PINTO, Surama Conde Sá. O Poder Judiciário Na Primeira República

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http://dx.doi.org/10.34019/2594-8296.2019.v25.

28711

O Poder Judiciário na Primeira República:


revisitando algumas questões

The Judiciary in the First Republic: revisiting some issues

El poder judicial en la Primera Republica: revisando algunas cuestiones

Surama Conde Sá Pinto1


https://orcid.org/0000-0002-7921-3038
Tatiana de Souza Castro2
https://orcid.org/0000-0003-0126-027X

RESUMO: Este artigo analisa o papel do Judiciário brasileiro na Primeira República. Na base
documental, utilizamos habeas corpus originários do Distrito Federal, protocolados no STF, nos anos
1920, que estão disponíveis no Arquivo do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, e no Arquivo
Nacional, na cidade do Rio de Janeiro. Do ponto de vista metodológico, lançamos mão da amostragem;
foram catalogados 20% dos processos protocolados no início de cada ano. Conforme será
demonstrado, apesar da facilidade de ser solicitado, o instituto do habeas corpus esteve longe de ser um
remédio, de fato, concedido à população na Primeira República, pois sua concessão era bastante
restrita. O principal argumento aqui defendido é o da necessidade de relativização das interpretações
que supervalorizam o papel do STF e do Judiciário no exercício da cidadania no período. Tais
enunciados projetam para o período em questão o papel desempenhado pelo STF na democracia
brasileira da Nova República, momento em que esses estudos são produzidos, e superdimensionam a
atuação do Poder Judiciário para combater o modelo de uma cidadania reativa, construída a partir das
análises divulgadas nos anos 1980.
PALAVRAS CHAVE: Poder Judiciário, habeas corpus, Primeira República

1 Professora Associada do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(PPHR/UFRRJ), doutora em História Social pelo PPGHIS/UFRJ e autora dos livros A Correspondência de Nilo Peçanha e a
dinâmica política na Primeira República (1998) e Só para iniciados ...O jogo político na antiga capital federal (2011). Possui experiência
em pesquisas nas áreas de História Brasil República (com ênfase em Estado, instituições e cidadania) e História do Rio de
Janeiro (cidade e estado). E-mail: [email protected]
2 Doutora em História pelo PPGH/UFRRJ, Doutoranda em Direito pela Università degli studi di Macerata. Autora da tese,

“Assim se espera Justiça”: o remédio jurídico do habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (1920-1929) Possui experiência em pesquisa
na área de História do Brasil, com ênfase em História do Brasil republicano e história do direito, atuando principalmente nos
seguintes temas: Poder Judiciário, processos judiciais, imprensa e cidadania. E-mail: [email protected]

Locus: Revista de história, Juiz de Fora, v.25, n. 2, p.37-58, 2019


E-ISSN: 2594-8296 - ISSN-L: 1413-3024

This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
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• SURAMA CONDE SÁ PINTO
E TATIANA DE SOUZA CASTRO

ABSTRACT: This article analyzes the role of the Brazilian judiciary in the First Republic. As a
documentary basis, we use original habeas corpus lawsuits of the Federal District, filed with the STF in
the 1920s, which are available at the Supreme Court Archive in Brasilia and at the National Archive in
Rio de Janeiro. As the methodological point of view, we use sampling; 20% of the processes filed at the
beginning of each year were cataloged. As will be shown, despite being easily requested, the habeas
corpus institute was far from being a remedy, in fact, granted to the population in the First Republic, as
its grant was quite restricted. The main argument defended here is the necessity for relativization of
interpretations that overestimate the role of the Supreme Court and the Judiciary in the exercise of
citizenship in the period. These statements project for the period the role played by the Supreme Court
in the Brazilian democracy of the New Republic, when these studies are produced, and oversize the
action of the judiciary to combat the model of a reactive citizenship, built from the analyzes disclosed
in the 1980s.
KEYWORDS: Judiciary, habeas corpus, First Republic.

RESUMEN: Este artículo analiza el papel del poder judicial brasileño en la Primera República. Sobre
una base documental, utilizamos los pedidos de hábeas corpus del Distrito Federal, presentados ante el
STF en la década de 1920, que están disponibles en el Archivo de la Corte Suprema (STF) en Brasilia y
en el Archivo Nacional en la ciudad de Río de Janeiro. Desde el punto de vista metodológico,
utilizamos el muestreo; el 20% de los procesos presentados al comienzo de cada año fueron
catalogados. Como se mostrará, a pesar de ser fácilmente solicitado, el instituto de hábeas corpus estaba
lejos de ser un remedio, de hecho, otorgado a la población de la Primera República, ya que su
concesión era bastante restringida. El principal argumento defendido aquí es la necesidad de relativizar
las interpretaciones que sobreestiman el papel de la Corte Suprema y el Poder Judicial en el ejercicio de
la ciudadanía en el período. Estas declaraciones proyectan para el período en cuestión el papel
desempeñado por la Corte Suprema en la democracia brasileña de la Nueva República, cuando se
producen estos estudios, y sobredimensionan la acción del poder judicial para combatir el modelo de
ciudadanía reactiva, construido a partir de los análisis divulgados en la década de 1980.
PALABRA CLAVE: Poder judicial, habeas corpus, Primera Republica.

Para citar este artigo:


PINTO, Surama Conde Sá; CASTRO, Tatiana de Souza. O Poder Judiciário na Primeira República:
revisitando algumas questões. Locus - Revista de história, Juiz de Fora, v.25, n. 2, p.37-58, 2019 E-
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Os advogados abaixo assignados, Dr. Maurício de Lacerda, Alexandre Silviano


Brandão e Paulo Paiva de Lacerda, ..., vêm requerer uma ordem de habeas corpus

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preventivo, em favor do primeiro signatário, afim de lhe ser assegurado o direito de


locomoção e livre manifestação de pensamento, a salvo de qualquer coação, na capital
ou em outra qualquer localidade do Estado de Minas Gerais, realizando comícios nas
ruas e praças públicas ou em quaesquer recintos, manifestando livremente suas
opiniões, em propaganda das candidaturas dos Snrs. Drs Nilo Peçanha e José Joaquim
Seabra à presidência da República, no pleito eleitoral a ferir-se (sic) em 1º de março p.
vindouro.3

Luiz Macedo vem nos termos do artigo 72, paragrapho22, da Constituição Federal e
mais leis vigentes, impetrar desse Colendo Tribunal uma ordem de habeas corpus em
seu favor, em virtude ao constrangimento ilegal que está sofrendo em sua liberdade de
locomoção ...4

Os advogados abaixo assignados, vêm impetrar a este Venerado Tribunal uma ordem
de habeas corpus em favor dos presos que se encontram no Presídio provisório da
Immigração, em São Paulo, entre os quaes se encontram os seguintes officiaes:
General Ximeno de Villeroy, Capitão Octavio Garcia Feijó, 1º Tenente Luiz Cordeiro
de Castro Afilhado, Capitão Honorato Duguet Leitão, Capitão Luzo Alves Garrido,
Capitão Raul da Veiga Machado, Capitão Solon de Oliveira, Capitão Faustino Candido
Gomes, 1º Tenente Aguinaldo Valente de Menezes, 1º Tenente Ary da Fonseca Cruz,
1º Tenente Nelson de Mello ...
... o Art; 80, § 2 da Constituição Federal limitando a acção do executivo durante o
estado de sitio, declarou expressamente que o Governo em caso algum poderia
prender os detidos políticos em logar destinado aos réos de crimes comuns.
... A mais completa promiscuidade é a base do regimen carcerário da Immigração de
São Paulo, estando na mesma sala Generais e Officiaes de patentes inferiores, e até
presos sem cathegoria militar alguma.
... Os presos da Immigração não saem nunca ... Até as cloacas, lavadas de 20 em 20
dias estão colocadas dentro da sala em que estão presos esses officiaes...5

Maurício de Lacerda, Luiz Macedo e o General Ximeno de Villeroy, em 31 de janeiro de 1922, 13


de janeiro de 1923 e 13 de janeiro de 1926, respectivamente, impetraram habeas corpus recorrendo ao
Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir o exercício do que consideravam seus direitos. No
primeiro caso, tratava- se de um político fluminense, do grupo de Nilo Peçanha, interessado em
garantir o direito de fazer campanha em prol da chapa da Reação Republicana à presidência da
República para o pleito de 1922, sem o risco de coação, em Minas Gerais. O referido estado era berço
do adversário de Nilo – Arthur Bernardes – candidato vitorioso no escrutínio de março de 1922. No
segundo, o solicitante era um “contraventor” pego com uma lista de jogo do bicho nas mãos. Macedo
solicitava sua soltura, sob a alegação de que não houve exame de corpo de delito no ato da sua prisão e
que a mesma configurava abuso de autoridade pelo fato do policial que o apreendeu ter também

3 Habeas corpus n.º 8.343 de 1922, Arquivo do Supremo Tribunal Federal. Doravante, a referência aos habeas corpus será feita
através das letras HC e a referência ao Arquivo do Supremo Tribunal Federal através da sigla ASTF.
4 HC n.º 8.847 de 1923, ASTF.
5 HC n.º 17.114 de 1926, ASTF.

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figurado como testemunha. Já no terceiro caso citado, o requerente era um militar de alta patente, preso
político, que reivindicava junto com outros colegas de caserna tratamento condizente ao seu posto na
hierarquia militar. A recorrência de pessoas ao STF na Primeira República, como os casos citados do
político, do contraventor e do militar, tem despertado a atenção de pesquisadores nos últimos anos.6
Em parte, o interesse se justifica em função da refundação do pacto Republicano democrático, com a
promulgação da Constituição de 1988, que assegurou ao STF importante papel na defesa dos direitos
do cidadão, depois de décadas de limitações e intervenções impostas pela ditadura militar (1964-1985).
Mais recentemente, a evidência que esta instituição tem experimentado nas mídias, num contexto em
que o texto da Carta de 1988 foi transformado num campo de batalha, e a divulgação de diagnósticos
que apontam para os fenômenos da judicialização da política e da politização do Judiciário7 também
têm servido de estímulo à reflexão sobre o papel desempenhado por este tribunal em diferentes
momentos da experiência política brasileira.
A despeito do mencionado, contudo, e embora tenha projetado importantes figuras no cenário
nacional, como Rui Barbosa, Evaristo da Costa e Pedro Lessa, o Judiciário é dos três Poderes o menos
estudado para o período da Primeira República. Esse quadro, em parte, se explica em função de
interpretações que tendem a predominar nas análises sobre o período, segundo as quais a justiça e o
Judiciário são vistos como uma espécie de prolongamento do poder das oligarquias estaduais. Tal chave
de leitura se expressa de forma magistral em frases que denotam a falta de autonomia da instituição em
face a um sistema político dominado pelo coronelismo8 ,como ... Para os amigos tudo; para os inimigos a lei9.
Na contramão dessa interpretação, contudo, surgiram trabalhos que, radicalizando posições, sustentam
a importância do STF e do Judiciário enquanto locus que garantia o exercício de cidadania. De acordo

6 COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construcao da cidadania Sao Paulo: Ieje, 2001. RIBEIRO, Gladys
Sabina. O Povo na Rua e na Justica, a Construcao da Cidadania e Luta por Direitos: 1889-1930. In SAM AIO Maria a
en a ranco RAN O Maria o Socorro LONG I atricia. Autos de memória: a história brasileira no Arquivo da
Justica Federal: Tribunal Regional Federal – Rio de Janeiro, 2006. p.155-223. KOERNER, Andrei. O habeas-corpus na pratica
judicial brasileira (1841-1920) Te e e outora o Sao aulo US 1998 ASTRO Tatiana e Souza “Assim se espera Justiça”:
o remédio jurídico do habeas no Supremo Tribunal Federal (1920-1929). Tese de Doutorado em História. PPGH, UFRRJ,
Seropédica, 2018. Já dispomos também de um conjunto de trabalhos que utilizam como fonte Habeas Corpus, sem
necessariamente estarem voltados para a análise do papel do Poder Judiciário na Primeira República. Nessa categoria,
podem ser citados, entre outros, os seguintes livros: SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma i toria social da
prostituicao no Rio e aneiro a primeira e cadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006; CAULFIELD,
Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nacao no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da
Unicamp, 2005.
7 CASTRO, M. O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, 12, São

Paulo, 1997, p. 147-55. CARVALHO, E. R. de. Em busca da judicialização da política no Brasil: Apontamentos para uma
nova abordagem. In: Revista de Sociologia e Política. Curitiba, 2006, p. 1-17. MACIEL, D. A. ; KOERNER, Andrei. O sentido
da judicialização da política. Duas análises. In: Lua Nova, 57, 2002, p 11 - OERNER An rei a ea -corpu pratica
u icial e controle ocial no ra il 18 1-19 Sao Paulo: IBCCrim, 1999.
8 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto o municipio e o regime representativo no Brasil. 7ª e Sao Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
9 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 57.

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REVISITANDO ALGUMAS QUESTÕES •

com esses estudos, utilizados na tentativa de resolver problemas vivenciados pelos cidadãos, os habeas
corpus permitem vislumbrar práticas de cidadania da população na Primeira República10. Mais
recentemente, uma terceira vertente interpretativa foi inaugurada relativizando os enunciados
anteriores. De acordo com ela, embora o Judiciário, não raro, tenha sido visto por diferentes setores da
sociedade como espaço de defesa do que consideravam direitos de cidadania, na prática, no exame do
instituto do habeas corpus, o STF não foi uma instância que contribuiu para a garantia de tais direitos, já
que apresentava um modus operandi que dificultava a concessão de tais pedidos11.
Nossa proposta neste artigo é contribuir para esse debate. Num momento em que a República
brasileira completa 130 anos, consideramos oportuno fornecer novos subsídios que permitam uma
melhor compreensão do efetivo papel desempenhado pelo Poder Judiciário nessa fase da história
republicana brasileira.
Para viabilizar a análise sobre o papel do chamado terceiro poder na Primeira República, partimos
de alguns recortes. O primeiro diz respeito ao período abordado. Aqui utilizamos como balizas
cronológicas os anos 1920. A escolha não foi fortuita. A década de 1920 representa uma fase de
importantes mudanças para a sociedade brasileira. Trata-se de um momento que condensa um conjunto
grande de transformações nos âmbitos da sociedade, como o aumento das camadas médias e da classe
trabalhadora, da economia, com o crescimento dos centros urbanos e a diversificação das atividades
econômicas, e da política, já que aglutinou uma sucessão de eventos que mudariam de forma
significativa o panorama político e cultural brasileiro. Referimo-nos à Semana de Arte Moderna, à
criação do Partido Comunista, ao movimento tenentista, à criação do Centro Dom Vital, à
comemoração do centenário da Independência e à própria sucessão presidencial de 1922 que podem
ser tomados como indicadores importantes dos novos ventos que sopravam no cenário brasileiro12.
Outrossim, nos anos 1920, verifica-se um significativo aumento no número de processos analisados
pelo Supremo e a proporção de habeas corpus nesse total também acompanhou o crescimento, passando
a predominar na agenda de julgamentos do Judiciário.13 Vale ainda destacar, em 1926 ocorreu uma
reforma constitucional que alterou a definição deste instituto, limitando-o. Assim, o período recortado

10 RIBEIRO, Gladys Sabina. O Povo na Rua e na Justica, a Construcao da Cidadania e Luta por Direitos: 1889-1930. In SAM AIO
Maria a en a ranco RAN O Maria o Socorro LONG I atricia. Autos de memoria a i toria brasileira no
Arquivo da Justica Federal: Tribunal Regional Federal – Rio de Janeiro, 2006. pp.155-223
11 CASTRO, Tatiana e Souza “Assim se espera Justiça” o remé io urí ico o a ea no Supremo Tri unal e eral 19 -
1929). Tese de Doutorado em História. PPGH, UFRRJ, Seropédica, 2018.
12 FERREIRA, Marieta de Moraes e PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a revolução de 1930. In:

DELGADO, Lucília e FERREIRA, Jorge L. O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vol, 1, 2013, p. 373.
13 De acordo com CASTRO, quase 70% dos processos entre 1920-1924 examinados pelo Poder Judiciário eram habeas

corpus. ASTRO Tatiana e Souza “Assim se espera Justiça”: o remédio jurídico do habeas no Supremo Tribunal Federal
(1920-1929). Tese de Doutorado em História. PPGH, UFRRJ, Seropédica, 2018. p.14

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funciona como janela que permite comparar dois momentos: o anterior e o posterior à reforma
constitucional de 1926 que restringiu a utilização do habeas corpus, alterando seu uso.
Do ponto de vista documental utilizamos como base os habeas corpus originários do Distrito
Federal, protocolados no STF, que estão disponíveis no Arquivo do Supremo Tribunal Federal, em
Brasília, e no Arquivo Nacional, na cidade do Rio de Janeiro. Em termos de metodologia, no manuseio
da fonte indicada foi utilizada a técnica da amostragem, sendo catalogados 20% dos processos
protocolados no início de cada ano.
Uma vez realizado o levantamento documental, chegou-se ao número de 435 processos
protocolados, mas, para a análise aqui proposta, utilizaremos apenas os habeas corpus, de fato,
concedidos pelo STF, o que perfaz um total de 53, dos quais 38 foram concedidos totalmente e 15
concedidos apenas parcialmente.
Conforme será demonstrado, apesar da facilidade de ser solicitado, o HC esteve longe de ser um
remédio, de fato, concedido à população na Primeira República; sua concessão nos anos 1920 foi
bastante restrita. Esse dado nos leva a relativizar interpretações que supervalorizam o papel do STF e
do Judiciário no exercício da cidadania. Consideramos que tais enunciados projetam para o período em
questão o papel desempenhado pelo STF na democracia brasileira da Nova República, momento em
que esses estudos são produzidos, e superdimensionam a atuação do Poder Judiciário para combater o
modelo de uma cidadania reativa, construída a partir das análises de José Murilo de Carvalho14.

O Poder Judiciário na Primeira República

O Poder Judiciário passou por muitas transformações com a mudança de regime, em 1889. Uma
das principais foi o fim de sua submissão ao Poder Moderador, que foi extinto na nova ordem. Este
processo não significou, contudo, automática conquista de autonomia ou independência. Com a
República, um novo Judiciário foi criado, sobretudo no que diz respeito à organização estrutural e
atribuições. O antigo modelo imperial unitário cedeu espaço para a criação de um sistema dual de
Justiça e à instituição foi garantida o papel de guardiã da Constituição.
Seguindo o modelo difuso norte-americano e refletindo os princípios republicanos e federativos,
com a Carta de 1891, o Judiciário brasileiro passou a ser dividido em dois: um Judiciário Federal e um
Judiciário estadual. A autonomia conferida aos estados para elaborar suas próprias constituições foi
estendida à organização do funcionamento do Poder Judiciário local, passando a existir, assim, uma
sessão judicial federal e o respectivo Judiciário local. Os dois Judiciários eram independentes entre si,

14 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987.

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REVISITANDO ALGUMAS QUESTÕES •

mas o estadual deveria respeitar acima de tudo a Constituição federal. Além disso, caso o Federal fosse
julgar algum processo estadual, a título de recurso na Suprema Corte, o mesmo deveria seguir a
legislação estadual.
Essa dualidade do Judiciário acabou fazendo com que a instituição fosse influenciada por questões
políticas ao longo do período. Segundo Victor Nunes Leal, a organização judicial estadual contribuiu
para sustentar o sistema coronelista. Isso se deu devido à falta de independência da magistratura local e
ao sistema de livre nomeação e demissão dos membros do Ministério Público local, utilizado
frequentemente como instrumento de ação partidária.15 Embora não tenha aprofundado o estudo do
Judiciário estadual, o autor destacou a influência da política local sobre o mesmo.
A Justiça federal também era alvo de estratégias políticas na época. De acordo com Andrei
Koerner16, o controle do Poder Judiciário federal era importante na Primeira República, pois tanto o
STF quanto os juízes federais tinham o poder de julgar os conflitos entre a União e os estados, os
crimes políticos, dentre outros. Além disso, a Constituição previa a intervenção federal nos estados em
caso de desobediência a leis federais. Nesse sentido, a justiça federal figurava como instrumento para as
facções políticas nos conflitos regionais. Assim, segundo Koerner, é preciso pensar o Poder Judiciário
federal como uma instituição que fazia parte do sistema político da Primeira República, ou seja,
considerar que as características do Judiciário federal foram determinadas pelas características do
sistema político federal.
Para uma melhor compreensão do conjunto das transformações processadas, na tabela abaixo são
indicadas algumas das principais mudanças verificadas no Poder Judiciário com o advento do novo
regime:

15 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto o municipio e o regime representativo no Brasil. 7ª e Sao Paulo:
Companhia das Letras, 2012, p.93.
16 KOERNER, Andrei u iciario e cidadania na Constituicao da Primeira Republica brasileira. (1841-1920). 2ª e uriti a
urua, 2010.

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ALTERAÇÕES NO PODER JUDICIÁRIO


Império República
Atuação enquanto Submisso ao Poder Autônomo, equiparado aos
Poder de Estado Moderador outros dois Poderes.
(Executivo e Legislativo)
Organização do Judiciário unitário Judiciário dual*
Judiciário
Corte Suprema Supremo Tribunal de Justiça** Supremo Tribunal Federal***
FONTE: CASTRO:2018, 41.
* Justiça Federal e Justiça Estadual – como instancias autônomas. A Estadual tinha independência de organização e de
constituição de leis, desde que respeitando a Constituição Federal.
** com função revisionista, não julgava questões políticas, apenas o direito privado.
*** julgava assuntos federais em primeira instância e recursos em última, função de resguardar a unidade do direito federal
em face da autonomia política dos Estados, decidir da constitucionalidade dos atos dos demais Poderes - responsável pela
harmonia entre os Poderes e pelo respeito aos direitos individuais.

Durante o Império, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), criado em 1829, para ocupar as funções
da extinta Casa de Suplicação,17 funcionou como “ orte Suprema.” Extinto na República, o STJ foi
substituído pelo Supremo Tribunal Federal (STF), criado em 1890, com características distintas e
inovadoras.
Ao STF caberia verificar a constitucionalidade dos atos dos demais poderes, – podendo declarar a
inconstitucionalidade de leis federais e estaduais – julgar litígios entre estado e União, bem como
defender os direitos do cidadão. Com a prerrogativa de verificar a constitucionalidade das leis e dos
atos dos demais Poderes, o STF iniciava uma nova fase de atuação para a Suprema Corte que rompia
totalmente com a que era exercida pelo STJ.
No Império, o STJ não era um tribunal constitucional, não era árbitro de conflitos entre os
Poderes, nem lhe foi dado o poder de rever a constitucionalidade dos atos do legislativo, esse papel
cabia ao Conselho de Estado, como destacou Lima Lopes18 (2010:13). O STJ era um tribunal de revista,
um tribunal de cassação no modelo europeu, que julgava apenas conflitos entre órgãos do próprio
Judiciário e não entre os outros Poderes de Estado na monarquia.

17 A Corte Suprema no Brasil foi representada por tribunais que possuíam características distintas ao longo do tempo. Com
a chegada da família real, em 1808, não havia mais motivos para se manter a Casa de Suplicação de Lisboa, foi assim que o
ra il pa ou a e iar ua primeira “ orte Suprema” a a a e Suplicação que ocupou o lugar o Tri unal e Relação o
Rio de Janeiro.
18 SLEMIAN, Andréa; LOPES o e Reinaldo de Lima; NETO, Paulo Macedo Garcia. (Orgs.) O Supremo Tribunal de Justiça

do Império. (1828-1889) São Paulo: Saraiva, 2010. P.13

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REVISITANDO ALGUMAS QUESTÕES •

O Supremo Tribunal Federal (STF) tinha suas competências divididas em primeira e única
instância, em grau de recurso e última instância e ainda possuía a função de revisar processos criminais
em que houvesse sentença ordenatória definitiva, qualquer que tivesse sido o juiz ou tribunal julgador.
Mas pode-se afirmar que duas das principais funções atribuídas ao STF foram: avaliar a
constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo e garantir os direitos constitucionais do
cidadão.
Segundo Emilia Viotti da Costa19, o STF funcionou na Primeira República como uma espécie de
caixa de ressonância da política nacional, uma vez que acabou participando e registrando os ritmos
agitados das lutas políticas travadas no período. Como resultado direto, a instituição sofreu com as
consequências dessas disputas, se tornando ao mesmo tempo agente e paciente dessa história.
As relações entre Executivo e Judiciário na Primeira República foram analisadas por Gladys
Ribeiro20. De acordo com a autora, havia divergências entre os dois Poderes quanto a questão da
autonomia do Judiciário e do papel do STF. Gladys Ribeiro defende que o Supremo, juntamente com a
Justiça Federal, constituíam uma espécie de braço direito da defesa das liberdades e do alargamento dos
direitos dos cidadãos, sobretudo através das sentenças dos pedidos de habeas corpus. Em outros termos,
o STF defendia não apenas posições políticas próprias ma ireito inerente a cidadania. Atuando
desta forma, o Judiciário ganhou gradualmente força e poder político, tornando-se na República uma
espécie de arbitro dos Poderes e o lugar de defesa dos direitos dos cidadãos. Para a autora, a despeito de
todas as ameaças do Poder Executivo, de toda a instabilidade política, o STF conseguiu ao longo da
Primeira República se estabilizar enquanto a Corte Suprema do país.
Ao olharmos a performance e funcionamento deste Tribunal na Primeira República, não há como
negar que o mesmo foi adquirindo estabilidade, se politizando e exercendo importante atuação junto ao
Estado brasileiro. Peça importante nesse processo foi o instrumento do habeas corpus.

Habeas corpus: o “remédio” jurídico

O habeas corpus, o latim “tome o corpo” – habeas: ter, manter, possuir, tomar posse; e corpus,
corpo – se fez presente no ordenamento político brasileiro pela primeira vez no Código de Processo
Criminal de 1832 e sofreu diversas transformações em sua definição ate os dias atuais. 21

19 COSTA, Emília Viotti de. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. São Paulo: Ieje, 2001. p.15
20 RIBEIRO, Gladys Sabina. Cidadania e luta por direitos na Primeira República: analisando processos da Justiça Federal e
do Supremo Tribunal Federal. Revista Tempo, Niterói, 1o sem. 2009. pp.101-117, 1º sem. 2009.
21 Sobre a origem do habeas corpus ver CASTRO, 2018, Capítulo 2, p.83.

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No Império, o habeas corpus era um recurso judicial para garantir a inviolabili a e o ireito a
liberdade. Na República, ele foi ampliado, tornando-se um direito individual, isto é, o habeas corpus
passou a ser uma garantia definida na Constituição de 1891. Esse novo sentido conferido ao instituto
do HC fez com que o mesmo passasse a atuar como um remédio constitucional e ampliasse as garantias
dos cidadãos, consolidando a atuação do Supremo Tribunal Federal e do Poder Judiciário brasileiro.
Nesse sentido, entendemos o habeas corpus republicano como um novo tipo de habeas corpus e não
como um sucessor ou uma versão mais aperfeiçoada do habeas corpus imperial.
Conforme ficou definido na Constituição de 1891, Art. 72 § 23. “Dar- e- o habeas corpus,
sempre que o indivíduo sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder, ou se sentir
vexado pela iminência evi ente e e perigo”22. O instituto era impetrado com o objetivo de cessar
qualquer ameaça ou violência de constrangimento ilegal. A interpretação dessa definição considerada
ampla e liberal foi objeto de debate ao longo de toda a Primeira República, culminando com a sua
limitação na alteração do artigo que o definia com a reforma constitucional de 1926.
Essa definição do habeas corpus, na Carta de 1891, apresentava características únicas que inovaria
o uso do instituto, já que permitia sua utilização para proteger qualquer liberdade e não apenas a
corpórea, como fora previsto em suas origens ainda da Magna Carta de 1215, na Inglaterra, e,
posteriormente, com o Habeas Corpus Act de 167923. Assim, ao longo da Primeira República,
encontramos pedidos de habeas corpus solicitados para proteger direitos políticos, liberdade de
imprensa, assegurar posse, solicitar dispensa de serviço militar, entre outros. A proteção do direito de
locomoção, que seria o seu uso tradicional, também era verificada, porém, muitas das vezes um mesmo
pedido de habeas corpus incluía a solicitação de proteção de locomoção – quando a pessoa se
encontrava presa ou em ameaça de ser – e outras proteções, como o pagamento de soldos atrasados.
Tal uso só foi encontrado na experiência jurídica brasileira, o que torna o estudo do habeas corpus
brasileiro algo tão singular e importante para a história do direito.
Havia duas correntes interpretativas sobre os usos do HC: uma tradicionalista e uma liberal. Os
representantes da primeira, como o ministro Pedro Lessa, consideravam a definição supracitada muito
ampla e defendiam que o instituto deveria proteger apenas o direito de locomoção. Já os defensores da
segunda, representados por Rui Barbosa, concebiam o uso do habeas corpus como uma proteção para
qualquer liberdade individual que, de fato, fosse ameaçada. Com a emenda constitucional de 3 de
setembro de 1926, contudo, o instituto do habeas corpus foi alterado, tornando-se limita o apena a

22 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm> Consultado em: 15/09/2019.


23 Ver CASTRO, 2018, p. 83.

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defesa do direito de locomoção. Terminava, assim, o período que ficou conhecido como doutrina
brasileira do habeas corpus.

Figura 1: Charge retratando Rui Barbosa como um par constante do habeas corpus.
FONTE: http://www.oab.org.br/historOKiaoab/links_internos/foto_rui_habeas.htm Acessado em 15/09/2019.

O processo de habeas corpus poderia ser recursal ou originário. Um HC recursal era proveniente de
julgamentos, com sentença negativa, da justiça de primeira instância, sendo ela local ou federal. Nesses
casos, recorria-se ao Supremo Tribunal Federal. Já o HC originário era solicitado diretamente ao
Supremo Tribunal Federal. O habeas corpus poderia ser ainda liberatório ou preventivo. No primeiro
caso era utilizado para fazer cessar um constrangimento ilegal. Já no segundo, era usado para proteger o
indivíduo de um constrangimento que ele estivesse ameaçado de sofrer.
Por ser uma ação que vi ava garantir a li er a e que e considerado um direito fundamental, a
solicitação do habeas corpus não precisava ser feita por um advogado. A própria pessoa que se sentisse
privada ou ameaçada de sua liberdade por constrangimento ilegal poderia redigir o pedido.
Uma das características marcantes do processo de habeas corpus era sua celeridade. Por se tratar de
um pedido de garantia da liberdade individual, não poderia demorar para ser julgado. Era uma ordem e,
como tal, deveria ser cumprida o mais rápido possível. Normalmente ele era protocolado pelo
secretário o ST e em ate sete dias, era julgado pelos ministros do STF. A ordem de habeas corpus não
possuía custas ao paciente. Também não era necessária uma folha ou formulário especifico para sua
solicitação. Assim, não é raro encontramos solicitações feitas por detentos em papel de pão, papel
higiênico e até mesmo em lençol, enviadas ao Judiciário para julgamento, redigidas de próprio punho.
Nos processos encontramos, inclusive, um pedido de habeas corpus redigido em uma ficha de telegrama
dos Telégrafos do Brasil, sendo enviado ao STF. O paciente e impetrante era o major do exército

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Felipe Moreira Lima, que enviava o pedido ao STF por telegrama, por se encontrar preso, sendo
transferido da capital para uma prisão no Rio Grande do Sul24.
Na capa do pedido de habeas corpus, fosse ele um recurso ou uma petição originaria, deveria constar
o número do processo, a localização do mesmo – a cidade –, o relator – ministro do STF – que era
designado a tratar do processo, o nome do paciente – aquele que sofria a privação ou ameaça a sua
liberdade –, o nome do impetrante – o que redigia a solicitação do habeas corpus –, e a data em que o
mesmo foi protocolado pelo Secretário do Supremo Tribunal Federal que assinava no fim da página.
Em caso de recurso, além do nome do paciente, deveria constar a instância da origem do recurso.

Figura 2: Capa e última página de uma Petição de Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal – Habeas Corpus originário.
FONTE: HC10.269, 05/01/1924, ASTF.

O habeas corpus acabou se tornando uma ferramenta utilizada pela sociedade para conter o que
era considerado pelos pacientes casos abusos de poder. O Supremo Tribunal Federal recebeu diversos
pedidos de habeas corpus durante a Primeira República. O instituto funcionou como uma espécie de
ponto de contato entre a população e o Judiciário.
Ao serem catalogados 20% dos processos originários protocolados no Distrito Federal no início
de cada ano dos anos 1920, chegou-se ao número de 435 processos. Desse universo de habeas corpus,
contudo, os que, de fato, foram concedidos pelo STF, perfazem apenas um total de 53, dos quais 38
foram concedidos totalmente e 15 concedidos parcialmente. Os números mostram que o Supremo se
pronunciou favoravelmente em pouco mais de 12% do universo de pedidos encaminhados, e, se
formos mais rigorosos, considerando somente os pedidos integralmente aceitos, o índice cai para 8,7%,

24 HC n.º 18.590 de 1927, ASTF

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o que não representa nem um quinto das solicitações. Antes de analisarmos esses casos, contudo,
convém falar sobre um perfil dos pacientes.

Quem pediu ao STF e conseguiu habeas corpus nos anos 1920

Traçar o perfil dos pacientes que tiveram seus pedidos concedidos pelo SFT não é tarefa fácil. A
dificuldade reside na precisão das informações, em função da diversidade do padrão de redação dos
processos. Como já foi dito, o próprio paciente poderia redigir seu habeas corpus, o que fez com que
nem sempre fosse informado dados pessoais de uma forma mais completa, diferente do que ocorria
quando os pedidos eram redigidos por advogados.
Assim, a ausência de um padrão de apresentação desses pacientes dificulta o processo de
identificação. É possível, contudo, recolher algumas informações que nos auxiliaram nesse sentido. Em
uma análise geral dos processos concedidos – por concedidos consideramos os concedidos
integralmente e os em parte – notamos que 81%, ou seja, 43 processos, foram solicitados
individualmente, enquanto 10,19%, foram solicitados de forma coletiva, isto é, por dois ou mais
pacientes. Ainda desse universo de pedidos concedidos, 43%, o que equivale a 23 processos de 53
foram impetrados por advogados. Notamos, assim, que a maioria dos pedidos eram solicitados de
forma individual e pelo próprio paciente. Esse dado é importante, pois revela que o fato de ser
impetrado por um advogado ou de forma coletiva não garantia maiores chances de aprovação.
No que diz respeito ao sexo e nacionalidade, os pacientes eram em sua totalidade homens, sendo
90% brasileiros e 10% estrangeiros; estes últimos representando um total de 5 pacientes (um russo, um
sírio, um americano, um francês e outro italiano)25.
A informação sobre a profissão desses pacientes contribui para verificarmos se eram alfabetizados
ou não. Esse dado, contudo, nem sempre está presente nos processos. Em 30% dos processos tal
informação não foi encontrada e nos outros 70% notamos um total de doze profissões indicadas.
Como podemos observar na tabela a seguir, quase metade dos pedidos concedidos, 26 no total de 53,
tinham militares como pacientes, perfazendo 49%. Nesse universo, predominavam como pacientes
generais, capitães e tenentes, com 32% dos casos verificados; já soldados e praças, entre outros
representavam 17%.

25 HCs n.º: 18.694, 1927; 19.291,1927; 10.327, 1924; 10.531, 1924; 14.707, 1925, ASTF

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PROFISSÃO PACIENTES
Profissão Número %
Juiz 1 2
Desembargador 1 2
Jornalista 1 2
Vereador e Advogado 1 2
Ex-presidente e marechal 1 2
Empregado no comércio 1 2
Comerciante 1 2
Negociante 1 2
Operário 1 2
Copeiro 1 2
Ex-alunos escola militar 1 2
Militar
Soldados, praças 9 17
Generais, capitães, tenentes 17 32
Não Informada 16 30
Total 53 100
FONTE: HCs ASTF, CASTRO, 2018.

Conforme será discutido adiante, essa presença expressiva de militares entre os solicitantes de
habeas corpus está relacionada aos levantes tenentistas da década de 1920.
Além de militares, encontramos também entre os pacientes membros do Judiciário, um juiz e um
desembargador26. Eles representam 4% dos processos.
Os demais casos, com apenas um processo impetrado cada, correspondem a profissões diversas
como jornalista, empregado do comércio, comerciante, negociante, operário e ex-aluno da escola
militar. Considerando o exercício profissional dos pacientes, podemos concluir que, grosso modo, a
maioria dos pacientes que tiveram seus pedidos concedidos eram homens alfabetizados, sendo em
grande parte membros da alta patente do Exército, como o caso do ex-presidente Marechal Hermes da
Fonseca27 ou membros do próprio Poder Judiciário, como o juiz e o desembargador supracitados.

O que se pediu ao STF e se conseguiu

26 HCs n.º: 10.325 e 10.326 de 1924, ASTF.


27 HC n.º 8.811 de 1923, ASTF.

Locus: Revista de história, Juiz de Fora, v.25, n. 2, p.37-58, 2019


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Na amostragem realizada com base nos primeiros 20% dos habeas corpus originários protocolados
no Distrito Federal nos anos vinte, percebe-se que variou bastante o número de HCs concedidos no
período, embora o montante nunca tenha sido expressivo. Os números são muito baixos para o início
da década. Os anos de 1926 e 1927 concentram os maiores números, com 20 e 13 solicitações,
respectivamente. Em parte, para entendermos essa distribuição, é preciso levar em conta o quadro
político nacional.
Em novembro de 1922, Arthur Bernardes assumiu a presidência da República, sob estado de sítio.
Essa situação de exceção marcou praticamente todo o seu quadriênio28. Ainda antes de ser empossado,
o país assistiria ao primeiro levante tenentista, de 1922. Dois anos depois, setores subalternos das forças
armadas tornariam a se sublevar em São Paulo, dando forma, no ano seguinte, à coluna Miguel Costa –
Luís Carlos Prestes. Em novembro de 1926, Bernardes passaria o governo a Washington Luís. Os
meses finais do período de exceção e a mudança na presidência serviram de estímulo para que muitos
presos políticos solicitassem habeas corpus, sobretudo aqueles setores envolvidos nos levantes tenentistas
de 1922 e 1924. Para se ter uma ideia, em 1926, 17 pedidos, ou seja, 85% eram de militares e, em 1927,
5 das 13 solicitações concedidas também foram por eles feitas, representando 38%.29

PROCESSOS CONCEDIDOS POR ANO


Ano Número %
1922 1 2
1923 5 9
1924 4 7
1925 7 13
1926 20 38
1927 13 24
1928 2 4
1929 1 2
Total 53 100
FONTE: HCs ASTF, CASTRO, 2018.

Conforme se pode perceber, as solicitações concedidas voltam a cair à medida em que os anos
vinte avançam para a reta final, sendo contabilizadas apenas 2 concessões de habeas corpus no universo

28 De acordo com Naud, o quadriênio de Bernardes foi marcado por 1.287 dias de estado de sítio e menos de dois meses de
situação de normalidade. NAUD, Leda Maria Cardoso. Estado de sítio – 3ª parte. Revista de Informação Legislativa, v. 2, nº. 7, p.
121, set. 1965c.
29 Os pedidos referentes aos levantes de 1922 e 1924 predominaram a amostragem analisada na pesquisa. Dos 435 habeas

corpus analisados, quase 40% deles se tratavam de pedidos que envolviam militares. Para uma melhor compreensão desse
universo, ver: CASTRO, 2018, Capítulo 4.

Locus: Revista de história, Juiz de Fora, v.25, n. 2, p.37-58, 2019


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explorado, em 1928, e apenas 1, em 1929. Muito provavelmente, essa diminuição é reflexo direto da
mudança na definição de habeas corpus, que restringiu o seu uso.
Conforme já indicamos, havia dois tipos de habeas corpus. O liberatório e o preventivo. A maioria
do universo aqui analisado era liberatório, conformando 54,7%, mas havia um percentual expressivo de
HCs que combinavam as duas modalidades (liberatório e preventivo), 28,3%. Finalmente, havia aqueles
que apenas eram preventivos, perfazendo 16,9%.

TIPOS DE HABEAS CORPUS


Tipo Número %
Liberatório 29 55
Preventivo 9 17
Ambos 15 28
FONTE: HCs ASTF, CASTRO, 2018.

Um exemplo e li eratório é o e Luiz Mace o o “contraventor” cu o habeas corpus é citado


no início deste artigo. Macedo havia sido preso por suposto envolvimento com o jogo do bicho e
obteve sentença favorável, pois os Ministros consideraram que a falta do auto de corpo de delito no
processo produz a nulidade do mesmo.30 Essa mesma alegação foi encontrada em outros pedidos
concedidos pela Corte Suprema, que manteve, assim, uma mesma linha de jurisprudência nesses casos.
Figuram entre eles os pedidos dos pacientes Alberto Gonçalves de Lima e José Raymundo Gama,
Vicente Penna e Arthur José de Oliveira31. Esses indivíduos também foram detidos em flagrante por
portarem a li ta o enomina o “ ogo o ic o” e alegavam que o proce imento a pri ão e eu e
forma incorreta, tendo seus pedidos concedidos pelo STF.
Já o HC impetrado pelo condutor motorista do corpo de suboficiais da armada, Francisco Ferraz
de Araujo Padilha32 é exemplo de um HC liberatório e preventivo. Nele o paciente alegava que tinha
sido demitido da Armada sem que tivesse respondido a qualquer processo e sido recolhido, em 20 de
dezembro de 1924, inicialmente, à Ilha das Cobras, sendo transferido posteriormente para a Ilha de
Bom Jesus. Francisco Padilha impetrou habeas corpus para assegurar diversas solicitações: sua
reintegração na Marinha na antiga função, o pagamento de seus vencimentos, o direito de se comunicar
com familiares e amigos, que sua prisão ocorresse por menagem (que ele não estivesse isolado de suas
funções, como ocorria, no caso, pelo fato de estar preso em uma ilha) e sua libertação. O paciente

30 HC n.º 8.847 de 1923, ASTF.


31 HC n.º 8.846, 8.848 e 8.858 de 1923, ASTF.
32 HC n.º 17.101 de 1926, ASTF.

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O PODER JUDICIÁRIO NA PRIMEIRA REPÚBLICA:
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alegava não ter participado de nenhum “movimento e re el ia ” O pe i o foi converti o em


diligência e, após o parecer do Ministério da Marinha, os ministros do Supremo acordaram em
conce er o pe i o em parte “ conce er tão omente para que e am pago ao paciente eu
vencimento integrae até a ata em que foi emitti o ”
Por fim, o caso do HC de Maurício de Lacerda, também citado na introdução, é o de um típico
habeas corpus preventivo. Lembrando que o paciente o solicita para garantir a possibilidade de fazer
campanha presidencial, para o pleito de março de 1922, para a chapa opositora da Reação Republicana,
em Minas, sem sofrer nenhum tipo de coação. Duas coisas chamam a atenção nesse processo: a
duplicidade do número e a celeridade do julgamento, ocorrido no mesmo dia. Muito provavelmente
isto está relacionado ao fato de Lacerda ser filho de Sebastião Lacerda, Ministro do Supremo.
O quadro a seguir discrimina a natureza dos pedidos de HCs feitos por pacientes e aceitos pelo
STF no período. Como se pode observar, o recurso era utilizado em uma multiplicidade de casos.

NATUREZA DOS HABEAS CORPUS CONCEDIDOS


Tipo Número %
Imprensa e propaganda 4 7
Contravenção 4 7
Assumir Posse 2 4
Deportação 4 7
Ordem pública 6 11
Homicídio 3 6
Lesão corporal 2 4
Furto/roubo 2 4
Escola militar 2 4
Serviço militar 4 7
Militar 20 38
FONTE: HCs ASTF, CASTRO, 2018.

Para efeito de análise, é possível dividir os casos de solicitação de habeas corpus indicados na tabela
anterior em três grandes grupos: questões relacionadas ao âmbito militar (Escola, Serviço militar e
Militares), questões relacionadas ao cotidiano da cidade (contravenção, ordem pública, homicídio, lesão
corporal, furto, roubo, deportações de pessoas envolvidas com corrupção) e questões relacionadas à
imprensa, eleições e posses.
No primeiro grupo incluem-se 26 processos concedidos versando sobre questões ligadas ao
âmbito militar. Neles havia demandas variadas, como se pode apreender no esquema abaixo.

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Usos dos habeas corpus por militares


Circunstâncias *Liberatório  militares presos, solicitavam serem postos em liberdade
nas quais esse devido a coação produzida dentre outros fatores por abuso do Executivo.
*Reintegração  para ser reintegrado ao lugar que ocupava nas forças
remédio era
armadas.
mobilizado
*Assegurar seus vencimentos  garantir o pagamento dos seus
vencimentos integrais, a indenização pelos descontos do soldo, sendo
restituídos das importâncias descontadas enquanto estavam presos.
*Comunicabilidade  quando presos, solicitavam o fim da
incomunicabilidade com seus familiares e amigos.
*Cadeia correspondente  solicitavam ser transferidos para cadeia
correspondente ao cargo ao qual pertenciam, contestando a prisão de presos
comuns.
*Alimentação correspondente  assegurar que sua alimentação fosse de
acordo com o rancho ao qual faz parte e lhe é de direito.
*Prisão por menagem  ter o lugar da prisão por menagem, isto é, o preso
não ficar encarcerado, permanece no lugar onde exerce suas atividades.
FONTE: CASTRO, 2018, p.184

É importante destacar, no universo de 26 habeas corpus concedidos a militares, 15 o foram apenas


em parte. Na verdade, 58% dos processos concedidos aos militares foram deferidos para proteger
outras liberdades, não a de locomoção. Ao longo do ano de 1926, a solicitação dos habeas corpus por
pacientes militares apresentou essa nova característica, o remédio era solicitado não apenas para o seu
uso tradicional de garantir o direito de locomoção, mas também para garantir a visita de familiares, o
pagamento de salários atrasados, a alocação em celas correspondentes à categoria e hierarquia dos
presos, dentre outros. 33
O caso do General Ximeno de Villeroy, citado no início do artigo é um exemplo claro de
solicitação de habeas corpus em função das más condições do estabelecimento prisional e falta de
observância de dispositivos que garantiam a separação de presos segundo categorias e hierarquia militar.
Nesse processo chegaram inclusive a serem anexadas fotos das celas.34

33 Ver CASTRO, 2018. Capítulo 4, p.169.


34 HC n.º 17.114 de 1926, ASTF.

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Figura 3: FONTE: CASTRO, 2018, p.227.

Além de habeas corpus referentes aos militares, a maioria envolvido nos levantes de 1922 e 1924,
havia os que se referiam ao cotidiano da cidade. Nessa categoria figuravam solicitações de liberação
para pessoas envolvidas em situações como roubos, prostituição, ofensas morais, agressão física, jogo
do bicho e crimes de morte.
Um dos casos mais curiosos deste segundo grupo é o de João Mendes Fernandes, preso por
agredir fisicamente uma mulher. No habeas corpus impetrado, em 15 de janeiro de 1926, o paciente
alegava que agira em função do pedido feito por sua amásia, que teria sido agredida por aquela mulher e
só por isso ele acabou se metendo na briga.35 Seu advogado, João Brasilio Ferreira da Silva, alegava que
o paciente deveria cumprir o grau mínimo por ser réu primário e não ter expressado caráter perverso na
lesão. O pedido já tinha sido negado nas outras cortes e os ministros do Supremo acordaram em
conceder a ordem de habeas corpus para que fosse suspensa a execução da pena pelo prazo de dois anos
porque no auto de corpo de delito consta que o paciente também foi agredido e testemunhas
afirmaram que a senhora que apanhou vivia provocando vizinhos.
Finalmente, no terceiro grupo figuram HCs solicitados que dizem respeito à imprensa, eleições e
posse. Aqui inserem-se os casos dos pacientes Everardo Dias (jornalista), Maurício de Lacerda (citado
no início deste artigo) e dos drs. João Baptista de Campos Tourinho e Cicero Seabra, entre outros.
Everaldo Dias impetrou habeas corpus, em 06 de junho de 1925, por ter sido preso acusado de ser
anarquista e propagar ideias subversivas.36 Maurício de Lacerda, como já comentamos, pedia garantias

35 HC n.º 17.106, de 1926, ASTF.


36 HC n.º 15.818, de 1925, ASTF.

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para poder fazer propaganda da Reação Republicana. Já os Drs. João Baptista de Campos Tourinho37 e
Cicero Seabra38 solicitaram um habeas corpus preventivo contra decreto 16.273 de 28/01/1924, com base
no argumento de que somente por sentença judicial poderiam perder seus cargos. O juiz e o
Desembargador alegavam possuírem cargos vitalícios. Seus pedidos foram prontamente concedidos.
Além de ter concedido um número pequeno de habeas corpus, nem todos os pedidos feitos ao STF
foram atendidos em sua totalidade. A tabela a seguir esclarece sobre o alcance das concessões.

TIPOS DE CONCESSÃO
Concedido 38
Concedido em parte 15
Total 53

FONTE: HCs ASTF, CASTRO, 2018.

Tornou- e pr tica comum no perío o pe ir no “ataca o ” ou e a fazer v ria olicitaçõe num


mesmo habeas corpus, mas somente 38 pedidos no universo de 53 aqui analisados foram integralmente
concedidos. Esse dado por si só já sugere cautela em relação à interpretação de que o Judiciário era um
espaço de exercício da cidadania.

Repensando o papel do Poder Judiciário na Primeira República

Tendo em vista o que foi discutido até aqui, gostaríamos de retomar alguns enunciados sobre o
papel do Poder Judiciário na Primeira República.
Pensar o Judiciário como uma espécie de caixa de ressonância da política nacional, conforme
propõe Emília Viotti39, não nos parece equivocado. Podemos utilizar como argumento para sustentar
essa leitura no período aqui analisado – os anos 1920 – o grande número de processos envolvendo
militares. O STF foi inundado por HCs impetrados por pacientes que participaram dos levantes de
1922 e 1924. Por outro lado, falar em autonomia do Judiciário em relação ao Executivo, como defende
Gladys Ribeiro40 é mais problemático e difícil de provar empiricamente. Basta mencionar que o STF

37 HC n.º 10.325, de 1924, ASTF.


38 HC n.º 10.326, de 1924, ASTF.
39 COSTA, Emília Viotti de. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. São Paulo: Ieje, 2001.
40 RIBEIRO, Gladys Sabina. O povo na rua e na justiça, a construção da cidadania e luta por direitos: 1889-1930 In:

SAMPAIO, Maria da Penha Franco; BRANCO, Maria do Socorro C.; LONGHI, Patrícia. Autos de memória: a história
brasileira no Arquivo da Justiça Federal: Tribunal Regional Federal – Rio de Janeiro, 2006, p.155-223

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não soltou os presos políticos, apesar dos pedidos de HCs, apenas liberava algumas demandas,
conforme foi visto ao longo deste artigo.
Os dados aqui trabalhados para os anos 1920 sugerem cautela ainda com a ideia também defendida
por Ribeiro de que o Judiciário teria se tornando na República uma espécie de arbitro dos Poderes e o
lugar de defesa dos direitos dos cidadãos. Poderíamos argumentar aqui com uma pergunta: de quais
cidadãos se está falando? De militares? Filhos de Ministros? Juízes e desembargadores? Nesse caso, a
resposta é positiva, mas se levarmos em conta que foram registrados no levantamento realizado 435
processos dos quais só 53 foram concedidos, a proposição não se sustenta, ao menos para os anos
1920.
Concordamos ser válido considerar o encaminhamento ao Judiciário de demandas pela população,
daquilo que era considerado direito, como um exercício de cidadania. Mas para considerar o Judiciário
como Poder, de fato, garantidor dessa cidadania se fazem necessários novos estudos que, a exemplo
deste artigo, privilegiem os habeas corpus concedidos, não apenas os encaminhados. A realização de
novas pesquisas, que adotem metodologia semelhante à utilizada aqui para as outras décadas da
Primeira República, pode elucidar se a tendência observada (de que os pedidos encaminhados àquela
corte não se traduziam na sua concessão) foi ou não dominante no período, ou se os anos 1920, por
agregar uma série de eventos, consistem numa fase atípica. Da mesma forma, consideramos importante
a continuidade de investigações sobre a natureza das demandas encaminhadas ao STF e sua intensidade
em diferentes momentos. Fica, assim, registrada a sugestão para novas pesquisas.
Por ora, é possível afirmar que, nos anos 1920, os pedidos encaminhados àquela corte não foram
traduzidos na efetividade da sua concessão. Ou seja, a efetiva garantia de proteção das liberdades
demandadas pelos pacientes não aconteceu. Havia, sim, um espaço para a demanda bem como um
remédio que poderia ser utilizado mas, na maioria dos casos, o efeito desse remédio não se deu como o
esperado, pois pouquíssimas vezes ele foi concedido.
Conforme demonstramos, apesar da facilidade de ser solicitado, o HC esteve longe de ser um
remédio, de fato, concedido à população na Primeira República; sua concessão nos anos 1920 foi
bastante restrita. Esse dado nos leva a relativizar interpretações que supervalorizam o papel do STF e
do Judiciário no exercício da cidadania. Consideramos que tais enunciados projetam para o período em
questão o papel desempenhado pelo STF na democracia brasileira da Nova República, momento em
que esses estudos são produzidos, e superdimensionam a atuação do Poder Judiciário para combater o
modelo de uma cidadania reativa, construída a partir das análises de José Murilo de Carvalho na
consagrada obra Os bestializados41. (CARVALHO, 1988)

41 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987.

Locus: Revista de história, Juiz de Fora, v.25, n. 2, p.37-58, 2019


E-ISSN: 2594-8296 - ISSN-L: 1413-3024
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• SURAMA CONDE SÁ PINTO
E TATIANA DE SOUZA CASTRO

O uso do habeas corpus no espaço oferecido pelo Judiciário, de fato, evidenciou um exercício de
cidadania feito por aqueles pacientes que percebiam as práticas judiciais e se adequavam, senão
reinventavam a forma de demandar pelos seus direitos numa tentativa contínua de alcançarem a
concessão do remédio jurídico do habeas corpus.
Mas destacamos que o uso do Judiciário não era feito por grande parte da população. A partir dos
dados aqui analisados, notamos que a Justiça era mobilizada por um grupo muito específico da
população, eram pessoas letradas, empregadas e com poder aquisitivo para arcarem com as custas,
mesmo sendo gratuita a solicitação do instituto.
Podemos dizer que recorrer ao Judiciário gerava uma expectativa de direitos e uma prática de
cidadania, porém o Judiciário deixou claro, em sua prática, quem era efetivamente o cidadão com
direitos na República.
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Recebido: 12 de setembro de 2019
Aprovado: 30 de outubro de 2019

Locus: Revista de história, Juiz de Fora, v.25, n. 2, p.37-58, 2019


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