Revista Da FAEBA - Educação e Contemporaneidade - 2017

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Educação em

Quilombos
Reitor: José Bites de Carvalho; Vice-Reitora: Carla Liane Nascimento dos Santos
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I
Diretor: Valdélio Santos Silva
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC
Coordenador: Natanael Reis Bomfim

Editor Geral: Augusto César Rios Leiro (UNEB)


Editora Científica: Lívia Alessandra Fialho da Costa (UNEB)
Editores Associados: Dalila Andrade Oliveira (UFMG); Elizeu Clementino de Souza (UNEB); Jorge do Ó (Universidade de
Lisboa); Liége Maria Sitja Fornari (UNEB).

Tânia Regina Dantas


Universidade do Estado da Bahia-UNEB
Conselheiros nacionais Walter Esteves Garcia
Associação Brasileira de Tecnologia Educacional / Instituto Paulo
Antônio Amorim Freire
Universidade do Estado da Bahia-UNEB
Ana Chrystina Venâncio Mignot Conselheiros internacionais
Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ
Betânia Leite Ramalho Antônio Gomes Ferreira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN Universidade de Coimbra, Portugal
Cipriano Carlos Luckesi António Nóvoa
Universidade Federal da Bahia-UFBA Universidade de Lisboa- Portugal
Edivaldo Machado Boaventura Cristine Delory-Momberger
Universidade Federal da Bahia-UFBA Universidade de Paris 13 – França
Edla Eggert Daniel Suarez
Universidade do Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS Universidade Buenos Aires- UBA- Argentina
Jaci Maria Ferraz de Menezes
Universidade do Estado da Bahia-UNEB Ellen Bigler
João Wanderley Geraldi Rhode Island College, USA
Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP Edmundo Anibal Heredia
José Carlos Sebe Bom Meihy Universidade Nacional de Córdoba- Argentina
Universidade de São Paulo-USP Francisco Antonio Loiola
Maria Elly Hertz Genro Université Laval, Québec, Canada
Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS Giuseppe Milan
Maria Teresa Santos Cunha Universitá di Padova – Itália
Universidade do Estado de Santa Catarina-UDESC Julio César Díaz Argueta
Nádia Hage Fialho
Universidade do Estado da Bahia-UNEB Universidad de San Carlos de Guatemala
Paula Perin Vicentini Mercedes Villanova
Universidade de São Paulo-USP Universidade de Barcelona, España
Robert Evan Verhine Paolo Orefice
Universidade Federal da Bahia - UFBA Universitá di Firenze - Itália

Coordenadores do n. 49: Marcos Luciano Messeder – UNEB e José Maurício Paiva Andion Arruti – UNICAMP

Revisão: Luiz Fernando Sarno; Tradução/revisão Inglês: Lorena Paccini Lustosa; Tradução/revisão Espanhol: Ricardo Castaño.
Capa e Editoração: Linivaldo Cardoso Greenhalgh (“A Luz”, de Carybé – Escola Parque, Salvador/BA).
Editora Assistente: Maura Icléa Castro.
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Educação – Campus I
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade

Revista da FAEEBA

Educação e
Contemporaneidade

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 26, n. 49, p. 1-214, maio/ago. 2017

ISSN 2358-0194 (eletrônico) ISSN 0104-7043 (impresso)


Revista do Departamento de Educação – Campus I
(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade
Esta revista oferece acesso livre ao seu conteúdo. Publicação quadrimestral temática que analisa e discute assuntos de inte-
resse educacional, científico e cultural. Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.
ADMINISTRAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta, assinaturas, etc. deve ser
dirigida à:
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
Departamento de Educação I - DEDC
Rua Silveira Martins, 2555  - Cabula 
41150-000 SALVADOR – BAHIA - BRASIL
E-mail: [email protected]
Normas para publicação: vide últimas páginas.
Submissão de artigos: http://revistas.uneb.br/index.php/faeeba/about/submissions#onlinesubmissions
E-mail: [email protected] Site da Revista da FAEEBA: http://www.revistas.uneb.br/index.php/faeeba
Indexadores e Base de Dados:
- BAMP – Biblioteca Ana Maria Poppovic – Fundação Carlos Chagas, Brasil. www.fcc.org.br
- Educ@ – Publicações online de Educação – Fundação Carlos Chagas, Brasil. www.fcc.org.br
- BBE – Bibliografia Brasileira de Educação (Brasil, Cibec/Inep/MEC). http://pergamum.inep.gov.br/pergamum/bib-
lioteca/index.php
- EDUBASE –Biblioteca Joel Martins – FAE / Faculdade de Educação - UNICAMP. http://edubase.modalbox.com.br/portal/
- Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação - Universi-
dade de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.
www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html
- CLASE - Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da Hemeroteca Latinoamericana - Uni-
versidade Nacional Autônoma do México: Site: http://www.dgbiblio.unam.mx
- DOAJ - Directory of Open Access Journals. https://doaj.org/
– INIST - Institut de l’Information Scientifique et Technique / CNRS - Centre Nacional de la Recherche Scientifique
de Nancy/France. Site: http://www.inist.fr
- IRESIE - Índice de Revistas de Educación Superior e Investigación Educativa (Instituto de Investigaciones sobre
la Universidad y la Educación - México). Site: www.iisue.unam.mx
- Latindex (Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe,
España y Portugal). Site: www.latindex.org
– Portal de Periódicos CAPES. Site: www.periodicos.capes.gov.br
- EZB-Elektronische Zeitschriftenbibliotkek/ Eletronic Journals Library (Universität Regensburg - Alemanha). Site:
www.rzblx1.uni-regensburg.de
- SEER - Sistema Eletrônico de Editoração de Periódicos. http://seer.ibict.br
- ULRICH’S - Internacional Periodicals Directory. www.ulrichsweb.com
- Portal Brasileiro de Acesso Aberto à Informação Científica (oasisbr). www.ibict.br
- Diretório Luso-Brasileiro. Repositórios e Revistas de Acesso aberto. www.ibict.br
Pede-se permuta / We ask for exchange.
Este número teve o apoio da Editora da Universidade do Estado da Bahia (EDUNEB) para impressão.
Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade / Universidade do Estado da Bahia,
Departamento de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun., 1992) - Salvador: UNEB, 1992-
Periodicidade quadrimestral.
Semestral até o volume 24, n. 44 (jul./dez., 2015)
ISSN 0104-7043 (impresso)
ISSN 2358-0194 (eletrônico)
1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título.
CDD: 370.5
CDU: 37(05)

Tiragem: 300 exemplares

Universidade do Estado da Bahia - UNEB


Rua Silveira Martins, 2555 - Cabula - 41150-000 - Salvador - Bahia - Brasil - Fone: +55 71 3117-2200
Sumário
9 Editorial
10 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA Educação e
Contemporaneidade

Educação em quilombos

17 Apresentação
Marcos Luciano Messeder; José Maurício Paiva Andion Arruti
21 Função de alteridade: o cangume, a professora, a escola e a universidade
José Maurício Arruti
35 Motivações iniciais para elaboração de diretrizes da educação escolar quilombola na Bahia
Suely Noronha de Oliveira
53 Comunidades quilombolas do sertão de Pernambuco: diálogos sociopolíticos na
construção de uma educação emancipatória
Luclécia C. M. Silva; Moisés Felix de Carvalho Neto; Adriana Fernanda Busso
69 Educação escolar quilombola: reflexões sobre os avanços das políticas educacionais e os
desafios para a prática pedagógica no Vale do Ribeira- SP
Lisângela Kati do Nascimento
87 Experiências de educação quilombola: as relações entre escola e comunidade
Kalyla Maroun; Edileia Carvalho
103 Educação escolar em comunidades quilombolas do território de identidade do Velho
Chico (Bahia)
Dinalva de Jesus Santana Macêdo; Marcos Luciano Lopes Messeder; Delcele
Mascarenhas Queiroz
119 As contribuições do movimento quilombola na construção de uma proposta de educação
específica
Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito
139 Ser quilombola: práticas curriculares em educação do campo
Iris Verena Oliveira

ESTUDOS

157 História da Educação e Políticas Educacionais entre saberes e conhecimentos e circulação


internacional de discursos
Claudemir de Quadros
169 Ativismo político e juventude: catracas na escola e na cidade para os jovens mais jovens
Miriam Leite
187 A convivência na escola e o bullying entre estudantes nos ensinos fundamental II e médio
Carmen Lúcia Dias; Terezinha Ferreira da Silva Colombo; Alessandra de Morais
207 Normas para publicação

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 1-214, maio/ago. 2017
CONTENTS
11 Editorial
12 Themes and Submission Terms for the Upcoming Issues of Journal of FAEEBA –
Education and Contemporaneity

Education in quilombos

17 Presentation
Marcos Luciano Messeder; José Maurício Paiva Andion Arruti
21 Alterity function: the cangume, the teacher, the school and the university
José Maurício Arruti
35 Initial motivations for the elaboration of guidelines for quilombola school education in Bahia
Suely Noronha de Oliveira
53 Quilombola communities in hinterland of Pernambuco state: socialpolitical dialogues
constructing of an emancipatory education
Luclécia C. M. Silva; Moisés Felix de Carvalho Neto; Adriana Fernanda Busso
69 Quilombola school education: considerations on advances of educational policies and
challenges for pedagogical practice in the Vale do Ribeira region.
Lisângela Kati do Nascimento
87 Education experience quilombola: relations between school and community
Kalyla Maroun; Edileia Carvalho
103 School education in quilombolas communities of the Old Chico identity territory-BA
Dinalva de Jesus Santana Macêdo; Marcos Luciano Lopes Messeder; Delcele
Mascarenhas Queiroz
119 The contributions of the quilombo movement to the construction of a specific proposal for
education
Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito
139 Being quilombola: curriculum practices in field education
Iris Verena Oliveira

157 History of education and educational policies amongst knowledges and international
discourses circulation
Claudemir de Quadros
169 Political activism and youth: turnstiles of the school and the city for the younger youth
Miriam Leite
187 Coexistence at school and bullying among students in elementary school II and high school
Carmen Lúcia Dias; Terezinha Ferreira da Silva Colombo; Alessandra de Morais
211 Instructions for publication

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 1-214, maio/ago. 2017
SUMARIO
13 Editorial
14 Temas y términos de futuras ediciones

Educación en quilombos

17 Presentación
Marcos Luciano Messeder; José Maurício Paiva Andion Arruti
21 Función de alteridad: el Cangume, la profesora, la escuela y la universidad
José Maurício Arruti
35 Motivaciones iniciales para elaboración de directrices da educación escolar quilombola en
Bahia
Suely Noronha de Oliveira
53 Las comunidades quilombolas del sertão Pernambucano: los diálogos sociopolíticos en la
construcción de uma educación emancipadora
Luclécia C. M. Silva; Moisés Felix de Carvalho Neto; Adriana Fernanda Busso
69 Educación escolar quilombola: reflexiones sobre los avances de las políticas educacionales
y los desafios para la prática pedagógica en el Vale do Ribeira-SP.
Lisângela Kati do Nascimento
87 Experiencias de educación quilombolas: la relación entre la escuela y la comunidad
Kalyla Maroun; Edileia Carvalho
103 Educación escolar en comunidades quilombolas del territorio de identidad del Viejo
Chico-BA
Dinalva de Jesus Santana Macêdo; Marcos Luciano Lopes Messeder; Delcele
Mascarenhas Queiroz
119 Las contribuciones del movimiento quilombola para la construcción de uma propuesta de
educación específica
Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito
139 Ser quilombola: prácticas curricular en educación del campo
Iris Verena Oliveira

ESTUDIOS

157 Historia de la educación y políticas educacionales entre saberes, conocimientos y


cicrculación internacional de discursos
Claudemir de Quadros
169 Activismo politico y juventud: torniquetes en la escuela y em la ciudad para los jóvenes
más jóvenes
Miriam Leite
187 La convivencia en la escuela y el bullying entre los estudiantes en la educación primaria y
secundaria
Carmen Lúcia Dias; Terezinha Ferreira da Silva Colombo; Alessandra de Morais

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 1-214, maio/ago. 2017
Editorial

O campo da Educação tem explorado, de distintas maneiras, questões relativas à


vida em quilombos. Muitos estudos são dedicados ao tema de como se dão os proces-
sos educativos – ditos não formais – nestas comunidades ou como se dão as práticas
pedagógicas e a construção do currículo em escolas localizadas em quilombos ou
em suas imediações. Estas produções, que se amparam num referencial teórico das
Ciências Sociais, em particular da Antropologia, e, normalmente, tomam como método
a Etnografia, põem em evidência conhecimentos fundamentais sobre o que são as co-
munidades quilombolas, seus modos de vida e a dificuldade de acesso a seus direitos.
Ao darem voz às histórias da remanescência quilombola ou como se deu o processo
de certificação, estas produções tomam como propósito a reflexão mais ampla sobre
a dimensão política que se enuncia com a construção de um objeto desta natureza.
De que maneira o tratamento do tema quilombolas tem colaborado para aumentar a
visibilidade destes sujeitos enquanto sujeitos de reconhecimentos normativos? O que
se sabe sobre suas lutas pelo resgate de territórios? Que questões, neste sentido, têm
sido relevantes para o campo da educação?
A Universidade do Estado da Bahia (Uneb) vem produzindo, ao longo de mais de
20 anos, um conjunto expressivo de trabalhos sobre o tema: participação em laudos
antropológicos, cursos de extensão, monografias, dissertações e teses sobre a vida nas
comunidades negras rurais da Bahia e os modos de diálogo entre a educação escolar
e as especificidades étnico-culturais das comunidades quilombolas. As produções
reunidas no departamento de Educação e no Programa de Pós-graduação em Edu-
cação e Contemporaneidade da Uneb vêm ampliar a perspectiva de dar visibilidade
às “comunidades tradicionais”, historicamente marginalizadas, como quilombolas,
indígenas, assentados, comunidades pesqueiras. Assim, o tema deste dossiê, orga-
nizado por José Maurício Arruti (Unicamp) e Marcos Luciano Messeder (Uneb), se
alinha com o perfil de produções da Uneb e vem reforçar a perspectiva da defesa dos
grupos oprimidos e subalternizados, ao dar visibilidade a realidades específicas de
quilombos no Brasil.
Este dossiê foi finalizado num momento em que o Brasil experimenta a ausência
de diálogo e de políticas efetivas voltadas para o atendimento dos direitos de grupos
minoritários. Em meados de agosto deste ano, lideranças quilombolas e indígenas
acamparam em Brasília, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), para aguardar o
resultado do julgamento de ações ligadas à demarcação de terras. Nesta sessão plenária
do STF, que foi suspensa, deveria ter sido julgada a Ação Direta de Inconstitucionali-
dade (ADIN), proposta pelo Partido Democratas (DEM), com o objetivo de derrubar
o decreto 4.887/2003, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que estabeleceu regras
para identificação e demarcação de terras ocupadas por remanescentes das comuni-
dades quilombolas. No aguardo de avanços – e não retrocessos –, exprimimos nossa
posição, através dos artigos aqui publicados, de compromisso com os remanescentes
quilombolas, acreditando que a universidade é também o lugar de fortalecimento de
lutas pela manutenção de direitos já obtidos na Constituição.

Agosto de 2017
Lívia Fialho Costa
Editora Científica

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017 9


Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA:
Educação e Contemporaneidade

Prazo de
Nº Tema Lançamento Coordenadores
submissão

Educação e Acessibilidade Setembro/Dezembro Luciene Maria Santos – UNEB


50 30/07/2017
Cultural 2017  Admilson Santos – UFBA

Educação, Infâncias e Janeiro/abril Ana Paula Silva da Conceição – UNEB


51 15/12/2017
Formação 2018 Mônica Appezzato Pinnazza – USP

Francisca de Paula Santos da Silva –


Educação, Ecossocioeconomia Maio/agosto
52 30/03/2018 UNEB
e Turismo de Base Comunitária 2018
Carlos Alberto Cioce Sampaio - FURB

10 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017


Editorial

The field of education has explored, in different ways, issues related to life in
quilombos. Many studies are devoted to the theme of how the educational processes
- non-formal ones - are given in these communities or how the pedagogical practices
and the curriculum are constructed in schools located in or near the quilombos. These
productions, which are based on a theoretical reference of the Social Sciences, in par-
ticular Anthropology, and usually take Ethnography as method, reveal fundamental
knowledge about what the quilombola communities are, their ways of life and the
difficulty of access to their rights. By giving voice to the stories of the remaining
quilombola or how the certification process took place, these productions take as their
purpose the broader reflection on the political dimension that is enunciated with the
construction of an object of this nature. In what way has the treatment of the quilom-
bolas theme collaborated to increase the alertness of these subjects as subjects of
normative acknowledgments? What is known about their struggles for the territories
rescue? What issues in this regard have been relevant to the field of education?
The State University of Bahia (UNEB) has been producing, throughout more than
20 years, an impressive set of works on the subject: participation in anthropological
reports, extension courses, monographs, dissertations and thesis on life in rural black
communities of Bahia and the modes of dialogue between school education and the
ethnic-cultural specificities of the quilombola communities. The productions gathered
in the Department of Education and the Graduate Program in Education and Con-
temporaneity of UNEB, expand the perspective of giving visibility to the “traditional
communities”, historically marginalized, as quilombolas, Indigenous people, settlers,
fishing communities. Thus, the theme of this dossier, organized by José Maurício Arruti
(UNICAMP) and Marcos Luciano Messeder (UNEB), aligns with UNEB’s production
profile and reinforces the perspective of the defense of oppressed and subalternized
groups, by giving visibility to the specific realities of Quilombos in Brazil.
This dossier was finalized at a time when Brazil is experiencing the absence of
dialogue and effective policies aimed at meeting the rights of minority groups. In
mid-August this year, leaders of the quilombola and indigenous peoples took shelter
in Brasilia, in front of the Federal Supreme Court (STF), to safeguard the outcome
of the trial of actions related to land demarcation. In this suspended STF plenary,
the Direct Action on Unconstitutionality (ADIN), proposed by the Democratic Party
(DEM), should have been tried, with the objective of overturning the 4.887/2003 decree
of President Luiz Inácio Lula da Silva, which established rules for the identification
and demarcation of lands occupied by remnants of the quilombola communities. We
are waiting for advances, not setbacks; we express our position, through the articles
published here, of a commitment to the remaining quilombolas, believing that the
university is also the place to strengthen the efforts to maintain the rights already
obtained in the constitution.

August, 2017

Lívia Fialho Costa


Scientific Editor

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017 11


Themes and terms for the next journals of Revista da FAEEBA:
Educação e Contemporaneidade

Submission
Nº Theme Publication date Coordinators
deadline

Education and Cultural Luciene Maria Santos – UNEB


50 07/30/2017 Sept-Dec 2017
Accesibility Admilson Santos – UFBA

Education, childhood Ana Paula Silva da Conceição – UNEB


51 12/15/2017 Jan-april 2018
and Formation Mônica Appezzato Pinnazza - USP

Education,
Ecossocioeconomy Francisca de Paula Santos da Silva – UNEB
52 03/30/2018 May-august 2018
and Community Based Carlos Alberto Cioce Sampaio - FURB
Tourism

12 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017


Editorial
El campo de la Educación ha explorado, de distintas maneras, cuestiones relativas
a la vida en quilombos (comunidades negras). Muchos estudios se dedican al tema de
cómo se dan los procesos educativos -no formales- en estas comunidades o cómo se
dan las prácticas pedagógicas y la construcción del currículo en escuelas ubicadas en
quilombos o en sus inmediaciones. Estas producciones, que se amparan en un referencial
teórico de las Ciencias Sociales, en particular de la Antropología y normalmente, toman
como método la Etnografía, ponen en evidencia conocimientos fundamentales sobre
lo que son las comunidades quilombolas, sus modos de vida y la dificultad de acceso a
sus derechos. Al dar voz a las historias de la remanencia quilombola o como se dio el
proceso de certificación, estas producciones toman como propósito una reflexión más
amplia sobre la dimensión política que se enuncia con la construcción de un objeto de
esta naturaleza. ¿De qué manera el tratamiento del tema “quilombolas” ha colaborado
para aumentar la visibilidad de estos sujetos como sujetos de reconocimientos norma-
tivos? ¿Qué se sabe sobre sus luchas por el rescate de territorios? ¿Qué cuestiones, en
este sentido, han sido relevantes para el campo de la educación?
La Universidad del Estado de Bahía (UNEB) viene produciendo, a lo largo de
más de 20 años, un conjunto expresivo de trabajos sobre el tema: participación en
textos antropológicos, cursos de extensión, monografías, disertaciones y tesis sobre
la vida en las comunidades negras rurales de Bahía y los modos de diálogo entre la
educación escolar y las especificidades étnico-culturales de las comunidades quilom-
bolas. Las producciones reunidas en el departamento de Educación y en el Programa
de Postgrado en Educación y Contemporaneidad de la UNEB, vienen a ampliar la
perspectiva de darle visibilidad a las “comunidades tradicionales”, históricamente
marginadas, como quilombolas, Indígenas, asentados, comunidades pesqueras. Así,
el tema de este dossier organizado por José Maurício Arruti (UNICAMP) y Marcos
Luciano Messeder (UNEB), se alinea con el perfil de producciones de la UNEB y viene
a reforzar la perspectiva de la defensa de los grupos oprimidos y subalternizados, al
dar visibilidad a las realidades específicas de los quilombos en Brasil.
Este dossier fue finalizado en un momento en que Brasil experimenta la ausencia de
diálogo y de políticas efectivas dirigidas a la atención de los derechos de grupos mino-
ritarios. A mediados de agosto de este año, líderes quilombolas e indígenas acamparon
en Brasilia, frente al Supremo Tribunal Federal (STF), para aguardar el resultado del
juicio de acciones vinculadas a la demarcación de tierras. En esta sesión plenaria del
STF, que fue suspendida, debería haber sido juzgada la Acción Directa de Inconstitu-
cionalidad (ADIN), propuesta por el Partido Demócratas (DEM), con el objetivo de
derribar el decreto 4.887 / 2003, del presidente Luiz Inacio Lula da Silva, que estableció
reglas para la identificación y demarcación de tierras ocupadas por remanentes de las
comunidades quilombolas. A la espera de avances -y no retrocesos- expresamos nuestra
posición, a través de los artículos aquí publicados, en compromiso con los remanentes
quilombolas, creyendo que la Universidad es también el lugar de fortalecimiento de
luchas por el mantenimiento de derechos ya obtenidos en la constitución.

Agosto de 2017
Lívia Fialho Costa
Editora Científica

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017 13


Temas y plazos de lós próximos números de la Revista FAEEBA:
Educación y Contemporaneidad

Plazo de
Nº Tema Lanzamiento Coordinadores
presentación

Educación y Septiembre/Diciembre Luciene Maria Santos – UNEB


50 30/07/2017
Accesibilidad Cultural 2017 Admilson Santos – UFBA

Educación, Childhood Ana Paula Silva da Conceição – UNEB


51 12/15/2017 Enero-abril 2018
and Formación Mônica Appezzato Pinnazza - USP

Education,
Ecossocioeconomy Francisca de Paula Santos da Silva – UNEB
52 03/30/2018 Mayo-Agosto 2018
and Community Based Carlos Alberto Cioce Sampaio - FURB
Tourism

14 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017


Educação em
Quilombos
Marcos Luciano Messeder; José Maurício Paiva Andion Arruti

Apresentação
Enquanto fechamos a organização deste volume da Revista da FAEEBA – Edu-
cação e Contemporaneidade e preparamos o seu texto de apresentação, entramos em
mais um momento crítico do processo de reconhecimento dos direitos quilombolas.
Estamos mais uma vez à espera de uma decisão do Supremo Tribunal Federal com
relação à constitucionalidade do decreto presidencial nº 4.887, de 2003, que regula-
menta o artigo constitucional 68 (ADCT), de 1988, por meio do qual, pela primeira
vez, o Estado brasileiro reconheceu a existência de comunidades remanescentes de
quilombos e lhes atribuiu direitos territoriais.
O momento político, marcado por retrocessos de toda ordem, atinge diretamente os
movimentos camponeses e sem terra, os povos tradicionais, indígenas e quilombolas,
fundamentalmente em razão destes figurarem como obstáculos à completa mercantili-
zação da terra, ao avanço sem limites da monocultura, à ruptura definitiva com a ética
de equilíbrio e respeito à natureza. Não é fruto de pura coincidência que tais razões
materiais estejam vinculadas à luta política e simbólica em torno da educação, na qual
um movimento autodesignado Escola Sem Partido propõe, basicamente, projetar sobre
o campo educacional a mesma lógica mercantilista, monocultora e de ruptura ética.
A diversidade é um obstáculo à lógica de produção em série de corpos e mentes
exigida por essa espécie brutal de capitalismo, que tomou conta da nossa economia
e política. Em uma reunião dos maiores expoentes do agronegócio no país, realizada
em dezembro de 2013, por exemplo, um dos presentes bradava que a propriedade é o
nosso direito mais sagrado, enquanto outro “acusava” um dos ministros do governo à
época de receber em seu gabinete “tudo de ruim”, como indígenas, quilombolas, gays
e lésbicas. Menos de quatro anos depois, eles estão no poder, promovendo todo tipo de
ataques à Constituição Cidadã, como ficou conhecido o texto constitucional de 1988.
O tema deste número 49, dossiê Educação em Quilombos, tem seus fundamentos
nos citados decreto e artigo constitucional, completados no campo educacional pela
Resolução CNE/CEB nº 8, de 2012, que definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais
da Educação Escolar Quilombola. A partir deste documento, que resultou de um
amplo processo de consulta a comunidades quilombolas de todo o país, o sistema
educacional nacional reconheceu a necessidade e se abriu à possibilidade de rever
currículos, materiais didáticos, processos de formação de professores, assim como de
organização e gestão das escolas que atendem comunidades quilombolas, tendo em
vista o respeito aos seus valores sociais, culturais e históricos.
Quais as razões dessas propostas? Como esse processo ocorreu nos planos regional
e local? Ele está enraizado o suficiente para enfrentar os desafios dessa conjuntura?
Está na hora de realizarmos balanços e revisarmos processos. Está na hora de olhar
para os acúmulos realizados em busca de apoio à reflexão e à ação. Este volume
procurar ser uma contribuição nesta direção.
O primeiro texto reflete sobre as bases dessa política por meio do caso especí-
fico da comunidade do Cangume (Vale do Ribeira paulista). Trata-se de entender o
modo pelo qual agentes, práticas e saberes escolares podem operar na produção e
ressignificação de uma “função de alteridade” da comunidade quilombola diante da
sociedade do seu entorno. Tal descrição tem por objetivo colocar a pergunta: é possí-
vel reconhecer a dignidade cultural dessas comunidades sem questionar tais agentes,
práticas e saberes escolares?

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 17-19, maio/ago. 2017 17
Apresentação

Em seguida temos três textos que investigam processos estaduais ou regionais


de discussão e construção da proposta de educação diferenciada para comunidades
quilombolas. O primeiro trata das motivações políticas para a construção das di-
retrizes curriculares para educação escolar no Estado da Bahia a partir do diálogo
com o conjunto dos agentes que participaram da sua elaboração, buscando analisar
igualmente o contexto sociopolítico de produção desta política pública e os dilemas
enfrentados para sua continuidade e consequente institucionalização. Com foco no
contexto do semiárido pernambucano, o artigo subsequente enfatiza igualmente os
diálogos sociopolíticos na elaboração de processos e políticas capazes de organizar uma
educação diferenciada com base no patrimônio e sentidos culturais das comunidades.
Finalizando este panorama, o último trabalho examina as orientações postuladas pelas
diretrizes nacionais para educação escolar quilombola e as condições concretas de
sua execução entre as comunidades do Vale do Ribeira, em São Paulo, evidenciando
as dificuldades enfrentadas para sua real implementação.
Aprofundando tais leituras mais gerais, passamos a quatro textos que nos apre-
sentam análises de casos ou experiências de discussão e implantação de educação
diferenciada em comunidades quilombolas específicas. Começamos com um estudo
comparativo das experiências educativas de duas comunidades na região sul flumi-
nense, que demonstram a diversidade de caminhos e estratégias que se apresentam
ou se produzem em razão das especificidades locais e suas relações com os agentes
de interlocução política. A análise de experiências escolares em quilombos situados
no Território do Velho Chico, oeste da Bahia, permite constatar como o diálogo inter-
cultural nos planos político e pedagógico pode expressar uma apropriação superficial
dos sentidos comunitários, traduzidos em práticas pedagógicas pouco refletidas, mas
permite, por outro lado, vislumbrar ações significativas que buscam articular os dilemas
étnico-raciais locais e históricos mais amplos da sociedade brasileira.
Finalmente, encerrando a parte temática do volume, dois textos ainda orientados
para experiências específicas. No primeiro, as sinergias propiciadas pelas mobilizações
políticas no âmbito do movimento quilombola mineiro e as percepções de membros
de uma comunidade participante são discutidas como práticas pedagógicas de orga-
nização. O último texto enfrenta dilemas pouco debatidos em estudos desta natureza,
geralmente afirmativos de sentidos locais idealizados ou projetados da identidade
quilombola. Com base em excelente descrição etnográfica, reflete, a partir da experi-
ência de produção de vídeo, as ambiguidades presentes nos processos de construção
identitária. Neste sentido, o discurso final encontra eco no que abre este dossiê, ao
afirmar a complexidade dos encontros entre alteridades que o reconhecimento dos
direitos de existência destes sujeitos propõe, simultaneamente, a eles próprios, aos
agentes políticos do Estado, aos pesquisadores e à sociedade brasileira na sua rica e
mal aceita pluriculturalidade.
Diante da atual conjuntura política, torna-se necessário o reforço das conquistas
e avanços até então em processo de consolidação. O conjunto destas contribuições
pode colaborar para o conhecimento da nossa diversidade e para o olhar sobre nós
mesmos numa perspectiva de valorização dos diferentes grupos sociais, atentando
para um olhar crítico direcionado às desigualdades socioeconômicas e às relações
sociais discriminatórias e excludentes que permeiam as dinâmicas de convivência
na contemporaneidade.
A Seção Estudos publica três artigos com temas relevantes para o campo da Edu-
cação. O primeiro faz uma análise de como a História da Educação é amparada por

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Marcos Luciano Messeder; José Maurício Paiva Andion Arruti

políticas educacionais centradas em ideias criadas e fundamentadas pela pesquisa


científica e por propostas que lograram visibilidade contribuindo para a estruturação
do campo. O segundo texto conta a experiência de uma pesquisa sobre o papel dos
jovens mais jovens nos movimentos de ocupação urbana e seu lugar, em geral, no
ativismo político. O último artigo da seção Estudos é uma análise sobre a convivência
na escola e o bullying entre estudantes, apoiada nas percepções de estudantes de uma
escola particular de Educação Básica sobre o maltrato entre iguais.
Todos os artigos publicados neste dossiê representam esforços teóricos de pesqui-
sadores que, dedicados aos mais diversos campos empíricos, se lançam no trabalho
de produção rigorosa de análise das mais diferentes realidades socioculturais.

Marcos Luciano Messeder


José Maurício Paiva Andion Arruti

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José Maurício Arruti

FUNÇÃO DE ALTERIDADE: O CANGUME, A


PROFESSORA, A ESCOLA E A UNIVERSIDADE

José Maurício Arruti (UNICAMP)∗

RESUMO
Este texto investiga, por meio de uma pequena série de situações históricas e cenas
etnográficas, a construção e a ressignificação da fronteira simbólica que marca a
distância e a proximidade entre a comunidade quilombola do Cangume (Itaóca –
SP) e a sociedade branca do seu entorno. Neste relato, que cobre desde a década de
1970 até o momento presente, ganha destaque o papel desempenhado por agentes,
saberes e práticas escolares. Posto de observação, marcador da distância ou agência
de aproximação, a escola serviu como espaço de reelaboração simbólica da fronteira
cujos conteúdos e sentidos foram sendo alterados ao longo do tempo. Nosso objetivo
é chamar atenção para a “função de alteridade” desempenhada por esta fronteira,
iluminando com o caso do Cangume um dispositivo comum e mais geral que marca
a relação entre outras comunidades quilombolas e as populações do seu entorno e,
em especial, com a escola.
Palavras-chave: Racismo. Caridade. Política. Linguística. Africanismos.

ABSTRACT
ALTERITY FUNCTION: THE CANGUME, THE TEACHER, THE SCHOOL AND
THE UNIVERSITY
This text brings together historical and ethnographic scenes to describe the construction
and resignification of the symbolic border that marks the distance and proximity
between the quilombola community of Cangume (Itaca – SP) and the white society of
its surroundings. In this story, which covers the 1970s to the present, the role played
by agents, knowledge and school practices is highlighted: the school served as a space
to reelaboration the symbolic contents and senses of the border. Our objective is to
draw attention to the ‘alterity function’ of this border, illuminating with the case of
Cangume a common and more general device that marks the relationship between other
quilombola communities and the populations of their surroundings, and especially
with the school.
Keywords: Racism. Charity. Politics. Linguistic. Africanisms.

RESUMEN
FUNCIÓN DE ALTERIDAD: EL CANGUME, LA PROFESORA, LA ESCUELA Y
LA UNIVERSIDAD


Professor do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Antropologia
Social pelo Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em História pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Pesquisador do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI/Unicamp) e do Centro de Estudos Rurais
(CERES/Unicamp), onde coordena o Laboratório de Pesquisa e Extensão com Povos Tradicionais Afro-americanos (LAPA).
E-mail:[email protected]

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Função de alteridade: o Cangume, a Professora, a Escola e a Universidade

Este texto reúne escenas históricas y etnográficas para describir la construcción y la


resignificación de la frontera simbólica que marca la distancia y la proximidad entre la
comunidad quilombola del Cangume (Itaóca - SP) y la sociedad blanca de su entorno.
En este relato, que cubre la década de 1970 hasta el momento presente, se destaca el
papel desempeñado por agentes, saberes y prácticas escolares. La escuela sirvió como
espacio de reelaboración una simbólica de la frontera cuyos contenidos y sentidos se
fueron alterando a lo largo del tiempo. Nuestro objetivo es llamar la atención sobre
la ‘función de alteridad’ de esta frontera, iluminando con el caso del Cangume un
dispositivo común y más general que marca la relación entre otras comunidades
quilombolas y las poblaciones de su entorno y, en especial, con la escuela.
Palabras clave: Racismo. Caridad. Política. Lingüística. Africanismos.

Apresentação
“Cangume” é o nome de um bairro rural do Espírita Fé em Deus, que, fundado na década de
município de Itaóca, Vale do Ribeira, quase na fron- 1930, tornou-se uma referência na região, pelo
teira do estado de São Paulo com o Paraná. Quando histórico de serviços de cura prestados a pessoas
realisei os estudos para o reconhecimento do bairro dos bairros e municípios vizinhos.
como comunidade remanescente de quilombos em Tais dificuldades de acesso, a endogamia e a
2003,1 ele era formado por 37 famílias negras, que excepcionalidade religiosa justificavam a imagética
somavam cerca de 150 moradores permanentes, de “isolamento” que sempre esteve associada ao
todos descendentes de três troncos principais, os bairro, ainda que tal ideia de isolamento tivesse
Monteiro, os Gonçalves e os Maciel de Pontes, que um significado mais amplo, ganhando uma função
se misturavam em uma intrincada rede de parentes- mais simbólica que descritiva. De fato, para a po-
co, por meio do constante casamento entre primos. pulação do município de Itaóca, o nome Cangume
Os moradores do bairro viviam sobre uma terra de não descrevia apenas uma população e um lugar,
uso comum de aproximadamente 37 hectares, co- mas funcionava como o indicador de uma frontei-
nhecida como “patrimônio do Cangume”, localiza- ra (BARTH, 1976; CARDOSO DE OLIVEIRA,
da no fundo de um pequeno vale, onde suas famílias 1976) de grande eficácia simbólica e prática.
mantinham minúsculas hortas cercadas e a criação Os demais bairros do município eram for-
solta de porcos e cabras. O acesso ao “patrimônio mados, predominantemente, por descendentes
do Cangume” se dava por uma precária e estreita das primeiras famílias proprietárias de terras e
estrada de terra, que o ligava à cidade de Itaóca. escravos que chegaram à região em busca de ouro
Os outros caminhos, que ligavam o bairro à cidade ainda no século XVIII, aos quais se juntaram as
de Apiaí e ao município de Iporanga, haviam sido familias de migrantes mineiros e paranaenses que
abandonados e estavam quase intransitáveis, só chegaram à região na década de 1960, em busca de
podendo ser cruzados a pé ou a cavalo.2 Todos, sem terras baratas, em meio a um grande processo de
exceção, eram kardecistas e frequentavam o Centro regularização fundiária que instaurou um intenso
mercado de terras no Vale do Ribeira.3 Em razão da
1 O estudo foi realizado em três estadias entre 2002 e 2003, que so-
maram cerca de 40 dias em campo. Deste trabalho de campo e das
pouca terra disponível, os moradores do Cangume
pesquisas documentais e bibliográficas complementares resultou trabalhavam como diaristas para os fazendeiros
o Relatório Técnico-Científico, realizado conforme as exigências vizinhos, recebendo remuneração que podia ser
do decreto estadual nº 40.723/96, que definia a aplicabilidade do
artigo 68 do ADCT (CF/1988) em território paulista até a edição até 50% menor que a dos trabalhadores dos outros
do Decreto nº 4.887/2003.
2 O caminho que levava a Iporanga, por exemplo, convertera-se 3 Uma descrição deste processo e dos seus efeitos sobre a comu-
em rota dos motociclistas de Rally que buscam justamente os nidade do Cangume, que provavelmente repete os efeitos do
caminhos mais difíceis e enlameados de acesso ao Parque Estadual mesmo processo sobre outras comunidades negras da região, está
Turístico do Alto Ribeira (PETAR). disponível no artigo decorrente do RTC (ARRUTI, 2007).

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José Maurício Arruti

bairros, em sua quase totalidade brancos. Esta era habitantes em Itaóca, o que coloca este município,
a manifestação mais brutal da discriminação e do criado em 1991 por desmembramento de Apiaí,
racismo que recaia sobre o grupo, mesmo com o entre os 100 menores dentre os 645 municípios
destaque que ele já alcançava como como “comu- do estado. Seu tamanho encontra correspondência
nidade quilombola”, reconhecida oficiosamente em um PIB per capta ainda menor (R$ 9.676,68),
pelos poderes municipais. Ainda assim, a noção que fica entre os 25 piores do estado. Esta situa-
de racismo parece estreita para descrever a fron- ção projeta-se sobre a paisagem: em 2010, apenas
teira simbólica a que nos referimos e à qual eram 35% dos domicílios (concentrados no núcleo
atribuídos conteúdos variados. urbano) contavam com esgotamento sanitário e
O objetivo deste texto é investigar, por meio de apenas 17,5% deles (o centro histórico do núcleo
uma pequena série de situações históricas e cenas urbano) possuiam vias públicas com “urbanização
etnográficas, a construção e a ressignificação dessa adequada” segundo os critérios do IBGE, ou seja,
fronteira simbólica por parte da sociedade branca com a presença de bueiro, calçada, pavimentação
de Itaóca. O interesse desta descrição para a coletâ- e meio-fio. As condições de vida dos seus morado-
nea em que se insere está no fato de tais situações e res acompanhavam a forte concentração expressa
cenas evidenciarem o papel que agentes, saberes e nesta paisagem. Apenas 12% de sua população
práticas escolares desempenharam na elaboração e registravam ocupação formal, resutando em um
reelaboração da imagética do quilombo, associado rendimento mensal e em uma taxa de mortalidade
à noção de isolamento. A escola serviu, como se infantil que ficavam entre as dez piores do estado:
verá, como um lugar estratégico a partir do qual 47,5% dos seus domicílios possuíam rendimentos
se produziu um discurso sobre o Cangume e sobre médios mensais por pessoa de até meio salário
a fronteira simbólica que o distingue do seu entor- mínimo e a taxa de mortalidade infantil média era
no. Posto de observação, marcador da distância de 46,5 para 1.000 nascidos vivos. A soma desses
ou agência de aproximação, a escola serviu como e outros critérios situavam Itaóca entre os mais bai-
espaço de reelaboração simbólica daquela fronteira, xos índices de desenvolvimento humano do estado
operando na produção daquilo que eu proponho de São Paulo: um IDH de 0,680 para uma variação
chamar de função de alteridade para o Cangume. entre 0,639 e 0,862 (INSTITUTO BRASILEIRO
Essa função de alteridade que o Cangume de- DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2017).
sempenhou ou ainda desempenha para a população A essa situação socioeconômica devemos acres-
de Itaóca poder servir para iluminar, talvez pelo centar que o município não possui formas materiais
exagero, um dispositivo comum e mais geral que ou imateriais reconhecidas de patrimônio cultural
marca a relação entre outras comunidades qui- ou histórico, assim como qualquer oferta de ser-
lombolas e as populações do seu entorno. Sugiro viços culturais regulares. Um contexto, portanto,
que tal função de alteridade é fundamental para que ainda que não seja de miséria, está no limite
compreender tanto o caráter colonial que marca da pobreza e do isolamento que por muito tempo
a relação que a sociedade local estabelece com as caracterizou a percepção pública sobre o Vale do
comunidades quilombolas, quanto as razões pelas Ribeira. É diante desta moldura que devemos in-
quais os coletivos negros socialmente segregados, terpretar a cena que chamou minha atenção e que
mesmo que sem adesão à noção de negritude ou podemos tomar como a mais espontânea e explícita
sem uma memória clara de um passado de resis- referência à fronteira simbólica atribuída ao bairro
tência à escravidão (ou mesmo de um passado do Cangume por parte dos moradores da cidade.
escravo) podem aderir ao rótulo de “comunidades Da varanda da pousada em que eu pernoitava, pude
remanescentes de quilombos”. assistir uma jovem que, sentada à porta de sua casa,
provocava debochadamente um grupo de rapazes
que passava pela rua, perguntando se eles não iam
1.
se divertir naquela noite e se eles não iam comprar
O Censo Demográfico de 2010 registrou uma “uma boa cachaça lá no Cangume”. A cena me
população de pouco mais de três mil e duzentos deixou intrigado porque no Cangume não só não se

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Função de alteridade: o Cangume, a Professora, a Escola e a Universidade

produz cachaça, como nem mesmo se bebe bebida até mesmo à convivência com seus moradores ou,
alcoólica, por razões religiosas. Mais tarde me foi pelo contrário, no fato de tal convivência servir
explicado que é comum na cidade usar o Cangume para seu reforço ou, ainda, no fato de se poder tirar
como referência de piadas. Nas entediantes noites alguma vantagem simbólica da convivência com tal
em que não têm qualquer diversão que lhes ocupe, símbolo de alteridade. Isso fica evidente na pequena
por exemplo, os jovens brincam dizendo que vão narrativa autobiográfica de uma ex-professora do
a “um baile lá no Cangume”. Ainda que o signifi- Cangume.
cado da brincadeira não seja evidente e imediato Diana (pseudônimo) foi, no início dos anos
para os que chegam de fora, percebi que ele estava 1960, a primeira professora regular designada pela
relacionado à expressão “lá no”, que marca a cons- prefeitura de Apiaí para o bairro. Ainda que ela
trução das frases que me foram citadas: a expressão fosse uma “professora leiga” e tenha sido prece-
reifica o sentido de distância que sustenta a graça dida por outros e outras professoras e professores
que nos escapa. voluntários, que ministraram as primeiras letras
Em primeiro lugar é necessário perceber que a aos seus moradores, Diana narra ter inaugurado a
brincadeira está marcada por uma autoironia daque- primeira escola do bairro e ter sido uma das pri-
les que reconhecem a sua própria situação de preca- meiras pessoas a fazer contato com os pretos do
riedade cultural e de recursos de lazer. Entretanto, Cangume. Ela teria introduzido as primeiras noções
este ensaio de autoironia é atenuado e quase anulado de “cultura” entre uma população de verdadeiros
ao encontrar um ponto de fuga no Cangume. Esta “bugres”, que mal falavam a sua língua, segundo
parece ser a função de alteridade mais elementar de- ela mesma conta.
sempenhada pelo bairro para os moradores brancos Diana conta essa história4 dentro de uma outra
do município. Independentemente do conteúdo das história, que começa no dia em que, em 1988, de ze-
frases que fazem referência ao Cangume, importa ladora da escola, ela foi absorvida como professora
o fato de ele ser sempre o lugar (social e simbólico) do município de Apiaí. Relata que nessa ocasião
a que se faz referência como o “lá no”, isto é, o dis- houve certa confusão em torno da sua nomeação
tante, o outsider, o símbolo de alteridade. Assim, a para a vaga, porque algumas jovens haviam sido
expressão “cangumeiro” assumiu para a população melhor classificadas no concurso promovido pela
do município um significado amplo e impreciso, prefeitura. Para arrefecer os ânimos e justificar sua
mas ao qual poderíamos nos aproximar por meio precedência, a diretora da escola pediu que Diana
de expressões como capiau, bugre, místico, pobre, contasse a sua história às professoras da escola, que
bêbado e, fundamentalmente, negro. Um cangu- a viam com desconfiança. Assim, como Sherazade,
meiro é, em primeiro lugar, um negro, mas ao qual sua narrativa inicial leva à outra narrativa, que nos
acrescenta-se alguma qualidade negativa próxima leva ao Cangume:
à de “errado”, “torto” ou “primitivo”. Está aí a Um belo dia, estavam todas lá na sala e eu peguei
graça: projetar permanentemente sobre um outro e falei assim: ‘Escuta vocês colegas – porque agora
específico os estigmas genéricos dos quais se quer vocês são minhas colegas, porque eu sou professora
livrar. O racismo, neste contexto, parece buscar no agora, agora eu sou de verdade. Mas eu já fui pro-
contraste com a negritude dos corpos dos moradores fessora no coração das crianças, no coração dos pais
do quilombo o último signo de hegemonia a que a das crianças desse bairro que eu vou citar pra vocês.
população branca daquela cidade pode recorrer: a A primeira escola, a primeira experiência que eu tive
função de alteridade do Cangume está na reafirma-
4 Oswaldo Mancebo (1930-2011), poeta e histotiador autodidata,
ção de uma branquitude ameaçada pela pobreza e generosamente me cedeu a gravação desta entrevista realizada
pelo isolamento. como parte das pesquisas para a redação do seu livro de causos e
memórias de Apiaí. Macebo praticava uma espécie de arqueologia
de salvamento da documentação histórica do município. Em meio
2. a um e outro incêndio, um e outro descarte administrativo que,
displicentemente, vão dando fim à documentação histórica do
município, este dedicado historiador local realizou a importante
A força dessa função de alteridade, imputada tarefa de transformar lixo em arquivo. Quando o conheci a pro-
ao Cangume, se manifesta no fato de ela resistir fessora “Diana” já havia falecido.

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José Maurício Arruti

em minha vida, foi em 1964, na escola do Cangume, de que se fala é indígena ou negra, apenas que era
que era um sertão. Eu... Eu abri essa escola lá, com primitiva e, por isso, de reações desconhecidas.
o maior sacrifício da minha vida. Aliás, não parece haver qualquer descontinuidade
[...] necessária entre as ideias de “bugre” e negro neste
contexto, como se vê a seguir:
O diretor naquele tempo, o sr. Sérgio, ele deu essa
escola pra mim e perguntou pra mim: ‘Dona [Dia- Então eu desci aquela serra a cavalo [...] e quando
na], a senhora tem coragem de enfrentar o sertão?’ eu fui chegando no bairro, de longe assim, que lá é
Eu falei: ‘É sertão?’. ‘É sertão sim. Um sertão em um descidão, um buracão, eu vi aquelas casinhas,
que nunca ouviram nem falar em escola até hoje. igual aquelas casinhas de índio mesmo, tudo de sapé.
Inclusive a senhora vai encontrar lá muitas barreiras. Parecia um vilarejo de índio mesmo. A primeira
Porque a senhora é leiga, mas ninguém nem precisa pessoa que eu vi foi um negrão, um pretão mesmo,
saber que a senhora é leiga, porque a senhora pra nós daqueles de amedrontar a gente, sabe. Eu falei: ‘Ai
é uma professora e pra eles vai ser também. Porque, ai ai, onde é que eu vim parar?’
se perguntar, pra essa turma de professoras que estão
[...]
aí, se elas querem enfrentar essa barreira, eu tenho
certeza que elas não vão enfrentar. E a senhora, por Depois que eu cheguei lá, levou 45 dias pra mim
ser uma guerreira, vai.’ Ainda ele falou pra mim: ‘A conseguir a matrícula das crianças, porque eles
senhora vai encontrar não só criança analfabeta, a se- corriam. Logo que eles me viam, eles corriam. Eu
nhora vai encontrar adultos, velhos, que nunca soube batia palmas numa casa assim, e apontava uma
o que é pegar num lápis. A bem da verdade, a senhora mulherzinha na janela, depois o homem apontava
vai encontrar bugres. A senhora tem coragem?’. Eu também e eu chamava: ‘O sr faz favor de vim aqui’,
precisava trabalhar, precisava ajudar o meu marido, e ele vinha, cabreirão comigo, e a mulher vinha atrás
eu tinha filhos pequenos, mas eu ia enfrentar, sim. [...] com aquele linguajar que se for pra imitar eu
Mas o sr. Sérgio disse: ‘Só que a senhora tem que nem sei, linguajar de bugre mesmo, bem caipirado.
se preparar. A senhora tem que ter roupa própria pra Eu dizia: ‘Eu vim aqui abrir uma escola, o senhor
entrar no sertão; a senhora tem que andar a cavalo; já ouviu falar em escola? É onde coloca as crianças
sozinha a senhora não pode ir, tem que ir acompa- pra aprender a ler e a escrever, pra ter educação.’
nhada de uma pessoa da cidade de Itaóca – porque Eles diziam: ‘Mas nesse bairro aqui? Aqui não tem
lá é um sertão e eu sei que nem estrada tem; e outra nem lugar pra professora ficar.’ ‘Eu fico em qualquer
coisa, a senhora vai ter que usar uma arma, um lugar, o cantinho que o senhor me der aí no rancho,
revólver, qualquer coisa. Mesmo que a senhora não um colchãozinho, uma esteira que o senhor me der
tenha coragem de dar tiro, a senhora tem que ir com eu fico, porque eu vim para trabalhar.’ Foram 45
esse revólver, porque a senhora vai enfrentar pessoas dias comendo o quê? Feijão com farinha e de vez
que a gente nunca viu na vida e a gente não sabe qual em quando uma abóbora. Eu falei ao chefe do povo
vai ser a reação deles quando a senhora chegar lá. pra ele ajeitar um lugar pra mim poder dar aulas pras
Então, eles vendo a senhora igual uma valentona, de crianças. Criança nada, que já era quase tudo adulto,
revólver na cintura, de bota, a senhora entra lá e vê com 15 ou 17 anos. Em 45 dias assim, eu consegui
o que a senhora consegue fazer’. Quinze dias depois matricular 42 crianças. (DIANA).
eu estava preparadinha para ir. (DIANA).
Depois dessa sua primeira estadia, Diana retor-
Um relato que se aproxima do estilo heróico nou a Itaóca, onde recolheu alguns caixotes de feira
dos relatos sobre as investidas bandeirantes sobre para fazer as carteiras com que equipou uma sala do
os sertões selvagens, em busca de bugres arredios. Centro Espírita, convertida em minúscula sala de
O método de contato, se não é a violência direta aula para os dias de chuva. Nos dias de sol as aulas
do apresamento, pretende ser o da coação pela continuavam sendo ministradas no terreiro. Assim
aparência, transformando em estratégia a mesma Diana seguiu por um ano, passando longos períodos
imagem que está na origem do temor que dá o no Cangume, sem condições de retornar à cidade
sentido heróico da jornada: uma representação do e se comunicando com a Secretaria de Educação
desconhecido. Na encomenda da jornada à jovem por meio de bilhetes enviados pelos fazendeiros
professora leiga não há como saber se a população vizinhos. “Depois de um ano, de uma turma de 42

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Função de alteridade: o Cangume, a Professora, a Escola e a Universidade

crianças, eu consegui fazer uma promissão de 17 década de 1980, uma de suas professoras, Tereza
crianças. Pra mim foi uma vitória” (DIANA). (pseudônimo), organizava campanhas de doação de
Ainda que o entrevistador estivesse interessado alimentos e agasalhos entre seus alunos para serem
em informações sobre o passado do Cangume, doados especificamente ao Cangume, sem incluir
Diana não podia furtar-se de fazer com que o re- outros possíveis bairros carentes. Sob o pretexto
lato fosse sobre o tanto de heróico que havia em de entregarem as doações, aquela professora che-
sua jornada de um ano ao sertão. Daí que a maior gou a realizar algumas visitas de alunos ao bairro,
parte de sua narrativa não seja sobre o que ela viu como parte de suas atividades didáticas. Segundo
e enfrentou, mas sobre as expectativas criadas em esses ex-alunos, o interesse da professora Tereza
torno do que ela veria e enfrentaria. Daí, também, passava pela gravidade da pobreza do bairro e pelo
que boa parte do relato se dê de forma indireta, pela fato de “todo mundo sempre dizer que ali era um
boca do senhor Sérgio, personagem que anuncia a quilombo”.
jornada, seus riscos e recompensas. Daí, finalmente, Por um feliz incidente, pude assistir a uma
que a narrativa sobre o Cangume tivesse que surgir fita de vídeo que trazia trechos de uma feira de
como uma narrativa no interior de outra narrativa, ciências do segundo grau da escola municipal de
na qual novamente a imagem do Cangume, mais Itaóca do ano de 1998, na qual um dos trabalhos
que o próprio Cangume, foi capaz de emocionar era dedicado justamente ao bairro do Cangume. No
suas detratoras (como Sherazade foi capaz de en- mural relativo ao tema, em meio a diversas fotos
cantar o tirano), justificando seu privilégio diante antigas, objetos artesanais coletados no bairro e
das jovens professoras que a recriminavam: antigas peças de ferro musealizadas de improviso,
era possível ler o seguinte texto:
E quando eu contei essa história pras professoras, eu
olhava pra cara delas assim e via algumas chorando. Pinheiro Alto. Bairro popularmente conhecido
Por isso tudo que passou na minha vida, isso tudo que como Cangume, situa-se a 8 km de Itaóca e é o mais
eu passei no Cangume, que deve até ter um histórico distante da cidade. Considerado como bairro sub-
meu lá, que quando eu não estiver mais aqui talvez desenvolvido, é habitado por pessoas da raça negra
vão lembrar de mim, quem sabe alguém vai lembrar que há anos refugiaram-se para aquela localidade,
de mim, do tempo que eu estava lá no Cangume e formando, assim, um quilombo.
foi o maior sofrimento da minha vida. (DIANA).
Há entre aquela primeira narrativa da professo-
Infelizmente, porém, não há memória clara da ra Diana e essas caracterizações posteriores uma
professora Diana entre os moradores do Cangume significativa passagem do épico ao filantrópico, do
que têm idade para terem sido seus alunos. Ela é selvagem ao miserável e do bugre ao quilombola,
apenas um nome de uma longa lista de professores de uma forma em que o desprezo se converte em
que chegavam e saíam do Cangume a cada ano. curiosidade, mas sem que tal curiosidade se des-
Antes de seu nome há outros, até mais importantes, vincule de uma modalidade de primitivismo. Tal
como os dos primeiros professores voluntários que passagem e variação revela também como essa
ministraram aulas para os adultos, vinculados ao função de alteridade é prenhe de ambiguidades: o
Centro Espírita. Depois do seu nome também há Cangume passa a ser objeto de práticas simbólicas
outros mais relevantes, como o de um ex-professor que se distribuem pelos planos político, religioso,
que em 2003 ocupava uma secretaria municipal tão econômico e cultural.
estratégica para o grupo quanto o grupo o é para ela. Os moradores do Cangume lembram que em
meados da década de 1980 uma senhora de Itape-
3. tininga passou a visitar o bairro, recorrendo aos
serviços do seu centro espírita e fazendo pequenas
A escola municipal de Itaóca tem uma longa, doações aos seus moradores. Em determinado
ainda que fragmentada, história de interesse pelo momento esta senhora se engajou na organização
bairro do Cangume. Depoimentos de alguns ex- de uma grande doação de alimentos e roupas para
-alunos apontam que pelo menos desde o final da a comunidade, momento que continua vívido na

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José Maurício Arruti

memória dos moradores, justamente por explicitar os “faiscadores”, os “índios” e, finalmente, os


a relação entre caridade e política. Essa senhora “negros”. Sobre esses últimos afirma:
teria pedido diretamente ao senhor Francisco e dona As fugas aos poucos desarvoraram os senhores e o
Jandira, que sempre a hospedavam (assim como me garimpo. Espalhados se escondem os negros pelo
hospedaram), que preparassem a comunidade para mais denso da mata, e apesar disso não se tem notícia
a chegada de um caminhão de doações. Como era de refúgios fortificados, mas a dispersão favoreceu
época de eleições municipais, ela insistiu muito formarem sítios como os do Cangume, do Calaboço,
para que eles não permitissem que, no dia mar- Sumidor, e mesmo do Quilombo entre a vila e Pi-
cado para a chegada do caminhão, se organizasse nheiros, não se conhecendo deste último a verdadeira
qualquer tipo comício ou manifestação política origem; senão também por suposições, nem mesmo
no bairro. Nas palavras de Francisco e Jandira, sobre a existência de líder revolucionário mas sim de
alguns apegados às crendices e ao misticismo próprio
ela não queria que a caridade se misturasse com
dos seus ancestrais. (MANCEBO, 2001, p. 21).
a política. Apesar disso, a notícia sobre a doação
se espalhou e, no dia previsto, o Cangume estava Mais adiante, o autor arrisca uma hipótese his-
repleto de políticos e cabos-eleitorais, sem que eles tórica sobre a origem do Cangume:
pudessem fazer nada com relação a isso. A confusão A comunidade negra rural que prevaleceu é a do Can-
foi grande, com os cabos-eleitorais se interpondo gume, situada nas imediações de Itaóca. A suposta
entre o caminhão e os moradores e, à revelia da relação entre as fugas e a sua existência firma-se pela
autora da caridade, organizando a distribuição das dedução de fatos que se ligam entre si, que sugerem.
roupas e alimentos. Segundo Francisco e Jandira, Supostamente, relaciona-se pela dedução de fatos
essa senhora teria ficado tão decepcionada que afins e às fugas do garimpo. Não Há documento que
nunca mais retornou ao bairro.5 comprove, porém tudo é possível diante de certas
evidências. Primeiro, o acesso quase impraticável ao
lugar, na ocasião, o que pode sugerir esconderijos,
4.
levando em conta o difícil acesso a morro de altitude
Como vimos, o interesse da professora Tereza, elevada. Segundo, e mais interessante, o que se pode
que em finais dos anos 1980 organizava visitas chamar de posto avançado de vigia: Antes da vila de
pedagógico-humanitárias ao Cangume, passava Cangume existe o sítio denominado Henrique, nome
não só pela gravidade de sua pobreza, mas também cuja história, nenhum morador consegue atualmente
pelo fato de “todo mundo sempre dizer que ali era explicar. Ora, folhando-se a história, depara-se com
relatos sobre fortalezas de quilombos vigiadas por
um quilombo”. Isso nos leva ao tema da produção
milícias negras, as quais se chamavam Henriques,
do consenso em torno da origem quilombola do
uma espécie de guarda real, em homenagem ao herói
bairro, que em fins da década de 1990 parecia estar
que em 1648 comandou a luta pela restauração de
perfeitamente estabelecido na região. Pernambuco, o negro Henrique Dias. Um quilombo
Se recorrermos ao trabalho de um conhecido com vigias permanentes, esta teria sido a origem do
historiador autodidata local sobre a história de Cangume. (MANCEBO, 2001, p. 167).
Apiaí (MANCEBO, 2001), veremos que o autor,
depois de fazer referência ao papel desempenhado O interesse no trabalho de Mancebo (2001)
nessa fundação pela mineração aurífera, fala sobre está no fato dele pautar-se largamente na coleta e
os “tipos humanos” que contribuíram para a for- transcrição de fragmentos da memória da elite local
mação daquela população, citando sucessivamente e de personagens populares conhecidos. É com base
nisso que ele se permite afirmar, mesmo que sem
5 Outros exemplos confirmam a importância e frequência de tais apoio documental, uma relação entre os povoados
visitas de caridade. Quase todos os finais de ano um grupo de funcio-
nários de uma grande empresa mineradora instalada no município
de negros citados (entre eles o Cangume) e as
vizinho visita o Cangume para entregar doações de natal. Por outro fugas de escravos que “desarvoraram os senhores
lado, a rede de contatos aberta com as migrações de cangumeiros e o garimpo” e povoaram as matas em torno da
para o município de Tatuí abriu novos fluxos de caridade. Um casal
conhecido dessa rede passou vários anos visitando o bairro, trazendo vila. Essa é uma dedução que parece lógica para a
“um caminhão” de cestas básicas para todos os moradores. sociedade local por vários motivos, todos indiciais.

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Função de alteridade: o Cangume, a Professora, a Escola e a Universidade

Primeiro pelo contraste de cor entre os cangumeiros cente de quilombos, ao qual o Cangume frustrava.
e os moradores dos bairros vizinhos. Segundo em Faremos uma referência muito rápida a elas, por
razão do desconhecimento sobre a origem precisa apontarem para uma espécie de senso comum aca-
do bairro, também em contraste com os bairros dêmico criado em torno da temática.
vizinhos, todos formados por famílias paulistas A primeira delas era a falta de “uma trama
tradicionais na região, algumas vindas de Portugal, mítica que desse condições dela estruturar um
e uma grande parcela de migradas de Minas Gerais território comum a partir de um parente comum,
e Paraná. Terceiro em razão do “isolamento” (per- ou seja, um mesmo ‘pai fundador’ que edificasse
manentemente reificado) que marca a comunidade. uma solidariedade e uma identidade coletivas”.
E, finalmente, pelo partilhamento de um senso (FARIA et al, 1998, p. 5).A segunda falta era rela-
comum histórico que reconhece a prática da fuga tiva às “práticas de cura, de prevenção às doenças
de escravos das minas de Morro do Ouro para as e as de cuidar de partos como poderia se acreditar,
matas do antigo município de Apiaí. posto que estamos diante de uma comunidade afro-
-brasileira remanescente de quilombo estabelecida
5. longe da cidade de Itaóca” (FARIA et al, 1998, p.
8). Finalmente, talvez a mais importante falta se
A experiência escolar levou um dos ex-alunos manifestava no “silêncio em relação aos supostos
da escola municipal de Itaóca, sensibilizado pelas ‘resíduos culturais’ da África. Eles não lembram
visitas promovidas pela professora Tereza, a propor nada, ou melhor, desconhecem os assuntos vincu-
a primeira pesquisa universitária que teve especi- lados a esse ‘continente pai’”, assim como “não
ficamente o Cangume como objeto de interesse. têm em sua origem comunitária e, mesmo mítica,
O sucinto relatório final da pesquisa desenvolvida qualquer vínculo com a escravidão, posto que nas-
por um grupo de alunos de graduação em ciências ceram livres” (FARIA et al, 1998, p. 8-9). Tais faltas
sociais da Unesp, intitulado Cangume: raízes e colocariam em risco, segundo os jovens autores, a
história: um estudo de uma comunidade negra caracterização do Cangume como remanescente
rural no Alto Vale do Ribeira, 1997–1998 (FARIA de quilombo.
et al, 1998),6 destaca algumas das características do Aqui valem dois breves apontamentos sobre
bairro, recorrentes nos poucos textos disponíveis: como essa situação específica é boa para pensar
a apropriação coletiva da terra, ainda que com a a relação complexa que os trabalhos acadêmicos
produção individualizada; a agricultura rudimentar (mesmo uma modesta pesquisa de graduação)
e de subsistência, que marca uma pobreza gene- mantêm com a realidade.
ralizada; o predomínio da endogamia, ao se fazer Primeiro, um apontamento sobre como as
referência ao privilégio dado ao casamento entre teorias (ou, mais simplesmente, os pressupostos)
primos; o passado de invasão das terras da comu- podem resistir às evidências. Por meio das faltas
nidade por fazendeiros vizinhos; e a conversão de relacionadas acima, os jovens estudantes reprodu-
todo o grupo à religião kardecista desde os anos ziam, com relação ao Cangume, o mesmo disgnós-
de 1920. tico que Renato Queiroz, quinze anos antes, havia
O maior destaque do relatório, porém, era uma produzido com relação ao bairro de Ivaporunduva:
série de faltas que caracterizariam o grupo e, de “não havia vestígios aparentes de traços de cultura
certa forma, poderiam descaracterizá-lo como africana [...] a não ser aqueles que, juntamente com
remanescentes de quilombos. Essas faltas tinham os de origem indígena e portuguesa [...] integram
por referência um determinado modelo de como o que se convencionou chamar de ‘cultura caipira’
deveria ser e se organizar uma comunidade negra [...] Os negros eram, assim, caipiras”7 (QUEIROZ,
rural e, em especial, uma comunidade remanes- 1983, p. 24). No ano de 1998, entretanto, Ivapo-
runduva já era uma das comunidades quilombolas
6 Agradeço a Vidal Dias da Mota Júnior a indicação desse trabalho,
desenvolvido pelos bolsistas de graduação da Faculdade de Ci- mais reconhecidas e mobilizadas do Vale do Ribei-
ências Sociais da Unesp sob orientação do professor Dagoberto
José Fonseca. 7 E não “africanos” – poderíamos completar a frase.

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José Maurício Arruti

ra, tendo um importante papel na mobilização das envolvidos naquele projeto.8 O motivo dessa cer-
demais. A relação pressuposta entre traços culturais teza está no retorno favorável que a política social
e identificação como comunidade quilombola havia do município tem encontrado ao enfatizar as ações
sido transformada radicalmente entre 1983 e 1998. no Cangume, classificando-o, para todos os efeitos,
Segundo, um apontamento sobre como as como remanescente de quilombo.
descrições do mundo interferem sobre o próprio Um jovem ex-professor do bairro, que se desta-
mundo, embaralhando a distinção cartesiana entre cou na promoção de campanhas de caridade dirigidas
sujeiro e objeto. Conforme a avaliação de uma das ao grupo, acabou por ser convidado a integrar o
alunas envolvidas na pesquisa da Unesp, o seu tra- governo municipal, como secretário de Ação Social.
balho de graduação pode ter tido influência sobre a Com isso, o Cangume passou a se destacar frente às
visibilidade regional do Cangume e, por isso, algu- políticas de assistência social do município, ainda
ma interferência no curso do seu reconhecimento que, diante da precariedade das condições de vida
como remanescente de quilombos, apesar do que o do bairro e da escassez de recursos de Itaóca, isso
próprio relatório dizia, em razão do citado diagnós- não tenha significado uma alteração substantiva nas
tico das faltas. Isto porque, segundo esta estudante, condições de vida dos cangumeiros.
é bem provável que tenha sido a publicação no jor- Segundo o depoimento do secretário de educa-
nal “Apiaí Diz”, em 2001, de uma matéria baseada ção do município,9 até 1997 a comunidade estava
naquela pesquisa, que teria alertado as lideranças praticamente isolada e foi a partir deste ano que a
quilombolas da região, reunidas naquele mesmo municipalidade construiu a escola de alvenaria da
momento em um encontro quilombola em Regis- comunidade e estabeleceu um transporte público
tro, para a existência do Cangume. Logo depois a diário ligando Itaóca ao Cangume, para atender os
comunidade seria procurada para se integrar à rede alunos que estivessem entrando no segundo ciclo
de comunidades do Vale do Ribeira que buscam a do ensino fundamental, mas que passa a servir,
regularização de suas posses por meio da aplicação finalmente, a toda a comunidade.
do artigo 68 (ADCT). Finalmente, em 2000, o projeto de construção de
Assim, podemos tirar desse simples exemplo casas populares da prefeitura, intitulado “Habitação
três desdobramentos importantes do tal embara- para a Comunidade remanescente do quilombo do
lhamento entre pressupostos e evidências, sujeitos Cangume” concorreu e foi premiado no concurso
e objetos: as classificações acadêmicas (ou cientí- “Melhores Práticas e Programas de Liderança
ficas) não estão fora do mundo, mas fazem parte Local” da Conferência das Nações Unidas para As-
dele, sendo portanto históricas; toda produção sentamentos Humanos.10 No texto de apresentação
intelectual é política, por mais que não se pense do projeto a prefeitura informava que
assim, na medida em que ela interfere sobre o O Bairro do Cangume, localizado no município de
mundo descrito; finalmente, toda descrição que Itaoca, abriga a comunidade negra, oriunda de um
insiste em uma caracterização estática do mundo, quilombo do século 18 e que ainda preserva suas ra-
como aquelas assentadas no culturalismo, erra ao 8 Em uma das rápidas conversas que tive com funcionários da
não reconhecer a capacidade dos agentes refletirem, Prefeitura, um desses secretários surpreendeu-se quando eu con-
interpretarem e agirem sobre sua própria cultura. tei os objetivos do trabalho que estava realizando, destinado ao
reconhecimento oficial do grupo como comunidade remanescente
de quilombos. Ao contrário disso, ele me afirmava com absoluta
segurança que o grupo já era oficialmente reconhecido e chegou
6. a procurar uma cópia do Diário Oficial que pensava ter guardado
com o ato de reconhecimento do governador Mário Covas, sem
Apesar do receio dos jovens estudantes, o senso que pudesse encontrá-la.
comum em torno do caráter quilombola do Can- 9 Depoimento oral concedido em 2003.
10 O Programa das Nações Unidas, em parceria com a Caixa Eco-
gume tornou-se tão sólido que penetrou na própria nômica Federal e com o Instituto Brasileiro de Administração
administração pública, não apenas como um projeto Municipal, concedeu no dia 23.02.2000 o prêmio “Caixa Me-
de reconhecimento oficial do grupo, mas como a lhores Práticas” a dez programas habitacionais, de infraestrutura
e geração de emprego e renda, selecionados entre 114 de todo o
certeza de que o grupo já teria sido oficialmente país, representantes de 18 estados, com envolvimento direto de
reconhecido, segundo outros secretários, menos 42 Escritórios de Negócios da Caixa.

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Função de alteridade: o Cangume, a Professora, a Escola e a Universidade

ízes, costumes e religiosidade. [...] Habitavam casas que surgem as primeiras menções ao Cangume na
de pau-a-pique e barro, cobertas de sapé, a maioria imprensa, visitado pela primeira vez por interesses
sem unidades sanitárias, sem saneamento básico, acadêmicos em 1987 (CARENO, 1997, p. 13-14).
água tratada ou energia elétrica. Apresentavam alto Tudo isso começou a jogar uma nova luz so-
índice de mortalidade infantil (80 para cada 1.000
bre aquele bairro rural de negros, fazendo com
nascidos vivos), analfabetismo e pobreza extrema,
vivendo inteiramente isolados da cidade. (CAIXA que até mesmo as visitas de caridade ganhassem
ECONÔMICA FEDERAL, 2001). uma nova dimensão. Não é casual, portanto, que
tenha sido em 1993, ano da emancipação do mu-
Assim, o interesse escolar, o senso comum nicípio de Itaóca, que o interesse pelo Cangume
histórico local, as práticas caritativas e a política tenha ultrapassado o circuito regional para ganhar
fechavam um circuito em torno do bairro do Cangu- espaço na imprensa estadual: uma reportagem,
me, fixando o seu lugar de comunidade quilombola que ocupou duas páginas inteiras da edição de
e orientando as políticas públicas, mesmo antes do domingo (07.02.1993) do Correio Popular de
seu reconhecimento oficial.
Campinas (VILA..., 1993) e que trazia o cabeçalho
geral “Vila de Negros”. Nela eram estampados
7. dois títulos principais: “Cangume vive rotina do
século passado” e “TV a bateria liga ‘aldeia’ ao
Para entender a a formação desse circuito fecha-
mundo moderno”. A grande ênfase da reportagem
do em torno do Cangume, entretanto, é importante
estava no isolamento do bairro e nas suas formas
mudar a escala de nossa observação e registrar que
arcaicas. Em um dos seus destaques (olho), a re-
a década de 1980 viveu a “descoberta” política
portagem informava: “Isolados no sul do Estado,
e científica das comunidades ou bairros negros
rurais do interior paulista.11 Nas palavras de João 122 pessoas se sustentam na roça e preservam cos-
Batista Borges Pereira, professor e pesquisador da tumes”, enquanto outro adiantava uma explicação:
USP diretamente envolvido nessas descobertas, “Os fundadores da vila eram escravos fugitivos.
elas alimentavam a “efervescência intelectual Por isso, falavam pouco sobre suas origens aos
ligada à construção de toda uma ideologia de auto- descendentes”.
-afirmação racial nucleada na idéia de quilombo” A matéria descreve os hábitos alimentares de
(PEREIRA, 1983). seus moradores, seu nível de renda, o artesanato
Depois da “descoberta” do Cafundó em 1978, produzido, os casamentos entre primos e algumas
foi organizada uma primeira expedição ao Vale do das expressões que, citando informações da profes-
Ribeira, especificamente à região de Iporanga, em sora Mary F. Careno, apontariam para africanismos
busca de novas comunidades que “conservassem de linguagem. Entretanto a ênfase que dominava
também vestígios de línguas ‘exóticas’” (VOGT; e justificava a própria reportagem estava no isola-
FRY, 1996, p. 211). Apesar da frustração dessa mento do bairro. Ele era medido pela distância em
primeira iniciativa, seguem-se outras que dariam quilômetros de estradas de asfalto e de terra entre
origem às primeiras pesquisas linguísticas sobre Campinas e Itaóca (337 km) e depois entre Itaóca
as comunidades do Vale do Ribeira. Tais expe- e Cangume (11 km), mas também pela ignorância
dições novamente são orientadas por indicações dos seus moradores com relação aos temas ou ex-
de professoras das escolas municipais da região e pressões dominantes na mídia daquele momento,
alimentam o interesse da imprensa pelo tema, assim pelo medo que alguns de seus moradores teriam dos
como são incrementadas por ele.12 É nesse contexto estranhos ou mesmo por uma espécie de suspensão
do calendário – “o tempo parado há mais de um
11 Vogt e Fry (1996), ao reconstituírem o trajeto de sua pesquisa no
Cafundó (Salto do Pirapora – SP) nos oferecem um vivo retrato
século no Cangume” – cuja referência fundamental
dessa “descoberta”, assim como uma fina reflexão sobre suas seria o ciclo agrícola. Enfim, uma descrição que
implicações políticas e acadêmicas. faz com que o leitor se veja defrontado com uma
12 A importância da imprensa nessas “descobertas” acadêmicas
entre o fim da década de 1970 e ao longo da década de 1980 está realidade outra, distante no tempo e no espaço,
registrada em Vogt e Fry (1996) e Careno (1997). primitiva.

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Apesar da recorrência de imagens que fazem mesma raiz banto. Isso lhe permite reformular a
com que o texto da reportagem de 1993 se aproxime hipótese para propor que
tanto do relato da professora Diana sobre o bairro, Essa estrutura primeira, com abundância de termos
de trinta anos antes, ele surgia em um contexto africanos, ainda nos tempos atuais é encontrada em
muito distinto, que articulava sentidos opostos. A algumas localidades brasileiras, cujos habitantes
emancipação do município, economicamente inex- são essencialmente negros. Estudos revelam que
pressivo e carente de outros atrativos, deu, de uma essa língua é um remanescente do quimbundo e é
forma imprevista, nova visibilidade ao Cangume. falada somente em ocasiões especiais. Exemplos dela
foram descobertos em algumas comunidades rurais.
(CARENO, 1997, p. 64).
8.
É desse referencial que parte a pesquisa que
Essa visibilidade seria reforçada por uma pes- Margarida M. T. Petter (2001) iniciou no Cangu-
quisa que viria na esteira da descoberta dos bairros me, na qual procura “traços fonéticos específicos”
negros paulistas sob o ponto de vista linguistico. na fala dos mais velhos, que revelem a existência
Ainda que não tenha sido diretamente abordado na de “africanismos”. Segundo esta autora, entre as
análise de Mary F. Careno sobre a linguagem falada quatro formas de criação de “brasileirismos”, está
em comunidades negras rurais do Vale do Ribeira o contato com outras línguas e, por meio desses
(finalizada em 1992), o Cangume foi citado entre contatos, a constituição de linguagens de mediação,
aquelas comunidades nas quais se deveria investigar linguagens mestiças ou crioulas, que no Brasil são
a hipótese da existência de “resquícios de uma antiga conhecidas como “tupinismos” e “africanismos”.13
língua africana, utilizada pelos primeiros negros que A pesquisa de Petter (2001) aponta a existên-
habitaram a região”, com o objetivo “urgente [de] cia de diferenças com relação à coleta realizada
resgatar a cultura africana que ainda subjaz nessas por Careno nas outras comunidades estudadas no
localidades” (CARENO, 1997, p. 13-14). Vale do Ribeira. No Cangume, Petter encontrou
O ponto de partida da pesquisa era o quadro “africadas palatais” que ainda não haviam sido
atual de “profundas diferenças entre o português registradas na região e que aproximam o falar do
popular do Brasil e o português padrão”, no qual Cangume àquele registrado nas zonas caipiras do
são encontrados traços típicos de línguas crioulas. Mato Grosso, Cuiabá e litoral do Paraná, tais como
Sempre relacionado com uma história de contato “catchorro”, “petche” e “rantcho”.
linguístico entre diferentes povos, “o crioulo surge Petter (2001) aponta, porém, que tais ocorrên-
em comunidades bilíngües ou multilíngües e, quase cias de “africadas” só foram plenamente observadas
sempre em ilhas ou em regiões isoladas, critério na fala dos mais velhos, assumindo uma forma tran-
conhecido como insularidade” (CARENO, 1997, sitiva nos informantes adultos entre 40 e 60 anos e
p. 62). Assim, mais uma vez, o tema do isolamento desaparecendo entre os mais novos, o que aponta
retorna, caracterizando o Vale do Ribeira como a para uma rápida mudança linguística. Depois de
região ideal para o surgimento de um crioulo que todo o esforço da professora Diana, finalmente, a
teria por base uma língua geral corrente entre os África que ela não tinha condições de identificar
escravos – o quimbundo. Os resultados da pesqui- na língua daqueles negros bugres e que lhe parecia
sa, porém, não confirmaram essa hipótese. Careno pura falta de cultura se esvai com o tempo num
(1997, p. 64) admite que o que “permanece [na ritmo acelerado.
região é] a estrutura do falar caipira”, mas sugere 13 “Africanismo é o termo ou expressão de uso coloquial resultante
que a aparente baixa frequência de termos africanos do contato do português com uma língua africana, ocorrido na
seria explicada não pela desimportância dos afri- África, em Portugal ou no Brasil, sendo nesse caso parte integrante
dos brasileirismos” (PETTER, s/d). Mesmo que o português
canismos, mas por sua profundidade e extensão. europeu tenha, antes do descobrimento do Brasil, incorporado
O número de empréstimos lexicais do banto ao algumas palavras africanas – alerta Petter – a pouca informação
português falado no Brasil seria tão expressivo e a respeito dos itens lexicais introduzidos nesse português arcaico,
anterior ao tráfico de escravos para o Brasil, não permitem fazer
ele estaria tão integrado ao sistema linguístico que uma distinção precisa entre os africanismos introduzidos via
formaria derivados portugueses a partir de uma Portugal e aqueles vindos diretamente da África para o Brasil.

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Função de alteridade: o Cangume, a Professora, a Escola e a Universidade

Mesmo assim, o interesse da pesquisa linguís- com a sua filha, na qual a moça manifestava intenso
tica recente faz com que o Cangume surja entre as desconforto ao ler a matéria de jornal citada ante-
outras comunidades negras rurais do Vale do Ri- riormente, na qual o Cangume era descrito como
beira como local estratégico, dado seu insulamento, uma “vila de negros”. A indignação de sua filha,
para o objetivo de se resgatar a África que nos resta uma jovem que saiu do Cangume para estudar e
na língua, já que neste bairro nós encontraríamos trabalhar em Tatuí, conquistando um emprego fixo,
traços que já não são encontrados nas outras co- uma casa de alvenaria, uma linguagem “correta”,
munidades do Vale. Na medida em que cresce o enfim, livrando-se dos estigmas atribuídos aos can-
interesse sobre o bairro, baseado naqueles que eram gumeiros, parecia perfeitamente compreensível para
os seus sinais de estigma, torna-se irrestível voltar Jandira. Contudo também estava claro, no modo de
a citar a professora Diana quando fala desta outra Jandira relatar a situação, o anacronismo daquela
dimensão da alteridade do Cangume: indignação. Por morar em Tatuí, sua filha não podia
experimentar as mudanças decorrentes da conversão
Era bem ignorante assim, tudo. Inclusive tem até uma simbólica dos estigmas atribuídos ao bairro. Jandira
passagem muito engraçada. A palavra ‘já’, nenhum
conta, então, como ela mesma fez sua filha perceber
dos alunos conseguia falar. Quando eu pus na lousa
‘já, jé, ji, jô, ju’, era só ‘djá, djé, djó, dju’. Isso foi como aquele rótulo não só era verdadeiro, como
até terminar o ano. Eu não consegui arrancar nenhum tornara-se aceitável, na medida em que não era mais
‘já’ de nenhum deles. Nem do pai, nem da mãe. A uma acusação, mas uma forma de identificação que
palavra ‘já’ pra eles não saía, não sei. Por exemplo, passava a ter sua própria dignidade.
não era ‘pintei’, era ‘pintchei’. (DIANA) Um ano depois dessa conversa com Jandira, o
ITESP reconheceria oficialmente o Cangume como
A última ressignificação da alteridade do Can-
uma comunidade remanescente de quilombos, com
gume parece convertar finalmente um dos signos
o direito sobre um território de 724,6 hectares,
da sua suposta ignorância, que deveria ser elimina-
contra os 37 hectares que vinha ocupando desde a
da, em um marcador de “cultura” a ser registrado
década de 1960. Depois disso a luta da comunida-
e, talvez, preservado. Tema difícil que se impõe
de por seu território original ganhou fôlego e, em
às escolas dedicadas a pensar em uma educação
2010, a sua Associação conseguiu a reintegração
diferenciada para as comunidades quilombolas.
de posse de duas áreas vizinhas, permitindo que
as suas famílias passassem a dispor, efetivamente,
Considerações finais
de 166,9 hectares (INSTITUTO SOCIOAMBIEN-
As cenas e situações históricas descritas acima TAL, 2010). A comunidade continua fora da posse
permitem esboçar o processo de transformação da maior parte de seu território, mas os termos da
dos conteúdos e símbolos associados às fronteiras disputa mudaram bastante. Para ficarmos com um
étnicas do Cangume. Se a fronteira lhes foi imposta exemplo importante disso, em 2013 o Cangume foi
historicamente, por meio da imputação de conte- relacionado no Inventário Cultural de Quilombos
údos estigmatizantes, recentemente esta mesma do Vale do Ribeira, produzido pelo Instituto So-
fronteira consensual, mas ressignificada, justifica cioambiental, com base na metodologia do Inven-
o reconhecimento de seus direitos como uma tário Nacional de Referências Culturais do Iphan
“comunidade remanescente de quilombos”. Nos (ANDRADE; TATTO, 2013). Ao lado de outras
últimos anos, sua língua, seu suposto isolamento e 15 comunidades, o Cangume tem parte de suas
a ambiguidade das relações mantidas com base na celebrações, formas de expressão, oficios e modos
caridade passaram a ser positivadas, convertendo a de fazer, lugares e edificações reconhecidas como
sua função de alteridade, que deixa de servir apenas patrimônio cultural, como parte de um processo
à lógica classificatória dos brancos de Itaóca para mais largo de ressignificação da alteridade dessas
servir também aos próprio cangumeiros. comunidades na região e no país.
Esse processo e suas clivagens são ilustrados Neste texto descrevemos este processo de
por um relato que me foi feito por Jandira. Em um ressignificação  desde sua dinâmica local, inves-
tom maternal, ela me contou uma conversa mantida tigando o papel nela desempenhado por agentes,

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José Maurício Arruti

saberes e práticas escolares. Não exploramos tanto abrindo um grande campo de indagações. Como
a perspectiva dos cangumeiros quanto a sua fun- as escolas, seus agentes e suas práticas devem (re)
ção de alteridade para a sociedade do seu entorno.  pensar as fronteiras simbólicas que a sua simples
Pensado como um espaço dedicado à transmissão presença ajuda a construir? Como o reconheci-
da Cultura, à passagem do iletrado ao letrado, do mento da legitimidade dos modos de ser dessas
mundo infantil (primitivo) ao adulto (civilizado), comunidades, que acompanha o reconhecimento
a escola atuou na reelaboração da função de al- da legitimidade dos seus territórios, incide sobre
teridade do Cangume, mas não pode ser pensada as hierarquias de saber e de cultura que a escola
como imune a esta mesma reelaboração. Todo ajuda a naturalizar, mais do que a discutir? Como
este processo reverbera de forma crítica sobre a a escola está se preparando para enfrentar tais
própria imagem da escola no seu sentido clássico, perguntas cada dia mais inevitáveis?

REFERÊNCIAS
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Recebido em: 01/04/2017


Aprovado em: 02/06/2017

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 21-33, maio/ago. 2017 33
Suely Noronha de Oliveira

MOTIVAÇÕES INICIAIS PARA ELABORAÇÃO


DE DIRETRIZES DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
QUILOMBOLA NA BAHIA

Suely Noronha de Oliveira (PUC-RIO)∗

RESUMO
Para os quilombolas, a promulgação da Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o
ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas instituições de ensino foi
uma conquista, porém não o suficiente para atender demandas escolares e educativas
deste grupo. Essa ausência motivou as organizações quilombolas a inserir a educação
escolar quilombola como uma demanda no rol de debates sobre políticas públicas
de diversidade em educação no Brasil. Este artigo apresenta uma pesquisa sobre o
processo de construção de Diretrizes Curriculares para a Educação Escolar Quilombola
no estado da Bahia e sua relação com a política nacional. Privilegia-se aqui uma análise
do processo local de construção da demanda no estado, focalizando as motivações
iniciais e o contexto organizativo-político. A pesquisa utilizou a metodologia
qualitativa, com observação participante, trabalho de campo de caráter etnográfico
(Salvador-BA), análises de fontes escritas (documentos oficiais) e orais (conversações
informais, participação em audiências públicas e entrevistas semiestruturadas com
líderes quilombolas, gestores, consultores e investigadores). Como resultado foi
produzida uma narrativa temporal analítica das motivações iniciais para a construção
de Diretrizes Curriculares para a Educação Escolar Quilombola no estado da Bahia,
identificando as continuidades e descontinuidades no seu desenvolvimento.
Palavras-chave: Educação escolar quilombola. Quilombos. Políticas de diversidade.
Políticas educacionais.

ABSTRACT
INITIAL MOTIVATIONS FOR THE ELABORATION OF GUIDELINES FOR
QUILOMBOLA SCHOOL EDUCATION IN BAHIA
For the quilombolas, the enactment of Law 10.639/2003, which obliges the teaching
of Afro-Brazilian and African history and culture in educational institutions, was
considered by them a conquest, but it was not enough to meet school demands and
educational concerns of this group. This situation motivated quilombola organizations
to introduce quilombola school education as a demand in the debate agenda on public
policies of diversity in Brazilian education. This article presents an investigation
about the construction process of the Curriculum Guidelines for Quilombola School
Education in the state of Bahia and its relationship with national politics. An analysis
of the local process of construction of the demand in the state is realized, focusing the
initial motivations and the organizational-political context. The research used qualitative

Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Membro do grupo Ciudadanía,
Educación y Diversidad de la Faculdad de Educación de la Pontificia Universidad Católica del Perú (PUC/Perú). E-mail:
[email protected]

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Motivações iniciais para elaboração de diretrizes da Educação Escolar Quilombola na Bahia

methodology, with participant observation, fieldwork of ethnographic character


(Salvador-BA), analysis of written sources (official documents) and oral sources
(informal conversations, participation in public hearings and semi-structured interviews
with quilombola leaders, consultants and researchers). The result of this investigation is a
temporal analytical narrative of the initial motivations for the construction of Curriculum
Guidelines for Quilombola School Education in the state of Bahia. This article achieve
to identify the continuities and discontinuities in its development.
Keywords: School education quilombola. Quilombos. Diversity policies. Educational
policies.

RESUMEN
MOTIVACIONES INICIALES PARA ELABORACIÓN DE DIRECTRICES DA
EDUCACIÓN ESCOLAR QUILOMBOLA EN BAHIA
Para los quilombolas, la promulgación de la Ley 10.639/2003 que hace obligatorio
la enseñanza de historia y de la cultura afro-brasileña y africana en instituciones
educativas, fue considerada por ellos una conquista, sin embargo no fue suficiente
para atender demandas escolares y educativas de este grupo. Esa situación motivó a
las organizaciones quilombolas a introducir la educación escolar quilombola como una
demanda en la agenda de debate sobre políticas públicas de diversidad en educación en
el Brasil. Este artículo presenta una investigación sobre el proceso de construcción de
Directrices Curriculares para la Educación Escolar Quilombola en el estado de Bahia
y su relación con la política nacional. Aquí se realiza un análisis del proceso local de
construcción de la demanda en el estado, enfocando las motivaciones iniciales y el
contexto organizativo-político. La investigación utilizó la metodología cualitativa,
con observación participante, trabajo de campo de carácter etnográfico (Salvador-
BA), análisis de fuentes escritas (documentos oficiales) y orales (conversaciones
informales, participación en audiencias públicas, entrevistas semiestructuradas con
quilombolas, gestores, consultores e investigadores). Como resultado fue producida
una narrativa temporal analítica de motivaciones iniciales para construcción de
Directrices Curriculares para la Educación Escolar Quilombola en Bahia, identificando
las continuidades y discontinuidades en su desarrollo.
Palabras clave: Educación escolar quilombola. Quilombos. Políticas de diversidad.
Políticas educacionales.

Introdução e contexto
A temática do estudo é a questão da educação quilombos2 – e com ele, uma série de demandas
escolar quilombola,1 mais precisamente a adoção 2 Não existe um conceito único sobre quilombos, permanece ainda
desta categoria na elaboração de políticas públicas. hoje como um conceito em disputa. Para este trabalho tomamos
É nos anos 2000, por sua vez, que o debate sobre como orientadores os conceitos formulados pela Associação Bra-
sileira de Antropologia (ABA): “Consideram-se remanescentes
1 O conceito de educação escolar quilombola compreende escolas de quilombo grupos que desenvolveram práticas de resistência na
que atendem estudantes oriundos de territórios quilombolas e/ou manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos
escolas que se encontram localizadas em território quilombola, “[...] num determinado lugar, cuja identidade se define por uma referência
é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em suas terras e histórica comum, construída a partir de vivências e valores partilha-
cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade dos” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 1994
étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu apud ARRUTI, 2006, p. 92). E o conceito adotado pelo Decreto nº
quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação,
nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
brasileira”. (BRASIL, 2013, p. 42). ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos:

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Suely Noronha de Oliveira

por direitos sociais, dentre eles o direito por uma estados, estas não supriram a demanda diante da
educação escolar específica – ganha espaço na cena diversidade encontrada).
pública, político-governamental e acadêmica. Ou É importante destacar que, antes da implemen-
seja, a educação escolar quilombola tornou-se pauta tação de políticas governamentais e de legislação
de políticas governamentais e passou a configurar, específica, já havia algumas ações em comuni-
junto à educação indígena e à educação do campo, dades quilombolas direcionadas a uma educação
o cenário de reconhecimento e disputa por políticas escolar diferenciada, a exemplo do Projeto Vida de
de diversidade na educação. Negro (1988 a 2003) do Centro de Cultura Negra
As políticas de diversidade conquistaram visi- no Maranhão,3 da Escola Maria Felipa (2001) do
bilidade dentro do espaço político-governamental quilombo Mangal/Barro Vermelho na Bahia,4 do
e, com base nesses princípios, foram sancionadas processo de construção do Projeto Político Pedagó-
algumas leis, dentre elas a Lei nº 10.639/2003 gico da escola do quilombo Conceição das Criou-
(BRASIL, 2003a), que torna obrigatório o ensino las, em Pernambuco (2002),5 a proposta de escola
da história e da cultura afro-brasileira e africana quilombola sistematizada no Projeto Vivência de
em todas as escolas do país. Estas iniciativas, junto Saberes, do quilombo Campinho da Independência,
a outras ações e circunstâncias, possibilitaram a Rio de Janeiro (2005).6 Esta, segundo assessores da
ampliação do debate público sobre educação em ONG que apoiou o processo, afirmou que a comu-
comunidades quilombolas. nidade discute a função social da escola desde os
A aprovação das Diretrizes Curriculares Na- anos de 1990, junto ao processo de reivindicação
cionais para a Educação Escolar Quilombola pelo território quilombola. Tanto na Bahia quanto
(BRASIL, 2012) foi realizada em junho de 2012 em Pernambuco, as lideranças quilombolas en-
pela Câmara de Educação Básica do Conselho Na- xergaram a escola da comunidade como parceira
cional de Educação e homologada pelo ministro da necessária ao projeto coletivo da comunidade. Estas
Educação em novembro do mesmo ano. No texto desenvolveram, em parcerias com universidades e
das diretrizes encontra-se a organização necessária ONGs, metodologias de formação de professores
para implementação da política pelos respectivos quilombolas, assim como identificaram elementos
entes da federação (governo federal, estados e mu- para se pensar uma educação escolar diferenciada.
nicípios): concepção, princípios, objetivos, etapas Anterior à discussão e proposição nacional
e modalidades, projeto político pedagógico, currí-
das diretrizes curriculares para Educação Escolar
culo, gestão, avaliação, formação de professores,
Quilombola, aprovadas em 2012 pelo Conselho
dentre outros.
Nacional de Educação, havia estados brasileiros
Essas Diretrizes foram construídas a partir de
discutindo políticas públicas específicas para esta
consultas públicas oficiais nos estados do Ma-
modalidade de educação, a exemplo da Secretaria
ranhão, da Bahia e em Brasília, realizadas pelo
Estadual de Educação do Estado da Bahia, através
Conselho Nacional de Educação (CNE)/Ministério
da Coordenação de Educação para as Relações
da Educação (MEC), assim como de consultas pú-
Étnico-Raciais e Diversidade, criada em 2008.
blicas em outros estados e municípios, a partir de
A Bahia foi o terceiro estado a propor o debate
iniciativas locais. As consultas públicas realizadas
sobre a construção de diretrizes curriculares para
nos estados, reivindicadas pelas organizações qui-
lombolas e instituições parceiras, tiveram a missão esta modalidade de educação. O Mato Grosso, em
de estruturar uma proposta de política educacional 2007, iniciou tal processo, mas formulou apenas
com a diversidade local característica das comuni- orientações curriculares7. O estado do Paraná, atra-
dades quilombolas existentes no país (embora as vés da Secretaria de Estado da Educação, aprovou
audiências tenham obtido uma participação con- 3 Ver Almeida (2002) e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos,
siderável de lideranças quilombolas de diferentes Centro de Cultura Negra do Maranhão e Projeto Vida de Negro
(2005).
“considera-se os grupos étnico-raciais definidos por autoatribuição, 4 Ver Oliveira (2006).
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais 5 Ver Silva (2012).
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada 6 Ver Arruti, Maroun e Carvalho (2011).
com a resistência à opressão histórica” (BRASIL, 2003b). 7 Ver Mato Grosso (2010).

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Motivações iniciais para elaboração de diretrizes da Educação Escolar Quilombola na Bahia

em 2010 uma Proposta Pedagógica para a Educação qualitativa, com observação participante, trabalho
Escolar Quilombola no estado: Escola Quilombola de campo de caráter etnográfico, análises de fontes
e Etnodesenvolvimento.8 Em nível municipal, escritas (documentos oficiais) e orais (conversações
temos a experiência de Santarém, no Estado do informais, participação em audiências públicas or-
Pará, que aprovou, em 2009, uma Resolução,9 na ganizadas pelo governo e entrevistas semiestrutura-
qual assegura em Lei a obrigatoriedade de o poder das com líderes quilombolas, gestores, consultores
público municipal efetivar políticas de educação e investigadores no campo de estudo).
para as comunidades quilombolas do município.
Ou seja, esses quatro estados foram os primeiros O processo de construção da política:
a discutir e criar condições político-pedagógicas o estado da Bahia
legitimando a importância das políticas de diversi-
dade na educação para comunidades quilombolas. A Bahia foi o terceiro estado brasileiro a debater
Tais iniciativas produziram documentos pedagógi- e propor a elaboração de diretrizes curriculares
cos orientadores, assim como institucionalizaram estaduais para a educação escolar quilombola. O
políticas educacionais que, posteriormente, contri- início do debate e da proposição de política interse-
buíram para a elaboração de uma política nacional torial e educacional para comunidades quilombolas
específica de educação escolar para as comunidades no Estado deram-se, legalmente, através da Secre-
quilombolas. taria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi),
No caso das experiências quilombolas, o debate em 2007, e da Coordenação de Educação para as
sobre a institucionalização de políticas de educação Relações Étnico-Raciais e Diversidade, em 2008. É
escolar específica antecedeu, em parte, um acúmulo importante destacar que a Sepromi era responsável
de experiências dessas comunidades no âmbito da por articular diferentes secretariais de Estado e
escola. O estudo sobre quilombos enquanto grupo propor políticas para as comunidades quilombolas,
específico dotado de particularidade é recente, o através da elaboração participativa dos planos de
que justifica o pouco acúmulo formal de tais expe- desenvolvimento.
riências com a escolarização. Um pouco diferente
do processo da educação indígena e da educação Motivações iniciais: política para
do campo, que a partir de processos de escolari- educação escolar quilombola no estado
zação já institucionalizados na prática, no âmbito da Bahia
da educação regular, reivindicaram uma política
de reconhecimento e validação das experiências Analisando relatórios das audiências públicas
existentes, assim como de suas metodologias. estaduais realizadas na Bahia, assim como as
Os procedimentos metodológicos adotados nes- transcrições das entrevistas realizadas, foi pos-
te trabalho atendem às exigências de uma pesquisa sível concluir que as motivações iniciais para a
acadêmica, desenvolvida entre os anos de 2011 e construção de uma proposta de política estadual
2013, na interface da antropologia com a educa- de educação para as comunidades quilombolas no
ção.10 A pesquisa foi orientada por metodologia estado pareceram menos uma estratégia e intenção
originária da Secretaria Estadual de Educação do
8 Ver Paraná (2010).
9 Resolução nº 07/2009 do Conselho Municipal de Educação de Estado da Bahia (SEC/BA), assim como da equipe
Santarém, Pará, que apresenta diretrizes para o funcionamento das inicialmente constituída para compor uma coorde-
escolas quilombolas e dá outras providências. Ver Melo (2013).
10 Os dados da pesquisa começaram a ser coletados desde o ano de
nação específica na SEC para tratar das questões
2010, na condição de participante-pesquisadora de um grupo de étnico-raciais na educação.
pesquisa na Universidade Federal da Bahia (Redepect-UFBA). E
em 2011, já na condição de pesquisadora e membro do Laboratório Então eu não entrei nem para trabalhar com educação
de Antropologia dos Processos de Formação (LAPF/PUC-Rio). quilombola, porque eu não sabia nada de quilombos,
Obteve-se considerável material, na forma de observação parti- nunca tinha trabalhado nada, absolutamente nada
cipante, registros escritos e orais, imagens, anotações e gravação
com quilombos, e eu achava que era uma demanda
de áudios, que permitiram a compreensão em perspectiva e o
acompanhamento da temática da educação escolar quilombola tão densa que não era ali que deveria ficar. E comecei
em cenário local (Bahia). a trabalhar com o que eu achava que era priorida-

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Suely Noronha de Oliveira

de, eu achava, não, eu fui encomendada para essa Representantes de Comunidades Remanescentes
prioridade, que era implementar a Lei nº 10.639. de Quilombos, Movimentos Negros, Organizações
(ENTREVISTADA A, 2012).11 Não Governamentais e Educadores de regiões do
No caso específico da Bahia, havia uma de- Estado.
manda das organizações e movimentos negros do Nessa carta, os grupos apresentaram lacunas
estado, em especial dos situados na capital baiana, na implementação da Lei nº 10.639 e apontaram
exigindo da Secretaria Estadual de Educação a soluções e proposições, dentre elas: a necessidade
participação em eventos e debates sobre a Lei nº de criação e legitimação do Fórum Permanente de
10.639/2003 e, consequentemente, o cumprimento Educação e Diversidade Étnico-Racial; a criação
da referida Lei. No ano de 2005, a Prefeitura Mu- de órgão específico nas secretarias de educação –
nicipal de Salvador publicou ações e orientações estadual e municipal – para tratar da implantação
para implementação da Lei nº 10.639/2003 – Edu- e aplicabilidade da Lei nº 10.639; e a criação da
cação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade
da História e Cultura Afro-brasileira e Africana Racial (Sepromi).
– na Educação Fundamental, tendo o CEAFRO12 As eleições para governador em 2006 culmi-
como órgão consultor. É importante adiantar que naram com a vitória do candidato do Partido dos
este Programa, além de consultor, atuou também Trabalhadores, o qual sustentava uma proposta
como agência que organizou e produziu demandas de governo popular,14 tendo como horizontes a
referentes à aplicação da Lei nº 10.639/2003, tanto participação e a proximidade com os movimentos
no município de Salvador quanto no Estado. sociais e populares. Uma parcela significativa do
Também em 2005 foi realizado o Fórum Estadu- movimento negro baiano mostrou-se favorável
al Educação e Diversidade Étnico-Racial, na cidade a essa candidatura. Com as eleições de 2006, os
de Salvador, por iniciativa da Coordenadoria-Geral governos federal e estadual ficaram mais próximos
de Diversidade e Inclusão Educacional da Secre- e as reivindicações dos grupos político-culturais,
taria de Educação Continuada, Alfabetização e que apoiaram as eleições, renovaram-se, exigindo
Diversidade (SECAD/MEC).13 A partir deste evento a construção e a implementação de políticas.
foram criados Fóruns nos estados brasileiros para O cenário político-organizativo era fértil para
tratar da temática. discussão, proposição e efetivação das políticas
De acordo com a carta produzida no evento, de ação afirmativa, étnico-racial e políticas de
este contou com a participação de representantes diversidade em geral. Havia instituições civis
do Governo do Estado, Secretarias Municipais, com maior tempo de organização social em nível
Instituições Públicas, Fórum de Quilombos Edu- de estado (movimentos/entidades negras) e outras
cacionais da Bahia, Instituições de Ensino Supe- mais jovens e em processo (organizações quilom-
rior, Entidades Sindicais, Lideranças Políticas, bolas); junto a isso, há a legitimidade do estado da
Bahia diante da temática: Salvador é a cidade com
11 Entrevista realizada com a ex-coordenadora de diversidade da
Secretaria de Educação do Estado da Bahia, no dia 13 de junho a maior população negra no Brasil e o estado pos-
de 2012, em Salvador, Bahia. sui o maior número de comunidades quilombolas
12 O CEAFRO é o programa de educação para igualdade racial e de
gênero do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), Unidade 14 A escolha do secretário estadual de Educação, Adeum Hilário
de Extensão da Universidade Federal da Bahia, em desenvolvi- Sauer (2006-2009), também estava vinculada ao perfil do atual
mento desde 1995. Tem como principal compromisso estabelecer governo. Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz
diálogo entre a Universidade Federal da Bahia, a Escola Pública (UESC), formado em Filosofia e Direito, com mestrado em Ci-
e as Organizações do Movimento Negro da Bahia. ência Política; de 2001 a 2005 foi presidente da União Nacional
13 A SECAD/MEC sofreu mudanças de gestão e de concepção com dos Dirigentes Municipais da Educação (Undime); consultor do
o passar do tempo. Uma das primeiras gestoras dessa secretaria Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) para assuntos
foi Eliane Cavalleiro (2004-2006), ativista do movimento negro de educação, em 1997; consultor do Fundescola, de 1997 a 2000;
e pesquisadora doutora da temática do racismo na educação. Em membro do Conselho Consultivo do Instituto Nacional de Estudos
fevereiro de 2012, o nome da secretaria sofre alterações passando e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) do Ministério da
a chamar-se Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Educação; membro da Câmara de Educação Básica do Conselho
Diversidade e Inclusão (SECADI), sob a coordenação da ex- Nacional de Educação (2004-2012), tornando-se parte da comis-
-gestora da Secretaria de Educação Especial (SEESP), Cláudia são responsável por redigir as Diretrizes Curriculares Nacionais
Pereira Dutra. para a Educação Escolar Quilombola.

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Motivações iniciais para elaboração de diretrizes da Educação Escolar Quilombola na Bahia

certificadas. Essa conjunção de fatores colocou o com informantes, criaram, em 2007, um grupo de
estado da Bahia em destaque frente à necessidade trabalho para formular um documento na intenção
de implementação de políticas de diversidade. de que se tornasse uma política voltada para a im-
Nesse cenário, de influências internas e exter- plementação da Lei. Parte desses servidores tinha
nas, destacam-se cinco momentos que antecederam envolvimento com o Fórum Estadual Permanente
e motivaram, direta e indiretamente, a construção de Educação e Diversidade Étnico-Racial (FEDER-
da proposta de política estadual de educação para BA), criado em 2005. O FEDERBA não desenvol-
comunidades quilombolas no estado da Bahia: 1) veu um papel ativo nos seus anos iniciais. Com a
a criação de uma coordenação para implementação criação, em 2008, da Coordenação de Diversidade
da Lei nº 10.639/2003 na SEC/BA, em 2008; 2) na SEC/BA, esta Coordenação teve um papel fun-
demandas das comunidades quilombolas à SEC/ damental na articulação, divulgação e animação do
BA; 3) coordenação de Diversidade da SEC e o FEDERBA. Um dos membros da Coordenação de
Grupo Intersetorial para Quilombos (GIQ); 4) for- Diversidade da SEC atuou como secretário execu-
mação de lideranças e de professores quilombolas; tivo do Fórum: realizava convites públicos para as
e 5) o I Fórum Baiano de Educação Quilombola. reuniões, publicava matérias informativas no Blog
A seguir discutiremos cada um desses momentos do FEDERBA, organizava reuniões, promovia ar-
e suas inter-relações. ticulação do Fórum com instituições públicas e de
governo, assim como atuava como representante
Criação de uma coordenação para político do Fórum.
implementação da Lei nº 10.639/2003 Outro fator interno importante para a cria-
na SEC/BA ção de procedimentos específicos destinados à
implementação da Lei nº 10.639, que incluíram
A coordenação para implementação da Lei nº a criação de uma coordenação responsável pela
10.639/2003 na Secretaria da Educação do Estado temática na SEC/BA, foi o perfil do consultor do
da Bahia nasceu com o nome de Coordenação Secretário de Educação na época. Miguel Gon-
de Diversidade Negra, de Gênero, Sexualidade záles Arroyo foi assessor da Secretaria Estadual
e Direitos Humanos. Em entrevista realizada em de Educação entre 2007 e 2009, na gestão do
2012 com membro desta Coordenação na época, secretário Adeum Hilário Sauer. Arroyo é profes-
foi dito que a Secretaria queria que o nome fosse sor titular emérito da Faculdade de Educação da
Coordenação Étnico-Racial de Gênero, Sexuali- Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e
dade e Direitos Humanos. Para o entrevistado, a foi Secretário Adjunto de Educação da Prefeitura
expressão “étnico-racial é mais palatável para o Municipal de Belo Horizonte, coordenando e
ego do brasileiro”, ao invés de diversidade negra. elaborando a implantação da proposta político-
Tal iniciativa de criação da Coordenação de Di- -pedagógica Escola Plural, dedicando-se aos
versidade15 se deu sob algumas pressões internas e estudos e práticas da educação popular, educação
externas à SEC/BA. Internamente havia um grupo do campo, e, nos últimos anos, publicou sobre
de servidores negros, vinculados à discussão racial o tema de políticas educacionais, igualdade e
e interessados na ampliação do debate e implemen- diferenças. Durante esse período, Arroyo esteve
tação da Lei nº 10.639. Estes servidores, de acordo muito próximo da também professora da UFMG,
Nilma Lino Gomes, relatora das Diretrizes Cur-
15 Para referir-me a essa Coordenação, optei por usar o nome “Co-
riculares Nacionais para a Educação Escolar
ordenação de Diversidade”, de forma a evitar possível confusão
em função das alterações constantes do nome da coordenação, ora Quilombola, pesquisadora e atuante política no
chamada de Coordenação de Diversidade Negra, de Gênero, Se- tema das relações étnico-raciais.
xualidade e Direitos Humanos, ora Coordenação de Raça, Gênero,
Sexualidade e Direitos Humanos, ora Coordenação de Educação Miguel [Arroyo] foi importante porque ele tenciona-
para as Relações Étnico-raciais e Diversidade, ora Coordenação va as pessoas da SEC, da alta cúpula, perguntando
de Educação para a Diversidade, Relações Raciais e Educação
Quilombola. E no cotidiano comumente denominada pela equipe
‘Como é que no estado da Bahia, majoritariamente
da SEC/BA e de consultoria das Diretrizes como Coordenação de negro, vocês não tem nenhuma política de inclusão
Diversidade. da história e cultura africana?’ Então essas forças,

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esse campo de forças, é que fez com que a SEC soas não vieram e as pessoas não vieram porque
tomasse a decisão de chamar alguém pra criar essa tinha uma política lá dentro; eu entrei para substituir
coordenação. (ENTREVISTADA A, 2012). uma pessoa que não queriam que ficasse, então, na
verdade, esse GT já tinha uma pessoa para colocar
Outro dado interno, explicitado pela então lá, então, as pessoas não vieram compor a equipe.
coordenadora de diversidade, que serviu, a seu (ENTREVISTADA A, 2012).
modo, para justificar a criação da Coordenação de
Diversidade foi uma suposta ausência de profis- Externamente à SEC/BA, atuaram também
sionais capacitados na SEC/BA para debater a Lei como motivadores para criação da Coordenação
e formular proposições. Essa suposta ausência de de Diversidade e implementação da Lei nº 10.639,
pessoas qualificadas para a temática e com função organizações sociais de caráter público, vincula-
compatível constrangia uma parte da equipe, que das a universidades, como o CEAFRO, o Centro
passou a ser constantemente pautada por grupos de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos
sociais interessados, exigindo da SEC/BA proprie- (CEPAIA); o Fórum de Quilombos Educacionais
dade no debate e ações de implementação da Lei da Bahia (FOQUIBA); o Centro de Educação e
nº 10.639/2003. Cultura Popular (CECUP); o Ilê Aiyê; secretarias
municipais e do estado, como a Sepromi, que já
Na verdade, foi através de uma amiga minha, [...] vinha realizando trabalhos com populações negras
servidora da CAR, que é minha colega de faculdade.
e quilombolas, com realização de diagnósticos
Nós tínhamos dentro da SEC uma amiga comum,
[...] que era coordenadora de Projetos Especiais, e econômico-sociais para elaboração de projetos de
[...] porque aí tem uma demanda externa à SEC, das geração de renda.
pessoas chamando a SEC para se fazer representar De acordo com um membro da Coordenação
nos espaços de debates que tem a ver com cultura ne- de Diversidade, em entrevista realizada em 2012,
gra, educação antirracista, então, não tinha ninguém, havia duas pressões, uma interna e uma externa,
quem ia era [...].[...] é uma branca, loira, adora a no ano de 2008, para a criação de tal Coordenação.
cultura negra, mas não sabe nada de cultura negra. Aí Segundo informações da entrevista, a pressão in-
ela tava representando com vários constrangimentos terna se deu pelo Movimento Negro, na figura do
por causa disso, e aí pressionou a superintendente na deputado federal, Luiz Alberto,16 que na época era
época, que era [...] para contratar uma coordenadora
o Secretário de Políticas de Promoção da Igualdade
para tratar das questões e desafogá-la da função, né?
Racial (Sepromi). E pressões externas promovidas
(ENTREVISTADA A, 2012).
por consultores da SEC/BA e organizações do mo-
Tal justificativa contradita com a afirmação vimento negro que, nos eventos em que a SEC/BA
de que havia um grupo de servidores negros, estava presente, constrangia pelo fato de, até aquele
vinculados à discussão racial e interessados na momento, não ter nenhuma política no estado de
implementação da Lei, o qual criou um grupo implementação da Lei nº 10.639/2003.
de trabalho na SEC para abordar a questão. Essa Outro dado importante é compreender que, no
contradição chama atenção para a necessidade de momento de criação da Coordenação de Diversi-
analisar a declaração sobre possível ausência de dade, já havia outros órgãos/secretarias do governo
profissionais capacitados e sugere a existência de do estado trabalhando com comunidades negras
conflitos políticos internos ao grupo de servidores e quilombolas. Exemplo disso é a Sepromi, que
na SEC/BA. Ou seja, mesmo havendo na Secretaria
Estadual servidores capacitados para gerir tal coor- 16 Luiz Alberto Silva dos Santos, natural de Maragogipe (Bahia)
– município que atualmente conta com 12 comunidades qui-
denação, pessoas vinculadas a grupos com poder lombolas certificadas –, técnico químico de formação, filiado
de decisão na SEC/BA sugeriram a contratação de ao Partido dos Trabalhadores (PT) desde 1980. Foi o primeiro
novo profissional. deputado federal negro eleito pela Bahia. Teve cinco mandatos
como Deputado Federal pelo estado da Bahia (1997-2015). Foi
[...] disseram que esse GT, formado por essas pes- candidato a Deputado Federal pelo PT nas eleições de 2014, po-
rém não foi eleito. Licenciou-se do mandato de Deputado Federal
soas, que era um GT de oito pessoas, seria a equipe.
na Legislatura 2007-2011 para exercer o cargo de Secretário de
Quando entrei eu vi que não tinha absolutamente Promoção da Igualdade Racial da Bahia, de 6 de fevereiro de
nada disso. Então não tinha equipe porque as pes- 2007 a 11 de agosto de 2008.

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Motivações iniciais para elaboração de diretrizes da Educação Escolar Quilombola na Bahia

desde 2007 desenvolve ações e políticas para esse tado das condições da comunidade e da necessidade
público no estado. de uma escola para atender a comunidade. Tinha uma
demanda de Lages dos Negros para criação de uma
A informação que eu tinha na UFBA, no começo, escola também. Então começaram a chegar demandas.
era que o Estado sempre esteve muito distante das [...] Então, como você vai construir uma escola se
comunidades quilombolas, uma distância gigantesca, você não sabe o número de estudantes, de demanda
foi assim que foi informado para mim. Contudo, essa de Ensino Médio que tem em Lage dos Negros, em
informação não era completa. A Sepromi já havia Pitanga de Palmares? Então, a falta de dados para
feito um bom levantamento das comunidades qui- informar a construção da política era um problema
lombolas com material, apostilas escritas, vídeo pro- sério lá dentro. (ENTREVISTADA A, 2012).
duzido, CD-ROM, com bastante informação sobre
as comunidades, e aí eu me dei conta que não havia Desde janeiro de 2004, o último regimento
comunicação entre os setores do estado. Obviamente publicado pela Secretaria de Educação do Estado
também tinha feito mapeamento, tinha indicado da Bahia contempla, na sua estrutura, as Coor-
ações, mas não havia diálogo entre as instituições. denações de Educação de Jovens e Adultos; de
[...] Ações pulverizadas, bastantes separadas, então, Educação Profissional; de Educação Indígena e
por dedução, com pouco impacto para as comuni- do Campo; de Educação Especial. Estas coorde-
dades quilombolas. (ENTREVISTADO B, 2012).17
nações estão vinculadas à Diretoria de Educação
e suas Modalidades, que, por sua vez, está situa-
Demandas das comunidades da na Superintendência de Desenvolvimento da
quilombolas à SEC/BA Educação Básica. O que isso significa? Significa
que o governo do Estado reconhece determinada
De acordo com dados da Fundação Cultural
especificidade de educação, inclui como modali-
Palmares (FCP), existem 2.958 comunidades
dade específica de educação e, consequentemente,
quilombolas certificadas no Brasil, até maio de
aloca recursos para o desenvolvimento de ações e
2017, e a Bahia consta como o primeiro estado
políticas. No caso das coordenações indígena e do
brasileiro em número de comunidades quilombo-
campo há recursos oriundos do governo federal,
las certificadas (734). A comunidade de Pitanga
em razão da existência de uma política nacional.
dos Palmares, município de Simões Filho, e Lage
No caso da Coordenação de Diversidade, ela foi
dos Negros, município de Campo Formoso, foram
instituída em 2008, não está legalmente instituída
certificadas, respectivamente, nos anos de 2004 e
na estrutura regimental da SEC/BA, o que fragiliza
de 2005. Estas comunidades mantêm presença nas
a captação e a operacionalização dos recursos e o
instâncias de representação civil para comunidades
desenvolvimento do trabalho. Essa Coordenação
quilombolas no governo, em conselhos e fóruns
não tem dotação orçamentária do governo federal,
(FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, 2017).
dependendo exclusivamente do governo estadual,
Além de atuarem nas instâncias de representação
e não integra formalmente a estrutura da SEC/BA.
pública, as comunidades quilombolas de Pitanga
dos Palmares e Lage dos Negros (citadas em en- Eu entrei já com Coordenação Indígena com anos
trevista e verificadas em consulta a documentos) se na SEC, Coordenação de Educação Especial que já
mostraram elaboradoras de demandas de educação tinha anos, com muito recurso na SEC, indígenas
com recurso grande do MEC [...] e o Campo com
para a SEC/BA.
um grande programa, Saberes da Terra. Na verdade,
Eu recebia demandas que já tinham chegado à SEC e quando eu entrei, o Campo estava em crise. Dirigin-
que não tinham sido respondidas, de criação de escolas do tudo isso, tinha uma figura [...] que tinha muitos
em comunidades quilombola. Tinha, por exemplo, problemas de compreensão de como deveria ser a
uma demanda histórica do povo lá de Pitanga dos Pal- relação entre movimento social e secretaria estadual
mares, inclusive com um diagnóstico bem fundamen- de educação [...] Então é importante dizer que a única
Coordenação criada pós-Wagner (governador), que
17 Entrevista realizada com o Consultor para elaboração do texto base não estava na estrutura da SEC, era essa, que estava
das Diretrizes Curriculares Estaduais para a Educação Escolar
Quilombola do Estado da Bahia, no dia 28 de setembro de 2011, sendo criada naquele momento. (ENTREVISTADA
em Salvador, Bahia. A, 2012).

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Suely Noronha de Oliveira

A criação de uma Coordenação de caráter esta- federal, quanto em nível de governo estadual. O
dual responsável para atuar em comunidades negras que havia no momento no MEC eram projetos e
e quilombolas – comunidades historicamente sem programas específicos, como o Programa Brasil
atendimento do Estado a seus direitos básicos – e Quilombola, que financiava recursos para serem
a ausência de fonte de recurso específica do Estado utilizados com formação de professor, compra de
e da Secretaria para execução das demandas e de equipamentos, produção de material didático, infra-
atividades comprometeram e limitaram a atuação estrutura e merenda escolar. Não havia ainda uma
da referida Coordenação, diante das demandas política pública que implicasse dotação orçamen-
elaboradas pelas comunidades quilombolas. tária específica para atendimento das demandas.
Então, nessa reunião de planejamento eu disse: ‘Tem A aprovação das Resoluções CNE nºs 4 e 7/2010,
quilombos também, tem que ter alguma política para que tornaram a educação escolar quilombola uma
responder às demandas de escolas de quilombos’. Aí modalidade de educação nacional, era recente.
todo mundo se assustou: ‘Precisa de uma política
específica para quilombos?’ Então, a partir disso, isso Coordenação de Diversidade da
criou alguma coisa dentro da SEC, que aí eu acabei, SEC/BA e o Grupo Intersetorial para
como é que diz, sendo conduzida para atuar aí, nesse Quilombos (GIQ)
campo aí também. (ENTREVISTADA A, 2012).
Neste tópico temos outro tema importante a ser
A partir dos relatos, é possível vislumbrar o
abordado: o desconhecimento generalizado atribu-
modo pelo qual uma decisão governamental (proje-
ído à equipe de Coordenação de Diversidade pelos
to, políticas e compromissos partidários) pode estar
entrevistados acerca do tema, antes de começarem a
fundada em tomadas de posição de determinados
trabalhar nele. Aqui nos parece inverter o princípio
atores (projetos e compromissos pessoais). Uma
a que estamos acostumados a pensar como normal,
questão é o contexto político favorável e a pressão
no qual primeiro há um conhecimento sobre o tema
das organizações sociais; outra é o investimento e depois a produção de uma política.
necessário para legitimar e consolidar as ações de
tais Coordenações. Então, eu não entrei nem para trabalhar com edu-
Essa abordagem é importante para compreender cação quilombola, porque eu não sabia nada de
quilombos, eu nunca tinha trabalhado nada, absoluta-
como o surgimento de um “público novo” (sujeitos
mente nada com quilombos, e eu achava que era uma
da educação escolar quilombola) acaba não podendo demanda tão densa que não era ali que deveria ficar.
ser efetivamente contemplado se ele não conseguir [...] Aí quando eu convidei [...], convidei para duas
se projetar na estrutura do Estado, isto é, conquistar coisas, uma pra trabalhar com juventude e também
uma pasta específica, recursos específicos, recursos com quilombos, principalmente, que aí tem uma
humanos etc. Ao mesmo tempo, tal projeção pode coisa importante que esqueci de dizer, em 2008, que
acabar tornando-se uma “camisa de força” para os foi importante para incorporar quilombos como uma
grupos que exigem reconhecimento, no sentido de ação, que foi o Grupo Intersetorial pra Quilombos da
ter que responder às exigências e à burocracia do Sepromi. (ENTREVISTADA A, 2012).
Estado. Este é um assunto importante e a avançar O Grupo Intersetorial para Quilombos (GIQ) foi
nos debates e elaborações de políticas diferenciadas criado através do Decreto nº 11.850 de 23 de no-
para grupos étnico-culturais e de diversidade. vembro de 2009 (BAHIA, 2009) – que institui a Po-
Esses foram os problemas gerados para pagamento lítica Estadual para Comunidades Remanescentes
das consultorias, porque tudo vinha do recurso do de Quilombos – e composto por representantes das
Campo, tá entendendo? [...] Então a gente não tinha seguintes Secretarias: SEAGRI, SEMA, SESAB,
nada, porque no MEC também não tinha nada para SEDUR, SEDIR, SEC, SECTI, SETRE, SEDES,
quilombos, tá entendendo? O MEC não tinha polí- SEC.18 Ao GIQ era atribuído o desenvolvimento e
ticas para quilombos. (ENTREVISTADA A, 2012). 18 Secretaria de Agricultura (SEAGRI), Secretaria do Meio Ambien-
te (SEMA), Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB),
No relato acima, a entrevistada afirma a ausên- Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Bahia (SEDUR),
cia de recurso específico tanto em nível de governo Secretaria de Desenvolvimento e Integração Regional (SEDIR),

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Motivações iniciais para elaboração de diretrizes da Educação Escolar Quilombola na Bahia

execução dos Planos de Desenvolvimento Social, não aguento mais meus filhos não terem o direito
Econômico e Ambiental Sustentáveis para Comu- de terminar o Ensino Médio pra ser professor’. [...]
nidades Remanescentes de Quilombos, tendo por Então, isso é que era a grande fascinação, era exa-
objetivo nortear a implementação da política. O tamente um mundo de muita pobreza, muita falta,
mas, ao mesmo tempo, de muita riqueza do ponto
GIQ estava institucionalizado na Sepromi. Antes
de vista das pessoas, da qualidade humana das
da instituição do GIQ já havia trabalhos, desde
pessoas. Então isso é que fez com que eu voltasse
2007, de algumas secretarias e órgãos com as dessas viagens com a certeza de que a gente tinha
comunidades quilombolas no estado, tais como: realmente de construir quilombos como uma ação
Sepromi, CDA/SUAF/SEAGRI, SEDES, SEDUR, tão prioritária quanto a implementação da Lei. E
Ingá/SEMA.19 foi assim que eu comecei a trabalhar, com as duas
A participação de representantes da Coordena- coisas. (ENTREVISTADA A, 2012).
ção de Diversidade da SEC/BA no GIQ provocou
No relato acima é possível constatar que a entre-
uma atenção destes para as comunidades qui-
vistada concebe a Lei nº 10.639/2003 e a proposta
lombolas. As viagens realizadas, na época, pela
de política para Educação Escolar Quilombola
coordenadora da Coordenação de Diversidade
como políticas e ações diferenciadas. Embora con-
como demanda de participação no GIQ, ouvindo
ceba as normativas acima como propostas dife-
os quilombolas sobre a situação da educação nas
rentes, são as experiências pessoais de formação
comunidades, foram fator propulsor para a questão,
gerando sensibilização. Até então, a coordenadora que modelarão e servirão de base para se pensar a
desconhecia a realidade dessas comunidades, mes- formação de novas modalidades e de sujeitos. Por
mo sendo ela ativista antiga de movimentos negro exemplo, a entrevistada relata sua experiência com
em Salvador. Aqui se entrelaçam questões desta- formação de professores no município de Salvador,
cadas anteriormente: ausência de um compromisso referente à implantação da Lei nº 10.639/2003, e
inicial de trabalho da Coordenação de Diversidade comenta a adaptação feita para os cursos de forma-
com as populações quilombolas; ausência de co- ção de lideranças e de professores quilombolas em
nhecimento sobre o tema e a realidade do público a história e cultura africana e afro-brasileira realizado
ser trabalhado; ausência de recurso na Coordenação pela Coordenação de Diversidade.
de Diversidade para desenvolver as ações. Eu trouxe a estruturação lá do CEAFRO, porque
Aí o seguinte, a gente não tinha dinheiro aqui, no CEAFRO eu tinha trabalhado com formação de
acabou o dinheiro, aí a gente ficou só fazendo professores das escolas municipais [Salvador]. E
viagens pelo GT Intersetorial para Quilombos. o CEAFRO montou uma estrutura que dividia em
[...] essa amiga que me levou para a SEC, e que módulos: identidade, ancestralidade e resistência...
ela coordenava o Núcleo de Ações Quilombolas da Então eu trouxe esse formato e montei mais um, que
CAR, aí eu passei a participar e viajar; na verdade, era para os professores saírem com o projeto de in-
isso foi a grande questão, foi quando eu tomei co- clusão da história e cultura africana e afrobrasileira.
nhecimento da realidade quilombola, eu cheguei (ENTREVISTADA A, 2012).
nas comunidades e vi o sofrimento das pessoas e É sabido que o debate sobre educação escolar
vi a ausência total de tudo, e via situações, para
quilombola emerge diante de dois grandes cená-
você ter uma ideia, ali meu Deus, Getsemani, no
rios: a) reconhecimento da identidade e do direito
Baixo Sul, uma senhora dizendo: ‘Minha filha, eu
ao território pelas comunidades quilombolas; b)
Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado da Bahia debate da educação antirracista e da educação das
(SECTI), Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte da
Bahia (SETRE), Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate relações étnico-raciais. São nesses debates junto a
à Pobreza (SEDES), Secretaria da Educação do Estado da Bahia experiências concretas e modos de fazer escola em
(SEC).
19 Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi),
comunidades quilombolas que vai se estruturando
Coordenação de Desenvolvimento Agrário/Superintendência da uma proposta pedagógica e curricular, princípios
Agricultura Familiar/Secretaria de Agricultura (CDA/SUAF/ e eixos. Assim, observamos que o debate sobre
SEAGRI), Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à
Pobreza (SEDES), Secretaria de Desenvolvimento Urbano da educação escolar quilombola é muito recente no
Bahia (SEDUR), Ingá/ Secretaria do Meio Ambiente (SEMA). Brasil, bem como suas experiências escolares.

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Entretanto, em menos de uma década podemos tória da Conquista. Os cursos tinham uma estrutura
constatar o aumento das experiências e de práticas modular (cada curso era composto por quatro mó-
dessa modalidade de educação, de produção de dulos), com uma carga horária de 160 horas, tendo
material didático e de produção de pesquisas aca- como eixos: identidade, ancestralidade, resistência
dêmicas. Essas iniciativas indicam especificidades e projeto escolar – planejamento para aplicação da
dessa categoria de escola e demandam propostas e Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatória a inclusão
políticas diferenciadas. da história das culturas africanas e afro-brasileiras
A relatora do Parecer CNE/CEB nº 16/2012, nos currículos escolares.
Nilma Lino Gomes, em entrevista, afirmou que [...] e a gente começou as formações ainda em 2008,
não percebe um momento de passagem da educa- aqui em Salvador e no Território do Recôncavo, e
ção das relações étnico-raciais para uma educação em 2009 a ideia era continuar, pelos diversos terri-
específica para quilombos. De acordo com o relato, tórios, mas aí a gente não conseguiu efetivamente.
desde o início do debate sobre educação quilom- Foi a época que o secretário [...] saiu, [...] entrou
bola, sempre se percebeu suas especificidades em outro superintendente, com outras prioridades, e
relação a outras modalidades de educação e diante também teve uma crise econômica no meio, não
do debate da educação das relações étnico-raciais. tinha dinheiro para nada; 2009 foi um ano difícil.
(ENTREVISTADA A, 2012).
Acho que não existe um momento específico de
‘passagem’ de uma temática para a outra. A questão A Coordenação convidou professores da
quilombola se insere dentro da discussão da educa- Universidade do Estado da Bahia (UNEB) com
ção das relações étnico-raciais e é reconhecida pelo especialidade nos temas da Lei nº 10.639/2003,
Parecer CNE/CP nº 03/2004 e Resolução CNE/CP nº africanidades e quilombos. A coordenadora de di-
01/2004. Porém, todos reconhecemos que há espe- versidade já conhecia os professores, uma vez que
cificidades na implementação de uma educação que havia cursado o mestrado na instituição.
atenda aos quilombolas, o que demanda políticas e A partir dos relatórios elaborados por professo-
práticas educacionais que dialoguem e atendam essas
res do curso de formação “Agora a história é outra”
realidades. (ENTREVISTADA C, 2013).20
para lideranças e professores quilombolas, foi
A disputa e definição por compreensão de mun- possível o acesso a programas dos cursos e relatos
do é sempre, e ao mesmo tempo, tensa, potente e dos temas desenvolvidos. Alguns temas trabalhados
frágil. O debate da educação escolar quilombola no curso foram: racismo e discriminação racial no
vem crescendo, assim como seus desafios, mas país; ensino de história e cultura afro-brasileira
nunca somente num processo linear e crescente. e africana; valores civilizatórios afro-brasileiros;
Aqui temos o exemplo de construção de uma quilombos; identidade quilombola; acesso à terra;
política, não apenas com iniciativa do Estado para educação quilombola; política estadual e nacional
dar conta de um público específico, mas de como para quilombos. Os cursos contaram com a parti-
essa construção da própria política é também um cipação de lideranças quilombolas para falar de
processo pedagógico que envolveu gestores e cor- suas experiências, apresentação de grupos culturais
po técnico (governo), acadêmicos e organizações locais e participação de gestores locais. Neles os
sociais, assim como o público, sujeito da política. professores utilizaram recursos como: imagens,
vídeos curtos, filmes, leitura de textos, assim como
Formação de lideranças e professores foram distribuídos kits do MEC (material didático/
quilombolas livros) para educadores quilombolas.
De acordo com o relato de um dos assessores
Os cursos de formação para lideranças e pro- da comissão para elaboração das diretrizes curri-
fessores quilombolas em história e cultura africana culares estaduais para a educação escolar quilom-
e afro-brasileira aconteceram, no ano de 2010, em bola, foram esses cursos que evidenciaram para
três municípios: Valença, Bom Jesus da Lapa e Vi- a Coordenação de Diversidade as necessidades e
20 Entrevista realizada por e-mail com a Relatora do Parecer CEB/ demandas dos quilombolas, a ponto de sensibilizá-
CNE nº 16/2012, no dia 16 de janeiro de 2013. -la e de transformar em pauta na SEC/BA uma série

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Motivações iniciais para elaboração de diretrizes da Educação Escolar Quilombola na Bahia

de ações como parte de uma política estadual para las. Junto a isso, os relatórios apresentados pelos
a educação escolar quilombola. professores dos cursos não tiveram a função de
Quando a coordenadora me convida para fazer aprofundar questões e elementos diagnósticos
parte dessa equipe de formação que, inicialmente, para subsidiar o texto das Diretrizes; em geral os
era só formação das lideranças quilombolas, o que relatórios são sucintos e de caráter mais descritivos,
a gente foi percebendo com o processo foi que uma sem apresentar reflexões ou análises.
das demandas que surgiam dessas discussões sobre
as comunidades quilombolas era exatamente o I Fórum Baiano de Educação
papel da escola. Uma coisa que era muito evidente Quilombola
era exatamente uma necessidade que as lideranças
traziam, de não perceber a escola, nesse sentido a O primeiro Fórum Baiano de Educação Qui-
escola formal, que atuava não só na sede, mas prin- lombola, realizado nos dias 05 e 06 de novembro
cipalmente nas comunidades quilombolas, de que de 2009, aconteceu em meio a uma aproximação
essas escolas não conseguiam captar essa dimensão
inicial do governo estadual (demarcada desde o
do que era um quilombo. As queixas eram quase que
início do governo, em 2007) com as articulações
as mesmas: os professores são da sede, os professo-
res não têm uma formação adequada para discutir a quilombolas locais e territoriais no estado: ações
Lei nº 10.639/2003, os professores não conseguem da Sepromi, SEAGRI, CAR, Grupo Intersetorial
entender o que é uma comunidade quilombola. para Quilombos, instituição da política estadual
(ENTREVISTADO D, 2011).21 para quilombos através de Decreto, assim como
da articulação de organizações quilombolas na
É importante destacar que algumas dessas
instituição de uma organização representativa em
formações aconteceram integradas, mas não ao
nível de estado – Conselho Estadual.
mesmo tempo, a reuniões do Fórum Permanente
Estadual de Educação Quilombola e a audiências [...] e a gente conseguiu convencer [...], porque tinha
públicas para elaboração das Diretrizes Curricula- um grande problema para viabilizar políticas para
res Estaduais para a Educação Escolar Quilombola. educação quilombola, que era ausência de dados.
Então, até para você criar uma política de construção
Dessa forma, os cursos de formação para profes-
de escolas lá dentro, a gente se batia com um grande
sores e lideranças quilombolas, organizados pela problema que, além da má vontade das pessoas de
Coordenação de Diversidade da SEC/BA foram achar que não é prioridade quilombos, que quilom-
importantes para além da troca de informações bos têm que estar na cota geral, a gente tinha um
e de conhecimentos entre professores, lideranças embate de convencer que aquelas eram populações
quilombolas e pesquisadores e do espaço reflexivo que ficaram invisíveis nas políticas públicas e que,
para formulação de demandas. Conforme relato de portanto, elas mereciam um tratamento diferenciado.
um dos assessores para elaboração das diretrizes, Então, tinha esse trabalho interno para se fazer com
que também atuou como professor no curso de essas pessoas e tinha um argumento poderoso delas
formação “Agora a história é outra”, estes cursos de que não tem dados. Aí, o que a gente fez? Vamos
contribuíram para diagnosticar a situação da educa- chamar os quilombolas, para ouvir os quilombolas! E
foi assim que surgiu o Fórum, o I Fórum de Educação
ção escolar desenvolvida nas comunidades quilom-
Quilombola. A ideia era a gente trazer o pessoal dos
bolas e agregar demandas relativas à educação. De quilombos para cá e organizá-los em grupos para
acordo com a fala do assessor, os relatórios do curso daí sair uma política, inclusive as demandas. Isso
e minha presença e observação durante as audiên- foi em novembro de 2009. Foi a primeira vez que
cias públicas, dos seis professores que integraram teve comunidades quilombolas do estado inteiro
a equipe do curso de formação “Agora a história vindo para encontrar com uma secretaria de estado
é outra”, apenas um participou das audiências na para dizer qual é a política de educação que se quer.
condição de assessor responsável pelo mapeamento (ENTREVISTADA A, 2012).
das escolas existentes em comunidades quilombo- Os objetivos do I Fórum, explicitados na pro-
21 Entrevista realizada com o Coordenador da Equipe de Mapea- gramação do evento,22 tiveram como prioridades:
mento para elaboração do texto base das Diretrizes Quilombolas-
-Bahia, no dia 27 de setembro de 2011, em Salvador, Bahia. 22 Ver Observatório Quilombola (2009).

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ser espaço de interlocução entre as comunidades consequentemente, de Superintendentes e outros


quilombolas e a secretaria da educação na construção cargos de confiança. Se o Superintendente da
coletiva de uma política pública educacional para as Educação Básica anterior, Nildon Pitombo, apre-
comunidades quilombolas; identificar e sistematizar sentando prioridades para a política de Educação
junto a lideranças e professores(as) quilombolas do seu Secretário, afirmava à imprensa e em reu-
as demandas educacionais; subsidiar/identificar niões que “Precisamos valorizar a matriz africana
questões centrais para o processo de elaboração das na sociedade brasileira” (DIRETRIZES..., 2010),
Diretrizes Curriculares Estaduais para a Educação o Secretário da Educação atual, assumindo um
Quilombola, bem como a definição de sua con- perfil mais administrativo de gestão, lançou os Dez
cepção. O I Fórum teve como público privilegiado Compromissos para a Educação na Bahia.
professores quilombolas, lideranças quilombolas e Para garantir o sucesso de todos os estudantes dos
secretários municipais de educação, contabilizando, ensinos fundamental e médio no percurso educativo,
de acordo com relatório da SEC/BA,23 a participação proporcionando aos baianos o direito ao conheci-
de mais de 350 pessoas e mais de 80 comunidades mento de base científica, foi apresentado um plano
quilombolas de Salvador e do interior do estado. de ações e metas pela SEC para a gestão 2011-2014.
No convite-programação do I Fórum já constava A meta é elevar os índices de aprovação para, no
o tema das Diretrizes Curriculares Estaduais para a mínimo, 90% nas séries iniciais, 85% nas séries
Educação Quilombola como um objetivo. Diante finais do ensino fundamental e 80% nas séries finais
disso, será que as diretrizes já haviam sido pensa- do ensino médio. (BAHIA, 2011).
das como uma proposta de política educacional As metas estabelecem elevar o índice de apro-
antes de novembro de 2009? Antes da proposição vação para, no mínimo, 90% nas séries iniciais,
nacional? Onde? Por quem? Pelas fontes consul- 85% nas séries finais do ensino fundamental e
tadas e entrevistas realizadas, foi em um momento 80% no ensino médio. E também assegurar que
posterior ao I Fórum que o debate das Diretrizes as escolas do estado e dos municípios baianos
ganhou densidade. alcancem, no mínimo, as projeções estabelecidas
[...] depois que saímos do I Fórum, saímos com uma pelo Ministério da Educação para o Índice de
demanda apresentada por eles que a gente conseguiu Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)
responder, aí também tem a ver com os gestores. En- no período de 2011-2014. Essas informações
tão, mudou o superintendente, que chegou dizendo passaram a ter sentido diante da declaração de
que a prioridade dele era quilombos e que, mesmo ex-membro da Coordenação de Diversidade,
na crise, ele ia conseguir dinheiro para quilombos. quando afirmou: “[...] a prioridade para o secre-
Inclusive foi ele quem disse que o campo estava tário de educação atual é avaliar o aprendizado
fazendo diretrizes estaduais para educação do campo dos alunos, o desempenho, essa coisa assim bem
e que ele queria que também os quilombolas cons- gerencial, do ponto de vista administrativo porque
truíssem diretrizes estaduais. Como isso já era uma ele vem disso”. (ENTREVISTADO E, 2011).24
coisa apontada, a gente saiu do I Fórum com isso Dos dez compromissos traçados, dois deles
na cabeça. Quando ele falou isso, deu o comando
foram utilizados pela Coordenação de Diversi-
para a gente implementar. Só que as coisas dentro
da SEC, primeiro que você prevê, mas não significa
dade para pleitear políticas educacionais para as
necessariamente que esse dinheiro vai chegar pra comunidades quilombolas: fortalecer a inclusão
você. Tá entendendo? Porque na ordem de priori- educacional e inovar e diversificar os currículos
dade esse dinheiro pode até ter, mas a prioridade escolares, promovendo o acesso dos estudantes
não era educação quilombola, como não é até hoje. ao conhecimento científico, às artes e à cultura.
(ENTREVISTADA A, 2012). Qual a diferença entre o secretário passado e o secre-
Meses antes da realização do I Fórum, acon- tário atual? O primeiro estava pautado pelo consultor
teceu a mudança de Secretário da Educação e, dele, que era Miguel Arroyo. Então, ele tinha uma
pessoa que o orientava, que era adequada do ponto
23 O relatório final do I Fórum foi obtido diretamente com a Coorde-
nação de Diversidade da SEC/BA, pois o mesmo não se encontra 24 Entrevista realizada com o ex-membro da Coordenação de Di-
disponível na internet. versidade, no dia 26 de setembro de 2011, em Salvador, Bahia.

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Motivações iniciais para elaboração de diretrizes da Educação Escolar Quilombola na Bahia

de vista político, num entendimento da importância na medida em que promovem ações que visam o
dessas coisas, porque era Arroyo. Tá entendendo? respeito e a manutenção das formas de vida so-
Então Arroyo tinha uma influência no governo que cial pensadas como diferenciadas com relação ao
perdeu, inclusive de uma maneira constrangedora, padrão hegemônico. A categoria de diferenciação
no governo seguinte. Tá entendendo? Quem é hoje
cultural surge como um instrumento de negociação
o consultor? Na época era um cara aí neoliberal, que
política. Dessa forma, adaptando uma das análises
todo mundo ficou horrorizado quando soube, porque,
na verdade, houve uma polêmica imensa em relação elaboradas por Montero, Arruti e Pompa (2009),
aos dois consultores, a mudança, porque era mudança o contexto de influência é produzido por atores,
de perspectiva de entendimento da educação e do geradores da política (de reconhecimento), que se
Brasil. Eu sei que ele tinha sido consultor de FHC. constituem, ao mesmo tempo, como agentes polí-
(ENTREVISTADA A, 2012). ticos que elaboram demandas por direitos, tendo
em vista constituírem-se como sujeitos de direitos.
Considerações Finais Como parte da análise do trabalho desenvolvido
é importante identificar e distinguir dois momentos
A pesquisa utiliza a abordagem do ciclo de no processo de construção das diretrizes curricula-
políticas ou policy cycle approach, formulada pelo res estaduais para a educação quilombola no estado
sociólogo inglês Stephen Ball e por colaboradores da Bahia, que se relacionam, mas não são conse-
(BALL, 1994; BOWE; BALL; GOLD, 1992;), a quentes: a criação da Coordenação de Diversidade
qual oferece referencial analítico para investigar e a elaboração de ações na SEC/BA voltadas para
programas e políticas educacionais desde a formu- comunidades quilombolas.
lação inicial até a sua implementação no contexto A Coordenação de Diversidade surgiu na SEC/
da prática e seus efeitos. Esta abordagem enfatiza BA com a proposta exclusiva de implementar a Lei
os processos micropolíticos e a ação local dos nº 10.639/2003 nas redes de ensino, e foi somente
atores, apontando a necessidade de articulação dos após outros determinantes de contexto que o tema
processos macro e micro na análise das políticas quilombos passou a ser incorporado como ação
públicas. Por se tratar de uma política em processo, também prioritária na formulação de políticas
foram analisados apenas dois dos contextos apon- voltadas para a educação.
tados por Ball (1994): o contexto de influência e o A Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o
contexto da produção de texto.25 ensino da história e da cultura afro-brasileira e afri-
Para Mainardes (2006), referência no Brasil cana nas instituições de ensino, indiscutivelmente, é
sobre os estudos de Ball, o contexto de influência o grande marco legal que obriga a sua implementa-
é onde as políticas públicas são iniciadas e os dis- ção pelos governos federal, estadual e municipal e,
cursos políticos são construídos. É nesse contexto consequentemente, exige a criação de órgãos locais
que grupos de interesse disputam para influenciar a gestores, como as coordenações. Apesar de o texto
definição da política: finalidades, conceitos, abran- da referida Lei não fazer referência a “quilombos”
gência, dentre outros. É também no contexto que ou a “comunidades remanescentes de quilombo”,
os conceitos adquirem legitimidade e formam um ele ofereceu brechas para se pensar a educação
discurso de base para a política.
escolar nessas comunidades. Ou seja, a discussão
No caso da política em estudo – diretrizes para
da educação escolar quilombola ganhou destaque
educação escolar quilombola –, esta se enquadra
a partir da regulamentação da Lei nº 10.639/2003
na categoria das chamadas políticas de reconheci-
e, posteriormente, a extrapolou, tornando-se uma
mento (MONTERO; ARRUTI; POMPA, 2009),
modalidade de educação e sendo orientada a pos-
25 O presente trabalho centrou-se mais nas dinâmicas e nos processos suir diretrizes próprias.
de elaboração da política (nacional e estadual) do que na análise
e no estudo dos textos produzidos. Essa opção foi feita em razão
A participação da Coordenação de Diversidade
de algumas contingências: a pesquisa foi iniciada no primeiro da SEC/BA como membro do Grupo Intersetorial
semestre de 2011; o relatório das audiências e texto base para as para Quilombos (GIQ) e as visitas técnicas a ter-
diretrizes estaduais da Bahia foi concluído no segundo semestre
de 2011 (setembro), sendo este um texto que não estava, até o ritórios quilombolas foram fundamentais para que
momento, dotado de poder legal/normativo. o corpo técnico da Coordenação de Diversidade

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Suely Noronha de Oliveira

tivesse conhecimento acerca das comunidades qui- o texto base (produto das audiências) e encaminhá-
lombolas no estado e suas demandas; a articulação -lo ao Conselho Estadual de Educação parece não
conjunta de atividades e a troca de informações haver priorizado tal ação. É importante destacar
entre diferentes secretarias e órgãos do governo que em 2011, pós-reeleição do então governador,
motivaram e criaram condições para que a Coorde- ocorreu uma mudança na equipe de gestão da SEC/
nação de Diversidade priorizasse ações voltadas às BA, que acabou por interferir diretamente na com-
comunidades quilombolas. Não menos importante posição da equipe da Coordenação de Diversidade.
foi a articulação estadual das organizações quilom- Mesmo com alinhamento político favorável,27 a
bolas e de ações isoladas das comunidades que nova gestão da SEC/BA não conseguiu oferecer
organizaram pautas exigindo ações da Coordenação respostas favoráveis à continuidade do trabalho
de Diversidade em relação à situação das escolas interno à própria secretária, visando a uma futura
em territórios quilombolas. Junto a isso, pode ser aprovação das diretrizes curriculares quilombolas
acrescentada a ação individual de atores públicos no estado da Bahia. De acordo com o consultor para
importantes, como secretários de educação e con- elaboração do texto base das Diretrizes Curriculares
sultores técnicos na definição de prioridades, que Estaduais para a Educação Escolar Quilombola, o
pode auxiliar ou não o desenvolvimento de ações Conselho Estadual de Educação não foi empeci-
para grupos étnico-culturais específicos. lho, ao contrário “de 13 membros, 11 apoiaram de
A ação da Coordenação de Diversidade em maneira entusiasta” (ENTREVISTADO D, 2011).
oferecer cursos de formação para lideranças e pro- A sazonalidade de gestores públicos colocou
fessores quilombolas obteve um duplo sentido: in- em xeque a coerência entre o discurso produzido
tercambiar conhecimentos e valores relacionados à pelo governo e a efetivação de políticas. Assim
Lei nº 10.639/2003 e ao tema quilombos; e realizar como demonstrou uma defasagem entre governo
um panorama – ainda que limitado – da situação das e atividade política especializada, culminando
escolas quilombolas no estado, conhecimento até num ativismo. Com isso, percebeu-se que tanto a
então precário dentro da estrutura governamental. mudança de gestores quanto a continuidade dos
A realização do I Fórum Baiano de Educação mesmos não serviram para consolidar políticas de
Quilombola (2009) possibilitou visibilizar a exis- educação escolar quilombola no estado.28
tência de uma conjuntura favorável no estado ao O cenário descrito acima é tomado na pesquisa
desenvolvimento de políticas de diversidade e como motivador iniciaL à demanda de construção
específica para quilombolas. Desde um cenário de diretrizes curriculares para a educação escolar
governamental favorável no estado e em nível na- quilombola no estado da Bahia. Essa construção
cional à implementação de políticas intersetoriais
Quilombola na Educação Básica, no Sistema Estadual de Ensino
específicas para quilombos em nível estadual e na- da Bahia. Resolução homologada em 18/12/2013.
cional, forte articulação política de entidades negras 27 A nova composição da SEC/BA – Amélia Maraux (Superinten-
e de uma organização quilombola recente em nível dente da Educação Básica), Andréia Lisboa (Coordenação de Di-
versidade, Relações Raciais e Educação Quilombola) e Rosângela
de estado, assim como o apoio de universidades e Araújo (Diretora de Ensino e suas Modalidades) – estava alinhada
de seus investigadores, com existência de campos politicamente ao grupo da então Ministra da Secretaria de Polí-
de estudos na área. ticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Luiza Helena
de Bairros, que até 2010 era Secretária Estadual de Promoção da
A Bahia, de forma muito particular, conseguiu Igualdade Racial da Bahia. Ou seja, o grupo político que estava
articular e mobilizar os quilombolas no estado em na Secretaria de Educação cuidando da diversidade era o mesmo
que estava na SEPPIR; alinhava-se politicamente governo federal
torno da educação escolar, mas não teve êxito na
e governo estadual, o que sugere uma maior potência de trabalho.
aprovação do texto base para elaboração de diretri- 28 Enquanto isso acontecia no estado da Bahia, o texto da política
zes até 2012.26 A SEC/BA, responsável por analisar nacional era concluído no primeiro semestre de 2012 e homolo-
gado em junho do mesmo ano. O CNE, apesar de ter iniciado o
26 O texto base referência para construção das Diretrizes da Educação processo de elaboração das diretrizes posteriormente ao estado
Quilombola do Estado da Bahia, produzido em 2011, foi conside- da Bahia, conseguiu publicar as diretrizes nacionais antes das
rado na Resolução nº 68, de 30 de julho de 2013 (CONSELHO diretrizes no estado. Isso se deu, em grande parte, à capacidade
ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DA BAHIA, 2013), que estabe- de articulação política do CNE no momento, assim como do
lece normas complementares para implantação e funcionamento enfraquecimento político da SECAD-SECADI, que acabou por
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar acelerar o processo de aprovação das diretrizes nacionais.

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 35-51, maio/ago. 2017 49
Motivações iniciais para elaboração de diretrizes da Educação Escolar Quilombola na Bahia

analítica temporal do processo de elaboração das partir dos mediadores (agentes e agências) e dos
diretrizes não é linear, muito menos estanque, e espaços de mediação existentes no processo de
deve complementar-se com análise produzida a formulação da política.

Referências
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por essas comunidades, de que tratam o art. 51 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
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normas complementares para implantação e funcionamento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

50 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 35-51, maio/ago. 2017
Suely Noronha de Oliveira

Escolar Quilombola na Educação Básica, no Sistema Estadual de Ensino da Bahia. Salvador, 2013. Disponível em:
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de Cultura Negra do Maranhão, 2005. (Coleção Negro Cosme, vol. IV).

Recebido em: 30/04/2017


Aprovado em: 07/07/2017

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 35-51, maio/ago. 2017 51
Luclécia C. M. Silva; Moisés Felix de Carvalho Neto; Adriana Fernanda Busso

COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO SERTÃO DE


PERNAMBUCO: DIÁLOGOS SOCIOPOLÍTICOS
NA CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO
EMANCIPATÓRIA

Luclécia C. M. Silva (Univasf)∗


Moisés Felix de Carvalho Neto (Univasf)∗∗
Adriana Fernanda Busso (UFSCar)∗∗∗

RESUMO
Os povos quilombolas possuem uma longa história de luta por uma educação de
qualidade, sobretudo os povos do Semiárido nordestino. Assim, a partir de dispositivos
normativos e da luta dos movimentos sociais, houve um grande avanço na criação
de diversas politicas públicas, destacando-se os programas educacionais destinados à
valorização da diversidade sociocultural no campo. Sabendo disso, a presente pesquisa
teve como objetivo analisar as relações e contribuições de aspectos sociopolíticos na
construção de uma educação emancipatória em comunidades quilombolas insertadas
no contexto do Semiárido nordestino. Optou-se pela pesquisa e abordagem qualitativa,
de caráter exploratório e de base etnográfica, com procedimentos metodológicos,
como: observações diretas, entrevistas semiestruturadas, grupos focais, caminhadas
transversais, registros fotográficos, entre outros, com posterior triangulação dos dados.
Verificou-se que os processos educativos se mostram o diferencial no empoderamento e
tomada de decisões relativas à reafirmação de uma alteridade que estão cotidianamente
ressignificando na luta pela valorização quilombola. Assim, empreende-se que as
ações públicas de fortalecimento do patrimônio cultural e imaterial desses grupos
sociais não serão efetivadas apenas pela existência de uma legislação específica para
educação escolar quilombola, mas dependem muito mais do esforço em conjunto e
integrado dos coletivos quilombolas na busca pelo respeito ao éthos (modo de ser)
quilombola na elaboração das atividades pedagógicas que respeitem as especificidades
locais e perpetuem os elementos culturais que constroem a identidade étnica de cada
comunidade.
Palavras-chave: Educação quilombola. Semiárido nordestino. Sociopolítica.


Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em Metodologias Participativas
aplicadas à pesquisa, assistência técnica e extensão rural pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).
E-mail: [email protected]
∗∗
Mestre em Produção Vegetal com ênfase em Agroecologia pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).
Especialista em Metodologias Participativas aplicadas à pesquisa, assistência técnica e extensão rural pela Universidade
Federal do Vale do São Francisco (Univasf). moises. E-mail: [email protected]
∗∗∗
Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected]

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 53-67, maio/ago. 2017 53
Comunidades Quilombolas do sertão de Pernambuco: diálogos sociopolíticos na construção de uma educação emancipatória

ABSTRACT
QUILOMBOLA COMMUNITIES IN HINTERLAND OF PERNAMBUCO STATE:
SOCIALPOLITICAL DIALOGUES CONSTRUCTING OF AN EMANCIPATORY
EDUCATION
The quilombola people have a long history of struggle for a quality education,
especially the peoples of the Northeastern Semiarid. Thus, from normative devices
and from the struggle of social movements, there was a great advance in the creation
of several public policies, with emphasis on educational programs aimed at valuing
socio-cultural diversity in the field. Knowing this, the present research aimed to
analyze the relations and contributions of socio-political aspects in the construction
of an emancipatory education in quilombola communities inserted in the context of
the Northeastern Semi-arid. Methodological procedures such as direct observations,
semi-structured interviews, focal groups, cross-walks, photographic records, among
others, were used, with subsequent triangulation of the data, with an exploratory and
ethnographic basis. It was verified that the educational processes show the differential
in the empowerment and decision-making regarding the reaffirmation of an alterity
to which they are daily resignificando in the fight for the valorization quilombola.
Thus, it is assumed that public actions to strengthen the cultural and immaterial
heritage of these social groups will not be implemented solely by the existence of
specific legislation for quilombola school education, but they depend much more on
the joint and integrated effort of the quilombola collectives in the quest for Respect
for the quilombola ethos in the elaboration of pedagogical activities that respect local
specificities and perpetuate the cultural elements that build the ethnic identity of each
community.
Keywords: Quilombola education. Northeastern semi-arid. Sociopolitics.

RESUMEN
LAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DEL SERTÃO PERNAMBUCANO:
LOS DIÁLOGOS SOCIOPOLÍTICOS EN LA CONSTRUCCIÓN DE UNA
EDUCACIÓN EMANCIPADORA
Cimarrones pueblos tienen una larga historia de lucha por la educación de calidad, sobre
todo los pueblos del semiárido noreste. Por lo tanto, de las disposiciones reguladoras
y la lucha de los movimientos sociales fue un avance importante en la creación de
diversas políticas públicas, destacando los programas educativos para la mejora de la
diversidad sociocultural en el campo. Sabiendo esto, el presente estudio tuvo como
objetivo analizar las relaciones y las contribuciones a los aspectos socio-políticos en
la construcción de una educación emancipadora insertadas quilombos en el contexto
de la semiárida del noreste. Optamos por la investigación y el enfoque cualitativo,
exploratorio y etnográfica, con los procedimientos metodológicos, tales como la
observación directa, entrevistas semiestructuradas, grupos focales, los transectos,
registros fotográficos, entre otros, con la posterior triangulación de datos. Se encontró
que los procesos educativos que muestran la diferencia en la capacitación y la toma
de decisiones con respecto a la reafirmación de una alteridad que están todos los días
dando un nuevo significado a la lucha por la apreciación del quilombo. Por lo tanto,
se compromete a que las acciones públicas para fortalecer el patrimonio cultural e
intangible de estos grupos sociales no se efectuará únicamente por la existencia de

54 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 53-67, maio/ago. 2017
Luclécia C. M. Silva; Moisés Felix de Carvalho Neto; Adriana Fernanda Busso

una legislación específica para la educación escolar quilombo, pero dependen mucho
más esfuerzo y conjunto integrado de marrón colectiva en la búsqueda de respeto por
el espíritu (forma de ser) quilombo en la preparación de las actividades educativas
que respeten las especificidades locales y perpetúan los elementos culturales que
construyen la identidad étnica de cada comunidad.
Palabras clave: Educación quilombola. Semi-árido noreste. Sociopolítica.

Introdução
O sertão do São Francisco é uma região que pos- finindo a própria existência e construindo uma iden-
sui uma quantidade significativa de comunidades tidade culturalmente diferenciada com o lugar. Essa
quilombolas oriundas, principalmente, dos diversos significação singular com o espaço fundamenta-se
processos sociopolíticos do final do século XIX, na própria memória coletiva de convivência e luta
como, por exemplo, o fim do ciclo da pecuária, nesse território e se expressa não somente através
a fuga de escravos das fazendas da região para de vínculos afetivos e de parentesco, mas também
áreas de difícil acesso do sertão do São Francisco por um sentimento de pertença que é compartilhado
e o fim da escravidão (CENTRO DE CULTURA por todos da comunidade.
LUIZ FREIRE, 2008; PEIXOTO, 2007). Dentre As comunidades negras de origem africana e
as diversas comunidades quilombolas do sertão afro-brasileiras possuem um patrimônio material e
pernambucano, destacam-se duas comunidades imaterial de significativo valor cultural, permeado
quilombolas localizadas em municípios circunvi- de idiossincrasias que as tornam unidas pela mesma
zinhos, ambas no Semiárido nordestino: Cruz dos história. Histórias centenárias, que permanecem
Riachos (localizada em Cabrobó-PE) e Águas do vivas na memória dos mais antigos, são dissemina-
Velho Chico (localizada em Orocó-PE). das através da oralidade aos mais jovens e através
As comunidades supracitadas estão em processo das gerações.
de regularização fundiária pelo Instituto Nacional O patrimônio cultural constitui-se como a área
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), onde, de uso, produção e reprodução de sua cultura, atra-
devido às constantes ameaças aos seus territórios, vés do contato com a natureza, no qual expressam
tais grupos sociais buscam ter reconhecidos seus sua identidade e modo de ser, todos relacionados
direitos de acesso à terra e lutam pelo reconhe- com a memória biocultural desses povos. Neste
cimento e valorização de sua cultura, bem como sentido, o patrimônio é a história, a memória, os
outros direitos socioambientais e difusos. sistemas agrícolas tradicionais, o rio, a terra, o
As relações de territorialidade das referidas co- ar, a chuva, os animais que compõe a vida nestes
munidades se expressam pela relação com a terra, espaços e o sustento das populações quilombolas,
com a água do rio São Francisco, com os recursos bem como as áreas de caatinga de onde retiram
naturais da Caatinga, e com aspectos históricos, seu sustento, remédios, curas e onde constroem
seus modos de vida, racionalidade de gestão, as- suas cosmologias.
pectos cosmológicos e ancestrais, que definem e De maneira geral, as comunidades relatam his-
dão significado a uma singular espacialidade onde tórias de seres mitológicos que povoam o território
se encontram os quilombos. e entram em contato com os moradores. Sobre
Esses elementos espaciais e de territorialização essas elaborações que dizem respeito à vivência e à
são importantes para compreender a dinâmica convivência com seres mitológicos, os quilombolas
social dos quilombolas ao longo da história e con- possuem a crença de que estes pertencem ao campo
figuram-se ainda como elementos cosmográficos do sagrado e são protetores dos ambientes terrestres
intimamente ligados com a ancestralidade destes. e aquáticos, devendo ser respeitados e temidos em
A partir do uso do espaço e de suas práticas relação ao contato com a natureza, respeitando-a
sociais e produtivas – elementos da territorialidade para não ser por eles também punidos (como pescar
que dão sentido à vida –, os quilombolas foram de- durante a piracema ou outras ações que sejam des-

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 53-67, maio/ago. 2017 55
Comunidades Quilombolas do sertão de Pernambuco: diálogos sociopolíticos na construção de uma educação emancipatória

trutivas ao meio ambiente). Também está bem clara semiárido do São Francisco e que após os exemplos
a associação que fazem entre o sumiço desses seres bem-sucedidos de lutas de outras comunidades qui-
(na atualidade) e a construção de barragens, que lombolas, a exemplo de Conceição das Crioulas,1
alteram o ecossistema e toda relação estabelecida emergem em destaque no contínuo da luta pelo
entre o meio ambiente e os seres que nele habitam. reconhecimento dos direitos das comunidades
O sentimento de pertencimento e reconheci- quilombolas do sertão de Pernambuco.
mento ao lugar está presente na história de vida de
cada quilombola, fundamentando e fortalecendo a Caracterização do local de estudo
identidade do grupo, que coletivamente se recons-
trói e se reconstitui através das práticas diárias que As comunidades quilombolas encontram-se
envolvem o uso da terra e dos recursos naturais; da localizadas no Semiárido nordestino, inseridas
concepção espacial que é definida pelo calendário no bioma da Caatinga, caracterizado por ter um
de sazonalidade e ritmos próprios do calendário regime de chuvas de sazonalidade irregular, ou
ecológico, que além de ser respeitado e compre- seja, prolonga-se e encerra-se em períodos incertos
endido, é construído e transmitido por meio de de um ano para outro (SOARES, 2011). Por conta
processos geracionais, garantindo a sobrevivência dessas características climáticas, a disponibilidade
e a identidade dos grupos. hídrica é bem limitada e muito incerta no tempo e
A compreensão quilombola, enquanto identida- no espaço, e os rios acabam em sua maioria sendo
de política, se constitui também a partir da história de caráter temporário (SOARES, 2011).
de resistência e perpetuação nesses territórios e traz Os Municípios de Orocó e Cabrobó, ambos
à tona uma importante questão que diz respeito à insertados no Semiárido pernambucano, repre-
valorização do processo educativo das crianças e sentados na Figura 1, possuíam, em 2010, res-
jovens para resgatar a história dos negros, sobre- pectivamente, uma população de 13.180 e 30.873
tudo no Semiárido nordestino. habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro
Nos diferentes relatos em campo foi possível in- de Geografia e Estatística (2016a, 2016b). A região
ferir que, nas últimas três décadas, as comunidades possui como principal fonte de renda a agricultura
quilombolas do Semiárido brasileiro começaram e a caprinocultura, de modo que, nos quilombos, a
uma articulação entre si e com os movimentos fonte de renda é configurada nos mesmos moldes,
sociais negros. Assim como buscaram, dentro da porém em sua maioria de subsistência. Os muni-
própria comunidade, através da memória dos mais cípios têm ainda sido alvo do projeto do governo
antigos e por meio de suas histórias de vida e de federal da transposição do rio São Francisco,
seus ancestrais, compreender a própria gênese e através de seu eixo norte, sendo área diretamente
valorizar seus hábitos culturais que vêm desde os impactada.
tempos antigos e que se fundamentam nas relações A comunidade Águas do Velho Chico está
sociais e nos laços de reciprocidade. localizada às margens do rio São Francisco e é
A valorização da própria cultura emerge tam- constituída por cinco povoados: Caatinguinha,
bém a partir do acesso às recentes políticas públicas Remanso, Umburana, Vitorino e Mata de São José,
destinadas a esses grupos tradicionais, que visaram com uma população aproximada de 1.800 pessoas
desenvolver, sobretudo, aspectos da saúde e da (ou cerca de 500 famílias). Todos os povoados
educação das populações negras do campo, das que formam o quilombo apresentam relações de
águas, das florestas e das cidades. parentesco entre si.
Sabendo disso, o presente texto teve como 1 “A experiência educacional de Conceição das Crioulas é considerada
objetivo analisar as relações e contribuições de referência para o movimento quilombola e outras organizações
que trabalham com educação. A comunidade construiu um projeto
aspectos sociopolíticos na construção de uma edu- de ‘educação específica e diferenciada’ que trabalha com uma
cação emancipatória em comunidades quilombolas concepção na qual os valores, a cultura, os costumes, as tradições,
insertadas no contexto do Semiárido nordestino. a sabedoria das pessoas mais velhas e a história dos antepassados
fazem parte do processo histórico da comunidade” (INSTITUTO
O texto traz exemplos de duas comunidades qui- NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA,
lombolas que atualmente são bastante atuantes no 2014).

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Luclécia C. M. Silva; Moisés Felix de Carvalho Neto; Adriana Fernanda Busso

Figura 1 – Mapa de localização dos municípios de Orocó (laranja) e Cabrobó (verde),


no Estado de Pernambuco

Fonte: Adaptado de mapasparacolorir.com (2017).

A partir da disposição espacial é possível identi- das comunidades quilombolas. As informações


ficar os núcleos familiares que compõem o quilom- obtidas pelas observações foram associadas às
bo de Águas do Velho Chico, onde cada fronteira entrevistas com o propósito de fazer convergir os
simbólica desses núcleos expressa as ligações mais resultados da análise.
estreitas de parentesco em cada uma dessas locali- Na pesquisa foi utilizada uma abordagem
dades do quilombo (Mata de São José, Caatingui- quali-quantitativa, em que foi priorizado o mé-
nha, Remanso, Vitorino e Umburana). Os laços de todo qualitativo, pois segundo Alves-Mazzotti e
parentesco de cada localidade perpetuam-se em Gewandsznajder (1999), as concepções, crenças e
todo o quilombo através de vínculos diversos (pri- valores das pessoas são revelados a partir de aná-
mos, cunhados, tios, compadrio etc.), sejam estes lises interpretativas. A contextualização das fontes
de parentesco “real” ou “fictício” (AUGÈ, 2003), heterogêneas e a triangulação de fontes visou con-
ou seja, sustentados pela consanguinidade ou não. ferir uma maior confiabilidade entre as narrativas
A população quilombola de Cruz dos Riachos (BEAUD; WEBER, 2007; GIBBS, 2008).
é menor, composta por cerca de 60 famílias (ou Na pesquisa de campo, as entrevistas busca-
cerca de 200 pessoas) e encontra-se espacialmente ram ter acesso aos relatos de historias de vida e à
disposta no território entrecortado pela rodovia memória, bem como às impressões do passado e
BR–428, pelo rio São Francisco e seus afluentes, os do presente, na tentativa de entender, a partir do
riachos Grande e Ouricuri, que formam uma cruz. texto e da fala, o contexto social do grupo social
estudado. Após a coleta das narrativas, elas foram
Práticas metodológicas transcritas e analisadas a partir do universo de in-
terconhecimento entre os entrevistados (BEAUD;
Os procedimentos metodológicos utilizados WEBER, 2007).
foram: pesquisa bibliográfica diversa, observações Durante a pesquisa foi estabelecido um perfil
em campo e entrevistas abertas com os membros dos entrevistados, sendo contemplados preferen-

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Comunidades Quilombolas do sertão de Pernambuco: diálogos sociopolíticos na construção de uma educação emancipatória

cialmente professores e demais funcionários das ESPECIAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO


escolas, os líderes locais reconhecidos e legitima- DE IGUALDADE RACIAL, 2013).
dos pela comunidade, bem como representantes dos A partir desses dispositivos normativos e da luta
núcleos familiares que compõem as comunidades dos movimentos sociais, houve um grande avanço
quilombolas. A escolha dos núcleos familiares para na criação de diversas políticas públicas, em que
a realização das entrevistas partiu da indicação destacamos os programas educacionais destinados
dos membros das comunidades, assim como da à valorização da diversidade sociocultural no cam-
percepção dos pesquisadores, a partir do critério po. Como exemplo, citamos o Programa Nacional
de representatividade no interior do grupo. de Educação na Reforma Agrária (Pronera), criado
As entrevistas foram realizadas através do em 1997 e regulamentado em 2010, através do
método snowball2 (BERNARD, 2005), buscando Decreto nº 7.352, de 04 de novembro de 2010,
fazer uso de uma abordagem qualitativa que pro- bem como, concomitantemente, outras diretrizes
cura privilegiar a análise do material recolhido em educacionais para a educação do campo foram
campo. As entrevistas foram coletadas até que não sendo discutidas e criadas, como, por exemplo,
surgissem novas ideias, ou seja, utilizando o concei- o Parecer n. 36/2001 e a Resolução n. 1/2002 do
to de saturação do material (GLASER; STRAUSS, Conselho Nacional de Educação, que apontam
1967), em que o mais importante não é o número para uma educação diferenciada e contextualizada
de amostras e sim a compreensão dos elementos (NASCIMENTO, 2009).
de análise contidos nas entrevistas e depoimentos, Outro importante instrumento normativo criado
pois os relatos, por mais particulares que sejam, re- foi a Resolução CNE/CEB nº 8/2012, definindo
tratam práticas sociais de uma determinada época, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
inseridas no mundo do qual o individuo faz parte. Escolar Quilombola, em que estabelece:

Políticas públicas educacionais Art. 1º Ficam estabelecidas Diretrizes Curricu-


lares Nacionais para a Educação Escolar Quilom-
As relações das comunidades quilombolas com bola na Educação Básica, na forma desta Resolu-
os municípios de Orocó e Cabrobó se dão em diver- ção.
sos âmbitos, seja no econômico, seja no religioso § 1º A Educação Escolar Quilombola na Edu-
e espiritual, seja nos âmbitos cultural, político e cação Básica:
educacional. Durante décadas esses grupos sofre- I - organiza precipuamente o ensino ministrado
nas instituições educacionais fundamentando-se,
ram com grande dificuldade de acesso à educação e
informando-se e alimentando-se:
apenas recentemente estão usufruindo das políticas a) da memória coletiva;
públicas educacionais a eles destinadas. b) das línguas reminiscentes;
Durante o início do governo do então presidente c) dos marcos civilizatórios;
Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, foi criada a d) das práticas culturais;
Secretaria Especial de Políticas de Promoção de e) das tecnologias e formas de produção do tra-
Igualdade Racial (SEPPIR) e iniciou-se a discussão balho;
pela aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, f) dos acervos e repertórios orais;
que apenas foi aprovado sete anos depois – Lei nº g) dos festejos, usos, tradições e demais ele-
12.288, de 2010. Em fevereiro de 2007, o Governo mentos que conformam o patrimônio cultural das
Federal institui a Política Nacional de Desenvol- comunidades quilombolas de todo o país;
vimento Sustentável dos Povos e Comunidades h) da territorialidade. (BRASIL, 2012).
Tradicionais, pelo Decreto nº 6.040, e a Agenda Tendo dentre alguns de seus objetivos:
Social Quilombola pelo Decreto nº 6.261/2007, III - assegurar que as escolas quilombolas e as esco-
que visou consolidar as ações do Programa Brasil las que atendem estudantes oriundos dos territórios
Quilombola, lançado em 2004 (SECRETARIA quilombolas considerem as práticas socioculturais,
2 O método snowball é uma técnica de pesquisa qualitativa políticas e econômicas das comunidades quilombo-
em que cada informante indica um novo informante. las, bem como os seus processos próprios de ensino

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Luclécia C. M. Silva; Moisés Felix de Carvalho Neto; Adriana Fernanda Busso

aprendizagem e as suas formas de produção e de XI - inserção da realidade quilombola em todo o ma-


conhecimento tecnológico; terial didático e de apoio pedagógico produzido em
articulação com a comunidade, sistemas de ensino
IV - assegurar que o modelo de organização e gestão
e instituições de Educação Superior;
das escolas quilombolas e das escolas que atendem
estudantes oriundos desses territórios considerem o XII - garantia do ensino de História e Cultura
direito de consulta e a participação da comunidade e Afro-Brasileira, Africana e Indígena, nos termos
suas lideranças, conforme o disposto na Convenção da Lei nº 9394/96, com a redação dada pelas Leis
169 da OIT; nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, e na Resolução
VI - zelar pela garantia do direito à Educação Escolar CNE/CP nº 1/2004, fundamentada no Parecer CNE/
Quilombola às comunidades quilombolas rurais e ur- CP nº 3/2004; XIII - efetivação de uma educação
banas, respeitando a história, o território, a memória, escolar voltada para o etnodesenvolvimento e para
a ancestralidade e os conhecimentos tradicionais; o desenvolvimento sustentável das comunidades
(BRASIL, 2012). quilombolas;

Outro importante preceito é destacado no XIV - realização de processo educativo escolar que
respeite as tradições e o patrimônio cultural dos
Art. 8º:
povos quilombolas;
Art. 8º Os princípios da Educação Escolar Quilom-
bola deverão ser garantidos por meio das seguintes XV - garantia da participação dos quilombolas por
ações: meio de suas representações próprias em todos os
órgãos e espaços deliberativos, consultivos e de
I - construção de escolas públicas em territórios qui- monitoramento da política pública e demais temas de
lombolas, por parte do poder público, sem prejuízo seu interesse imediato, conforme reza a Convenção
da ação de ONG e outras instituições comunitárias; 169 da OIT;
IV - presença preferencial de professores e gestores XVI - articulação da Educação Escolar Quilombola
quilombolas nas escolas quilombolas e nas escolas com as demais políticas públicas relacionadas aos
que recebem estudantes oriundos de territórios direitos dos povos e comunidades tradicionais nas
quilombolas; diferentes esferas de governo. (BRASIL, 2012).
V - garantia de formação inicial e continuada para Esses diversos instrumentos normativos re-
os docentes para atuação na Educação Escolar conhecem a importância de uma educação dife-
Quilombola;
renciada, que valorize os conhecimentos locais
VI - garantia do protagonismo dos estudantes qui- e ancestrais, fortalecendo não só a identidade
lombolas nos processos políticopedagógicos em dos diferentes grupos sociais, mas, sobretudo, a
todas as etapas e modalidades; organização sociopolítica e o desenvolvimento
VII - implementação de um currículo escolar aber- do território (SILVA, 2012). Ainda segundo Silva
to, flexível e de caráter interdisciplinar, elaborado (2012, p. 119), o desenvolvimento da educação
de modo a articular o conhecimento escolar e os escolar quilombola perpassa pela compreensão de
conhecimentos construídos pelas comunidades que “[...] construir por meio/em/na/com as escolas
quilombolas; do território as formas de luta é o reconhecimento
VIII - implementação de um projeto político-peda- de que a luta não é tarefa de uns e umas, e sim de
gógico que considere as especificidades históricas, todos”.
culturais, sociais, políticas, econômicas e identitárias A luta vivenciada cotidianamente pelas co-
das comunidades quilombolas; munidades quilombolas é pela efetivação de uma
IX - efetivação da gestão democrática da escola educação emancipatória, que verdadeiramente
com a participação das comunidades quilombolas contemple e valorize a realidade local de modo a
e suas lideranças; fortalecer os objetivos construídos em conjunto
dentro do território.
X - garantia de alimentação escolar voltada para
as especificidades socioculturais das comunidades Quando pensamos a escola como um espaço espe-
quilombolas; cífico de formação inserida num processo educativo

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Comunidades Quilombolas do sertão de Pernambuco: diálogos sociopolíticos na construção de uma educação emancipatória

bem mais amplo e não apenas de socialização de diferenças de organização entre as comunidades
saber que vem pronto e acabado sem deixar bre- quilombolas se devem ao tempo de articulação de
chas, lacunas para outros saberes, deparamo-nos cada comunidade e ao processo temporal natural
com mais de um currículo dentro da mesma escola, de cada comunidade de se apoderar das decisões
disputando status ou controle. Os instrumentos são:
referentes ao seu território e à sua comunidade.
regimentos, modelos e finalidades de avaliações,
No município de Orocó pode-se observar
testes e os conteúdos, ou seja, a escola com olhares
e perspectivas diferentes se cruzando, intercruzando, a grande atuação dos membros do quilombo
chocando-se entre si, pois suas direções ou rumos, Águas do Velho Chico no desenvolvimento da
se é que podemos chamar assim, buscam objetivos comunidade, assim como, em Cabrobó, o qui-
diferentes. (SILVA, 2012, p. 132). lombo Cruz dos Riachos destaca-se na luta pelo
reconhecimento dos direitos das comunidades
Diálogos sociopolíticos na construção quilombolas.
de uma educação emancipatória O sentimento de que há uma maior organiza-
ção e alto grau de poder de decisão em Cruz dos
Os relatos obtidos em campo apontaram que Riachos, mais do que em outros quilombos de
desde o fim da década de 1990 as comunidades do Cabrobó, é manifestada por seus membros quando
Semiárido nordestino vêm tendo outras perspecti- questionados sobre as principais diferenças entre
vas de luta por uma educação de qualidade, diante Cruz dos Riachos e outros quilombos circunvizi-
do aumento na interação entre as diversas comuni- nhos. Helena, agente de saúde e uma das lideranças
dades quilombolas da região. A Comissão Estadual em Cruz dos Riachos, diz que essa falta de decisão
de Quilombolas tem realizado projetos com todas atrapalha no momento de unir forças em prol de
as comunidades, mas quando se trata do município, melhorias para todas as comunidades, além de ou-
as reuniões servem para cobrar melhorias na saúde tras observações pertinentes destacadas em trecho
e educação para as comunidades. da entrevista que segue abaixo:
Muitos membros quilombolas participam de
A Meyrinha fez o censo lá [outra comunidade qui-
vários Conselhos dentro das Prefeituras dos mu-
lombola], as casinhas são casinhas de barro ainda,
nicípios de Orocó e Cabrobó (saúde, educação, poucas pessoas têm casa de alvenaria, e eles, assim,
merenda escolar, agricultura). Essa participação eles têm, eu não sei o que aconteceu com eles, por-
permanente tem servido para fiscalizar e cobrar que a gente perdeu o medo, a vergonha de falar com
ações em prol de uma educação diferenciada e de quer que seja. Se tiver lá e a gente precisar com juiz,
qualidade nas comunidades de Águas do Velho com promotor, com prefeito, e eles assim, eles têm
Chico e de Cruz dos Riachos. um certo medo de se expressar, é aquelas pessoas
Contudo, nem sempre foi assim, pois durante que tudo que você diz a eles concorda que sim [...]
muitas décadas essas comunidades quilombolas o censo mesmo escolar, Meyrinha foi quem fez, e
foram invisibilizadas, não tinham direito ao acesso aqui a gente colocou tudo, que a gente não estava
à educação e aqueles que quisessem insistir em satisfeito com a escola, com a merenda, com o local,
e aí, Meyrinha foi fazer o censo lá. Quando chegou
estudar teriam que conseguir arcar com os custos
lá a menina diz:
de deixar sua localidade para residir em outro mu-
nicípio que proporcionasse acesso à escola. ‘Aqui tem cadeira?’
Em uma análise paralela, observa-se que os ‘Tem, mas está tudo quebrada.’
grupos indígenas da região se encontram bem
mobilizados, possuem grande articulação e pos- ‘Mas tem?’
suem grupos de professores indígenas em níveis ‘Tem!’
estadual e nacional (Comissão de Professores/as Aí Meyrinha disse:
Indígenas em Pernambuco – COPIPE). Recen-
temente, as comunidades negras rurais iniciaram ‘Tem não, se elas estão quebradas não tem condições
também a luta para obter maior mobilização a fim de menino estudar não.’
de fortalecerem a luta quilombola. Entretanto as Aí ela perguntou:

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Luclécia C. M. Silva; Moisés Felix de Carvalho Neto; Adriana Fernanda Busso

“E o material escolar, a quantidade que vem, é com eles essa questão (HELENA, 2013).3
suficiente?’
A Comissão Estadual de Articulação das Co-
Aí diz que ela disse assim: munidades Quilombolas de Pernambuco, entidade
‘Dá pra quinze dias, quinze dias fica sem.’ criada em 2003, tem o objetivo de “[...] articular
as comunidades do estado para que a luta pela
‘Mas é suficiente?’
garantia dos direitos dos quilombolas avance de
Elas disseram que era, aí Meyrinha disse que não, aí forma integrada” (AQCC, 2003).
depois Meyrinha refez o censo, aí agora eles estão re- A participação das comunidades quilombolas na
cebendo a merenda igual a gente está recebendo aqui. política regional, participando de cadeiras represen-
Aí aqui só vinha carne, feijão, arroz, macarrão, tativas dentro das secretarias e se organizando in-
milho, que é pra fazer o mugunzá, e salsicha. Aí a ternamente de forma politizada, tem desenvolvido
gente foi e conversou, porque salsicha não é uma e fortalecido a luta quilombola. Vejamos o que diz
comida pra criança que tá em fase de crescimento, Océlia, uma das lideranças de Cruz dos Riachos:
ela não oferece nenhuma vitamina, aí a gente foi,
Antes não sabia falar, andar, nem pedir informação,
sentou e conversou, ‘a gente quer fruta, verdura’, aí
e hoje nós temos tudo isso, hoje, se quem tá aqui
foi dividido, diminuiu a carne e aumentou em outras
puder resolver alguma coisa, resolve, mas se não
coisas, e leite a gente tá recebendo. Aí, quando foi à
puder, pode mandar qualquer pessoa que resolve
reunião, a gente colocou, não Cruz do Riacho, mas
também. A gente cresceu no geral, a gente cresceu
Santana e Jatobá, eles estão com esse problema, aí
na agricultura, nos estudos, em questão de formação,
eles não têm aquele poder de decisão.
políticas públicas, que a gente não tinha e hoje a
O posto médico lá é em outra localidade e é muito gente tem. Cresceu em todos os sentidos. A gente tem
difícil pra eles ir, e a gente queria pedir um posto de que trabalhar políticas públicas, hoje não consegue
apoio lá, aí a gente foi pra reunião e disse, chegando mais nada se não for assim, a gente divulga, a gente
lá vocês coloquem tudo, aí a menina disse: ‘Não, mostra pras comunidades vizinhas, pra prefeito, pra
se ajeitar a escola...’ E eu disse: ‘Mulher... Ajeitar secretário, a gente divulga pra todo mundo, tem que
a escola nada, a gente quer que construa um posto mostrar mesmo. (OCÉLIA, 2013).
de apoio.’ Aí ela disse: ‘Não, mulher, mas se ajeitar
A Comissão Estadual de Quilombolas tem re-
a escola...’
alizado projetos com todas as comunidades, mas
Aí enfraquece, porque a gente estava falando com o quando se trata do município, as reuniões servem
prefeito e queria que construísse um ponto de apoio, para cobrar melhorias na saúde e educação para
porque eu faço parte do Conselho e a gente fica se as comunidades. Uma das lideranças em Cruz dos
informando como é as comunidades e o que tem que Riachos salienta que participam de reuniões men-
levar. Aí ela disse que não, que bastava consertar a
sais da Comissão de Comunidades Quilombolas,
escola pra ela servir de ponto de apoio. Aí fica difícil,
entre outras reuniões que ajudam na aquisição de
porque eles não têm aquele poder de decisão, eles
têm medo de político, não sei por que eles têm medo experiência. Desde 2012, participam de vários Con-
de político, se um político falar qualquer coisa eles selhos dentro da Prefeitura do município (saúde,
acham que é aquilo. educação, merenda escolar):
Por que aqui não, aqui o rapaz mandou um recado Helena participa do Conselho de Saúde, já é a cadei-
falando que ia construir cinquenta casas, mas então, ra, é obrigatório, e Alrenita participa do Conselho de
pra que construir 50 casas? A gente não é cinquenta Educação. Alrenir participa do Conselho de Assistên-
famílias, por que que vai construir 50 casas? Aí eu cia Social, eu participo do Conselho de Assistência
vou deixar minha casa para ir morar numa casinha Social, eu represento as comunidades da merenda
do governo. A gente quer as casas que forem neces- escolar; perdemos a cadeira da alimentação, porque
sárias, a gente tem um projeto que era com treze eles deixaram o convite atrasado, e a gente tem o con-
famílias, mas pela documentação só conseguiu 11 selho CPP, da Igreja Católica, Conselho Paroquial,
casas. A gente vai construir 50 casas, pra juntar Helena e Meyrinha. Eu participo também desses
morcego? E eles não, eles são assim, falou, eles 3 No processo de mitigação do Ministério da Integração Na-
concordam que sim, então a gente tem trabalhado cional, as comunidades têm recebido em torno de 60 casas.

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Comunidades Quilombolas do sertão de Pernambuco: diálogos sociopolíticos na construção de uma educação emancipatória

Conselhos, eu só não acompanho os Conselhos de ção de qualidade. Em Águas do Velho Chico, cada
Merenda e da Educação. Helena, Alcenir e João Neto localidade possui uma pequena escola (Umburana,
participam do Conselho de Desenvolvimento Rural. Vitorino, Caatinguinha, Remanso e Mata de São
(OCÉLIA, 2013). José) que atende ao Ensino Fundamental. Para os
Na comunidade Águas do Velho Chico não há adolescentes em fase do Ensino Médio são utiliza-
Ensino Médio, obrigando o jovem a ir para a cida- das as escolas do município de Orocó e o transporte
de estudar, provocando a dispersão e afastamento é realizado através do ônibus escolar.
dele da sua comunidade, além de ter que enfrentar
salas congestionadas ou falta de alimentação e Figura 2 – Escola Antônio Leandro da Cruz, Vitorino
preconceito, conforme relata Jacielma, professora
e presidente da Associação da Umburana:
A gente está lutando por um Ensino Médio, por
conta dessa escola que a gente recebeu, e a questão
dos ônibus que quebram muito e tira os jovens da
atividade da comunidade, porque essa escola que
se diz de referência é referência para o governo,
não para gente do meio da família. Porque quando
chega lá fora, se envolve tanto com o que tem lá que
esquece de participar. Eles dizem que às vezes são
discriminados por ser quilombola, que as escolas Fonte: Acervo pessoal dos autores deste artigo.
estão encharcadas, salas superlotadas e que a me-
renda é de péssima qualidade. Diz que menino fica Figura 3 – Escola José Bonifácio, Mata de São José
até sem comer lá, o dia todo, porque sai daqui cinco
e meia, quando chega na Umburana já é seis e meia
da manha, então tem um ônibus pra pegar Umburana,
Remanso, Caatinguinha e Mata, e outro ônibus para
levar Vitorino. (JACIELMA, 2014).
Dessa forma, política e identidade são intrín-
secas e compõem processos sociais, promovendo
o desenvolvimento das comunidades quilombolas
através de intercâmbios e experiências que são
realizadas entre comunidades, e a partir da parti-
cipação das comunidades nos processos de deci-
Fonte: Acervo pessoal dos autores deste artigo.
sões políticas enquanto grupos sociais e políticos,
resgatando trajetórias comuns e fortalecendo o
pertencimento desses grupos. Figura 4 – Sala multisseriada em Umburana
A organização sociopolítica fortalece o desen-
volvimento dos territórios quilombolas, pois pro-
picia a busca por direitos e efetivação das politicas
públicas destinadas a esses grupos sociais. Assim
como promove a reflexão e a discussão sobre a im-
portância de uma educação escolar emancipatória e
construída a partir das necessidades reais e locais.

Educação quilombola em águas do


Velho Chico
As comunidades quilombolas aqui relatadas
possuem uma longa história de luta por uma educa- Fonte: Acervo pessoal dos autores deste artigo.

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Figura 5 – Escola Santo Nino, Umburana (desativada) Atualmente, o Vitorino é onde se concentra
a diretoria geral das escolas (apenas Vitorino e
Remanso possuem diretoras). Devido à baixa den-
sidade populacional (entre outros fatores), encon-
tramos em pelo menos três escolas da comunidade
salas multisseriadas. São salas em que um mesmo
docente atende estudantes de diferentes idades em
uma mesma turma, muito frequente em áreas rurais.
Constatou-se que as professoras e professores es-
tão bastante engajados nas discussões sobre políticas
públicas para a educação e lutam nas reuniões por
uma educação diferenciada, que atenda à manutenção
Fonte: Acervo pessoal dos autores deste artigo. da cultura de seus ancestrais. Uma conquista impor-
tante está no fato de que todos os professores são
Figura 6 – Escola Augusto Félix da Cruz, Remanso moradores da comunidade Águas do Velho Chico.
Todavia, a proposta pedagógica não é oficialmente
quilombola e os professores procuram inserir, ao lon-
go do ano, aspectos dessa cultura do plano de ensino,
com referências à cultura quilombola.4 Da mesma
forma, a merenda não é diferenciada quilombola
(rica em frutas, legumes ou com comidas típicas da
população), sendo rica em embutidos e carboidratos
(macarrão e biscoito). Entretanto, a comunidade
está lutando para que a alimentação possa ter essas
características mais saudáveis.
Fonte: Acervo pessoal dos autores deste artigo. Uma grande conquista da comunidade Águas
do Velho Chico foi a inauguração da nova escola
Figura 7 – Escola São Judas Tadeu, Caatinguinha em Umburana, em 2016, bem como a inserção da
escola, em 2017, em projetos da Unesco.
Figura 8 – Escola inaugurada em Umburana, em 2016

Fonte: Acervo pessoal dos autores deste artigo.


Fonte: Acervo pessoal dos autores deste artigo.
Em Águas do Velho Chico, as cinco escolas 4 Por exemplo, durante as semanas que antecedem o dia do folclore,
municipais possuem os períodos Infantil I, Infantil os professores do ensino infantil 1 e 2 trabalham com as lendas
regionais (Nego d’água, Lontra d’água, Vó do mato, Mãe d’água)
II (1º ano), Fundamental 1 (do 2º ao 5º ano), sendo e também com o significado das festas de seu território, como o
que apenas uma delas (Vitorino, a segunda escola Reisado, a festa de São Gonçalo, entre outras. E esse trabalho é
desenvolvido ao longo do ano, fortalecendo os laços culturais e
erguida no território) contempla o Fundamental 2 regionais. Há também festas e comemorações em dias especiais,
(do 6º ao 9º ano). como o da Consciência Negra, em 20 de novembro.

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Comunidades Quilombolas do sertão de Pernambuco: diálogos sociopolíticos na construção de uma educação emancipatória

A escola inaugurada em Umburana passa a ser a Mesmo com as recentes conquistas, há ainda
única escola do estado de Pernambuco a ter oficial- um alto índice de adultos analfabetos funcionais
mente o selo da Unesco, integrando oficialmente na comunidade, sobretudo, devido às dificuldades
o Programa das Escolas Associadas da Unesco que estes sempre tiveram de locomoção para a
(PEA-Unesco). Também em 2017 o município escola, conforme relatam em entrevista Océlia e
de Orocó estabeleceu uma legislação especifica Rosemeyre (membros da comunidade). A seguir
para que apenas professores quilombolas possam apresentamos um diálogo entre Océlia e Rose-
participar de seleções para lecionar na escola da meyre, durante entrevista, sobre os tempos em que
comunidade. o transporte era muito precário na comunidade,
e como foi que, com muita luta alguns de seus
Comunidade Cruz dos Riachos: a parentes, conseguiram concluir o segundo grau:
educação que temos e a educação que OCÉLIA: Era muito sofrido, vinha de bicicleta. Na
queremos comunidade estudava até a quarta série e se acomo-
dava, porque pra vir pra cá [centro de Cabrobó] tinha
Cruz dos Riachos possui, desde 1986, uma que ter transporte e antes não tinha, só tinha bicicleta.
escola que atende ao Ensino Fundamental, cujo E eles trabalhavam o dia todo, e quando era 17h
nome remete ao principal fundador da comunidade, pegava a bicicleta e vinha pra cá, aí era perigoso pra
Manuel Joaquim de Moraes (Figura 9). Possui duas voltar de bicicleta à noite. Aí eles dormiam na casa
turmas e duas professoras (da própria comunidade) de parentes, e era chato tá incomodando nas casas,
que lecionam até a quarta série do Ensino Funda- e quase ninguém tinha casa. E depois os meninos
conseguiram comprar um carro; eles abastecia e
mental. Para os adolescentes em fase do Ensino
vinha, e depois Rosivan.
Médio são utilizadas as escolas do município de
Cabrobó, e o transporte é realizado atualmente por MEYRINHA: Foi assim, os pais se juntaram e
veículos (vans) fornecidos pelo município. vieram aqui e conseguiram um carro pra trazer os
A questão da educação se mostra o diferencial estudantes. Agora, imagina o carro, era o carro do
no empoderamento e tomada de decisões a que lixo. O carro fazia a coleta do lixo durante o dia e de
noite ia pegar a gente. Juntou as três comunidades:
estão cotidianamente elaborando os quilombolas
Cigano, Barro Preto e Vargem Grande, dava mais de
de Cruz dos Riachos. E foi em busca de uma escola 100 alunos no caminhão do lixo.
com qualidade e por uma educação diferenciada,
que prezasse pela manutenção da cultura de seus OCÉLIA: Tinha o carro que era o carro dos profes-
ancestrais que algumas mulheres de Cruz dos Ria- sores, ele vinha, deixava o professor e quando ele
voltava é que ele deixava, e já era tarde e a gente
chos se mobilizaram para estudar e concluir seus
perdia aula. Eu comecei e depois desisti. Meyrinha
cursos de licenciatura. também desistiu no meio do ano, não aguentou. E
os meninos continuaram vindo à noite.
Figura 9 – Escola na comunidade Cruz dos Riachos
MEYRINHA: Dos que começaram vindo à noite de
bicicleta, só terminaram meu irmão Van, Adalmir e
Almir. Era muito trabalho, dormia nas casas e quatro
da manha já tava em pé e vinha pra roça.
OCÉLIA: Em 97 a gente conseguiu o caminhão; o
caminhão pegava lixo durante o dia todinho e tinha
dias que dava tempo de o dono do caminhão lavar o
caminhão e tinha dias que não dava tempo de lavar
não, e ele passava só a vassoura e ia pegar a gente.
MEYRINHA: Isso foi anos... Eu fiz a 5ª, 6ª, 7ª e 8ª
andando nesse caminhão de lixo. Quando eu come-
cei a fazer magistério, aí foi que mudou, colocaram
Fonte: Acervo pessoal dos autores deste artigo. depois uma lotação.

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Luclécia C. M. Silva; Moisés Felix de Carvalho Neto; Adriana Fernanda Busso

Os quilombolas preocupam-se em participar os conteúdos específicos de cada quilombo e a


ativamente da educação de sua comunidade, de interculturalidade. Que eduque com cuidado com
forma que a comunidade possa ser preservada em o meio ambiente, o patrimônio cultural preserva-
assuntos internos, como relatou Océlia, a presidente do, a questão do desenvolvimento sustentável e
da Associação Quilombola: da preservação da cultura alimentar, o direito ao
material didático diferenciado e uma legislação
Nós temos uma cultura pra zelar por ela, nós temos
específica para educação escolar quilombola,
alunos que é daqui que eles precisam aprender certas
coisas. Se a gente pegar um professor que vem lá de
enfim, que seja respeitado o éthos (modo de ser)
Cabrobó, que vem lá de Belém de São Francisco pra de cada quilombo na elaboração das atividades
ensinar nossas crianças aqui, a gente vai perder os lúdico-educativas dentro da comunidade.
nossos saberes. Então a gente não aceita, então as Em Cruz dos Riachos, a luta para fazer valer
meninas não têm um curso superior, mas elas vão se seus direitos, expressos desde 2008 na carta, foi
atualizar, se deus quiser, e pra ensinar, porque elas adiante. A comunidade recusou as merendeiras
que têm o nosso saber, quem vem de fora não tem. e professoras que foram enviadas pela diretoria
E quem vem de fora não tá nem preocupado se vai de ensino, exigindo que as profissionais que
saber ou não, nada vai importar pra eles, então a edu- passaram no concurso para a vaga fossem da
cação a gente tem isso, né, esse cuidado. A Secretaria comunidade:6
tem o conteúdo do que as crianças têm que aprender,
A professora veio de Cabrobó; merendeira sempre foi
mas a gente também tem o nosso, principalmente a
da comunidade, porque nunca teve cantina. A gente
carta de princípios. (OCÉLIA, 2013).
tem a nossa reunião, então, se tem um estranho, a
A Carta de Princípios da Educação Escolar gente não coloca. A gente falava, a gente tem pes-
Quilombola (COMISSÃO ESTADUAL DE soas capacitadas dentro da comunidade, não vamos
COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE PER- aceitar não, aí a gente vai perder a privacidade e vai
NAMBUCO, 2008) traz 15 princípios acordados perder a cultura, é que não tinha pedagoga e tem
pelas comunidades nos encontros de educadores que fazer [o curso de licenciatura], já tá fazendo
(HELENA, 2013).
e educadoras quilombolas de Pernambuco, em
2007 e 2008, promovidos pelo Centro de Cultura A comunidade lutou por uma merenda diferen-
Luiz Freire5 em parceria com a Comissão Estadual ciada. Quando pediram para substituir a salsicha,
Quilombola. Para estas comunidades, a manuten- por exemplo, foram atendidos e a merenda passou
ção da cultura se dá com os próprios moradores a conter elementos mais nutritivos a partir de então.
fazendo parte do quadro de professores e funcio- A escola, que carrega o nome do patriarca Ma-
nários da escola, de forma que, juntos, possam nuel Joaquim de Moraes foi colocada como prio-
lutar por uma educação escolar que fortaleça e ridade pela comunidade e pela prefeitura quando
participe da luta pela regularização dos territórios houve a necessidade de aquisição de um freezer
tradicionais; que seja presente e participativa na para acondicionar as merendas que ficavam nas
vida da comunidade, reconhecendo e respeitando casas dos quilombolas:
todos os espaços onde as crianças e jovens apren- Teve uma única vez, a gente tava com um problema
dem e se educam, como na roça, na pescaria, nas seríssimo de armazenamento da merenda escolar,
festas tradicionais, nas reuniões comunitárias, nos porque a gente recebia a merenda escolar em pe-
terreiros das casas das pessoas mais velhas; que quena quantidade, aí, quando a merenda escolar
reafirme a história de resistência e a identidade chegava, os frios, a gente colocava nas geladeiras
étnica, os saberes e o jeito próprio do grupo de da comunidade, um colocava dois frango, outro co-
ensinar e aprender; o direito à formação específica locava a salsicha... Então, quando a gente começou
a receber alunos de outra comunidade, crianças de
e diferenciada para os professores e as profes-
outra comunidade, e a merenda aumentou, então a
soras quilombolas, com um currículo que seja gente tinha prejuízo, porque, quando ela chegava,
elaborado pela própria comunidade, garantindo
6 Rosemeyre afirma que a questão da licenciatura está sendo resolvi-
5 Organização Não Governamental de Direitos Humanos, com sede da, pois as professoras estão fazendo pelo sistema Ensino a Distância
no município de Olinda-PE. (EAD), para assim continuar dando aula na comunidade.

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Comunidades Quilombolas do sertão de Pernambuco: diálogos sociopolíticos na construção de uma educação emancipatória

tinha coisa que tinha que manter congelada, aí ficava Observa-se a partir das experiências em campo
trocando, tirava a merenda escolar e colocava a mi- junto às comunidades pesquisadas que, mesmo com
nha mistura, como diz o povo, e era o maior sufoco. os avanços na legislação que regulamenta as diretri-
Não tava mais podendo suportar, aí nessa reunião zes educacionais, as políticas públicas de Educação
foi uma reivindicação da gente, era um freezer pra ainda carecem de maior efetivação na prática. As
escola, foi na segunda-feira a reunião, quando foi na
comunidades ainda necessitam de escolas em níveis
quinta-feira, já chegou a geladeira, foi uma coisa que
resolveu de imediato. (OCÉLIA, 2013).
médio e fundamental II, em Cruz dos Riachos. O
transporte escolar ainda é precário e, sobretudo em
A comunidade foi envolvida por projetos em di- épocas de chuvas, torna-se difícil chegar até a sede
versos âmbitos do município, desde aula de música do município onde existem escolas de nível médio.
e culinária para crianças até estudo universitário As comunidades aqui apresentadas estão em
para os alunos que concluem o Ensino Médio. constante cobrança junto aos gestores municipais
pelo cumprimento de um projeto político pedagó-
Considerações finais gico que privilegie as especificidades culturais de
cada comunidade, pela inserção de professores e
A participação e representação das comunida- gestores quilombolas no quadro de funcionários das
des quilombolas na construção e incidência em escolas, por uma alimentação escolar diferenciada,
políticas públicas territorial, regional e nacional por um calendário festivo que respeite as tradições
têm fortalecido a luta desses povos, sobretudo locais, entre outras diretrizes.
em relação a uma educação contextualizada para É perceptível que certos avanços educacionais
convivência com o Semiárido. já foram alcançados, mas essa é uma luta contínua,
Mesmo com os avanços na legislação que re- diária e, sobretudo, para que as ações em cum-
gulamenta as diretrizes educacionais diferenciadas primento às Diretrizes Curriculares Nacionais da
nos diversos etnoterritórios no âmbito dos povos e Educação Escolar Quilombola sejam de acesso a
comunidades tradicionais, sobretudo no contexto todas as comunidades quilombolas da região.
do Semiárido nordestino, destaca-se que a efeti- Nesse sentido, tornar-se ainda mais importante o
vação de políticas públicas referentes à educação fortalecimento dos coletivos e movimentos sociais
quilombola ainda são insuficientes, bem como nem quilombolas que atuam na integração e articulação
sempre privilegiam as especificidades culturais de dessas comunidades por uma luta conjunta na cons-
cada comunidade. trução de uma educação emancipatória.

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de Geografia Física, v. 4, n. 1, p. 174-188, 2011.

Recebido em: 31/03/2017


Aprovado em: 28/06/2017

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 53-67, maio/ago. 2017 67
Lisângela Kati do Nascimento

EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: REFLEXÕES


SOBRE OS AVANÇOS DAS POLÍTICAS
EDUCACIONAIS E OS DESAFIOS PARA A PRÁTICA
PEDAGÓGICA NO VALE DO RIBEIRA-SP

Lisângela Kati do Nascimento (USP)∗

RESUMO
Esse texto tem por objetivo tematizar os avanços nas políticas educacionais para a
população quilombola, focando mais especificamente nas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, e problematizar alguns dos principais
desafios e obstáculos a serem enfrentados no processo de efetivação da modalidade
de educação escolar quilombola na educação básica. A análise aqui empreendida
será feita levando em conta o contexto histórico, geográfico e cultural da região do
Vale do Ribeira-SP, a partir dos resultados das pesquisas de mestrado (2003-2006)
e doutorado (2009-2012), ambas desenvolvidas no Departamento de Geografia da
Universidade de São Paulo, e dos dados coletados durante o “Ciclo de Audiências
Públicas sobre Educação Diferenciada no Vale do Ribeira”, promovido pela Defensoria
Pública Estadual e pela Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras
(EEACONE), em 2015.
Palavras-chave: Políticas educacionais. População quilombola. Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Vale do Ribeira.

ABSTRACT
QUILOMBOLA SCHOOL EDUCATION: CONSIDERATIONS ON ADVANCES
OF EDUCATIONAL POLICIES AND CHALLENGES FOR PEDAGOGICAL
PRACTICE IN THE VALE DO RIBEIRA REGION.
The purpose of this text is to review the advances in the educational policies for
the quilombola population, focusing more specifically on the National Curriculum
Guidelines (Diretrizes Curriculares Nacionais)  for Quilombola School Education.
It is intended as well to problematize some of the main challenges and obstacles to
be faced in the process of implementing quilombola school education. The analysis
undertaken here takes into account the historical, geographical and cultural contexts
of the Vale do Ribeira region in the state of São Paulo, based on the results of the
author’s master degree’s dissertation (2003-2006) and doctoral thesis (2009-2012),
both developed in the Geography Department of the University of São Paulo, and
the data collected during the “Public Hearings Cycle on Differentiated Education in
the Vale do Ribeira Region”, promoted by the State of São Paulo Public Defender and
by EEACONE (Articulation and Advisory Group for Black Communities), in 2015.

Doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa sobre Populações
Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (NUPAUB/USP). Professora no curso de Pedagogia do Instituto Vera Cruz e no
Ensino Médio da rede particular de São Paulo. Trabalha com assessoria pedagógica na rede pública e privada de ensino.
E-mail: [email protected]

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 69-86, maio/ago. 2017 69
Educação escolar quilombola: reflexões sobre os avanços das políticas educacionais e os desafios para a prática pedagógica no Vale
do Ribeira-SP

Keywords: Educational policies. Quilombola population. National Curriculum


Guidelines for Quilombola School Education. Vale do Ribeira.

RESUMEN
EDUCACIÓN ESCOLAR QUILOMBOLA: REFLEXIONES SOBRE LOS
AVANCES DE LAS POLÍTICAS EDUCACIONALES Y LOS DESAFÍOS PARA LA
PRÁTICA PEDAGÓGICA EN EL VALE DO RIBEIRA-SP
Este texto tiene el objetivo de tematizar los avances de las políticas educativas
para la población quilombola, enfocándose más específicamente en las Directrices
Curriculares Nacionales para la Educación Escolar Quilombola, y problematizar
algunos de los principales desafíos y obstáculos a ser enfrentados en el proceso
de efectividad de la modalidad de educación escolar quilombola en la educación
básica. El análisis aquí emprendido se hará teniendo en cuenta el contexto histórico,
geográfico y cultural de la región del Vale do Ribeira-SP, a partir de los resultados
de las investigaciones de maestría (2003-2006) y de doctorado (2009-2012), ambas
desarrolladas en el Departamento de Geografía, de la Universidad de São Paulo, y
de los datos recolectados durante el “Ciclo de Audiências Públicas sobre Educação
Diferenciada no Vale do Ribeira”, promovido por la Defensoría Pública del estado de
São Paulo e por el EEACONE (Equipo de Articulación y Asesoría a las Comunidades
Negras), en 2015.
Palabras clave: Políticas educativas. Población quilombola. Directrices Curriculares
Nacionales para la Educación Escolar Quilombola. Vale do Ribeira.

Introdução
Segundo dados da Fundação Cultural Palmares ralmente diferenciados e que se reconhecem como
(2008), do Ministério da Cultura, existem hoje tais; possuidores de formas próprias de organização
no Brasil 3.754 comunidades remanescentes de social; detentores de conhecimentos, tecnologias,
quilombos, identificadas em maior concentração inovações e práticas gerados e transmitidos pela
nos estados de Minas Gerais, Bahia e Maranhão. tradição; ocupantes e usuários de territórios e recur-
Outras fontes estimam que existam cerca de cinco sos naturais como condição para a sua reprodução
mil comunidades. cultural, social, religiosa, ancestral e econômica.
De acordo com o Art. 2º do Decreto nº A questão quilombola entrou, de fato, para a
4.887/2003, são considerados quilombos no Bra- agenda política institucional brasileira somente a
sil: “[..] grupos étnico-raciais segundo critérios de partir da Constituição Federal de 1988, como re-
auto-atribuição, com trajetória histórica própria, sultado da forte atuação do Movimento Negro na
dotados e relações territoriais específicas, com busca da garantia de direitos, do reconhecimento
presunção de ancestralidade negra relacionada e da valorização do negro na formação social,
com a resistência e opressão histórica sofrida” econômica e cultural do Brasil.
(BRASIL, 2003a). Por meio do Artigo 68 do Ato das Disposições
Para a Convenção 169 da Organização Inter- Transitórias Legais, a Constituição Federativa de
nacional do Trabalho (OIT) sobre os Povos Indí- 1988 garantiu às comunidades quilombolas o direi-
genas e Tribais (BRASIL, 2004) e para a Política to à propriedade definitiva da terra: “Aos remanes-
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos centes das comunidades de quilombos que estejam
Povos e Comunidades Tradicionais (BRASIL, ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
2007), os quilombolas são considerados povos ou definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
comunidades tradicionais por serem: grupos cultu- respectivos” (BRASIL, 1988). A definição da forma

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Lisângela Kati do Nascimento

coletiva de propriedade e o reconhecimento dos da região do Vale do Ribeira-SP, a partir dos re-
direitos territoriais dos grupos étnicos, até então sultados das pesquisas de mestrado (2003-2006) e
inexistentes, representam avanços significativos doutorado (2009-2012) que desenvolvi no Departa-
na legislação brasileira. mento de Geografia da Universidade de São Paulo e
Por meio dos artigos 215 e 216 da mesma Cons- dos dados coletados durante o “Ciclo de Audiências
tituição (BRASIL, 1988), as comunidades quilom- Públicas sobre Educação Diferenciada no Vale do
bolas passam a ter garantido o direito à manutenção Ribeira”, promovido pela Defensoria Pública Es-
de sua cultura. O primeiro dispositivo determina tadual, localizada no município de Registro, e pela
que as manifestações culturais afro-brasileiras se- EEACONE (Equipe de Articulação e Assessoria às
jam protegidas pelo Estado, enquanto o segundo Comunidades Negras/Vale do Ribeira, em 2015).
considera como patrimônio cultural brasileiro os A dissertação de mestrado intitulada “Identidade
bens de natureza material e imaterial, incluindo as e Territorialidade: os quilombos e a educação es-
formas de expressão e o modo de vida dos dife- colar no Vale do Ribeira” (NASCIMENTO, 2006),
rentes grupos formadores da sociedade brasileira. defendida em 2006, teve como foco investigativo
Entre as principais bandeiras de luta das co- o estudo da relação entre o ensino de Geografia e
munidades quilombolas no Brasil estão as reivin- a identidade cultural dos alunos quilombolas da
dicações para a concretização do direito à terra região do Vale do Ribeira. A partir da análise de
e permanência nos territórios em que vivem, a propostas didáticas de Geografia desenvolvidas
manutenção dos conhecimentos tradicionais e da nas escolas públicas do município de Eldorado,
memória coletiva, assegurar a autonomia no modo especialmente na escola do quilombo de Ivaporun-
de produção econômica, a superação do racismo e duva, das entrevistas realizadas com professores,
o acesso à educação de qualidade. lideranças e alunos quilombolas, o trabalho buscou
No campo das políticas educacionais, impor- identificar elementos que contribuem (ou não) para
tantes passos legais já foram dados nos últimos a (re)construção da identidade cultural das comu-
anos, visando o reconhecimento e a valorização nidades quilombolas da região do Vale do Ribeira.
da diversidade cultural e étnica presente no ter- Essa pesquisa evidenciou a inexistência, até
ritório brasileiro por meio dos Parâmetros Curri- aquele momento, de propostas didático-pedagó-
culares Nacionais, mais especificamente com o gicas que abordassem a diversidade cultural exis-
tema transversal “Pluralidade Cultural”; da Lei tente no Vale do Ribeira e a história da ocupação
nº 10.639/2003 (BRASIL, 2003b); da definição quilombola na região.
das Diretrizes Curriculares para as Relações Com os intensos trabalhos de campo foi possível
Étnico-Raciais e para o Ensino da História e identificar os desafios e obstáculos enfrentados por
Cultura Afro-brasileira e Africana, por meio da essas comunidades. Além da longa luta para garan-
Lei nº 11.645/2008 (BRASIL, 2008), garantindo tir os seus direitos previstos constitucionalmente
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, e manter o seu modo de vida tradicional e seus
Africana e Indígena; e mais recentemente por territórios, os quilombolas do Vale do Ribeira lutam
meio das Diretrizes Curriculares Nacionais para para que as escolas onde as crianças, adolescentes e
a Educação Escolar Quilombola na Educação jovens estudam sejam espaços de reconhecimento e
Básica (BRASIL, 2012). valorização de sua cultura e de aprendizagem sobre
Em que medida os avanços em relação à elabo- a história de seu povo.
ração de leis, resoluções e diretrizes visando a uma A pesquisa de doutorado que resultou na tese
educação para a diversidade estão se traduzindo em “O lugar do lugar no ensino de Geografia: um es-
ações, de fato, efetivas nas salas de aula? Quais as tudo em escolas públicas do Vale do Ribeira-SP”
condições necessárias para que os professores pos- (NASCIMENTO, 2012) investigou sentidos do
sam reesignificar suas práticas pedagógicas visando conceito de lugar para alunos e professores da rede
à implementação da educação escolar quilombola? pública do Vale do Ribeira. O objetivo principal
A análise aqui empreendida será feita levando foi compreender se o lugar vivido pelos alunos é
em conta o contexto histórico, geográfico e cultural estudado nas escolas públicas, contribuindo para

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Educação escolar quilombola: reflexões sobre os avanços das políticas educacionais e os desafios para a prática pedagógica no Vale
do Ribeira-SP

aprendizagens significativas, construção de víncu- que reconheçam como conteúdos de aprendizagem


los e para a compreensão complexa do lugar. o modo de vida, os valores culturais, a tradição, a
Os múltiplos olhares dos diferentes sujeitos luta pela terra, entre outros aspectos; a elaboração
dessa pesquisa – professores e alunos1 – nos mos- de materiais didáticos; e a participação das comuni-
traram que o lugar vivido pelos alunos parece estar dades na elaboração do projeto político pedagógico.
desconectado do mundo estudado na escola. Tanto Além das denúncias feitas oralmente durante
os alunos de Ensino Fundamental (Anos Finais) cada audiência, lideranças de 25 comunidades
quanto os de Ensino Médio abordados evidencia- quilombolas de diferentes municípios da região3
ram pouco conhecimento sobre o Vale do Ribeira responderam a um questionário elaborado pela
e sobre a diversidade sociocultural representada Defensoria Pública Estadual sobre a situação da
pelas populações tradicionais presentes na região. educação escolar. Esses dados foram tabulados e
A partir do desenvolvimento de oficinas pedagó- sistematizados no “Relatório da Situação da Edu-
gicas com os professores, foi possível constatar cação nas Comunidades Quilombolas do Vale do
que a maioria dos professores de Geografia que Ribeira” (PERES, 2017), elaborado pelo grupo de
atua na região, em sua formação inicial, não teve pesquisa “História e Memória para o Desenvolvi-
oportunidade de estudar o seu lugar vivido e não se mento”, coordenado pela professora Alice Miguel
apropriou das teorias para compreender a categoria de Paula Peres, da Universidade Federal de São
de lugar como pressuposto do ensino de Geografia, Carlos.
bem como de metodologias para tornar o lugar Visando promover o diálogo entre os avanços
objeto de conhecimento na escola. das políticas educacionais – focando mais espe-
O “Ciclo de Audiências Públicas sobre Educa- cificamente na Resolução CEB/CNE nº 08/2012
ção Diferenciada no Vale do Ribeira”2, realizado (BRASIL, 2012), que define as Diretrizes Curri-
ao longo de 2015 em quatro municípios da região culares Nacionais para a Educação Escolar Qui-
(Cananeia, Itaoca, Eldorado e Barra do Turvo), lombola na Educação Básica – e os desafios para a
contribuiu para fomentar o debate entre as popu- implementação da educação escolar quilombola no
lações indígenas, caiçaras, quilombolas e caboclas Vale do Ribeira, traçaremos um panorama – ainda
sobre o direito a uma educação de qualidade, in- bastante geral – sobre a situação atual da educação
cluindo tanto aspectos relacionados à infraestrutura quilombola na região.
(construção de escolas ou mais salas de aulas, de
bibliotecas etc.), bem como o direito a um currículo Vale do Ribeira: características gerais,
que contribua para a aprendizagem da história dos número de comunidades quilombolas,
diferentes povos que formam a região do Vale do situação fundiária e conflitos
Ribeira e para a valorização da identidade cultural
e étnica dos alunos e das alunas. A região do Vale do Ribeira, localizada entre
A partir dos depoimentos de representantes os estados do São Paulo e Paraná, abriga o maior
das diversas comunidades quilombolas da região, número de comunidades de quilombos do estado de
incluindo os municípios de Cananeia, Iguape, São Paulo. De acordo com os dados da Fundação
Registro, Eldorado, Itaoca, Iporanga e Barra do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (2015),
Turvo, foi possível identificar diversas demandas, atualmente, existem 58 comunidades quilombolas
como, por exemplo: merenda escolar adequada no estado, 37 delas no Vale do Ribeira,4 as quais
aos hábitos alimentares das crianças quilombolas; encontram-se em diferentes situações em relação ao
cursos de formação de professores para que possam
3 Cananeia: Mandira e Porto Cubatão; Barra do Turvo: Cedro,
lidar com as especificidades da educação escolar Reginaldo, Ilhas; Eldorado: Abobral Margem Direita, Abobral
quilombola; implementação de propostas didáticas Margem Esquerda, Andre Lopes, Ostra, Pedro Cubas, Sapatu,
Pedro Cubas de Cima, São Pedro, Engenho, Galvão, Ivaporunduva
1 No total foram abordados 287 alunos de Ensino Fundamental e Poça; Iguape: Morro Seco e Aldeia; Iporanga: Bombas, Maria
(Anos Finais) e Ensino Médio de escolas públicas do município Rosa, Nhuguara, Pilões e Piririco; Registro: Paropeba.
de Cajati. 4 Já as estimativas da Equipe de Articulação e Assessoria às Co-
2 Promovido pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, munidades Negras (EAACONE) apontam para a existência de
localizada no município de Registro. aproximadamente 60 comunidades somente nesta região.

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Lisângela Kati do Nascimento

processo de regularização fundiária (ver Anexo 1). priedade da terra, todas elas localizadas no Vale do
Deste total de comunidades existentes no estado de Ribeira: Ivaporunduva, Maria Rosa, Pedro Cubas,
São Paulo, apenas seis receberam o título de pro- Pilões, São Pedro e Galvão, conforme Figura 1.

Figura 1 – Mapa das comunidades quilombolas no Vale do Ribeira – Estado de São Paulo

Fonte: Limnios (2017).

Esse número expressivo de comunidades qui- e defesa dos preconceitos e da hostilidade da so-
lombolas na região do Vale do Ribeira se explica ciedade branca. Organizaram-se de modo a poder
pelo ciclo da mineração durante os séculos XVII e reproduzir-se social e materialmente por meio de
XVIII e a significativa produção de arroz no século relações de solidariedade, ajuda mútua e do acesso
XIX. Assim, formadas por escravos foragidos, comum à terra (NASCIMENTO, 2006).
libertos ou abandonados, muitas das comunidades Cada comunidade apresenta características
negras do Vale do Ribeira assentaram-se em terras específicas, próprias de um modo de convivência
próximas às margens do rio Ribeira de Iguape ou entre os membros do grupo e da articulação com a
em áreas de difícil acesso, em busca de autonomia sociedade envolvente. No entanto, algumas carac-

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Educação escolar quilombola: reflexões sobre os avanços das políticas educacionais e os desafios para a prática pedagógica no Vale
do Ribeira-SP

terísticas comuns podem ser observadas na maioria Brasil (um dos biomas mais ameaçados do planeta),
das comunidades, sendo possível compreendê-las uma grande área de restinga e de manguezais ainda
num âmbito geral. É importante ressaltar que bem preservados. Soma-se a presença de um dos
discutir a organização social, o modo de vida e a mais importantes complexos espeleológicos do
identidade cultural das comunidades em seu con- Brasil e o maior número de sítios arqueológicos
junto não significa a anulação das especificidades do estado de São Paulo. Para preservar o rico
de cada uma delas5. patrimônio ambiental, grande parte da região está
As comunidades quilombolas do Vale do Ri- protegida por alguma categoria de Unidade de
beira caracterizam-se, como outras populações Conservação (UC).
tradicionais, pelo forte vínculo com o território A partir da década de 1950, a criação de UCs por
em que vivem, onde se verifica um alto grau de toda a região, incluindo parques e áreas de proteção
preservação dos recursos naturais. A maioria dessas ambiental e de vida silvestre, principalmente, impôs
comunidades tem sua estrutura produtiva baseada inúmeras restrições às práticas rotineiras de utilização
na agricultura de subsistência, que assegura os pro- dos recursos naturais, alterando de maneira signifi-
dutos básicos para o consumo familiar, e em uma cativa o modo de vida das populações quilombolas.
pequena comercialização de parte de sua produção, Para Diegues (2000), esse modelo de preservação dos
a fim de suprir necessidades outras que a agricultura recursos naturais ignora o saber tradicional dessas co-
praticada não consegue proporcionar. munidades sobre o meio do qual fazem parte, impon-
As relações sociais são alicerçadas sob laços de do uma série de restrições que, na maioria das vezes,
parentesco e os trabalhos cotidianos, especialmente
são conflitantes com o modo como tais comunidades
os desenvolvidos na roça, são organizados sob base
utilizam os recursos naturais. Diante desse quadro,
familiar. Muitas famílias ocupam-se da agricultura,
muitos quilombolas tornaram-se assalariados nas
sendo a familiar a principal encontrada. A terra é
fazendas próximas. Algumas comunidades se inseri-
de uso comum6 e cada família ocupa pequenos
ram na produção de banana, conseguindo assegurar,
lotes para desenvolver sua roça, com plantações de
assim, formas de sustentabilidade próprias, como é
mandioca, feijão, milho, bata doce, inhame etc., e
criam seus animais. o caso do quilombo de Ivaporunduva, localizado no
É importante compreender que algumas das município de Eldorado.
características do Vale do Ribeira conferem deter- Complementando o conjunto de intervenções
minadas especificidades em relação aos conflitos no modo de vida tradicional, a partir da década de
vivenciados pelas comunidades quilombolas. A 1980, as comunidades quilombolas localizadas às
região caracteriza-se como uma área de grande margens do rio Ribeira de Iguape passam a correr
relevância ambiental em nosso país, pois concentra o risco de perderem seus territórios devido à possi-
as maiores manchas contínuas de Mata Atlântica do bilidade de construção de barragens neste rio7. Vale
ressaltar que o rio Ribeira sempre foi referência
5 Os diversos trabalhos de campo para a realização da pesquisa para todas as comunidades rurais ao longo dele
de mestrado nos proporcionaram um conhecimento significativo
das comunidades de Ivaporunduva, Pedro Cubas, André Lopes, assentadas; para as comunidades quilombolas, esse
Sapatu, Nhuguara, São Pedro e Mandira. Com a aproximação e rio desempenha papel fundamental como meio de
vivência no cotidiano das comunidades, foi possível perceber comunicação, transporte, pesca e lazer e para a
traços comuns, principalmente em relação às formas de utili-
zação e manejo dos recursos naturais. No entanto, em relação à perpetuação da dimensão simbólica dos habitantes
organização política para o enfrentamento de problemas sociais e dessas áreas (STUCCHI, 1998).
econômicos, foi possível perceber diferenças como os diferentes
graus de mobilização em torno das associações. 7 Havia dois projetos para a construção de quatro barragens no
6 Esse atributo constitui importante característica das comunidades rio Ribeira de Iguape: um deles é o projeto de construção da
de quilombos no Brasil. Almeida (1999), em seus estudos nas barragem Tijuco Alto, da Companhia Brasileira de Alumínio
comunidades quilombolas do Maranhão, constatou que as terras (CBA), do Grupo Votorantim, com o objetivo de produção de
de uso comum abarcam uma enorme quantidade de situações energia elétrica, em caráter privado, para aumentar a exportação
de apropriação dos recursos naturais (solo, recursos hídricos de alumínio para os EUA, Japão e Europa. O outro projeto é da
e florestais) que são utilizados a partir de uma diversidade de Companhia Energética do Estado de São Paulo (CESP), para
formas, incluindo combinação entre o uso e a propriedade, entre a construção de três barragens: Itaoca, Funil e Batatal, com o
o caráter privado e comum perpassados pelos fatores históricos objetivo de aproveitamento múltiplo, ou seja, para a geração de
e de parentesco, por exemplo (O´DWYER, 2002). energia e controle de cheias no rio Ribeira de Iguape.

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Lisângela Kati do Nascimento

Os problemas enfrentados, como as questões à superação da posição subalterna da população


ambientais, as dificuldades econômicas e a questão negra na sociedade brasileira, legitimada ao longo
das barragens, entre outros, sempre foram discuti- da história, inclusive, pelo nosso sistema educa-
dos e tratados abertamente nas comunidades e são cional. Portanto:
motivos de diálogo em vários momentos da vida É imprescindível considerar que a garantia da
cotidiana. As crianças, dessa forma, vivenciam Educação Escolar Quilombola como um direito
essas problemáticas no seu dia a dia. No entanto, das comunidades quilombolas rurais e urbanas
conforme depoimentos de diversas lideranças qui- vai além do acesso à educação escolar. Significa
lombolas coletados durante a pesquisa de mestrado a construção de um projeto de educação e de for-
(NASCIMENTO, 2006) e durante as audiências mação profissional que inclua: a participação das
públicas (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTA- comunidades quilombolas na definição do projeto
DO DE SÃO PAULO, 2015), quando chegam às político-pedagógico e na gestão escolar; a consi-
escolas, suas experiências sociais e sua identidade deração de suas estruturas sociais, suas práticas
cultural não são reconhecidas, sendo, muitas vezes, socioculturais e religiosas, um currículo aberto e
desqualificadas. democrático que articule e considere as suas formas
Nesse contexto, a educação escolar tornou-se de produção de conhecimento; a construção de
metodologias de aprendizagem adequadas às reali-
uma grande preocupação das lideranças quilom-
dades socioculturais das comunidades; a produção
bolas. Compreendendo a importância da educação
de material didático-pedagógico contextualizado,
formal, atualmente as comunidades lutam para a atualizado e adequado; a alimentação que respeite a
implementação das Diretrizes Curriculares Na- cultura alimentar das comunidades; a infraestrutura
cionais para a Educação Escolar Quilombola na escolar adequada e em diálogo com as realidades
Educação Básica (BRASIL, 2012). regionais e locais; o transporte escolar de qualidade;
a formação específica dos professores quilombolas,
Dos princípios da Educação Escolar em serviço e, quando for o caso, concomitante à sua
escolarização; a inserção da realidade sociocultural
Quilombola à situação atual das
e econômica das comunidades quilombolas nos
escolas que atendem aos alunos
processos de formação inicial e continuada de do-
quilombolas do Vale do Ribeira centes quilombolas e não quilombolas que atuarão
Em 2012, a Câmara de Educação Básica ou receberão estudantes dessas comunidades na
educação. (BRASIL, 2012).
(CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE)
aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para Os princípios acima que fundamentam as Di-
a Educação Escolar Quilombola na Educação retrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Básica, entendida como modalidade de educação Escolar Quilombola na Educação Básica, por meio
que compreende as escolas quilombolas (aquelas da Resolução CEB/CNE nº 08/2012, nos mostram
que estão localizadas em territórios quilombolas) que a garantia à educação escolar quilombola como
e as escolas que atendem estudantes oriundos de um direito das comunidades quilombolas rurais e
comunidades quilombolas. urbanas é maior que apenas o acesso à educação
A Educação Escolar Quilombola compreende escolar, incluindo formação inicial e continuada
a Educação Infantil, o Ensino Fundamental, o de professores quilombolas e não quilombolas,
Ensino Médio, a Educação Especial, a Educação produção de material didático contextualizado,
Profissional Técnica de Nível Médio, a Educação transporte escolar de qualidade, currículo aberto e
de Jovens e Adultos, inclusive a Educação a Dis- flexível, participação da comunidade na elaboração
tância, e destina-se ao atendimento das populações do projeto político pedagógico e na gestão escolar,
quilombolas rurais e urbanas. entre outros princípios.
É importante compreendermos que a moda- No escopo deste trabalho, nos restringiremos
lidade da educação quilombola está inserida no a analisar, ainda que de maneira sucinta, cinco
contexto mais amplo de buscas para garantir espa- aspectos fundamentais fortemente mencionados
ços institucionais de educação formal com vistas pelas lideranças durante as audiências públicas:

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Educação escolar quilombola: reflexões sobre os avanços das políticas educacionais e os desafios para a prática pedagógica no Vale
do Ribeira-SP

acesso às unidades escolares, currículo, formação Em 2005 foi fundada a Escola Estadual Maria
de professores, projeto político pedagógico e gestão Chules Princesa, a primeira escola quilombola do
escolar. Vale do Ribeira, fruto da luta das comunidades dos
municípios de Eldorado e Iporanga. Localizada
Acesso às unidades escolares no quilombo de André Lopes, em Eldorado, essa
escola consegue atender alunos de seis comunida-
Segundo dados do Conselho Estadual de Edu- des, sendo elas: Ivaporunduva, São Pedro, Galvão,
cação Quilombola (SÃO PAULO, 2013), apenas Nhunguara, Sapatu e André Lopes.
26 comunidades quilombolas em todo o estado de No restante da região do Vale do Ribeira, encon-
São Paulo têm escolas em seus territórios; destas, tramos situações adversas em relação à educação
24 são municipais (administradas pelas prefeituras) escolar destinada à população quilombola, marcada
e apenas duas são estaduais. De acordo com a Re- tanto pelo funcionamento precário das escolas
solução CEB/CNE nº 08/2012 (BRASIL, 2012), a existentes, quanto pela inexistência de escolas nas
educação escolar é obrigação do Estado, portanto, comunidades ou de alguma etapa de ensino, con-
a Secretaria Estadual de Educação precisa atender forme podemos verificar nos dados apresentados
a todas as escolas com demanda quilombola. no Quadro 1.

Quadro 1 – Unidades Escolares, número de crianças e número de estudantes

Comunidades/ Escolaridade
  SIM NÃO
Nº de crianças Nº de estudantes
Unidade Escolar na comunidade 16 8
Creches 2 23 179 4
Educação Infantil (4 a 5 anos) 14 11 175 156
Ensino Fundamental – Anos Iniciais
14 11 236 284
(6 a 8 anos)
Ensino Fundamental (9 a 14 anos) 4 21 324 243

Ensino Médio (15 a 17 anos) 3 22 239 201

Total 1153 888


Fonte: Peres (2017, p. 10).

Os dados acima mostram que em 16 comuni- localizadas nos municípios de Barra Turvo, Eldo-
dades há unidades escolares8 e em apenas duas há rado e Iporanga, não há unidade escolar.
creches. Catorze comunidades contam com Edu- A falta de unidades escolares ou de algum seg-
cação Infantil e os Anos Iniciais do Ensino Funda- mento da escolaridade nas comunidades contribui
mental. Já os Anos Finais do Ensino Fundamental para a evasão escolar, pois para dar continuidade
estão presentes em apenas quatro comunidades e o aos estudos os alunos precisam se deslocar para
Ensino Médio, em três. Em relação à Educação de outros bairros, outras comunidades ou para a zona
Jovens e Adultos (EJA), foi declarado a presença urbana. Certamente, muitas dificuldades surgem
em apenas uma comunidade. Em oito comunidades neste processo, sendo algumas delas de ordem
8 Das 25 comunidades que responderam ao questionário, uma não
estrutural como, por exemplo, a travessia do rio
respondeu essa questão. Ribeira em alguns casos e o/ou deslocamento a pé

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Lisângela Kati do Nascimento

até o acesso ao transporte escolar, a necessidade crianças e adolescentes. Isso significa que estes
de ter que morar longe da família, entre outras estudantes se descolocam diariamente para estudar
dificuldades. em unidades do entorno, necessitando de transporte
De acordo com os dados levantados nesse mes- escolar, ponto bastante comentado e criticado pelas
mo questionário, nessas oito comunidades em que lideranças durante as audiências públicas.
não há escolas encontram-se aproximadamente 267 A qualidade do transporte escolar apontada
famílias com 54 crianças de até 3 anos, 55 de 4 a pelas lideranças que responderam ao questionário
5 anos, 72 de 6 a 8 anos, 324 de 9 a 14 anos e 239 nos chama atenção, conforme podemos verificar
de 15 a 17 anos, totalizando um universo de 744 pelos dados apresentados no Gráfico 1.

Gráfico 1 – Quantidade de estudantes com transporte inadequado em relação


ao total de estudantes segundo o nível de escolaridade

Fonte: Peres (2017, p. 14).

Estão expostos ao transporte inadequado 85 pessoas, não conta com água encanada, rede
71(45,5%) dos 156 estudantes de 4 a 5 anos; 162 de esgoto, energia elétrica, telefone e estrada. Só
(58,4%) dos 284 estudantes de 6 a 8 anos; 177 é possível acessar a comunidade por meio de trilha
(72,8%) dos 243 alunos de 9 a 14 anos; e 144 que não permite a circulação de veículos automoto-
(71,6%) dos 201 estudantes de 15 a 17 anos. res. Em Parecer elaborado pela Defensoria Pública
Os problemas que afetam a qualidade do trans- Estadual de Registro, enviado à Secretaria Estadual
porte escolar ofertado pelo poder público, ainda de Educação em março de 2016, o defensor público
de acordo com as lideranças que responderam ao Andrew Toshio nos mostra a situação de urgência
questionário são: estradas com problemas; ônibus em que se encontra essa comunidade:
sem manutenção, incluindo a falta de cinto de se-
gurança, pneus sem condições de tráfego; quebra [...] há anos o Estado de São Paulo não atende a
frequente de ônibus; profissionais despreparados Comunidade Quilombola de Bombas, não ofere-
cendo vagas no ensino fundamental, anos finais,
para o trabalho com estudantes e que dirigem
no Ensino Médio e na modalidade Educação de
em alta velocidade; transporte com superlotação;
Jovens e Adultos, totalizando 21 potenciais alunos
restrições de horários e dos pontos de partida e
excluídos do sistema de educação para ano de 2017.
chegada, forçando os alunos andarem até 15 km; (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO
necessidade de balsas. PAULO, 2016).
É importante mencionar um caso mais grave
ainda: os alunos da comunidade de Bombas estão Neste mesmo documento, o defensor público
impossibilitados de terem aula, ou seja, estão recomenda:
sofrendo violações a direitos fundamentais por À Secretaria da Educação do Estado de São Paulo,
omissão do Estado. Esta comunidade, localizada que assegure a prestação do serviço público de
no município de Iporanga, onde vivem cerca de educação na Comunidade Quilombola de Bombas,

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Educação escolar quilombola: reflexões sobre os avanços das políticas educacionais e os desafios para a prática pedagógica no Vale
do Ribeira-SP

localizada na cidade de Iporanga, disponibilizando e) das tecnologias e formas de produção do traba-


vagas no ensino fundamental, anos finais, no ensino lho;
médio e na modalidade Educação de Jovens e Adul- f) dos acervos e repertórios orais;
tos, ainda que por meio da adoção e regulamentação g) dos festejos, usos, tradições e demais elemen-
de metodologia e pedagogia alternativas, como o tos que conformam o patrimônio cultural das
sistema modular de ensino, desde que respeitadas comunidades quilombolas de todo o país;
as necessidades peculiares das famílias e dos estu- h) da territorialidade. (BRASIL, 2012, p. 03).
dantes da comunidade. (DEFENSORIA PÚBLICA
DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2016). Todos esses aspectos (línguas reminiscentes,
práticas culturais, repertórios culturais etc.) são es-
Em 20 de outubro de 2016, em reunião ordi- truturantes da identidade cultural quilombola. Essa
nária do Conselho Estadual de Educação Escolar identidade é constituída por diversos fatores, entre
Quilombola, da qual participamos, a Secretaria eles, a ancestralidade comum ao grupo, a autoiden-
Estadual de Educação garantiu que a questão seria tificação ou autoclassificação, elementos linguísti-
resolvida por meio da regularização da criação e cos e religiosos, organização política própria e um
adoção do sistema pedagógico alternativo contem- sistema particular de produção econômica. É im-
plando as peculiaridades da comunidade de Bom- portante ressaltar que não são apenas os elementos
bas, dada a inviabilidade do deslocamento diário distintivos que compõem a organização identitária
dos estudantes devido à falta de estrada. No entanto, do grupo, mas também os elementos contrastivos,
até o presente momento, a situação permanece inal- ou seja, aqueles que são (re)construídos ou (re)
terada e, portanto, os alunos continuam sem aula. afirmados quando o grupo está em confronto com
grupos externos. No caso do Vale do Ribeira, por
Currículo exemplo, os projetos de barragens para o rio Ribeira
de Iguape e a implementação das políticas ambien-
Por meio da Resolução CEB/CNE n. 8/2012 tais restritivas, como mencionamos anteriormente,
(BRASIL, 2012), está garantido às populações forçou as comunidades quilombolas a assumirem
quilombolas o direito a uma escola que assegure a uma identidade por meio da qual reivindicam o
formação básica comum, mas que respeite, valorize direito à terra, garantido constitucionalmente. Ou
e, sobretudo, crie condições para que a história seja, a identidade também é construída a partir da
de luta desse povo, a memória do grupo, os seus necessidade de lutar pelo território em que vivem.
valores culturais, as especificidades de seu modo O território, para as comunidades quilombo-
de vida, bem como suas contribuições históricas las, não constitui apenas um aglomerado físico
na formação do nosso país, se tornem conteúdos de terras férteis, como muitas vezes encontramos
de ensino e aprendizagem na escola. Portanto, nas descrições generalizantes dos livros didáticos.
faz-se necessário construir um currículo escolar Esse território é uma porção do espaço geográfico
aberto, flexível e de caráter interdisciplinar, elabo- onde ocorre tanto a produção material dos meios
rado de modo a possibilitar a articulação entre os de subsistência quanto a produção de significados
conhecimentos escolares e os conhecimentos das simbólicos do grupo. Conforme pontua Milton
comunidades. Santos (1998, p. 61), “[...] o território em que
vivemos é mais que um simples conjunto de ob-
§ 1º A Educação Escolar Quilombola na Educação jetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos,
Básica: moramos, é também um dado simbólico”. Assim,
I. organiza precipuamente o ensino ministrado nas torna-se necessário que questões relacionadas ao
instituições educacionais, fundamentando-se, território quilombola e, portanto, à territorialidade,
informando-se e alimentando-se: façam parte do currículo das escolas quilombolas.
a) da memória coletiva; A memória coletiva é outro elemento que forta-
b) das línguas reminiscentes; lece a identidade cultural, pois é por meio dela que
c) dos marcos civilizatórios; as histórias são contadas e reconstruídas. E essas
d) das práticas culturais; histórias são marcadas pelo lugar vivido por cada

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comunidade. É a partir dele (lugar vivido) que o do a Escola Estadual Maria Chules Princesa –, o
negro quilombola se define, não como um sujeito qual não traz aspectos da cultura e do modo de
genérico, mas como integrante de uma comunidade vida quilombola, bem como os materiais didáticos
ou grupo que ocupa um determinado território. utilizados pelos professores são os mesmos envia-
Durante as audiências públicas, as lideranças dos para todas as escolas públicas do estado de
quilombolas criticaram massivamente o currículo São Paulo, não abordando questões específicas do
seguido nas escolas onde as crianças, os adoles- Vale do Ribeira. Os dados do Gráfico 2 traduzem
centes e os jovens quilombolas estudam – incluin- essa crítica.

Gráfico 2 – Calendário escolar; costumes e as tradições da comunidade como parte do ensino


e do conteúdo das aulas e; história da luta quilombola no Brasil e da luta das comunidades
do Vale do Ribeira como parte do conteúdo das aulas

Fonte: Peres (2017, p. 21).

Como podemos notar, lideranças de 22 comu- trução, portanto, a escola enquanto instituição
nidades (entre as 25 que responderam ao questio- privilegiada de formação tem um papel fundamen-
nário) apontam que os costumes e as tradições das tal neste processo. É preciso que a escola considere
comunidades (roça, artesanato, brincadeiras, prepa- os interesses, os valores, a cultura e o conhecimento
ração dos alimentos) não fazem parte do ensino e dos sujeitos envolvidos no processo educativo e
do conteúdo das aulas, bem como a história da luta reconheça o lugar vivido dos alunos como objeto
quilombola no Brasil e da luta das comunidades do de aprendizagem na escola.
Vale do Ribeira. É importante lembrar que desde Se a criança, adolescente ou jovem vai para a
1997 os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) escola e não se reconhece nas propostas didáticas
(BRASIL, 1997) já apontavam para a necessidade desenvolvidas, o que significa dizer que o seu
de garantir um tratamento objetivo e compreensivo modo de vida, o seu modo de falar, os seus hábitos
daqueles aspectos considerados relevantes em cada alimentares, entre outros aspectos de sua cultura,
região e localidade. não são valorizados naquele espaço institucional,
A identidade cultural e social dos alunos qui- possivelmente esse aluno não vai querer se iden-
lombolas (e todos os outros alunos) é uma cons- tificar como pertencente ao seu grupo cultural. Se

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Educação escolar quilombola: reflexões sobre os avanços das políticas educacionais e os desafios para a prática pedagógica no Vale
do Ribeira-SP

a história da colonização e da escravidão negra no das e acompanhadas de uma discussão pedagógica


Brasil for estudada apenas do ponto de vista do com os estudantes sobre o seu sentido e o seu sig-
colonizador, estaremos contribuindo para que o nificado, sua relação com a sociedade em geral e a
aluno quilombola não se identifique como negro. comunidade quilombola em específico. Poderá ser,
portanto, a culminância de atividades realizadas em
Se as discussões sobre as barragens e sobre a ti-
sala de aula com os estudantes, projetos de trabalho,
tulação das terras quilombolas, por exemplo, não
projetos de áreas, de disciplinas específicas ou ati-
aparecerem de maneira intencional nas propostas vidades interdisciplinares. (BRASIL, 2012a, p. 44)
didáticas como conteúdos de aprendizagem, a esco-
la está perdendo a oportunidade de contribuir para No entanto, não está acontecendo isso em todas
o fortalecimento ou (re)construção da identidade as comunidades, como podemos verificar pelos
cultural dos alunos quilombolas e para a construção dados do Gráfico 2, que indica que somente em
da cidadania. seis comunidades o calendário da escola considera
as datas importantes para a comunidade, enquanto
Formar cidadão significa dar condições ao aluno de
em 18 comunidades (72%) isso não ocorre.
se reconhecer-se como sujeito social que tem uma
história, que tem um conhecimento prévio do mundo
e é capaz de construir o seu conhecimento. Significa Formação de professores
compreender a sociedade que vive sua história e o
De acordo com a Resolução CEB/CNE nº
espaço por ela produzido como resultado da vida dos
08/2012, para a efetivação da educação escolar
homens. Isso tem de ser feito de modo que o aluno
se sinta parte integrante daquilo que está estudando. quilombola é necessário:
(CALLAI, 2003, p. 78). [...] pedagogia própria em respeito à especificidade
étnico-cultural de cada comunidade e formação
Outro aspecto relacionado ao currículo e forte-
específica de seu quadro docente, observados os
mente mencionado pelas lideranças quilombolas princípios constitucionais, a base nacional comum
durante as quatro audiências públicas refere-se ao e os princípios que orientam a Educação Básica
calendário escolar. De acordo com as Diretrizes brasileira. Na estruturação e no funcionamento das
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar escolas quilombolas, deve ser reconhecida e valori-
Quilombola na Educação Básica (BRASIL, 2012), zada a diversidade cultural. (BRASIL, 2012).
o calendário das escolas quilombolas e daquelas
Portanto, faz-se necessário que professores e
que atendem alunos quilombolas deve se adequar
gestores da escola compreendam os sentidos dos
às peculiaridades locais, inclusive climáticas,
elementos culturais para a vida das comunidades
econômicas e socioculturais das comunidades. E,
quilombolas para que, a partir daí, compreendam o
ainda, deve incluir as datas consideradas mais signi-
papel da escola, do currículo, dos materiais didáti-
ficativas para a população negra e para a população
cos utilizados e das atividades propostas em sala de
quilombola, de acordo com a região e a localidade.
aula no fortalecimento da identidade sociocultural
Portanto, as comunidades precisam ser consultadas
dos alunos.
em relação às datas das festas tradicionais, festivais
Para Benedito da Silva, conhecido como Ditão,
locais, celebrações etc.
um dos importantes líderes do quilombo de Ivapo-
A melhor forma de reorganizar o calendário é runduva, a escola deveria exercer papel fundamen-
discuti-lo com a comunidade e os estudantes. Para tal na valorização da identidade quilombola, mas
tal, o assunto poderá ser levado para discussão acaba por desqualificar a experiência de vida e os
nas assembleias escolares, com o Colegiado ou
valores culturais quilombolas.
Conselho Escolar, com o Grêmio Estudantil, bem
Segundo depoimentos coletados durante a
como ser tema das reuniões e visitas à comunidade.
Essa poderá ser uma estratégia da escola para o pesquisa de mestrado, as escolas, na maioria das
conhecimento, a consulta e a escuta atenta do que é vezes, desqualificam a história de vida das crianças
considerado mais marcante pela comunidade a ponto e desvalorizam a forma de trabalho desenvolvido
de ser rememorado e comemorado pela escola. Cabe por seus pais, como o trabalho na lavoura, e não
destacar que as comemorações deverão ser precedi- proporcionam conhecimento suficiente e preparató-

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Lisângela Kati do Nascimento

rio para a vida na cidade. O trecho abaixo da carta Assim, a União, os Estados, o Distrito Federal e os
escrita, em 2002, pelas comunidades quilombolas Municípios deverão, de acordo com as deliberações
do Vale do Ribeira e enviada para o Ministério da da Conferência Nacional de Educação (BRASIL,
Educação corrobora com esses depoimentos. 2010):
As escolas que nossos filhos frequentam desvalo- Subsidiar a abordagem da temática quilombola em
rizam nossa experiência de quilombolas e nossa todas as etapas da Educação Básica, pública e priva-
cultura, afastando-os dos valores da comunidade. da, compreendida como parte integrante da cultura
e do patrimônio afro-brasileiro, cujo conhecimento
A maioria dos professores, sem nos conhecer,
é imprescindível para a compreensão da história, da
menospreza os nossos costumes reforçando a dis-
cultura e da realidade brasileiras;
criminação racial.
Promover a formação específica e diferenciada (ini-
O nível de ensino que a escola tem oferecido é fraco e
cial e continuada) aos/às profissionais das escolas
nossos filhos passam de ano sem saber ler e escrever.
quilombolas, propiciando a elaboração de material
O que nossos filhos aprendem na Escola, os afasta
didático-pedagógico contextualizados com a iden-
dos hábitos e costumes da comunidade, tira-lhes o
tidade étnico-racial do grupo;
incentivo do trabalho na lavoura e não dá conheci-
mentos para trabalhar e sobreviver na cidade. Isso Garantir aos professores/aos quilombolas a sua
faz com que eles não se sintam mais pertencentes à formação em serviço e, quando for o caso, conco-
comunidade e menos ainda à cidade9. mitantemente a sua própria escolarização.

Para Ditão, por não conhecer as comunidades e No entanto, conforme apontou Elson da Silva,
os costumes, a maioria dos professores que atuam professor, mestre em Educação e liderança jovem
nessas escolas não contribui para a superação da de Ivaporunduva, há por parte dos educadores um
discriminação racial. Certamente, isso dificulta a despreparo, além da falta de conhecimento sobre a
formação de uma reflexão crítica e sem precon- história do continente africano e dos negros no país,
ceitos, tanto por parte dos alunos (quilombolas ou o que resulta na deficiência do ensino étnico-racial,
não), como também dos próprios educadores, pois dificultando a compreensão sobre as populações
os quilombolas acabam sendo encarados de forma quilombolas no Brasil e no Vale do Ribeira.
estereotipada, como aponta Oriel Rodrigues, outra Temos um passado que a escola nos negou, sempre
liderança do quilombo de Ivaporunduva: fomos colocados como escravos e não como seremos
Toda vez que se fala em quilombos, tem um rótulo e humanos, sempre fomos vistos como negros captu-
esse rótulo tem sempre uma direção negativa. Quan- rados para trabalhar como escravos. Isso acontece
do chega na cidade, você percebe que as pessoas ainda hoje. Nossos filhos ainda não conseguem se
veem a gente como o pessoal do quilombo que é enxergar como sujeitos, sempre são colocados como
contra o progresso, que são contras barragens, então marginalizados. A nossa história ficou escondida
a barragem vai trazer o progresso e os quilombolas por muito tempo. É bonito falar de democracia, mas
são contra, então são pobres. Tudo nessa linha, essa democracia não pode ficar só nas conversas.
que faz com as pessoas desconheçam o quilombo. Quando estamos na escola, queremos aprender a
(NASCIMENTO, 2006, p. 75). somar e caminhar juntos com a escola formal. Esse
conhecimento aplicado pela escola se não for olhado
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a por toda a equipe gestora acaba destruindo todo o
Educação Escolar Quilombola na Educação Bá- conhecimento construído na comunidade, com os an-
sica explicitam que o poder público, em diálogo cestrais durante séculos. (DEFENSORIA PÚBLICA
com o movimento quilombola, deverá garantir, DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2015).
além da construção de um currículo diferenciado, Com a pesquisa de doutorado (NASCIMENTO,
financiamento para investir em arquitetura escolar, 2012) foi possível constatar que, se falta conhe-
alimentação escolar, elaboração de material didáti- cimento por parte dos alunos sobre o seu lugar
co e formação de professores e gestores escolares. vivido, falta também para os professores, que em
9 Trecho da carta escrita pelas comunidades quilombolas do Vale sua formação inicial não tiveram a oportunidade de
do Ribeira e encaminhada ao Ministério da Educação em 2002. estudar a história de ocupação do Vale do Ribeira

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Educação escolar quilombola: reflexões sobre os avanços das políticas educacionais e os desafios para a prática pedagógica no Vale
do Ribeira-SP

e, portanto, conhecem pouco sobre as comunidades beira e depois tímido em relação aos quilombos. A
quilombolas, bem como sobre outras comunidades gente não conhece história do Vale do Ribeira. A
tradicionais presentes na região. Dessa forma, história que passou no Vale do Ribeira, as pessoas
conhecem muito pouco. Isso é uma coisa que cai ter
podemos dizer que tanto a garantia por formação
que ser explorado. É uma outra coisa que também
inicial quanto continuada de professores para vai ter que ser explorado no campo da educação é
lidar com as especificidades culturais, históricas que tem um público diferenciado que necessita de
e ambientais do Vale do Ribeira visando à imple- ter uma intervenção diferenciada. (NASCIMENTO,
mentação de uma educação diferenciada, conforme 2006, p. 77).
a Resolução CEB/CNE nº 08/2012, parecem não
Todos os aspectos tratados neste tópico dialo-
estar sendo cumpridas.
gam com as denúncias das lideranças relacionadas
Assim, o pouco conhecimento sobre o Vale
à falta de cursos de formação continuada para os
do Ribeira por parte dos professores e gestores, a professores, pois grande parte dos professores que
nosso ver, se constitui um obstáculo para identificar atuam nesta escola vêm de outros municípios da
na história e na geografia da região conteúdos de região e não conhecem a realidade sociocultural da-
ensino e aprendizagem potentes, impossibilitando queles alunos quilombolas. Ao serem questionados
o reconhecimento e a valorização das populações se os professores que dão aulas aos estudantes das
tradicionais presentes em seu território, como alerta comunidades conhecem e respeitam a história da
o quilombola Oriel Rodrigues: luta quilombola ou possuem algum vínculo com a
No Vale do Ribeira, a gente ainda tem um diálogo questão quilombola, somente seis lideranças dis-
muito tímido. Tímido não somente com a questão seram que sim, ao passo que 18 disseram que não,
dos quilombos. Tímido em relação ao Vale do Ri- conforme podemos ver no Gráfico 3.

Gráfico 3 – Professor quilombola nas escolas e professores que conhecem


e/ou respeitam a história da luta quilombola ou possui algum vínculo com
a questão quilombola

Fonte: Peres (2017, p. 20).

É importante ressaltar que esses professores, nas escolas das áreas urbanas, devido à sua baixa
na maioria das vezes, assumem aulas nas escolas pontuação, de acordo com o sistema ao qual são
quilombolas ou naquelas que atendem alunos qui- submetidos. Eles acabam lecionando por pouco
lombolas em áreas rurais por falta de oportunidade tempo nestas escolas, geralmente durante um ou

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Lisângela Kati do Nascimento

dois anos, o que não contribui para a construção de De acordo com as Diretrizes Curriculares Na-
vínculos com as comunidades quilombolas atendidas cionais para a Educação Escolar Quilombola na
pela escola e, portanto, para a construção de projetos Educação Básica:
pedagógicos envolvendo essas comunidades. [...] o ponto de partida para a conquista da autonomia
Ainda de acordo com o documento final da pela instituição educacional tem por base a construção
CONAE (2010, p. 131-132), a União, os Estados, da identidade de cada escola, cuja manifestação se
o Distrito Federal e os Municípios deverão “[...] expressa no seu Projeto Pedagógico e no regimento
assegurar que a atividade docente nas escolas escolar próprio, enquanto manifestação de seu ideal
quilombolas seja exercida preferencialmente por de educação e que permite uma nova e democrática
professores/as oriundos/as das comunidades qui- ordenação pedagógica das relações escolares. O pro-
lombolas”. No entanto, ainda não se tem um quadro jeto político-pedagógico deve, pois, ser assumido pela
significativo no Vale do Ribeira de professores comunidade educativa, ao mesmo tempo, como sua
quilombolas para satisfazer a demanda tanto das força indutora do processo participativo na instituição
escolas situadas em territórios quilombolas quanto e como um dos instrumentos de conciliação das dife-
das escolas que atendem alunos oriundos dessas renças, de busca da construção de responsabilidade
compartilhada por todos os membros integrantes da
comunidades. Por outro lado, há (poucos) professo-
comunidade escolar, sujeitos históricos concretos, situ-
res quilombolas formados podendo lecionar nestas
ados num cenário geopolítico preenchido por situações
escolas, mas não há concursos públicos, conforme cotidianas desafiantes. (BRASIL, 2012).
denúncia das lideranças quilombolas durante as
audiências públicas. Os dados do Gráfico 3, acima, O PPP deve ser entendido tanto como um pro-
mostram que em apenas duas escolas há professores cesso quanto como um documento que evidencia o
quilombolas lecionando. resultado das negociações dos diversos atores en-
Para a efetivação da modalidade de educação volvidos com a escola (gestores, professores, técni-
escolar quilombola é necessário, portanto, além dos cos, representação estudantil, família e comunidade
cursos de formação continuada para os profissionais local). Portanto, deverá abordar as especificidades
em serviço, a criação de programas de formação históricas, sociais, culturais, econômicas e étnico-
inicial de professores em Licenciatura e cursos de -raciais da comunidade quilombola na qual a escola
Magistérios que capacitem os futuros docentes, se insere ou é atendido por ela (BRASIL, 2012a).
quilombolas e não quilombolas, para atuar em con- A partir de diagnóstico sobre a realidade da
sonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais comunidade quilombola e seu entorno e a posterior
para a Educação Escolar Quilombola na Educação análise dos dados levantados, o PPP deverá con-
Básica. Além disso, será necessário garantir aos siderar, de acordo com as Diretrizes Curriculares
docentes que atuam nesta modalidade condições Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na
dignas de trabalho, incluindo, entre outros aspectos, Educação Básica:
remuneração equilibrada às demandas para efeti- Os conhecimentos tradicionais, a oralidade, a an-
vação de uma educação de qualidade. cestralidade, a estética, as formas de trabalho, as
tecnologias, o patrimônio cultural e a história de
cada comunidade quilombola;
Participação das comunidades
na construção do Projeto Político As formas por meio das quais as comunidades qui-
Pedagógico e na gestão escolar lombolas vivenciam os seus processos educativos
cotidianos em articulação com os conhecimentos
Outros dois pontos fortemente levantados pelas escolares e demais conhecimentos produzidos pela
lideranças quilombolas durante as audiências públi- sociedade mais ampla.
cas se referem à participação das comunidades na A questão da territorialidade, associada ao etnode-
elaboração do Projeto Político Pedagógico (PPP) senvolvimento e à sustentabilidade socioambiental
e na gestão das escolas, pressupostos fundamen- e cultural das comunidades quilombolas deverá
tais para a implementação da educação escolar orientar todo o processo educativo definido no pro-
quilombola. jeto político-pedagógico. (BRASIL, 2012b, p. 13).

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Educação escolar quilombola: reflexões sobre os avanços das políticas educacionais e os desafios para a prática pedagógica no Vale
do Ribeira-SP

Segundo os depoimentos das lideranças nas bolas. Entre as 25 comunidades que responderam
audiências e os dados do questionário, na maioria ao questionário, somente três afirmaram terem
das escolas os PPPs estão sendo elaborados sem a participado da construção dos PPPs, conforme
necessária articulação com as comunidades quilom- podemos verificar no Gráfico 4.

Gráfico 4 – Participação das lideranças das comunidades na gestão das


escolas e das lideranças na construção do projeto pedagógico das escolas

Fonte: Peres (2017, p. 18).

Em relação à participação das comunidades No entanto, os dados do Gráfico 4 nos mostram


na gestão das escolas, a Resolução CEB/CNE nº que apenas sete comunidades participam da gestão
08/2012 garante que: das escolas, enquanto 17 não têm participação. A
As práticas de gestão da escola deverão ser realiza- articulação da escola com as comunidades quilom-
das junto com as comunidades quilombolas por ela bolas precisa ser entendida como um dos pilares da
atendidas. Nesse processo, faz-se imprescindível educação quilombola, portanto, faz-se necessário
o diálogo entre a gestão da escola, a coordenação uma mudança de mentalidade da equipe gestora,
pedagógica, as comunidades quilombolas e suas reconhecendo a participação das comunidades não
lideranças em âmbitos nacional, estadual e local. apenas como um direito em si, mas, sobretudo,
A gestão deverá considerar os aspectos históricos, como uma necessidade, permitindo identificar
políticos, sociais, culturais e econômicos do universo suas demandas, reconhecer seus conhecimentos e
sociocultural quilombola no qual está inserida. [...] valorizar sua participação.
Cabe enfatizar que a gestão das escolas quilom-
bolas deverá ser realizada, preferencialmente, por
quilombolas. Os sistemas de ensino, em regime de Considerações finais
colaboração, poderão estabelecer convênios e par- Para além da constatação de lacunas na ques-
cerias com as instituições de Educação Superior e
tão educacional no Vale do Ribeira, busca-se com
de Educação Profissional e Tecnológica, sobretudo
com os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e grupos estes apontamentos fomentar a reflexão sobre a
correlatos dessas instituições, para a realização de necessidade de tradução urgente das conquistas
processos de formação continuada e em serviço de legais representada pelas Diretrizes Curriculares
gestores que atuam nas escolas quilombolas e nas Nacionais para a Educação Escolar Quilombola
escolas que atendem estudantes oriundos desses na Educação Básica em situações de ensino que se
territórios. (BRASIL, 2012b, p. 49). desenvolvam na sala de aula e promovam a cons-

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Lisângela Kati do Nascimento

trução de aprendizagens significativas pelos alunos, significa apropriar-se de conhecimentos diversos


contribuindo para o fortalecimento da identidade e não apenas daqueles relacionados ao seu grupo
cultural quilombola. cultural.
É necessário um esforço coletivo e sistematiza- Tanto a formação inicial quanto a formação
do entre a Secretaria da Educação do Estado de São continuada de professores em serviço são pilares
Paulo, as diretorias de ensino, equipe de direção estruturantes para a implementação da educação
e coordenação da escola, equipe de professores quilombola como modalidade de ensino, juntamen-
e representantes quilombolas visando construir te com a elaboração de material didático que atenda
coletivamente o Projeto Político Pedagógico e o às demandas quilombolas. Para isso, urge mais
currículo escolar. É fundamental que os gestores e esforços nas esferas municipal, estadual e federal.
professores das escolas quilombolas e das escolas Não temos dúvida de que somente a partir
que atendem alunos quilombolas compreendam a de ações coletivas e intencionais será possível
importância desses dois instrumentos para a for- construir um projeto de educação capaz de supe-
mação de alunos como sujeitos sociais conscientes rar a visão eurocêntrica e homogeneizadora da
do seu papel na sociedade, que não tenham vergo- diversidade cultural, que atenda aos princípios de
nha de sua cultura, dos modos de produzir e das uma educação para a igualdade racial e cumpra as
tradições do seu povo, ao mesmo tempo em que diretrizes estabelecidas na Resolução CEB/CNE
os prepare para viverem no mundo global, o que nº 08/2012 (BRASIL, 2012b).

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Recebido em: 30/03/2017
Aprovado em: 28/06/2017

86 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 69-86, maio/ago. 2017
Kalyla Maroun; Edileia Carvalho

EXPERIÊNCIAS DE EDUCAÇÃO QUILOMBOLA: AS


RELAÇÕES ENTRE ESCOLA E COMUNIDADE

Kalyla Maroun (UFRJ)∗


Edileia Carvalho (PUC/Rio)∗∗

RESUMO
Este artigo objetiva comparar experiências de educação em duas comunidades
quilombolas situadas na Região Sul-Fluminense, a partir das relações estabelecidas
entre escola local e comunidade. A coleta de dados ocorreu entre os anos de 2011 e
2017 e contou com: etnografia; entrevistas com as principais lideranças políticas das
comunidades pesquisadas; análise de documentos oficiais disponíveis nas respectivas
escolas e Secretarias Municipais de Educação. Percebemos que tais experiências, ainda
que apresentem pontos em comum, podem ser tão diversas como os próprios processos
de formação das comunidades. Pensar em experiências de educação escolar quilombola
pressupõe nos abrirmos à pluralidade de possibilidades que estas representam.
Palavras-chave: Educação escolar quilombola. Escola. Comunidade quilombola.

ABSTRACT
EDUCATION EXPERIENCE QUILOMBOLA: RELATIONS BETWEEN SCHOOL
AND COMMUNITY
This work aims compare two quilombola education experiences, from the observation
of the relationship between school and community. Data collection took place between
the years 2011 and 2017 and included: ethnography; interviews with political leaders
of the two communities studied; analysis of official documents available in their
schools and Municipal Departments of Education. We realize that such experiences,
despite having common ground can be as diverse as the very processes of formation
of communities. Think of quilombola school education experiences presupposes open
ourselves to the countless possibilities they represent.
Keywords: Quilombola school education. School. Quilombola community.

RESUMEN
EXPERIENCIAS DE EDUCACIÓN QUILOMBOLAS: LA RELACIÓN ENTRE LA
ESCUELA Y LA COMUNIDAD
Este artículo tiene como objetivo comparar las experiencias de educación en dos
comunidades quilombolas ubicadas en la región del Sur Fluminense, a partir de las


Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RIO). Professora Adjunta da Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do Laboratório de Pesquisas em Educação do
Corpo da Faculdade de Educação (LABEC/UFRJ). E-mail: [email protected]
∗∗
Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RIO). Educadora na ONG Nova-
merica. Membro do Grupo de Estudos em Culturas, Escola e Cotidiano da Faculdade de Educação (GECEC/PUC-RIO).
E-mail: [email protected]

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 87-102, maio/ago. 2017 87
Experiências de educação quilombola: as relações entre escola e comunidade

relaciones que se establecen entre la escuela y la comunidad local. La recolección de


datos se realizó entre los años de 2011 y 2015, e incluyó: la etnografía; entrevistas
con los principales líderes políticos de las comunidades encuestadas; análisis de
documentos oficiales disponibles en las respectivas escuelas y Secretarías de Educación
Municipal. Notamos que dichas experiencias, a pesar de presentar puntos en común,
pueden ser tan diversas como los propios procesos de formación de las comunidades.
Pensar experiencias de educación escolar quilombolas requiere que nos abramos a la
pluralidad de posibilidades que las mismas representan.
Palabras clave: Educación escolar quilombola. Escuela. Comunidad quilombola.

Introdução
As políticas de diversidade voltadas à educação podem ser percebidas no Brasil, sobretudo no âm-
conquistaram visibilidade dentro do espaço políti- bito das chamadas políticas educacionais voltadas
co-governamental ao longo das primeiras décadas às diversidades e/ou às diferenças. A busca pela
do século XXI, a exemplo da Lei nº 10.639, de 2003 construção de processos educativos culturalmente
(BRASIL, 2003) e suas respectivas Diretrizes Cur- referenciados se intensifica, contribuindo para que
riculares (BRASIL, 2004), que tornaram obrigató- diferentes atores sociais, políticos e acadêmicos
rio o ensino da história e da cultura afro-brasileira assumam esse debate.
e africana na educação básica. Citamos como outro Nesse sentido, este trabalho objetiva analisar e
exemplo de tais políticas as Diretrizes Curriculares comparar duas experiências de educação quilombo-
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola la, a partir da observação das relações estabelecidas
(BRASIL, 2012), nova modalidade de educação entre escola e comunidade em dois campos empí-
no Brasil. Estas iniciativas, em conjunto com ou- ricos distintos. Para tanto, nos debruçamos sobre
tras ações e circunstâncias,1 contribuíram para a a história de formação, luta e resistência de duas
ampliação do debate político, social e acadêmico comunidades situadas na Região Sul-Fluminense:
acerca da educação em comunidades quilombolas, Campinho da Independência (Paraty) e Santa Rita
legitimando a imersão de seus saberes, culturas e do Bracuí (Angra dos Reis), bem como sobre as
tradições nos currículos escolares. relações estabelecidas entre estas e as escolas
Destacamos que, apesar da visibilidade obtida localizadas em seus territórios. A escolha de tais
em governos anteriores, o contexto político que comunidades se justifica por duas questões. Pri-
estamos vivenciando atualmente no Brasil parece meiramente, percebemos no cenário estadual do
apresentar um cenário cada vez menos favorável Rio de Janeiro o destaque destas comunidades no
ao diálogo, o que pode vir a fragilizar a promoção movimento de luta por uma educação diferenciada
das políticas educacionais voltadas à diversidade junto aos seus respectivos municípios. Além disso,
e/ou ao reconhecimento das diferenças, questão compreendemos que a experiência no campo da
central no escopo deste trabalho. educação vivenciada pelas referidas comunidades
As relações que podem ser estabelecidas entre aponta dilemas e estratégias singulares que nos
educação e cultura(s) vêm adquirindo paulatina- auxiliam na reflexão sobre a pluralidade das emer-
mente maior importância. As implicações políticas gentes demandas de educação escolar quilombola.
e epistemológicas desta relação (HALL, 1997) Para o acúmulo de dados empíricos utilizamos,
ao longo do trabalho de campo, iniciado em 2011
1 Como a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir), em 2003, e da Secretaria de Educa- e estendido até os dias atuais em razão do douto-
ção Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), em 2004, ramento de uma das autoras do presente trabalho,
atual Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, os seguintes procedimentos: etnografia; entrevistas
Diversidade e Inclusão), desde 2011. No ano de 2016, a Secadi é
extinta, o que aponta para um cenário preocupante no que tange com as principais lideranças políticas das duas
às políticas por ela geridas. comunidades pesquisadas; análise de documentos

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Kalyla Maroun; Edileia Carvalho

oficias disponíveis nas escolas e nas respectivas 1970, que trouxe a supervalorização da área e,
Secretarias Municipais de Educação. Predomina- consequentemente, o surgimento da especulação
ram nesta pesquisa as vertentes interpretativista imobiliária na região. Intensificou-se o interesse por
e culturalista da etnografia de Geertz (1989), já empreendimentos turísticos e, como consequência,
que não há uma busca pelas leis e regras que re- grande parte da população tradicional foi expulsa
gem as comunidades, mas pelo aspecto simbólico de suas terras. Os moradores passaram, então, a
relacionado à cultura, ou seja, há uma descrição enfrentar uma acirrada disputa por suas terras e
densa daquilo que foi observado. O foco, portanto, a conviver com ameaças de invasão de grileiros
recai sobre os protagonistas desse processo, ainda (aqueles que compras e vendem terras ilegalmente)
em aberto, de construção de modelos de educação e do Poder Público do estado do Rio de Janeiro, que
escolar quilombola, ou seja, partiremos das pers- diversas vezes tentou retirá-los da região.
pectivas encontradas no interior das comunidades A abertura da Rio–Santos impactou diretamen-
pesquisadas. te o modo de vida das populações tradicionais
do local (LIMA, 2008). Campinho, que vivia da
Breve histórico de formação agricultura familiar, passou a ter no roçado uma
das comunidades quilombolas prática de trabalho secundário. Grande parte dos
pesquisadas moradores da comunidade passou a se encontrar
na condição de trabalhador temporário no centro
Apresentaremos aqui um breve histórico dos de Paraty, sem garantias trabalhistas e estabilidade
processos de formação das duas comunidades qui- (GUSMÃO, 1998).
lombolas pesquisadas. A partir disso será possível No ano de 1975, organizados em torno da Co-
percebermos aproximações e afastamentos entre os munidade Eclesial de Base (CEB) e com a ajuda da
respectivos processos, isto é, questões mais gerais, Comissão Pastoral da Terra (CPT), os moradores
que costumam se repetir entre os processos de da comunidade entraram com ações individuais de
formação de tais grupos étnicos, e especificidades, usucapião, argumentando que desde o século XIX
que apontam para o protagonismo e estratégias habitavam aquelas terras. Entretanto, os processos
utilizados pelas comunidades. Esta apresentação judiciais ficaram paralisados durante anos, assim
é fundamental para a compreensão das experiên- como dispersos por diferentes cartórios.
cias de educação quilombola nesses contextos. Anos depois, ainda vivenciando um processo de
Abordaremos lutas que apontam não apenas para luta e enfrentamentos em torno da posse da terra,
um processo de resistência, mas também para uma em 1994, os quilombolas de Campinho fundaram
“aposta de (re)construção” de um sentido “coletivo a Associação de Moradores do Quilombo do Cam-
de pertencimento e de ser” (WALSH, 2012, p. 68), pinho (AMOQC) e começaram, então, a exigir a
que reverberam no campo educacional. titulação coletiva de suas terras, tendo em vista a
Campinho da Independência é o nome da pri- aplicação do Artigo 68 da Constituição Federal
meira comunidade quilombola titulada no estado de 1988.2
do Rio de Janeiro. No final do século XIX, com a A titulação, porém, só ocorreu no dia 21 de
decadência do regime escravocrata e com o proces- março de 1999, quando a comunidade recebeu da
so de desagregação das propriedades da região, o Fundação Cultural Palmares (FCP) e da Secretaria
“Senhor da Independência” (forma como era cha- de Assuntos Fundiários do Estado do Rio de Janeiro
mado o antigo fazendeiro escravista e proprietário o título definitivo de seu território, tendo como
do local) teria doado parte das suas terras a três outorgada a AMOQC. O reconhecimento oficial da
escravas que viviam na casa grande da Fazenda comunidade como remanescente de quilombo le-
Independência. vou à sua entrada no cardápio de políticas públicas
Campinho está localizado ao longo da costa lito- oficiais e de iniciativas de organizações sociais, o
rânea do Rio de Janeiro, à margem da Rio–Santos,
2 “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
assim como Bracuí, e, por isso, sofreu os efeitos ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, deven-
impostos pela abertura da rodovia, na década de do o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).

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Experiências de educação quilombola: as relações entre escola e comunidade

que produziu, por sua vez, uma enorme visibilidade Tradicionais de Paraty, criado em julho de 2007,
da comunidade no contexto sociopolítico de Paraty, abarcando comunidades da região Sul do estado
fato este que influenciou positivamente a comuni- do Rio de Janeiro e da região Norte de São Paulo.
dade de Bracuí em seu processo de reconhecimento O fórum constitui um importante instrumento para
e luta pelo território, como veremos adiante. o reconhecimento dos direitos das populações
Com a titulação de suas terras no ano de 1999, tradicionais e para a implementação da Política
a comunidade entra em um novo ciclo, com reper- Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
cussão tanto sobre seu modo de vida, quanto sobre Povos e Comunidades Tradicionais, conforme dis-
sua organização política. Desse contexto emergem põe o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007
novas lideranças, predominantemente jovens, afi- (BRASIL, 2007). O fórum trata de um espaço de
nadas com o discurso do movimento negro e com o fortalecimento e articulação política de comunida-
do campesinato, mais escolarizadas e disponíveis a des quilombolas, indígenas e caiçaras de Angra dos
participarem das articulações políticas que marcam Reis, Paraty e Ubatuba, espaço onde as comunida-
o início do movimento quilombola nacional. A des se reúnem para discutir questões comuns, tais
partir desse período, iniciam-se também os projetos como: território, turismo, educação, cultura, pesca,
culturais e de desenvolvimento, que viabilizaram a agricultura, agroecologia, mercado solidário, dentre
construção da casa de artesanato, a implementação outras. Outro importante destaque a ser feito é a
de um Ponto de Cultura,3 um programa de Turismo participação de duas lideranças da comunidade na
de Base Comunitária, um programa de valorização Coordenação Nacional das Comunidades Quilom-
dos chamados Griôs4 e um projeto de agroecologia. bolas (CONAQ) no presente momento.
Todo esse movimento coloca a comunidade em O despontar de uma nova organização política e
uma espécie de vanguarda da mobilização negra social em Campinho significou, também, o começo
rural e, até mesmo, das comunidades tradicionais dos primeiros embates entre a comunidade e a es-
da região. cola local. Embora já houvesse uma reflexão sobre
Os projetos e programas criados trouxeram con- a questão educacional, encaminhada, sobretudo,
quistas cotidianas importantes para a comunidade, por uma liderança feminina da comunidade, Laura
tais como o reavivamento de práticas de plantio, de Maria dos Santos (nossa interlocutora neste traba-
trabalhos artesanais e do jongo enquanto elementos lho), foi a partir dessa nova organização política-
de pertencimento identitário. Além disso, permiti- -comunitária que a associação começou a entender
ram a construção de uma autogestão do seu terri- que a escola precisava entrar no debate sobre suas
tório, de sua produção e do seu próprio trabalho. lutas identitárias. Sobre esse tema discorreremos
Percebemos que o reconhecimento da comuni- mais adiante.
dade como remanescente de quilombo, bem como Santa Rita do Bracuí é uma comunidade qui-
sua tomada de posição política em torno de uma lombola situada em um município vizinho a Paraty,
identidade quilombola, impactou diretamente a localizando-se em Angra dos Reis. Com a abolição
vida dos moradores, sobretudo corroborou para um da escravidão, os descendentes de escravos per-
novo processo de organização político-comunitária maneceram nas terras da Fazenda Santa Rita, que
num cenário de afirmação e resistências. foram doadas a eles pelo fazendeiro Comendador
Nesse contexto, destacamos a mobilização e José de Souza Breves, por meio do seu testamento,
o protagonismo da AMOQC, por meio de suas no ano de 1877.
lideranças políticas, no Fórum de Populações Falta consenso sobre dados quantitativos a
respeito dessa população. Tanto o laudo como o
3 Os Pontos de Cultura compreendem iniciativas culturais desen- relatório antropológico (BRAGATTO, 1999; MAT-
volvidas pela sociedade civil que estão sendo potencializadas pelo
Governo Federal, através do Programa Mais Cultura, em conjunto
TOS et al., 2009), sobre os quais nos debruçamos,
com os Governos Estaduais. Os recursos poderão ser utilizados não fornecem informações sobre o número de
para a realização de cursos e oficinas, produção de espetáculos e famílias que atualmente ocupam a área, tampouco
eventos culturais, compra de equipamentos, entre outros.
4 Os Griôs podem ser descritos como contadores de histórias, que têm sobre o tamanho do território, já que muitas terras
como missão a valorização da cultura local através da tradição oral. foram perdidas devido a conflitos fundiários que

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Kalyla Maroun; Edileia Carvalho

vêm assolando a comunidade, como ocorreu com festa em homenagem à padroeira da comunidade,
a comunidade vizinha de Campinho, em razão da Santa Rita.
especulação imobiliária. Muitas famílias foram O ano de publicação do laudo antropológico de
pressionadas a abandonar ou vender suas terras, Bracuí coincidiu com o ano da titulação da comu-
recebendo pequenas indenizações. nidade vizinha de Campinho. Iniciou-se, a partir de
Mesmo com a doação formal antes do fim então, uma aproximação e um diálogo entre as duas
da escravidão, a comunidade vem lutando ainda comunidades, o que trouxe uma referência para
nos dias de hoje pela titulação definitiva de suas Bracuí sobre os próximos passos indispensáveis
terras. Entretanto, se a luta pela terra se inicia ao processo de titulação definitiva do seu território
em Bracuí por meio da legislação que abarcava quilombola, após a certificação oferecida pela FCP.
as comunidades rurais de uma forma geral (com No entanto, o reconhecimento de Bracuí enquanto
assessoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais remanescente de quilombo, fato este que poderia
e da CPT), a partir do final da década de 1990, a representar a regularização das terras em nome
categoria jurídica remanescente de quilombo, que da associação de moradores, até o momento, não
resultou no surgimento de novos sujeitos políticos resultou na conclusão exitosa do processo.
de direitos (ARRUTI, 1997), passa a ser utilizada Entretanto, se inicialmente o diálogo com Cam-
pela comunidade como uma forma alternativa à pinho inseriu-os nos trâmites fundamentais para a
resolução dos antigos conflitos fundiários, assim reivindicação de suas terras como quilombolas,
como ocorreu em Campinho. foi em razão da reafirmação de sua identidade jon-
O processo de autoatribuição enquanto comuni- gueira que Bracuí iniciou a luta por seus direitos.
dade remanescente de quilombo e de construção de Na fala de um dos integrantes da Associação dos
sua respectiva identidade quilombola ocorreu em Remanescentes de Quilombo de Santa Rita do Bra-
Bracuí mais tardiamente, se o compararmos com cuí (Arquisabra): “Se nós somos quilombolas hoje
Campinho, e de forma cruzada a outro processo: é por causa de Campinho e do Délcio” (VALMIR,
o de reavivamento do jongo.5 Nosso interlocutor, 2011). Nesse caso, ao mencionar o nome do Délcio,
Délcio Bernardo, educador popular, jongueiro e ele traz à tona o seu importante papel de mediação
um dos fundadores do movimento negro de Angra no reavivamento e na consolidação do jongo na
dos Reis, que trabalha atualmente na Secretaria de comunidade. Além de ser um forte elemento de
Educação do município, conta que, em 1997, foi reafirmação identitária, o jongo também teve um
iniciado um debate em Bracuí em torno da utili- papel fundamental na organização política de Bra-
zação do Artigo 68 para a reivindicação das terras cuí. Em 2005, para a elaboração do projeto “Pelos
do seu respectivo território. Caminhos do Jongo”,6 a necessidade de um diálogo
A FCP certificou a comunidade em 1999. Para interno maior e de uma organização política mais
tanto, como etapa concomitante e/ou posterior à concisa começa a ficar evidente para os próprios
certificação, foi realizado o laudo antropológico moradores. Estes passaram a se reunir mais, a de-
(BRAGATTO, 1999) de Bracuí. Este demons- bater sobre as demandas do grupo, reconhecendo
trou o histórico de ocupação da terra a partir da que, para terem acesso a determinadas políticas,
permanência dos escravos na fazenda Santa Rita, precisavam se organizar no formato de uma asso-
após a morte de José de Souza Breves (1889), em ciação de moradores. Na esteira da elaboração e da
posses familiares, com uma área de uso comum, submissão do projeto “Pelos Caminhos do Jongo”,
onde ficavam equipamentos, tais como o engenho a Arquisabra tem a sua primeira gestão registrada
de cana e a engenhoca. Além disso, os elementos em cartório, ainda no ano de 2005. Dessa forma,
ressaltados pelo laudo sobre a apropriação do grupo podemos dizer que o movimento realizado em torno
na autoatribuição quilombola foram: a ancestrali- 6 O referido projeto, que tinha como objetivo oferecer oficinas de
dade comum e a prática do jongo na tradicional jongo para as crianças da comunidade, foi submetido e aprovado
pela Brazil Foundation, uma organização não governamental
5 Para um aprofundamento sobre a relação do reavivamento do que apoia iniciativas da sociedade civil brasileira que propõem
jongo com a construção e reafirmação identitária em Santa Rita soluções criativas e diferenciadas para os desafios enfrentados
do Bracuí sugerimos a leitura do trabalho de Maroun (2013). por comunidades de todo o País.

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Experiências de educação quilombola: as relações entre escola e comunidade

do jongo reverberou em uma organização política Escola/comunidade: as relações


imprescindível à luta pela titulação, haja vista que, estabelecidas nos territórios
regularizado o território, o título é registrado em
nome da associação de moradores. Neste momento, nos voltaremos às relações
Junto ao processo descrito de reconhecimento estabelecidas entre escola e comunidade nos dois
positivo da identidade quilombola por meio do jon- territórios pesquisados, buscando apontar para os
go, o que ocorreu, também, em razão das práticas marcos representativos de aproximações e afasta-
educativas vinculadas a ele, quatro jovens quilom- mentos entre ambas ao longo do tempo. A partir
bolas de Bracuí concluíram o curso de Licenciatura disso, teremos subsídios para uma análise sobre
em Educação do Campo, da Universidade Federal os caminhos que a educação escolar quilombola
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).7 Eles fizeram vem tomando nos dois contextos apresentados. O
parte da primeira turma do curso, iniciado no ano olhar lançado aqui parte da etnografia realizada
de 2010. A conclusão do curso por parte destes jo- ao longo do trabalho de campo, sobretudo sob o
vens parece impactar ainda mais a luta por políticas viés dos protagonistas do processo, que ainda se
públicas diferenciadas, principalmente no tocante à encontra em curso, de demanda por uma educação
educação e à escola local. Abordaremos adiante o escolar quilombola.
protagonismo que a juventude vem assumindo em A Escola Municipal Campinho da Independên-
relação aos diálogos e às demandas sobre a escola cia, situada dentro da comunidade de Campinho,
localizada em seu território. foi construída em uma área cedida por um dos
Diante do exposto até aqui, percebemos alguns moradores e funciona desde o ano de 1980. Atu-
pontos em comum entre os processos de formação almente, atende alunos da Educação Infantil e do
das duas comunidades, dentre os quais destacamos: Ensino Fundamental até o 5º ano. Segundo dados
a resistência frente à pressão para o abandono empíricos fornecidos pela atual diretora da escola,
de suas terras em razão da abertura da rodovia coletados ao longo do trabalho de campo, dos 162
Rio–Santos; o protagonismo da juventude e das alunos matriculados, aproximadamente 80 são
lideranças na organização política dos grupos, bem quilombolas.
como no fortalecimento da luta pelo território, o A escola do Campinho é classificada no censo
que inclui a educação nesses contextos. Dentre as escolar como quilombola. Entretanto, essa classi-
diferenças que singularizam cada um dos proces- ficação é concebida apenas no âmbito do acesso a
sos, apontamos para a condição privilegiada que recursos financeiros diferenciados, como o Fundo
a comunidade de Campinho possui, uma vez que de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
a titulação do território ocorreu no ano de 1999, Básica e de Valorização dos Profissionais da Edu-
quando Bracuí ainda recebia a certificação da FCP. cação (Fundeb). Não há, ainda, iniciativas politico-
Esta última comunidade passa a se organizar poli- -pedagógicas concretas que visem contemplar as
ticamente muito recentemente, o que é fortalecido especificidades de uma educação escolar quilom-
a partir de 2005, quando é criada a Arquisabra, bola. Um exemplo disso é a própria forma com
enquanto aquela já está na agenda de políticas que a Secretaria de Educação de Paraty concebe a
públicas do governo e de organizações sociais e Escola do Campinho. Embora dentro de um terri-
acadêmicas antes mesmo do ano de sua titulação. tório quilombola, a escola encontra-se subordinada
à coordenação de Educação Rural de Paraty, que,
7 Inicialmente, o curso foi aberto visando à formação de 60 jovens e
por sua vez, não traz em seu projeto político peda-
adultos dos Projetos de Assentamento da Reforma Agrária criados
pelo Incra para atuação nas escolas do campo. Considerando as gógico – aplicado de forma única a todas as escolas
demandas específicas dos grupos étnicos no que diz respeito às inseridas nesse contexto – as questões históricas,
políticas educacionais e de desenvolvimento rural, foram abertas
dez novas vagas para indígenas e quilombolas. A inserção de
étnicas, políticas, sociais e culturais da população
quilombolas e indígenas no curso implica em um conjunto de afro-brasileira, tampouco as especificidades das
conteúdos e metodologias de ensino voltado aos debates em comunidades remanescentes de quilombo. Tanto
torno das especificidades destes grupos étnicos, representando a
primeira experiência de formação de professores quilombolas e a direção da escola, como a Secretaria Municipal
indígenas no estado do Rio de Janeiro. de Educação insistem em enunciá-la como escola

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rural, afirmando não concordarem com o rótulo de educativas. O que a princípio seriam oficinas8
escola quilombola, uma vez que tal classificação realizadas nos espaços da comunidade, destinadas
poderia gerar a exclusão das crianças não quilom- às crianças e aos jovens, com o objetivo de lhes
bolas que também compõem o quadro discente da criar referências identitárias, tornou-se um projeto
escola. pensado pela comunidade para ser experimentado
Desse contexto emergem duas problemáticas. A na escola. No mesmo período em que se iniciam
primeira é que, dentro desse formato de gestão, a as oficinas, intensificam-se as reclamações dos
zona rural é concebida de forma homogênea. Não professores da escola com relação ao interesse e
há, portanto, o reconhecimento da diversidade rendimento das crianças nas atividades escolares.
presente no campo, sequer das especificidades A interlocutora Laura, integrante da AMOQC desde
dos diferentes povos que vivem naquela região no então, que possui a função de mediar as questões
tocante à educação escolar. Vale aqui lembrar que a relativas à escola perante a comunidade, afirma ter
cidade de Paraty constitui um mosaico étnico onde sido chamada pela direção inúmeras vezes para
habitam quilombolas, caiçaras e indígenas guara- ouvir queixas sobre o comportamento das crianças:
nis. Tal constatação se dá a partir do momento em Um dia me chamaram na escola e disseram: ‘Olha,
que percebemos que não há, por parte da Secretaria Laura, você precisa dar um jeito nessas crianças,
Municipal de Educação, qualquer iniciativa de elas só querem ficar falando de jongo o tempo todo,
trabalhar com as questões étnico-raciais, tampou- de tambor, das saias de chita... As professoras estão
co com a própria aplicação da Lei nº 10.639/2003 reclamando, não conseguem dar aula.’ Agora você
vê, o que pra elas era um problema, pra mim significa
(BRASIL, 2003), mesmo considerando a relevân-
novas possibilidades, inclusive de trazer sentido aos
cia disso pelo fato de a escola de Campinho estar conteúdos escolares. (LAURA, 2013).
inserida em um território étnico-racial. A segunda
problemática é que nem mesmo as especificidades A partir disso, Laura percebeu que a proposta do
de uma escola rural são contempladas, uma vez que Ponto de Cultura poderia orientar não apenas novas
a escola rural exige metodologias diferenciadas, possibilidades para o currículo, mas poderia servir
Projetos Políticos Pedagógicos específicos e prá- de plataforma para a elaboração de um Projeto Polí-
ticas pedagógicas que privilegiem as construções tico Pedagógico condizente com as especificidades
sociais da vida no campo. da sua comunidade. Dessa forma, com o objetivo
A relação da comunidade com a escola local de tornar os conteúdos escolares mais significati-
é cercada por um histórico de conflitos e, ao que vos para os alunos, partindo da premissa de que
parece, o momento atual aponta para uma rejeição o conhecimento local – ocultado e deslegitimado
radical da comunidade ao modelo escolar disponí- pela escola – destacava-se no contexto das oficinas,
vel, como veremos posteriormente. O debate sobre Laura escreveu, no ano de 2005, com o apoio de
uma pedagoga que morava na região de Paraty, o
uma educação escolar quilombola no Campinho
Projeto “Educando com Arte”,9 pensado para ser
emerge de um contexto de luta identitária repre-
experimentado na escola local.
sentada pela demanda de um modelo educacional
A entrada do projeto em 2005, bem como da
que contemple e legitime sua cultura local e seus
própria comunidade no espaço escolar, uma vez que
modos de vida. Cabe aqui ressaltar que todo esse
os protagonistas eram os educadores populares –
debate na comunidade se dá antes mesmo da pu-
griôs, artesãos e lideranças políticas reconhecidos
blicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para
no quilombo como mestres –, enfrentou grande re-
a Educação Escolar Quilombola (BRASIL, 2012). sistência por parte da direção e dos(as) próprios(as)
Um marco fundamental que começou a legitimar o professores(as). Eram muitas questões, a princípio
debate sobre uma possível “escola quilombola”, e niveladas por formalidades burocráticas (autoriza-
uma tentativa de aproximação com a escola local,
foi a implementação do Ponto de Cultura Manoel 8 As oficinas realizadas eram: capoeira de angola, jongo, cerâmica
artística, percussão, construção de tambores e cestaria.
Martins, em 2005, já que este veio atrelado a múl- 9 O projeto “Educando com Arte” foi sistematizado e publicado
tiplas e diferenciadas possibilidades de práticas em livro com o apoio da Unesco no ano de 2008.

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Experiências de educação quilombola: as relações entre escola e comunidade

ção da Secretaria Municipal de Educação, ofícios direção escolar. Esta iniciativa foi tomada sem que
para utilizar os espaços da escola etc.), mas, com o ao menos fosse feito um comunicado à comuni-
passar do tempo, as questões apresentadas vinham dade. Inicia-se um período marcado por grandes
também de outras ordens e fatores (não aceitação enfrentamentos, tanto com a escola, quanto com a
do projeto, resistência àquele modelo de educação Secretaria. Nas palavras de Laura:
proposto). Nesse sentido, é importante entendermos Qual foi a nossa estratégia? Se distanciar. Eles nos
que o “Educando com Arte” propunha inverter a distanciaram, eles nos tiraram e precisava desse
lógica de hierarquização no qual o sistema escolar distanciamento mesmo, para a gente lidar com isso,
é pensado, colocando todos (professores, alunos, fazer a digestão disso, acabar com a raiva... Então
demais funcionários) numa posição horizontal, nas esse distanciamento propiciou a gente desfazer essa
palavras de Laura, “no mesmo patamar”. Nesse releitura e hoje a gente tem uma outra proposta.
contexto, não havia quem soubesse mais e quem (LAURA, 2013).
soubesse menos, havia saberes e conhecimentos Recentemente, o fim desse distanciamento da
diferenciados. Era a comunidade apropriando-se comunidade com a escola até foi cogitado pelas
de um espaço que é seu, levando sua perspectiva lideranças, uma vez que a coordenação das esco-
de escola de matriz africana para dentro da escola las rurais de Paraty, no âmbito da Secretaria de
regular/tradicional. Educação, passou a ser ocupada por alguém mais
Laura lembra que a repercussão do projeto foi próximo da comunidade. Entretanto, o diálogo tão
muito positiva, o destaque se deu, sobretudo, em esperado não aconteceu. Hoje, a luta das lideranças
relação às crianças que moravam na comunidade. por uma educação diferenciada permanece, mas
“[...] um momento de fortalecimento, de autoes- por outros vieses e estratégias políticas. Campinho
tima, de orgulho de ser negro” (LAURA, 2013). da Independência protagoniza essa luta junto ao
Tratava-se da difusão do conhecimento que tinha Movimento de Povos Tradicionais, inclusive jun-
como base os saberes próprios da comunidade tamente com a comunidade de Bracuí, mas busca
(WALSH, 2011). caminhos diferentes para pleitear seus direitos no
A partir da experiência com o “Educando com campo da educação. Por não verem possibilidade de
Arte”, as lideranças passam a denunciar o distan- diálogo com a gestão atual da Secretaria Municipal
ciamento entre a cultura da criança quilombola e a de Educação, que se coloca totalmente contrária
cultura privilegiada na escola, o que remete ao que aos pleitos da comunidade, o que inviabiliza ações
explicita Walsh (2011), ao trazer o contexto de luta e aproximações com a escola, as lideranças deci-
dos povos afrodescendentes pelo reconhecimento diram pensar uma escola comunitária, autônoma,
dos seus direitos no campo da educação. Para a só para as crianças do quilombo. Logo, decidiram
autora, esse reconhecimento pode ser traduzido pensar o seu modelo de educação fora da escola re-
da seguinte forma: gular/tradicional, gerido pela própria comunidade.
É o valor de ensinar sobre o que muitos anos nos Ainda não se sabe se subvencionada pelo Estado,
ensinaram que não teria valor, os conhecimentos o que também poderia ser um processo complexo
que não haviam nos dito que eram conhecimentos, e exaustivo, ou não. Apesar disso, permanecem no
a luta é voltar a esta forma de conhecimento, a esta movimento de luta pela educação quilombola jun-
maneira de entender a vida, de entender nossos pró- tamente com outras comunidades, ajudando na re-
prios saberes como também envolver os processos flexão sobre estratégias, ações e políticas públicas.
educativos nesta nossa visão de história e conheci- Localiza-se no território quilombola de Santa
mento. (GARCÍA; WALSH, 2010 apud WALSH,
Rita do Bracuí a Escola Municipal Áurea Pires da
2011, p. 4).
Gama, na estrada de Santa Rita, principal rua do
Um ano depois da implementação do projeto, quilombo, bem próxima à “pista” (categoria nativa
houve substituição na gestão da Secretaria de que designa a rodovia Rio–Santos), oferecendo
Educação de Paraty e o “Educando com Arte” atualmente o Ensino Fundamental e a modalidade
foi retirado da escola por solicitação da própria de Educação de Jovens e Adultos (EJA).

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Kalyla Maroun; Edileia Carvalho

Mesmo estando localizada no território quilom- Elisa entrou, a Elisa era uma pessoa festeira, então
bola, apenas no ano de 2105 ela foi classificada ela gostava de tá em contato com o povo daqui da
como escola quilombola, como veremos adiante. comunidade” (MARILDA, 2011). A fala da Maril-
Mesmo compreendendo que a simples classifica- da demonstra a aproximação afetiva de Elisa, dire-
ção atribuída pela direção escolar não “implique a tora da escola durante mais de uma década, com a
existência de qualquer diferenciação na sua forma comunidade. Desta aproximação, destacamos dois
física, nos métodos pedagógicos, na sua gestão, na resultados relevantes: o livro Bracuí: suas lutas e
composição e formação dos seus professores, nos história, escrito por alguns professores da escola,
materiais didáticos utilizados” (ARRUTI, 2017, p. em parceria com a comunidade, que objetivou
119), entendemos que há um problema político e/ trazer para o currículo a rica história do povo de
ou de desconhecimento por parte dos gestores no Bracuí; e a realização da feira “Frutos da Terra”,11
tocante à correta forma de classificar as escolas que foi uma iniciativa da comunidade, respaldada
localizadas nesses territórios étnicos. pela direção da escola. A feira também traz um
Construída no início da década de 1970, a partir marco importante da entrada do jongo na escola,
da construção da Rio–Santos, a escola Municipal pois foi nela, cuja primeira edição ocorreu em 2003,
Áurea Pires da Gama recebe hoje um percentual que o jongo do Bracuí se apresentou pela primeira
pequeno de alunos oriundos do quilombo. vez para a comunidade escolar.
As questões colocadas até aqui nos fazem in- Entretanto, ainda que o jongo tenha sido inserido
dagar acerca da situação da escola localizada no na escola no ano de 2003, na gestão posterior à da
território de Bracuí, no intuito de refletir sobre a diretora Elisa, iniciada no ano de 2005, há um distan-
experiência de uma educação escolar quilombola, ciamento da escola com a comunidade, o que acaba
uma vez que há demanda das lideranças políticas por contribuir para a invisibilidade desta última no
por fazê-la, ainda que em meio a um contexto contexto escolar. O jongo e, consequentemente, a
heterogêneo de alunos composto por nordestinos, comunidade de Bracuí retornaram algumas vezes
indígenas,10 caiçaras e negros quilombolas e não à escola, mas de forma superficial e folclorizada,
quilombolas. apenas para contemplar as datas específicas que fa-
Apresentaremos alguns fatos que demonstram zem alusão à cultura negra e para cumprir a agenda
aproximações e afastamentos entre a escola Áurea referente à Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003), como
Pires da Gama e a comunidade de Bracuí. Para se simplesmente chamar o jongo para a escola con-
tanto, nossa principal interlocutora é Marilda de templasse tal política educacional.
Souza Francisco: liderança política da comunidade, Tais apontamentos demonstram que, se no
ex-aluna, mãe de dois ex-alunos e, atualmente, fun- período da gestão da Elisa havia indícios de um
cionária pública da rede municipal de educação de diálogo entre escola e comunidade, muito mais
Angra dos Reis, locada como zeladora na referida por uma afinidade afetiva e/ou política da diretora
escola, desde a década de 1990. com o quilombo do que por uma implementação
A relação com a escola municipal localizada de uma política pública específica, até bem pouco
no território de Bracuí vem sendo um campo de tempo isso havia se perdido. No momento atual
disputa política desde o seu nascimento. Ao longo observamos que, passado o distanciamento, a
desses aproximadamente 40 anos de existência,
11 “Frutos da Terra” consiste em uma feira que leva os saberes
houve uma longa gestão, que representou um quilombolas para serem expostos na escola. Vendem-se também
bom momento de aproximação entre escola e frutas, artesanatos e pratos típicos. Ficava livre a cada quilombola
comunidade. Esta se inicia no final da década de interessado em participar, levar o que achasse mais conveniente.
A primeira versão foi realizada em 2003. No ano seguinte, a feira
1990, estendendo-se até quase o ano de 2005, e é foi realizada novamente, tendo uma representação massiva dos
lembrada com saudosismo por Marilda: “Quando a quilombolas. Entretanto, com a mudança da direção escolar entre os
anos de 2004 e 2005 (sai a Elisa), o evento perdeu o protagonismo
10 Há uma aldeia indígena no território quilombola chamada de Gua- quilombola, pois começaram a criar temas para embasar a feira,
ranis do Bracuí. Estes chegaram na década de 1970 à comunidade, iniciando-se, assim, um período de afastamento entre esta e a escola.
mediante os “progressos” e as expulsões advindas, na década de A feira continua a acontecer anualmente, mas os temas propostos
1970, da construção da Rio–Santos. nem sempre têm afinidade com as demandas da comunidade.

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Experiências de educação quilombola: as relações entre escola e comunidade

escola volta a se aproximar da comunidade, o que ficado em suspenso desde o fim da gestão da dire-
poderá estar respaldado pela política educacional tora Elisa, em 2005. O momento é propício para
específica existente, representada pelas Diretrizes o debate sobre o quê, de fato, seria uma educação
Curriculares Nacionais para a Educação escolar escolar quilombola.
Quilombola (BRASIL, 2012), e por uma Secretaria No dia 12 de agosto de 2015 acompanhamos
de Educação politicamente sensível ao contexto da uma reunião realizada na escola Áurea Pires da
luta do movimento quilombola da região. Gama, que contou com a presença de lideranças da
O projeto “Pelos Caminhos do Jongo”, iniciado Arquisabra (no caso, os quatro jovens que concluí-
em 2005 e extinto há alguns anos, que oferecia ram o curso de Educação do Campo, e a Marilda),
oficinas de jongo para crianças e jovens quilom- gestores da Secretaria de Educação de Angra dos
bolas, representou uma experiência sistematizada Reis, professores da UFRRJ e da Universidade
e significativa de educação quilombola para a co- Federal Fluminense (UFF), que possuem trabalhos
munidade. Enquanto nelas eles se autoafirmavam de extensão na comunidade, o corpo docente e a
enquanto quilombolas, em um processo de constru- direção da escola. A razão do encontro era a decisão
ção e valorização identitária, na escola, as mesmas coletiva sobre a classificação da escola no censo
crianças negavam-se a se assumir enquanto tal, escolar, isto é, se a escola atenderia à demanda
envergonhando-se de sua condição étnica. Marilda da comunidade de classificá-la como quilombola
nos traz um relato interessante, que expressa essa ou não. As lideranças apresentaram suas posições
situação: “Quando eles sabiam que aquela criança junto à secretaria e à direção da escola para, em
era daqui, eles começaram: ‘Ah, seu quilombola!’ seguida, ocorrer a votação. Após muitos embates
Aí a criança chorava, se acabava de chorar: ‘Ah, eu e estranhamentos por parte de alguns professores
não sou quilombola não, ai, ai, ai’. Aí teve uma vez sobre a demanda apresentada que, por falta de
que a menina estava quase se acabando de chorar oportunidade, não convém trazermos aqui, ficou
lá atrás” (MARILDA, 2011). decidido que a escola seria classificada como
O exemplo acima demonstra que, mesmo o quilombola, com apenas um voto de abstenção e
jongo tendo sido um elemento fundamental na nenhum contra. Todos os presentes tiveram direito
afirmação identitária e no desenvolvimento da a voto, inclusive as lideranças quilombolas.
autoestima das crianças do quilombo do Bracuí, a Diante da conjuntura apresentada, percebemos
escola não o reconheceu e, tampouco, valorizou-o. que tanto Campinho como Bracuí puderam viven-
Como nos demonstra Kabelenge Munanga (2005), ciar experiências educacionais muito significativas
o fato de a escola Áurea Pires da Gama receber ma- por meio dos Pontos de Cultura implementados
joritariamente alunos não quilombolas não justifica nas comunidades. Eles foram relevantes na medida
a ausência de discussões e conteúdos curriculares em que consistiram em sistematizações e práticas
relativos aos saberes étnicos de seu povo. Para o au- educativas pensadas e geridas a partir dos próprios
tor, a história e a memória da comunidade negra não quilombolas, contribuindo, também, para subsidiar
interessam apenas aos alunos e alunas negras, mas as respectivas demandas de uma educação escolar
também àqueles que possuem outras ascendências diferenciada para seu povo. Entretanto, devido às
étnicas. Nesse sentido, a memória e a história não especificidades e às questões políticas que assolam
pertencem somente aos negros, ou seja, pertencem cada uma delas, as estratégias adotadas para a per-
a todos, já que diferentes grupos contribuíram, cada manência na luta por uma educação quilombola
um a seu modo, para a formação da riqueza social que, de fato, lhes é um direito, trilha caminhos
e econômica da identidade nacional. diferenciados atualmente.
No momento atual, tanto em razão das de-
mandas colocadas pela comunidade, como pela Uma análise comparativa das duas
reformulação de políticas no interior da própria demandas apresentadas
Secretaria de Educação de Angra dos Reis, ob-
servamos que a direção da escola se volta para É interessante observarmos que o protago-
a comunidade, retomando um diálogo que havia nismo político das comunidades apresentadas,

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Kalyla Maroun; Edileia Carvalho

principalmente no âmbito da luta por uma escola ilustrados apontam para outra direção: embora
quilombola, ao mesmo tempo em que apresenta situadas em territórios quilombolas e classificadas
determinadas similaridades, o que chamamos aqui como tal, constatamos o posicionamento contrário
de pontos em comum, também traz consigo estra- à implementação destas sob o argumento da hete-
tégias diferenciadas, em razão de suas respectivas rogeneidade do público atendido.
histórias e demandas que, no entanto, assumem [...] A escola mudou, logo, a relação com a comuni-
como objetivo comum a reivindicação por uma dade, com a cultura daqui, também tinha que mudar.
educação escolar condizente com suas culturas, Não temos só alunos quilombolas aqui. Aliás, a
seus costumes e seus saberes tradicionais. Tal maioria não é quilombola. Hoje a demanda é outra.
observação nos leva a refletir sobre as constantes (PROFESSORA DE PORTUGUÊS DA ESCOLA
ressignificações que se apresentam na construção ÁUREA PIRES DA GAMA, 2015).
e implementação da educação escolar quilombola, Da afirmação acima emergem algumas questões
por parte dos próprios sujeitos do processo, bem importantes, dentre as quais destacamos a ausência
como acerca das estratégias políticas assumidas em de uma reflexão acerca da importância do debate
cada um dos casos aqui trazidos. étnico-racial e territorial, logo, do pertencimento a
Um dos aspectos observados em ambos os uma identidade étnica (BARTH, 2000), para a edu-
casos, e que desponta como desafio para a cons- cação escolar quilombola, isto é, para as crianças e
trução e implementação de educação escolar jovens quilombolas em idade escolar.
quilombola, é a pluralidade do público atendido A defesa de uma “escola para todos” coloca em
nas escolas situadas em territórios remanescentes pauta o discurso da igualdade/universalidade que
de quilombo. Tanto a escola do Campinho quanto supõe um processo de homogeneização cultural,
a escola do Bracuí recebem alunos pertencentes cuja educação escolar exerceu/exerce um papel
a outros contextos étnicos e socioculturais. Toda fundamental, tendo por função difundir e conso-
essa pluralidade chama atenção para a forma como lidar uma cultura comum de base eurocêntrica,
as diferenças são tratadas e concebidas no espaço silenciando ou invisibilizando vozes, saberes,
escolar, para a maneira como a cultura, as identi- cores, crenças e sensibilidades (CANDAU, 2011).
dades e as especificidades do território quilombola Da mesma forma, a justificativa que explica a
se apresentam e são, ou não, incorporadas na/pela negação de uma proposta de escola quilombola
escola, bem como para a forma como dialogam ou pautada no quantitativo de alunos atendidos
não com a diversidade existente. Nas palavras de pressupõe a perpetuação do silenciamento de
Arruti (2017, p. 119): uma identidade negada e invisibilizada histórica
e socialmente. Nesse sentido, é interessante ob-
‘Escolas em áreas de quilombo’ podem não receber
apenas (e, eventualmente, nem mesmo principal- servarmos a lógica de pensamento das lideranças
mente) as crianças de tais comunidades, recebendo que estão mediando as lutas pela educação em
também crianças de comunidades do entorno. Da suas comunidades.
mesma forma, escolas situadas fora das áreas de A escola insiste em afirmar que essa escola não pode
quilombo, mas nas vizinhanças de comunidades ser quilombola porque atende mais alunos de fora do
quilombolas, podem atender também – e, por vezes, que quilombolas. Eles não entendem... Essa escola é
principalmente – as crianças dessas comunidades. cem por cento quilombola. Todas as crianças mora-
Compreendemos aqui que toda essa diversidade doras da comunidade, atendidas pelos segmentos que
cultural poderia ser concebida como uma vantagem a escola oferece, estão nessa escola, então ela é cem
por cento quilombola, entende? (LAURA, 2014).
pedagógica (CANDAU, 2011 apud FERREIRO,
2001), ou seja, as diferenças poderiam ser vistas A fala da Laura, além de revelar a exclusão da
como intrínsecas aos processos pedagógicos, identidade quilombola na escola, bem como as
potencializando-os e tornando-os mais significa- muitas relações de poder ali estabelecidas, denota
tivos, na medida em que as identidades seriam também uma rejeição ao que a própria política de
reconhecidas e valorizadas. Ocorre que os cenários educação escolar quilombola determina à escola:

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Experiências de educação quilombola: as relações entre escola e comunidade

III - reconhecer a história e a cultura afro-brasileira nos contextos pedagógico e curricular, que devem
como elementos estruturantes do processo civi- estar pautados nos saberes e fazeres quilombolas,
lizatório nacional, considerando as mudanças, as tanto no contexto das escolas localizadas nos referi-
recriações e as ressignificações históricas e socio- dos territórios étnicos, como naquelas que atendem
culturais que estruturam as concepções de vida dos
alunos oriundos destes.
afro-brasileiros na diáspora africana; IV - promover
Uma questão que se apresenta de forma bas-
o fortalecimento da identidade étnico-racial, da histó-
ria e cultura afro-brasileira e africana ressignificada, tante interessante nesse contexto de análise são
recriada e reterritorializada nos territórios quilom- as estratégias incorporadas pelas comunidades no
bolas; V - garantir as discussões sobre a identidade, tocante à luta pela educação quilombola, mediante
a cultura e a linguagem, como importantes eixos as relações estabelecidas com suas escolas locais e
norteadores do currículo. (BRASIL, 2012). suas respectivas secretarias de educação.
Enquanto Bracuí inicia uma agenda de trabalho
Desse modo, parece predominar a ideia de que
com a escola para pensar o processo de construção
as questões sobre a cultura negra e quilombola só
de uma escola, de fato, quilombola, não apenas
interessam a quem é negro e/ou quilombola. Um
no tocante à classificação perante o censo escolar,
instrumento de negação ao tratar das questões de
Campinho da Independência, diante da dificuldade
cunho étnico-racial no contexto de práticas edu-
em dialogar com a escola e com a atual coordenação
cativas. Do ponto de vista do nosso referencial
da Secretaria de Educação de Paraty, distancia-se.
teórico, ousamos salientar que tal fato representa É por entenderem a não viabilidade de suas lutas
um racismo epistêmico contra todas e quaisquer ou- políticas dentro do contexto da escola que suas
tras formas de culturas e de saberes que não sejam discussões sobre a educação quilombola permane-
a ocidental, privilegiada histórica e socialmente, ceram durante um longo período sem articulação
que tende a deslegitimar todo projeto que propo- com a escola.
nha uma “diversalidade epistêmica” (OLIVEIRA, O caminho trilhado estrategicamente por ambas
2010, p. 285). as comunidades desponta para algumas questões
Diante do exposto até aqui, indagamos: como importantes. No caso de Bracuí, por meio de suas
ficaria, então, a Educação Escolar Quilombola no jovens lideranças políticas, que tiveram/estão tendo
campo das especificidades que suas respectivas acesso ao curso de Licenciatura em Educação do
diretrizes curriculares mencionam? O que muitos Campo na UFRRJ, inaugura-se um novo ciclo de
podem conceber como uma demanda social incoe- relação com a escola local. Neste, incorporam-
rente – uma escola de fato quilombola, não apenas -se, em suas reivindicações, a implementação das
no tocante ao reconhecimento representado pela Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
classificação perante o censo escolar, mas também Escolar Quilombola, compreendendo a educação
com referências às suas especificidades –, pelo escolar quilombola enquanto modalidade de en-
fato de existir em escolas quilombolas alunos não sino da educação básica. Ressaltamos que tais
quilombolas, é reconhecido pelo Estado como um discussões eram, até então, desconhecidas pelos
direito: dar atendimento diferenciado a essa popu- professores e pela própria direção da escola. É, por-
lação, tal como ocorre com a população indígena tanto, por uma demanda apresentada pela própria
e os povos do campo, promovendo uma interlo- comunidade que a escola passa a ser classificada
cução com esses dois campos, a fim de respaldar como escola quilombola no censo escolar de 2015.
ações para uma escola quilombola diferenciada Em relação à construção dessa escola quilom-
(ARRUTI, 2009). bola, as jovens lideranças começam a pressionar
Ainda segundo Arruti (2017), uma análise a escola para que viabilize a formação continuada
possível para a chamada educação quilombola para o corpo docente, com ênfase na temática qui-
se apresenta por meio do complexo campo da lombola, tendo como principais articuladores de tal
educação diferenciada, representada por entraves formação as próprias lideranças. Para tanto, contam
políticos que se dão não apenas no âmbito da sua com a parceria de professoras do departamento de
regularização, ou seja, classificação, mas também educação das universidades UFRRJ e UFF (campus

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Kalyla Maroun; Edileia Carvalho

de Angra dos Reis), bem como com pesquisadores para a discussão da educação quilombola, indepen-
parceiros da comunidade e movimentos sociais do dente da educação formal. Tal iniciativa foi tomada
município. Dessa forma, podemos observar que, diante da dificuldade que as lideranças encontravam
apesar da classificação da escola como quilombola no diálogo com o poder público local. O GT é forma-
não significar literalmente uma mudança no seu do por lideranças da comunidade, universidades, além
fazer pedagógico, bem como no seu currículo, a de militantes de outros grupos (pesquisadores(as),
atual gestão, tanto da escola quanto da Secretaria ONGs, educadores(as) locais etc.).
de Educação de Angra, entendem que este avanço É interessante pensarmos que a experiência
exige um comprometimento político-pedagógico atual vivenciada por Bracuí, de reaproximação
de todos os envolvidos. com a escola, vem impactando Campinho, o que
Não queremos pensar apenas a classificação, mas pode ser observado pela recente decisão de retomar
pensar para além do Censo. Vocês estão dispostos o diálogo com a escola local e com a Secretaria
a encarar essa proposta de uma escola nova? A Municipal de Educação. Para isso, a comunidade
continuar essa discussão para além dos muros da lança mão da produção de conhecimento oriunda do
escola? O novo não está pronto, será construído! GT acima mencionado tanto para a reaproximação
(SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO DE ANGRA, com o poder público local, quanto para pensar os
2015). possíveis caminhos para a construção do diálogo
entre os dois espaços epistemológicos: a comuni-
Institui-se, portanto, em Bracuí, um momento
dade e a escola. Temos, assim, um novo ciclo no
favorável para o estreitamento dos laços entre es-
histórico de luta pela escola local, mas dessa vez a
cola e comunidade. Mesmo com toda dificuldade
comunidade assume em sua pauta de discussão a
apresentada e com alguns entraves que surgem nes-
situação da escola situada no quilombo de Cabral,12
se processo de reaproximação (como a resistência
localizado também no município de Paraty, a pou-
de alguns professores), a comunidade, juntamente cos quilômetros do quilombo do Campinho.
com a escola, vem pensando o que seria a educa- O esforço neste momento, que por ser muito
ção escolar quilombola naquele contexto, de que recente ainda não pode ser analisado aqui, é de
maneira poderiam (re)pensar o Projeto Político diálogo entre Secretaria Municipal de Educação,
Pedagógico norteador de suas práticas educativas comunidade, e demais atores sociais que compõem
e do currículo, dentre tantas outras questões que o GT, para a reflexão sobre a reorientação curri-
competem ao sistema escolar. cular para as escolas quilombolas do município,
No caso de Campinho, a estratégia política tendo como parâmetro as Diretrizes Curriculares
assumida na luta por educação escolar que contem- Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, a
ple sua cultura quilombola tem sido a articulação exemplo do trabalho que vem sendo feito com as
com outros movimentos sociais, como caiçaras e escolas caiçaras do local.13
indígenas, no intuito de pensarem coletivamente Toda essa vivência das comunidades junto às
um projeto de educação diferenciada, de enfoque escolas situadas em seus territórios, inclusive as
basicamente comunitário (voltado aos interesses de especificidades que se apresentam nesse contexto
cada etnia e/ou comunidade) e centrado na ideia da de luta, nos remete à discussão trazida por Arroyo
especificidade (histórica, cultural, linguística) dos 12 A proposta de reorientação curricular que está em pauta neste mo-
grupos envolvidos. Cabe aqui ressaltar que Bracuí mento, em que comunidade e Secretaria Municipal de Educação
também participa dessa articulação, entretanto, vive (SME) de Paraty tentam uma nova aproximação, irá contemplar
as duas comunidades quilombolas existentes no município: Cam-
em Angra dos Reis um momento bem diferente do pinho e Cabral. A escola do Cabral é uma escola municipal que
estabelecido no cenário educacional do município atende aos anos iniciais do Ensino Regular Fundamental. Está
de Paraty, local onde se encontram grande parte dos subordinada à coordenação das escolas rurais da SME de Paraty
e funciona no sistema multisseriado.
grupos representados pelo Fórum de Populações 13 A SME de Paraty, em parceria com o Colégio Pedro II e a UFF
Tradicionais. campus Angra, iniciou desde 2016 um trabalho de reorientação
curricular das escolas caiçaras, conhecidas como as escolas cos-
Outra significativa estratégia em Campinho é a teiras, no intuito de agregar na grade curricular dessas escolas os
formação de um Grupo de Trabalho (GT) específico saberes oriundos da comunidade local, da cultura caiçara.

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Experiências de educação quilombola: as relações entre escola e comunidade

(2012). Para o autor, grupos como as comunidades buir para o rompimento de uma lógica ocidental,
quilombolas, ao se afirmarem sujeitos de saberes monocultural e branca de escola na medida em
próprios, de outros processos de aprendizagem que interroga o sistema escolar com a presença e a
e experiências, de formação, de conscientização história de sujeitos outros, questiona suas práticas
política e cultural, passam a resistir a esse modelo pedagógicas e as relações de poder ali constituídas.
educacional hegemônico predominante, sobre o Embora a educação escolar quilombola seja
qual a instituição escolar ainda está fundamentada. uma categoria recente, ainda em disputa pelos prin-
Isso ocorre justamente porque eles se afirmam por cipais atores sociais envolvidos, percebemos, por
meio de suas diferenças. Diferenças estas que tam- parte das comunidades, novas reinterpretações da
bém precisam ser consideradas quando pensamos política educacional e demandas diversas por uma
a própria formulação de políticas direcionadas a educação diferenciada. Nesse sentido, a elaboração
essa população. de políticas específicas para esta modalidade de
As questões trazidas no delinear dos cenários educação representa um aprendizado em processo,
apresentados denotam processos de reinterpreta- tanto para os quilombolas quanto para os gestores e
ções do que seria a chamada escola quilombola, professores. Já no que remete a alguns municípios
estimuladas e/ou (re)orientadas pela própria rela- e suas respectivas Secretarias de Educação, desta-
ção que vai se constituindo e se modificando entre camos certo descomprometimento com a política
escola e comunidade. Um movimento de idas e educacional já existente e que embasa a reivindi-
vindas, de avanços e retrocessos, de diálogo e de cação de comunidades quilombolas por um projeto
silenciamento. Da mesma forma, ilustram como outro de educação e de escola, a exemplo do que
as experiências se entrecruzam, gerando novos vem acontecendo no município de Paraty.
contornos aos meandros das relações estabelecidas, Uma questão interessante a pensar é o quanto
ressignificando as estratégias de luta, trazendo dife- a experiência do quilombo Santa Rita do Bracuí
rentes atores sociais para o diálogo e abrindo novas vai impactar na luta do quilombo Campinho da
possibilidades para mover-se e atuar nas brechas. Independência, levando as lideranças locais a re-
Este “espaço ou lugar a partir do qual a ação, a pensarem suas estratégias e caminhos trilhados para
militância, resistência, insurgência e transgressão retomarem o diálogo com a Secretaria Municipal de
são impulsionadas, onde as alianças se constroem, Educação de Paraty e a vislumbrarem novamente
e surge um modo-outro que se inventa, cria e cons- a escola como um lugar de atuação, existência,
trói” (WALSH, 2016, p. 72). criação e pensamento outro.
Nesse sentido, compreendemos que este movi- Outro aspecto que sobressai nos dois cenários
mento “não vem de cima, mas de baixo, das mar- analisados é o dilema vivido por ambas as comu-
gens e das fronteiras, das pessoas das comunidades, nidades. Enquanto Campinho retoma a tentativa
dos movimentos” (WALSH, 2016, p. 72). Como de diálogo com o poder público local, reiniciando
afirma Laura, liderança do Campinho, “às vezes é um novo ciclo de luta pela escola, na esperança
preciso recuar, lançar mão de estratégias diferentes, de poderem respirar novos ares nessa relação si-
se fortalecer na fortaleza da nossa própria constru- lenciada entre escola e comunidade, Bracuí teme
ção [...]” (LAURA, 2014). que todo esse processo já iniciado se perca e/ou
retroceda mediante a entrada de uma nova gestão,
Considerações finais desfavorável ao diálogo com a comunidade. Isso
demonstra o quanto é frágil e limitada a política,
Percebemos que o reconhecimento da diferença, uma vez que os sujeitos do processo estão sempre
cada vez mais evidente pela centralidade da cultura, sujeitados à gestão municipal, a uma certa “boa
tanto nas reflexões teóricas quanto na formulação vontade”, bem como ao posicionamento político de
das políticas educacionais, representa um grande suas respectivas escolas e secretarias de educação.
desafio, mas também um importante impacto no Em suma, a tentativa aqui foi apresentar possibi-
cenário educacional na contemporaneidade. A lidades diferenciadas de experiências de educação
proposta de uma escola quilombola pode contri- quilombola, pelo olhar dos protagonismos desse

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Kalyla Maroun; Edileia Carvalho

processo, e das relações colocadas entre estes, suas processos de formação das comunidades. Pensar
respectivas escolas e secretarias. Desse modo, tais em experiências de educação escolar quilombola
experiências, ainda que apresentem pontos em pressupõe nos abrirmos à pluralidade de possibili-
comum, podem ser tão diversas como os próprios dades que estas representam.

Referências
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Recebido em: 28/04/2017


Aprovado em: 28/06/2017

102 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 87-102, maio/ago. 2017
Dinalva de Jesus Santana Macêdo; Marcos Luciano Lopes Messeder; Delcele Mascarenhas Queiroz

EDUCAÇÃO ESCOLAR EM COMUNIDADES


QUILOMBOLAS DO TERRITÓRIO DE IDENTIDADE
DO VELHO CHICO-BA

Dinalva de Jesus Santana Macêdo (UNEB)∗


Marcos Luciano Lopes Messeder (UNEB)∗∗
Delcele Mascarenhas Queiroz (UNEB)∗∗∗

RESUMO
Este artigo visa apresentar algumas reflexões a partir de uma pesquisa de doutorado
realizada em três escolas, situadas em comunidades quilombolas do município de
Bom Jesus da Lapa-BA, no Território de Identidade do Velho Chico. Buscamos
analisar de que modo a educação escolar dialoga com as especificidades étnico-
culturais das comunidades quilombolas. Para a coleta de dados, utilizamos
entrevistas semiestruturadas com professores, gestores, coordenadora pedagógica,
pais e lideranças quilombolas, grupos focais com os alunos, análises dos projetos
político-pedagógicos das escolas, observações de eventos, registros fotográficos e
anotações em diário de campo. Os resultados demonstram que as escolas tratam as
especificidades étnico-culturais das comunidades quilombolas de maneira pontual,
descontextualizada e superficial, em datas comemorativas, no componente curricular
de história, gincanas e outros eventos. Todavia, constatamos algumas experiências
pedagógicas significativas que vêm transgredindo os currículos escolares para dialogar
com o universo sociocultural dos alunos.
Palavras-chave: Educação escolar quilombola. Práticas curriculares. Relações étnico-
raciais. Interculturalidade.

ABSTRACT
SCHOOL EDUCATION IN QUILOMBOLAS COMMUNITIES OF THE OLD
CHICO IDENTITY TERRITORY-BA
This article aims to present some reflections from a doctoral research carried out
in three schools, located in quilombola communities of the municipality of Bom
Jesus da Lapa-BA, in the Identity Territory of Velho Chico. We seek to analyze how
school education dialogues with the ethnic-cultural specificities of the quilombola
communities. For the data collection, we used semi- leaders, focus groups with
students, analyzes of political pedagogical projects of schools, observations of events,
photographic records and notes in field diaries. The results structured interviews with


Doutora em Educação pela Universidade do Estado da Bahia (PPGEDUC/UNEB). Professora Adjunta da UNEB. E-mail:
[email protected]
∗∗
Doutor em Sociologia e Antropologia pela Universidade Lumière Lyon 2 – França. Professor Adjunto do Departamento de
Educação da UNEB. E-mail: [email protected]
∗∗∗
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Titular da UNEB. E-mail: dmqueiroz@uol.
com.br

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Educação escolar em comunidades quilombolas do Território de Identidade do Velho Chico-BA

teachers, managers, pedagogical coordinators, parents and quilombola show that the
schools treat the ethnic-cultural specificities of quilombola communities in a punctual,
decontextualized and superficial way, in commemorative dates, in the curricular
component of history, gymkhana and other events. However, we have observed some
significant pedagogical experiences that have transgressed the school curricula to
dialogue with the socio-cultural universe of the students.
Keywords: Quilombola school education. Curricular practices. Ethnic-racial relations.
Interculturality.

RESUMEN
EDUCACIÓN ESCOLAR EN COMUNIDADES QUILOMBOLAS DEL
TERRITORIO DE IDENTIDAD DEL VIEJO CHICO-BA
Este artículo pretende presentar algunas reflexiones a partir de una investigación
de doctorado realizada en tres escuelas, situadas en comunidades quilombolas del
municipio de Bom Jesus da Lapa-BA, en el Territorio de Identidad del Viejo Chico.
Buscamos analizar de qué modo la educación escolar dialoga con las especificidades
étnico-culturales de las comunidades quilombolas. Para la recolección de datos
utilizamos entrevistas semiestructuradas con profesores, gestores, coordinadora
pedagógica, padres y líderes quilombolas, grupos focales con los alumnos, análisis de
los proyectos políticos pedagógicos de las escuelas, observaciones de eventos, registros
fotográficos y anotaciones en diario de campo. Los resultados demuestran que las
escuelas tratan las especificidades étnico-culturales de las comunidades quilombolas
de manera puntual, descontextualizada y superficial, en fechas conmemorativas, en el
componente curricular de historia, gincanas y otros eventos. Sin embargo, constatamos
algunas experiencias pedagógicas significativas que vienen transgrediendo los
currículos escolares para dialogar con el universo sociocultural de los alumnos.
Palabras clave: Educación escolar quilombola. Prácticas curriculares. Relaciones
étnico-raciales. Interculturalidad.

Introdução

Com a Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, Nesse sentido, ensinar a história do negro e
que institui a obrigatoriedade do ensino de História dos povos indígenas na escola brasileira é romper
e Cultura Afro­-Brasileira e Africana nos estabe- com a visão eurocêntrica que exclui outras raízes
lecimentos de Ensino Fundamental e Médio, das culturais formadoras do Brasil como povo e nação
escolas públicas e particulares brasileiras (BRA- (MUNANGA, 2014).
SIL, 2003), alterada pela Lei nº 11.645, de 10 de Diante desse contexto, os movimentos orga-
março de 2008, que acrescenta a obrigatoriedade nizados pelas comunidades quilombolas passam
da História e Cultura Indígena nos currículos da a reivindicar uma educação escolar específica e
educação básica (BRASIL, 2008), as instituições diferenciada, que trabalhe a história, a cultura, os
escolares são convocadas a trabalharem com a valores e os saberes tradicionais de suas comunida-
diversidade cultural, tendo em vista incluir nas des. Eles lutam por uma educação que reinterprete
práticas pedagógicas as culturas e as histórias que a função social e política da escola (ARROYO,
foram silenciadas e subalternizadas pelas políticas 2014). Como fruto dessas reivindicações, o Con-
educacionais brasileiras. selho Nacional de Educação e a Câmara de Edu-

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Dinalva de Jesus Santana Macêdo; Marcos Luciano Lopes Messeder; Delcele Mascarenhas Queiroz

cação Básica, por meio do Parecer CNE/CEB nº nhecimentos tradicionais dos quilombolas com os
16 (BRASIL, 2012a), aprova, em 05 de junho de conhecimentos escolares, sem hierarquização. Isso
2012, as Diretrizes Curriculares Nacionais para requer diálogo entre a gestão das escolas, profes-
a Educação Escolar Quilombola, as quais foram sores, coordenação pedagógica, as comunidades e
homologadas através da Resolução nº 8, de 20 de suas lideranças locais (BRASIL, 2012a). Além de
novembro de 2012. Esta Resolução, em seu art. uma clara concepção do que seja uma educação in-
1º, define a educação escolar quilombola como tercultural, pois a cultura precisa ser compreendida
uma modalidade específica da educação básica como processo dinâmico, engendrado por relações
(BRASIL, 2012b). as mais diversas e, por isso mesmo, contraditórias,
É pertinente destacar que, em alguns estados complementares, complexas. A cultura envolve
brasileiros, iniciativas governamentais precederam as condições objetivas da vida, mas também os
a discussão nacional promovida por diferentes sentimentos, emoções e representações que se tem
atores sociais, como professores, pesquisadores sobre o que é vivido. Assim, o que a cultura diz
das universidades, movimento quilombola, dentre e o que está em jogo não são as diferenças, mas
outros sujeitos, sobre políticas específicas para a a alteridade que constitui nosso mundo. Ou seja,
educação escolar nos quilombos. Em 2007, o estado as relações que nos constituem enquanto um nós
do Mato Grosso começa o debate sobre esta ques- coletivo (GUSMÃO, 2011).
tão, conseguindo, em 2010, elaborar as orientações Tomando como referência essa problemática,
para a educação escolar para as comunidades qui- a questão central da tese1 tratou de indagar se as
lombolas. O Estado do Paraná, em 2006, através de especificidades étnico-culturais das comunidades
ações públicas promovidas pelo Grupo de Trabalho quilombolas seriam contempladas nas práticas
Clóvis Moura (GTCM), inicia o levantamento das curriculares das escolas. Realizamos uma pes-
demandas atinentes à educação escolar quilombola; quisa de abordagem qualitativa, que teve como
todavia, só em 2010 aprova uma proposta pedagó- interlocutores professores, alunos, gestores, uma
gica para a educação quilombola (CRUZ, 2012). coordenadora pedagógica, os pais e as lideranças
Em 2009, o município de Santarém, no estado quilombolas locais. Esta perspectiva de pesquisa
do Pará, aprovou uma Resolução que assegura em toma as interações cotidianas e o cenário ambiental
lei a efetivação de políticas públicas educacionais e sociocultural no qual elas se desenrolam.
para os quilombolas, tendo como prioridade a Com base nos princípios da etnografia, recor-
contratação de professores quilombolas para le- remos para a coleta de dados a entrevistas semies-
cionarem em escolas situadas nessas comunidades. truturadas, grupo focal, análise de documentos,
A Bahia foi o terceiro estado a propor a elabo- observação participante, registros fotográficos e
ração das Diretrizes Curriculares para a Educação anotações em diário de campo. Portanto, não se
Escolar Quilombola; porém, devido à falta de trata de uma pesquisa etnográfica em sentido estri-
recursos e morosidade do estado, essas Diretrizes to, mas de um estudo que tem um viés etnográfico,
Curriculares só foram elaboradas em 2013, perden- com enfoque socioantropológico.
do a oportunidade de sair na frente das Diretrizes A pesquisa de campo foi realizada de abril a
Nacionais (OLIVEIRA, 2013). junho de 2013 em três escolas: a Escola Municipal
As Diretrizes para a Educação Escolar Qui- Araçá Cariacá, situada na Comunidade Quilombola
lombola do Estado da Bahia foram aprovadas pelo de Araçá Cariacá; a Escola Municipal Quilombola
Conselho Estadual de Educação e pela Câmara de Emiliano Joaquim Vilaça e a Escola Municipal El-
Educação Básica (CEE/CEB) através da Resolução gino Nunes de Souza, localizadas respectivamente
nº 68, de 30 de julho de 2013, e homologadas pelo nas comunidades de Brasileira e Rio das Rãs I,
Secretário do Estado de Educação da Bahia em 18 pertencentes ao Quilombo Rio das Rãs. Essas
de dezembro de 2013, publicada no Diário Oficial comunidades estão localizadas no município de
em 20 de dezembro de 2013 (BAHIA, 2013).
1 Educação em Comunidades Quilombolas do Território de Iden-
Frente a essas demandas, o currículo escolar tidade do Velho Chico-BA: indagações acerca do diálogo entre
das escolas quilombolas deverá articular os co- as escolas e as comunidades locais (MACÊDO, 2015).

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Educação escolar em comunidades quilombolas do Território de Identidade do Velho Chico-BA

Bom Jesus da Lapa, no Território de Identidade para algum tipo de escape, alimentado por histórias
do Velho Chico-BA/Brasil, que dista a 773 km da de contestação e emancipação. Na esmagadora maio-
capital baiana, Salvador. ria dos casos, prossegue ele, a experiência histórica
Os resultados revelam que as escolas trabalham de resistência e insubordinação preponderou, inven-
tando novos caminhos para narrativas de igualdade
as especificidades étnico-culturais das comunida-
e solidariedade humana.
des de maneira pontual e superficial, em datas co-
memorativas, no componente curricular de história, Nessa mesma direção, Arroyo (2011, p. 139)
gincanas e outros eventos. Todavia, constatamos ressalta que o currículo é um território em disputa
algumas experiências significativas para além do não simplesmente “[...] porque há temas a incluir
componente curricular de história de professoras nas disciplinas, mas a disputa é porque experiências
que vêm transgredindo os currículos para dialo- e coletivos merecem ser reconhecidos, como produ-
gar com os conteúdos culturais e históricos das tores de conhecimentos legítimos, válidos”. Diante
comunidades. disso, urge a descolonização do currículo escolar,
por um currículo que tenha lugar para a ecologia
As práticas curriculares e o trabalho de saberes,2 ancorado por uma concepção crítica e
com as especificidades locais emancipatória de educação e um modelo de gestão
democrática,3 de maneira que a educação possa ser
A educação é um fenômeno complexo que não compreendida para além dos “muros” das escolas,
pode ser estudado sem levar em consideração os pois esta acontece em diferentes espaços sociais e
aspectos políticos, econômicos, culturais e sociais os professores não são os únicos agentes do saber
que estão imbricados no processo. Nesse sentido, que podem promovê-la (BRANDÃO, 2007).
corroborando com Amorim e Batista Neto (2011), A educação escolar quilombola compreende
compreendemos que as práticas curriculares são as escolas situadas nas comunidades quilombolas,
as ações desenvolvidas para a constituição do que bem como as escolas que atendem estudantes
denominamos currículo escolar, entendido não oriundos desses territórios (BRASIL, 2012a). Esta
simplesmente como um conjunto de conteúdos for- nova modalidade específica de educação exige que
malmente estabelecidos, mas que se configura em as práticas curriculares dialoguem com as culturas,
diferentes saberes, conflitos, tramas e contradições, as histórias e os saberes locais dos quilombolas.
que se alimentam e retroalimentam cotidianamen- As escolas nas quais trabalhamos atendem
te. E o currículo se traduz em atividades e ganha basicamente o público do ensino fundamental,
significados através das práticas pedagógicas (SA- totalizando 582 alunos e 25 professores, sendo 15
CRISTÁN, 1999). Assim sendo, em consonância concursados e 10 contratados. Dentre os profes-
com Costa (2005, p. 61), entendemos o currículo sores, apenas 10 residem nos quilombos. Todas
escolar como as escolas têm salas multisseriadas, tanto no 1º
Segmento do Ensino Fundamental, como no 2º
[...] um texto que pode nos contar muitas histórias: Segmento do Ensino Fundamental.
histórias sobre indivíduos, grupos, sociedades, cul- Dos 11 professores entrevistados, 05 são qui-
turas, tradições; histórias que pretendem nos relatar lombolas e 06 são de outras localidades (Bom Jesus
como as coisas são ou como deveriam ser. O que há da Lapa, Riacho de Santana e Caetité). Dentre eles,
de comum entre elas é uma vontade de saber que,
05 lecionam nos dois segmentos do Ensino Funda-
como assinala Foucault (1996), é inseparável da von-
mental, 01 no 1º Segmento do Ensino Fundamental
tade de poder, e tem se constituído em ‘prodigiosa
maquinaria destinada a excluir’ (p. 20). Na política 2 “É uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da plura-
lidade de conhecimentos heterogéneos (sendo um deles a ciência
cultural, essas representações construídas pelos moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem
discursos vão posicionando os indivíduos numa comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se
certa geografia e economia do poder cujo objetivo na ideia de que o conhecimento é interconhecimento” (SANTOS,
é o governo, a regulação social. Contudo, como nos 2007, p. 22-23).
3 “Art. 39 § 2º A gestão das escolas quilombolas deverá ser reali-
alertou Said (1995), parece que entre os meandros zada, preferencialmente, por quilombolas” (BRASIL, 2012b, p.
das histórias para dominar sempre se cria um espaço 15).

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Dinalva de Jesus Santana Macêdo; Marcos Luciano Lopes Messeder; Delcele Mascarenhas Queiroz

e 05 no 2º Segmento do Ensino Fundamental. com a disciplina de História, foi bem voltada para
Esses professores têm entre um e quinze anos a história da comunidade, até porque a escola co-
de experiência de magistério, com formação em brava muito e as lideranças também” (DOCENTE
Pedagogia, Geografia, Biologia, Letras, formação 3, Escola Municipal Araçá Cariacá, 12 de abril de
em magistério do ensino médio e formação geral. 2013). Continua discorrendo a professora:
Dentre esses, um tem especialização em História e [...] O Sr. Florisvaldo já veio à escola várias ve-
Cultura Afro-Brasileira e outro, especialização em zes dar palestra, e como professora fui tentando
Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. entender pra passar para os alunos a história da
As equipes gestoras das escolas (diretoras, vice- comunidade [...]. A partir disso, houve duas gincanas,
-diretores e coordenadora pedagógica) têm entre e a gente trabalhou nas gincanas também a história
cinco e vinte anos de experiência de magistério. de Roque,5 houve até uma peça teatral [...] com a
Esses gestores têm formação em magistério do história de Roque, colocamos alguns alunos para
ensino médio, licenciatura em Pedagogia, Normal apresentarem, então foi muito bonito. (DOCENTE
Superior e Letras. Dentre esses, um com especiali- 3, Escola Municipal Araçá Cariacá, 12 de abril de
2013, grifo nosso).
zação em Psicopedagogia e Gestão e outro em Psi-
copedagogia, e um cursa especialização em Letras. Em diálogo com professores de outra escola,
Os dados divulgados preservam o anonimato assim se expressaram sobre o tema:
das identidades dos sujeitos. Os professores das
Seu Simplício é uma das lideranças que sempre a
três escolas, diretoras, vice-diretoras e coordena- gente solicita para contribuir com seus saberes, uma
dora pedagógica foram designados como docente pessoa de muita luta aqui na comunidade. [...] Então,
1, 2, 3 etc., seguido do nome da escola à qual estão ele tem um conhecimento muito amplo e sempre que
vinculados. é solicitado ele contribui com a nossa escola. (DO-
Foi perceptível, durante a pesquisa, como a CENTE 2, Escola Municipal Quilombola Emiliano
estrutura racista da sociedade brasileira se repro- Joaquim Vilaça, 18 de maio de 2013, grifo nosso).
duz nesses espaços e dificulta a organização de Trabalha como eu falei para você, aqui na comunida-
uma instituição escolar orientada por um olhar de de tem a banda quilombo do professor Zezinho que
dentro. Mais adiante veremos como isso impede fala sobre a cultura, o samba de roda, a capoeira. Tem
que as escolas sejam de fato geridas e organizadas um grupo dos próprios alunos que são dançarinos,
a partir da lógica de uma educação comunitária então é por isso que a gente traz para a escola, para as
diferenciada. culminâncias [dos trabalhos] (DOCENTE 3, Escola
Posto isso, passaremos a apresentar algumas Municipal Quilombola Emiliano Joaquim Vilaça, 20
reflexões suscitadas pelos dados coletados nas de maio de 2013).
entrevistas e conversas informais com os profes- Continua com a narrativa:
sores. Ao indagarmos os professores sobre como
Uma das lideranças que preocupa com a educação é
as escolas trabalham com os conhecimentos lo-
Wilson, ele falou que o professor que fosse trabalhar
cais, os saberes tradicionais e as especificidades História dentro da comunidade tinha que falar sobre
étnico-culturais das comunidades, encontramos os quilombolas, sobre a história da comunidade.
as seguintes respostas: “Nós trabalhamos com Então eu fui obrigada, quando eu cheguei aqui,
esse conhecimento da história local, os saberes porque eu não conhecia [a história] e pra falar sobre
contados por Vitorino,4 a gente trabalha na sala
de aula explicando dentro dos conteúdos possíveis 5 Presume-se, com base na memória social, que a origem da comu-
nidade de Araçá Cariacá está ligada à história de Roque Pereira
[...] na disciplina de História [...]” (DOCENTE de Castro, que nasceu no século XIX, por volta da década de
1, Escola Municipal Araçá Cariacá, 10 de abril de (1830), o qual era escravo da família Castro e Tanajura, da cidade
de Caetité, Bahia. Segundo a memória social, Roque foi vendido
2013, grifo nosso). Outra professora acrescenta: para a “mata de café” (São Paulo), resistiu para não ir: “morro,
“Aqui na escola, pelo menos quando eu trabalhei mas daqui não saio”. Essa resistência praticada pelo ancestral
está presente na memória dos quilombolas, que se reconhecem
4 Sr. Vitorino Pereira de Castro é um representante das gerações como filhos da terra, descendentes de Roque, numa estreita rela-
mais velhas da comunidade e guarda na memória muitas histórias ção de parentesco, tendo este como o principal modelo de luta e
de seus ancestrais. resistência e de afirmação de suas identidades (MACÊDO, 2008).

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Educação escolar em comunidades quilombolas do Território de Identidade do Velho Chico-BA

o quilombo eu fui pesquisar e foi a partir daí que a Vemos, através das narrativas, que as escolas
gente montou uma gincana pra falar sobre a história convidam as pessoas mais velhas e lideranças
[...] (DOCENTE 3, Escola Municipal Quilombola quilombolas locais (Florisvaldo, Sr. Vitorino,
Emiliano Joaquim Vilaça, 20 de maio de 2013). Simplício, Wilson, Chico de Helena e Manezim
É pertinente assinalar que o Centro Cultural do Canecão) para falarem sobre a história, a luta, os
professor Zezinho, que inclui a banda quilombo, saberes tradicionais e as manifestações culturais
sob a sua coordenação, objetiva trabalhar para a das comunidades. É um procedimento metodoló-
preservação das tradições culturais e a afirmação gico importante para que educandos, professores,
da identidade étnico-racial dos quilombolas. Ofe- coordenadores pedagógicos e gestores das escolas
rece atividades de música, dança, teatro capoeira, conheçam a realidade sociocultural e histórica
samba de roda para pessoas da comunidade, den- dessas comunidades. Contudo, essas atividades são
tre as quais participam também alunos da escola. realizadas nas escolas de forma pontual, através de
Todavia, não existem articulações das atividades gincanas, no componente de História, datas come-
morativas, peças teatrais e palestras, o que pouco
desenvolvidas no Centro com as práticas pedagó-
favorece para a construção de uma experiência
gicas. Quando se realiza algum evento cultural na
de educação escolar quilombola que esteja em
escola, os professores colocam esses alunos para
sintonia com a dinâmica sociocultural e histórica
apresentarem alguma dança na culminância das
dos quilombolas.
atividades. Neste sentido, vemos que as práticas
Os docentes não discutem teórica e politicamen-
culturais como danças e músicas entram em cena
te o sentido da História como narrativa de ordena-
como “alegorias” de um conteúdo curricular que, ção do passado, ou seja, como veremos a seguir,
embora possa até referir estas produções, não as não é estranho que a história coletiva e subjetiva
toma com sentidos pedagógicos em si mesmas, seja estigmatizada pela condição de escravo, como
nem as examina no seu significado e importância algo naturalizado, e o racismo envergonhe a vítima
cultural. e a culpabilize.
Vejamos os relatos dos professores de outra Dando prosseguimento ao diálogo, os profes-
escola sobre o tratamento dessa temática: sores ressaltaram que os alunos não gostam de
A gente trabalha em sala fazendo debate, falando estudar os assuntos referentes à população negra
sobre o racismo, o preconceito, trabalha as culturas e quilombola, o que dificulta o trabalho com essas
em gincana, o tema é voltado para a cultura da comu- questões nas escolas, como podemos destacar:
nidade e em datas comemorativas [...] (DOCENTE
Quando a gente vai falar sobre a história [dos afro-
5, Escola Municipal Elgino Nunes de Souza, 10 de
descendentes e quilombolas], os meninos falam: ‘Vai
junho de 2013).
falar de novo sobre isso?’ Eles não gostam muito,
Os saberes tradicionais e as especificidades culturais entendeu? [...] (DOCENTE 3, Escola Municipal
são trabalhos mais em gincanas. A época da gincana Quilombola Emiliano Joaquim Vilaça, 20 de maio
é no mês de outubro, porque tá mais folgado para eles de 2013).
[os alunos] ensaiarem, [apresentam] dramatizações,
A aceitabilidade eu acho um pouco complicada, uns
o samba de roda e as coisas antigas da comunidade
aceitam, outros não, a gente já ouviu relatos: ‘Vêm
[...] (DOCENTE 1, Escola Municipal Elgino Nunes
de novo com esse assunto de negro [...]’ (DOCENTE
de Souza, 06 de junho de 2013, grifo nosso).
5, Escola Municipal Araçá Cariacá, 24 de abril de
Quando eles [Chico de Helena e Manezim] vêm 2013).
apresentarem na escola, os alunos acabam se envol-
vendo e participando. [...] Só que é assim: os alunos Podemos pensar acerca da resistência dos alu-
desenvolvem os trabalhos e os professores só para nos remetendo-nos às declarações anteriores dos
orientarem para não virar bagunça. [...] Esse traba- próprios professores, que dão conta de que a forma
lho é apresentado no pátio da escola, é uma gincana de trabalhar tais conteúdos não tem sido a mais
escolar. (DOCENTE 2, Escola Municipal Elgino estimulante. Isso, evidentemente, não se verifica
Nunes de Souza, 06 de junho de 2013, grifo nosso). apenas nessas escolas. A literatura tem apontado

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Dinalva de Jesus Santana Macêdo; Marcos Luciano Lopes Messeder; Delcele Mascarenhas Queiroz

para esse aspecto, mostrando que as atitudes dos tizadoras, para que os conhecimentos históricos
alunos podem estar relacionadas ao trabalho peda- e culturais sejam significativos e tenham sentido
gógico mecânico, repetitivo e descontextualizado para os alunos.
e à abordagem de História que é utilizada para Os professores reconhecem que o município
trabalhar esses assuntos em salas de aula, como de Bom Jesus da Lapa não tem uma proposta de
ilustram os depoimentos a seguir: educação específica para as comunidades quilom-
Eu fico muito triste quando a gente vai falar da cul- bolas, pois o currículo oficial das escolas não é
tura local. Eles [os alunos] acham que é um assunto apropriado para essas populações; é um currículo
muito batido. Eu não sei se é por conta da forma “único”, “imposto”, homogêneo e uniformizado.
como a história dos negros foi passada para eles, No entanto, paradoxalmente, a Secretaria Munici-
ou se eles não gostam de falar [...] (DOCENTE 3, pal de Educação “cobra” das escolas que trabalhem
Escola Municipal Elgino Nunes de Souza, 06 de com a realidade sociocultural das comunidades
junho de 2013, grifo nosso). quilombolas. Os relatos ilustram essa informação:
Eu acho que alguns percebem como uma coisa dis- O currículo escolar é único pra todas as escolas. O
tante, como uma coisa do passado [...] Mas a gente currículo da zona rural é o mesmo da cidade (DO-
faz o trabalho e alguns participam com muita boa CENTE 6, Escola Municipal Elgino Nunes de Souza,
vontade, outros a gente tem que forçar a participação. 10 de junho de 2013).
(DOCENTE 5, Escola Municipal Araçá Cariacá, 24
de abril de 2013). [O currículo da escola é] imposto sem discussão
nenhuma [...] (DOCENTE 1, Escola Municipal
Essas narrativas nos dão pistas de que a História Quilombola Emiliano Joaquim Vilaça, 17 de maio
é trabalhada nas escolas numa sequência de tempo de 2013, grifo nosso).
linear, evolucionista, baseada em episódios e even- [...] O currículo oficial não está apropriado para as
tos distantes da vida dos alunos. Além do mais, comunidades quilombolas. [...] O professor, através
numa abordagem determinista e eurocêntrica dos do planejamento de ensino, busca uma aproximação
fatos históricos, que desqualifica e ou invisibiliza com os conhecimentos da comunidade, especifica-
as populações negras e quilombolas, o que certa- mente em eventos. Mas há uma cobrança por parte
mente provoca a resistência dos alunos em relação da Secretaria que trabalhe com a realidade da comu-
a esses assuntos. Essas questões confirmam o que nidade quilombola. (DOCENTE 1, Escola Municipal
Santomé (2005) chama atenção, quando destaca Araçá Cariacá, 10 de abril de 2013, grifo nosso).
que as salas de aula não podem continuar sendo Os relatos denunciam que os conteúdos curricu-
espaços de memorização e veiculação de informa- lares impostos pelo Sistema Oficial de Ensino não
ções descontextualizadas. consideram as especificidades étnico-culturais das
O apego aos livros didáticos e ao conteudismo comunidades quilombolas, denotando uma concep-
enumerativo e mnemônico são reflexos de profes- ção monocultural de currículo e de cultura escolar.
sores que não se sentem autores de suas próprias Assim sendo, podemos deduzir que o pensamento
prática pedagógicas. Uma perspectiva intercultural da racionalidade ocidental, da monocultura do sa-
de educação suporia um processo radical de autor- ber científico, é o modelo inspirador da concepção
reflexão sobre as próprias concepções de educação, de conhecimento nas escolas (CANDAU, 2014).
História, currículo, conhecimento, relações de Essas constatações remetem às reflexões de Boa-
poder, racismo e desigualdade. E estes professores, ventura de Souza Santos (2010), que se contrapõe
formados por currículos que não os autonomiza- ao modo de pensar da racionalidade moderna e
ram, não podem se autorizar a crítica. defende uma racionalidade mais ampla e cosmopo-
Nesse sentido, é preciso superar a perspectiva lita. O autor apresenta a “ecologia de saberes” para
tradicional e eurocêntrica de educação, currículo e criar uma nova maneira de relacionamento entre o
História, para dialogar com a realidade sociocultu- conhecimento científico e outras formas de conhe-
ral das comunidades, bem como buscar materiais cimento. É necessário o trabalho de tradução, que
didáticos e metodologias dinâmicas e problema- é um procedimento capaz de criar inteligibilidade

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Educação escolar em comunidades quilombolas do Território de Identidade do Velho Chico-BA

recíproca entre as experiências sociais disponí- Segundo os professores, o poder público


veis, que foram suprimidas e marginalizadas pelo Municipal de Bom Jesus da Lapa não oferece
paradigma da racionalidade moderna (sociologia formação docente inicial e nem continuada para
das ausências) e as experiências sociais possíveis o trabalho escolar com a diversidade étnico-racial
(sociologia das emergências), isto é, “o AINDA- e a Lei nº 10.639/03 nas escolas, tampouco para
-NÃO”, mas existe como possibilidades (poten- o trato com as especificidades das comunidades
cialidade) e capacidades (potência) (SANTOS, quilombolas. Quando promove alguns cursos
2010). Nesse sentido, o currículo referendado pela esporádicos, são para os docentes que lecionam
“ecologia de saberes” certamente possibilitaria o História. Nesse sentido, os professores reivindi-
diálogo intercultural entre os conhecimentos esco- cam formação específica para trabalharem nas
lares e os saberes e as práticas das comunidades escolas quilombolas. “Tem alguns cursos para
quilombolas. os professores de História. Fala que vai ter essa
Diante dessa perspectiva, compreendemos a formação continuada, só que fica no papel e não
diversidade como uma construção histórica, social sai. Tem hora que começa e não termina” (DO-
e cultural das diferenças, a qual está imbricada com CENTE 3, Escola Municipal Elgino Nunes de
as relações de poder (GOMES, 2007). “[...] A ques- Souza, 06 de junho de 2013).
tão da diversidade sociocultural diz respeito à for- Compartilhando essa informação, outros pro-
mação teórica, de caráter histórico, antropológico fessores argumentam:
e sociológico, mas também a processos complexos Nunca ofereceu [curso] para gente aqui na comuni-
de opção ética e política dos profissionais e das dade. E os professores cobram isso, seria específico
instituições” (COSTA; MESSEDER, 2010, p. 11). para a comunidade quilombola [...] (DOCENTE 3,
Assim, é imprescindível deslocar o currículo Escola Municipal Quilombola Emiliano Joaquim
escolar das competências e habilidades técnicas, Vilaça, 20 de maio de 2013).
para compreendê-lo como um campo em que está
em jogo vários elementos, implicados em relações A gente tem conhecimento por conta do curso
de poder, de maneira que os professores possam tra- da UNEB com a comunidade de Mangal e Barro
balhar com as diferenças na escola (COSTA, 2005). Vermelho, Araçá Cariacá, reivindicação de Mangal
Barro Vermelho, que parou e não deu continuidade
Esse cenário exige investimento na formação
[...] (DOCENTE 1, Escola Municipal Araçá Cariacá,
dos professores para trabalharem com a diversi-
10 de abril de 2013).
dade étnico-racial e cultural no contexto escolar.
Isso significa “[...] abrir espaços que permitam a Outra professora reforça a importância desse
transformação da escola em um local em que as di- curso de capacitação, ofertado pela UNEB para as
ferentes identidades são respei­tadas e valorizadas, comunidades quilombolas de Mangal/Barro Ver-
consideradas fatores enriquecedores da cidadania” melho e Araçá Cariacá: “[...] O curso serviu muito
(CANEN; XAVIER, 2011, p. 642). [...] os professores foram embora e aí acabou, mas
Vale destacar que durante a pesquisa de campo, foi muito proveitoso [...] Se retornasse esse curso
tanto em Brasileira como em Rio das Rãs, não pre- para os professores novatos, para nós, seria bom
senciamos os professores realizarem planejamento demais, a UNEB juntamente com a Secretaria se-
de ensino nas escolas, dificultando a organização e a ria muito bom” (DOCENTE 2, Escola Municipal
sistematização dos trabalhos, a troca e socialização Araçá Cariacá, 11 de abril de 2013, grifo nosso).
das experiências, bem como a adaptação do currícu- O Projeto de Capacitação de Professores de
lo oficial ao contexto das comunidades. Em Araçá Mangal/Barro Vermelho e Araçá Cariacá foi uma
Cariacá, com a existência de horário de atividade reivindicação dos líderes da Associação de Mangal/
complementar (AC) proporciona o planejamento de Barro Vermelho feita ao Departamento de Ciências
ensino, ainda que este se faça de forma individual, Humanas e Tecnologias (DCHT), Campus XVII,
percebe-se certa organização e sistematização das Bom Jesus da Lapa. Com a remoção dos profes-
atividades didáticas e pedagógicas, como foi cons- sores formadores para outros campi da UNEB, o
tatado durante as entrevistas realizadas. projeto foi desativado.

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Dinalva de Jesus Santana Macêdo; Marcos Luciano Lopes Messeder; Delcele Mascarenhas Queiroz

Outro elemento que não favorece o trabalho Eu, na verdade, não conheço a história da comunida-
com a questão racial e quilombola é a naturali- de. (DOCENTE 7, Escola Municipal Elgino Nunues
zação do preconceito e da discriminação racial. de Souza, 11 de junho de 2013).
Os professores das três escolas veem os apelidos Conheço os relatos do dia que as lideranças vieram
atribuídos aos alunos com traços de negritude mais para a palestra. [...] O que fica mais para mim, é a
ressaltados, pelo seu próprio grupo étnico-racial, questão da luta pelo reconhecimento da comunidade
como brincadeiras. Algumas falas remetem a esse [como] quilombola, mas eu ainda sei pouco, preci-
problema: “Os meninos às vezes brincam, chamam so estudar mais. (DOCENTE 4, Escola Municipal
os colegas de nego preto e macaco.” (DOCENTE Araçá Cariacá, 11 de abril de 2013).
5, Escola Municipal Araçá Cariacá, 24 de abril de O desconhecimento dos professores sobre a
2013); “O seu cabelo não entra água, o seu cabelo realidade das comunidades quilombolas onde
é duro, esse tipo de brincadeira entre eles.” (DO- atuam não é condição exclusiva dessas escolas.
CENTE 3, Escola Municipal Quilombola Emiliano Muitos docentes, em diversas regiões do país,
Joaquim Vilaça, 20 de maio de 2013); “Os alunos não conhecem, ou mantêm pouca relação, com
chamam os colegas de grafite, Bernardo e foguinho, as comunidades quilombolas onde trabalham, e
de uma forma geral, a gente vê que é brincadeira.” por isso acabam desenvolvendo as suas práticas
(DOCENTE 2, Escola Municipal Elgino Nunes de profissionais distantes do universo sociocultural
Souza, 06 de junho de 2013). dos alunos (BRASIL, 2012a). Essa realidade re-
Para combater as atitudes preconceituosas e de força a urgência de formação específica para os
discriminação racial presentes no cotidiano esco-
professores das escolas quilombolas, bem como
lar, é necessário compreender que a questão racial
para professores das escolas que atendem alunos
brasileira se situa dentro do complexo campo da
oriundos desses territórios.
diversidade cultural (GOMES, 2005). Ademais,
Nesse sentido, os cursos de formação neces-
essa temática não deve ser tratada como tema
sitam de currículos flexíveis para que possam
transversal, nem tampouco algo apenas de interesse
estabelecer diálogo com “[...] as especificidades
das pessoas pertencentes à população negra ou
da realidade histórica, política, econômica e so-
indígena: é uma questão social, cultural e política
de toda a sociedade brasileira. O tratamento desta ciocultural quilombola” (BRASIL, 2012a, p. 53).
temática implica em uma reorganização epistemo- As diretrizes explicitam ainda a necessidade de
lógica de tal ordem que todo o sistema de ensino se formação dos coordenadores pedagógicos, bem
vê afetado, posto significar literalmente recontar a como dos gestores das escolas e dos sistemas de
história de formação da sociedade brasileira, que ensino em regime de colaboração, para que a edu-
tem imensa dificuldade de superar o mito das três cação escolar quilombola seja implementada nos
raças e da sua decorrente democracia racial que a territórios quilombolas e nas escolas que atendem
confortava como não racista. Portanto, a ruptura estudantes oriundos desses territórios.
não é pequena e o trabalho é vasto, longo e mexe- Quanto ao conhecimento dos professores sobre
rá nas estruturas profundas do poder colonizador o que tratam as Diretrizes Curriculares Nacionais
interno. para a Educação das Relações Étnico-Raciais, uma
A pesquisa aponta que o desconhecimento dos professora da Escola Municipal Elgino Nunes de
professores sobre as histórias e culturas das comu- Souza destaca: “Os professores sabem das Dire-
nidades e sobre a Lei nº 10.639/03 e suas diretrizes trizes, mas muitos não conhecem o que se discute
correlatas dificulta o trabalho com a temática nas no documento.” (DOCENTE 6, Escola Municipal
escolas, como podemos constatar: “Os professores Elgino Nunes de Souza, 10 de junho de 2013). E
que são de fora já vêm dizendo que não têm conhe- em uma das escolas, segundo informação de duas
cimento [sobre essas questões] e aí vai passando” professoras, não existem as Diretrizes para que os
(DOCENTE 4, Escola Municipal Quilombola professores possam consultá-las. Acrescentamos
Emiliano Joaquim Vilaça, 22 de maio de 2013). ainda que todos os professores disseram que não
Esse problema também aparece nas outras escolas: conhecem as Diretrizes Curriculares Nacionais para

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Educação escolar em comunidades quilombolas do Território de Identidade do Velho Chico-BA

a Educação Escolar Quilombola. Tal fato é com- O trato pedagógico com a questão
preensível, uma vez que essa legislação curricular, étnico-racial e quilombola:
na época do trabalho de campo, havia sido editada construindo novos significados
há menos de seis meses.
A pesquisa ainda evidencia que a falta de As práticas pedagógicas não acontecem num
coordenação pedagógica em duas das escolas, a movimento de linearidade, com comportamentos
insuficiência de materiais didáticos específicos, o monolíticos, apresentando os mesmos sentidos e
comodismo e a resistência de alguns professores significados. Há indícios nas escolas pesquisadas de
são elementos que não favorecem o trato pedagógi- algumas práticas, embora pontuais, com a temática
co com a temática racial e os conteúdos históricos étnico-racial e quilombola, para além do compo-
e culturais das comunidades. nente curricular de História, que nos possibilitam
Através dessas considerações expostas, po- refletir que as escolas também são lugares de
demos inferir que os professores encontram resistências e de construção de novos significados
dificuldades para adaptar o currículo escolar ao (AMORIM; BATISTA NETO, 2011).
universo sociocultural das comunidades, pois lhes Em Araçá Cariacá, uma professora relatou al-
faltam condições efetivas, tanto estruturais como guns trabalhos que já desenvolveu na escola sobre
pedagógicas, para a realização de suas atividades a temática racial. Entre as atividades realizadas,
educativas, o que confirma que as práticas cur- sobre a história e a cultura da comunidade, uma
riculares não dialogam com as especificidades oportunizou aos alunos pesquisarem no Relatório
étnico-culturais das comunidades. Desse modo, Técnico de Identificação e Delimitação do Terri-
acabam reproduzindo uma concepção tradicional tório Quilombola da Volta e a outra, uma visita à
de educação, sem relação com o universo sociocul- Casa da Memória, como ela própria destaca:
tural dos educandos. Exceto em algumas atividades Inclusive alguns alunos pesquisaram naquele livro
significativas, porém pontuais, que serão apresen- antropológico6 da comunidade algumas questões que
tadas no próximo tópico. eu trabalhei em português, referentes à comunidade,
Ao analisarmos os Projetos Político-Pedagógi- e trouxeram até o livro [para a escola].
cos de duas escolas, uma vez que na época da pes-
quisa de campo não encontramos este documento Nós fizemos uma pesquisa na escola e eu levei os
em uma delas, constatamos certa valorização das alunos até à Casa da Memória,7 mostrei todas as
coisas que tem lá e expliquei para eles. [...] Se você
competências e habilidades de leitura e escrita e do
[perguntar aos/às alunos/as] do quarto ano, eles vão
raciocínio lógico-matemático, pouca referência às
saber dizer o que tem na comunidade e o que eles
questões históricas e culturais das comunidades,
viram na casa da memória. (DOCENTE 2, Escola
bem como à história e cultura afro-brasileira. Vale Municipal Araçá Cariacá, 11 de abril de 2013).
acrescentar que a leitura, a escrita e a matemática
não devem ser negligenciadas nas escolas, mas, Prosseguindo o diálogo, a professora destaca
sobretudo, articuladas ao trabalho com os saberes que organizou uma peça sobre a história da co-
e os contextos locais. munidade, com a participação dos alunos, a partir
Os dados coletados nos grupos focais com os do trabalho com o livro Yoté: o jogo da nossa
alunos e as entrevistas com os pais e lideranças qui-
lombolas locais reforçam que as questões históricas 6 O livro antropológico a que a professora se refere é o Relatório
Técnico de Identificação e Delimitação do Território Quilombola
e culturais das comunidades são trabalhadas nas
da Volta, que envolve as Comunidades de Araçá, Cariacá, Coxos,
escolas de maneira esporádica, em datas comemo- Retiro, Pedras e Patos, de 2009.
rativas, eventos e gincanas, o que certamente não 7 A inauguração da casa da memória de Araçá Cariacá aconteceu em
16/11/2012, durante o Seminário das Comunidades Quilombolas
contribui para romper com as atitudes preconcei- do Território do Velho Chico e a IV Semana da Consciência Negra,
tuosas, discriminatórias e, consequentemente, es- realizado no período de 13 a 18 de novembro de 2012, coordenado
tigmatizantes presentes nas escolas, como também pelo Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias (DCHT)
da Universidade do Estado da Bahia, Campus XVII de Bom Jesus
para a afirmação das identidades quilombolas dos da Lapa. A casa da memória na época da pesquisa de campo, em
alunos. abril de 2013, ainda se encontrava em processo de estruturação.

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Dinalva de Jesus Santana Macêdo; Marcos Luciano Lopes Messeder; Delcele Mascarenhas Queiroz

história,8 a qual contou também com a participa- textos e depois da leitura a gente faz perguntas com
ção da comunidade e envolveu toda a escola. Cada base nas historinhas e eles respondem. Eu trabalho
professor ficou responsável por uma temática do mais em Português no fundamental I [4º e 5º ano].
livro que foi trabalhada em sala de aula. Relata (DOCENTE 2, Escola Municipal Araçá Cariacá, 11
de abril de 2013, grifo nosso).
a professora:
Nós fizemos uma peça colocando como foi que Os relatos nos dão pistas de que a professora
aconteceu [a história da comunidade], com os alunos busca estabelecer diálogos entre os conteúdos es-
representando o fazendeiro, Roque e a família de colares e as questões étnico-culturais e históricas
Roque. Eu fiquei a cargo de narrar o texto porque fui da comunidade, a exemplo da pesquisa feita pelos
eu quem escreveu [a peça], eu narrava e os meninos alunos sobre a história e cultura da comunidade
iam apresentando. Trabalhamos primeiro na escola, no Relatório Técnico de Identificação e Delimi-
depois nós apresentamos lá na Barrinha.9 [...] Inclu- tação do Território Quilombola da Volta, a visita
sive a gente colocou não só alunos da escola, mas na Casa da Memória, como também o trabalho
também pessoas da comunidade para participarem sistematizado a partir de leitura dos textos do li-
conosco [...] Foi muito proveitoso, ficamos muito
vro Yoté: o jogo da nossa história, o qual contou
felizes porque saiu da própria escola [...] A peça foi
organizada com base no livro Yoté: jogo da nossa com a participação de toda a escola e de membros
história [...] (DOCENTE 2, Escola Municipal Araçá da comunidade. A professora demonstra ter co-
Cariacá, 11 de abril de 2014, grifo nosso). nhecimento da história, ficando responsável pela
elaboração e narração da peça, como também do
A professora continua discorrendo sobre outra que trata em especial no livro Estórias Quilombo-
atividade desenvolvida na escola: las, quando destaca que este livro contém estórias
O livro Estórias quilombolas,10 os meninos sabem de assombração (histórias de que os/as alunos
de cor e salteado [...] têm as histórias de Santo, da (as) do ensino fundamental I têm medo), estórias
onça, do homem que virava lobisomem, a gente já religiosas (de santo) e de mistérios (o homem que
trabalhou com eles, os meninos já têm noção desses virava lobisomem). Contudo, não fica evidente se
textos. A turma da tarde do fundamental I tem medo são feitas associações entre as estórias relatadas
das histórias de assombração. [...] Eles leem os
no livro e estórias que circulam na comunidade,
8 Livro produzido pelo Instituto Agostin Castejon (Instituição tampouco quais interpretações são dadas para as
filantrópica sem fins lucrativos). É um material didático formado estórias e por que os estudantes têm medo. Outro
pelo jogo africano Yoté, que pode ser praticado por duas ou mais
pessoas. O jogo conta a vida e a obra de personagens brasileiros,
aspecto que não parece ser explorado é a própria
como: Adhemar Ferreira, Chiquinha Gonzaga, Clementina de existência de outras comunidades quilombolas,
Jesus, Cruz e Souza, João Cândido, Lélia Gonzáles, Luiz Gama, suas histórias, localização, lutas e o fato de haver
Mãe Menininha, Mãe Senhora, Milton Santos, Pixinguinha e
Zumbi dos Palmares. Além disso, no final do livro abre-se a pos- livros didáticos e paradidáticos produzidos a partir
sibilidade para o (a) aluno (a) incluir duas personagens da própria dos saberes destas comunidades.
comunidade (uma mulher e um homem) e apresenta ainda uma Vale ressaltar que essa professora participou, a
variedade de atividades para os/as professores (as) trabalharem
em sala de aula. convite das lideranças de Araçá Cariacá, do I Fórum
9 Todos os anos, no mês de novembro, os quilombolas do Terri- de Educação Quilombola da Bahia, realizado em
tório de Identidade do Velho Chico escolhem uma comunidade novembro de 2009 em Salvador. Neste evento a
quilombola da região para realizar o evento em comemoração ao
dia da Consciência Negra. As escolas quilombolas também são Coordenação da Diversidade SEC/BA distribuiu o
convidadas a participar deste evento. livro Estórias quilombolas e quilombos: espaço de
10 Livro organizado por Glória Moura, da coleção Caminho das
Pedras, volume III, contém estórias religiosas, de animais, de
resistência de homens e mulheres negros para os
assombrações e mistérios, as quais foram narradas pelos rema- professores que atuavam nas escolas em comuni-
nescentes de quilombos do País. A obra é destinada aos/às alunos dades quilombolas e pesquisadores interessados na
(as) do ensino fundamental e tem como objetivo contribuir para
o desenvolvimento da autoestima dos moradores de quilombos, temática. Ademais, acrescente-se a essa informação
principalmente alunos (as) e professores (as) das comunidades que a professora também participou do Curso de
quilombolas de Santa Rosa dos Pretos (MA), Mata do Tição Capacitação e Acompanhamento de Professores
(MG), Osório (RS) e Kalunga (GO). Essas estórias também têm
como propósito auxiliar o trabalho com a Educação das relações para as Comunidades Negras Rurais Quilombolas
étnico-raciais e a Lei nº 10.639/03. de Mangal/Barro Vermelho e de Araçá Cariacá.

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Educação escolar em comunidades quilombolas do Território de Identidade do Velho Chico-BA

Em Brasileira, uma professora relata duas A professora parece reconhecer a necessidade


atividades realizadas com os alunos. de um trabalho mais sistematizado quando observa:
“Eu acho que foi legal, e a gente percebe, quando
Agora mesmo, com o eixo de cidadania, eu peguei
você conversa com os alunos, que eles já sabem
uma cartilha11 dos povos tradicionais [os indígenas,
os quilombolas, as comunidades de terreiro, os ex- falar um pouquinho, mesmo sem ter um trabalho
trativistas, os ribeirinhos, os caboclos, os pescadores tão elaborado e sistematizado, mas a gente tem
etc.], elaborei um questionário pra eles buscarem trabalhado”. Assinala também que o trabalho com a
as respostas para poderem conhecer esses povos e história e cultura quilombola não pode ficar apenas
as lutas de cada um. [...] Que leis garantem esses sob a responsabilidade do professor de História,
direitos ou não garantem. Então eu levei isso pra eles. é preciso da participação de todos os docentes,
Eu falei: ‘Gente, é uma oportunidade que vocês têm para que os alunos “[...] aos poucos possam ir co-
de entender um pouco mais sobre essas questões de nhecendo mais e mais para então valorizar” esses
quilombos.’ [...] Mas eu percebi, pelos trabalhos, que conhecimentos locais. E arremata:
eles não conseguiram ler direitinho, nem todos os
povos eles conseguiram destacar, as leis também é Na verdade, a gente tem um sonho que realmente
um pouco complexo, eu vi que eles não conseguiram essa questão da história [...] possa melhor ser tra-
colocar direito, mas é uma tentativa. (DOCENTE balhada, para tá enriquecendo a afirmação desses
4, Escola Municipal Quilombola Emiliano Joaquim futuros quilombolas,13 porque os que sofreram du-
Vilaça, 22 de maio de 2013, grifo nosso). rante os conflitos ficaram bastante sensibilizados da
necessidade da união, do respeito, do conhecer, do
A professora sublinha que vai trabalhar no- aceitar-se quilombola. [...] A gente percebe que os
vamente o conteúdo com os alunos. Importa alunos, de uma forma geral, não estão mais neutros,
considerar a necessidade de aulas dinâmicas, pro- mas ainda tem muito pra ser trabalhado, há essa
blematizadoras e contextualizadas para a participa- necessidade. Porque eles no futuro é que vão segu-
ção e interação dos alunos no processo educativo rar isso aqui [...] (DOCENTE 4, Escola Municipal
Quilombola Emiliano Joaquim Vilaça, 22 de maio
e melhor aprendizagem “[...] sob o ponto de vista
de 2013, grifo nosso).
conceitual, além de uma postura ética diante do
diverso e a construção de uma educação antirracista Em Rio das Rãs, uma professora também relata
[...]” (GOMES, 2012, p. 15). como está trabalhando os conteúdos curriculares
Vemos, na sequência do depoimento, como a do livro Educação das Relações Étnico-Raciais do
professora evidencia certa sensibilidade e compro- Fundamental II, que auxilia no ensino de História
misso político com os problemas da comunidade. e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas:
Eu fiz uma palestra sobre a questão da história A gente leva o livro para a sala e coloca os alunos
local, peguei várias fotos dos tempos anteriores para ler; de acordo a leitura eu vou explanando o
e fui fazendo uma linha de tempo da história. Eu conteúdo, colocando questões e eles voltam fazendo
acho que foi legal, e a gente percebe, quando você alguns questionamentos. Inclusive tem um texto
conversa com os alunos, que eles já sabem falar um que eu pedi pra eles construírem, uma árvore gene-
pouquinho, mesmo sem ter um trabalho tão elabo- alógica sobre os parentes. [...] Então, a gente traz a
rado e sistematizado, mas a gente tem trabalhado. questão da família negra, a questão de como foi à
Inclusive eu trouxe a memória de uma mulher lá do escravidão. [...] Tem uma página que fala sobre os
Capão do Cedro12 que sofreu muito [na época do quilombos e um texto que cita como pai de Santo, o
conflito]. [...] Tem o depoimento dela chorando e eu ‘finado’ Andrelino,14 cita sobre o quilombo Rio das
levei pra sala de aula pra tá mostrando, até porque 13 Expressa o sentido das crianças e jovens como futuras lideranças
percebo que tem essa necessidade de tá falando pra quilombolas da comunidade. Dito de outra maneira, a expressão
eles [...] (DOCENTE 4, Escola Municipal Quilom- parece sugerir uma espécie de ato falho, como se estas crianças
bola Emiliano Joaquim Vilaça, 22 de maio de 2013, e jovens ainda não tivessem se constituído como quilombolas
plenos, ou seja, precisam incorporar a consciência política da sua
grifo nosso). própria condição, cuja introjeção se fará pelas relações comuni-
tárias e ação pedagógica da escola.
11 Direitos dos povos e Comunidades Tradicionais, cartilha elabo- 14 O Sr. Andrelino Francisco Xavier foi um curador (já falecido)
rada pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial em 2013. de Rio das Rãs muito conhecido na região, bastante respeitado e
12 Comunidade quilombola que faz parte do quilombo Rio das Rãs. querido por todos do território quilombola (SILVA, 2010).

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Rãs, então a gente tem que [...] dizer para os alunos Entendemos que sem a participação e o protago-
que é um orgulho essa cultura, é um orgulho a gente nismo das comunidades quilombolas, não há como
ser quilombola, pelo menos pra mim. (DOCENTE pensar em educação escolar quilombola (LOPES,
4, Escola Municipal Elgino Nunes de Souza, 07 de 2013; SILVA, 2013). Ao indagarmos às lideranças
junho de 2013, grifo nosso).
locais que educação escolar desejam para as suas
A professora abre o livro e aponta: “Aqui, na comunidades, elas explicitam que a escola tem que
página 100, fala sobre o quilombo Rio das Rãs, ter “a cara do quilombo”, isto é, elas reivindicam
já estudamos esse texto. Muitos alunos, devido à uma educação diferenciada, que além de trabalhar
maneira como eu falo, acabam se empolgando [...]”. com matemática, história, geografia, português etc.,
Continuando com o relato, destaca: “Agora com o inclua de forma efetiva no currículo, nos materiais
eixo temático, Identidade Cultural,15 estou traba- didáticos e nas práticas educativas, a história, a
lhando duas horas/aula por semana” e acrescenta: cultura, os valores, os costumes, os saberes e o
“Eu acho que a educação quilombola tinha que modo de vida de suas comunidades, como ilustram
começar a partir da realidade dos alunos, deveria os relatos a seguir:
encaixar a realidade dentro dos livros de história [...] A educação escolar quilombola não pode fazer só
deles” (DOCENTE 4, Escola Municipal Elgino com o professor na sala de aula, o professor precisa
Nunes de Souza, 07 de junho de 2013). buscar a comunidade [...] as pessoas idosas para
A professora trabalha de maneira dinâmica e trabalharem os valores [...] (LIDERANÇA QUI-
contextualizada, busca estabelecer relação dos LOMBOLA 2, Araçá Cariacá, 22 de abril de 2013).
conteúdos escolares com a realidade dos alunos, A educação escolar tem que ter a cara do quilombo,
possibilitando a participação ativa destes nas ativi- e garantir também os conhecimentos de português,
dades realizadas. O envolvimento emotivo de sua matemática, história, geografia, porque nós precisa-
condição de ser quilombola e da sua autoestima mos desse ensino que é o ‘normal’. Mas nós preci-
positiva certamente favorece o processo ensino- samos do ensino que é o nosso jeito, que é a nossa
-aprendizagem e influencia de maneira significativa cara, porque se isso não acontecer, nós não somos
a formação da identidade quilombola dos alunos. diferentes, tá entendendo? Existe aquele dizer: É
Através dos elementos fornecidos por esses proibido ser diferente? Não é. Então, nós queremos
fragmentos de práticas de ensino, podemos inferir ser diferentes. (LIDERANÇA QUILOMBOLA 1,
Brasileira, 16 de maio de 2013).
que as professoras reconhecem a importância de
fazer dialogar os conteúdos curriculares com a re- [É necessário] melhorar a qualidade do material di-
alidade sociocultural e histórica das comunidades, dático e incluir a história e a cultura da comunidade
e assim vêm “tentando” materializar esse propósito no currículo escolar. [...] Falar de Chico Tomé, da
nas escolas. O esforço das professoras vai no sen- história do avô dele, como funcionava antigamente
o Mucambo, como funcionava o Retiro. Isso precisa
tido da reflexão de Freire (1997, p. 85-86, grifo do
ser registrado na escola para servir de material didá-
autor), ao assinalar que: “Não sou apenas objeto da
tico. (LIDERANÇA QUILOMBOLA 2, Brasileira,
História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da 16 de maio de 2013).
História, da cultura, da política, constato não para
me adaptar mas para mudar [...]”. Todavia, cabe Vemos, através desses depoimentos, que as
assinalar que, em que pesem algumas iniciativas lideranças consideram importante que as escolas
positivas, de modo geral há um grande hiato entre recorram às pessoas mais velhas das comunidades,
o que se deseja para as escolas e o que se opera- para que possam compartilhar os seus conheci-
cionaliza nas práticas curriculares. mentos, saberes, práticas e valores culturais, bem
como incluir nos trabalhos educativos a memória
15 Segundo informação de uma professora, esse eixo e o de cidadania
[e consumo], como também os de leitura de rótulos [de embala- de líderes locais que contribuíram com a luta e
gens] e recursos naturais foram incluídos, em 2013, nos currículos a história quilombola. Dessa forma, as escolas
das escolas do município pela nova gestão da Secretaria Municipal poderão contribuir de maneira significativa no
de Educação, com o propósito de padronizar os componentes
curriculares das escolas, para facilitar a transferência dos alunos processo de construção da identidade étnico-racial
de uma escola para outra. e da autoestima dos educandos (MACÊDO, 2008).

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 103-118, maio/ago. 2017 115
Educação escolar em comunidades quilombolas do Território de Identidade do Velho Chico-BA

Nesse processo educativo, os espaços localiza- culturais entre as escolas, as comunidades locais
dos nas comunidades quilombolas, a exemplo da e as suas lideranças. Além do mais, a Secretaria
Casa da Memória (em Araçá Cariacá) e da casa Municipal de Educação deve oferecer às escolas
de farinha (em Rio das Rãs), devem também ser assistência técnica, financeira e pedagógica para
apropriados e considerados pelas escolas como im- a elaboração, a execução e a avaliação de suas
portantes ambientes de aprendizagens (ARRUTI; propostas de educação.
MAROUN; CARVALHO, 2011). A educação escolar quilombola requer mudan-
Diante dessas demandas, as escolas são con- ças epistemológicas, políticas e culturais profundas
vocadas a repensar o papel social, político e peda- no campo da educação, com implicações para a
gógico da educação, tendo em vista descolonizar gestão das escolas e dos sistemas de ensino, para
os currículos, para que possam construir práticas os currículos, os materiais didáticos, as práticas
educativas interculturais, em diálogo com a rea- educativas e as políticas públicas de formação de
lidade sociocultural e histórica das comunidades professores. Nesse sentido, é imperativo que o
quilombolas. Ademais, os gestores e o Estado são Sistema Municipal de Ensino invista em políticas
obrigados a não verem os quilombolas como meros públicas específicas de formação docente, tendo
destinatários agradecidos da educação escolar em como parâmetro as Diretrizes Curriculares Na-
suas comunidades, mas como sujeitos de direitos cionais para a Educação Escolar Quilombola. A
e propositores de políticas para os seus territórios exemplo das escolas indígenas, defendemos a cria-
(ARROYO, 2014). ção e a implementação de Cursos de Licenciatura
Intercultural em Educação Escolar Quilombola (LI-
Considerações finais CEEQ) para os professores que atuam nas escolas
quilombolas e nas escolas que atendem estudantes
Os professores reconhecem a necessidade de oriundos desses territórios. É importante que essas
trabalhar os saberes tradicionais, as histórias e as políticas de formação se estendam também aos
culturas das comunidades quilombolas, porém não gestores das escolas e dos sistemas de ensino e aos
conseguem transgredir os currículos para ir além coordenadores de área e coordenadores pedagógi-
dos conteúdos impostos pelo Sistema Oficial de cos. Essa empreitada exige trabalho em regime de
Ensino. Nesse sentido, podemos afirmar que as colaboração entre os entes federados (Município,
práticas curriculares das escolas não contemplam Estado, Distrito Federal e União), bem como a
as especificidades étnico-culturais dos quilombolas. vontade política dos governantes e a mobilização
No entanto, constatamos algumas experiências sig- de toda sociedade civil.
nificativas nas três escolas pesquisadas, de profes- Supõe, também, como em todo diálogo inter-
soras quilombolas, ou que têm vínculos familiares cultural, que as partes envolvidas estabeleçam
com lideranças locais, que vêm transgredindo o seus debates internos, ou seja, no âmbito dos
currículo oficial e buscando outros significados, sistemas de ensino (e aqui se trata dos professores
para aproximarem os conteúdos escolares do uni- e gestores da educação básica e da universidade),
verso sociocultural dos alunos. os atores devem promover uma intensa reflexão
Diante desse contexto, é urgente superar as sobre suas próprias relações com as políticas afir-
propostas de educação impostas às escolas qui- mativas e o significado do racismo institucional.
lombolas, para elaborar propostas curriculares, Por outro lado, as comunidades quilombolas de-
interculturais e diferenciadas, referendadas pela vem discutir os seus próprios dilemas identitários,
“ecologia de saberes”, partindo de dentro das comu- culturais e políticos. Como preconiza Appadurai
nidades quilombolas, de maneira que os conteúdos (2009), a interculturalidade é um processo tenso
escolares dialoguem com os saberes e as práticas entre alteridades que devem estar conscientes dos
desses sujeitos. riscos da experiência dialógica que este exercício
Essas demandas exigem que a gestão das esco- implica.
las seja autônoma e democrática, para que possa A caminhada é longa, há muito o que se fazer
criar espaços para o exercício de diálogos inter- para que possa garantir de fato uma educação

116 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 103-118, maio/ago. 2017
Dinalva de Jesus Santana Macêdo; Marcos Luciano Lopes Messeder; Delcele Mascarenhas Queiroz

diferenciada para os quilombolas do Território rendas, desenvolvimento sustentável, entre outros


de Identidade do Velho Chico, como também bens e serviços sociais, para que os quilombolas
melhorar as condições materiais de vida no que sejam incorporados à sociedade nacional de ma-
tange à infraestrutura, transportes, saúde, estradas, neira efetivamente mais simétrica e possam gozar
comunicação, regularização fundiária, geração de da plena cidadania e de seus direitos à diferença.

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Recebido em: 01/04/2017
Aprovado em: 02/07/2017

118 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 103-118, maio/ago. 2017
Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito

AS CONTRIBUIÇÕES DO MOVIMENTO QUILOMBOLA


PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA PROPOSTA DE
EDUCAÇÃO ESPECÍFICA

Agda Marina Ferreira Moreira (UEMG)∗


José Eustáquio de Brito (UEMG)∗∗

RESUMO
Os processos educativos e de formação político-identitários reproduzidos no interior de
cada comunidade remanescente de quilombo, juntamente com as experiências advindas
dos movimentos sociais quilombolas, são aspectos indispensáveis na discussão de
implementação de uma modalidade escolar quilombola. Partindo de um estudo de caso,
apresentaremos resultados das observações oriundas da comunidade quilombola de
Carrapatos da Tabatinga e do movimento quilombola mineiro, bem como da pesquisa
de dissertação de mestrado em Educação e da trajetória profissional na ONG Cedefes
e na N’Golo. Para tanto, utilizamos por método a observação participantes, além de
trechos de entrevistas centradas no problema, realizadas no campo de pesquisa. Dentre
os resultados apresentados, buscaremos enfatizar as formas de se educar construídas
nas trocas cotidianas e nas interações com as mobilizações políticas, sendo ambas
importantes produtoras de pedagogias próprias, que se relacionam diretamente às
reinvindicações e aos aspectos tradicionais presentes nas comunidades quilombolas,
sendo parte de uma cosmovisão africana. Em constante diálogo, comunidades e
movimento nos instigam a reconhecer formas alternativas de formação de sujeitos
engajados, que se reconhecem enquanto quilombolas e que são responsáveis diretos
pela preservação dos saberes-fazeres construídos nos espaços de suas respectivas
comunidades.
Palavras-chave: Processos educativos. Movimento quilombola. Formação identitária.
Educação quilombola.

ABSTRACT
THE CONTRIBUTIONS OF THE QUILOMBO MOVEMENT TO THE
CONSTRUCTION OF A SPECIFIC PROPOSAL FOR EDUCATION
Educational processes and processes of political identity formation developed within
each runaway descendant community, along with the experiences derived from
runway community social movements are indispensable elements in discussing the
implementation of a runaway community school model. Based on a case study, we
present the results of observations made with the runaway community of Carrapatos
da Tabatinga (State of Minas Gerais, Brazil) and the entire Minas Gerais runaway


Mestre em Educação pela Universidade do Estado de Minas Gerais UEMG). Assessora executiva da Federação das Comu-
nidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais. E-mail: [email protected]
∗∗
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UEMG). Vice-reitor e docente da UEMG. E-mail: joseeus-
[email protected]

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 119-137, maio/ago. 2017 119
As contribuições do movimento quilombola para a construção de uma proposta de educação específica

movement, in a Masters’ Dissertation study carried out while working with NGOs
Cedefes and N’Golo. These were made while developing participant observation,
and with fragments of problem-based interviews carried out during the research.
Among the results presented, we seek to emphasize forms of education which focus
on everyday exchanges and interactions resulting from political mobilizations, which
are both presented as producing their own pedagogical methods, in turn directly related
to the specific demands and traditional aspects present at runaway communities,
as integral parts of African worldviews. In a constant dialogue, communities and
political movement encourage a recognition of alternative ways of forming engaged
subjects, who recognize themselves as members of runaway communities and as
directly responsible for the preservation of know-how constructed in their respective
communities.
Keywords: Educational processes. Quilombola movement. Identity formation.
Quilombola education.

RESUMEN
LAS CONTRIBUCIONES DEL MOVIMIENTO QUILOMBOLA PARA LA
CONSTRUCCIÓN DE UMA PROPUESTA DE EDUCACIÓN
ESPECÍFICA
Los procesos educativos y de formación político-identitaria que se reproducen en el
seno de cada comunidad descendiente de quilombos, junto con las experiencias fruto
de sus correspondientes movimientos sociales son aspectos indispensables para discutir
la implementación de una modalidad escolar propia. Partiendo de un estudio de caso,
presentaremos los resultados de observaciones realizadas en el seno de la comunidad
de Quilombo de Carrapatos da Tabatinga y del movimiento de los quilombos de
Minas Gerais, así como la investigación de disertación de Maestría en Educación y
de la trayectoria profesional de la ONG Cedefes e na N’Golo. Para ello utilizamos el
método de la observación participante, junto con tramos de entrevistas centradas en el
problema realizadas En el campo de la investigación. Entre los resultados presentados
buscaremos enfatizar formas de educarse construidas en los intercambios cotidianos
y en las interacciones con las movilizaciones políticas, dos importantes fuentes de
pedagogías propias que se relacionan directamente con las reivindicaciones y con
los aspectos tradicionales presentes en las comunidades de quilombos, y que forman
parte de una cosmovisión africana. En constante diálogo, comunidades y movimiento
instigan a reconocer formas alternativas de formación de sujetos comprometidos, que
se reconocen como miembros de estos quilombos -quilombolas- y que son responsables
directos de la preservación de saberes- haceres construidos en los espacios de sus
respectivas comunidades.
Palabras clave: Procesos educativos. Movimiento de los quilombos. Formación
identitaria. Educación en los quilombos.

120 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 119-137, maio/ago. 2017
Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito

Introdução resultado da confluência de nossa dissertação de


mestrado e de nossa trajetória profissional junto
O advento dos remanescentes de quilombos ao movimento quilombola mineiro.
enquanto categoria social reconhecida pelo Estado Ao longo de cinco anos de atuação em projetos
brasileiro demarca uma transição normativo-legal, sociais desenvolvidos em diversos territórios qui-
que passa a configurar estes grupos como deten- lombolas, sobretudo nas regiões Norte, Rio Doce
tores de direitos específicos. Tal transição tem seu e Jequitinhonha, pudemos observar e acompanhar
marco com a promulgação da Constituição de 1988, os processos de autorreconhecimento e de organi-
que estabelece não somente um novo conceito que zação política de diversas comunidades, tendo no
define estes grupos, mas que passa a reconhecer os bojo de suas ações o acesso a direitos. Nesse pro-
remanescentes de quilombos como categoria social cesso, identificamos algumas distinções dentre as
distinta. Tal avanço encontra-se ancorado na efer- comunidades quilombolas visitadas em contextos
vescência dos movimentos sociais que adentraram sociais distintos, tendo em sua organização social,
o cenário político brasileiro de forma mais incisiva na manutenção de práticas culturais, na localização
a partir de 1970, tendo destaque as pautas endossa- em área urbana ou rural e na participação política
das pelo Movimento Negro, sendo os precursores elementos de maior distinção. Pudemos observar
das discussões em torno da temática quilombola. que as comunidades que possuíam maior intera-
Nesse contexto, a formação do movimento ção com o movimento social instituído eram mais
quilombola instituído em Minas Gerais se deu organizadas e, de uma forma geral, preservavam
em 2005, com a criação da Federação das Co- aspectos relacionados a sua cultura tradicional e
munidades Quilombolas do Estado de Minas contavam com a participação de membros de todas
Gerais (N’Golo), fruto de uma ampla cooperação as faixas etárias.
entre instituições, pesquisadores e universidades. Dentre as inúmeras comunidades visitadas, a de
Estimulados pela promulgação do Decreto nº Carrapatos da Tabatinga se destacava – e de dis-
4.887/2003 (BRASIL, 2003a), diversas comuni- tinguia das demais – sob alguns aspectos que des-
dades quilombolas adentraram as mobilizações em crevemos posteriormente. Tais questões, oriundas
busca de reconhecimento e de acesso aos direitos de uma observação ainda superficial, nos instigou
básicos, sobretudo o acesso ao território. a pesquisar os processos educativos reproduzidos
Não obstante, a Educação tem se apresentado no quilombo, tendo em suas formas cotidianas de
como importante pauta de discussão, uma vez que educar aspectos basilares de sua formação identi-
parte significativa das comunidades quilombolas tária e de engajamento político.
no estado de Minas Gerais estão inseridas numa Juntamente a esse processo, a aprovação das
realidade de intensa vulnerabilidade social e de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
precarização dos serviços públicos, da qual a edu- Escolar Quilombola na Educação Básica (BRASIL,
cação escolar não foge à regra. Apesar dos desa- 2012) demarca o reconhecimento de uma proposta
fios enfrentados pelas comunidades no que tange pedagógica a eles voltada, considerando as espe-
ao acesso à educação, vale ressaltar os esforços cificidades de suas formas de reprodução social,
construídos entre comunidades e coletivos sociais saberes e fazeres, indispensáveis à formação iden-
em prol de uma educação diferenciada que vise à titária dos sujeitos quilombolas. Contudo, para que
formação de seus sujeitos. Neste sentido, vale apon- a proposta alcance seus objetivos e ampla adesão
tar dois aspectos indispensáveis nas discussões em entre seu público-alvo, torna-se necessário um diá-
torno de uma proposta de Educação Quilombola: a) logo, sendo a participação de lideranças, discentes
a existência de práticas educativas reproduzidas no e do movimento quilombola indispensáveis para
interior das comunidades; e b) a influência do mo- uma efetiva implementação.
vimento quilombola na proposição de uma proposta Diante do exposto, nosso intuito é o de contex-
escolar diferenciada. A observância destes aspectos tualizar as contribuições dos coletivos sociais na
foram elementos norteadores para o desenvolvi- elaboração de uma proposta educativa diferencia-
mento da pesquisa que subsidia o presente artigo, da, perpassando a educação popular, do campo,

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 119-137, maio/ago. 2017 121
As contribuições do movimento quilombola para a construção de uma proposta de educação específica

para então adentrarmos numa proposta voltada às processo. A primeira característica consiste numa
populações quilombolas. À luz das observações histórica desigualdade socioeconômica entre o
coletadas em nossa pesquisa de campo e de nos- homem do campo e o homem urbano, uma vez
sas interlocuções no âmbito profissional junto ao que o acesso a serviços públicos básicos apresenta
movimento quilombola, apresentaremos alguns uma significativa diferenciação entre os distintos
elementos que denotam a indissociabilidade entre contextos, não sendo diferente no que diz respeito
os processos educativos reproduzidos nas comuni- à Educação. Já o segundo aspecto relaciona-se às
dades e nas interações com o movimento. Ademais, diferentes formas de reprodução econômica e so-
vale ressaltar o papel que ambos desempenham na ciocultural identificadas no meio rural, sobretudo
formação identitária de sujeitos quilombolas en- se considerarmos o acesso à terra.
gajados, sendo esta uma etapa de suma relevância Em Minas Gerais, o movimento pela Educação
para pensarmos suas reivindicações no campo do do Campo tomou corpo com a realização do I
direito, sobretudo o direito à Educação. Encontro Estadual por uma Educação Básica do
Campo, que ocorreu entre os dias 5 e 7 de junho
de 1998, fruto da cooperação de diversas entidades
A tomada de consciência: novas
vinculadas aos movimentos do campo.2 O principal
possibilidades de se educar
objetivo desse evento foi “discutir a problemática
Um novo clima cultural começa a se formar. [...] Um atual da escolarização rural e debater propostas vi-
mundo novo se levanta diante deles, com matizes sando construir as bases de um projeto educacional
até então despercebidos. Ganham, pouco a pouco, e político, a partir do campo, da realidade daqueles
a consciência de suas possibilidades, como resul- que moram e trabalham no meio rural, de sua cultura
tado imediato de sua inserção no seu mundo e da e experiências” (CENTRO DE DOCUMENTA-
captação das tarefas de seu tempo ou da visão nova ÇÃO ELOY FERREIRA DA SILVA, 1998, p. 3).
dos velhos temas. Começam a fazer-se críticos e,
Apesar de não ter enfoque nos grupos tradicionais
por isso, renunciam tanto ao otimismo ingênuo e
do campo, as discussões foram imprescindíveis para
aos idealismos utópicos quanto ao pessimismo e à
desesperança, e se tornam criticamente otimistas. a formulação das propostas educacionais voltadas
(FREIRE, 2013, p. 74) aos grupos étnico-raciais, uma vez que a grande
maioria das comunidades remanescentes de qui-
Iniciamos as discussões com uma citação de lombos está localizada em área rural.
Paulo Freire, que, ao discutir em sua obra Educa- As dinâmicas socioculturais do homem do
ção como prática da liberdade,1 problematiza o campo perpassam por distintas formas de saberes
momento de transição pelo qual passava a socie- e fazeres, as quais encontram-se ancoradas num
dade brasileira, no qual os sujeitos e grupos histo- vasto repertório demarcado pela tradicionalidade e
ricamente estigmatizados e excluídos do processo ancestralidade desses grupos, que mantêm práticas
político-social-educativo adentram o cenário para oriundas das gerações que os antecedem. Ademais,
trazer suas percepções e visões de mundo. Rom- o acesso aos meios de informação, à qualidade de
pendo com aquilo que ele designa como alienação, vida, à inserção no mundo do trabalho e escolar, às
desesperança e sentimento de inferioridade, os relações familiares, às redes comunitárias, dentre
movimentos sociais passam a valorizar suas formas tantos outros aspectos, resulta numa formação
de viver, de produzir conhecimentos e, principal- identitária específica, diretamente interligada à
mente, sua cultura. produção e subsistência agrícola e aos modos cul-
Concomitantemente às propostas que emergiam turais que dela resultam. No campo educacional,
em torno de uma Educação Popular, as discussões 2 As instituições participantes responsáveis pela realização do
em torno da Educação do Campo ganharam des- evento foram: Movimento dos Sem Terra, Federação dos Traba-
taque junto aos coletivos sociais do meio rural, lhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (FETAEMG),
Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Associação Mineira das
trazendo em seus discursos duas importantes Escolas-Famílias-Agrícolas (AMEFA), além de representantes
perspectivas, indispensáveis à compreensão de tal da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Universi-
dade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professores das redes
1 A primeira edição desta obra data de 1967. municipal e estadual de ensino.

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Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito

os sujeitos do campo trazem consigo seus valores e a promulgação da Lei nº 10.639/2003 (BRASIL,
concepções de mundo, o que exige uma pedagogia 2003b), que resultou na construção das Diretrizes
diferenciada, que só se torna viável mediante uti- Curriculares Nacionais para a Educação das Rela-
lização de instrumentos e linguagens condizentes ções Étnico-raciais e para o Ensino de História e
com suas realidades. Cultura Afro-brasileira e Africana, em 2004, e do
Partindo de uma perspectiva freireana, o pro- Plano Nacional de Implementação das Diretrizes
cesso educativo deve considerar as vivências e Curriculares Nacionais para a Educação das Rela-
experiências dos educandos em sua esfera social, ções Étnico-raciais e para o Ensino de História e
uma vez que trazem consigo – e para a sala de aula Cultura Afro-brasileira e Africana. Tais dispositivos
– suas formas de interagir e interpretar o mundo, trouxeram para a discussão curricular a repre-
cabendo ao docente estabelecer trocas e formas sentação do negro – e de sua herança enquanto
de interação condizentes com a realidade de seus importante matriz histórico-cultural constituinte
discentes. Nesse sentido, a Educação do Campo do Brasil –, tendo em sua identidade etnicamente
contribuiu para a desconstrução do paradigma de diferenciada um aspecto de extrema relevância no
que o homem do campo, por ser, em sua maioria, contexto educacional.
analfabeto, era ignorante. Ora, talvez uma das Resultante desse processo inicial, o movimen-
maiores contribuições deste movimento foi o de to quilombola, amparado na Convenção 169 da
considerar os diversos saberes tradicionais que es- Organização Internacional do Trabalho (OIT),3
tes indivíduos possuíam e que, portanto, deveriam aprova junto à Conferência Nacional de Educação
ser mobilizados pedagogicamente. (Conae) as Diretrizes Curriculares Nacionais para
Somadas às vozes do campo, as reivindicações a Educação Escolar Quilombolas na Educação
do Movimento Negro contribuíram para a descons- Básica (BRASIL, 2012), que destaca importantes
trução da existência de uma pretensa igualdade elementos constitutivos a serem respeitados nos
de cunho racial no Brasil, endossada pelo mito da currículos escolares de escolas voltadas a este
democracia racial. Aqui, nos importa destacar as público específico, tais como:
contribuições dos coletivos negros na proposição da memória coletiva;
de uma proposta educativa que contemplasse sua
trajetória e suas contribuições socioculturais, a fim das línguas reminiscentes;
de desconstruir as desigualdades e racismos aos dos marcos civilizatórios;
quais estes sujeitos estavam submetidos. A pesqui-
das práticas culturais;
sadora do Departamento de Pesquisas Educacionais
da Fundação Carlos Chagas, Regina Pahim Pinto das tecnologias e formas de produção do trabalho;
(1993, p. 28), reforça a relevância que a educação dos acervos e repertórios orais;
ganhou nos debates e nas mobilizações dos movi-
dos festejos, usos, tradições e demais elementos que
mentos negros:
conformam o patrimônio cultural das comunidades
[...] De fato, se considerarmos o movimento negro quilombolas de todo o país;
como um indicador da atitude do negro, percebemos
da territorialidade. (BRASIL, 2012).
que a educação sempre esteve no centro das suas
preocupações. Nas primeiras décadas do século, Parte desses aspectos pode ser identificada como
surgiram na cidade de São Paulo inúmeras associa- constituinte dos processos educativos das comuni-
ções negras que desenvolveram as mais diversas dades quilombolas, os quais, alguns deles, pudemos
atividades educacionais. [...] Se antes o negro al-
mejava simplesmente se educar, paulatinamente ele 3 Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
passa também a reivindicar do sistema educacional Sobre Povos Indígenas e Tribais, da qual o Brasil é signatário
formal e da sociedade brasileira o reconhecimento desde 2004. Dentre suas determinações, o direito autodeclara-
tório vinculado a uma identidade coletiva pode ser considerado
de sua cultura, do seu modo de ser e de sua história. o principal avanço, aliado às reivindicações do movimento
quilombola, uma vez que pressupõe a autonomia destes grupos
Uma das mais significativas resultantes desse em se reconhecerem e se declararem enquanto remanescentes de
processo de mobilização no campo educacional foi quilombos.

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As contribuições do movimento quilombola para a construção de uma proposta de educação específica

identificar na realização de nossa pesquisa junto à de uma revista publicada pelo Cedefes, que resultou
comunidade de Carrapatos da Tabatinga. Contudo, num diagnóstico acerca das comunidades quilom-
antes de adentrarmos na descrição de nosso campo bolas em Minas Gerais. Em ambas as experiências
e dos resultados de pesquisa, faz-se necessário pudemos captar narrativas, discussões e trocas de
apresentarmos algumas discussões que emergem experiências entre lideranças quilombolas, sobretu-
de nossa interação com o movimento quilombola. do no que diz respeito à sua inserção no movimento
Nosso intuito é identificar as contribuições desses quilombola instituído. Uma fala recorrente entre
coletivos na formação identitária dos sujeitos eles diz respeito às mudanças observadas e viven-
quilombolas, sendo esta etapa imprescindível no ciadas por cada um após adentrar o movimento, o
processo educativo e formativo dos indivíduos que que denota o aspecto formativo do movimento em
se autodeclaram quilombolas, sobretudo lideranças. si, sendo parte das percepções acerca do movimento
e da construção identitária definida nestes espaços.
A experiência enquanto elemento Vale ressaltar que um dos elementos que endos-
transitório-formativo vivenciado junto saram nossa escolha pela comunidade de Carrapa-
ao movimento quilombola: um estudo tos da Tabatinga para nossa pesquisa de dissertação
de caso de mestrado foi a significativa participação de seus
membros na N’Golo e no movimento quilombola
Como já descrevemos anteriormente, o movi- de âmbito nacional. Atuantes desde as primei-
mento quilombola em Minas Gerais – contexto ao ras mobilizações, as lideranças da comunidade
qual nos deteremos no presente trabalho – forma- ganharam destaque e atualmente são tidas como
lizou-se como principal entidade representativa referências para as demais lideranças e comuni-
das comunidades mineiras em junho de 2005, sob dades quilombolas. A principal figura política da
a razão social de Federação das Comunidades comunidade, Sandra Maria da Silva, foi presidente
Quilombolas de Minas Gerais (N’Golo). Pudemos da N’Golo por dois mandatos consecutivos (2011-
acompanhar parte da trajetória da entidade, quer de 2015), além de ser a representante do estado de
forma presencial, quer por meio das narrativas da- Minas Gerais na Conaq.5
queles que participaram ativamente de sua forma- Partindo do pressuposto de que os processos
ção. Tal experiência se deu mediante participação educativos somente são possíveis por meio da expe-
como colaboradores da N’Golo junto aos eventos riência de seus sujeitos, compreendemos que todo
de articulação política, mobilizações regionais e grupo humano tem a necessidade de transmitir sua
na organização do V Encontro Estadual de Comu- experiência acumulada às novas gerações, a fim de
nidades Quilombolas de Minas Gerais, em 2012, que sejam perpetuadas no presente, o que explicaria
mediante atuação profissional na ONG Cedefes.4 a relação tênue entre processos educativos e expe-
Ao longo de nossa experiência profissional, dois riências. Nesse sentido, o movimento quilombola
momentos se distinguem, a fim de contribuir para as torna-se espaço de trocas, de solidariedade e de
reflexões que aqui nos propusemos a desenvolver. compartilhamento das experiências individuais (co-
A primeira se relaciona ao acompanhamento da munitárias) que, apesar de suas individualidades,
agenda de lideranças da N’Golo, sobretudo aquelas encontram um ponto comum entre elas: a exclusão.
junto aos setores públicos, quer na construção de A exclusão pode ser considerada fator deter-
projetos e parcerias, quer na discussão de políticas minante na formulação de pedagogias próprias e
públicas para o público em questão. Já o segundo da proposição de pautas relacionadas às demandas
momento faz referência ao processo de elaboração sociais vivenciadas pelos grupos historicamente
invisibilizados ao longo de nossa história. Na con-
4 Atuação profissional como Técnica de pesquisa do Projeto “Qui-
lombos Gerais” (2011-2013) e como Coordenadora Executiva dos
tramão de uma proposta educacional hegemônica,
projetos “Promoção e Desenvolvimento de Agentes Quilombolas 5 A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Socioambientais no Médio Jequitinhonha” e “Agentes Quilombo- Rurais Quilombolas (Conaq) é a principal entidade representativa
las Socioambientais: o turismo como geração de renda no Médio quilombola em âmbito nacional, contando com a filiação de todos
Jequitinhonha” (2013-2015) junto ao Centro de Documentação os estados brasileiros que possuem comunidades remanescentes
Eloy Ferreira da Silva (Cedefes). de quilombos.

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Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito

esses grupos, organizados, propõem uma forma de A experiência quilombola diz também de todo
se educar baseada em suas referências históricas e um histórico de ausências de políticas e investimen-
culturais, nas especificidades étnicas e nas práticas tos em infraestrutura, sobretudo na área educacio-
cotidianas, tendo por referência as desigualdades nal, o que pode ter sido um estímulo para se criar
nas quais se veem imersos. Todo esse repertório, formas próprias de se educar. Para além do acesso
baseado numa experiência de grupo/classe, endossa à educação formal, as comunidades quilombolas
os discursos proferidos nas mobilizações, o que, do estado ainda enfrentam o silenciamento de suas
consequentemente, reflete na pauta do movimento especificidades e buscam ser representadas no cur-
por educação. Arroyo (2012) aponta que os pa- rículo escolar vigente. Tal situação torna-se ainda
drões de poder/saber se constituíram no intuito de mais agravante se considerarmos os municípios
inferiorizar os coletivos sociais, o que estimulou que possuem comunidades quilombolas, mas que
a elaboração de formas próprias de se constituir o são praticamente desconhecidas enquanto tais pela
pensamento sociopedagógico. gestão municipal e pela população local.
Orientados pela tradicionalidade, pela memória Consequentemente, as experiências que emer-
coletiva e pelas experiências de luta das diversas gem das mobilizações quilombolas são indispensá-
comunidades, em seus respectivos contextos, os veis para a construção de um modelo de educação
coletivos sociais propõem um projeto educativo quilombola, em resposta às suas demandas. Ex-
amplo, que enfoque suas realidades por meio da periência que advém de uma vivência, de uma
valorização de uma educação associada às rei- construção de sentido na prática, descrita por Jorge
vindicações materiais e de condições básicas de Larrosa (1994, p. 02) “como o que nos passa, o
vida. Nesse sentido, Miguel Arroyo (2012, p. 79) que nos acontece, o que nos toca”. Sendo assim,
descreve que: o processo de conscientização destes sujeitos en-
O objeto das mobilizações são necessidades locali-
quanto quilombolas diz de um processo reflexivo,
zadas no seu universo mais próximo, na reprodução crítico e político, que revela as dimensões de uma
mais imediata da existência, porém as reivindicações série de elementos e signos que contemplam as
são dirigidas para fora, para os governos, para as perspectivas de ser quilombola. A assimilação dos
políticas públicas, para a reforma agrária, para o sujeitos à trajetória e identidades coletivas somente
modelo econômico, para a igualdade, para a escola é possível a partir de uma consciência individual,
e as universidades. Para outro projeto de sociedade. de uma experiência de si.
Os movimentos sociais e juvenis geram um saber As trocas culturais e a transmissão dos saberes e
de si e um saber-se para fora. Um saber político que fazeres são de suma relevância neste processo, uma
alarga seu saber local e se amplia. Os sujeitos que vez que a experiência, o “passar por”, representa
participam nesses movimentos vão sendo munidos uma pedagogia que não pode ser aprendida no
de interpretações e de referenciais para entender o espaço da escola, por exemplo. Essa formação tota-
mundo fora, para se entender como coletivo nessa lizante do sujeito somente é possível na vivência em
‘globalidade’. São munidos de saberes, valores, comunidade, uma vez que condiz às subjetividades,
estratégias de como enfrentá-lo. Conscientes dos
àquilo que se relaciona aos sentimentos, à identi-
limites para superá-los.
dade, aos valores morais e à etnicidade do grupo.
Em suma, as reivindicações e demandas trazidas Partindo das experiências relatadas pelos qui-
pelos coletivos sociais derivam das experiências lombolas de Carrapatos da Tabatinga acerca de sua
das comunidades, resultantes dos desafios que elas própria experiência, sobretudo com o movimento
enfrentam em torno da sustentabilidade, da luta pela quilombola, é possível afirmar que estes sujeitos
terra e/ou da reprodução sociocultural (tradição). O tornam-se quilombolas a partir do momento em que
que vale demarcar neste momento é o papel que a se apropriam politicamente do significado de “ser
experiência possui em tal processo, sendo no fazer, quilombola”. Em diversos momentos, a liderança
no ensinar-fazendo, que os saberes são absorvidos mais atuante da comunidade, Sandra Maria, relata
de uma forma efetiva, culminando na constituição que, ao se aproximar das primeiras mobilizações
de sujeitos politicamente engajados. do movimento quilombola estadual,

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As contribuições do movimento quilombola para a construção de uma proposta de educação específica

Não sabia nem como me comportar, eu tinha ver- lombolas que compunham a N’Golo, identificamos
gonha e medo de tudo. Eu ficava que nem bicho do diversos elementos que demarcaram a trajetória
mato, quietinha num canto, só escutando o que os desses indivíduos nos movimentos. Parte desses
outros quilombolas que estavam há mais tempo fala- relatos encontram-se numa cartilha produzida pela
vam. Eu agarrava no braço do Jésus (companheiro de
ONG Cedefes – a qual pudemos organizar6 –, de
movimento) e ficava prestando atenção no que aquele
onde extraímos dois fragmentos que descrevem
povo tava dizendo. Eu não sabia de nada, nem sabia
que a gente tinha direito. Aos poucos fui aprendendo parte dessa experiência:
e me soltando mais. (SANDRA MARIA, 54 anos). Nasci na comunidade de Mumbuca. Meu pai era
carreteiro de bois, também fazia caixão para enter-
Ao tomarmos o breve relato de Sandra, é pos-
rar morto. É bom trabalhar em comunidade, mas é
sível notar o antes e o depois de sua experiência, difícil! Eu queixo porque não estudei mais. Queria
sendo sua trajetória no movimento quilombola um estudar mais, mas meu pai não deixou. Depois que
processo formativo, que perpassou sua experiência comecei a participar da N’Golo aprendi muito. Hoje
de si enquanto quilombola. A geração que deu início tenho mais informações sobre a questão quilombola
a uma articulação voltada à temática quilombola em Minas e no Brasil, tenho mais conhecimento e
na comunidade teve seu processo de consciência as coisas começaram a acontecer na minha vida.
de si a partir do conhecimento e da experiência (JOÃO DA CRUZ BISPO). (CENTRO DE DO-
junto ao movimento, sendo perceptíveis falas e CUMENTAÇÃO ELOY FERREIRA DA SILVA,
2013, p. 31-32).
comportamentos bastante marcados, reflexo de suas
experiências. Este fenômeno é descrito por Brandão Assim, o que aprendi na minha comunidade me pre-
e Assumpção (2009) como uma educação popular parou para participar da N’Golo. Quero sempre fazer
diretamente vinculada a uma tradição quilombola, parte dessa história de luta pelos direitos quilombolas
uma pedagogia dialógica, uma vez que se baseia nas em Minas Gerais. Juntos construímos uma história,
juntos podemos mudar nosso futuro. Podemos par-
trocas (experiência) entre sujeitos e na transmissão
ticipar da escrita de uma nova história em Minas
oral. Para esses autores, a educação popular pode Gerais. (JESUS ROSÁRIO ARAÚJO). (CENTRO
ser entendida como um trabalho coletivo, ou seja, DE DOCUMENTAÇÃO ELOY FERREIRA DA
é o momento em que “a vivência do saber compar- SILVA, 2013, p. 33).
tilhado cria a experiência do poder compartilhado”
Ao utilizarmos parte das narrativas de duas li-
(BRANDÃO; ASSUMPÇÃO, 2009, p. 35).
deranças quilombolas – que atuaram ativamente no
Ao perguntarmos “O que você acha que mudou
processo de formação da N’Golo –, identificamos
na sua vida depois que você começou a ser um
dois aspectos importantes: a relação direta com mo-
militante da causa quilombola?”, a experiência
vimento e a percepção de luta e sua conscientização
também aparece como importante traço na narrativa
de uma identidade pós-movimento. O movimento
de outra liderança da comunidade:
que percebemos é o da experiência desses sujeitos,
Mudou muito, porque através dessa militância eu vi o de apropriação de um conhecimento acerca de si,
o quanto que a gente pode mudar a consciência nossa de suas identidades e de seus direitos, individuais
mesmo e de quem tá ao redor da gente. Fácil não é e coletivos. Aqui, temos dois agricultores rurais
não, mas que a gente pode mudar muita coisa, correr que relatam seu processo de “estar no mundo”, de
atrás de muita coisa, conseguir muita coisa, através valorização, da construção de sua autoestima. O
da união. E, como se diz... o movimento... [pausa
aprendizado adquirido no movimento contempla
de dois segundos] muita gente pensa que quando a
gente tá no movimento a gente quer buscar as coisas
e valoriza as diversas subjetividades e questões
só pra gente, e não é. A gente quer buscar pro bem materiais indispensáveis à vivência e manutenção
comum. E se a gente der as mãos e lutar junto, a comunitária, nas quais as formas de saberes e faze-
gente consegue fazer pra gente e pra todos que tá res quilombolas encontram-se ancoradas.
ao nosso redor. (TÂNIA, 54 anos). 6 Cartilha intitulada Comunidades Quilombolas de Minas Gerais:
entre direitos e conflitos, que apresenta resultados do projeto
Ao longo de nossa inserção profissional, em trienal “Quilombos Gerais”, lançada em 2013 pelo Centro de
que pudemos acompanhar de perto lideranças qui- Documentação Eloy Ferreira da Silva.

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Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito

Partindo do pressuposto de que as comunidades As conquistas do movimento quilombola no


quilombolas possuem formas diferenciadas de que tange à Educação Escolar Quilombola ainda
reprodução sociocultural, podemos concluir que são pouco mensuráveis, uma vez que as diretrizes
suas formas de educar também devem contemplar específicas são recentes, além da pouca efetividade
tais diferenciações, o que tornam legítimos os ao implementar tal política de forma abrangente.
demais espaços de formação e de propostas peda- À luz do MST, obtemos uma compreensão mais
gógicas voltadas aos seus sujeitos. Nesse sentido, ampla acerca do acesso à Educação como uma
os movimentos sociais representam um espaço de estratégia de luta do movimento, uma vez que
valorização de sua cultura diferenciada e de cons- congrega inúmeras experiências bem-sucedidas de
cientização dos sujeitos quilombolas, rompendo uma educação diferenciada:
com estruturas homogeneizantes e excludentes às A escola é vista como um espaço onde crianças e ado-
quais esses grupos estiveram submetidos ao longo lescentes estão se formando como seres humanos in-
do processo histórico. O que os movimentos sociais tegralmente. Assim, ela não é lugar de ‘aprendizagem
propõem são experiências que visam a superação apenas teórica’, mas lugar de ‘estudo e trabalho’. A
de exclusões, havendo aqui um importante pro- escola deve se somar no objetivo de construir sujei-
cesso de transformação social, uma vez que: “A tos da história, portanto deve formar a ‘consciência
visibilidade da experiência se torna então evidência e a capacidade de ação’, a partir dos interesses da
para o fato da diferença, em vez de se tornar uma classe trabalhadora. A organização coletiva também
forma de explorar como a diferença é estabelecida, possui na proposta analisada um valor educativo
fundamental, pois é ela que permite superar a atual
como ela opera, e como e de que maneira constitui
forma de sociedade e é capaz de gerar a consciência
sujeitos que veem e atuam no mundo” (SCOTT,
de classe. (VENDRAMINI; MACHADO, 2011, p.
1998, p. 302). 46, grifo do autor).
A tomada de consciência acerca de si, de seu
lugar enquanto sujeito social e de ocupar um lugar Nessa perspectiva, podemos afirmar que os
de desigualdade numa conjuntura ampla emerge sujeitos quilombolas possuem uma nítida compre-
de uma relação oprimido/opressor, ao qual Paulo ensão de que, diante de uma histórica exclusão, o
Freire traz contribuições de suma importância no acesso a direitos, incluindo a Educação, somente
âmbito educacional. A inserção junto aos movimen- será concretizado por meio de lutas e reivindicações
tos pode ser considerada o momento de transição bem alinhadas entre si.
do quilombola para o sujeito político, detentor de
direitos, consciente de sua trajetória de exclusão e As relações entre observador-
da necessidade da luta. Aqui, a educação pode ser observado: questões metodológicas
entendida como uma forma de expressão da liber-
dade, de ruptura com uma hegemonia que aliena As interações entre pesquisadores e pesqui-
os grupos sociais invisibilizados. sados teve início ainda durante nossa trajetória
Por meio da transmissão de suas lutas e filo- profissional, o que gerou reflexos positivos para
sofias de vida a educação proposta pelos movi- o alcance dos resultados da pesquisa. A descrição
mentos ganha forma, se concretiza como proposta deste processo torna-se importante para compre-
educativa efetiva, indispensável à manutenção de endermos os desafios e as possibilidades que a
suas formas próprias de viver. Mais do que uma pesquisa de campo nos impõe, além de atestar a
influência, os movimentos sociais são os prin- inexistência de uma “neutralidade” do pesquisa-
cipais responsáveis pela conquista de propostas dor ao observar seus sujeitos. Ao contrário, este
educativas específicas. Todo este processo deve processo também se torna formativo e dinâmico,
ser considerado e valorizado enquanto um impor- cabendo ao pesquisador adequar todos os conceitos
tante mérito dos movimentos, a fim de descontruir teórico-metodológicos apreendidos anteriormente,
estereótipos negativados acerca dos quilombolas, para com eles dialogar e adaptá-los às questões de
tidos como desorganizados e “marginalizados” campo. Nossa experiência atesta que os roteiros
pelo senso comum. nada mais são do que norteadores iniciais, que

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As contribuições do movimento quilombola para a construção de uma proposta de educação específica

vão sendo reformulados de acordo com aquilo que orientada pela etnografia, o que, a nosso ver, só é
observamos em campo ao longo de nossa inserção possível adquirir mediante trocas e vivência com
na comunidade. os sujeitos da pesquisa. O “fazer com eles” foi
Nossa pesquisa buscou seus subsídios no de suma importância para percorrermos espaços
método etnográfico sem, contudo, se caracterizar e atividades que somente os membros da família
como tal, sendo uma opção por nós adotada ao se viam autorizados a participar, o que contribuiu
longo da pesquisa. Sob a perspectiva de dar voz significativamente para a coleta do material oriundo
aos sujeitos pesquisados – a fim de identificar a das observações de campo.
autopercepção enquanto quilombolas –, os sepa- Vale ressaltar que, durante todo o processo de
ramos em três grupos específicos: a) lideranças pesquisa de campo, ficamos hospedados na casa da
adultas que participam ativamente do movimento liderança Sandra, local que é uma importante refe-
quilombola; b) jovens e adolescentes; c) a matriarca rência para a comunidade, uma vez que ela reside
e principal referência da comunidade. Para tanto, no mesmo lote em que a associação comunitária
lançamos mão dos seguintes métodos de pesquisa: quilombola está localizada. Nesse sentido, partici-
a observação participante (ANGROSINO, 2009); pamos de forma ativa da vivência em comunidade,
entrevista centrada no problema (RIBEIRO, 2008); captando situações e interações bem interessantes,
narrativa (FLICK, 2009); análise de dados visuais; tendo à nossa disposição nosso “objeto” quase
e triangulação de dados (ALVES-MAZOTTI; que em tempo integral. Durante as observações, o
GEWANDSNAJDER, 2004), a fim de captar na único material utilizado foi o caderno de campo, o
subjetividade cotidiana as formas de educar des- que, de certa forma, neutralizava nossas incursões,
ses sujeitos. Vale dizer que a pesquisa se deteve a não causando maior estranhamento, e, ao mesmo
observar dois espaços distintos: o núcleo familiar tempo, nos permitia pontuar questões importantes
de Dona Sebastiana, a matriarca da comunidade, que eram captadas naquele momento.
e os espaços de articulação política representados Para a realização das entrevistas, dividimos os
pelo movimento social quilombola. questionários em duas versões: uma para os jovens
Ao fazermos referência à convivência em nossa e outra para as lideranças adultas da comunidade,
prática enquanto pesquisadores, estamos nos refe- uma vez que um de nossos objetivos foi captar as
rindo à construção de confiança, fator que julgamos distintas percepções acerca do “ser quilombola”
ser imprescindível na condução de uma pesquisa sob o recorte geracional, como mostra o Quadro 1.

Quadro 1 – Dados dos membros da comunidade entrevistados


Nome Idade Sexo Escolaridade Atuação junto ao movimento quilombola
Cleverson Luiz Cursando Festividades da comunidade e eventos do movimento
23 M
Epifânio de Oliveira Superior quilombola em âmbito local e estadual
Laura Gabriele Cursando Movimento de juventude quilombola, festividades da
12 F
Januária Fundamental comunidade e reuniões do município
Conselho Municipal da Criança e Adolescente,
Maria das Graças Ensino Médio
43 F Conselho Municipal de Saúde, N’Golo, Conaq,
Epifânio da Silva completo
Associação Quilombola e festividades da comunidade
Silvio Gabriel Cursando Mobilizações de juventude local, Conferências e
15 M
Januário Ensino Médio encontros quilombolas de âmbito estadual e nacional
Conselho Municipal de Saúde, Conselho Municipal
Tânia Aparecida da Ensino Médio da Mulher, Conselho Estadual de Promoção da
53 F
Silva Oliveira incompleto Igualdade Racial, Conselho Estadual de Alimentação
Escolar, Associação Quilombola, N’Golo e Conaq.
Fonte: Elaborado pelos autores deste artigo.

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As perguntas estavam ancoradas em questões visuais: A Filha de São Sebastião (A FILHA...,


basilares, as quais buscavam analisar os seguintes 2014) e Dandaras: a força da mulher quilombola
eixos básicos da pesquisa: (DANDARAS..., 2015).
• A percepção que os sujeitos da pesquisa têm
acerca do sentido de quilombo; Das narrativas ao discurso
• O conhecimento acerca da história de for-
Ao analisarmos as discussões que vimos fa-
mação e valores de sua comunidade;
zendo até aqui acerca dos processos educativos
• O grau de engajamento e atuação e de
reproduzidos entre os remanescentes de quilombos,
que forma compreendem o movimento
quer no interior das comunidades, quer no seio
quilombola;
dos movimentos sociais, é possível afirmar que
• De que forma concebem seu lugar enquan-
tais processos são orientados e construídos como
to sujeitos, o acesso a direitos e à cultura
estratégias de sobrevivência e de reivindicações
diferenciada enquanto remanescentes de
políticas. No caso da comunidade de Carrapatos
quilombos.
da Tabatinga, em específico, o processo formativo
Por fim, selecionamos apenas cinco entrevistas encontra-se diretamente ligado à inserção e à traje-
para compor a pesquisa, uma vez que priorizamos o tória de seus sujeitos nos movimentos sociais, sen-
uso de outras fontes de coleta, a fim de estabelecer do estes importantes espaços de formação daquilo
um diálogo analítico-comparativo entre eles, uma que vimos designando “ser quilombola”. Neste
vez que: processo de constituição e de afirmação de uma
À medida que os dados vão sendo coletados, o pes- identidade propriamente quilombola, encontramos
quisador vai procurando ativamente identificar temas um aspecto de suma relevância e que tem por fun-
e relações, construindo interpretações e gerando ção orientar todo este processo de transmissão dos
novas questões e/ou aperfeiçoando as anteriores, saberes e ideologias: a palavra.
o que, por sua vez, o leva a buscar novos dados, Manifesta de formas diferentes, do cotidiano
complementares ou mais específicos, que testem em comunidade aos momentos de mobilização,
suas interpretações, num processo de “sintonia fina” a palavra é o principal instrumento e meio pelo
que vai até a análise final. (ALVES-MAZZOTTI; qual todo o conjunto de crenças, concepções,
GEWANDSZNAJDER, 2004, p. 170).
reivindicações, saberes e valores é transmitido
Ademais, acompanhamos a Guarda de Moçam- de geração em geração. Nesse sentido, faz-se
bique, principal manifestação cultural de matriz necessário analisarmos as formas diferentes que
africana da comunidade, durante a Festa de São a palavra assume nos diferentes espaços, sendo
Benedito, em 2015. Para além do espaço da co- possível demarcarmos dois aspectos principais
munidade, pudemos acompanhar algumas de suas em que ela se manifesta: nas narrativas e no dis-
lideranças nos espaços de formação e de articu- curso. Vale ressaltar que tanto a narrativa quanto
lação política, tanto em âmbito estadual (agenda o discurso cumprem funções complementares,
da N’Golo) quanto em articulações em Brasília sendo o principal veículo de construção social e de
(agenda da Conaq), com enfoque na liderança San- formação dos sujeitos quilombolas, perpassando
dra Maria. Nessa etapa foi possível obtermos um das relações familiares até as mais distintas formas
comparativo entre a vida cotidiana em comunidade de mobilização social.
e sua atuação como liderança política, além dos Para além da nítida manifestação da experiên-
aspectos presentes em suas narrativas nos distintos cia nesse processo, as trocas estabelecidas entre o
espaços. Nesse sentido, a observação participante narrador e seus ouvintes pressupõem um processo
em ambos os espaços nos auxiliou na triangulação educativo manifesto na fala e na escuta entre os
e na análise dos dados coletados em campo, uma sujeitos, o que representa uma estratégia pedagó-
vez que pudemos acompanhar dois momentos gica de grande valia. Para Rosário (1989), toda
distintos dessas referências comunitárias. Por fim, narrativa incorpora quatro elementos básicos que
utilizamos narrativas registradas em dois audio- se relacionam à vida em comunidade: a) aspectos

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As contribuições do movimento quilombola para a construção de uma proposta de educação específica

geográficos; b) aspectos econômicos; c) aspectos individual, quer em sua formulação coletiva. Nessa
sociológicos, culturais e etnográficos; e d) aspectos perspectiva, este autor compreende que:
mágico-religiosos. Partindo do pressuposto de que O indivíduo enquanto detentor dos conteúdos de
as narrativas são produzidas à luz das comuni- sua consciência, enquanto autor de seus pensamen-
dades que as produzem, há de se considerar que tos, enquanto personalidade responsável por seus
este processo constitui um fenômeno organizado, pensamentos e por seus desejos, apresenta-se como
articulado entre seus sujeitos, a fim de garantir a fenômeno puramente socioideológico. Esta é a razão
manutenção das memórias e histórias relevantes. por que o conteúdo do ‘psiquismo’ individual é, por
Nesse sentido, as narrativas cumprem uma impor- natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua
tante função, já que: vez, a própria etapa em que o indivíduo se cons-
cientiza de sua individualidade e dos direitos que
Além disso, sabemos que a narrativa funciona pertencem é ideológica, histórica, e internamente
como registo que documenta a sobrevivência de condicionada por fatores sociológicos. Todo signo é
usos, costumes, fórmulas jurídicas, valores morais social por natureza, tanto o exterior quando o interior.
e sociais vigentes ou esquecidos pelo tempo. Aliás (BAKHTIN, 2009, p. 59).
a ilogicidade que muitas vezes é patenteada por
algumas sequências narrativas não passa de uma Resultantes de um processo de conscientização
reminiscência de valores a nível do universo nar- dos sujeitos, os discursos dos grupos quilombolas
rativo que há muito desapareceram da história. A tornam-se parte do processo formativo de seus sujei-
narrativa oral é um tecido complexo que busca a sua tos, tendo nas narrativas sua base de sustentação. No
formação através da fusão de elementos regionais, caso quilombola, parte das narrativas que remetem
representados pelo narrador, da história e geografia ao período escravista são legitimados nos discur-
locais bem como da linguagem actual e com ele- sos que têm por finalidades o reconhecimento e a
mentos universais representados pelos temas, pelos valorização desses grupos no âmbito das políticas
valores colectivos quer morais quer culturais e pela públicas. É bastante comum o uso de fragmentos de
obediência a uma estrutura esquemática herdada. suas histórias e a contextualização acerca das desi-
(ROSÁRIO, 1989, p. 95).
gualdades produzidas pela colonização nos espaços
No caso da comunidade pesquisada, é possível de mobilização política. Numa relação que perpassa
afirmar que as narrativas são indissociáveis das prá- a subjetividade dos sujeitos e é colocada de forma
ticas educativas e da formação política dos sujeitos implícita, a conversão das narrativas históricas em
quilombolas, tendo como figura central a matriarca discursos políticos é uma estratégia que não pode
da comunidade, Dona Sebastiana. Considerando ser desprezada, uma vez que nos revela parte do
o processo migratório ao qual a comunidade foi processo educativo do grupo em questão.
submetida na década de 1970, o registro acerca de Sendo assim, concluímos que a ideologia forma
sua origem, da luta e dos costumes de seus ances- o sujeito político e imbuído de uma consciência
trais se faz presente na memória coletiva do grupo identitária, sendo parte indispensável à formação
mediante o uso das narrativas. do “ser quilombola”, condição esta que não é or-
No conjunto dos discursos entoados pelos movi- gânica, mas construída ao longo de suas vivências
mentos sociais, o estabelecimento de signos que os e interações comunitárias e intergrupais. Apesar
identifique enquanto categoria específica somente da dificuldade em determinar um marco temporal
é concretizado à luz de uma função ideológica. O neste processo de conscientização e de construção
filósofo russo Mikhail Bakhtin (2009) analisa de ideológica, no caso mineiro é possível demarcar a
forma descritiva – e em detalhes – os processos de formação da N’Golo, em 2005, como um impor-
construção dos signos e de sua assimilação entre tante marco. Anterior à uma organização política
sujeitos e grupos sociais, afirmando existir uma enquanto movimento instituído, os remanescentes
interação dialética entre psiquismo e ideologia. de quilombolas perpassavam por movimentos
Para o autor, o signo ideológico percorre ambos distintos, não sendo possível identificar um dis-
os campos, fenômeno social que perpassa a cons- curso unificado e que representasse a categoria
tituição sociológica dos sujeitos, quer no âmbito quilombola.

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Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito

A adoção e a reprodução de um discurso em torno b) O papel aglutinador desempenhado pela


de uma identidade quilombola só é possível graças figura da matriarca, principal responsável
a uma consciência enquanto parte de um grupo e pela manutenção dos aspectos tradicionais
aos seus códigos culturais. Dessa forma, antes de do grupo, sendo o principal elo entre passa-
endossar um discurso coletivo, reproduzido pelos do e presente, o qual se manifesta pela reto-
movimentos sociais, os sujeitos assimilam parte mada da memória coletiva dos antepassados
destes signos ainda em sua vivência na comunidade, e da história de resistência da comunidade;
sendo este um importante aspecto dos processos c) A oralidade é a principal forma de transmis-
educativos. Portanto, é possível associar (afirmar) a são de memória e dos saberes e fazeres que
relação entre os processos educativos apreendidos são reproduzidos na atualidade pelos seus
no interior das comunidades e seus reflexos nos sujeitos;
discursos junto ao movimento quilombola, sendo d) Parte significativa das lideranças da comu-
um resultante do outro. No caso de Carrapatos da nidade, sobretudo mulheres, são atuantes
Tabatinga – mediante narrativas coletadas durante nos movimentos quilombolas de âmbito
a pesquisa de campo –, os sujeitos já detinham uma estadual e nacional, sendo importantes
consciência acerca de suas “diferenças” antes mes- referências, legitimadas pelas demais co-
mo de terem contato com o termo remanescentes munidades do estado;
de quilombos. Segundo as narrativas da liderança e) A participação de jovens nas mobilizações
Sandra Maria, “quando conheci o que era quilombo- políticas voltadas à temática quilombola e
la, tudo fez sentido, reconheci minha comunidade”. da juventude quilombola é um aspecto de
destaque, uma vez que suas experiências
Os elementos presentes nas formas de vão na contramão de outras comunidades,
se educar no quilombo: observações da que têm sofrido com a baixa adesão da
comunidade quilombola de Carrapatos juventude nas manifestações culturais e na
da Tabatinga organização política.
Diante de tais aspectos, emergiu nosso interesse
A fim de compreender os elementos que com- em desenvolver uma pesquisa na área da Educação
põem os processos educativos e a formação iden- Quilombola, uma vez que partimos do pressuposto
titária dos sujeitos que se autoidentificam como de que estes e demais aspectos são parte fundante
quilombolas é que a pesquisa foi desenvolvida dos processos educativos das comunidades qui-
junto à comunidade quilombola de Carrapatos lombolas. Nesse sentido, dois preceitos são de
da Tabatinga. Localizada na região centro-oeste suma relevância para compreendermos a educação
mineira, na área urbana do município de Bom quilombola enquanto proposta curricular e peda-
Despacho, a referida comunidade foi escolhida por gógica específica: a) as comunidades quilombolas
reunir alguns aspectos que se diferenciam de outras possuem formas próprias de educar seus sujeitos,
comunidades quilombolas com as quais pudemos transmitindo valores e saberes indissociáveis de
interagir ao longo de nossa inserção no Cedefes. sua tradicionalidade; b) as formas de se educar
Dentre os elementos que previamente nos desper- nos quilombos, juntamente com seus valores nor-
taram, vale ressaltar os que mais nos interessam teadores, devem ser consideradas na elaboração de
para o presente estudo de caso: uma modalidade de educação escolar quilombola.
a) Apesar de estar localizada em área urbana, Antes de adentrarmos aos elementos presentes
a comunidade ainda preserva aspectos orga- no processo educativo identificados na comunidade
nizacionais que raramente são identificados pesquisada, vale destacar os procedimentos e mé-
em quilombos inseridos em contexto seme- todos adotado na sua condução, a fim de justificar
lhante, tais como a vida em comunidade, a as conclusões que apresentaremos ao término
manutenção da uma religiosidade de matriz deste trabalho. A pesquisa qualitativa buscou suas
africana, manifestações culturais específi- referências na etnografia, apropriando-se de alguns
cas, dentre outras; preceitos básicos que nos nortearam na condução

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As contribuições do movimento quilombola para a construção de uma proposta de educação específica

das imersões no campo de pesquisa. Apesar da torno das relações sociais, pelas quais as relações
complexidade e da diversidade dos elementos de poder são constituídas.
coletados em campo ao longo da pesquisa, nos Entretanto, do ponto de vista antropológico, a
deteremos a somente elencar alguns dos aspectos questão da identidade torna-se bastante sensível,
– ainda de que forma resumida – identificados no uma vez que se localiza num espaço de transição,
processo educativo, enquanto um estudo de caso. não sendo estática, imobilizada pela história. Pelo
Os aspectos formativos que compõem aquilo contrário, a identidade somente pode ser concebida
que designamos tradicionalidade quilombola são o como aspecto de análise mediante a observância de
ponto de partida na identificação das formas de se que é simbólica, tomando conotação política pelos
educar e formar sujeitos quilombolas engajados e sujeitos de determinados grupos que recorrem a
que se identificam com uma identidade etnicamente ela enquanto instrumento de reconhecimento e
diferenciada. Tais aspectos são encontrados, sobre- legitimidade cultural.
tudo, nos discursos e narrativas entoados tanto nos Os valores e crenças que passam a constituir a
espaços de trocas cotidianas da comunidade, quanto identidade de determinado grupo são negociados
nos espaços de formação política promovidos pelos socialmente, sendo este um processo dinâmico, que
coletivos sociais. Parte desses elementos denotam pode variar segundo o período histórico e as tensões
uma relação direta com as matrizes africanas, o que que dele advêm. Partindo da ideia de remanescentes
reforça as reminiscências do período escravista, de quilombos, este fator torna-se ainda mais per-
reconfiguradas e adaptadas pelas comunidades ceptível, uma vez que não é incomum identificar
no contexto atual, sendo um dos aspectos que processos de “resgate” de práticas há muito frag-
comprovam sua trajetória com a escravização. A mentadas nas comunidades que, mediante emergên-
seguir, apresentaremos, de forma sintética, alguns cia de políticas específicas, passaram a ressignificar
destes aspectos. inúmeras práticas do cotidiano das comunidades.
Não seria exagero dizer que o reconhecimento legal
das populações quilombolas enquanto sujeitos de
Identidade direito influenciou significativamente o processo
Ao discutirmos a cultura e seu papel no proces- de (des)invisibilização de inúmeras comunidades,
so de reconhecimento dos povos e comunidades sendo este número constantemente alterado (e cres-
tradicionais, deparamo-nos com o conceito de cente) no cenário nacional. Os signos e discursos
que se interligam à identidade cumprem uma fun-
identidade, uma vez que um depende do outro na
ção de afirmação e resistência, que Bhabha (1998,
constituição político-ideológica dos sujeitos e dos
p. 84) descreve da seguinte forma:
grupos sociais específicos. Nesse sentido, podemos
afirmar que as identidades são concebidas a partir Cada vez que o encontro com a identidade ocorre
da concepção da diferença, o que, para Tomaz no ponto em que algo extrapola o enquadramento
Tadeu da Silva (2014), emerge através dos siste- da imagem, ele escapa à vista, esvazia o eu como
mas simbólicos e pelas formas de exclusão social, o lugar da identidade e da autonomia e - o que é
mais importante – deixa um rastro resistente, uma
afirmando que a identidade depende da diferença.
mancha do sujeito, um signo de resistência. Já não
Emergindo das relações híbridas, orientadas estamos diante de um problema ontológico do ser,
pelas disputas entre “nós” e os “outros”, a questão mas de uma estratégia discursiva do momento da
da identidade emerge enquanto questão ideoló- interrogação, um momento em que a demanda pela
gica, de disputa sociopolítica, sendo orientada identificação torna-se, primariamente, uma reação
por questões históricas. Esta tensão é de extrema a outras questões de significação e desejo, cultura
relevância na construção identitária, uma vez que e política.
a concepção da existência de uma comunidade
imaginada é um dos pilares das representações Tradição
culturais de cada grupo em específico. Para Hall
(2009, p. 81), “toda identidade é fundada sobre A tradição exerce uma função que devemos
uma exclusão”, o que nos aponta os conflitos em compreender minimamente, uma vez que embasa a

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Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito

afirmação de uma identidade e cultura próprias, que para um sentimento de pertencimento, tendo nela
passam a ser assimiladas nos processos educativos o ponto ao qual cada sujeito se interliga à sua me-
produzidos por estes grupos, além de serem fatores mória e identidade.
de legitimação daquilo que seria uma cultura qui-
lombola. Cumprindo uma função essencialmente Narrativas
política, a tradição passa a ser assimilada pelos
grupos etnicamente diferenciados como um ins- A transmissão dos saberes e práticas relacio-
trumento de valorização e legitimidade, tendo na nadas à cultura de cada grupo social é uma forma
manutenção/transmissão de uma cultura específica de perpetuá-lo no futuro, através de sua experiên-
os aportes que os legitimariam como sujeitos de cia acumulada numa memória que se mantenha
direito. organizada no tempo histórico. Para Raul Iturra
Utilizando uma conceituação antropológica (1994, p. 2), o processo educativo é, em síntese, a
daquilo que poderia ser entendido por tradição, transmissão de saberes e fazeres de determinados
Antônio Carlos de Sousa Lima (2012) entende que grupos, “adquiridos em sua experiência histórica,
as tradições seriam resultantes da ação coletiva dos às gerações mais jovens, tendo a transmissão oral
grupos sociais, tendo autenticidade pela assimila- um importante papel neste processo, a fim de inserir
ção dos seus sujeitos, não devendo ser, portanto, os mais novos nas taxonomias culturais”.
tida como autêntica mediante sua perpetuação no A referência no passado se faz presente nas inú-
tempo, mas sim por sua vitalidade social. Em re- meras narrativas que pudemos observar em campo,
lação aos remanescentes de quilombos, o apelo a entre jovens e lideranças mais velhas, estando toda
uma tradição comum extrapola as especificidades uma legitimidade enquanto grupo étnico numa he-
de cada comunidade, havendo uma concepção entre rança cultural, o que pode ser sintetizado no concei-
elas de uma trajetória comum e coletiva, que tem to de tradição. A ideia de serem guardiões de uma
sua legitimidade na resistência à escravização e no tradição que se associa à uma história de resistência
processo de aquilombamento. Para além de uma e de luta pela sobrevivência reforça a necessidade
concepção de origem comum entre esses grupos, de reproduzir tais aspectos e de transmiti-los às
o uso da cultura – representada principalmente em novas gerações, a fim de resguardar tais saberes. O
suas manifestações culturais, religiosidade, danças papel do narrador – geralmente uma pessoa de re-
e fabricação de objetos – torna-se uma estratégia, ferência, quer um dos mais velhos, quer um mestre
considerando que: ou uma liderança (religiosa e/ou política) – pode ser
Muitas tradições aparecem como sinais diacríticos entendido como um dos pilares de sustentação das
nas etnicidades e são construções culturais que tradições de origem africana e afro-brasileira entre
funcionam significando e delimitando, no discurso as comunidades remanescentes de quilombos, que
nativo, uma cultura própria. Em tais processos, mantêm viva parte desses aspectos. Na comunida-
a referência ao passado é importante para tornar de de Carrapatos da Tabatinga percebe-se o papel
legítimo o caráter tradicional, pois este, apoiado importante desempenhando pela memória do cati-
numa retórica de transcendência temporal, acaba veiro, a religiosidade – no caso, a umbanda – e as
por afirmar a historicidade da cultura. São pessoas manifestações culturais como principais dimensões
reconhecidas como porta-vozes que devem deter a a afirmar sua afro-descendência.
legitimidade para estabelecer as bases tradicionais
sobre as quais a existência dos próprios grupos se
funda. (LIMA, 2012, p. 194). Memória
Mais do que um instrumento de manutenção Para analisar o uso da memória entre grupos,
cultural e de legitimidade política, a tradição está sobretudo no caso quilombola, faz-se imprescindí-
presente nas formas de se educar nessas comunida- vel compreendermos que ela não é apropriada de
des, estando diretamente ligada à formação ampla forma natural, inconsciente e destituída de qualquer
do sujeito quilombola, sendo um dos elementos intencionalidade. Ao contrário, o recurso a uma
que contribuem para sua assimilação ao grupo e memória, sobretudo a uma memória coletiva, por

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As contribuições do movimento quilombola para a construção de uma proposta de educação específica

um determinado grupo acaba por cumprir uma fun- tanto nas trocas cotidianas comunitárias, quanto nas
ção social da memória e da identidade, mediante a mobilizações promovidas pelos coletivos sociais
relação transmitir-receber. Tal relação é relevante quilombolas. Nesse ponto, é possível afirmarmos
em nossa pesquisa, uma vez que sintetiza parte que existe uma relação proximal – e por que não,
significativa das formas de se educar os sujeitos indissociável – entre as experiências e concepções
quilombolas no interior da comunidade. Retoman- presentes tanto nas comunidades quanto nos movi-
do Candau (2011), a transmissão das memórias é mentos sociais. Em outras palavras, o movimento
parte integrante dos processos de socialização e assume as reivindicações e expectativas oriundas
de educação de determinado grupo, o que pode das individualidades de cada contexto quilombola,
auxiliar-nos na identificação deste processo na sendo este um reflexo das questões que já se fazem
comunidade de Carrapatos da Tabatinga. Apesar de presentes do micro para o macro.
parte significativa dos membros da comunidade não
ter vivido e nem mesmo conhecido seu território Considerações finais
originário, a lembrança acerca de seu processo mi-
gratório é bastante viva nas narrativas. Tal aspecto, As percepções trazidas acerca dos valores e
pode ser entendido sob a perspectiva de que: das formas de transmissão que compõem o que
Em um mesmo grupo, essa transmissão repetida
consideramos parte das formas de se educar entre
várias vezes em direção a um grande número de os remanescentes de quilombos, manifestas tanto
indivíduos estará no princípio da reprodução de uma no caso da comunidade pesquisada quanto no
dada sociedade. No entanto, essa transmissão jamais movimento quilombola representado pela N’Golo,
será pura ou uma ‘autêntica’ transfusão memorial, ela foram o objeto de análise do presente trabalho.
‘não é assimilada como um legado de significados Transitando entre os espaços da comunidade e das
nem como a conservação de uma herança’, pois, para mobilizações, diversos aspectos comuns puderam
ser útil às estratégias identitárias, ela deve atuar no ser identificados ao longo de nossas interações com
complexo jogo da reprodução e da invenção, da res- os sujeitos que atuam em ambos os espaços. A fim
tituição e da reconstrução, da fidelidade e da traição, de verificar a continuidade e a projeção que estes
da lembrança e do esquecimento. (CANDAU, 2011,
sujeitos levam de suas experiências individuais para
p. 106, grifo do autor).
as experiências coletivas, é possível afirmar que
A memória coletiva teria sentido mediante cons- existe uma projeção de causa, tornando-a comum,
ciências individuais dos membros de determinado inerente a todos os sujeitos, independente do espaço
grupo, estando a sobrevivência de determinada sociogeográfico em que se inserem.
história/fato interligada à manutenção de sua me- Ao considerarmos os discursos e observações
mória, podendo a mesma ser alterada de geração apreendidos das lideranças quilombolas mais
para geração. As relações de tempo podem ser en- atuantes, a noção coletiva de uma causa comum
tendidas como subjetivas, uma vez que a cronologia é sintetizada em expressões como “nossa nação”
histórica nem sempre é “fiel” à realidade do fato em e “nossos irmãos”, tidas como uma concepção
si. O que nos auxilia neste processo é a identifica- ideológica coletiva. Nesse processo, a memória é
ção dos marcos relativamente imutáveis, que estão a principal responsável por conectar as individuali-
presentes na narrativa de sujeitos distintos acerca dades de cada sujeito a uma identificação coletiva,
de um determinado fato. Para Halbwachs (1968), o que é descrito por Michel Pollack (1992, p. 201)
a memória coletiva está diretamente relacionada como acontecimentos vividos por tabela, ao qual:
àquilo que ele designa como comunidade afetiva, “[...] a memória deve ser entendida também, ou
uma vez que há uma interação entre indivíduos sobretudo, como um fenômeno construído coleti-
do mesmo grupo, que acabam por “negociar” os vamente e submetido a flutuações, transformações,
acontecimentos que serão enfatizados. mudanças constantes.”
O interessante em observarmos tais aspectos – A partir desse trecho, é possível afirmarmos que
sobretudo para as análises propostas no presente a luta quilombola constitui-se e ganha relevância,
trabalho – se dá ao fato de todos serem perceptíveis do ponto de vista legal, numa percepção coletiva,

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Agda Marina Ferreira Moreira; José Eustáquio de Brito

na qual o reconhecimento pressupõe uma coleti- demandam maior intervenção por parte dos ór-
vidade. Tal fenômeno também se manifesta ao re- gãos públicos. Mais do que isso, o movimento é
verso, já que o processo de (des)invisibilização das responsável pela constituição de um pensamento
comunidades quilombolas se constituíra mediante simbólico-ideológico de grupo, formando sujeitos
reconhecimento legal destes grupos enquanto po- engajados e apropriados de uma identidade que su-
pulações tradicionais etnicamente diferenciadas. A pera as fronteiras geográficas entre as comunidades.
ressemantização do termo quilombo e o reconheci- Endossadas por um discurso próprio de classe, as
mento de uma categoria social dos remanescentes propostas e reinvindicações dos grupos quilombo-
de quilombos é o ponto de partida das mobiliza- las nada mais são do que uma resposta frente ao
ções de milhares de comunidades localizadas em histórico de exclusões e desigualdades enfrentadas,
diversos estados do Brasil, em prol de um direito que Miguel Arroyo (2012, p. 39) endossa:
coletivo. Essas tensões são respostas, repolitizadas na atuali-
Sob a perspectiva de uma cultura diferenciada, dade pela diversidade de coletivos sociais, étnicos,
a qual a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha raciais, de gênero e orientação sexual dos campos e
(2009, p. 312, grifo do autor) conceitua de “cultura periferias em suas ações e movimentos que incor-
com aspas”, esses grupos passam a se reconhecer poram pedagogias e saberes acumulados por outras
e a se organizar em torno de um ponto comum, ações e movimentos de educação, emancipação.
traduzido pela autora como uma corrida em busca Mas vão além. Os campos de suas lutas os obrigam
da afirmação: a inventar processos e pedagogias com outras radica-
lidades e virtualidades formadoras e emancipadoras.
Do mesmo modo, a ‘cultura’, uma vez introduzida
no mundo todo, assumi um novo papel como argu- Inversamente, essas pedagogias são desenvolvi-
mento político e serviu de ‘arma dos fracos’, o que das no interior de cada comunidade e reproduzidas
ficará particularmente claro nos debates em torno entre seus sujeitos, o que nos aponta a necessidade
dos direitos intelectuais sobre os conhecimentos dos de reconhecer e legitimar outras formas de se edu-
povos tradicionais. car, sobretudo aquelas que antecedem a inserção de
Nesse processo de reconhecimento, a adoção e a seus sujeitos no espaço escolar. Reconhecer estes
visibilidade de suas formas e estratégias educativo- saberes e práticas pedagógicas endossam a luta
-formativas são de suma relevância para compre- quilombola e o reconhecimento de seus aspectos
endermos a relação entre educação e movimentos tradicionais, uma vez que a Educação se torna im-
sociais. À luz dessa autora, essa relação se dá a portante instrumento de luta e de promoção social
partir do momento em que estes grupos passam a de seus sujeitos
reconhecer seu valores étnico-culturais, trazendo Conscientes de si, do que reivindicam e da iden-
para o debate político suas formas próprias de tidade que representam, interagir com essas comu-
reprodução sociocultural e, consequentemente, de nidades nos aponta para novas perspectivas teóricas
se educarem. Este ponto é de suma relevância na no campo da educação, sobretudo se considerarmos
proposição de uma modalidade de Educação Qui- o recorte da Educação Quilombola. Portanto, faz-se
lombola, uma vez que reconhece seus repertórios, necessário o reconhecimento e a valorização destes
performances, cosmovisão, interação com o meio, sujeitos, a fim de que, conjuntamente, a proposta
sobretudo na relação com o território tradicional e educacional que os tenha por público-alvo interaja
na compreensão de sua identidade, que os tornam com eles de forma horizontal, dando voz a estes
quilombolas. grupos. Ancorados numa organização simbólica
Por fim, vale aqui ressaltar o caráter formativo de matriz africana, seus modos de educar devem
indispensável que os movimentos e coletivos so- contemplar tais valores, a fim de manter vivas suas
ciais assumem no âmbito das disputas políticas, tradições para a posteridade e de garantir a perpe-
sobretudo no campo educativo, sendo o principal tuação de sua memória coletiva, que se configura
instrumento de difusão e defesa das questões que em parte significativa de nossa história.

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As contribuições do movimento quilombola para a construção de uma proposta de educação específica

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Recebido em: 01/05/2017


Aprovado em: 26/06/2017

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 119-137, maio/ago. 2017 137
Iris Verena Oliveira

SER QUILOMBOLA: PRÁTICAS CURRICULARES


EM EDUCAÇÃO DO CAMPO

Iris Verena Oliveira (UNEB)∗

RESUMO
Este artigo apresenta um relato da aproximação com o campo na pesquisa sobre
currículo e formação de professores que atuam nas escolas quilombolas em Conceição
do Coité e Nordestina, no Território do Sisal, na Bahia. O intuito é problematizar
questões relacionadas à educação e relações raciais em práticas curriculares, propondo
intersecções entre educação do campo e educação escolar quilombola. Para tanto,
buscou-se, por meio de abordagem qualitativa, com o uso de entrevistas e observação
participante, alinhavar fios que despontaram em situações distintas, evidenciando
fazeres curriculares que rasuram construções identitárias em torno do ser quilombola.
O relato chama atenção para o tratamento de questões raciais na educação do
campo, ao tempo em que mostra a limitação do debate sobre currículo na educação
escolar quilombola, quando o foco se volta apenas para a inclusão de conteúdos.
Propõe tratar a diferença pelo viés pós-colonial e pós-estruturalista, considerando as
práticas curriculares em oblíquas tramas de poder, nas quais o ser quilombola desliza
cotidianamente.
Palavras-chave: Educação Escolar Quilombola. Educação do Campo. Currículo.

ABSTRACT
BEING QUILOMBOLA: CURRICULUM PRACTICES IN FIELD EDUCATION
This article presents an account of an approach with field in research about teacher’s
curriculum and formation that act in quilombolas schools in Conceição do Coite and
Nordestina, in the Territory of Sisal, Bahia. The intention is problematize issues related
to education and racial relationships in curriculum practices, proposing intersectionality
between rural education and quilombola school education. For this purpose, we
sought, through an a qualitative approach, with the use of interviews and participant
observation, plotting yarns that came up in different situations, that emphasize
curriculum practices that erasure identity constructions, around being quilombola.
The account warns to the treatment of racial issues at rural education, at time that
shows the limitation of discussions about curriculum at quilombola school education;
when the focus turns just to content inclusion. We propose treat the difference by the
postcolonial and post-structuralism slant, seeing the curriculum practices in oblique
plots of power, which being quilombola daily slides.
Keywords: Quilombola school education. Rural Education. Curriculum.


Doutora em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (PÓS-AFRO/UFBA). Professora do Departa-
mento de Educação - Campus XIV/UNEB/Conceição do Coité (Bahia). Bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado/
CAPES-UERJ. Professora do Mestrado Profissional em Educação da Universidade Federal da Bahia (MPED/FACED/UFBA).
Membro dos grupos de pesquisa FEL/UNEB/CNPq e FEP/UFBA/CNPq. E-mail: [email protected]

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Ser Quilombola: práticas curriculares em educação do campo

RESUMEN
SER QUILOMBOLA: PRÁCTICAS CURRICULAR EN EDUCACIÓN DEL
CAMPO
El artículo presenta un relato de la aproximación con el campo en la investigación
sobre currículo y formación de profesores que actúan en las escuelas quilombolas en
Conceição do Coité y Nordestina, en el Territorio del Sisal, en Bahía. La intención es
problematizar cuestiones relacionadas a la educación y relaciones raciales en prácticas
curriculares, proponiendo intersecciones entre educación del campo y educación
escolar quilombola. Para ello, se buscó, por medio de abordaje cualitativo, con el uso de
entrevistas y observación participante, alinea los hilos que despuntaron en situaciones
distintas, evidenciando haceres curriculares que rasuran construcciones identitarias
alrededor del ser quilombola. El relato llama la atención sobre el tratamiento de
cuestiones raciales en la educación del campo, al tiempo que muestra la limitación del
debate sobre currículo en la educación escolar quilombola, cuando el foco se vuelve
sólo a la inclusión de contenidos. Propone tratar la diferencia por el sesgo poscolonial
y post-estructuralista, considerando las prácticas curriculares en oblicuas tramas de
poder, en las cuales el ser quilombola desliza cotidianamente.
Palabras clave: Educación Escolar Quilombola. Educación del Campo. Currículo.

“Descobriram que a gente era


quilombola”
A preocupação com o tratamento dado às ques- duas com processos pendentes. Sem contar aquelas
tões étnico-raciais na educação do campo foi sendo outras que ainda não conseguiram se organizar para
delineada a partir do desenvolvimento de atividades cumprir a burocracia2 exigida para a certificação.
envolvendo escolas, de Nordestina e Conceição do As informações disponibilizadas pela Fundação
Coité, no Território do Sisal, na Bahia. Por isso, Cultural Palmares chamam atenção, pois a meta-
optou-se por descrever as situações de pesquisa -narrativa histórica destacou a presença marcante
que geraram as questões, posteriormente problema- da população negra em Salvador e no recôncavo
tizadas em diálogo com a bibliografia relacionada baiano; só recentemente as pesquisas têm apre-
à temática. A observação participante possibilitou sentado as dinâmicas da escravidão em outros
vivenciar situações em que sensações, dúvidas e espaços do estado. Por outro lado, a baianidade
frustrações desenharam no itinerário da pesquisa, nagô cantada em verso e prosa pela música e pela
em um exercício que buscou atentar à subjetividade literatura amadiana generalizam referências que
dos envolvidos. compõem o mapa turístico da Bahia, contribuindo
Os cenários formativos analisados na pesquisa para a invisibilização das peculiaridades de ou-
foram as redes municipais de educação de Nordesti- tros cenários. Nas cidades do Território do Sisal,
na e Conceição do Coité. Atualmente, no Território
constituída deverá apresentar ata da assembleia convocada para
do Sisal, existem 18 comunidades quilombolas cer- específica finalidade de deliberação a respeito da autodefinição,
tificadas1 pela Fundação Cultural Palmares e mais aprovada pela maioria absoluta de seus membros, acompanhada de
lista de presença devidamente assinada; III- Remessa à FCP, caso
1 A Portaria nº 98 da Fundação Cultural Palmares (2007) informa as a comunidade os possua, de dados, documentos ou informações,
condições para a emissão da certidão de autodefinição: “Art 3º - tais como fotos, reportagens, estudos realizados, entre outros, que
Para a emissão da certidão de autodefinição como remanescente dos atestem a história comum do grupo ou suas manifestações culturais;
quilombos deverão ser adotados os seguintes procedimentos: I - A IV - Em qualquer caso, apresentação de relato sintético da trajetória
comunidade que não possui associação legalmente constituída de- comum do grupo (história da comunidade); V - Solicitação ao Pre-
verá apresentar ata de reunião convocada para específica finalidade sidente da FCP de emissão da certidão de autodefinição”. Fundação
de deliberação a respeito da autodefinição, aprovada pela maioria Cultural Palmares (2017).
de seus moradores, acompanhada de lista de presença devidamente 2 Decreto nº 4.887/2003, que regulamenta os processos que vão do
assinada; II - A comunidade que possui associação legalmente reconhecimento até a titulação das terras (BRASIL, 2003).

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Iris Verena Oliveira

os textos memorialísticos não reivindicam uma rem à falta de consciência do que é ser quilombola,
pertença fortemente alicerçada na herança e ances- ou ainda, que as pessoas das comunidades não
tralidade da população negra, só recentemente as têm orgulho de sua negritude, elas tomam como
investigações sobre a escravidão ganharam fôlego. referência o processo de empoderamento tal qual
Os registros de compra e venda de cativos, assim ocorreu em outras regiões. Sem considerar que as
como os testamentos, indicam que era comum na cidades do Território não contam com as narrativas
região que os proprietários tivessem entre um e três de ancestralidade, fundadas na história, legitimando
escravos (SOUZA, 2016). suas construções identitárias.
A documentação levantada até o momento – Ao final de algumas visitas realizadas nas comu-
cartas de alforria, inventários, livros de batismo e nidades, foi possível observar o olhar frustrado das
casamento – indica que ocorria uma feira voltada graduandas da Universidade do Estado da Bahia
para a venda e a compra de escravos, tornando – Campus de Conceição do Coité, que compõem
a cidade um importante centro comercial para a a equipe do projeto de extensão. A expectativa era
região, por onde passavam cativos para outras de que as comunidades tivessem diversos terreiros
províncias, o que leva a supor que ela possuía de candomblé; que ouvissem narrativas contadas
situação semelhante quanto à predominância de de avó para netos das crueldades dos tempos da
escravizados brasileiros e organização em grupos escravidão; e que as crianças esbanjassem um
pequenos nas propriedades rurais (RIOS, 2003; sentimento de orgulho étnico que confrontassem
GORDIANO, 2011). os currículos eurocêntricos de suas escolas. Justa-
Nesse sentido, as narrativas de memorialistas mente o que não foi encontrado!
do Território do Sisal construíram outras ficções Vale destacar que as estudantes que atuam no
relacionadas à trajetória daquela população; nelas projeto nasceram no Território do Sisal, o que não
se destacam o passado longínquo dos índios, ima- lhes impediu de construir uma idealização do que
gens tradicionalmente vinculadas ao sertão e, mais seria um quilombo. Em alguns casos, elas já co-
recentemente, a importância das atividades ligadas nheciam as localidades, mas não sabiam que eram
ao cultivo e manufatura de uma planta característica comunidades quilombolas. Logo, questiona-se o
da região. Portanto, identificar 18 comunidades cer- tratamento dado a essas questões na sua formação
tificadas como quilombolas pela Fundação Cultural inicial e o contato com a memória e história local
Palmares é impressionante em um Território cuja nos anos em que estiveram na educação básica. O
maioria da população não reivindica pertencimento que evidencia a necessidade de propor uma forma-
étnico vinculado à negritude. ção de professores que problematize a construção
Nos municípios, a aproximação com as escolas discursiva das experiências nas comunidades qui-
foi intermediada pelos movimentos sociais, cujas lombolas, atentando para esta constituição em suas
representações anseiam pelo tratamento das ques- práticas curriculares.
tões raciais nos espaços escolares. Nas reuniões Na aproximação com o campo de pesquisa
ouviu-se a fala recorrente das lideranças sobre a atentou-se para os significados atribuídos pelos
falta de consciência da negritude. Aos poucos foi moradores da comunidade ao termo “quilombola”,
possível compreender que se estabelecia uma rela- por vezes referido como “quirombola”, ao tempo
ção direta entre pertencimento étnico e organização em que se observou as expectativas que envolviam
de movimentos como blocos afro, afoxés e outras os(as) pesquisadores(as) da equipe, entre os(as)
práticas culturais presentes em outras cidades do quais a autora se inclui. Para tanto, conversas in-
estado. Desconsiderando as peculiaridades do formais, perguntas não compreendidas e respostas
processo de ocupação desse espaço, que atendem inusitadas compõem a rede de indícios seguida
a características históricas e culturais diferentes na pesquisa, assumindo a recomposição de senti-
de Salvador. dos inerente à prática interpretativa da etnografia
Entender as especificidades do Território do (MESSEDER, 2013).
Sisal fez-se necessário para dizer que, frequente- Faz-se necessário chamar atenção para a pro-
mente, quando as lideranças comunitárias se refe- ximidade temporal dessa pesquisa em relação ao

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Ser Quilombola: práticas curriculares em educação do campo

momento em que as comunidades quilombolas denava, no campus XIV4 da UNEB, o Projeto de


conquistaram as certificações, entre 2006 e 2014, Pesquisa “Tecnologia social da memória e experi-
ou seja, considerando que muitas pessoas atentaram ência videográfica na comunidade quilombola do
para o termo “quilombo” somente durante a produ- Maracujá”, em Conceição do Coité. A integração
ção do material enviado para a Fundação Cultural a este grupo de pesquisadores ocorreu para acom-
Palmares, trata-se de um processo que está sendo panhamento de bolsistas, que recolhiam narrativas
vivenciado atualmente pelos(as) moradores(as). de pessoas idosas da comunidade. Nelas eram
É importante registrar que a necessidade de au- remontadas práticas e trajetórias dos primeiros mo-
toafirmação como quilombola tem gerado inúmeros radores do povoado. O “Projeto Maracujá”, como
conflitos internos nas comunidades; ainda que essa era denominado comumente, resultou no curta-
questão mereça maior densidade etnográfica, é -metragem #vamosfazerumfilme?, cujas reuniões
ilustrativa a fala de um professor da rede munici- de planejamento, gravações e avaliações envolviam
pal sobre a condução do processo na comunidade todos os pesquisadores.
quilombola em que ele reside. Quando questionado A proposta do Projeto Maracujá envolvia a reali-
se houve a participação dos moradores, ele diz: zação de oficinas sobre história de vida e memória,
Participaram... tinha um padre aqui que era padre fotografia, roteiro e edição de vídeo. O intuito era a
Miguel, ele era da Espanha. Então, ele entrou em formação dos jovens que conduziram a realização
contato com [Senhor do] Bomfim e descobriu uma de entrevistas com os moradores mais antigos da
comunidade quilombola. Pediu pra um rapaz que comunidade. A partir disso, as narrativas eram
é de lá, o Valmir, da comunidade Tijuaçu, ir fazer organizadas na linguagem videográfica, buscando
uma palestra com a gente. Aí ele veio, aí de repente contar as histórias pela perspectiva dos moradores.
descobriram que a gente era quilombola! Vamos Em uma das avaliações do projeto, após uma
dizer assim; aí fez todo um trabalho, reuniu um sequência de filmagens, ocorreu uma divergência
monte de gente, abriu uma associação onde eu era entre a equipe e os adolescentes do Maracujá. Os
presidente mais uma menina. [...] A gente passou por
jovens queriam a gravação de algumas cenas na
esse processo de pessoas mais velhas tá contando as
histórias como foi, até que houve uma resistência do escola em que estudavam, localizada no povoado
pessoal mais velho: ‘Ah! Vai voltar a escravidão de vizinho. A equipe resistia por conta do desgaste
novo?’ Quando chegava na porta, eles fechavam a na condução dos equipamentos e questões como
porta. (PAULO).3 o barulho da escola, problemas com direitos de
imagem dos jovens, entre outras dificuldades. Em
Fica implícito na fala de Paulo os agenciamen-
meio às discussões, um dos adolescentes relatou o
tos conduzidos no processo político, que levam
seu incômodo com o lugar que ocupavam na escola.
a comunidade a “descobrir” que era quilombola,
Segundo ele, sempre que alguma confusão ocorria
provavelmente associados à luta por direitos.
na escola, envolvendo estudantes daquela comuni-
Entretanto, isso não significou uma aceitação
dade quilombola, eles ouviam dos professores: “Só
unânime por parte dos moradores, em especial
podia ser o(a) neguinho(a) do Maracujá!”
para os mais velhos da comunidade. É possível
Durante o período em que o curta foi gravado, a
que eles tenham sentido uma dificuldade maior
comunidade ainda não havia recebido da Fundação
na positivação de elementos que historicamente
Cultural Palmares a certificação como quilombola.
foram acionados para desqualificar e estereotipar
A equipe do projeto retornou à comunidade na
as populações negras.
data da cerimônia. Momento em que a prefeitura
municipal montou stands e ofereceu serviços de
“Só podia ser o(a) neguinho(a) do assistência social, aferição de pressão arterial, entre
Maracujá!” outros, que geralmente os moradores só acessavam
Em 2013, a professora Rosane Vieira coor- na sede de Conceição do Coité. À noite, logo após
a entrega do título, uma banda foi convidada para
3 O nome das instituições de ensino e dos entrevistados não serão
divulgados, com o intuito de evitar quaisquer constrangimentos 4 O campus XIV fica localizado na cidade de Conceição do Coité,
para as pessoas envolvidas. no Território do Sisal, que compõe a região Nordeste da Bahia.

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Iris Verena Oliveira

tocar no palco improvisado em frente à escola da estruturassem independentemente de relações de


comunidade. poder e hierarquia.
O grupo tocou músicas de blocos afros que Nesse sentido, a atitude de levar o samba reggae
embalaram os carnavais de Salvador na década para uma comunidade quilombola e ter a expecta-
de 1990, com destaque para o Olodum e o Ilê tiva de que a população se sinta familiarizada com
Aiyê. As canções tratavam do empoderamento as músicas é semelhante à do pesquisador, que
da população negra, da força das mulheres e da parte do pressuposto que encontrará um grupo de
necessidade de enfrentamento ao racismo. Os pessoas que combatem cotidianamente o racismo e
moradores do Maracujá assistiam e conversavam, sentem-se orgulhosos do seu pertencimento étnico,
sem demonstrar interesse em relação às músicas por terem nascido em comunidades quilombolas.
tocadas no palco. Desconsideram-se, muitas vezes, as experiências
Na sequência, se apresentou um grupo de de opressão e as dificuldades de problematizar as
samba de roda que veio prestigiar a festa. Os mú- desigualdades em ambientes nos quais os desafios
sicos moravam no povoado vizinho e, por vezes, são tratados como individuais, como se não inte-
tocavam na comunidade. As cantigas entoadas grassem hierarquias históricas, sociais e raciais.
eram acompanhadas com palmas e muita dança. No entanto, o exercício etnográfico impõe uma
A situação vivenciada naquela noite reportou tarefa árdua no estabelecimento de relações com
à gravação da sequência de cenas no samba de o outro, que envolvem expectativas de ambos os
roda, no curta-metragem feito pelos adolescentes. lados. Na formação para construir do roteiro do
No filme, os mais velhos entrevistados repetiram curta-metragem no Maracujá, estava claro para os
várias vezes que os jovens não se interessavam pesquisadores que a modalidade escolhida seria
pelas práticas culturais da comunidade, que não um documentário; afinal, para eles, interessava
queriam aprender as orações das rezadeiras nem a destacar a história da comunidade e marcar o papel
tocar e cantar o samba de roda. Contudo, quando da tradição na preservação das práticas culturais.
o samba iniciou na festa que marcou o fim das Os adolescentes, por sua vez, não sentiram motiva-
gravações no Maracujá e também a cerimônia de ção alguma para atuar em um documentário. Eles
certificação da comunidade, os estudantes dança- queriam um filme com roteiro semelhante ao da
ram e cantaram com a naturalidade de quem fez novela “Malhação”.5 A saída encontrada foi a rea-
isso a vida inteira. lização de um docudrama, uma narrativa ficcional
A relação entre os moradores do Maracujá e o com marcas memorialísticas. As práticas culturais
samba de roda era diferente da estabelecida com que faziam parte do cotidiano rasuraram a ficção,
o samba reggae soteropolitano e o samba de roda afinal eram os corpos dos meninos e meninas do
do recôncavo. Essas situações fizeram emergir a Maracujá que estavam ali; eram as narrativas dos
pergunta feita por Stuart Hall (2003): “que ‘negro’ seus familiares, as músicas do samba de roda que
é esse na cultura negra?” Ele questiona a leitura que ouviam sempre, o que lhes permitiu esquecer as
fixa autenticidade nas práticas culturais, preferindo câmeras por alguns instantes.
entendê-las como espaços performáticos gestados Nos momentos da construção do roteiro e carac-
“criticamente pelas condições diaspóricas” (HALL, 5 A novela Malhação tem sido exibida há alguns anos pela Rede
2003, p. 324) Afasta-se da diferença como entidade Globo de televisão. A trama inicialmente desenrolava-se em uma
academia de musculação e em uma de suas reformulações passou
fechada, que não considera os cenários de disputa, a ter como cenário uma escola na qual se desenrolam narrativas de
como destacam Duschatzky e Skliar (2011, p. 127): adolescentes de classe média alta e brancos. Anualmente o elenco
é substituído, mas o formato permanece: espaços como escola,
Esse mito da consistência cultural supõe que todos repúblicas estudantis e lanchonetes nos quais de desenrolam his-
os negros vivem a negritude do mesmo modo, que tórias de amor que enfrentam obstáculos, vencidos ao final pela
os muçulmanos experimentam uma única forma força do sentimento que envolve os protagonistas. Inicialmente,
na construção dos personagens do filme do Maracujá, os jovens
cultural, que as mulheres vivem o gênero de forma
descreveram o personagem principal, João Paulo, como um menino
idêntica. Em poucas palavras, que cada sujeito ad- branco. Somente no momento da decisão sobre quem assumiria cada
quire identidades plenas a partir de únicas marcas personagem, se deram conta que entre eles não havia um menino
de identificação, como se por acaso as culturas se com aquele perfil.

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Ser Quilombola: práticas curriculares em educação do campo

terização dos personagens para o curta-metragem, cultura afro-brasileira não estariam relacionados
assim como na comemoração pela certificação da à dificuldade para registrar festas, feiras, oficinas
comunidade, vieram à tona os realinhamentos e e desfiles na mesma perspectiva da normatização?
negociações culturais que evidenciaram os lugares Nesse sentido, é perceptível o esforço em denunciar
híbridos ocupados pelos envolvidos (BHABHA, a folclorização de práticas culturais quilombolas
2010). Se isso ocorreu em um projeto executado em nas escolas, entretanto, as produções sobre o tema
dois anos na comunidade, o que dizer das escolas ainda apresentam uma leitura que fixa identidades
que estão instaladas nesses espaços ou que recebem e idealiza as comunidades.
a maior parte desses estudantes? Estabelecendo uma relação com as situações
Ao atentar para esses aspectos em teses e dis- vividas no Projeto Maracujá, as questões acima
sertações produzidas sobre educação escolar qui- se referem ao cuidado para não impor o samba
lombola, foi bastante comum encontrar hipóteses reggae como expressão de negritude, afinal, se a
de que os currículos escolares silenciam a voz dos equipe de pesquisa tivesse negado a possibilidade
moradores das comunidades quilombolas, ignoran- de construção de uma narrativa romântica no do-
do os seus saberes tradicionais (FERREIRA, 2014; cudrama, provavelmente teria jogado junto com a
SANTANA, 2015). Diante disso, fica a questão: água da bacia a implicação dos adolescentes com
que negritude é essa que estamos buscando nas o samba de roda, que emergiu diante dos pesquisa-
comunidades quilombolas? Como é possível pensar dores, a despeito das falas saudosistas dos idosos
em escolas localizadas dentro dessas comunidades, da comunidade.
com 95% de estudantes quilombolas, e que não se Diante do exposto, faz-se necessário questio-
contaminaram com o seu entorno? Seguir por aí nar: o que buscamos ao adentrar as comunidades
é não considerar que “professores e alunos tecem quilombolas? Seriam características semelhantes
alternativas práticas com os fios que as redes das às descritas por Abdias do Nascimento em Qui-
quais fazem parte, dentro e fora da escola, lhe for- lombismo, tomando Palmares como referência?
necem” (FERRAÇO; NUNES, 2013, p. 84). Estabeleceram o primeiro governo de africanos
Insistir nos silêncios não seria incluir para livres nas terras do Novo Mundo, indubitavelmente
excluir? Ou seja, ao enfatizar a escola desejada, um verdadeiro Estado africano – pela forma de sua
não se nega práticas curriculares prenhes do coti- organização socioeconômica e política – conhecido
diano das comunidades, que não correspondem às na história como República de Palmares. [...] Essa
expectativas de negritude dos pesquisadores(as), terra pertencia a todos os palmarinos, e o resultado do
e que já ocorrem em comunidades e/ou escolas trabalho coletivo também era propriedade comum.
quilombolas? O que fica de fora diante do esforço Os autolibertos africanos plantavam e colhiam uma
para mostrar o que falta? produção agrícola diversificada, diferente da mo-
Os caminhos trilhados até o momento na pesqui- nocultura vigente na colônia; permutavam os frutos
agrícolas com seus vizinhos brancos e indígenas.
sa indicam que a dificuldade em enxergar/tratar as
(NASCIMENTO, 2002, p. 45-46).
práticas que já permeiam o cotidiano escolar estaria
relacionada à entrada desses saberes na escola por Na década de 1980, movidos pela proximidade
outras vias, que não os instrumentos normativos do centenário da abolição, as discussões sobre re-
planejados previamente pelo protocolo escolar. sistência negra retomaram com grande força para
Em outras palavras, as dificuldades estariam em o cenário político e acadêmico. De forma emble-
sistematizar o que não consta na lista de conteúdos, mática, o artigo 68 das Disposições Constitucionais
no livro didático ou o que não ficaria registrado Transitórias da Constituição de 1988 pontuava:
no diário de classe. Nos termos de Inez Carvalho “Aos remanescentes das comunidades dos quilom-
(1992), a insistência em tratar da escola como bos que estejam ocupando suas terras é reconhecida
deveria ser tem deixado de lado o a-con-te-cer da a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-
formação nas escolas quilombolas. -lhes os títulos respectivos” (MORAES, 2000, p.
O apego dos pesquisadores aos conteúdos 151). Contudo, somente em 1995 a regulamentação
escolares e a sua recusa diante do tratamento da desse artigo foi aprovada, em decorrência das dis-

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Iris Verena Oliveira

putas ligadas ao termo quilombo e seus derivados, -espaço’ do tempo, um ‘devir-tempo’ do espaço,
que foi se consolidando na literatura como símbolo uma referência à alteridade, a uma heterogeneidade
de resistência (ARRUTI, 1997). que não é primordialmente oposicional. Daí uma
Tendo em vista as trajetórias das populações certa inscrição do mesmo, que não é idêntico, como
negras do Território do Sisal, assim como os ce- différance” (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p.
nários de disputa das diferenças que envolvem 34). É nesse limiar, nessa fronteira, que a escola
moradores(as), professores(as) e estudantes, se encontra! No rastro em que o ser quilombola
propõe-se problematizar a atuação dos docentes desliza e, ao considerar as práticas curriculares na
no deslizamento dos termos quilombo e quilom- arena com oblíquas tramas de poder, emergem os
bola, por entender que as práticas curriculares são efeitos desses deslizamentos na atuação cotidiana
produzidas nessa contingência. dos professores (MACEDO, 2006).
Durante as primeiras reuniões com lideran- Ainda que as dúvidas tenham permanecido
ças das comunidades quilombolas do Território, sobre a definição do termo quilombola, para
repetiu-se reiteradas vezes que o processo de muitas famílias, assumir essa pertença, com a sua
reconhecimento delas teria ocorrido de forma participação no processo de reconhecimento da
inversa. Em outras palavras, havia o interesse das comunidade, significou uma reescrita na contin-
prefeituras que as comunidades fossem certificadas, gência, relacionada a possibilidades de acesso a
possibilitando, assim, o acesso a recursos federais. recursos, que não invalidou os estigmas atribuídos
Todavia, as reuniões não envolveram debates a estas, especialmente pelos que residem na sede
sobre identidade negra ou sobre quilombos como do município.
espaços de resistência. Para algumas lideranças É estruturante, portanto, entender o termo
dos movimentos sociais locais, as demandas para quilombola pelo viés pós-colonial, já que este
a certificação deveriam ter partido da comunidade “questiona as tradições teleológicas de passado e
e não dos poderes públicos. presente e a sensibilidade polarizada historicista
E isso conduz ao debate sobre o ser quilombo- do arcaico ao moderno” (BHABHA, 2010, p. 217)
la. Para muitos moradores, esse termo apareceu Nesse sentido, interessa compreender os efeitos,
pela primeira vez nas reuniões das associações, pensados em meio às negociações da diferença
momento em que foram elencadas as vantagens performaticamente produzidas nas práticas curri-
de ser favorável ao reconhecimento. Isso era ne- culares das escolas quilombolas.
cessário, afinal, entre os documentos exigidos pela Para pensar essas performances curriculares, a
Fundação Cultural Palmares, consta a ata da asso- discussão em torno da educação e relações étnico-
ciação de moradores, na qual estes afirmavam que -raciais que vem sendo desenvolvida no Brasil pode
eram remanescentes quilombolas. Ademais, para apresentar algumas pistas. Há algum tempo essa
a mobilização de memórias da comunidade, assim tem sido uma preocupação de diversos pesquisa-
como o registro de práticas culturais e entrevistas, dores, em investigações que sofreram considerável
a participação deles foi imprescindível. incremento após a aprovação da Lei 10.639/03, que
Isso significa que, mesmo quando a mobilização alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em
partiu do Poder Executivo, as comunidades – por 1996. Algumas pesquisas se voltaram para o trata-
motivos diversos – construíram estratégias de mento dado pela escola às práticas afro-brasileiras,
mobilização de memórias e tradições culturais, como a dissertação desenvolvida por Marluce
ou seja, se constituíram discursivamente a partir Macedo sobre as escolas públicas do município
de memórias e tradições, em prol da certificação. de Santa Bárbara, no interior da Bahia. Para a au-
Nesse movimento, o ser quilombola desliza tora, “escondeu, negou, reduziu a um ‘cantinho’ e
entre o que está presente no imaginário acadêmico, estereotipou os saberes e vivências da tradição oral
“modelo de luta e militância negra” – algo positivo afro-brasileira” (MACEDO, 2004, p. 130).
e que, segundo dizem os de fora, seria motivo de Outras produções acadêmicas preocuparam-se
orgulho –, e ser “o(a) neguinho(a) do Maracujá”. A com a formação de professores para a implementa-
proposição do deslizamento conduz a “um ‘devir- ção da lei, razão atribuída, por muitos, entre os fato-

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Ser Quilombola: práticas curriculares em educação do campo

res que dificultavam o ensino de História da África escola, como uma história continuísta suposta-
e Cultura Afro-Brasileira. Zelinda Barros cunhou a mente comum, que ajuda a constituir a crença em
expressão “etnicidade virtual” para tratar das im- uma identidade cultural totalizante, reconhecendo
plicações da formação à distância para o ensino de as projeções identitárias como projetos de assu-
história e cultura afro-brasileira. Ela se preocupou jeitamento de singularidades subjetivas a regras e
com a inclusão de conteúdos e a reformulação dos modelos predefinidos em um sistema de classifica-
currículos para atender à legislação, concebendo “a ção. Trata-se também de reconhecer que qualquer
etnicidade virtual como um fenômeno de produção projeto é contingente, falho, impossível (PONTES,
e reprodução de diferenças no ciberespaço, constru- 2015, p. 35).
ídas a partir do compartilhamento de representações O Projeto Maracujá não tinha como foco a re-
de descendência e cultura comuns a determinado lação de adolescentes da comunidade quilombola
contingente humano” (BARROS, 2013, p. 136) com a escola, mas ainda assim a convivência com
O caráter de denúncia social também é percep- os estudantes trouxe à tona o incômodo destes
tível em livros que tratam dessa temática. Segundo com o lugar que ocupavam no espaço escolar. O
Maria Nazaré Mota de Lima: docudrama #vamosfazerumfilme? nasce, portanto,
Reflexões sobre identidades, cultura, dupla cons-
contaminado com a experiência de estudantes,
ciência são importantes para a compreensão do pesquisadores, moradores e gestores municipais
negro e sua abordagem na escola, porque informam que, em situações diversas, questionavam o papel
sobre como somos vistos, como somos tratados, os da escola no atendimento às demandas daquela
papéis sociais que desempenhamos ou deveríamos comunidade.
desempenhar na sociedade brasileira, influenciando As experiências vividas no Maracujá indicam a
relações de poder. (LIMA, 2015, p. 54). necessidade de “des-locar” os saberes, em um exer-
cício de desconstrução que considere os trânsitos,
Ao tempo em que contribui para problematizar
realinhamentos e deslocamentos, aproximando-se
as situações trazidas pelos professores, a bibliogra-
de uma “forma ubíqua de viver a localidade da
fia instiga a pensar sobre a dinâmica que acontece
cultura”, em que as brechas atuariam como tradu-
nas escolas, e não em como os(as) estudiosos(as)
ção cultural (BHABHA, 2010, p. 199). Em outras
gostariam que elas fossem. Por outro lado, as dis-
palavras, foi possível perceber a necessidade de
cussões sobre a implementação da Lei 10.639/03,
inserção dos saberes locais na escola, não como um
em diversos momentos, enfatizam a inclusão de leque de curiosidades ou apêndices, e sim consi-
conteúdos escolares, revelando a abordagem sobre derando as temáticas cujos efeitos de significados
currículo entendido como conjunto de conteúdos, disputam sentidos na comunidade, ao tempo em
que faziam referência a um somatório de culturas. que dialogam (certamente de forma conflituosa)
Ao enfrentar o debate das relações étnico-raciais com saberes hegemonizados pelas políticas curri-
na escola, fugindo da armadilha de fixação das culares, evidenciando as tensões que envolvem a
identidades, foi importante o tratamento do currí- produção do conhecimento.
culo como “espaço-tempo híbrido de fronteira, ele
é também uma arena em que se dá uma experiência
“Mãe, ser quilombola é ser bicho?”
colonial entre culturas que se legitimam de forma
diferenciada” (MACEDO, 2006, p. 292). Nessa Numa reunião com pais e mães de estudantes
perspectiva de currículo, os binarismos são evitados da Escola A, a pergunta acima foi citada por uma
e destaca-se uma compreensão de colonialismo em mãe que atua nos movimentos sociais e dividiu a
que estamos inseridos, portanto deixam de fazer sua angústia diante da situação vivenciada por sua
sentido oposições acionadas para nomear o outro. filha naquela instituição, indicando que as questões
Não existe a presença de uma identidade negra relacionadas às comunidades quilombolas não
que possa ser transmitida como conteúdo fixo, eram discutidas. O questionamento daquela criança
repetido, enquanto cópia do mesmo; trata-se de evidencia a dificuldade em compreender o termo
interrogar o passado, que se pretende repetir na quilombola, visto como algo negativo, a partir

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Iris Verena Oliveira

de algumas pistas que suas experiências naquele pessoas da comunidade a tomar consciência sobre
espaço constituíram. o que é ser quilombola. Um entendimento de que
Naquela reunião, os adultos mostraram o seu a população do Território do Sisal carrega uma
incômodo com o tratamento recebido na sede do ancestralidade comum que lhe garantiria identidade
município de Nordestina. Toda aquela região é (MACEDO; PEREIRA, 2009).
conhecida popularmente como Poças, nome de Entretanto, o projeto de extensão não tem
uma das comunidades quilombolas. Situações de uma explicação definitiva e essencialista do que
violência são frequentemente associadas às Poças. é ser quilombola e tampouco tem a pretensão de
Jovens presentes naquela conversa relataram que ensinar aos moradores de comunidades rurais do
costumam informar outro endereço, pois afirmar Território como é ser quilombola. Discordamos,
que mora nas Poças dificultaria o acesso ao crédito como Paul Gilroy (2001), da perspectiva que vê a
financeiro e à oferta de emprego. comunidade no caminho errado, como se o papel
No que diz respeito especificamente à escola, dos estudiosos fosse indicar a trajetória correta,
o diretor da instituição nos diz que os docentes “uma nova direção, primeiramente pelo resgate e,
costumam ser transferidos para a Escola A como depois, pela doação da consciência racial de que as
“castigo”. Ele mesmo teria vindo após uma eleição massas parecem carecer” (GILROY, 2001, p. 86).
municipal, em que o candidato apoiado por ele saiu Longe disso, interessa rasurar o termo quilombo,
derrotado no pleito. Relatos semelhantes foram ou- abrindo mão de idealizações e suposições prévias,
vidos em outras escolas quilombolas do Território. para então atuar nas comunidades quilombolas tais
Essas narrativas foram emergindo em atividades como se apresentam naqueles municípios.
do Projeto de Extensão “Experiência, formação e Ao longo do desenvolvimento do projeto de
práticas curriculares em escolas quilombolas no extensão foi necessário ampliar as leituras sobre
Território do Sisal”.6 O projeto iniciou em 2014, práticas educativas envolvendo crianças e adoles-
atuando inicialmente com docentes de Conceição centes quilombolas. A consulta ao banco de teses
do Coité. De lá até 2016, alterações significativas e dissertações da Capes em 2016 indicou um nú-
ocorreram na proposição inicial, que conduziram à mero tímido de produções sobre “educação escolar
realização de rodas de conversa com comunidades quilombola”. Constam registros de 23 trabalhos
quilombolas e profissionais, incluindo no campo da concentrados em universidades da Bahia, Rio de
pesquisa o município de Nordestina. Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul. Os textos
Nas conversas com lideranças das comunidades, foram defendidos em programas de pós-graduação
a proposta de atuar na formação de professores em de artes cênicas, crítica cultural, ciências humanas
exercício foi bem recebida, ainda que a justificativa e sociais, políticas públicas e, majoritariamente, em
para a boa acolhida traga algumas inquietações. educação (19 textos).
Há expectativa de que a formação contribua para Muitos pesquisadores destacam que a escola
a positivação das práticas culturais associadas à deve incorporar em suas práticas elementos que
população negra, auxiliando nas lutas por direi- compõem contexto dos estudantes, especialmente
tos. Uma legitimação que envolve uma narrativa quanto aos aspectos culturais. Larchert (2014, p.
homogênea do passado comum de escravidão e 43) fala do papel da escola para o “resgate e a res-
ligação direta com as mazelas sociais contemporâ- significação da matriz da cultura africana”. Givânia
neas, que compõem textos de afirmação identitária Silva chama atenção para a necessidade de ouvir
(PONTES, 2015). as comunidades na organização dos currículos e na
Para algumas lideranças, a formação dos pro- construção de metodologias para as aulas, atentan-
fessores, inevitavelmente, possibilitaria a cons- do para os significados que os moradores atribuem
trução de parcerias, na árdua tarefa de auxiliar as à educação (SILVA, 2012).
6 Agradeço às estudantes que fizeram parte da equipe da pesquisa As pesquisadoras propõem uma relação dife-
como bolsistas e voluntárias: Bárbara Anunciação, Geniclécia Lima renciada com as comunidades, possibilitando o
dos Santos, Grazielle Barbosa, Jamara Santos, Juliana Mutti, Kamila
Mestre, Milena Sant’ana, Rayla Roberta Silva de Oliveira e Rosiler ingresso das temáticas do seu interesse e dos seus
Santos. saberes no espaço escolar, nas palavras de Mille

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Ser Quilombola: práticas curriculares em educação do campo

Caroline Fernandes: “É preciso pensar uma escola os moradores da comunidade negra rural do Fojo
que dê condições para que jovens negros se vejam preferem a identificação como nativos, pois sequer
inseridos no contexto escolar e que sua cultura seja conhecem o que o termo quilombola significa. O
valorizada de forma que fortaleça seus marcadores significado da palavra quilombo tem sido de difícil
identitários” (FERNANDES, 2013, p. 191). apropriação para a comunidade, historicamente
Entretanto, entendendo a escola como uma reconhecida e autorreconhecida como comunidade
instituição moderna, vista como o espaço de de nativos de Itacaré. A categoria “nativo” diz do
sistematização e transmissão de conhecimentos, negro enraizado em terras do município pertencente
haveria formas de inserção da cultura local, dis- às famílias originárias do Quilombo do Oitizeiro.
tintas daquelas que os pesquisadores criticam? Ou É comum ouvir dizer: “eu sou nativo do Oitizeiro”
seja, em datas comemorativas e, por vezes, numa (LARCHERT, 2014, p. 143).
perspectiva folclórica. Em alguns momentos, fica Diante da dificuldade enfrentada pelos estu-
a sensação de que as escolas, após a realização de dantes, mães e profissionais que atuam nas escolas
ações isoladas, sentem-se aptas para carregar um quilombolas em assumir essa adjetivação, vista por
balãozinho, semelhante ao que passamos a ver nos muitos como algo pejorativo, proponho rasurar o
livros didáticos de história, na sanha editorial para termo quilombola. E, para tanto, a distinção entre
se mostrar cumpridora dos padrões legais: “De quilombos históricos e contemporâneos foi um pas-
acordo com a Lei 10.639/03”! so importante na contramão das idealizações (AR-
Mais uma vez aparece a ideia de que basta a RUTI, 2006; REIS; GOMES, 1996). Nesse sentido,
inclusão de conteúdos para proporcionar educação a rasura pode ser pensada como a desconstrução de
atenta às questões étnico-raciais. Ao tratar o pro- “quilombo”, no sentido de operar no deslizamento,
blema pelo viés da inclusão de conteúdos, desponta sem oposição, entre o quilombo de luta e resistência
uma compreensão de currículo como listagem de e o quilombo do constrangimento e da negação que
conteúdos pensada por uns e executada por outros, aparece de forma tão intensa nas falas de moradores
na contramão das discussões sobre práticas curri- do Território (DERRIDA, 1991).
culares referenciadas ao longo desse texto. Além Ao perceber que, em outras comunidades,
disso, chama atenção a perspectiva de currículo ocorre a mesma dificuldade dos moradores com
como repertório, numa ideia de cultura como coisa o ser quilombola, retomo a pergunta reproduzida
(MACEDO; PEREIRA, 2009). pela mãe da aluna: “Ser quilombola é ser bicho?”.
Entre outros problemas, essa compreensão A fala apareceu quando questionávamos a relação
propõe um remendo; ao fazê-lo, abrimos mão de dos docentes da Escola A com o seu entorno. Em
enfrentar uma questão mais ampla: qual é o papel da tom de denúncia, a mãe apontava que a escola não
escola no pensar a diferença? A palavra “resistên- ensinava aos estudantes o que era ser quilombola
cia”, por exemplo, tem uso corriqueiro nas discus- e que ela também não se sentia à vontade para
sões sobre educação escolar quilombola, enquanto responder àquela questão. O apelo era para que a
a problematização sobre o ser quilombola, algo tão escola dissesse à comunidade o que ela é.
latente nas comunidades do Território, não aparece Na bibliografia consultada, pesquisadores(as)
com tanta frequência. A ênfase é dada ao aspecto também indicavam o silenciamento das instituições
combativo. Por vezes, as discussões indicam os escolares, tratado como omissão diante de temá-
quilombolas como pessoas essencialmente batalha- ticas e dinâmicas locais. Entretanto poderíamos
doras, exceto por alguns detalhes que vão surgindo questionar se o incômodo não se dá porque a escola
ao longo das narrativas. Na tese Resistência e seus não tem sido uma parceira na construção dessas
processos educativos na comunidade negra rural comunidades imaginadas como espaços de luta e
Quilombola do Fojo (LARCHERT, 2014), percebe- resistência. A escola não tem contribuído suficien-
-se que a questão da identidade envolve questões temente para que “nativos” se sintam confortáveis
mais complexas do que podemos pressupor ao ler o ao serem denominados quilombolas? Nesse caso,
título. Nesta construção identitária, assumir-se qui- cobra-se uma desconstrução da escola, para que
lombola é conflituoso e de difícil autodenominação; esta incorpore de forma estruturante, na sua prática

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curricular, a memória, história e culturas locais, ou atender à demanda dos movimentos sociais e deter-
o anseio é pelo reforço da escola moderna que teria minações legais, como as “Diretrizes Operacionais
o papel de iluminar a comunidade, respondendo a para Educação Básica nas Escolas do Campo”,
sua vontade de saber quem ela é? publicada em 2002, estabeleceu-se a parceria entre
O tratamento do currículo, como uma prática as redes municipais de educação e o Movimento
de “negociação-com-a-diferença” (MACEDO; de Organização Comunitária (MOC).
PEREIRA, 2009, p. 127), se opõe à compreensão O MOC surgiu em 1967, ligado aos trabalhos
de cultura como resistência e somatório. Nesse sociais da Igreja Católica. Em 1970 ganhou auto-
sentido, a indicação que a escola incorpore novos nomia em relação à Igreja e passou a realizar ações
conteúdos, que trate da história e cultura afro-bra- voltadas para o desenvolvimento sustentável da
sileira e africana, conforme propõe a Lei 10.639/03, região, apoiando organizações sociais e associações
ou ainda as orientações presentes nas Diretrizes comunitárias rurais. No final da década de 1990
Nacionais para Educação Escolar Quilombola, não intensificou-se o trabalho com educação popular e
contribui para problematizar a escola, pontuando formulou-se o Projeto CAT – Conhecer, Analisar
o lugar da diferença nessa instituição. A proposta e Transformar a realidade do semiárido, pautado
solicita um reparo e, ao apontar a necessidade de na perspectiva de Paulo Freire da ação-reflexão-
implementação desses dispositivos legais, perma- -ação, que atualmente conta com a participação
nece o debate sobre identidade no espaço escolar, de docentes da Universidade Estadual de Feira de
reforçando a cantilena de que a escola é para todos, Santana (SILVA; CARVALHO, 2015).
ignorando o contexto de extremas desigualdades Pautado nas dimensões do conhecimento, esté-
historicamente construídas (MACEDO, 2013). tica, ambiental e dos relacionamentos humanos, o
Como indica Carlos Skliar (2010, p. 209-210), na CAT atua na formação em exercício de professores
escola moderna, “O mesmo e o outro não podem, da rede, que são acompanhados no planejamento
nessa temporalidade, nessa escola, estar ao mesmo de suas atividades ao longo do ano letivo. Com
tempo. A mesmice da escola proíbe a diferença do base na concepção crítica de currículo, o projeto
outro”. propõe educação contextualizada que valoriza as
experiências de estudantes e professores no semiá-
“Pró, eu tenho uma coisa pra te rido e propõe melhorias às suas condições de vida.
ensinar” Em um material destinado aos professores sobre
educação contextualizada, uma das coordenadoras
As escolas que atendem as comunidades qui- do CAT afirma:
lombolas de Nordestina e Conceição do Coité estão
Diante desses dados, constatamos a necessidade de
localizadas em povoados relativamente próximos
se fazer uma educação que contribua para a cons-
à sede dos municípios e são consideradas escolas trução do desenvolvimento local sustentável como
do campo pelos gestores. O envolvimento destes um processo no qual a escola seja um espaço onde
com os movimentos sociais do Território do Si- seus educandos e educandas construam uma imagem
sal e a proximidade com os debates acadêmicos positiva do Semiárido; como um lugar possível e
evidenciam-se na compreensão de que é direito bom de vida, de cultura e de direitos, desmontando
da população ter acesso à educação no lugar em estereótipos como ‘homem sertanejo fraco’, ‘terra
que vive e ligada às suas práticas culturais e so- seca e improdutiva’ e garantindo o sucesso das
ciais (ARAÚJO; NASCIMENTO, 2006). Nesse crianças na escola e a sua permanência na região.
sentido, compreende-se educação do campo como Ou seja, torna-se necessário um currículo onde o
“forma contextualizada de percepção [que] tem, Semiárido seja visto como uma região de possibili-
dades e sustentabilidade. (SOUZA, 2013, p. 28-29).
no saber de homens e mulheres do campo, um dos
seus pilares de sustentação” (RANGEL; CARMO, Somente em 2004 construiu-se o Plano Territo-
2011, p. 209). rial de Educação do Campo, com aprovação de lei
Nordestina e Conceição do Coité são municí- na maioria dos municípios que compõem o Terri-
pios predominantemente rurais. Com o intuito de tório. Desde então, o Programa tornou-se política

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Ser Quilombola: práticas curriculares em educação do campo

pública, tendo uma autonomia maior diante das Encontramos posicionamentos diferenciados
turbulências ocorridas nos momentos de mudança quanto ao uso da metodologia proposta pelo CAT.
na gestão municipal. Diante disso, o tratamento Nas visitas às escolas de Conceição do Coité,
dado à educação do campo nesse texto refere-se ouvimos queixas relacionadas à elaboração das
especificamente às práticas conduzidas pelo MOC, fichas e ao uso do livro didático, que é escolhido
com o Projeto CAT. Esse recorte foi realizado em pelos professores. Alguns docentes assumiram que
face da importância atribuída ao CAT pelos(as) deixam o planejamento de lado e trabalham à sua
professores(as) e gestores(as) entrevistados(as), maneira; outros tinham a mesma postura em relação
resultado da inserção do MOC nas redes municipais ao livro didático. Ao entrevistar a professora Rosa,
do Território. questionei sobre a participação dos professores na
O CAT propõe que o planejamento dos pro- elaboração das fichas pedagógicas do CAT e obtive
fessores seja dividido entre três etapas: conhecer, a seguinte resposta:
analisar e transformar. O primeiro momento da
Geralmente eles trazem uma anterior pronta. Aí você
relação com os estudantes é o “conhecer”, no qual só faz ver se tá bom, se tá legal, se você acrescenta
os docentes promovem atividades que possibilitem alguma coisa, se não. Eles trazem um trabalho pré
acesso à realidade dos estudantes. O segundo mo- pronto e o professor pode, sim, ajudar [...] E assim,
mento é o “analisar”, quando cabe à escola partir se você disser: ‘Eu não achava interessante trabalhar
das informações coletadas no primeiro movimento com esse tema, mas trabalhar com outro’. Pode ter
e apresentar informações sistematizadas pela edu- certeza que o tema que você não queria vai tá lá.
cação formal. Ao fazer isso, a escola cumpriria o (ROSA).
seu papel de promover acesso ao conhecimento
O incômodo apresentado por Rosa indica a
sistematizado. Finalmente, viria o “transformar”,
disputa por autonomia envolvendo professores e
momento em que a escola apresenta uma propo-
Secretaria de Educação. Nas falas das coordena-
sição para a comunidade, visando à melhoria das
doras pedagógicas que atuam na Secretaria (do
condições de vida dos envolvidos e não apenas
mesmo município em que Rosa atua), a elaboração
para os estudantes.
das fichas, atendendo a essa metodologia, permite
Para o entendimento da dinâmica das aulas nas
a padronização do trabalho realizado na rede. Nas
redes municipais, coletamos as “fichas pedagógi-
falas da equipe que coordena o CAT, identificamos
cas” produzidas por professores e coordenadores
um grande entusiasmo com a proposta:
pedagógicos para o ano letivo de 2015. As escolas
organizam as aulas em quatro unidades e para cada Aí começou a minha experiência com os meninos.
uma delas é elaborada uma ficha. As fichas são [...] Teve um dia que uma aluna me disse: ‘Pró,
estruturadas da seguinte maneira: tema (único para eu tenho uma coisa pra te ensinar’, e me abraçou.
as todas as unidades), subtema, justificativa, obje- Pronto! Meu horizonte se abriu, porque é isso que
tivo geral, procedimentos metodológicos e passos o CAT propunha: Que os estudantes têm muito a
metodológicos divididos em conhecer, analisar e ensinar, que o conhecimento que eles produzem, que
a comunidade produz, é rico e precisa ser valorizado
transformar. As fichas apresentam o planejamento
em sala de aula (ANGÉLICA).
para todas as turmas e disciplinas do Ensino Fun-
damental I. Fica evidente na fala de Angélica a sua ligação
Nas conversas com equipes de Secretarias de com a educação do campo, diretamente relaciona-
Educação, também tivemos acesso à informação da às suas experiências. Entretanto, a maioria das
de que a ficha pedagógica é elaborada previa- professoras da mesma rede não apresenta tamanha
mente e ajustada com os professores. Dias depois implicação com a educação do campo e, também,
da reunião, as fichas são enviadas para todos os por isso tecem severas críticas à adoção do CAT,
docentes da rede municipal via e-mail e há uma que na primeira rede pesquisada foi adotada em
expectativa por parte das Secretarias de que elas todas as escolas do campo, numa decisão tomada
sejam cumpridas, o que é verificado no momento pela Secretaria Municipal de Educação. Para aque-
chamado de “devolutiva”. les que se opõem, a metodologia diferenciada tira

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oportunidades dos estudantes dos povoados, que A narrativa da professora vai delineando a sua
teriam acesso a uma “quantidade menor de conte- prática como instituinte do currículo, que dialoga
údos”, quando comparados aos discentes da sede. com as tentativas de controle, encontrando táticas
Todos esses conflitos ajudam a compreender o para garantir a sua autonomia. Independente dos
contexto de produção das fichas, o seu uso e desuso temas trabalhados ao longo da unidade, “Quando
pelas professoras. Sobre isso, Rosa afirmou: vai chegando perto da data da devolutiva é que você
Quando eu trabalhei as histórias locais mesmo, as pega o tema e trabalha um pouquinho, pra ficar fres-
histórias de vida dos alunos e a história de vida dos co assim pros meninos e aí apresenta na devolutiva”
avós, aí a gente pode conhecer um pouco mais sobre (ROSA). A despeito das tentativas de controle que
eles. [...] Então, o CAT, ele existe. A gente não con- vão do planejamento, supostamente coletivo, ao
segue colocar ele em prática em todos os assuntos, momento da fiscalização, a professora indica suas
entendeu? [...] Quando a gente retrata mesmo um táticas para tecer o currículo no seu cotidiano.
assunto de História, que a gente vai pra história dos Uma prática curricular consistente somente
livros, né? Que houve essa necessidade de a gente
pode ser encontrada no saber dos sujeitos pratican-
fazer as indagações da descoberta do Brasil, das Ca-
pitanias Hereditárias. Então a gente não usou nada de
tes do currículo, sendo, portanto, sempre tecida, em
CAT. O CAT nesse momento foi esquecido (ROSA). todos os momentos e escolas. Nessa perspectiva,
emerge uma nova compreensão de currículo:
Ao longo da entrevista, a professora vai indi-
cando as situações em que a metodologia do CAT Não estamos falando de um produto que pode ser
construído seguindo modelos preestabelecidos, mas
é considerada apropriada para o uso, quando se
de um processo através do qual os praticantes de
refere às “histórias locais”, e os momentos em currículo ressignificam suas experiências a partir
que ele fica esquecido, partindo-se, então, para das redes de poderes, saberes e fazeres dos quais
as “histórias dos livros”. A oposição apresentada participam. (ALVES et al., 2011, p. 41).
por essas duas histórias revela a dificuldade de
articulação entre os conhecimentos da história Entendida dessa forma, histórias, práticas e sa-
local e os conteúdos presentes no livro didático. beres locais negociam seu ingresso na escola não a
A escolha por “abandonar” as indicações contidas partir da oposição entre hegemônico e subalterno,
na ficha do CAT está relacionada à compreensão cultura erudita e popular, conhecimentos eurocên-
de que os alunos deixariam de acessar informações tricos e decoloniais, pois tais oposições não con-
consideradas pela docente como fundamentais, e templam a complexidade do cotidiano. As práticas
entre as citadas estaria a narrativa sobre a chegada curriculares contaminam-se do local, apesar dos
dos europeus ao Brasil e a primeira divisão admi- esforços de homogeneização e controle, gerando
nistrativa da colônia. uma tensão entre repetição e performatividade, no
A oposição presente na fala da professora Rosa espaço-tempo limiar (BHABHA, 2010).
entre “as histórias locais” e “a história dos livros” Esse trânsito entre as Secretarias de Educação,
evidencia a intenção de produzir conhecimento docentes e MOC permitiu perceber os contornos
nas escolas voltado para a realidade em que vivem locais das disputas estabelecidas pelas práticas
os estudantes e com um potencial de transformar curriculares no Território do Sisal. Interessa, es-
suas comunidades, numa perspectiva moderna pecialmente, o saber experiência como existência,
do papel da escola. Nela, os saberes prévios dos nos termos de Larrosa Bondiá (2002, p. 27): “A
estudantes, reunidos no momento do “conhecer”, experiência e o saber que dela deriva são o que
só fazem sentido se, ao final do processo, forem nos permite apropriar-nos de nossa própria vida”.
“transformados”, uma transformação cujos moldes A experiência sendo tratada como “aquilo que nos
não são definidos pela comunidade. Uma perspec- acontece” (LARROSA BONDIÁ, 2002, p. 20).
tiva racionalista da emancipação, que apresenta o Nesse sentido, retoma-se o questionamento feito
dilema de uma dicotomia absoluta, gerada num anteriormente: como as práticas sociais e culturais
ato de fundação radicalmente revolucionário (LA- das comunidades quilombolas do Território conta-
CLAU, 2011). minam as escolas?

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Ser Quilombola: práticas curriculares em educação do campo

Propor que ocorram intersecções entre práti- escolas e os “modos de fazer” currículo. Por isso
cas curriculares contextualizadas da educação do as buscas por práticas culturais, memória e fazeres
campo e a atenção ao processo de constituição locais se dirigem às subversões e não aos instru-
identitária – entendido de forma ubíqua, múltipla mentos de normatização das instituições escolares.
e complexa – das comunidades quilombolas indica Nesse sentido, propõe-se pensar o currículo
possibilidades de estabelecer a experiência como como espaço de construção discursiva e agencia-
elemento fundante na formação de estudantes do mento de experiências no cotidiano escolar, numa
Território. Isso permitiria que as práticas culturais defesa de que não há “identidade cultural para ser
e sociais que fazem parte da experiência dos(as) descoberta ou nomeada” e “identidade como uma
estudantes ingressassem cotidianamente na escola, construção discursiva culturalmente específica”
e não como curiosidade em datas comemorativas. (MACEDO; PEREIRA, 2009, p. 123).
A relação estabelecida entre a UNEB – Campus
Considerações finais XIV e as prefeituras do Território do Sisal tem
proporcionando cenários formativos para tratar
O contato com moradores das comunidades de práticas curriculares. Ao seguir rastros nas
quilombolas do Território e professores nas escolas teias de significação construídas nos processos
que atendem a esta população levou a situá-las no formativos que enredam pesquisadora, estudantes
entre-lugar. O termo quilombo foi lido como o que e professores(as), por vezes, foram borrados os
designa movimentos de luta/resistência e como lugares pré-estabelecidos pela etnografia, para
referência para pensar em vergonha/ negação, observador e observado, possibilitando operar no
deslizando nesse limiar. deslizamento do termo quilombola para problema-
Nessa indecibilidade, mães, professores, estu- tizar práticas curriculares que radicalizem o debate
dantes e lideranças questionam o papel da escola sobre o lugar da diferença na escola, atentando
e, ao fazê-lo, não estão sozinhos; pesquisadores para ações de docentes, vistos como “pratican-
denunciam silenciamento nas instituições escola- tespensantes” que negociam cotidianamente com
res, valendo-se de dispositivos legais recentemente instrumentos normativos e saberes sistematizados,
conquistados pelo movimento negro e pelos edu- ao tempo em que contaminam os seus fazeres pela
cadores do campo. Entretanto, faz-se necessário comunidade em que se inserem as escolas e/ou das
atentar aos “praticantespensantes” que atuam nas quais partem os estudantes.

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Recebido em: 30/06/2017


Aprovado em: 29/07/2017

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Estudos
Claudemir de Quadros

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E POLÍTICAS


EDUCACIONAIS ENTRE SABERES, CONHECIMENTOS
E CIRCULAÇÃO INTERNACIONAL DE DISCURSOS

Claudemir de Quadros (UFSM)∗

RESUMO
Este texto se caracteriza, sobretudo, como um exercício pelo qual se tentou perceber
algumas relações entre duas áreas relevantes no âmbito da educação: história da
educação e políticas educacionais. Para tanto, foram escolhidos quatro artigos
publicados na revista História da Educação entre 2013 e 2015, selecionados a partir do
critério de inserção internacional dos seus proponentes e porque potencializam perceber
a perspectiva de circulação internacional de discursos no âmbito da formulação de
políticas educacionais. Por esses textos procura-se demonstrar como aquilo que
estamos acostumados a dizer é resultado de uma ampla rede de relações cuja autoria
não é necessariamente nacional ou, em outros termos, que aquilo que conseguimos
pensar acerca das políticas educacionais é circunscrito pelos discursos que circulam
internacionalmente. Assim, o texto é atravessado por uma ideia geral: a circulação de
discursos que, de um modo ou de outro, tem o potencial de estruturar, fixar, delimitar,
circunscrever aquilo que pode ser considerado correto e verdadeiro. O esforço foi no
sentido de perceber que ideias criadas, pensadas, fundamentadas pela pesquisa, pela
ciência, propostas por intelectuais, lograram visibilidade e, além de contribuir para
a estruturação de todo um campo de ação denominado políticas educacionais, têm o
potencial de demonstrar que a formação dos sistemas escolares nacionais emergiu a
partir de um amplo leque de relações internacionais.
Palavras-chave: História da educação. Políticas educacionais. Circulação de
discursos. Intelectuais.

ABSTRACT
HISTORY OF EDUCATION AND EDUCATIONAL POLICIES AMONGST
KNOWLEDGES AND INTERNATIONAL DISCOURSES CIRCULATION
This study characterizes itself mainly as an exercise in which we tried to perceive
some relations between two significant areas of education: history of education and
educational policies. Therefore, four articles published in the journal History of
Education between 2013 and 2015 were selected based on the criterion of international
insertion of its proponents. This criterion was used because such articles potentiate the
perception of the perspective of international circulation of speeches in the formulation
of educational policies. Based on these texts, we seek to demonstrate how what we
are accustomed to say is the result of a wide network of relations whose authorship is


Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Licenciado em História pela Universidade
de Passo Fundo (UPF). Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professor na Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM/RS). Atua em cursos de formação de professores e no Programa de Pós-Graduação em Educação
Profissional e Tecnológica da UFSM. E-mail: [email protected].

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 157-167, maio/ago. 2017 157
História da educação e políticas educacionais entre saberes, conhecimentos e circulação internacional de discursos

not necessarily national or, in other words, that what we can think about educational
policies is restricted by speeches that have international circulation. Then, this text is
circumscribed by a general idea: the circulation of speeches that, anyhow, have the
potential to structure, fix, delimit, and circumscribe what can be considered correct
and true. The effort of this study is to propose the perception that ideas, which were
created, thought, grounded by research, by science, proposed by intellectuals, gained
visibility. Besides having contributed to the structuring of a whole field of action called
educational policies, these ideas have the potential to demonstrate that the formation
of national school systems emerged from a wide range of international relations.
Keywords: History of education. Educational policies. Circulation of speeches.
Intellectuals.

RESUMEN
HISTORIA DE LA EDUCACIÓN Y POLÍTICAS EDUCACIONALES ENTRE
SABERES, CONOCIMIENTOS Y CICRCULACIÓN INTERNACIONAL DE
DISCURSOS
El presente texto se caracteriza, sobre todo, como ejercicio por el que se buscó percibir
algunas relaciones entre dos ares relevantes en el ámbito de la educación: historia de la
educación y políticas educacionales. Para tanto, se eligió cuatro artículos publicados en
la revista Historia da Educação entre 2013 e 2015, los cuales fueron seleccionados a
partir de criterios de inserción internacional de sus proponentes y porque potencializan
percibir la perspectiva de circulación internacional de discursos en el ámbito de la
formulación de políticas educacionales. Con ello se busca demonstrar que aquello
que estamos acostumbrados a decir es resultado de una amplia red de relaciones cuya
autoría no es necesariamente nacional o, en otros términos, que aquello que logramos
pensar a cerca de las políticas educacionales es circunscrito por los discursos que
circulan internacionalmente. Así, el texto es atravesado por una idea general: la
circulación de discursos que, de un modo u otro, tiene el potencial de estructurar, fijar,
delimitar, circunscribir aquello que puede ser considerado correcto y verdadero. El
esfuerzo fue en el sentido de percibir que ideas creadas, pensadas, fundamentadas en
la investigación, por la ciencia, propuestas por intelectuales, lograron visibilidad y,
más allá de contribuir para la estructuración de todo un campo de acción denominado
políticas educacionales, tiene el potencial de demonstrar que la formación de los
sistemas escolares nacionales emergió a partir de amplias relaciones internacionales.
Palabras-clave: Historia de la educación. Políticas educacionales. Circulación de
discursos. Intelectuales.

Introdução
Este texto é, antes de tudo, um exercício pelo que se constituem entre saberes, conhecimentos,
qual se tentou perceber algumas relações entre duas ação de intelectuais, circulação internacional ou
áreas relevantes no âmbito da educação: história da transnacional de discursos, especificidades nacio-
educação e políticas educacionais. Nele pressupõe- nais ou estrangeiras, transferências culturais.
-se que a história da educação e as políticas edu- Nesse sentido, entende-se que história da
cacionais têm um itinerário afim, se alerta para a educação e políticas educacionais se informam
conveniência de pensar as relações entre ambas na mutuamente, em princípio sem hierarquias e de
perspectiva da longa duração, assim como entender modo relacional. Atravessando estas duas expres-

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Claudemir de Quadros

sões – história da educação e políticas educacionais Segundo Fontaine (2014, p. 189), “estudar as
– há uma ideia geral: a circulação internacional relações pedagógicas franco-romandas do século
de discursos que, de um modo ou de outro, tem 19 torna-se instrutivo, no sentido em que esta abor-
o potencial de estruturar, fixar, delimitar, circuns- dagem permite analisar as modalidades de circula-
crever aquilo que pode ser considerado correto e ções de conhecimentos e de práticas escolares por
verdadeiro. Aquilo que pode ser dito e aquilo que uma relação assimétrica entre uma região e uma
está interditado. nação”. Em termos gerais, o autor argumenta que
Para fazer este exercício de tentar perceber re- as estruturas escolares nacionais são resultado de
lações entre história da educação e políticas educa- apropriações recíprocas e que nada mais interna-
cionais foram escolhidos quatro textos publicados cional do que a formação dos sistemas escolares
na revista História da Educação, mantida pela nacionais.
Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores Fontaine (2014) estrutura o texto a partir de
em História da Educação - Asphe: três aspectos: 1) busca interrogar-se acerca das
1) Pedagogia como transferência cultural no motivações que podem levar um contexto cultural
espaço franco-suíço: mediadores e reinterpreta- de recepção a desejar importar um conhecimento
ções de conhecimento (1850-1900), de Alexandre modelado em outro contexto; 2) questiona-se sobre
Fontaine, publicado em 2014 no n. 42 da revista; o processo de mediação, sobre os atores individuais
2) As exposições universais como mídia para a que, por diversas razões, permitem a transferência
circulação transnacional de saberes sobre o ensino de um determinado saber; 3) estuda a transforma-
primário na segunda metade do século 19, de Klaus ção semântica que acompanha a transferência quan-
Dittrich, publicado em 2013 no n. 41; do da passagem de um contexto cultural a outro.
3) A França, a escola republicana e o exterior: Para perceber essas relações, em termos me-
perspectivas para uma história internacional da todológicos, afirma ter-se utilizado do conceito
educação no século 19, de Damiano Matasci, pu- de transferências culturais, definido nos seguintes
blicado em 2016 no n. 50; termos:
4) Transferências e apropriações de saberes:
Friedrich Bieri e a matemática para o ensino Os estudos de transferência pretendem analisar as
primário, de Circe Mary Silva da Silva, publicado interações entre culturas e sociedades – ou frações
em 2015 no n. 45. e grupos pertencentes a uma sociedade – na sua
dinâmica histórica, justificando as condições que
O importante, no âmbito deste exercício, é
marcaram o seu desencadeamento e o seu desenvol-
perceber que ideias criadas, pensadas, fundamen- vimento, examinando os fenômenos de emissão, de
tadas pela pesquisa, pela ciência, propostas por divulgação, de recepção e de reinterpretação que os
intelectuais, lograram visibilidade e foram postas constituem, enfim esmiuçando os mecanismos sim-
em circulação e, ao circularem, estruturaram mo- bólicos por meio dos quais se recompõem os grupos
dos de pensar, pautas, entendimentos, currículos, sociais e as estruturas que os sustentam. (WERNER,
impressos, políticas. Enfim, ao circularem torna- 2006 apud FONTAINE, 2014, p. 190).
ram possíveis várias relações e contribuíram para
Para demonstrar a circulação de conhecimentos
estruturar um campo de ação denominado políticas
e de práticas escolares, o processo de mediação,
educacionais.
recepção, transformação semântica, apropriações
recíprocas entre diferentes espaços, o autor apre-
Primeiro texto: ideias que
senta alguns exemplos. Um deles é a manifestação
atravessaram as fronteiras
de Ferdinand Buisson, que salientou, numa confe-
O primeiro texto, de Alexandre Fontaine, se rência proferida em 1916, que
intitula Pedagogia como transferência cultural no [...] saber ler, escrever e contar não basta, todos es-
espaço franco-suíço: mediadores e reinterpreta- tão de acordo, mas o que é necessário acrescentar?
ções de conhecimento (1850-1900), e nele aborda- Inicialmente, sem dúvida, elementos de instrução
-se a circulação dos conhecimentos pedagógicos no cívica, pois o povo só é soberano se o cidadão for
espaço franco-suíço. esclarecido. Há muito tempo, a Suíça agia com pre-

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 157-167, maio/ago. 2017 159
História da educação e políticas educacionais entre saberes, conhecimentos e circulação internacional de discursos

caução, e essa foi a primeira importação que dela de Rui Barbosa (1849-1923) e de Joaquim José de
fizemos. (FONTAINE, 2014, p. 191). Menezes Vieira (1848-1897). (FONTAINE, 2014,
p. 204).
Outro exemplo é que na França, pela lei de 27 de
janeiro de 1880, as aulas de ginástica tornaram-se Nas considerações finais do texto, Fontaine
obrigatórias para os meninos, em especial para a (2014, p. 205) ressalta que se for levada em conta
prática de exercícios militares. Destaca que expa- a elaboração da Ratio studiorum, no fim da Idade
triados suíços desempenharam um papel relevante Média, há práticas e métodos que atravessam as
na promoção da ginástica na França e que Jules fronteiras por meio de mediadores e se declinam
Ferry publicou, em 1881, um manual de ginástica em função de contextos locais específicos e, por-
e de exercícios militares para estudantes de escolas tanto, “um dos numerosos desafios da pesquisa
primárias. Esse manual foi feito a partir da inspi- em história da educação consiste em desconstruir
ração do primeiro manual escolar publicado pela os modelos escolares nacionais contemporâneos,
Confederação Suíça em 1876. a fim de reformular as filiações seguidamente
Há outras situações que o autor relaciona à ocultadas e as múltiplas referências estrangeiras
circulação e transferência de saberes. Destaca-se a que as alimentam”.
inclusão do Canto como tema obrigatório e as co- Diante da pauta desse texto, pode-se relacionar
lônias de férias que, de um contexto original suíço inúmeras expressões que merecem atenção no
ao contexto cultural francês, teriam gerado uma âmbito da relação entre a história da educação e
transformação semântica singular: “É importante as políticas educacionais, dentre as quais pode-se
notar a institucionalização destas como diretrizes citar: circulação de conhecimentos, apropriações,
políticas do governo: de fato, assim que Ferdinand contexto cultural de recepção, processos de me-
Buisson, convencido por Cottinet sobre o bem diação, transformações semânticas, transferências
fundado das colônias para a juventude francesa, culturais, seleção-transmissão-reinterpretação.
decidiu institucionalizar a experiência” (FONTAI- Pelos exemplos apresentados, Fontaine (2014)
NE, 2014, p. 202). procura demonstrar que as ideias que atravessaram
Uma das principais conclusões de Fontaine as fronteiras foram importantes para a instituição de
(2014, p. 204) é que políticas educacionais, que assumiram um caráter
eminentemente internacional.
[...] por meio deste estudo de caso referente às trans-
ferências pedagógicas franco-romandas, procurou-se
demonstrar que a organização dos sistemas escolares Segundo texto: aprender com o
europeus resulta de apropriações recíprocas, mais ou estrangeiro nas exposições universais
menos dissimuladas, e se constitui num resultado de
um fenômeno eminentemente internacional. Estudar O segundo texto, de Klaus Dittrich, intitula-se
certas referências suíças da escola republicana fran- As exposições universais como mídia para a cir-
cesa revela uma série de mediações apagadas, bem culação transnacional de saberes sobre o ensino
como uma quantidade de empreendimentos coletivos primário na segunda metade do século 19. Nele
que se tornaram possíveis em virtude da criação de aborda-se o tema da circulação de saberes sobre
redes que favoreceram a importação massiva de educação e, em especial, sobre os progressos no
métodos e de práticas pedagógicas elaboradas de ensino primário possibilitados pelo movimento de
maneira internacional. alguns atores. Concentra-se em examinar quatro
Dito isso, prossegue com um indício de que o países: Japão, França, Estados Unidos e Alemanha
Brasil não escapou desse empreendimento: e argumenta que a transferência cultural acerca do
ensino primário foi operada por meio das seções
Assim, a ciência da educação alimentou-se de
transferências culturais. O mesmo aconteceu com
que, nas exposições universais, mostraram os
o continente sul-americano. Basta pensarmos nos progressos quanto aos objetos pedagógicos, aos
trabalhos de Maria Helena Camara Bastos (2000), documentos redigidos, às maquetes, às plantas de
que demonstrou, de maneira pertinente, a recepção prédios escolares, bem como aos modelos adotados
do pensamento de Buisson no Brasil pelos itinerários pelas trocas e aos aprendizados das experiências

160 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 157-167, maio/ago. 2017
Claudemir de Quadros

do estrangeiro. Em termos bem gerais, Dittrich e mediação. Por ocasião da visitação das missões às
(2013) entende que não convém esquecer que as exposições, os especialistas escreviam importantes
exposições universais do século 19 foram um dos relatórios, testemunhos materiais desta mediação e
meios de comunicação para os atores profissionais que constituem a fonte principal do estudo” (DIT-
e científicos. TRICH, 2013, p. 216).
Ele argumenta que No artigo, Dittrich (2013) afirma que se con-
[...] a partir de 1862 as exposições universais con- centrou nas experiências de atores de quatro países
tinham seções escolares, as quais possuíam certo que frequentaram as exposições com a finalidade de
número de elementos que se repetiram em todas informarem-se sobre o ensino primário. Para cada
as exposições sucessivas. Primeiro apresentava-se país procurou identificar conjunturas, interrogar-se
o aspecto físico das instituições educativas, seus sobre os atores e os déficits que eles perceberam,
planos, depois as fotografias e as escolas-modelo analisar suas participações nas exposições e os
reconstruídas para a exposição. Em seguida objetos resultados deste engajamento. Tudo isso a fim de
pedagógicos eram apresentados em grande número, “relacionar as conjunturas, comparar a apropriação
de canetas a máquinas de calcular e quadros murais. dos saberes em diferentes contextos nacionais, o
Além do mais, as exposições se pareciam com bi- que pode conduzir, talvez, a uma verdadeira his-
bliotecas, porque continham livros pedagógicos e
tória transnacional, que combina as abordagens
manuais escolares. Finalmente, trabalhos de alunos
tinham a função de provar o sucesso dos métodos
das transferências culturais e da comparação”
aplicados. Além das exposições escolares propria- (DITTRICH, 2013, p. 216).
mente ditas, conferências e congressos nacionais Klaus Dittrich (2013) relata o caso do Japão,
foram organizados no contexto das exposições uni- onde a inspiração francesa e estadunidense foi
versais a partir de 1876. (DITTRICH, 2013, p. 215). central. Informa que na fase inicial da institu-
cionalização do sistema escolar japonês a fre-
Informa, ainda, que as exposições eram frequen-
quência às exposições universais foi um meio
tadas por funcionários dos governos, professores e
de comunicação para entrar-se em contato com
especialistas da educação e que isto se devia ao fato os progressos havidos no exterior. Informa que
de que, para estas pessoas, as exposições eram um houve missões japonesas nas exposições reali-
meio de comunicação com seus pares, para além zadas em Londres, 1862, e em Paris, 1867. Em
das fronteiras nacionais. Viena, 1873, a missão foi integrada por, aproxi-
As exposições também eram frequentadas com madamente, cinquenta pessoas, na maior parte
intenções bem específicas, dentre as quais Dittri- funcionários públicos de alto escalão. Já para a
ch (2013) assinala as seguintes: a) eram ocasiões exposição da Filadélfia, em 1876, a missão foi
para aprender com o estrangeiro, informar-se e dirigida pelo vice-ministro da Educação e Klaus
aprender algo em benefício de seu contexto ins- Dittrich (2013) salienta que os japoneses estuda-
titucional; b) demonstrar o sucesso de uns sobre ram, sobretudo, as representações de outros paí-
outros no contexto de competição entre sociedades ses, viajaram para diferentes regiões dos Estados
hoje classificadas como imperialistas; c) iniciar Unidos e do Canadá e participaram de congressos
colaboração internacional entre especialistas de pedagógicos. Na Exposição Universal de 1878,
diferentes países. em Paris, os japoneses entraram em contato com
Nessa situação Dittrich (2013) analisa as expo- os pedagogos franceses e, após o encerramento da
sições universais pela abordagem das transferên- exposição, receberam uma boa parte dos materiais
cias culturais, no âmbito das quais se distinguem dos outros países.
diferentes fases: 1) uma parte dos atores constata Para Klaus Dittrich (2013, p. 219), ficou claro
déficits e procura soluções potenciais no exterior; que “os funcionários do alto escalão do Ministério
2) segue-se uma fase de contato e de mediação; 3) da Educação japonês utilizaram as exposições dos
o saber estrangeiro é adaptado e institucionalizado, anos 1870 com o objetivo de apropriarem-se dos
ou então, recusado. Neste contexto “as exposições saberes para a institucionalização de seu sistema
se prestaram, especialmente, para a fase de contato de ensino”.

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História da educação e políticas educacionais entre saberes, conhecimentos e circulação internacional de discursos

No contexto francês a referência ao estrangeiro visitantes de exposições universais que buscaram


já havia aparecido como possível solução aos defei- inspiração para seus planos: Calvin M. Woodward,
tos franceses. Dittrich (2013) destaca os relatórios Charles B. Stetson, Walter Smith, Philbrick, Wi-
de Célestin Hippeau, que visitou muitos países e ckersham, por exemplo, bem como destaca que
redigiu monografias sobre seus sistemas de educa- “um número bem maior de pedagogos americanos
ção, e a missão dirigida, em 1876, por Buisson à utilizaram as exposições universais para informar-
Exposição Universal da Filadélfia: -se sobre o ensino técnico europeu, daí que se deve
Os especialistas franceses não ficaram somente na estabelecer um discurso muito mais vasto”, ou seja,
exposição: viajaram para diversos Estados e ao Ca- Dittrich (2013, p. 225) demonstra que “no contexto
nadá, visitaram instituições escolares e participaram das exposições universais dos anos 1870, observa-
de congressos. Disso resultaram contatos intensos -se um intenso trabalho de apropriação por parte
com os grandes nomes da educação americana da dos pedagogos americanos interessados no ensino
época, incluindo, por exemplo, John D. Philbrick. técnico europeu”.
(DITTRICH, 2013, p. 220). O quarto caso analisado por Dittrich (2013) foi
Nos Estados Unidos, Dittrich (2013, p. 222) o da Alemanha, que teve uma participação menos
afirma que havia uma intenção “de tornar o ensino frequente nas exposições universais, o que acarre-
mais prático, de não oferecer somente uma cultura tou um menor número de relatórios redigidos após
geral, mas também conhecimentos que os jovens estes eventos, se comparados àqueles publicados
pudessem aplicar no mundo do trabalho”. Assim, se na França e nos Estados Unidos.
na década de 1870 o ensino técnico era percebido Dittrich (2013) destaca que os alemães se
como algo especificamente europeu, outra perspec- interessavam por questões específicas, como os
tiva emergiu quando John D. Runkle, presidente do bancos escolares, abordada por Hermann Cohn.
Massachusetts Institute of Technology, ao visitar as Ele frequentou as exposições de 1867, 1873 e 1878,
instalações da exposição na Filadélfia, encontrou estudou os bancos de escola e outros aspectos de
a representação das escolas politécnicas russas de higiene escolar. Contudo, destaca que o caso mais
Moscou e de São Petersburgo. Dali em diante “a sistemático de apropriação de saberes estrangeiros
educação americana [...] não foi mais a mesma” por meio das exposições foi Alwin Pabst, que par-
(DITTRICH, 2013, p. 222). ticipou da Exposição Universal de Paris, em 1900,
John D. Runkle preocupava-se em como orga- e de Saint-Louis, em 1904. Segundo ele, “a Alema-
nizar a formação prática dos futuros engenheiros nha devia aproveitar as experiências americanas.
e percebeu que Do outro lado do Atlântico Pabst teve um vasto
programa de visitas a escolas, bem como encontrou
[...] os pedagogos russos haviam inventado um novo
todos os grandes pedagogos americanos ligados à
método de como ensinar aos estudantes procedi-
mentos passo a passo em laboratórios especialmente nova educação” (DITTRICH, 2013, p. 226). Em
criados para fins pedagógicos. Os gestores russos resumo, alguns especialistas alemães tentaram
apresentavam as escolas politécnicas bem equipadas tornar o ensino alemão mais prático, referindo-se
e metodologicamente inovadoras com certo orgulho às experiências americanas e francesas.
nas exposições dos anos 1870. Runkle (1876) desco- Em síntese, Klaus Dittrich (2013, p. 228) se es-
briu este método na Filadélfia e ficou impressionado força para demonstrar que as exposições universais
porque tal método oferecia uma solução para suas
próprias preocupações. Seguiu-se, então, um vasto [...] desempenharam um papel fundamental para
trabalho de apropriação do método russo, como foi a circulação transnacional de saberes pedagógicos
denominado doravante na América. Ele estabeleceu durante a segunda metade do século 19. Foram pal-
contatos intensos com os responsáveis russos e mes- cos para o contato com os pares estrangeiros, para a
mo tornou-se um membro honorário do Conselho coleta de informações e para a aquisição de objetos
de Administração da Escola Politécnica de Moscou. e literatura. As exposições, como meio de comuni-
(DITTRICH, 2013, p. 222). cação, combinaram-se com as visitas das missões,
com a redação e a circulação dos relatórios, com os
Dittrich (2013, p. 222) assinala, ainda, outros museus pedagógicos e os congressos internacionais.

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Claudemir de Quadros

Os atores iam às exposições por razões bem espe- Ao tomar o exemplo francês, Matasci (2016, p.
cíficas e, como se viu, uma de suas preocupações 141) propõe o que denomina “perspectivas de pes-
era o desenvolvimento do ensino em seus próprios quisa para uma história internacional da educação”,
contextos. Seu enraizamento nos debates nacionais pela qual busca demonstrar
diferiu, consideravelmente, de país a país.
[..] como o contato internacional e o recurso à
Do mesmo modo, e com proximidade com comparação – tão presentes nos debates públicos
Alexandre Fontaine (2014), a pauta deste texto de hoje – constituem uma dimensão particularmente
permite outra coleção de expressões a partir das importante no processo de construção do sistema
quais se pode pensar inúmeras relações entre a escolar moderno no século 19. O problema é de saber
história da educação e as políticas educacionais: em que medida as experiências referentes à instru-
além das fronteiras nacionais, apropriação dos ção pública efetuadas em outros países ocidentais
saberes, atores com contatos intensos, circulação orientaram os debates na Terceira República. Para
transnacional de saberes pedagógicos, colaboração responder a essa questão focaliza-se as reformas do
ensino primário e secundário que constituem um
internacional, comunicação, congressos inter-
observatório privilegiado para captar esses fenô-
nacionais, enraizamento nos debates nacionais, menos. Isso por duas razões: por um lado porque
exposições universais, transferências culturais e esses debates, principalmente aqueles relativos à
comparação, trocas e aprendizados das experi- instrução obrigatória ou à modernização do ensino
ências do estrangeiro, história transnacional. Em secundário, se inscrevem num contexto internacional
síntese, ao viajar para conhecer e aprender com o e mobilizam, de uma maneira permanente, as refe-
estrangeiro, inúmeros profissionais promoveram a rências estrangeiras. Por outro porque, comparando
circulação internacional de saberes, mobilizaram essas duas áreas, é possível esclarecer a diversidade
relações de colaboração e promoveram mudanças dos costumes estrangeiros e as diferentes relações
nos respectivos contextos nacionais. que os meios reformadores franceses conservam em
relação às experiências internacionais.

Terceiro texto: intercâmbio e A partir da relação da história da educação en-


tre o local, o nacional e o internacional, Matasci
cooperação mundial
(2016, p. 142) busca “examinar a relação que a
O terceiro texto se intitula A França, a escola escola francesa – e, de uma maneira mais ampla,
republicana e o exterior: perspectivas para uma o processo de nacionalização do sistema escolar –
história internacional da educação no século 19, mantém com o exterior”. Para isso ele afirma que
de Damiano Matasci, e foi publicado no n. 50 da “convém deslocar os debates franceses para os
revista História da Educação. circuitos europeus das ideias pedagógicas do século
Matasci (2016, p. 139) se propõe a tratar 19 e avaliar o papel que a dimensão internacional
pode desempenhar na elaboração de um modelo
[...] dos modos pelos quais a circulação internacional
das ideias pedagógicas estruturou a elaboração do
francês de instrução pública” (MATASCI, 2016,
sistema escolar francês no fim do século 19. Embora p. 142). Ele reforça que
seguidamente associada ao processo de nacionali- [...] esses fenômenos impõem a reconfiguração do
zação da sociedade, a escola da Terceira República processo de socialização das novas gerações e a cria-
se construiu, de fato, seguindo modelos e exemplos ção de estruturas que respondam a novas exigências
estrangeiros. educativas. Para isso os reformadores escrutam as
realizações de seus vizinhos e observam com atenção
Matasci (2016, p. 141) argumenta que é possível
as experiências em curso. O processo reformador que
perceber essa situação de modo especial a partir “do
leva à instauração de um sistema escolar público, na
século 19, no momento em que as nações ocidentais maior parte dos países ocidentais, se caracteriza por
se engajam simultaneamente na elaboração dos intercâmbios, circulações e contatos não fortuitos
sistemas escolares modernos, criam e alimentam entre as nações [...]. Reproduzindo uma famosa
um vasto sistema de intercâmbios e de observações fórmula de Anne-Marie Thiesse (2001), não haveria
mútuas”. desde então nada mais internacional do que a defi-

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História da educação e políticas educacionais entre saberes, conhecimentos e circulação internacional de discursos

nição das políticas escolares nacionais. (MATASCI, criada na Europa na segunda metade do século 19, e
2016, p. 143). que se dota progressivamente de estruturas próprias
No que designa como a “globalização da refor- permanentes” (MATASCI, 2016, p. 144).
ma escolar europeia” (MATASCI, 2016, p. 143), Nesse contexto, Matasci (2016, p. 145) também
aponta três dimensões que precisam atenção: em destaca que a ação dos franceses pode ser estudada
primeiro lugar convém examinar o conjunto das sob o prisma das seções escolares das exposições
atividades que ao longo do século 19 visaram pro- universais e que
duzir e acumular um saber sobre o exterior. Um dos [...] esses eventos testemunham uma dupla dinâmica.
exemplos mais representativos foram as missões Por um lado o aprendizado, pois os reformadores
pedagógicas. A partir da metade do século 19, o de todos os países tinham a oportunidade de tomar
ministério francês da instrução pública encarregou conhecimento da evolução escolar internacional. Por
um número expressivo de pessoas, em especial outro a auto-representação. De fato, a França partici-
pou, de uma maneira muito especial, das exposições
professores universitários e inspetores escolares,
com o objetivo explícito de contribuir com certa
de viajarem para diversos países a fim de estudar
diplomacia cultural, passando pela evidência das pre-
os procedimentos pedagógicos, os diferentes pro- tendidas conquistas escolares da Terceira República
blemas relacionados com a instrução pública e as e respondendo à vontade de mostrar mundialmente a
soluções ali encontradas. Cabia-lhes fazer uma re- imagem de um país que investe na educação. Além
flexão sobre as possíveis importações aplicáveis ao de certa retórica essa citação salienta a importância
sistema escolar nacional. Esta prática, que começou dos intercâmbios internacionais e a necessidade,
no início do século 19, tal como a viagem de Victor exposta muito claramente, de se comparar e de se
Cousin (1832) à Prússia em 1831, intensificou-se inspirar nas experiências estrangeiras para atenuar
a partir dos anos 1870 e só foi interrompida pela os defeitos de um sistema escolar ou para discutir
Primeira Guerra Mundial. problemas comuns aos países ocidentais.
Matasci (2016) afirma que foram mais ou menos Matasci (2016) apresenta outro dado importante
130 missões entre 1842 e 1914 e que a Alemanha ao informar que todas essas atividades – congres-
foi o país mais procurado, seguido pelos Estados sos, exposições, missões pedagógicas – permane-
Unidos, a Suíça, a Inglaterra, os países escandina- cem relativamente informais e pouco codificadas
vos e a Itália. Os relatórios da participação nessas ao longo do século 19. Entretanto, a partir do
missões ilustram a necessidade de aprender com o início do século 20 essa dinâmica de intercâmbios
exterior e, neste sentido, e de contatos internacionais mudou quando foram
[...] na segunda metade do século 19 se desenvolve- criados os primeiros departamentos e federações
ram, assim, uma série de práticas que alimentam um internacionais na área da educação. Ele cita a
verdadeiro regime circulatório (SAUNIER, 2008) criação de instituições como o Comitê Permanente
que permitiu aos reformadores franceses integrar nos dos Congressos Internacionais do Ensino Técnico,
seus discursos um vasto horizonte de referências in- fundado em Bordeaux, em 1895, e composto por
ternacionais. Essas atividades mobilizam o estrangeiro especialistas de renome, ou o Bureau Internacional
em função das necessidades internas ditadas pelas do Ensino Secundário (1912), ambas federações
reformas escolares da época num contexto – não que reuniam associações nacionais de professores
devemos esquecer ­– de nacionalização do de diversos países europeus. Neste caso, Ma-
sistema educativo. (MATASCI, 2016, p. 144).
tasci (2016) destaca que essas redes procuraram
Em segundo lugar, Matasci (2016) indica que, se promover as perspectivas corporativistas dessas
por um lado essas dinâmicas de circulação serviram categorias profissionais, mais do que propor uma
como possibilidade para produção e de constituição reflexão científica sobre os problemas educativos.
de um saber, por outro serviram para a promoção do Matasci (2016) afirma ainda que o exame das
intercâmbio e da cooperação mundial: “os reforma- reformas francesas do ensino primário e secundário
dores franceses são efetivamente muito ativos no permite esclarecer as diferentes formas de recepção
seio do movimento de reforma da instrução pública, e de reapropriação dos modelos estrangeiros. Para

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Claudemir de Quadros

ele, “a esse respeito é particularmente interessante temática para o ensino primário, é assinado por
indagar as dinâmicas dessa recepção, que é seletiva Circe Mary Silva da Silva e foi publicado no n. 45
e parcial” (MATASCI, 2016, p 146). da revista História da Educação.
Para concluir, Matasci (2016) destaca dois Nesse texto, destaca-se que, pela análise da obra
pontos: 1) a passagem pelo internacional se explica de Friedrich Bieri (1844-1924), foi possível identi-
menos pela vontade de promover a cooperação com ficar apropriações de saberes produzidos em países
outros países do que pela necessidade de resolver de língua alemã no ensino brasileiro. Circe da Silva
problemas internos. Segundo ele, essa é a lógica da (2015) apresenta um perfil de Friedrich Bieri, relata
internacionalização: responder a desafios nacionais o processo de transferência de conhecimentos ocor-
e trabalhar para transformar o contexto nacional; 2) rido e sua atuação na Província do Rio Grande do
a natureza e a evolução do processo de internacio- Sul, bem como informa que pela análise da obra de
nalização: se durante muito tempo foi informal e Bieri foi possível concluir que este foi um dos pio-
relativamente pouco estruturada, a partir do início neiros na produção de livros didáticos para escolas
do século 20 ela prefigurou outras mudanças que teuto-brasileiras, assim como adotou uma proposta
aconteceram após a Primeira e a Segunda Guerra pedagógica germânica adaptada ao contexto local
Mundial, com a criação e o desenvolvimento das e influenciada pelo método de August Grube e da
instituições internacionais, ou seja, a ação desem- reformulação deste por Jakob Egger.
penhada pelas organizações como o Bureau Inter- Circe da Silva (2015) apresenta Friedrich Bieri
nacional de Educação (1925), a Unesco (1945), o como um imigrante suíço que chegou ao Brasil em
Banco Mundial e a OCDE marca uma profunda 1871 e como um dos primeiros a escrever livros
inflexão na maneira de pensar a educação em um didáticos para o ensino primário de Matemática,
mundo cada vez mais globalizado. em língua alemã, visando ao público das escolas
Nesse texto também há um mix de termos a teuto-brasileiras. Ele iniciou essas publicações
partir dos quais se pode pensar inúmeras rela- em 1873, com o Livro de cálculo para as escolas
ções entre a história da educação e as políticas alemãs no Brasil. Sobretudo a autora o apresenta
educacionais: circulação internacional das ideias como uma pessoa que rompeu
pedagógicas, modelos e exemplos estrangeiros,
sistema de intercâmbios e de observações mútuas, [...] uma barreira territorial, um agente europeu [que]
história internacional da educação, circuitos de transpôs conhecimentos matemáticos produzidos
num lugar, com maior tradição em ensino e formação
ideias pedagógicas, nada mais internacional do
de professores, para um novo lugar – Sul do Brasil,
que a definição das políticas escolares nacionais, no século 19 – com um contingente significativo de
missões pedagógicas, regime circulatório, vasto imigrantes germânicos ainda pouco letrados. (SIL-
horizonte de referências internacionais, promoção VA, 2015, p. 45).
do intercâmbio e de cooperação mundial, redes
permanentes de intelectuais, virada organizadora do Destaca-se, ainda, a publicação para o ensino
internacionalismo, conexões internacionais criadas bilíngue de alemão e português do Livro para
pelos reformadores. Contudo, uma ideia se destaca: aprender e ler em alemão, de 1876. A carência de
o processo de internacionalização formalizou-se livros escolares teria motivado Bieri a se dedicar a
por meio de instituições no âmbito das quais as escrevê-los para as escolas teuto-brasileiras.
políticas educacionais passaram a ser pensadas a Circe da Silva (2015) aponta que Bieri chegou
partir das perspectivas do intercâmbio e da coo- à cidade de São Leopoldo em 1871, foi designado
peração mundial. professor da escola paroquial evangélica e nela
permaneceu até 1877. No início da década de 1880
Quarto texto: transferências e seu nome aparece como professor da sétima cadei-
ra, Língua Alemã, e como professor substituto de
apropriações de saberes
Desenho. Em 1886 ainda atuava na Escola Normal
O quarto texto intitula-se Transferências e e foi novamente nomeado professor substituto de
apropriações de saberes: Friedrich Bieri e a ma- Desenho. Seu nome aparece, constantemente, nas

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História da educação e políticas educacionais entre saberes, conhecimentos e circulação internacional de discursos

relações de professores da Escola Normal que instituiu práticas num contexto específico: o Rio
atuavam como examinadores nos exames anuais. Grande do Sul do final do século 19.
De acordo com Circe da Silva (2015, p. 50),
os saberes que Bieri, formado na escola suíça e Considerações finais
conhecedor das ideias de Pestalozzi, trouxe para o
Brasil foram modificados, “pois ao desempenhar Enfim, eis a preocupação principal deste exer-
uma função de intermediário fez, ele próprio, sua cício: pela história da educação pode-se perceber
leitura e interpretação. Considerando o contexto como diferentes discursos circularam e instituíram,
local ele realizou um elo entre a produção e a recep- ao longo do tempo, conceitos e práticas no âmbito
ção”. Afirma ainda que à “medida em que Bieri se das políticas educacionais.
inseriu no contexto educacional e começou a redigir Ou seja, esta parece ser a fronteira do momen-
livros didáticos para as escolas teuto-brasileiras, to no âmbito da história da educação: perceber,
tornou-se agente que usou o ensino para transmitir informar, demonstrar os modos pelos quais as
novas ideias, principalmente aquelas relacionadas a redes de relações entre países, regiões e pessoas
metodologia da Aritmética” (SILVA, 2015, p. 50). compareceram na formulação das respectivas
Circe da Silva (2015) relaciona as experiências e políticas nacionais. Talvez esta possa ser uma das
formação para o magistério obtidas na Suíça como importâncias ou contribuições da história da edu-
relevantes para a atuação de Friedrich Bieri que, cação para a sociedade: mostrar como aquilo que
com isso, assumiu atividades relacionadas com estamos acostumados a dizer é resultado de uma
ensino em diferentes escolas, avaliador de exames ampla rede de relações cuja autoria não é neces-
e autor de livros didáticos. A autora diz ainda que sariamente nacional, bem como por as coisas nos
Bieri adaptou para o contexto local os métodos de seus devidos lugares: o que conseguimos pensar
Grube e de Egger e conclui que acerca das políticas educacionais é circunscrito
pelos discursos que circulam internacionalmente.
Bieri, como um agente de mediação, transferiu um Além disso, há outras conclusões que, embora
método de ensino da Matemática criado para o con-
óbvias, podem ser repetidas:
texto cultural europeu, onde já existia uma estrutura
educacional organizada, com cursos para formação 1. A expressão ao longo do tempo é relevante:
de professores, estágios para a prática docente e com ela indica-se que convém perceber as
produção de livros didáticos, para um novo contexto relações entre história da educação e polí-
cultural – o Brasil. (SILVA, 2015, p. 63). ticas educacionais na perspectiva da longa
Ao escrever e publicar livros para o ensino da duração, proposta no âmbito da Escola dos
Matemática e trazer uma metodologia europeia, Annales;
promoveu inovação ao adaptá-los ao contexto 2. Convém pensar as políticas educacionais
nacional.1 entre saberes, conhecimentos, ação de
Assim como nos demais textos, a pauta de Cir- intelectuais, circulação internacional ou
ce Silva (2015) indica a possibilidade de pensar transnacional de discursos ou entre especi-
relações entre a história da educação e as políticas ficidades nacionais ou estrangeiras;
educacionais a partir, por exemplo, das dinâmicas 3. Pode ser produtivo estudar as relações entre
de apropriações de saberes, transferência de co- transferências culturais e seleção-transmis-
nhecimentos, rompimento de barreiras territoriais, são-reinterpretação ou como os discursos
produção e a recepção de bens culturais e a ação de ultrapassam as fronteiras, envolvem nume-
agentes de mediação. Por meio deste texto é possí- rosos mediadores e circunscrevem aquilo
vel perceber um dos modos pelos quais a circulação que pode ser considerado correto e verda-
de ideias relacionou Europa e Brasil, assim como deiro no âmbito das políticas ou as formas
pelas quais as apropriações funcionam num
1 Situação similar pode ser vista, dentre outros, em Ensino de arit-
mética no Rio Grande do Sul: a contribuição de Luiz Schuler, 1904
contexto cultural de recepção. Não há como
(QUADROS; BISOGNIN, 2015). abordar políticas educacionais, por exem-

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Claudemir de Quadros

plo, sem atenção ao que é dito no âmbito uma pauta interessante: perceber como se
da ONU, Unesco e OECD: como ideias são estruturam estas formas, o que propõem,
postas em circulação e estruturam o que que discursos fazem circular.
pode ser pensado e dito acerca das políticas Entretanto, além dessa possibilidade talvez haja
educacionais. Neste caso as perspectivas da outra mais importante e que se encontra expressa
educação comparada podem ser relevantes; por Maria Stephanou (2016, p. 6) na apresentação
4. Todavia, as políticas educacionais, sempre do n. 50 da revista História da Educação:
alvo de disputas ideológicas ou político- Se os acontecimentos são, como nos ensina Certeau
-partidárias, e embora a sua proeminência e (1994), o que eles se tornam, seremos capazes de
vontade colonizadora das mentes e corações examinar tradições e mudanças nas abordagens
no tempo presente, não são hegemônicas: da história da educação [e das políticas educacio-
há outras perspectivas que podem ser per- nais], suas narrativas, perfilações teóricas, eleição
cebidas em inúmeros lugares, tais como, de objetos, atravessados pelos acontecimentos do
por exemplo: no site da Perestroika, com tempo presente, de modo a pensarmos em como se
o seu curso denominado Nova; no site da constituem tão somente em seu depois?
Descola; no site da Educação fora da caixa; Em síntese, as relações entre a história da educa-
no site da Hackademia; no site da Fundação ção e as políticas educacionais são campos abertos
Lemann. Ou seja, outras pautas, outras para estudo, em especial na perspectiva reiterada
perspectivas, outros modos de fazer, ou- ao longo deste texto: que ambas têm um itinerário
tras formas de estruturar o pensamento relacionado, o qual convém ser pensado na longa
fora das políticas educacionais oficiais, duração e que se constitui pela relação entre sabe-
produzidos fora das universidades e dos res, conhecimentos, ação de intelectuais e ampla
seus intelectuais. Talvez esta possa ser circulação internacional de discursos.

Referências
DITTRICH, Klaus. As exposições universais como mídia para a circulação transnacional de saberes sobre o ensino
primário na segunda metade do século. História da Educação, Porto Alegre, v. 18, n. 41, p. 213-234, 2013.
FONTAINE, Alexandre. Pedagogia como transferência cultural no espaço franco-suíço: mediadores e reinterpreta-
ções de conhecimento (1850-1900). História da Educação, Porto Alegre, v. 18, n. 42, p. 187-207, 2014.
MATASCI, Damiano. A França, a escola republicana e o exterior: perspectivas para uma história internacional da
educação no século 19. História da Educação, Porto Alegre, v. 18, n. 50, p. 139-155, 2016.
QUADROS, Claudemir de; BISOGNIN, Vanilde. Ensino de aritmética no Rio Grande do Sul: a contribuição de
Luiz Schuler, 1904. Acta Scientiae, Canoas, RS, v. 17, p. 24-40, 2015. Disponível em: <http://www.periodicos.
ulbra.br/index.php/acta/article/view/1454/1144>. Acesso em: 22 ago. 2016.
SILVA, Circe Mary Silva da. Transferências e apropriações de saberes: Friedrich Bieri e a matemática para o ensino
primário. História da Educação, Porto Alegre, v. 19, n. 45, p. 43-66, 2015.
STEPHANOU, Maria. Apresentação: um espaço para palavras, memórias e saberes: contributos de uma revista ao
longe. História da Educação, Porto Alegre, v. 20, n. 50, p. 5-10, 2016.
WERNER, Michael. Transferts culturels: le dictionnaire des sciences humaines. Paris: PUF, 2006.

Recebido em: 07/05/2017


Aprovado em: 26/06/2017

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 157-167, maio/ago. 2017 167
Miriam Leite

ATIVISMO POLÍTICO E JUVENTUDE:


CATRACAS NA ESCOLA E NA CIDADE PARA OS
JOVENS MAIS JOVENS

Miriam Leite (UERJ)∗

RESUMO
Os movimentos de ocupação urbana ocorridos em diversas partes do mundo desde
o início desta década foram, com frequência, associados à juventude. No entanto,
o termo juventude é reconhecidamente pouco preciso quanto à idade que refere:
estariam aqueles que frequentam os anos finais do ensino fundamental incluídos
nesse reconhecimento de agência política? No contexto da greve docente da rede
pública municipal de ensino do Rio de Janeiro, em 2013, realizamos entrevistas com
professoras que participaram desse movimento, considerando que suas narrativas
poderiam trazer notícias desse reconhecimento (ou não reconhecimento). Em diálogo
com teorizações de Jacques Derrida, Judith Butler e Leonor Arfuch, discutimos sobre
os textos produzidos nesses encontros, a partir das noções de performatividade,
iteração, interpelação e entrevista narrativa. Assinalamos, nessa leitura, além da já
suposta potência da interpelação docente, a força da própria cidade no favorecimento
ou obstaculização da agência política desses jovens mais jovens.
Palavras-chave: Juventude. Adolescência. Ativismo político. Educação escolar.
Diferença.

ABSTRACT
POLITICAL ACTIVISM AND YOUTH: TURNSTILES OF THE SCHOOL AND
THE CITY FOR THE YOUNGER YOUTH
The urban occupation movements in various parts of the world since the beginning of
this decade were often associated with youth. However, the term youth is admittedly
imprecise as age is concerned: were those attending the final years of elementary school
included in this recognition of politics agency? In the context of the teaching strike
of municipal public schools of Rio de Janeiro in 2013, we conducted interviews with
teachers who participated in the movement, considering that their narratives could
bring news of that recognition (or non-recognition). In a dialogue with theories of
Jacques Derrida, Judith Butler and Leonor Arfuch, such as those of performativity,
iteration, interpellation and narrative interview notions, we discuss about the texts
produced on such meetings. We note in this reading besides the already supposed
power of teacher’s interpellation, the strength of the city itself in favor or hindering
the politics agency of the younger youth.
Keywords: Youth. Adolescence. Political activism. School education. Difference.


Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professora adjunta da Fa-
culdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Líder do Grupo de Estudos sobre Diferença e Desigualdade na Educação Escolar da Juventude (DDEEJ/UERJ).
E-mail: [email protected]

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 169-185, maio/ago. 2017 169
Ativismo político e juventude: catracas na escola e na cidade para os jovens mais jovens

RESUMEN
ACTIVISMO POLITICO Y JUVENTUD: TORNIQUETES EN LA ESCUELA Y EN
LA CIUDAD PARA LOS JÓVENES MÁS JÓVENES
Los movimientos de ocupación urbana que tuvieron lugar en diversas partes del mundo
en esta década fueron frecuentemente relacionados con la juventud. Sin embargo,
el término juventud es reconocido como poco preciso respecto a la edad: ¿estarían
incluidos en ese reconocimiento de agencia política, aquellos que frecuentan los
últimos años de educación básica secundaria? En el contexto de la huelga docente
de la red pública de educación de Río de Janeiro, en 2013, entrevistamos profesoras
que participaron en este movimiento, considerando que sus narrativas podrían traer
noticias de ese reconocimiento (o no reconocimiento). En diálogo con teorizaciones de
Jacques Derrida, Judith Butler y Leonor Arfuch, discutimos las narrativas producidas
en esos encuentros a partir de las nociones de performatividad, iteración, interpelación
e entrevista narrativa. Observamos, además de la ya supuesta potencia de interpelación
docente, la fuerza de la propia ciudad favoreciendo u obstaculizando la agencia política
de estos jóvenes más jóvenes.
Palabras clave: Juventud. Adolescencia. Activismo político. Educación escolar.
Diferencia.

Introdução

Cês tão invadindo nosso espaço. de jovens mais jovens e constituem nosso foco
Aí entra alguém, quebra tudo, aí vocês vão querer
prioritário de estudo.1
por a culpa nos estudantes. [...] Embora pouco noticiada na mídia estabelecida,
recorrendo a fontes alternativas de veiculação de
Vocês estão fardados, vocês acham que tão no di- notícias – como o Facebook e o Youtube – pude-
reito. [...]
mos identificar que a presença de ativistas que
Cês tão com mandato? aparentavam idade correspondente à frequência
Cês têm algum mandato pra invadir? oficialmente esperada nos anos finais do ensino
fundamental era flagrante, como se exemplifica na
Não têm! cena transcrita em epígrafe deste texto, em que o
Então, dá licença! (YOUTUBE, 2015). protagonista não aparenta mais do que 13 anos e se
posiciona, com calma e firmeza, diante de vários
A recorrente enunciação do desinteresse juvenil
policiais, na entrada da sua escola (YOUTUBE,
pela política na contemporaneidade – recorrente
2015).
não só no senso comum e na grande mídia, como
Trata-se de recorte da população escolar relati-
também na pesquisa acadêmica (BOGHOSSIAN;
vamente pouco focalizado nos estudos acadêmicos
MINAYO, 2009; MAYORGA, 2013) – tem sido
(SPOSITO, 2009) e geralmente pouco contempla-
desafiada por massivas manifestações públicas de
do, em suas especificidades, nas políticas educa-
parcelas da população identificadas como jovens,
cionais (DAVIS et al., 2013): de fato, enquanto os
sobretudo a partir das chamadas Jornadas de Junho,
que tomaram as ruas do país em 2013. Em 2015, 1 Referência ao Grupo de Estudos sobre Diferença e Desigual-
dade na Educação Escolar da Juventude/DDEEJ,, coordenado
diante da proposta da chamada “reorganização pela autora e vinculado à linha de pesquisa Infância, Juventude
escolar” (GOVERNO..., 2015), por parte do go- e Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação da
verno do estado de São Paulo, nova movimentação Universidade do Estado do Rio de Janeiro?ProPED-UERJ. A
pesquisa referida neste artigo teve financiamento FAPERJ, e faz
política chama atenção das nossas pesquisas, pela parte do projeto Performatividade, diferença e desigualdade na
participação daqueles a quem costumamos chamar educação escolar do jovem adolescente (LEITE, 2010).

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Miriam Leite

anos iniciais do ensino fundamental contam com no contexto acima descrito relativamente à identi-
acúmulo considerável de estudos e pesquisas, so- ficação do estudante mais jovem, quando a greve
bretudo por se tratar do nível de ensino há mais tem- docente da rede municipal do Rio de Janeiro, no
po estabelecido no país, e o ensino médio mobiliza final de 2013, tornou tais questões inadiáveis, por
o pensamento político e acadêmico pela iminente diversas razões: víamos, nas passeatas, jovens estu-
entrada no mercado de trabalho e vida adulta em dantes uniformizados, lado a lado com professoras
geral, os anos finais do ensino fundamental tendem grevistas;3 recebíamos notícias, de testemunhas
a relativa secundarização. Entretanto, são recorren- oculares, a respeito de inesperada aproximação
tes os relatos docentes de dificuldade no trabalho entre ativistas black blocs e professoras; finda a gre-
pedagógico nesse nível de ensino (LEITE, 2010). ve, ouvíamos relatos de professoras que narravam
Suspeitamos, contudo, da explicação que naturaliza um retorno às aulas com visível maior politização
esse quadro, propondo investigar outros fatores por parte dos alunos. Como esses eventos seriam
que poderiam concorrer para a sua configuração, significados pela escola? Como afetariam a iden-
e julgamos que a perspectiva teórica e política da tificação dos jovens estudantes, por parte das suas
diferença pode ser produtiva nesses estudos. Em professoras? O reconhecimento de algum nível
projeto anterior, a conclusão de estudo etnográfico de autonomia política discente poderia favorecer
conduzido ao longo de um ano letivo, em escola a significação da juventude adolescente como di-
da rede pública municipal carioca, apontou que ferença? Como se interpretaria a brutal repressão
aquilo que entendemos que poderia ser lido como policial às manifestações?
diferença adolescente2 era, com frequência, signi- Entre as possibilidades de busca de respostas
ficado pela escola como desigualdade: na medida a tais inquietações, realizamos entrevistas com
em que eram subalternizados como “rebeldes professoras então atuantes em escolas públicas na
sem causa” ou “aborrescentes”, justificava-se sua cidade do Rio de Janeiro, não apenas pelo enten-
exclusão das instâncias decisórias daquele espaço- dimento da importância da sua perspectiva, como
-tempo e deslegitimavam-se suas reivindicações e também pela viabilidade dessa interlocução, o que
questionamentos (LEITE, 2010). não se repetia em relação aos demais envolvidos:
As mobilizações dos estudantes da rede pública o acesso aos estudantes, bem como ao próprio
de São Paulo evidenciaram a atualidade e urgência espaço-tempo da escola, tem sido bastante dificulta-
da focalização acadêmica desse agrupamento etá- do pela atual gestão municipal (LEITE, 2011), mas
rio. Já desde as Jornadas, indagávamo-nos quanto a mostrou-se possível quando dirigido às professoras
deslocamentos que pudessem estar ganhando força por meio de contatos individualizados. Por certo,
geramos nessas interações relatos parciais, mas a
2 A noção de diferença referida neste artigo tem sido construída
a partir dos estudos sobre a différance, teorização proposta pelo
mirada teórica de que buscamos nos aproximar já
filósofo Jacques Derrida, que é apresentada em breve síntese na nos interditaria a pretensão do acesso a qualquer
seção que se segue. Quanto à nomenclatura jovem/adolescente/ tipo de totalidade das instâncias sociais em estudo.
jovem adolescente/jovem mais jovem, optamos por alternar de-
nominações diversas, como forma de explicitar o reconhecimento Entendemos que, ao problematizarmos narrativas
das várias identificações atribuídas ao grupo social que discutimos, de professoras acerca da participação juvenil no
tanto na produção acadêmica quanto na legislação e em políticas contexto da greve docente carioca de 2013, pro-
públicas e ainda no senso comum. Diante dessa acentuada instabi-
lidade terminológica, não optamos aprioristicamente por nenhuma duzidas em encontros por nós organizados, não
dessas expressões, tomando a identificação do grupo social que buscamos acesso à verdade dos fatos, mas, sim,
focalizamos em nossos projetos como importante questão de
a como participantes de relevo nesse contexto
pesquisa. São enquadrados em nossas pesquisas pelo seu enga-
jamento como estudantes nos anos finais do ensino fundamental relatariam tais vivências para nossa investigação.
e no ensino médio regulares. Com a enunciação das diversas Apostamos que a temática da greve e das Jornadas
denominações possíveis para esse agrupamento etário, também
buscamos expor a multirreferencialidade dos nossos estudos, que 3 Embora tenhamos entrevistado pessoas que se identificaram como
dialogam com a sociologia, que usualmente privilegia o termo professores e como professoras, generalizaremos pelo feminino,
jovem, com a psicologia, onde é mais frequente a referência ao posto considerarmos que a tradicional invisibilização feminina
adolescente (ABRAMO, 2005), e com a filosofia, campo menos na linguagem é particularmente incômoda quando se trata da
referido em tais estudos (SPOSITO, 2009), que, desse modo, não docência, que, como se sabe, é, na sua maior parte, exercida por
apresenta nenhuma opção mais típica nesse sentido. pessoas que se identificam como mulheres.

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Ativismo político e juventude: catracas na escola e na cidade para os jovens mais jovens

de Junho favoreceriam a enunciação do lugar políti- das estruturas que abrigariam os jogos diferenciais
co projetado pelas professoras entrevistadas para os de construção dos sentidos – afetam os modos de
estudantes foco da nossa pesquisa, o que julgamos fazer e as focalizações da pesquisa em Educação,
ter efetivamente acontecido. Ademais, a recente ao mesmo tempo em que sinalizam importantes
retomada da mobilização estudantil, em São Paulo, mudanças sociopolíticas na contemporaneidade.
com o visível envolvimento de jovens mais jovens, Constroem-se simultaneamente ao fortalecimento
expôs a pertinência de tais questionamentos. dos movimentos sociais pelo reconhecimento do
Apresentamos, neste artigo, a síntese das leitu- direito à diferença, constituindo-se como pers-
ras dos registros dos encontros que promovemos pectiva teórica coerente com tal mirada política,
com professoras da rede pública de ensino do que propomos mobilizar para pesquisar sobre a
Rio de Janeiro, para discutir sobre a participação educação escolar da juventude.
política da juventude, com especial atenção àque- A diferença se constitui em questão no dia a
les identificados como adolescentes. Expomos, dia da sala de aula frequentada pela juventude
inicialmente, os procedimentos de organização e da atualidade, na medida em que a escola recebe
realização das entrevistas – o que inclui esclareci- o aluno com deficiência, as falas e os gestos das
mentos quanto aos sentidos que propomos para as massas populares, o menino que prefere usar saia,
noções teóricas mobilizadas – para, em seguida, a candomblecista que se orgulha da sua filiação
abordarmos os dois contextos em que se produzi- religiosa e não a esconde – enfim, estes são apenas
ram enunciações de interesse para as indagações alguns exemplos, pois são muitas as formas como
dos nossos estudos acerca da possibilidade de a diferença ganha corpo na escola e, ainda que
ativismo4 político entre estudantes mais jovens. seja para argumentar pela sua não centralidade
face a outras questões do tempo presente, torna-se
Conversas cada vez mais difícil ignorá-la na pesquisa sobre
a educação escolar. Destacamos aqui o que temos
O entendimento de que a contemporaneidade denominado como diferença adolescente (LEITE,
impõe questões político-epistêmicas à pesquisa 2010), por entendermos que a identificação etária
acadêmica, configuradas, sobretudo, a partir da costuma marcar as relações escolares com força
virada linguística e de sua crítica por perspectivas notável nos anos finais do ensino fundamental e no
pós-estruturalistas, somou-se à nossa sensibilidade ensino médio, em dicotomização hierarquizante,
política para as questões em torno do direito à dife- que atualiza no espaço-tempo escolar o adulto-
rença e levou-nos à leitura de autores que julgamos centrismo em geral prevalente na nossa sociedade.
responder a tal contexto – nomeadamente, Derrida Com Derrida (1991b, 2001), entendemos tal
(1991a, 1991b, 2001), Butler (1997, 2008) e Scott diferença como différance, neologismo intraduzível
(1992). As entrevistas que se discutem a seguir que o autor propõe para denominar o movimento
foram concebidas, desenvolvidas e lidas no diálogo contínuo de adiamento de alguma estabilização de-
com esses textos. finitiva dos sentidos e das identificações em geral.
Os questionamentos colocados pelo reconhe- Destaque-se que a opção, neste texto, pela palavra
cimento da não transparência e da precariedade identificação no lugar de identidade não é casual,
da linguagem e radicalizados pelos argumentos pelo contrário. Assumimos, a partir dos estudos
pós-estruturalistas – que duvidam da estabilidade sobre a différance, a recusa à noção de identida-
de, posto que, historicamente, tendeu a assumir
4 Em acordo com Veiga-Neto, optamos pela expressão “ativismo
político”, na intenção do afastamento da perspectiva da “militân- conteúdo essencial e positivo. Desse modo, não
cia”, conforme definidas pelo autor: “a militância – como uma atrelamos a identificação juvenil a faixas de idade
actio militaris – e o ativismo são, ambos, da ordem do agir para
frente, da ação para uma mudança de posição, da ação para uma
ou a quaisquer características intrínsecas, sejam da
outra situação diferente da que se tem. Mas enquanto aquela se ordem da biologia ou da cultura. Antes entendemos
rege pela lógica da obediência hierárquica, esta se funda na maior que a identificação jovem/adolescente se constrói
liberdade possível e permitida pela combinação entre a díade
pensável-dizível e o visível (Foucault, 1999)” (VEIGA-NETO, contingencialmente em processos performativos
2012, p. 272, grifo do autor). – outra noção que demanda esclarecimento, posto

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Miriam Leite

que não apenas informa sobre o sentido pretendi- em composição única que implica deslocamentos
do para a expressão identificação, como também quanto ao que aparenta se repetir, posto que todos
fundamenta a opção pela problematização de nar- esses elementos também apresentam significação
rativas docentes para a discussão dos processos de precária.
identificação que aqui focalizamos. As identificações e as significações com que
Se a noção de différance foi proposta por nos organizamos e vivemos nossa vida cotidiana
Derrida (1991b) na sua leitura desconstrutora das são, portanto, construídas pela permanente e difusa
teorizações de Saussure, a concepção de uma iden- iteração/repetição/deslocamento de sentidos. Pode-
tificação performativa do jovem/adolescente tem -se reconhecer algum nível de estabilização – o
se configurado, pela recontextualização das pro- que Derrida (1991a, p. 198) chama de “grande
posições da teórica feminista Judith Butler (1997, estabilidade” – oportunizado pela sedimentação
2008) acerca do gênero performativo, no âmbito de restâncias que, no entanto, não garante fixação
das nossas pesquisas. Conforme já argumentamos imune aos contextos da sua iteração:
em outra publicação: “assim como nas questões de Segundo os contextos (segundo tal cultura nacional,
gênero, existem as práticas reguladoras da coerên- na universidade ou fora da universidade, na escola
cia da idade que, performativamente, dicotomizam ou alhures, em tal nível de competência ou em outro,
e hierarquizam a criança/adolescente/jovem relati- na televisão, na imprensa ou num colóquio especia-
vamente ao adulto” (LEITE, 2014, p. 148). lizado), as condições da pertinência mínima e do
Butler (2008) desenvolve a noção de gênero acesso inicial mudarão. (DERRIDA, 1991a, p. 199).
performativo com base na abordagem desconstru-
Por concordarmos com tais proposições, julga-
tora que Derrida (1991a) propõe para o livro How
mos pertinente a discussão de iterações relativas
to do things with words, de autoria do linguista
à identificação do estudante jovem adolescente,
John Austin (1975). Temos apresentado nossa
na medida em que participam dos processos de
leitura dessa teorização em outras publicações
sedimentação de sentidos que estabilizam, ainda
(LEITE, 2014, 2015), e aqui destacaremos apenas
que de modo precário, contingente e disputado, sua
os pontos que informaram de forma mais basilar
identificação – e, ao fazê-lo, contribuem para, per-
o estudo que motiva este artigo: o questionamento
da distinção entre o enunciado performativo e o formativamente, criar o jovem adolescente de que
enunciado constativo (considerando-se que, ao se fala. Por certo, na escola não se criam sentidos
enunciar, também estamos criando a realidade em plenamente autônomos em relação às organizações
descrição, posto que a ela atribuímos sentido, e sociais em que se insere; entretanto, nesse contexto,
agimos, sentimos e seguimos gerando e afirmando tampouco apenas se reproduz o que é enunciado
outras significações); e o entendimento de que esse em outras instâncias: também ali se repetem e se
processo de atribuição de sentido/criação de efeitos deslocam sentidos do ser/estar estudante jovem
de realidade se dá pelo que Derrida (1991a) nomeia adolescente. Entre as muitas iterações que tomam
como iteração. Refere desse modo a repetição so- parte nesses processos, priorizamos, na pesquisa,
cial dos sentidos, mas sublinha a impossibilidade as interpelações docentes.
de realização plena dessa repetição. Ao enunciar O sentido aqui atribuído à interpelação parte
qualquer conteúdo, repetimos palavras e sintaxes da argumentação desenvolvida por Judith Butler
que carregam o que o autor chama de restâncias (1997), em que defende a necessidade de revi-
de sentido, que permitem algum nível de reco- são das proposições do filósofo Louis Althusser
nhecimento e proximidade de referência, porém relativamente a tal expressão. Aproxima-se des-
não trazem qualquer significação estabilizada que te autor quando considera o peso da nomeação
independa do contexto da sua enunciação, dado pelo outro na construção das identificações e
que não se remete a conteúdos positivos alheios autoidentificações, mas pondera que esse poder é
à nossa interpretação. Ao repetirmos uma frase, derivativo, não tem sujeito ou ponto originário da
seus elementos ganham sentido na relação com sua força. Dependemos dessa interpelação para
outros tantos que a precederam e a circundam, nossa subjetivação, inserção e reconhecimento

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Ativismo político e juventude: catracas na escola e na cidade para os jovens mais jovens

social, o que, no entanto, não constitui processo ao diversificarmos as entrevistadas quanto a tais
linear, determinístico ou controlável em qualquer pertencimentos e identificações, não pretendíamos
nível de plenitude. Assumindo as considerações de alcançar uma amostra representativa do corpo do-
Butler (1997), ao abordarmos falas de professoras cente da escola pública do Rio de Janeiro, mas, sim,
relativamente às identificações do estudante jovem conter a possível afetação por marcas mais especí-
contemporâneo, não supomos poder incontestável ficas do que a atuação como professora dessa rede.
ou soberano dessas enunciações em tais processos, Esclarecemos ainda que, na leitura das narrativas
mas trabalhamos com a suposição da relevância das oportunizadas nesses encontros, não percebemos
iterações que se realizam. implicações significativas a partir da localização
Conforme mencionamos, dado que a apro- das escolas ou das disciplinas ministradas, daí
ximação ao seu local de trabalho se anunciava julgarmos poder omitir a individualização dessas
problemática, chegamos às professoras por meio informações. Contudo, na apresentação da nossa
de convergência rizomática (STEHLIK, 2004), leitura das entrevistas, apontamos a faixa etária das
alternativa de acesso a grupos sociais cujo contato professoras citadas, posto que a questão da idade
sistemático esteja por algum motivo inviabilizado. perpassa todo o desenho da pesquisa em discussão.
Inicialmente, identificamos nossa busca com a tra- Depois de dois encontros com caráter experi-
dicional estratégia de pesquisa “técnica da bola de mental, sendo um individual e outro em grupo, fi-
neve” (RUBIN; BABBIE, 2009), que também se zemos ajustes no planejamento das entrevistas, que
vale dos contatos possíveis, buscando-se multipli- passaram a se desenvolver em torno dos seguintes
cá-los aleatoriamente, mas se distingue da conver- pontos: inserção profissional; atuação e avaliação
gência rizomática por pressupor a possibilidade da da greve; participação, na greve, dos jovens, em
representação de contextos. Como operamos com geral, e dos alunos da escola do entrevistado, em
a noção de contexto aberto e instável proposta por particular.6
Derrida (1991a), não os supomos representáveis e Entretanto, questionamos, com a teórica femi-
tivemos de buscar alternativa teórico-metodológica nista Joan Scott (1992), a atribuição apriorística
para orientar essa etapa da pesquisa. O rizoma – de legitimidade e fidedignidade à narrativa da
metáfora que se empresta da teorização de Deleuze experiência. A autora pondera que essa perspectiva
e Guatari (1987 apud STEHLIK, 2004) – simboliza supõe a transparência, a estabilidade e o controle
a forma de abordagem alternativa que elegemos, racional da linguagem e da consciência, bem como
sinalizando a abertura e imprevisibilidade que atri- a objetividade da experiência, que seria muitas
buímos aos contextos a que se remete a pesquisa. vezes interpretada como “evidência incontestável”
Chegamos, desse modo, a um grupo inten- (SCOTT, 1992, p. 24, tradução nossa), constituindo
cionalmente não representativo da totalidade dos momento de acesso direto à realidade. Concorda-
professores da rede pública de ensino do Rio de mos com os argumentos da autora, que nos levam
Janeiro: variamos quanto à localização das escolas a esclarecer que entendemos que as situações de
de atuação, quanto à idade, ao tempo de magistério entrevista que criamos oportunizaram a iteração de
na rede pública, e área disciplinar.5 Destaque-se que, identificações do estudante jovem adolescente, que
não repetiriam em suposta integridade enunciados
5 Campo Grande, Cascadura, Centro, Cidade de Deus, Copacabana,
Duque de Caxias, Engenho Novo, Grajaú, Inhaúma, Laranjei- que circulam na escola e/ou na sociedade em geral,
ras, Leme, Nova Iguaçu, Olaria, Pavuna, Rocinha, São João de
Meriti, Vidigal; entrevistamos 4 professores com menos de 30 6 A realização individual ou coletiva seguiu a determinação das
anos, 6 entre 30 e 40 anos, 3 entre 40 e 50 anos e 4 com mais de próprias entrevistadas, posto que avaliamos que ambos os forma-
50 anos; de 1 a 40 anos de experiência; 2 professoras de Artes, tos haviam se mostrado produtivos para a nossa pesquisa: fizemos
2 de Ciências, 3 de Geografia, 5 de História, 2 de Matemática, 1 então 2 entrevistas coletivas (um grupo com 6 professoras e outro
de Educação Física e 2 de Língua Portuguesa; os locais de rea- com 5 professoras, sendo o primeiro de uma única escola – grupo
lização das entrevistas foram bastante variados, sempre a partir Centro –, e o segundo, com professoras de várias escolas, amigas
das solicitações das professoras: duas na Universidade sede da entre si, todas graduadas e lecionando na área de História – grupo
pesquisa, uma em um bar no centro da cidade (grupo Centro), História), e 6 individuais. Seis das entrevistadas se apresentaram
duas em bares próximos às escolas, na zona norte, duas na casa como homens, e 12 como mulheres, sendo que 2 foram também
das entrevistadas (individual, na zona oeste; grupo História, na interpeladas como militantes sindicais (atuantes desde o ingresso
zona norte), uma em quiosque em Copacabana. na rede pública de ensino, na década de 1980).

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Miriam Leite

mas, sim, atualizariam restâncias de sentidos que já De fato, chamou atenção a recorrência da afir-
adquiriram relativa estabilidade social e que tendem mação, por entrevistadas, da satisfação pela opor-
a implicar efeitos de verdade nesses processos de tunidade de expor sua experiência na greve docente
identificação. Além disso, cumpre explicitar que a carioca, já que “a mídia distorce tudo”.7 Embora
interpelação das entrevistadas como professoras não possamos supor que as narrativas das profes-
ou como professoras sindicalistas não pretendeu soras tragam um relato verdadeiro da atuação de
defini-las identitariamente, antes teve o propósito alunos durante e depois da greve, na criação desse
de destacar contornos da sua participação nos pro- espaço-tempo de diálogo entre pesquisa acadêmica
cessos de construção de sentido acerca da juventude e docentes da rede pública de ensino do Rio de Ja-
adolescente que têm lugar na escola – contornos neiro, assumimos o caráter político dessa escolha,
esses que poderiam (ou não) mostrar-se relevantes que não se coloca pelo entendimento de qualquer
no quadro em discussão. valor intrínseco a um suposto lugar estrutural
Leonor Arfuch, teórica argentina que tem dis- das professoras no contexto em discussão, mas,
cutido sobre os gêneros biográficos incorporando sim, pelo reconhecimento da importância política
o diálogo com proposições do pós-estruturalismo do favorecimento da elaboração e publicização
e de autores como Bakhtin e Ricoeur, concorda de múltiplas narrativas em torno dos temas que
que, diante do reconhecimento da impossibilida- abordamos.
de da literalidade, não faria sentido interpretar a Arfuch (2010, p. 250) lembra ainda que “a
narrativa da experiência “como fonte imediata da memória, longe de reproduzir simplesmente a re-
verdade” (ARFUCH, 2010, p. 254). Contudo a au- alidade social, é um lugar de mediação simbólica
tora lembra também que o entusiasmo das Ciências e de elaboração de sentidos” e propõe “enfatizar
Sociais pelo uso da entrevista, a partir da década o acontecimento do dizer” (ARFUCH, 2010, p.
de 1970, tinha forte motivação política: falava-se 267). Entendemos que as entrevistas constituíram
na “democratização da palavra”, em “dar a voz” espaço-tempo em que convidamos as professoras
àqueles silenciados pela história oficial, afirmando, à formulação de tais mediações e elaborações sim-
nesse mesmo gesto, tal voz como “testemunho de bólicas, o que nos permitiu registrar iterações de
verdade” (ARFUCH, 2010, p. 250). relevo para a nossa pesquisa, em que se deslocaram
Embora não compartilhemos da perspectiva e/ou se repetiram identificações do jovem estudante
militante que atribui ao texto acadêmico autoridade da contemporaneidade.
para “dar voz” a quem quer que seja, e discordemos, Essas iterações foram lidas na unidade de
por princípios epistêmicos basilares, de qualquer cada entrevista, em que se buscou identificar o
concepção de verdade exterior aos jogos de lingua- contexto mais imediato da sua enunciação – ou
gem e poder com que conferimos sentido à nossa seja, o diálogo entre entrevistada e entrevistadora
existência e vida social, preferimos propor con- que oportunizou o enunciado em questão –, o que
teúdo alternativo no lugar de apenas recusar essa reconhecemos como artifício heurístico, posto que,
dimensão política da nossa escolha pela entrevista conforme já explicitado, concebemos os contextos
com professoras. Lembramos a argumentação de na perspectiva derridiana, que os afirma abertos,
Costa (2002, p. 93-94), que sublinha que vivemos por princípio (DERRIDA, 1991a).
em permanente luta pela prevalência social de As fronteiras que arbitramos para a identificação
significações e identificações: desses contextos correspondem ao nosso movimen-
to de agrupamento de enunciados, que considera
Se não contarmos nossas histórias a partir do lugar
a dupla determinação que deriva das indagações
em que nos encontramos, elas serão narradas des-
de outros lugares, aprisionando-nos em posições,
colocadas pela pesquisa e da abertura aos descami-
territórios e significados que poderão comprometer nhos da enunciação contingente. Foram delineadas
amplamente nossas possibilidades de desconstruir a partir dos seguintes eixos de interpretação: a)
os saberes que justificam o controle, a regulação
7 Recorte de registro de narrativa de professora (ELISA, 30/40
e o governo das pessoas que não habitam espaços anos), ao final de encontro individual, quando foi convidada a
culturais hegemônicos. acrescentar o que julgasse relevante para concluir a entrevista.

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Ativismo político e juventude: catracas na escola e na cidade para os jovens mais jovens

identificação e discussão de movimentos de des- narrativa foi bastante produtivo para a pesquisa,
locamento/repetição de enunciados que a pesquisa dado que favoreceu construções de sentido acerca
acadêmica e a vivência na educação escolar, por do ser estudante jovem adolescente e de suas possi-
parte do grupo de estudos, levam-nos a entender bilidades de atuação política na contemporaneidade
como relativamente estabilizados na atualidade que entendemos portadoras de rastros relevantes de
social do país; b) identificação e problematização vetores concorrentes na fixação dessas identifica-
de possíveis efeitos performativos dos enunciados ções, na escola e na sociedade em geral.
em questão. Entre os contextos identificados, são a A articulação entre a eclosão do movimento
seguir apresentados os dois que trouxeram mais ele- grevista e as chamadas Jornadas de Junho de 2013
mentos de interesse para a discussão aqui proposta, foi apontada em todas as entrevistas. De início, sem
nomeados segundo as temáticas que privilegiamos o questionamento direto da pesquisadora, em falas
na sua identificação: 1) juventude, juventude mais que contavam da greve, as manifestações de junho
jovem, política na cidade; 2) juventude mais jovem, foram referidas como tendo criado uma situação
política na escola. Os dois contextos de iteração política que favoreceu o movimento docente e/
foram trazidos pela pesquisadora, mas também ou como exemplo a ser seguido pelo restante da
pelas professoras: destaque-se que a condução população. Nas entrevistas em que explicitamente
da entrevista foi de fato partilhada, conforme se perguntamos a esse respeito, as respostas não diver-
observa nos registros das transcrições, em que é giram das que apareceram sem o direcionamento
possível verificar que as entrevistadas ocuparam o da questão.
maior tempo da enunciação nessas conversas e que No entanto, a relação do movimento grevista
parcela significativa dos assuntos desenvolvidos foi com os ativistas black blocs, então anunciada com
por elas introduzida. alarde pela grande mídia, não foi lembrada nas
narrativas das professoras. Foi trazida pela pes-
Juventude, juventude mais jovem, quisadora, visando explorar o intrigante enunciado
política na cidade “Black bloc é meu amigo, mexeu com ele, mexeu
comigo”, que havia sido repetido em coro por
O tema da greve foi o mais desenvolvido nas milhares de professoras grevistas em assembleia
falas dos entrevistados, talvez porque tenhamos realizada no Clube Municipal, conforme teste-
introduzido essa discussão já no convite para par- munho de membros do nosso grupo de pesquisa e
ticipar da pesquisa, ou talvez porque, como foi de confirmado pelas entrevistadas: teria havido algum
diversas maneiras demonstrado durante as entre- deslocamento em relação à atribuição de irrespon-
vistas, a greve havia mobilizado com força aquelas sabilidade e/ou rebeldia como típicas da juventude?
professoras.8 Todavia, por certo, esse contexto de Caso tivesse havido, que efeitos performativos
8 De início, pretendíamos conversar com professoras e gestoras teriam sido gerados?
grevistas e não grevistas, porém apenas docentes que haviam Embora realizadas em separado, nas entrevistas
participado da greve responderam positivamente ao nosso convite.
Para apresentar a proposta e contextualizar a entrevista, referí- com professoras atuantes no Sindicato Estadual
amos nosso grupo de pesquisa e explicitávamos o interesse em dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro
conversar sobre a atuação dos alunos antes, durante e depois da (SEPE-RJ), a narrativa foi semelhante: “É o que
greve. Não houve rechaço explícito por parte das não grevistas,
mas foram evocadas impossibilidades diversas, sobretudo difi- eu falo, eu não tenho nada contra os black blocs, o
culdades de agenda devido à necessidade de reposição de aulas. meu problema é o seguinte: a categoria não aprova
Como as dezenove professoras grevistas entrevistadas também
esse tipo de postura, de quebra-quebra, não aprova,
tinham de repor o tempo de greve, acreditamos poder supor
que houvesse outras motivações para essas recusas. A greve foi não aceita, não adianta, é cultural da categoria.”
massiva e é possível que as docentes que não participaram do (MARLI, Individual, 50/60 anos). Ambas desta-
movimento não se sentissem confortáveis com o assunto, dada
a sua posição minoritária. Sua indisponibilidade contrastava
caram sua discordância política em relação a esse
com a boa receptividade que encontramos entre as grevistas, o tipo de ativismo, porém sem menção a termos como
que foi explicitado em diversas entrevistas e/ou demonstrado na “vandalismo” e congêneres.
abertura para a conversa em locais improvisados como bares e
praças próximos às suas escolas, ou datas improváveis como a Em outras entrevistas, essa tensão, em maior ou
antevéspera do Natal. menor grau, também foi relatada. A negativização

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do ativismo black bloc, pela população em geral, foi reuniram o pessoal e eles me chamaram, eu e uma
mencionada em vários encontros, argumentando- colega, nos chamaram: ‘Vamos ali.’ Sentou todo
-se que, por conta da versão divulgada pela grande mundo, juntou as cadeiras e sentou todo mundo ali.
mídia, perdia-se apoio popular à greve quando se E na hora da apresentação, o pessoal diz, eles não
dizem aquilo que eles fazem, mas o movimento em
associava o movimento a esse grupo. Entretanto,
que eles estavam atuando: ‘Eu sou do Ocupa’, ‘Eu
é digno de nota que, apesar de terem se registrado
sou...’ – enfim, cada um foi dizendo o movimento
enunciados de divergência em relação à estratégia que eles estão atuando. Não existia uma preocupa-
política dos black blocs, não houve adesão aos ção em dizer: ‘Eu sou professor’, ‘Eu sou artista’,
argumentos mobilizados pela mídia estabelecida embora tivesse ali estudantes de direito, artistas,
na condenação a esses ativistas, pelo contrário. gente de diversas áreas ali unidas. E eles resolveram
Murilo: Uma coisa que tô me lembrando aqui, em 40 minutos, eles resolveram uma ocupação do
que o Sérgio falou, é que as manifestações são Ministério Público com toda a tranquilidade, com
pedagógicas. Eu conheço algumas pessoas que, uma fluidez – por que, eu não sei. Se é por que existe
quando começou a participação dos black blocs nas pouca vaidade e muito foco no problema... Então, a
manifestações, começaram a entoar aquele coro da preocupação deles era com os problemas políticos,
mídia, que o black bloc é que era quebra-quebra, que e, naquela hora, com os moradores de rua. Então,
era bandido, que era vandalismo, parará-pão-duro. não é ninguém importante pra sociedade, mas eles,
Quando participaram daquela manifestação do 15 reunidos ali, sem empenho financeiro, sem intenção
de outubro, em que os black blocs defenderam os político-partidária, se dispunham a proteger aquele
professores da polícia e essas pessoas estavam no que tava sendo injustiçado pela Justiça. Teve uma
meio, no dia seguinte, o Facebook da pessoa era hora que eles me perguntaram o quê que eu tinha
como se ela nunca tivesse falado mal dos black pra dizer, e eu disse pra eles: ‘Gente, eu tô aqui me
blocs. Depois do 15 de outubro, o discurso mudou alfabetizando. Eu tô tendo que me esvaziar pra poder
radicalmente, entendeu? Então, o fato de estar ali e entender o que vocês estão fazendo aqui.’ (ARTUR,
de enxergar o fato com os próprios olhos fez com que Individual, 50/60 anos).
as pessoas parassem de engolir aquela mensagem e Embora recente na rede municipal de ensino, o
começassem a olhar mesmo o black bloc. (MURILO, professor tinha mais de 50 anos de idade e subver-
Grupo História, 30/40 anos). tia, com seu enunciado, a hierarquia adultocêntrica
Houve também entrevistas em que o desloca- já tão consolidada na nossa sociedade: jovens
mento foi além, não apenas valorizando a atuação ativistas sabiam o que ele não sabia, ensinavam-
política desses ativistas, mas também desestabili- -lhe sobre atuação política e solidariedade. Essa
zando o usual binarismo adultocentrista jovem X relação também seria possível com os alunos do
adulto, em que o primeiro tem sempre e apenas a ensino fundamental?
aprender, e o outro, a ensinar. Nesse ponto das entrevistas, isto é, quando se
falava da presença dos black blocs e/ou de jovens
Pesquisadora: Artur, eu tô preocupada com a tua
hora, porque eu acho que já estourou o tempo que a estudantes nas manifestações da greve, dois enun-
gente tinha combinado. Tem mais alguma coisa que ciados foram recorrentes, sem provocação direta
você quisesse acrescentar a essa nossa conversa? da pesquisa: a faixa etária e a cidade como deter-
minantes dessa participação (ou não participação).
Artur: Você tem mais alguma outra pergunta?
A associação entre juventude e disposição
Pesquisadora: Eu encerrei, tô muito satisfeita. para a luta política foi, de algum modo, afirmada
Artur: Então, é isso. Eu aprendi muito com a rua, na maior parte das entrevistas. Em alguns casos,
solidariedade. sem desenvolvimento de justificativa, apenas se
repetindo frases como “tem aquela rebeldia do
Pesquisadora: Você já tinha tido alguma outra expe-
jovem mesmo”;9 em outros, argumentando-se que
riência de ativismo desse tipo?
9 “Pesquisadora: Mas você acha que essa greve aconteceu
Artur: Não, não. Agora, eu participei de uma reu- agora por quê?
nião com, com a [ativista black bloc], eles estavam Sílvia: Ah, acho que teve muita influência das passeatas de
resolvendo o Ocupa Ministério Público. Então, eles junho, né? Tanto jovem na rua, dá até vergonha não fazer

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Ativismo político e juventude: catracas na escola e na cidade para os jovens mais jovens

o jovem teria menos a perder ou que ainda não teria é exceção. Agora, ele não participa de movimento.
se decepcionado com a política, o que seria comum Movimento não tem.
entre os mais velhos. Contudo, independentemente (GIL, Individual, 50/60 anos).
da explicação para a suposta propensão jovem à
atuação política, esta foi em geral referida com Nesse contexto, pode-se, portanto, assinalar
simpatia, ainda que, algumas vezes, com certa importante pista de enunciação/interpretação e
condescendência – visões que, na maior parte dos respectivo efeito performativo: os mais jovens
casos, não se estenderam aos jovens adolescentes. não participam, ora porque não têm interesse, ora
Por exemplo, black blocs foram diversas vezes porque seria perigoso – em ambas as enunciações,
citados como tendo presença importante na defesa falta autonomia, seja no sentido da maturidade
dos professores contra a brutalidade da repressão política, seja no sentido da possibilidade de au-
policial em manifestações e ocupações, mas essa todefesa nos conflitos da rua. Por uma razão ou
identificação (positiva) dependia da idade dos por outra, naturaliza-se a não participação desse
ativistas, não apenas da sua atuação. Quando mais agrupamento etário, o que entendemos contribuir
jovens, supunha-se a necessidade da sua proteção performativamente para o seu pouco engajamento
e não o contrário. político. Chama atenção, por exemplo, que tenha
se verbalizado mais o questionamento da presença
Marli: Tô eu lá na passeata, aí vem ‘uh, uh, uh’, aí,
quando eu olhei, ai, saí, assim, assustada, ‘sou eu,
do jovem adolescente nas manifestações do que
professora’, ‘ai, garoto, eu acabo com a tua raça!’ a violência policial que torna tal atividade muito
[risos]. perigosa para todos nós e não apenas para esse
grupo social.
Pesquisadora: [risos].
Entretanto, a determinação de postura política
Marli: Aí amarrou lá o pano, botou a camiseta, e eu pela idade não foi repetida sem deslocamentos
falei: ‘Garoto, vai embora, menino! Você não sabe o de relevo. No grupo Centro, apareceu com força
que é que vai rolar aqui!’ [...] (MARLI, Individual, o que aqui vamos denominar como interpelações
50/60 anos). da cidade, que complicam a justificativa da pouca
Também se evocou o desinteresse pela política idade para a não participação política dos jovens
por parte desses jovens mais jovens, o que se ex- adolescentes.
plicaria pela sua suposta pouca maturidade. Paula: Então, o autoritarismo da escola que a Sílvia
Pesquisadora: E no Município? coloca, ele é o mesmo numa escola escura e na outra
toda pintadinha, bonitinha, mas, é, até o ambiente
Gil: No Município, não.
físico geralmente é muito parecido. Mas na relação
Pesquisadora: E o grêmio da sua escola? com os alunos, eu via lá, é, alunos que viviam no
meio da rua, mas no meio da rua na favela do Arará
Gil: Nada, nem existe.
e da Barreira do Vasco, só, é aquela rua. E aqui eles
Pesquisadora: Nem existe? têm uma diferença, que o meio da rua deles é o centro
Gil: Não, não, não. Inexiste... O Município tem muita da cidade, então, eles têm que dominar o centro da
dificuldade de participação, desse tipo de participa- cidade, né? É uma coisa e tanto, que às vezes muita
ção mais politizada, muito difícil. São muito novos. gente vai fazer isso na faculdade e quando vai.
Às vezes quando o aluno chega no nono ano, que ele Pesquisadora: [risos].
tá saindo, aí ele tem aquela coisa melhor. Eu tenho
um aluno que é ótimo... Que foi meu aluno agora, Paula: Então, já é uma conquista que eu fico im-
ele é aluno do nono ano. Ele queria porque queria pressionada.
que a professora chegasse até a ditadura militar, que Pesquisadora: É verdade, isso muda muito.
ele queria estudar. Aí a professora fez até uma aula
extra só disso, ela nem dava esse conteúdo. [...] Mas Marília: ‘Ah! Sei onde é o CCBB, sei onde é Cande-
lária, a Cinelândia’. Eles circulam por um espaço que
nada. Se bem que tem aquela rebeldia do jovem mesmo,
né? Então, toda hora eles se agitam mesmo.” (SILVIA, é muito rico, né? (PAULA, 50/60 anos; MARÍLIA,
Individual, 40/50 anos, grifo nosso). 20/30 anos, Grupo Centro).

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Pesquisadora: E os seus alunos, você encontrava com positivamente pelos participantes da pesquisa de
eles nas manifestações? Singly, dada a autonomia que pode proporcionar,
Márcia: Ah, não! Eles moram todos por aqui, nem pelo alargamento do espaço urbano transitável.
iam saber chegar lá. Não, são muito novos, não De fato, a independência no deslocamento pela
andam assim pela cidade. (MÁRCIA, Individual, cidade não é um ganho menor: também no nosso
40/50 anos). país, precisar do acompanhamento de responsável
mais velho costuma implicar significativos limites
Movimentos de ocupação de espaços públicos
de possibilidade de circulação pela cidade, dado
que se multiplicaram pelo mundo desde 2011 têm
que a falta de disponibilidade do adulto constitui
trazido para as manchetes de jornais aspectos das
mais um obstáculo para o deslocamento do jovem
relações entre juventude e cidade que vão além da
adolescente pela cidade. Contudo, por certo não é
presença física do ativismo político. Carrano (2003)
o único impedimento para seu livre circular: limites
fala em “cidades educadoras”, lembrando a peda-
de recursos financeiros também colaboram para
gogia cotidiana que tem lugar nesses espaços, para
restringir a autonomia da sua circulação.
além dos muros da escola. Ressalta a heterogenei-
É interessante observar que as Jornadas de
dade e imprevisibilidade das vivências educativas
Junho de 2013 e as movimentações contra o
que resultam de proposições dos planejadores do
aumento da tarifa em 2016 assumem, portanto,
urbano em negociação e confronto com as práticas
demanda central para os jovens mais jovens do
dos atores sociais: “A cidade [...] é um conjunto
nosso país quando reivindicam transporte coletivo
múltiplo de ação coletiva, elaborada em muitas
eficiente e gratuito, ainda que a discriminação
dimensões, plena de significados, construtora de
etária não seja a preocupação primeira do Mo-
identidades e identificações” (CARRANO, 2003,
vimento Passe Livre: “As catracas do transporte
p. 24). As entrevistas que realizamos apontam que
são uma barreira física que discrimina, segundo
a cidade parece mesmo participar dos processos
o critério da concentração de renda, aqueles que
de significação da diferença etária adolescente,
podem circular pela cidade daqueles condenados
podendo empoderar ou limitar a autonomia dos
à exclusão urbana” (MOVIMENTO PASSE LI-
atores assim identificados. Conhecer uma área VRE, 2013, p. 15). Ocorre que, desse modo, as
culturalmente valorizada, como é o caso do centro catracas segregam em especial os jovens adoles-
da cidade, pode ser lido como sinal de maturida- centes que, em grande número, tampouco podem
de – “que às vezes muita gente vai fazer isso na arcar com tais custos, que dobram de valor pela
faculdade e quando vai” (PAULA, Grupo Centro, necessidade do acompanhamento adulto.
50/60 anos) – e poder. Entretanto, para conhecer
essa região é preciso nela morar, pois a circulação
Juventude mais jovem, política na
no espaço urbano é sabidamente problemática. Ou
escola
seja, a cidade também participa das interpelações
que constituem o que costumamos entender por Conforme mencionado, foram recorrentes os
adolescência. relatos de pouca ou nenhuma participação dos
O sociólogo francês François de Singly (2002) estudantes dos anos finais do ensino fundamental
relata pesquisa realizada junto a jovens franceses nas manifestações da greve docente. Registraram-
com idade entre 11 e 13 anos e moradores de cen- -se, nas entrevistas, duas formas de narrar essa
tros urbanos, a respeito da sua mobilidade. Uma ausência: argumentando-se que, pela sua idade,
das conclusões do estudo aponta que, também não tinham interesse em política – ou seja, supondo
naquele país, morar na região central das cidades e naturalizando sua ausência da vida política – e/
tem favorecido uma maior autonomia a seus jovens ou interpretando-a como inviável pelos riscos que
mais jovens, na medida em que lhes permite ter traria para esses jovens adolescentes – neste caso,
acesso a bens culturais diversificados e socialmente supondo e naturalizando a repressão policial e a
valorizados, sem a companhia compulsória de adul- consequente necessidade da sua proteção nesse
tos. Nesse mesmo sentido, o ônibus foi enunciado tipo de situação.

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Ativismo político e juventude: catracas na escola e na cidade para os jovens mais jovens

Contudo, tanto o argumento da não participação Pesquisadora: [risos]..


por desinteresse político quanto o que recorria a Solange: Acontecia com a gente também.
questões de segurança foram desestabilizados em
diversas narrativas produzidas pelas entrevistas, Marília: É, então, assim, eles desceram pra entregar o
abaixo assinado, mas aí a adjunta viu que tava meio
quando se relataram circunstâncias variadas de
confuso, fechou a porta do refeitório, teve gente que
mobilização política estudantil.
não lanchou, eles começaram a gritar: ‘Então a gente
Marília: Teve duas revoltas na escola, e uma delas vai ser liberado, não vai ter reposição coisa nenhu-
eles já chamam de ‘revolta do sal’, que foi logo... ma!’ E aí, nesse dia, eles se organizaram e acabou
No meio das manifestações de junho, que o pessoal que a reposição voltou a ser de oito às quatro, não
tava reclamando muito da comida da escola, e de teve mais. Então, assim, conquistas dos alunos...
fato não tava boa e tal, e aí um dia...
Pesquisadora: Que interessante.
Sonia: Reclamavam porque tinha muito sal. Aí, num
Marília: É, usarem essa ferramenta, né? De luta.
ato de punição, a adjunta, um dia, mandou fazer a
comida sem sal nenhum. Solange: Agora, eles falam, né, a palavra arrancar:
‘Nós conseguimos arrancar do diretor.’ [risos]. (MA-
Marília: E aí, só que isso foi assim... Infelizmente,
RÍLIA, 20/30 anos; SONIA, 30/40 anos; SOLANGE,
pra desgraça deles, foi dois dias depois, sei lá, da
40/50 anos, Grupo Centro).
grande manifestação. Que é que os alunos fizeram?
Chegavam no refeitório, tentavam comer, não con- Há vários outros exemplos possíveis de relatos
seguiam, jogavam tudo fora e foram, e desceram pro de atuação política dos estudantes dos anos finais
pátio. Ah, pra completar, era dia de jogo de amistoso do ensino fundamental que foram registrados nas
do Brasil às três da tarde. Todas as escolas da região
entrevistas e que deslocam o enunciado da impos-
que têm dois turnos iam ser liberadas nesse horário.
E eles, como acaba às quatro, não seriam liberados.
sibilidade da participação política devido a alguma
E aí, quando a gente tá lá embaixo, dali a pouco suposta imaturidade. Narram uma adolescência que
deu meio dia e quarenta, hora de voltar pra sala, busca atuar de forma organizada no espaço-tempo
eles cruzaram os braços e falaram: ‘A gente não vai da cidade em que são autorizados a circular, ainda
voltar não, a gente não almoçou, vai ter aula até as que sob permanente controle, como costuma acon-
quatro, tem jogo do Brasil às três, vai todo mundo ser tecer na escola. E a noção de performatividade leva
liberado.’ Aí o diretor desceu com microfone, toda ao questionamento: estudantes adolescentes não
uma comoção. Eu sei que mandaram subir os alunos atuavam politicamente nas escolas pela sua pouca
até duas horas e às duas horas eles foram liberados.
maturidade intrínseca ou em resposta às interpela-
E aí, enfim, isso foi uma coisa. E a outra foi agora,
né? No retorno da greve, que foi meio... Foi meio, ções que percebiam?
não, foi muito atropelada a decisão sobre reposição, Em uma das entrevistas, a performatividade do
sem consultar toda a comunidade escolar, enfim, uma enunciado da imaturidade adolescente foi particu-
série de coisas. E aí os alunos tavam tendo aula de larmente evidente:
sete às cinco, já que é tempo integral, e não de oito
Pesquisadora: Você notou alguma diferenciação
às quatro. Só que de sete às cinco corre a mesma
por parte deles, na escola, depois do retorno? Você
quantidade de comida, no mesmo calor, no mesmo
trabalha em três escolas, né, em alguma delas...
barulho e aí eles falaram: ‘A gente não dá conta
disso.’ Eles já tavam construindo a argumentação Artur: A gente percebe que eles estão mais aborreci-
deles, montando um abaixo assinado e falavam: ‘Não dos, assim como nós estamos mais aborrecidos. Nós
pode ser como foi na revolta do sal, a gente tem que estamos voltando a fazer esse tipo de movimento,
ter o que falar quando o diretor descer.’ Então eles, mas eles estão alienados em relação a isso, né?
assim, avaliando o processo, foi muito legal, sabe? Mas essa participação popular, a gente percebe que
E aí eles organizaram uma manifestação pra um dia, os alunos estão entendendo mais a situação. Por
que acabou que foi atropelada e aconteceu antes da exemplo, os alunos não queriam aula no sábado
hora. Então os organizadores ficaram chateadíssi- e eles queriam fazer greve: ‘Vamos fazer greve!
mos, e a gente teve que explicar que era parte do Vamos parar! Não vamos ter aula!’ E começaram a
processo. [risos]. fazer um tumulto na sala, na minha sala. Aí eu parei

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com eles e falei: ‘Vamos organizar, que a gente não Quando indagadas sobre o contato com alunos
pode ser desorganizado. Vocês são menores, vocês antes, durante e depois da greve, presencialmente
não podem fazer isso. Se vocês querem fazer isso, (na escola), ou por meio de redes sociais, as do-
precisam da concordância dos pais de vocês.’ Então centes que afirmaram que os alunos dos anos finais
eu orientei que eles conversassem entre eles ali, fiz
do ensino fundamental eram muito jovens para o
uma reuniãozinha, separei os representantes. Os re-
engajamento político também narraram restrições
presentantes desceram, conversaram com a direção.
A direção subiu, entendeu a demanda deles e até na interação com seus alunos, por questões de
mudou o plano que eles tinham lá. Nessa escola, ordem legal, e/ou desvalorizaram essa interação
eles chamaram os pais pra poder conversar sobre a em suas falas.
reposição e o que é que tava acontecendo. (ARTUR, Pesquisadora: É, em relação aos alunos, você disse
Individual, 50/60 anos). que teve que criar a sua página, porque, dada a
O professor enuncia a impossibilidade do ati- utilização geral, né? Em relação aos alunos, você
vismo político do estudante adolescente não ape- contatava os alunos por meio do Facebook?
nas quando a afirma em entrevista (o que fez em Gil: Não, não.
diversas passagens do encontro), como também,
Pesquisadora: Nem no Estado nem no Município?
e sobretudo, quando intervém nessa mobilização
e concorre para efetivar seu enunciado: greve Gil: Não, nem quis. Vou te dizer, eu tive um Orkut
só com autorização dos responsáveis, diálogo durante anos e que eu tinha aquele monte de aluno,
apenas com representantes acompanhados pelo do Município principalmente, do estado, eles tinham
professor. Como não existe regulação legal ou menos contato, mas do Município tinha um monte...
por regimento escolar que autorize ou não a gre- Pesquisadora: No Orkut?
ve discente, quando o professor condiciona essa
Gil: No Orkut. Mas aí era aquele contato muito...
atuação à permissão dos responsáveis, contribui Não tinha nada. Salvo assim, um ou outro ex-aluno
de forma bastante concreta para a desmobilização meu que já tava no nono ano e me perguntava coisa
dos alunos: obviamente, não seria possível conse- do tipo: ‘Vai ter aula amanhã?’, ‘A greve acabou?’
guir tais autorizações em curto prazo, e também Isso, no Orkut, quando eu ainda abria o Orkut. Hoje
nos parece evidente que os estudantes poderiam em dia nem tenho aberto mais. Quem me perguntava
de fato acreditar que dependeriam do aval adulto isso era um aluno meu, que foi meu aluno no sétimo
para fazer greve, posto que a informação lhes ano e agora tá no nono, que entrava pra falar comigo.
foi dada por uma autoridade docente. Quanto à Pesquisadora: Aham.
restrição da negociação aos representantes com
professor, entendemos que se trata de mais um Gil: Mas no geral ficavam só montando, postando
exemplo eloquente de criação de realidade que aquelas bobeirinhas. (GIL, Individual, 50/60 anos).
se supõe descrever, isto é, de um enunciado per- Entretanto, professoras que não afirmavam a
formativo: ao supô-los imaturos, o professor toma pouca idade dos estudantes como impedimento
diversas atitudes que interditam aos estudantes a para a atuação política convergiram na narrativa
oportunidade de não sê-lo, contribuindo, dessa de um tipo de interação que não ignorava alguma
forma, para a criação da realidade que aparentava diferença adolescente que – ainda que por constru-
entender que apenas relatava. ção social e não por qualquer condição da natureza
Contudo, a leitura das entrevistas identificou – impunha cuidados nessa relação, porém não a in-
ainda o que consideramos significativa regularida- viabilizava. Contaram criar perfis específicos para
de, que entendemos sinalizar a força da interpela- contato com seus alunos, em separado daqueles
ção docente no âmbito escolar: a menção à pouca destinados a interações de ordem pessoal.
idade, que justificaria o desinteresse pela política Observe-se que não se registrou, entre as pro-
como tipicamente adolescente, coincidiu com certo fessoras que afirmaram julgar possível uma maior
padrão narrativo referente à atuação das próprias interação com estudantes de menor idade, enuncia-
entrevistadas na greve docente. dos que desvalorizavam esse contato, em crítica a

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Ativismo político e juventude: catracas na escola e na cidade para os jovens mais jovens

uma suposta frivolidade dos interesses desses jo- certo, não está em avaliação. Por exemplo, há que
vens. Em contraste, nas narrativas da inviabilidade se considerar o peso de certas práticas da Secre-
dessa relação, enunciaram-se, de forma recorrente, taria Municipal de Educação do Rio de Janeiro,
evidências do que se identificava como imaturidade antes, durante e depois da greve, que dificultaram
adolescente, flagrantemente negativizadas, como o engajamento político das professoras em coleti-
na última citação do professor Gil. vo organizado nas escolas. Não sendo este o foco
Entendemos que, de um lado, a ocorrência da da pesquisa, o que aqui se sublinha é a recorrente
afirmação da possibilidade de discussão política correspondência verificada nas entrevistas entre
entre professor e estudante jovem adolescente, e, narrativas de ativismo docente coletivo e organi-
de outro, a narrativa da frivolidade do seu interesse zado na própria escola e relatos de engajamento
e/ou da impossibilidade do envolvimento político, político dos estudantes dos anos finais do ensino
sugere o que pode ser interpretado como o poder fundamental.
performativo da interpelação docente: estariam
essas professoras falando de adolescentes por acaso Considerações
bastante distintos entre si ou suas enunciações pro-
duziam os estudantes que aparentavam descrever? Os dois eixos de leitura, propostos a partir da
Outra recorrência narrativa que aponta também perspectiva político-epistêmica da diferença que
nessa direção diz respeito à própria atuação das temos buscado configurar nas nossas pesquisas,
docentes na greve: aquelas que relatavam envol- apontam, portanto, para a força da interpelação do-
vimento dos estudantes adolescentes, na greve ou cente e da própria organização urbana na produção
na escola, quando do retorno às aulas, também da diferença adolescente – no âmbito da pesquisa,
narraram seu próprio engajamento na greve em nem sempre convertida em desigualdade pelas
termos distintos daquelas que afirmavam como narrativas das entrevistadas.
excepcional a participação política dos seus alunos Obviamente, e até por coerência teórica, não se
mais jovens. As primeiras contavam de uma parti- atribui poder de determinação a tal interpelação.
cipação em associação com outras professoras da Não apenas reconhecemos que se trata de processos
sua escola, enfatizando a realização de discussões complexos, de que participam múltiplos vetores em
com seus alunos antes e depois da greve. Ou seja, arranjos contingentes, como também insistimos
esses jovens estudantes, a quem se atribuiu alguma na possibilidade da agência dos envolvidos. Por
possibilidade de atuação política, estiveram ex- exemplo, na seção anterior, citamos a mobilização
postos ao ativismo docente coletivo e organizado: estudantil narrada pelo professor Artur, que inter-
vale lembrar mais uma vez, com Derrida (1991a), pelou os alunos como desautorizados para aquele
que o texto performativo, isto é, o enunciado que engajamento: segundo seu relato, sua intervenção
participa da constituição daquilo que refere, não afetou o movimento, mas percebe-se que não pôde
se restringe à fala e à escrita, incluindo imagens, impedi-lo – “Porque a agência do sujeito não é
gestos, ações, instituições. Em outras palavras, a uma propriedade do sujeito, uma vontade inerente
ação política da professora foi também uma itera- ou liberdade, mas, sim, um efeito de poder, ela é
ção de sentidos do que seria a vida em coletivo. constrangida, porém não aprioristicamente deter-
Na narrativa do ativismo organizado, deslocava-se minada” (BUTLER, 1997, p. 139, tradução nossa).
o enunciado, socialmente predominante, do indi- No entanto, não se nega desse modo que existe
vidualismo e afirmava-se outra possibilidade de potência na interpelação docente, e entendemos que
pertença social, que interpretamos ter tido alguma a educação escolar que se orienta pelo horizonte
repetição por parte dos alunos, quando estes se da democracia radical (MOUFFE, 1996) pode se
engajaram na “revolta do sal” ou se mobilizaram beneficiar da desconstrução dos argumentos que
contra formas de reposição de aulas impostas pelas fundamentam a localização do estudante jovem
direções das escolas. adolescente em espaço-tempo pré-político.
Sabemos, no entanto, que há múltiplos condi- O poder performativo dessa interpelação depen-
cionantes para a atuação política docente, que, por de da sedimentação de uma série de convenções

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Miriam Leite

sociais de sentido que viabilizam sua efetivação. vida à atenção para o espaço-tempo urbano como
Nas entrevistas, observamos que, mesmo entre sede de importantes disputas sociais da atualidade,
professoras que não negavam a potencialidade que incluem, entre inúmeros outros elementos, a
política do estudante jovem adolescente, repetiram- participação na construção social da nossa juven-
-se enunciados que sustentavam as interpelações tude adolescente. Com Negri (2010, p. 208):
que naturalizavam sua distância do ativismo polí- Nós pensamos que a metrópole é um recurso, um
tico. A título de exemplo, destacamos, entre esses recurso excepcional e excessivo, mesmo quando a
enunciados, uma repetição que se expressou pela cidade está constituída por favelas, barracos, caos.
sua ausência: não há registro do termo adultez ou À metrópole não podem ser impostos nem esquemas
similar, embora encontremos muitas ocorrências de ordem, prefigurados por um controle onipotente
das palavras adolescência e juventude – entende- (pela terra e pelo céu através de guerra e polícia),
mos que, desse modo, naturaliza-se determinada nem estruturas de neutralização (repressão, amorte-
normalidade da existência, qual seja, a vida adulta. cimento etc.) que se querem internas ao tecido social.
Assim como não costumamos falar sobre branqui- A metrópole é livre. A liberdade da metrópole nasce
da construção e reconstrução que a cada dia ela opera
dade, tampouco costumamos generalizar em torno
sobre si mesma e de si mesma.
da adultez.
Entre as generalizações enunciadas em torno Das ruas partimos, ao espaço-tempo urbano
da juventude, chamou atenção a pouca divergência retornamos para finalizar esta reflexão.
relativamente ao enunciado do ativismo político Nas cidades, multidões tomaram as ruas de
como característico desse agrupamento etário. Se norte a sul no país, em 2013, para lutar pelo passe
a afirmação da imaturidade política da faixa etária livre e contra o aumento do preço das passagens,
em estudo foi por diversas vezes desconstruída, ocupando-as pelo direito de nelas circular e, desse
a atribuição de ímpeto contestador à juventude modo, revivê-las em bases democráticas mais
encontrou menor dúvida nas falas das entrevis- radicais. Em 2015, jovens estudantes retomam as
tadas. Observe-se que, em ambos os enunciados, ruas de diversas cidades do estado de São Paulo,
compromete-se a agência política em geral: se os em defesa das suas escolas. Em 2016, a mobilida-
adolescentes não têm condições de praticá-la, no de urbana retorna à pauta de movimentos juvenis,
caso dos jovens, narra-se tal engajamento como que, ao gritarem por mudanças, já tratavam de
uma fase, o que, por definição, supõe superação transformar a urbanidade. Inquietam a cidade e
pelo tempo. Identificamos, portanto, na afirma- animam outras movimentações, como lembrado
ção da imaturidade política do adolescente e da pelas entrevistadas.
natureza revolucionária do jovem, uma mesma Todos esses movimentos subvertem o adul-
enunciação performativa, que contribui para afastar tocentrismo que tende a prevalecer nas nossas
o horizonte do ativismo político da sociedade em organizações sociais, inclusive na escola. Jovens
geral e não apenas desses agrupamentos etários. mais jovens demonstram a maturidade política de
Quanto à interpelação pela cidade, materializada que são capazes e nos motivam a trabalhar também
nas interdições à circulação adolescente, propomos pela liberação das catracas etárias construídas pela
como principal conclusão que a reflexão aqui de- performatividade dos enunciados adultocentristas,
senvolvida sobre a condição desse grupo nos con- na cidade e na escola.

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Recebido em: 01/09/2016


Aprovado em: 20/07/2017

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 169-185, maio/ago. 2017 185
Carmen Lúcia Dias; Terezinha Ferreira da Silva Colombo; Alessandra de Morais

A CONVIVÊNCIA NA ESCOLA E O BULLYING


ENTRE ESTUDANTES NOS ENSINOS
FUNDAMENTAL II E MÉDIO

Carmen Lúcia Dias (UNOESTE)∗


Terezinha Ferreira da Silva Colombo (UNESP)∗∗
Alessandra de Morais (UNESP)∗∗∗

RESUMO
Este artigo teve como objetivo analisar as percepções de estudantes de uma escola
particular de Educação Básica sobre o maltrato entre iguais, no que se refere à sua
incidência e características, e oferecer dados prévios de diagnóstico para que possam
ser planejados programas de intervenção voltados para a prevenção e erradicação do
bullying no ambiente educativo. Participaram da pesquisa 508 estudantes, 309 do
Ensino Fundamental II e 199 do Ensino Médio, os quais responderam a um questionário
que avalia o tipo de bullying presente na comunidade educativa. Os resultados
sinalizam que há indícios de situações de maus-tratos na escola pesquisada, sendo
considerável o número daqueles que passam por esse tipo de situação seja como alvo,
agente ou telespectador. Sobre a quem pedem ajuda quando se sentem vitimizados,
observa-se que recorrem mais à família e aos colegas, vários não falam nada a ninguém
e por último pedem ajuda aos professores, apesar de os indicarem como aqueles que
principalmente deveriam fazer algo para solucionar esse problema. A escola precisa
reconhecer a existência do fenômeno para que esteja consciente de seus prejuízos
para a personalidade e desenvolvimento socioeducacional dos estudantes. Também
é necessário instrumentalizar seus profissionais para observação, identificação,
diagnóstico, intervenção e encaminhamentos assertivos.
Palavras-chave: Bullying. Diagnóstico. Convivência escolar. Ensinos Fundamental
II e Médio.

ABSTRACT
COEXISTENCE AT SCHOOL AND BULLYING AMONG STUDENTS IN
ELEMENTARY SCHOOL II AND HIGH SCHOOL
This paper had as purpose to analyze the students’ perceptions, of a private school of


Doutora em Educação e Pós-Doutoranda pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília/SP. Docente do
Mestrado em Educação da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE), Presidente Prudente/SP. Pesquisadora do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM/Unicamp/UNESP). E-mail: [email protected]
∗∗
Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília/SP. Diretora Pedagógica de
Ensino Fundamental II e Médio do Colégio Criativo. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral
(GEPEM/Unicamp/UNESP). E-mail: [email protected]
∗∗∗
Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília/SP. Professora Assistente Doutora
do Departamento de Psicologia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e
Ciências da UNESP, campus de Marília/SP. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM/
Unicamp/UNESP). E-mail: [email protected]

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 187-206, maio/ago. 2017 187
A convivência na escola e o bullying entre estudantes nos ensinos fundamental II e médio

Elementary Education, about the maltreatment among equals, regarding its incidence
and characteristics and, offer previous diagnostic data so that intervention programs
can be planned aiming the prevention and eradication of bullying in the educational
environment. The research participants were 508 students, 309 of Elementary
Education II and 199 of High school, which answered a questionnaire that assess the
type of bullying present in the educational community. The results indicate that there
are indications of maltreatment situations in the researched school, with a considerable
number of those who go through this type of situation being target, agent, or viewer.
Regarding whom they ask for help when feeling victimized, it was observed that
they resort more to family and colleagues, many do not say anything to anyone, and
finally some ask for help to teachers; despite indicate them as those who, mainly,
should do something to solve this problem. The school must recognize the existence
of this phenomenon, being aware of the losses to the personality and socio-educational
development of students. It is also necessary to equip its employees for the observation,
identification, diagnosis, intervention and assertive guiding.
Keywords: Bullying. Diagnosis. Coexistence at school. Elementary School II and
High School.

RESUMEN
LA CONVIVENCIA EN LA ESCUELA Y EL BULLYING ENTRE LOS ESTUDIANTES
EN LA EDUCACIÓN PRIMARIA Y SECUNDARIA
Este artículo tuvo como objetivo analizar las percepciones de estudiantes, de una
escuela privada de Educación Básica, sobre el maltrato entre iguales, en lo que se
refiere a su incidencia y características, y ofrecer datos previos de diagnóstico, para
que puedan ser planeados programas de intervención dirigidos a la prevención y
erradicación del bullying en ambiente educativo. Participaron de la investigación 508
estudiantes, 309 de la Educación Primaria y 199 de la Educación Secundaria, los cuales
respondieron a una encuesta que evalúa el tipo de bullying presente en la comunidad
educativa. Los resultados señalan que hay indicios de situaciones de malos tratos en
la escuela investigada, siendo considerable el número de aquellos que pasan por ese
tipo de situación sea como blanco, agente, o espectador. Sobre a quién piden ayuda
cuando se sienten victimizados, se observa que recurren más a la familia y a los colegas,
varios no hablan nada a nadie, y por último piden ayuda a los profesores; a pesar de
les marcar como aquellos que principalmente deberían hacer algo para solucionar
ese problema. La escuela precisa reconocer la existencia del fenómeno, así que, esté
consciente de sus perjuicios para la personalidad y desenvolvimiento socio educacional
de los estudiantes. También es necesario instrumentalizar sus profesionales para
observación, identificación, diagnóstico, intervención e encaminamientos asertivos.
Palabras-clave: Bullying. Diagnóstico. Convivencia escolar. Educación Primaria y
Secundaria.

Introdução
A violência e a hostilidade vividas entre as transpõem muros adentro servindo de experiências
pessoas na sociedade têm gerado medo e muita que deflagram ainda mais sentimentos de intolerân-
indignação. E a escola não fica excluída de tais cia, de vingança e de dificuldade de compreender
situações lamentáveis, injustas e agressivas que e respeitar o outro.

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Carmen Lúcia Dias; Terezinha Ferreira da Silva Colombo; Alessandra de Morais

Uma pesquisa realizada pelo instituto Data espectro macro e microssociológico, com causas
Popular em parceria com o Sindicato dos Profes- exógenas, relativas ao bairro, ao sistema econômi-
sores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo co, a falhas familiares e falta de políticas públicas;
(2013), após ouvir 1400 professores no primeiro e endógenas, referentes ao interior das escolas, que
semestre de 2013, aponta que dois em cada dez se apresentam com diferentes graus de organiza-
alunos da rede pública paulista admitem já ter co- ção/desorganização local que podem interferir no
metido algum tipo de violência nas escolas. Apesar clima escolar.
disso, a pesquisa revelou que 40% dos docentes, Complementando, Charlot (2005) ressalta uma
81% dos pais e 83% dos estudantes afirmaram que distinção entre a violência, que ataca a lei com o
suas escolas não realizam atualmente nenhuma uso da força ou com a ameaça de usá-la (roubos,
campanha contra a violência. Este fenômeno no vandalismos, crimes etc.), a transgressão, com-
mundo contemporâneo tem merecido destaque portamento adverso ao regulamento interno da
por ser complexo e necessita ser discutido em suas instituição escolar, e a incivilidade, que contradi-
bases, portanto as práticas individuais e coletivas zem a boa convivência (empurrões, humilhações,
que dão espaço e lugar para que possivelmente tal insultos, grosserias, falta de respeito, interpelações
fenômeno ocorra são o ponto de partida para que etc). Há que ressaltar que muitas vezes, hoje, essa
se pense em uma campanha pela paz nas escolas. distinção não se faz nítida, os três tipos podem
Nessa direção, o conjunto de normas de convivên- ser encontrados em comportamentos cotidianos.
cia subjacente ao interior da escola, se analisado Há casos em que a incivilidade quando ocorre
e discutido, poderá revelar meios eficazes para de estudante(s) para estudante de forma agressi-
que se reverta o cenário escolar como produtor e va, intencional, repetidamente e sem motivação
reprodutor de violência. aparente, causando sofrimento ao outro, podendo
Retomando o parágrafo inicial deste texto, configurar-se como bullying, segundo a Associação
conceituar o termo violência faz-se necessário, Brasileira Multiprofissioanal de Proteção à Infância
contudo, esta repercute de forma generalizada em e à Adolescência (COSTA; LIMA, 2011, p. 175).
nossa sociedade e sua abrangência requer amplitude Efetiva-se, portanto, uma forma contundente de
de definição. Desta forma, serão consideradas defi- utilização de poder sobre o outro, intimidando a
nições que abarcam múltiplas dimensões, sendo vítima.
[...] uma delas, os casos que envolvem danos físicos Aquino (1996) questiona se as microviolências
que indivíduos podem cometer contra si próprios ou não estariam sinalizando também uma necessidade
contra os outros. Outra dimensão é o conjunto de legítima de transformações no interior das relações
restrições, que se dá no plano das instituições e que escolares e, em particular, nas relações professor-
impede que os indivíduos usufruam plenamente de -aluno. Não estaríamos diante de um novo sujeito
seus direitos fundamentais, abrangendo, portanto, as histórico, que se recusa a práticas fortemente
modalidades da violência simbólica e institucional. arraigadas no cotidiano escolar, assim como uma
A terceira dimensão corresponde às incivilidades e tentativa de apropriação da escola de outra maneira,
microviolências, que costumam ser as modalidades mais aberta, mais fluída, mais democrática? Corro-
mais recorrentes e comuns no cotidiano. (ABRA-
boramos com o autor que essa é uma questão que
MOVAY, 2005, p. 3).
deve estar presente em todo processo de reflexão
Cano (2005) afirma que a violência pode conjunta da comunidade escolar, bem como da
decorrer de múltiplas formas, dentre elas das família e da sociedade.
relações típicas entre os atores escolares, ou seja, Outro ponto a se considerar é o jovem que carac-
entre professores e alunos e vice-versa, e o que teriza esse novo sujeito. Isso nos leva a pensar num
tem aparecido cada vez mais são as intimidações período de transição entre a puberdade e o estado
exercidas pelos alunos mais fortes sobre os mais adulto do desenvolvimento humano, lembrando
fracos, conhecidas também como bullying. E para que a adolescência é uma construção cultural, cuja
Debarbieux (2002), as pesquisas apontam que presença e forma de manifestação podem variar de
a violência nas escolas deve ser analisada sob o sociedade para sociedade.

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A convivência na escola e o bullying entre estudantes nos ensinos fundamental II e médio

Sob a ótica da psicanálise, Aberastury (1980) da rede pública paulista admitem já ter cometido
nos revela que as modificações psicológicas que algum tipo de violência nas escolas (SINDICATO
ocorrem neste período, correspondentes de mo- DOS PROFESSORES DO ENSINO OFICIAL DO
dificações corporais, levam o adolescente a uma ESTADO DE SÃO PAULO, 2013). Isso nos leva
nova relação com os pais e com o mundo que o a discorrer sobre um tema recorrente que também
rodeia. Isto só se torna possível com a elaboração já se institui no universo escolar, o bullying, objeto
do conflito pela perda de seu corpo infantil, da sua da presente investigação.
identidade infantil.
Todas as modificações corporais incontroláveis, Caracterizando o bullying
como os imperativos do mundo externo, exigem do
adolescente novas pautas de convivência, são vividas Bullying é uma palavra de origem inglesa, utili-
ao princípio como uma invasão. Isto o leva, como zada para se referir a um fenômeno que tem como
defesa, a reter muito dos ganhos infantis, ainda que característica o desejo consciente e deliberado de
também coexistam o prazer e o afã de realmente maltratar outra pessoa e colocá-la sob tensão, o que
ocupar seu novo ‘status’ [...] Estas mudanças, nas inclui o emprego de comportamentos agressivos e
quais perde seu esquema corporal e sua identidade antissociais.
de criança, implicam a busca de uma nova identida- Apesar de em diferentes países poderem ser
de, que se vai construindo em um plano consciente empregados outros termos para conceituar esses
e inconsciente [...] (ABERASTURY, 1980, p. 25). mesmos tipos de comportamentos, no Brasil
Portanto, esse é um período que requer um olhar adotamos o termo que é utilizado na maioria dos
minucioso às relações que se estabelecem entre países: bullying.
os jovens, entre estes e o mundo adulto nas mais Bully, enquanto nome, é traduzido como ‘valentão’,
diversas instâncias. ‘tirano’, e como verbo, ‘brutalizar’, ‘tiranizar’,
Esse olhar cuidadoso não levaria à ausência de ‘amedrontar’. Dessa forma, a definição de bullying,
conflitos? Por certo que não! A não-violência, que é compreendida como um subconjunto de comporta-
a paz requer, “considera o conflito como estando mentos agressivos sendo caracterizado por sua natu-
no cerne das relações entre as pessoas e entre os reza repetitiva e por desequilíbrio de poder [...] sem
grupos humanos” (TOGNETTA, [2002], p. 109). motivação evidente adotado por um ou mais alunos
A princípio o conflito pode ser resultante das rela- contra outro(s), causando dor, angústia e sofrimento
ções humanas como meio de desenvolvimento; por [...] levando-os à exclusão, além de danos físicos,
outro lado, uma sociedade baseada em relações de morais e materiais [...] (FANTE, 2005, p. 28-29).
poder que privilegiam a competição, a ambição, o Díaz-Aguado (2006, 2015) define o bullying
egoísmo, a falta de diálogo, entre outros, pode levar escolar como um tipo específico de violência entre
à violência propriamente dita. E isso se repercute pares, que um aluno pode sofrer ou exercer em
em todas as instâncias sociais, entre as quais a determinado momento, que contempla quatro ca-
instituição escolar. racterísticas, as quais qualificam sua gravidade: 1)
Rigorosamente falando, o poder não existe; existem abrange diferentes tipos de condutas: provocações,
sim práticas ou relações de poder. O que significa ameaças, intimidações, agressões físicas, isola-
dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, mento sistemático, ofensas, dentre outras; 2) não
que funciona. E funciona como uma maquinaria, se restringe a um acontecimento isolado, repete-se
como uma máquina social que não está situada em e prolonga-se durante certo tempo, produzindo-se
um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina em contextos nos quais as pessoas são obrigadas
por toda a estrutura social e não é um objeto, uma coi- a se encontrar frequentemente, como na escola; 3)
sa, mas uma relação (FOUCAULT, 1997, p. 26-27). é provocado por um indivíduo, na maior parte das
Não raro, temos assistido episódios de violência vezes, apoiado pelo grupo, tendo como alvo uma
nas escolas e, como mencionado acima, em pes- vítima que se encontra indefesa e não consegue
quisa realizada em 2013, dois em cada dez alunos por si mesma sair da situação; 4) a situação tende

190 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 187-206, maio/ago. 2017
Carmen Lúcia Dias; Terezinha Ferreira da Silva Colombo; Alessandra de Morais

a se manter devido à ignorância ou passividade das Esses fenômenos discutidos até o momento de-
pessoas que circundam os agressores e as vítimas, vem ser colocados em perspectiva, pois, de acordo
sem intervirem de modo direto. com Debarbieux (2002), esta será uma forma de
Assim, fazem parte desse fenômeno três catego- gestores institucionais, professores, famílias e go-
rias (FANTE, 2005): as vítimas, os agressores e os vernantes responsáveis pela promoção de políticas
espectadores. As vítimas podem ser caracterizadas públicas destinadas a esse fim garantirem medidas
como: vítima típica, considerada frágil, pouco soci- de prevenção adequadas. O autor acredita que se
ável, que sofre repetidamente com comportamentos qualquer tipo de violência é construída, então ela
agressivos de outros e não dispõe de recursos para poderá ser desconstruída, sendo previsível, pois
reagir ou cessar as condutas do agressor; vítima foi construída socialmente. E ainda, os atores, ao
provocadora, que se caracteriza como aquela que contrário do que se imagina, não são impotentes,
atrai reações agressivas pelo seu modo de agir no ou mesmo manipulados por forças externas, con-
grupo, como pessoa de costumes irritantes, cau- tudo, dependem de um olhar adulto que promova a
sando tensões no ambiente e sendo ineficaz para rejeição às ameaças ou às agressões que acontecem
lidar com as agressões sofridas; vítima agressora, no dia a dia escolar.
aquela que reproduz o que sofreu, que procura “bo- Preocupados com a manifestação dos diferen-
des expiatórios”, indivíduos mais frágeis que ela, tes tipos de violência (bullying, microviolências,
na tentativa de transferir os maus-tratos sofridos. incivilidades etc.), autores de diversos países,
O agressor é aquele que vitimiza os mais fracos e como Abramovay (2005), Avilés Martinez (2013),
expressa pouca empatia. Geralmente se apresenta Debarbieux (2002), Díaz-Aguado (2015), Fante
mais forte física e/ou psicologicamente que seus (2005), Fernández (2005), Ruotti, Alves e Cubas
companheiros de classe e suas vítimas, podendo (2006) e Tognetta e Vinha (2011), vêm discutindo
ser da mesma idade ou um pouco mais velho. Já e propondo ações norteadoras e experiências que
o espectador apenas assiste as manifestações do podem contribuir com os membros da comunidade
agressor sem praticá-las, convive com o problema escolar no auxílio de soluções mais apropriadas
adotando a lei do silêncio, por medo de se trans- para a realidade de cada escola. É prática recorrente
formar em alvo para o agressor; contudo, mesmo entre os autores a indicação de um levantamento
não sofrendo as agressões, se sente inseguro e diagnóstico que aponte e descreva os tipos de
incomodado. violência que ocorrem na instituição, isso para a
Novos paradigmas estão sendo construídos tomada de decisão quanto à solução e prevenção
acerca das formas de violência (AVILÉS MAR- de tais conflitos.
TÍNEZ, 2013), destacando-se dentre outros, o Fante (2005) sinaliza a importância da re-
cyberbullying, como uma maneira de agressão não flexão pedagógica voltada para a temática dos
presencial, utilizando mensagens, páginas da web, valores humanos (a ética, a moral e a cidadania),
gravações ou e-mail e ferramentas disponíveis na visando à constituição de um trabalho que permi-
internet para amedrontar, difamar, humilhar, ame- ta que os indivíduos vivenciem situações em que
açar e ridicularizar as vítimas. Este meio parece o respeito, a tolerância, a cooperação sejam pano
ser mais viável e seguro para o agressor, que se vê de fundo das relações interpessoais rumo a uma
protegido para as suas investidas contra a vítima educação para a paz. Com relação ao fenômeno
que recebe o maltrato à distância; o bullying ho- bullying, Fante e Pedra (2008) acreditam que a
mofóbico, que se caracteriza pela prática ofensiva prevenção começa pelo conhecimento. A escola
contra as pessoas que se diferenciam quanto à precisa reconhecer a existência do fenômeno
orientação sexual; e o bullying racista que poderá para que esteja consciente de seus prejuízos
ocorrer com sujeitos de outras etnias ou minorias para a personalidade e desenvolvimento socio-
por meio de insultos ou agressões racistas. Portanto, educacional dos estudantes. Também é preciso
o fenômeno bullying, mediante sua intensidade, instrumentalizar seus profissionais para obser-
poderá causar no indivíduo prejuízos de ordem vação, identificação, diagnóstico, intervenção e
intelectual, emocional e social. encaminhamentos assertivos, e conduzir o tema

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A convivência na escola e o bullying entre estudantes nos ensinos fundamental II e médio

à discussão com a comunidade escolar, traçando Art. 4o Constituem objetivos do Programa


estratégias preventivas capazes de fazer frente referido no caput do art. 1o:
ao fenômeno. Além do engajamento de todos,
I - prevenir e combater a prática da intimidação
é preciso contar com a ajuda de consultores sistemática (bullying) em toda a sociedade;
externos, como especialistas no tema, psicó-
logos e assistentes sociais. É imprescindível II - capacitar docentes e equipes pedagógicas para a
implementação das ações de discussão, prevenção,
o estabelecimento de parcerias com conselhos
orientação e solução do problema;
tutelares, delegacias da Criança e do Adoles-
cente, promotorias públicas, vara da Infância III - implementar e disseminar campanhas de edu-
e Juventude, promotorias da Educação, dentre cação, conscientização e informação;
outros (FANTE; PEDRA, 2008). IV - instituir práticas de conduta e orientação de pais,
Tognetta (2011) afirma que a qualidade do familiares e responsáveis diante da identificação de
ambiente sociomoral se configura como uma das vítimas e agressores;
questões primordiais para se levar em conta no pro- V - dar assistência psicológica, social e jurídica às
cesso de implantação de proposta “antibullying”. vítimas e aos agressores;
Para que esse ambiente seja de qualidade, a autora VI - integrar os meios de comunicação de massa com
sugere que se abra espaço para que meninos e me- as escolas e a sociedade, como forma de identificação
ninas verbalizem seus pensamentos e sentimentos e conscientização do problema e forma de preveni-lo
na resolução de conflitos. e combatê-lo;
Vinha e colaboradores (2011) apontam o cír-
VII - promover a cidadania, a capacidade empática
culo restaurativo na escola como estratégia de e o respeito a terceiros, nos marcos de uma cultura
intervenção para a resolução de conflitos. Cabe de paz e tolerância mútua;
esclarecer que ele advém do âmbito jurídico, a
VIII - evitar, tanto quanto possível, a punição dos
justiça restaurativa. Os círculos restaurativos,
agressores, privilegiando mecanismos e instrumen-
no contexto educativo, dão o direito à fala e à tos alternativos que promovam a efetiva responsa-
melhoria dos relacionamentos e o fortalecimento bilização e a mudança de comportamento hostil;
de laços comunitários, com foco na reparação
IX - promover medidas de conscientização, pre-
de danos, na autorresponsabilização e na parti-
venção e combate a todos os tipos de violência,
cipação efetiva de todos os envolvidos: alunos, com ênfase nas práticas recorrentes de intimidação
professores, comunidade, família e rede de apoio. sistemática (bullying), ou constrangimento físico
As autoras indicam que os círculos restaurativos e psicológico, cometidas por alunos, professores e
acontecem em três momentos distintos: o pré- outros profissionais integrantes de escola e de comu-
-círculo, em que as partes são ouvidas de forma nidade escolar. (BRASIL, 2015, p. 1).
individual pelos mediadores ou facilitadores; o Observa-se que essa lei, com sua importância e
círculo, momento em que cada parte pode colocar suporte para a efetivação de ações proativas, não
seus sentimentos em relação ao ocorrido e esta- garante por si só a erradicação da violência, visto
belecer compromisso de resolução e reparação que ainda é preciso a constituição de uma cultura
do conflito, e que seja bom para os envolvidos; antiviolência, que poderá ser fomentada pela edu-
o pós-círculo, que ocorre por volta de um mês cação desde o ensino infantil.
após a realização do círculo, para verificação do É, portanto, a base moral que devemos trabalhar
cumprimento dos fatos acordados. se quisermos erradicar a presença do bullying e ter
Complementando essas ações, no Brasil foi garantias suficientes de sucesso. Avilès Martinez
publicada, no Diário Oficial da União, a Lei nº (2013) assegura que para uma prática efetiva de
13.185/2015, sancionada pela Presidente da Re- combate à violência e ao abuso de poder será ne-
pública, que obriga escolas e clubes a adotarem cessário um trabalho conjunto com a sociedade, a
medidas de prevenção e combate ao bullying. família e a escola.

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Carmen Lúcia Dias; Terezinha Ferreira da Silva Colombo; Alessandra de Morais

Educação moral: um caminho para a aula como ambiente democrático que proporcione
convivência de paz todas essas vivências.
Nessa direção, com a intenção de se construir
Ao iniciarmos este tópico, ressaltamos como escolas cada vez mais democráticas, Puig (2004,
ponto de reflexão o papel da escola numa proposta p. 95) nos apresenta as práticas morais, dentre as
de educação para a paz. Num primeiro momento, quais as procedimentais, que são “todas aquelas
cabe repensar o contexto escolar e como este pode situações que convidam ao diálogo, à compreensão
suprir e otimizar espaços para que os protagonistas e ao intercâmbio construtivo de razões”. Estas se
se desenvolvam de forma autônoma e aprendam a apresentam em assembleias de classe, resolução de
conviver, a respeitar o outro. Para isso, conflitos e a mediação escolar, sessões de debate,
[...] é preciso ensinar os alunos a pensar, e é im- consideração de questões curriculares e vitais,
possível aprender a pensar num regime autoritário. discussão de dilemas, exercícios de role playing
Pensar é procurar por si próprio, é criticar livremente (dramatização) e os exercícios de compreensão
e é demonstrar de forma autônoma. O pensamento crítica.
supõe o jogo livre das funções intelectuais e não o Outras estratégias para não violência são apre-
trabalho sob pressão e a repetição verbal [...] uma sentadas por Díaz-Aguado (2015), que nos aponta a
educação do pensamento, da razão e da própria ló-
aprendizagem cooperativa como uma possibilidade
gica, é necessária e condição primeira da educação
da liberdade. (PIAGET, [2002], p. 122-123).
de se praticar valores democráticos, tais como to-
lerância, igualdade e respeito mútuo. Esses valores
Ainda para Piaget [2002], essa educação da caracterizam-se como antítese do bullying e devem
liberdade intelectual pressupõe a cooperação entre ser incorporados como conteúdo de ensino e de
pares e a livre discussão que encaminhe para edu- aprendizagem. De acordo com a autora, os alunos
car o espírito crítico do aluno, ou seja, deve haver se beneficiam com a aprendizagem cooperativa,
o exercício de uma vida social na própria escola tanto no que diz respeito aos conteúdos, como em
que favoreça a autonomia moral e a liberdade de relação à educação em valores. Nesses estudos,
pensamento. Díaz-Aguado (2015) mostra também que, para se
Cabe esclarecer que para se falar em mudança prevenir o bullying escolar, é necessário que se
no seio da escola é imprescindível dizer dos ato- elimine as situações de exclusão do protagonismo
res que dela fazem parte, quais sejam, gestores, escolar, ou seja, quanto maior for o contato dos
professores, alunos, funcionários e famílias. Esses sujeitos e a convivência com valores de respeito
personagens constituem a cultura escolar e é com mútuo, empatia e não violência, maior será a
eles que se conta com a mudança para a cultura da probabilidade de que a prevenção ao bullying seja
não violência. Ferramentas são necessárias para que eficiente.
se inicie esse processo como, por exemplo, um in- Os recursos supracitados para uma educação
vestimento da escola que incentive e dê a formação para a paz, embora sejam eficazes no combate à
continuada em serviço dos professores; crie espaços violência, só serão consolidados desde que façam
para discussões coletivas que envolvam a equipe parte da cultura escolar, com o envolvimento da
escolar e a comunidade para que juntos busquem comunidade escolar, com projetos que possam
alternativas para enfrentamentos/resolução de seus favorecer a autonomia moral dos educandos e um
conflitos (TOGNETTA et al, 2010). clima escolar favorável a uma convivência mais
Já dizia Piaget (1998), em 1932, que a escola democrática, na qual prevaleça o respeito, a coo-
é lócus privilegiado para que a criança aprenda a peração, a justiça e a solidariedade.
conviver, tendo em vista ser este espaço constituído
por seus pares. Nessa perspectiva, adentrar-se-á
Objetivos e justificativa
no espaço das atividades escolares, a sala de aula
propriamente dita, como meio de vivenciar noções Este estudo tem como objetivo analisar as
morais que contemplem a cooperação, a solidarie- percepções de estudantes de uma escola particular
dade, o respeito mútuo, a justiça, enfim, a sala de de Ensino Fundamental II (EF II) e Ensino Médio

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A convivência na escola e o bullying entre estudantes nos ensinos fundamental II e médio

(EM) sobre o maltrato entre iguais, no que se Esse tipo de diagnóstico possibilita abordar o
refere à sua incidência e características. Tem-se bullying como um fenômeno que deve ser reconhe-
também o intuito de oferecer à escola investigada cido, analisado e com relação ao qual é necessário
dados prévios de diagnóstico, para que possam um posicionamento moral. A comunidade escolar
ser planejados programas de intervenção voltados deve posicionar-se diante dessa realidade, o que
para a prevenção e erradicação do bullying no am- facilitará e contribuirá para a adoção de posturas
biente educativo. Além disso, visa contribuir para morais aceitáveis no grupo. De acordo com Avilés
a construção de conhecimentos sobre recursos de Martínez (2013), construir um projeto “antibllying”
avaliação que podem ser empregados no ambiente no âmbito da comunidade educativa requer o
educativo, seja por profissionais da escola, seja por desenvolvimento de diversas etapas e respostas
pesquisadores, com o intuito de se identificar esse a diferentes questões, e uma das etapas que mais
tipo de violência e conhecer suas peculiaridades e exige realismo e sinceridade é aquela em que são
formas de manifestação. analisadas as necessidades da comunidade com
De acordo com Avilés Martínez (2013), a apro- relação ao bullying.
ximação ao fenômeno do maltrato entre iguais nos É imprescindível apreciar a situação própria de
diferentes contextos escolares requer um processo cada escola para se compreender suas necessidades
de reflexão, informação, formação e planejamen- sobre a violência e o bullying e, então, construir
to. Portanto deve-se ter como ponto de partida o recursos para sua prevenção e erradicação. Por
conhecimento da realidade da comunidade edu- conseguinte, somente por meio do diagnóstico é
cativa, o que propiciará informações básicas para possível levantar tais dados e planejar ações, e para
a construção de iniciativas para que o bullying que estas sejam projetadas é preciso identificar o
seja combatido. Desse modo, antes de se iniciar que se quer mudar, sobre o que se quer atuar. Do
qualquer intervenção, faz-se necessário colocar em mesmo modo, o diagnóstico também é importante
ação ferramentas de diagnóstico que possibilitem para que sirva de referência para a avaliação das
investigar a qualidade e quantidade do que está intervenções implantadas na escola, pois fornecem
ocorrendo na escola, no que se refere ao bullying, indicadores, e quando sistematizado, é um recurso
para que sejam analisadas as necessidades da co- que permite mensurar o grau com que os objetivos
munidade escolar e, então, possam se planejadas das ações implantadas estão sendo cumpridos,
intervenções que consigam reduzi-lo: “Portanto, a se as estratégias devem ser potencializadas ou
análise de necessidades precede a qualquer mudan- modificadas.
ça” (AVILÉS MARTÍNEZ, 2013, p. 23). Enfim, Avilés Martinez (2013) apresenta di-
O autor explicita ainda que a realidade da co- versos pontos que justificam a relevância de se
munidade educativa pode ser analisada em duas realizar um levantamento de necessidades antes
esferas: a do projeto pedagógico da escola, no que de se dar início a ações interventivas, a saber: leva
se refere à sua orientação educativa, à importância os membros da comunidade escolar a assumirem
que se dá à convivência e à qualidade das relações de algum modo uma postura diante da violência e
interpessoais; e a da situação em que a escola e a do bullying; promove uma sensibilização, reflexão
comunidade educativa se encontram, a respeito do e, até mesmo, conscientização; permite avaliar o
tratamento do bullying, quais aspectos da escola quanto de bullying e de que tipo está ocorrendo na-
já são favoráveis em seu combate e quais vão ao quele contexto; possibilita que se conheça em que
encontro do objetivo de sua erradicação (AVILÉS ponto a escola está com relação a esse fenômeno, a
MARTÍNEZ, 2013). partir do qual deverá partir para intervir; e oferece
Múltiplas são as formas para se realizar tais “um ponto de coesão e de identificação” para a
avaliações; focalizaremos neste estudo esse segun- comunidade escolar, sobre o qual será trabalhado
do aspecto, em especial aquele que diz respeito à algo em comum e que implique a todos.
situação que a escola se encontra no que se refere Nessa direção, esta pesquisa procura responder
a esse fenômeno, em especial à sua incidência e às perguntas: Quais são os problemas específicos a
características. respeito do bullying entre alunos que a escola parti-

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Carmen Lúcia Dias; Terezinha Ferreira da Silva Colombo; Alessandra de Morais

cipante apresenta? Que tipo de bullying acontece? entre os alunos, objetivando avaliar que tipo de
Em que medida? Onde ocorre? Quem o sofre? O bullying existe na comunidade educativa e de que
que é feito? As vítimas têm possibilidades de contar qualidade é. Tal instrumento é do tipo autoinforme,
o que está acontecendo? Veem possibilidades de o que, segundo Avilés Martinez (2013), tem sido
mudanças a respeito? Que iniciativas a escola po- um meio bastante empregado pelos estudiosos para
deria empregar para sua prevenção e erradicação? se investigar a incidência do bullying na escola.
Assim, buscamos conhecer, a partir da percep- É composto por doze questões, com diferentes
ção de alunos, a realidade de uma determinada alternativas de respostas, que avaliam as seguintes
comunidade educativa sobre o bullying, aspecto es- dimensões: as formas de intimidação entre iguais na
sencial para viabilizar a participação dos membros escola; as situações sobre como e onde se produz o
da comunidade escolar no processo de reflexão, maltrato; as percepções da vítima sobre o maltrato,
formação, decisão e atuação contra esse fenômeno. incluindo frequência e duração; as percepções do
Também visamos contribuir para a produção de agressor; as percepções dos espectadores; e as
conhecimentos a respeito de formas de diagnóstico propostas apresentadas pelos alunos para a solução
que podem ser realizados nesse sentido. desse problema.
O questionário foi aplicado no segundo semestre
Percurso metodológico de 2015, em sala de aula, e preenchido individu-
almente por cada aluno participante. O tempo de
A pesquisa realizada é de nível exploratório, de aplicação foi de aproximadamente 40 minutos.
abordagem quantiqualitativa e do tipo Estudo de Para o tratamento dos resultados foi utilizado
Caso Intrínseco, uma vez que o interesse se voltou o software SPSS© Statistics Version 19,0 (IBM,
para um caso particular (ANDRÉ, 2008; GAM- 2010), sendo que os dados foram descritos e ana-
BOA, 2003; GIL, 2012). Buscou-se investigar a lisados por meio de frequência absoluta e frequ-
avaliação das situações de maus-tratos entre iguais ência relativa, destacando-se que em vários casos
no ambiente escolar, a partir da percepção de alunos os respondentes poderiam assinalar mais de uma
de uma escola particular de Educação Básica, mais alternativa de resposta em uma mesma questão,
especificamente em uma das unidades que abrange o que fez com que a soma total das categorias de
o Ensino Fundamental (EF II) – 6º ao 9º ano – e o respostas ultrapassasse 100%. Procurou-se ainda
Ensino Médio (EM), que possui um total de 574 verificar se as percepções dos alunos se associavam
alunos. Participaram da pesquisa todos aqueles ao nível de ensino (EF II ou EM), utilizando-se o
alunos que concordaram de modo voluntário, Teste Qui-quadrado e, em tabelas 2 x 2, a Prova
atingindo-se a amostra de 508 estudantes, o que Exata de Fisher, considerando o nível de signifi-
equivale a 88% do total de matriculados na escola cância de 0,05.
nos níveis de ensino pesquisados. Este estudo faz
parte de um projeto maior, que tem como temática Resultados e discussões
a melhoria da convivência e do clima escolar na
escola, tendo sua aprovação pelo Comitê de Ética Responderam ao questionário 508 estudantes:
em Pesquisa da instituição ao qual se vincula (CAE 309 (61%) do EF II e 199 (39%) do Ensino Médio.
46505415.8.0000.5406; parecer 1.247.109). A distribuição dos alunos por ano/série em cada
O instrumento utilizado para avaliar as percep- nível de ensino foi de: no EF II, 73 alunos (24%)
ções de alunos foi baseado naquele apresentado do 6º ano, 72 (23%) do 7º ano, 80 (26%) do 8º ano
por Avilés Martinez (2013, p. 70-73), cujo nome é e 84 (27%) do 9º ano; e no EM, 81 (41%) na 1ª
“Questionário sobre pré-concepções de intimidação série, 58 (29%) na 2ª série e 60 (30%) na 3ª série.
e maltrato entre iguais – PRECONCIMEI (Folha Com relação ao gênero, a amostra não apre-
de resposta para os alunos)”, o qual foi adaptado sentou diferenças significativas na distribuição
por Avilés Martinez (2013) com base no elaborado entre meninos e meninas, de modo que no total
por Ortega, Mora-Merchán e Mora (s/d). Consiste participaram 260 meninos (51,2%) e 248 meninas
em um questionário que tem como foco o maltrato (48,8%). No EF II contou-se com 161 meninos

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A convivência na escola e o bullying entre estudantes nos ensinos fundamental II e médio

(52,1%) e 148 (47,9%) meninas, e no EM, com frequência relativa (porcentagem). Para cada cate-
99 meninos (49,7%) e 100 meninas (50,3%). A goria investigada, as diferenças que apresentarem
média de idade no EF II foi de 12,2 anos; no EM, significância na Prova Exata de Fisher, para p<0,05,
de 15,6 anos. serão sinalizadas com a legenda “(SIG)”. No caso
Na sequência apresentaremos os dados co- do Teste Qui-quadrado, seu valor e significância
lhidos por meio do questionário de percepção serão apontados no próprio texto.
sobre o bullying, com o intuito de compararmos No Gráfico 1, podem ser observadas as respos-
as respostas dos alunos do EF II com as dos EM, tas referentes à dimensão Formas de intimidação
em que os dados serão apresentados em termos de entre iguais.

Gráfico 1 – Quais são, na sua opinião, as formas mais frequentes de maltrato entre colegas?

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

Tal como pode ser visualizado no Gráfico 1, as anos e com o surgimento de habilidades verbais e
formas mais frequentes de maltrato apontadas pelos de uma maior autorregulação por parte da criança,
estudantes, tanto do EM como do EF II, foram: “rir há uma redução das agressões físicas e aumento das
de alguém, ridicularizar”, “insultar, dar apelidos”, agressões verbais, apresentando-se, então, mudan-
“rejeitar, isolar, não se enturmar com alguém, não ças nas formas de agressão nas relações interindi-
deixar participar” e “falar mal de alguém”, sendo viduais. Esse tipo de manifestação vai ao encontro
que, em todas essas categorias de maus-tratos, o do apresentado por Marques (2015) no referente às
EM demonstrou maior ocorrência do que o EF II, estratégias de resolução de conflitos utilizadas por
e na maioria delas de modo significante. Compa- crianças, pré-adolescentes e adolescentes, em que
receram, ainda, apesar de em menor frequência, as é possível visualizar padrões que se diferenciam
situações de “fazer dano físico” e “ameaçar, fazer ao longo do desenvolvimento. Na criança são en-
chantagem, obrigar a fazer as coisas”, em que os contradas estratégias físicas e impulsivas, as quais
alunos do EF II apontaram de modo mais signifi- são menos elaboradas por evidenciarem uma maior
cante esses fatos do que os estudantes do EM. dificuldade no controle dos impulsos, assim como
Observa-se que esses resultados apontam uma de verbalização de ideias e sentimentos e de se co-
relativa diferença entre os pré-adolescentes e ado- locar na perspectiva do outro. Nos indivíduos mais
lescentes nas manifestações das formas de maus- velhos há uma diminuição da impulsividade e os
-tratos, com predominância verbal para os últimos desejos podem ser demonstrados de modo verbal
e danos físicos para os primeiros. Segundo Oliveira e não mais fisicamente. Contudo, nessas situações
(2012), estudiosos indicam que, com o passar dos de maus-tratos, mesmo que seja de modo mais so-

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cial, verbal e menos confrontativo, ainda pode ser os cuidados e atenção para tais casos.
identificada a dificuldade de se colocar no lugar do Com relação à dimensão Situações sobre como
outro, empaticamente falando, uma vez que expres- e onde se produz o maltrato, no Gráfico 2 são
sa o desrespeito pelos sentimentos, pensamentos e apresentados os locais em que essas têm maior
direitos alheios, fazendo-se necessários, também, ocorrência, segundo os alunos.

Gráfico 2 – Em que lugares costumam acontecer essas situações de intimidação?

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

De acordo com os dados apresentados no dois níveis de ensino, foram: “nos corredores da
Gráfico 2, os locais nos quais mais ocorrem as escola”, “na rua” e “perto da escola, na saída”.
situações de intimidação, tanto no EF II como no E em menor frequência: “nos banheiros” (com
EM, são: “na sala de aula, quando não tem nenhum maior indicação, e com diferença estatisticamente
professor”, “no pátio, quando não tem nenhum significante, no EF II) e “no pátio, na presença de
professor” e “em sala de aula, na presença de al- algum professor”.
gum professor”. Observa-se, porém, que “no pátio, Ainda nessa dimensão, questionou-se acerca
quando não tem nenhum professor”, a ocorrência de quem da escola costumava parar as situações
foi maior e estatisticamente significante no EF II. de maltrato. No Gráfico 3 podem ser visualizadas
Outros lugares também citados, em seguida, nos as respostas a tal pergunta.
Gráfico 3 – Quem costuma parar as situações de intimidação?

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

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A convivência na escola e o bullying entre estudantes nos ensinos fundamental II e médio

O que podemos verificar, com base no Gráfico de regulação de hábitos e costumes na convivência
3, é que comparecem, com frequências próximas, do grupo. O autor ressalta ainda os incidentes de
as categorias: “não sei”, “ninguém”, “algum profes- gozação, ridicularização, agressão física ou verbal,
sor/alguma professora”, “alguns colegas/algumas ameaças, dentre outros, que denotam foco repetido
colegas” e, em menor frequência, “outros adultos”. contra uma pessoa ou algum traço físico perten-
Apesar de não serem encontradas diferenças sig- cente a esta e que possam caracterizar maltrato
nificantes entre os dois níveis de ensino, há uma contínuo ou bullying. Com esses resultados ainda
tendência maior de os alunos do EM não receberem não é possível afirmar que as situações percebidas
auxílio dos adultos para resolverem essas situações. e relatadas pelos participantes configuram bullying,
Mesmo assim, tanto no EF II como no EM, se jun- pois ainda não temos dados suficientes para afirmar
tarmos as categorias “não sei” e “ninguém”, vemos que contemplam aquelas características presentes
que há pouca interferência dos adultos nessas situ- nesse tipo de conduta (ser entre pares; ter a inten-
ações, assim como dos próprios colegas, apesar de cionalidade de ferir o alvo; ser recorrente; e contar
no EM haver uma tendência maior de os amigos com a presença de espectadores/pares), porém,
procurarem cessá-las. com os resultados adiante, podemos visualizar sua
Durante a convivência escolar, o conflito pode aproximação com esses aspectos.
ser resultante das relações humanas como meio de Nessa direção, primeiro apresentaremos os
desenvolvimento; por outro lado, parece que essas dados das três seguintes dimensões: as percepções
situações de maus-tratos acontecem inclusive em da vítima sobre o maltrato, incluindo frequência e
presença de adultos, de professores dando aula. duração; as percepções do agressor; e as percep-
Avilés Martinez (2013) ressalta a importância ções dos espectadores, para depois discuti-los em
de que o professor exerça a observação do que conjunto.
acontece no grupo, diferenciando: situações que Assim, a próxima dimensão avaliada foi a relati-
podem ser provocadas pela desmotivação e apatia va à vitimização, uma vez que aborda a Percepção
dos alunos ligadas à prática educativa do docente; da vítima com relação aos maus tratos. No Gráfico
situações de confronto às normas e à autoridade 4 apresentamos o primeiro aspecto investigado,
docente; incidentes decorrentes de falta de normas e concernente à frequência com a qual o respondente
de respeito, situações de conflitos, ausência ou falta sentiu-se intimidado por colegas de sua sala.

Gráfico 4 – Quantas vezes, nessa turma, você foi intimidado ou maltratado por alguém ou
alguns de seus colegas?

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

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Carmen Lúcia Dias; Terezinha Ferreira da Silva Colombo; Alessandra de Morais

Por meio do Gráfico 4 é possível identificar desde quando isso ocorria. A maioria dos alunos
que a maioria dos alunos relata que “nunca” assinalou a categoria “ninguém me intimidou,
foi intimidada por colegas da turma, sendo nunca” (67,6% no EF II e 80,9% no EM). Com
decrescente a frequência com a qual os alunos bem menor frequência comparecem as demais
apontam a ocorrência desse tipo de situação, categorias, na seguinte ordem decrescente: “há
apresentando como segunda maior indicação a pouco tempo, há algumas semanas” (14,2% no
categoria “poucas vezes”, depois “muitas vezes/ EF II e 6% no EM), “desde pequenos” (7,1% no
quase todo dia, quase sempre”. Assim, observa- EF II e 6% no EM), “desde sempre” (6,5% no
-se que são menos frequentes as situações em EF II e 2,5% no EM) e “durante todo o curso”
que os alunos tenham se sentido intimidados (1,9% no EF II e 2% no EM). Observa-se que
“muitas vezes/quase todo dia, quase sempre”. na primeira categoria, “ninguém me intimidou,
Por outro lado, constata-se que ainda há esses nunca”, a frequência é maior entre os alunos de
casos, os quais são mais frequentes no EF II do EM, ao passo que nas demais, com exceção da
que no EM, ao passo que a indicação de que a categoria “durante todo o curso”, a maior frequ-
situação de maltrato “nunca” aconteceu com o ência aparece entre os alunos de EF II, sendo as
respondente é mais frequente no EM. Destaca- diferenças estatisticamente significantes (X2 =
-se que tais diferenças foram estatisticamente 14,40; p<0,05).
significantes (X2 = 11,50; p<0,05). Ainda nessa dimensão, os respondentes foram
Em seguida foi perguntado se no caso de terem indagados se, no caso de se sentirem intimidados,
sido intimidados alguma vez por algum colega, recorriam a alguém para falar a respeito (Gráfico 5).

Gráfico 5 – Se alguém lhe intimida, você fala com alguém a respeito do que está acontecendo?

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

Tal como pode ser observado no Gráfico com ninguém, sendo que a escolha de contar ao
5, a maioria dos alunos assinalou a categoria professor acontece em último caso. Verifica-se,
“ninguém me intimida”, sendo maior e estatisti- ainda, que os alunos do EF II recorrem mais ao
camente significante a indicação entre os alunos compartilhamento dessas situações com outras
do EM. Por outro lado, compareceram também pessoas do que os de EM.
as demais categorias, que revelaram que, no caso No Gráfico 6 são apresentados os dados de per-
de se sentirem intimidados, os alunos contam o cepção dos alunos com relação aos motivos pelos
ocorrido à família e aos colegas, ou não falam quais poderiam ter sido intimidados.

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A convivência na escola e o bullying entre estudantes nos ensinos fundamental II e médio

Gráfico 6 – Se você foi intimidado alguma vez, qual você acha que foi o motivo?

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

Novamente a maior frequência se deu na cate- sor, o primeiro aspecto investigado foi se o res-
goria “ninguém me intimidou, nunca”, com mais pondente intimidava ou maltratava algum colega.
ocorrência no EM e de modo estatisticamente A maioria declarou, em ambos os níveis de ensino,
significante. Em seguida, foi assinalada nos dois nunca ter mexido com alguém (58,6% no EF II e
níveis de ensino a resposta “para fazer uma brin- 64,8% no EM). Todavia foi considerável a quan-
cadeira”. A categoria “não sei” aparece logo após. tidade de indivíduos que assinalou intimidar ou
No EF II vem a seguir “para me incomodar” e em maltratar um colega algumas vezes (36,12% no EF
menor número no EM, com diferença significante. II e 28,1% no EM), sendo bem menor o número de
A categoria “porque sou diferente” também aparece respostas nas alternativas “com certa frequência” e
de modo considerável, e depois, em menor número, “quase todo o dia” (cerca de 3% no EF II e no EM).
as respostas “porque os provoquei”, “porque sou Ressalta-se que não houve variação estatisticamen-
mais fraco” e “porque eu mereço”. Alguns alunos te significante entre as respostas do EF II e do EM.
do EF II apontaram outros motivos, especificando- Em seguida, tal como apresentado no Gráfico
-os: por causa do meu peso; porque sou gay; pela 7, foi perguntado os motivos pelos quais o respon-
minha religião; para me envergonhar. dente já havia participado de alguma situação de
Com relação à dimensão Percepção do agres- intimidação, caso isso tivesse acontecido.
Gráfico 7 – Se você participou de situações de intimidação contra algum colega ou colegas, por
que fez isso?

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

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Observamos, com base no Gráfico 7, que o número de respondentes do EF II. Em menor


novamente a maioria dos alunos de ambos os ní- número foram assinaladas as alternativas: “porque
veis de ensino declarou nunca ter participado de já fizeram isso comigo”, “porque são diferentes”,
situações de intimidação contra algum colega ou “para incomodar”, “porque eram mais fracos” e
colegas. Por outro lado, também foi considerável “outros motivos”.
o número de pessoas que relatou ter feito parte A próxima dimensão pesquisada foi a Percep-
desse tipo de ocorrência, sendo o principal moti- ção dos espectadores, em que se perguntou, pri-
vo levantado “para fazer uma brincadeira” e, em meiramente, qual era, na opinião do respondente,
seguida, “porque me provocam”, sendo que nesta o motivo pelo qual alguns colegas intimidavam a
categoria foi estatisticamente significante maior outros (Gráfico 8).

Gráfico 8 – Para você, por que alguns/algumas colegas intimidam os(as) outros(as)?

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

Verificamos no Gráfico 8 que a resposta com ensino, sendo que, em ordem das maiores para as
maior frequência nos dois níveis de ensino foi “para menores frequências, as alternativas assinaladas
fazer uma brincadeira”, com mais respostas e de foram: “menos de cinco vezes”, “nunca”, “todos
modo estatisticamente significante pelos alunos de os dias”, “entre cinco e dez vezes”, “entre dez e
EM. Em seguida, também em ambos os níveis de vinte vezes” e “mais de vinte vezes”.
ensino, compareceu a resposta “para incomodar”. Com base nos dados apresentados relativos à
Outros motivos assinalados foram: “porque se me- percepção das vítimas, agressores e telespectado-
tem/ mexem com eles/as”, “porque são mais fortes” res, podemos indicar que, apesar de a maioria dos
e “outros motivos”; em todos esses casos houve estudantes relatar nunca ter sofrido ou nunca ter
um maior número de respostas, estatisticamente sido o agente de algum tipo de intimidação e mal-
significante, por parte dos alunos do EF II. trato, ainda é considerável o número daqueles que
No Gráfico 9 são apresentados os dados rela- passaram e ainda passam por esse tipo de situação
tivos à frequência com que os respondentes per- como alvo, e/ou realizaram esse tipo de ação como
cebem que têm ocorrido situações de intimidação agente, ou ainda fazem parte disso como telespec-
na escola durante o último trimestre, tais como tadores. Chama atenção ainda o fato de que ao
dar apelidos, ridicularizar, bater, chutar, empurrar, serem questionados sobre a frequência com que os
ameaçar, rejeitar, não se juntar etc. respondentes percebem que têm ocorrido situações
As respostas não apresentaram variações im- de intimidação na escola durante o último trimestre
portantes quando comparados os dois níveis de (tais como dar apelidos, ridicularizar, bater, chutar,

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A convivência na escola e o bullying entre estudantes nos ensinos fundamental II e médio

empurrar, ameaçar, rejeitar, não se juntar etc.), a tipo de situação de “menos de cinco vezes” por
categoria nunca aparecer em menor frequência que semana até “todos os dias”, sendo que esta última
as demais, as quais se referem à ocorrência desse aparece em quase 20% das respostas.

Gráfico 9 – Com qual frequência têm acontecido intimidações na sua escola durante o trimestre?

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

Esses dados confirmam o que estudiosos (AVI- (2006) aponta que o bullying escolar: com rela-
LÉS MARTÍNEZ, 2013; DÍAZ-AGUADO, 2015) ção à vítima, produz medo e rejeição ao contexto
afirmam, de que há, sim, situações de maus-tratos no qual a violência ocorre, perda de confiança,
na escola, e que estas se configuram na presença além de outras dificuldades, como problemas
e até mesmo na estabilização dos papéis de víti- de rendimento, baixa autoestima; no agressor,
mas, agressores e testemunhas, sendo que essa podem aumentar os problemas que o levaram a
estabilização ocorre nos casos em que as situações abusar de sua força, diminuindo sua capacidade
perduram por mais tempo e não há esforços para de compreensão moral e empatia, de modo a
modificá-las. Segundo Diáz-Aguado (2006, 2015), identificar-se com um estilo violento de interação,
é possível situar o bullying como um fenômeno que o que representa um problema ao seu desenvolvi-
faz parte habitual da cultura escolar tradicional, mento e ao estabelecimento de relações positivas;
uma vez que ao longo da vida escolar todos os nas pessoas que não têm uma participação direta
alunos parecem ter contato com esse fenômeno em na violência, mas convivem com ela sem fazer
diferentes papéis, seja no de vítima, de agressor ou nada para evitá-la, pode produzir problemas
de espectador. semelhantes, mesmo que em menor grau, aos
A autora ressalta que a sociedade tem tomado apresentados tanto pela vítima (receio de poder
consciência da presença do fenômeno do bullying vir ser a vítima), como pelo agressor (redução
escolar, e que este é um problema tão antigo como da empatia), contribuindo para aumentar a falta
a própria escola tradicional, que reproduz um de sensibilidade aos problemas alheios, o que
modelo de relação de dominação-submissão, e pode incorrer no risco de que sejam os próximos
que representa a antítese do que se quer ser e dos protagonistas da violência.
valores que almejamos: a igualdade, o respeito Assim, mesmo que na apresentação dos dados
mútuo, a tolerância e a paz. Como consequência da presente pesquisa a maioria declare que esse
às pessoas que com ele convivem, Díaz-Aguado tipo de situação não acontece ou nunca aconte-

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ceu, é muito importante considerar os casos que pabilidade e justificando, direta ou indiretamente,
apontam, sim, para a sua presença, que por sinal a ação do agente da agressão.
não são poucos, e nem tão pontuais, como pôde Outro dado que deve ser discutido é sobre a
ser visualizado em números e pelos gráficos su- quem os respondentes, quando se sentem viti-
pracitados. Um ponto importante a destacar são mizados, recorrem para pedir ajuda e/ou falar a
as diferenças de percepções quando os sujeitos respeito. Observa-se que os alunos recorrem mais
se colocam na situação de vítimas e na de agres- à família e aos colegas, vários não falam nada a
sores, sobretudo no EF II, em que os estudantes ninguém e, por último, recorrem aos professores.
se reconheceram mais como vítimas do que como Chama atenção o fato de haver aqueles, em maior
agressores. Ou seja, reconhecem e/ou são mais número, que preferem não falar nada a ninguém do
sensíveis à agressão contra si do que em relação que recorrer aos professores.
a outrem, especialmente quando se está no papel Esses dados vão ao encontro daqueles en-
de agente. contrados por Díaz-Aguado (2006, 2015), que
Outro aspecto relevante é quando são questio- apontam para uma tendência à passividade diante
nados sobre os motivos pelos quais os próprios da violência entre iguais, a qual é detectada na
respondentes já haviam participado de alguma escola tradicional e parece ainda não ter sido
situação de intimidação, caso isso tivesse acon- superada e se produz mais por falta de recursos
tecido. Apesar de também a maioria ter declarado do professorado para resolvê-la com eficácia do
nunca ter feito esse tipo de coisa, chama atenção que por falta de interesse. É importante conside-
o número daqueles que responderam que no rar também que as figuras mais disponíveis para
caso de o terem feito foi por brincadeira. Não pedir ajuda são os amigos, seguidos pelos fami-
obstante, quando comparamos essa percepção liares. Resultados semelhantes aos observados
(que é a do agressor) com a da vítima, constata-se em outros estudos citados pela autora, nos quais
que, quando no papel de vítima, os respondentes também se destaca a baixa tendência a pedir ajuda
percebem menos essa situação como uma brin- ao professorado. Essas diferenças parecem estar
cadeira, talvez porque nesse lugar (o de vítima) estreitamente relacionadas com as que se obser-
consigam ser mais sensíveis à dor que esse tipo vam na qualidade da relação que estabelecem
de brincadeira (o qual muitas vezes não é uma com cada figura, do qual se deriva a necessidade
brincadeira, mas uma manifestação de violência) de melhorar a relação que os alunos, sobretudo
gera. Quando nos dirigimos para a percepção os adolescentes, estabelecem com o professorado
dos respondentes no papel de telespectador, e para aumentar a tendência a pedir ajuda quando
perguntamos qual era, na opinião do respondente, são vítimas da violência ou conhecem colegas
o motivo pelo qual alguns colegas intimidavam a que a sofrem. Convém considerar, ainda, a re-
outros, a brincadeira também comparece, e agora lação com a forma tradicional de definir o papel
como o principal tipo de resposta em ambos os do professorado, orientado predominantemente
níveis de ensino, apesar de os alunos do EM a transmitir uma matéria específica dentro do
justificarem mais dessa forma. horário previsto para a mesma, e segundo o qual
De modo geral, os alunos do EF II justificam o que acontece fora desse tempo e espaço não
mais o maltrato a partir do comportamento do ou- é responsabilidade sua. Tendências que podem
tro (do que os do EM): porque provocam, porque mudar quando é proporcionada ao professorado
mexem com ele, porque são mais fortes (pelo fato uma formação adequada para prevenir a violência
de o desequilíbrio de poder ser maior). Sobre esse e melhorar as relações na escola.
último dado, Díaz-Aguado (2006) destaca que há A última dimensão abordada foi Propostas de
uma tendência, por parte dos agressores e de pes- saída, em que se perguntou aos participantes o que
soas no entorno, em se responsabilizar as vítimas teria que acontecer para que o problema do maltrato
de bullying escolar, assim como em outros tipos de fosse resolvido. No Gráfico 10 são apresentados
violência, desenvolvendo-se um sentimento de cul- os resultados.

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A convivência na escola e o bullying entre estudantes nos ensinos fundamental II e médio

Gráfico 10 – O que teria que acontecer para que se solucionasse esse problema?

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

Também não foram encontradas variações destarte, esteja consciente de seus prejuízos para a
significantes quando comparadas as respostas personalidade e desenvolvimento socioeducacional
dos participantes do EF II e do EM. Tal como é dos estudantes. Também é necessário instrumenta-
possível visualizar no Gráfico 10, observa-se que lizar seus profissionais para observação, identifica-
a categoria com maior frequência é “não sei”. Em ção, diagnóstico, intervenção e encaminhamentos
seguida, os alunos apontam os professores como assertivos, conduzindo o tema à discussão com
aqueles que devam fazer alguma coisa, depois os a comunidade escolar, traçando estratégias pre-
colegas e, enfim, as famílias. Há ainda, mesmo que ventivas capazes de fazer frente ao fenômeno, e
em menor número, aqueles que manifestam que incentivando o engajamento de todos.
“não dá para consertar”.
Nesta dimensão as propostas de saída apontam Considerações finais
primeiramente para os professores, ao passo que no
Gráfico 5 observa-se que, no caso de se sentirem Face ao que ficou exposto neste trabalho, es-
intimidados, os alunos recorrem à família e aos peramos ter respondido as perguntas iniciais,
colegas ou não falam com ninguém, sendo que a buscando-se conhecer, a partir da percepção de
escolha de contar ao professor acontece em último alunos, a realidade de uma determinada comuni-
caso. Entretanto, quando questionados acerca de dade educativa sobre o bullying, aspecto essencial
quem deveria iniciar um trabalho de prevenção para viabilizar a participação dos membros da co-
e contenção às situações de bullying, apontam munidade escolar quanto ao processo de reflexão,
para a figura do professor, o que evidencia que os formação, decisão e atuação contra esse fenômeno.
alunos gostariam de poder ter a ajuda dos adultos Também visamos contribuir para a produção de
da escola, sobretudo do professor, nas situações conhecimentos a respeito de formas de diag-
de intimidação. nóstico que podem ser realizados nesse sentido,
Tal como já abordado neste texto, reiteramos a apontando possibilidades de intervenções que a
afirmação de Fante e Pedra (2008) que a prevenção escola poderá fomentar com a prática de valores
do bullying começa pelo conhecimento. A escola que contemplem a cooperação, a solidariedade,
precisa reconhecer a existência do fenômeno, o respeito mútuo, a justiça, proporcionando um

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Carmen Lúcia Dias; Terezinha Ferreira da Silva Colombo; Alessandra de Morais

ambiente democrático e o exercício de uma vida da escola. A forma como esta ação transcorrerá
social na própria escola que favoreça a autonomia deverá levar em conta aspectos da faixa etária
moral e a liberdade de pensamento. do aluno que, com posicionamentos e estratégias
Compartilhamos com Avilés Martínez (20013) distintas, tratarão da compreensão, da análise e do
que, para que uma instituição educativa se pre- debate que tenham bases morais para resolução
pare no combate ao bullying, é essencial que os dos conflitos que emergem da convivência entre
profissionais da escola tenham informações sobre pares. Considerando-se que o bullying deve ser
o que acontece nesse ambiente e acerca do que é tratado como conteúdo educativo e curricular, com
esse fenômeno, sendo necessário formação nesse sistematização e intencionalidade, por meio de um
sentido. Todavia, para se aproximar do que acon- projeto “antibullying” inserido em um contexto de
tece entre os grupos de iguais, naquele contexto, Educação em Valores, não há receitas, uma vez
é fundamental que seja realizada uma avaliação a que deve ser adaptado a cada realidade e contexto.
respeito, para que se saiba a quantidade e os tipos Não é um problema isolado de um ou outro aluno,
de bullying que ocorrem naquela escola. O diag- que seja o alvo ou o agente de bullying, mas sim
nóstico, ao ser levantado, permite a formulação de de todo o grupo, de toda a comunidade educativa,
ferramentas de prevenção que, em suma, coloquem uma vez que aquele contexto está promovendo, de
em evidência o protagonismo do jovem no seio algum modo, esse tipo de relação.

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Recebido em: 05/06/2017


Aprovado em: 27/06/2017

206 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, p. 187-206, maio/ago. 2017
Revista temática quadrimestral do Departamento de Educação I – UNEB

A Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, seguindo as diretrizes nacionais de pe-


riódicos qualificados, a partir de 2016, passa a ser quadrimestral, mantendo na sua estrutura uma seção
Temática e uma seção Estudos, em ambas publicando artigos inéditos, de natureza científica, resultantes
de pesquisas que contribuam para o conhecimento teórico, metodológico e prático no campo da Educação
e em interação com as demais Ciências Sociais, relacionando-se com a comunidade regional, nacional e
internacional. Aceita trabalhos originais, que analisam e discutem assuntos de interesse científico-cultural.
Está organizada nas seguintes seções:
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Nas seções Temática e Estudos cabem ensaios (estudos teóricos, com análise de conceitos) e resul-
tados de pesquisa (artigos baseados em pesquisas finalizadas ou em andamento), sendo que na primeira
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disponível na página web), e na segunda, artigos atinentes a diversas temáticas dentro da proposta edito-
rial da revista e recebidos em fluxo contínuo. A seção Documentos está aberta à publicação de resenhas
(revisão crítica de uma publicação recente), entrevistas (com cientistas e pesquisadores renomados);
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riódicos. A titulação mínima para os autores é o mestrado. Mestrandos podem enviar artigos desde que
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2. Resumo, Abstract e Resumen: cada um com no máximo 200 palavras, incluindo objetivo, método,
resultado e conclusão. Logo em seguida, as Palavras-chave, Keywords e Palabras clave, cujo número
desejado é de, no mínimo, três, e, no máximo, cinco. Traduzir, também, o título do artigo e do resumo,
assim como do trabalho resenhado. Atenção: cabe aos autores entregar traduções de boa qualidade em
inglês e em espanhol .
3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias (em formato TIF, cor cinza, dpi 300), quando apresentados
em separado, devem ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar refe-

208 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017
rências de sua autoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecida
pelo Conselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em 1979.
4. Sob o título Referências deve vir, após a parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dos
autores e das publicações conforme as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).
Vide os seguintes exemplos:
a) Livro de um só autor:
BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.
b) Livro até três autores:
NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tra-
dução de Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.
c) Livro de mais de três autores:
CASTELS, Manuel. et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
d) Capítulo de livro:
BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA, Joaquim (Org.).
Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.
e) Artigo de periódico:
MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma
breve reflexão linguística para não linguistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade,
Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002.
f) Artigo de jornais:
SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público.
O Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.
g) Artigo de periódico (formato eletrônico):
TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasi-
leira de História, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em:
14 ago. 2000.
h) Livro em formato eletrônico:
SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://
www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.
i) Decreto, Leis:
BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para
despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São
Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.
j) Dissertações e teses:
SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
k) Trabalho publicado em Congresso:
LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autori-
dades brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO
NORDESTE: história da educação, 13., 1997, Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.
IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto emprego da
pontuação, de maneira que esta figure de forma uniforme.
5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data, de acordo com a NBR 10520
de 2003. As citações bibliográficas ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entre aspas ou,
quando ultrapassa três linhas, em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo ao autor. Quando o autor
faz parte do texto, este deve aparecer em letra cursiva e submeter-se aos procedimentos gramaticais da
língua. Exemplo: De acordo com Freire (1982, p. 35) etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este
deve aparecer no final do parágrafo, entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir:

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017 209
“A pedagogia das minorias está à disposição de todos” (FREIRE, 1982, p. 35). As citações extraídas de
sites devem, além disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a data de acesso. Para
qualquer referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo, no rodapé das páginas
do texto devem constar apenas as notas explicativas estritamente necessárias, que devem obedecer à
NBR 10520, de 2003.
6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como os
agradecimentos, apêndices e informes complementares.
7. Os artigos devem ter, no máximo, 70 mil caracteres com espaços e, no mínimo, 45 mil caracteres
com espaços; as resenhas podem ter até 30 mil caracteres com espaço. Os títulos devem ter no máximo
90 caracteres, incluindo os espaços.
8. As referências bibliográficas devem listar somente os autores efetivamente citados no corpo do texto.
Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no processador Word for Windows ou
equivalente:
• letra: Times New Roman 12
• tamanho da folha: A4
• margens: 2,5 cm
• espaçamento entre as linhas: 1,5;
• parágrafo justificado.
Os autores são convidados a conferir todos os itens das Normas para Publicação antes de encaminhar
os textos.

Para contatos e informações:


Administração:

Editor Geral: Augusto César Rios Leiro


E-mail: [email protected]

Editora Científica: Lívia Fialho Costa


E-mail: [email protected]

Site da Revista da FAEEBA: https://www.revistas.uneb.br/index.php/faeeba

210 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017
Quarterly thematic journal of the Education Faculty I – UNEB

I – EDITORIAL GUIDELINES
Created in 1992, the FAEEBA: Education and Contemporaneity Journal, in keeping with national
guidelines governing qualified periodicals, in 2016, it will be published quarterly, while continuing to
maintain its present structure with both a Thematic section and one devoted to Studies. Both will fea-
ture original, previously unpublished articles of a scientific nature, based on research that contributes to
theoretical, methodological, and practical knowledge in the field of Education. Our aim is to stimulate
dialogues between various areas of the Social Sciences while forging relationships between regional,
national, and international communities. The journal accepts original works that analyze and discuss
issues of scientific and cultural interest. It is organized into the following sections:
- Thematic
- Studies
- Documents
The Thematic and Studies sections feature essays (theoretical studies, with analysis of concepts) and
study results (articles based on ongoing or finalized research). For submissions to the Thematic section,
articles must necessarily coincide with the specific topic chosen by that issue (information is available
on the journal’s web site). For the Studies section, articles exploring various topics that fall within the
journal’s editorial guidelines can be submitted at any time. The Documents section is open to the pub-
lication of reviews (critical reviews of recent publications); interviews (with recognized scientists and
researchers); bibliographic studies (comprenhensive, critical analysis of literature on a defined theme)
and critical analyses of Projects and Guidelines in the Area of Education.
Submitted works should be unpublished and should not be submitted simultaneously to other journal.
Papers written in Portuguese, Spanish, French and English are received. Views published remain their
authors’ responsibility. Texts originally in French and English may be translated into Portuguese and
published after a revision made by the author or by someone he has suggested. Authors who published
in this journal should wait two volumes to become newly authorized to publish. No paper should have
more than 3 authors.
The Journal accepts article submissions throughout the year for the Thematic Section (themes and
submission deadlines for future issues are listed in recently published issues as well as on the site: www.
revistadafaeeba.uneb.br

Texts submitted are initially appreciated by the Editor which will confirm reception. If they are edited
in accordance with the norms, they will be sent, anonymously so to assure neutrality, to other member
of the editorial committee or to ad hoc evaluators of known competence .
Evaluators’ reports will confer the submitted work scientific quality and class them in four categories:
a) publishable without restrictions b) publishable with restrictions; c) publishable with restrictions and
modifications after new evaluation; d) unpublishable. Evaluators’ reports are sent anonymously to the
authors.

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017 211
In the b) or c) case, the works should be modified according to the report’ suggestion in the terms
determined by the editor in agreement with the authors. Modifications made should appear in red so as
to permit verification.
After the grammatical revision of the text, the correction of the bibliography, and the revision of the
part in English, the authors(s) will receive the text for an ultimate opportunity to make small corrections
in a week.

Submitting text to the journal means authorizing for publication. Accepting a text for publication im-
ply the transfer of copyrights to the journal. Whatever complete or partial reproduction (more than 500
hundreds words) requires the written authorization of the editorial committee. Papers’ authors should
assume juridical responsibility for divulging interviews, photographies or images.
Texts approved by the FAEEBA: Education and Contemporaneity Journal will be published in the
Thematic or Studies sections; the number of articles in each section will be determined by available space
in each issue. Articles may be approved, but not published in an upcoming issue. In this case, they with
be kept in an “article bank” and may be published in a future issue. After one year, if there is no concrete
possibility of a text’s being published, authors may request permission to publish it in another periodical.
The main author of a paper will receive three copies of the volume in which his paper was published.
The author of an abstract or a review will receive one.

IV – SENDING AND PRESENTING WORKS

Texts as well as ulterior communication should be sent exclusively to the e-mail address of the editor
([email protected]). In should be explicited initially a) at which modality the text pertains; b) ethi-
cal procedures; c) copyrights concession to the Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade.
Works should respect the following norms:
1. In the first page, should appear: a) the paper’s title; b) authors’ name, address, telephones, e-mail;
c) main title; d) institutional affiliation and post.
2. Resumo, Abstract and Resumen: each with no more than 200 words including objective, method,
results and conclusion. Immediately after, the Palavras-chave, Keywords and Palabras clave, which
desired number is between 3 and 5. Authors should submit high quality translation.
3. Figures, graphics, tables and photographies (TIF, grey, dpi 300), if presented separately should
come with indication of their localization in the text, have a title and indicates author and reference. In
this sense, the tabular norms of tabular presentation, established by the Brazilian Conselho Nacional de
Estatística and published by the IBGE in 1979.
4. Under the title Referências should appear, at the end of the paper, in alphabetic order, the list of
authors and publication according to the norms of the ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).
See the following examples:
a) Book of one author only:
BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.
b) Book of two or three authors:
NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tra-
dução de Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.
c) Book of more than three authors:
CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
d) Book chapter:

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BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.). Mul-
tirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.
e) Journal’s paper:
MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma
breve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade,
Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002.
f) Newspaper:
SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público.
O Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.
g) On-line paper :
TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Available at: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago. 2000.
h) E-book:
SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://
www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.
i) Laws:
BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos
para despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São
Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.
j) Thesis:
SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestra-
do) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
k) Congress annals:
LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autori-
dades brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO
NORDESTE: história da educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.
IMPORTANT: Organizing references, the author should take care of punctuation correct use, so as
to preserve uniformity.
5. This journal use the author-date quote system, according to the NBR 10520 de 2003. Biblio-
graphical quotes or quotes from on-line publications, if inserted into the text, should appear between
quotation marks or if the quotation is more than three lines long, distanced and without quotation marks
with author reference. Examples: 1- According to Freire (1982: p.35), etc. 2-Minority pedagogy is for
all (Freire, 1982, p.35). On-line quotes should indicate the URL and access date. Footnotes should only
contain explanatory notes strictly necessary respecting the NBR 10520, of 2003.
6. Texts can contain footnotes, thanks, annexes and complementary informations.
7. Articles must have a minimum of 45,000 characters and a maximum of 70,000 characters (with
spaces). Reviews can be up to 30,000 characters (with spaces). Titles should have no more than 90
characteres including spaces. Reviews are limited to 5 pages. Thesis abstracts should contain no more
than 250 words and should include title, number of page, author data, key-words, name of the director
and university affiliation, as well as the date of the defense and the English translation of text, abstract
and key-words.
Look out: texts will only be accepted formated in Word for Windows or equivalent:
font: Times New Roman 12
paper dimension: A4
margins: 2,5 cm
line spacing: 1,5;
paragraph justified.
Authors are invited to check the norms for publication before sending their work.

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 26, n. 49, maio/ago. 2017 213
Contact and informations:
General Editor: Augusto César Rios Leiro – E-mail: [email protected]
Executive Editor: Lívia Fialho Costa – E-mail: [email protected]
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