Ator Caçador

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Em busca (e à espreita) de uma pedagogia para o ator

Tatiana Motta Lima*

Introdução afetiva: de onde falo

Uma das dificuldades que se apresenta aos professores ao discutir – e escrever -

sobre pedagogia, seja esta voltada para a formação de atores ou não, é a de fugir de uma

oposição que colocaria de um lado a pedagogia mainstream para logo rechaçá-la e

construiria, de outro, uma pedagogia utópica, para valorizá-la.

Na tentativa, sempre inglória, de fugir deste modelo, opto por começar enumerando

angústias que vivenciei quando aluna – e que reconheço em meus alunos –, algumas ainda

presentes, no exercício de ser, hoje, professora e artista.

Também um dia, vivi na procura de técnicas, saberes, certezas, que realizassem uma

transformação no meu corpo, voz, pensamento, coração, daquilo que não servia aquilo que

serviria à arte. Também idealizei – e não sem a ajuda de alguns professores, não todos - um

corpo e uma voz, diferentes daqueles que tinha e que, um dia, se mostrariam aptos aos

compromissos da arte. Assisti a inúmeras palestras onde copiei exercícios que traziam a

‘boa  nova’  e  que  seriam  a  ‘chave’  para  a  criatividade.  A  disciplina,  a  seriedade,  a  dedicação  

– nunca suficientes o bastante por causa da preguiça, da pressa, da falta de tempo, ou seja

lá do que fosse – eram metas a serem realizadas assim como se houvesse um prêmio a

receber ao final de tanto esforço. A busca era por chegar a este final ideal e, como em uma

brincadeira  de  “está  quente,  está  frio”,  ia  me  guiando  e  me  deixando  guiar.  E  algo  disso não

existe ainda em mim?

Mas tudo isto é só em parte verdadeiro porque havia também epifanias que davam

um tom mais alegre à minha busca e, por vezes, podia me sentir realizando uma

1
‘experiência’,   como   se   o   futuro   idealizado   não   contasse   mais.   Mas   se esta experiência

parecia,  para  os  outros  ou  para  mim  mesma,  a  realização  de  algo,  de  um  certo  ‘fim’  ,  e  era  

aplaudida  como  um  ‘fim’,  então  ela  deveria,  a  partir  daí,  reaparecer  todas  as  vezes.  Afinal,  

havia descoberto algo que deveria ser recuperado e, ao mesmo tempo, ser sempre novo, de

novo.   Mais   saberes   seriam   incorporados   e   agora   diziam   respeito   a   como   repetir   o   ‘feito’  

sem matar o dito cujo. Aquilo que era uma descoberta se transformava muito rapidamente

num problema artístico-estético que, posteriormente, seria mal ou bem resolvido.

Ah, já ia me esquecendo... Havia também uma crítica ao país onde nasci,

considerado, por muitos da minha geração, um país sem mestres teatrais. Não estávamos

nem na Índia nem na Europa dos grandes encenadores e, assim, com quem iríamos

aprender as tão famosas técnicas-certezas que acabariam com nossas inseguranças nos

colocando no abrigo quente de certos mestres? As pesquisas destes grandes homens – e sua

presenças – enriqueciam outras vidas que não as nossas. É verdade que esta imagem, como

todas as nossas imagens, pode trazer (e trouxe, acredito, no meu caso) um lado desbravador

e   positivo:   ‘persegui’   um   destes   ‘homens’,   lendo   todos   os   seus   textos,   viajando   a   seus  

lugares de trabalho, fazendo estágios com alguns de seus companheiros de estrada,

entrevistando  seu  “colaborador  essencial”...  

Mas, em algum momento desta busca, se algo havia – e havia! – de endeusamento,

este algo foi substituído pela palavra aventura, e a busca, então, passou a ser menos por um

norte do que por uma sorte. Indisciplina? Diletantismo? Quem sabe. O que quero dizer é

que por um acaso do destino, ou por um encontro – e por todo sofrimento acumulado na

busca daquele ideal e daquela técnica-certeza – algo resolveu, internamente, ceder. Entrar,

como era possível, na dança. Aceitar, como fosse possível, um corpo e uma voz (os meus!)

e me mexer aí.

2
Este encontro de que falei acima foi feito sob a forma de inúmeros workshops

ministrados por um mesmo artista, nos quais as descobertas se acumulavam e a vontade de

revivê-las nascia não mais só do compromisso com uma apresentação final para os futuros

espectadores,  mas  com  o  próprio  encontro.  ‘Repetir’  era  a  possibilidade  de  ir  mais  longe  na  

descoberta,   de   realizar   um   certo   “trabalho   sobre   si”   para   usar   a   terminologia

stanislavskiana. Essas descobertas diziam respeito a certas potencialidades psicofísicas (de

novo, Stanislavski) desconhecidas naquele corpo e voz e pensamento e coração, emoção,

sensação,   em   suma,   naquilo   que   temos   a   impressão   de   ser   um   ‘eu’.   Dizia respeito a um

olhar – que, como professora, tento desenvolver – que  espreita  o  outro,  quer  ‘assaltar’  sua  

criatividade, mas aceita a instabilidade, a precariedade e a instantaneidade desta busca, ou

melhor, sabe que a criatividade, aquela que traz o desconhecido, o invisível, tem caráter

instável, precário e instantâneo. Ainda que, depois, uma linha organizada de

instantaneidades   (paradoxo?)   instável   e   precária   possa   se   constituir   em   uma   ‘cena’   ou  

‘estrutura’.  Nesse  tempo,  eu  já  não  seguia  apenas  um  fluxo, havia também um projeto. Um

projeto que não se fazia contra o fluxo da vida, mas que, seguindo este fluxo, dava-lhe um

certo canal de escoamento. A noção de estrutura ou de partitura, que antes era formal e

vista como um compromisso artístico, se transformou em um campo de experiência e em

um compromisso pessoal (seria essa a palavra?). As noções de disciplina e repetição

tomaram  também  outro  rumo  parecido  com  aquele  que  Renato  Russo  cantava:  “disciplina  é  

liberdade”.  

Falando assim parece que vivo, hoje, um idílio comigo mesma. Ah-ah. Falso. O que

sinto é apenas uma aceitação do inevitável e um navegar a favor disto. Vida é risco. A vida

é perigosa, já dizia minha vó. Mas viver é também tentar estar seguro e quando isto não se

faz contra aquela sabedoria da mãe da minha mãe, também tem sua razão de ser. Se

3
projetamos – exercícios, seqüências, fins, vá lá – mas aceitamos a inevitabilidade da

necessidade de adequação, de transformação neste projeto inicial, talvez possamos ter algo

entre a segurança e o risco: a segurança de saber que é arriscado, e que esse é o único lugar

possível quando não queremos idealizar os outros ou nós mesmos, as técnicas ou os

mestres. Senão, é a eterna busca por fixar o que é nômade, por dar um fim ao que está

permanentemente em processo. O processo criativo do ator é o lugar da instabilidade e o

que podemos é tentar seguir aquilo que se transforma.

Entre  o  ‘plantar’  e  o  ‘caçar’:  uma  pedagogia  para  o  ator1

É significativo que encontremos a imagem do plantar – e imagens decorrentes daí

como o fruto (ou o frutificar), o regar, o adubar, etc – como metáfora ao gesto de ensinar. E

isto não é diferente nas imagens utilizadas na pedagogia teatral. Algumas destas imagens

me são bem caras, como aquela de Stanislavski que critica a busca do efeito como a busca

por     “criar  uma  flor  sem  a  intervenção  da  natureza”.  O  processo,  segundo  ele,  deve  estar  

direcionado  à  observação  dessa  mesma  ‘natureza’  em  seu  processo  de  estruturação,  de  vir  a  

ser  ‘flor’.  O  que  me  é  particularmente  interessante  nesta citação é a valorização do processo

frente à corrida para o resultado final. Há, nesta frase, a valorização da idéia de

investigação e do tempo necessário e que deve ser concedido a essa investigação – o seu

processo de vir a ser flor. Por outro lado, me parece que a imagem do plantar pode trazer,

também, problemas para se pensar a formação de atores. Gostaria de explicitar alguns

deles.

1
Utilizo,   para   essa   reflexão,   “o   gesto   de   plantar”,   capítulo   do   livro   “Les   Gestes”,   de   Vilém   Flusser.   Outro  
texto fundamental será a entrevista que Thomas Richards (ver nota 4) me concedeu em julho de 1999 e que é
parte integrante da sua tese de doutoramento na Paris VIII. A entrevista de mais ou menos 12 horas toca em
inúmeros pontos da pesquisa realizada pelo artista mas, para os fins aqui pretendidos, me deterei,
principalmente, nos termos ´caçador´ e ´engenheiro´ utilizados por Richards.

4
Talvez a primeira fase do gesto de ensinar/aprender, visto de maneira tradicional,

seja projetar, com o máximo de detalhes, o que será feito em sala de aula, com que

objetivos – gerais e específicos -, e de que maneira. O problema maior parece ser não esta

primeira fase do gesto, mas como ela acaba por impor às fases seguintes a sua marca.

Espera-se que o planejamento corretamente aplicado cumpra os objetivos

planejados, e feche, assim, o ciclo que ele começou. Alguns professores, ao final desse

ciclo, avaliam os exercícios, os modos de fazer, procurando aqueles que mais se adequaram

aos objetivos, ou seja, que mais geraram os frutos pretendidos. De qualquer maneira, a

busca é por um controle prévio à realização, realização que acabaria servindo para dar ao

professor, quando da feitura do próximo planejamento, subsídios para uma melhor relação

entre objetivos e conquistas e, portanto, para oferecer-lhe um maior controle sobre a

experiência. Assim, planejar deixa de ser uma fase do ensinar/aprender e passa a ser,

praticamente, a sua busca final: quanto melhor um planejamento, quanto mais detalhado

for, mais segurança oferece de poder cumprir os objetivos traçados.

Pode-se fazer uma comparação, aqui, com o gesto de plantar como foi analisado por

Flusser onde, ao projeto inicial segue-se sua aplicação, uma posterior fase de espera e,

finalmente, a colheita. No gesto de plantar, acredita-se tão firmemente que a realidade se

curvará  ao  projeto  inicial  que  “uma  má  colheita”  é  vista  como  “uma  catástrofe”,  enquanto  

que  “uma  boa  caçada  é  um  feliz  acidente”  (Flusser,  p.138).  Se  a  realidade,  porventura,  vem  

a desmentir o plano inicial,  o  agricultor  passa  a  acreditar  que  o  projeto  ‘perfeito’  ainda  não  

foi encontrado ou que a terra é definitivamente imprópria (ou o aluno inapto).

Por  que  será  que  nossa  sala  de  aula  acompanhou  o  modelo  do  ‘gesto  de  plantar’?  E  

o que aconteceria se víssemos o gesto de ensinar/aprender a partir do gesto de caçar?

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Bem, caçar pressupõe uma relação com a natureza onde a alteridade desta não é, e

não   pode   ser,   submetida   a   um   controle   do   caçador.   Na   caçada   ‘clássica’   o   caçador   se  

disponibiliza para, no contato com a floresta, encontrar as pistas que o levarão à caça.

Como não pode controlar completamente estas pistas, o seu percurso é feito de adaptações

e ajustes e não é um percurso que possa ser totalmente projetado a priori. Falo de alteridade

porque vejo que é na tentativa de assumir o controle, de realizar um projeto previamente

estruturado,  que  se  produz  a  ‘coisificação’  do  outro,  seja  ele  caça,  ou  outro  homem.  

Como vimos, o projeto é um plano mental que será tanto melhor e mais efetivo se

puder, antes do contato   com   a   ‘realidade’,   do   contato   com   o   ‘outro’,   prever   e   resolver  

impasses;;   de   modo   que   o   momento   de   sua   ‘realização’   seja   apenas   o   momento   de   sua  

‘aplicação’.  Assim,  o  ‘outro’  é  pensado  como  objeto  de  uma  determinada  ação  e  não  como  

parte de uma relação,   de   uma   experiência.   A   ‘coisificação’   quer   negar   o   ‘outro’,   quer  

submetê-lo. E esta negação é construída a duras penas, não sem resistência em menor ou

maior grau.

Ora,   a   ‘alteridade’   é   o   modo   de   ser   das   coisas,   ela   não   precisa   ser   ‘criada’   pelo  

educador, mas apenas percebida e recebida. A resistência do aluno a um projeto prévio, não

diria, inexoravelmente, da incapacidade do educando ou do educador, mas seria parte

constitutiva do gesto de ensinar/aprender.

Mesmo que se possam perceber, na caça, algumas finalidades, - como a meramente

instrumental de trazer todo dia comida para casa – essas finalidades, para serem alcançadas,

precisam aceitar a instabilidade, a transformação, a insegurança do ambiente

externo/interno ao/do caçador2. Um caçador pode ir se aprimorando com o tempo, e isto é

2
Não sei nem bem se se deve falar de uma separação interno/externo pois, ao mergulhar no mundo e percebe-
lo em transformação, sem querer, – e, no caso do caçar, sem mesmo poder objetivamente submetê-lo a um

6
uma verdade que não se pode negar, já que ele vai colecionando uma série de experiências

que pode colocar em funcionamento quando o momento se fizer propício, mas a ênfase

aqui está na capacidade do caçador de enxergar esse momento propício e de se relacionar

com   ele.   Às   vezes,   será   necessário,   também,   ‘inventar’   estratégias   nunca   antes  

experimentadas porque somente elas funcionarão naquele momento.

Resta ao caçador experiente um conjunto de modos de fazer e não fazer mas,

sobretudo, uma fome de caça e uma percepção – aguda - de si mesmo/ambiente ou de si

mesmo no ambiente ou de um estar no mundo onde instabilidade, risco, desafio, aventura

substituem – ou convivem com – uma vontade de estabilidade – sei quem sou - , segurança,

paz de espírito e fixidez – sei onde estou.

‘Selvageria’3 e rigor: parceria no processo criativo

Uma outra diferença que podemos interpretar entre o gesto de plantar e aquele de

caçar  é  que  o  gesto  de  caçar  tem  que  lidar  com   a  ‘selvageria’  da  natureza, com a floresta

bruta,   sem   ‘tratamento’.   E,   junto   a   ela   (e   não   apesar   dela),   estabelecer   seu   percurso.   Já   o  

gesto de plantar visa destituir a floresta de seu caráter mais caótico e/ou selvagem, destruí--

-la  para,  no  lugar  “vazio”,  fazer  crescer  a  plantação. De alguma forma, no gesto de plantar,

o que chamamos preparar a terra é, em parte, idealizá-la e refazê-la. Por vezes, queimá-la e

desgastá-la.

Penso que o gesto de ensinar/aprender na educação do artista também se depara com

uma  certa  ‘selvageria’  própria  à  criação,  e  pode  optar  por  tentar  submetê-la ou não. O que

seria  aceitar  e  trabalhar  na  formação  de  atores  com  o  que  estou  chamando  de  ‘selvagem’  e  

controle, o caçador se vê, ele também, tendo que ajustar-se, adaptar-se, transformar-se, junto com o mundo
que se modifica a seus olhos, de acordo com as pistas daquele dia.
3
Aqui,  como  em  inúmeros  momentos  do  artigo,  a  interlocução  com  o  livro  “Pedagogia  Profana”  de  Jorge  
Larrosa foi fundamental para a reflexão que intento desenvolver.

7
não em oposição a ele? Esse trabalho teria íntimas relações com o gesto de caçar: uma

busca onde as questões substituiriam os dogmas porque, ao lidar com a instabilidade, seria

necessário a cada e a todo momento ajustar-se, adaptar-se, rever-se.

Para isto, é necessário um professor e um aluno que não se identifiquem com os

saberes, com as técnicas, com os modos de fazer e que estejam disponíveis para enxergar a

transformação que permanentemente se realiza e que não deixa que nada tenha uma

identidade fixa, perene e segura. Um professor e um aluno com uma certa coragem de

aventurar-se, de não buscar ser   proprietários   dos   ‘modos   de   fazer’.   Professor   e   aluno   em  

busca permanente daquele indizível.

Para   caçar   é   necessário   sair   do   espaço   que   reconhecemos   como   “casa”   e  

aventurarmo-nos  em  um  espaço  desconhecido,  ‘fora  de  casa”.  Mas  não  seria  este  espaço  do  

desconhecido, o próprio espaço da criação? E não estamos falando em formação de

artistas?

Parece que depois de tudo que foi dito poderia se entender que, como estou me

opondo a uma certa segurança que mata a busca do indizível, estaria também em oposição à

disciplina ou ao rigor. Mas não creio que rigor e disciplina sejam opostos àquilo que

chamei  de  ‘selvageria’.  Ao  contrário.  Selvageria  e  rigor  podem  lutar  entre  si,  mas  é  nesta  

luta, nesta tensão, que parece se produzir a obra de arte. Richards4 dá o exemplo do rio:

“(...)  a  força  da  água  descendo  da  montanha,  caindo  pela  força  da  gravidade  na  direção  do  oceano,  é  
enorme. Se a água desce da montanha sem as margens do rio, ela irá um pouco para um lado, uma
pouco para outro. São necessárias as margens – que devem também ter sua força, diferente da força
da água – para canalizá-la. Assim, a força dessa mesma água, canalizada, se torna ainda maior e
temos um rio. (...) São necessárias as duas forças para que possa aparecer um rio. Na arte, é a mesma
coisa. (p.236) 5

4
Thomas Richards trabalha com Grotowski desde 1985 e foi considerado, pelo artista polonês, seu
“colaborador  essencial”.  Richards  dirige  atualmente  o  Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards,
em Pontedera, Itália
5
Todas as citações tanto dos textos de Richards quanto de Flusser foram traduzidas por mim.

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Aqui, rigor não é tutela e nem é apenas visto como sinônimo de uma investigação

formal. E disciplina não é uma questão moral. Um caçador é rigoroso e disciplinado porque

tem fome de caça e sabe que só assim poderá caçar, pois, de outro modo, se perderá e

sucumbirá à floresta. A fome, na arte, aquela busca por tocar o indizível, é selvagem, mas

constrói, ela mesma, seu rigor e sua disciplina: para reforçá-la (em tensão, permanente) e

não para amordaçá-la, domesticá-la (em permanente segurança).

Entre o  ‘esperar’  e  o  ‘espreitar’:  o  ‘tempo’  da  experiência  criativa

Uma outra discussão interessante proposta por Flusser e que gostaria de fazer

avançar um pouco mais é a diferença entre o esperar, relacionado ao gesto de plantar e o

espreitar que Flusser relaciona   com   o   gesto   de   caçar.   Para   Flusser,   plantar   “é   a   primeira  

fase  do  gesto  de  esperar.  Plantamos  e  esperamos”.  Já  os  caçadores  “espreitam,  quer  dizer,  

esperam  com  esperança  e  com  medo  que  o  acaso  caia  nas  malhas  da  sua  rede”.  (p.137).    

Numa passada de olhos não muito exaustiva no dicionário6 encontramos que

esperar é

1.“ter  esperança  em;;  contar  com.  2.Estar  ou  ficar  a  espera  de;;  aguardar.  3.  Supor,  conjecturar,  
presumir, imaginar. 4.ter esperança em; contar com a realização de (coisa desejada ou prometida) 5.
Estar reservado ou destinado a. 6. Aguardar em emboscada 7. Contar obter (...) 8. Ter fé; confiar e,
etc.

Já em espreitar:

1. Andar a espreita de; observar ocultamente; espiar. 2.Olhar atentamente; contemplar; observar. 3.
Investigar minuciosamente; indagar, perquirir, perscrutar. 4. Analisar, estudar. 5. Prever
intuitivamente; adivinhar. 6. Procurar (ocasião para algo) 7. Observar o que alguém faz. 8. Ter
cuidado em si; observar-se.

No esperar parece claro que o olhar está projetado para o tempo  futuro:  ‘aguarda-

se’,  ‘conta-se  com’.  A  ligação  com  o  gesto  de  plantar,  como  foi  trabalhado  por  Flusser  é,  

portanto, clara: confia-se que a colheita virá – a partir do trabalho que foi desenvolvido no

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passado, a partir do projeto aplicado à terra. O que nasce daí, desta relação entre passado

previsto que desemboca em futuro realizado é o tempo cronológico, linear. É, também, o

tempo   do   ‘progresso’,   onde   o   futuro   teria   o   poder   de   transformar   idéia   em   realização  

venturosa.

Já no espreitar, uma outra forma  de  pensar  a  temporalidade  está  em  jogo:  ‘observa-

se’,   ‘olha-se   atentamente’,   ‘indaga-se’.   O   verbo   ‘espreitar’   aparece   na   relação   com   o  

momento presente, na relação com o ambiente no qual se está. O olhar que espreita não tem

certezas prévias, trabalha a partir das pistas encontradas ( e diversas a cada dia), trabalha

através de conjecturas.

Ainda seguindo as pistas do dicionário pode-se fazer outras três observações: se

seguimos a definição de número 5, percebemos que o espreitar fala de uma certa

observação geradora da intuição ou da adivinhação. Quando intuímos algo, diz-se que

houve  um  certo  alargamento  do  olhar,  da  atenção.  Já  em  ‘presumir’  (definição  número  3  do  

v. esperar) temos uma operação onde causa gera conseqüência. Na intuição prevalece um

certo caráter de surpresa, de inesperado, poderia se dizer que a forma de organizar o que se

observa não se dá apenas de maneira causal, mas obedece a uma outra ordem. É como se

houvesse uma educação outra do olhar. Seguindo esta pista, na definição 6, temos:

‘procurar  (ocasião  para  algo)’.  Na  espreita,  ao  mesmo  tempo  em  que  se  observa,  se  procura  

a ocasião propícia para algo. O caçador observa a floresta: procura pistas e, ao ver a caça,

continua observando para intuir o momento da flecha ou do tiro.

Por último, gostaria de comentar os significados número 7 e 8 do verbo espreitar:

no primeiro fala-se em observar um outro; no último, em auto-observação. A partir destas

definições, podemos interpretar (e parece valer a pena fazer esta interpretação para pensar

6
Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa – Folha/Aurélio

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a pedagogia do ator) que aquilo que se chama ambiente externo – o outro, o meio

ambiente-, e aquilo que se chama ambiente interno – pensamentos, sensações, imagens, etc-

se dão, ambos, à observação, à investigação e à indagação e não estão, necessariamente,

separados no ato de espreitar.


7
Richards, na citação abaixo, associa a imagem do caçador com a do líder e me

parece   estar   falando   do   tempo   do   ‘espreitar’   onde   uma   observação   aguda   anda   de   mãos  

dadas com uma ação rápida e precisa.

“Você  pergunta  como  um líder pode criar um ambiente, um meio, ou uma estrutura de trabalho que
levará a uma descoberta criativa (...) Tudo o que descrevi até agora era muito pessoal. Para uma
outra pessoa (...) Provavelmente isso não funcionará. Quem sabe? E esse ´quem sabe?` é a chave.
Não se sabe. A porta aparece entre seres humanos, é preciso capturá-la. Então, será que um certo
savoir faire , uma maneira particular de fazer, podem ajudar na posição do líder? O líder é como um
caçador, na caça dessa porta, ele deve ser rápido para passar através dela. Quando ela
aparece, ele deve ter a sensibilidade para percebê-la. Ele deve também ter uma certa força
para convencer a pessoa que é a maneira, é o momento. Ele deve ajudar a pessoa a passar pela
porta”.  (p.193 - os grifos são meus)

Podemos ver que o que ele chama de porta, ou seja, o momento criativo, é algo

inesperado, algo que irrompe a partir e através da relação estabelecida entre o líder e o doer

(ou, para servir melhor ao que quero expor, entre o professor e o aluno). E é por isto que a

porta pode se abrir de diferentes maneiras para diferentes pessoas (ou relações) ou, ainda,

em diferentes momentos para as mesmas pessoas envolvidas.

Richards fala, também, da inexistência de regras, de técnicas que funcionem

inexoravelmente para produção do ato criativo. Gostaria de aprofundar essa questão da

‘técnica’  na  formação  de  atores,  relacionando-a com a discussão que venho desenvolvendo

sobre  a  maneira  de  perceber  o  tempo  no  ‘esperar’  e  no  ‘espreitar’.  

7
Líder é um termo usado por Richards quando se refere àquele que coordena a investigação e orienta os
outros doers no Workcenter. Doer é aquele que age, que realiza o trabalho prático.

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Freqüentemente, diz-se que a técnica deve ser aprendida para depois – com o tempo

– ser esquecida, virar parte do artista, anexar-se a ele. Essa forma de pensar a relação do

estudante com a técnica – ou com quaisquer saberes que são apresentados – vista como

algo   que   vem   de   ‘fora’   e   que   vai,   aos   poucos,   se   tornando   algo   de   ‘dentro’,   me   pareceu,  

sempre, se não equivocada, ao menos questionável.

A aprendizagem aparece aí como um acúmulo de saberes que posteriormente

(acreditem!) farão algum sentido. Acredito que o próprio momento da aprendizagem é um

momento   de   ‘experiência’,   de   ‘acontecimento’   para   o   aprendiz   e   seu   professor.   Acredito,  

também,  que  o  aluno  não  deve  sofrer  uma  “queimada”  para  que  haja  plantação,  não  deve  

tornar-se objeto do professor ou da técnica, não deve dar-se à manobra científica para, só

posteriormente, reorganizar-se como artista.

O aluno não pode ser objeto da idealização do professor (ou de si mesmo),

idealização conduzida pela via da técnica. Ele não pode sofrer a violência de um projeto

que promete recuperá-lo inteiro, e inteiramente outro, no final do percurso. A relação entre

professor,   aluno   e   técnica   (ensinamento)   é   de   mútua   transformação:   ‘espreita-se’   a  

experiência criadora no único lugar e tempo onde ela pode se dar: no aqui e agora.

Senão, o tempo é aquele   mesmo   tempo   do   ‘progresso’,   o   tempo   do   plantar   para  

colher,  do  “no  futuro...”.  E  o  problema  aí  não  está  no  processo  de  maturação  que  pode  ser,  

em alguns casos, importante na formação de um artista, mas no descomprometimento com

o momento presente, com a   ‘caça’   criativa   que   todo   artista,   estudante   e   professor   têm  

obrigação de realizar a cada segundo de seu processo, a cada aula. A investigação de um

ator não tem necessariamente duas fases: uma na qual se investe na educação e outra na

qual se aplicam, no âmbito profissional, as técnicas aprendidas na escola. Acredito que nem

o profissional deve se desligar de um processo de conhecimento (e o que é a arte senão

12
parte deste processo?) nem o estudante (e o professor com ele) deve deixar para o futuro

sua realização criativa plena.

Identidade  nômade:  por  uma  ‘casa’  no  fluxo  da  vida  criativa

Venho tentando falar, nesse artigo, sobre uma identidade instável, identidade de

‘caçador’   que   me   parece   bastante   produtiva   para   pensarmos   em   formação   de   ator.   Uma  

identidade nômade capaz de fugir das idealizações e de, permanentemente, abrir-se ao

desconhecido de si mesma, capaz de identificar-se consigo mesma, ou seja, afirmar-se

‘algo’,   para,   logo   depois,   continuar   a   própria   investigação,   o   infinito   “trabalho   sobre   si”.  

Uma identidade que não se contenta – ou se fixa, ou se protege – em uma única resposta

mas continua a perguntar-se.

Através  da  entrevista  de  Richards,  posso  ver,  em  alguns  momentos,  essa  ‘identidade  

instável’  se  realizando  em  uma  experiência  artística  concreta. Pretendo, portanto, apresentar

e comentar alguns fragmentos dessa entrevista para voltar, ainda que rapidamente, às

questões de idealização, identificação e identidade das quais falei logo acima.

Richards,   quando   fala   de   ‘si   mesmo’   no   trabalho,   acaba apontando e mesmo

nomeando  vários  aspectos  deste  ‘si  mesmo’,  aspectos  que  aparecem  quando  o  doer está em

ação/relação e que podem, se não são percebidos e produtivamente manejados, bloquear o

que está sendo realizado. Por isso, um ponto fundamental no trabalho do Workcenter é uma

certa educação da percepção: um olhar que aprende a espreitar a si mesmo.

Richards:  “Bom,  não  existe  uma  só  maneira  de  trabalhar,  isso  é  certo.  Mas  também  é  certo  que  isso  
pode ajudar, se conhecer um pouco, ver os diferentes aspectos  de  si  mesmo”.  (p.199)

Vou exemplificar um dos aspectos dessa identidade, com o que Richards chama de

‘engenheiro’:  

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...“o  engenheiro  é  ligado  principalmente  ao  mental:  é  aquele  que  faz  o  projeto,  cria  a  estratégia,  gosta  
de ver que sua estratégia funciona.   Ele   gosta   tanto   disso   que,   ‘as   vezes,   pode   acreditar   que   sua  
estratégia funciona mesmo quando ela não funciona – todos os signos dizem que ela não funciona,
mas  ele  continua  a  repetir  para  si  mesmo:  ‘  Você  vai  ver,  se  continuamos  assim  por  mais  cinco dias,
isso vai funcionar´. O ´Engenheiro´ pode, muito facilmente, se ele não é colocado sob controle,
conduzir o trabalho para um lugar seco e não criativo. Mas ele também é necessário porque é preciso
ter  uma  espécie  de  estratégia,  de  plano”  .  (p.198).

O problema, segundo o artista americano, é que essa parte de nós (assim como todas

as   outras,   em   diferentes   situações)   pode   querer   ser   o   “rei   do   momento”.   Assim,   o   ‘líder’  

pode   se   identificar   tanto   com   o   ‘engenheiro’   (   como   acredito   que   a   educação   vem se

identificando   com   ‘gesto   de   plantar’)   que   não   consegue   mais   relacionar-se com o que se

passa e, além de fixar a si mesmo em uma posição, a posição daquele que sabe e que tem a

chave da criatividade, acaba querendo também fixar o outro e o próprio momento presente.

Richards  :    “...o  líder  (...)  deve  se  confrontar  com  seus  próprios  hábitos,  com  seu  amor  pela  receita,  
porque uma parte de nós gosta de pensar que nossa estratégia vai funcionar, e é o que nos cega – no
momento mesmo em que a criatividade grita:   “isso   não   funciona,   isso   não   funciona!”   e   que   é  
necessário ajustar. Assim, não devemos nos identificar com a nossa técnica, ou então, nos
identificarmos quando ela funciona, e quando ela não funciona, mudar. (...) No momento em
que nos apegamos a nossos hábitos, nós começamos a amá-los: sabemos como fazer ou pensamos
que sabemos como fazer, o que se transforma rapidamente, face a um outro indivíduo, face a um
outro   momento,   em   algo   que   não   é   eficaz   e,   então,   será   necessário   se   adaptar”.   (p.193/194/195-
grifos meus)

Muitas vezes, nós, professores de formação de atores e também os alunos,

idealizamos nosso gesto de ensinar/aprender. É como se ele estivesse ligado a uma espécie

de resultado utópico, mas já desenhado, de alguma forma, em nossa cabeça. Nossos

‘fazeres’,   então,   se   aproximam   ou   se   afastam   desta   idéia   de   perfeição   exatamente   como  

uma moça que colocasse uma foto de uma modelo ou atriz famosa no espelho do quarto e

medisse suas ações de embelezamento pela proximidade ou distância do seu próprio corpo

em relação à fotografia.

Qual o problema que se coloca aí para o gesto de ensinar/aprender? Em primeiro

lugar, parece existir sempre um terceiro - a idéia projetada - que impede ou dificulta a

relação professor/aluno. A busca parece estar sempre do lado de fora, nos exercícios e nas

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técnicas. Estamos, professores e alunos, correndo atrás daquela perfeição/projeção pela

qual somos capazes de esforços extremados mas, muitas vezes, cegos (!).A capacidade de

enxergar um aluno como diferente do outro e, portanto, respondendo de maneira diferente

às  proposições,  é  dificultada  pela  projeção  do  que  o  aluno  ‘deveria  ser’  ou  de  onde  ‘deveria  

estar’.  Acabamos  julgando  o  aluno-ator pela sua maior ou menor proximidade em relação

àquela idealização. E ele, o aluno, o faz pelo mesmo parâmetro.

Como   não   estamos   atentos   ao   processo,   mas   buscando   um   resultado,   um   ‘fim’,    

esse, às vezes, aparece por vias mal traçadas e, então, efeitos e virtuosismos vocais ou

corporais substituem uma experiência criadora. Estamos formando atores e, portanto, é o

próprio teatro que herda essa idealização e esse resultado.

Como seria um teatro onde uma identidade – do ator – nômade, instável, de

‘caçador’  ocupasse  a  cena?  Creio  já  ter  visto  alguns  exemplos:  um  teatro  menos  espetacular  

e mais agudo; menos agradável, sem dúvida. Mas esses são apenas alguns adjetivos. Se isso

nos interessa, o melhor é retornarmos à pergunta!

Bibliografia Citada:
FLUSSER, Vílem. Les Gestes, Paris, HC-D’ART.  
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana. Danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte,
Autêntica, 2000.
RICHARDS, Thomas. De   l’art   comme   vehicule. Tese de doutoramento, Paris VIII,
orientação Prof. Jean Marie Pradier, 2001.

*   Tatiana   Motta   Lima   é   atriz   e   integrante   do   grupo   “Teatro   da  Passagem”   e   professora   de   Interpretação da
Escola de Teatro da UNI-RIO  onde,  além  de  lecionar,  coordena  o  projeto  de  extensão  “Núcleo  de  Pesquisa  do  
Ator”.   Tatiana   desenvolve,   há   quase   10   anos,   pesquisa   sobre   a   trajetória   artística   de   Jerzy   Grotowski.  
([email protected])

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