ENTRE PRÁXIS E EPISTEMOLOGIA Maria Amélia Franco
ENTRE PRÁXIS E EPISTEMOLOGIA Maria Amélia Franco
ENTRE PRÁXIS E EPISTEMOLOGIA Maria Amélia Franco
CIENTÍFICO DA PEDAGOGIA
Note-se que, em todas as três configurações , a Pedagogia marca-se como uma ação
social de organização da educação de uma sociedade. E isto se faz, quer na organização
da intencionalidade social , distante de um projeto de intervenção na prática, mas ao
contrário um processo que fortalece a reflexão filosófica; quer na estruturação prévia
das condições organizacionais, didáticas e administrativas das salas de aula, no
pressuposto de que a educação se faz pela instrução, conforme a ênfase herbatiana; quer
na proposta de sua ação no esclarecimento , transformação e orientação da práxis
educativa da sociedade, onde desvela as finalidades político/sociais presentes no interior
da práxis e reorienta ações emancipatórias para sua transformação.
· a Pedagogia deve ter como um foco essencial de seu trabalho a práxis educativa,
tanto a que se realiza nas escolas, como a que se realiza nas diversas instâncias da
sociedade. A relação com tais práxis deverá se pautar numa intencionalidade de
humanização, de orientação, de leituras dessa prática, dando condições aos sujeitos da
práxis de se auto-transformarem, ao mesmo tempo em que tais práticas vão se
transformando e adequando-se às novas condições percebidas.
Assim considero que a dimensão da educação que será o objeto da pedagogia como
ciência, será a práxis educativa. A práxis da educação será assim apreendida como a
realidade pedagógica.
Pimenta (1997) afirma que a atividade docente é sempre práxis, uma vez que esta ação
envolve necessariamente:
· o estabelecimento de uma intencionalidade, que dirige e dá sentido à ação;
No limite, pode-se afirmar que a atividade docente que se organiza de modo mecânico,
casual, espontâneo, sem explicitação das intencionalidades, deixa de ser práxis
educativa, deixa de ser atividade docente. Freire (1997: 32)[4] afirma que: “ faz parte da
natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que,
em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor,
porque pesquisador”.
Para a filosofia marxista a práxis é entendida como a relação dialética entre homem e
natureza, na qual o homem ao transformar a natureza com seu trabalho, transforma a si
mesmo. Marx (1994) afirma, na oitava tese sobre Feuerbach, “que toda vida social é
essencialmente prática. Todos os mistérios que dirigem a teoria para o misticismo
encontram sua solução na práxis humana e na compreensão dessa práxis”.
Kosik (1995: 222) afirma que a práxis é a esfera do ser humano e portanto não é uma
atividade prática contraposta à teoria, mas práxis “é determinação da existência como
elaboração da realidade”.
Carr (1996: 101) considera que o característico da práxis é ser uma forma de ação
reflexiva que pode transformar a teoria que a determina, bem como transformar a
prática que a concretiza. Na práxis diz Carr “nem a teoria, nem a prática tem
anterioridade, cada um modifica e revisa continuamente a outra”. O autor diferencia o
conceito de poiesis, como sendo uma forma de saber fazer não reflexivo, do conceito de
práxis, eminentemente uma ação reflexiva e assim afirma que a prática educativa não se
fará inteligível, como forma de poiesis, cuja ação será regida por fins pré-fixados e
governada por regras pré-determinadas. Para o autor, a prática educativa só adquirirá
inteligibilidade “à medida que for regida por critérios éticos imanentes à mesma prática
educativa”, critérios esses que segundo o autor, servem para distinguir uma boa prática
de uma prática indiferente ou má.
A ação educativa verdadeira só pode ser vista como práxis, que integra conforme Kosik,
dois aspectos: o laborativo e o existencial e se manifesta tanto na ação transformadora
do homem, como na formação da subjetividade humana. Quando se deixa de considerar
o lado existencial, a práxis se perde como significado, e permite ser utilizada como
manipulação.
Uma característica importante da práxis, analisada por Vásquez (1968: 240) é o caráter
finalista da práxis, antecipador dos resultados que se quer atingir, e esse mesmo aspecto
é enfatizado por Kosik (1995: 221) ao afirmar que na práxis “a realidade humano-social
se desvenda como o oposto ao ser dado, isto é, como formadora e ao mesmo tempo
forma específica do ser humano”.
Talvez por isto seja que o autor diz que a práxis tanto é objetivação do homem e
domínio da natureza, como realização da liberdade humana. Realce-se portanto que a
práxis permite ao homem conformar suas condições de existência, transcendê-las e
reorganizá-las. “Só a dialética do próprio movimento transforma o futuro...” e essa
dialética carrega a essencialidade do ato educativo: sua característica finalista, conforme
Vásquez, ou a construção “do oposto ao ser dado”.
· a cada práxis educativa corresponde uma teoria implícita que fundamenta essa
práxis; o mesmo ocorrerá com a práxis pedagógica;
Caberá à Pedagogia ser a ciência que transforma o senso comum pedagógico, a arte
intuitiva presente na práxis, em atos científicos, sob a luz de valores educacionais,
garantidos como relevantes socialmente, em uma comunidade social.
A Pedagogia, assim constituída, supera a dualidade inicial entre ser arte ou ciência da
educação, para ser a ciência que transforma a arte da educação, o saber fazer prático
intuitivo, em ação educativa científica, planejada, intencional. Há de se realçar que a
realidade da prática educativa se faz através de ações artesanais, espontâneas, intuitivas,
criativas, que vão se amalgamando, em cada momento de decisão, em ações refletidas,
apoiadas em teorias, organizadas através de críticas, autocríticas, de expectativas de
papel. Neste sentido, no exercício da prática educativa, convivem dimensões artísticas e
científicas, expressas pela dinâmica entre o ser e o fazer; entre o pensar e realizar; entre
o poder e querer realizar.
Digo que a Pedagogia supera a dualidade inicial entre ser arte e ciência, uma vez que,
como ciência, deverá se exercer sem descaracterizar seu objeto de estudo, portanto sem
deixar de considerar, na práxis educativa, a presença concomitante, atávica, imanente da
ciência e da arte. Cabe-lhe cientifizar essa situação, esclarecendo, respeitando,
desvelando, dando oportunidades para transformações, deste universo da prática
educativa.
Neste sentido cabe-lhe o espaço de sua autonomia como ciência, pois para realizar esta
tarefa ela terá que possuir um sistema único, mas não estático, de fundamentos,
metodologias e ações próprias, onde estarão incluídos saberes de diversas ciências.
Disse acima que seria preciso inverter a epistemologia, pois sabe-se que historicamente,
os grandes descaminhos da Pedagogia, ocorreram pela dissociação crescente entre
práxis e teorias e que o caminho procurado de articulação desses pólos, foi sempre a
busca de novas teorias para “consertar” a prática, adequá-la a novos fins ou objetivos,
num processo crescente de ignorar as razões implícitas da prática cotidiana. Observa-se
ainda, que historicamente, a prática educacional esteve sempre tentando aplicar em seu
fazer, teorias de outros, com outros significados, que não conseguiam, no geral, invadi-
las, fecundá-las, persuadi-las à mudança.
Ao invés de aplicar algo novo sobre o real, será retirar o mais antigo que fundamenta o
real, a partir de uma análise crítica de seus fundamentos e de seus resultados, para assim
fazê-lo novo e suporte para outros novos...
Desta forma resgatar-se-á à Pedagogia, não apenas seu espaço de autonomia, mas e
principalmente seu caráter essencial de ciência crítico-reflexiva, que, considero, foi-lhe
tirado quando da emergência da cientificidade moderna, que impregnou o fazer
educativo-pedagógico com estratégias que visavam um “modo correto de fazer as
coisas”, ou mais tarde, na busca de “competência técnica”, distanciando dela sua
possibilidade de se fazer ciência da práxis, para a práxis, através de um processo
contínuo de reflexão transformadora.
Acredito que uma decorrência também importante desta proposta será a de retomar aos
professores, educadores, o caráter da responsabilidade social da prática. Toda prática
carrega uma intencionalidade, uma concepção de homem, de sociedade, de fins, e estes,
precisam estar claros para os que exercem a prática educativo-pedagógica, e também
aos que são a ela submetidos, dentro de uma postura ética, essencial ao ato educativo.
À medida que as teorias implícitas vão sendo decifradas, outros saberes, de diversas
áreas se fazem necessários, emprestando à ciência pedagógica suas contribuições.
Essa proposta que aqui fazemos parece bem referendada por Schmied-Kowarzik (1983)
quando analisa a dialética da experiência da situação educacional como diretriz para a
ação educativa. Ele diz que todo educador precisa reconhecer e dominar
educacionalmente as situações educativas e suas exigências e que capacitar o educador
neste sentido é a tarefa primeira da Pedagogia.
Dominar as situações educativas não significa que o professor deva ser, apenas, treinado
em habilidades e competências, como poderia pressupor a pedagogia científica pós-
herbatiana. Dominar suas exigências não significa submeter-se às exigências das
circunstâncias, mas estar preparado para percebê-las e agir a partir delas. Dominar as
situações educativas significa que o professor precisa estar criticamente avaliando e
transformando os movimentos dialéticos da práxis.
A ciência da educação precisa perceber que é muito pouco oferecer ao educador, teorias
sobre fatos e normas observadas, mas será preciso auxiliar o educador “a perceber as
exigências de cada situação educacional concreta, de tal forma que ele se torne apto a
levá-las a cabo autonomamente”. (Schmied-Kowarzik, 1983: 50)
Cabe a observação de que esta colocação de Litt está distante de um sentido de ciência
aplicada, que busca, de fora, orientar as ações de quem está na prática. Ao contrário, ele
diz que a Pedagogia precisa estabelecer a direção de sentido da práxis educativa, o que
só poderá fazer ao retornar teoricamente ao fenômeno da educação, portanto àquela
práxis, que fundamentaria a teoria.
Por isto referenda que a Pedagogia precisa ser a teoria da práxis para a práxis, “sem que
desta forma se possa alcançar ou antecipar teoricamente a prática da ação educativa.“[8]
Diz Litt que a práxis é inacessível à teoria, considerando que por isto, o educador pode
ser dialeticamente preparado, mas não antecipado, no sentido de “pronto para”.
Outro autor que também se reporta a esta questão da educação do educador para que
este, autonomamente, saiba como conduzir a práxis para fins socialmente relevante é
Schleiermacher, que também afirma que a teoria educacional jamais pode apreender a
práxis. Mas essa negatividade é justamente aquilo que confere poder ao educador: só o
educador pode conduzir e avaliar responsavelmente a práxis, com base nas teorias que
ele tem incorporado. A proposta de Schleiermacher fundamenta a consideração da
Pedagogia como ciência que tem por objeto a práxis educativa, bem como fundamenta
que esta ciência precisará ter preocupações emancipatórias e formativas, pois só o
educador pode conduzir e avaliar sua prática, portanto só a ele cabe transformá-la.
Scheleirmacher diz que a teoria procede a prática, pois, “enquanto a teoria precisa
garantir seu espaço, a práxis já está se realizando”. E quando a teoria consegue esse
espaço é porque foi absorvida por aqueles que “manipulam a práxis, e nesse caso, práxis
e teoria se entendem e a práxis se transformará por si mesma.” [9]
Algumas perspectivas :
A forma como a relação teoria e prática é tratada pela ciência da educação diferencia
diferentes posições epistemológicas. Assim, para Schleiermacher, a teoria deve proceder
à práxis, dar-lhe compreensão, conscientizar seus protagonistas a respeito do sentido
dessa prática. Já para Paulo Freire a teoria está na práxis, tanto quanto aí estando a
transforma, e juntas, podem transformar as condições que a geraram. Se formos analisar
os pressupostos herbatianos veremos que será a teoria que precede a prática e esta
deverá se adequar para dar conta da teoria. Essas três concepções assumem a Pedagogia
como ciência da prática, mas de forma totalmente divergente. Ou seja, a teoria organiza
a prática? Emana da prática? ou conforma a prática?
Procurei com este texto contribuir para os históricos desafios postos aos pedagogos,
quer na organização do campo de conhecimento da Pedagogia; quer na busca de
respostas à construção de práticas educativas que cumpram seu papel social na
humanização dos cidadãos, acrescidos de outros tantos desafios, decorrentes do
progresso cientifico e tecnológico da sociedade contemporânea, que impõe de um lado,
a ampliação de espaços educativos para além dos restritos ao contexto escolar, e de
outro de novas e emancipatórias formas de se organizar o contexto educativo.
Este profissional deverá ser investigador educacional por excelência, pressupondo, para
esse exercício, o caráter dialético e histórico dessas práticas. Assim, o pedagogo será
aquele profissional capaz de mediar teoria pedagógica com práxis educativa e deverá ser
comprometido com a construção de um projeto político voltado à emancipação dos
sujeitos da práxis na busca de novas e significativas relações sociais desejadas pelos
sujeitos.
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[1] Doutora em Educação pela FE-USP. Professora/pesquisadora do Mestrado em
Educação da Universidade Católica de Santos - São Paulo
[2] E, nos três casos, podendo ser considerada no sentido de exclusividade ou de
concomitância. Ou seja, a Pedagogia é a ciência da educação ou uma das ciências da
educação; a ciência da organização da instrução ou uma das ciências que organizam a
instrução e assim, a ciência que orienta a transformação da realidade educativa, ou uma
das ciências que orienta essa transformação.
[3] Educador alemão nascido em 1883, que elaborou estudos sobre a pedagogia
hermenêutico-pragmática.
[4] Em nota de rodapé.
[5] Devido a dubiedade que os termos prática educativa e prática pedagógica
produzem, quero aqui colocar um exemplo desta distinção que estou realizando. Um
professor ao dar uma aula está no exercício de uma prática educativa. A ação de um
pedagogo exercendo uma tarefa de compreensão científica dessa prática do professor
estará exercendo uma prática pedagógica. Essa ação do pedagogo poderá ser realizada
pelo próprio professor, que, fruto de um processo de formação contínua, torna-se
pesquisador, e então esse professor, estará exercendo, concomitantemente, a prática
educativa e pedagógica, e este será, como veremos adiante, um dos objetivos a serem
atingidos pela ciência pedagógica. Realço, no entanto, que essa ação pedagógica do
professor sobre sua própria prática só atingirá seus objetivos, quando realizada
coletivamente, na dialética do social.
[6] Educador alemão nascido em 1883, que elaborou estudos sobre a pedagogia
hermenêutico-pragmática.
[7] Filósofo e pedagogo alemão. Considerado por Wulf (1997) como pedagogo
humanista, contemporâneo de Flitner, pois nasceu em 1880 e morreu em 1960,
professor universitário em Bonn e Leipzig.
[8] Litt, apud Schmied-Kowarzik (1983:53)
[9] Schleiermacher, citado por Schmied-Kowarzik (1983:60)