Ator Caçador
Ator Caçador
Ator Caçador
sobre pedagogia, seja esta voltada para a formação de atores ou não, é a de fugir de uma
Na tentativa, sempre inglória, de fugir deste modelo, opto por começar enumerando
angústias que vivenciei quando aluna – e que reconheço em meus alunos –, algumas ainda
Também um dia, vivi na procura de técnicas, saberes, certezas, que realizassem uma
transformação no meu corpo, voz, pensamento, coração, daquilo que não servia aquilo que
serviria à arte. Também idealizei – e não sem a ajuda de alguns professores, não todos - um
corpo e uma voz, diferentes daqueles que tinha e que, um dia, se mostrariam aptos aos
compromissos da arte. Assisti a inúmeras palestras onde copiei exercícios que traziam a
‘boa nova’ e que seriam a ‘chave’ para a criatividade. A disciplina, a seriedade, a dedicação
– nunca suficientes o bastante por causa da preguiça, da pressa, da falta de tempo, ou seja
lá do que fosse – eram metas a serem realizadas assim como se houvesse um prêmio a
receber ao final de tanto esforço. A busca era por chegar a este final ideal e, como em uma
brincadeira de “está quente, está frio”, ia me guiando e me deixando guiar. E algo disso não
Mas tudo isto é só em parte verdadeiro porque havia também epifanias que davam
um tom mais alegre à minha busca e, por vezes, podia me sentir realizando uma
1
‘experiência’, como se o futuro idealizado não contasse mais. Mas se esta experiência
parecia, para os outros ou para mim mesma, a realização de algo, de um certo ‘fim’ , e era
aplaudida como um ‘fim’, então ela deveria, a partir daí, reaparecer todas as vezes. Afinal,
havia descoberto algo que deveria ser recuperado e, ao mesmo tempo, ser sempre novo, de
novo. Mais saberes seriam incorporados e agora diziam respeito a como repetir o ‘feito’
sem matar o dito cujo. Aquilo que era uma descoberta se transformava muito rapidamente
considerado, por muitos da minha geração, um país sem mestres teatrais. Não estávamos
nem na Índia nem na Europa dos grandes encenadores e, assim, com quem iríamos
aprender as tão famosas técnicas-certezas que acabariam com nossas inseguranças nos
colocando no abrigo quente de certos mestres? As pesquisas destes grandes homens – e sua
presenças – enriqueciam outras vidas que não as nossas. É verdade que esta imagem, como
todas as nossas imagens, pode trazer (e trouxe, acredito, no meu caso) um lado desbravador
e positivo: ‘persegui’ um destes ‘homens’, lendo todos os seus textos, viajando a seus
este algo foi substituído pela palavra aventura, e a busca, então, passou a ser menos por um
norte do que por uma sorte. Indisciplina? Diletantismo? Quem sabe. O que quero dizer é
que por um acaso do destino, ou por um encontro – e por todo sofrimento acumulado na
busca daquele ideal e daquela técnica-certeza – algo resolveu, internamente, ceder. Entrar,
como era possível, na dança. Aceitar, como fosse possível, um corpo e uma voz (os meus!)
e me mexer aí.
2
Este encontro de que falei acima foi feito sob a forma de inúmeros workshops
revivê-las nascia não mais só do compromisso com uma apresentação final para os futuros
espectadores, mas com o próprio encontro. ‘Repetir’ era a possibilidade de ir mais longe na
sensação, em suma, naquilo que temos a impressão de ser um ‘eu’. Dizia respeito a um
olhar – que, como professora, tento desenvolver – que espreita o outro, quer ‘assaltar’ sua
melhor, sabe que a criatividade, aquela que traz o desconhecido, o invisível, tem caráter
‘estrutura’. Nesse tempo, eu já não seguia apenas um fluxo, havia também um projeto. Um
projeto que não se fazia contra o fluxo da vida, mas que, seguindo este fluxo, dava-lhe um
certo canal de escoamento. A noção de estrutura ou de partitura, que antes era formal e
tomaram também outro rumo parecido com aquele que Renato Russo cantava: “disciplina é
liberdade”.
Falando assim parece que vivo, hoje, um idílio comigo mesma. Ah-ah. Falso. O que
sinto é apenas uma aceitação do inevitável e um navegar a favor disto. Vida é risco. A vida
é perigosa, já dizia minha vó. Mas viver é também tentar estar seguro e quando isto não se
faz contra aquela sabedoria da mãe da minha mãe, também tem sua razão de ser. Se
3
projetamos – exercícios, seqüências, fins, vá lá – mas aceitamos a inevitabilidade da
necessidade de adequação, de transformação neste projeto inicial, talvez possamos ter algo
entre a segurança e o risco: a segurança de saber que é arriscado, e que esse é o único lugar
mestres. Senão, é a eterna busca por fixar o que é nômade, por dar um fim ao que está
como o fruto (ou o frutificar), o regar, o adubar, etc – como metáfora ao gesto de ensinar. E
isto não é diferente nas imagens utilizadas na pedagogia teatral. Algumas destas imagens
me são bem caras, como aquela de Stanislavski que critica a busca do efeito como a busca
por “criar uma flor sem a intervenção da natureza”. O processo, segundo ele, deve estar
direcionado à observação dessa mesma ‘natureza’ em seu processo de estruturação, de vir a
ser ‘flor’. O que me é particularmente interessante nesta citação é a valorização do processo
frente à corrida para o resultado final. Há, nesta frase, a valorização da idéia de
investigação e do tempo necessário e que deve ser concedido a essa investigação – o seu
processo de vir a ser flor. Por outro lado, me parece que a imagem do plantar pode trazer,
deles.
1
Utilizo, para essa reflexão, “o gesto de plantar”, capítulo do livro “Les Gestes”, de Vilém Flusser. Outro
texto fundamental será a entrevista que Thomas Richards (ver nota 4) me concedeu em julho de 1999 e que é
parte integrante da sua tese de doutoramento na Paris VIII. A entrevista de mais ou menos 12 horas toca em
inúmeros pontos da pesquisa realizada pelo artista mas, para os fins aqui pretendidos, me deterei,
principalmente, nos termos ´caçador´ e ´engenheiro´ utilizados por Richards.
4
Talvez a primeira fase do gesto de ensinar/aprender, visto de maneira tradicional,
seja projetar, com o máximo de detalhes, o que será feito em sala de aula, com que
objetivos – gerais e específicos -, e de que maneira. O problema maior parece ser não esta
primeira fase do gesto, mas como ela acaba por impor às fases seguintes a sua marca.
planejados, e feche, assim, o ciclo que ele começou. Alguns professores, ao final desse
ciclo, avaliam os exercícios, os modos de fazer, procurando aqueles que mais se adequaram
aos objetivos, ou seja, que mais geraram os frutos pretendidos. De qualquer maneira, a
busca é por um controle prévio à realização, realização que acabaria servindo para dar ao
professor, quando da feitura do próximo planejamento, subsídios para uma melhor relação
experiência. Assim, planejar deixa de ser uma fase do ensinar/aprender e passa a ser,
praticamente, a sua busca final: quanto melhor um planejamento, quanto mais detalhado
Pode-se fazer uma comparação, aqui, com o gesto de plantar como foi analisado por
Flusser onde, ao projeto inicial segue-se sua aplicação, uma posterior fase de espera e,
curvará ao projeto inicial que “uma má colheita” é vista como “uma catástrofe”, enquanto
que “uma boa caçada é um feliz acidente” (Flusser, p.138). Se a realidade, porventura, vem
a desmentir o plano inicial, o agricultor passa a acreditar que o projeto ‘perfeito’ ainda não
Por que será que nossa sala de aula acompanhou o modelo do ‘gesto de plantar’? E
5
Bem, caçar pressupõe uma relação com a natureza onde a alteridade desta não é, e
disponibiliza para, no contato com a floresta, encontrar as pistas que o levarão à caça.
Como não pode controlar completamente estas pistas, o seu percurso é feito de adaptações
e ajustes e não é um percurso que possa ser totalmente projetado a priori. Falo de alteridade
estruturado, que se produz a ‘coisificação’ do outro, seja ele caça, ou outro homem.
Como vimos, o projeto é um plano mental que será tanto melhor e mais efetivo se
puder, antes do contato com a ‘realidade’, do contato com o ‘outro’, prever e resolver
impasses;; de modo que o momento de sua ‘realização’ seja apenas o momento de sua
‘aplicação’. Assim, o ‘outro’ é pensado como objeto de uma determinada ação e não como
parte de uma relação, de uma experiência. A ‘coisificação’ quer negar o ‘outro’, quer
submetê-lo. E esta negação é construída a duras penas, não sem resistência em menor ou
maior grau.
Ora, a ‘alteridade’ é o modo de ser das coisas, ela não precisa ser ‘criada’ pelo
educador, mas apenas percebida e recebida. A resistência do aluno a um projeto prévio, não
instrumental de trazer todo dia comida para casa – essas finalidades, para serem alcançadas,
2
Não sei nem bem se se deve falar de uma separação interno/externo pois, ao mergulhar no mundo e percebe-
lo em transformação, sem querer, – e, no caso do caçar, sem mesmo poder objetivamente submetê-lo a um
6
uma verdade que não se pode negar, já que ele vai colecionando uma série de experiências
que pode colocar em funcionamento quando o momento se fizer propício, mas a ênfase
com ele. Às vezes, será necessário, também, ‘inventar’ estratégias nunca antes
substituem – ou convivem com – uma vontade de estabilidade – sei quem sou - , segurança,
Uma outra diferença que podemos interpretar entre o gesto de plantar e aquele de
caçar é que o gesto de caçar tem que lidar com a ‘selvageria’ da natureza, com a floresta
bruta, sem ‘tratamento’. E, junto a ela (e não apesar dela), estabelecer seu percurso. Já o
gesto de plantar visa destituir a floresta de seu caráter mais caótico e/ou selvagem, destruí--
-la para, no lugar “vazio”, fazer crescer a plantação. De alguma forma, no gesto de plantar,
o que chamamos preparar a terra é, em parte, idealizá-la e refazê-la. Por vezes, queimá-la e
desgastá-la.
uma certa ‘selvageria’ própria à criação, e pode optar por tentar submetê-la ou não. O que
seria aceitar e trabalhar na formação de atores com o que estou chamando de ‘selvagem’ e
controle, o caçador se vê, ele também, tendo que ajustar-se, adaptar-se, transformar-se, junto com o mundo
que se modifica a seus olhos, de acordo com as pistas daquele dia.
3
Aqui, como em inúmeros momentos do artigo, a interlocução com o livro “Pedagogia Profana” de Jorge
Larrosa foi fundamental para a reflexão que intento desenvolver.
7
não em oposição a ele? Esse trabalho teria íntimas relações com o gesto de caçar: uma
busca onde as questões substituiriam os dogmas porque, ao lidar com a instabilidade, seria
saberes, com as técnicas, com os modos de fazer e que estejam disponíveis para enxergar a
transformação que permanentemente se realiza e que não deixa que nada tenha uma
identidade fixa, perene e segura. Um professor e um aluno com uma certa coragem de
aventurar-se, de não buscar ser proprietários dos ‘modos de fazer’. Professor e aluno em
aventurarmo-nos em um espaço desconhecido, ‘fora de casa”. Mas não seria este espaço do
artistas?
Parece que depois de tudo que foi dito poderia se entender que, como estou me
opondo a uma certa segurança que mata a busca do indizível, estaria também em oposição à
disciplina ou ao rigor. Mas não creio que rigor e disciplina sejam opostos àquilo que
chamei de ‘selvageria’. Ao contrário. Selvageria e rigor podem lutar entre si, mas é nesta
luta, nesta tensão, que parece se produzir a obra de arte. Richards4 dá o exemplo do rio:
“(...) a força da água descendo da montanha, caindo pela força da gravidade na direção do oceano, é
enorme. Se a água desce da montanha sem as margens do rio, ela irá um pouco para um lado, uma
pouco para outro. São necessárias as margens – que devem também ter sua força, diferente da força
da água – para canalizá-la. Assim, a força dessa mesma água, canalizada, se torna ainda maior e
temos um rio. (...) São necessárias as duas forças para que possa aparecer um rio. Na arte, é a mesma
coisa. (p.236) 5
4
Thomas Richards trabalha com Grotowski desde 1985 e foi considerado, pelo artista polonês, seu
“colaborador essencial”. Richards dirige atualmente o Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards,
em Pontedera, Itália
5
Todas as citações tanto dos textos de Richards quanto de Flusser foram traduzidas por mim.
8
Aqui, rigor não é tutela e nem é apenas visto como sinônimo de uma investigação
formal. E disciplina não é uma questão moral. Um caçador é rigoroso e disciplinado porque
tem fome de caça e sabe que só assim poderá caçar, pois, de outro modo, se perderá e
sucumbirá à floresta. A fome, na arte, aquela busca por tocar o indizível, é selvagem, mas
constrói, ela mesma, seu rigor e sua disciplina: para reforçá-la (em tensão, permanente) e
Uma outra discussão interessante proposta por Flusser e que gostaria de fazer
espreitar que Flusser relaciona com o gesto de caçar. Para Flusser, plantar “é a primeira
fase do gesto de esperar. Plantamos e esperamos”. Já os caçadores “espreitam, quer dizer,
esperam com esperança e com medo que o acaso caia nas malhas da sua rede”. (p.137).
esperar é
1.“ter esperança em;; contar com. 2.Estar ou ficar a espera de;; aguardar. 3. Supor, conjecturar,
presumir, imaginar. 4.ter esperança em; contar com a realização de (coisa desejada ou prometida) 5.
Estar reservado ou destinado a. 6. Aguardar em emboscada 7. Contar obter (...) 8. Ter fé; confiar e,
etc.
Já em espreitar:
1. Andar a espreita de; observar ocultamente; espiar. 2.Olhar atentamente; contemplar; observar. 3.
Investigar minuciosamente; indagar, perquirir, perscrutar. 4. Analisar, estudar. 5. Prever
intuitivamente; adivinhar. 6. Procurar (ocasião para algo) 7. Observar o que alguém faz. 8. Ter
cuidado em si; observar-se.
No esperar parece claro que o olhar está projetado para o tempo futuro: ‘aguarda-
se’, ‘conta-se com’. A ligação com o gesto de plantar, como foi trabalhado por Flusser é,
portanto, clara: confia-se que a colheita virá – a partir do trabalho que foi desenvolvido no
9
passado, a partir do projeto aplicado à terra. O que nasce daí, desta relação entre passado
venturosa.
Já no espreitar, uma outra forma de pensar a temporalidade está em jogo: ‘observa-
momento presente, na relação com o ambiente no qual se está. O olhar que espreita não tem
certezas prévias, trabalha a partir das pistas encontradas ( e diversas a cada dia), trabalha
através de conjecturas.
houve um certo alargamento do olhar, da atenção. Já em ‘presumir’ (definição número 3 do
v. esperar) temos uma operação onde causa gera conseqüência. Na intuição prevalece um
certo caráter de surpresa, de inesperado, poderia se dizer que a forma de organizar o que se
observa não se dá apenas de maneira causal, mas obedece a uma outra ordem. É como se
houvesse uma educação outra do olhar. Seguindo esta pista, na definição 6, temos:
‘procurar (ocasião para algo)’. Na espreita, ao mesmo tempo em que se observa, se procura
a ocasião propícia para algo. O caçador observa a floresta: procura pistas e, ao ver a caça,
definições, podemos interpretar (e parece valer a pena fazer esta interpretação para pensar
6
Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa – Folha/Aurélio
10
a pedagogia do ator) que aquilo que se chama ambiente externo – o outro, o meio
ambiente-, e aquilo que se chama ambiente interno – pensamentos, sensações, imagens, etc-
parece estar falando do tempo do ‘espreitar’ onde uma observação aguda anda de mãos
“Você pergunta como um líder pode criar um ambiente, um meio, ou uma estrutura de trabalho que
levará a uma descoberta criativa (...) Tudo o que descrevi até agora era muito pessoal. Para uma
outra pessoa (...) Provavelmente isso não funcionará. Quem sabe? E esse ´quem sabe?` é a chave.
Não se sabe. A porta aparece entre seres humanos, é preciso capturá-la. Então, será que um certo
savoir faire , uma maneira particular de fazer, podem ajudar na posição do líder? O líder é como um
caçador, na caça dessa porta, ele deve ser rápido para passar através dela. Quando ela
aparece, ele deve ter a sensibilidade para percebê-la. Ele deve também ter uma certa força
para convencer a pessoa que é a maneira, é o momento. Ele deve ajudar a pessoa a passar pela
porta”. (p.193 - os grifos são meus)
Podemos ver que o que ele chama de porta, ou seja, o momento criativo, é algo
inesperado, algo que irrompe a partir e através da relação estabelecida entre o líder e o doer
(ou, para servir melhor ao que quero expor, entre o professor e o aluno). E é por isto que a
porta pode se abrir de diferentes maneiras para diferentes pessoas (ou relações) ou, ainda,
‘técnica’ na formação de atores, relacionando-a com a discussão que venho desenvolvendo
7
Líder é um termo usado por Richards quando se refere àquele que coordena a investigação e orienta os
outros doers no Workcenter. Doer é aquele que age, que realiza o trabalho prático.
11
Freqüentemente, diz-se que a técnica deve ser aprendida para depois – com o tempo
– ser esquecida, virar parte do artista, anexar-se a ele. Essa forma de pensar a relação do
estudante com a técnica – ou com quaisquer saberes que são apresentados – vista como
algo que vem de ‘fora’ e que vai, aos poucos, se tornando algo de ‘dentro’, me pareceu,
também, que o aluno não deve sofrer uma “queimada” para que haja plantação, não deve
tornar-se objeto do professor ou da técnica, não deve dar-se à manobra científica para, só
idealização conduzida pela via da técnica. Ele não pode sofrer a violência de um projeto
que promete recuperá-lo inteiro, e inteiramente outro, no final do percurso. A relação entre
experiência criadora no único lugar e tempo onde ela pode se dar: no aqui e agora.
colher, do “no futuro...”. E o problema aí não está no processo de maturação que pode ser,
o momento presente, com a ‘caça’ criativa que todo artista, estudante e professor têm
ator não tem necessariamente duas fases: uma na qual se investe na educação e outra na
qual se aplicam, no âmbito profissional, as técnicas aprendidas na escola. Acredito que nem
12
parte deste processo?) nem o estudante (e o professor com ele) deve deixar para o futuro
Identidade nômade: por uma ‘casa’ no fluxo da vida criativa
Venho tentando falar, nesse artigo, sobre uma identidade instável, identidade de
‘caçador’ que me parece bastante produtiva para pensarmos em formação de ator. Uma
‘algo’, para, logo depois, continuar a própria investigação, o infinito “trabalho sobre si”.
Uma identidade que não se contenta – ou se fixa, ou se protege – em uma única resposta
Através da entrevista de Richards, posso ver, em alguns momentos, essa ‘identidade
instável’ se realizando em uma experiência artística concreta. Pretendo, portanto, apresentar
e comentar alguns fragmentos dessa entrevista para voltar, ainda que rapidamente, às
nomeando vários aspectos deste ‘si mesmo’, aspectos que aparecem quando o doer está em
que está sendo realizado. Por isso, um ponto fundamental no trabalho do Workcenter é uma
Richards: “Bom, não existe uma só maneira de trabalhar, isso é certo. Mas também é certo que isso
pode ajudar, se conhecer um pouco, ver os diferentes aspectos de si mesmo”. (p.199)
Vou exemplificar um dos aspectos dessa identidade, com o que Richards chama de
‘engenheiro’:
13
...“o engenheiro é ligado principalmente ao mental: é aquele que faz o projeto, cria a estratégia, gosta
de ver que sua estratégia funciona. Ele gosta tanto disso que, ‘as vezes, pode acreditar que sua
estratégia funciona mesmo quando ela não funciona – todos os signos dizem que ela não funciona,
mas ele continua a repetir para si mesmo: ‘ Você vai ver, se continuamos assim por mais cinco dias,
isso vai funcionar´. O ´Engenheiro´ pode, muito facilmente, se ele não é colocado sob controle,
conduzir o trabalho para um lugar seco e não criativo. Mas ele também é necessário porque é preciso
ter uma espécie de estratégia, de plano” . (p.198).
O problema, segundo o artista americano, é que essa parte de nós (assim como todas
as outras, em diferentes situações) pode querer ser o “rei do momento”. Assim, o ‘líder’
pode se identificar tanto com o ‘engenheiro’ ( como acredito que a educação vem se
identificando com ‘gesto de plantar’) que não consegue mais relacionar-se com o que se
passa e, além de fixar a si mesmo em uma posição, a posição daquele que sabe e que tem a
chave da criatividade, acaba querendo também fixar o outro e o próprio momento presente.
Richards : “...o líder (...) deve se confrontar com seus próprios hábitos, com seu amor pela receita,
porque uma parte de nós gosta de pensar que nossa estratégia vai funcionar, e é o que nos cega – no
momento mesmo em que a criatividade grita: “isso não funciona, isso não funciona!” e que é
necessário ajustar. Assim, não devemos nos identificar com a nossa técnica, ou então, nos
identificarmos quando ela funciona, e quando ela não funciona, mudar. (...) No momento em
que nos apegamos a nossos hábitos, nós começamos a amá-los: sabemos como fazer ou pensamos
que sabemos como fazer, o que se transforma rapidamente, face a um outro indivíduo, face a um
outro momento, em algo que não é eficaz e, então, será necessário se adaptar”. (p.193/194/195-
grifos meus)
idealizamos nosso gesto de ensinar/aprender. É como se ele estivesse ligado a uma espécie
uma moça que colocasse uma foto de uma modelo ou atriz famosa no espelho do quarto e
medisse suas ações de embelezamento pela proximidade ou distância do seu próprio corpo
em relação à fotografia.
lugar, parece existir sempre um terceiro - a idéia projetada - que impede ou dificulta a
relação professor/aluno. A busca parece estar sempre do lado de fora, nos exercícios e nas
14
técnicas. Estamos, professores e alunos, correndo atrás daquela perfeição/projeção pela
qual somos capazes de esforços extremados mas, muitas vezes, cegos (!).A capacidade de
às proposições, é dificultada pela projeção do que o aluno ‘deveria ser’ ou de onde ‘deveria
estar’. Acabamos julgando o aluno-ator pela sua maior ou menor proximidade em relação
esse, às vezes, aparece por vias mal traçadas e, então, efeitos e virtuosismos vocais ou
‘caçador’ ocupasse a cena? Creio já ter visto alguns exemplos: um teatro menos espetacular
e mais agudo; menos agradável, sem dúvida. Mas esses são apenas alguns adjetivos. Se isso
Bibliografia Citada:
FLUSSER, Vílem. Les Gestes, Paris, HC-D’ART.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana. Danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte,
Autêntica, 2000.
RICHARDS, Thomas. De l’art comme vehicule. Tese de doutoramento, Paris VIII,
orientação Prof. Jean Marie Pradier, 2001.
* Tatiana Motta Lima é atriz e integrante do grupo “Teatro da Passagem” e professora de Interpretação da
Escola de Teatro da UNI-RIO onde, além de lecionar, coordena o projeto de extensão “Núcleo de Pesquisa do
Ator”. Tatiana desenvolve, há quase 10 anos, pesquisa sobre a trajetória artística de Jerzy Grotowski.
([email protected])
15