Linguagem Neutra
Linguagem Neutra
BRASÍLIA
2020
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BRASÍLIA
2020
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Resumo: A Língua Portuguesa passou por diversas transformações até chegar ao que
conhecemos e falamos hoje. Por ser viva, mutável e dinâmica, não é incomum que alterações
em sua estrutura aconteçam de tempos em tempos para acompanhar o desenvolvimento da
sociedade. Nos últimos anos, um movimento em prol da adoção de uma terceira marca de
gênero (neutra) que fosse capaz de representar e incluir as pessoas denominadas não binárias
ascendeu no Brasil e no mundo. Este trabalho objetiva analisar o curso desse movimento, as
transformações linguísticas ocorridas no interior da língua, bem como os impasses
encontrados pelos falantes do Português brasileiro.
Abstract: The Portuguese language has gone through several transformations until it reaches
what we know and speak today. Because it is alive, changeable and dynamic, it’s not
uncommon that changes in its structure happen from time to time to accompany the
development of society. In recent years, a movement in favor of the adoption of a third brand
of gender (neutral), in addition to the existing ones - male and female - that was able to
represent and include the so-called non-binary people has ascended in Brazil and the world.
This work aims to analyze the course of this movement, the linguistic transformations that
have occurred within the language, as well as the impasses encountered by portuguese
speakers.
Introdução
1
Discente de Letras – Língua Portuguesa e respectiva Literatura – LIP/UnB; [email protected]
2
Profª Drª no Depto. de Linguística, Português e Línguas Clássicas – LIP/UnB; [email protected]
4
sistema binário vigente: o do gênero feminino e masculino. Logo, essas pessoas solicitam
uma linguagem neutra como alternativa atenuante das diferenças geradas pela binariedade de
gênero imposta pelo português padrão.
Devido a sua fragilidade, e por ser difícil distingui-lo formalmente dos substantivos
masculinos e femininos, o gênero neutro do Latim, assim como duas das cinco declinações,
desapareceu. A partir daí, os substantivos neutros foram, em sua maioria, transformados em
masculinos de mesma declinação. Esse fato também possibilitou a mudança do gênero das
árvores e de seus frutos, que no latim clássico eram femininos e neutros e, com a queda do
5
neutro, tornaram-se masculinos e femininos, respectivamente: ex. pira por pirum, mala por
malum etc., para frutos, e pirus, malus etc., para árvores (ILARI, 1999).
Após a dialetação do Latim (movimento em que o Latim Vulgar, seja por razões
internas – como mudanças fonológicas – ou externas – como contato entre línguas–, se
diversificou, assumindo características distintas, que dependiam tanto da região em que era
falado quanto do status ou da classe social da população falante) houve um processo de
fragmentação e dispersão dessa língua, que resultou na formação de diversas línguas
românicas, incluindo o português (ILARI, 1999).
Mattos e Silva (2006) aduz que o Português Arcaico (XIII – XV) marca o início da
história da Língua Portuguesa, pois é nesse momento que essa língua surge documentada pela
escrita. Conforme elucida a autora, nesse período linguístico-histórico, o gênero era composto
de três classificações: nomes de gênero único – tipo I, nomes de dois gêneros com flexão
redundante – tipo II e nomes de dois gêneros sem flexão redundante – tipo III:
Como já via claro Fernão de Oliveira, será o artigo masculino ou feminino que
sempre indicará o gênero do nome. Apenas para os nomes de tipo 2 é que se soma
ao artigo a marca flexional do feminino < a > , que se oporá ao Ø, isto é, ausência de
marca do masculino. Ausente o artigo, será a concordância com os determinantes e
qualificadores que indicará o gênero do nome, núcleo do SN. Assim sendo, o
gênero pode ser compreendido como um traço semântico inerente aos nomes
substantivos, nunca será da escolha do falante. É assim hoje, era no período arcaico
e isso herdamos do latim, em que a concordância com os adjetivos da primeira
classe, com determinantes e qualificadores, que tinham flexões diferentes para o
masculino, feminino e neutro, indicava o gênero do nome (MATTOS e SILVA,
2006, p. 102 e 103).
Cunha e Cintra (2013) mencionam, entre outros, os substantivos que tanto podem ser
femininos, quanto masculinos, mas que mudam completamente de sentido a depender da
escolha do artigo, quais sejam:< o cabeça; a cabeça / o capital; a capital>. Por fim, há aqueles
denominados de substantivos de gênero vacilante ou incerto, que causam certa vacilação ou
dúvida na escolha do artigo definido, por exemplo: <gengibre; diabete(s)>.
A linguística pode ser entendida como a análise científica da linguagem humana e tem
a língua como objeto de estudo. No Brasil, diversos intelectuais se dedicam ao estudo da
Língua Portuguesa e de suas estruturas. Analisaremos adiante as contribuições, no que tange
ao estudo do gênero para a linguística, realizadas por Mattoso Câmara Jr.
Ao definir gênero, Câmara Jr (2004, p. 87) aduz que “o gênero é uma distribuição, em
classes mórficas, para os nomes, da mesma sorte que são as conjugações para os verbos”. Para
o linguista, o gênero é imanente, ou seja, apresenta uma forma não marcada – masculino – e
outra marcada – feminino –, que funciona como uma especialização do masculino. Sendo
assim, para todo substantivo masculino, haverá um substantivo feminino semanticamente
associado a ele: “jarra é uma espécie de «jarro», barca um tipo especial de «barco», como ursa
é a fêmea do animal chamado. urso, e menina uma mulher em crescimento na idade dos seres
humanos denominados como a de «menino»” (CAMARA JR., 2004, p. 87).
autor entende que as palavras masculinas são não marcadas e que o feminino é marcado e
formado pelo acréscimo da desinência -a a uma palavra não marcada.
A partir da análise dos dados obtidos com o exercício de observação do uso das
formas inovadoras de gênero em postagens de redes sociais, o autor concluiu que o resultado
obtido não é suficiente para contestar ou afirmar o caráter espontâneo de uma possível
mudança para a inclusão de uma marca de gênero neutro no português brasileiro, mas que a
pesquisa serve de reflexão acerca do papel dos formadores de opinião na propagação de uma
mudança dessa natureza (SCHWINDT, 2020).
Gênero e sexo são palavras comumente confundidas e até mesmo fundidas. Muitas
vezes, esses termos são erroneamente utilizados, o que causa incerteza em relação à real
diferença existente entre eles. Para destrinchar esse assunto e trazer à tona os conceitos e as
definições empregadas atualmente, analisaremos os estudos da antropóloga Miriam Pillar
Grossi (1998) e da doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações, Jaqueline
Gomes de Jesus (2012).
As autoras trazem uma concepção de sexo bastante semelhante. Ambas acreditam que
o que define o sexo de um indivíduo são os órgãos genitais e reprodutores que lhe foram
atribuídos ao nascer, sendo assim, o sexo pode ser entendido como um fator puramente
biológico (GROSSI, 1998 e JESUS, 2012). Segundo Grossi (1998), “sexo é uma categoria
que ilustra a diferença biológica entre homens e mulheres” (GROSSI, 1998, p. 12). Jesus
(2012) afirma que “para a ciência biológica, o que determina o sexo de uma pessoa é o
tamanho das suas células reprodutivas (pequenas: espermatozoides, logo, macho; grandes:
óvulos, logo, fêmea)” (JESUS, 2012, p. 8).
10
A categoria de gênero é uma das mais complexas devido às muitas nuances que
possui, estando, ainda, agrupadas nela duas subcategorias: os papeis e as identidades. Dito
isso, o gênero pode ser entendido como um conjunto de expectativas e determinações sociais
pré-estabelecidas, que norteiam como deve ser o comportamento, o pensamento, os gostos, e
até mesmo a personalidade dos indivíduos de acordo com o sexo que nasceram (GROSSI,
1998).
Sobre esse conceito, Grossi (1998) afirma que “gênero é uma categoria usada para
pensar as relações sociais que envolvem homens e mulheres, relações historicamente
determinadas e expressas pelos diferentes discursos sociais sobre a diferença sexual”.
(GROSSI, 1998, p. 5), e, ainda, que “gênero é um conceito que remete à construção cultural
coletiva dos atributos de masculinidade e feminilidade (que nomeamos de papéis sexuais)”
(GROSSI, 1998, p. 12).
Dessarte, podemos entender gênero como uma convenção social volátil e mutável
tanto em tempo quanto em espaço, que é influenciada e determinada totalmente pelo convívio
social, e se diferencia do sexo por ser socialmente definido, enquanto este é definido
biologicamente (GROSSI, 1998).
Na sociedade brasileira, por exemplo, esse script é bem definido. Mesmo antes de
nascer, assim que o sexo de um bebê é revelado, cria-se uma expectativa a respeito de como
essa criança deve ser. Se for menina, ela ganha roupas, presentes, artigos de decoração nas
cores rosa, lilás ou amarelo e os brinquedos também são bem característicos: bonecas, ursos, e
quando começa a crescer, mais boneca, fogãozinho, casinha, entre outros. No caso dos
meninos, isso também acontece: eles ganham roupas e itens de decoração nas cores azul e
verde e os brinquedos são carrinhos, bola, skate, bicicleta, entre outros.
Além de determinar todos esses fatores externos, os papeis de gênero definem também
fatores internos e comportamentais, como o jeito de agir e de se comportar. É socialmente
11
esperado que as mulheres sejam calmas, dóceis, gentis, delicadas, enquanto os homens, por
sua vez, devem ser fortes, ágeis, competitivos e até mesmo hostis.
Papel é aqui entendido no sentido que se usa no teatro, ou seja, uma representação
de um personagem. Tudo aquilo que é associado ao sexo biológico fêmea ou macho
em determinada cultura é considerado papel de gênero. Estes papéis mudam de uma
cultura para outra. A Antropologia, que tem como objetivo estudar a diversidade
cultural humana, tem mostrado que os papéis de gênero são muito diferentes de um
lugar para outro do planeta (GROSSI, 1998, p. 6).
Mulheres de países nórdicos têm características que, para nossa cultura, são tidas
como masculinas. Ser masculino no Brasil é diferente do que é ser masculino no
Japão ou mesmo na Argentina. Há culturas para as quais não é o órgão genital que
define o sexo. Ser masculino ou feminino, homem ou mulher, é uma questão de
gênero. Logo, o conceito básico para entendermos homens e mulheres é o de gênero.
Sexo é biológico, gênero é social, construído pelas diferentes culturas (JESUS,
2012, p. 8).
A partir dos conceitos de papeis de gênero apresentados pelas autoras, podemos inferir
que eles são voláteis e se alteram em algumas circunstâncias. É importante destacar também
que os fatores biológicos que definem sexo devem ser diferenciados dos fatores sociais que
definem gênero, entendendo este como uma representação daquele.
Cada pessoa transexual age de acordo com o que reconhece como próprio de seu
gênero: mulheres transexuais adotam nome, aparência e comportamentos femininos,
querem e precisam ser tratadas como quaisquer outras mulheres. Homens
transexuais adotam nome, aparência e comportamentos masculinos, querem e
precisam ser tratados como quaisquer outros homens. Pessoas transexuais
geralmente sentem que seu corpo não está adequado à forma como pensam e se
sentem, e querem “corrigir” isso adequando seu corpo à imagem de gênero que têm
de si. Isso pode se dar de várias formas, desde uso de roupas, passando por
tratamentos hormonais e até procedimentos cirúrgicos (JESUS, 2012, p. 15).
Para Stoller (1978), todo indivíduo tem um núcleo de identidade de gênero, que é
um conjunto de convicções pelas quais se considera socialmente o que é masculino
ou feminino. Este núcleo não se modifica ao longo da vida psíquica de cada sujeito,
mas podemos associar novos papéis a esta "massa de convicções". Este núcleo de
nossa identidade de gênero se constrói em nossa socialização a partir do momento
da rotulação do bebê como menina ou menino. Isto se dá no momento de nascer ou
mesmo antes, com as novas tecnologias de detectar o sexo do bebê, quando se
atribui um nome à criança e esta passa a ser tratada imediatamente como menino ou
menina. A partir deste assinalamento de sexo, socialmente se esperarão da criança
comportamentos condizentes a ele. Caso tenha havido um erro nesta rotulação
inicial (em raros casos de intersexualidade ou “hermafroditismo”, como trata
Stoller), será praticamente impossível mudar a identidade de gênero deste indivíduo
após os três anos de idade, uma vez que ele tiver superado a fase do complexo de
Édipo, momento no qual todo ser humano descobre que é único e não a extensão do
corpo da mãe (GROSSI, 1998, p. 8).
Sendo assim, a partir dos aspectos supracitados, podemos inferir que pessoas cis são
aquelas que nasceram em um determinado sexo e se reconhecem com esse corpo, com esse
13
sistema genital e reprodutor e, consequentemente, com o gênero que lhes foi atribuído. As
pessoas trans, por sua vez, nasceram em um sexo, porém não se reconhecem nem se
identificam com o corpo, com os órgãos genitais e respectivos aparelhos reprodutores,
tampouco com o gênero que lhes foi designado. Por isso, na maioria das vezes, as pessoas
trans são submetidas à cirurgia de redesignação sexual. É importante destacar que essa
cirurgia objetiva a mudança para o gênero oposto já existente – feminino ou masculino
(JESUS, 2012).
Contudo, existem pessoas que não se identificam totalmente nem com o gênero
masculino nem com o feminino. Roweder (2015) afirma que “o terceiro gênero é uma
alternativa neutralizante das diferenças geradas pelo gênero. Assim, aqueles que não se sintam
estritamente masculinos ou femininos possuem uma terceira margem, denominada de terceiro
gênero” (ROWEDER, 2015, p. 59).
Ainda nessa linha, o autor aduz que “com o terceiro gênero seria possível optar, ainda
que temporariamente, por um gênero neutro, sem as amarras ligadas ao masculino ou ao
feminino” (ROWEDER, 2015, p. 60):
REIS e PINTO (2016) analisam gênero como um espectro, o entendem como “flutuante
na linha entre os polos feminino e masculino” (REIS e PINHO, 2016, p. 14) e assumem que,
em alguns casos, o gênero pode até mesmo que abandonar essa linha (REIS e PINHO, 2016):
Reis e Pinho (2016) conceituam as várias identidades não binárias que ultrapassam o
espectro de gênero:
Os autores, ao definir os não binários, afirmam que eles não serão exclusiva e
totalmente mulher ou exclusiva e totalmente homem, “mas irão permear em diferentes formas
15
4.1 Ile/dile
Se, como disse Petter (2007, p. 11), a linguagem é a “expressão de emoções, ideias,
propósitos e é orientada pela visão de mundo, pelas injunções da realidade social, histórica e
cultural de seu falante”, como a gramática normativa pode acolher aqueles que estão à
margem do espectro de gênero? Como as emoções, as ideias e os propósitos de uma pessoa
não binária (bigênera, multigênera, pangênera etc) podem ser representados em uma
linguagem que marca o gênero em “masculino e feminino”, “todas e todos”, “senhoras e
senhores”?
Em 2015, os autores Pri Berlucci e Andrea Zanella publicaram o “Manifesto ILE para
uma comunicação radicalmente inclusiva” como tentativa de implementar uma forma nova e
16
A essa altura, já entendemos que os pronomes ele/ela, dele/dela não contemplam todas
as formas de ser, estar, pertencer e se reconhecer no gênero. Por isso, com o objetivo de
incluir o máximo de pessoas possível, os autores do “Manifesto ILE para uma comunicação
radicalmente inclusiva” sugeriram o pronome de gênero neutro “ILE’ como uma alternativa
que fuja da binariedade determinada pela gramática tradicional.
4.2 Elu/delu
Segundo Cassiano (2020), uma alternativa funcional para o uso da linguagem neutra é
o pronome “elu”, que, assim como o “ile”, citado acima, abrange e representa as pessoas não
binárias ou que não se enquadrem no espectro de gênero, substituindo os pronomes “ela” e
“ele”, existentes no português brasileiro, por “elu” e suas variantes “delu”, “nelu”, “aquelu”.
O Guia para “Linguagem Neutra” (PT-BR), de Ophelia Cassiano (2020), traz algumas
alternativas de uso da linguagem neutra, conforme a tabela a seguir:
Substituição dos artigos definidos “a(s)” e “o(s)” pelo Eu vi a menina pulando corda. → Eu
artigo “ê(s)”. vi ê menine pulando corda.
Então, eu sou a dona daqui e ele
é o gerente. → Então, eu sou ê done
daqui e elu é ê gerente.
O garçom anotou seu pedido? → Ê
garçone anotou seu pedido?
Substituição das contrações (preposição + artigo) “à(s)” Entregue ao porteiro esses papéis.
ou “ao(s)” por “ae(s) → Entregue ae porteire esses
papéis.
Realizaram uma homenagem aos
professores. → Realizaram uma
homenagem aes professories.
18
Professor(a). → Professore.
Quando a palavra termina em “-r” no masculino e “-ra” Professores(as). → Professories.
no feminino, substitui a desinência por “-re”. Pintor(a). → Pintore.
No plural, quando termina em “-res” no masculino e “- Pintores(as). → Pintories.
ras” no feminino, substitui a desinência por “-ries”. Trabalhador(a). → Trabalhadore.
Trabalhadores(as).
→ Trabalhadories.
Administrador(a).
→ Administradore.
Administradores(as).
Fonte: Cassiano (2020)
Quanto mais simples e direta for a nossa linguagem, melhor poderemos nos fazer
entender. Quando a intenção é fazer textos fáceis e didáticos, o X pode ser um
constante entrave para quem está lendo. O X não é pronunciável. Nós não podemos,
em voz alta, usar o X. Isso é problemático especialmente para pessoas trans* não-
binárias, para quem essa vocalidade é necessária no dia-adia. O X não transformará
a linguagem. Se o X é restrito à língua escrita, então ele não irá alterar a forma como
falamos! Isso significa que ele não influenciará como, no dia-a-dia, nos referimos às
pessoas, e que no fim das contas nós continuaremos a nos tratar de forma
generificada (JUNO, 2014, p. 3).
Conforme aduziu o autor, essa forma de linguagem não é funcional, pois esses
caracteres dificultam a leitura e a pronúncia das palavras e não são legíveis por tecnologias
assistivas e softwares de leitura, uma vez que os programas, muitas vezes, não conseguem
reconhecer o que está escrito, além de prejudicarem as pessoas com deficiências visuais que
utilizam programas de leitura através de som e os indivíduos com dislexia (JUNO, 2014).
De acordo com o que explicitou Juno (2014), o uso correto da linguagem neutra, por
meio de construções simples e diretas, é essencial para que as pessoas não binárias se façam
entender. Contudo, alguns manuais de linguagem neutra apresentam equívocos que vão de
encontro à proposta de uma linguagem realmente inclusiva, os quais listarei a seguir.
O Home Box Office, mais conhecido como HBO, famoso canal de TV por assinatura
norte-americano, lançou em 2020 a série brasileira “Todxs Nós3”, que retrata a história de
Rafa, jovem pansexual que decide sair do interior para morar na Grande São Paulo.
Utilizando os aprendizados obtidos a partir da realização da série, com o apoio de
especialistas, linguistas e baseando-se no Manifesto ILE para uma comunicação radicalmente
inclusiva (2015), a emissora redigiu o Guia Todxs Nós de Linguagem Inclusiva (2020), com o
objetivo de promover o debate a respeito de práticas discursivas que validem e deem
visibilidade às pessoas não binárias.
O primeiro equívoco do Guia produzido pela HBO diz respeito a quem ele é dirigido.
Segundo a emissora, “este guia é um manual com uma proposta de reflexão para jornalistas e
pessoas influenciadoras. Pessoas que têm na comunicação seu ofício, profissionalmente ou
por paixão” (Guia Todxs Nós de Linguagem Inclusiva, p. 2). O público-alvo do Guia é
3
Série brasileira produzida em 2020 pelo canal por assinatura HBO.
20
restrito e bastante limitado, tendo em vista que seria coerente um guia de linguagem inclusiva
que se destinasse, principalmente, às pessoas não binárias.
Outro aspecto importante a ser observado no Guia da emissora é que ele afirma que a
linguagem neutra produz “reflexões sobre o uso de uma linguagem que promove equidade de
gênero, respeita e inclui mulheres, pessoas negras, pessoas com deficiência e LGBTQIA+
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero, Queer, Intersexo, Assexuais e Aliades)” (Guia
Todxs Nós de Linguagem Inclusiva, p. 7). Devido à falta de informação concreta e de uma
regulamentação da linguagem neutra, o seu uso tem sido indiscriminado e sem quaisquer
critérios, principalmente no ambiente virtual, causando confusão a respeito do seu uso. A meu
ver, embora mulheres, pessoas negras e com deficiência façam parte da minoria e devam ser
contempladas com políticas públicas que promovam o seu bem-estar, a linguagem neutra não
parece ser uma delas, a menos que essas pessoas sejam não binárias.
– uma mistura dos dois primeiros. De acordo com a dinâmica adotada pelo país, “aqueles que
se identificam na área cinzenta entre o masculino e o feminino são denominados de “Hijras” e
não tendem a agir como um homem ou mulher comum, mas de uma maneira própria”
(ROWEDER, 2015, p. 46). Sobre o terceiro gênero no hiduísmo, nota-se:
[...] O que existe é um forte conceito de terceiro gênero, que é usado para descrever
indivíduos que apresentam fortes elementos tanto de macho como de fêmea em si
mesmos. De acordo com textos sânscritos como o Narada-smriti, o Sushruta
Samhita, etc., esse terceiro sexo ou gênero inclui indivíduos convencionalmente
denominados homossexuais, transgêneros, bissexuais e intersexuais (LGBTI). O
terceiro gênero é descrito em antigos textos Védicos como homens que têm uma
natureza feminina, referindo-se a homens homossexuais ou que se identifiquem com
o gênero feminino (VIULA, 2015 apud ROWEDER, 2015, p. 45 e 46).
A Suécia também adotou um pronome de gênero neutro em seu idioma. Após uma
série de discussões e consultas públicas a respeito da escolha do pronome e suas eventuais
consequências, em 2015 foi inserido na Academia Sueca Glossário (SAOL) o pronome de
gênero neutro “hen” junto aos pronomes de gênero masculino “han” e feminino “hon”
(BÄCK, LINDQVIST e SENDÉN, 2018).
Os Estados Unidos da América não formalizaram que pronome de gênero neutro deve
ser usado no país. Segundo Aw Geiger e Nikki Graf (2019), colunistas do jornal Pew
Research Center, aproximadamente um em cada cinco adultos americanos conhece alguém
que usa um pronome de gênero neutro. O uso da linguagem não binária, porém, é mais
comum entre os adultos mais jovens. A Universidade de Wisconsin elaborou uma tabela com
as opções mais usadas entre os americanos para neutralizar o gênero:
O Canadá, nação bilíngue cujos idiomas oficiais são inglês e francês, também adotou o
uso de pronomes neutros. No inglês, são usados os mesmos pronomes comuns nos Estados
Unidos, com mais ênfase nos they/their/theirs e ze/hir/hirs (ALLEN, 2016). E no francês, foi
sugerida a utilização da terceira pessoa do singular e a substituição de an por un/une para
representar neutralidade4. O país, que está bastante engajado na luta pela inclusão linguística e
4
AUSSANT, Laurent. Respecter la non-binarité de genre en français. Disponível em:
https://www.noslangues-ourlanguages.gc.ca/fr/blogue-blog/respecter-la-non-binarite-de-genre-fra>. Acesso em:
15 dez 2020.
23
social, recentemente aprovou um projeto de lei que adapta trechos do seu hino nacional para
incluir pessoas não binárias5, além de implementar o terceiro gênero: X6.
5
WELLE, Deutsche. Canadá altera hino para respeitar neutralidade de gênero. Disponível em:
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/canada-altera-hino-para-respeitar-neutralidade-de-genero.ghtml>. Acesso
em: 22 de out 2020.
6
ZIMONJIC, Peter; ALLEN, Bonnie. Canadians will soon be able to ID gender as 'X' on their passports.
Disponível em: <https://www.cbc.ca/news/politics/transgender-passport-x-identify-1.4261667>. Acesso em: 22
de out 2020.
7
LA REPÚBLICA. RAE elimina pronombre “elle” de su Observatorio de Palabras. Disponível em:
<https://larepublica.pe/cultural/2020/11/08/rae-elimina-pronombre-elle-de-su-observatorio-de-palabras-mdga/>.
Acesso em 15 de out 2020.
24
Resende (1992) acrescenta que em Washington, nos Estados Unidos, os que advogam
pelas causas indígenas pleiteiam pela mudança do nome do time de futebol Redskinks, sob o
argumento de que chamar de “pele vermelha” um jogador de futebol soa como deboche. E
acrescenta que a expressão “rubro negro”, para denominar torcedores do time de futebol
carioca Flamengo, ofenderia negros e indígenas. O autor aduz ainda que, se essa linguagem
for aceita e padronizada, muitas palavras vão ser cassadas.
O masculino genérico é usado também quando o sujeito é composto por pelo menos
um nome masculino e um nome feminino e o predicado concorda com o masculino, como em
“[...] o homem e a mulher são formados pela cultura e pela sociedade em que vivem [...]”
(MÄDER e MOURA, 2016, p. 34). Por fim, temos a utilização nos casos em que o gênero do
sujeito é indefinido e o predicado concorda no masculino, como em “quais são os direitos de
quem foi demitido?” (MÄDER e MOURA, 2016, p. 34).
Sobre esse assunto, Bagno (2011) aduz que os destinos do idioma são determinados
pelas pessoas que compõem a sociedade, que, desde a pré-história, é norteada pelo
predomínio masculino. Afirma, ainda, que, se uma mulher e seu cachorro são atropelados por
25
Podemos inferir da leitura dos exemplos acima que a escolha do uso do masculino
genérico – e até mesmo do feminino genérico – perpassa o nível social e é direcionada por
estereótipos definidos pelo contexto sócio-histórico. Contudo, esse conceito de masculino
genérico apresenta alguns problemas, entre eles o de que, de acordo com a concepção de
“gênero não marcado”, o masculino teria um status mais importante do que o feminino, pois
sairia de uma categoria básica, masculino e feminino, para uma superordenada, a de ser
humano (MÄDER e MOURA, 2016):
Considerações finais
Por fim, é importante que os linguistas e gramáticos estejam atentos e preparados para
as mudanças sociais que surgem a todo momento e que impactam diretamente na Língua
Portuguesa, possibilitando a ampliação ou a construção de categoriaslinguísticas que
representem a todos, todas e todes.
Referências bibliográficas
ALLEN, Maj D.L.Beyond the gender binary: Tackling non-binary and transgender
issues in the Canadian armed forces. Canadian forces college - COLLÈGE DES FORCES
CANADIENNES JCSP 41 DL – PCEMI 41 AD, 2015 – 2016
BÄCK, Emma A.; LINDQVIST, Anna; SENDÉN, Marie Gustafsson. Hen. Bakgrund,
attityder och användande. Psykologiska rapporter från Lund Volym 8, Nr. 1, 2018.
JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos /
Jaqueline Gomes de Jesus. Brasília, 2012.
29
VITIELLO, Ruben. Linguaggio inclusivo in italiano: guida pratica per chi scrive per
lavoro (e non). Disponível em: <https://www.tdm-magazine.it/linguaggio-inclusivo-in-
italiano-guida-pratica/>. Acesso em: 22 de out. de 2020.