O Conceito de Reforma Protestante Na Historiografia Brasileira
O Conceito de Reforma Protestante Na Historiografia Brasileira
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ARTIGOS
O CONCEITO DE REFORMA PROTESTANTE NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA
THE CONCEPT OF PROTESTANT REFORMATION IN BRAZILIAN HISTORIOGRAPHY
João Oliveira Ramos Neto
[email protected]
RESUMO: Este artigo é parte do resultado da nossa pesquisa de doutorado, especificamente a
introdução da tese, quando trabalhamos sobre o conceito de Reforma Protestante. Usado no
singular e possuidor de um juízo de valor implícito, o termo difundido na historiografia brasileira não
dá conta de satisfazer a realidade. Na primeira parte, debatemos o conceito de protestantismo. Na
segunda parte, questionamos a utilização do termo no singular para descrever um movimento plural.
Na terceira parte, questionamos a utilização do termo reforma para descrever um movimento
cismático. Concluímos com algumas sugestões.
PALAVRAS‐CHAVE: Reforma Protestante, Protestantismo, Martinho Lutero, Luteranos.
ABSTRACT: This article is part of the result of our research, specifically the introduction of doctoral
thesis, when we work about the concept of Protestant Reformation. Used in the singular and
possessed of an implicit value judgment, the term diffused in Brazilian historiography is not enough
to satisfy the reality. In the first part, we discussed the concept of Protestantism. In the second part,
we question the use of the term in the singular to describe a plural movement. In the third part, we
question the use of the term reform to describe a schismatic movement. We conclude with some
suggestions.
KEYWORDS: Protestant Reformation, Protestantism, Martin Luther, Lutherans.
Introdução
Este artigo é parte do resultado da nossa pesquisa de doutorado, quando
trabalhamos sobre o conceito de Reforma Protestante. O que a historiografia brasileira
predominantemente denomina como Reforma Protestante teve início formal em 31 de
outubro de 1517, quando o monge agostiniano Martinho Lutero (1483‐1546) publicou 95
teses na cidade de Wittenberg, na Saxônia, atual Alemanha, contra algumas doutrinas
oficiais da Igreja romana, doutrinas que ele considerava abusivas, entre elas, a das
indulgências.
Há uma discussão historiográfica sobre a veracidade do relato da afixação das teses
na porta da Igreja do castelo de Wittenberg por Lutero. Como não é objeto deste texto tal
discussão, usaremos o termo publicação, que pressupõe uma difusão, independentemente
do meio usado para tal. Fato é que, independentemente do meio utilizado para difusão, a
ação questionadora do monge Martinho Lutero, iniciada formalmente com as 95 teses em
Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás. Realiza estágio pós‐doutoral no Programa de Pós‐
Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. É professor do Ensino Básico, Técnico e
Tecnológico do Instituto Federal Goiano e do Mestrado Profissional em Ensino para a Educação Básica.
Hist. R., Goiânia, v. 24, n. 1, p. 206-217, jan./abr. 2019
Recebido em 22 de outubro de 2018
Aprovado em 12 de dezembro de 2018
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O termo historiografia brasileira é muito amplo e impossível de esgotamento nesta
discussão. Dessa forma, esclarecemos que o que denominamos de historiografia brasileira
sobre a Reforma Protestante aqui é, primeiramente, as principais obras clássicas que foram
traduzidas para a língua portuguesa e adjetivadas como principais em função da ampla
difusão e uso delas na academia: Weber (2004), Delumeau (1989), Chaunu (1975), Elton
(1982) e Febvre (2012). Ainda que seja complicado classificar autores internacionais como
historiografia brasileira, tomamos o termo de empréstimo pelo fato desses autores, uma vez
traduzidos, serem consolidados nas pesquisas brasileiras para definições prévias e definitivas
de conceitos pertinentes a este tema. Sustentamos a afirmação que eles são os principais
autores quando verificamos a presença deles na bibliografia básica dos ementários atuais
dos departamentos de História das maiores universidades do País, incluindo aí a
Universidade Federal de Goiás (UFG), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade de
Brasília (UnB).
língua portuguesa, no período entre 2016 e 2018, dado que é o período que compreende o
ano de comemoração dos 500 anos da Reforma Protestante, com um ano anterior e outro
posterior) onze textos publicados (artigos) e, neles, a persistência do conceito de Reforma
Protestante usado concretamente, sem problematização. Quando fizemos o mesmo no
Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, ao refinarmos a busca na área de História,
encontramos somente dois resultados, estando entre os mais atuais, uma dissertação e uma
tese, ambas de 2011.
O conceito de protestantismo
O conceito protestantismo para se referir aos cristãos que não eram católicos a
partir do cisma permanente do século XVI surgiu de forma espontânea na dieta de Worms
em 1521, quando esta emitiu um decreto condenando Martinho Lutero como um herege
perigoso. As dietas, do alemão reichstag, eram as assembleias políticas do Sacro‐Império
Romano Germânico. Desde 1521, portanto, todos os príncipes que apoiassem Lutero,
contrariando com isso a decisão da supracitada dieta, seriam condenados com severas
punições. Porém, como o imperador Carlos V (1500‐1558) ‐ que liderava as dietas e era fiel a
Roma, tanto pelo cargo que ocupava como por sua ligação com a Espanha ‐ estava ocupado
com outras questões, não teve como fiscalizar a execução desse decreto, que foi ignorado
até 1526, quando príncipes católicos exigiram seu cumprimento na primeira dieta de Espira,
alegando que o movimento luterano, por ser questionador da Cristandade até estão
estabelecida, estava provocando desordem social.
Após a segunda dieta de Espira, em 1529, seis príncipes alemães que tinham
adotado o luteranismo deram entrada em um processo formal contra a proibição imperial
dos príncipes apoiarem Lutero e, por essa ação, ficam conhecidos como príncipes
protestantes. A Igreja Católica, aos poucos, passou a usar o termo para designar todos os
seguidores das novas ideias, primeiramente para se referir aos luteranos, mas, em seguida,
também agrupou no mesmo termo os demais seguidores dos diversos líderes, conforme
apresentamos logo abaixo. Movimentos questionadores, inicialmente independentes,
através de publicações, viagens individuais de envolvidos e troca de correspondências entre
os líderes foram, aos poucos e no período seguinte, tomando consciência de um movimento
de alguma forma alinhado.
O conceito passou a ser usado pelos próprios questionadores a partir da reação
católica, quando eles viram que seria necessário ignorar suas diferenças para enfrentarem
uma ameaça comum, daí passarem, os próprios reformadores, a chamarem‐se de
protestantes. O termo serviu de elo para unir os diferentes movimentos questionadores da
Igreja Católica espalhados pela Europa naquele momento e até hoje é usado justamente
para tentar unir um grupo tão heterogêneo.
Inicialmente, luteranos no norte do Império, e zwinglianos na Suíça, não tinham
consciência de que seus questionamentos eram duas faces de uma mesma moeda. Essa
tentativa de conciliar todos os movimentos em uma corrente de pensamento uníssona, que
seria conhecida retrospectivamente como nascimento do protestantismo, foi sendo
construída paulatinamente pelos reformadores que contavam com apoio oficial. Com isso,
percebe‐se porque a identidade do cristão protestante é, até hoje, justamente a de não ter
uma identidade única, pronta e definida, mas estar sempre em mutação, permitindo abarcar
dentro de um mesmo conceito diferentes crenças e práticas religiosas. Esse foi o seu início.
Daí que, se não há só luteranos, Lutero não pode ser considerado o pai ou fundador do
protestantismo, mas um dos seus fundadores, em pé de igualdade com seus
contemporâneos, que originaram toda a ramificação.
Percebemos que esses movimentos, que passaram a ser chamados de protestantes,
quando analisados numa perspectiva posterior, se dividiram em duas grandes correntes: A
denominada reforma magisterial e a denominada reforma radical, que, por sua vez, se
subdividiram em três grupos. Do lado magisterial: Os luteranos ‐ que são os seguidores de
Martinho Lutero (1483‐1546) e Phillipe Melanchton (1497‐1560); os reformados ‐ que são os
seguidores de Zwínglio (1484‐1531), Calvino (1509‐1564) e Knox (1514‐1572); e os
anglicanos – quando o rei Henrique VIII (1491‐1547) formou a Igreja nacional na Inglaterra
com apoio de teólogos como Tomás Cranmer (1489‐1556) e William Tyndale (1484‐1536).
Do lado radical: Os racionalistas, seguidores de Karstaldt (1486‐1541); os espiritualistas,
seguidores de Thomas Müntzer (1489‐1525); e os anabatistas, seguidores de Conrad Grebel
(1498‐1526) e Félix Manz (1498‐1527).
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Reforma ou reformas?
O termo reformados, para designar os seguidores de Zwínglio, Calvino e Knox, e
posteriormente aos anglicanos também, passou a ser usado a partir do Colóquio de
Marburgo, em 1529, para designar a teologia que era diferente da luterana. A partir desta
data percebeu‐se que apesar dos movimentos terem em comum o questionamento político
e teológico da Igreja Católica e a desobediência a autoridade papal, principalmente
enquanto normativa de fé, tinham sido construídas duas teologias distintas, cujas
especificidades fogem ao nosso objeto neste momento.
A doutrina luterana foi então resumida no documento escrito por Phillipe
Melanchton (1497‐1560), A Confissão de Augsburgo, de 1530, enquanto a doutrina chamada
de reformada resumiu a teologia de Calvino, Zwínglio e Knox no documento Catecismo de
Heidelberg, de 1563, que depois foi revisto na Confissão de Westminster de 1646. Enquanto
os anabatistas, bem mais heterogêneos, tentaram resumir a sua doutrina na Confissão de
Schleitheim, de 1527. Esse tripé de documentos teológicos tem sido as certidões de
nascimento das principais denominações protestantes até hoje, tendo em vista que a igreja
luterana baseia‐se na Confissão de Augsburgo, enquanto as igrejas presbiterianas e
anglicanas baseiam‐se na Confissão de Westminster, e as igrejas batistas e metodistas
baseiam‐se, ainda que indiretamente, na Confissão de Schleitheim.
o termo. Na busca de evocar uma tradição que os legitime, há até os que preferem usar o
termo com certo orgulho, pois associar correntes protestantes aos reformadores
perseguidos do século XVI não deixa de ser uma atrativa forma de legitimação. É
interessante, também, como que, além de inventar uma tradição, o uso do conceito permite
conferir status social ao grupo, já que, atualmente, luteranos, presbiterianos, anglicanos e
batistas preferem usar o termo protestantes para, com esse uso, demonstrarem
diferenciação ‐ e até certa superioridade qualitativa e teológica ‐ dos evangélicos
pentecostais. Suposta superioridade que é construída e legitimada justamente pela tradição
histórica, que os pentecostais não priorizam.
Junto ao problema de utilizar‐se o termo Reforma Protestante, no singular, para
definir uma gama de reformas diferentes, soma‐se o problema de chamar toda a ação
posterior da Igreja Católica, de dimensões continentais, de contrarreforma, como se tudo
tivesse sido feito como reação aos novos protestantes. Não é porque algumas ações foram
cronologicamente posteriores ao movimento luterano que elas constituíram uma reação. O
conceito de contrarreforma passa a impressão de que a Igreja Católica estava inerte a tudo
que estava acontecendo no século XVI e só quando supostamente se viu acuada e ameaça
por Martinho Lutero, Calvino, e outros reformadores ‐ o que dificilmente aconteceu – é que
ela resolveu agir. A Igreja Católica tinha séculos de experiência para lidar com
questionamentos e elaboração de pensamos contrários aos seus, o que nos faz ter sérias
dúvidas quanto ao medo que ela teve da ameaça que realmente se constituiria a Reforma
Protestante no seu embrião.
Antes de Lutero publicar suas 95 teses já havia o desejo interno de reformar a
Igreja. O papa Júlio II (1443‐1513), que comandou a Igreja de 1503 a 1513, convocou o V
Concílio de Latrão (1512‐1517), entre outros motivos, com esse intento. O bispo Egídio de
Viterbo (1472‐1532) discursou em sua abertura que se a Igreja não estabelecesse limites
para a imoralidade do clero, a Cristandade acabaria. Isso foi levado em consideração, e
vários movimentos de penitência foram promovidos. O diferencial, em parte, é que aquilo
que o movimento católico considerava uma renovação, os reformadores consideraram que
era o que precisava ser abolido: a salvação da alma do crente não estaria em mais obras de
penitência, mas na aceitação da graça divina. Discussão, inclusive, que se antecedia a Lutero
em séculos.
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Os teólogos católicos, como o pregador Jerônimo Savonarola (1452‐1498), na Itália,
e Francisco Ximenes de Cisneros (1436‐1517), na Espanha, quiseram mudar atitudes. Lutero
quis mudar a teologia por trás das atitudes. Para isso, resgatou antigos debates teológicos.
Na Itália, a espiritualidade leiga se expressou nas confrarias conhecidas como oratórios, que
se concentravam em obras de caridade. O oratório de Gênova, por exemplo, se concentrou
em manter hospitais. Foram criadas as ordens dos teatinos e dos capuchinhos. Enfim, o
século XVI europeu foi de uma efervescência intelectual gigante que se reduz quando se usa
um conceito que reduz toda essa discussão.
É fato que esses movimentos, porém, foram pequenos e tardios para salvar a
unidade da Cristandade sob Roma. O V Concílio de Latrão (1512‐1517) acabou por colocar
fim ao conciliarismo, reafirmar o poder papal sobre os territórios, indo na direção contrária
do que o movimento, com a ascensão da burguesia, desejava. Com a morte de Júlio II, foi
eleito Leão X (1475‐1521), que governou de 1513 a 1521, continuando a política do anterior.
Em 1521 assumiu o papa Adriano VI (1459‐1523), doutor em Teologia, com o compromisso
de reformar a cúria. A reforma da Igreja era sua bandeira, mas seu pontificado acabou cedo.
A partir de 1523 foram eleitos sucessivamente Clemente VII (1523‐1534), Paulo III (1534‐
1549) e Júlio III (1549‐1555).
Paulo III tinha simpatia pelos humanistas, e nomeou uma comissão de 9 cardeais
para estudar uma reforma para a Igreja. O relatório que a comissão produziu identificou
vários problemas, como imoralidade clerical, nepotismo, simonia e abuso de poder. Quando
os protestantes tomaram conhecimento do relatório, tiveram certeza que suas ações
estavam no caminho certo. Ser católico, luterano ou reformado não significa
necessariamente inimizade. Alguns católicos viam os protestantes com certa simpatia, ainda
que escolhessem permanecer na Igreja romana. Foi o caso do movimento evangelização
italiana, que vigorou de 1512 a 1560, que defendia a reforma da Igreja por meio da reforma
individual por meio do estudo bíblico. A teologia que pregavam era muito parecida com a
teologia da justificação pela fé luterana.
Paulo III talvez tenha sido o primeiro papa da denominada Contrarreforma católica.
Pelo menos, por meio de ações concretas, foi o que mais enfatizou a tentativa de eliminar o
protestantismo. Até porque, no seu pontificado é que a cúria romana se deu conta da
seriedade e do tamanho do movimento protestante. Foi ele quem promulgou o Index: Índice
de livros proibidos, a Inquisição moderna, a aprovação da criação da Companhia de Jesus por
Inácio de Loyola e a convocação do Concílio de Trento (1545‐1563). Esses quatro foram as
principais ações do que a historiografia denominou de Contrarreforma católica. Essas ações
talvez estivessem mais ligadas à novidade das novas terras encontradas do que às ações de
Lutero.
É justamente por estar sempre em mudança e ser tão heterogêneo que os
historiadores europeus e estadunidenses estão sempre revendo o tema da Reforma
Protestante. Cada caricatura do movimento que é popularizada é criada a partir do grupo ao
qual um autor pertence. Quando o pesquisador é um reformado, tende a exaltar Calvino
acima de Lutero, apresentado este como um intolerante, antissemita, e aquele como um
intelectual acima de interesses pessoais. Quando o autor é luterano, tende a apresentar
Calvino como um beberrão, enquanto Lutero, um paladino da verdade lutando contra os
baderneiros anabatistas.
Reforma ou cisma?
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O termo católica, referindo‐se à Igreja da Idade Média ou do período da Reforma
Protestante, pode ser entendido como anacrônico porque só foi estabelecido
definitivamente como conhecemos hoje no Concílio de Trento (1545‐1563). Antes do cisma
luterano só havia uma Igreja, chamada assim e identificada muitas vezes como Igreja de
Roma ou Igreja Romana, por causa da sua sede naquela cidade. Por outro lado, isso não
impossibilita o seu uso para o período que estamos trabalhando, já que o termo catholicus
no sentido de universal já era usado em documentos desde o Concílio de Niceia em 325.
Como alternativa, William G. Naphy (2008) prefere partir do impacto que as ações
de Lutero causaram no Ocidente para conceituar a agitação do século XVI como A Revolução
Protestante. Seja Reforma, seja Revolução, é certo que, enquanto conceitos, esses termos
são um tipo ideal weberiano para permitir aos pesquisadores a possibilidade de se estudar o
surgimento do protestantismo. Considerando esse debate, pressupomos que seria mais
coerente denominarmos as ações dos agentes religiosos do período de cismas religiosos do
século XVI europeu. Afinal, o termo cisma é o conceito usado para se referir ao surgimento
da Igreja Ortodoxa no século XI (cisma oriental) e para referir‐se ao período de disputa entre
os papas de Roma e Avignon na Idade Média no século XIV (cisma ocidental). Por que,
quando para se referir ao surgimento do protestantismo, a historiografia usa um conceito
diferente do que foi usado para se referir ao surgimento dos ortodoxos cinco séculos antes?
E, por que o conceito usado para o surgimento dos ortodoxos não traz o implícito juízo de
valor de superioridade que o conceito usado para o surgimento do protestantismo carrega?
Se a ação iniciada por Lutero é denominada de Reforma Protestante, a ação dos bispos do
oriente no século XI deveria ser denominada de Reforma Ortodoxa e não Cisma do Oriente.
O conceito de Reforma Protestante foi cunhado em 1694 pelo historiador alemão
Veit Ludwig von Seckendorff (1788) para explicar que no século XVI teve início um
cristianismo não romano que modificou substancialmente a teologia até então
predominante. Este novo cristianismo, como vimos acima, recebeu o nome de
protestantismo porque seus adeptos protestaram contra a decisão da Dieta de Espira em
1529.
É preciso lembrar que Lutero e os demais reformadores não tinham consciência que
suas ações dividiriam definitivamente a Cristandade posterior. Inicialmente não viam o fato
de serem protestantes como significando que pertenciam a outra igreja diferente da
Católica. Assim, partir do pressuposto de que os agentes históricos do século XVI tinham
consciência de estarem propositalmente promovendo um cisma que permaneceria, como o
conceito de Reforma Protestante ficou conhecido depois do século XVII, é incorrer em
anacronismo. O que Lutero fez não foi fora da rotina. Era papel dos teólogos universitários
elaborarem teses para serem debatidas. Lutero cumpria seu papel de professor universitário
em busca de melhorar os problemas eclesiásticos que lhe eram contemporâneos.
A partir da obra de Seckendorff também que o conceito de Reforma ficou associado
ao nome do monge agostiniano Martinho Lutero como protagonista. A historiografia alemã
dos séculos XVIII e XIX então definia a Reforma Protestante como uma época iniciada com a
publicação das 95 teses em 1517 em Wittenberg e caracterizada pela obra divinamente
motivada de Lutero visando purificar a Igreja, e a Cristandade, de erros doutrinais. O
terminus a quo da Reforma Protestante seria então a Paz de Augsburgo em 1555, quando
um tratado foi assinado em 1555 na cidade de Augsburgo que estabelecia um acordo de
trégua entre Carlos V e os príncipes protestantes seguidores da Reforma Luterana. A partir
de então os luteranos passaram a ser tolerados no Sacro‐Império Romano‐Germânico.
Depois, em 1839, o historiador alemão Leolpold Von Ranke (1844) popularizou o conceito de
Contrareforma para definir a reação da Igreja Católica. Desde então, a historiografia
protestante preferiu usar o termo Contrarreforma para se referir à ação da Igreja Católica,
focando os movimentos contrários aos reformadores, inclusive com tentativa de detê‐los,
enquanto a historiografia católica preferiu usar o termo Reforma Católica para mostrar que a
origem do termo estava no próprio catolicismo e era anterior à Lutero.
A longa tradição historiográfica construída pelos autores protestantes consolidou na
academia a noção de que a Reforma Protestante ocorrida no século XVI teria sido um
movimento exclusivo de purificação religiosa em resgate dos verdadeiros princípios do
cristianismo contra os abusos do clero romano, principalmente na figura do papa. É claro
que a incoerência entre o que era pregado e o que era praticado pela maioria do clero
católico no período era gritante, mas, em contraste, essa historiografia tendeu a exaltar a
figura de Lutero e Calvino como heróis que desafiaram gigantes, minimizando o contexto
social, político e econômico, como se esses heróis fossem ascetas totalmente despossuídos
de ambições ou interesses pessoais. Isso, inclusive, acabou ajudando a popularização da
noção de que no século XVI as pessoas estavam desinteressadas da religião, o que não
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procede. O fato de as pessoas na Europa do século XVI estarem descontentes com o clero
não significa que não tinham mais interesse pela religião. Pelo contrário, o desejo de
reformar a Cristandade demonstra a importância que ela tinha para aquela mentalidade.
A historiografia católica, por sua vez, tentou diminuir ou refutar as críticas dos
historiadores protestantes. Acusava‐se a moral dos líderes proeminentes, colocava‐se em
dúvida as motivações dos agentes e responsabilizava os protestantes por terem dividido a
Cristandade e, inclusive, serem os responsáveis pela tardia unificação alemã. Além disso, os
autores católicos passaram a defender que as origens da reformação estavam no interior do
próprio clero, com o movimento conciliarista, místicos e surgimento de novas ordens no
período.
Conclusão
O movimento histórico denominado de Reforma Protestante seguiu o padrão de
agentes históricos anteriores de questionar a teologia oficial da Igreja Católica e o poder do
papa. Na Idade Média, quando agentes históricos assim o faziam, eram denominados de
heréticos, e suprimidos pela Igreja. A Reforma Protestante não é estudada como uma
heresia medieval, não só porque está cronologicamente fora do tempo entendido
historicamente como medieval, mas porque ela não foi sufocada. Prevaleceu. Permaneceu.
Inclusive com o protestantismo chegando ao dia de hoje. Então, se permaneceu, ao ponto
de não ser classificado com o conceito de heresia, é um cisma na Cristandade oriental. Um
cisma que, pelo protestante, é chamado de Reforma, pois reforme implica melhoria, e o
protestante praticante entende que um cristianismo anterior, católico medieval, foi
substituído por outro, que ele aderiu porque, para ele, é superior. Para um alemão
positivista o termo também é pertinente, já que continua entendendo a ação do século XVI
como mais um passo em uma evolução. Porém, vemos como um termo problemático para o
historiador brasileiro do século XXI continuar fazendo uso.
Da mesma forma, o termo, no singular, não dá conta da dimensão das ações. Induz
o leitor a pensar em termos menores do que realmente foi. Classifica equivocadamente
determinados agentes como protagonistas, e outros como coadjuvantes, tornando o ponto
de vista de alguns autores específicos, luteranos e presbiterianos, principalmente, como
decisivos, e empobrecendo o debate entre historiadores, cujas perguntas são diferentes.
Alguns conceitos tornam‐se consagrados e a sua substituição é problemática. Dessa
forma, esse texto é uma reflexão. Entendemos que um pesquisador não estará cometendo
um erro se continuar utilizando o termo Reforma Protestante em suas pesquisas, desde que
tenha ciência das suas limitações, e a traga junto à pesquisa. Por outro lado, seria
interessante, ainda que paulatinamente, passar a denominar todos esses movimentos de
cismáticos, ou os grandes cismas da cristandade, pela ordem cronológica que ocorreram:
Primeiro cisma (século XI, com o surgimento dos ortodoxos), segundo cisma (século XIV, com
a disputa entre dois – e três – papas na Cristandade ocidental) e terceiro cisma (século XVI,
com o surgimento das grandes correntes questionadoras do papado comumente
denominadas de reformadoras).
Explicando que, para ser um cisma, é necessário que o movimento questionador, ao
contrário das heresias, que também eram questionadoras, tenha permanecido por um
tempo considerável para promover mudanças sociais substanciais, sem sucesso da igreja
romana em sufocá‐las rapidamente. Então, ao nos referirmos ao terceiro cisma, também
deveríamos usar o conceito no plural, cismas, para então darmos conta da pluralidade da
movimentação daquele período. Dificilmente um conceito dará conta de abarcar toda a
realidade que ele sintetiza. Essa insuficiência, porém, não descarta o seu uso. Pode‐se usá‐lo
bem quando se conhece suas limitações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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