A Ética Da Crença - W.K. Clifford

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A ÉTICA DA CRENÇA

W. K. CLIFFORD WILLIAM JAMES ALVIN PLANTINGA


Organização de

DESIDÉRIO MURCHO
Tradução de

VÍTOR GUERREIRO
A ÉTICA DA CRENÇA
Copyright
Prefácio
Sobre os autores

1. Fé, epistemologia e virtude


2. A ética da crença
3. A vontade de acreditar
4. Será a crença em Deus apropriadamente básica?
Notas
Origem dos ensaios
Leituras recomendadas
Expressões estrangeiras
Sobre o organizador
Copyright © 2010 Desidério Murcho e Editorial Bizâncio (compilação) Copyright © 2010 Vítor
Guerreiro e Editorial Bizâncio (tradução) Todos os direitos reservados.

Versão de 18 de Junho de 2016

Imagem da capa de Ryan McGuire.

Todos os direitos para a publicação desta obra em Portugal reservados por Editorial Bizâncio.

Largo Luís Chaves, 11-11A, 1600-487 Lisboa Tel.: 21 755 02 28/Fax: 21 752 00 72

E-mail: [email protected]

ISBN: 978-972-53-0458-7

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PREFÁCIO
A religião pode ser estudada de diferentes pontos de vista. Podemos
estudar os seus aspectos psicológicos, históricos, sociológicos ou políticos.
Mas também podemos estudar os problemas filosóficos que suscita. Esta
pequena antologia oferece uma amostra de uma área da filosofia da religião
conhecida por «epistemologia da fé». Nela, estuda-se aspectos
epistemológicos da crença religiosa, ou fé. Difere, por isso, de outras áreas
da filosofia da religião, nomeadamente a área metafísica central, que trata
da discussão dos argumentos a favor e contra a existência de Deus.
Muitos crentes sentem que esta última discussão é algo irrelevante —
pois não é em função de argumentos ou provas que têm fé. Apesar de poder
haver algo de errado nesta posição (confundir o que faz alguém ter fé com a
sua justificação), há também algo que aponta para um aspecto que não é
estudado nessa área mais tradicional da filosofia da religião, mas sim na
epistemologia da fé. Trata-se de saber se haverá justificação para ter fé sem
provas, argumentos ou indícios. Sem muita reflexão, muitos descrentes
responderão que não; muitos crentes responderão, talvez também sem muita
reflexão, que sim. Que razões haverá para cada uma destas posições? É este
o nosso tema.
W. K. Clifford defende a primeira posição, a que se chama
indiciarista: é epistémica ou racionalmente ilegítimo acreditar em algo se
não tivermos provas ou indícios a favor disso. William James e Alvin
Plantinga defendem versões diferentes da segunda posição: é legítimo
acreditar sem provas. No meu texto, apresento várias distinções e ideias que
dão ao leitor instrumentos que lhe permitem entrar na discussão. No final
do volume, apresento também um conjunto de leituras recomendadas.
Este livro nasceu em parte da disciplina de Filosofia da Religião que
leccionei na Universidade Federal de Ouro Preto em 2009. Tive a felicidade
de contar com alunos interessados, inteligentes e imaginativos, que
tornaram as aulas vivas e estimulantes. Agradeço a todos o que me
ensinaram; a minha compreensão deste tema seria bastante diferente sem as
suas objecções e contra-exemplos.
O meu ensaio foi meticulosamente lido e corrigido por vários amigos e
colegas, a quem agradeço calorosamente: Artur Polónio, Aires Almeida,
Sagid Salles Ferreira, Faustino Vaz, Pedro Merlussi e Luiz Helvécio
Marques Segundo. As objecções que me levantaram permitiram melhorar
bastante o texto original, para benefício do leitor.
Finalmente, agradeço a Vítor Guerreiro, pela tradução atempada e
esmerada dos textos, assim como a Alvin Plantinga, que prontamente
acedeu à publicação do seu texto.

Desidério Murcho
Ouro Preto, 28 de Junho de 2010
SOBRE OS AUTORES
William Kingdon Clifford nasceu no dia 4 de Maio de 1845, na Inglaterra,
e morreu na Ilha da Madeira no dia 3 de Março de 1879, com apenas 34
anos. Apesar disso, deixou uma obra matemática considerável, assim como
palestras influentes de divulgação científica, ensino e filosofia. Antecipou
Albert Einstein (1879-1955), explorando as geometrias não-euclidianas.
Das suas ideias filosóficas, as mais influentes hoje são as que estão
presentes no ensaio aqui publicado, apresentando com grande clareza a
posição de que só é legítimo acreditar em algo se tivermos indícios a seu
favor. Mas defendeu também teorias filosóficas na área da filosofia da
mente e da ética. Das suas obras, quase todas publicadas postumamente,
destaca-se Elements of Dynamic, 2 vols. (1878, 1887), Seeing and Thinking
(1879), Lectures and Essays (1879), Mathematical Papers (1882) e The
Common Sense of the Exact Sciences (1885).

William James, irmão do famoso romancista norte-americano Henry James


(1843-1916), nasceu no dia 11 de Janeiro de 1842, na cidade de Nova
Iorque, e morreu no dia 26 de Agosto de 1910, em Chocorua. Ajudou a
fundar e desenvolver a psicologia científica, e foi um dos proponentes do
movimento filosófico norte-americano conhecido como pragmatismo. Os
seus interesses eram simultaneamente científicos e filosóficos; ao mesmo
tempo, era muito sensível às manifestações religiosas, sendo autor do que é
ainda hoje uma importante fonte de informação antropológica sobre a
diversidade religiosa, The Varieties of Religious Experience (1902). Na
esteira de C. S. Peirce (1839-1914), e juntamente com John Dewey (1859-
1952), defendeu o pragmatismo. Deste ponto de vista, a verdade é seja o
que for que funcione na prática. Da sua vasta obra destaca-se The Principles
of Psychology (1890), The Will to Believe and Other Essays in Popular
Philosophy (1897), Pragmatismo: Um Nome Novo para Algumas Formas
Antigas de Pensar (1907; trad. F. Martinho, INCM, 1997), The Meaning of
Truth (1909), Some Problems of Philosophy (1911) e Essays in Radical
Empiricism (1912).

Alvin Plantinga (n. 1932) é um dos mais influentes filósofos actuais, com
trabalhos muitíssimo discutidos nas áreas da metafísica, filosofia da religião
e teoria do conhecimento. Cristão protestante, destacou-se por sustentar as
suas ideias religiosas de um modo não só integrado nas outras perspectivas
metafísicas e epistemológicas que defende, mas também com a mesma
precisão analítica. Das suas obras, destaca-se God and Other Minds (1967;
ed. rev. 1990), The Nature of Necessity (1974), Deus, a Liberdade e o Mal
(1974; trad. D. Murcho, Vida Nova, 2012), Does God Have A Nature?
(1980), Warrant: the Current Debate (1993), Warrant and Proper Function
(1993), Warranted Christian Belief (2000) e Essays in the Metaphysics of
Modality (2003).
1

FÉ, EPISTEMOLOGIA E VIRTUDE


DESIDÉRIO MURCHO

Neste capítulo, começa-se por esclarecer a natureza da filosofia da


religião. De seguida, esclarece-se várias noções centrais de epistemologia,
para então se proceder a uma análise preliminar do conceito de fé.
Finalmente, discute-se o tema central do livro: será legítimo acreditar sem
provas?
O objectivo é triplo. Sem maçar o leitor com referências bibliográficas,
que se encontram no final do volume, oferece-se um conjunto de noções
instrumentais, cujo domínio é importante para poder discutir
proficientemente o tema. Mas o objectivo é também incitar o leitor a
raciocinar e teorizar intensamente; daí que o texto seja, sobretudo,
argumentativo e teorizador, e não descritivo ou histórico. Estes dois
objectivos ajudam a concretizar o terceiro: ajudar o leitor não só a
compreender os textos de Clifford, James e Plantinga, mas também a
discuti-los activamente. Contudo, os textos destes autores têm muito mais a
dizer do que o que é discutido aqui; não se pretende esgotá-los, caso em que
a sua publicação seria redundante, mas antes explorar alguns dos seus
temas.

A possibilidade da filosofia da religião


Alguns problemas centrais da filosofia da religião têm a vantagem,
relativamente a problemas de outras áreas da filosofia, de ser imediatamente
compreensíveis para qualquer pessoa. É fácil compreender em que consiste
o problema da existência de Deus, por exemplo: será que Deus existe? Mas
pensa-se por vezes que nunca iremos saber se Deus existe ou não,
invocando-se até Immanuel Kant (1724–1804) — como se este importante
filósofo tivesse descoberto que não se pode saber se Deus existe ou não,
mais ou menos como um cientista descobre o ADN ou a composição
química da água.
Ao longo da nossa escolaridade e estudo individual habituámo-nos a
compreender resultados científicos, cuja paternidade ou maternidade é
atribuída a este ou àquele cientista ou intelectual. Transferindo esta atitude
para a filosofia, encara-se Kant, ou outro filósofo, não como alguém que
apresentou teorias e argumentos que devemos analisar e discutir de maneira
cuidadosa, mas antes como uma espécie de cientista, que provou qualquer
coisa mais ou menos definitivamente. Assim, se Kant declarou que o
problema da existência de Deus é insusceptível de ser resolvido (pela razão
teórica), isso é imprudentemente considerado um resultado definitivo da
filosofia, um pouco como a descoberta que um cientista pode fazer de
quantas luas tem Júpiter. O resultado desta atitude é afastar a atenção dos
problemas centrais da filosofia da religião, como a existência de Deus.
Fixa-se então a atenção sobre problemas de sociologia da religião, história
das religiões, psicologia e hermenêutica das religiões, etc. — sobre tudo o
que é susceptível de ser estudado empiricamente, recorrendo aos métodos
aprovados pela ciência.
Uma breve reflexão, contudo, mostra a instabilidade teórica desta
posição. Se não se pode saber que Deus existe nem que não existe, como
sabemos que não se pode saber? Será a teoria do conhecimento de Kant
mais plausível do que as posições de outros filósofos, tanto antigos como
contemporâneos, que defendem que podemos saber que Deus existe, ou que
não existe? Poderá parecer-nos que sim, sobretudo se desconhecermos a
bibliografia da área; mas tal como o desconhecimento da lei não iliba o
prevaricador, também o desconhecimento da bibliografia não fundamenta
aquele que a ignora.
Imagine-se alguém que, nomeadamente por ser um cientista, está
habituado a distinguir cuidadosamente as opiniões descuidadas que as
pessoas têm sobre biologia, por exemplo, de opiniões fundamentadas no
conhecimento da bibliografia relevante. Essa mesma pessoa pode
considerar que, no que respeita à filosofia, as coisas são diferentes, sendo
desnecessário conhecer a bibliografia relevante. Só aceitaria a ilegitimidade
de ter opiniões descuidadas, que ignoram a bibliografia, sobre filosofia da
religião, epistemologia ou metafísica, se nessa bibliografia se encontrasse o
género de resultados que se encontra na bibliografia científica.
Contudo, esta posição assenta numa confusão. Mesmo que em filosofia
não tenhamos o género de resultados que temos na ciência, temos outro tipo
de resultados: alternativas teóricas sofisticadas cuidadosamente pensadas,
argumentos rigorosamente explorados, distinções e análises clarificadoras.
Se ignorarmos a bibliografia relevante, estaremos a fazer filosofia outra vez
como os primeiros filósofos faziam, repetindo-lhes os passos — o que é
desavisado porque podemos fazer melhor do que eles se partirmos das suas
investigações.
Não se deve confundir progresso com resultados. O progresso
cognitivo numa área não depende exclusivamente do género de resultados
que há nas ciências. Podemos saber muito, e muito sofisticadamente, sobre
um problema, sem saber resolvê-lo, caso em que temos progresso sem
resultados. Recusar ler a bibliografia filosófica relevante porque esta não
apresenta resultados científicos é recusar o progresso filosófico entretanto
alcançado. Ironicamente, se todos os cientistas se tivessem recusado a
estudar a bibliografia da sua área antes de esta apresentar resultados,
nenhuns resultados teriam sido alcançados.
Há duas maneiras comuns de argumentar a favor da ideia de que o
problema filosófico da existência ou inexistência de Deus é insolúvel, pelo
que deve ser abandonado, e nenhuma é plausível. No primeiro caso,
argumenta-se que só podemos saber o que podemos saber pela experiência;
dado que não podemos saber pela experiência que Deus existe, segue-se
que não podemos saber se Deus existe. No segundo, defende-se que os
argumentos a favor e contra a existência de Deus se anulam mutuamente.
O primeiro argumento enfrenta a seguinte dificuldade: a ideia de que
só podemos conhecer o que podemos conhecer pela experiência não pode
ser conhecida ou sustentada pela experiência. Nenhuma experiência
laboratorial, por exemplo, permite determinar que só podemos conhecer o
que podemos conhecer pela experiência. Para estabelecer esta tese é
necessário argumentar filosoficamente, e uma parte importante dessa
argumentação não será baseada na experiência. Por exemplo, pode-se
argumentar que todo o conhecimento implica justificação, e que a única
justificação disponível é empírica. Mas o próprio princípio de que o
conhecimento implica justificação não é algo que se conheça pela
experiência, nem pela experiência se conhece a ideia de que só há
justificações empíricas — na verdade, a experiência parece até mostrar-nos
o contrário, pois os matemáticos não recorrem à experiência para
estabelecer os seus resultados, que estão entre os mais sólidos resultados de
sempre da empresa cognitiva humana.
Isto significa que a ideia de que só podemos saber o que podemos
saber pela experiência é, se não incoerente, pelo menos teoricamente
instável — pois, se for verdadeira, parece que não podemos saber que é
verdadeira. Uma saída para esta dificuldade é sublinhar, como Kant, a
diferença entre saber ou conhecer algo, por um lado, e pensar algo ou
levantar conjecturas, por outro. Assim, podemos argumentar que a nossa
posição, pelos seus próprios critérios, não pode obviamente ser conhecida,
porque não pode ser conhecida pela experiência; no entanto, pode ser
pensada ou conjecturada. Um problema desta resposta é tornar
aparentemente a posição original arbitrária. Pois se a posição original pode
ser conjecturada com densidade suficiente para em função dela se recusar a
possibilidade de saber se Deus existe ou não, então também podemos
conjecturar que Deus existe (ou que não existe), apesar de reconhecermos
que essa é uma mera conjectura, e não conhecimento propriamente dito.
Quanto ao segundo argumento, enfrenta a seguinte dificuldade: para os
argumentos a favor e contra a existência de Deus se anularem mutuamente
não basta contá-los, ou apresentar objecções a cada um dos argumentos a
favor ou contra a existência de Deus — é preciso mais. Nomeadamente,
duas coisas, pelo menos: primeiro, é preciso mostrar que os argumentos a
favor e contra a existência de Deus são rigorosamente de igual força;
segundo, que quaisquer argumentos concebíveis contra ou a favor da
existência de Deus terão sempre os seus opostos, e de força rigorosamente
igual. Ora, mostrar qualquer uma destas duas coisas é cognitivamente mais
exigente do que argumentar apenas que Deus existe ou que não existe.
Além disso, se todos os argumentos a favor e contra a existência de Deus se
anulam porque não têm base experimental, então também os argumentos a
favor dessa mesma posição se anulam perante os argumentos da posição
rival, pois também aqui não há base experimental.
Além disso, é defensável que ambos os argumentos confundem o
problema da existência de Deus com o problema de saber se Deus existe. A
diferença torna-se clara se pensarmos em extraterrestres. Neste caso, é
óbvio que há uma grande diferença entre saber se existem e existirem
efectivamente ou não. Podemos facilmente imaginar cenários em que os
extraterrestres existem, mas, por não quererem dar-se a conhecer ou porque,
querendo, não podem fazê-lo por se encontrarem demasiado longe de nós,
não podemos saber da sua existência. Mas da impossibilidade de saber que
os extraterrestres existem não se segue que não existem, apesar de ser
verdadeiro que se não existirem extraterrestres se segue que não podemos
saber que existem. No que respeita a Deus, mesmo que tivéssemos razões
para pensar que não podemos saber se existe, isso não constitui em si razões
para pensar nem que Deus não existe nem que a própria existência de Deus
é irrelevante. Mesmo sem saber se Deus existe, podemos querer pensar na
hipótese de que existe ou que não existe, e, caso exista, que género de
características poderá ou não poderá ter.
Ambos os argumentos são, pois, improcedentes, pelo menos sem
reformulações cuidadosas. Mas as ideias subjacentes a estes argumentos
desempenham o seu papel habitual: fazem parar de pensar e de investigar
ainda antes de se dar os primeiros passos.

Metafísica, epistemologia e lógica


A filosofia da religião ocupa-se de problemas metafísicos, epistemológicos
e lógicos suscitados pelas religiões. Esta é uma caracterização
razoavelmente neutra da filosofia da religião, mas para a compreender é
necessário saber o que se entende em filosofia por problemas metafísicos,
epistemológicos e lógicos.
O problema intuitivamente óbvio da existência de Deus, por exemplo,
é metafísico. Um problema filosófico é metafísico quando diz respeito aos
aspectos mais gerais da realidade — e não quando diz respeito ao oculto ou
ao misterioso, como popularmente se pensa, nem quando diz respeito ao
que não pode ser conhecido pela experiência. A ontologia é a subdisciplina
da metafísica que procura estabelecer as categorias mais gerais da
existência. Isto implica discutir se há realmente números, por exemplo, ou
proposições, ou se estas são meras projecções mentais dos seres humanos.
Num certo sentido, todos os problemas são metafísicos, porque todos os
problemas são sobre a realidade (incluindo os problemas sobre o
conhecimento da realidade, pois tal conhecimento é também parte da
realidade). Mas é óbvio que não consideramos que um físico está a fazer
metafísica ao teorizar sobre átomos, por exemplo. A razão é que
consideramos que pertencem à província da metafísica apenas aqueles
problemas fundacionais sobre a realidade que não são susceptíveis de
estudo científico (ou seja, experimental ou matemático).
Enquanto que a metafísica se ocupa de problemas fundacionais sobre a
realidade, a epistemologia ocupa-se de problemas fundacionais sobre o
conhecimento e outros fenómenos cognitivos centrais, como a crença e a fé.
Por isso, chama-se «teoria do conhecimento» à epistemologia.
Usa-se por vezes o termo «epistemologia» para falar exclusivamente
de filosofia da ciência. A generalidade dos autores não faz tal coisa, porque
a filosofia da ciência em si não trata apenas de problemas epistemológicos
suscitados pelas ciências, mas também de problemas lógicos (como o
problema da indução) e metafísicos (como o problema da existência ou
inexistência de entidades científicas postuladas, mas nunca directamente
observadas, como os quarks).
O estudo filosófico do conhecimento, da crença e da fé difere do
estudo científico, psicológico ou sociológico destes mesmos fenómenos.
Em sociologia pode-se perguntar, por exemplo, em que condições sociais
determinadas teorias — científicas, por exemplo — são vistas como
verdadeiras; em psicologia pode-se perguntar que tipo de processamento
cognitivo ocorre quando se raciocina com base na experiência, por oposição
ao que ocorre quando se raciocina matematicamente apenas; mas em
epistemologia pergunta-se, por exemplo, se sabemos o que pensamos saber,
em que condições há conhecimento genuíno, o que é afinal o conhecimento
em si, o que é a fé e se esta é epistemicamente íntegra.
A lógica é uma disciplina transdisciplinar, no sentido em que usa
recursos matemáticos, linguísticos e filosóficos, e é também uma disciplina
que tem aplicações em áreas diversas, como a filosofia, a computação e a
matemática. O objecto central de estudo da lógica é a argumentação e o
raciocínio — não estudando os aspectos psicológicos, retóricos, históricos
ou sociológicos da argumentação e do raciocínio, mas antes os aspectos
relevantes para a cogência da argumentação e do raciocínio. «Central»
porque a lógica acaba por se interessar pela estrutura da linguagem, seja ou
não argumentativa. Por exemplo, em lógica queremos saber se a frase «O
actual rei de França é careca» é uma expressão puramente quantificada,
como «Há cidades bonitas», ou uma expressão denotativa, como «Asdrúbal
é bonito».
Os argumentos e os raciocínios têm simultaneamente aspectos em
comum e aspectos diferentes. Tanto num caso como no outro se trata de
articular informações para delas extrair conclusões; a diferença é que num
argumento se pretende persuadir alguém, ao passo que num raciocínio
estamos apenas a tentar obter conclusões a partir de informações.
Em filosofia da religião estuda-se problemas de carácter lógico
suscitados pelas religiões; mas não se estuda o tipo de problemas que se
estuda na lógica propriamente dita. Um problema de carácter lógico não é
do interesse da própria lógica se depender fortemente de conceitos que
pertencem a outras áreas que não a lógica. É o que acontece no caso do
problema do mal, em filosofia da religião. Este é um problema de carácter
lógico, no sentido em que se trata de saber se as seguintes afirmações são
consistentes entre si:

Deus é omnipotente, omnisciente e sumamente bom.


O mal gratuito existe.

Um conjunto de afirmações é consistente quando todas podem ser


simultaneamente verdadeiras. Aquilo a que em filosofia da religião se
chama «o problema do mal» é, então, o seguinte: a existência de mal
gratuito parece incompatível com um Deus que pode impedir o mal porque
é omnipotente, que sabe que o mal existe e sabe como o impedir porque é
omnisciente, e que quer impedi-lo porque é sumamente bom. Fala-se de mal
gratuito porque alguns males não são gratuitos, mas antes meios para bens
maiores — por exemplo, o mal de sofrer as dores de uma intervenção
cirúrgica é um meio para o bem maior de ficar saudável. Distingue-se
também o mal moral do mal natural. O mal moral resulta da actividade
humana, como é o caso dos roubos ou homicídios; o mal natural não resulta
da actividade humana, como é o caso dos terramotos, das secas ou da maior
parte das doenças. Pelo menos à primeira vista, é mais difícil responder ao
problema do mal natural do que ao problema do mal moral.
O problema do mal tem um carácter lógico, porque é um problema de
consistência entre afirmações e a consistência é um conceito lógico; mas
não é um problema da lógica porque depende crucialmente de conceitos
extralógicos, como o conceito de mal, de Deus, de omnipotência, de
omnisciência e de suma bondade. E cada um destes conceitos levanta
igualmente problemas lógicos que são estudados em filosofia da religião e
não em lógica, tratando-se de saber se, por exemplo, é possível articular
coerentemente os conceitos de omnipotência ou de omnisciência.
As distinções entre problemas metafísicos, epistemológicos e lógicos
não devem ser entendidas como se fossem estanques, claras e inequívocas.
Os problemas lógicos, por exemplo, são metafísicos ou epistémicos,
consoante dizem respeito ao que pode ou não existir na realidade (poderá
existir um ser omnipotente?) ou ao que podemos ou não concluir (será que
da existência do mal gratuito se pode concluir que Deus não existe?); e,
como deveria ser evidente, todos os problemas epistémicos dizem respeito a
um determinado aspecto da realidade: a actividade cognitiva de agentes
capazes de ter estados cognitivos sofisticados. Em todo o caso, é importante
distinguir, ao abordar um dado problema, os seus aspectos metafísicos,
epistemológicos e lógicos.

Epistemologia

Conhecimento, crença e fé são conceitos distintos. Definir rigorosamente o


conhecimento é um dos problemas em aberto da epistemologia, mas
algumas distinções cruciais podem ser dadas como razoavelmente seguras.
Quando se fala de crença em filosofia não se tem em mente apenas a
crença religiosa, caso em que esta última expressão seria um pleonasmo.
Por crença entende-se em filosofia qualquer representação, susceptível de
ser verdadeira ou falsa, que um agente cognitivo faz de seja o que for. As
crenças podem ser muito sofisticadas ou muitíssimo elementares: temos
crenças sobre a natureza dos átomos, mas também sobre a localização dos
nossos joelhos. As opiniões são crenças razoavelmente sofisticadas e
articuladas; crianças de seis anos, por exemplo, podem ter crenças fortes
sobre o que gostam ou não de comer, mas não têm opiniões, políticas ou
outras. O termo crença é usado em filosofia no sentido em que muitos
filósofos gregos usavam o termo δόξα (doxa). Já o termo fé é usado em
filosofia no sentido do termo grego πίστις (pistis) e do termo latino fides.
Podemos distinguir três tipos de conhecimento ou saber (as duas
palavras são usadas como aproximadamente sinónimas):

1. Conhecimento proposicional ou de verdades (saber-que);


2. Conhecimento por contacto; e
3. Saber-fazer.

O conhecimento proposicional é o que temos quando «sabemos que»:


sabemos que Lisboa é uma cidade portuguesa, que Marte é um planeta
deserto e que a água é H2O. O objecto de conhecimento, neste caso, é uma
verdade ou uma proposição. (A noção de proposição será esclarecida de
seguida.)
O conhecimento por contacto é o que temos quando sabemos algo
directamente, ainda que não tenhamos conhecimento de verdades
claramente articuladas sobre isso: conhecemos Londres por contacto
quando visitámos Londres, mas só temos conhecimento por descrição de
Londres (conhecimento proposicional ou de verdades) se nunca visitámos a
cidade, mas sabemos várias coisas sobre Londres. Também temos
conhecimento por contacto de nós mesmos, apesar de muitas vezes ser
bastante difícil articular o que sabemos realmente de nós mesmos: «Quando
olho para mim, não me percebo», escreveu Álvaro de Campos.
Finalmente, o saber-fazer é o que sabemos quando sabemos fazer algo,
como andar de bicicleta, raciocinar cogentemente ou pintar um quadro. O
saber-fazer ou conhecimento como habilidade ou competência não parece
reduzir-se ao conhecimento proposicional ou de verdades e parece
marcadamente distinto deste: podemos saber muitas coisas sobre bicicletas
e não saber andar de bicicleta, e podemos saber andar de bicicleta sabendo
quase nada sobre bicicletas (também é argumentável que se pode saber
muitas coisas sobre filosofia sem saber fazer filosofia).
O conhecimento é factivo, o que provoca por vezes confusões
desnecessárias. Quando se diz que no tempo de Ptolomeu se sabia que a
Terra estava imóvel e agora se sabe que a Terra não está imóvel, vive-se em
plena confusão conceptual. Se a Terra está imóvel, nós hoje não podemos
realmente saber que se move — apenas podemos considerar erradamente
que sabemos isso. E se a Terra sempre se moveu, ninguém pôde algum dia
saber que estava imóvel — apesar de muitas pessoas poderem ter tido essa
crença falsa.
O conceito de factividade não é exclusivamente filosófico: é também
linguístico, dizendo respeito ao tipo de pressuposições associadas a certos
termos e às suas regras de funcionamento. As definições rigorosas de
factividade, infactividade e contrafactividade são as seguintes, sendo x uma
pessoa qualquer, V um verbo e p uma afirmação ou proposição:

Um verbo V é factivo se, e só se, «x V que p» implica p.


Um verbo V é infactivo (ou não factivo) se, e só se, «x V que p» não
implica p.
Um verbo V é contrafactivo se, e só se, «x V que p» implica a negação
de p.

Por exemplo, o verbo ver é factivo porque se o Asdrúbal vê que está a


chover, então está a chover. Claro que o Asdrúbal pode acreditar
erradamente que está a ver chover quando na realidade está a sonhar ou a
ter uma alucinação ou a confundir a água de rega com chuva — mas em
nenhum desses casos está realmente a ver que está a chover. O mesmo
acontece com o conhecimento: Asdrúbal só pode saber que há vida em
Marte se houver vida em Marte; se não houver vida em Marte, pode
acreditar muito firmemente que há vida em Marte, mas não pode saber tal
coisa.
Ao contrário do conhecimento, a crença não é factiva — mas também
não é contrafactiva, pois tanto podemos ter crenças verdadeiras como
falsas. Não são só os verbos que são factivos: advérbios, adjectivos e
quaisquer modificadores ou operadores podem ser ou não factivos. Pseudo-
é contrafactivo porque, se Asdrúbal for um pseudopintor, não é um pintor.
Fingir é aparentemente contrafactivo, mas de facto é apenas infactivo, pois
uma pessoa pode estar a fingir que é rica acreditando que é pobre quando,
sem o saber, lhe saiu ontem a lotaria.
Em suma, ao passo que a crença não é factiva, o conhecimento é
factivo. Insistir na factividade do conhecimento por oposição à
infactividade da crença pode parecer um exagero de exactidão, mas trata-se
apenas de rigor conceptual elementar. Tal como em física a massa não é
esparguete, e a nenhuma pessoa culta ocorre tratar esse conceito como se
fosse tal coisa, também o conceito de conhecimento é factivo e é escusado
insistir que é possível saber que a Terra está imóvel não estando a Terra
imóvel.
Não adianta também argumentar que há um conceito de conhecimento
que não é factivo, diferente do conceito filosófico, sendo esse o conceito
que as pessoas sem formação filosófica adequada usam, pois seria como
argumentar que na verdade há um conceito de massa, diferente do conceito
físico, sendo esse o conceito que as pessoas que não sabem física usam
quando falam de pedras a cair e de carros em movimento. Com certeza que
tanto num caso como no outro esses conceitos populares são usados pelas
pessoas, mas se estamos realmente interessados em estudar o conhecimento
ou a massa, temos de abandonar essas noções, que só produzem confusão.
Todo o conhecimento proposicional — assim como a crença — é uma
relação entre uma pessoa que conhece e uma proposição ou verdade
conhecida. Portanto, quando não havia pessoas ou outros agentes
cognitivos, não podia haver conhecimento proposicional — ainda que
existissem árvores e pedras e planetas e átomos disponíveis para serem
conhecidos caso existissem agentes cognitivos. E é também óbvio que sem
agentes cognitivos não havia conhecimento por contacto nem saber-fazer.
Por proposição entende-se geralmente o que é expresso por uma frase
verdadeira ou falsa. A frase «Está calor» exprime a proposição de que está
calor em Ouro Preto no dia 1 de Março de 2009, mas exprime outra
proposição se for proferida noutro dia ou noutro local. Portanto, a mesma
frase pode exprimir diferentes proposições. E diferentes frases podem
exprimir a mesma proposição: «A neve é branca» e «Snow is white»
exprimem ambas a proposição de que a neve é branca.
As frases são inequivocamente entidades espácio-temporais — um
certo conjunto de sons articulados num dado intervalo de tempo ou um
certo conjunto de traços inscritos num papel. Mas as proposições não são
inequivocamente entidades espácio-temporais. Isto porque as proposições
não se confundem com os pensamentos, no sentido psicológico do termo,
enquanto ocorrências físicas num cérebro. Quando penso que está a chover
e outra pessoa pensa o mesmo, o meu pensamento enquanto ocorrência
física no meu cérebro é diferente do pensamento dela enquanto ocorrência
física no seu cérebro; mas ambos estamos a pensar, num certo sentido, o
mesmo pensamento — ou seja, estamos a pensar na mesma proposição. A
existência de proposições não é pacífica: alguns filósofos consideram que
não existem tais coisas, sendo forçados então a explicar o que há de comum
entre várias frases ou pensamentos que exprimem o mesmo (a via mais
óbvia é insistir que tudo o que há de comum nas várias frases e
pensamentos que dizem que a neve é branca é representarem a neve como
branca).
Que há pelo menos três tipos centrais de conhecimento (proposicional,
por contacto e saber-fazer), que o conhecimento é factivo e a crença não, e
que o conhecimento e a crença proposicionais são relações entre pessoas e
proposições são aspectos elementares dos conceitos de conhecimento e de
crença. Contudo, é muito difícil saber precisamente o que é o
conhecimento, com o mesmo tipo de precisão com que sabemos o que é a
massa em física. O problema da definição de conhecimento é muitíssimo
difícil, precisamente por se tratar de um conceito muito básico. Apesar
disso, é comum aceitar que há três condições necessárias para o
conhecimento proposicional, ainda que não sejam suficientes: para que algo
seja conhecimento proposicional é preciso que seja
1. uma crença,
2. verdadeira
3. e justificada.

Efectivamente, se concebemos a crença como qualquer representação,


susceptível de ser verdadeira ou falsa, que uma pessoa faz da realidade,
certamente que todo o conhecimento proposicional é uma crença, porque é
uma representação da realidade: saber que Londres é uma cidade é uma
representação da realidade. E dado que o conhecimento é factivo, segue-se
que só podemos saber algo se isso for verdadeiro. Esta segunda condição
separa o conhecimento da crença, pois podemos evidentemente ter crenças
falsas. A terceira condição, a justificação, é a mais problemática e, ao
mesmo tempo, a mais frutuosa filosoficamente.
Para haver conhecimento não basta haver crença verdadeira, porque
podemos ter crenças verdadeiras por sorte — e certamente que isso não é
conhecimento. Por exemplo, imagine-se que tenho a crença de que são
16:55 horas porque olhei para o relógio, e imagine-se que realmente são
16:55 horas. Acontece que, sem eu saber, o meu relógio avariou-se e está
parado — mas, por coincidência, olhei para ele quando era 16:55. Não
parece razoável dizer que sei que são 16:55 horas, apesar de ter essa crença
e de isso ser verdadeiro — não parece razoável, porque a minha justificação
para essa crença não é adequada. Não é adequada porque não é fidedigna: a
mesmíssima justificação exactamente produziria uma crença falsa, apenas
meia hora antes ou depois, e não uma crença verdadeira. Assim, apesar de
ser razoável pensar que todo o conhecimento é uma crença verdadeira
justificada, parece razoável que nem toda a crença verdadeira justificada é
conhecimento.
A noção de justificação é crucial para o conhecimento. Para um agente
saber realmente algo tem de ter uma crença verdadeira adequadamente
justificada sobre isso. Saber exactamente o que distingue uma justificação
adequada de uma justificação inadequada é um problema filosófico em
aberto, como tantos outros. Contudo, podemos avançar na compreensão da
justificação sem nos embrenharmos nos seus aspectos mais complexos.
Uma alternativa que poderemos querer evitar é conceber a justificação de
um modo tão forte que implique a verdade, excluindo por isso a
possibilidade de se ter uma justificação adequada a favor de uma crença
falsa.
Um exemplo ilustrativo do que está em causa é o seguinte: Cláudio
Ptolomeu (100–170 d.C.) tinha a crença de que a Terra estava imóvel,
girando todo o restante universo em seu torno. Imagine-se, contudo, que
Ptolomeu não tinha essa crença por ser cognitivamente preguiçoso,
preconceituoso ou hipócrita: formou essa crença cuidadosamente,
analisando dados e fazendo observações. Se isto for verdadeiro, então é
razoável afirmar que Ptolomeu tinha uma justificação adequada para a sua
crença — que, contudo, era falsa. Ptolomeu teve azar epistémico: estava
numa situação epistémica em que não podia saber que a sua crença era falsa
e que os dados em que se apoiava eram enganadores. O mesmo acontece a
um detective, por exemplo, que investiga um crime: pode ficar convencido
de que o criminoso foi o Vilaça, não por preguiça, preconceito ou
hipocrisia, mas por azar epistémico: todas pistas apontam, por azar, para o
Vilaça, mas não foi ele realmente o criminoso.
Assim, seja qual for a nossa noção sofisticada de justificação, é
defensável que tem de permitir casos em que um agente tem justificação
para acreditar em falsidades. Daí que ter uma crença justificada seja
defensavelmente uma condição necessária para saber algo, mas não
suficiente.
Se aceitarmos um conceito de justificação que permita a existência de
crenças falsas justificadas, como parece plausível, é natural passar a dar
atenção aos procedimentos epistémicos e até ao carácter epistémico da
própria pessoa. Repensemos nos exemplos acima de Ptolomeu e do
detective: não estaremos dispostos a dizer que as suas crenças estão
justificadas se as formaram ao acaso, sem darem atenção aos indícios
disponíveis, por preguiça ou preconceito, ou cometendo erros grosseiros de
raciocínio ou de análise dos indícios disponíveis. Na verdade, nesse caso
diremos até que as suas crenças não tinham justificação, mesmo que fossem
verdadeiras. Assim, o conceito de virtude epistémica torna-se rapidamente
central em epistemologia.
Uma perspectiva inicialmente plausível é defender que uma crença
está justificada, ainda que seja falsa, desde que quem tem essa crença tenha
sido epistemicamente virtuoso, ao invés de ser preconceituoso, tendencioso,
preguiçoso ou pura e simplesmente falho de raciocínio. Nesta perspectiva, a
justificação adequada não é primariamente uma propriedade das crenças,
mas antes das atitudes epistémicas das pessoas; só derivadamente a
justificação adequada é uma propriedade das crenças. Esta abordagem deu
origem à chamada epistemologia das virtudes, que ao analisar o problema
central da justificação epistémica põe a ênfase no carácter epistemicamente
virtuoso ou não das pessoas, e não nas propriedades intrínsecas da
justificação.
Uma vantagem desta abordagem é o seu particularismo. Dada a
complexidade da realidade, é argumentável que não é possível estabelecer
condições gerais, aplicáveis a qualquer caso, do que constitui ou não uma
justificação adequada. Aristóteles (384–322 a.C.) considerava que não
poderíamos ter uma teoria moral que nos dissesse, por si, o que é correcto
fazer em cada caso, sendo antes importante esclarecer o que é uma pessoa
virtuosa; a acção correcta é então o que, em cada caso, a pessoa virtuosa
decide fazer. A epistemologia das virtudes pode ser entendida do mesmo
modo: em vez de tentarmos em vão estabelecer condições necessárias e
suficientes do que constitui uma justificação adequada, tentaremos
estabelecer algumas virtudes epistémicas; compete depois à pessoa
epistemicamente virtuosa dizer-nos, em cada caso, que procedimentos
investigativos devemos adoptar, em função do contexto e do que estamos a
tentar descobrir.
A justificação e a racionalidade são conceitos subtilmente
relacionados, apesar de diferentes. Ter uma crença injustificada, à qual nos
apegamos firmemente, rejeitando que seja posta em causa, é ser irracional;
e justificar cuidadosamente as nossas crenças, estando dispostos a revê-las e
a abandoná-las, é parte integrante do que é ser racional.
Finalmente, note-se que qualquer concepção excessivamente restritiva
da justificação é implausível, porque tornaria a maior parte das nossas
crenças injustificadas. Caso se considerasse que só é racional o agente que
souber justificar cientificamente todas as suas crenças, seriam irracionais
quase todas as crenças das pessoas — incluindo as crenças científicas dos
cientistas. Isto porque ninguém dispõe do tempo nem das energias nem das
competências para analisar e testar cientificamente todas as suas crenças. A
maior parte das pessoas tem a crença de que a água é H2O, que Marte é um
planeta desértico ou que ocorreu a segunda guerra mundial, sem ter
justificações adequadas para estas crenças — na maior parte dos casos,
limitamo-nos a aceitar o testemunho de outras pessoas, nomeadamente os
cientistas. Uma maneira errada de acusar os crentes religiosos de
albergarem crenças irracionais é argumentar que são incapazes de justificar
as suas crenças religiosas — pois, nesse caso, todas as pessoas seriam
irracionais porque são incapazes de justificar as suas crenças químicas,
físicas, astronómicas, históricas ou até quotidianas. E se o testemunho dos
cientistas é suficiente para justificar crenças, o testemunho dos livros
sagrados e dos profetas também o será — a menos que encontremos
diferenças relevantes.

Uma análise da fé

O que é exactamente a fé? Mesmo que não possamos responder a esta


pergunta apresentando condições necessárias e suficientes, é iluminante ter
pelo menos uma caracterização razoavelmente precisa da fé. Sem essa
compreensão, a análise da epistemologia da fé poderá ser desadequada —
exigindo-lhe, por exemplo, padrões epistemológicos desadequados à sua
natureza.
Há pelo menos duas concepções cruciais de fé: a objectal e a
fenomenológica. A objectal é a ideia de que a fé é apenas uma crença
fenomenologicamente como as outras, cuja diferença reside exclusivamente
no seu objecto. A crença de que ontem foi Domingo, por exemplo, só
diferiria da fé numa divindade porque a primeira tem por objecto uma
banalidade e a segunda uma divindade. A concepção fenomenológica é a
ideia de que a fé é uma crença diferente das outras não apenas por ter um
objecto diferente, mas também por envolver atitudes diferentes por parte da
pessoa. Segundo esta concepção, a fé numa dada divindade é diferente da
crença de que ontem foi Domingo não apenas por ter uma divindade por
objecto, mas por envolver reverência, testemunho, entrega, mistério e outras
atitudes próprias da fé. Exploremos cada uma destas concepções.
Se a concepção objectal de fé for verdadeira, ter fé em Deus é como ter
outra crença qualquer: esta crença estará justificada ou não do mesmo modo
que qualquer outra crença. Se houver razões para pensar que é irracional
acreditar em algo sem provas, será irracional ter fé em deuses sem provas.
Há dois argumentos centrais contra a concepção objectal de fé. Em
primeiro lugar, não parece fazer jus à experiência da fé que os crentes
religiosos efectivamente têm, e que a concepção fenomenológica destaca. A
fé não parece ser para quem a tem uma crença como qualquer outra, mesmo
que a comparemos com crenças muitíssimo importantes e valiosas, como a
crença de que os nossos filhos nos amam. Além de mais intensa, parece
mais valiosa.
Em resposta a esta objecção podemos argumentar que as diferenças
entre a fé e as outras crenças resultam precisamente da natureza do objecto
da crença. Sendo a fé uma crença que tem por objecto divindades, é natural
que, por isso mesmo, as atitudes associadas à fé sejam adequadamente
diferentes das atitudes associadas a qualquer outro tipo de crença. Mas as
atitudes associadas a uma crença não são constitutivas dessa crença.
A segunda objecção é mais promissora: se a fé fosse como qualquer
outra crença, teria de ser possível uma pessoa ter fé na existência de uma
divindade depois de saber que essa divindade existe. Na verdade, depois de
uma pessoa saber que uma divindade existe, teria de lhe ser impossível não
ter fé na sua existência, tal como é defensavelmente impossível que não
acreditemos que a neve é branca quando sabemos que a neve é branca.
Contudo, parece implausível defender sequer que é possível ter fé que uma
divindade existe depois de sabermos que existe, e mais implausível ainda
defender que saber que uma divindade existe implica ter fé nessa divindade.
Isto porque a fé é o género de atitude que se tem perante o que se
desconhece: antes de uma intervenção cirúrgica delicada, uma pessoa pode
ter fé de que tudo irá correr bem, mas não pode ter fé de que tudo correu
bem depois de tudo ter corrido bem. No entanto, há efectivamente um
sentido em que se pode ter fé no que se conhece — no sentido de se ter
confiança nisso.
Assim, podemos rejeitar a objecção acima distinguindo dois sentidos
de fé: a fé como crença proposicional e a fé como confiança. Há um sentido
no qual não só temos fé em alguém ou algo mesmo sabendo que isso existe
como só é racional ter fé nesse alguém ou algo se acreditarmos que existe.
Por exemplo, uma pessoa só pode ter fé no amor dos seus filhos se acreditar
que tem filhos. Fé, neste contexto, quer dizer confiança: ter fé em alguém
ou em algo é confiar nessa pessoa ou nesse algo. Nesta acepção, todos
temos fé diariamente em muitas coisas — na gravidade, por exemplo, no
poder nutritivo do que comemos e na medicina — porque todos confiamos
nessas coisas. Mas é possível ter fé no sentido da crença proposicional sem
ter fé no sentido da confiança: uma pessoa pode saber que o primeiro-
ministro existe, mas não confiar nele. Na Bíblia afirma-se: «Tu crês que há
um só Deus? Fazes bem. Também o crêem os demónios, mas enchem-se de
terror» (Tiago, 2:19) — o que poderá significar que os demónios acreditam
que Deus existe, mas não confiam nele.
A componente da confiança é sem dúvida uma das mais importantes
da fé. Mas a perspectiva objectal sobre a natureza da fé não se lhe adequa
muito bem — pois, nessa perspectiva, só o objecto da fé a distingue de
outras crenças, e não as atitudes do agente. Ora, a confiança é precisamente
uma atitude particular que podemos ter perante objectos diferentes. E ainda
que objectos diferentes possam alterar a fenomenologia da confiança, é
argumentável que há algo de comum a todas ou, pelo menos, à maioria das
atitudes de confiança; seria esse aspecto fenomenológico da confiança que a
caracterizaria, e não o objecto da confiança. Em conclusão, tentar defender
a perspectiva objectal da fé socorrendo-se de uma acepção de fé que a
aproxima da confiança tem um efeito contrário ao pretendido, pois conduz-
nos à perspectiva fenomenológica da natureza da fé.
Acresce que apesar de a confiança ser uma componente importante da
fé, não é nem poderia ser a única. Parece impossível ou irracional ter
confiança em algo e não acreditar pelo menos na possibilidade de isso
existir. Podemos, evidentemente, ter confiança em algo que não sabemos se
existe, mas gostaríamos que existisse — pois nesse caso a nossa confiança é
condicional. Por exemplo, um náufrago pode não saber se o
desaparecimento do seu veleiro foi registado, mas ter a esperança que o
tenha sido e confiar que, nesse caso, os serviços de emergência náutica
acabarão por salvá-lo. Mas é impossível ou irracional o náufrago confiar
que os serviços de emergência náutica acabarão por salvá-lo se souber que o
desaparecimento do seu veleiro não foi registado. Ou seja, a confiança
parece envolver uma componente proposicional, pelo menos quando não
estamos em contacto com o objecto da confiança e quando não se trata de
um saber-fazer. Logo, ainda que a confiança seja uma componente
importante da fé, é defensável que tem de haver nesta uma componente
proposicional: quem tem fé numa dada divindade tem de acreditar que essa
divindade existe ou, pelo menos, desejar que exista ou ter esperança que
exista, e em qualquer destes casos estamos perante atitudes proposicionais.
Esta é a designação que se dá a qualquer atitude que tenha por objecto uma
proposição: recear que esteja a chover, ter medo de perder o comboio ou ter
a esperança de chegar a horas são atitudes que têm como objecto,
respectivamente, as proposições expressas pelas frases «Está a chover»,
«Vou perder o comboio» e «Chegarei a horas».
É ilusório pensar que a perspectiva objectal da fé fica vindicada se
admitirmos que a fé tem necessariamente uma componente proposicional.
Na verdade, a perspectiva fenomenológica de fé não está comprometida
com a exclusão da componente proposicional da fé: limita-se a sustentar
que não é apenas a diferença de objecto que caracteriza a fé, mas também e
sobretudo a atitude do agente. Nada na concepção fenomenológica de fé a
impede de aceitar que a atitude do agente é uma atitude proposicional.

A concepção fenomenológica de fé
Passemos então à análise da concepção fenomenológica de fé. Deste ponto
de vista, a fé não é como qualquer outra crença, diferindo apenas quanto ao
objecto; ao invés, além da diferença de objecto, envolve aspectos que as
outras crenças não envolvem. Um desses aspectos é a força da convicção: a
fé exibe a força da convicção do conhecimento, apesar de não ser
conhecimento (ou, pelo menos, não é como os outros conhecimentos
comuns, como o conhecimento de que a água é H2O, por exemplo;
exploraremos já de seguida a ideia de que a fé é um tipo especial de
conhecimento). E por não ser conhecimento, a fé é, nesse aspecto, como a
mera crença. Portanto, deste ponto de vista, a fé é como o conhecimento
num aspecto e como a mera crença noutro. Assim, a fé não é apenas uma
crença que tem por objecto um certo tipo de entidades: é uma crença que
tem características próprias, que a distinguem de muitas outras crenças, ou
mesmo de todas.
Comparar a força da convicção da fé com a força da convicção
associada ao conhecimento é esclarecedor. Efectivamente, quando sabemos
algo, temos uma forte adesão psicológica ao conteúdo do nosso
conhecimento, bastante mais forte do que quando temos uma mera crença,
ainda que parcialmente justificada. Quando acredito meramente que a Joana
está na praia porque me disseram, a força da minha convicção é muitíssimo
menor do que quando sei que ela está lá porque acabei de a ver.
Contudo, será a fé como o conhecimento em todos os aspectos, caso
em que a fé seria conhecimento? Podemos defender que a fé é
conhecimento — mas um tipo diferente de conhecimento — ou defender
que a fé não é conhecimento, apesar de ser fenomenologicamente como o
conhecimento no que respeita à força da convicção.
A primeira coisa a fazer quando se defende que a fé é conhecimento é
esclarecer de que género de conhecimento se trata: proposicional, saber-
fazer ou por contacto. Defender que a fé é conhecimento proposicional
implica defender que só há fé quando há justificação, pois só há
conhecimento proposicional quando há justificação. No caso da fé, a
justificação seria a revelação: a ideia de que Deus se deu a conhecer a
algumas pessoas especiais, que depois transmitiram por testemunho essa
ocorrência. Um argumento contra esta perspectiva é que, se fosse
verdadeira, quase nenhumas pessoas religiosas teriam de facto fé — só a
teriam aqueles teólogos e filósofos que sabem justificar adequadamente a
sua crença numa divindade. A maior parte das pessoas que acredita no Deus
cristão, por exemplo, pouco ou nada sabe sobre os supostos testemunhos da
revelação que sustentariam a sua fé. Como isto é implausível, a perspectiva
seria falsa.
Este argumento, contudo, não é convincente, pois ignora uma
diferença entre haver justificação e o agente do conhecimento ou da crença
em causa conseguir articular essa justificação. Por exemplo, uma criança
forma a crença de que está uma maçã em cima da mesa ao vê-la lá; a
justificação da sua crença é muitíssimo mais sofisticada do que o mero «Vi-
a lá» que ela é capaz de articular, pois envolve coisas como condições
normais de luz e o funcionamento correcto do seu aparato visual e
cognitivo. Parece excessivo exigir que um agente tenha de conseguir
articular uma justificação adequada das suas crenças para estas poderem
constituir conhecimento proposicional, dado que, na sua maior parte, as
pessoas têm grande dificuldade em fazer tal coisa. (Contudo, podemos
insistir que as pessoas quase nada sabem, na sua maior parte, vivendo
apenas com base em meras crenças.) Uma alternativa é então aceitar que
um agente tem conhecimento proposicional desde que tenha uma crença
verdadeira que se pode justificar adequadamente, ainda que ele mesmo não
o saiba fazer ou não o tenha efectivamente feito. Chama-se externismo a
esta posição sobre a justificação, e internismo à posição oposta.
Aplicando esta distinção à fé, poder-se-ia então insistir que as pessoas
só podem ter realmente fé numa divindade caso seja possível justificar tal
crença, ainda que elas mesmas sejam incapazes de o fazer. Ter fé numa
divindade seria, assim, análogo a muitas outras crenças que somos
incapazes de justificar adequadamente, mas que pensamos que outros seres
humanos sabem justificar adequadamente. Por exemplo, na sua maior parte,
as pessoas são incapazes de justificar adequadamente a crença na
cosmologia do Big Bang, pois não têm os conhecimentos nem os recursos
necessários para justificar esta teoria: limitam-se, por isso, a transferir para
os especialistas relevantes a tarefa da justificação.
Esta perspectiva implica que caso não exista justificação adequada
para crer numa divindade, ninguém teve jamais fé nessa divindade, apesar
de ter pensado que a tinha. Note-se que isto é compatível com a diversidade
de religiões e de divindades; pois apesar de as diversas divindades que são
objecto de fé em diferentes religiões serem incompossíveis (ou seja, não são
conjuntamente possíveis: não podem existir todas simultaneamente), é
perfeitamente possível que existam justificações adequadas para as crenças
religiosas nessas divindades. Recorde-se que podemos defender que a
justificação não é factiva, o que significa que diferentes pessoas em
diferentes contextos epistémicos podem ter justificação adequada para crer
em divindades diferentes e incompossíveis.
Contudo, a perspectiva que estamos a explorar não defende apenas que
só há fé quando há justificação: defende também que a fé é factiva, pois
defende que a fé é conhecimento, ou um tipo de conhecimento. E é isto que
torna esta concepção implausível, pois significaria que caso a única
divindade que realmente existe seja Diana, por mais genuína que fosse a fé
dos antigos egípcios no deus Rá, por exemplo, ou dos actuais cristãos em
Deus, nenhuma dessas pessoas tinha realmente fé — apenas acreditava
erradamente que a tinha. Isto parece excessivo: quem tem fé numa
divindade que, sem ela o saber, não existe, não parece ter uma fé menos
genuína do que quem tem fé numa divindade que realmente existe. Assim, a
fé, ao contrário do conhecimento, não parece factiva.
Uma saída para esta dificuldade seria sustentar que a fé é um tipo
diferente de conhecimento, que não envolve factividade. Mas isto seria
presumivelmente um mero jogo de palavras, dado que conhecimento
infactivo não é conhecimento, em qualquer acepção relevante do termo: é
mera crença (que pode até estar justificada).
Dado que tanto o conhecimento proposicional como o conhecimento
por contacto são factivos, o mesmo argumento se aplica para refutar a ideia
de que a fé poderia ser conhecimento por contacto: aceitar que a fé é
conhecimento por contacto implica a tese implausível de que a maior parte
da humanidade ao longo da maior parte da história não teve realmente fé,
apesar de pensar que a tinha.
Testemunho e risco epistémico

Note-se, contudo, que há pelo menos um aspecto crucial que o


conhecimento por contacto partilha com a fé. No conhecimento por
contacto não há apenas uma forte convicção acompanhada muitas vezes de
uma incapacidade para articular uma justificação adequada — isto também
acontece no conhecimento proposicional. Um traço central do
conhecimento por contacto que o distingue do proposicional é o aspecto
pessoal, subjectivo ou testemunhal: quando conhecemos algo por contacto
não se trata apenas de sermos muitas vezes incapazes de articular uma
justificação adequada desse conhecimento; há aparentemente um aspecto
fenomenológico irredutível a qualquer justificação cuidadosamente
articulada.
Este aspecto do conhecimento por contacto envolve o que se chama
qualia: a qualidade interna da experiência. É este aspecto do conhecimento
por contacto que está em causa nos famosos artigos «Como é Ser um
Morcego?», de Thomas Nagel, e «What Mary Didn’t Know», de Frank
Jackson.
No primeiro caso, Nagel faz notar que temos muito conhecimento
proposicional sobre a ecolocalização usada pelos morcegos, e usamo-la
também em navios, recorrendo a radares: um sinal sonoro é enviado e o
tempo decorrido entre o seu envio e o eco devolvido permite determinar a
distância e parcialmente a forma do que se encontra na direcção relevante.
Contudo, argumenta Nagel, num certo sentido não podemos saber como é
percepcionar objectos dessa maneira, não sabemos como é a experiência
interna da ecolocalização: não sabemos como é ser um morcego.
No exemplo de Jackson, imagina-se uma neurocientista da cor, a
Maria, que tem um conhecimento proposicional exaustivo do mecanismo da
visão de cores que ocorre nos seres humanos. Contudo, nunca viu cores
porque viveu sempre num quarto a preto e branco. (Será também preciso
imaginar que tinha uma doença da pele que a tornava completamente
branca, que o seu cabelo era completamente preto, que não podia ficar
menstruada, porque nesse caso veria a cor do seu sangue, etc., o que torna
tudo isto uma fantasia filosófica, mas que serve correctamente os seus
propósitos.) Um dia, a Maria pôde finalmente sair do seu quarto e viu uma
rosa vermelha ou um pôr-do-sol radioso. Apesar de ter um conhecimento
proposicional exaustivo do processamento visual e cognitivo das cores,
havia algo que a Maria não sabia, pois parece óbvio que há algo que ela
aprendeu quando viu a rosa ou o pôr-do-sol. O conhecimento que não tinha
era o conhecimento por contacto, o conhecimento íntimo, subjectivo ou
testemunhal do que é ver cores.
Este aspecto testemunhal do conhecimento por contacto parece crucial
na fenomenologia da fé. Ter fé numa divindade é talvez mais do que ter
uma convicção forte na sua existência: é ter como que um contacto íntimo
com essa divindade; é ter uma experiência defensavelmente irredutível a
todo o conhecimento proposicional. Contudo, levar a sério a ideia de que a
fé é conhecimento por contacto implica, uma vez mais porque o
conhecimento é factivo, que a maior parte da humanidade ao longo da
maior parte da história não teve experiência da fé genuína, mas apenas a
ilusão de que a teve, dado que as muitas divindades que foram objecto de fé
ao longo da história humana são incompossíveis.
Não é, pois, plausível que a fé seja conhecimento proposicional nem
por contacto. Contudo, é inegável que há algo na fenomenologia da fé
irredutível às crenças proposicionais, pelo simples facto de que toda a
atitude proposicional tem uma fenomenologia própria, irredutível às crenças
proposicionais. Por exemplo, ter medo de dragões tem uma fenomenologia
própria, diferente de ter a esperança de haver dragões, que não depende do
objecto, mas sim da própria atitude. Assim, ter fé terá sem dúvida uma
fenomenologia distinta, mas não implica de modo algum que tenha de
existir a divindade que é objecto da fé. A impressão subjectiva do
conhecimento por contacto, testemunhal e subjectivo que se associa à fé
pode ser independente da existência da divindade que é objecto da fé em
causa: pode ser uma peculiaridade da atitude. A peculiaridade da fé, uma
vez mais, é não ser fenomenologicamente como uma mera crença, como as
muitas crenças que temos e a que não damos muita importância: a fé é uma
crença considerada e sentida como muitíssimo importante pelos crentes.
Uma objecção imaginativa a esta última ideia insiste que, apesar de
historicamente a fé ter sido considerada e sentida como muitíssimo
importante pelos crentes, poderia não o ser. Podemos imaginar pessoas que
têm fé numa divindade menor, digamos, com poucos poderes ou com
poderes limitados, e que intervém apenas em trivialidades do quotidiano —
como nunca deixar uma pessoa esquecer-se de fechar a tampa da sanita, por
exemplo. Estas pessoas teriam uma fé banal, digamos, neste tipo de
divindade menor, precisamente por ser uma divindade menor.
Esta objecção insiste na conexão entre o objeto da fé e a atitude do
crente: a ideia é que a atitude de extrema importância associada à fé resulta
da natureza da divindade que é objecto da fé.
A resposta a esta objecção é a seguinte: do mesmo modo que ter medo
de escorregar quando neva é diferente de ter medo quando um leão corre na
nossa direcção, porque os objectos do medo são diferentes, persistindo
todavia algo em comum (caso contrário não seria medo), também a fé será
inevitavelmente influenciada pela natureza do objecto da fé. Quem tiver fé
numa divindade menor, terá presumivelmente uma fé diferente de quem
tiver fé numa divindade omnipotente, mas algo em comum terá de haver em
ambos os casos para que sejam ambos fé. E apesar de ser evidentemente
possível imaginar cenários em que já duvidamos se estamos perante fé ou
perante uma mera crença banal e quotidiana, o objectivo da nossa
investigação é a fé que de facto as pessoas têm, e não a que conseguimos
imaginar, mas que depois nem sabemos bem se é ainda fé ou outra atitude.
Ora, nas manifestações conhecidas de fé, esta não é uma crença banal,
como as outras crenças quotidianas; é uma crença a que o próprio crente dá
extrema importância.
Afastadas as hipóteses de que a fé seja conhecimento proposicional ou
conhecimento por contacto, resta ver se poderá ser um saber-fazer. Esta
ideia também não é plausível, pois saber fazer algo como andar de bicicleta
envolve uma actividade, mas não necessariamente uma atitude, ao passo
que ter fé numa divindade envolve necessariamente um tipo de atitude, mas
pode ou não envolver uma actividade. É certamente verdadeiro que os
crentes religiosos consideram que o seu modo de vida é profundamente
afectado pela sua fé, mas não parece verdadeiro que esse modo de vida
constitua a fé. Uma vida dedicada à bondade e a aliviar o sofrimento alheio
pode coincidir exteriormente com uma vida religiosa; mas muitos ateus
escolhem esse género de vida, sem terem, portanto, qualquer atitude
análoga à atitude de uma pessoa de fé. Por outro lado, mesmo que todas as
pessoas de fé desenvolvam um tipo de actividades, estas parecem
consequência da sua fé, não constituindo a fé em si.
Podemos então concluir preliminarmente que a fé não é conhecimento,
nomeadamente porque a fé é infactiva e o conhecimento é factivo. Mas esta
não é a única razão. Mesmo que a fé implicasse conhecimento, nunca
poderia ser conhecimento, constitutivamente, dada a diferença entre as
fenomenologias da fé e do conhecimento. Vimos que a fé se assemelha ao
conhecimento proposicional por envolver uma forte convicção, e que se
assemelha ao conhecimento por contacto por envolver um aspecto
testemunhal. Mas noutros aspectos a fé é profundamente diferente desses
tipos de conhecimento.
Para ver porquê, considere-se o que aconteceria se uma divindade se
manifestasse inequivocamente junto dos seres humanos. Alguns ateus,
perante tal manifestação, passariam evidentemente a acreditar que essa
divindade existe, precisamente porque passariam a saber que existe. Mas
teriam fé? Poderiam ganhar fé no sentido de terem confiança na divindade,
se soubessem que essa divindade estaria a zelar por eles, sendo sumamente
boa e sumamente poderosa. Contudo, alguns aspectos que parecem
constitutivos da fenomenologia da fé poderiam não se manifestar, tornando
implausível afirmar que esses ateus passaram a ter fé. Os sentimentos de
reverência, ligação profunda, êxtase e mistério que parecem estar
associados à fé poderiam perfeitamente estar ausentes das atitudes
epistémicas desses ateus relativamente a essa divindade. Parece, por isso,
conceptualmente possível saber que uma divindade existe sem ter fé na sua
existência (mesmo que nela se tenha fé, no mero sentido da confiança).
Søren Kierkegaard (1813–1855) foi um dos filósofos que mais
claramente sublinhou este aspecto da fé, que a torna incompatível com o
conhecimento — e, por isso, com as provas, argumentos ou justificações.
Este aspecto da fé parece corresponder à desvalorização, por parte de
alguns crentes, dos intrincados argumentos filosóficos a favor e contra a
existência de Deus. Talvez isso ocorra por considerarem, como
Kierkegaard, que a fé é precisamente o género de confiança ou convicção
profunda que se tem numa divindade quando não temos provas da sua
existência:

Em nome de quem se procura a prova? A fé não precisa dela. Sim, tem


de encará-la como inimiga. Mas quando a fé começa a ter vergonha,
como uma rapariga para quem o amor deixa de ser suficiente, que
secretamente tem vergonha do seu namorado e tem por isso de
confirmar junto de outros que ele é realmente notável, quando a fé
vacila e começa a perder a sua paixão, então a prova torna-se
necessária para parecer respeitável da perspectiva do descrente. (Pós-
Escrito Anti-Científico Final, p. 27)
Sem risco não há fé. A fé é precisamente a contradição entre a paixão
infinita da interioridade e a incerteza objectiva. Se posso compreender
Deus objectivamente, não acredito; mas porque não posso conhecer
Deus objectivamente, tenho de ter fé; e se for firme na fé, tenho de
estar constantemente determinado a agarrar-me à incerteza objectiva,
para permanecer sobre as profundezas do oceano, sobre setenta mil
braças de água, e continuar a acreditar. (Pós-Escrito Anti-Científico
Final, pp. 171-172)

Kierkegaard considera a fé incompatível com o conhecimento, por este


último implicar a justificação, ao passo que a fé implica o risco epistémico.
Podemos fazer uma analogia com o que ocorre quando encontramos um
desconhecido e o ajudamos, sem ter provas da sua probidade, descobrindo
mais tarde com gosto que ele nos procurou para nos restituir o dinheiro
emprestado, por exemplo, ou para nos manifestar a sua gratidão. Esta
analogia permite compreender o tipo de valor que é possível ver na fé
quando esta é concebida como crença injustificada ou sem provas. Num
certo sentido, tem mais valor confiar num desconhecido, sem provas da sua
probidade, do que confiar nele quando temos essas provas. Confiar nele
quando temos essas provas não envolve qualquer risco, nem é um gesto
particularmente generoso da nossa parte. Kierkegaard parece defender algo
análogo relativamente à fé: se procuramos provas da existência da
divindade, é porque de algum modo não queremos arriscar ter fé na sua
existência; mas se tivermos provas de que essa divindade existe, a fé parece
não poder ter lugar, tal como nada arriscamos ao ajudar uma pessoa quando
sabemos que ela nos recompensará.
Será realmente defensável o risco epistémico de crer no que não temos
provas que existe? William James argumenta que sim.

Aposta momentosa

James sublinha que em alguns casos as nossas crenças são motivadoras: um


desportista ganha em acreditar que consegue obter um resultado; um
estudante ganha em acreditar que conseguirá bons resultados num exame
difícil. Nestes casos, precisamos de acreditar sem provas, de maneira a ter
motivação para tentar: não faria sentido treinar ou estudar se não
confiássemos na possibilidade de obter os resultados desejados, ainda que
não tenhamos realmente provas de que os conseguiremos obter. Será a fé
análoga a este género de casos? Tratar-se-ia nesse caso de ter confiança em
algo que não sabemos bem se ocorrerá ou se existe. A fé ficaria assim mais
próxima da esperança.
Sem dúvida que este tipo de crenças motivadoras e sem grandes provas
existem, e são constitutivas da nossa vida. É difícil imaginar como seria a
nossa vida sem elas. Mas não é claro que este facto acerca da nossa vida
cognitiva tenha relevância para a legitimidade da fé sem provas, ao
contrário do que James parecia pensar. Vejamos dois argumentos contra a
posição de James.
Em primeiro lugar, as crenças motivadoras só são racionais porque têm
efeitos causais: se um estudante acreditar que com o seu esforço irá
conseguir obter um certo resultado, isso tem o efeito causal de lhe dar mais
ânimo, o que contribui para obter o resultado desejado. Mas no caso da
crença religiosa não há qualquer nexo causal, nem pode haver, entre a força
da convicção e a existência ou inexistência de divindades: estas não existem
ou deixam de existir consoante as pessoas estão mais ou menos fortemente
convictas da sua existência.
Em segundo lugar, é irracional ter confiança quando a possibilidade de
realização do que se almeja é demasiado improvável. Uma pessoa em risco
de morte pode ganhar em ter confiança que conseguirá ser bem-sucedida
num salto difícil que poderá salvar a sua vida, se o salto que tem de dar for
de, digamos, um metro e meio. Mas, se for de dez metros, nenhuma
confiança lhe dará energia suficiente para conseguir salvar-se. O mesmo
ocorre todos os finais de semestre com demasiados estudantes: não
estudaram ao longo do semestre e depois vão fazer os exames cheios de
confiança que, naquele momento, algo de mágico ocorra e subitamente
sejam capazes de responder a perguntas sobre matérias que desconhecem
quase por completo: o resultado inevitável, apesar de tanta confiança, é a
reprovação. E esses estudantes teriam ganho mais em reconhecer a verdade
da situação, ficando em casa tranquilamente. Portanto, este género de
confiança na ausência de provas só pode ter relevância caso não estejamos
perante uma impossibilidade ou quase impossibilidade.
Blaise Pascal (1623–1662), contudo, ficou famoso por defender que,
bem vistas as coisas, temos tudo a ganhar e nada a perder em apostar na
existência de Deus. Chama-se aposta de Pascal ao seu argumento, que
pertence à mesma família da posição de James: trata-se de dizer que, na
ausência de provas a favor ou contra a existência de Deus, temos um
argumento a favor da crença sem essas provas.
No caso da versão de Pascal, a ideia é fazer uma matriz para revelar as
quatro combinações possíveis que resultam de se acreditar ou não e de Deus
existir ou não:

1. Caso não acreditemos e Deus não exista, nada de especial ganhamos.


Apenas não perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
2. Caso não acreditemos e Deus exista, perdemos a possibilidade do
paraíso, o que é terrível.
3. Caso acreditemos e Deus não exista, nada de especial perdemos.
Apenas perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
4. Caso acreditemos e Deus exista, ganhamos o paraíso, o que é
maravilhoso.

Portanto, continua o argumento, é irracional não escolher acreditar.


Porque se acreditarmos, o pior que pode acontecer é termos perdido tempo;
e podemos ganhar o paraíso. Mas se não acreditarmos, o melhor que pode
acontecer é não termos perdido tempo; e podemos perder o paraíso.
Este género de argumento pode ser visto como desprezível por muitos
crentes. Pois o seu efeito é retirar à fé o elemento de risco epistémico que
Kierkegaard considerava importante: a fé torna-se o mero resultado do
calculismo egoísta, e não uma atitude de risco epistémico que nos dá
confiança perante a «incerteza objectiva».
O pior do argumento, contudo, é precisar admitir pressupostos pouco
razoáveis sobre Deus. Por que razão haveria Deus de castigar quem não
acredita que ele existe precisamente por falta de provas? E por que razão
haveria Deus de recompensar com o paraíso o calculista? A ideia de que ter
fé é em si importante porque Deus castiga quem não a tem é praticamente
indefensável. Se Deus for sumamente bom e sábio, não pode ser o género
de ser que exige dos seres humanos crenças arbitrárias; pelo contrário, será
o género de ser que exige que os seres humanos sejam virtuosos, e ser
epistemicamente virtuoso parece incluir não acreditar sem provas.
O defensor da aposta de Pascal pode responder que não temos de ter
uma concepção primitiva de um Deus castigador: podemos entender a
própria vida do crente, com a graça da fé, como uma dádiva de imenso
valor, e a vida do descrente como um deserto espiritual que ninguém
quererá viver. Assim, apostar em Deus faz sentido não porque a divindade
recompense a credulidade e castigue a racionalidade, mas antes porque a
própria vida sem fé em Deus é um martírio, ao passo que uma vida com fé
em Deus é graciosa e compensadora.
William James tem em mente algo como esta caracterização da vida de
fé. Antes de analisarmos brevemente as suas ideias, importa esclarecer as
seguintes diferenças:

1. Acreditar que Deus existe.


2. Não acreditar que Deus existe.
3. Acreditar que Deus não existe.

Confunde-se por vezes 2 com 3. 2 é mais fraco do que 3, no sentido


em que 3 implica 2, mas 2 não implica 3: quem acredita que Deus não
existe, não acredita que Deus existe, mas quem não acredita que Deus
existe pode não acreditar que Deus não existe. Suspender o juízo quanto à
existência de Deus é rejeitar 1 e 3: é o que faz o agnóstico. O crente, claro,
aceita 1 e rejeita as outras; o ateu aceita 3, o que implica aceitar 2, e rejeita
1. Estas relações lógicas dizem respeito a qualquer crença, e não
especificamente à crença de que Deus existe. A maior parte das pessoas,
por exemplo, nem acredita que existem extraterrestres nem que não existem
extraterrestres; considera as duas hipóteses interessantes e até momentosas,
mas limita-se a suspender o juízo.
Esta atitude de suspensão do juízo na ausência de provas é
precisamente o que propõe um indiciarista, como Clifford. Na verdade, é o
género de atitude que temos relativamente às mais diversas matérias. James,
todavia, discorda. Do seu ponto de vista, é legítimo crer em Deus, quando a
sua existência é intelectualmente indecidível, desde que a opção pela crença
seja viva, forçosa e momentosa.
Uma opção é viva quando não é uma mera hipótese intelectual vaga,
mas antes algo que realmente nos importa: supostamente, para quem se
debate com a questão de Deus, a hipótese de acreditar ou não é para ela
uma opção viva. Essa mesma pessoa pode não se debater com a questão de
acreditar ou não em Apolo, por exemplo. Uma opção é forçosa quando não
tomar partido é o mesmo que tomar partido. Suspender a crença quanto à
existência de Deus tem o mesmo efeito que não acreditar na existência de
Deus, pensa James. Finalmente, uma opção é momentosa quando é de
extrema importância, e não uma questão trivial.
James argumenta então que, reunidas estas condições, é
epistemicamente legítimo acreditar sem provas, quando a questão é
intelectualmente indecidível. A razão é que não o fazer priva-nos de algo
importante — uma vida religiosa, a perspectiva de uma vida eterna — sem
nada de importante nos dar em troca, excepto a garantia de não crer em
falsidades. O argumento de James pertence, pois, à mesma família da aposta
de Pascal; mas em vez de se basear directamente na ideia de que, sob a
hipótese de Deus existir, os descrentes ou os agnósticos serão enviados para
o inferno, indo os crentes para o paraíso, permite dar ênfase ao ganho que o
crente tem nesta vida. A ideia torna-se mais vívida se imaginarmos casos
em que uma mentira piedosa poderá salvar alguém de sofrimento
inconsequente: por exemplo, uma mãe a quem, no leito de morte, se oculta
a tragédia do seu filho que acaba de falecer de acidente.
Contudo, o argumento de James enfrenta uma dificuldade relacionada.
É verdadeiro que não dependemos de uma concepção brutal de um Deus
que quer ser objecto de culto na ausência de provas da sua existência,
castigando quem suspender o juízo. Mas estamos perante uma concepção
provinciana da vida humana — como se uma vida humana plenamente
realizada só pudesse ocorrer na presença da fé. Pelo contrário, muitos
artistas, cientistas, filósofos e filantropos viveram vidas preenchidas e
felizes, sem qualquer crença em divindades. Para essas pessoas, a questão
de haver ou não divindades poderá ser intelectualmente interessante, mas
nenhuma consequência prática tem para qualquer lado. Isto porque
nenhuma pessoa genuinamente boa pode acreditar que Deus, se existir, é
um ser malévolo, que castiga quem nele não acredita, ainda que essa pessoa
tenha uma vida virtuosa, sob todos os aspectos.
A ideia de que uma vida virtuosa não é possível sem crer em
divindades é uma manifestação de provincianismo — ou de um mau íntimo:
alguém que só não trapaceia, mente, rouba e mata por ter medo de ser
castigado na outra vida. Kant, que era religioso, considerava que uma acção
feita com vista à recompensa ou com medo do castigo não é moralmente
correcta, ainda que exteriormente o pareça. E não é preciso invocar Kant
para compreender que quem não mata o seu semelhante por medo do
inferno e não por respeitá-lo, não é o género de pessoa que queiramos ter
por semelhante.
James poderia aceitar que é possível ter uma vida compensadora e
virtuosa sem qualquer crença religiosa, mas insistir que uma vida religiosa
permite a qualquer pessoa, por mais culturalmente carenciada que seja, o
género de vida compensadora que um artista ou cientista pode ter. A vida
religiosa colocaria ao alcance de qualquer pessoa o género de vida
compensadora a que, de outro modo, só alguns poderiam almejar.
A ideia de que a religião permite às pessoas culturalmente mais
carenciadas ter uma vida mais compensadora do que de outro modo teriam
é plausível. Tal como é plausível que a religião pode oferecer conforto
emocional a pessoas cujas vidas são desagradáveis em quase todos os
aspectos. Contudo, este género de argumentação não é particularmente
promissora, pois não só implicaria que a religião seria apenas um paliativo
para o infortúnio, como tornaria difícil explicar a fé de pessoas muitíssimo
cultas, como cientistas, filósofos, artistas ou outros intelectuais. A verdade é
que tanto se encontra pessoas descrentes e crentes entre os cultos como
entre os incultos; e a verdade é que a vida religiosa tanto oferece conforto
emocional como opressão.
James precisa de defender que a crença na existência de divindades é
forçosa. Mas ou é forçosa porque se concebe Deus como um ser castigador,
como Pascal, e nesse caso aplica-se-lhe o mesmo contra-argumento; ou o é
porque se tem uma concepção provinciana, e historicamente falsa, do que é
uma vida humana generosa, bem-aventurada, virtuosa e realizada,
considerando erradamente que sem a crença em Deus esse tipo de vida não
é possível. Em qualquer caso, não temos razão para pensar que a opção
entre crer ou não em Deus é forçosa. Suspender o juízo por falta de provas
só é equivalente a não crer quando a consequência de ambas é
aproximadamente igual. Mas as duas opções só são equivalentes caso um
Deus ciumento castigue quem nele não crê, ou caso nenhuma vida humana
agnóstica ou ateia possa ser plena e digna. Quem rejeitar estas duas
hipóteses, rejeita a ideia de James de que a opção da crença é forçosa.
Poderá até aceitar que é uma questão momentosa, que nos dispomos a
estudar e discutir com sobriedade, como estudamos e discutimos a cura do
cancro, sem que tenhamos de acreditar sem provas.
Podemos insistir na ideia original de James concedendo que é
perfeitamente possível ter uma vida humana digna e realizada sem crer em
Deus; mas sublinhar que, mesmo assim, acrescentar a crença religiosa a
uma vida humana que já é digna e realizada sob todos os outros aspectos é
fazer algo de importância superlativa. Uma vida humana digna em todos os
outros aspectos, mas a que se acrescenta a crença religiosa, é uma vida
ainda mais digna e rica, adquirindo uma textura e dimensão que nenhuma
vida de agnóstico pode ter. Neste sentido, portanto, é forçosa a opção entre
crer ou não em Deus.
Concedendo que a opção é forçosa neste sentido, o problema é que
agora o agnóstico ou o ateu têm uma resposta demasiado fácil. Podem
responder que só é forçosa a decisão de ter ou não uma vida de crente
religioso porque ou é verdadeiro ou não é verdadeiro que Deus existe. O
que torna forçosa a opção é que se Deus existir, vivemos na verdade se
formos crentes — e a verdade é de importância primordial para seres como
nós. Uma vida de crente não pode ser uma coisa boa por ser boa apenas
internamente — isto é, por fazer o crente sentir-se melhor. Isso torna de tal
modo subjectiva a crença religiosa que faz dela uma opção não momentosa
mas mesquinha, ainda que seja forçosa: trata-se de escolher o que me faz
sentir bem, como quem escolhe os sapatos mais confortáveis, e não o que é
superlativamente real e importante. Para que a minha escolha seja
superlativamente importante não pode ser apenas uma escolha do que me
faz sentir bem. Tem de ser também uma escolha do que me conecta com
uma realidade de superlativa importância — recorde-se que o sentido do
étimo da palavra religião é religação. É mesquinho escolher uma vida
religiosa pressupondo que a existência ou inexistência dessa realidade de
superlativa importância é irrelevante porque tudo o que conta é que me
sinta bem. Escolher ou não escolher uma vida religiosa só é de suprema
importância porque isso me abre ou não a uma realidade de suprema
importância.
Assim, a ideia é que, precisamente por prezar a verdade, o ser humano
não deve aderir sem provas, sobretudo quando se trata de matérias de
importância superlativa. É verdadeiro que muitas vezes temos de assumir
riscos epistémicos, mas estes casos só são razoáveis quando há uma relação
causal entre a crença e o que dela resulta: cremos, sem grandes provas, que
somos capazes de fazer um curso universitário, e isso motiva-nos de tal
modo que contribui para o sucesso dos nossos estudos. No que respeita a
Deus, não há tal relação causal: crer em Deus não o faz existir
magicamente. O único poder causal dessa crença diz respeito à nossa vida,
e não é óbvio que, sob a hipótese de Deus não existir, uma vida de crente
seja realmente melhor do que uma vida virtuosa e realizada, aberta à
possibilidade de existir Deus, mas que não a aceita sem provas.
Assim, o argumento de James implica que a questão da existência ou
inexistência de Deus tem prioridade sobre a opção de crer ou não. Optar
pela crença no caso de Deus não existir é tão grave quanto optar pela
descrença caso Deus exista, e precisamente pela mesma razão: porque em
ambos os casos a crença é falsa. A nossa melhor atenção cognitiva deve,
assim, dirigir-se para os argumentos a favor e contra a existência de Deus,
porque é isso que é decisivo; e sem argumentos suficientes para um ou
outro lado, a opção epistemicamente virtuosa é suspender o juízo e
continuar a investigar.
James enfrenta outra dificuldade. Uma opção é forçosa quando não
tomar partido é, na prática, a mesma coisa que tomar partido. O problema é
que não é fácil encontrar casos neutros de opções forçosas. Um caso de uma
opção forçosa é alguém dar-nos um prazo de dois dias para decidir comprar
ou não uma casa, por exemplo. Mas estamos indecisos e deixamos passar o
prazo. A indecisão, neste caso, é equivalente à decisão de não comprar a
casa. O problema deste tipo de exemplos é que só se aplica ao Deus
mesquinho referido. Pois seria como se Deus nos desse nesta vida a
oportunidade de optar sem provas pela crença, acabando-se o prazo quando
morremos. Pelo contrário, um Deus razoável consideraria sensato que não
decidíssemos tão momentosa questão sem provas fortes; e se só na outra
vida tais provas surgissem, essa seria a altura para crer na sua existência.
Este tipo de argumento põe em causa frontalmente a ideia central do
fideísmo de que é virtuoso crer sem provas. O fideísta poderia rejeitar o
argumento por essa razão. Mas isto seria confundir as coisas. O argumento
conclui que não há virtude em crer sem provas, pois é isso mesmo que
estamos a discutir. Se o fideísta discorda desta conclusão, tem de mostrar o
que há de errado com o argumento apresentado, e não apenas insistir que
esta conclusão contraria a sua ideia de que é virtuoso crer sem provas.
Acresce que a ideia de que crer sem provas é virtuoso poderá ser uma
forma subtil de impor a crença religiosa, um pouco como jogar um jogo
viciado em que se sair caras ganho eu, se sair coroas perdes tu. Pois se
alguém declarar que algo existe, fica a dever-nos evidentemente algumas
provas, sobretudo se for algo momentoso e não uma trivialidade. Se essa
pessoa declarar que não tem provas, mas que é bom acreditar sem provas
nisso que ela diz que existe porque nessa circunstância coisas maravilhosas
irão acontecer-nos, está a trapacear-nos. O que lhe pedimos, muito
razoavelmente, foram provas. A sua resposta, muito insensatamente, foi
uma ameaça. Perante a incerteza da vida humana, sobretudo onde os níveis
de bem-estar são muitíssimo baixos (por falta de cuidados de saúde,
protecção no emprego, recursos económicos adequados, etc.), este género
de resposta torna a aposta de Pascal muito vívida: nada se tem a perder e
pode-se ganhar muito em crer sem provas. Mas o preço a pagar, como
vimos, é uma concepção de uma divindade brutal. Concepção que é difícil
crer que uma pessoa genuinamente boa e epistemicamente virtuosa possa
aceitar.
Voltemos ao aspecto forçoso da opção quanto à crença na existência de
Deus. É iluminante pensar noutros casos em que a opção é forçosa. Por
exemplo, não sabemos se conseguiremos realmente salvar uma criança que
acaba de cair no rio; mas não decidir tentar é igual a decidir não tentar. Por
isso, a virtude exige que tentemos. Mas pensemos melhor no que está
oculto neste tipo de exemplo. Não seria uma exigência da virtude decidir
tentar se fosse impossível ou quase impossível salvá-la; e ainda menos se ao
tentar fosse inevitável ou quase inevitável que nós mesmos pereceríamos,
privando assim os nossos filhos do apoio que lhes devemos. Isto significa
que quando se pressupõe que crer ou não em Deus é uma opção forçosa é
porque se aceita duas coisas, e James só explicitou uma delas: aceita-se que
a questão é intelectualmente indecidível, mas aceita-se também que o preço
por acreditar não é demasiado elevado. Ora, não podemos em rigor
pressupor que crer é melhor, exista ou não Deus, do que não crer. Clifford
argumenta que crer na ausência de provas é sempre pior, porque contribui
para a crendice, e a crendice tem inevitavelmente, e a longo prazo, más
consequências. Este argumento, que é crucial para a posição de Clifford,
nunca é enfrentado por James, que se limita a pressupor que crer em Deus é
sempre melhor do que não crer.
James argumenta, com alguma plausibilidade inicial, que a posição de
Clifford nos afasta da verdade, por estar demasiado preocupado com o erro.
Compara Clifford a um general que, por querer provas cabais da vitória
antes de enviar as suas tropas, nunca ganha qualquer batalha, porque nunca
envia as suas tropas. A ideia é que por vezes é preciso aceitar o risco
epistémico. Clifford concorda com a ideia, mas rejeita que o risco
epistémico implique crença sem provas: apenas implica que, quando é
necessário agir sem certezas, devemos agir em função do que é mais
provável.
O problema é que nada disto se aplica à crença em Deus. Esta crença
não é urgente: não temos de decidir, aqui e agora, crer ou não crer em Deus:
podemos perfeitamente continuar à procura. É o que fazemos com muitas
outras crenças momentosas: queremos saber o que poderá curar uma doença
grave, por exemplo, e é extremamente difícil decidir. Mas se pararmos de
tentar decidir porque consideramos virtuoso o risco epistémico de apostar
numa das hipóteses sem provas, não estamos a contribuir para a descoberta
da verdade, mas antes a dificultá-la. Se o que realmente nos interessa é
saber se Deus existe ou não, e isso qualquer crente terá de aceitar, a menos
que tenha uma concepção de tal modo subjectiva da crença que torne
irrelevante a existência de Deus, não é uma boa ideia decidir de antemão e
sem provas que existe. Se Deus realmente existir, acertámos na verdade por
sorte apenas, o que não constitui conhecimento — privámo-nos assim de
conhecer uma verdade de superlativa importância. Se não existir, fomos
crédulos e impedimos a descoberta de que não existe. Assim, a acusação
central que James faz a Clifford — que está tão preocupado em evitar o erro
que não permite acertar na verdade — aplica-se facilmente a James, que
parece ter pensado que tudo o que conta no que respeita à verdade é acertar
nela, ainda que por acaso, e não conhecê-la.

Racionalidade distribuída
A objecção de Plantinga a Clifford é uma objecção geral a qualquer posição
indiciarista. Consiste em defender que, pelo próprio critério indiciarista, não
devemos acreditar em coisa alguma sem provas; mas não há provas de que
o indiciarismo seja verdadeiro; logo, não devemos acreditar no
indiciarismo.
Esta objecção depende, contudo, de uma concepção muito rígida de
prova, concepção que o próprio Clifford não defendia. Certamente que
Clifford não pensava que o único género de provas eram provas
matemáticas ou científicas. Em muitas matérias, prova-se ideias
argumentando, e os argumentos podem ser muito complexos. Aquilo a que
Clifford claramente se opunha era a crença sem provas, sem quaisquer
razões, só porque se decide arriscar acreditar.
Quando perguntamos se a fé é aceitável na ausência de provas, o termo
«aceitável», neste contexto, quer dizer «epistemicamente legítimo». Esta
expressão é melhor do que «prova», que tem um significado demasiado
restrito. Mas não é fácil saber o que é epistemicamente legítimo e o que o
não é. Para esclarecer este conceito, podemos recorrer a alguns paradigmas
de atitudes epistemicamente legítimas e ilegítimas.
Antes, porém, é importante fazer notar que é argumentável que nem
tudo o que é epistemicamente ilegítimo ou incorrecto é moralmente
ilegítimo ou incorrecto. Sem dúvida que há alguma conexão entre os dois
conceitos; em alguns casos, uma atitude pode ser moralmente incorrecta
precisamente por ser epistemicamente incorrecta; Clifford, todavia, ou
confundia ambos os conceitos ou estabelecia entre ambos uma conexão
excessivamente forte. O argumento de Clifford a favor da ideia de que é
sempre moralmente incorrecto acreditar em algo sem provas é que, mesmo
no caso de uma crença trivial e meramente pessoal, o facto de se acreditar
sem provas torna-nos crédulos e isso acabará por ter efeitos moralmente
maus. Isto é um exagero: é fácil pensar em contextos em que ser crédulo
não terá quaisquer consequências para a humanidade em geral: numa
pequena ilha, um ancião doente alimenta a crença injustificada de que os
seus companheiros serão salvos, mas nada lhes diz e morre pacificamente.
O máximo que se pode defender é que na maior parte dos contextos é uma
má ideia criar hábitos de credulidade, em vez de hábitos de análise
cuidadosa das coisas, porque as consequências, directas ou indirectas, a
curto ou longo prazo, são quase sempre desastrosas.
Por outro lado, podemos considerar que os deveres epistémicos —
procurar honestamente a verdade, não ser tendencioso, etc. — são casos
especiais de deveres morais. Neste caso, é verdadeiro que qualquer violação
de um dever epistémico é, eo ipso, a violação de um dever moral. Mas isto
é um pouco enganador, pois quer apenas dizer que descurar um dever
epistémico é descurar um dever moral: não quer dizer que, ao fazê-lo,
descuramos um dever moral de outra categoria. Por isso, é menos
enganador falar apenas do que é epistemicamente legítimo ou não, em vez
de usar a linguagem de Clifford, na qual não atender aos indícios é
moralmente incorrecto.
Voltemos ao esclarecimento do que é epistemicamente legítimo e
ilegítimo, recorrendo a exemplos claros de ambos. Começando pelo último
caso, é claramente ilegítimo rejeitar quaisquer argumentos contra uma dada
posição, ao mesmo tempo que se aceita o mesmo género de argumentos a
favor dela. Este tipo de ilegitimidade epistémica ocorre quando uma pessoa
põe em causa a ciência ou a lógica, por exemplo, quando estas parecem
militar contra as suas crenças mais queridas, ao mesmo tempo que abraça
ambas calorosamente quando parecem militar a seu favor. Esta
arbitrariedade é claramente ilegítima, epistemicamente, ainda que não
consigamos estabelecer condições necessárias e suficientes do que é uma
atitude epistemicamente legítima. Se uma pessoa considerar que acreditar
sem provas só é epistemicamente legítimo no caso da crença religiosa, há
alguma probabilidade de não ser epistemicamente virtuosa. James, note-se,
apresenta critérios suficientemente gerais que tornariam epistemicamente
legítimo ter qualquer crença, religiosa ou não, sem provas. (A dificuldade,
como vimos, é que em todos os casos não religiosos a crença sem provas só
é legítima quando crer tem uma conexão causal com um resultado
desejável, coisa que não há razões para pensar que ocorre no caso da crença
religiosa.)
Quanto à legitimidade epistémica, esta parece manifestar-se mais
claramente quando alguém muda de ideias por se deparar com razões
adequadas para isso: por exemplo, o João pensava que a Francisca tinha ido
ao cinema, mas ao chegar a casa encontra-a lá e muda por isso de ideias.
Contudo, nem toda a mudança de ideias é epistemicamente legítima:
só o é quando há razões adequadas para isso. Uma pessoa que acreditava
em Deus e deixa de acreditar só porque assistiu a uma palestra de uma hora
sobre o tema poderá não ser epistemicamente virtuosa, mas antes viciosa —
neste caso, por ser leviana.
Assim, o problema é saber o que são «razões adequadas» para mudar
de ideias. No caso do João, a razão adequada é ter visto a Francisca em
casa; mas a visão só em certos casos é fidedigna. Na seguinte imagem, por
exemplo, a segunda linha parece maior do que a primeira, mas ambas têm o
mesmo comprimento:
Assim, nem sempre a simples visão nos dá razões adequadas para
acreditar no que vemos: nos sonhos, também nos parece que vemos muitas
coisas, mas essas coisas podem não existir. Distinguir as condições em que
os dados dos sentidos são fidedignos dos casos em que não o são é por isso
crucial.
A tentação a evitar aqui é pensar como os cépticos, que negam a
possibilidade do conhecimento genuíno. Uma maneira de argumentar a
favor do cepticismo é que as ilusões cognitivas, como as visuais, são
recorrentes e não temos um modo de ter a certeza, perante uma dada crença
ou percepção, se é uma ilusão ou não.
A primeira crítica a fazer ao argumento céptico é que o conceito de
certeza é epistemicamente irrelevante e confuso. O conceito de certeza pode
ser entendido de duas maneiras. Por um lado, podemos conceber a certeza
meramente como uma forte convicção. Neste caso, a certeza é irrelevante
para o que está em causa, porque se podemos estar enganados quando
vemos, também podemos estar enganados quando temos uma forte
convicção de que não estamos enganados quando vemos. É argumentável
que, nesta acepção, a certeza é apenas mais um nível de ilusão epistémica
— como se a forte convicção fosse garantia de que não estamos enganados.
Outra maneira de conceber a certeza é pensar que se trata de estar
certo, no sentido de acertar. Nesta acepção de certeza, por definição,
quando se tem a certeza de algo, é porque se acertou na verdade. Mas nesta
acepção podemos sempre estar enganados: quando pensamos que
acertámos, podemos não ter acertado.
Assim, seja a certeza concebida do primeiro modo ou do segundo, é
irrelevante para a discussão em causa. Parece relevante, porque se confunde
e mistura os dois sentidos: como se acertar implicasse uma convicção mais
forte, e como se esta implicasse acertar. Mas isto é falso: na melhor das
hipóteses, uma convicção mais forte, que se mantém depois de uma
investigação cuidadosa, está correlacionada com maior probabilidade de se
ter acertado, o que é muito diferente de implicar que se acertou.
Seja qual for a concepção de legitimidade epistémica que tenhamos, a
mera certeza não parece relevante: podemos ter a certeza por sermos
casmurros, por exemplo, defendendo firmemente uma ideia contra a qual há
excelentes indícios ou argumentos. Também a mera possibilidade de
estarmos enganados, explorada pelo céptico, não parece relevante para a
ilegitimidade epistémica: do facto de podermos estar enganados não se
segue que estamos enganados, e do facto de não se poder garantir que não
estamos enganados não se segue que qualquer maneira de investigar as
coisas e de formar crenças tem o mesmo grau de legitimidade epistémica.
Não parece haver receitas automáticas para determinar quando um
dado processo de formação de crenças é epistemicamente legítimo, e este é
um dos problemas centrais da epistemologia da fé. Quem defende o
indiciarismo, como Clifford, tende a pensar que nenhuma crença é
epistemicamente legítima sem provas, incluindo as crenças religiosas,
porque tem em mente o género de processo de estabelecimento de verdades
que se usa em medicina, física, biologia, matemática, etc. Quem defende a
posição contrária tem em mente os processos mais quotidianos de formação
de crenças, que incluem coisas como a experiência pessoal, a tradição e a
confiança nos outros, além do poder motivador das crenças.
O indiciarismo está por vezes associado a uma certa ingenuidade
epistémica. A essa ingenuidade epistémica podemos chamar o mito do
investigador solitário. Esta ingenuidade epistémica dá origem a uma versão
infantil de indiciarismo, que é fácil refutar: a ideia de que cada um de nós
só tem legitimidade epistémica para aceitar o que nós mesmos somos capaz
de provar. Muitos crentes consideram, com razão, que esta posição é
insustentável, além de algo cega.
Para ver porquê, considere-se o memorável ensaio de George Orwell,
de 1946, em que ele se pergunta «Como sei que a terra é redonda?».
Rapidamente nos apercebemos que só por testemunho sabemos que a Terra
é esférica, ou que a água é H2O: os professores ou cientistas escreveram isso
ou disseram isso, e nós acreditamos. Não só não temos provas directas
dessas coisas, como a maior parte de nós não saberia estabelecer tais coisas,
mesmo que tivéssemos os meios para isso: eu, por exemplo, não saberia
estabelecer que a água é H2O, mesmo que tivesse acesso a um laboratório de
química. E, apesar de poder viajar num avião ou outro meio de transporte
para poder ver directamente que a Terra é esférica, não saberia dizer se o
que me pareceria visualmente evidente não ficaria a dever-se a alguma
ilusão perceptiva, dado que neste caso eu estaria muito afastado do meu
ambiente perceptivo comum.
Estas considerações parecem militar contra Clifford, mas a sua posição
é mais sofisticada do que isso. Na segunda parte do seu ensaio, Clifford
aborda explicitamente o que acontece quando temos de nos apoiar em
terceiros para justificar as nossas crenças. Este problema torna-se mais
vívido se compararmos estes dois casos: no primeiro, a Josefa vem do
supermercado e diz ao marido: «Afinal, não havia leite, esgotou-se»; no
segundo, a Marília vem também do supermercado e diz ao marido «Afinal,
não havia leite; vieram uns extraterrestres e levaram-no todo». No primeiro
caso, o marido aceita o testemunho da Josefa, sem mais perguntas, e será
capaz de dizer com toda a segurança a outra pessoa, alguns minutos depois,
que não há leite no supermercado porque se esgotou. Mas, no segundo, o
marido da Marília fica estupefacto e começa imediatamente a fazer
perguntas; muitas perguntas. Qual é a diferença?
No primeiro caso, o testemunho da Josefa é banal; no segundo, não é
banal. Aceitamos informações banais por testemunho, sem mais perguntas;
mas quando o testemunho transmite supostas informações que não são
banais, queremos razões mais fortes do que a mera confiança na pessoa.
Neste último caso, queremos algumas razões para pensar que a pessoa não
está a enganar-nos; ou que não se enganou ela, sendo vítima de uma ilusão.
O caso caricatural mais óbvio que esclarece o que está em causa é o
seguinte: passamos na rua e perguntamos as horas a alguém, e confiamos na
resposta; mas perguntamos a essa mesma pessoa se há extraterrestres e, seja
a resposta afirmativa ou não, não confiamos na resposta. Porquê? Clifford
viu porquê: porque num caso a pessoa está a dizer-nos algo que nós
próprios sabemos como podemos saber; no outro, está a dizer-nos algo que
nós mesmos não sabemos como poderíamos saber. Acreditar no testemunho
de alguém que afirma saber algo que não fazemos ideia como nós mesmos
poderíamos saber é credulidade; e, claro, a credulidade é mais tentadora
quando o que essa pessoa nos diz é o que queremos ouvir.
Contudo, não é num certo sentido verdadeiro que muitos de nós não
fazem ideia como seria possível descobrir a composição química da água?
No entanto, confiamos no testemunho dos cientistas. Será isso credulidade?
Se não o for, por que razão seria credulidade acreditar num profeta que
afirma ter tido contacto directo com uma divindade?
Há duas respostas a este desafio. Primeiro, o género de experiência em
causa é muitíssimo diferente. Num caso, trata-se apenas de estudar química,
e isso não exige quaisquer capacidades especiais da nossa parte. Quem
estuda química tem um acesso privilegiado à verdade, mas apenas num
sentido fraco: no mesmo sentido em que se eu estiver a ver uma árvore e a
outra pessoa não, eu tenho um acesso privilegiado à árvore — mas a outra
pessoa teria exactamente o mesmo acesso caso estivesse na minha situação,
vendo a árvore. Contudo, no que respeita a subir a uma montanha e ouvir a
palavra de Deus, as coisas são muito diferentes: não basta subir e ficar à
espera. Milhões de pessoas podem fazer isso e nenhuma voz ouvir. Quem
ouve tais vozes tem um acesso privilegiado à intimidade dos deuses, acesso
que os outros não têm.
Assim, a primeira resposta é que seremos crédulos se acreditarmos
num testemunho que pressupõe que a outra pessoa tem um acesso
privilegiado à verdade, no sentido forte. Isto é credulidade porque a pessoa
poderá ser vítima de alucinação, ainda que seja sincera; ou poderá estar a
mentir, por qualquer motivo. Acresce que qualquer pessoa que pense ouvir
a voz de uma divindade terá pelo menos de levantar a hipótese de estar a ser
vítima de ilusão, se for epistemicamente virtuosa, tal como olhamos com
estupefacção quando vemos coisas incomuns — uma mulher a ser
aparentemente serrada ao meio, num circo, e que, no entanto, continua a
mexer os pés no outro lado da caixa. O que poderá fazer-nos aceitar
prontamente a nossa experiência religiosa, sem um exame cuidadoso, ao
mesmo tempo que não aceitamos a nossa experiência visual de ver uma
mulher ser serrada ao meio e sobreviver, é a credulidade: a vontade de
acreditar no que gostaríamos que fosse verdadeiro.
Um antídoto à credulidade é o seguinte: quanto mais gostaríamos que
algo fosse verdadeiro, mais razões temos para ver cuidadosamente se é
mesmo verdadeiro, ou se estamos a enganar-nos a nós mesmos,
nomeadamente por sermos vítimas da superstição comum de que acreditar
em algo muito firmemente contribui para a sua verdade, ainda que nenhuma
relação causal exista entre uma coisa e outra. Rejeitar este princípio é
incompatível com a virtude epistémica.
A segunda resposta é que a estrutura epistémica da comunidade em
causa é crucial. Tenho razões para aceitar as afirmações de um cientista,
afirmações que pessoalmente não posso testar, se as próprias instituições
científicas tiverem uma estrutura epistémica adequada. Essa estrutura
epistémica resume-se na máxima de John Stuart Mill:

«As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia
sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro
para provar que carecem de fundamento» (Sobre a Liberdade, 1859, p.
58).

Dada a falibilidade humana, precisamos de testar cuidadosa e


permanentemente as nossas crenças — todas elas. Quando as instituições
têm este género de estrutura epistémica, convidando o mundo inteiro,
permanentemente, a provar que as suas afirmações carecem de fundamento,
dão-nos razões para aceitá-las. Isto porque torna menos provável que
resultem da ilusão ou da mentira, pois se podem ser continuamente postas
em causa e discutidas abertamente, é mais provável que as ilusões e os erros
sejam detectados. Não significa, contudo, que tais afirmações são
imutáveis: na verdade, no caso das instituições científicas, é o próprio facto
de terem permitido ao longo do tempo a revisão das crenças científicas
fundamentais que nos dá razão para aceitar as afirmações científicas actuais
— porque quando houver boas razões para pensar que são falsas, essas
razões serão difundidas e discutidas e assumir-se-á que são falsas.
Note-se que isto não significa que os membros dessas instituições
sejam tão abertos à discussão quanto seria desejável. Alguns poderão não o
ser; mas isso é irrelevante se outros o forem e se estes não forem impedidos
de apresentar as suas ideias discordantes. Analogamente, numa instituição
que não permite a crítica aberta, alguns dos seus membros podem ser-lhe
favoráveis — mas isso não torna as afirmações dessa instituição dignas de
crédito. Só o serão se as vozes discordantes não forem silenciadas, mas
antes acolhidas, levadas a sério e frontalmente discutidas.
Assim, a nossa estrutura epistémica é eminentemente social não
apenas no sentido trivial de que só em conjunto sabemos o que nenhum de
nós sabe isoladamente: não se trata apenas de precisarmos de vários
cérebros para armazenar quantidades gigantescas de informação, como
quem precisa de vários armazéns de fruta. A nossa estrutura epistémica é
eminentemente social no sentido mais profundo de precisarmos de vários
olhares críticos para diminuir a probabilidade de sermos vítimas de erro e
ilusão — diminuir, note-se, e não eliminar. Em seres falíveis, dificilmente
haverá maneiras de eliminar o erro e a ilusão. Mas se tentarmos activamente
encontrar os erros e ilusões uns dos outros, teremos mais probabilidades de
os descobrir.
Mesmo intuitivamente, sem qualquer discussão epistemológica sobre
as consequências da nossa óbvia falibilidade, damos bastante importância
ao controlo social dos erros. Isto é bom, por um lado, mas mau, por outro. É
bom porque nos faz dar muita importância ao que as outras pessoas
afirmam; e se o que eles afirmam colide com o que nos parece que é
verdade, desconfiamos que poderemos ter errado. Mas também é mau
porque uma crença amplamente partilhada socialmente pode estar apesar de
tudo errada, tendo razão o ser humano isolado que contraria o que todos os
outros aceitam. Comecemos com o primeiro caso.
Imagine-se que, sem a Josefa saber, uma equipa de psicólogos decide
fazer uma experiência com ela. Falam com as pessoas do escritório de
advogados onde trabalha e, na hora do almoço, transformam o escritório
num consultório de dentista. Quando ela chega do almoço, entra no prédio,
entra no elevador e carrega no número 5. Chegado ao andar correcto, entra
no seu escritório e fica perplexa: não vê o que esperava ver, mas sim um
consultório desconhecido de dentista. A sua primeira reacção será
provavelmente duvidar de que esteja no andar correcto. Isso parece-lhe
mais provável, e é, do que a hipótese doida de o escritório onde trabalha há
mais de cinco anos ter desaparecido durante a hora do almoço. De modo
que sai do consultório e volta ao elevador. Para seu espanto, está mesmo no
quinto andar. Agora as coisas começam a ficar mais estranhas para ela. O
que poderá haver de errado? Fica ligeiramente desorientada: poderão todas
as suas memórias de que trabalha naquele prédio estar erradas? Será que
está a enlouquecer?
Um pouco desorientada, considera então que poderá ter-se enganado
no prédio. Entra no elevador, chega ao rés-do-chão e sai do prédio. O
resultado é assustador: é realmente aquele o prédio em que ela trabalha.
Pelo menos, tanto quanto se recorda. Muito provavelmente, a Josefa voltará
a entrar no elevador, porque duvida agora de que tenha realmente estado ao
quinto piso, apesar de o ter verificado há menos de cinco minutos. Irá de
novo ao quinto piso e, ao ver uma vez mais o estranho consultório de
dentista, começará a duvidar de que o seu escritório de advogados esteja
afinal no quinto andar. Não seria antes no 15.º?
O significado desta história é que o nosso contexto epistémico
quotidiano é feito de controlos e ajustes. Isso inclui não apenas a
observação directa das coisas, mas também as informações que os outros
nos transmitem. Em nenhuma acreditamos em absoluto; a todas damos
algum crédito. Quando vemos algo à nossa frente, em certas condições,
acreditamos que aquilo está mesmo ali. Quando vemos uma mulher a ser
serrada num número de circo, contudo, não acreditamos que está a ser
serrada. Quando falamos com as pessoas, acreditamos à partida no que nos
dizem; mas muitas vezes pensamos que têm razões para nos mentir, ou que
estão enganadas. Quando nos lembramos de coisas, como o andar em que
trabalhamos há cinco anos, acreditamos na nossa memória; mas por vezes
temos razões para duvidar dela. Quando ouvimos vozes, acreditamos
geralmente que algumas pessoas estão do outro lado a conversar; mas
desconfiamos que podemos estar a ficar esquizofrénicos se ouvirmos vozes
num deserto ou noutro lugar sem pessoas à nossa volta.
A ciência e a filosofia nada fazem de extraordinário excepto alargar
esta prática epistémica de controlos e ajustes a questões que são mais
difíceis de conhecer. Mas o princípio geral é o mesmo: avanços e recuos,
controlos e ajustes. Nem crendice nem cepticismo, mas algo no meio:
estudar pacientemente as coisas, formular hipóteses, testar ideias e
argumentos. Leva-se a sério o que nos diz um colega cientista, mas
precisamos conseguir reproduzir a experiência que diz ter feito ontem e ter
dado um resultado extraordinário; precisamos ver o que poderá ter corrido
mal, onde poderá esconder-se uma ilusão. Se o resultado é bom de mais
para ser verdadeiro, é provável que seja realmente bom de mais para ser
verdadeiro — e somos tanto mais rigorosos nos testes que fazemos e
exigimos.
Passemos agora para o segundo caso. As pessoas mentem e enganam-
se. Mas se forem erros epistemicamente comuns, as outras pessoas irão ter a
ilusão de estar a confirmá-los, precisamente por serem comuns. Sem
estudar cuidadosamente astronomia, nenhum ser humano tem razões
directas e óbvias para pensar que a Terra se move, ou que é esférica. E terá
uma razão acrescida para pensar que está imóvel: todas as outras pessoas à
sua volta pensam o mesmo. Parece improvável que todas estejam erradas,
ainda que o estejam de facto. Nessa circunstância, não é óbvio que seja
epistemicamente vicioso um ser humano crer que a Terra está imóvel e que
não é esférica, mas antes plana, ainda que tais crenças sejam falsas.
Se aceitarmos isto, teremos de aceitar a tese de Plantinga: em certos
contextos é epistemicamente legítimo acreditar em Deus sem provas — ou
melhor, sem provas cabais. Na realidade, haverá nesse contexto o mesmo
género de provas não cabais que temos para acreditar que a Terra é plana e
está imóvel: todas as pessoas à nossa volta acreditam em Deus e podemos
ter experiências religiosas ao contemplar a natureza ou ao ler livros
sagrados. É o que acontece a uma criança de doze anos, por exemplo, que
cresceu numa comunidade de adoradores do deus Rá. Todas as pessoas à
sua volta acreditam nessa divindade e ela sente uma comunhão com Rá em
certas circunstâncias. Quando lê os textos sagrados, sente certas emoções
que interpreta como um contacto com Rá. Ninguém na sua comunidade põe
em causa a existência nem as intervenções milagrosas de Rá. Ela acredita
em Rá, e a sua crença não parece epistemicamente ilegítima.

Diversidade epistémica
As considerações da secção anterior dão uma imagem da legitimidade
epistémica muito diferente do que por vezes se pensa. A ideia de que somos
agentes epistémicos sociais e de que estamos continuamente a fazer
controlos e ajustes nas nossas crenças colide com um ponto de vista
comum, na história da filosofia, no que respeita à justificação última das
nossas crenças. Esse ponto de vista tradicional tem a designação de
fundacionalismo. A ideia é que as nossas crenças só têm justificação, na sua
maioria, porque se baseiam noutras, das quais são inferidas. Assim,
acreditamos que não nascemos ontem, por exemplo, porque nos lembramos
de existir há vários anos. Portanto, a crença de que não nascemos ontem
baseia-se noutras crenças. Mas nem todas as crenças poderão basear-se
noutras, sob pena de regressão infinita; logo, algumas crenças são básicas:
crenças que não se baseiam noutras.
Às crenças básicas que são epistemicamente legítimas chama-se
crenças apropriadamente básicas. Determinar que crenças são
apropriadamente básicas é o que o fundacionalista terá de fazer. Quando o
fundacionalista considera que essas crenças básicas não incluem senão
crenças empíricas, é um empirista; quando considera que só incluem
crenças que não são empíricas, é um racionalista.
O fundacionalismo é um ponto de vista muito natural. E parece
particularmente apelativo a quem tem uma mentalidade científica. Neste
caso, a ideia é que as crenças apropriadamente básicas serão perceptivas. A
ciência é então vista como um desenvolvimento de teorias que se baseiam
em crenças perceptivas apropriadamente básicas. Suspeita-se que poderá
haver algo de errado nesta ideia quando consideramos que a agricultura
empírica, pré-científica, se baseia em crenças perceptivas básicas, mas não
tem o poder explicativo nem o grau de sofisticação e precisão que permita
afirmar que é científica. Um agricultor empírico sabe como cultivar um
terreno, mas não sabe explicar por que razão fazendo as coisas de uma
maneira tudo corre bem, mas tudo corre mal se fizermos de outra. Um
agricultor científico sabe explicar, pelo menos parcialmente, por que razão
as coisas funcionam de uma maneira e de outra não.
O que faz a diferença é que a agricultura científica resulta de se testar
explicitamente ideias diferentes e de se procurar activamente explicações
melhores, ao passo que a agricultura empírica consiste quase
exclusivamente na aceitação do que a tradição nos ensinou a fazer, e no que
podemos ver sem recorrer à observação sistemática nem a testes e controlos
explícitos. Assim, o que parece crucial é o carácter activo e temporal dos
nossos procedimentos epistémicos, num caso, e passivo e atemporal, no
outro. O que parece crucial não é, então, o carácter apropriadamente básico
das crenças de partida, nem o seu carácter observacional, mas antes a
atitude activa de procurar controlos e ajustes, ao longo do tempo.
Se rejeitarmos o fundacionalismo, contudo, não teremos de dizer que a
estrutura das nossas crenças é viciosamente circular? Afinal, se não há
crenças apropriadamente básicas com base nas quais estabelecemos as
outras, o que estabelece a verdade de uma crença? Chama-se coerentista à
ideia de que as nossas crenças podem justificar-se entre si sem que tal
círculo seja vicioso. Na teoria coerentista pode-se aceitar que algumas
crenças são mais básicas ou elementares do que outras; mas nega-se que
existam crenças rigorosamente básicas, com base nas quais todas as outras
se justifiquem.
O caso da Josefa, acima, ajuda a compreender o coerentismo: em
alguns contextos, confiamos na nossa memória; noutros, pomos a memória
em causa. Há uma dialéctica contínua entre o que está em causa, o contexto
em que estamos e muitas outras crenças relacionadas com o que está em
causa. Quotidianamente, não parece sensato pôr em causa que a Terra está
imóvel; mas a continuação do nosso estudo da natureza pode fazer-nos
rever esta crença. Para o fazermos, contudo, teremos de ter um conjunto de
outras crenças que julgamos mais sólidas do que essa: podemos rever
qualquer crença, mas não as revemos todas ao mesmo tempo nem à toa,
sem ter em consideração as outras crenças relacionadas. E este processo de
rever crenças é contínuo, decorrendo ao longo do tempo.
Porque somos falíveis, a virtude epistémica exige que estejamos
dispostos a pôr em causa as nossas crenças, incluindo as mais queridas. E é
difícil imaginar contextos epistémicos nos quais a falibilidade humana não
seja evidente. Contudo, em muitos contextos epistémicos, a falibilidade
humana é objecto de ocultação, fingindo-se que certas pessoas ou
instituições são infalíveis, sendo impróprio e até ofensivo e blasfemo pôr
em causa o que essas pessoas e instituições afirmam. Se levarmos a sério a
falibilidade humana, um agente terá tanto menos legitimidade epistémica
para aceitar o que afirma um grupo de pessoas quanto mais essas pessoas
procuram impedir que as suas afirmações sejam postas em causa. E, em
muitos casos, basta que nos perguntemos se as pessoas que afirmam algo
não poderão estar enganadas para destruir a aparência de autoridade
epistémica que fingem deter.
Considere-se o Adelino. Vive numa comunidade tradicional, sem
conhecimentos científicos. Não faz a mínima ideia sobre a constituição da
água, nem sobre a natureza do Sol. Ignora que a Terra não está imóvel, e
parece-lhe óbvio que está imóvel. Mas mesmo ele sabe que somos falíveis,
pois muitas vezes lhe parecia ver ao longe alguém, quando afinal era só
uma árvore; ou parece recordar-se de ter visto uma árvore num dado lugar,
e depois descobre que afinal estava noutro. Além disso, vê que o mesmo
ocorre com as outras pessoas da sua comunidade. Por isso, se reflectir
cuidadosamente, verá que não é só ele que não tem realmente razões de
muito peso para pensar que a Terra está imóvel: ninguém na sua
comunidade as tem. Com respeito a uma crença inócua como esta, o
Adelino talvez esteja disposto a abandoná-la, se com o decorrer do tempo
começar a ter razões para pensar que é falsa. E se não estiver disposto a
isso, será epistemicamente vicioso.
Se considerarmos agora o género de interlocutor que Clifford tem em
mente, vemos muitas diferenças. Clifford fala para ingleses do séc. XIX.
Nesta altura, muitas crenças tradicionais foram postas em causa, à medida
que os estudos cada vez mais complexos prosseguiam. Neste contexto
epistémico, já não é verdadeiro que toda a gente pensa que Deus existe, por
exemplo. Neste contexto, muitos estudiosos declaram-se descrentes. Neste
contexto, nenhum Adelino, educado na fé cristã, pode ficar indiferente
perante a hipótese de estar enganado quando pensa que a divindade cristã
existe; e se o ficar, é porque não é epistemicamente virtuoso.
O primeiro resultado desta análise é que aceitar a tese de Plantinga tem
consequências menos fortes do que se poderia pensar. Tudo o que Plantinga
defende é que em certos contextos é epistemicamente legítimo crer em
Deus sem provas. Mas não mostra que é epistemicamente legítimo crer em
Deus sem provas num contexto em que muitos outros agentes epistémicos
põem a existência de Deus em causa. Só conseguiria mostrar isso se
conseguisse mostrar que as crenças ateias não devem ser tidas em conta
pelos crentes, por qualquer razão. Mas que razão poderemos invocar?
Podemos defender que falta aos descrentes uma faculdade especial, o
sensus divinitatis; ou que esta faculdade foi corrompida pelo pecado. O
problema de qualquer uma destas ideias é não ser mais evidentemente
verdadeira do que a hipótese de que são as pessoas crentes que são vítimas
de ilusão, ou que são epistemicamente viciosas, crendo ser verdadeiro o que
lhes dá jeito crer que é verdadeiro.
Esta será outra discussão; para já, importa apenas mostrar o papel da
diversidade e da tolerância na nossa estrutura epistémica. A diversidade de
pontos de vista é uma ameaça a sistemas de crenças que se protegem
precisamente porque as pessoas que têm essas crenças desconfiam que são
falsas, mas gostariam que fossem verdadeiras. É difícil conceber qualquer
virtude epistémica nesta atitude. Trata-se tão-somente de evitar o incómodo
de ter de mudar de ideias. Quem crê sinceramente que as suas ideias são
verdadeiras não pode sentir-se assustado quando alguém as põe em causa. E
quem ao mesmo tempo crê na sua óbvia falibilidade epistémica, quererá
pô-las em causa, pois se não resistirem ao exame crítico é porque são
provavelmente falsas e devem ser abandonadas.
A diversidade epistémica é por isso saudável, e terá de ser acolhida
com agrado por quem for epistemicamente virtuoso. Cada um de nós pode
pôr em causa as ideias em que acredita, mas a melhor pessoa para o fazer é
o nosso semelhante que desde o início não acredita nessas ideias. Assim,
qualquer crente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os descrentes
que argumentam contra a sua fé; e qualquer descrente epistemicamente
virtuoso acolhe com agrado os crentes que argumentam a favor da fé. O
valor epistémico da diversidade de opiniões é permitir que as ideias mais
díspares sejam defendidas por quem genuinamente acredita nelas. E o
primeiro sinal de vício epistémico é a falta de tolerância, que se revela na
vontade de eliminar ou silenciar quem pensa de maneira diferente de nós,
ou na manipulação da discussão, tornando-a um exercício performativo que
visa cativar e seduzir, e não descobrir a verdade e detectar o erro.
Admitindo que James e Plantinga conseguem resolver as dificuldades
discutidas, o que se segue da aceitação das suas posições é a legitimidade
epistémica de crer sem provas; não se segue das suas posições a
legitimidade de crer com imensa convicção sem provas. Se considerarmos
que crer com imensa convicção é constitutivo da fé, então nenhum destes
dois filósofos foi bem-sucedido em defender a legitimidade epistémica da
fé sem provas.

Conclusão
Ambrose Bierce (1842–1914) definiu a fé como «Crença sem indícios no
que diz quem fala sem conhecimento de coisas sem paralelo».1 Esta
humorística definição caracteriza bem a atitude de muitos descrentes, que
consideram por vezes a fé um paradigma de vício epistémico. Muitos
crentes, por sua vez, consideram que esta atitude é insensível a realidades
mais importantes e profundas, incluindo os aspectos vivenciais de quem
tem uma vida e atitude religiosa. O exame preliminar aqui realizado de
algumas ideias e conceitos centrais desta área poderá ajudar crentes e
descrentes a discutir melhor o tema. Outro não era o objectivo.
2

A ÉTICA DA CRENÇA
W. K. CLIFFORD

1. O dever de investigar

Um armador preparava-se para enviar para o mar um navio com


emigrantes. Sabia que o navio estava velho e tinha defeitos de construção;
que conhecera já muitos mares e climas e teve de ser reparado muito mais
de uma vez. Alguém sugeriu ao armador que o navio talvez não estivesse
em condições de navegar. Estas dúvidas pesavam-lhe na consciência e
deixavam-no infeliz; pensou que talvez devesse mandar inspeccionar e
renovar completamente o navio, embora isto provavelmente ficasse bastante
caro. Antes de o navio zarpar, contudo, o armador conseguiu deixar para
trás estes pensamentos melancólicos. Disse para consigo que o navio
enfrentara com êxito tantas viagens e resistira a tantas tempestades que não
havia razão para supor que não regressaria ileso também desta viagem. O
armador confiaria na providência, que seguramente não deixaria de proteger
todas aquelas infelizes famílias que abandonavam a pátria em busca de uma
vida melhor alhures. Silenciaria todas as dúvidas mesquinhas acerca da
honestidade dos construtores e dos empreiteiros. Assim, alcançou uma
certeza sincera e confortável de que o seu navio era completamente seguro
e estava em condições de navegar; viu-o partir com despreocupação e
desejos caridosos de que os exilados fossem bem-sucedidos no novo e
estranho lar que os esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o navio
se afundou em pleno mar sem deixar rasto.
O que diremos do armador? Seguramente, que é muitíssimo culpado
pela morte daqueles homens. Admitindo-se que acreditava sinceramente no
bom estado do seu navio, a sinceridade da sua convicção, porém, não lhe
pode valer de maneira alguma, porque não tinha o direito de acreditar com
base nos indícios de que dispunha. Não adquiriu a sua crença por mérito
honesto, através da investigação paciente, mas silenciando as suas dúvidas.
E embora no final a sua certeza sobre o assunto fosse porventura tão grande
que não era capaz de pensar de outra maneira, temos de o considerar
responsável pelo sucedido, na medida em que se colocou deliberada e
voluntariamente naquele estado de espírito.
Alteremos um pouco a história e suponhamos que o navio não estava,
afinal, em mau estado; suponhamos que fez a viagem em segurança, e
muitas outras viagens após aquela. Será que isso diminui a culpa do seu
proprietário? Nem um pouco. Quando se pratica uma acção uma vez, esta é
correcta ou incorrecta para sempre; nenhuma falha acidental das suas boas
ou más consequências pode alterar isso. O homem não seria inocente;
apenas não teria sido descoberto. A questão do correcto e do incorrecto tem
a ver com a origem da crença do armador, e não com o seu conteúdo; não é
a crença que conta, mas o modo como a adoptou; não se trata de a crença
ser afinal verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou não o direito a
acreditar com base nos indícios de que dispunha.
Era uma vez uma ilha onde alguns dos habitantes seguiam uma
religião que não pregava a doutrina do pegado original nem a doutrina do
castigo eterno. Espalhou-se a suspeita de que os seguidores desta religião se
tinham servido de meios desonestos para ensinar as suas doutrinas às
crianças. Acusaram-nos de violar as leis do país de maneira a afastar as
crianças da vigilância de quem tinha a sua custódia natural e legal; e até de
as roubar e manter escondidas dos amigos e familiares. Algumas pessoas
formaram uma associação com o objectivo de provocar a agitação do
público a respeito deste assunto. Publicaram acusações graves contra
cidadãos individuais do mais elevado estatuto e reputação, e fizeram tudo o
que estava em seu poder para lesar estes cidadãos no exercício das suas
profissões. Fizeram tamanho barulho que foi nomeada uma comissão para
investigar os factos; mas após a comissão ter averiguado cuidadosamente
todos os indícios que se podia obter, parecia que os acusados estavam
inocentes. Não só foram acusados com base em indícios insuficientes, como
os indícios da sua inocência eram tais que os agitadores os podiam ter
facilmente obtido, se tivessem procurado fazer uma investigação imparcial.
Após estas revelações, os habitantes daquele país passaram a encarar os
membros da associação agitadora não só como pessoas em cujo
discernimento não se devia confiar, mas também como indivíduos que não
mais podiam considerar honestos. Pois embora acreditassem sincera e
diligentemente nas acusações que fizeram, não tinham todavia o direito de
acreditar com base nos indícios de que dispunham. As suas convicções
sinceras, em vez de merecidas pela investigação paciente, foram roubadas,
dando ouvidos à voz do preconceito e da paixão.
Introduzamos uma variação também neste caso e suponhamos,
deixando o resto na mesma, que uma investigação ainda mais meticulosa
provava que os acusados eram realmente culpados. Faria isto diferença
alguma para a culpa dos acusadores? Evidentemente que não; a questão não
é a de a sua crença ser ou não verdadeira, mas a de a terem ou não
sustentado sem razões adequadas. Sem dúvida diriam: «Agora vêem que
afinal de contas tínhamos razão; talvez para a próxima acreditem em nós.»
E talvez acreditassem neles, mas não se tornariam homens honestos por
causa disso. Não estariam inocentes, apenas não teriam sido descobertos. Se
cada um deles, sem excepção, decidisse examinar-se in foro conscientiae,
saberia que tinha adquirido e acalentado uma crença, quando não tinha o
direito de acreditar com base nos indícios de que dispunha; e assim saberia
ter feito uma coisa incorrecta.
Dir-se-á, todavia, que em ambos estes casos hipotéticos não se
considera errada a crença mas a acção que dela decorre. O armador pode
afirmar: «Tenho a absoluta certeza de que o meu navio está em bom estado,
mas ainda assim sinto que é meu dever mandar examiná-lo, antes de lhe
confiar as vidas de tanta gente.» E poder-se-ia dizer ao agitador: «Por muito
convencido que estejas da justeza da tua causa e da verdade das tuas
convicções, não devias ter atacado publicamente o carácter de uma pessoa
antes de teres examinado os indícios de ambos os lados com a máxima
paciência e cuidado.»
Em primeiro lugar, admitamos que, no que diz respeito ao nosso
assunto, esta perspectiva é correcta e necessária; correcta, porque mesmo
quando um homem tem uma crença tão firme que o torna incapaz de pensar
de outra maneira, continua a ter escolha relativamente à acção que a crença
lhe sugere e, portanto, não pode escapar ao dever de investigar o
fundamento da força das suas convicções; e necessária, porque aqueles que
não são ainda capazes de controlar os seus sentimentos e pensamentos
precisam de uma regra clara para lidar com actos inequívocos.
Mas tendo-a formulado como necessária, torna-se claro que não é
suficiente, e que é preciso complementá-la com o nosso juízo anterior. Pois
não é possível separar assim a crença da acção que aquela sugere, de
maneira a condenar uma, mas não a outra. Ninguém que sustente uma
crença forte sobre um dos lados de uma questão, ou mesmo deseje sustentar
uma crença sobre um desses lados, pode investigá-la com a mesma
imparcialidade e meticulosidade que teria se realmente duvidasse e fosse
isento; pelo que a existência de uma crença que não é sustentada por uma
investigação imparcial torna um homem inapto para a realização deste
dever necessário.
Tão-pouco é uma crença aquilo que não influencia de modo algum as
acções de quem o sustenta. Quem verdadeiramente acredita naquilo que o
encoraja a realizar uma acção contemplou já a acção com um desejo
intenso, já a realizou no seu coração. Se uma crença não se realiza
imediatamente em acções inequívocas, é reservada para orientação no
futuro. Passa a fazer parte daquele agregado de crenças que é o elo entre a
sensação e a acção em cada momento de todas as nossas vidas, e que está
de tal maneira organizado e compactado que nenhuma parte deste se pode
isolar do resto, cada novo acrescento modificando a estrutura do todo.
Nenhuma crença genuína, por mais superficial e fragmentária, é, em
circunstância alguma, realmente insignificante; prepara-nos para receber
mais crenças semelhantes, confirma as crenças semelhantes anteriores, e
enfraquece outras; e assim, gradualmente, estabelece um fio condutor
implícito nos nossos pensamentos mais íntimos, que pode um dia
manifestar-se em acções inequívocas e deixar a sua marca no nosso carácter
para sempre.
Em circunstância alguma a crença de um homem é um assunto
privado, que apenas diga respeito ao próprio. As nossas vidas guiam-se por
essa concepção geral da ordem das coisas que a sociedade criou para fins
sociais. As nossas palavras, as nossas expressões, as nossas formas,
processos e modos de pensamento, são propriedade comum, modificados e
aperfeiçoados de época para época; um legado que cada geração sucessiva
herda como um depósito precioso e uma doação sagrada a transmitir à
geração seguinte, não sem modificações, mas alargado e depurado, com
algumas marcas distintas do seu engenho específico. Nisto, para o bem e
para o mal, se entretece cada crença de cada homem que partilha a língua
dos seus semelhantes. É um terrível privilégio e uma terrível
responsabilidade, ajudarmos a criar o mundo no qual viverão as gerações do
futuro.
Nos dois casos hipotéticos que temos vindo a ponderar, considerou-se
incorrecto acreditar com base em indícios insuficientes, ou acalentar
crenças suprimindo as dúvidas e evitando a investigação. A razão deste
juízo não é difícil de ver: é que em ambos os casos a crença sustentada por
um homem era de grande importância para outros homens. Mas na medida
em que nenhuma crença sustentada por um homem, por muito trivial que a
crença pareça e por muito obscuro que seja o crente, é na realidade
insignificante ou desprovida de consequências para o destino da
humanidade, não temos escolha senão alargar o nosso juízo a todos e
quaisquer casos de crença. A crença, essa faculdade sagrada que impulsiona
as decisões da nossa vontade e une num funcionamento harmonioso todas
as energias compactas do nosso ser, pertence-nos não para nosso usufruto,
mas para a humanidade. É correctamente usada em verdades que foram
estabelecidas pela longa experiência e pelo trabalho persistente, que
enfrentaram a luz intensa do questionamento livre e intrépido. Além disso,
ajuda a unir os homens, a fortalecer e orientar a sua acção comum. Profana-
se a crença ao concedê-la a afirmações improvadas e inquestionadas, para
consolo e prazer privado do crente; para acrescentar um falso esplendor à
estrada simples e directa da nossa vida e exibir para além dela uma
miragem radiosa; ou mesmo para afogar as angústias comuns da nossa
espécie através de um auto-engano que lhes permite não só deprimir-nos
como rebaixar-nos. Quem desejar bem aos seus semelhantes nesta matéria
guardará a pureza da sua crença com o fanatismo próprio de um zelo
ciumento, para que a dada altura não recaia sobre um objecto indigno,
ganhando uma mancha que jamais se poderá remover.
Não é só o líder de homens, o estadista, o filósofo, ou o poeta, que tem
este dever moral perante a humanidade. Cada campónio que debita na
taberna da aldeia as suas frases lentas e esporádicas pode ajudar a matar ou
a manter vivas as superstições fatais que toldam o seu género. Cada
diligente esposa de artesão pode transmitir aos filhos crenças que manterão
a sociedade coesa ou a farão em pedaços. Nenhuma ingenuidade, nenhuma
obscuridade de estatuto, podem escapar ao dever universal de questionar
tudo aquilo em que acreditamos.
É verdadeiro que este dever é difícil e a dúvida que dele nasce é muitas
vezes amarga. Deixa-nos desprotegidos e impotentes quando nos
julgávamos seguros e fortes. Saber tudo acerca de qualquer coisa é saber
como lidar com isso em todas as circunstâncias. Sentimo-nos muito mais
felizes e seguros quando julgamos saber exactamente o que fazer,
independentemente do que acontece, do que quando nos perdemos e não
sabemos por onde ir. E se pensávamos saber tudo acerca de alguma coisa e
nos julgávamos capazes de agir adequadamente a esse respeito, é natural
que não nos agrade descobrir que na verdade somos ignorantes e
impotentes, que temos de voltar mais uma vez ao início e daí partir, tentar
aprender o que a coisa é e como se deve lidar com ela — se é que na
verdade podemos conhecer algo acerca disso. É o sentido do poder ligado a
um sentido do conhecimento que deixa os homens desejosos de acreditar e
receosos de duvidar.
Este sentido do poder é o mais elevado e o melhor dos prazeres,
quando a crença em que se funda é verdadeira e foi honestamente alcançada
pela investigação. Pois então podemos sentir com justiça que é propriedade
comum e se aplica aos outros bem como a nós mesmos. Então podemos
alegrar-nos, não porque eu tenha aprendido segredos que me dão maior
segurança e força, mas porque nós, homens, ganhámos domínio sobre uma
maior porção do mundo; e seremos fortes, não por nós próprios, mas em
nome do Homem e da sua força. Mas se a crença foi aceite com base em
indícios insuficientes, é um prazer roubado. Não só nos engana ao dar-nos
um sentido do poder que efectivamente não temos, como é pecaminoso,
porque é roubado em desprezo pelo nosso dever perante a humanidade.
Esse dever consiste em precaver-nos de tais crenças como de uma epidemia,
que pode em pouco tempo tomar conta do nosso próprio corpo e então
propagar-se para o resto da cidade. O que se pensaria daquele que, por
causa de um fruto doce, corresse deliberadamente o risco de trazer uma
epidemia à sua família e aos seus vizinhos?
E, como acontece noutros casos, não é apenas o risco o que se tem de
considerar; pois uma má acção é sempre má no momento em que é
praticada, independentemente do que aconteça depois. Sempre que nos
permitimos acreditar por razões indignas, enfraquecemos os nossos poderes
de autocontrolo, de dúvida, de avaliação imparcial e honesta dos indícios.
Todos sofremos gravemente com a sustentação de crenças falsas e as acções
fatalmente incorrectas a que conduzem, e o mal que decorre de se sustentar
tal crença é grande e vasto. Mas surge um mal maior e mais vasto quando o
temperamento crédulo é mantido e apoiado, quando se acalenta e perpetua o
hábito de acreditar por razões indignas. Se roubo dinheiro a uma pessoa
qualquer, talvez não resulte um grande mal da mera transferência de posse;
ela pode não sentir a perda, ou talvez isto a impeça de dar mau uso ao
dinheiro. Mas não deixo de fazer este grande mal à humanidade: o de me
tornar desonesto. O que lesa a sociedade não é a perda da propriedade, mas
o de se tornar um covil de ladrões; pois então deixará forçosamente de ser
uma sociedade. Por esta razão não devemos fazer um mal para que dele
resulte um bem; pois em todo o caso daí resulta este grande mal: que fiz um
mal e que por isso me tornei malvado. De igual modo, se me permito
acreditar seja no que for com indícios insuficientes, da mera crença pode
não resultar grande mal; pode afinal ser verdadeira, ou posso nunca ter
ocasião de a manifestar em acções públicas. Mas não deixo de cometer este
grande mal contra o Homem: o de me tornar crédulo. O perigo para a
sociedade não é meramente o de acreditar em coisas erradas, embora isso
seja suficientemente mau; mas o de se tornar crédula e perder o hábito de
testar as coisas e de as investigar; pois então reincidirá forçosamente na
selvajaria.
O mal que a credulidade faz num homem não se limita à estimulação
de um carácter crédulo nos outros e à decorrente defesa de crenças falsas. O
hábito de ser descuidado com aquilo em que acredito leva os outros a serem
por hábito descuidados com a verdade daquilo que me é dito. Os homens
dizem a verdade uns aos outros quando cada um respeita a verdade na sua
própria mente e na mente do outro; mas como poderá o meu amigo respeitar
a verdade na minha mente quando eu próprio sou descuidado com ela,
quando acredito em coisas porque quero acreditar nelas, porque são
reconfortantes e agradáveis? Não aprenderá ele a exclamar «paz», na minha
presença, quando não há qualquer paz? Adoptando tal caminho, envolver-
me-ei numa atmosfera carregada de falsidade e fraude e aí tenho de viver.
Talvez seja de pouca importância para mim, no meu castelo nas nuvens,
feito de doces ilusões e mentiras queridas; mas para a humanidade é de
enorme importância que eu tenha preparado os meus vizinhos para
enganarem. O homem crédulo é o pai do mentiroso e do batoteiro; vive no
seio da sua família, e não é de admirar que fique igualzinho a eles. Tão
intimamente unidos estão os nossos deveres que quem observa a lei em
geral e, no entanto, a transgride num ponto particular, é culpado de tudo.
Resumindo: é sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer
pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes.
Se um homem, ao manter uma crença que lhe foi ensinada em criança
ou da qual o persuadiram mais tarde, reprime e afasta quaisquer dúvidas
que lhe surgem na mente a esse respeito, evita intencionalmente a leitura de
livros e a companhia de homens que questionam ou discutem essa crença, e
considera ímpias as perguntas que não se pode colocar facilmente sem a
perturbar — a vida desse homem é um enorme pecado contra a
humanidade.
Se este juízo parece severo quando aplicado àquelas almas simples que
nunca conheceram outra coisa, que desde o berço foram educadas no horror
à dúvida, a quem ensinaram que o seu bem-estar eterno depende daquilo em
que acreditam, então leva-nos à questão muito grave: Quem fez Israel
pecar?
Talvez se me permita reforçar este juízo com o veredicto de Milton:2

«Um homem pode ser um herético na verdade; e se acredita nas coisas


apenas porque o seu pastor o afirma, ou a assembleia assim o
determina, sem conhecer outra razão, embora a sua crença seja
verdadeira, a própria verdade que sustenta torna-se a sua heresia.»

E com este famoso aforismo de Coleridge:3

«Quem começa por amar mais o cristianismo do que a verdade,


começará a amar mais a sua própria seita ou igreja do que o
cristianismo, e acabará por se amar a si próprio mais do que a tudo.»

A investigação dos indícios respeitantes a uma doutrina não se faz de uma


vez por todas para então se assumir como definitivamente resolvida. Nunca
é legítimo silenciar uma dúvida; pois que ou se lhe pode responder
honestamente através da investigação já feita, ou então a dúvida é a prova
de que a investigação não está completa.
«Mas», dir-se-á, «sou um homem ocupado; não tenho tempo para os
demorados estudos que seriam necessários para me dar alguma competência
para avaliar certas questões, ou mesmo para me tornar capaz de
compreender a natureza dos argumentos.» Nesse caso, não deveria ter
tempo para acreditar.

II. O peso da autoridade


Teremos então de nos tornar cépticos universais, duvidando de tudo, sempre
receosos de pôr um pé à frente do outro antes de termos testado
pessoalmente a solidez do pavimento? Teremos de nos privar da ajuda e
orientação daquele vasto corpo de conhecimento que cresce diariamente em
todo o mundo, porque nem nós nem qualquer outra pessoa pode em
circunstância alguma testar a centésima parte desse conhecimento por
experiência imediata ou por observação, e porque não estaria
completamente provado se o fizéssemos? Roubaremos e pregaremos
mentiras por não termos tido uma experiência pessoal suficientemente vasta
para justificar a crença de que é incorrecto fazê-lo?
Não há qualquer perigo prático de que tais consequências alguma vez
decorram do cuidado escrupuloso e do autocontrolo em matéria de crença.
Aqueles homens que mais se aproximaram de cumprir o seu dever a este
respeito consideraram que certos princípios muito importantes, sendo estes
os mais apropriados para a orientação da vida, se destacaram cada vez mais
nitidamente em proporção ao cuidado e honestidade com que foram
testados, e adquiriram assim uma certeza prática. As crenças acerca do que
é correcto ou incorrecto, que orientam as nossas acções ao lidar com os
homens em sociedade, e as crenças acerca da natureza física que orientam
as nossas acções ao lidar com corpos animados e inanimados, nunca são
prejudicadas pela investigação; estas sabem tomar conta de si próprias, sem
serem sustentadas com «actos de fé», com o alarido de apologistas
remunerados ou com a supressão de indícios contrários. Além disso, há
muitos casos em que temos o dever de agir com base em probabilidades,
embora os indícios não sejam tais que justifiquem a crença em causa;
porque é precisamente por tal acção e pela observação dos seus resultados
que se obtém indícios que podem justificar a crença futura. Pelo que não
temos qualquer razão para temer que um hábito de investigação escrupulosa
paralise as acções da nossa vida quotidiana.
Mas porque não basta afirmar «É incorrecto acreditar com base em
indícios indignos» sem explicar também que indícios são dignos, passamos
agora a investigar as circunstâncias em que é legítimo acreditar com base
no testemunho de outros; e depois, além disso, investigaremos mais em
geral quando e por que razão podemos acreditar naquilo que ultrapassa a
nossa experiência, ou mesmo a experiência da humanidade.
Assim, perguntemos, antes de mais, em que casos o testemunho de um
homem não é digno de crédito. Este pode afirmar o que é contrário à
verdade, sabendo-o ou não. No primeiro caso, mente, e o seu carácter moral
é culpável; no segundo, é ignorante ou está equivocado, e apenas o seu
conhecimento ou discernimento estão em falta. De maneira a podermos ter
o direito de aceitar o seu testemunho como base para acreditar no que
afirma, precisamos de uma justificação razoável para confiar na sua
veracidade: que ele procura realmente dizer a verdade na medida em que a
conhece; no seu conhecimento: que teve oportunidade de conhecer a
verdade acerca deste assunto; e no seu discernimento: que fez um uso
apropriado dessas oportunidades ao chegar à conclusão que anuncia.
Por muito simples e óbvias que sejam estas razões, de modo que
nenhum homem de inteligência mediana, ao reflectir no assunto, pode
deixar de alcançá-las, é ainda assim verdadeiro que um grande número de
pessoas tem por hábito desconsiderá-las ao avaliar um testemunho. Das
duas questões, igualmente importantes para a credibilidade da testemunha,
«É desonesto?» e «Pode estar enganada?», os membros da humanidade, na
sua maioria, ficam perfeitamente satisfeitos se a uma delas se pode, com
alguma probabilidade, responder pela negativa. O excelente carácter moral
de um homem é apresentado como justificação para aceitar as suas
declarações acerca de coisas que não pode de maneira alguma conhecer.
Um maometano, por exemplo, dir-nos-á que o carácter do seu Profeta era
tão nobre e majestoso que impõe reverência mesmo àqueles que não
acreditam na sua missão. Tão admirável foi o seu ensinamento moral, tão
sabiamente edificada a máquina social que criou, que não só uma grande
parcela da humanidade aceitou os seus preceitos, como lhes tem
efectivamente obedecido. As suas instituições, por outro lado, fizeram o
negro sair da selvajaria e por outro lado ensinaram a civilização ao
Ocidente em desenvolvimento; e embora os povos que detinham as formas
mais elevadas da sua fé, e que mais plenamente davam corpo aos seus
ideais e pensamento, tenham todos sido conquistados e dizimados por tribos
bárbaras, a história dos seus feitos maravilhosos permanece uma glória
imperecível para o Islão. Poderemos duvidar da palavra de um homem tão
grandioso e tão bom? Poderemos supor que este magnífico génio, este
esplêndido herói moral, nos mentiu acerca das matérias mais solenes e
sagradas? O testemunho de Maomé é claro: que não há senão um Deus, e
que ele, Maomé, é o seu Profeta; que se acreditarmos nele, gozaremos da
felicidade perpétua, mas que se não acreditarmos, seremos condenados.
Este testemunho assenta no mais terrível dos alicerces, a revelação dos
próprios céus; pois não foi ele visitado pelo anjo Gabriel, enquanto jejuava
e rezava na sua gruta no deserto, tendo-lhe sido permitida a entrada nos
campos abençoados do Paraíso? Seguramente que Deus é Deus e Maomé é
o Profeta de Deus.
O que deveríamos responder a este muçulmano? Em primeiro lugar,
sem dúvida, talvez nos sintamos tentados a protestar contra a sua
perspectiva do carácter do Profeta e da influência uniformemente benigna
do Islão: antes de o acompanharmos completamente nestes assuntos, parece
que talvez tivéssemos de esquecer muitas coisas terríveis de que ouvimos
falar ou que lemos. Mas se decidimos conceder-lhe estes pressupostos, para
fins de argumentação, e porque é difícil tanto para o fiel como para os
infiéis discuti-los imparcial e desapaixonadamente, ainda assim teríamos
algo a dizer que lhe retira a base da sua crença, mostrando, portanto, que é
incorrecto sustentá-la. Nomeadamente, o seguinte: o carácter de Maomé é
um excelente indício de que era honesto e dizia a verdade tanto quanto a
sabia; mas não é indício, de todo em todo, de que soubesse o que era a
verdade. Que meios teria de saber que a forma que lhe pareceu o anjo
Gabriel não era uma alucinação e que a sua aparente visita ao Paraíso não
foi um sonho? Conceda-se que ele próprio estava plenamente persuadido e
acreditava honestamente que tinha a orientação dos céus e era o veículo de
uma revelação sobrenatural, como podia saber que esta forte convicção não
era um equívoco? Coloquemo-nos no seu lugar; veremos que quanto mais
nos esforçarmos por compreender plenamente o que lhe passava pela
mente, mais claramente veremos que o Profeta não podia ter qualquer
sustentação adequada para a crença na sua própria inspiração. É muitíssimo
provável que ele próprio nunca tenha duvidado do assunto, ou sequer
pensasse em colocar a questão; mas nós falamos do ponto de vista daqueles
a quem foi colocada a pergunta e que têm de lhe dar uma resposta. É do
conhecimento dos observadores médicos que a solidão e a carência
alimentar são meios poderosos de produzir a delusão e de fomentar uma
tendência para a doença mental.4 Suponhamos então que, como Maomé,
vou para lugares desertos jejuar e rezar; que coisas me podem acontecer que
me darão o direito de acreditar que recebi a inspiração divina? Suponhamos
que recebo informação, aparentemente de um visitante celestial, que, ao ser
testada, se considera correcta. Não posso ter a certeza, em primeiro lugar,
de que o visitante celestial não é um produto da minha própria imaginação e
que a informação não me chegou, sem que na altura tivesse consciência
disso, através de um qualquer meio sensorial subtil. Mas se o meu visitante
era um visitante real e durante muito tempo me deu informação que se
concluiu ser fidedigna, isto constituiria de facto uma justificação para
confiar nele futuramente, no que diz respeito a assuntos que entram no
âmbito da capacidade humana de verificação; mas não seria justificação
para confiar no seu testemunho em quaisquer outros assuntos. Pois embora
o seu carácter comprovado me desse justificação para acreditar que dizia a
verdade tanto quanto a sabia, colocar-se-ia a mesma questão: que
justificação há para supor que ele sabe?
Mesmo que o meu hipotético visitante me tivesse dado tal informação,
subsequentemente verificada por mim, probatória de que dispunha de meios
de conhecimento, acerca de assuntos verificáveis, muitíssimo superiores aos
meus, isto não me daria justificação para acreditar no que ele afirmava
acerca de assuntos que de momento não são susceptíveis de verificação pelo
homem. Daria suporte a uma conjectura interessante e à esperança de que,
em resultado da nossa investigação paciente, pudéssemos eventualmente
conseguir tais meios de verificação, que justificadamente transformariam a
conjectura em crença. Pois a crença pertence ao homem e à orientação dos
assuntos humanos: nenhuma crença é real a menos que oriente as nossas
acções, e essas mesmas acções fornecem um teste da sua verdade.
Mas, replicar-se-á, a aceitação do Islão como um sistema é
precisamente a acção que é encorajada pela crença na missão do Profeta, e
que servirá para um teste da sua verdade. Será possível acreditar que um
sistema que prosperou tanto está realmente fundado numa delusão? Não só
os santos individuais encontraram alegria e paz na crença, e verificaram
essas experiências espirituais que são prometidas aos fiéis, como também se
ergueu nações da selvajaria e do barbarismo até um estado social mais
elevado. Seguramente podemos afirmar que se agiu com base na crença e
que foi verificada.
Não se exige, todavia, senão alguma ponderação para mostrar que
aquilo que realmente se verificou não é de todo em todo o carácter celestial
da missão do Profeta, ou a fidedignidade da sua autoridade em assuntos que
nós próprios não temos como testar, mas apenas a sua sabedoria prática em
certas coisas bastante mundanas. O facto de que os crentes encontraram
alegria e paz na crença dá-nos o direito de afirmar que a doutrina é
confortável, agradável à alma; mas não nos dá o direito de afirmar que é
verdadeira. E a questão que a nossa consciência levanta sempre acerca
daquilo em que nos sentimos tentados a acreditar não é «Será confortável e
agradável?», mas «Será verdadeira?». Que o Profeta pregou determinadas
doutrinas e previu que nelas se encontraria o conforto espiritual, prova
apenas a sua compaixão pela natureza humana e o seu conhecimento da
mesma; mas não prova o seu conhecimento sobre-humano da teologia.
E se admitimos para fins de argumentação (pois parece que mais não
podemos fazer) que o progresso feito pelas nações muçulmanas em certos
casos se deve realmente ao sistema formado e lançado no mundo por
Maomé, não nos é permitido concluir a partir daqui que ele foi inspirado a
declarar a verdade acerca de coisas que não podemos verificar. Só nos é
permitido inferir a excelência dos seus preceitos morais, ou dos meios que
concebeu para levar os homens a obedecer-lhes, ou da maquinaria social e
política que estabeleceu. E seria preciso examinar muito cuidadosamente a
história destas nações para determinar quais destas coisas influenciaram
mais o resultado. Pelo que, mais uma vez, é o conhecimento do Profeta
acerca da natureza humana e a sua compaixão pela mesma que se
verificam; e não a sua inspiração divina ou o seu conhecimento da teologia.
Se houvesse apenas um Profeta, com efeito, podia muito bem parecer
uma tarefa difícil e mesmo desagradável decidir os aspectos com base nos
quais confiaríamos nele e os aspectos com base nos quais duvidaríamos da
sua autoridade, vendo a ajuda e o progresso que todos os homens ganharam
em todas as épocas com os que viam mais claramente, sentiam mais
fortemente e procuravam a verdade com maior dedicação do que os seus
irmãos mais fracos. Mas não há só um Profeta; e ao passo que o
consentimento de muitos naquilo que, como homens, tinham meios
genuínos de conhecer e conheciam, persistiu até ao fim e foi honrosamente
integrado na grande estrutura do conhecimento humano, o testemunho
divergente de alguns acerca daquilo que não conheciam nem podiam
conhecer é um aviso permanente de que exagerar a autoridade profética é
usá-la indevidamente e desonrar aqueles que apenas nos procuraram ajudar
e fazer avançar com o seu poder. Dificilmente faz parte da natureza humana
que um homem avalie com bastante precisão os limites da sua própria
sagacidade; mas é o dever daqueles que beneficiam com o seu trabalho
considerar cuidadosamente onde poderá ele ter sido levado a ultrapassar
esses limites. Se temos de preservar os seus possíveis erros juntamente com
as suas sólidas realizações e usar a sua autoridade como uma desculpa para
acreditar naquilo que não pode ter sabido, fazemos da sua bondade uma
ocasião para pecar.
Considerando apenas um de tais testemunhos: os seguidores do Buda
têm pelo menos o mesmo direito de apelar à experiência individual e social
em defesa da autoridade do salvador do Oriente. Consta que a marca
distintiva da sua religião, na qual nunca foi ultrapassada, é o conforto e
consolo que dá aos doentes e infelizes, a compaixão afectuosa com que
suaviza e alivia todas as dores naturais dos homens. Seguramente que
nenhum triunfo de moralidade social pode ser maior ou mais nobre do que
aquele que tem evitado que quase metade do género humano se dedique a
perseguições em nome da religião. A confiarmos nos relatos dos seus
primeiros seguidores, Buda acreditava que viera à Terra com a missão
divina e cósmica de pôr em movimento a roda da lei. Sendo príncipe,
despojou-se do seu reino e, de livre vontade, conheceu a miséria, para
aprender a lidar com ela e a subjugá-la. Poderia tal homem falar falsamente
acerca de coisas solenes? E no que diz respeito ao seu conhecimento, não
era ele um homem milagroso com poderes sobre-humanos? Nasceu de uma
mulher sem a ajuda de um homem; levitou e transfigurou-se à frente dos
seus familiares; por fim ascendeu em forma corpórea aos céus a partir do
topo do Pico de Adão.5 Não haverá que acreditar na sua palavra quando
testemunha acerca de coisas celestiais?
Se apenas ele, e nenhum outro, fizesse tais afirmações! Mas há Maomé
com o seu testemunho; não temos escolha senão escutar ambos. O Profeta
diz-nos que há um Deus e que viveremos na alegria ou na infelicidade
eternas, consoante acreditamos ou não no Profeta. O Buda afirma que não
há qualquer Deus e que seremos completamente aniquilados se formos
suficientemente bons. Não podem ambos ser objecto de uma inspiração
infalível; um ou outro teve de ter sido vítima de uma delusão, pensando
saber o que na realidade não sabia. Quem se atreverá a afirmar qual dos
dois? E como poderemos ter justificação para acreditar que o outro não
estava também deludido?
Chegamos assim aos juízos que se seguem. A bondade e a grandeza de
um homem não nos dão justificação para aceitar uma crença com base na
sua autoridade, a menos que haja uma base razoável para supor que conhece
a verdade daquilo que afirma. E não pode haver bases para supor que um
homem sabe aquilo que não se pode supor que nós, sem deixarmos de ser
homens, podemos verificar.
Se a mim, que não sou químico, um químico afirmar que se pode obter
uma determinada substância combinando outras substâncias em certas
proporções e sujeitando-as a um processo conhecido, tenho toda a
justificação para acreditar nisto com base na sua autoridade, a menos que
tenha conhecimento de algo desfavorável a respeito do seu carácter ou
discernimento. Pois o seu treino profissional é tal que tende a encorajar a
veracidade e a procura honesta da verdade, e a produzir um desprezo por
conclusões precipitadas e pelo desleixo investigativo. Tenho uma base
razoável para supor que ele conhece a verdade daquilo que afirma, pois
embora eu não seja um químico, podem-me fazer compreender o suficiente
acerca dos métodos e processos da ciência de maneira a que me seja
possível, sem deixar de ser um homem, verificar a afirmação. Posso nunca a
verificar efectivamente, ou mesmo ver qualquer experiência tendente a
verificá-la; mas ainda assim tenho razão suficiente para justificar a minha
crença de que a verificação está ao alcance dos instrumentos e capacidades
humanas, e em particular que foi efectivamente realizada pelo meu
informante. O resultado, a crença a que foi conduzido pelas suas
investigações, é válida não só para ele, mas também para os outros; é
observada e testada pelos que trabalham no mesmo campo, e estes sabem
que não se pode prestar maior serviço à ciência do que depurar os
resultados aceites dos erros que neles se podem ter introduzido. É desta
maneira que o resultado se torna património comum, um objecto apropriado
de crença, a qual é uma preocupação social e um assunto de interesse
público. Assim, há que observar que a autoridade do químico é válida
porque há quem a questione e verifique; é precisamente este processo de
exame e depuração que mantém vivo entre os investigadores o amor àquilo
que suportará todos os testes possíveis, o sentido de responsabilidade
pública por parte daqueles cujo trabalho, se for bem feito, persistirá como a
herança duradoura da humanidade.
Mas se o meu químico me diz que um átomo de oxigénio existiu desde
sempre, inalterado em peso e taxa de vibração, não tenho o direito de
acreditar nisto com base na sua autoridade, pois se trata de algo que ele não
pode conhecer sem deixar de ser um homem. Pode muito honestamente
acreditar que esta afirmação é uma inferência legítima a partir das suas
experiências, mas nesse caso o seu juízo está em falta. Uma reflexão muito
simples acerca do carácter das experiências mostrar-lhe-ia que estas nunca
podem conduzir a resultados desse tipo; que, sendo elas mesmas meramente
aproximadas e limitadas, não nos podem dar conhecimento exacto e
universal. Nenhuma eminência de carácter e génio pode dar a um homem a
autoridade suficiente para justificar que acreditemos nele quando faz
afirmações que implicam conhecimento exacto ou universal.
Uma vez mais, um explorador do árctico pode relatar-nos que, numa
dada latitude e longitude, teve experiência de um certo grau de frio, que o
mar tinha uma certa profundidade e que o gelo tinha um certo carácter.
Teríamos toda a razão em acreditar nele, na ausência de algo que
comprometa a sua veracidade. É concebível podermos, sem deixarmos de
ser homens, ir ao local e verificar a sua afirmação; pode ser testada pelo
testemunho dos seus companheiros e há uma base adequada para supor que
conhece a verdade daquilo que afirma. Mas se um velho baleeiro nos diz
que o gelo tem 90 metros de espessura até ao pólo, não teremos justificação
para acreditar nele. Pois embora a afirmação seja susceptível de ser
verificada pelo homem, seguramente que não é susceptível de ser verificada
por ele, com quaisquer meios e instrumentos de que dispusesse; e deve ter-
se persuadido da verdade daquilo que afirma por meios que não dão crédito
algum ao seu testemunho. Ainda que, portanto, o conteúdo do que se afirma
esteja ao alcance do conhecimento humano, não temos o direito de aceitá-lo
com base na autoridade a menos que esteja ao alcance do conhecimento do
nosso informante.
O que diremos daquela que é a autoridade mais venerável e augusta do
que qualquer testemunho individual, a tradição, consagrada pelo tempo, do
género humano? Uma atmosfera de crença e concepções que se formou
pelos esforços e lutas dos nossos antepassados, que nos permite respirar por
entre as diversas e complexas circunstâncias da nossa vida. Está à nossa
volta, perto de nós, e dentro de nós; não podemos pensar senão nas formas e
processos de pensamento que nos proporciona. Será possível duvidar dela e
testá-la? E se for, será correcto fazê-lo?
Veremos razões para responder que não só é possível e correcto, como
também é o nosso dever incontornável; que o principal objectivo da própria
tradição é dar-nos os meios de colocar questões, de testar e investigar as
coisas; que se lhe damos mau uso e a vemos como uma colecção de frases
feitas a ser aceites sem investigação complementar, não só nos
prejudicamos a nós próprios, como, ao recusar contribuir com a nossa parte
para aumentar a estrutura que será herdada pelos nossos filhos,
contribuímos para nos apartarmos a nós e ao nosso género da linhagem
humana.
Tomemos em primeiro lugar o cuidado de distinguir um tipo de
tradição que urge examinar e pôr em causa, por ser particularmente esquiva
à investigação. Suponhamos que um curandeiro na África Central declara à
sua tribo que na sua tenda se propiciará uma certa poção poderosa se
matarem o gado da tribo, e que esta acredita nele. Não há maneira de
verificar se a poção se propiciou ou não, mas o gado foi-se. Ainda assim,
pode-se manter na tribo a crença de que a propiciação se realizou desta
maneira; e numa geração posterior será tanto mais fácil a outro curandeiro
persuadi-los de um acto semelhante. Aqui a única razão para acreditar é que
toda a gente acreditou durante tanto tempo na mesma coisa que deve ser
verdadeiro. E, no entanto, a crença foi fundada numa fraude e propagada
pela credulidade. Sem dúvida que agirá correctamente e será amigo dos
homens aquele que a questionar e vir que não há indícios a seu favor, que
ajudar os seus vizinhos a ver como ele, e até, se for preciso, que entrar na
tenda sagrada e destruir a poção.
A regra que nos devia orientar em tais casos é bastante simples e
óbvia: que o testemunho conjunto dos nossos vizinhos está sujeito às
mesmas condições que o testemunho de qualquer um deles em separado.
Nomeadamente, não temos o direito de acreditar que algo é verdadeiro
porque toda a gente diz que é, a menos que haja boas razões para acreditar
que pelo menos uma dessas pessoas tem os meios de conhecer a verdade, e
que fala a verdade tanto quanto a conhece. Por muitas nações e gerações de
homens que se traga ao banco das testemunhas, não podem testemunhar
coisa alguma de que não tenham conhecimento. Todo aquele que tenha
aceitado a afirmação de outrem, sem ele próprio a verificar, está excluído
do tribunal; a sua palavra não vale, em rigor, coisa alguma. E quando
finalmente regressamos à verdadeira origem da afirmação, temos de tirar
duas questões do caminho, a respeito da primeira pessoa que fez a
afirmação: estaria ela enganada ao pensar que sabia algo acerca deste
assunto, ou estaria a mentir?
Esta última questão é infelizmente muitíssimo actual e prática, mesmo
para nós, nesta época e neste país. Não é preciso ir a La Salette, ou à África
Central, ou a Lourdes, para ter exemplos de superstição imoral e
degradante. É muito bem possível que uma criança cresça em Londres
rodeada de uma atmosfera de crenças unicamente apropriadas a selvagens,
que nos nossos dias se fundaram na fraude e propagaram pela credulidade.
Pondo então de lado as tradições que passam sucessivamente de
geração para geração sem serem testadas, consideremos aquilo que é
verdadeiramente construído a partir da experiência comum da humanidade.
Esta grandiosa estrutura serve-nos para orientar os nossos pensamentos e,
por meio deles, as nossas acções, tanto no mundo moral como no material.
No mundo moral, por exemplo, dá-nos as concepções da rectidão em geral,
da justiça, da verdade, da beneficência, e coisas semelhantes. Estas
apresentam-se como concepções, e não como afirmações ou proposições;
respondem a certos instintos definidos que seguramente se encontram em
nós, seja por que meio lá foram parar. Que é correcto ser beneficente é
objecto da experiência pessoal imediata; pois quando um homem se recolhe
ao seu íntimo e aí encontra algo mais vasto e mais duradouro do que a sua
personalidade solitária, algo que afirma «Quero agir rectamente», bem
como «Quero fazer bem ao homem», pode verificar por observação directa
que um instinto se funda no outro e concorda inteiramente com ele. E o seu
dever é verificar esta afirmação e outras semelhantes.
A tradição afirma também, num local e época específicos, que
determinadas acções são justas, ou verdadeiras, ou beneficentes. Para todas
essas regras se precisa de uma investigação complementar, pois são por
vezes estabelecidas por uma autoridade que não o sentido moral fundado na
experiência. Até recentemente, a tradição moral do nosso próprio país — e
na verdade de toda a Europa — ensinava que era beneficente dar
indiscriminadamente dinheiro aos pedintes. Mas o questionamento desta
regra, e a investigação da mesma, levaram os homens a ver que a verdadeira
beneficência é aquela que ajuda um homem a fazer o trabalho para o qual é
mais apto e não aquilo que o mantém na inactividade e a encoraja; e que
descurar esta distinção no presente equivale a preparar a indigência e a
miséria no futuro. Por este exame e discussão não só a prática se depurou e
tornou mais beneficente, como a própria concepção de beneficência se
tornou mais lata e mais sábia. Agora a grande herança social consiste em
duas partes; o instinto de beneficência, que, quando predomina, leva certa
faceta da nossa natureza a desejar fazer bem aos homens; e a concepção
intelectual da beneficência, que podemos comparar com qualquer conduta
que se apresente e perguntar: «Será isto beneficente ou não?». Ao colocar
tais perguntas e responder-lhes continuamente, a concepção cresce em
fôlego e clareza e o instinto reforça-se e purifica-se. Parece, portanto, que a
grande utilidade da concepção, a parte intelectual da herança, é permitir-nos
fazer perguntas; através dessas perguntas, cresce e mantém-se recta; e se
não a usamos para este fim perdê-la-emos completamente e ficaremos com
um mero código prescritivo a que já não se pode chamar, de todo em todo,
«moralidade».
Tais considerações aplicam-se de uma maneira ainda mais clara e
óbvia, se tal é possível, à reserva de crenças e concepções que os nossos
pais acumularam para nós a respeito do mundo material. Estamos prontos a
rir do hábito do australiano que continua a amarrar o machado ao cabo,
embora o serralheiro de Birmingham lhe tenha feito propositadamente um
buraco para aí inserir o cabo. Os do seu povo amarram assim os machados
há gerações: quem é ele para se opor à sua sabedoria? Desceu tanto que não
consegue fazer aquilo que alguns deles tiveram de fazer no passado distante
— pôr em causa um uso estabelecido e inventar ou aprender algo melhor.
No entanto, aqui, no amanhecer do conhecimento, onde a ciência e a arte
são uma só, encontramos apenas a mesma regra simples que se aplica às
mais elevadas e às mais profundas ramificações daquela Árvore cósmica;
aos seus mais imponentes ramos floridos bem como às mais profundas das
suas raízes escondidas; a regra, nomeadamente, de que quem faz um uso
apropriado daquilo que foi acumulado e que nos foi transmitido é quem age
da mesma maneira que os criadores agiram, quando o acumularam; os que o
usam para fazer mais perguntas, para examinar, para investigar; que
procuram com honestidade e seriedade descobrir qual a maneira correcta de
ver as coisas e de lidar com elas.
Uma pergunta apropriadamente colocada é já metade da resposta,
afirmou Jacobi; podemos acrescentar que o método de a solucionar é a
outra metade da resposta, e que o resultado efectivo para nada conta ao lado
destas duas. Tomemos como exemplo o telégrafo, onde a teoria e a prática,
ambas desenvolvidas discretamente ao longo dos anos, se unem para servir
vantajosamente o homem. Ohm descobriu que a intensidade de uma
corrente eléctrica é directamente proporcional à potência da bateria que a
produz, e inversamente proporcional à extensão do fio condutor que tem de
percorrer. A isto se chama «lei de Ohm»; mas o resultado, encarado como
uma afirmação na qual acreditar, não é a parte valiosa do mesmo. A
primeira metade é a pergunta «Que relação se verifica entre estas
quantidades?» Assim formulada, a pergunta envolve já a concepção de
intensidade da corrente e da potência da bateria, como quantidades a medir
e comparar; sugere claramente que são estas as coisas com que se tem de
lidar no estudo das correntes eléctricas. A segunda metade é o método de
investigação: como medir estas quantidades, de que instrumentos se precisa
para a experiência e como devem ser usados? Não se pede ao estudante, que
começa a sua aprendizagem na electricidade, que acredite na lei de Ohm;
fazem-no compreender a pergunta, colocam-no diante dos instrumentos e
ensinam-no a verificá-la. Aprende a fazer coisas, e não a pensar que sabe
coisas; a usar os instrumentos e a fazer perguntas, e não a aceitar uma
afirmação tradicional. A pergunta que para ser apropriadamente colocada
exigiu um génio é respondida por um principiante. Se a lei de Ohm
subitamente se perdesse e fosse esquecida por todos os homens, mas
preservando-se a pergunta e o método de solução, o resultado podia ser
redescoberto numa hora. Mas o resultado por si só, se conhecido por um
povo que não pudesse compreender o valor da questão ou os meios de a
resolver, seria como um relógio nas mãos de um selvagem que não lhe
soubesse dar corda ou um navio a vapor manobrado por maquinistas
espanhóis.
A respeito, portanto, da sagrada tradição da humanidade, aprendemos
que não consiste em proposições ou afirmações que se tem de aceitar e nas
quais se tem de acreditar com base na autoridade da tradição, mas em
perguntas apropriadamente colocadas, em noções que nos permitem
levantar perguntas complementares, e em métodos de lhes responder. O
valor de todas estas coisas depende de serem testadas quotidianamente. O
próprio carácter sagrado do precioso depósito impõe-nos o dever e a
responsabilidade de o testar, de o depurar e alargar até ao máximo das
nossas capacidades. Aquele que se serve dos resultados desta tradição para
silenciar as próprias dúvidas, ou para impedir a investigação por parte dos
outros, é culpado de um sacrilégio que os séculos jamais apagarão. Quando
os trabalhos e as investigações de homens honestos e corajosos tiverem
elevado a estrutura da verdade conhecida a uma glória que nós nesta
geração nem podemos esperar nem imaginar, naquele templo puro e
sagrado não terá ele parte nem quinhão, mas o seu nome e as suas obras
serão lançados nas trevas do esquecimento para sempre.

III. Os limites da inferência


A questão dos casos em que podemos acreditar naquilo que ultrapassa a
nossa experiência é muito ampla e delicada, abarcando toda a extensão do
método científico, e exigindo um aumento considerável da sua aplicação
antes de lhe podermos dar alguma resposta que seja mais ou menos
completa. Mas pode-se aqui aflorar e formular brevemente uma regra de
extrema simplicidade e enorme importância prática, que se situa no limiar
deste tema.
Um pouco de reflexão mostrar-nos-á que todas as crenças, até as mais
simples e mais fundamentais, ultrapassam a nossa experiência quando são
encaradas como guias para as nossas acções. Uma criança que se queimou
teme o fogo, porque acredita que o fogo a queimará hoje tal como ontem;
mas esta crença vai além da experiência e pressupõe que o desconhecido
fogo de hoje é como o fogo de ontem. Mesmo a crença de que a criança se
queimou ontem vai além da experiência presente, que contém apenas a
memória de uma queimadura, e não a própria queimadura; pressupõe,
portanto, que esta memória é fidedigna, embora saibamos que uma
memória pode amiúde estar incorrecta. Mas se há que a usar como guia
para a acção, como uma pista daquilo que será o futuro, tem de pressupor
algo acerca desse futuro, nomeadamente, que será consistente com a
suposição de que a queimadura realmente ocorreu ontem; o que é ir além da
experiência. Mesmo o fundamental «Eu sou», de que não se pode duvidar,
não é um guia para a acção até se tornar «Eu serei», que vai além da
experiência. A questão não é, portanto, «Podemos acreditar no que
ultrapassa a experiência?» pois isto está envolvido na própria natureza da
crença; mas «Até que ponto e de que maneira podemos alargar a nossa
experiência ao formar as nossas crenças?»
E o exemplo que considerámos — uma criança que se queimou teme o
fogo — sugere uma resposta extremamente simples e universal. Podemos ir
além da experiência pressupondo que aquilo que não sabemos é como
aquilo que sabemos; ou, por outras palavras, podemos alargar a nossa
experiência pressupondo a uniformidade da natureza. O que esta
uniformidade é exactamente, como adquirimos maior conhecimento dela de
geração para geração, são questões que de momento deixamos de lado,
contentando-nos em examinar dois exemplos que poderão servir para tornar
mais clara a natureza da regra.
A partir de certas observações feitas ao espectroscópio, inferimos a
existência de hidrogénio no Sol. Olhando para o espectroscópio quando o
Sol incide na sua abertura, vemos determinadas linhas luminosas: e
experiências realizadas com corpos na Terra ensinaram-nos que quando se
vê estas linhas luminosas a fonte delas é o hidrogénio. Pressupomos,
portanto, que as linhas luminosas desconhecidas no Sol são como as linhas
luminosas conhecidas do laboratório, e que o hidrogénio no Sol se
comporta como o hidrogénio se comportaria na Terra em circunstâncias
idênticas.
Mas não estamos a confiar demasiado no nosso espectroscópio?
Seguramente que tendo-o considerado fidedigno para substâncias terrestres,
onde as suas asserções podem ser verificadas pelo homem, temos
justificação para aceitar o seu testemunho noutros casos semelhantes; mas
não quando nos dá informação acerca de coisas que estão no Sol, onde o
seu testemunho não pode ser directamente verificado pelo homem, certo?
Queremos sem dúvida saber um pouco mais antes de se poder
justificar esta inferência; e felizmente sabemo-lo. O espectroscópio
testemunha exactamente a mesma coisa nos dois casos; nomeadamente, que
através dele passam vibrações de luz de dada proporção. A sua construção é
tal que se estivesse errado acerca disto num caso, estaria errado no outro.
Quando começamos a examinar o assunto, descobrimos que pressupomos
realmente que a matéria do Sol é como a matéria da Terra, composta por
dado número de substâncias distintas; e que cada uma destas, quando muito
quente, tem uma taxa de vibração distinta, pela qual se pode reconhecer e
isolar do resto. Mas este é o tipo de pressuposto que temos justificação para
usar quando alargamos a nossa experiência. É um pressuposto de
uniformidade na natureza, e só se pode verificar por comparação com
muitos pressupostos semelhantes que temos de fazer noutros casos
semelhantes.
Mas será verdadeira a crença na existência de hidrogénio no Sol?
Poderá ajudar na orientação correcta da acção humana?
Certamente que não, se as bases para a aceitar forem indignas e
desprovidas de qualquer compreensão do processo pelo qual se obtém essa
crença. Mas quando se compreende este processo como a base para a
crença, torna-se uma questão bastante séria e prática. Pois se não há
hidrogénio no Sol, o espectroscópio — o que é o mesmo que dizer, a
medida das taxas de vibração — terá de ser um guia inexacto no
reconhecimento de substâncias diferentes; e consequentemente não se
deveria usá-lo na análise química — nos ensaios químicos, por exemplo —
para maior economia de tempo, dificuldades e dinheiro. Ao passo que a
aceitação do método espectroscópico como fidedigno não só nos enriqueceu
com novos metais, o que é óptimo, mas também com novos processos de
investigação, o que é ainda melhor.
Para outro exemplo, consideremos o modo como inferimos a verdade
de um acontecimento histórico — por exemplo, o cerco de Siracusa durante
a guerra do Peloponeso. A nossa experiência é existirem manuscritos dos
quais se afirma serem os manuscritos da história de Tucídides e que se
referem a si próprios desse modo; que noutros manuscritos, atribuídos a
historiadores subsequentes, se afirma que viveu durante o período em que
se deu a guerra; e que livros que supostamente datam do renascer do saber
nos dizem como estes manuscritos foram preservados e onde foram
adquiridos. Depreendemos também que em geral os homens não forjam
livros e histórias sem um motivo especial; pressupomos que neste aspecto
os homens do passado eram como os homens do presente; e observamos
que neste caso não se apresentava qualquer motivo especial. Isto é,
alargamos a nossa experiência no pressuposto de uma uniformidade nos
caracteres do homem. Porque o nosso conhecimento desta uniformidade é
muitíssimo menos completo e exacto do que o nosso conhecimento daquilo
que se verifica na física, as inferências do tipo histórico são mais instáveis e
menos exactas do que as inferências em muitas outras ciências.
Mas se há alguma razão especial para suspeitar do carácter das pessoas
que escreveram ou transmitiram certos livros, o caso muda de figura. Se um
grupo de documentos apresenta indícios internos de terem sido produzidos
entre pessoas que forjavam livros em nome de outras, e que, ao descrever os
acontecimentos, suprimiam as coisas que não lhes convinham, enquanto
engrandeciam o que lhes convinha; que não só cometeram estes crimes,
como se regozijaram neles como provas de humildade e de zelo; temos
então de afirmar que não se pode basear em tais documentos qualquer
inferência histórica genuína, mas apenas conjecturas insatisfatórias.
Podemos, então, alargar a nossa experiência no pressuposto de uma
uniformidade na natureza; podemos preencher a nossa imagem daquilo que
é e daquilo que foi, à medida que a experiência a fornece, de maneira a
tornar o todo consistente com esta uniformidade. E a inferência
praticamente demonstrativa — o que nos dá o direito de acreditar no seu
resultado — é uma amostra clara de que só pela verdade deste resultado se
pode salvaguardar a uniformidade da natureza.
Nenhum indício, portanto, pode dar-nos justificação para acreditar na
verdade de uma afirmação que seja contrária ou exterior à uniformidade da
natureza. Se a nossa experiência é tal que não a podemos preencher
consistentemente com uniformidade, tudo o que temos direito a concluir é
que ocorreu um erro algures; mas a possibilidade da inferência é afastada;
temos de nos apoiar na nossa experiência, e não ir além dela de maneira
alguma. Se de facto ocorresse um acontecimento que não fizesse parte da
uniformidade da natureza, teria duas propriedades: nenhum indício poderia
dar fosse a quem fosse o direito de acreditar nele excepto àqueles que
efectivamente tiveram a experiência; e nenhuma inferência digna de crédito
se podia fundar nela, de todo em todo.
Teremos então forçosamente de acreditar que a natureza é absoluta e
universalmente uniforme? Certamente que não, não temos direito de
acreditar em seja o que for deste género. A regra apenas nos diz que ao
formar crenças que vão além da experiência temos de pressupor que a
natureza é, para efeitos práticos, uniforme, no que nos diz respeito. No
âmbito da acção e verificação humanas, podemos formar, com a ajuda deste
pressuposto, as crenças propriamente ditas; para lá dele, só podemos formar
aquelas hipóteses que servem para a colocação mais precisa das perguntas.
Resumindo:
Podemos acreditar no que ultrapassa a nossa experiência apenas
quando o inferimos a partir dessa experiência pelo pressuposto de que
aquilo que não conhecemos é como aquilo que conhecemos.
Podemos acreditar na afirmação de outra pessoa, quando há uma base
razoável para supor que ela conhece o assunto de que fala, e que fala a
verdade tanto quanto a sabe.
É incorrecto em todas as circunstâncias acreditar com base em indícios
insuficientes; e onde duvidar e investigar é uma presunção, acreditar é aí
pior do que uma presunção.
3

A VONTADE DE ACREDITAR
WILLIAM JAMES

Na biografia recentemente publicada que Leslie Stephen escreveu sobre o


seu irmão, Fitzjames, há o relato de uma escola que este frequentou em
criança. O professor, um tal Sr. Guest, tinha o hábito de falar com os seus
alunos nestes termos: «Gurney, qual é a diferença entre justificação e
santificação? Stephen, prova a omnipotência de Deus!», etc. No seio do
nosso livre-pensamento e indiferença de Harvard, tendemos a imaginar que
aqui, no nosso bom velho colégio ortodoxo, a conversa continua mais ou
menos nestes parâmetros; e para vos mostrar que em Harvard não perdemos
todo o interesse nestes assuntos vitais, trouxe comigo esta noite algo de
semelhante a um sermão acerca da justificação pela fé, para vo-lo ler —
falo de um ensaio sobre a justificação da fé, uma defesa do nosso direito a
adoptar uma atitude crente em assuntos religiosos, apesar de o nosso
intelecto meramente lógico poder não ter sido compelido. «A Vontade de
Acreditar», consequentemente, é o título do meu artigo.
Há muito que defendo perante os meus próprios alunos a legitimidade
da fé adoptada voluntariamente; mas assim que ficam bem adentrados no
espírito lógico, têm por norma recusar admitir a legitimidade filosófica da
minha asserção, embora eles mesmos, na verdade, estejam todos,
pessoalmente e a cada momento, repletos de uma fé ou outra. Mantive-me
sempre, contudo, tão profundamente convicto de que a minha posição está
correcta, que o vosso convite me pareceu uma boa ocasião para esclarecer
as minhas afirmações. Talvez as vossas mentes estejam mais abertas do que
aquelas com que até agora tive de lidar. Serei o menos técnico possível,
embora tenha de começar por estabelecer algumas distinções técnicas que
acabarão por nos ajudar.

Chamemos hipótese a qualquer coisa que se proponha como objecto da


nossa crença; e tal como os linguistas6 falam em metáforas vivas e mortas,
diremos que uma hipótese qualquer está viva ou morta. Uma hipótese está
viva se parece uma possibilidade real à pessoa a quem se apresenta. Se vos
peço que acreditem no Mádi, esta noção não estabelece qualquer conexão
vívida com a vossa natureza — escusa-se de todo em todo a pulsar com
alguma credibilidade. Como hipótese, está completamente morta. Para um
árabe, contudo, (mesmo que não pertença aos seguidores do Mádi), esta
hipótese encontra-se entre as possibilidades da mente: está viva. Isto mostra
que a morbidez e a vividez numa hipótese não são propriedades intrínsecas,
mas relações entre a hipótese e o pensador individual. São aferidas pela sua
inclinação para agir. O máximo de vividez numa hipótese significa
inclinação para agir irrevogavelmente. Na prática, isto quer dizer crença;
mas há uma tendência para acreditar onde quer que haja disposição para
agir.
Em seguida, chamemos opção à decisão entre duas hipóteses. As
opções podem ser de tipos diferentes. Podem ser: 1) vivas ou mortas, 2)
forçosas ou evitáveis, 3) momentosas ou triviais; e para o que nos interessa,
podemos chamar genuína a uma opção quando pertence ao tipo das opções
que são forçosas, vivas e momentosas.

1. Uma opção viva é uma opção em que ambas as hipóteses estão vivas.
Se vos digo: «Sejam teosofistas ou maometanos», trata-se
provavelmente de uma opção morta, porque para vós nenhuma das
hipóteses tem probabilidade de estar viva. Mas se afirmo: «Sejam
agnósticos ou cristãos», a história é outra: dada a vossa formação, cada
hipótese apela, por muito pouco que seja, à vossa crença.
2. De seguida, se vos digo: «Escolham entre sair com ou sem a vossa
umbrela», não vos ofereço uma opção genuína, pois não é forçosa.
Podem facilmente evitá-la não saindo sequer. De igual modo, se digo
«Ou me amam ou me odeiam», «ou consideram a minha teoria
verdadeira ou a consideram falsa», a vossa opção é evitável. Podem
permanecer indiferentes a mim, nem me amando nem me odiando, e
podem recusar-se a emitir qualquer juízo a respeito da minha teoria.
Mas se digo «Ou aceitam esta verdade ou lhe passam ao lado», coloco-
vos uma opção forçosa, pois não há lugar fora da alternativa. Todos os
dilemas baseados numa disjunção lógica completa, sem a possibilidade
de não escolher, são opções deste tipo forçoso.
3. Finalmente, se eu fosse o Dr. Nansen e vos convidasse a juntarem-se à
minha expedição ao Pólo Norte, a vossa opção seria momentosa; pois
provavelmente não voltariam a ter uma oportunidade semelhante, e o
que escolhessem agora ou vos excluiria completamente do tipo de
imortalidade norte-polar ou colocaria pelo menos essa hipótese nas
vossas mãos. Quem recusa uma oportunidade única perde tão
seguramente o prémio como se tivesse tentado e falhado. Per contra, a
opção é trivial quando a oportunidade não é única, quando o que está
em causa é insignificante, ou quando a decisão é reversível se mais
tarde se mostrar insensata. Tais opções triviais abundam na vida
científica. Um químico considera que uma hipótese está
suficientemente viva para passar um ano a verificá-la: acredita nela até
esse ponto. Mas se as suas experiências se mostram duplamente
inconclusivas, perdoa-se a sua perda de tempo, não resultando daí
qualquer mal vital.

A nossa discussão será mais fácil se tivermos bem presentes estas


distinções.

II

A questão seguinte a considerar é a psicologia propriamente dita da opinião


humana. Quando olhamos para determinados factos, parece que a nossa
natureza passional e volitiva está na raiz de todas as nossas convicções.
Quando olhamos para outros factos, parece que essa natureza nada pode
fazer depois do intelecto se ter pronunciado. Consideremos antes de mais
estes últimos factos.
Não parece absurdo, à primeira vista, afirmar que as nossas opiniões
são modificáveis segundo a nossa vontade? Poderá a nossa vontade ajudar
ou estorvar o nosso intelecto na sua percepção da verdade? Será que
podemos, querendo-o apenas, acreditar que a existência de Abraham
Lincoln é um mito e que os seus retratos na McClure’s Magazine são de
outra pessoa? Será que podemos, por qualquer esforço da vontade, ou por
força de desejar que fosse verdadeiro, acreditar que estamos de boa saúde
quando estamos acamados a berrar com reumatismo, ou ter a certeza de que
a soma das duas notas de dólar que temos no bolso perfaz cem dólares?
Podemos afirmar qualquer destas coisas, mas não temos de modo algum o
poder de acreditar nelas; e é precisamente de tais coisas que se faz o tecido
das verdades em que realmente acreditamos — questões de facto, imediatas
ou remotas, como afirmou Hume, e relações entre ideias, que ou estão lá
para nós ou não se as encararmos desse modo, e que não estando não
podem ser colocadas lá por qualquer acção nossa.
Nos Pensamentos de Pascal há uma passagem célebre, conhecida na
bibliografia como a «aposta de Pascal». Aí, Pascal tenta compelir-nos ao
cristianismo argumentando como se a nossa preocupação com a verdade se
assemelhasse ao interesse que teríamos num jogo de azar. Traduzidas
livremente, eis as suas palavras: têm ou de acreditar ou de não acreditar que
Deus existe — o que escolhem? A vossa razão humana não pode decidir.
Decorre um jogo entre vocês e a natureza das coisas que no dia do juízo vai
dar caras ou coroas. Ponderem quais seriam os vossos ganhos e perdas se
apostassem tudo em caras, ou na existência de Deus: ao ganhar nessas
circunstâncias, ganhariam a beatitude eterna; perdendo, nada perderiam
sequer. Se nesta aposta houvesse uma infinidade de possibilidades e só uma
favorável a Deus, deviam ainda assim apostar tudo em Deus; pois embora
agindo desta maneira arrisquem seguramente uma perda finita, qualquer
perda finita é razoável, até mesmo uma perda finita certa, se há sequer a
possibilidade de um ganho infinito. Vão, pois, tomar a água benta e mandar
recitar a missa; a crença virá entorpecer-vos os escrúpulos — Cela vous
fera croire et vous abêtira. Por que não? No fundo, o que têm a perder?
Provavelmente sentem que quando a fé religiosa se exprime assim, na
linguagem da mesa de jogo, está a lançar os seus últimos trunfos.
Seguramente que a própria crença pessoal que Pascal tem nas missas e na
água benta teve uma origem muito diferente; e esta sua célebre página não é
senão um argumento para outros, uma última tentativa desesperada de
deitar mão a uma arma contra a dureza do coração do descrente. Sentimos
que uma fé nas missas e na água benta adoptada voluntariamente depois de
um cálculo tão mecânico careceria da alma interior da realidade da fé; e se
estivéssemos nós próprios no lugar da divindade, provavelmente teríamos
um prazer especial em impedir a crentes deste calibre o acesso à
recompensa infinita. É evidente que a menos que haja uma tendência
preexistente para acreditar nas missas e na água benta, a opção que Pascal
oferece à vontade não é uma opção viva. Certamente que nenhum turco, por
sua própria conta, veria com bons olhos as missas e a água benta; e mesmo
para nós, protestantes, estes meios de salvação parecem impossibilidades de
tal maneira ultrapassadas que a lógica de Pascal, invocada especificamente
a favor destes meios, nos deixa indiferentes. De igual modo podia o Mádi
escrever-nos, afirmando: «Sou o Esperado a quem Deus, no seu esplendor,
criou. Serão infinitamente felizes se me reconhecerem; de contrário serão
afastados da luz do Sol. Ponderem então o vosso ganho infinito no caso de
eu ser genuíno, contra o vosso sacrifício finito no caso de não o ser!» A sua
lógica seria a de Pascal; mas seria vão usá-la em nós, pois a hipótese que
nos oferece está morta. Não há em nós qualquer tendência para agir com
base nela, em grau algum.
Falar em acreditar segundo a nossa vontade parece, assim, de certo
ponto de vista, simplesmente tolo. De outro ponto de vista, é pior do que
tolo: é vil. Quando nos voltamos para o magnífico edifício das ciências
físicas e vemos como foi erguido; quantos milhares de vidas morais
humanas desinteressadas jazem só nos seus alicerces; quanta paciência e
adiamento, quanto abafar das preferências, quanta submissão às leis gélidas
do facto exterior, talhada na própria pedra e na argamassa; como se mantém
de pé, absolutamente impessoal na sua vasta majestade — como parece
então enfatuado e desprezível cada pequeno sentimentalista que vem soprar
as suas espirais de fumo voluntárias, fingindo decidir as coisas a partir do
seu sonho privado! Será que nos podemos sentir surpresos, se os que foram
criados na escola austera e viril da ciência tenham vontade de cuspir tal
subjectivismo das suas bocas? Todo o sistema de lealdades que cresce nas
escolas de ciência se opõe completamente a que se tolere tal coisa; de modo
que é perfeitamente natural que quem contraiu a febre científica passe ao
extremo oposto e por vezes escreva como se o intelecto incorruptivelmente
honesto devesse preferir em absoluto a amargura e a inaceitabilidade ao
coração inebriado.

«Fortifica-me a alma saber


Que, embora eu pereça, a verdade é o que é»,

canta Clough, enquanto Huxley exclama:

«O meu único consolo está em observar que, por muito má que a nossa
posteridade venha a ser, enquanto se ativerem à regra simples de não
fingir acreditar naquilo para o qual não dispõem de quaisquer razões,
por lhes poder ser vantajoso fingi-lo [a palavra «fingir» é seguramente
redundante aqui], não terão chegado ao patamar mais baixo da
imoralidade.»

E Clifford, o delicioso enfant terrible, escreve:


«Profana-se a crença ao concedê-la a afirmações improvadas e
inquestionadas, para consolo e prazer privado do crente […] quem
desejar bem aos seus semelhantes nesta matéria guardará a pureza da
sua crença com o fanatismo próprio de um zelo ciumento, para que a
dada altura não recaia sobre um objecto indigno, ganhando uma
mancha que jamais se poderá remover […] Mas se a crença foi aceite
com base em indícios insuficientes [ainda que a crença seja verdadeira,
como Clifford explica na mesma página], é um prazer roubado […] É
pecaminoso, porque é roubado em desprezo pelo nosso dever perante a
humanidade. Esse dever consiste em precaver-nos de tais crenças
como de uma epidemia, que pode em pouco tempo tomar conta do
nosso próprio corpo e então propagar-se para o resto da cidade […] É
sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer pessoa, acreditar seja
no que for com base em indícios insuficientes.»

III

Tudo isto nos parece saudável, mesmo quando expresso, como o faz
Clifford, com uma paixão demasiado vocal. O livre-arbítrio e o mero
desejo, no que diz respeito às nossas crenças, parecem estar a mais. No
entanto, se alguém pressupõe de imediato que a penetração intelectual é o
que resta depois de o desejo, a vontade e a preferência sentimental terem
partido, ou que as nossas opiniões passam a ser decididas pela razão pura,
opor-se-ia directamente à realidade dos factos.
São só as nossas hipóteses já mortas que a nossa natureza volitiva é
incapaz de trazer de novo à vida. Mas o que as fez morrer para nós é, na sua
maior parte, uma acção prévia, de tipo antagónico, da nossa natureza
volitiva. Quando digo «natureza volitiva», não me refiro apenas a volições
deliberadas que podem ter estabelecido hábitos de crença aos quais agora
não conseguimos escapar — refiro-me a todos os factores de crença, como
o medo e a esperança, o preconceito e a paixão, a imitação e o partidarismo,
a pressão envolvente da nossa classe e grupo. Na verdade, damos connosco
a acreditar sem saber ao certo como nem porquê. O Sr. Balfour dá o nome
de «autoridade» a todas estas influências, nascidas do clima intelectual, que
tornam as hipóteses possíveis ou impossíveis para nós, vivas ou mortas.
Aqui nesta sala, todos acreditamos em moléculas e na conservação da
energia, na democracia e no progresso necessário, no cristianismo
protestante e no dever de lutar pela «doutrina do imortal Monroe», tudo por
nenhuma razão digna do nome. A claridade interior com que discernimos
estes assuntos não é maior, e talvez até seja menor, do que aquela que
qualquer descrente nos mesmos pode ter. A sua inconvencionalidade teria
provavelmente algumas razões a mostrar a favor das suas conclusões; mas
para nós, não é a ideia sagaz e sim o prestígio das opiniões o que as faz
soltar uma centelha e acender os nossos paióis adormecidos da fé. A nossa
razão satisfaz-se cabalmente, novecentas e noventa e nove em cada mil de
nós, se encontrar alguns argumentos que se possa recitar no caso de alguém
criticar a nossa credulidade. A nossa fé é fé na fé de outrem e, nas questões
mais importantes, é isto sobretudo o que acontece. A nossa crença na
própria verdade, por exemplo, de que há uma verdade, e de que esta e as
nossas mentes foram feitas uma para a outra — o que é senão uma
afirmação apaixonada de desejo, em que o nosso sistema social nos apoia?
Queremos ter uma verdade; queremos acreditar que as nossas experiências,
estudos e discussões têm de nos colocar numa posição cada vez melhor em
direcção à verdade; e nesta linha concordamos resolver as nossas vidas
pensantes. Mas se um céptico pirrónico nos perguntar como podemos saber
tudo isto, poderá a nossa lógica dar-lhe uma resposta? Não! Certamente que
não. Trata-se apenas de uma volição contra outra — nós dispostos a avançar
para uma vida com base numa confiança ou pressuposto que ele, por sua
parte, não se preocupa em fazer.7
Por regra, rejeitamos a crença em todos os factos e teorias para as
quais não temos uso. As emoções cósmicas de Clifford não vêem qualquer
utilidade nos sentimentos cristãos. Huxley ataca duramente os bispos
porque no seu esquema de vida o sacerdócio não tem qualquer utilidade.
Newman, pelo contrário, passa para o catolicismo romano, e encontra todo
o género de boas razões para aí permanecer, porque um sistema sacerdotal é
para ele uma necessidade orgânica e um deleite. Por que são tão poucos os
«cientistas» que chegam sequer a olhar para os indícios a favor da chamada
«telepatia»? Porque pensam que, como um importante biólogo já falecido
me disse uma vez, mesmo se tal coisa fosse verdadeira, os cientistas deviam
unir-se para a manter reprimida e escondida. Esta desfaria a uniformidade
da natureza e todo o género de outras coisas sem as quais os cientistas não
podem levar a cabo as suas actividades investigativas. Mas se a este mesmo
homem se mostrasse algo que ele, como cientista, pudesse fazer com a
telepatia, talvez não só examinasse os indícios como até os considerasse
suficientemente bons. Esta mesma lei que os lógicos nos impõem — se me
permitem chamar «lógicos» a todos os que nesta questão excluiriam a nossa
natureza volitiva — em nada se baseia senão no seu próprio desejo natural
de excluir todos os elementos nos quais, na sua qualidade profissional de
lógicos, não conseguem ver qualquer utilidade.
É claro, portanto, que a nossa natureza inintelectual influencia as
nossas convicções. Há tendências passionais e volições que ocorrem antes
da crença, outras que surgem depois, e só as últimas entram em cena
demasiado tarde; e não entram demasiado tarde quando o trabalho passional
prévio já as vinha preparando. O argumento de Pascal, em vez de não ter
força, parece assim um tira-teimas como os outros, e é a última estocada
necessária para tornar completa a nossa fé nas missas e na água benta. É
evidente que este estado de coisas nada tem de simples; a mera penetração
intelectual e a lógica, seja o que for que possam fazer idealmente, não são
as únicas coisas que de facto produzem as nossas crenças.

IV
O nosso dever seguinte, tendo reconhecido este estado de coisas misturado,
é perguntar se é ou não simplesmente repreensível e patológico, ou se, pelo
contrário, temos ou não de o tratar como um elemento normal ao tomar
decisões. A tese que defendo é, em poucas palavras, a seguinte: A nossa
natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma
opção entre proposições, sempre que se trata de uma opção genuína que
não pode, pela sua natureza, ser decidida numa base intelectual; pois
afirmar, em tais circunstâncias, «Não decidas, deixa a questão em aberto»,
é em si uma decisão passional — tal como decidir pelo sim ou pelo não — e
tem o mesmo risco de perder a verdade. A tese aqui expressa
abstractamente tornar-se-á em breve, espero, bastante clara. Mas antes
tenho de me demorar um pouco mais no trabalho preliminar.

Observar-se-á que, para o que interessa a esta discussão, estamos em


terreno «dogmático» — terreno, quero dizer, que deixa completamente de
parte o cepticismo filosófico sistemático. O postulado de que há a verdade e
que o destino das nossas mentes é alcançá-la, estamos deliberadamente
resolvidos a aceitar, embora o céptico não o faça. Afastamo-nos da sua
companhia, portanto, absolutamente, daqui para a frente. Mas a fé, segundo
a qual a verdade existe e as nossas mentes a podem descobrir, pode ser
defendida de duas maneiras. Podemos falar no modo empirista e no modo
absolutista de acreditar na verdade. Os absolutistas neste assunto afirmam
que não só conseguimos chegar ao conhecimento da verdade, como
podemos saber quando alcançámos esse conhecimento; ao passo que os
empiristas pensam que embora o possamos alcançar, não podemos saber
infalivelmente quando o fizemos. Saber é uma coisa e saber com certeza
que sabemos é outra. Pode-se defender que a primeira é possível sem a
segunda; é por isto que os empiristas e os absolutistas, embora nenhum seja
céptico no sentido filosófico usual do termo, exibem nas suas vidas graus de
dogmatismo muito diferentes.
Se olharmos para a história das opiniões, vemos que a tendência
empirista prevaleceu em grande medida na ciência, ao passo que na
filosofia a tendência absolutista tem feito tudo à sua maneira. O género
característico de felicidade, de facto, que as filosofias produzem, tem
consistido, sobretudo, na convicção, sentida por cada escola ou sistema
sucessivos, de que, por meio dessa escola ou sistema, se alcançara a certeza
definitiva. «As outras filosofias são colecções de opiniões, na sua maioria
falsas; a minha filosofia dá-nos um ponto fixo para sempre» — quem não
reconhece nisto a tónica de todo o sistema digno desse nome? Um sistema,
para sequer ser um sistema, tem de se apresentar como um sistema fechado,
reversível neste ou naquele detalhe, talvez, mas nunca nas suas
características essenciais!
A ortodoxia escolástica, a que sempre temos de recorrer quando
desejamos encontrar uma afirmação perfeitamente clara, elaborou
belissimamente esta convicção absolutista na chamada doutrina dos
«indícios objectivos». Se, por exemplo, sou incapaz de duvidar de que
existo agora perante vós, que dois são menos do que três, ou que se todos os
homens são mortais, então também sou mortal, é porque estas coisas
iluminam o meu intelecto irresistivelmente. A justificação última destes
indícios objectivos que certas proposições têm é a adequatio intellectus
nostri cum re. A certeza que traz envolve uma aptitudinem ad
extorquendum certum assensum por parte da verdade visada e, por parte do
sujeito, uma quietem in cognitione, assim que o objecto é mentalmente
apreendido, não deixando lugar a qualquer possibilidade de dúvida; e em
todo este processo nada opera senão a entitas ipsa do objecto e a entitas
ipsa da mente. A nós, desleixados pensadores modernos, desagrada-nos a
conversa em latim — na verdade, desagrada-nos conversar com termos bem
definidos de todo em todo; mas no fundo o nosso próprio estado de espírito
é muito semelhante a isto sempre que nos deixamos ir acriticamente: vocês
acreditam nos indícios objectivos, e eu também. De algumas coisas
sentimos que estamos certos: sabemos, e sabemos que sabemos. Algo
ressoa em nós, um sino que bate as doze badaladas, quando os ponteiros do
nosso relógio mental deram a volta ao mostrador e se encontram ao meio-
dia. Os maiores empiristas entre nós só o são quando reflectem:
abandonados aos seus instintos, dogmatizam como papas infalíveis. Quando
os Clifford nos dizem como é pecaminoso ser cristão com base em tão
«insuficientes indícios», a insuficiência é na verdade a última coisa que têm
em mente. Para eles, os indícios são absolutamente suficientes, só que em
sentido contrário. Acreditam tão completamente numa ordem anticristã do
universo que não há qualquer opção viva: a hipótese do cristianismo está
morta à partida.

VI
Mas agora, visto que todos somos tais absolutistas por instinto, o que
devemos fazer, na qualidade de estudantes de filosofia, acerca deste facto?
Devemos defendê-lo e sancioná-lo? Ou tratá-lo-emos como uma fraqueza
da nossa natureza, da qual temos de nos libertar, caso o possamos fazer?
Creio sinceramente que o último procedimento é o único que podemos
adoptar enquanto homens de reflexão. Os indícios objectivos e a certeza são
sem dúvida excelentes ideais com que brincar, mas onde, neste planeta
iluminado pela Lua e visitado por sonhos, os encontramos? Eu próprio sou,
portanto, um completo empirista no que diz respeito à minha teoria do
conhecimento humano. Vivo, certamente, de acordo com a fé prática de que
temos de continuar a experimentar e a reflectir sobre a nossa experiência,
pois só assim as nossas opiniões se podem aproximar da verdade; mas creio
que a atitude de adoptar qualquer uma delas — é-me de todo indiferente
qual — como se jamais pudesse ser reinterpretável ou corrigível, é um
tremendo equívoco, e penso que toda a história da filosofia me irá
corroborar. Não há senão uma verdade indefectivelmente certa, que o
próprio cepticismo pirrónico deixa de pé — a verdade de que o fenómeno
presente da consciência existe. Isso, contudo, é o ponto de partida nu do
conhecimento, a mera admissão de uma matéria acerca da qual filosofar. As
diversas filosofias são meras tentativas de exprimir o que esta matéria
realmente é. E se vamos às nossas bibliotecas quanto desacordo
descobrimos! Onde se encontra uma resposta indubitavelmente verdadeira?
Além de proposições abstractas comparativas (tais como «dois mais dois é
igual a quatro»), proposições que em si mesmas nada nos dizem acerca da
realidade concreta, não encontramos qualquer proposição que alguém tenha
considerado evidentemente certa ao ponto de nunca a terem declarado uma
falsidade, ou pelo menos cuja verdade nunca foi seriamente questionada por
outrem. Transcender os axiomas da geometria, não a brincar, mas a sério,
por parte de alguns dos nossos contemporâneos (como Zöllner e Charles H.
Hinton), e a rejeição de toda a lógica aristotélica pelos hegelianos, são
exemplos flagrantes a este respeito.
Nenhum teste concreto daquilo que é realmente verdadeiro foi alguma
vez objecto de consenso. Alguns tornam o critério externo ao momento da
percepção, colocando-o na revelação, no consensus gentium, nos instintos
do coração ou na experiência sistematizada do género humano. Outros
transformam o momento perceptivo em teste de si próprio — Descartes, por
exemplo, com as suas ideias claras e distintas garantidas pela veracidade de
Deus; Reid com o seu «senso comum»; e Kant com as suas formas do juízo
sintético a priori. O carácter inconcebível do oposto; a capacidade de ser
verificado pelos sentidos; a posse de unidade orgânica completa ou auto-
relação, realizada quando uma coisa é o seu próprio outro — são cânones
que foram, por sua vez, usados. Os louvadíssimos indícios objectivos não
estão, triunfalmente, em lado algum; é uma mera aspiração ou Grenzbegriff,
assinalando o ideal infinitamente remoto da nossa vida pensante. Afirmar
que determinadas verdades agora o possuem é simplesmente afirmar que,
quando as consideramos verdadeiras, e são verdadeiras, os indícios a seu
favor são objectivos e de contrário não. Mas na prática, a nossa convicção
de que os indícios por que nos guiamos são da variedade genuinamente
objectiva, é apenas mais uma opinião subjectiva que se acrescenta às outras.
Pois já se reivindicou a objectividade dos indícios favoráveis e a certeza
absoluta para uma tão grande variedade de opiniões contraditórias! O
mundo é inteiramente racional — a sua existência é um facto bruto último;
há um Deus pessoal — um Deus pessoal é inconcebível; há um mundo
físico extramental imediatamente conhecido — a mente apenas pode
conhecer as suas próprias ideias; existe um imperativo moral — a obrigação
é apenas o resultado dos desejos; há em todos um princípio espiritual
permanente — há apenas estados mentais inconstantes; há uma cadeia
interminável de causas — há uma primeira causa absoluta; uma necessidade
eterna — uma liberdade; um propósito — nenhum propósito; um Uno
primordial — um Múltiplo primordial; uma continuidade universal — uma
descontinuidade essencial nas coisas; uma infinidade — nenhuma
infinidade. Há isto — há aquilo; nada há, na verdade, que alguém não tenha
considerado absolutamente verdadeiro, ao passo que o seu vizinho o
considerou absolutamente falso; e nenhum absolutista entre eles parece ter
alguma vez considerado que o problema pode ter sido sempre essencial e
que o intelecto, mesmo com a verdade directamente ao seu alcance, pode
não ter qualquer sinal infalível para saber se é ou não verdadeiro.
Efetivamente, quando recordamos que a mais flagrante aplicação prática à
vida da doutrina da certeza objectiva foi o trabalho consciencioso do Santo
Ofício da Inquisição, sentimo-nos menos tentados do que nunca a ouvir
com bonomia tal doutrina.
Mas observem agora, peço-vos, que quando, na qualidade de
empiristas, abandonamos a doutrina da certeza objectiva, não deixamos por
isso de procurar a verdade em si ou ter esperança nela. Ainda depositamos a
nossa fé na sua existência e ainda acreditamos que conseguimos progredir
cada vez mais na sua direcção, continuando sistematicamente a acumular
experiências e a pensar sobre elas. A grande diferença entre nós e o
escolástico está no lado para o qual nos voltamos. A força do seu sistema
está nos princípios, na origem, no terminus a quo do seu pensamento; para
nós a força está no resultado, no desfecho, no terminus ad quem. O decisivo
não é de onde vem, mas aonde conduz. Não importa a um empirista qual a
procedência de uma hipótese que se lhe depara: pode tê-la obtido por meios
justos ou ilícitos; pode ter-lhe sido sussurrada pela paixão ou sugerida pelo
acaso; mas se a direcção total do pensamento continuar a confirmá-lo, é isso
o que significa dizer que é verdadeiro.

VII
Um aspecto ainda, pequeno, mas importante, e concluímos os nossos
preliminares. Há duas maneiras de encarar o nosso dever, no que diz
respeito à opinião — maneiras completamente diferentes e, no entanto,
maneiras a cuja diferença a teoria do conhecimento parece ter dado até
agora muito pouca atenção. Temos de saber a verdade; temos de evitar o
erro — estes são os nossos primeiros e grandiosos mandamentos, como
pretendentes ao conhecimento; mas não são duas maneiras de afirmar um
mesmo mandamento, são duas leis distintas. Embora possa de facto
acontecer que acreditar na verdade A tenha a consequência lateral de nos
livrarmos de acreditar na falsidade B, quase nunca se dá o caso de
acreditarmos necessariamente em A apenas por não acreditarmos em B.
Podemos, ao evitar B, acabar acreditando noutras falsidades, C ou D, tão
más como B; ou podemos evitar B tão-pouco acreditando seja no que for,
nem mesmo em A.
Acreditem na verdade! Evitem o erro! — Estas, como se vê, são duas
leis materialmente diferentes; e ao escolher entre elas podemos acabar por
dar uma tonalidade diferente a toda a nossa vida intelectual. Podemos
encarar a caça à verdade como primordial e a fuga ao erro como secundária;
ou podemos, por outro lado, tratar a fuga ao erro como algo mais
imperativo e deixar a verdade correr os seus riscos. Clifford, na instrutiva
passagem que citei, exorta-nos a escolher o segundo caminho. Não
acreditem em coisa alguma, diz-nos, mantenham para sempre a mente em
suspenso, em vez de, cingindo-se a indícios insuficientes, incorrer no
terrível risco de acreditar numa mentira. Vocês, por outro lado, podem
pensar que o risco de cair em erro é algo de somenos importância por
comparação à bênção do conhecimento genuíno, e aceitar serem enganados
muitas vezes na vossa investigação em vez de adiar indefinidamente a
hipótese de acertar na verdade. Por mim considero impossível acompanhar
Clifford. Temos de recordar que estes sentimentos sobre o nosso dever
perante a verdade ou o erro são, em todo o caso, apenas expressões da nossa
vida passional. Biologicamente consideradas, as nossas mentes são tão
aptas a destilar a falsidade como a veracidade, e quem afirma «Antes passar
toda a vida sem crenças do que acreditar numa mentira!» apenas mostra o
seu preponderante horror privado de se tornar um palerma. Pode ser crítico
relativamente a muitos dos seus desejos e medos, mas a este medo obedece
servilmente. Não pode imaginar que alguém questione a sua força
vinculadora. Da minha parte, tenho também horror a ser intrujado; mas
acredito que neste mundo podem acontecer coisas piores a um homem além
de ser intrujado: pelo que a exortação de Clifford tem uma ressonância
completamente fantástica nos meus ouvidos. É como um general que diz os
seus soldados que mais vale evitar eternamente a batalha do que arriscar
uma única ferida. Não se consegue assim vitórias sobre inimigos ou sobre a
natureza. Os nossos erros não são com certeza coisas tão horrivelmente
solenes. Num mundo onde estamos tão certos de incorrer neles, por muito
prudentes que sejamos, uma certa ligeireza de espírito parece mais saudável
do que este nervosismo exagerado por sua causa. Em todo o caso, parece o
mais apropriado ao filósofo empirista.

VIII
E agora, depois de toda esta introdução, passemos de imediato à nossa
questão. Afirmei, e agora repito, que não só vemos que, na realidade, a
nossa natureza passional influencia as nossas opiniões como que há opções
entre opiniões em que se tem de encarar esta influência como um factor
determinante, tanto inevitável como legítimo, da nossa escolha.
Receio neste ponto que alguns dos que me ouvem começarão a farejar
o perigo, interpretando-me então de modo não caridoso. Dois primeiros
passos da paixão tiveram de facto de admitir como necessários — temos de
pensar de maneira a evitar a intrujice, e temos de pensar de modo a obter a
verdade; mas o caminho mais seguro para essas consumações ideais,
considerarão muito provavelmente, é de agora em diante não dar mais
passos passionais.
Bom, claro que concordo, tanto quanto os factos o permitirem. Sempre
que a opção entre perder a verdade e ganhá-la não é momentosa, podemos
deitar fora a hipótese de obter a verdade e, em qualquer circunstância,
salvaguardar-nos de qualquer hipótese de acreditar em falsidades, não
decidindo sequer antes de haver indícios objectivos disponíveis. Nas
questões científicas, isto é quase sempre assim; e mesmo nos assuntos
humanos em geral, poucas vezes a necessidade de agir é tão urgente que
faça uma falsa crença sobre a qual basear a acção ser melhor do que
nenhuma crença sequer. Os tribunais, de facto, têm de decidir com base nos
melhores indícios que se pode obter no momento, porque o dever de um
juiz é tanto fazer a lei como averiguá-la, e (como me disse em tempos um
juiz de grande erudição) poucos são os casos em que vale a pena perder
muito tempo: o importante é decidi-los com base em qualquer princípio
aceitável, e passar adiante. Mas na nossa relação com a natureza objectiva
somos obviamente registadores e não produtores da verdade; e decisões
tomadas apenas em função de decidir prontamente e passar à próxima tarefa
seriam completamente deslocadas. Em toda a amplitude da natureza física
os factos são o que são, independentemente de nós, e raramente há a
propósito deles uma urgência tal que tenha de se enfrentar os riscos de ser
enganado por acreditar numa teoria prematura. As questões aqui são sempre
opções triviais, as hipóteses dificilmente estão vivas (em todo o caso, não
estão vivas para nós espectadores), a escolha entre acreditar na verdade ou
na falsidade raramente é forçosa. A atitude do equilíbrio céptico é, portanto,
absolutamente sensata, para que evitemos os erros. Que diferença realmente
fará para a maior parte de nós se temos ou não uma teoria dos raios
Röntgen, se acreditamos ou não na substância mental, se temos ou não
convicções acerca da causalidade dos nossos estados conscientes? É
indiferente. Tais opções não são forçosas para nós. Em todos os aspectos, é
melhor não as fazer, continuando, todavia, a pesar as razões pro et contra de
modo indiferente.
Falo aqui, é claro, da mente puramente judicativa. No que interessa à
descoberta, tal indiferença não é tão fortemente recomendável, e a ciência
estaria muito menos avançada do que está se se mantivesse fora de cena os
desejos inflamados dos indivíduos em ver confirmada a sua própria fé.
Veja-se, por exemplo, a sagacidade que Spencer e Weismann agora exibem.
Por outro lado, se querem um perfeito bronco a investigar, têm, afinal, de
escolher o homem que não tem qualquer interesse nos resultados: é o inepto
autorizado, o tolo genuíno. O investigador mais útil, porque é o observador
mais sensível, é sempre aquele cujo interesse ardente num dos lados da
questão é equilibrado por um nervosismo igualmente intenso, para que não
se deixe iludir.8 A ciência organizou este nervosismo tornando-o uma
técnica normal, o seu chamado «método de verificação»; e apaixonou-se
tão profundamente pelo método que se pode mesmo afirmar que parou de
se preocupar com a verdade por si, de todo em todo. É apenas a verdade
enquanto tecnicamente verificada que lhe interessa. A verdade das verdades
podia assumir uma forma meramente afirmativa e ela recusaria tocar-lhe. A
ciência podia repetir com Clifford que tal verdade seria roubada em
desrespeito ao seu dever perante a humanidade. As paixões humanas,
todavia, são mais fortes do que as regras técnicas. «Le coeur a ses raisons»,
como afirma Pascal, «que la raison ne connaît point»; e por muito que o
árbitro, o intelecto abstracto, seja indiferente a tudo excepto as simples
regras do jogo, os jogadores concretos que lhe dão os materiais para julgar
estão normalmente, cada um deles, apaixonados pela sua própria «hipótese
viva» de estimação. Concordemos, todavia, que sempre que não haja uma
opção forçosa, o intelecto friamente judicativo, desprovido de qualquer
hipótese de estimação, salvaguardando-nos, como faz, do engano, em todo
o caso, deve ser o nosso ideal.
Levanta-se em seguida a questão: não haverá algures opções forçosas
nas nossas questões especulativas, e será que podemos (como homens que
talvez estejam pelo menos tão interessados em obter positivamente a
verdade como em meramente evitar o engano) esperar sempre impunemente
até que tenham chegado os indícios coercivos? Parece a priori improvável
que a verdade se ajustasse assim tão bem às nossas necessidades e poderes.
Na grande hospedaria da natureza, raramente os bolos, a manteiga e o
xarope ficam tão suaves e deixam os pratos tão limpos. Na verdade,
devíamos encará-los com desconfiança científica se o fizessem.

IX
As questões morais apresentam-se imediatamente como questões cuja
solução não pode esperar por uma prova tangível. Uma questão moral não é
sobre o que tangivelmente existe, mas sobre o que é bom, ou seria bom se
existisse. A ciência pode dizer-nos o que existe; mas para comparar os
valores, tanto daquilo que existe como do que não existe, temos de
consultar não a ciência mas aquilo a que Pascal chama o nosso «coração».
A própria ciência consulta o coração quando estabelece que a infinita
averiguação dos factos e a correcção das crenças falsas são os bens
supremos para o homem. Desafie-se a afirmação e a ciência só pode repeti-
la de modo oracular, ou então prová-la, mostrando que tal confirmação e
correcção trazem ao homem todo o género de outros bens que o coração do
homem por sua vez declara. A questão de ter crenças morais, de todo em
todo, ou de não as ter, é decidida pela nossa vontade. Serão as nossas
preferências morais verdadeiras ou falsas, ou serão apenas fenómenos
biológicos peculiares, tornando as coisas boas ou más para nós, mas
indiferentes em si? Como pode o vosso puro intelecto decidir? Se o vosso
coração não quer um mundo de realidade moral, a vossa cabeça
seguramente nunca vos fará acreditar num. O cepticismo mefistofélico, na
verdade, satisfará os instintos lúdicos da cabeça muito melhor do que
qualquer idealismo rigoroso. Alguns homens (mesmo em idade estudantil)
são tão naturalmente frios que a hipótese moral nunca tem para eles
qualquer vida pungente, e na sua presença altiva o moralista ardente sente-
se sempre estranhamente pouco à vontade. A aparência de conhecimento
está do lado daqueles, a naiveté e a credulidade do lado deste. Contudo, no
seu coração mudo, este agarra-se à convicção de que não é um palerma e
que há um domínio em que (como afirma Emerson) toda a perspicácia e
superioridade intelectual daqueles não valem mais do que a astúcia de uma
raposa. O cepticismo moral não é mais fácil de refutar ou provar através da
lógica do que o cepticismo intelectual. Quando sustentamos que há verdade
(seja de que tipo for), fazemo-lo com toda a nossa natureza, e decidimos
ficar de pé ou cair, consoante os resultados. O céptico, com toda a sua
natureza, adopta a atitude da dúvida: mas qual de nós é o mais sensato, só a
Omnisciência sabe.
Passemos agora destas questões amplas sobre o bem para certa classe
de questões de facto, questões respeitantes a relações pessoais, estados
mentais entre um homem e outro. Gostam de mim ou não? — por exemplo.
Se gostam ou não, dependerá, em inúmeras circunstâncias, de chegar a
acordo convosco, da minha disposição para pressupor que devem gostar de
mim e de vos mostrar alguma confiança e expectativa. O que vos faz
simpatizar comigo, em muitos casos, é a fé prévia que tenho em como o
farão. Mas se me mantenho à distância e recuso mover-me um só
centímetro antes de ter indícios objectivos, antes de terem feito algo
apropriado, como dizem os absolutistas, ad extorquendum assensum meum,
aposto que a vossa simpatia nunca se manifestará. Quantos corações de
mulher se deixam conquistar pela mera insistência confiante de um homem
em como têm de o amar! Não aceitará a hipótese de que não o podem fazer.
O desejo por certo tipo de verdade provoca aqui a existência dessa verdade
especial; e assim é em inúmeros casos diferentes. Quem ganha promoções,
favores, nomeações, senão o homem em cuja vida se vê que estas coisas
desempenham o papel de hipóteses vivas, que conta com elas, sacrifica
outras coisas por causa delas antes de as ter à vista e se arrisca de antemão
por elas? A sua fé age sobre os poderes acima de si como uma
reivindicação, e cria a sua própria verificação.
Um organismo social de qualquer género que seja, pequeno ou grande,
é o que é porque cada membro cumpre o seu dever confiante de que os
outros cumprirão o deles. Sempre que se alcança um resultado desejado
pela cooperação de muitas pessoas independentes, a sua existência factual é
uma pura consequência da fé prévia que as pessoas imediatamente
envolvidas têm umas nas outras. Um governo, um exército, um sistema
comercial, um navio, um colégio, uma equipa de atletas, todos existem sob
esta condição, sem a qual não só nada se alcança, como nada alguma vez se
procura alcançar. Um comboio inteiro de passageiros (que individualmente
são bastante corajosos) será saqueado por um punhado de salteadores,
simplesmente porque os últimos podem contar uns com os outros, enquanto
cada passageiro receia que ao encetar um movimento de resistência, será
baleado antes que mais alguém o ajude. Se acreditássemos que todos os
passageiros se levantariam ao mesmo tempo connosco, cada um levantar-
se-ia individualmente, e jamais se tentaria assaltar comboios. Há, portanto,
casos em que um facto não se pode sequer dar a menos que exista uma fé
preliminar no seu advento. E onde a fé num facto pode ajudar a criar esse
facto, uma lógica segundo a qual a fé que se adianta aos indícios científicos
é o «tipo mais baixo de imoralidade» em que um ser pensante pode incorrer,
seria uma lógica doente. No entanto, tal é a lógica pela qual os nossos
absolutistas científicos pretendem regular as nossas vidas!

X
Nas verdades que dependem da nossa acção pessoal, portanto, a fé baseada
no desejo é certamente algo legítimo e possivelmente indispensável.
Mas agora, dir-se-á, tudo isto são puerilidades humanas, e nada têm a
ver com as grandes questões cósmicas, como a questão da fé religiosa.
Passemos então a essas. As religiões diferem tanto nas suas características
acidentais que ao discutir a questão religiosa temos de a tornar muito
genérica e lata. O que entendemos então agora por «hipótese religiosa»? A
ciência diz que as coisas são; a moralidade diz que umas coisas são
melhores do que outras; e a religião diz essencialmente duas coisas.
Em primeiro lugar, a religião afirma que as coisas melhores são as
mais eternas, as que se sobrepõem, as coisas que no universo lançam a
última pedra, por assim dizer, e dão a última palavra. «A perfeição é eterna»
— esta expressão de Charles Secrétan parece uma boa maneira de colocar
esta primeira afirmação da religião, uma afirmação que obviamente não
pode ainda ser cientificamente verificada, de todo em todo.
A segunda afirmação da religião é que mesmo agora ficamos melhor
se acreditarmos na sua primeira afirmação.
Consideremos agora quais são os elementos lógicos desta situação no
caso de a hipótese religiosa em ambas as suas ramificações ser realmente
verdadeira. (Evidentemente, temos de admitir à partida essa possibilidade.
Para discutirmos a questão, de todo em todo, esta tem de envolver uma
opção viva. Se para qualquer um de vocês a religião é uma hipótese que não
pode ser verdadeira segundo qualquer possibilidade viva, não precisam de ir
mais longe. Falo apenas para as «excepções que restarem».) Procedendo
assim, vemos, em primeiro lugar, que a religião se oferece como uma opção
momentosa. Supostamente ganhamos, agora mesmo, ao acreditar, e
perdemos ao não acreditar, um certo bem vital. Em segundo lugar, a religião
é uma opção forçosa, no que diz respeito a esse bem. Não podemos evitar a
questão permanecendo cépticos e esperando que se faça mais luz, porque,
embora assim evitemos realmente o erro no caso de a religião ser contrária
à verdade, perdemos o bem, no caso de ser verdadeira, tão seguramente
como se de facto escolhêssemos não acreditar. É como se um homem
hesitasse indefinidamente em pedir uma mulher em casamento, por não ter
a certeza absoluta de que depois de a levar para casa ela continua a ser um
anjo. Não estará a privar-se dessa possibilidade angélica particular tão
decisivamente como se casasse com outra pessoa? O cepticismo, portanto,
não consiste em evitar a opção; é a opção por certo tipo particular de risco.
Antes arriscar não acertar na verdade do que a hipótese de cair em erro —
esta é a posição exacta do nosso vetante da fé. Arrisca-se activamente tanto
quanto o crente; está a apostar todos os cavalos contra o cavalo da hipótese
religiosa, tal como um crente aposta na hipótese religiosa contra todos os
outros cavalos. Pregar-nos o cepticismo como um dever até se encontrar
«indícios suficientes» a favor da religião, equivale, portanto, a dizer-nos
que, na presença da hipótese religiosa, é mais sensato e melhor ceder ao
nosso medo de que esta seja errónea do que ceder à nossa esperança de que
pode ser verdadeira. Não se trata do intelecto contra todas as paixões,
portanto; trata-se apenas do intelecto com uma paixão impondo a sua lei. E
por que meio, em boa verdade, se garante a suprema sabedoria desta
paixão? Logro por logro, que prova há de que o logro que resulta da
esperança é pior do que o que resulta do medo? Por mim, não vejo prova
alguma; e simplesmente recuso obedecer à ordem do cientista para imitar o
seu tipo de opção, num caso em que o meu próprio interesse é
suficientemente importante para me dar o direito de escolher a minha
própria forma de risco. Se a religião for verdadeira e os indícios a seu favor
ainda insuficientes, não desejo, deixando que extingam as chamas da minha
natureza (que me parece afinal ter algo a ver com este assunto), abdicar da
minha única oportunidade na vida de entrar para o lado vencedor —
dependendo essa oportunidade, evidentemente, da minha disposição para
correr o risco de agir como se a minha necessidade passional de
compreender religiosamente o mundo possa ser profética e correcta.
Tudo isto supondo que pode realmente ser profética e correcta, e que,
mesmo para nós, que discutimos o assunto, a religião é uma hipótese viva
que pode ser verdadeira. Para a maioria de nós, a religião surge-nos de outra
maneira ainda, que torna ainda mais ilógico um veto à nossa fé activa. O
aspecto mais perfeito e eterno do universo é representado nas nossas
religiões como algo que tem uma forma pessoal. Quando se é religioso, o
universo não é mais um mero Isso, mas um Tu, para nós; e qualquer relação
que pode ser possível entre pessoas pode também ser possível aqui. Por
exemplo, embora num sentido sejamos parcelas passivas do universo,
noutro sentido mostramos uma curiosa autonomia, como se fôssemos
pequenos centros activos autónomos. Sentimos, além disso, que é como se
o apelo que sentimos da religião se exercesse sobre a nossa boa vontade
activa, como se os indícios pudessem ficar para sempre escondidos de nós a
menos que percorramos metade do caminho na sua direcção. Tomando
numa ilustração trivial: tal como um homem que numa companhia de
cavalheiros não tomasse quaisquer iniciativas, pedisse uma garantia por
cada concessão, e não acreditasse na palavra de quem quer que fosse sem
provas, privar-se-ia, com tal rudeza, de qualquer gratificação social a que
um espírito mais confiante teria acesso — também aqui, quem se fecha
numa atitude lógica resmungona e tenta fazer os deuses arrancar o seu
reconhecimento contra a sua vontade, não o obtendo de outro modo, pode
perder para sempre a sua única oportunidade de travar conhecimento com
os deuses. Este sentimento, que nos é imposto sem que saibamos de onde
vem, de que ao acreditar obstinadamente que há deuses (embora não o fazer
fosse tão fácil tanto para a nossa lógica como para a nossa vida) prestamos
ao universo o mais profundo serviço de que somos capazes, parece parte da
essência viva da hipótese religiosa. Se a hipótese fosse verdadeira em todas
as suas partes, incluindo esta, então o puro intelectualismo, com o seu veto
a que tomemos iniciativas voluntárias, seria um absurdo; e exigir-se-ia
logicamente alguma participação da nossa empatia natural. Eu, portanto,
por mim, não consigo ver-me aceitar as regras agnósticas para a procura da
verdade, ou concordar voluntariamente em manter a minha natureza
volitiva fora de jogo. Não o posso fazer por esta razão simples: uma regra
de pensamento que me impediria em absoluto de reconhecer certos tipos de
verdade se esses tipos de verdade estiverem realmente lá, seria uma regra
irracional. Isto, para mim, é tudo o que há a dizer sobre a lógica formal da
situação, independentemente dos tipos de verdade que possam
materialmente existir.

Confesso que não vejo como se pode escapar a esta lógica. Mas a triste
experiência faz-me recear que alguns de vocês ainda possam inibir-se de
afirmar radicalmente comigo, in abstracto, que temos o direito de acreditar
por nossa conta e risco em qualquer hipótese que esteja suficientemente
viva para ser uma tentação para a nossa vontade. Suspeito, contudo, que se
isto for assim, é porque se afastaram completamente do ponto de vista
lógico abstracto e pensam (talvez sem se aperceberem) em alguma hipótese
religiosa particular que para vós está morta. Aplicam a liberdade de
«acreditar no que se quer» a alguma superstição patente; e a fé em que
pensam é a fé definida pelo aluno quando disse: «A fé é quando
acreditamos numa coisa que sabemos não ser verdadeira». Não posso senão
repetir que isto é um equívoco. In concreto, a liberdade de acreditar só pode
abranger opções vivas que o intelecto do indivíduo não pode resolver por si;
e as opções vivas nunca parecem absurdas a quem as tem em consideração.
Quando olho para a questão religiosa tal como se coloca realmente a
homens concretos, e quando penso em todas as possibilidades que envolve,
tanto prática como teoricamente, esta ordem de pôr um travão ao nosso
coração, instintos e coragem, e esperar — agindo evidentemente entretanto
mais ou menos como se a religião não fosse verdadeira9 — até ao dia do
juízo, ou até ao dia em que o nosso intelecto e sentidos, trabalhando
conjuntamente, possam ter adquirido indícios suficientes — esta ordem,
digo, parece-me o ídolo mais bizarro que se fabricou na caverna filosófica.
Fôssemos absolutistas escolásticos, talvez tivéssemos uma desculpa maior.
Se tivéssemos um intelecto infalível, com as suas certezas objectivas,
podíamo-nos sentir desleais perante um órgão de conhecimento tão perfeito
ao não confiar exclusivamente nele, não esperando pela sua palavra
libertadora. Mas se somos empiristas, se acreditamos não haver em nós
quaisquer sinos a tocar a rebate quando estamos perante a verdade, parece
que pregar tão solenemente que temos o dever de aguardar pelo toque do
sino não passa de uma excentricidade vã. Na verdade, podemos aguardar, se
quisermos — espero que não pensem que o nego — mas se o fizermos,
fazemo-lo por nossa conta e risco, tal como se acreditássemos. Em todo o
caso agimos, tomando as rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós
devia impor vetos aos outros, nem trocar palavras agressivas. Devemos,
pelo contrário, respeitar delicada e profundamente a liberdade mental de
cada um: só então realizaremos a república intelectual, só então teremos
aquele espírito de tolerância interior sem o qual toda a tolerância exterior se
torna oca, e que é a glória do empirismo; só então viveremos e deixaremos
viver, tanto nas coisas especulativas como nas práticas.
Comecei com uma referência a Fitzjames Stephen; permitam-me que
termine citando-o:

«O que pensas de ti mesmo? O que pensas do mundo? […] São


questões com que todos têm de lidar como lhes parecer melhor. São
charadas esfíngicas e, de uma maneira ou doutra, temos de lidar com
elas […] Em todo o comércio importante da vida, temos de dar um
salto no escuro […] Se decidimos deixar as adivinhas sem resposta, é
uma escolha. Se hesitamos na nossa resposta, também isso é uma
escolha; mas seja qual for a escolha que fazemos, fazemo-la por nossa
conta e risco. Se um homem escolhe voltar completamente as costas a
Deus e ao futuro, ninguém o pode impedir. Ninguém pode mostrar
para lá da dúvida razoável que está enganado. Se um homem pensa o
contrário, e se age tal como pensa, não vejo como alguém pode provar
que ele está enganado. Cada qual tem de agir como acha melhor, e se
está errado tanto pior para ele. Estamos num desfiladeiro, no meio de
um turbilhão de neve e um nevoeiro denso, através do qual entrevemos
de vez em quando caminhos que podem ser enganadores. Se ficamos
quietos, morremos congelados. Se escolhemos a estrada errada, somos
feitos em pedaços. Não sabemos com certeza se há ou não uma estrada
certa. O que temos de fazer? “Ser fortes e corajosos”. Ajam pelo
melhor, esperem o melhor, aceitem o que vier […] Se a morte a tudo
põe fim, não há maneira melhor de ir ao seu encontro.»10
4

SERÁ A CRENÇA EM DEUS APROPRIADAMENTE BÁSICA?


ALVIN PLANTINGA

Muitos filósofos têm apelado à objecção indiciarista à crença teísta;


argumentam que a crença em Deus é irracional ou irrazoável ou
racionalmente inaceitável ou intelectualmente irresponsável ou
noeticamente inferior, porque, segundo afirmam, os indícios a favor desta
crença são insuficientes.11 Muitos outros filósofos e teólogos — em
particular os que se inserem na grande tradição da teologia natural —
afirmam que a crença em Deus é intelectualmente aceitável, mas apenas
pelo facto de haver indícios suficientes a seu favor. Estes dois grupos unem-
se na defesa de que a crença teísta só é racionalmente aceitável se houver
indícios suficientes a seu favor. Mais exactamente, defendem que uma
pessoa só é racional ou razoável em aceitar a crença teísta se dispuser de
indícios suficientes a favor dessa crença — isto é, só se a pessoa conhece ou
crê racionalmente noutras proposições que sustentam a proposição em
causa, e acredita na última com base nas primeiras. Em «Is Belief in God
Rational?» argumentei que a objecção indiciarista enraíza no
fundacionalismo clássico, uma imagem muitíssimo popular ou uma
perspectiva total acerca da fé, do conhecimento, da crença justificada, da
racionalidade e de tópicos relacionados. Esta imagem tem sido amplamente
aceite desde Platão e Aristóteles; as suas familiares próximas continuam
talvez a ser os modos dominantes de pensar acerca destes tópicos. Podemos
imaginar o fundacionalista clássico a começar com a observação de que
algumas das nossas crenças se podem basear noutras; pode dar-se o caso de
haver um par de proposições A e B tal que acredito em A com base em B.
Embora não seja fácil caracterizar esta relação de uma maneira reveladora e
intrivial, é ainda assim familiar. Acredito que a palavra «umbroso» se
soletra u-m-b-r-o-s-o: esta crença baseia-se noutra crença minha: a crença
de que é assim que o dicionário mostra como se soletra. Acredito que 72 ×
71 = 5112. Esta crença baseia-se em diversas outras crenças que tenho: que
1 × 72 = 72; 7 × 2 = 14; 7 × 7 = 49; 49 + 1 = 50; e outras. Contudo, há
crenças que aceito, mas não com base em quaisquer outras. Chamemos-lhes
«básicas». Acredito que 2 + 1 = 3, por exemplo, e não o acredito com base
noutras proposições. Também acredito que estou sentado à minha secretária
e que tenho uma ligeira dor no joelho direito. Também estas são básicas
para mim; não acredito nelas com base em quaisquer outras proposições.
Segundo o fundacionalista clássico, algumas proposições são
apropriadamente ou adequadamente básicas relativamente a uma pessoa e
outras não. As que não são, só são racionalmente aceites com base em
indícios, em que os indícios se têm de reportar, em última análise, ao que é
apropriadamente básico. A existência de Deus, além disso, não está entre as
proposições que são apropriadamente básicas; pelo que uma pessoa só é
racional ao aceitar a crença teísta se tiver indícios a seu favor.
Ora, muitos pensadores e teólogos reformistas12 rejeitaram a teologia
natural (concebida como a tentativa de fornecer provas ou argumentos a
favor da existência de Deus). Não só afirmaram que os argumentos
apresentados não são bons, mas que toda a empresa está, de alguma
maneira, radicalmente equivocada. Em «The Reformed Objection to
Natural Theology» (Proceedings of the American Catholic Philosophical
Association, 1980), argumento que se interpreta melhor a objecção
reformista à teologia natural como uma rejeição incipiente e imprecisa do
fundacionalismo clássico. O que estes pensadores reformistas realmente
têm em mente sustentar, penso, é que a crença em Deus não tem de se
basear, de todo em todo, em argumentos ou indícios dados por outras
proposições. Têm em mente sustentar que o crente está inteiramente no seu
direito intelectual ao acreditar do modo como o faz, mesmo que não
conheça qualquer bom argumento teísta (dedutivo ou indutivo), mesmo que
não acredite que haja qualquer argumento desse género, e mesmo que não
haja de facto qualquer argumento assim. Defendem que é perfeitamente
racional aceitar a crença em Deus sem que o façamos sequer com base em
quaisquer outras crenças ou proposições. Numa palavra, defendem que a
crença em Deus é apropriadamente básica. Neste ensaio tentarei
desenvolver e defender esta posição.
Mas primeiro temos de ganhar uma compreensão mais profunda da
objecção indiciarista. É importante ver que se trata de uma discussão
normativa. O objector indiciarista defende que quem aceita a crença teísta é
de alguma maneira irracional ou noeticamente inferior. Aqui deve-se
entender «racional» e «irracional» como termos normativos ou avaliativos;
segundo o objector, o teísta não consegue satisfazer um cânone ao qual se
deveria conformar. No que diz respeito às crenças, como no que diz respeito
às acções, há um procedimento correcto e um incorrecto; temos deveres,
responsabilidades, obrigações a respeito das primeiras, tal como no que diz
respeito às segundas. Assim, segundo o Professor Blanshard:

[…] em todo o lado e sempre a crença tem um aspecto ético. Há uma


ética geral do intelecto. Defendo que o princípio fundamental dessa
ética é o mesmo na religião e fora dela. Este princípio é simples e
arrebatador: faça corresponder o assentimento aos indícios. (Brand
Blanshard, Reason and Belief. Londres: Allen & Unwin, 1974, p. 401.)

Pode-se interpretar de diferentes modos esta «ética do intelecto»; muitas


questões fascinantes — nas quais temos de nos abster de entrar — surgem
quando tentamos formular mais precisamente as diversas opções que o
indiciarista pode querer adoptar. Inicialmente parece defender que há um
género de dever ou obrigação de não aceitar sem indícios proposições como
a que afirma que Deus existe — dever desprezado pelo teísta que não
dispõe de indícios. Se não dispõe de indícios, então tem o dever de
suspender a crença. Mas há uma dificuldade frequentemente apontada: as
nossas crenças, na sua maioria, não estão directamente sob o nosso
controlo. Maioritariamente, quem acredita em Deus não consegue despojar-
se dessa crença apenas tentando fazê-lo, tal como não conseguiriam dessa
maneira livrar-se da crença de que o mundo existe há muito tempo. Pelo
que talvez a obrigação relevante não seja a de despojar-me da crença teísta
se não disponho de indícios (isso está para lá do meu poder), mas a de
tentar cultivar o género de hábitos intelectuais que tendem (esperamos) a
fazer-me aceitar como básicas apenas as proposições que são
apropriadamente básicas.
Talvez se deva conceber esta obrigação teleologicamente: é uma
obrigação moral que surge de uma conexão entre determinados bens e
males intrínsecos e a maneira como as nossas crenças se formam e
sustentam. (W. K. Clifford parece interpretar desta a maneira a questão.)
Talvez se deva conceber areteticamente: há estados noéticos ou intelectuais
valiosos (sejam intrínseca ou extrinsecamente valiosos); há também
virtudes intelectuais correspondentes, hábitos de agir de maneira a
promover e melhorar tais estados virtuosos. Entre as nossas obrigações,
portanto, está o dever de tentar promover e cultivar estas virtudes em nós ou
noutros. Ou talvez se deva conceber deontologicamente: esta obrigação
cabe-nos apenas em virtude de termos o género de equipamento noético que
os seres humanos de facto exibem; não surge de uma conexão com estados
de coisas valiosos. Tal obrigação, além disso, podia ser um género especial
de obrigação moral; por outro lado, talvez seja uma obrigação amoral sui
generis.
Mais ainda, talvez o indiciarista não tenha de falar aqui em dever ou
obrigação de todo em todo. Considere-se alguém que acredite que Vénus é
menor do que Mercúrio, não porque tenha indícios de qualquer género, mas
porque acha divertido sustentar uma crença que ninguém mais sustenta —
ou considere-se alguém que defende esta crença com base num qualquer
argumento escandalosamente mau. Talvez não haja qualquer obrigação que
ele não tenha cumprido. Não obstante, a sua condição intelectual é de
algum modo imperfeita; ou então, talvez, haja uma excelência comummente
alcançada que ele é incapaz de exibir. E a objecção indiciarista à crença
teísta, portanto, pode ser compreendida não como a afirmação de que o
teísta que não dispõe de indícios não cumpriu uma obrigação, mas como a
afirmação de que o teísta sofre de um determinado género de imperfeição
intelectual (de modo que a atitude apropriada a adoptar quanto a ele seria a
compaixão e não a censura).
Estas são algumas das formas, portanto, de desenvolver a objecção
indiciarista; e evidentemente há ainda outras possibilidades. Para facilidade
de exposição, tomemos a afirmação deontologicamente; o que direi aplicar-
se-á, mutatis mutandis, se o tomarmos de uma das outras maneiras. A
objecção indiciarista, portanto, pressupõe uma perspectiva acerca de que
género de proposições se aceita correcta, devida ou justificadamente como
básicas; pressupõe uma perspectiva acerca do que é apropriadamente
básico. E a afirmação minimamente relevante para o objector indiciarista é
que a crença em Deus não é apropriadamente básica. Tipicamente, esta
objecção enraíza numa forma de fundacionalismo clássico, segundo a qual
uma proposição p é apropriadamente básica para uma pessoa S se, e só se, p
é ou auto-evidente ou incorrigível para S (fundacionalismo moderno) ou,
alternativamente, se é ou auto-evidente ou «evidente sensorialmente» para S
(fundacionalismo antigo e medieval). Em «Is Belief in God Rational?»
argumentei que ambas as formas de fundacionalismo são auto-
referencialmente incoerentes e têm, portanto, de ser rejeitadas.
Enquanto a objecção indiciarista enraizar no fundacionalismo clássico,
estará efectivamente mal fundada: e tanto quanto sei, ninguém desenvolveu
e articulou qualquer outra razão para supor que a crença em Deus não é
apropriadamente básica. Claro que não se segue que é apropriadamente
básica; talvez a classe das proposições apropriadamente básicas seja mais
lata do que supõem os fundacionalistas clássicos, mas ainda assim não lata
o suficiente para admitir a crença em Deus. Mas porquê pensar assim?
Quais poderiam ser as objecções à perspectiva reformista, de que a crença
em Deus é apropriadamente básica?
Já ouvi argumentar que se não tenho quaisquer indícios a favor da
existência de Deus, então se aceito aquela proposição, a minha crença será
infundada, ou gratuita ou arbitrária. Penso que isto é um erro; permita-se-
me que explique.
Suponha-se que consideramos as crenças perceptivas, crenças de
memória e crenças que atribuem estados mentais a outras pessoas: crenças
como

1. Vejo uma árvore,


2. Tomei o pequeno-almoço esta manhã, e
3. Aquela pessoa está zangada.

Embora as crenças deste género sejam típica e apropriadamente aceites


como básicas, seria um erro descrevê-las como infundadas. Ao ter uma
experiência de certo género, acredito que estou a percepcionar uma árvore.
No caso típico não adopto esta crença com base noutras; ainda assim não é
infundada. O facto de ter uma experiência daquele género característico —
usando a linguagem do Professor Chisholm, o aparecer-me arbóreo —
desempenha um papel crucial na formação e justificação dessa crença.
Podemos dizer que esta experiência, juntamente, talvez, com outras
circunstâncias, é o que me dá justificação para a adoptar; este é o
fundamento da minha justificação, e, por extensão, o fundamento da própria
crença.
Se vejo alguém exibir um comportamento típico de dor, depreendo que
a pessoa está com dores. Mais uma vez, não aceito o comportamento
exibido como um indício a favor dessa crença; não infiro essa crença a
partir de outras crenças que tenho; não a aceito com base noutras crenças.
Ainda assim, o facto de percepcionar o comportamento de dor desempenha
um papel único na formação e justificação dessa crença; como no caso
anterior, constitui o fundamento da minha justificação para a crença em
causa. O mesmo se aplica às crenças de memória. Parece que me recordo de
tomar o pequeno-almoço esta manhã; isto é, tenho uma inclinação para
acreditar na proposição segundo a qual tomei o pequeno-almoço,
juntamente com uma experiência com sabor a passado, que a todos é
familiar, mas difícil de descrever. Talvez devêssemos dizer que as coisas me
aparecem preteritamente; mas talvez isto distinga insuficientemente a
experiência em causa daquelas crenças concomitantes acerca do passado
que não se fundam na minha própria memória. A fenomenologia da
memória é um domínio rico e inexplorado; não disponho aqui de tempo
para a explorar. Neste como noutros casos, todavia, verifica-se uma
circunstância justificante, uma condição que constitui o fundamento da
minha justificação para aceitar a crença de memória em causa.
Em cada um destes casos se aceita uma crença como básica, e em cada
caso se a aceita apropriadamente como básica. Há em cada caso uma
circunstância ou condição que confere a justificação; há uma circunstância
que serve como o fundamento da justificação. Pelo que em cada caso haverá
uma proposição verdadeira do género:

4. Na condição C, S tem justificação para aceitar p como básica.

Claro que C variará com p. Para um juízo perceptivo como

5. Vejo uma parede cor-de-rosa à minha frente.

C incluirá o aparecer-me de certa maneira. Sem dúvida que C incluirá mais.


Se algo me aparece da maneira habitual, mas sei que estou a usar óculos
cor-de-rosa, ou que sofro de uma doença que causa o aparecer-me assim,
independentemente da cor dos objectos próximos, então não tenho
justificação para aceitar 5 como básica. De igual modo para a memória.
Suponha-se que sei que a minha memória não é fiável; que me prega
frequentemente partidas. Em particular, quando pareço recordar-me de ter
tomado o pequeno-almoço, então, não raro, não tomei o pequeno-almoço.
Sob estas condições, não tenho justificação para aceitar como básica a
crença de que tomei o pequeno-almoço, embora pareça recordar-me de que
tomei.
Pelo que aparecer-me da maneira apropriada, no caso perceptivo, não é
suficiente para dar justificação; uma condição ulterior — difícil de explicar
detalhadamente — é claramente necessária. O aspecto central aqui,
contudo, é que uma crença só é apropriadamente básica em determinadas
condições; estas condições são, digamos, o fundamento da sua justificação
e, por extensão, o fundamento da própria crença. Neste sentido, as crenças
básicas não são, ou não são necessariamente, crenças infundadas.
Pode-se afirmar coisas similares a propósito da crença em Deus.
Quando os reformistas afirmam que esta crença é apropriadamente básica,
não pretendem, evidentemente, afirmar que não há circunstâncias
justificantes para essa crença, ou que nesse sentido é infundada ou gratuita.
Muito pelo contrário. Calvino defende que Deus «se revela e mostra
diariamente a toda a construção do universo», e a arte divina «revela-se na
inumerável e, no entanto, distinta e bem ordenada variedade da multidão
celestial». Deus criou-nos de tal maneira que temos uma tendência ou
disposição para ver a sua mão no mundo à nossa volta. Mais precisamente,
há em nós uma disposição para acreditar em proposições do género: esta
flor foi criada por Deus ou este universo vasto e intricado foi criado por
Deus quando contemplamos a flor ou observamos os céus estrelados ou
pensamos nos vastos recantos do universo.
Calvino reconhece, pelo menos implicitamente, que esta disposição
pode ser despoletada por condições de outro género. Ao ler a Bíblia, pode-
se ficar impressionado com o profundo sentido de que Deus nos fala.
Depois de fazer o que considero reles, ou imoral ou malévolo, posso sentir-
me culpado aos olhos de Deus e formar a crença Deus desaprova o que fiz.
Ao confessar-me e arrepender-me, posso sentir-me perdoado formando a
crença Deus perdoa-me o que fiz. Uma pessoa em grave perigo pode voltar-
se para Deus, pedindo-lhe protecção e ajuda; e claro que ele ou ela formará
então a crença de que Deus é de facto capaz de ouvir e ajudar se o
considerar apropriado. Quando a vida é doce e gratificante, um sentido
espontâneo de gratidão pode ascender na alma; alguém nesta condição pode
agradecer e louvar o Senhor pela sua bondade e formará evidentemente a
crença concomitante de que na verdade há que agradecer ao Senhor e
louvá-lo.
Há, portanto, muitas condições e circunstâncias que evocam a crença
em Deus: culpa, gratidão, perigo, a sensação da presença de Deus, um
sentimento de que Deus fala, a percepção de diversas partes do universo.
Um trabalho completo explorará a fenomenologia de todas estas condições
e de outras. Trata-se de um tópico vasto e importante; mas aqui posso
apenas indicar a existência destas condições.
Claro que nenhuma das crenças que mencionei ainda há pouco é a
crença simples de que Deus existe. O que temos, ao invés, são crenças
como

6. Deus fala-me,
7. Deus criou tudo isto,
8. Deus desaprova o que fiz,
9. Deus perdoa-me, e
10. Há que agradecer a Deus e louvá-lo.

Estas proposições são apropriadamente básicas nas circunstâncias


adequadas. Mas é bastante consistente com isto supor que a proposição há
uma pessoa que é Deus nem é apropriadamente básica nem é aceite como
básica por quem acredita em Deus. Talvez o que aceitam como básico
sejam proposições como as de 6 a 10, acreditando na existência de Deus
com base em proposições como aquelas. Deste ponto de vista, não é
exactamente correcto afirmar que é a crença em Deus que é
apropriadamente básica; mais exactamente, são proposições como as de 6 a
10 que são apropriadamente básicas, cada uma das quais implica auto-
evidentemente que Deus existe. Não é a proposição relativamente de ordem
superior e geral Deus existe que é apropriadamente básica, mas, ao invés,
proposições que discriminam alguns dos seus atributos e acções.
Suponha-se que regressamos à analogia entre a crença em Deus e a
crença na existência de objectos perceptuais, de outras pessoas e do
passado. Também aqui se trata de proposições relativamente específicas e
concretas, em vez das suas companheiras mais gerais e abstractas, que são
apropriadamente básicas. Talvez itens como

11. Há árvores,
12. Há outras pessoas, e
13. O mundo existe há mais de 5 minutos.

não sejam de facto apropriadamente básicas; sendo, ao invés,


proposições como

14. Vejo uma árvore,


15. Aquela pessoa está contente, e
16. Tomei o pequeno-almoço há mais de uma hora,
que merecem tal reconhecimento. Claro que proposições do último
género implicam imediata e auto-evidentemente proposições do género
anterior; e talvez não haja assim mal em falar nas anteriores como
apropriadamente básicas, ainda que isso seja falar sem grande exactidão.
O mesmo tem de se afirmar acerca da crença em Deus. Podemos
afirmar, grosso modo, que a crença em Deus é apropriadamente básica;
estritamente falando, contudo, não é provavelmente essa proposição, mas
proposições como as de 6 a 10 que gozam desse estatuto. Mas a ideia
fundamental aqui é que a crença em Deus ou as de 6 a 10 são
apropriadamente básicas; afirmá-lo, contudo, não é negar que haja
circunstâncias justificantes para estas crenças, ou condições que conferem
justificação a quem as aceita como básicas. Não são, consequentemente,
infundadas ou gratuitas.
Uma segunda objecção, que ouço frequentemente: se a crença em
Deus é apropriadamente básica, por que não pode qualquer crença ser
apropriadamente básica? Não podemos afirmar o mesmo acerca de qualquer
aberração bizarra que nos ocorresse? E quanto ao vudu e à astrologia? E
quanto à crença de que a Grande Abóbora regressa em todos os dias das
bruxas? Poderia eu aceitar essa crença como básica? E se não posso, por
que posso aceitar apropriadamente a crença em Deus como básica?
Suponhamos que acredito que se agitar os braços com vigor suficiente
posso descolar e voar à volta da sala; poderia defender-me da acusação de
irracionalidade afirmando que esta crença é básica? Se afirmamos que a
crença em Deus é apropriadamente básica, não estaremos comprometidos a
defender que qualquer coisa, ou quase, pode ser apropriadamente aceite
como básica, escancarando assim a porta ao irracionalismo e à superstição?
Certamente que não. O que nos poderia levar a pensar que o
epistemólogo reformista se encontra neste tipo de dificuldade? O facto de
rejeitar os critérios para a basicidade apropriada fornecidos pelo
fundacionalismo clássico? Mas porquê pensar que isso o compromete com
tal tolerância perante a irracionalidade? Considere-se uma analogia. Nos
dias felizes do positivismo, os positivistas andavam confiantemente de um
lado para o outro, brandindo o seu critério de verificabilidade e declarando
sem sentido muitas coisas que obviamente tinham sentido. Suponha-se
agora que alguém rejeitou uma formulação desse critério — a que se
encontra na segunda edição da obra de A. J. Ayer, Linguagem, Verdade e
Lógica, por exemplo. Significará isso que a pessoa se compromete a
defender que

17. Estava abrásigo; e os viscágeis xugaios moinhavam e esfuavam no


ensouteiro.

ao contrário do que parece, tem sentido? Claro que não. Mas nesse caso o
mesmo se aplica ao epistemólogo reformista; o facto de rejeitar o critério da
basicidade apropriada do fundacionalista clássico não significa que está
obrigado a supor que qualquer coisa é apropriadamente básica.
Mas qual é então o problema? Será porque o epistemólogo reformista
não só rejeita aqueles critérios para a basicidade apropriada, como não
parece sentir qualquer urgência de apresentar aquilo que considera um
melhor substituto? Se não tem qualquer critério semelhante, como pode
rejeitar honestamente a crença na Grande Abóbora como apropriadamente
básica?
Esta objecção trai um importante erro de perspectiva. Como chegamos
correctamente a critérios de significado, ou crença justificada, ou basicidade
apropriada? De onde vêm? Será que temos de ter tal critério antes de
podermos sensatamente fazer quaisquer juízos — positivos ou negativos —
acerca da basicidade apropriada? Seguramente que não. Suponhamos que
não conheço um substituto satisfatório para os critérios propostos pelo
fundacionalismo clássico; estou, não obstante, inteiramente no meu direito
ao defender que determinadas proposições não são apropriadamente básicas
em determinadas condições. Algumas proposições parecem auto-evidentes
quando na verdade não são; é essa a lição de alguns dos paradoxos de
Russell! Não obstante, seria irracional aceitar como básica a negação de
uma proposição que nos parece auto-evidente. De igual modo, suponha que
lhe parece ver uma árvore; seria então irracional aceitar como básica a
proposição segundo a qual não vê uma árvore; ou de que não há quaisquer
árvores. Da mesma maneira, ainda que não conheça qualquer critério de
significado esclarecedor, posso declarar bastante apropriadamente que 17,
acima, não significa coisa alguma.
E isto levanta uma importante pergunta — que Roderick Chisholm nos
ensinou a fazer. Qual é o estatuto dos critérios para o conhecimento, ou
basicidade apropriada, ou crença justificada? Tipicamente, são afirmações
universais. O critério fundacionalista moderno para a basicidade apropriada,
por exemplo, é duplamente universal:

18. Para qualquer proposição A e pessoa S, A é apropriadamente básica


para S se, e só se, A é incorrigível para S ou auto-evidente para S.

Mas como se pode saber tal coisa? Quais são as suas credenciais? Sem
sombra de dúvida, 18 não é auto-evidente ou apenas obviamente
verdadeira. Mas se não é, como se chega a ela? De que género são os
argumentos apropriados? Claro que um fundacionalista pode achar 18 tão
atraente que simplesmente a aceita como verdadeira, nem apresentando
argumentos a seu favor, nem a aceitando com base noutras coisas em que
acredita. Se o faz, todavia, a sua estrutura noética será auto-
referencialmente incoerente. Em si, 18 nem é auto-evidente nem é
incorrigível; daí que ao aceitar 18 como básica o fundacionalista moderno
viole a condição da basicidade apropriada que ele próprio estabeleceu ao
aceitá-la. Por outro lado, talvez o fundacionalista tente apresentar algum
argumento a seu favor a partir de premissas que são auto-evidentes ou
incorrigíveis: é extremamente difícil ver, todavia, como poderia ser tal
argumento. E até que o fundacionalista apresente algum argumento, o que
farão os restantes de nós — que não consideramos 18 óbvia ou convincente,
de todo em todo? Como pode o fundacionalista usar 18 para nos mostrar
que a crença em Deus, por exemplo, não é apropriadamente básica? Por que
acreditaríamos em 18, ou lhe daríamos qualquer atenção?
O facto é que, penso, nem 18 nem qualquer outra condição
esclarecedora necessária e suficiente para a basicidade apropriada se segue
de premissas claramente auto-evidentes através de argumentos claramente
aceitáveis. E assim a maneira apropriada de chegar a tal critério é, grosso
modo, indutiva. Temos de reunir exemplos de crenças e condições tais que
as primeiras sejam, de uma maneira óbvia, apropriadamente básicas sob as
segundas, e exemplos de crenças e condições tais que as primeiras, de uma
maneira óbvia, não sejam apropriadamente básicas sob as segundas. Temos
então de enquadrar hipóteses quanto às condições necessárias e suficientes
da basicidade apropriada e testar estas hipóteses por referência àqueles
exemplos. Sob condições adequadas, por exemplo, é claramente racional
acreditar que o leitor vê uma pessoa humana à sua frente: um ser que tem
pensamentos e sentimentos, que conhece e acredita, que toma decisões e
age. É evidente, além disso, que o leitor não tem qualquer obrigação de
defender argumentativamente esta crença a partir de outras que tem; sob
aquelas condições, essa crença é apropriadamente básica para si. Mas então
18 tem de estar errada; a crença em questão, sob essas circunstâncias, é
apropriadamente básica, embora não seja auto-evidente nem incorrigível
para o leitor. De igual modo, talvez pareça recordar-se de ter tomado o
pequeno-almoço esta manhã, e talvez desconheça qualquer razão para supor
que a sua memória lhe prega partidas. Sendo assim, tem toda a justificação
para aceitar essa crença como básica. Claro que não é apropriadamente
básica à luz dos critérios dados pelos fundacionalistas clássicos; porém,
esse facto não conta contra si, mas contra aqueles critérios.
Em conformidade, tem de se obter os critérios para a basicidade
apropriada a partir de baixo e não a partir de cima; não se os devia
apresentar como ex cathedra, mas sujeitos à argumentação e ao teste por
um conjunto relevante de exemplos. Mas não há razão para supor,
antecipadamente, que todos irão concordar com os exemplos. O cristão irá
com certeza supor que a crença em Deus é inteiramente apropriada e
racional; se não aceita esta crença com base noutras proposições, concluirá
que é básica para si, bastante apropriadamente. Os seguidores de Bertrand
Russell e de Madelyn Murray O’Hare podem discordar, mas como será isso
relevante? Terão os meus critérios, ou os da comunidade cristã, de
conformar-se aos seus exemplos? Certamente que não. A comunidade cristã
é responsável pelo seu conjunto de exemplos, não do deles.
Em conformidade, o epistemólogo reformista pode defender
apropriadamente que a crença na Grande Abóbora não é apropriadamente
básica; apesar de defender que a crença em Deus é apropriadamente básica
e apesar de não ter qualquer critério, com pernas para andar, da basicidade
apropriada. Claro que está comprometido com o pressuposto de que há uma
diferença relevante entre a crença em Deus e a crença na Grande Abóbora,
se defende que a primeira é apropriadamente básica, mas não a segunda.
Mas isto não deverá ser um grande constrangimento; há bastantes
candidatos. Estes candidatos encontram-se na proximidade das condições
que mencionei na última secção, que justificam e fundamentam a crença em
Deus. Assim, por exemplo, o epistemólogo reformista pode concordar com
Calvino na afirmação de que Deus implantou em nós uma tendência natural
para ver a sua mão no mundo à nossa volta; o mesmo não se pode afirmar
da Grande Abóbora; não existindo qualquer Grande Abóbora nem qualquer
tendência natural para aceitar crenças acerca da Grande Abóbora.
Em jeito de conclusão, portanto: ser auto-evidente ou incorrigível, ou
evidente sensorialmente, não é uma condição necessária da basicidade
apropriada. Além disso, quem defende que a crença em Deus é
apropriadamente básica não está por isso comprometido com a ideia de que
a crença em Deus é infundada ou gratuita ou que não tem circunstâncias
justificantes. E mesmo que careça de um critério geral para a basicidade
apropriada, não está obrigado a supor que qualquer crença ou quase — a
crença na Grande Abóbora, por exemplo — é apropriadamente básica.
Como toda a gente o devia fazer, começa com exemplos; e pode aceitar a
crença na Grande Abóbora como um paradigma da crença irracional básica.
NOTAS

1. The Devil’s Dictionary, 1906. Há uma tradução portuguesa, na Tinta da


China.
2. Areopagitica.
3. Aids to Reflection.
4. É preciso não confundir ilusão com delusão. Enquanto a ilusão tem
como resultado uma crença ou conjunto de crenças do indivíduo, não
pondo em causa a sua compreensão global da realidade, a delusão é
um estado mental em que a compreensão da realidade pelo indivíduo
está inteiramente comprometida. Um bom exemplo de ilusão é pensar
que estamos a ver uma pessoa ao longe quando na verdade é uma
árvore; um bom exemplo de delusão é o fanatismo político que pode
distorcer totalmente a compreensão da realidade. (N. do T.)]
5. O monte Sri Pada, no Sri Lanka (antigo Ceilão). Local de importância
religiosa para diversas tradições. (N. do T.)
6. James faz originalmente uma analogia com a electricidade, e não com
a linguística, pois em inglês chama-se respectivamente live wire e dead
wire a um fio com e sem electricidade, ou positivo e negativo. (N. do
T.)
7. Compare-se com a admirável página 310 na obra de S. H. Hodgson,
Time and Space, Londres, 1865.
8. Compare-se com o ensaio de Wilfrid Ward, «The Wish to Believe», no
seu Witness to the Unseen, McMillan & Co., 1893.
9. Como a crença se mede pela acção, quem nos proíbe de acreditar na
verdade da religião, proíbe-nos também necessariamente de agir como
deveríamos se acreditássemos na sua verdade. Toda a defesa da fé
religiosa depende da acção. Se a acção exigida ou inspirada pela
hipótese religiosa não for de modo algum diferente da que é ditada
pela hipótese naturalista, a fé religiosa é uma pura superfluidade, que é
melhor podar, e a controvérsia acerca da sua legitimidade é uma
frivolidade, indigna de mentes sérias. Eu próprio acredito, obviamente,
que a hipótese religiosa dá ao mundo uma expressão que determina
especificamente as nossas reacções, e as torna em grande parte
diferentes daquilo que podiam ser num esquema de crença puramente
naturalista.
10. Liberty, Equality, Fraternity, p. 353, 2.ª edição, Londres, 1874.
11. Ver, por exemplo, Brand Blanshard, Reason and Belief (Londres: Allen
& Unwin, 1974), pp. 400 ss, W. K. Clifford, «A Ética da Crença»
(Cap. 2 deste volume), A. G. N. Flew, The Presumption of Atheism
(Londres: Pemberton Publishing Co., 1976), p. 22, Bertrand Russell,
«Why I am not a Christian», in Why I am Not a Christian (Nova
Iorque: Simon & Schuster, 1957), pp. 3 ss. e Michael Scrivin, Primary
Philosophy (Nova Iorque: McGraw-Hill, 1966), pp. 87 ss. Em «Is
Belief in God Rational?» in Rationality and Religious Belief, org. C.
Delaney (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1979),
considero e rejeito a objecção indiciarista à crença teísta.
12. Um pensador ou teólogo reformista é alguém intelectualmente afecto à
tradição protestante que remonta a João Calvino (e não alguém que foi
anteriormente teólogo e que depois viu a luz).
ORIGEM DOS ENSAIOS
«A Ética da Crença» é a tradução de «The Ethics of Belief»,
originalmente publicado em Contemporary Review, Janeiro de 1877. O
texto foi retirado de The Ethics of Belief and Other Essays, de W. K.
Clifford (Amhest, NY: Prometheus Books, 1999) e confrontado com a
edição organizada por Leslie Stephen e Sir Frederick Pollock, publicada em
Londres em 1901 (Vol. 2, pp. 163–205).

«A Vontade de Acreditar» é a tradução de «The Will to Believe», palestra


apresentada aos Clubes Filosóficos das Universidades de Yale e Brown.
Publicada originalmente em New World, Junho de 1896. O texto foi retirado
de Writings: 1878–1899, de William James (Nova Iorque, NY: The Library
of America, 1992, segunda impressão). Esta cuidada edição foi preparada
por Gerald E. Myers, baseando-se na edição crítica da Harvard University
Press das obras de James, corrigindo alguns erros que nela se encontram.

«Será a Crença em Deus Apropriadamente Básica?» é a tradução de «Is


Belief in God Properly Basic?» (Noûs, Vol. 15, N.º 1, 1981, pp. 41–51),
publicada aqui com a autorização do autor.
LEITURAS RECOMENDADAS

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EXPRESSÕES ESTRANGEIRAS

Ad extorquendum assensum meum — Que me obrigue ao assentimento


Adequatio intellectus nostri cum re — Adequação do intelecto à coisa
Aptitudinem ad extorquendum certum assensum — Aptidão para
extrair assentimento certo
Cela vous fera croire et vous abêtira — Isso vos fará crer e vos
embotará
Consensus gentium — Consenso dos povos
Entitas ipsa — A entidade em si
Extorquendum assensum meum — Que me obrigue ao assentimento
Grenzbegriff — Conceito regulador
In foro conscientiae — No seu foro íntimo
Le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point — O coração
tem razões que a razão desconhece
Mutatis mutantis — Mudando o que deve ser mudado
Naiveté — Ingenuidade
Quietem in cognitione — Tranquilidade cognitiva
Sui generis — Peculiar
Terminus a quo — Extremo inicial
Terminus ad quem — Extremo final
SOBRE O ORGANIZADOR
Desidério Murcho é professor de filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto (Brasil). É autor de
vários livros, destacando-se Essencialismo Naturalizado (2002), O Lugar da Lógica na Filosofia
(2003), Filosofia em Directo (2011), Sete Ideias Filosóficas que Toda a Gente Deveria Conhecer
(2011) e Todos os Sonhos do Mundo e Outros Ensaios (2016). Traduziu vários artigos e livros,
incluindo obras de George Orwell, Thomas Nagel, Bertrand Russell, Alvin Plantinga, Susan Wolf, W.
O. Quine, Nelson Goodman e Simon Blackburn. Fundou a revista Crítica e escreveu para o jornal
Público.

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Sobre os autores
Fé, epistemologia e virtude
A ética da crença
A vontade de acreditar
Será a crença em Deus apropriadamente básica?
Notas
Origem dos ensaios
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