira, em geral escritos
155
Ibidem, p.05
156
Ibidem, p.05
157
MACEDO, op. Cit, p19.
158
Ai existem leões
159
KI‑ZERBO, Joseph. In: KI‑ZERBO, Joseph (org). História Geral da África. Volume I.p. XXXI..
86
produzidos por aqueles que de alguma forma tinham interesse em apropriar-se das
riquezas que o continente poderia oferecer. Nesse sentido, Ki Zerbo aponta o seguinte:
De acordo com Oliva, há uma longa história das representações da África, e estas
não são homogêneas, contribuindo para que o autor chama de invenção da África,
seguindo a corrente de pensamento estruturada pelo filósofo Congolês Valentim
Midimbe. Em sua obra,a invenção da África, Mudimbe aponta para a questão da
construção da África e de um imaginário sobre o continente, no plano do discurso,
atentando para a influência desse discurso externo, não só nas maneira com a qual os
ocidentais enxergam a África, mas sobretudo, na forma como os africanos enxergam a si
Ibidem, p. XXXII.
160
161
Anderson Ribeiro. Da Aethiopia à África : as idéias de África, do medievo europeu à idade moderna.
Fênix : revista de história e estudos culturais, v. 5, n. 4, p. 1-20, out./dez. 2008. Disponível em:
<http://www.revistafenix.pro.br/PDF17/ARTIGO_02_ANDERSON_RIBEIRO_OLIVA_FENIX_OUT_
NOV_DEZ_2008.pdf>. Acesso em: 10 de novembro de 2015.
87
próprios. De acordo com Mudimbe, deve-se considerar na análise desses discursos aquilo
ele denominou de estrutura colonizadora.
Para o autor “alguns elementos foram fundamentais para a formação dessa
estrutura, quais sejam: os procedimentos de aquisição distribuição e terra das colônias; as
políticas de domesticação dos nativos; e a forma de gerir as organizações antigas e
implementar novos modos de produção”.162 Observada tal organização emergem,
segundo Mudimbe, três ações complementares: o domínio do espaço, a reforma da mente
dos nativos e a integração de histórias econômicas locais segundo a perspectiva
ocidental.163 Tais ações constituem a estrutura colonizadora que abarca aspectos físicos,
materiais e culturais relegando à marginalidade tudo o que está fora do projeto
colonizador, como por exemplo as expressões religiosas dos povos africanos. Desse modo
criam-se discursos sobre a África circunscritos dentro de um paradigma fundamentado na
estrutura colonizadora, há, portanto, uma “invenção” da África. Nesse sentido, o africano
não tem história, cultura ou civilização, sendo, portanto, fruto de um imaginário ocidental,
etnocêntrico , resultado do que o filósofo burquinabe Achile Mbembe chamou de
processo de efabulação:
162
MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção de África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento.
Mangualde (Portugal), Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013, p.16.
163
Ibidem, p 16
164
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. Pp 29-30
88
maneiras com as quais os diferentes povos africanos se projetam externamente, isto é, nas
suas formas de autoinscrição. Nessa perspectiva, nos parece coerente afirmar que tais
formas de autoinscrição africanas estão diretamente relacionadas com as percepções
“efabuladas” pelos discursos estrangeiros, notadamente, os discursos europeus.
Nesse sentido, Achille Mbembe aponta para a existência de duas correntes
africanistas que tentam explicar a construção da identidade africana com base em eventos
históricos nos quais os europeus foram atores fundamentais. O autor identifica uma
corrente nativista e uma outra instrumentalista. De acordo com a corrente nativista, há
uma única identidade africana, a qual está baseada no pertencimento à raça negra.
Segundo Mbembe, a corrente instrumentalista apresenta-se, frequentemente, como
democrática, radical e progressista, e utiliza categorias marxistas e nacionalistas “para
desenvolver um imaginário da cultura e da política, no qual a manipulação da retórica da
autonomia, da resistência e da emancipação serve como o único critério para determinar
a legitimidade do discurso “africano” autêntico.”165Em comum a essas duas correntes
estão três eventos históricos, quais sejam: a escravidão, o colonialismo e o apartheid,
acerca dos quais Mbembe considera a existência de um conjunto de significados a eles
relacionados, a saber:
165
MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto inscrição. Estud. afro-asiát. [online]. 2001, vol.23, n.1,
pp.171-209. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-546X2001000100007. Acessado em 14 de
janeiro de 2016. P. 03
89
mesmo, de reconquistar seu destino (soberania) e de pertencer a si mesmo
no mundo (autonomia).166
Desse modo, toda a África foi simbolizada por imagens que os próprios
africanos podiam considerar estranhas, exatamente como se a Europa fosse
definida no começo do século XX pelos costumes à mesa e pelas formas
de moradia ou pelo nível técnico das comunidades do interior da Bretanha,
do Cantal ou da Sardenha. Além disso, o método etnológico baseado na
entrevista individual, marcado com o selo de uma experiência subjetiva
total porque intensa, mas total apenas no nível do microcosmo, desemboca
em conclusões “objetivas” muito frágeis para que possam ser
extrapoladas.167
Pode-se dizer que, a nível discursivo, os europeus criaram, ao longo de séculos, uma
África “imaginária” que se distancia sobremaneira da África real. Uma África que retira
dos africanos a sua potência e seu poder criador, colocando-os como alegorias dentro de
um processo do qual eles são protagonistas. Elencam-se alguns elementos, algumas
imagens, que de alguma forma despertam o interesse do olhar europeu e faz-se uma
síntese da realidade das sociedades africanas, estas, por sua vez, analisadas a partir de um
único ponto de vista.
166
Ibidem, p.04
167
KI-ZERBO, op. Cit, p. XLVII.
90
Silva, o continente esteve, por séculos, voltado para si mesmo, praticamente isolado.
Segundo o autor, há algumas razões ligadas à composição geográfica do continente:
168
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos Portugueses. 3ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2006, p.32.
91
Verde, Gâmbia, Gana, Guiné, GuinéBissau, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria,
Costa do Marfim, Senegal, Serra Leoa e Togo. No que concerne às características
ambientais da região, os principais habitats são o Mar aberto, a Costa Marinha, que inclui
as praias e os bancos de vasa, os estuários e por fim, os arquipélagos.
Figura 7
Mapa da África Ocidental
O Mar aberto se inicia abaixo da zona de influência das marés e sua profundidade
chega até aproximadamente 6.000 metros de profundidade. Esse habitat é abundante em
pescados e nas últimas décadas vem sendo cobiçado em razão da descoberta de petróleo
e gás nas águas profundas.
Parte da costa marinha é composta por falésias formada por rochas sólidas que não
cedem a força das ondas, como ocorre em boa parte das ilhas de cabo verde. Na região
92
do cabo Branco a rocha é macia e a força das ondas formou grutas, as quais são habitadas
por lobos marinhos.
As Praias apresentam na orla um sistema de dunas que desempenha um papel
importante na criação de reservas de areia e que coloca as terras do interior ao abrigo das
invasões do mar. As costas mais protegidas estendem-se pelo mar adentro, em bancos de
vasa que ficam expostos durante as marés baixas. Estes podem ocupar grandes áreas,
como no Golfo de Arguim (Mauritânia), no Saloum (Senegal) ou no Arquipélago dos
Bijagós (Guiné-Bissau). Estão por vezes cobertos de plantas aquáticas que os fazem
assemelhar-se a pastagens e que são a base de uma grande produtividade natural169.
Os Estuários são formados pelo avanço do mar em um vale fluvial; são as bocas de
rios costeiros. Caracterizam a costa da África Ocidental entre o Saloum, no Senegal, e a
Serra Leoa. Durante a estação seca, a água salgada penetra profundamente no interior dos
estuários. Ao passo que na época das chuvas a situação se inverte. Os estuários na região
são em grande parte alimentados pelas águas das chuvas do maciço do Futa Djallon, que
se situa na Guiné-Conacri. Acerca da riqueza da flora e fauna dos estuários da costa
ocidental África, Fréderic Airaud, Oumar Sy e Pierre Campredon, assinalam que:
169
AIRAUD, Fréderic; SY Oumar; CAMPREDON, Pierre. Descobrindo o ambiente costeiro da África
Ocidental — Caderno dos Conhecimentos. Programa Regional de Educação Ambiental. UICN Guiné-
Bissau, 2011. P. 11.
170
Ibidem, p 16.
93
como o tubarão-baleia. As ilhas são assoladas pelos ventos alísios e recebem fracas
quantidades de chuva171.
O arquipélago dos Bijagós é o antigo delta do Rio Geba, formado quando o nível
do mar estava mais baixo e o continente se prolongava até cem quilómetros ao largo. As
88 ilhas que o compõem têm relevos baixos, estando cercadas de manguezais e bancos de
areia. O ambiente aquático é rico, abrigando espécies raras como as tartarugas marinhas,
manatins (peixe-boi), golfinhos, além de numerosas espécies de tubarões e aves aquáticas.
O ambiente terrestre é principalmente composto de savanas, palmeirais e campos
agrícolas. 172 No que tange aos aspectos geofísicos da região, destacamos primeiramente
a importância das marés. Observam-se no ocidente africano duas marés altas e duas marés
baixas por dia, o que significa que as águas sobem durante cerca de seis horas, baixando,
aproximadamente, durante outras seis, o que se repete por duas vezes ao longo de um dia.
De acordo com Fréderic Airaud, Oumar Sy e Pierre Campredon, a força das marés
também depende de alguns fatores geográficos, a saber:
As marés são tanto mais fortes quanto os fundos são rasos. Sendo o mar
mais profundo perto das costas da Mauritânia e do Senegal, as marés revelam-
se aí de menor amplitude (cerca de 2 metros), ao passo que na Guiné- Bissau e
na Guiné- Conacri, onde a plataforma continental se estende até longe da costa,
as marés atingem cerca de 4 m nas marés vivas.
As marés têm maior amplitude dentro de baías e nos estuários do que
nos cabos. Quando os fundos baixam e as costas se apertam, como acontece no
Delta do Saloum e nas Rias do Sul, a amplitude da maré aumenta.
A maré sobe do largo para a costa, ou seja, no litoral da África
Ocidental, de oeste para leste. Quando o vento do oeste é forte, aumenta a força
da maré enchente.173
171
Ibidem, p18.
172
Ibidem, p.19.
173
Ibidem, p. 23.
94
Figura 8- Mapa dos principais biomas da costa ocidental africana
95
Além das marés, considera-se também a importância das correntes marinhas como
elementos geofísicos a serem apreciados em um estudo acerca da geografia da África
Ocidental. A Costa ocidental africana perpassada por duas correntes principais: a corrente
das Canárias e a corrente do Golfo da Guiné. A primeira vem, desde o norte, ao longo das
costas da Mauritânia e do norte do Senegal, antes de desviar a sua trajetória em direção
ao arquipélago de Cabo Verde. Essa corrente influi na região entre os meses de Outubro
a Maio, período no qual a temperatura da água é relativamente baixa, medindo em torno
dos 20 ° C. A partir de Maio, a Corrente do Golfo da Guiné banha as águas da África
Ocidental, subindo até ao Cabo Branco. Nesse período, a temperatura do mar supera os
25 ° C.
Além dessas correntes principais, há também uma terceira, denominada
‘upwelling’ ou afloramento costeiro. Tratam-se de águas profundas que sobem à
superfície por um mecanismo criado pela força dos ventos alísios, os quais sopram do
nordeste, juntando-se a força criada pela rotação da Terra.174 A combinação dessas duas
forças tem o efeito de mover as massas de águas superficiais do litoral para o largo,
criando um “vazio” próximo à costa. Fréderic Airaud, Oumar Sye e Pierre Campredon,
destacam outros dois tipos de corrente: uma que se produz junto à costa, sendo
denominada deriva litoral e as chamadas correntes de superfície. Quanto à elas os
autores fazem os seguintes apontamentos:
174
Ibidem , p.24.
175
Ibidem, p. 25.
96
Acerca da flora da Costa Ocidental da África, destacam-se os manguezais,
presentes em toda a costa, do Senegal até Serra Leoa e as pradarias submarinas. Estas se
dão quando os bancos e os ambientes pouco profundos são cobertos de vegetação aquática
que os faz parecer pradarias submersas. No que tange à fauna da região, além de
crustáceos, peixes e aves aquáticas, destacam-se os grandes mamíferos aquáticos.
Outro aspecto geofísico do ocidente africano é a presença de grandes bacias
hidrográficas como a bacia do rio Senegal e a bacia do rio Níger. O rio Senegal é o
segundo maior rio da África Ocidental, possuindo uma extensão de 1800 quilômetros e
tendo como principais afluentes os rios Bafing, Bakoye e Faleme. A bacia do rio Senegal
abarca uma superfície de aproximadamente 300.000 quilômetros quadrados, dispostas
entre a Mauritânia, a Guiné, o Mali e o Senegal. 176 A Bacia do Rio Senegal tem grande
importância socioeconômica para os Estados que a compõe. Na região vivem cerca de
três milhões e quintas mil pessoas que dependem diretamente dos recursos hídricos da
bacia para sobreviver. A bacia cobre uma superfície de um milhão e meio de quilômetros
quadrados, atravessando nove Estados africanos, quais sejam: Benin, Burkina Faso,
Camarões, Chade, Costa do Marfim, Guiné, Mali, Níger, e Nigéria.
O rio Níger nasce na faixa montanhosa do Atlântico e aflui em direção ao Saara,
orientando-se depois para o golfo da Guiné, onde desagua formando um delta. O curso
inferior e superior do rio atravessam regiões meridionais de clima tropical e o curso médio
apresenta clima sahelino177. Acerca do curso do rio Níger, o historiador Alberto da Costa
e Silva assinala o seguinte:
176
World Water Assessment Programme, 2003, UN World Water Development Report 1: Water for People,
Water for Life; Paris, UNESCO and New York, Berghahn Books, Chapter 20: Senegal River Basin, Guinea,
Mali, Mauritania, Senegal. PP. 447-461..
177
DIARRA.S. Geografia histórica: aspectos físicos. In História Geral de África. Volume I, capitulo 13, p
335.
178
SILVA, Alberto da Costa. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006, p.10.
97
Figura 9
Mapa das principais bacias hidrográficas da África Ocidental
98
Outro rio a ser destacado na África Ocidental é o rio Gambia, o qual mede
aproximadamente 1,300 quilômetros, constituindo um dos maiores rios da África , além
de abrigar biomas diversos. O Rio Gambia nasce nas montanhas Fouta Djallon, no centro
da República da Guiné, afluindo pela região sul do Senegal e pela Gambia, desaguando,
por fim, no Atlântico. A bacia do rio Gâmbia contém cerca de 1.500 espécies de plantas,
80 espécies de mamíferos, 330 espécies de aves, 26 espécies de répteis. e 50 espécies de
peixes. Tal diversidade diversidade decorre da ampla gama de habitats presentes na
região, na qual se encontram manguezais , pântanos, salares, lodaçais e florestas
tropicais179.
A África Ocidental é, atualmente, uma das regiões menos desenvolvidas do
mundo, em termos socioeconômicos. Entretanto, esse panorama não foi sempre assim.
Desde a pré-história, a região foi berço de grandes civilizações que desenvolveram
técnicas agrícolas e de metalúrgia que em outras continentes tardaram a serem aplicadas.
Sem súvida, o povoamento milenar da região relaciona-se com a amplitude de sua
biodiversidade e a riqueza de seus solos que tornaram o lugar bastante favorável ao
desenvolvimento humano. Nesse sentido, a presença de grandes recursos hidrícos e o
clima propício ao desenvolvimento de diversas culturas agrícolas foram elementos que
impulsionaram o processo de povoamento da oeste africano. A exuberância de sua fauna
e flora, bem como , as suas riquezas naturais atraem , há séculos , para a África Ocidental
a atenção de povos de diversas partes do mundo.
A expansão marítima portuguesa no século XV marcou o início de um processo
que, em poucos séculos, colocou a Europa, inicialmente capitaneada pelos reinos ibéricos,
como centro gravitacional do mundo, ao redor do qual todas as forças econômicas e
políticas passam a orbitar. O movimento expansionista português e a incorporação do
continente africano ao universo europeu inauguram novas formas de percepção do
espaço. Assim,os portugueses findaram o século XV dominando a navegação na costa
ocidental africana, alcançando o “maravilhoso” Índico e as riquezas do Oriente e
construindo um novo espaço oceânico e erigindo um “mundo-Atlântico”, que tinha a
África como um dos elementos principais. A “proeza” lusa não se deu ao acaso, sendo
fomentada por questões de naturezas política, econômica e ideológica, inseridas em um
contexto de transformações do reino português no final do século XIV, questões estas que
serão aprofundadas no próximo capítulo.
179
WOOD, Stephen. The Gambia River. In HOWARTH, Robert. W. Biomes and Ecosystems An
Encyclopedi.Ipswich: Salem Press, 2013, pp: 584-586. P. 585.
99
CAPÍTULO 3
100
Capítulo 3- O mar como missão: a dinastia de Avis e a expansão sobre a África
A grande maioria dos europeus tem medo d’água e mais ainda da sua
grande extensão, ou seja, o mar. (...) os pescadores e navegantes fazem
novamente vida à parte, formam comunidades distintas e só muito
lentamente os seus conhecimentos começam a tornar-se habitual. As suas
informações sobre outras terras e outras gentes e sobre técnicas da
navegação influenciaram o que se diz acerca da periferia da Cristandade
nas descrições geográficas e na cartografia.181
Por muito tempo sustentou-se a tese de que o processo de ruralização, iniciado nos
escombros do Império Romano, tornara o Ocidente Cristão uma civilização rural,
continental, margeada por ameaças a sua integridade, destacando-se, nesse sentido a
presença muçulmana, a partir do século IX, dominando o Mediterrâneo e a saída para o
Atlântico. Tal perspectiva fundamentava-se nos estudos de Henri Pirenne, no primeiro
quartel do século XX. Contudo, tal visão de uma cristandade isolada e compartimentada
há muito vem sendo relativizada e refutada, principalmente quando tratamos de
sociedades litorâneas com grande atividade náutica e comercial, como os povos
escandinavos, os italianos, os catalães e os portugueses. Entende-se que não havia um
isolamento completo dos cristãos em relação aos demais povos, entretanto, a integração
da Europa aos demais continentes, notadamente à África e à Ásia, foi um processo lento
180
MATTOSO, José. Antecedentes Medievais da Expansão Portuguesa. In: BETHENCOURT, Francisco;
CHAUDHURI, Kirti. História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998. Vol. I, p. 12-
25.
181
Ibidem, p.21.
101
que só se consolidou no final do século XV, o que se relaciona muito mais aos fatores
internos do que aos externos.
De uma maneira geral, o homem medieval , até o século XII, pouco se aventurou
no Oceano, o que não significa alegar, categoricamente, a ausência de práticas náuticas.
O oceano figurava como um lugar perturbador que, isolado dos demais elementos que
compõem a natureza, apresenta perigos infindáveis e inimagináveis. Está distante da
realidade da maioria dos europeus, constituindo-se como um dos espaços do maravilhoso
medieval, habitado por monstros e por outras criaturas estranhas, sendo, portanto,
contrário à existência humana. Do lado ocidental, assistia-se ao pôr do Sol com a certeza
de que aquele lugar era o reino da morte.182
Por isso, a navegação para o Ocidente era tão assustadora e perigosa na perspectiva
dos homens medievais, pois, viajar em sua direção equivalia viajar para o fim do mundo,
para o Além, arriscar-se a penetrar o mundo dos mortos e de lá nunca mais regressar. Ao
contrário do que ocorria o oriente, onde o Sol nascia, era o lugar pra o qual se deveria ir
para recuperar a pureza e o viço juvenil. A viagem para o sul, pelas costas africana,
também não estava isenta de lendas aterrorizantes. Acreditava-se que ao ingressar na
chamada “zona tórrida”, a água fervia, dando lugar às chamas. O Atlântico figurou no
imaginário medieval como o espaço do incógnito e do medo.183
Acerca do Oceano Índico, as especulações míticas eram ainda maiores e
remontavam à antiguidade. Ao longo da Idade Média, relatos de viajantes corroboraram
com as lendas e mitos difundidos há muito sobre o Índico. O relato de viagens de Marco
Polo ilustra bem esse quadro, pois mesmo ele, que aparentemente teve um contato mais
intensificado com o referido Oceano, ao descrever o que encontrou na região, o fez não
com base naquilo que de fato viu, mas naquilo que ouviu. Trata-se de mais um
desdobramento da mentalidade e do imaginário medieval.
De acordo com Jacques Le Goff, o homem medieval possuía uma apreensão do real
muito menos pragmática do que a observada na Sociedade Ocidental, a partir do
renascimento. Nessa perspectiva, o autor considera que:
182
Ibidem, p.22
183
Ibidem, p.23.
102
maravilhosos, e eles creem ter visto o que sem dúvida souberam no local,
mas por ouvir dizer. Sobretudo trazem consigo as miragens e a sua
imaginação crédula materializa lhes os sonhos, em ambientes que os
desenraizam o suficiente para que mais ainda que em suas terras, eles se
tornem os sonhadores acordados que foram os homens da Idade Média 184
184
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente.
Lisboa: Editorial Estampa, 1980, p.266.
185
BRESC, Henri. Mar. In: SCHMITT, Jean-Claude (Org.). Dicionário temático do ocidente medieval. São
Paulo: Edusc, 2002, p. 102. Vol.2.
186
FROÉS, Vânia Leite. O Atlântico e o além-mar no discurso poético-dramaturgo. In: Brasil e Portugal:
unindo as duas margens do Atlântico. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2013. p 287-302, p.288.
187
BRESC, Henri. Mar. Op. cit., p. 103.
103
Esquema 1
O mar no imaginário Medieval
104
Fig. 10
La baleine prise pour uneîle. Fonte: Bestiairelatin. Londres, The Britich Library, MS.
Harley 4751, fol 69.
105
Fig. 11
Unesirene-oiseau au found des flots. Fonte: Bestiaire Latin. Paris. BNF, ms, latin 2495 B,
fol.44.
106
Fig. 12
Porcs de mer. Fonte: Bestiaire Latin. Copenhague, Det Kongelige Bibliotek, MS, Gl. Kgl. S.
1633 4º, fol 61.
107
3.1.2. A apreensão e a representação do espaço oceânico durante a Idade
Média
188
FONSECA, Luis Adão da. Os Descobrimentos e a formação do Oceano Atlântico. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p.17.
108
Fig.13
109
A viagem de S. Brandão é o ponto de partida para a mudança de perspectiva acerca
do Oceano, tornando-o um espaço de penitência e purificação. A viagem o purifica e o
oceano, então, passa a ser o espaço do encontro do homem com ele próprio.189 Embora a
narrativa de S. Brandão remonte ao século V, sua difusão se dá a partir da primeira versão
escrita que data do século XI. Doravante, a Vita Sancti Brandani ganhará inúmeras
versões e uma grande voga na Europa medieval, sobretudo, a partir da tradução francesa
do século XII. A repercussão positiva da viagem de S. Brandão situa-se a partir do século
XII, o que se relaciona com as transformações observadas na sociedade nesse período.
Destaca-se, nesse período, o movimento cruzadístico, a expansão comercial e urbana e,
como consequência, o surgimento de rotas comerciasque perpassam todo o continente
europeu, ligando-o ao oriente.
A Europa expande-se para além das fronteiras continentais e passa aventurar-se no
mar, seja o Mediterrâneo ou o Atlântico norte, que juntos integram importantes rotas
comerciais que se desenvolveram no período. Os impulsos, quer ideológico, quer
comerciais, lançam os homens ao mar e este vai ganhar novos contornos na representação
coeva, deixando de ser um espaço periférico e tornando-se um espaço do vivido,
experimentado. Acerca dessas mudanças, o historiador português Luís Krus aponta que:
189
FONSECA, Luis Adão da. O imaginário dos navegantes portugueses dos séculos 15 e 16. Disponnível
em < www.scielo.br>. Data de acesso: 19 de agosto de 2013.
190
KRUS, Luis. O imaginário português e os medos do mar. In: NOVAES, Adauto (Org.). A descoberta do
homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 95-105, p. 99.
Gradativamente, há uma integração da prática marítima ao universo cristão.
Todavia, o mar, notadamente o Oceano Atlântico, continua a ser temido, o que não
impede que ele seja explorado. Há de se considerar que o imaginário do mar não excluiu
sua exploração durante toda a Idade Média pelos povos litorâneos, como os normandos,
os vikings e por último os portugueses. Nesses casos a referência ao Atlântico
apresentava-se dotada de um caráter mais concreto que só o vivido poderia conferir. Em
um estudo sobre cantigas de amigo, José Mattoso constatou que o mar fora retratado sem
alusões negativas em vinte uma, de um total de quinhentas e doze, cantigas de amigo
galego-portuguesa. O número pode parecer pequeno, mas quando comparado a
documentos franceses do mesmo período, a presença do mar possui uma incidência muito
maior. Nas cantigas de amigo o mar muitas vezes aparece como o lugar de onde virá o
homem amado, denotando uma integração do mar a vida cotidiana. O mar não era feito
só de mitos e horrores, mas da experiência, mesmo daqueles que não navegam, como as
donzelas que se põem a esperar o regresso do amigo.191
Note-se que esse imaginário do Mar, repleto de elementos do maravilhoso cristão
medieval, pouco se aplicava ao Mar Mediterrâneo, o qual, ao contrário do Atlântico e do
Índico, era deveras conhecido e muito bem cartografado. Nesse sentido, destaca-se o
surgimento do portulano, no século XIII, apresentando-se como uma “verdadeira” obra
cartográfica no sentido pragmático. O que demonstra, que já neste período, o
Mediterrâneo era um espaço empiricamente dominado e plenamente integrado às práticas
sociais, diferentemente do que se observa em relação ao Oceano Índico e ao Atlântico.
Ao debruçar-se sobre o estudo do Oceano Índico no período Medieval, a
historiadora britânica Marianne O’Dohorty observou que as “teorias oceânicas” do
Ocidente que apontavam os oceanos como espaço periférico e ameaçador não eram
absolutas. O que a autora demonstra é que os navegadores medievais conseguem cruzar
as fronteiras que supostamente existiam 192
Se analisarmos o caso do Atlântico e do pioneirismo português no seu processo de
construção, constaremos o mesmo fato. E ainda vamos além, pois não só estas teorias não
eram absolutas como também a superação destas não o foi. O que se observa, com a
análise de fontes, é que a partir das descobertas do século XV ocorre uma espécie de
191
MATTOSO, José. Antecedentes Medievais da Expansão Portuguesa .Op. cit., p. 16.
192
O'DOHERTY, Marianne. A peripheral matter? Oceans in the East in late-medieval thought, report, and
cartography. Bulletin of International Medieval Research, Southampton, nº 16. 2011. p. 14-59.
111
“atualização do imaginário”, decorrente do confronto entre a realidade que se coloca no
cotidiano dos agentes da expansão e das lendas e especulações míticas acerca do Atlântico
e do continente africano, frutos do imaginário cristão medieval que é a base das estruturas
mentais desses homens.
112
Nesse sentido, Oliveira Marques destaca os fossados de Mar, as viagens de pesca,
o corso e a pirataria. Os fossados de Mar consistiam em investidas navais feitas pelos
portugueses contra embarcações mouras, fossem pesqueiros, mercantes ou de guerra, e
também na faixa litorânea da Península, que ainda estava sob o domínio islâmico, bem
como na região do Marrocos.193
A pesca era não só no litoral português, visto que, embora extenso, não seja
exatamente propício a esta atividade, mas também na costa marroquina. As embarcações
utilizadas para a pesca eram diversas sem que houvesse uma distinção clara entre os
navios pesqueiros e outros com objetivos diferentes. Não raro, um mesmo navio poderia
servir a mais de uma função194
Outra importante atividade marítima praticada pelos portugueses, antes do
quatrocentos, era o corso e a pirataria, os quais se distinguiam do fossadeiro do mar em
razão dos longos períodos que passavam no mar. Tanto corsários quanto piratas iam além
das regiões mais familiares, explorando mares pouco conhecidos.
Esquema 2
A relação de Portugal com o mar antes da era das grandes navegações
193
MARQUES, Oliveira A. H. De. Nova História da Expansão Portuguesa: A expansão Quatrocentista.
Lisboa Editorial Estampa: 1998, p.14.
194
Ibidem, p.18.
113
3.2.2. A navegação Atlântica no século XV: aspectos técnicos
Por séculos o Oceano Atlântico figurou na periferia do mundo cristão, quer por
razões de ordem mentais, quer por razões de ordem técnica. No entanto, a partir do século
XV ocorrem mudanças significativas na forma de encarar o espaço oceânico. Entende-se
que há uma construção desse espaço, que em muitos aspectos deixa de lado o simbolismo
característico de sua representação ao longo da Idade Média. Os protagonistas dessa
mudança serão os portugueses através da sua expansão marítima.
Tal movimento só pode ser realizado devido aos avanços tecnológicos observados
à época. Destacamos, primeiramente, a grande contribuição que a redescoberta dos
estudos de Ptolomeu sobre cosmografia e geografia representou para os horizontes
geográficos do Ocidente. De acordo com Armando Cortesão, o século XIII foi
revolucionário, pois além da introdução da bússola no Ocidente e da Carta portulano,
houve um estímulo à observação da natureza e ao estudo dos fenômenos naturais,
sobretudo, por parte de S. Francisco de Assis e dos seus seguidores.
Esta nova postura frente à natureza e o seu funcionamento teve reflexos importantes
nos estudos geográficos e cartográficos do período.195 Doravante as cartas náuticas
tornam-se mais precisas e as navegações mais seguras. Gradativamente vários
instrumentos náuticos, a maioria de inspiração oriental, vão sendo introduzidos no mundo
ocidental. Destacando-se dentre eles o astrolábio e a balhestilha.
Todavia, a navegação ainda teria de transpor diversas limitações tecnológicos para
o seu aprimoramento. A utilização, por exemplo, da bússola não considerava a variação
magnética e a aplicação da matemática para resolver problemas relacionados a
localização no mar não era ainda um método que garantisse precisão. A experiência do
capitão era ainda o elemento decisivo para saber se um barco conseguiria ou não chegar
a salvo em um porto.
Para navegar no Atlântico foram necessários o desenvolvimento e o
aperfeiçoamento das ciências náuticas, bem como o aprofundamento dos conhecimentos
da costa ocidental africana. Todavia, antes que isso ocorresse, muitos foram os desastres
transoceânicos, ocorridos, sobretudo, antes do século XV, quando alguns poucos
mareantes, em sua maioria de origem italiana, arriscavam-se no “mar-Oceano”. De
195
CORTESÃO, Armando. Portugalia Monumenta Cartográfica. . Lisboa: 1960, p. 13.
114
acordo com Luís de Albuquerque, eram três os obstáculos a serem ultrapassados para que
o sonho de desbravar o Atlântico se concretizasse:
Em primeiro lugar os navios, porque não era nas galés mediterrânicas que
se poderia singrar continuadamente no mar alto. Depois era imprescindível
conhecer os regimes de ventos e correntes do Atlântico, praticamente
ignorados nos princípios do século XV, sem o que não se poderia usar
navios de pano redondo. Finalmente, tornava-se necessário encontrar
maneira de determinar a posição de uma embarcação no mar alto, pois que
não era raro que passasse um e por vezes dois meses sem avistar terra.196
196
ALBUQUERQUE, Luís. Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Editorial
Caminho, 1994, p. 89. Vol. I
197
FONSECA, Luís Adão da. Os Descobrimentos e a formação do Oceano Atlântico. Op.cit., p.15.
115
No que tange às referências técnicas e teóricas das navegações do início do século
XV, note-se que estas foram herdadas da navegação mediterrânica e durante os primeiros
anos da expansão portuguesa sobre o Atlântico poucos foram os avanços. Nesse sentido,
Luís J.S. de Matos assinala que o período de 1419 até 1436 é verdadeiramente um período
de aprendizagem onde se conjugaram diversos aspectos concorrentes para o
desenvolvimento da técnica que mais viria a ser a efetiva ciência náutica. 198Assim, os
portugueses quatrocentistas irão, conseguir, aos poucos e penosamente, superar os
obstáculos naturais e desenvolver novas tecnologias, conjugando o conhecimento
empírico com a teoria da “escola” de navegação mediterrânica. Nesse sentido, a
passagem do Cabo Bojador, em 1434, pode ser entendida como um feito de extrema
importância no que tange ao avanço do conhecimento sobre a navegação na Costa
Africana, conforme podemos observar no trecho abaixo da Crônica do descobrimento e
conquista Guiné de Zurara, no qual o autor narra um diálogo entre o infante D. Henrique
e Gil Eanes:
Vós não podeis, disse o infante, achar tamanho perigo, que a esperança do
galardão não seja muito maior; e em verdade eu em maravilho, que
imaginação aquesta que todos filhais, de uma cousa de tão pequena
certidão, Ca se ainda estas cousas que dizem tivessem alguma autoridade,
por pouca que fosse, nom vos daria tamanha culpa, mas quereis-me dizer
que por opinião de quatro mareantes, os quais como são tirados da
carreira de Flandres ,ou de alguns outros portos para que comumente
navegam, não sabem mais ter agulha nem carta para marear; porém vos
ide todavia, e não temais sua opinião, fazendo vossa viagem, Ca com
graça de Deus, não podereis dela trazer senão honra e proveito.(...) Como
de feito fez, Ca daquela viagem, menosprezando todo perigo, dobrou o
cabo além, onde achou cousas muito pelo contrário do que ele e os outros
até ali presumiram199
A travessia do Bojador inaugura uma nova forma de navegar, visto que a volta não
se fazia pelo mesmo caminho que a ida, diferente da navegação costeira aos moldes do
que se fazia no Mediterrâneo e no Atlântico até os limites do Bojador. Trata-se de um
momento fundamental para as grandes transformações na forma de conceber e navegar
198
MATTOS, Luís Jorge Semedo de. A Navegação: os caminhos de uma ciência indispensável. In:
BETHENCOURT Francisco; CHAUDHURI Kirti. História da Expansão Portuguesa 5 vols. Lisboa:
Círculo de Leitores, 1998, p.74. Vol.I.
199
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Op. cit., p.62.
116
no Atlântico, já que o Bojador era a “última fronteira” conhecida do Atlântico e tudo
que se dizia a respeito do que havia para além dele tratava-se apenas de especulações
imaginárias. De fato as correntes que ali existem são fortes e muito diferentes do que os
navegadores baixo-medievais estavam acostumados a enfrentar, o que desencorajava os
“mareantes”, pois estes não tinham recursos tecnológicos e, tampouco, conhecimento da
geografia do local para transpor tais obstáculos, o que levou a criação de um imaginário
sobre a região e o que que existia além dela.
Inicia-se, portanto, um período de “aprendizagem”, pois nem todos os dados
obtidos até ali sobre navegação se aplicavam as novas demandas que o Atlântico
apresentava. No trecho acima isso fica claro, pois o autor enfatiza o fato de não haver
conhecimento de “agulhas ou carta de marear” para a região, revelando a inexistência de
tecnologias náuticas e de conhecimento empírico sobre a região.
No excerto supracitado, Zurara também nos revela que as primeiras embarcações a
lançarem-se para além do Cabo Bojador foram as barcas. Por possuírem o casco pequeno
eram ideais, visto que nada se sabia sobre a geografia marítima da região e a utilização
de navios maiores poderia acarretar em encalhes no caso de existirem baixios que capazes
de impedir o fluxo da embarcação. Além de indicara utilização da barca para a
ultrapassagem do Bojador, Zurara afirma que as primeiras expedições ao Rio d’Ouro
foram feitas em barinéis, conforme podemos observar no seguinte trecho do capítulo X,
da crônica de Zurara: Porém é minha intenção de vos enviar lá outra vez, em aquele
mesmo barinel, e assim por me fazerdes serviço, como por acrescentamento de vossa
honra200.
A utilização do barinel se adequava, em razão no desconhecimento da região em
que os navegadores iriam adentrar. Assim como as barcas, o barinel era ideal à navegação
da costa africana, pois possuíam o casco pequeno e, como nada se sabia acerca da
geografia marítima e fluvial da região, a utilização de navios maiores poderia acarretar
em encalhes no caso de existirem baixios capazes de impedir o fluxo da embarcação. O
uso de Galés, embarcação muito difundida no Mediterrâneo, mostrou-se , de plano,
ineficiente para a realidade do Atlântico. As barcas e os barinéis, juntamente com as
caravelas foram as embarcações mais utilizadas pelos portugueses no período inicial das
grandes navegações. Estas últimas possuem uma incidência maior entre meados da
década de 1430 e final da década de 1440. Eram barcos leves e ágeis, pesando em média
200
Ibidem, p.64.
117
de cinquenta toneladas e possuindo de dois a três mastros que portavam velas triangulares.
Era uma embarcação pequena que não era capaz de transportar grandes quantidades de
mercadorias e com avanço do processo de expansão a utilização da nau redonda foi
suplantando o uso da caravela latina.201
Ao retornar para Portugal o autor do feito, Gil Eanes, divulga a informação de que
não havia impedimentos a navegação e as demais empresas ultramarinas far-se-ão em
embarcações maiores. Primeiramente o batel e finalmente a caravela latina. Ao longo do
século XV, os portugueses reuniram conhecimentos concretos acerca da geografia da
costa africana, dos ventos da região, bem como das correntes marítimas que por ali
passavam.
O incremento da construção naval no mundo cristão se deu a partir da expansão
comercial do século XII e deve muito mais ao poder econômico dos comerciantes do que
ao poder político de reis e senhores locais. Em Portugal, no período entre a conquista de
Ceuta e a passagem do Bojador, observa-se o desenvolvimento e amadurecimento de
técnicas navais que superam os conhecimentos náuticos obtidos no Mediterrâneo e
tornam possível a navegação no Atlântico. Nesse sentido, Luís Jorge Semedo de Matos
ressalta que:
201
DOMINGUES, Francisco Contente. Da exploração do Atlântico à demanda do oriente: caravelas, naus
e galeões nas navegações portuguesas. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirt (Orgs).
História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo dos leitores, 1997. Volume I.
202
MATTOS, Luís Jorge Semedo de. A Navegação: os caminhos de uma ciência indispensável. Op. cit., p.
74.
203
ALEGRIA, Maria Fernanda; GARCIA, João Carlos; RELAÑO, Francesco. Cartografia e viagens. In:
BETHENCOURT Francisco e CHAUDHURI Kirti. História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo de
Leitores, 1998, p. 38. Volume I.
118
navegação astronômica estava amplamente difundida entre os pilotos lusitanos. O seu
desenvolvimento e implantação se deu progressivamente devido à necessidade de
localizar-se em alto mar e a falta de conhecimento de pontos costeiros da parte dos
mareantes, obviamente por conta do ineditismo de suas navegações.
A partir da travessia do Cabo Bojador tem início a construção do Atlântico Central,
de uma nova forma de perceber e apreender o espaço oceânico completamente distinta
daquela observada no Atlântico Norte ou no norte da costa africana. Esse Atlântico que
emergia no horizonte dos navegadores lusos se forma com os novos conhecimentos sobre
a geografia do local, com o início das navegações na Guiné e com os contatos
estabelecidos com os povos além do Bojador.
Entre 1434 e 1488, ano em que se dá a travessia do Cabo da Boa Esperança, houve
um aprofundamento nos contatos entre povos de diversa origens e também o avanço das
técnicas navais, destacando-se, nesse sentido, a utilização das caravelas e a navegação
astronômica. Ressalta-se que esse processo de expansão atlântica inicia uma nova forma
de compreensão do espaço oceânico que passa pela cristianização deste e pela sua
apreensão como um espaço do vivido, construído a partir das práticas sociais, como
navegação, comércio, contatos culturais, etc.
No que concerne à essa nova forma de encarar o Atlântico, destaca-se a apropriação
gradativa do mar pelos portugueses, sobretudo, durante o movimento expansionista.
Nessa perspectiva, Vânia Froés aponta que Portugal “integrou o mar ao longo de alguns
poucos séculos não apenas como sua fronteira ou limite, mas como seu território” 204.
Dessa forma, o Atlântico e continente africano passam a integrar o projeto de missionação
do reino português.
204
FROÉS, Vânia Leite. O Atlântico e o além-mar no discurso poético-dramaturgo. In: Brasil e Portugal:
unindo as duas margens do Atlântico. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2013. p 287-302. p.292.
119
3.3. A Dinastia de Avis: da ressignificação do ideal cruzadista à apropriação
do Atlântico
205
THOMAS, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, p. 44.
206
BRÁSIO, António. A ação missionária no período Henriquino. Lisboa: Comissão executiva das
comemorações do quinto centenário da morte do Infante D. Henrique, 1958, p.11.
207
FONTES, João Luís Inglês. Cruzada e Expansão. A bula sane Charissinus. In: Lusitânia sacra. Revista
do centro de Estudos de história religiosa. Universidade Católica Portuguesa. Confrarias, religiosidade e
sociabilidade: século XV a XVIII. 2º Série. Lisboa, 1995. Tomo VIII.
208
COELHO, Maria Helena da Cruz. D. João I. Lisboa: Temas e Debates, 2008, p.227.
209
A revolução de Avis.
120
As circunstâncias que levaram a ascensão de Avis ao poder impuseram à nova
dinastia a questão da legitimidade como um desafio tão grande quanto à superação da
crise estrutural que marcou o século XIV, em toda a Europa, e que, em Portugal, teve
consequências peculiares, sobretudo, por conta da instabilidade gerada pela morte do
último representante da dinastia de Borgonha, o que por pouco não levou ao completo
colapso social e a supressão do reino por Castela, seu inimigo histórico. Em meio à
referida conjuntura, a Casa avisina empenhou-se na construção de um discurso capaz de
solucionar o problema da legitimidade, evocando valores caros à cultura portuguesa
aliando a imagem do rei-guerreiro ao ideal messiânico a que estaria destinado o reino
português. A Casa de Avis precisou fundamentar novas bases de apoio a fim de legitimar
o seu poder e encontrar meios para reestruturar a sociedade fragmentada.
O advento de D. João I colocou em pauta a discussão acerca da legitimidade do
poder de sua Casa, tendo em conta a sua bastardia e outros argumentos de ordem jurídica
que afastariam de imediato a sua pretensão ao trono. Diante dessa conjuntura é necessário
entender os meios utilizados para validar o poder avisino. Tais mecanismos devem ser
analisados tendo em vista o conceito de legitimidade do poder no pensamento medieval.
Na obra intitulada Principles of Governmentand Politics in theMiddle Ages, o
medievalista austríaco Walter Ullman apresenta duas vias explicativas da noção de poder
na Idade Média. O autor denomina a primeira delas de ascendente, pois previa a
possibilidade do poder advir de Deus através dos homens. Essa perspectiva também é
conhecida como via populista de poder, pois sua autoridade governativa emana da
comunidade, do populos210. A segunda via, mais comum no período medieval, é a
descendente. De acordo com Ullman, na via descendente:
210
ULLMAN, Walter. Principios de Gobierno y Política em La Edad Media. Madrid: Alianza Editorial,
1985, p.8.
121
concepto de cargo es esencial al tema descendente: el cargo mismo es de
origen divino, porque es dispuesto por Diosmismo. Enconsecuencia, dado
que todo el poder está ancladoenladivinidad – “No hay poder que no sea de
Dios” – laconcepcióndescendientepuedetambién ser llamada teocrática. El
sellodel tema ascendente es lavoluntaspopuli, mientras que para su
contraparte descendiente eslavoluntasprincipis. La una es el reverso de
laotra. Una posición clara que concierne a latesisdescendientedelgobierno
y laleyfue dada por San Agustín211:
A primeira delas seria a descendente, segundo a qual o poder era divino e, portanto,
emanava de Deus aos homens, conferindo, assim, legitimidade ao poder do rei e de seus
herdeiros, que o recebiam diretamente ou pela intermediação papal. Essa era a perspectiva
tradicional, adotada nos reinos europeus desde os princípios da Idade Média. A outra via
era a ascendente. Essa segunda era menos comum, pois previa a possibilidade do poder
advir de Deus através dos homens.
De acordo com a historiadora portuguesa Margarida Garcez Ventura, ainda que a
via descendente prevalecesse não era tão raro que a perspectiva ascendente fosse evocada,
considerando que era uma via “populista” e no sistema feudal, onde o rei o era pela
aprovação de seus feudatários e pela graça de Deus, era conveniente uma concepção de
poder que contemplasse a vontade dos grupos senhoriais. O rei devia atuar segundo o
interesse da publica utilitas cuidando especialmente da prossecução da justiça para com
o povo que lhe tinha sido confiado por Deus, e de que tinha que dar conta a Deus. 212
O Papa, como distribuidor da graça divina, vigiava para que o poder fosse exercido
segundo a origem das normas que a sua origem lhe impunha. Consequentemente um mau
rei ficava sujeito à excomunhão. Mas o argumento também funcionava ao contrário. Isto
é, um potencial candidato ao trono podia ganhar legitimidade e fazê-la reconhecer pelo
Papa, quando desse provas de preocupação com o bem comum e pela defesa do povo
cristão.
Portanto, face às circunstancias que envolveram a ascensão do Mestre de Avis,
parece-nos claro que a explicação ascendente cabe perfeitamente para justificar a origem
e a legitimidade do poder de D. João I. Contudo, ainda que essa justificativa fosse
suficiente para aclamar o mestre de Avis rei de Portugal, em 1385, era preciso, ainda,
legitimar o poder avisino no campo simbólico. Nessa perspectiva, Vânia Froés assinala
que a dinastia de Avis irá se legitimar a partir da consolidação de um modelo
211
Idem.
212
VENTURA, Margarida Garcez. O Messias de Lisboa. Um estudo de mitologia política 1383-1415.
Lisboa: Edições Cosmos, 1992.
122
messiânico213, onde o rei figura como salvador, não só do reino, mas também de toda a
cristandade.
Aqui, há que se considerar o projeto político avisino, o qual apontava as diretrizes
do Estado português, tanto em suas ações internas quanto externas, trazendo em sua
essência elementos que justificavam o poder e os atos régios. Quanto aos fundamentos
desse projeto, Clinio Amaral assinala o seguinte:
O projeto político de Avis foi sustentado por três pilares, uma voraz
ação centralizadora que visava centralizar a justiça régia enfraquecendo
os demais poderes; a tentativa de criar por meio da expansão africana,
elementos que aglutinassem a sociedade na luta contra o infiel e na
conversão de novas almas. E por último um intenso programa de
propaganda cuja intenção era reescrever a história do reino, com vistas
a sacralizar os atos do Estado por meio da apropriação de funções
estritamente sacerdotais ao campo de ação régio e da sobreposição da
imagem do estado às imagens sagradas do cristianismo 214
213
FRÓES, Vânia. Era no tempo do rei. 1995. Tese titular apresentada ao departamento de História da
Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1995. Cópia reprografada, p.4.
214
AMARAL, Clinio. O Culto ao Infante Santo e o Projeto Político de Avis (1438-1481). 2008. 374f. Tese
(Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2008. Cópia reprografada, p. 64.
215
COELHO, Maria Helena da Cruz. Portugal na época dos descobrimentos. Revista História das idéias,
Coimbra, Instituto de História e teoria das ideias (Faculdade de Letras), 1992, p.09.
216
Idem.
123
Dessa forma, durante o reinado de D. João I o monarca concentrou, gradativamente,
o poder político nas mãos da realeza, esvaziando o poderio das grandes casas senhoriais
e constituindo uma “nova nobreza” diretamente ligada a ele. O rei concedeu títulos e
privilégios aos nobres que o apoiaram durante a luta contra Castela, promovendo uma
transformação nas estruturas de poder a partir da ascensão de casas que não faziam parte
da nobreza tradicional.217 Essa mudança nos quadros dirigentes da sociedade necessitou
de justificativas coerentes com a nova realidade que se impunha, como assinala Paulo
Accorsi júnior:
Reforçou idéia que a Nação tinha uma missão histórica a cumprir: deveria difundir
o reino de Deus, combatendo em primeiro lugar e onde quer que se encontrasse o
inimigo absoluto dos cristãos, o mouro,tal como havia sido revelado ao primeiro
rei de Portugal na demonstrativa Batalha de Ourique, quando um punhado de
portugueses venceu, com inequívoco auxílio de Deus, cinco reis mouros à frente
217
AMARAL, Clinio. A construção de um Infante Santo em Portugal. Dissertação (Mestrado em História)
- Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004. Cópia reprografada, p.47.
218
ACCORSI, Paulo. Paulo. Do Azambujeiro bravo à mansa oliveira. Op. cit., p.59.
124
de um numeroso exército. Assim, para que milagre de Ourique se repetisse,
deveriam ser acionados “ritos” que levassem os combatentes cristãos a lutarem
com o coração puro e incomensurável fé no concreto auxílio de Deus, através dos
seus santos e dos seus anjos.
Repare-se como “mito” fundador de nossa nacionalidade tema legitimá-lo uma
missão/objetivo de caris divino e de dimensão universalista, o que significa que a
ideologia cruzadística legitimará que nada nem ninguém, se poderia opor à
concretização da missão evangélica dos portugueses a atentar contra o seu desejo
de independência como nação. Aljubarrota estava, pois, na linha vitoriosa de
Ourique, e a missão evangelizadora deveria ser distendida a todos os povos,
inclusive aos não-cristãos e os gentios. Nesta perspectiva, como toda a terra
pertencia a Deus, quaisquer cristãos, designadamente os portugueses, tinham o
direito de a reconquistarem aos mouros e gentios; de cativarem os corpos dos
“outros”, a fim de ajudarem a salvar suas almas; de ocuparem e dominarem reinos
estranhos.219
Para além do caráter agregador da ideologia avisina, Clinio Amaral aponta que o
discurso monárquico constituiu um poderoso mecanismo simbólico “por apresentar em
sua estrutura narrativa alguns elementos da tradição cristã, visando legitimar e sacralizar
a guerra na África”220. A guerra externa, contra aquele que era considerado o inimigo
histórico da Cristandade,221pode ser entendida como um importante elemento de coesão,
dominação, fundamentado na ideologia cavaleiresca, além de atuar como um dos
elementos promotores da centralização estatal. No que concerne à importância das
guerras promovidas pelos portugueses contra os mouros e contra os gentios rebeldes
durante o século XV, o historiador português João Marinho considera que estas
constituíam uma excelente oportunidade para a aquisição de honra, transformando-se em
ocasiões para o indivíduo “demonstrar as suas virtudes, como a coragem, o espírito de
sacrifício, a solidariedade, a valentia, o sentido de obediência, a vontade de ser o primeiro
(de ser primoroso)”.222 Para o autor, além do proveito, emergiam, durante a atividade
militar, valores como a honra, a fama e a glória, garantindo ao guerreiro o direito ao
Céu223.
219
SANTOS, João Marinho dos. A guerra e as Guerras na Expansão portuguesa: Séculos XV e XVI.
Lisboa: Edição Grupo de trabalho do ministério da Educação pra as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1998, p.109.
220
AMARAL, Clinio. O Culto ao Infante Santo e o Projeto Político de Avis (1438-1481). Op. cit., p. 53.
221
O muçulmano.
222
SANTOS, João Marinho dos. A guerra e as Guerras na Expansão portuguesa: Séculos XV e XVI. Edição:
Grupo de trabalho do ministério da Educação pra as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
1998, p.20.
223
Idem.
125
A memória construída em Portugal sobre o movimento da Expansão Marítima,
procurou enfatizar o caráter cruzadista, salvacionista e missionário do movimento,
exaltando os valores da cavalaria e apontando o serviço de Deus como principal
fomentador desse processo. Todavia, o projeto expansionista em sua dimensão política,
pretendeu alcançar objetivos que iam além da noção messiânica. Para João Marinho, o
principal interesse de Avis ao empreender a conquista de Ceuta era a coesão do reino em
torno de um ideal gerador de identidade.
Nesse sentido, a guerra contra os mulçumanos que inicialmente constituía uma
estratégia política nacional, integrou rapidamente um projeto mais amplo de expansão da
Respublica Christiana.. Em 1418 D. João I solicita ao Papa Martinho V uma bula de
cruzada contendo as graças, remissões e indulgências para aqueles que lutaram e que
continuavam a defender a praça africana. No que refere a este pedido do rei de Portugal
ao Papa, João Luís Fontes Inglês assinala o seguinte:
224
FONTES, João Luís Inglês. Cruzada e Expansão: A Bula Sane Charissimus.Lusitania Sacra. Lisboa:
Centro de Estudos de História Religiosa - Universidade Católica Portuguesa, 1995, p.406.
225
AMARAl, Clinio.O Culto ao Infante Santo e o Projeto Político de Avis (1438-1481).Op. cit., p.72.
126
(...) O belum justum não era de modo algum um álibi destinado a tolerar e
justificar qualquer forma de guerra. Pelo contrário era um meio de
circunscrever com precisão raros casos em que o cristão poderia
legitimamente recorrer às armas. A guerra justa não podia admitir o
desencadeamento da violência: ela devia se uma oposição da força bem
conduzida à violência, tendo por objetivo impedir que esta última
destruísse os mais fracos e que a injustiça sobrepujasse da injustiça. A
guerra justa era um mal, mas um mal menor vista do triunfo da injustiça, e
apenas merecia seu nome a satisfazer três exigências fundamentais:
inicialmente devia ser defensiva e almejar unicamente a reparação da
injustiça; em seguida devia ser declarada por autoridade oficialmente
constituída e reconhecida, e, por conseguinte, não podia resultar da vontade
pessoal de ninguém; enfim, seu objetivo devia ser a restauração de uma paz
iluminada por uma justiça autêntica.226
A concepção de que a guerra contra os muçulmanos na África era uma guerra justa
perpassou todo o quatrocentos português. A conversão dos “infiéis” e a “salvação das
almas” relacionam-se com a noção de novos tempos que supostamente foram inaugurados
com a ascensão da Casa de Avis. Em relação aos motivos da conquista de Ceuta, Joaquim
Serrão entende que era uma questão de segurança, considerando a presença dos mouros
em granada e a ameaça representada pelos mouros no Marrocos, o que para o autor
constituíam motivos suficientes para a ação dos reinos ibéricos. 227 O autor atenta para o
fato de Portugal possuir no século XV condições militares para levar a cabo uma investida
militar contra os mouros, retomando assim a cruzada contra estes, afastando-os, para além
do Algarve. Por outro lado, Castela não possuía os mesmos recursos. 228Além disso, Serrão
considera que:
226
CARDINI, Franco. Guerra e Cruzada. In SCMITT, Jean Claude; LE GOFF, Jacques. Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002. p.475.
227
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Lisboa: Editorial verbo, 1980, p.29. Volume II.
228
Ibidem, p.29
229
Ibidem,p.30.
127
Com o fim da ameaça no interior da Cristandade, representada pelos castelhanos, e
a retomada das lutas contra os mouros, as ideias de cruzada, de povo eleito, de missão e
salvação, ganham novos contornos e corroboram para a construção de um discurso que,
para além de legitimar a Casa de Avis, justifica o movimento expansionista. Estrutura-se
uma ideologia assente em valores caros a cultura portuguesa da época, como a propagação
e afirmação da fé cristã, bem como, a honra cavaleiresca230.Além desses aspectos
simbólicos e culturais, também é importante ressaltar o caráter político do projeto
expansionista e sua íntima relação com as pretensões de aumento do poder e centralização
política, observados na monarquia avisina. Nesse sentido, Luís Adão da Fonseca assinala
o seguinte:
230
SANTOS, João Marinho dos. A guerra e as Guerras na Expansão portuguesa: Séculos XV e XVI. Edição:
Grupo de trabalho do ministério da Educação pra as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
1998, p.109.
231
FONSECA, Luis Adão da. Os Descobrimentos e a formação do Oceano Atlântico. Op.cit., p.15.
232
Idem.
233
FARINHA, António Dias. Norte da África. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti.
História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, p. 121.
128
Identificam-se na expansão portuguesa três frentes distintas, quais sejam: a
demanda do Prestes João, a guerra contra os mouros e a exploração das ilhas atlânticas.234
A demanda do Prestes João constitui na busca do lendário rei cristão governante da
Etiópia. O objetivo de Portugal era encontrar o referido rei e com ele estabelecer uma
aliança política e militar para lutar contra os reinos muçulmanos do norte da África.
A guerra contra os mouros data da formação do reino de Portugal e, a nosso ver,
nunca perdeu o caráter cruzadístico que a motivara em seus primórdios. Nesse sentido, a
conquista de Ceuta relacionou-se, com as necessidades guerreiras da nobreza,
reafirmando o paradigma de rei cavaleiro, além de fomentar um ideal missionário,
segundo o qual o reino deveria “cumprir sua missão”, expandindo o evangelho para além
das fronteiras da Cristandade.
A guerra no norte da África manteve-se ao longo do século XV, atravessando os
reinados de D. João I, D. Duarte e D. Afonso V. Esse processo fora marcado pelas
descontinuidades e pelos dissensos gerados na corte portuguesa. Os feitos militares dos
portugueses em África conferiram ao reino grande prestígio na Europa e diante do
papado.
A empresa africana fora plenamente apoiada pela Igreja, o que pode ser observado
através das bulas papais, expedidas ao longo do século XV, as quais concederam aos
Portugueses o direito de “fillar” homens em nome de Deus e conferiram à expansão o
aspecto sagrado e missionário que há muito a propaganda régia avisina havia apregoado
ao movimento. No ano de 1418 foram expedidas pelo papa Martinho V três bulas que
legitimavam as conquistas e guerras portuguesas nesse primeiro momento da expansão.
As bulas RexRegnum, Sane charissimus e Romanuspontifex235 resultaram da
súplica do rei D. João I ao papa, na qual o rei solicita, dentre outras coisas, remissões,
indulgências e graças da Terra Santa a ele, a seus filhos e a todos que desejem participar
da luta contra os mouros no norte da África, além de autorização para os cristãos
estabelecerem relações comerciais com os mouros. 236 Na bula Rex Regnum, Martinho V
atende ao pleito do rei português, reconhecendo a praça de Ceuta e as demais cidades que
D. João conquistasse, dando garantias de cruzada às guerras empreendidas pelo mestre
234
THORNTON, John K. Os portugueses em África. In: CURTO, Diogo
Ramada; BETHENCOURT, Francisco. A expansão marítima portuguesa, 1400-1800. Lisboa: Edições 70,
2010.
235
As três bulas foram expedidas no ano de 1418.
236
ALMEIDA, Manuel Lopes de; BROCHADO, Idalino Ferreia da Costa; DINIS, António Joaquim Dias.
Monumenta Henricina. Coimbra: Comissão executiva das comemorações do V centenário de morte do
Infante D. Henrique, 1960. Volume II. p.277-278. Documento 142.
129
de Avis contra os muçulmanos.237 No que concerne às outras duas bulas, o historiador
português João Luís Fontes Inglês considera que:
Ibidem, p.282-286.
237
FONTES, João Luís Inglês. Cruzada e Expansão: A Bula Sane Charissimus.Lusitania Sacra. Lisboa:
238
130
que se vincula ao modelo político observado com a ascensão da Casa de Avis, as crônicas
de Zurara contribuíram para a edificação de um discurso que exaltava a ação militar na
África, reverenciando tipos ideais de comportamento identificados como genuinamente
portugueses, como por exemplo a postura da cavalaria e o compromisso desse grupo com
o rei, o reino e Deus.
O discurso religioso presente nessas obras reforçou o antagonismo entre mouros e
cristãos e teve um papel de relevo no processo expansionista, revelando o poder de uma
ideologia cruzadística e cavaleiresca tardia, presente na sociedade portuguesa do
quatrocentos. Para o historiador Clinio Amaral, “trata-se de um discurso que desqualifica
os opositores da expansão, pois o argumento do cronista é de que criticar a empresa
ultramarina equiparava-se a criticar o serviço prestado a Deus”.239
Na Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, são correntes os relatos acerca
da conversão dos povos encontrados na África subsaariana, visto que tal obra constitui o
primeiro relato dos portugueses sobre os novos povos encontrados em território africano.
239
AMARAL, Clinio. O Culto ao Infante Santo e o Projeto Político de Avis (1438-1481). Op. cit., p.53.
240
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Op. cit., p.98-100.
131
Assim, na passagem supracitada observamos que o autor exalta o grande
“galardão” que a “salvação” de almas pagãs representa para o infante. Trata-se, pois, de
expandir as fronteiras do cristianismo, alcançando aqueles que, na visão dos portugueses
quatrocentista, nunca haviam tido contato com nenhum tipo de religião, ao contrário dos
mouros. Estes, de acordo com a ideologia salvacionista avisina, também devem ser
convertidos:
Cinco razões pus no começo deste livro por que o nosso magnânimo
príncipe foi movido a mandar seus navios tantas vezes sobre o trabalho
desta conquista; e porque das quatro me parece que vos tendo dado
abastoso conhecimento nos capítulos onde falei da divisão daquelas partes
do Oriente, fica-me para dizer da quinta razão pondo certo número às almas
dos infiéis que daquelas terras vieram a esta, por virtude e engenho do
nosso glorioso príncipe; as quase por conto achei que foram novecentas e
vinte e sete, das quais como primeiro disse, a maior parte foram tornadas
ao verdadeiro caminho da salvação.242
241
Ibidem, p.39.
242
Ibidem, p.245.
132
entendida como uma guerra de expansão da Cristandade. Ao longo da obra, Zurara irá
relatar uma série de acontecimentos envolvendo o confronto direto entre cristãos e
mouros, como na passagem abaixo:
(...) amigos, disseram os capitães, nós não viemos a esta terra senão para
pelejar; e pois principalmente a este fim viemos, não havemos que recear,
ca muito maior honra nos será fazer nossa peleja de dia, que de noite,
lançando os Mouros desta ilha forçosamente, que por astúcia nem engano,
ainda que não matemos nem tomemos nenhum,que filhamos de noite um
milheiro deles. E com o nome de Deus, disseram eles, saiamos todavia, e
vamos em terra na ordenança que temos determinada. E assim com estas
palavras começaram logo de sair, e tanto que foram todos postos na praia,
puseram começaram logo de sair, e tanto que foram todos postos na praia,
puseram suas azes em ordenança, onde Lançarote, por acordo de todos os
outros capitães, tomou a bandeira da cruzada, que lhe o Infante Don
Henrique dera; e já sabeis como os que morressem sob a dita bandeira eram
absoltos de culpa e pena, segundo o outorgamento do Santo Padre, de já
vistes o teor do mandado; a qual a bandeira foi entregue a Gil Eanes,
cavaleiro da casa do Infante, e mo quer Lançarote dele conhecesse esforço
e bondade, empero todavia deu-lhe juramento,e lhe tomou menagem, quer
por medo nem perigo não deixasse adita bandeira, até sofrer morte;e esses
outro lhe juraram, que por conseguinte,até derradeiro termo da vida
trabalhassem por guardar e defender. 243
Note-se que a ideia de cruzada presente na obra de Zurara não era meramente a
visão do cronista sobre as guerras empreendidas pelos portugueses contra os mouros no
norte da África. O uso político, feito pela dinastia de Avis, da ideia de cruzada presente
no imaginário português foi um dos pontos mais explorados pelos monarcas avisinos ao
longo do século XV. Seguindo essa perspectiva, Luís Adão da Fonseca entende que a
ideia de cruzada constitui um instrumento ideológico que atua como legitimadora da
atividade marítima desenvolvida. O autor aponta que desde a conquista de Ceuta, as
navegações portuguesas podem ser apreendidas a partir da “complexa dimensão da
cruzada, enquanto enquadramento ideológico justificativo das ações empreendidas.” 244
No que tange à manutenção dos territórios conquistados em África, notadamente a
praça marroquina de Ceuta, destaca-se que no reinado de D. Duarte duas alternativas
surgiram como forma de manter a cidade sem que onerasse sobremaneira o reino de
Portugal: a primeira era o estabelecimento de alianças com tribos próximas e a segunda
era a continuação da empresa militar africana 245. Optou-se pela guerra, mas não sem antes
243
Ibidem, p.156.
244
FONSECA, Luís adão da. Os Descobrimentos e a formação do Oceano Atlântico. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p.16.
245
Ibidem, p. 123.
133
o rei pedir aconselhamento a seu irmão, o Infante D. Henrique. Nesse sentido, cabe
ressaltar a influência do infante D. Henrique como conselheiro de seu irmão, o rei D.
Duarte, observada na carta em que o Navegador, recomenda o irmão a prosseguir com as
guerras contra os mouros:
E da guerra dos mouros ser seujço de Deus nom há que duuidar; pois a
Igreja o detrimyna e per os grandes milagres e por as coronjcashe
autorizado e todolos bons certamente lhocrem;e porem o bom nom é
esforço com muytas razoes que tem, pois que a fé é pratica abasta. He de
ser honra nom quero escrever, porque esta he a mayor honra que ha neste
mundo.(...) E, pois da guerra dos mouros se consegue serviço de Deus e
honra e prazer, meu conselho he que uos obres nela quanto bem poderdes,
per uos ou per outrem.246
Observa-se, portanto, que o infante D. Henrique fundamenta seu conselho com base
nas noções de serviço de Deus e honra, destacando a própria determinação da Igreja de
que a guerra contra os mouros constitui serviço de Deus. Na conclusão da carta o infante
evoca a noção de guerra justa afirmando que “ a guerra he justa, pois serviço de Deus e
direita, pois de uossa conquista he por uossa honra, e razoada me parece”247
Assim, em 1437, partiu de Portugal uma expedição rumo à cidade de Tânger.
Dividida em dois exércitos, sendo um comandado pelo infante D. Henrique e o outro pelo
infante D. Fernando, a expedição não fora bem elaborada e não contava com um grande
contingente militar. Nem mesmo o monarca tomara parte desta guerra, ficando no reino
e deixando o comando da nova empresa militar por conta de seus irmãos. Quanto à
expedição de Tânger e seus impactos no reino e no próprio monarca, o historiador Luís
Miguel Duarte faz as seguintes considerações:
246
ANTT, Livraria, cod, 1928, fl 126v. IN ALMEIDA, Manuel Lopes de; BROCHADO, Idalino Ferreia da
Costa; DINIS, António Joaquim Dias. Monumenta Henricina. Coimbra: Comissão executiva das
comemorações do V centenário de morte do Infante D. Henrique, 1960. Volume IV. Documento 101. p.203.
247
Ibidem, p. 204.
134
irmão do rei, D. Fernando, deixado em cativeiro, penhor de uma prometida
devolução de Ceuta aos seus anteriores habitantes; que o rei se debatei com
graves problemas políticos de consciência face ao dilema que era colocado,
e terá mesmo morrido atormentado pela dor de partir deste mundo e deixar
o irmão a ferros; é sabido finalmente que D. Fernando desceu aos infernos
naqueles seis anos que mediaram entre a sua prisão e a sua morte, já e fez248.
248
DUARTE, Luís Miguel. D. Duarte. Lisboa: Temas e Debates, 2008, p. 303.
249
ALBUQUERQUE, Luís de. Os Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Publicações Alfa, 1985, p. 30.
250
Em setembro de 1433, o rei, D. Duarte, escreve seis cartas, nas quais concede uma série de privilégios
ao seu irmão D. Henrique. Tais privilégios consistem na doação, vitalícia das ilhas da Madeira, Porto Santo
e Deserta, além de conceder o domínio espiritual destas ilhas à ordem de Cristo, da qual o infante era
regedor. A D. Henrique também foram concedidas pelo rei o direito ao quinto das coisas tomadas pelo
capitão dos navios por ele armados, o dizimo da pesca de Monte Gordo e os direitos e rendimentos da pesca
no reino de Algarve. Tais cartas encontram-se na Chancelaria de D. Duarte, na torre tombo, e sua reprodução
conta na coletânea Monumenta Henricina.
135
a D. Henrique licença para povoar o arquipélago dos Açores, sendo tal autorização
confirmada pelo rei em 1449. 251
A ultrapassagem do Cabo do Bojador por Gil Eanes, em 1434, inaugurou uma nova
fase no processo de expansão marítima portuguesa no século XV, abrindo caminho para
terras e povos dos quais nunca se ouvira notícias na Europa e desmitificando uma série
de histórias lendárias sobre a região subsaariana. Em 1443, D. Henrique recebe uma carta
de privilégios do rei D. Afonso V que lhe confere amplos poderes sobre a região do além
Bojador252, de modo que até o ano de sua morte, em 1460, o infante navegador desfrutou
de grande autonomia nos negócios ultramarinos, sobretudo em relação a recém
“descoberta” região da Guiné.
Esquema 3
A relação entre a Dinastia de Avis e o Mar
251
Ibidem, p.31.
252
Ibidem, p. 32.
136
3.3.2. D. Afonso V e o avanço sobre a Guiné
A situação política do reino à época em que o Africano chega ao trono era delicada
e agravou-se após o episódio de Alfarobeira. A regência o do Infante D. Pedro desagradou
aos setores tradicionais da nobreza portuguesa, visto que sua atuação procurava afastar
do centro do poder aqueles que poderiam ameaçar a autoridade régia. Quando o rei
253
GOMES, Saul António. D. Afonso V. Op. cit., p. 140.
254
Ibidem, p.40.
137
assume o governo de fato necessitou estabelecer suas bases de apoio que, obviamente,
não poderiam ser as mesmas de seu tio, considerando a noção de fidelidade que regia as
relações sociais.
A figura de D. Pedro e seus aliados representavam um perigo eminente ao poder
real e não tardou para que as casas senhoriais mais poderosas se aproximassem do jovem
rei e povoassem sua mente com desconfianças em relação às intenções de seu tio. O
desfecho final, em Alfarrobeira, colocou o monarca em uma situação muito incômoda
interna e externamente. Novamente, tal qual à época de D. João I, o poder régio
necessitava de instrumentos que o legitimasse, assim como o reino precisava de
mecanismos ideológicos que garantissem a sua coesão. D. Afonso V carecia de apoio,
pois era extremamente impopular em diversos setores da sociedade, apegando-se, então,
aqueles que lhe poderiam garantir a legitimidade necessário para governar, trazendo de
volta ao núcleo do poder as forças senhoriais. Durante o seu reinado a propaganda política
atuou no sentido de construir um discurso que conferisse legitimidade ao monarca,
aumentando o seu prestígio como governante.
Dessa forma é possível falar da construção de um novo discurso de legitimidade
durante o governo de D. Afonso V, relacionado a necessidade de justificar a sua ostensiva
política expansionista e que de alguma maneira contribuísse para aumentar o seu prestígio
como governante. Nesse sentido, é importante ressaltar que a conjuntura na qual D.
Afonso V chegou ao poder era marcada pela instabilidade política decorrente da crise de
Alfarrobeira. Foram muitas as críticas sobre a postura de D. Afonso V no episódio que
levou a morte do Infante D. Pedro. O monarca precisou recompensar aqueles que o
apoiaram, além de buscar o apoio dos antigos partidários de seu tio. Assim, da mesma
forma que nos tempos de D. João I, observa-se a tentativa de escoar as tensões internas
para além do reino e, dessa forma, demonstra-se coerente o emprego de um discurso
cruzadista-messiânico que atendesse as novas demandas da sociedade portuguesa da
segunda metade do século XV.
Nessa perspectiva, a conjuntura não poderia ser mais favorável às aspirações de D.
Afonso V, considerando a tomada de Constantinopla pelos turcos e, em decorrência desse
fato, a expectativa de uma cruzada. Os preparativos da cruzada e a propaganda que estes
envolveram, converteram-se em elementos unificadores dos dissensos nascidos em
Alfarrobeira, sendo formulada uma imagem de um rei protetor da Cristandade e de um
138
reino coeso em prol da luta contra o infiel. 255 O episódio foi narrado na Chronica de el-
rei D. Afonso V, escrita por Rui de Pina, cronista da corte de D. Manuel I, no início do
século XVI:
255
GOMES, Saul António. D. Afonso V. Op.cit., p. 229.
256
PINA, Ruy de. Chronica de el-rei D. Afonso V. 3 Vols. In: PEREIRA, G. Bibliotheca da Clássicos
Portuguezes. Lisboa: Escriptorio, 1901, p.134. Tomo II.
257
Embora tenha o mesmo nome esta bula difere da bula Romanus Pontifex citada na seção anterior. Aquela
fora promulgada, em 1418, pelo papa Martinho V.
258
GOMES, Saul António. D. Afonso V. Lisboa: Temas e Debates, 2009, p. 228.
139
de Pina, “grandes lamentações do reino”, foram fatores que acabaram por dissuadir D.
Afonso V da ideia de participar da cruzada contra os turcos, a qual não chegou a se
concretizar. Quanto a tal episódio, o cronista de D. Manuel I, narra o seguinte:
Pelo qual tudo bem visto e examinado em seu conselho que teve, ajuntando
tambem outras muitas contrariedades e inconvenientes que no reino e fóra
d’elle em muitas cousas e de grande perigo podiam recrescer, foi El-Rei
finalmente e sem contradição aconselhado que a na empresa da Cruzada se
não entremetesse, e que repousasse, regendo em paz e justiça seus reinos e
vassallos, até que a visse tomar e proseguir a outros Principes, e que então
obraria n’isso como o tempo e a razão o aconselhassem, ou se quizesse por
exercicio de sua devoção, e por elle parecer verdadeiro ramo dos
execllentes e reas troncos de que procedia, podia passar em Afirca, e tomar
aos infies algum lugar em que Deus fosse servido, e sua fé mais
acrescentada, pois era guerra da mesma calidade, e que a elle com mais
honra e mór segurança d’Espanha mais pertencia 259.
259
PINA, Ruy de. Chronica de el-rei D. Afonso V. Op.cit.,. p.142-143.
260
Ibidem,p.143.
140
Durante seu reinado, D. Afonso V confere maior atenção as guerras na África. No
relato acima, o autor aponta que ,inicialmente, a ideia do monarca era tomar a praça de
Tânger, mas entendeu-se os riscos de tal empresa, que poderia resultar em desastre como
a que foi empreendia à época de seu, o rei D. Duarte. Por tal razão, optou-se pela conquista
da pequena praça de Alcácer Ceguer, que foi tomada em 1458. Acerca da tomada da
cidade de Álcaer Ceguer, Rui de Pina relata o seguinte:
Observa-se no relato acima que uma das primeiras ações após a conquista da cidade
é torna-la cristã, através da conversão dos símbolos religiosos islâmicos, como a
Mesquita, em símbolos cristãos. Além disso, a imagem de D. Afonso V como o
conquistador da África começa a se definir, a partir do domínio de tal cidade. Ressalta-se
que o caráter sagrado atribuído à guerra na África foi um dos elementos legitimadores do
discurso expansionista, estruturado no reinado de Afonso V; a expansão, como um dos
pilares do projeto político avisino, foi o foco da ação régia durante o reinado do Africano.
As suas consequências e os valores nela contido atendiam às expectativas do monarca,
tanto na consolidação de uma identidade agregadora para o reino, quanto para a
diminuição das tensões internas, causadas pela atuação das grandes casas senhoriais. O
movimento servia para enaltecer a figura régia como grande difusor do cristianismo,
agradando ao papado e impressionando os demais Estados europeus diante da
grandiosidade dos feitos portugueses fora das fronteiras da Cristandade. Em 1471, D.
Afonso V conquistou a cidade de Arzila, pondo termo, por algumas décadas, aos intensos
conflitos entre portugueses e mouros, em território africano, iniciados com a tomada de
Ceuta.
261
PINA, Ruy de. Chronica de el-rei D. Afonso V. Op.cit., p.149-150.
141
Muito embora houvesse uma inclinação do monarca para os feitos militares, no
reinado de D. Afonso V observa-se uma diversificação nos rumos da expansão portuguesa
que desde o desastre de Tânger, em 1438, havia se concentrado no povoamento das ilhas
atlânticas262. Em seu governo há um aumento das relações comerciais entre as ilhas e
algumas regiões de domínio islâmico, ainda que fossem muitas vezes relações ilícitas.
Destaca-se também nesse período o avanço das navegações na região da Guiné, ainda sob
o domínio do infante D. Henrique.
A partir da década de 1470 o então príncipe D. João, filho de D. Afonso V, toma a
frente dos negócios ultramarinos. A essa época a presença moura no norte do continente
já não representava mais a mesma ameaça de outrora e a política do príncipe volta-se para
a consolidação da presença portuguesa na região da Guiné. Aclamado rei em 1481, D.
João II mantém uma política de expansão para o Oriente avançando pelas costas africanas
e da exploração dos rios do continente.
O monarca compreende a necessidade de assenhorear de fato a região do Golfo da
Guiné o que irá se concretizar com a edificação do Castelo de São Jorge da Mina em
1482, “símbolo o domínio português na Costa da Mina e núcleo polarizador das trocas
entre o litoral e o sertão, bem como das diversas regiões costeiras que se estendem desde
a Serra Leoa até o reino do Benim”.263Em 1488, Bartolomeu Dias ultrapassa o Cabo das
Tormentas, alcançando o Oceano Índico e dando início a uma nova fase da expansão
portuguesa que vai culminar com a chegada de Vasco da Gama a Calicute, em 1498.
Entendemos que a expansão converteu-se no principal ponto da política externa
avisina ao longo do século XV. Ao se voltarem para o mar, os portugueses levaram para
além das fronteiras europeias seus valores religiosos e cruzadistas, os quais exaltavam
certas noções cavalheirescas, como honra e proveito, sustentadas pelos ideais de guerra
justa e serviço de Deus. A expansão, para além dos elementos aglutinadores já apontados,
contribuiu para a consolidação de uma identidade portuguesa, pautado em valores caros
à Cristandade, colaborando também para o processo de centralização estatal, uma vez que
a situação de guerra constante gerava um maior controle da realeza em relação aos
efetivos militares.
O mar converte-se, portanto, em um espaço de missionação, sendo gradativamente
apropriado pelos portugueses, de modo que o movimento expansionista teve como
consequências não só a ampliação territorial de um reino, mas também a expansão de
262
FARINHA, António Dias. Norte da África. Op. cit., p.125.
263
Ibidem, p.160.
142
certos valores caros a sociedade cristã ocidental. Nessa perspectiva, é possível afirmar o
caráter cultural do movimento, que pode ser observado, sobretudo, na propagação do
cristianismo. Além disso, é notável a construção de uma identidade europeia, com base
no distanciamento em relação ao outro, questão esta que trataremos na segunda parte
desta tese.
143
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
DOUTORADO EM HISTÓRIA
VOLUME 2
Niterói - RJ
2017
144
SUMÁRIO DO VOLUME 2
Conclusão ....................................................................................................................230
Bibliografia ..................................................................................................................234
Apêndices .....................................................................................................................251
145
Segunda parte
África: Imaginário e Representações
146
Capítulo 4
147
Capítulo 4- Imagens da África: Geografia e representações da Guiné nas fontes
quatrocentistas.
264
M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa das
Áfricas, 2011, p. 122.
265
Ibidem, p.122.
266
Região que vai da foz do rio Gambia até o rio Bandama.
267
PERSON, Yves. Os povos da costa – primeiros contatos com os portugueses – de Casamance as lagunas
da costa do Marfim In: NIANE, Djibril Tamsir. História Geral da África (volume 4). Brasília : UNESCO,
2010, p.333.
148
A costa é de modo geral baixa e pantanosa, com áreas de vasa muito
propicias à rizicultura; e recortada por inúmeros cursos d’agua
provenientes do Futa‑Djalon, que se lançam no mar após percorrerem
algumas centenas de quilômetros. O mar não teve papel preponderante na
vida das populações costeiras, que permaneceram voltadas
fundamentalmente para a agricultura; no entanto havia os que se dedicavam
a cabotagem e extraiam sal para vender as populações do interior.268
268
Ibidem, p.338.
269
Tal expansão corresponde ao surgimento do Império do Mali e partiu do alto Níger, alcançando o
Atlântico. Ver NIANE, Djibril Tamsir. O mali e a segunda expansão Manden. Capítulo 6. In NIANE, Djibril
Tamsir. História geral da África. Brasília: Unesco, 2010, p. 135.
149
Segundo M’Bokolo, as informações mais completas acerca dos povos que se
situavam mais próximos à costa são fornecidas pelos viajantes europeus do século XV.
Nesse sentido, destacamos os relatos de viagem de Cadamosto e de Diogo Gomes Sintra,
nos quais encontram-se diversas descrições desses povos, enfatizando seus costumes e
suas organizações políticas. Sobre as diversas etnias que habitavam o litoral africano
M’Bokolo aponta o seguinte:
No que concerne à economia da região, Person afirma que a região estava ligada
a uma complexa rede comercial transaariana, reorganizada após a islamização da África
setentrional e que tinha como agentes importantes os comerciantes maninkes271.
Figura 15- Mapa das principais rotas transaarianas no século XIV. (D. T. Niane .)
270
M’BOKOLO, Elikia. op. Cit, p. 123.
271
PERSON, Yves. Os povos da costa – primeiros contatos com os portugueses – de Casamance as lagunas
da costa do Marfim..., op. Cit, p. 338.
150
De acordo com o autor, tal rede já estava suficientemente organizada no século
XII, o que permitia a comercialização de noz-de-cola, produto abundante na Guiné, no
norte do continente. Ainda sobre essas rotas comerciais, Person aponta o seguinte:
Djibril Tamsir Niane aponta para o intenso fluxo comercial entre a floresta e a
savana na África Ocidental nesse período. Para o autor no continente africano não havia
barreiras naturais que refreassem o fluxo comercial, existindo, durante os séculos que
precederam a chegada dos europeus, uma intensa relação comercial que interligava
diversas regiões do continente. Nessa perspectiva, o autor assinala o seguinte:
Note-se que a região da Guiné constituía um espaço terrestre e fluvial. Até o século
XV os povos da África Ocidental tiveram pouca ou nenhuma relação com o Atlântico.
De fato, não há notícias de intercâmbios comerciais desses povos por via oceânica. Tal
fato não diminui a importância das trocas realizadas por terra, seguindo rotas cobiçadas
que atravessavam o interior da África, a região do Saara e chegavam ao ocidente, por
intermédio muçulmano, seguindo o eixo Saara-mediterrâneo, e ao oriente cortando o
continente e ligando-se, por fim, às Índias, a partir das relações mercantis na costa índica
africana. Nesse sentido, Person diferencia os artigos de comércio inter-regional e artigos
272
Ibidem, p.338.
273
NIANE, Djibril Tamsir. A África nas relações intercontinentais. In NIANE, Djibril Tamsir História geral
da África. Brasília: Unesco, 2010, p.722.
151
de comércio “internacional”. Assim o ouro, o marfim e a pimenta figuravam entre os
produtos de interesse intercontinental e sobretudo o ouro atraiu desde o início o interesse
dos europeus, em especial dos portugueses. Quanto à isso Person aponta que:
274
PERSON, Yves. Os povos da costa – primeiros contatos com os portugueses – de Casamance as lagunas
da costa do Marfim ... , op. Cit, p.339.
275
NIANE, A África nas relações intercontinentais, op. Cit, p 726.
As principiais referências sobre as riquezas de Tumbcto advinham de comerciantes
276
muçulmanos.
152
pequeno, entre a Península Ibérica e o Saara. É importante ressaltar que todas as
informações obtidas sobre o continente africano e sua história, desde a Antiguidade até o
século XV, estiveram restritas às fontes europeias e islâmicas, quanto a isso o africanista
britânico John Donnelly Fage aponta o seguinte:
De acordo com Fage, as fontes sobre a África Oriental sempre foram mais sólidas
do que as fontes relativas a parte ocidental do continente. Tal fato se deve ao comércio
desenvolvido na região do Mar Vermelho e do Oceano Índico desde a antiguidade, o qual
envolvia mercadores de diversas partes do mundo. A partir da Idade Média, a influência
do mundo islâmico na região foi bastante marcante e boa parte do conhecimento acerca
da África Oriental ao longo desse período advém de escritores Árabes. Contudo, quando
tratamos da África Ocidental, as fontes são mais escassas, sobretudo, no que se refere aos
autores da antiguidade. Quanto ao conhecimento da África por autores clássicos e Árabes,
Fage ressalta que:
277
FAGE, J.D. A evolução da historiografia da África.IN: KI-ZERBO, Joseph (Org.). História Geral da
África.Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. Volume I, p.09.
153
instalara ao longo da costa oriental da África. Assim, as obras de homens como
al‑Mas’udi (que morreu por volta de +950), al‑Bakri (1029‑ 1094), al‑Idrisi (1154),
Yakut (cerca de 1200), Abu’l‑Fida (1273‑ 1331), al’Umari (1301‑ 1349), Ibn
Battutab (1304‑ 1369) e Hassan Ibn Mohammad al‑Wuzza’n (conhecido na Europa
pelo nome de Leão, o Africano, 1494‑ 1552 aproximadamente) são de grande
importância para a reconstrução da história da África, em particular a do Sudão
ocidental e central, durante o período compreendido entre os séculos IX e XV 278
Note-se que não há, até o século XV, nenhuma obra de autoria europeia dedicada
à região subsaariana, o que denota o parco e muitas vezes nulo conhecimento que os
ocidentais tinham da África Negra. Por outro lado, muitos viajantes islâmicos norte
africanos, em especial Ibn Khauldun, já demonstravam um conhecimento mais profundo
sobre a região e dos povos que nela habitavam. Fato este que pode ser apreendido a partir
da produção literária desses viajantes.
Conforme ressalta Luís de Albuquerque, foi através do mundo islâmico que
mercadores maiorquinos obtiveram informações sobre as rotas comerciais que
penetravam o interior do continente africano. O conhecimento obtido pelos europeus a
partir dos entrepostos comerciais no norte africano fica manifesto no do Atlas Catalão de
Abraão Cresques, de 1375, no qual o cartógrafo judeu aponta diversos topônimos de
cidades e reinos presentes no sul do Saara.279
Todavia, ressalta-se que esse conhecimento obtido sobre a região do Bilad el-Sudan
advinha de expedições comerciais realizadas pelo interior do continente e não da
navegação na costa ocidental africana. Foi somente com o início da expansão marítima
portuguesa que os europeus ampliaram seus conhecimentos sobre a África, o que se deu
a partir da exploração náutica da costa ocidental, sobre a qual pouco se conhecia até o
momento. Quanto à isso Albuquerque assinala que:
Ibidem, p.15.
278
279
ALBUQUERQUE, Luís. . Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Editorial
Caminho, 1994, p. 25.
154
reconhecimento de muitas léguas de costa situada a sul do Bojador só se
iniciou com a viagem de Gil Eanes, em 1434. 280
Assim, observa-se que a exploração da costa ocidental africana se deu cabo a cabo,
em um processo longo que durou quase um século para se completar. O conhecimento da
costa e do continente africano vai sendo adquirido e ampliado através das experiências
dos navegadores quatrocentistas.
Ibidem, p. 29.
280
FONSECA, Luís Adão da. Os Descobrimentos e a formação do Oceano Atlântico, Lisboa: Comissão
281
155
Figura 16- Atlas Catalão. Fonte: Biblioteca Nacional de Paris
156
O mapa que apresentaremos a seguir, elaborado na década de 1960 por Damião
Góes, célebre historiador da Expansão Ultramarina Portuguesa, representa o avanço das
explorações portuguesas no segundo quartel do século XV. Nele podemos observar como
o conhecimento da costa e seus elementos foi sendo construindo paulatinamente pelos
navegadores que encabeçaram tais expedições. O mapa de Góes se coaduna com as
informações acerca das viagens empreendidas pela costa africana apresentadas na crônica
da guiné, de Zurara. Nesse sentido, destaca-se a exploração que se seguiu às terras além
do Bojador e do Cabo Branco, integrando a Guiné nos projetos missionários e econômicos
portugueses e europeus.
É certo que o infante D. Henrique tinha ciência de que ir além do Cabo do Medo
282
não só abriria o caminho para terras nunca antes exploradas por nenhum europeu e para
as riquezas da Guiné, mas também conferiria honra e glória para si e para a sua casa. Isso
fica evidente no relato de Zurara sobre a passagem do Bojador por Gil Eanes283. Outro
importante agente nessa fase do processo expansionista foi Afonso Gonçalves Baldaia,
que em 1436 navega pelo Rio D’ouro e também alcança a região batizada de “Pedra da
Galé”. Ao contrário de outros exploradores do período, Baldaia não deixou relato escrito
e as informações que temos de suas explorações nos chegaram através da pena de Zurara.
Observamos não só na obra de Zurara, mas principalmente em Cadamosto e Diogo
Gomes Sintra a preocupação em descrever elementos que compunham a geografia e a
paisagem do local e que pudessem fornecer informações relevantes aos navegadores que
fossem explorar a região. Nessas descrições figuram informações sobre as correntes
marítimas, o tipo de embarcação adequado para cada trecho, conforme já apontamos
acima, a presença de impedimentos naturais como baixios e mesmo a descrição de
elementos da fauna e da flora da região. Tais descrições seguem uma lógica discursiva
que apresenta dados de relevância para os exploradores, mas que também revelam uma
apropriação da natureza, do espaço e a construção da paisagem da Guiné a partir da
perspectiva dos europeus. Gradativamente, o novo espaço vai sendo incorporada as
práticas sociais e culturais europeias, a exemplo das relações comerciais, bem como se
transforma de um espaço desconhecido, o espaço do “outro”, do imaginário, para tornar-
se um espaço vivido.
282
Cabo Bojador
283
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica dos feitos e Consquistas da Guiné, op. Cit, p.62.
157
Figura 17-O reconhecimento da Costa Africana de 1434 a 1445
158
Ao chegarem em novas paragens da costa africana, os portugueses preocupavam-
se em nomear a região e demarcar a região, estabelecendo limites sejam estes geográficos,
como rios, montanhas, etc, ou étnico-político, como a identificação de territórios
pertencentes a um determinado grupo. Em Zurara, podemos observar esse cuidado em
definir os limites entre a terra dos mouros e dos negros, por exemplo, como como no
trecho a seguir:
O Infante agradecendo-lhe sua boa vontade, fez logo armar uma caravela,
na qual aviou como o dito Dinis Dias pudesse ir cumprir sua boa vontade;
o qual partido com sua campanha, nunca quis amainar, até que passou a
terra dos Mouros, e chegou à terra dos negros, que são chamados Guinéus.
E como quer que nós já nomeássemos algumas vezes em esta história
Guiné, por outra terra em que os primeiros foram, escrevemo-lo assim em
comum, mas não porque a terra seja toda uma, Ca grande diferença têm
umas terras das outras, e mui afastadas são, segundo departiremos adiante,
onde acharmos lugar disposto para isso.284
284
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Lisboa: Publicações
Europa-America, 1989.
159
aponta se preocupa em aglutinar e depois separar os povos da Guiné. Dessa forma, em
um primeiro momento o autor fala da em “ Terra dos Negros” e em seguida afirma que
na verdade não é uma terra só, mas que na verdade existem diversas terras muito distantes
entre si.
De fato, o relato de Zurara se revela bastante impreciso geograficamente, e
sobretudo, no que tange aos povos que ocupavam a costa da Guiné à época da chegada
dos portugueses. Todavia, a leitura da crônica de Zurara é bastante elucidativa no que
concerne à compreensão das formas de apropriação desse novo espaço pelos portugueses.
Por outro lado, Diogo Gomes Sinta e , sobretudo, Luís ( ou Alvise ) de Cadamosto
apresentam relatos muitos mais pragmáticos sobre os primeiros contatos dos portugueses
(europeus) com esse novo ou esses novos espaços e assim como na obra de Zurara, a
narrativa desses autores é deveras preciosa para o entendimento do processo de
incorporação desse espaço Atlântico e negro ao mundo cristão-europeu.
A toponímia é, sem dúvida, uma forma de apropriação do espaço e nesse sentido,
a atribuição de nomes às diversas localidades da costa africana pelos quais os portugueses
percorreram no século XV funcionou como um importante mecanismo de dominação do
espaço. Como já dissemos, a nomenclatura utilizada para denominar as novas regiões
pode se relacionar com fatores étnicos, assim como vimos em Zurara, mas também a
elementos da paisagem, como podemos observar em Cadamosto ao se referir ao Cabo
Verde:
Este cabo verde chama-se cabo Verde, porque os primeiros que o acharam
( que foram os portugueses) talvez um ano antes de eu ir a estas partes, o
acharam inteiramente verde pelas grandes arvores que continuamente estão
verdes por todo o ano: e por esta razão lhe puseram o nome cabo verde;
assim como o cabo branco 285
285
CADAMOSTO, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra. Lisboa: Academia
Portuguesa de História, 1988, p. 145.
160
expedição capitaneada por Lançarote. Conforme aponta Zurara, os exploradores logo
preocuparam-se em entender o regime de marés da região
Ca posto que ali fossem outras vezes, não foram tantas por que de razão
devessem ser culpados muito em seu erro, ou por ventura foi sua causa as
águas, que então eram mortas, por cuja razão acharam em muitos lugares
tão baixo, que não podiam nadar; assim que lhes foi forçado, achando-se
em seco, esperarem a ajuda da maré, a qual não houveram senão já alto
dia.286
286
ZURARA, Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné , op, Cit. Ilha de tider
287
SINTRA, Diogo Gomes. O descobrimento Primeiro da Guiné. Lisboa: Edições Colibri, 2002, p.71
288
CADAMOSTO, Viagens ..., op. Cit, p.115.
161
viajantes, como podemos observar em Cadamosto, descrever a região por onde passa o
rio Senegal e em seguida a região do Cabo Verde:
Toda esta costa e região, atrás declarada, é terra toda baixa até este rio;
e deste rio para diante uns grandes espaços é baixa também. (...)Este cabo
Verde é a mais alta terra que há em toda esta costa , isto é, 400 milhas para
além do sobredito Cabo Verde até 900 milhas, para aquém do dito Cabo
verde toda a costa é praia rasa 289
Além do relevo, outros elementos do espaço natural aparecem com frequência nos
relatos quatrocentistas, como por exemplo a descrição de rios, de lagos e da vegetação.
Por vezes tais elementos aparecem combinados, conforme podemos observar no relato de
Sintra, no qual o viajante descreve os Montes Gelu:
289
Ibidem, p. 116
290
Ibidem, p.124
291
SINTRA, O descobrimento primeiro da Guiné, op. Cit, p.75.
162
quatrocentistas, visto que a exploração da costa africana incluiu também a penetração nos
rios que eram formas de adentrar o interior do continente e estabelecer contatos com os
povos que habitavam nessas regiões.
O acesso a determinadas localidades é outro tópico comum as estas narrativas de
viagem do século XIV. Nesse sentido, a apreensão do espaço natural é, sobretudo,
estratégica, pois permitia aos navegadores traçar uma rota para entrar e sair de
determinada região e avaliar os ricos que corriam. Ao descrever a região pós – golfo de
Cabo Verde, Cadamosto associa elementos naturais e a dificuldade de acessar tal lugar à
segurança:
O seu país está cheio de mato e é abundante em lagos e águas; e , por isso
, se tem muito seguro, porque lá não se pode entrar, senão por passos
estreitos, e por isso não temem nenhum rei nem senhor das redondezas 292
Nesta terra é sempre muito calor e quanto mais para o sul, muito mais
é o calor. E comparativamente por janeiro não faz mais frio nesta região
do que em Abril nestas nossas partes.293
Este país é sempre quente o ano todo. Verdade que há uma mudança
a que eles chamam inverno: porque desde julho até fins de outubro chove
continuamente quase todos os dias , por volta do meio-dia, deste modo :
levantam-se umas nuvens continuamente de sobre a terra, entre nordeste e
levante, ou entre levante e sudeste, com grandes trovões, relâmpagos ou
raios; e assim chove uma grande quantidade de água, e por este tempo os
negros começam a semear. (...) e informo-vos de que eu soube que , neste
país, para o interior, por causa do grande calor do ar, a água que chove é
quente. 294
292
CADAMOSTO, op, Cit, p. 122
293
Ibidem, p.122
294
Ibidem, p.156.
163
É interessante notar na narrativa de Cadamosto de que forma dá essa apreensão do
clima. No primeiro trecho, quando navegava pelo rio Senegal, o autor tentar entender as
variações climáticas comparando-as com o clima europeu. No segundo, há a tentativa de
entender como era o inverno na região, mas não a partir da sua própria perspectiva mas
do olhar do outro. Observa-se então em um primeiro momento um estranhamento
absoluto e depois uma tentativa de compreensão dos fenômenos climáticas que ao nosso
ver se revela como uma forma de apropriação daquele espaço.
Em obras com naturezas e objetivos distintos, como o relato de viagem de Cadamosto
ou a Crônica da Guiné de Zurara, é possível observar que o avanço sobre o Atlântico e o
continente africano estabeleceu um “confronto” entre dados imaginados e dados do
vivido obtidos a partir da conquista de territórios. Tal confronto tardou a ser exaurido e é
nesse sentido que podemos falar de uma atualização do imaginário, pois certos elementos
e alegorias, frutos de especulações míticas de um passado não tão distante passam a
conviver com dados empíricos.
Assim, se no início do século XV acreditava-se ser a região abaixo do Saara,
tórrida, inabitável e, por consequência, intransponíveis, ainda na primeira metade deste
século, os navegadores europeus estarão adentrando esse espaço e construindo relações
sociais nele. Como é possível inferir através da análise do relato de Cadamosto e de
Zurara. Fontes estas que se cruzam em muitos momentos da narrativa. Tanto Zurara
quanto Cadamosto descrevem ao longo de suas obras o processo de colonização nas ilhas
atlânticas e sua incorporação as práticas comerciais portuguesas, sendo possível observar
em suas obras, especialmente em Zurara, que os espaços do “Eu” do “Outro” aparecem
muito bem definidos, assim como as distinções hierárquicas entre esses espaços e os seus
habitantes. A alteridade, portanto, se dá somente em relação ao espaço que é
cuidadosamente delimitado e hierarquizado.
A observação e descrição geográfica da costa ocidental africana pelos
navegadores quatrocentistas compõem as primeiras imagens da região feitas com base
em dados empíricos . Tais informações serão fundamentais para a construção das
primeiras cartas de navegação a registrarem África subsaariana, contribuindo para a
formulação de novas formas de representação da África.
164
Tabela 2- A percepção do espaço nos textos de Zurara, cadamosto e Diogo Gomes
Sintra.
295
BURQUE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
165
essenciais das ciências humanas. Lefebvre elabora um quadro semântico do termo
“representação”, apresentando seu significado em seis áreas distintas, a saber:
296
LEFEBVRE, Henri.. La presencia y la ausência: Contribucion a la teoria de las representaciones..
Cidade do México: fundo de cultura económica, 1983, p. 14.
297
GINSBURG, Carlo. Olhos de madeira. Nove Reflexões Sobre a Distância. São Paulo: Cia das Letras
2001, p.85.
166
estudos das imagens e sua função social na Idade Média, sobretudo, graças aos trabalhos
no campo da antropologia histórica, iniciados por Jacques LeGoff, a partir da década de
1970, e continuados por Jean-Claude Schimitt298 e Jèrôme Baschet,299 os quais são hoje
grandes referências nos estudos de imagem e iconografia medievais.
Obviamente, os conceitos são elaborações circunscritas dentro de uma lógica e
uma dinâmica social própria. Como vimos até aqui, o conceito de representação é bastante
complexo e largamente utilizado em diversas áreas como a Antropologia, a Sociologia, a
Psicologia, a História e sobretudo a Filosofia. De modo que não há uma definição única
e fixa acerca dessa noção. Diante disso, nossos questionamentos acerca desse conceito no
presente trabalho giram em torno da seguinte pergunta: A partir de qual perspectiva
podemos entender o que é representação? A resposta de tal questão se dá não com a
delimitação de um conceito rígido, mas de sua associação a uma outra noção cara a nossa
pesquisa, a ideologia.
Assim como “representação”, o termo “ideologia”, bem como o conceito, é repleto
de significados, variados e complexos, que muitas vezes não se relacionam. Para
exemplificar essa gama de sentidos atribuídas ao termo ideologia, o filósofo britânico
Terry Eagleton apresenta, no livro Ideology: an introduction, uma lista de alguns dos
significados mais recorrentes do termo, circulantes no final do século passado:
298
SCHMITT, Jean-Claude O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução
de José Rivair Macedo. Bauru-SP: Edusc, 2007.
299
BASCHET, Jèrôme. L'iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008.
300
EAGLETON, Terry. Ideología, Una introducción. Barcelona: Paidós, 1997. pp 19-20.
167
Em uma análise abrangente de tais concepções, Eagleton destaca três fatores
observados nessas definições: primeiro, o fato de nem todas serem compatíveis entre si;
em segundo lugar, o autor aponta as formulações pejorativas do termo; por último,
Eagleton, destaca o caráter epistemológico de algumas das acepções, remetendo às
questões relacionadas ao nosso conhecimento do mundo.
Tamanha variedade semântica também foi pontuada pelo cientista político italiano
Mario Stopinno, o qual inicia o verbete “ideologia” do dicionário de política301, alertando
tanto para a grande utilização do termo, seja em textos filosóficos, políticos ou
sociológicos, quanto para as suas múltiplas acepções.302
Para Stoppino, há duas tendências gerais para o conceito de Ideologia, seguindo,
em sua formulação, as noções de “significado fraco” e de “significado forte”, elaborada
por Norberto Bobbio. De acordo com essa perspectiva, a ideologia, entendida a partir de
seu “significado fraco” designa o genus ou a espécie diversamente definida, dos sistemas
de crenças políticas: um conjunto de ideias e de valores respeitantes a ordem pública e
tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos 303, ao passo que,
segundo o “significado forte”, cuja origem é o conceito de Ideologia de Marx, a ideologia
consiste na falsa consciência das relações de domínio entre as classes, afirmando,
portanto, a noção de ideologia como a crença em uma coisa falsa. 304 Stoppino, ainda,
considera que:
No significado fraco, ideologia é um conceito neutro que
prescinde do caráter eventual e mistificante das crenças políticas. No
significado forte, ideologia é um conceito negativo que denota
precisamente o caráter mistificante da falsa consciência de uma crença
política.305
301
STOPINNO, Mario. Ideologia In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de Política. São Paulo: Editora UNB- Imprensa Oficial, 2004. 2 Volumes, p.585.
302
Ibidem, p.585.
303
Ibidem, p.586.
304
Ibidem, p..586.
305
Ibidem., p..587.
168
compreendida a partir de um sentido positivo ou neutro ou a partir de um sentido negativo,
ou crítico. Nessa perspectiva, o autor afirma que:
O filósofo Alípio de Sousa Filho critica tal visão do conceito de ideologia. Para
ele é importante afastar a ideia que considera a ideologia como uma espécie de “conceito
do senso comum cotidiano”307, uma vez que esta é entendida como sinônimo de ideias,
opiniões, convicções, bem como pensar a ideologia para além da tradição marxista que
entende a ideologia como instrumento de dominação política e econômica.
Para o autor o termo ideologia é mais complexo do que a visão marxista que o
entente como reprodutor de relações econômicas e políticas, já que a ideologia asseguraria
a manutenção da ordem social, como também da ordem simbólica. Através de
representações socialmente construídas haveria um processo de naturalização e
perpetuação de crenças que tornaria possível a conservação dessa ordem sem que a
mesma seja posta em questão pelos que a ela estão submetidos.
Ideologia atenderia ao anseio da preservação da ordem social, consagrando
normas, padrões e costumes. Esta seria a responsável por promover a coesão social e a
aceitação, sem grandes resistências, de tarefas, papéis e lugares sociais. Assim, a
reprodução das relações de produção só poderia ser vista, segundo este Souza Filho,
secundariamente.
A ideologia estaria sustentada pelo desconhecimento da cultura e da ordem social
por parte dos indivíduos inseridos na sociedade e tal desconhecimento seria a fonte da
produção das representações que consolidam a ordem instituída.308 O autor concebe
ideologia como a forma simbólica da dominação a que todos os sujeitos sociais estão
306
GUARESCHI,.Pedrinho. Representações Sociais e Ideologia. In: Revista de Ciências Humanas,
Florianópolis: EDUFSC, Edição Especial Temática, p.33-46, 2000, p. 40.
307
SOUSA FILHO, Alípio. “Cultura, ideologia e representações sociais”. In: CARVALHO, Maria do
Rosário; PASSEGGI, Maria da Conceição; SOBRINHO, Moisés Domingos (Orgs.). Representações
sociais. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 2003.
308
Ibidem, p. 34.
169
submetidos no espaço da cultura, entendendo forma simbólica a partir do pensamento de
Pierre Bourdieu.
Desta forma, Sousa Filho entende a representação como a menor parte da
ideologia, sendo o veículo pelo qual esta circula na sociedade. Com as representações, a
ideologia seria capaz de significar como o indivíduo deve conduzir seu papel nessa
dinâmica social.309
Acerca da questão que envolve a relação entre representação e ideologia, o
historiador Francisco Falcon assinala que quase todos os autores preocupados com a
noção de ideologia a consideram como representação. No que tange aos problemas
epistemológicos oriundos desse entendimento, o autor apresenta como solução a distinção
dos conceitos de ideologia no sentido amplo e no sentido restrito. Identificando o primeiro
com a representações sociais e o segundo com os mitos e as utopias310.
O conceito de representações sociais é muito caro à Nova História Cultural, tendo
como principal expoente de seu estudo o historiador francês Roger Chartier, segundo o
qual a noção de representações praticamente define a História Cultural contemporânea 311.
Para Chartier:
o conceito de representação foi e é um precioso apoio para que se
pudessem assinalar e articular, sem dúvida, melhor do que nos permitia a
noção de mentalidade, as diversas relações que os indivíduos ou os grupos
mantêm com o mundo social: em primeiro lugar, as operações de
classificação e hierarquização que produzem as configurações múltiplas
mediante as quais se percebe e representa a realidade; em seguida, as
práticas e os signos que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a
exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente
um status, uma categoria social, um poder; por último, as formas
institucionalizadas pelas quais uns “representantes” (indivíduos singulares
ou instâncias coletivas) encarnam de maneira visível, “presentificam” a
coerência de uma comunidade, a força de uma identidade ou a permanência
de um poder. A noção de representação, assim, modificou profundamente
a compreensão do mundo social. 312
309
Ibidem, p.37.
310
FALCON, Francisco J. Calazans. História e Representação. In: Representações - Contribuição a um
debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p.48.
311
CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras, Dourados, MS, v. 13, n.
23, jan./jun. 2011, pp 15-29. P. 15.
312
Ibidem, p.22.
313
Ibidem, p.17.
170
sentido Chartier aponta para a importância da noção de luta de representações, dessa
forma, segundo o autor:
As lutas de representações são assim entendidas como uma
construção do mundo social por meio dos processos de adesão ou rechaço
que produzem. Ligam-se estreitamente à incorporação da estrutura social
dentro dos indivíduos em forma de representações mentais, e o exercício
da dominação, qualquer que seja, graças à violência simbólica 314
b) Em segundo lugar, nós muitas vezes percebemos que alguns fatos que nós
aceitamos sem discussão, que são básicos a nosso entendimento e
comportamento, repentinamente transformam-se em meras ilusões. Por
milhares de anos os homens estavam convencidos que o sol girava ao redor de
uma terra parada. Desde Copérnico nós temos em nossas mentes a imagem de
um sistema planetário em que o sol permanece parado, enquanto a terra gira a
314
Ibidem, p.22.
315
ALEXANDRE, Marcos. Representação social: uma genealogia do conceito. Comum. Rio de Janeiro,
v.10, nº23, p 122-138, 2004, p. 124.
171
seu redor; contudo, nós ainda vemos o que nossos antepassados viam.
Distinguimos, pois, as aparências da realidade das coisas, mas nós as
distinguimos precisamente porque nós podemos passar da aparência à
realidade através de alguma noção ou imagem.
316
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes,
2003. p. 31.
317
BAPTISTA, Maria Manuel. Estereotopia e Representação Social: uma abordagem psico-sociológica.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1996, p. 02.
318
MOSCOVICI, Serge, op. Cit, p. 34.
319
CARDODO, Ciro Flamarion. Uma opinião sobre as representações sociais. In: Representações -
Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000.
172
diferentes grupos socioeconômicos, culturais e étnicos que as expressam por diferentes
meios, refletindo diversificadas práticas sociais.320 No que concerne à relação das
representações com determinada realidade social e o impacto das mesmas nos contextos
em que estão inseridas, Moscovici faz as seguintes considerações:
320
FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Representações sociais, ideologia e desenvolvimento da
consciência. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, v. 34, n. 121, jan./abr. 2004.
321
MOSCOVICI, Serge. Op, cit, p.40.
173
criam representações para filtrar a informação que provem do meio
ambiente e dessa maneira controlam o comportamento individual. Elas
funcionam, pois, como uma espécie de manipulação do pensamento e
da estrutura da realidade, semelhantes àqueles métodos de controle “
comportamental” e de propaganda que exercem uma coerção forçada
em todos aqueles a quem eles estão dirigidos.322
Uma última questão que levantaremos aqui acerca do estudo das representações
sociais, diz respeito a sua relação com a noção de ideologia. Como dissemos acima,
Francisco Falcon identifica representações sociais com o que ele chamou de “conceito de
ideologia no sentido amplo”. Contudo, entendemos que tal identificação não deva ser
implicar que os conceitos sejam sinônimos e há que se fazer a diferenciação de ambos.
Observa-se semelhanças e distanciamentos entre os dois conceitos. Segundo
Guareschi, quando entendemos a ideologia como cosmovisão estabelecida há uma
proximidade com a noção de representações sociais, pois esta também constitui uma
cosmovisão, isto é, uma construção simbólica socialmente construída. Contudo, o autor
atenta que ao contrário da ideologia, a representação social não é estática ou fixa, mas
sim dinâmica, capaz de suportar certas contradições em sua superfície, embora possuindo
um mundo subjacente, relativamente estável, fundamentado, nas tradições, memórias
sociais e cultura.323 Outro ponto de encontro entre as duas noções, de acordo com
Guareschi, é o fato de ambas serem frutos de construções simbólicas, servindo para criar,
reproduzir e transformar as relações sociais. Por fim, Guareschi aponta como fator
distintivo entre ambas, o fato de que as ideologias servem para afirmar relações
assimétricas de dominação, ao passo que as representações sociais nem sempre cumprirão
esse papel, muita embora, às vezes o façam.324
Nosso intento nesta seção foi demonstrar como as noções de representação e
representações sociais estão presentes nos debates acadêmicos nas áreas de ciências
humanas, principalmente, a partir da chamada “virada cultural”, apontando de que forma
tais conceitos podem ser relacionados com a noção de ideologia. Entende-se que a
ideologia é um elemento que organiza e assegura a ordem social e simbólica, o que o faz
através de um complexo sistema de representações. Destaca-se, nessa perspectiva, a
importância das representações sociais para a manutenção de uma ordem simbólica , uma
vez que elas constituem uma via de apreensão do real. Tais noções serão muito úteis em
322
Ibidem, p.54.
323
GUARESCHI, Pedrinho. Op. Cit, p. 43.
324
Ibidem, p.43.
174
nosso trabalho, pois, doravante, abordaremos aqui as formas como o continente africano
e os africanos foram representados pelos portugueses do século XV e de que forma tais
representações atenderam às suas expectativas ideológicas.
175
4.3.2.1- A CARTA DE MODENA
É a carta atlântica portuguesa mais antiga de que se tem conhecimento, possuindo
datação aproximada entre 1471 e 1482. Sua autoria é anônima e sua existência e
nacionalidade foram por séculos desconhecidas. Esta carta foi roubada da casa ducal de
Este no século XIX, sendo recolhida posteriormente e conservada na Biblioteca Estense
de Modena325. Essa carta foi referida algumas vezes por autores italianos e somente no
início do século XX, Roberto Almagià a descreveu e a reproduziu326, vislumbrando a
possibilidade da nacionalidade da carta ser portuguesa, considerando que a toponímia
encontrava-se em Português327
A primeira vez em que se afirmou a nacionalidade portuguesa da Carta foi em 1940,
quando A. Fontoura da Costa publicou um estudo da carta, com uma reprodução colorida
do padrão e texto em várias línguas. Costa havia tomado conhecimento da carta em 1938,
em um congresso de geografia em Amsterdã, através de Marcel Destombes. A datação
que Costa atribuiu à carta foi a de 1471. A motivação para tal deve-se ao fato de que a
toponímia e os espaços representados serem os reconhecidos pelos portugueses após
1470, pois o Rio lago aparece como o último dos topônimos, já na reentrância do Golfo
da Guiné . Estas paragens foram reconhecidas por navegadores a serviço do mercador
Fernão Gomes, no princípio de 1471.
Para Costa, a carta provavelmente fora copiada do padrão real por um cartografo
desconhecido, o topônimo rio Santarém aparece pela primeira vez, possivelmente
indicando o seu explorador, o navegador João de Santarém328.
325
MARQUES, Alfredo Pinheiro. Adendo à Portugaliae monumenta Cartográfica. In Cortesão,
Armando. Portugaliae monumenta Cartográfica. Volume 6. Segunda edição. Lisboa: Impressa Nacional,
Casa da Moeda. 1987, p.21.
326
Almagià Roberto. .Notizie di quatro carte nautiche dela R. Biblioteca Estense. In la Bibliofilia, anno
XXVII, disp 10-11, Firenze, 1926, pp 337-347. Apud MARQUES, Alfredo Pinheiro. Adendo à Portugaliae
monumenta Cartográfica. In Cortesão, Armando. Portugaliae monumenta Cartográfica. Volume 6.
Segunda edição. Lisboa: Impressa Nacional, Casa da Moeda. 1987.
327
MARQUES, Alfredo Pinheiro. Adendo à Portugaliae monumenta Cartográfica. In Cortesão, Armando.
Portugaliae monumenta Cartográfica, op. Cit, p. 24.
328
GASPAR, Joaquim Alves. From the Portolan Chart of the Mediterranean to the Latitude Chart of the
Atlantic: Cartometric Analysis and Modeling. Lisboa: tese de doutoramento (ISEGI/UNL), 2010. P. 86
176
Figura 18
Carta Anônima de Módena
177
Trata-se de uma carta do Atlântico Oriental, mostrando as costas da Europa e
África, desde a Bretanha, na França, até a atual Nigéria. Representa, com bastante
correção a toponímia portuguesa, os arquipélagos atlânticos dos Açores, Madeira,
Canárias e Cabo Verde329. Quanto à presença de Ilhas fantásticas, a carta apresenta a ilha
de Mayda, ao largo da Bretanha. Os espaços não portugueses que aparecem são a França
e a Bretanha, representadas com tamanha deformação, em contraste com o resto da carta,
o que, para Alfredo Pinheiro Marques, denota um desinteresse do cartógrafo por tais
regiões. Note-se também que o Mediterrâneo, nem sequer é representado330.
Quanto às características estilísticas da carta, Marques assinala que embora
elegante, o colorido e o recorte do seu desenho são simples e parecem mostrar que
estamos efetivamente perante uma carta para fins hidrográficos. Conclui-se que se trata
de uma carta cujo objetivo era a navegação para novos espaços reconhecidos pelos
portugueses.331
A carta possui 617x732 mm de cumprimento, foi feita em pergaminho, não
apresentando a conformação integral do corpo do animal, sendo constituída por 16 rosas
dos ventos, agrupando-se à volta de uma grande rosa dos ventos central. Estão desenhadas
a central e seis das periféricas. No que concerne a sua tipologia, a carta é similar aos
modelos catalo-maiorquino, Tratando-se de um exemplar de transição, pois para além das
características mediterrânicas já são vistas algumas das novas feituras atlânticas
portuguesas.332
As sete rosas desenhadas já possuem o Norte indicado pela flor-de-lis, à maneira
portuguesa; uma delas, na altura do Golfo da Guiné, tem uma outra flor de lis indicando
o Ocidente. Aparecem já os recortes “realistas” típicos da cartografia portuguesa que os
inaugurou.
Quanto à África, destacam-se as bandeiras muçulmanas no sul do Marrocos, Cabo
Bojador, Serra Leoa, Cabo das Palmas e perto do Rio do Lago. No rio Gambia há uma
bandeira com uma espada. Não há escudos em lado nenhum, nem na Europa, onde só há
a bandeira da Bretanha. Há bandeiras portuguesas em Arguim, o primeiro entreposto
português, já na época Henricina, e em Anima do Ouro, no centro do Golfo. Não possui
meridiano graduado, nem qualquer técnica que indique a navegação astronômica. Tem
329
MARQUES, Alfredo Pinheiro. Origem e desevolvimento da Cartografia portuguesa na época dos
descobrimentos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda , 1987, p.30.
330
Ibidem, p. 31.
331
Ibidem, p.40.
332
Ibidem, p.41.
178
dois troncos de légua na margem esquerda, posicionados no sentido norte-sul, sem
nenhum elemento que permita inferir que estejam presentes para a prática do método de
navegação astronômica.333
Pedro Reinel é o primeiro cartógrafo português com produção conhecida. Fato este
que, obviamente, não indica que tenha sido o primeiro cartógrafo luso, mas afirma a sua
importância nos primórdios da cartografia portuguesa, bem como, o grande relevo de sua
obra. Note-se que Pedro e seu filho, Jorge Reinel, foram responsáveis por uma vasta
produção cartográfica entre os finais do século XV e o segundo quartel do século XVI.
Ambos tiveram muito prestígio em seu tempo e posteriormente e, em razão disso, suas
obras foram amplamente estudadas por historiadores e cartógrafos de diversas épocas.334
Quanto à produção dos reineis no século XV, destaca-se a Carta de Pedro Reinel que
é o documento cartográfico português mais antigo do qual se tem conhecimento da
autoria. Encontra-se em Bordeaux 335, na França e pouco se sabe sobre a sua história e de
que forma chegou até ali. Tornou-se conhecido somente em 1960 em um colóquio de
História Marítima, em Portugal, realizado nas comemorações das descobertas
henriquinas. Por tal razão não há nenhuma bibliografia sobre o mapa anterior a década de
1960. Após tomar conhecimento de sua existência, Armando Cortesão dedicou-se ao seu
estudo.
Trata-se de um portulano Atlântico que representa a Europa e a África desde as ilhas
britânicas até o Golfo da Guiné, dedicando uma seção ao Rio Zaire, possuindo, portanto,
uma amplitude maior do que a Carta de Modena, pois além de trazer mais detalhes da
Costa ocidental africana, nela também consta o Mediterrâneo Ocidental. Sua toponímia é
exata, sendo possível observar os arquipélagos atlânticos, além de duas ilhas fantásticas,
333
CORTESÃO, Armando. History of Portuguese cartography, Volume 2. Lisboa: Junta de Investigações
do Ultramar, 1971, p.240.
334
Ibidem, p.240.
335
Nos arquivos de La Gironde.
179
quais sejam: Mayda e Brasil. A toponímia bastante numerosa indica uma exploração
sistêmica da região.336
Há indícios de que seja uma carta hidrográfica, pois se observa em sua superfície a
existência de picadas de compasso nos troncos de léguas, denotando uma intensa
utilização. Ademais, os elementos de ornamentação são relativamente simples, indicando
o pragmatismo com o qual fora concebida.337 É uma carta em pergaminho, apresentando
a conformação completa do corpo do animal, inclusive o pescoço que ocupa o lado norte
do mapa, o qual possui 711mm x 948mm de dimensão. Seu sistema de construção conta
com uma rosa dos ventos central e dezesseis periféricas. Ressalta-se, a partir da análise
tipológica da rosa dos ventos, que assim como a Carta de Modena, a Carta de Pedro Reinel
ainda é considerada de transição, muito embora apresente menos características
mediterrânicas que a de Módena.
No que tange às características decorativas da carta, esta possui duas grandes
figuras na África: uma grande leoa com a bandeira portuguesa, para além de Serra Leoa
como que defendendo essas paragens no Golfo da Guiné e da Costa da Mina e a segunda
é uma enorme cruz na foz do rio Zaire que parece marcar os limites das explorações
portuguesas à época. Além disso, a carta tem três escudos nas ilhas britânicas e vinte e
seis bandeiras, das quais quinze estão na África. Outro detalhe interessante é a assinatura
do cartógrafo, Pedro Reinel, que aparece em primeira pessoa.
No que concerne aos limites, a carta ultrapassa a região do rio Lago avançando
para localidades bem ao sul do Equador, reconhecidas pela viagem de Diogo cão na
década de 1480. De acordo com Luís de Albuquerque, é claro que o mapa não poderia ter
sido desenhado antes da descoberta de Diogo Cão, que só retorna à Lisboa em abril de
1484. Nesse sentido, o autor situa o mapa como sendo elaborado entre 1484 e 1487.338
336
CORTESÃO, Armando. History of Portuguese cartography, op. Cit, p.241.
337
ALBUQUERQUE, Luís de. Cartógrafos Portugueses. In CHANDEIGNE, Michel. Lisboa Ultramarina,
1415-1580: a invenção do mundo pelos navegadores portugueses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1992,
p.62.
338
Ibidem, p.64
180
Figura 19- Carta de Pedro Reinel. C 1482.
181
Atenta-se para o fato do mapa não apresentar dados de latitude, contudo, já se tenha
conhecimento da navegação astronômica àquela altura, todavia alguns historiadores
portugueses como Jaime e Armando Cortesão acreditam que a ausência desses dados
esteja relacionada à política de sigilo adotada durante o governo de D. João II. 339 Quanto
a isso, ressalta-se que embora não haja a indicação de nenhum meridiano, a correção do
contorno na região do Golfo da Guiné denota uma correção de latitude.
Também chama atenção o fato de parte da costa está desenhada no interior do
mapa, suscitando algumas hipóteses, como a informação de novos dados em um momento
subsequente a elaboração do mapa, como quer Armando Cortesão ou a necessidade de
adequar a Carta a um padrão cartográfico antigo, aos moldes mediterrânicos, que vai
tornando-se obsoleto com o avanço das navegações e com ele a ampliação dos horizontes
geográficos.
339
MARQUES, op. Cit, p 43.
340
CORTESÃO, Jaime. op. Cit, p.62.
341
GASPAR, Joaquim Alves, op. Cit, p89.
342
MARQUES, op. Cit, p.135
182
A carta de Jorge de Aguiar trata-se de um portulano que representa a Europa, os
arquipélagos dos açores, Madeira, Canária e Cabo Verde e a costa africana até a fortaleza
de S. Jorge da mina. Os arquipélagos africanos são representados com bastante correção.
É uma carta do Mediterrâneo e do Atlântico e de maneira distinta às cartas de Módena e
de Pedro Reinel, esta representa todo o Mediterrâneo, denotando que a região era de
grande importância para os objetivos do autor. No que concerne aos aspectos materiais e
estilísticos da carta, observemos as seguintes considerações de Pinheiro Alves:
343
Ibidem pp 136-137.
344
Ibidem, p.135
183
Figura 20 – Carta de Jorge Aguiar. C 1492.
184
Existem semelhanças a serem consideradas entre a Carta de Jorge de Aguiar e a de Pedro
Reinel, como por exemplo a cercadura dupla que praticamente envolve a carta, onde se
encontram os troncos de léguas e a caligrafia similar. Contudo, as diferenças também
merecem destaque, a começar pela ornamentação da carta. Outra distinção notável, diz
respeito ao padrão adotado por Aguiar que é, de acordo com Pinheiro Alves, claramente
diferente do que é utilizado por Pedro Reinel. Tais distanciamentos, na perspectiva de
Alves enfraquece a tese de Armando Cortesão, segundo a qual Aguiar pertenceria a
mesma escola cartográfica que Pedro Reinel, aventado a hipótese de que o padrão adotado
por Aguiar seria, na verdade, mais antigo do que aquele utilizado por Reinel345.
Ainda não são visíveis meridianos graduados capaz de provar a navegação
astronômica expressa na cartografia. Embora as latitudes sejam já bastantes corretas, as
longitudes ainda não o são, portanto, esta carta tal qual as outras ainda não é muito
significativa quanto à inclusão de elementos da navegação astronômica das cartas de
marear.346
345
Ibidem, p.136.
346
Ibidem, 139
347
FREIRE, Neison Cabral Ferreira; FERNANDES, Ana Cristina de. Mapas como expressão de poder e
legitimação sobre o território: uma breve evolução histórica da cartografia como objeto de interesse de
distintos grupos sociais. Atas do III simpósio brasileiro de ciências geodésicas e tecnologias da
geoinformação Recife: julho de 2010, p. 01.
185
demandas, peculiares a cada sociedade. Destarte, um mapa pode desempenhar uma ou
mais funções, dependendo da sociedade em que ele foi criado.
Diante disso, este trabalho busca entender o porquê da criação das cartas náuticas
aqui analisadas348. Considerando o que foi exposto até aqui, não é difícil chegar à seguinte
conclusão: foram construídos para a navegação na costa ocidental africana. A outra
questão que se coloca a partir desta, diz respeito à forma como esses foram elaboradas.
Quanto a isso, exploramos nos capítulos anteriores diversas questões referentes ao
imaginário medieval, notadamente ao imaginário sobre o Atlântico e sobre a África, de
modo que podemos afirmar que a produção das cartas náuticas portuguesas
quatrocentistas estavam imbuídas de concepções oriundas desse imaginário, bem como
de uma forma de conceber a produção de mapas ainda muito caracterizada pelo
simbolismo.
Ainda que, séculos depois, a cartografia científica tenha atribuído ao conceito de
mapa a ideia de algo objetivo, racionalizado e pragmático, e ainda que, em certa medida,
isto seja verdade, os mapas são representações. Como representações, eles estão
imbuídos de discurso e juízos de valor caros a sociedade onde foram produzidos,
refletindo as ideologias daqueles que os elaboraram. Nessa perspectiva, o geógrafo
britânico John Brian Harley afirma que os mapas não podem ser considerados como
imagens sem valor, atentando para o seu valor como discurso inserido em um contexto
historicamente definido e assinalando para a importância de entender os mapas como
elementos socialmente construídos.349
No que tange especificamente às cartas Anônima de Módena, de Pedro Reinel e
Jorge Aguiar, percebemos do contexto quatrocentista, especificamente, de um discurso
de poder sobre o território que se cartografa. Primeiramente, destacamos a ausência de
quaisquer referências das sociedades da Guiné, na toponímia dessas cartas. Todas já
apresentam toponímias portuguesas, de modo que os pontos referenciados são aqueles
que, de alguma forma, apresentam algum interesse aos navegadores e comerciantes
europeus. As referências topográficas dessas cartas são, portanto, feitas de acordo com a
perspectiva dos cartógrafos, revelando, dessa forma um discurso de dominação e
apropriação do território, o que também pode ser observado nos relatos do período,
especialmente em Cadamosto e Diogo Gomes Sintra, analisados no início deste capítulo.
348
Carta anônima de Módena, Carta de Pedro Reinel e Carta de Jorge Aguiar.
349
HARLEY, John Brian. Maps, Knowledge and power. In COSCROOVE, Denis; DANIELS, S. The
iconography of landscape. Cambridge: Cambridge University Press, 1988, pp 277-278.
186
Quanto às áreas de abrangência dos mapas, destaca-se o fato da Carta anônima de
Módena não apresentar o Mediterrâneo, além de representar de forma pouco precisa a
França. Tal fato sinaliza para uma importância muito maior às paragens do ocidente
africano do que as da Europa mediterrânica, o que denota que a carta seria usada somente
para a navegação da parte atlântica da França até o início do Golfo da Guiné.
No que concerne aos elementos simbólicos, as três cartas estão repletas de
bandeiras, escudos, desenhos, espadas, dentre outros ornamentos. Entende-se que as
partes ornamentais das cartas são tão relevantes quanto as coordenadas e referências
geográficas, pois indicam as relações dos produtores dessas obras com o espaço. São
apresentados portanto, referências do espaço material ( os cabos, os elementos
geográficos, etc), as representações desse espaço, isto é, o espaço conceitualizado ( como
determinados elementos são representados nas cartas) e os espaços de representação, ou
seja, o espaço do vivido. Quanto a estes últimos, considera-se a presença de bandeiras,
escudos, bem como a toponímia como formas de apropriação do espaço, o que, ao nosso
ver, relaciona-se com o sentimento de dominação do território.
Destacam-se nesse sentido a presença de bandeiras muçulmanas, que podem ser
observadas nas três cartas, a presença de bandeiras portuguesas, também presentes nas
três obras e , na carta de Pedro reinel a presença de uma enorme cruz na região do Rio
Padrom, atual rio Zaire. Das três cartas, a Carta anônima de Módena é a que tem menos
elementos ornamentais, o que pode indicar tanto um caráter mais pragmático quanto um
menor conhecimento e domínio das regiões representadas. A carta de Pedro Reinel,
apresenta cinco bandeiras portuguesas, nas costa ocidental africana, sendo uma delas
segura por uma imponente leoa, ao passo que a carta de Jorge Aguiar possui quatro
bandeiras de Portugal na mesma região, contudo, apresenta mais detalhes quanto ao
relevo dos locais dominados pelos portugueses, além de apresentar a primeira
representação do castelo da Mina e ser a primeira carta portuguesa a representar o Mar
Vermelho. A presença de ilhas fantásticas nas três obras, demonstra a continuidade das
ilhas como elementos do maravilhoso, ainda vivas no imaginário português tardo
medievais. Abaixo elaboramos uma tabela com a frequência com que alguns elementos
simbólicos aparecem nas cartas portuguesas do século XV350.
350
Os elementos referem-se às partes norte e Ocidental da África e ao Atlântico Central.
187
Tabela 3 – Elementos simbólicos nas cartas náuticas portuguesas do século XV
Mapa Bandeiras Bandeiras Ilhas Outros
Muçulmanas Portuguesas fantásticas elementos
Carta de 5 2 1 Espada (1);
Módena Castelo
muçulmano (1)
Carta de 3 5 2 Leoa, em Serra
Pedro Reinel leoa (1);
Cruz, no rio
Zaire(1)
Carta de 2 4 2 Castelo da
Jorge Aguiar Costa da Mina
(1);
Montanhas em
Serra Leoa (1)
As três cartas náuticas aqui estudadas apresentam uma nova forma de apreender e
representar o espaço africano e o Atlântico. A África é representada de forma muito mais
extensa e complexa do que no início do século, os topônimos indicados em língua
portuguesa sinalizam, como já dissemos, uma apropriação desse espaço, o mesmo se
aplica às bandeiras lusas observadas no interior dos portulanos. Os mapas quatrocentistas
apresentam bem mais do que a expressão gráfica do continente, constituindo-se como os
olhares do “outro” sobre a África.
188
Capítulo 5
189
Capítulo 5- Nós e os Outros: identidade e alteridade nos relatos quatrocentistas
sobre a Guiné.
351
ROSSEAU, Jean Jacques. Discour sur l’origine de l’inegalité .Apud TODOROV, Tzevetan. Nós e os
outros a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 29.
190
O antropólogo norte-americano Roy Wagner apresenta uma visão construtivista
da noção de “eu” no livro a Invenção da cultua. De acordo com o autor, o “eu” é fruto de
uma construção dialética obtida na relação do indivíduo com o mundo externo. Nessa
perspectiva, Wagner considera o seguinte:
352
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosacnaify, 2009.
353
BURQUE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Unesp, 2011. p.180.
354
Ibidem, p.181.
355
TODOROV, O medo dos bárbaros. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 39.
191
cultura fornece-nos também uma interpretação do mundo, um modelo
miniaturizado, de algum modo, um mapa que permite orientarmo-nos nesse
mundo; possuir uma cultura significa que se dispõe de uma pré-organização
da experiência vivida; a cultura apoia-se, ao mesmo tempo, em uma
memória comum e em regras de vida comuns; ela está voltada ao mesmo
tempo para o passado e para o presente.356
356
Ibidem, p. 38
357
Ibidem, p. 68.
358
Ibidem, p. 69
359
DIOP, Cheikh Anta. Civilization ou Barbarie. Paris: Présence Africaine, 2008, p. 271.
360
Ibidem, p.280.
192
Ao contrário do fator linguístico, o fator histórico é, nas palavras de Diop:
361
Ibidem, p. 272.
362
WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. IN:
WOODWARD, Kathryn; SILVA, Tomas Tadeu da; HALL, Stuart. Identidade e Diferença. Petrópolis:
Editora Vozes, 2014, p.19.
363
Ibidem, pp17-18.
364
JODELET, Denise. “Representações sociais: um domínio em expansão”. In: JODELET, D. (Org.). As
representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 17- 44
193
No que tange à relação entre identidade e alteridade, Jodelet afirma que o “outro”
está intimamente relacionado com o eu. Dessa forma, a identidade se constitui através da
diferença. Acerca dessa ligação que se estabelece entre o “eu” e o “outro”, Jodelet faz
as seguintes considerações :
Segundo Jodelet, o “outro” figura como uma negação do eu, assim as noções de
diversidade, identidade, hierarquia, encontram-se no cerne da ideia de alteridade, visto
que esta se constitui em oposição à noção de identidade, representando a diversidade e a
pluralidade que envolve a diferença. Dessa forma, o outro implica uma ruptura com o eu,
significando uma ameaça à integridade deste 366.
Também para Todorov, o “outro” somente pode ser percebido a partir da ótica do
“eu” que pode concebê-lo como uma abstração em relação a si. O “outro” pode constituir
um grupo social e nesse caso a diferenciação se faz não em relação ao “eu”, mas ao “nós”.
Essa identificação social que opõe o “nós” aos “outros” ocorre internamente, do interior
da própria sociedade ou externamente, a partir de elementos que são completamente
estranhos a ela, como outra sociedade, que pode ser próxima ou longínqua 367.
Cabem aqui as considerações de Paul Zumthor acerca dos tipos de alteridade que
ele distingue: a alteridade absoluta e a alteridade relativa. De acordo com Zumthor, a
alteridade absoluta é produzida por toda a confrontação entre um sujeito e um objeto,
manifestando-se como uma alteridade radical que exclui todo o sentimento de pertença
365
JODELET, Denise.“Formes et figures de l’altérité”. pp. 23-47. SANCHEZ-MAZAS, Margarita &
LICATA, Laurent. L'Autre : Regards psychosociaux, Grenoble : Les Presses de l’Université de Grenoble,
2005. P. 28
366
Ibidem, p. 28
367
TODOROV, Tzevetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
P. 06.
194
comum. A alteridade relativa não representa uma total falta de identificação com o
“outro”, ao contrário, ela gera um desejo de entender a linguagem do outro368.
Quando transpomos tais noções para a análise das fontes portuguesas do século
XV, observamos que ao retratar os mouros ou os guinéus os autores sempre o fazem tendo
por base as representações previamente construídas no imaginário social. Embora os
mouros fizessem parte de outra sociedade, fossem, portanto externos a Cristandade, não
eram completamente estranhos aos portugueses. Nesse caso é clara a relação de alteridade
relativa, visto que havia da parte dos portugueses a compreensão dos mouros, o que não
existia era a aceitação das diferenças existentes entre eles.
É importante ressaltar que a alteridade não significa o oposto da identidade. Ao
contrário: o que se observa é que a identidade depende da alteridade, pois ela se constitui
e se afirma na diferença. A diferença, por sua vez, é produzida por meio de sistemas
simbólicos e marcada tanto por eles, quanto por meios de exclusão social, gerando duas
formas de diferença, a saber: a diferença simbólica e a diferença social.369 Ressalta-se,
nesse sentido, a função do que o sociólogo francês Émile Durkheim chamou “sistemas
classificatórios”, que se constituem como meios de estabelecer as diferenças. Para
Durkheim, é através da “organização e ordenação das coisas de acordo com sistemas
classificatórios que o significado é produzido.” 370 Considerando a importância dos
sistemas classificatórios, a socióloga norte-americana Kathryn Woodward assinala que:
368
ZUMTHOR, Paul. Falando de Idade Média. São Paulo: Perspectiva, 2009. P.41.
369
WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual, op. Cit, p.40.
370
Ibidem, p.41.
371
Ibidem, p.42.
195
absoluta, uma vez que tudo deles advém é externo a realidade dos portugueses. Isso é
possível perceber nos relatos de Zurara e de Cadamosto que descrevem os aspectos físicos
dos negros de forma a enaltecer o seu caráter “exótico”.
196
5.2- A Guiné nos relatos de Zurara e Cadamosto: representações, espaço e alteridade
Essas representações formaram “Imagens” que revelam não uma África, mas uma
variedade de concepções acerca do continente. As várias Áfricas e os vários africanos
inserem-se em um plano mental de concepções imaginárias e em um plano real, que só é
possível apreender através da conquista, da experiência empírica estabelecida com o
contato. Algumas dessas imagens nos são apresentadas por Zurara, Cadamosto e Diogo
372
REBELO, Luís de Sousa. Língua e Literatura no Império Português. In BETHENCOURT, Francisco &
CHAUDHURI, Kirt (Orgs). História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo dos leitores, 1997. Volume
I, p. 372.
197
Gomes Sintra , autores de importantes obras sobre a Guiné no século XV. As obras desses
atores constituem os primeiros relatos de Europeus acerca de terras na região da Guiné.
As “descobertas” portuguesas colocaram, em certa medida, à margem uma série de
valores e concepções acerca da Terra e da humanidade arraigadas, há séculos, no
pensamento cristão medieval. O que se observa, com a análise de fontes coevas, é que a
partir das descobertas do século XV ocorre uma espécie de “atualização do imaginário”,
decorrente do confronto entre a realidade que se coloca no cotidiano dos agentes da
expansão e das lendas e especulações míticas acerca do Atlântico e do continente
africano, frutos do imaginário cristão medieval que é base das estruturas mentais desses
homens
A passagem do Cabo Não, em 1417 e, quase 20 anos após tal feito, a passagem do
Cabo do Bojador, em 1434, foram marcos no que tange ao avanço do conhecimento
sobre a navegação na Costa Africana. Isso se deu, pois se tratavam de regiões
consideradas instransponíveis pelos Europeus e pelos próprios mouros que há muito
navegavam pelos arredores dos cabos Não e Bojador. Acerca desse feito português, o
navegador italiano Alvise de Cadamosto escreveu o seguinte:
E este cabo era o termo aonde não se achava que ninguém se dizia
que ninguém que mais adiante tivesse passado jamais tornasse; e tanto
assim que se dizia: Cabo Não quem o passa ou tornará ou não. De sorte que
até este cabo, foram as ditas caravelas e dali não ousavam passar mais
adiante. De modo que desejando o dito senhor conhecer mais para além,
determinou fazer que as ditas caravelas no ano seguinte passassem o dito
cabo, com o favor e a ajuda de Deus, pois sendo as caravelas de Portugal
os melhores navios que andam no mar, à vela, estando ela bem apercebidas
de todas as coisas precisas, julgou ser possível poder navegar por toda a
parte.373
373
CADAMOSTO, Luís de. Navegações de Luís de Cadamosto. Lisboa: Instituto para a alta cultura, 1944.
P. 85.
198
Primeiramente é importante ressaltar o espaço que o Bojador ocupava no imaginário
europeu, notadamente, português, nesse período. Era considerado como a última fronteira
e não haviam relatos de viagens marítimas na região. Na verdade, não era possível ter
certeza sobre a existência de terra ou habitantes para além desse Cabo. Há que se
considerar aqui a visão que se tinha do Hemisfério Sul no imaginário Medieval. Existiam
muitas teorias sobre esta região que afirmavam a improbabilidade de vida no local ou
que a parte baixa era coberta por água e mesmo que não era possível a navegação na
região374.Acerca dessas barreiras imaginárias sobre o Cabo do medo, o cronista português
Gomes Eanes de Zurara relata o seguinte
Tal atitude mental frente à África , notadamente a sua costa Atlântica, se deve, de
acordo com o medievalista francês Jean Devisse e o africanista egípcio Shubi Labibi, em
razão dos estudiosos das principais religiões monoteístas ( judaísmo, Cristianismo e
islamismo) afirmarem por séculos que a terra é cercada pelas águas de um oceano. Além
disso, os autores apontam que os herdeiros da cultura grega antiga, árabes ou ocidentais,
acreditavam que para além do Equador não era possível haver vida, devido ao calor
tórrido376.
A região constituía, assim, os limites do mundo em que o homem suportaria viver.
Nenhuma dessas culturas tinha informações fiáveis acerca da navegação atlântica na costa
africana. Do mais, a crença na inexistência de vida na África Ocidental permanece até
depois do século X. os primeiros a entrarem em contato com os povos dessa região foram
os viajantes muçulmanos, trazendo novas perspectivas aos conhecimentos geográfico-
espaciais disseminados até então. Quanto à isso Devisse e Labibi assinalam o seguinte:
374
KAPPLER, Claude, Monstros, demônios e encantamentos.., op. Cit, p.
375
ZURARA, op. cit
376
DEVISSE, Jean; SHUBI Labibi. A África nas relações intercontinentais . In: NIANE, Djibril Tamsir.
História Geral da África. Brasília: UNESCO, 2010. Volume IV. P.723
199
Os viajantes muçulmanos passam a ter uma perspectiva
completamente diferente, pelo menos depois do século X, á medida que
foram penetrando o sul do trópico de Câncer, pelo mar, nas costas orientais,
ou por terra na África ocidental. Muitas observações desmentiriam os
estereótipos da cultura livresca377.
377
Ibidem, p.725
378
M’BOKOLO, Elikia. Op Cit. P. 123.
379
Ibidem, p.123.
380
DEVISSE, Jean; SHUBI Labibi. Op Cit, p. 726
200
em que a caridade e o amor de Cristo fosse tão esforçada, que o quisessem
ajudar contra aqueles inimigos da fé 381
É certo que o navegador tinha ciência de que ir além do Cabo do Medo não só abriria
o caminho para terras nunca antes exploradas por nenhum europeu e para as riquezas da
Guiné, mas também conferiria honra e glória para si e para a sua casa. Isso fica evidente
381
ZURARA, op Cit, p.56.
382
Como era conhecido o Bojador
383
ZURARA, op cit, p.56
201
no relato de Zurara , na passagem em que narra o que o infante D. Henrique disse a Gil
Eanes antes da viagem, como podemos observar no excerto abaixo
(...) Ca com graça de Deus, não podereis dela trazer senão honra e
proveito.(...) Como de feito fez, Ca daquela viagem, menosprezando todo
perigo, dobrou o cabo além, onde achou cousas muito pelo contrário do que
ele e os outros até ali presumiram384
384
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Lisboa: Publicações
Europa-America, 1989.
385
ZUMTHOR, Paul. La medida del Mundo. Madrid: Catedra,1994, pp.248-249.
386
Ibidem, p.249.
387
Conceito elaborado por Vânia Leite Fróes. Ver FROÉS, Vânia Leite. O Atlântico e o além-mar no
discurso poético-dramaturgo. In: Brasil e Portugal: unindo as duas margens do Atlântico. Lisboa:
Academia Portuguesa de História, 2013. pp 287-302.
388
Sobre isto ver: TODOROV, Tzevetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins
202
viajantes quatrocentistas e até mesmo com os viajantes do século XVI 389 ocorrem
situações similares. Nesse sentido, o relato de Zurara configura um bom exemplo do que
estamos tratando:
Fontes, 2010.
389
O Navegador quinhentista Duarte Pacheco Pereira afirmou ter avistado sátiros da região da Guiné.
390
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Lisboa: Publicações
Europa-America, 1989, p.166.
203
de expressão da realeza, representando uma autoridade que, nessa conjuntura, é delegada
ao cronista, o qual a representa e a propaga através de sua produção. As obras de Zurara
inserem-se em uma perspectiva propagandística disseminam um discurso que visa elevar
a honra do rei e do reino, destacando principalmente os grandes feitos realizados na
África, e é nessa perspectiva que a Crônica da Guiné deve ser analisada. Ressalta-se que
Zurara não foi um agente da expansão Marítima e segundo alguns estudiosos, como
Duarte Leite, ele sequer teve convívio com tais agentes, sendo somente um observador
distante. Os dados que recolheu sobre o movimento expansionista são narrativas de
terceiros acerca dos feitos henriquinos na África. Note-se, em razão disso, as incorreções
geográficas presentes no texto. Contudo, de forma alguma sua obra deve ser desprezada
como fonte da história dos descobrimentos portugueses do século XV.
Como já dissemos, A “Crônica dos Feitos e Conquistas da Guiné”, foi a primeira
obra a tratar dos “descobrimentos” na região da Guiné, sendo bastante reveladora no que
concerne às representações portuguesas da África Negra e ao esboço da constituição de
um império ultramarino português, ainda que no plano simbólico, fundamentado em
ideais missionários cristão. Trata-se do relato dos primeiros contatos de europeus com
povos detentores de padrões culturais completamente desconhecidos, bem como da
conquista de novos territórios além do Bojador e da colonização das ilhas atlânticas
próximas da Costa Africana. Uma obra riquíssima por apresentar diferentes momentos da
expansão quatrocentista e as múltiplas impressões dos portugueses em relação ao
continente, sua grandeza, sua natureza e os seus habitantes.
O relato do autor é, em muitos pontos, geograficamente impreciso, visto que ele se
vale de dados anteriormente especulados e tenta coaduná-los aos dados empíricos
advindos do processo de expansão. Em uma perspectiva distinta está a obra de Luís de
Cadamosto, navegador italiano que realizou duas viagens a África , ainda na primeira
metade do século XV, a sob as ordens do Infante D. Henrique. Seu relato descreve as
duas viagens do navegador italiano para a África, em meados da década de 1450. Trata-
se de uma narrativa que dialoga bem com a Crônica da Guiné, de Zurara, mas ao
contrário desta, o relato de Cadamosto é rico em elementos práticos de navegação, tais
como a distância de uma paragem a outra, detalhes sobre ventos e correntes marítimas,
entre outros. Ressalta-se que após o retorno de Cadamosto à Veneza, em 1463, muitos
mapas do Atlântico Ocidental foram produzidos por cartógrafos italianos o que, para
alguns especialistas, denota a influência do autor e sua obra na concepção desses mapas.
204
O livro de Cadamosto constitui um relato de viagem escrito por ocasião das viagens
que fez ao continente africano, relatando as suas impressões pessoais acerca do que pôde
observar. Embora preocupado em relatar os acontecimentos ocorridos nas primeiras
viagens de exploração à África, Zurara não tomou parte dessas viagens, apenas compilou
as histórias das quais teve acesso. Tratamos aqui de duas fontes de naturezas diferentes,
escritas com propósitos diversos e sob perspectivas distintas.
Enquanto Cadamosto fora um agente do movimento expansionista, a Zurara restou à
tarefa de historiador. Ponto comum aos dois autores é o fato de ambos foram publicaram
suas obras anos após os fatos por eles narrados. Tratamos aqui não de fatos cuja
veracidade seja incontestável, mas de dados de realidade, de concepções e de
representações de mundo, os quais embora não correspondam ao real, se constroem sobre
o real e, de acordo com Pierre Bourdieu, se fazem acontecer na realidade, pela eficácia
própria do que representam391. Nessa perspectiva, elaboramos algumas tabelas de análise
que representam essa relação entre espaço e imaginário, não apenas nas obras de Zurara
e Cadamosto, mas também em Diogo Gomes Sintra:
Tabela 4
391
BOURDIEU, Pierre. O poder Simbólico. São Paulo: Bertrand Brasil, 2011. P.112.
205
Cabo verde, e além do qual viram uma
ilha, onde saíram pra ver se achariam
alguma gente, tendo porém acerca de si
aquele resguardo.
Tabela 5
206
Tabela 6
Cadamosto 150 Rio Gambia Junto a este rio não seria de admirar
encontrar-se boa e fértil terra onde
facilmente, achada ela, se podia ter a boa
sorte de alcançar ouro, especiarias e
outras coisas preciosas.
Tabela 7
Diogo Gomes 63 Cabo de Tofia Estas coisas que aqui se escrevem com a
Sintra devida vênia do ilustríssimo Ptolomeu,
que muito de bom escreveu sobre a
divisão do mundo, mas nesta parte
enganou-se. Escreveu, com efeito, que o
mundo se dividia em três partes: uma
povoada que ficava no meio do mundo;
a setentrional, segundo escreveu não era
povoada devido ao frio excessivo;
escreveu também que na parte
equinocial não era habitada devido ao
calor excessivo. Descobrimos que tudo
era diferente, pois o polo ártico vimo-lo
habitado até para além do prumo do polo
e bem assim a linha equinocial habitada
também por negros e em tão grande
multidão de gente que custa acreditar; a
parte meridional está coberta de árvores
e de frutos, ainda que os frutos sejam de
natureza fora do comum e as arvores
sejam de tal grossura e tão altas que não
da para crer. Sem mentir digo que vi uma
grande parte do mundo, mas nunca vi
coisa semelhante a esta.
207
5.3. Os portugueses e os guinéus: semelhanças e diferenças
Conforme aponta Anthony Disney, Dinis Dias fez o primeiro avistamento europeu
registrado de negros africanos em seu próprio pais. O fato ocorreu , em 1444, próximo ao
cabo verde e foi relato, posteriormente, por Zurara , na Crônica da Guiné. Sobre esse
contato entre portugueses e africanos, Disney afirma que teria sido um dos primeiros
momentos etnográficos da História da Expansão Marítima Europeia . Para o autor esse
encontro consistiu em um:
392
DISNEY, Anthony. P. 296.
208
Estes negros , tanto machos quanto femeas, vinham ver-me
como ma maravilha, e parecia-lhes coisa extraordinária ver um cristão em
tal lugar, nunca dantes visto; e não menos se espantavam do meu trajo e da
minha brancura.393
São muitas as formas encontradas pelos autores desses relatos para expressar a
diferença entre eles e os guinéus. Contudo, observamos, a partir do método de análise de
conteúdo, a ocorrência de certos elementos nas descrições de Zurara, Cadamosto e Diogo
Gomes Sintra. Tratam-se de tópicos discursivos que se repetem nos três relatos, muito
embora tenham sido escritos em contextos e com objetivos distintos. Assim, notamos que
ao tratar do “outro”, os autores recorrem a determinados que, de forma geral, relacionam-
se com as suas próprias vivências e experiências em sociedade. Na verdade, refletem
valores de uma sociedade, denotando assim pontos de identificação dos autores face à
sociedade e ao grupo social a que pertencem. Dessa forma, elencamos os seguintes
tópicos: Características físicas, Características morais, vestimentas, religião, alimentação,
moradia e rei. Diante disso, nos dedicaremos, doravante à análise de tabelas relativas aos
tópicos supracitados, organizamos as tabelas por autores e temas.
Tabela 8
393
CADAMOSTO, Luis de. Viagens ..., op. Cit, p.141.
209
Tabela 9
Tabela 10
210
Tabela 11
Zurara 97 Lagos (...) outros tão negros como etiópios, tão desafeiçoados, assim
(Portugal) nas caras como nos corpos, que quase parecia, aos homens que
os esguardavam, que viam as imagens do hemisfério mais
baixo.
Tabela 12
Cadamosto 147 Pós golfo de Estes são grandes idolatras, não tem nenhuma
Cabo Verde lei e soa homens muito cruéis.
Tabela 13
211
Tabela 14
Tabela 15
212
corrompido, sendo, portanto, um mundo malformado e degradado.394 Essa região do
mundo representava o alter orbis, isto é, “um lugar inacessível, onde tudo corria ao
contrário, já que era a parte de baixo da terra”395. Nesse sentido, observa-se a associação
que Zurara (tabela 9) faz em relação as feições físicas dos negros e o Hemisfério Sul.
“ as suas gentes são todas negras” 396 ou “esta gente desta terra verde é toda
negra”397 são formas que Diogo Gomes Sintra e Zurara a característica que marca de
imediato a diferença entre os portugueses e guinéus: a cor. A cor negra, no imaginário
medieval está relacionada a elementos negativos, ao mau, ao diabólico, inclusive diversas
representações do demônio o apresentam na cor negro 398. Nesse sentido, a própria
etimologia da palavra “etíope” que significa “face queimada”, que foi por muito tempo
utilizada para designar parte da África e no início da expansão marítima ainda aparece
bastante para se referir aos habitantes da região subsaariana, já denota um sentido
pejorativo.
A ideia da “África etíope” como região imprópria e avessa à existência humana
relacionava-se com a teoria das zonas climáticas que segundo, Jacques Le Goff foi a teoria
geográfica mais difundida e estável na Idade Média. Desse modo, a ideia de uma
“Etiópia”, que se localizava na Zona tórrida gerou consequências na formulação do
imaginário sobre esta região, levando a criação de teorias psicológicas e morais de caráter
negativo que apontam para a insalubridade da região, em razão do calor intenso. 399 Assim,
O clima debilitante não permitia o desenvolvimento saudável, engendrando a
incapacidade de agir e pensar com clareza, bem como, de comandar. Essa África negra,
era, nesse imaginário universo dos monstros e dos pigmeus. 400
De acordo com a Historiadora portuguesa Maria José Goulão, “A visão do Outro
transmitida pela literatura da época é globalizante, não contemplando o retrato, já que o
encontro se realiza no plano coletivo e nunca no plano individual.” 401 Portanto, nesse
394
KAPPLER, Claude. Monstros, demônios e encantamentos..., op Cit, pp32-33.
395
Ibidem, p.43.
396
SINTRA, Pedro de, op Cit, p.65.
397
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, op. Cit, p. 97.
398
ROCHA, Teresa Renata. As criaturas do mal na Hagiografia Domenicana- Uma pedagogia do século
XIII. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de pós-graduação em História da Universidade
Federal Fluminense. Niterói, 2011, p.151.
399
LE GOFF, Jacques. Prefácio. IN: MEDEIROS, François. L’Occindent e L’Afrique ( s XIIIe – XV siècle)
Paris: Editions Karthala, 1985, p.08.
400
Ibidem, p.08.
GOULÃO, Maria José – O negro e a negritude na arte portuguesa no século XVI. IN: A
401
Esquema 5- O outro de acordo com as descrições físicas e morais das fontes do século XV
214
B- Vestimentas
Tabela 16
Zurara Terra dos Negros As vestiduras que trazem são almexias de coiro, e assim bragas
dele; porém alguns honrados têm alquicés; e alguns especiais,
que quase são sobre todos os outros, trazem vestidos bons, assim
como os outros Mouros, e bons cavalos e boas selas, e boas
estrebeiras; mas estes mui poucos. As mulheres vestem alquicés,
que são assim como mantos, com os quais somente cobrem os
rostos, e por ali entendem que acabam de cobrir toda sua
vergonha, Ca os corpos trazem todos nus. Por certo diz aquele
que ajuntou esta história, que esta é uma das cousas por que
homem pode conhecer sua grande bestialidade.
Tabela 17
Autor Página Topônimo Vestimentas masculinas
Cadamosto 117 Rio Senegal Quanto ao vestir desta gente quase todos andam nus
continuamente salvo que trazem um coiro de cabra
posto em forma de Braga com que cobrem as
vergonhas; mas os senhores e aqueles que podem
alguma coisa vestem camisas de pano de algodão, pois
naquela terra produz-se algodão e com ele fiam as suas
mulheres e fazem panos de algodão com a largura de um
palmo, pois não sabem fazê-los mais largos por não
saberem fazer os pentes para os tecer : e assim cosem
quatro ou cinco daqueles panos de algodão uns aos
outros, quando querem fazer algum trabalho amplo.
Quanto à forma as suas camisas são compridas até meia
coxa e largas; e têm as mangas largas e curtas até meio
braço. Também usam umas bragas do tal pano de
algodão, com que cingem o corpo pelo meio; e vão até
ao meio do pé; e são sobremodo largas, pois delas v que
na boca mediam 30 a 35 palmos e delas ainda 40:
quando estão cingidas pelo meio do corpo ficam
fraudadas por causa da as largura e comprimento e vem
a formar uma bolsa à frente e outra atrás as quais
chegam ao chão e quase trazem cauda; e é mais
extravagante coisa do mundo, porque andam com as
saias largas e trazem cauda.
215
Zurara descreve as formas de vestimentas de homens e mulheres da “Terra dos
Negros” ( Tabela 16) destacando, na forma de vestir dos negros, a distinção social que
delas advém. Em geral, usam almexias, que são pedaços de couro que cobrem somente
as genitálias, os que estariam em uma posição social superior trazem consigo alquicés,
que são uma espécie de túnica, enquanto aqueles que estariam hierarquicamente acima
dos demais usam vestidos, comparando, por fim, a hierarquia das vestimentas àquelas
observadas entre os mouros.
Para os europeus medievais a vestimenta possuía um significado muito grande, pois
designa cada categoria social. “Não se vestir de acordo com a sua condição social
equivalia ou a cometer o pecado maior da ambição ou a degradar-se”402. Ao destacar a
vestimenta do “outro” os autores buscam entender como as categorias sociais são
definidas nessas sociedades.
Quanto aos modos de vestir das mulheres, o autor destaca que a única parte coberta é
o rosto, entendido pelos guinéus como a região do corpo feminino onde reside a vergonha.
O que traz grande espanto ao cronista que resume tal fato como um traço da bestialidade
dos guinéus, revelando, portanto um juízo de valor, que se relaciona com as características
morais anteriormente analisadas. Infere-se assim que os nativos são, então, vistos como
inferiores aos portugueses.
Em seu relato, Zurara nos oferece poucos dados acerca das etnias encontradas nas
terras da Guiné. Assim, não encontramos em sua obra um olhar mais aprofundado sobre
os diversos povos das terras além do Cabo Branco. Na verdade, nenhum dos três autores
aqui analisados fazem isso com clareza.
O fato de Zurara não se aprofundar na descrição dos povos encontrados na guiné se
justifica pelas condições de produção da obra e pelas intenções do autor ao escrevê-la.
Acerca da localização desses povos, Zurara, ao contrário de Cadamosto e Sintra, refere-
se sempre como “Terra dos negros” ou “Guiné”, para designar as regiões abaixo do Cabo
branco.
Cadamosto (Tabela 17) revela uma preocupação muito maior com a posição
geográfica das terras relatadas, bem como, um olhar mais apurado acerca dos costumes
nativos.Assim como em Zurara, podemos observar na descrição de Cadamosto a tentativa
de diferenciar os modos de vestir de homens e de mulheres, bem como de se fazer a
402
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2005, p.359.
216
distinção entre grupos sociais a partir da vestimenta masculina. Pela sua própria natureza,
o relato de Cadamosto é bem mais rico em detalhes. O autor preocupa-se mensurar o
tamanho das roupas, a quantidade de tecido usada para confeccioná-las, as técnicas de
costura empregadas. Além disso, aponta os elementos comuns a homens e mulheres,
como, por exemplo, a não utilização de calçados e o uso de tranças. Cadamosto apresenta
um verdadeiro “relato etnográfico,” lançando sua atenção sobre diversos aspectos das
práticas e dos costumes nativos.
A partir de uma análise mais profunda da obra de Cadamosto, é possível
identificar com maior clareza as diferenças culturais dos povos nativos da Guiné, bem
como as práticas sociais e estruturas políticas distintas que refletem inclusive no
tratamento que os portugueses irão desferir a eles. Podemos destacar a partir da
demonstração dos modos de representar o “outro” em Zurara e em Cadamosto que ambos
utilizaram como parâmetros para descrever os guinéus critérios de distinção de gênero e
de grupos sociais, com base na descrição das vestimentas dos nativos.
C- Alimentação
Tabela 18
217
Tabela 19
Acerca da alimentação Zurara (Tabela 18) e Cadamosto (Tabela 19) fazem relatos
bem distintos. Enquanto Zurara parece inventariar o tipo de alimentos que se pode
encontrar na “Terra dos Negros”, Cadamosto mostrou-se bastante atento aos hábitos
alimentares do rei da “Terra de Senega”. Note-se que, assim como as vestimentas, a
alimentação também era cercada de simbolismos, constituindo-se como um fator de
distinção social para os europeus, de modo que nesse universos, a corpulência era um
sinal de privilégio403 . Segundo Le Goff, a aparência era valorizada na Baixa Idade Média,
sendo esta uma civilização que valorizaca os símbolos e os gestos, e nessa perspectiva, o
corpo é a primeira aparência.404Assim, de acordo com o autor:
403
LE GOFF, Jacques. Il corpo nel medioevo.Roma: Editori Laterza, 2005, p.121.
404
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval.. , op. Cit, p. 355.
405
Ibidem, p. 357.
218
É uma constatação óbvia que pessoas em uma categoria social privilegiada têm
mais alimentos a sua disposição. Desse modo, espera-se que o “rei” tenha ao seu redor
uma vasta oferta de alimento, nesse sentido, o rei do relato de Cadamosto impressiona o
comerciante com a sua fartura alimentar.
D- Moradia
Tabela 20
Cadamosto 129 Terra de Nesta sua aldeia onde estive que se chama a
Budomel sua casa, pode haver de 45 a 50 casas de
palha, todas chegadas umas às outras,
formando um redondo, e cercadas em toda
a volta, de sebes e estacadas de troncos
grossos, deixando só uma abertura ou duas,
por onde se entra: e cada uma destas casas
é cercada por um quintal, também com
sebes.
Tabela 21
219
Tabela 22
406
Ibidem, p. 360.
220
E- Religião
Tabela 23
Cadamosto 119 Rio Senegal A fé destes primeiros negros é maometana; mas nem
por isso estão bem firmes na fé ( como estes mouros
brancos), particularmente a gente miúda. Os senhores
porém seguem aquela crença, porque tem
continuamente consigo alguns pretos azenegues ou
algum árabe ( pois igualmente por lá aparecem um ou
outro). E estes dão algum ensino, aos sobreditos
senhores, da sobredita fé maometana, dizendo-lhes
que seria para eles enorme vergonha serem senhores e
viverem sem qualquer lei de Deus e fazerem como
fazem os seus povos e gente miúda, que vivem sem lei.
Deste modo , por não terem tido nunca outra
convivência senão com os sobreditos azenegues ou
com algum árabe, foram levados os sobreditos
senhores para a fé maometana. Mas desde que tem tido
conversação e familiaridade com os cristãos, creem
ainda menos porque agradando-lhes muito os nossos
costumes e vendo ainda as nossas riquezas e o nosso
engenho em todas as coisas em relação a eles dizem
que o deus que nos deu tantas boas coisas mostra sinais
de grande amor para conosco, o que não podia ser se
não nos tivesse dado boas leis; mas que não obstante,
também a sua lei de Deus, e que nela se pode salvar
tanto como nós na nossa, etc.
221
Tabela 24
222
A religiosidade é outro fator que aparece nos três autores. Os negros eram
entendidos como idólatras ou “maometanos”, mas no relato de Cadamosto ( Tabela 23) o
autor sugere que estes não são tão firmes nesta fé. Ao contrário, desde que tiveram contato
com os cristãos mostraram bastante interesse no cristianismo, considerando que, de
acordo com o autor, se agradaram muito dos costumes dos cristãos, além de terem ficado
impressionados, com as suas riquezas. Quando se refere a “Budomel” (Tabela 24), o autor
afirma que o rei “tinha grande prazer em ouvir falar coisas da nossa fé”407. De modo que
para Cadamosto a única razão de Budomel seguir na fé maometana era o medo de perder
a sua posição política. O autor demonstra em seus relatos ( Tabelas 23 e 24) a militância
em nome do cristianismo e certa determinação em apresentar a sua fé, que ele considera
única e verdadeira, traço característicos do universalismo cristão tardo medieval, aos
povos com quem ele entra em contato.
Também nos chama a atenção a forma como o autor menospreza a religiosidade
alheia, afirmando que os nativos não são “firmes” na fé maometana ou que, como no caso
de Budomel, sua conversão seria fácil , não fossem fatores de outra ordem que não a
política. A religião figura no relato do autor também como um traço de distinção não só
entre os cristãos e os guinéus , mas também entre os cristãos e os mouros, uma vez que
estes, considerados infiéis e inimigos da cristandade, não têm a sua fé negada ou
subestimada. Por outro lado, os guinéus são considerados de fácil conversão, denotando
aqui um tratamento diferenciado em relação a estes povos quando comparados ao
tratamento dado aos povos da região magrebina.
F- Organização Política
Tabela 25
Autor Página Topônimo Rei
407
Cadamosto, op cit, p. 131.
223
Tabela 26
Cadamosto 129 Terra de P. 129 (...) Neste lugar Budomel tinha nove mulheres
Budomel ( e outras muitas mulheres ele tem que estão
repartidas por vários lugares). Cada uma dessas
mulheres tinha 5 ou 6 raparigas negras que a servem.
E é licito ao senhor dormir tanto com as servas das
mulheres quanto coma s mulheres; nem as ditas
mulheres têm isso por injúria por ser assim o
costume. Deste modo, o sobredito Budomel, muda
cada noite de repasto. E são estes negros e negras
muito luxuriosos, porque uma das coisas principais
que instantaneamente me pedia Budomel era estando
informado de que nós Cristãos sabíamos fazer muitas
coisas, se , porventura não poderia ensinar-lhe a
maneira dele poder contentar muitas mulheres; pois
me pagaria por qualquer preço. Pelo que podeis
avaliar quanto se esforçam por luxuriar , o que faz
com o que os seus senhores sejam muito ciumentos
de suas mulheres; e assim não consentem que
ninguém entrem em onde estão suas mulheres; e nos
seus próprios filhos não se fiam
Tabela 27
224
conforme as pessoas e a sua dignidade; isto é,
no primeiro quintal estão família e gente
miúda; mais além estão outros de mais
categoria; e assim de grau em grau até a porta
do senhor Budomel. Pouquíssimos homens
ousam chegar à sua porta, a não ser os cristãos,
pois os deixam andar livremente; e os
Azenegues ( que são os que ensinam a lei de
Maomé). A estas duas nações é dada mais
liberdade do que aos negros seus naturais e a
quem quer que seja.
225
altivez e reserva que ainda que Deus estivesse
na Terra não creio que mais honra nem
reverência se lhe pudesse fazer do que aquela
que fazem estes negros aos seus senhores.
Tudo isso me parece do grande temor e medo
que tem deles, porque à mais pequena falta
que cometam , o senhor manda prender mulher
e filhos, e manda-os vender como escravos:
pelo que nestas duas coisas parece-me que tem
modos de senhor e mostram estado, isto é, no
séquito de gente, em deixar-se ver poucas
vezes e em serem muito reverenciados por
seus súditos
Tabela 28
Cadamosto 120 Rio Senegal E deveis saber que este rei não é nada semelhante ao
nosso rei da cristandade: porque o rei é senhor de
gente selvagem e muito pobre ; e não há no país
nenhum lugar nem cidade murada, senão aldeias e
casas de palha ( que eles não sabem fazer casas de
paredes porque não tem cal e tem grande falta de
pedras). (...) o modo de vida deste rei é o seguinte:
não tem rendimento certo, além daquele que lhe dão
os senhores deste país para estarem de bem como ele;
os quais presentes são de cavalos que lá muito
apreciados, por deles haver falta, arreios de cavalo e
algum gado, isto é vacas e cabras, e alguns camelos e
coisas semelhantes a estas. Este rei vive também com
outros roubos que faz e tem sempre muitos escravos
negros que manda pilhar não só no país como em
outros países vizinhos. Destes escravos ele se serve
de muitos modos; fá-los principalmente trabalhar no
cultivo de certas terras e propriedades a ele
destinadas. Muitos deles vendem-se aos mercadores
azenegues que lá aparecem com cavalos e azenegues
( e vende m também aos cristãos desde que os ditos
cristãos começaram a mercadejar na terra dos negros.
226
Tabela 29
Diogo Gomes Sinta 77 Quioquia Disseram que o rei era borneli e que toda
a terra dos negros, pela parte direita do
rio estava sobre o seu domínio e a ele
sujeita e que ele habitava na cidade de
Quioquia
408
JODELET, Denise. Représentations Sociales: phénomènes, concept et théorie. In MOSCOVICI, S.
Psychologie sociale. Paris: Presses Universitaires de France, 1984.P.39.
227
podemos dizer que todas as vezes que nos deparamos com algo novo buscamos interpretá-
lo com base naquilo que já conhecemos.
Os relatos de Cadamosto, Zurara e Diogo Gomes Sintra constituem fontes riquíssimas
para o estudo da expansão portuguesa no século XV. Note-se que estas fontes se cruzam
em muitos momentos da narrativa. Os três autores descrevem, ao longo de suas obras, o
processo de colonização nas ilhas atlânticas e sua incorporação às práticas comerciais
portuguesas. O mesmo acontece com os relatos acerca da penetração na Guiné.
Observamos quanto a isso uma preocupação em descrever as correntes as marítimas, o
tipo de embarcação adequado para cada trecho
Ao utilizarmos uma fonte como a Crônica da Guiné que traz uma série de histórias
de viajantes e suas impressões sobre o outro, necessitamos buscar recursos metodológicos
que ultrapassam os limites da ciência histórica. A alteridade presente no olhar de europeus
tardo-medievais, nos aproxima de uma etnografia histórica, tratando aqui da descrição
que homens de uma determina época fazem daqueles que lhes são externos.
Na crônica de Zurara muitas são as passagens em que viajantes portugueses, em geral
cavaleiros, descrevem a exuberância da natureza, a qual parece chamar mais a atenção do
que o povo que habita a região. A descrição das pessoas preocupa-se em apontar as
diferenças físicas e de que forma estas maravilham os viajantes, mas pouco se fala acerca
das estruturas políticas e sociais observadas no local, que parecem ser ignoradas pelos
estrangeiros que vem os nativos apenas como presas a serem tomadas.
No relato de viagem de Cadamosto, observamos descrições mais detalhadas acerca
dos costumes e das relações de poder em diferentes partes da Guiné o que revela com
maior clareza que os portugueses estabeleciam hierarquias entre os reinos africanos e que
mantinham relações com aqueles que mais vantagens lhe oferecessem. No mesmo
sentido, encontra-se o relato de Diogo Gomes Sinta, que oferece muitas informações
acerca das riquezas e possibilidades comerciais encontrada em cada região, bem como
dos povos com os quais as relações comerciais foram estabelecidas.
Tomando por base a relação entre espaço e alteridade, considera-se que o outro
no imaginário medieval estava diretamente relacionado ao espaço.409Esse espaço, que se
constitui não só no campo geográfico, mas também no social, sofre significativas
modificações com o início das grandes navegações, alargando-se consideravelmente e na
mesma medida ocorrem alterações em suas formas de representação. Tal alargamento se
409
ZUMTHHOR, Paul. La medida del mundo. Madrid: Catedra, 1994, p.249.
228
dá tanto de maneira concreta quanto abstrata, de modo que ele pode ser observado no
imaginário do período. Dessa forma, a constatação de que determinados dados
geográficos não eram reais, no sentido de sua concretude, não desconsiderou, por
exemplo, o imaginário sobre seres fantásticos e criaturas monstruosas, que supostamente
habitavam terras longínquas, ocorrendo assim uma ampliação das fronteiras desse
imaginário e, por conseguinte, uma atualização do mesmo.
O estabelecimento da alteridade, a partir da delimitação do outro, espacial, social
ou moralmente, possibilita a estruturação do “e” e do “nós”. Nesse sentido, observou-se
que o contato com outros indivíduos e outros espaços serviram para fomentar uma
identidade europeia, baseada na afirmação e exaltação dos elementos políticos e
religiosos do ocidente e na negação do “outro” e de tudo que destoasse desse universo.
Muito embora esses “outros” tenham passado a se relacionar com o mundo europeu a
partir do século XV, fosse pelas práticas comercias ou pelas conversões religiosas, as
fronteiras simbólicas que os separavam o “nós” estava bastante consolidada. Considera-
se, por fim, a afirmativa de Paul Zumthor de que “toda sociedade experimenta a
necessidade vital de se opor a algum outro para afirmar o seu ser”410
410
Ibidem, p.249.
229
CONCLUSÃO
230
CONCLUSÃO
231
relação aos demais povos pode ser observada nos discursos produzidos pelos
conquistadores em relação aos dominados na África, na Ásia e, por fim, na América.
Desse modo, sustentamos e demonstramos a hipótese de que o contato com o outro
contribuiu para fomentar uma identidade europeia e, nessa perspectiva, as representações
do outro, quer seja o espaço ou os habitantes, foram elementos que atuaram como
constitutivos do “ eu” e do “nós”, de modo que a apreensão do externo e de tudo aquilo
que lhe é estranho refere-se, também, ao entendimento de si.
Para tanto, utilizamos diversas abordagens e conceitos da Nova História Cultural.
Observa-se que o surgimento da África como problema para os historiadores é
relativamente recente. Como dissemos, a historiografia atual tem cada mais trabalhado
questões referentes ao continente africano e sua diversidade. Nesse sentido, destacam-se
as mudanças que a Nova História Cultural trouxe em termos de teoria e metodologia, bem
como a ampliação do rol de fontes a serem objetos de pesquisa. Acerca da importância
de tal corrente historiografia, o historiador britânico Peter Burque, aponta para a
pertinência da incorporação do que ele chama de “conceito amplo de cultura” nas
pesquisas históricas.
Nessa perspectiva, destacam-se os estudos do antropólogo norte americano
Clifford Geertz, os estudos de Marshall Sahlins sua contribuição para o desenvolvimento
da antropologia histórica e, mais recentemente, a noção de cultura como “invenção” do
antropólogo Roy Wagner. Desse modo, a noção de cultura, no sentido amplo, serviu como
ponto de partida para pensarmos determinadas questões caras a este trabalho, como as
noções de representações sociais, identidades e alteridade.
Discutimos aqui a relação entre os conceitos de representações, representações
sociais e ideologia, considerando a sua importância paras as ciências humanas, de forma
geral, e a História, especificamente. No que concerne à relação de tais conceitos com as
problemáticas da tese, demonstramos como as representações sociais fornecem subsídios
para a apreensão do outro e de si próprio no bojo de uma determinada sociedade,
relacionando-se assim às noções de identidade e alteridade.
A partir do levantamento de diversos tipos de fontes que tratavam da África no
século XV, mostramos ser possível a utilização de textos literários, crônicas e cartas
náuticas, ou seja, fontes com natureza tão distintas, para o estudo das formas de
representação da Guiné na Baixa Idade Média.
Retomando à questão conceitual, discutimos e analisamos a noção de espaço e as
formas como ele fora apreendido e representado no período medieval, demonstrando
232
como o espaço, entendido não só como elemento físico, mas principalmente como
elemento sociocultural, é essencial para a cultura de uma determinada sociedade e para a
formação e consolidação de identidades.
Nesse sentido, as fontes cartográficas aqui utilizadas serviram para exemplificar
como se dá a apreensão do espaço através de representações e de como estas
representações estão imbuídas de um caráter ideológico, referente à sociedade em que
foram concebidas. O trabalho cartográfico está intimamente ligado ao domínio, ainda que
simbólico do espaço e também é capaz de produzir um discurso sobre este. Assim,
podemos afirmar que os mapas nunca estão desprovidos de um discurso ideológico.
Considerou-se também a noção de espaço vivido tanto para a geografia crítica
quanto para a geografia cultural e a aplicação de tal noção nos trabalhos de história
cultural. A partir desse referencial, o espaço é entendido como uma construção elaborada
a partir das relações e práticas sociais. Tal perspectiva mostrou-se bastante a fim com este
trabalho, visto que analisamos a construção de um novo espaço a partir da relação entre
os europeus e os africanos, bem como dos europeus com a própria África, em seus
aspectos geofísicos e da percepção desse espaço também como um elemento de
alteridade.
Encerrar um trabalho é sempre o momento de se fazer novas reflexões. Assim,
assinala-se para a necessidade de se buscar outros tipos de fonte, como as fontes
arqueológicas e a tradição oral. Reconhece-se, por fim, que esta tese apresentou somente
alguns caminhos de interpretação para o tema aqui proposto. Todavia, esperamos ter
contribuído de alguma maneira para os estudos da região da Guiné, no período pré-
colonial, e para os estudo dos primeiros contatos entre europeus e africanos, bem como
para a compreensão das formas de apreender o espaço na Baixa Idade Média e das
relações de alteridade e identidade.
Entendemos que, embora este trabalho esteja circunscrito em um determinado
período histórico, no caso a transição da Idade Média para a Modernidade, questões
referentes à Identidade e Alteridade são atemporais. Nesse sentido, atenta-se para a
importância de se discutir e entender tais questões neste início do século XXI, momento
no qual assistimos a emergência de ideias perigosas até então julgadas mortas ou
adormecidas e que já podem ser consideradas uma ameaça a médio prazo, sobretudo, a
partir do fechamento paulatino das fronteiras de um mundo que até então se dizia
“globalizado”.
233
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ZINK, Michel. Literaturas. In: LE GOFF, Jacques; SCHIMITT, Jean Claude. Dicionário
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250
APÊNDICE
251
TABELAS
252
TABELA I: QUADRO COMPARATIVO DOS MAPAS PORTUGUESES DO
SÉCULO XV
253
ocupa o lado norte do
mapa, o qual possui 711
mm x 948 mm de
dimensão. Seu sistema
de construção conta com
uma rosa dos ventos
central e dezesseis
periféricas; é
considerada de transição
254
ANTOLOGIA DE FONTES
255
Fonte: ANTT., Chancelaria de D. Afonso V, liv. 19, fl. 19, texto que se
reproduz; ibi, liv. 20, fl. 38, inserta na conformação de 1 de Junho de 1439 e
da qual, já em 20 de Maio do mesmo ano, fora fornecida cópia ao mesmo
infante, por lhe ter danificado o original a ponto de não conseguir ler; ibi, liv.
20, fl. 39.
Ano: 1433
Topônimo: Portugal
256
Fonte: ANTT. Chancelaria de D. Duarte, liv. 1, fl. 18, texto que se reproduz;
em leitura nova, Livro dos Mestrados, fl. 155, ali datada de 26 de Outubro de
1434; Ordem de Cristo, cód. 235, parte 3, fl. 6v; BNL, Fundo Geral, cóg 737,
fl. 11, em ambas estas cópias de meados do século XVI, também com a data
retrocitada.
Ano: 1433
Topônimo: Portugal
Dom Eduarte, pella graça de Deus rrey de Portugal e do Algarue e senhor de Cepta.
A quantos esta carta virem fazemos que nos, por serujço de Deus e honrra da
hordem de Christos e por o jffante don Anrrique meu jrmãao, regedor e gouervandor
da dicta hordem, que nollo rrequereo, outorgamos e damos aa dicta hordem, deste dua
pera todo sempre, todo ho sprotual das nossas jlhas de Madeira e do Porto Sancto e da
jlha Deserta, que agora nouamente o dicto iffante, per nossa autoridade, pobra, assy e
pella guisa que o há em Tomar, rreseruando que fique pera nos e pera a coroados nossos
regnos o foro e o dizimo de todo o pescado que se nas dictas jlhas matar, que queremos
que nos paguem. E esso medes fique pera nos e pera todolos nossos sucessores todollos
outros djreitos reasses. E, por fermjdõoe desto, lhe mandamos dar esta nossa carta
signada per nos e selada do nosso seeello do chumbo.
E pedimos ao Padre Sancto que praza aa sua santidade outorgar e confirmar aa
dicta hordem de Christons as dictas jlhas pella guisa suso diicta.
Dada em Sintra, xxbj dias de setembro. Elrrey o mandou. Lopo Afonso a fez.
Era de mjl xxxiij annos.
257
Fonte: ANTT., Chancelaria de D. Duarte, liv. 1, fl. 18, texto que reproduz;
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 19, fl. 19 v; ibi, liv. 37, fls. 19 e 52 v.; Chancelaria
de D. João II, liv. 22, fl. 27 v.; Chancelaria de D. Manuel, liv. 37, fl. 40 v.;
Chancelaria de D.João III, liv. 31, fl. 81; ibi, liv. 38, fl. 105; ibi, liv. 48, fl. 35; ibi, liv.
55, fl. 184. Em leitura nova; Místicos, liv. 3. Fl. 216; Ilhas, fls 21, 55v e 74 v.; Ordem
de Cristo, cód. 235, parte 3, fl. 6, aqui datada de 16 de Setembro.
Palavras-chave: D. Duarte, Infante D. Henrique, Navegações
Ano: 1433
Topônimo: Portugal
258
Dante em Sintra, xxbj dias de setembro. Elrrey ho mandou, Afonso Cotrim a
fez. Era de mjl iiijº xxxiij annos.
Ano: 1455
Este cabo Verde é a mais alta terra que há em toda esta costa , isto é, 400 milhas para
além do sobredito Cabo Verde até 900 milhas, para aquém do dito Cabo verde toda a
costa é praia rasa”
259
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição geográfica, Rio Senegal
Ano: 1455
O qual rio é largo( grande na boca mais de uma milha); e forma-se ainda uma outra
boca no dito rio, um pouco mais adiante, formando-se uma ilha ao meio; e vai dar no
mar por duas horas. E o dito rio, em cada uma das duas bocas, forma bancos e parcéis
, que estão à entrada do dito rio distante das duas bocas pelo mar dentro, talvez uma
milha .e faço notar que no dito lugar a água enche e vaza cada seis horas, isto é, faz
maré cheia e baixa ; e entra a cheia pelo rio dentro de 60 milhas pela informação que
tive de marinheiros cristãos portugueses que estiveram dentro deste rio.
(...) Toda esta costa e região, atrás declarada, é terra toda baixa até este rio; e deste
rio para diante uns grandes espaços é baixa também.
260
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição geográfica, Rio Senegal
Ano: 1455
P. 122. “Nesta terra é sempre muito calor e quanto mais para o sul, muito mais é o
calor.E comparativamente por janeiro não faz mais frio nesta região do que em Abril
nestas nossas partes.”
261
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição geográfica
Ano: 1455
Comentários: Cadamosto narra sua chegada à Terra de Budomel pelo rio Senegal.
P. 124 “passei o sobredito rio Senega com a minha caravela; e navegando cheguei ao
pais do budomel, o qual fica distante do dito rio cerca de oitenta milhas por costa; a
qual costa desde o dito rio até a terra de Bunomel é toda Baixa, sem montes.”
262
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição geográfica, pouso e portos
Ano: 1455
Topônimo:
“(...) e assim resolvi lançar ferro num lugar da costa do seu pais, que se chama a
palma de Budomel, que é pouso e não porto”
263
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição geográfica, toponímia
Ano: 1455
P. 145. “Este cabo verde chama-se cabo Verde, porque os primeiros que o acharam
(que foram os portugueses) talvez um ano antes de eu ir a estas partes, o acharam
inteiramente verde pelas grandes arvores que continuamente estão verdes por todo o
ano: e por esta razão lhe puseram o nome cabo verde; assim como o cabo branco”
264
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição geográfica
Ano: 1455
P.150- “chegados à boca deste grande rio, o qual na primeira entrada mostra não ter
menos de 6 a 8 milhas, julgámos este tão belo e grande rio ser o do pais do Gambra que
tanto desejávamos encontrar”
265
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição geofísica, clima
Ano: 1455
P.156- “este país é sempre quente o ano todo. Verdade que há uma mudança a que eles
chamam inverno: porque desde julho até fins de outubro chove continuamente quase
todos os dias, por volta do meio-dia, deste modo: levantam-se umas nuvens
continuamente de sobre a terra, entre nordeste e levante, ou entre levante e sudeste, com
grandes trovões, relâmpagos ou raios; e assim chove uma grande quantidade de água,
e por este tempo os negros começam a semear. (...) e informo-vos de que eu soube que,
neste país, para o interior, por causa do grande calor do ar, a água que chove é quente.”
266
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição geográfica
Ano: 1455
“O seu país está cheio de mato e é abundante em lagos e águas; e , por isso , se tem
muito seguro, porque lá não se pode entrar, senão por passos estreitos, e por isso não
temem nenhum rei nem senhor das redondezas”
267
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica,rei
Ano: 1455
P. 128- “Segue o modo de viver do rei: tem umas casas no campo destinadas à habitação
do senhor e de suas mulheres, e de toda a sua família porque não estão fixados nunca
em um lugar.”
268
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, moradia
Ano: 1455
P. 129 “nesta sua aldeia onde estive que se chama a sua casa, pode haver de 45 a 50
casas de palha, todas chegadas umas às outras, formando um redondo, e cercadas em
toda a volta, de sebes e estacadas de troncos grossos, deixando só uma abertura ou
duas, por onde se entra: e cada uma destas casas é cercada por um quintal, também
com sebes.”
269
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica,rei( relações matrimoniais e costumes sexuais)
Ano: 1455
P. 129 “(...) Neste lugar Budomel tinha nove mulheres ( e outras muitas mulheres ele
tem que estão repartidas por vários lugares). Cada uma dessas mulheres tinha 5 ou 6
raparigas negras que a servem. E é licito ao senhor dormir tanto com as servas das
mulheres quanto coma s mulheres; nem as ditas mulheres têm isso por injúria por ser
assim o costume. Deste modo, o sobredito Budomel, muda cada noite de repasto. E são
estes negros e negras muito luxuriosos, porque uma das coisas principais que
instantaneamente me pedia Budomel era estando informado de que nós Cristãos
sabíamos fazer muitas coisas, se , porventura não poderia ensinar-lhe a maneira dele
poder contentar muitas mulheres; pois me pagaria por qualquer preço. Pelo que podeis
avaliar quanto se esforçam por luxuriar , o que faz com o que os seus senhores sejam
muito ciumentos de suas mulheres; e assim não consentem que ninguém entrem em onde
estão suas mulheres; e nos seus próprios filhos não se fiam”
270
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica,rei
Ano: 1455
P. 129- “este Budomel tem sempre 200 negros em casa, pelo menos, os quais,
continuamente o seguem e vão com ele: verdade seja que uns vão e outros vêm; não
falando nestes, nunca faltava gente em quantidade, pois o vinham procurar de diversos
lugares. Há chegar em casa deste Budomel, há sete quintais, fechados e grandes, que
dão uns para os outros. No meio de cada um destes quintais há uma grande árvore, para
que os que esperam nesses tais quintais possam sempre acolher-se à sombra. Por estes
quintais estão de grau em grau, conforme as pessoas e a sua dignidade; isto é, no
primeiro quintal estão família e gente miúda; mais além estão outros de mais categoria;
e assim de grau em grau até a porta do senhor Budomel. Pouquíssimos homens ousam
chegar à sua porta, a não ser os cristãos, pois os deixam andar livremente; e os
Azenegues( que são os que ensinam a lei de Maomé). A estas duas nações é dada mais
liberdade do que aos negros seus naturais e a quem quer que seja.”
P. 130- “este Budomel mostrava seu estado deste modo: não se deixava ver a não ser
uma hora pela manhã e, igualmente, pela tarde, um outro bocado; estando, durante este
tempo, no seu primeiro quintal, junto da porta de casa , onde não entravam senão
homens de importância e, principalmente, os estrangeiros. Usam também de grandes
cerimônias. Quando estes tais senhores dão audiência a alguém : porque quando vinha
perante este Budomel alguém para lhe falar , por principal que ele fosse ou por muito
271
seu parente, à entrada da porta do quintal, haviam de lançar-se de joelhos com ambas
as pernas e com a cabeça bem para baixo e com ambas as mãos até a lançar areia para
tras das costas e para cima da cabeça, estando inteiramente nu. Desta maneira sauda
o seu senhor , pois ninguém se atrevia a vir a ele para çhe falar que não se pusesse nu,
apenas com as ceroulas de couro que trazem para cobrir as vergonhas. Depois
aproximam-se mais dele não se levantando nunca , mas rojando-se com os joelhos por
terra e as pernas. E quando ele está junto do senhor, dois passos, detém-se falando e
expondo o seu caso. Lançando sempre areia para as costas, de cabeça baixa em sinal
de muito grande humildade. O senhor aparenta vê-lo muito pouco e não deixa de falar
com este ou com aquele; depois quando o vassalo já muito falou, com arrogante frieza,
dá-lhe uma resposta em duas palavras. Nisto reserva tanta altivez e reserva que ainda
que Deus estivesse na Terra não creio que mais honra nem reverência se lhe pudesse
fazer do que aquela que fazem estes negros aos seus senhores. Tudo isso me parece do
grande temor e medo que tem deles, porque à mais pequena falta que cometam , o senhor
manda prender mulher e filhos, e manda-os vender como escravos: pelo que nestas duas
coisas parece-me que tem modos de senhor e mostram estado, isto é, no séquito de gente,
em deixar-se ver poucas vezes e em serem muito reverenciados por seus súditos”
272
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica,rei - religião
Ano: 1455
P. 131 “E chamava os seus azeneguesou árabes , que eles têm continuamente em sua
cada, quase como nós aos nossos padres, pois são os que lhes ensinam as leis rezava o
dito Budomel de pé: dava duas palavras e dizia algumas palavras em voz baixa, e olhava
para o céu. Depois lançava-se ao comprido por terra e depois beijava a terra; e o mesmo
faziam todos os outros com ele. Depois levantava-se e fazia o mesmo, por espaço de 10
a 20 vezes. Gastava a rezar o tempo de um quarto de hora. Depois quando acabava
perguntava o que é que me parecia. é porque ele tinha grande prazer em ouvir falar
coisas da nossa fé, dizia-me que lhe dissesse alguma coisa da minha fé : de modo que
eu lhe dizia que a sua fé era falsa e que aquele que lhe ensinava semelhante coisa eram
ignorantes da verdade; e, presentes aqueles seus mouros reprovava a lei de Maomé,
como má e falsa, por muitas razões; e a nossa ser verdadeira e santa: de modo que eu
fazia irritar aqueles mouros, mestres da sua lei. O senhor ria disso e dizia que a nossa
fé ele tinha por boa, pois não havia deixar de ser visto que Deus nos havia dado tantas
coisas boas e ricas, e tanto engenho e saber , igualmente nos devia ter dado boa lei; e
que ele achava que , com boas razões, os seus negros se pudessem salvar do que nós
Cristãos; porque Deus era senhor justo; e a nos neste mundo, nos havia dado muitos
bens de diversas coisas e a seus negros quase nada, em relação a nós; portanto,
havendo-nos Deus dado o paraíso , a nós, para cá, eles deveriam tê-lo para lá. Nestas
semelhantes coisas mostravam boas razões e bom entendimento de homem. E muito lhe
273
agradava o que lhe dizia respeito aos cristãos: e eu estou certo de que muito facilmente
se podia converter a fé cristã, se o medo de perder o posto não se lhe apresentasse; pois
o sobrinho mo disse; ele mesmo tinha prazer em que eu lhe falasse da nossa lei; e dizia-
me que era boa coisa ouvir a palavra de Deus.”
274
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, rei- alimentação
Ano: 1455
P. 132 “(...) ele procede como eu disse acima como faz o rei de Senega, a quem todas a
suas mulheres mandam por dia, para comer, umas quantas iguarias, cada uma. Este
estilo têm-no todos os senhores negros e homens de importância, pois as suas mulheres
lhes suportam as despesas. Comem no chão como as alimárias, sem regra nenhuma.
Com estes senhores negros só comem os tais mouros negros que lhes ensinam a lei, e
um ou dois negros dos principais. Todas as outras pessoas de menor condição comem,
aos 10 e 12 em conjunto: põem uma alcofa com comida no meio, e comem muito pouco
de cada vez; mas comem frequentemente, quatro e cinco vezes ao dia.”
P. 133 “Neste reino de senega dos negros, nem dai por diante, em nenhuma terra se
produz trigo, nem centeio, nem cevada, nem espeita, nem vinho. E isto porque o pais é
bastante quente e não chove por nove meses do ano, isto é, do mês de outubro até o fim
de junho não chove: e por causa deste grande calor não pode nascer trigo ai. Mas a sua
comida é do milho de diversas espécies, isto é, miúdo e grados e mais belos que há no
mundo. O feijão é tão grado como uma destas compridas avelas das nossas, todo
lavrado, isto é, salpicado com pontos de diversas cores que parecem pintos; e são
lindíssimos à vista. A fava é larga chata e grande, e é vermelha, de uma cor viva; e
também ai as há brancas muito boas. Esta gente semeia em julho, e fazem as colheitas
em setembro. Durante este tempo que chove lavram a terra , semeiam e colhem. Tudo
275
isso em três meses. São péssimos lavradores, e homens que não se querem afadigar a
semear, a não ser o bastante para comerem o ano todo e pouco cuidam em ter para
vender. A sua maneira de lavrar consiste nisso: lavram num campo, quatro ou cinco
deles, tendo cada um na mão uma ferramentas parecidas com os nossos alviões
pequenos; e cada um deles vai lançando a terra para frente, fazendo ao contrário do
que fazem os nossos: os nossos, quando sacham, puxam a terra para si com o sacho;
eles lançam-na para frente com o alvião , de modo que não removem a terra mais de
quatro dedos este é o seu arar. E por ser a terra fecunda, produz tudo aquilo que eles
semeiam. A sua bebida é agua, leite ou vinho de palma: este vinho é um licor que se
destila de uma arvore com a forma da arvore que da as tâmaras, porém não é a mesma.
Destas arvores tem muitas .quase todo ano estas arvores dão este licor, a que eles
chamam mignol, por este modo ferem a arvore no pé, em dois ou três lugares; e ela
deita uma agua parda da cor de soro de leite. Põem por debaixo as cabaças e recolheres
este licor; mas não rende muita quantidade, pois uma arvore num dia e numa noite, não
renderá mais do que duas cabaças deste mignol. É muito bom o licor e embriaga como
o vinho a quem não o tempera com agua. No primeiro dia em que se recolhe é mais doce
do que o mais doce vinho do mundo, mas de dia para dia vai perdendo o doce e ficando
acre; e é melhor de beber no terceiro e quarto dia, do que no primeiro, porque é doce e
pica um pouco.”
P135- “(...) neste país usa-se uma espécie de óleo nas comidas, o qual tem três
propriedades: cheiro, sabor e cor. No cheiro é parecido com as nossas violetas bravas
; no sabor é como nosso, pois que tempera como o nosso azeite. Na cor, puxa a comida
como o melhor açafrão do mundo, mas é de muito mais bela cor que a do açafrão .e há
entre eles uma espécie de arvore que produz feijões encarnados com olho negro, em
grandes quantidades, mas soa pequenos feijões estes que nascem na arvore.”
276
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, instrumentos musicais
Ano: 1455
P. 144 “Nesse país não se usam instrumentos de tocar de qualquer espécie, a não ser
de duas espécies: uns são atabaques; outros são a modo de uma viola, destas que nós
tocamos com um arco, mas não tem senão duas cordas; tocam-se com os dedos: o que
é uma coisa simples e grosseira. Outros instrumentos não usam.”
277
Fonte: ANTT. Chancelaria de D. Duarte, liv. 1, fl. 18, texto que se reproduz;
em leitura nova, Livro dos Mestrados, fl. 155, ali datada de 26 de Outubro de
1434; Ordem de Cristo, cód. 235, parte 3, fl. 6v; BNL, Fundo Geral, cóg 737,
fl. 11, em ambas estas cópias de meados do século XVI, também com a data
retrocitada.
Ano: 1433
Topônimo:
278
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, armamentos
Ano: 1455
Comentários: o autor registra a reação dos nativos diante dos armamentos de sua
embarcação.
P142-143 “de muitas coisas de que se admiram esses negros das nossas, como seja,
entre outras, o artificio das bestas, e muito mais das bombardas: porque alguns negros
vieram ao navio e os fiz ver disparar uma Bombarda , com o estrondo do qual tiveram
grande medo.”
279
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, costumes
Ano: 1455
P.142 “As mulheres desse país são muito prazenteiras e alegres, e cantam e bailam de
bom grado, especialmente as novas; mas não bailam a não ser a noite, à luz da lua. O
seu bailar é muito diferente do nosso.”
280
P. 141 “Nestes mercados compreendi muito bem que estes são gente muito pobre, pelas
coisas que traziam ao mercado para vender. Primeiramente era o algodão, mas não
fiado, em pouca quantidade; não muitos panos de algodão; legumes milho, óleo;
gamelas de pau, esteiras de palma e todas as outras coisas de que se servem para a sua
vida. E estas coisas levavam tanto os homens quanto as mulheres; e vendem os homens
armas das suas, e alguns também trazem algum ouro para vender, mas de tudo pouca
coisa. Nada se vende por dinheiro, porque não há moeda nenhuma nem usam senão
trocar coisa por coisa ou duas coisas por uma coisa e todo o seu mercado se faz por
troca. Estes negros , tanto machos quanto femeas, vinham ver-me como ma maravilha,
e parecia-lhes coisa extraordinária ver um cristão em tal lugar, nunca dantes visto; e
não menos se espantavam do meu trajo e da minha brancura”
281
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, povos
Ano: 1455
P.147 “Esta Costa, passado este pequeno golfo do Cabo Verde é habitada por dois
povos: um, é chamado de Barbacins; o outro dos Sereros, também negros, mas não
sujeitos ao rei de Senega. Estes não tem rei, nem senhor algum próprio;as honram mais
um do que o outro, segundo a qualidade e condição dos homens, que entre eles há. Não
querem consentir senhor nenhum entre eles, para que lhes não sejam tirados as
mulheres e os filhos e vendidos por escravos, como fazem os senhores e, em todos os
lugares dos negros”
282
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica
Ano: 1455
P. 147 “Estes são grandes idolatras, não tem nenhuma lei e soa homens muito cruéis.”
283
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, negros do rio gambia
Ano: 1455
P.153 “(...) os quais nos parecem excelentes homens de corpo e muito pretos, todos
vestidos com camisa de algodão, brancas; e na cabeça, tinham uns chapelinhos
brancos, quase à maneira de estes alemães, salvo que, de cada lado tinham uma espécie
de asa branca, com uma pena no meio do dito chapelinho, como querendo significar
sendo homens de guerra.”
284
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, costumes
Ano: 1455
P. 121 “(...) As mulheres desta região são muito mais asseadas de corpo, pois se lavam
completamente, quatro e cinco vezes ao dia; e assim também os homens; mas no comer
são porcalhões e sem nenhuma educação. São pessoas muito simples e rudes nas coisas
que não tem prática; mas naquela em que estão práticos, sçao tanto quanto qualquer
de nós. São homens de muitas palavras e nunca abam de falar; e são todos sempre
mentirosos e enganadores, em extremo; por outro lado são caritativos porque dão de
comer e de beber a qualquer estrangeiro que de passagem chegue a sua casa por uma
refeição ou por uma noite sem qualquer remuneração.”
P. 123 “(...) e deveis saber que estes negros são os maiores nadadores do mundo, pelas
provas que eu vi alguns deles darem, nadando naquelas partes.”
285
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica,guerra e armamentos
Ano: 1455
P.121-123 “estes senhores negros fazem guerra muitas vezes uns aos outros e muitas
vezes aos seus vizinhos: e as guerras fazem a pé, porque tem muito poucos cavalos, pois
não podem lá viver devido ao grande calor. De aras de seu vestir não usam porque nas
as têm ainda porque com o grande calor não as poderiam trazer. Só tem adagas
redondas e largas e para atacar usam de muitas azagaias e uns dardos muito velozes
no atirar dos quais são grandes mestres e tem estes dardos um palmo de ferro lavrado
com barbelas miúdas postas muito sutilmente por diversos modos; e onde entra ao atira-
la s fora tudo se rasga com aquelas barbelas de modo que são muito más no ferir.
Também usam umas agomiasmoriscas a modo de meia espada turca, isto é, torta como
um arco; são feitas de ferro, porém sem aço porque no reino de Gambra dos negros,
que está mais além obtém ferro com que fabricam todas estas armas, mas não obtém
aço ou então se o há onde existe ferro não o conhecem ou não tem habilidades para o
fazer. Usam também uma outra arma metida em haste, quase a modo de partasana das
nossas: outras armas não têm. As suas guerras são muito mortíferas porque estão
desprovidos de armaduras e os golpes nãos os despedem em vão: maram-se como feras.
São muito fogosos e preferem deixar-se matar a fugir. Não se espantam quando veem o
companheiro morto diante de si como faria qualquer de nós. Isto é devido a terem o
costume de ir as batalhas desprovidos de armaduras; e por isso estão tão acostumados
286
que ainda que vejam morrer os seus companheiros diante dos seus olhos não dão tanta
importância. Nistomostramferozarrogâncianãotemendo a morte”
287
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, tecnologias
Ano: 1455
P.123 “Não tem navios nem nunca os viram desde que o mundo é emundo que se saiba
a não ser desde que tiveram conhecimento dos portugueses. Verdade seja que os que
vivem à volta deste rio tem uns barcos à maneira dos Dalmácia, isto é, almadias feitas
de um só lenho as quais levam três ou quatro homens no máximo; e com estas vão as
vezes pescar”
288
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, vestimentas femininas
Ano: 1455
P. 121 “As suas mulheres andam todas descobertas da cintura para cima, tanto
cassadas como solteiras; e da cintura para baixo trazem um lençolzinho dos tais panos
de algodão, cingido pelo meio, o qual chega a meia perna e todos eles andam sempre
descalços, tanto homem quanto mulheres. Na cabeça nunca trazem nada, e dos cabelos
fazem uma trança bem como umas postas e atadas por diversos modos; e tanto as trazem
os homens como as mulheres: mas por natureza as mulheres não tem cabelo de
comprimento superior a um palmo.”
289
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica (práticas políticas)
Ano: 1455
“(...) Sabei que o rei deste reino de Senega, no meu tempo se chamava Zucolino e tinha
22 anos, aproximadamente. Este reino não se transmite por hereditariedade. Mas neste
país há diversos senhores, os quais tem inveja das suas dignidades, entre si. E os que
podem mais põem-se de acordo, 2 ou 3 dos seus senhores fazem um rei ao seu modo,
contando que seja de parentesco nobre, pela sua geração. O qual rei dura o quanto
apraz aos ditos senhores, conforme o tratamento que dele recebem os ditos senhores;
pois muitas vezes o rei faz-se tão poderoso que se defende deles, o que se justifica com
o posto não ser estável. Está sempre com temor e na dúvida de ser morto ou expulso. E
deveis saber que este rei não é nada semelhante ao nosso rei da cristandade: porque o
rei é senhor de gente selvagem e muito pobre; e não há no país nenhum lugar nem
cidade murada, senão aldeias e casas de palha (que eles não sabem fazer casas de
paredes porque não tem cal e tem grande falta de pedras). (...) o modo de vida deste rei
é o seguinte: não tem rendimento certo, além daquele que lhe dão os senhores deste país
para estarem de bem como ele; os quais presentes são de cavalos que lá muito
apreciados, por deles haver falta, arreios de cavalo e algum gado, isto é vacas e cabras,
e alguns camelos e coisas semelhantes a estas. Este rei vive também com outros roubos
que faz e tem sempre muitos escravos negros que manda pilhar não só no país como em
outros países vizinhos. Destes escravos ele se serve de muitos modos; fá-los
principalmente trabalhar no cultivo de certas terras e propriedades a ele destinadas.
290
Muitos deles vendem-se aos mercadores azenegues que lá aparecem com cavalos e
azenegues( e vende m também aos cristãos desde que os ditos cristãos começaram a
mercadejar na terra dos negros.”
291
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, relações matrimoniais do rei e senhores
Ano: 1455
P.117-118. “A este rei é lícito ter quantas mulheres ele quer, e assim também a todos
os senhores e homens daquela terra. E este rei tem delas sempre mais de 30: porém faz
mais caso de uma do que de outra, conforme as pessoas de quem são descendentes, e
preeminência dos senhores de quem são filhas. E tem estes rei esta maneira de viver
com as sobreditas mulheres: tem certas aldeias e lugares seus ; num desses lugares tem
umas 8 ou 10; outras tantas noutro; e assim de lugar para lugar. Cada uma destas suas
mulheres está separadamente em sua casa e tem cada uma umas tantas raparigas que
a servem; e, outrossim, tem uns tantos de escravos cada uma, os quais cultivam certas
propriedades e terrenos que o dito senhor dá cada uma destas mulheres para que com
os seus rendimentos, se possam manter. Têm além disso, todas elas, certa quantidade
de gado para o seu uso, os quais também tem de ser tratada por esses tais escravos.
Assim, semeiam fazem a colheita e se sustentam. E quando acontece o dito rei ir a
algumas das sobreditas aldeias, não traz após si vitualhas nem outra coisa, pois que
aonde ele chega, aquelas suas mulheres que aí se encontram são obrigadas a fazer os
gastos com ele e com os seus que leva consigo (...)”
P. 119 “Vai dormir umas vezes com uma outras vezes com outra e faz aumentar em
grande número os filhos. E por este modo vivem os outros senhores daquele país.”
292
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, alimentação do rei e sua gente
Ano: 1455
P.118-119 “Procedem assim: todos os dias de manhã cedo,, ao nascer do sol, tem
preparadas 3 ou 4 iguarias, cada uma com diversas coisas, quais de carne, quais de
peise e outros manjares mouriscos, conforme seus costumes. Mandam-nas apresentar,
pelos escravos, na casa da despensa do dito senhor; de modo que numa hora, acham-
se prontas 40 a 50 iguarias; e quando chega em que o senhor quer comer, acha-o sem
qualquer preocupação; e assim toma para si, daquelas coisas o que entende. Os resto
manda dar a sua gente, mas nunca dar de comer a essa gente com fartura, pois sempre
tem fome. Deste modo vai de lugar a lugar e vive sem se preocupar com a sua comida.”
293
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica(religião)
Ano: 1455
P.119 “A fé destes primeiros negros é maometana; mas nem por isso estão bem firmes
na fé ( como estes mouros brancos), particularmente a gente miúda. Os senhores porém
seguem aquela crença, porque tem continuamente consigo alguns pretos azenegues ou
algum árabe ( pois igualmente por lá aparecem um ou outro). E estes dão algum ensino,
aos sobreditos senhores, da sobredita fé maometana, dizendo-lhes que seria para eles
enorme vergonha serem senhores e viverem sem qualquer lei de Deus e fazerem como
fazem os seus povos e gente miúda, que vivem sem lei. Deste modo , por não terem tido
nunca outra convivência senão com os sobreditos azenegues ou com algum árabe, foram
levados os sobreditos senhores para a fé maometana. Mas desde que tem tido
conversação e familiaridade com os cristãos, creem ainda menos porque agradando-
lhes muito os nossos costumes e vendo ainda s nossas riquezas e o nosso engenho em
todas as coisas em relação a eles dizem que o deus que nos deu tantas boas coisas
mostra sinais de grande amor para conosco, o que não podia ser se não nos tivesse dado
boas leis; mas que não obstante, também a sua lei de Deus, e que nela se pode salvar
tanto como nós na nossa, etc.”
294
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave: descrição etnográfica, vestimentas masculinas
Ano: 1455
Comentários: o autor faz uma descrição das vestimentas e do modo como são
produzidas.
“Quanto ao vestir desta gente quase todos andam nus continuamente salvo que trazem
um coiro de cabra posto em forma de Braga com que cobrem as vergonhas; mas os
senhores e aqueles que podem alguma coisa vestem camisas de pano de algodão, pois
naquela terra produz-se algodão e com ele fiam as suas mulheres e fazem panos de
algodão com a largura de um palmo, pois não sabem fazê-los mais largos por não
saberem fazer os pentes para os tecer : e assim cosem quatro ou cinco daqueles panos
de algodão uns aos outros, quando querem fazer algum trabalho amplo. Quanto à
forma as suas camisas são compridas até meia coxa e largas; e têm as mangas largase
curtas até meio braço. Também usam umas bragas do tal pano de algodão, com que
cingem o corpo pelo meio; e vão até ao meio do pé; e são sobremodo largas, pois delas
v que na boca mediam 30 a 35 palmos e delas ainda 40: quando estão cingidas pelo
meio do corpo ficam fraudadas por causa da as largura e comprimento e vem a formar
uma bolsa à frente e outra atrás as quais chegam ao chão e quase trazem cauda; e é
mais extravagante coisa do mundo, porque andam com as saias largas e trazem cauda.”
295
Fonte: Cadamosto, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.
Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.
Palavras-chave:descrição etnográfica
Ano: 1455
P.115-116 “E maravilhosa coisa me aprece, que para cá do rio tidos sejam negríssimos;
e além de muito pretos grandes e gordos, bem constituídos e para lá sejam os sobreditos
Azenegues pardos, enxutos e de pequena estatura e para cá do dito rio toda a região é
parida e seca; para lá, abundante de enormes árvores e de diversas espécies de frutas,
novas para nós por não haver tais frutos em nossa terras. E esta região é muito fértil.”
P.116 “O país destes primeiros negros do reino de Senga é o primeiro reino dos negros
da Baixa Etiópia. A província isto é os povos próximos deste rio de Senega chama-se
Gilofos.”
296
Fonte: ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Descobrimento e Conquista da
Guiné. Lisboa: Publicações Europa-America, 1989.
Palavras-chave: descrição geofísica (marés)
Ano: C 1452
“Ca posto que ali fossem outras vezes, não foram tantas por que de razão devessem
ser culpados muito em seu erro, ou por ventura foi sua causa as águas, que então
eram mortas, por cuja razão acharam em muitos lugares tão baixo, que não podiam
nadar; assim que lhes foi forçado, achando-se em seco, esperarem a ajuda da maré,
a qual não houveram senão já alto dia.”
297
Fonte: ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Descobrimento e Conquista da
Guiné. Lisboa: Publicações Europa-America, 1989.
Palavras-chave: descrição geográfica
Ano: C 1452
Comentários: o autor descreve a partida de Dinis Dias em sua campanha à terra dos
Guinéus.
“O Infante agradecendo-lhe sua boa vontade, fez logo armar uma caravela, na qual
aviou como o dito Dinis Dias pudesse ir cumprir sua boa vontade; o qual partido com
sua campanha, nunca quis amainar, até que passou a terra dos Mouros, e chegou à
terra dos negros, que são chamados Guinéus. E como quer que nós já nomeássemos
algumas vezes em esta história Guiné, por outra terra em que os primeiros foram,
escrevemo-lo assim em comum, mas não porque a terra seja toda uma, Ca grande
diferença têm umas terras das outras, e mui afastadas são, segundo departiremos
adiante, onde acharmos lugar disposto para isso.”
298
Fonte: ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Descobrimento e Conquista da
Guiné. Lisboa: Publicações Europa-America, 1989.
Palavras-chave: geografia e imaginário
Ano: C 1452
“E porque vós outros, honrados senhores e amigos, sabeis mui bem a vontade do
senhor Infante como é por grande de saber parte da terra dos negros, especialmente
do rio Nilo, pelo qual tenho determinado fazer via bem contra aquela terra,
trabalhando quanto puder por chegar a ele, e des i das outras cousas haver mais
certa sabedoria que puder, e em isto ponho todo a esperança do que mais posso
ganhar esta viagem, o qual não será pouco para mim, pois conheço do senhor Infante
que me fará mercê E honra por isso de que posso cobrar maior proveito; e pois navio
tenho bastante, erraria se o contrário fizesse: e porém se algum de vós outros me
quiser fazer companhia, eu estarei a toda vossa ordenança co0m tanto que não seja
fora deste propósito.”
299
que outro navio destas partes chegasse; o que é bem de afirmar segundo as coisas
no começo deste livro tenho ditas acerca da passagem do Cabo Bojador”
300
Fonte: ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Descobrimento e Conquista da
Guiné. Lisboa: Publicações Europa-America, 1989.
Palavras-chave: geografia e imaginário
Ano: C 1452
P. 201 “(...)E porque vejamos ainda tamanho louvor merece nosso príncipe , por
trazer suas dúvidas ante a presença dos que se fossem presentes, mas ainda dos
outros que hão de vir nas idades vindouras. E porque uma das cousas que eles diziam
que eram contrárias para passar em aquelas terras, assim eram as correntes mui
grandes que em elas havia, pelas quais era impossível poder nenhum navio fazer
viagem por aqueles mares; agora tendes claro conhecimento de seu erro primeiro,
pois vistes ir e vir os navios, tão sem perigo como em cada parte dos outros mares.
Diziam ainda, que as terras eram areosas e sem alguma povoação; e bem é que
quanto às areias, não se enganaram de todo, mas todavia não em tamanho grão; e
da povoação bem vistes o contrário, pois que os seus moradores vedes cada dia ante
vossos olhos,como quer suas povoações a maior parte são aldeias e vilas mui poucas.
Enganavam-se ainda na profundeza do mar, Ca tinham em suas cartas que eram
praias tão baixas, que a uma légua de terra não havia mais quer uma braça de água;
o que se achou por contrário, Ca os navios tiveram e tem assaz de altura pra sue
marear.”
301
302
Fonte: SINTRA, Diogo Gomes. O descobrimento Primeiro da Guiné. Lisboa:
Edições Colibri, 2002.
Ano: c 1490
P. 71 “No outro dia tomamaos o caminho do Cabo verde e vimos uma grande
embocadura de um rio que tem três léguas de largura. Pela grandeza imediatamente
conjecturamos que fosse o rio gambia, e assim era.”
303
Fonte: SINTRA, Diogo Gomes. O descobrimento Primeiro da Guiné. Lisboa:
Edições Colibri, 2002.
Palavras-chave: geofísica
Ano: c 1490
304
Fonte: SINTRA, Diogo Gomes. O descobrimento Primeiro da Guiné. Lisboa:
Edições Colibri, 2002.
Ano: c 1490
Topônimo: Quioquia
P. 77 “disseram que o rei era borneli e que toda a terra dos negros, pela parte
direita do rio estava sobre o seu domínio e a ele sujeita e que ele habitava na cidade
de Quioquia.
Disseram também que ele era senhor de todas as minas e que ele tinha diante da
porta de sua residência uma pedra de outro, tal como nasce da terra, ou seja, se ter
passado pelo fogo, de tal tamanho que a custo vinte homens poderiam mover; que o
rei costumava prender seu cavaloa a ela e que mantinha aquela pedra ali não pelo
valor, mas pela dignidade de de um achado de tanta grandeza; que os nobres de sua
corte trazem no narisz e nas orelhas argolas de ouro puro.”
305
Fonte: SINTRA, Diogo Gomes. O descobrimento Primeiro da Guiné. Lisboa:
Edições Colibri, 2002.
Ano: c 1490
Topônimo: Alcuzet
P.79 “(...) fui à sua residência (senhor de alcuzet) onde habitavam muitos negros. As
suas casas são feitas de canas marinhas cobertas de colmo.”
306
Fonte: SINTRA, Diogo Gomes. O descobrimento Primeiro da Guiné. Lisboa:
Edições Colibri, 2002.
Ano: c 1490
307
Fonte: SINTRA, Diogo Gomes. O descobrimento Primeiro da Guiné. Lisboa:
Edições Colibri, 2002.
Ano: C 1490
308
Fonte: SINTRA, Diogo Gomes. O descobrimento Primeiro da Guiné. Lisboa:
Edições Colibri, 2002.
c 1490
Comentários: o autor faz uma descrição sobre as marés e as correntes do Rio Grande.
P. 71 “Tivemos ali grandes correntes de mar. Com a maré vazante, o mar fez grande
rebentação a que chamam de maré então não há ancora que possa agüentar”
309
Catálogo de Mapas
310
Introdução
311
1- Mapas anteriores ao século XV
312
Fig.1
313
Fig.2
314
Fig.3
315
FIG.4
316
Fig.5
317
2- Mapas do século XV
318
2.1- Mapas de cartógrafos Portugueses
319
Fig.6
320
Fig.7
321
Fig.8
322
Fig.9
323
2.2 – Mapas de Cartógrafos Italianos
324
Fig.10
325
Fig.11
326
Fig.12
327
Fig.13
328
Fig.14
329
2.3- Mapas de Cartografos Germânicos
330
Fig.15
331
Fig.16.
332
FIGURA 1
Autor:
Localização atual: Copenhagen, Det Kongelige Bibliotek, ms. NKS 218 4°, fol.
38v
333
FIGURA 2
Data : 1472
Localização atual:
334
FIGURA 3
Data : século XI
335
FIGURA 4
Data : 1375
336
FIGURA 5
337
FIGURA 6
Autor: Anônimo
338
FIGURA 7
Autor: anônimo
Data : c 1472
FIGURA 8
Data : c 1482
339
FIGURA 9
Data : 1492.
FIGURA 10
Data : 1436
340
FIGURA 11
Data: 1459
FIGURA 12
Data:1463
341
FIGURA 13
Data: 1468
FIGURA 14
Data: c 1489.
342
FIGURA 15
Data: 1489
FIGURA 16
Data: 1472
Localização atual:
343
1. Mapas produzidos para a Tese
344
Fig. 17
345
Fig. 18
346
Fig. 19
347
Fig. 20
348
349