A Espiritualidade Da Vida Oculta de Jesus de Nazaré - Pedro Simões

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

FACULDADE DE TEOLOGIA

MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA (1.º grau canónico)

PEDRO JORGE SILVA SIMÕES

A Espiritualidade da vida oculta de Jesus de


Nazaré
A experiência do beato Charles de Foucauld

Dissertação Final
sob a orientação de:
Prof. Doutor António Abel Rodrigues Canavarro

Porto

2014

1
Índice

SIGLÁRIO........................................................................................................................................ 4

Além do siglário bíblico tome-se em conta o seguinte: ................................................................ 5

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 6

CAPÍTULO I: ................................................................................................................................... 8

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-ESPIRITUAL .............................................................................. 8

1.1. Biografia ................................................................................................................................. 8

1.2. Uma Europa em mudança .................................................................................................... 14

1.2.1. O Liberalismo anticlerical .................................................................................................. 15

1.2.2. Uma Igreja ocidental dividida?.......................................................................................... 17

1.2.3. Um discreto, mas rico ardor missionário. ......................................................................... 21

1.3. A espiritualidade no séc. XIX: a génese do pensamento espiritual contemporâneo........... 23

1.3.1. As correntes de espiritualidade ........................................................................................ 26

1.3.2. A piedade popular ............................................................................................................. 28

1.3.3. Os primeiros passos da renovação litúrgico-espiritual ..................................................... 31

1.3.4. A espiritualidade laical ...................................................................................................... 35

CAPÍTULO II: ................................................................................................................................ 37

UM APELO: A VOCAÇÃO DE TODOS À SANTIDADE ..................................................................... 37

2.1. A importância vital da espiritualidade ................................................................................. 37

2.1.1. A interpretação da pós-modernidade ............................................................................... 39

2.1.2. Em busca de uma espiritualidade cristã: a verdadeira resposta aos anseios do Homo
spiritualis ..................................................................................................................................... 43

2.2. Um percurso com sentido que dá sentido ........................................................................... 46

2.2.1. O chamamento .................................................................................................................. 47

2.2.2. O desprendimento ............................................................................................................ 50

2.2.3. A luta espiritual ................................................................................................................. 53

2
2.2.4. O tempo de deserto .......................................................................................................... 55

2.3. A perfeição cristã.................................................................................................................. 59

2.4. A caridade............................................................................................................................. 62

CAPÍTULO III: ............................................................................................................................... 66

CHARLES DE FOUCAULD: UM SINAL ESPIRITUAL DOS TEMPOS .................................................. 66

3.1. Uma caminhada sobre as ondas .......................................................................................... 66

3.2. A imitatio Christi: uma imitação literal ou literalista?.......................................................... 72

3.3. A vida oculta de Nazaré: os trinta anos de preparação ....................................................... 76

3.4. A espiritualidade de Nazaré: radicalidade e profecia .......................................................... 83

3.5. Foucauld: um santo à nossa medida .................................................................................... 88

3.6. A herança de Foucauld. ........................................................................................................ 91

CONCLUSÃO ................................................................................................................................ 94

BIBLIOGRAFIA: ............................................................................................................................. 98

I. Fontes ....................................................................................................................................... 98

II. Magistério ............................................................................................................................... 99

III. Instrumentos .......................................................................................................................... 99

IV. Estudos ................................................................................................................................. 100

3
SIGLÁRIO

Gn - Génesis

Ex - Êxodo

Lv - Levítico

Sl - Salmos

Is – Isaías

Dn – Daniel

Os - Oseias

Mt – São Mateus

Mc – São Marcos

Lc – São Lucas

Jo – São João

Act – Atos dos Apóstolos

Rm - Romanos

1 Cor – 1ª aos Coríntios

2 Cor – 2ª aos Coríntios

Gl – Gálatas

Ef - Efésios

Fl - Filipenses

Cl - Colossenses

1 Tes – 1ª aos Tessalonicenses

2 Tes – 2ª aos Tessalonicenses

1 Tim – 1ª a Timóteo

4
2 Tim – 2ª a Timóteo

Além do siglário bíblico tome-se em conta o seguinte:

BACF- Boletín de la Asociación Charles de Foucauld

BCAF- Boletín del Comité del África Francesa

CIC- Catecismo da Igreja Católica

CCF- Cahiers Charles de Foucauld

DM- Dives in misericordia

EspCarm- Espiritualidade Carmelita

FR- Fides et Ratio

HumTeo- Revista Humanística e Teologia

LAH- Lettres al P. Huvelin

LHC- Lettres a Henry de Castries

LMB- Lettres a María de Bondy

NMI – Novo millenium ineunte

NRTh- Nouvelle Revue Théologique

PDV – Pastores dabo vobis

Sch- Source Chrétienne

5
INTRODUÇÃO

A vocação de Charles de Foucauld e o carácter íntimo, e portanto familiar, dos

seus escritos são um motivo, mais do que suficiente, para se poder aprofundar a sua

espiritualidade. O apóstolo dos tuaregues fala ao séc. XXI através de uma linguagem

vibrante, realista e prática: a linguagem do total desprendimento, da solidão

compartilhada com Deus. Foi essa a razão que me levou à elaboração desta presente

dissertação.

Os seus numerosos escritos permitir-nos-ão compreender certas facetas da sua

espiritualidade, sobretudo o seu modo de viver a vida oculta de Jesus, no silêncio de

Nazaré. Resultante de uma mentalidade eremítica de solidão com Deus e, em pleno

século do modernismo, o irmão universal pretendeu mostrar ao mundo uma atitude de

superação absoluta das coisas terrenas; fazendo o seu apostolado de bondade no meio

dos muçulmanos; lutando pela superação das diversas desigualdades que existiam entre

os povos. Este mundo que, como veremos, vivia muito mais centrado em si mesmo do

que em Deus. O mesmo se diz em relação à Igreja hierárquica que estava muito mais

interessada no trono do que no altar. Nesta época pós - revolução de 1789, a Igreja vivia

numa situação diferente da que se encontrava no ancien régime, contudo o apego às

coisas terrenas permanecia, mesmo que fosse necessário viver presa numa gaiola

dourada.

Os dias de hoje não são muito diferentes dos da época de Charles de Foucauld:

inseridos num mundo onde, quer o individualismo, o materialismo, o relativismo e a

indiferença, quer a fé pouco esclarecida, as seitas e o espiritismo pseudo-gnóstico têm a

palavra de ordem, não será de todo fácil escutar a voz do (verdadeiro) Espírito que soa

6
no coração de cada homem e cada mulher. Por estas razões e, infelizmente tantas outras

mais, ninguém tem dúvida que o testemunho espiritual de Foucauld se trata de uma luz

que se avista ao fundo de um túnel, onde a actio e a contemplatio se complementam,

favorecendo assim a sã vivência de uma espiritualidade que, se não fosse vivida,

experienciada, testemunhada, cairia certamente no esquecimento e não teria

implicações, compromissos na vida hodierna de todo o homem e mulher de boa

vontade.

Esta dissertação encontra-se dividida em três partes: na primeira farei uma breve

contextualização histórico-espiritual da época de Charles de Foucauld realçando os seus

principais aspectos; na segunda faremos uma breve abordagem à vocação universal do

Homem à santidade como introdução à espiritualidade foucauldiana; e em terceiro

aprofundaremos a espiritualidade de Foucauld, incindindo mais na vida oculta de Jesus

de Nazaré, embora possa fazer referência a outros âmbitos da sua espiritualidade, mas

só como visão global e indivisível em si.

Ao Homem de hoje, Foucauld deixou a tarefa, nem sempre fácil, de assimilar e

projetar a sua experiência apaixonada de todos os dias, no meio dos problemas e

ocupações onde Deus se deve propor como objeto de meditação ardente. Foucauld é um

raro exemplo de audácia e perseverança, tendo semeado incansavelmente a semente do

Evangelho.

7
CAPÍTULO I:

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-ESPIRITUAL
“Viver como se tivesse de morrer hoje, mártir”
(C. de Foucauld)

Neste ponto procurarei fazer uma breve resenha biográfica acerca do beato

Charles de Foucauld, no intuito de dar a conhecer melhor quem é este sacerdote e

místico francês (onde nasceu, a sua caminhada de fé, o seu carisma, entre outros). Tudo

começou na igreja de Santo Agostinho, em Paris, nos finais de Outubro de 1886,

quando o visconde Charles - Eugène de Foucauld encontra-se com o padre Henri

Huvelin, vigário da paróquia. É então que descobre o amor insondável de Jesus de

Nazaré presente na Eucaristia. Durante toda a sua vida desde Paris, passando pela Terra

Santa, depois pela Argélia e até Tamanrasset ele procurará ficar na presença d’Ele e

imitá-Lo o mais possível com a sua vida e o seu testemunho.

1.1. Biografia

Charles - Eugène de Foucauld nasceu em Estrasburgo, no dia 15 de Setembro de

1858 e viveu até ao dia 1 de Dezembro de 1916, quando foi assassinado por um jovem

de 15 anos. Era membro de uma família nobre, pois o seu pai Francisco Eduardo de

Foucauld e a sua mãe Isabel Beaudet de Morlet pertenciam a famílias de aristocratas

franceses. Muito cedo, porém, primeiramente ficou órfão de mãe e, uns meses depois,

também do pai. Desde os seis anos de idade passou a ser criado pelo avô, que se

encarregou de educá-lo como militar, partindo da sua própria experiência1. Daí nasce-

lhe um forte sentimento nacionalista, desenvolvendo nele um grande amor pela França.

Foi criado juntamente com a sua irmã Maria, dois anos mais jovem que ele. Também

1
Cf. A. CHATELARD, Carlos de Foucauld, El caminho de Tamanrasset, Ediciones San Pablo, Madrid,
2003, p. 22.

8
sofreu influência de sua tia, Inês, e das suas primas, Maria e Catarina. Essas três

mulheres, seguindo o ambiente religioso da época, cultivavam, piedosamente, uma

grande devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que reaparecerá, mais tarde, na conversão

e na vida mística de Foucauld. Na guerra entre a França e a Prússia, em 1870, o avô de

Charles de Foucauld, militar já aposentado, com cerca de 70 anos, mudou-se juntamente

com a sua família para a Suíça antes mesmo de ver Estrasburgo render-se em 9 de

Setembro do mesmo ano. Esse acontecimento marcou muito a vida do jovem Charles,

que mais tarde, já vivendo em Nancy, chegou mesmo a pensar numa guerra contra a

Alemanha.

O jovem Charles era um aluno brilhante tendo como mestres grandes iluministas

e agnósticos e, por isso, passou algum tempo de sua vida, negando ou duvidando da

existência de Deus, cerca de dois anos depois de ter recebido pela primeira vez a

Eucaristia e a Confirmação2. Tudo isto dá um brilho especial ao processo da sua

conversão, pois retornará ao Deus da sua infância, depois de uma adolescência de

algumas dúvidas e ceticismos; período em que cultivou um humanismo ateu,

filosoficamente bem estruturado e sociologicamente bem estabelecido. Os estudos que

fez, mais tarde, em Paris, no Colégio Santa Genoveva, dirigido pelos jesuítas, não

contribuíram nada, ao contrário do que se pensa, para que Charles redescobrisse a fé

cristã. Permaneceu aí durante dois anos: no primeiro ano foi um aluno brilhante; no

segundo ano, mais preguiçoso e desleixado. Foi praticamente expulso, pelos padres

jesuítas, em 1876. Desde essa data até 1882, Charles entrou no exército, em Saint-Cyr.

Com dezoito anos, foi considerado como adulto pelo seu avô, que decidiu conferir-lhe

uma pensão mensal3. Aborreceu-se com a disciplina exigente da vida militar sobretudo,

com os treinos. Com a morte do seu avô, Charles recebeu em herança uma fortuna, que

2
Cf. LHC (14 de Agosto de 1901).
3
Cf. J. SIX, Itinéraire spirituel de Charles de Foucauld, Seuil, París, 1958, p. 114.

9
o desequilibrou bastante, ao ponto de ser suspenso do exército por algum tempo. Nessa

ocasião, adotou como lema da sua vida o carpe diem, sem compromisso com o futuro.

Por isso, quando pôde voltar ao exército não o fez com o intuito de regressar ao seu

próprio batalhão, mas sim como soldado do 4º Regimento de Caçadores de África.

Comparando com a sua vida no quartel, descobre que é extremamente melhor a vida no

campo. Depois de oito meses na Argélia, deixou o exército e passou a percorrer o

mundo árabe que tinha despertado nele uma grande simpatia.

Na busca do Absoluto de Deus, o contacto com o deserto e o impacto com a

espiritualidade dos muçulmanos foram muito importantes, pois despertaram nele um

forte sentimento religioso adormecido durante muitos anos. Compôs uma pequena

oração que repetia constantemente: “Deus, se existis, fazei com que eu vos conheça”4.

Aprendeu árabe e hebraico, partiu para uma exploração científica em Marrocos.

Disfarçado de judeu, ao lado de outro judeu, empreendeu essa viagem, que durou um

ano e lhe valeu uma medalha de ouro da Sociedade de Geografia de França. Depois de

algum tempo de aventura e de conhecimento da terra, do povo e dos seus costumes,

voltou a Argel e apaixonou-se por uma jovem protestante, a filha do comandante Titre,

convertida ao catolicismo. Por forte influência da sua família, não levou adiante esse

relacionamento, pois a jovem não pertencia à sua classe social.

Charles continuou a procurar o sentido para a sua vida e assim voltou a Paris, em

finais de Janeiro de 1886, já com 28 anos. Foi bem acolhido pelos familiares durante

quatro anos. Nesse período preparou a publicação de seu livro Reconhecimento de

Marrocos. O testemunho de fé e a amizade da sua prima Marie de Bondy muito

contribuíram para a sua conversão. Quando solicitou à sua prima que lhe indicasse

4
LHC (14 de Agosto de 1901), citado por A. CHATELARD, Carlos de Foucauld, El caminho de
Tamanrasset …, p. 41.

10
alguém com quem pudesse dialogar sobre o cristianismo, a prima encaminhou-o para o

padre Huvelin, confessor da igreja de Santo Agostinho, que já o tinha visto passar horas

em silêncio dentro da igreja. Ao aproximar-se dele para dialogar recebeu a ordem para

se ajoelhar e confessar os seus pecados. Em seguida, levou-o diante do altar e deu-lhe a

Eucaristia. O encontro com Deus que perdoa e ao mesmo tempo se entrega na Eucaristia

ficará para sempre na sua memória e marcará a sua espiritualidade centrada no Mistério

Eucarístico. Anos mais tarde, recordando aquele final de outubro de 1886, escreve:

“Quando descobri que Deus existia, descobri também que não poderia viver senão só

para Ele. A minha vocação religiosa nasceu no mesmo instante de minha conversão”5.

O padre Huvelin foi o amigo e o conselheiro espiritual que exerceu uma profunda

influência na vida de Charles de Foucauld, tendo causado nele grande impacto estas

palavras proferidas numa homilia: “Jesus escolheu de tal modo o último lugar que

ninguém lhe pôde tirar”6. A conversão transformou este homem de alma de fogo que,

em tudo, queria ir até o fim. De radical que eram as suas próprias iniciativas, tornou-se

radical no duplo e único amor e serviço a Deus e aos outros. Passou por isso a alimentar

o desejo de fazer o maior sacrifício possível para oferecer a Deus: abandonar a família

que era toda a sua felicidade, e ir viver e morrer longe dela; assemelhar-se ao máximo à

vida de Jesus: ser rejeitado, pobre, viver de trabalho humilde, ser sepultado na

simplicidade, viver na obscuridade e no anonimato. Foi, sem dúvida, uma peregrinação

à Terra Santa, aconselhado pelo padre Huvelin que o aproximou definitivamente do

rosto de Jesus de Nazaré, rosto humano de Deus e rosto divino do Homem. Sobretudo

ficou fascinado pelo tempo em que Jesus aí viveu sem ser notado. Passou sete anos na

Trapa, depois quatro anos novamente em Nazaré, como eremita, próximo de um

convento de Clarissas. Jesus abandonado é o ícone que o inspira em todos os momentos.

5
C. DE FOUCAULD, La dernière place, Nouvelle Cité, París, 1974, p. 106.
6
C. DE FOUCAULD, Correspondances sahariennes, Cerf, París, 1998, p. 191. Também cf. CCF (29 de
noviembre de 1901).

11
Por um extremo amor à Eucaristia, sobretudo ao Sagrado Coração de Jesus, influência

principalmente de sua prima, aceita ser ordenado sacerdote em 1901, a 9 de Junho, e

parte para o Sahara, em Beni-Abbès e depois em Tamanrasset, buscando simplesmente

ser amigo e irmão dos nómadas do deserto. Não procura convertê-los, mas amá-los e

proclamar para eles o Evangelho com a sua própria vida. Se alguma palavra pode

expressar a sua mensagem, é a “vida de Nazaré” com tudo o que ela contém de

realismo histórico, de ensinamento teológico e de ideal místico. É um apelo a viver um

amor apaixonado pela pessoa de Jesus, nas situações mais banais da vida dos homens e

mulheres, a exemplo do próprio Jesus, que não escapou à servidão das relações

humanas, tomando ele mesmo a condição de servo para viver plenamente a sua relação

única de intimidade com o seu Pai, numa família humana, num ofício, num lugar

insignificante, e pelos caminhos da Palestina7. Charles viveu também o realismo e

dinamismo da Encarnação de maneira excecional, em relações muito fraternas e

cordiais, numa proximidade cada vez maior com as pessoas, demostrando que essa

espiritualidade de Nazaré pode ser vivida em todas as situações, no celibato ou na vida

matrimonial, na vida religiosa ou na vida de família, no sacerdócio ou no laicado,

sozinho ou na vida em comum. Ela expressa-se numa linguagem de presença a Deus e

aos homens e mulheres, de partilha de vida, de amizade, de solidariedade.

Charles vive no meio dos tuaregues (povo nómada, que se desloca entre o centro

e o oeste do deserto de Sahara e que se destaca pelo profundo sentido da hospitalidade),

que o salvam de uma profunda enfermidade. Em 1907, Hogar foi vítima de uma terrível

seca, com 17 meses sem chuva. Charles partilhou com os seus amigos nómadas todas as

suas reservas e, finalmente, esgotado, também adoece. Desta vez, era ele o pobre que,

nesse estado de fraqueza e doença, precisava da ajuda daqueles que ele tanto ajudara

7
Cf. J. SIX, Itinéraire spirituel de Charles de Foucauld, Seuil, París, 1958, p. 114.

12
anteriormente. Essa foi uma experiência marcante para a sua vida, pois foi salvo da

morte por aqueles por quem tinha dado a sua vida. Aprendeu com os pobres tuaregues a

viver como pobre entre eles, fazendo a experiência de uma vida inteiramente encarnada

na vida daqueles que assumiu como irmãos; soube fazer-se próximo deles, aprendendo

os seus costumes, as suas reações e até mesmo a sua língua. Compreende que os seus

paroquianos são os muçulmanos e como tais respeita-os e ama-os. Funda a Associação

de Irmãos e Irmãs do Sagrado Coração de Jesus para a evangelização dos povos infiéis,

mas não vê essa obra progredir. Apesar dos seus esforços, não conseguiu mais que 46

membros na França. A partir de 1910, sobretudo depois da morte de dois dos seus

amigos, irmãos e inspiradores, o padre Huvelin e Mons. Guérin, Charles sente a pressão

cada vez maior da sua solidão. Estando em 1911 na França, tentou animar a sua

Associação; regressa para Tamanrasset e aí permanece até 1913, quando volta à França,

com o mesmo objetivo e, já em Tamanrasset, de volta, escreve, em 1914:

“Não posso afirmar que desejo a morte; desejei-a em outras ocasiões; agora vejo

tanto bem por fazer, tantas almas sem pastor, que gostaria de fazer um pouco de

bem e trabalhar um pouco na salvação dessas pobres almas; mas o Bom Deus ama-

las mais do que eu e não tem necessidade de mim”8.

Está profundamente doente e assim vai caminhando até ao dia em que é

assassinado. É morto por um tiro, à queima-roupa, em 1916, em plena guerra mundial.

A banalidade e a rapidez da sua morte é semelhante à coroação de uma vida que quisera

ser inteiramente escondida por Deus, com Deus e em Deus, sem aparecer aos olhos

humanos. Para um olhar despojado da fé, com efeito, essa morte parece um fracasso, faz

sobressair o insucesso, a ausência de resultados, nem sequer uma vitória da não-

violência. Essa morte diz-nos que o importante é o que não se vê: “O bom Deus não

8
C. DE FOUCAULD, L’Imitación du Bien-Aimé, Nouvelle Cité, Montrouge, 1997, p. 78.

13
precisa de mim, que a Sua vontade se faça”9. É a mensagem de gratuidade que deixa ao

mundo este homem de acção, nascido para a eficácia e para o rendimento. Ele quis

gritar em silêncio com toda a sua vida uma Boa Nova para o mundo. A sua morte está

realmente na continuidade da sua vida. A sua beatificação ocorreu no dia 13 de

Novembro de 2005, pelo Papa Emérito Bento XVI.

A sua espiritualidade inspira até hoje inúmeros irmãos e irmãs que formam a

família espiritual de Charles de Foucauld, composta por 11 Congregações Religiosas e 8

Sociedades de Vida Apostólica. A sua profunda paixão por Deus, pelo Absoluto na sua

vida, e pela pessoa humana, imagem de Deus na história, leva-o a radicalizar cada vez

mais a sua entrega. Impossibilitado de anunciar explicitamente a Boa Nova, prega a

necessidade e urgência de gritar o Evangelho com a vida. Cultiva a mística do total

abandono nas mãos de Deus Pai e percebe a eficiência de uma vida entregue pelos

irmãos, mas no anonimato. Embora pressinta a força do último lugar, afirma: “Deus, se

encarnou, tomou as feições do irmão pobre e assumiu o último lugar que ninguém lhe

pode tirar”10. A kenosis de Jesus, relatada por Paulo na carta que escreve aos Filipenses

(Flp. 2, 6-11), tornou-se a sua obsessão: esvaziou-se a si mesmo, assumiu a condição de

escravo, humilhou-se, tornando-se obediente até a morte, e morte de Cruz! Desde o

último lugar, é preciso proclamar o Evangelho com a vida!

1.2. Uma Europa em mudança

Neste ponto irei fazer uma breve abordagem histórica acerca da Europa no

tempo de Charles de Foucauld. Sabe-se que a segunda metade do séc. XIX foi uma

época de viragem, tanto a nível do pensamento filosófico como teológico, que irá ter

9
C. DE FOUCAULD, L’Imitación du Bien-Aimé …, p. 78.
10
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile, Nouvelle Cité, París, 1982, p. 120. Também cf. LMB (16 de
julho de 1891).

14
repercussões na própria espiritualidade. É a época do aparecimento de vários

movimentos de renovação da Igreja tais como o movimento litúrgico, missionário,

bíblico e até mesmo espiritual, que tentam (re) conciliar a Fé com a Razão que já desde

o séc. XVI tinha tendência para um certo afastamento entre ambos e que os séculos

posteriores vieram a agravar, sobretudo com o aparecimento do Modernismo. Por outro

lado o medo e a condenação, por parte da hierarquia católica, de todo este pensamento

moderno que estava a ser difundido pela Europa do séc. XIX e que ainda persiste

mesmo nos dias de hoje.

1.2.1. O Liberalismo anticlerical

A palavra anticlericalismo significa a atitude polémica, não meramente negativa,

que pode conservar elementos teístas, mas que é hostil à Igreja e especialmente a

algumas das suas intervenções políticas11. Este anticlericalismo desenvolve-se na França

em meados do séc. XIX por oposição às políticas napoleónicas em relação à Questão

Romana12. A época de Charles de Foucauld é profundamente marcada pelo

anticlericalismo que, como vimos anteriormente, fez parte da vida do próprio beato pois

este, já no seu percurso escolar e académico, tinha tido professores que partilhavam

desse mesmo pensamento anticlerical.

A França da segunda metade do séc. XIX é um país oficialmente anticlerical,

sobretudo devido às consequências provocadas pela Revolução Francesa (1789). Esta

Revolução no seu aspecto mais hostil, reúne toda a herança do Iluminismo francês, que

11
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo, Edições Loyola,
São Paulo, 2005, p. 288.
12
Foram uma série de desentendimentos que existiram nos anos de 1859 a 1871 entre Turim (Estado
liberal piemontês) e Roma (Estado absolutista papal). O primeiro defendia a separação hostil entre o
Estado e a Igreja; já o segundo defendia o que considerava os seus direitos e pressupostos
“indispensáveis” para o desenvolvimento da sua missão, defendendo e reforçando o seu poder temporal.

15
tinha atacado violentamente a Igreja e pregado o ateísmo militante13. A partir de 1870, o

anticlericalismo é reforçado pelo positivismo que vai sendo difundido e também por três

outros factores: a reação ao antissemitismo de muitos católicos; a consolidação da

maçonaria; o avanço socialista que vê na Igreja uma aliada dos ricos em prejuízo dos

pobres, aos quais sabe pregar somente a obediência e a resignação. Estas consequências

ficam cada vez mais claras a partir de um breve confronto entre a sociedade do ancien

regime e a sociedade liberal14. Na primeira, sob uma etiqueta cristã, escondem-se

muitos abusos, em contraste com o espírito evangélico. Na segunda, emergem e

defendem-se vigorosamente autênticos valores que podem ser resumidos neste: uma

melhor compreensão da dignidade da pessoa humana; mas, ao mesmo tempo, põe-se em

crise o último fundamento desses mesmos valores e, consequentemente, a mesma

dignidade da pessoa, pois embora defendida por um lado, é ameaçada pelo outro. No

Liberalismo, afirmações e teses conciliáveis com o cristianismo ou até mesmo

autenticamente cristãs são despojadas da sua base cristã, e a ordem natural não é

elevada nem aperfeiçoada pelo sobrenatural. No Absolutismo, pelo contrário, os

princípios cristãos não são desenvolvidos coerentemente até às últimas consequências e,

enfim, a ordem sobrenatural não protege de modo suficiente a ordem natural 15. Por

outras palavras, a sociedade moderna, do séc. XVI até à Revolução Francesa, exalta a

autonomia e necessária distinção dos campos específicos, uma verdadeira separação e

uma independência absoluta. A autonomia própria da atividade política, que tem como

fim imediato o Bem Comum temporal e não o sobrenatural, não busca a sua justificação

na Igreja, mas cria o laicismo que exclui toda a influência da Igreja sobre a sociedade,

não reconhecendo na sua atividade o fim último sobrenatural, a que o Homem também

13
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 297.
14
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 298.
15
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 298.

16
está chamado a viver e a buscar, incluindo a sua própria espiritualidade16. Esta

exemplificação poderia ir mais longe, mas o que já se afirmou sobre esse processo que,

teve o seu início com o Renascimento e com o Humanismo, desenvolvido com a

Reforma Protestante, com a filosofia moderna e sobretudo com o Iluminismo, colhe os

seus últimos frutos com a Revolução de 1789 onde se verifica que o progresso humano

jamais se desenvolve de modo linear e monovalente, mas compreende aspectos

complexos e até contraditórios, sendo normalmente polivalentes17.

Neste mare magnum de problemas suscitados pela Revolução Francesa é

importante abordar o fenómeno da descristianização18 que foi facilitada por todo um

complexo de causas, entre as quais não devemos esquecer as fraquezas e os erros da

própria Igreja, mais voltada para o trono do que para o serviço, habituada a muitos

privilégios e propensa a admitir às ordens sacras homens sem vocação e até mesmo sem

fé. Mas acerca desta temática trataremos a seguir.

1.2.2. Uma Igreja ocidental dividida?

Perante o novo mundo que surgiu com a Revolução Francesa, enquanto a luta

entre o antigo e o novo estava longe determinar, e o absolutismo parecia sair vitorioso

das cinzas, que atitudes é que foram seguidas pelos católicos de então? Num período de

perturbações radicais, e mesmo no meio de uma nova mentalidade que já estava a

surgir, não era fácil separar o trigo do joio, o erro da verdade, os aspectos contingentes e

inferiores do fenómeno dos valores perenes que a Revolução jacobina tinha afirmado, e

facilmente as pessoas deixavam-se impressionar e atingir pelos aspectos negativos do

liberalismo. Segundo o historiador Giacomo Martina s.j., desenvolveu-se entre os

16
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p.299.
17
Cf. J. MARITAIN, Trois réformateurs: Luther, Descartes, Rousseau, Cerf, Paris, 1925, p. 125.
18
Para poder aprofundar melhor esta temática ver J. LEFLON, La crisi rivoluzionaria (1789-1815),
Turim, 1971, p. 76.

17
católicos uma dupla tendência: de um lado temos os intransigentes ou conservadores,

do outro os liberais ou progressistas19.

Em relação aos católicos intransigentes, o símbolo das suas atitudes em relação

às liberdades modernas encontram-se espelhados na imprensa católica do séc. XIX

afirmando que o liberalismo é pecado e que a liberdade de consciência é uma loucura.

Já que o liberalismo é “intrinsecamente mau” não resta senão rejeitar em bloco todas as

suas doutrinas. Tudo isto leva a afirmar que temos presente um forte conservadorismo

(característica que, umas vezes mais outras vezes menos, se manifesta em todas as

épocas), mas que agora tira um novo estímulo dos horrores da Revolução Francesa.

Factores como o medo de perder os antigos privilégios, a desconfiança espontânea

perante tudo o que é desconhecido, sobretudo quando este é comparado com o que já é

conhecido e experimentado, o esforço psicológico necessário para abandonar aos

antigos hábitos e adaptar-se aos novos, tudo isto e muito mais era reavivado e

fortalecido no início do séc. XIX e que se estenderá até aos inícios do séc. XX. Por isso

é que se diz que nesta época toda a novidade na política é revolução, na filosofia é um

erro e na teologia é uma heresia20. Fica claro para os católicos intransigentes que a

Monarquia absoluta era o melhor regime para a Igreja porque salvaguardava o seu

poder, quer espiritual, mas sobretudo temporal. Entre estes católicos estava presente um

certo espírito maniqueu, mostrando-se com especial vivacidade quando a Igreja está

perante uma sociedade fundamentada em estruturas puramente naturais, o que vem a ter

repercussões na própria espiritualidade, como veremos mais adiante. É forte, então, a

tentação de considerar simplesmente mau o que ainda não está elevado à ordem

sobrenatural. O bem e o mal estão convenientemente divididos, e as propostas dos

adversários da Igreja, ou daqueles que simplesmente estão afastados dela, são

19
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 149.
20
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 150.

18
necessariamente consideradas sob uma luz desfavorável ainda que não contenham nada

contra a fidei e o ethos. Isto verifica-se mesmo nas atitudes de alguns pontífices

romanos tais como Pio IX, Gregório XVI e Pio X. No caso de Gregório XVI, este não

quis introduzir nos Estados Pontifícios as linhas férreas, com medo de que graças a elas

se pudessem estabelecer mais facilmente as comunicações com o novo, desconhecido e

herege mundo, assim como a iluminação a gás21. Os intransigentes iam mais longe e

combatiam resolutamente as bases da nova ordem social, a igualdade e a promoção das

classes menos favorecidas, bem como a difusão da instrução. Nomes sonantes como

Félicité de Lamennais, Joseph de Maistre e Louis Veuillot estiveram ligados a esta ala

da Igreja22.

Em relação aos católicos liberais a situação é bem diferente. Estes tinham

iniciado e prosseguido o seu difícil e fatigante trabalho de esclarecimento e de aceitação

dos princípios de 1789. Os liberais eram impelidos nessa direção por causa de um

complexo conjunto de elementos: o património cultural e político do séc. XVIII e do

início do séc. XIX, com a reivindicação iluminista dos direitos do cidadão, a luta pelo

privilégio, a nova concepção de Estado, e as agitações jansenistas, que por diversos

caminhos levaram a um novo relacionamento com a autoridade; a exaltação do

cristianismo e da libertação feita pelo romantismo, ao menos pelo romantismo alemão,

etc. Segundo os católicos liberais, se a Igreja é rudemente combatida em todos os países

constitucionais, excepto na Bélgica, isso acontece não por intrínseca incompatibilidade

entre liberalismo e cristianismo, mas porque os católicos na sua maioria não aceitaram

ainda com sinceridade o novo regime político e nos seus corações continuam fiéis ao

21
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 153.
22
Como se pode comprovar graças aos estudos de G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos
dias: a Era do Liberalismo …, p. 164-166.

19
absolutismo23. Mas esse regime já se encontra morto, pois o futuro pertence ao

liberalismo, e, nessas circunstâncias, a missão da Igreja consiste justamente em atingir

esse acordo entre os princípios religiosos imutáveis e as novas circunstâncias histórico-

políticas. Acaso não foi sempre esta a atitude da Igreja que, posta no mundo como

fermento na massa, não condena, mas acolhe, batiza e eleva as tendências da sociedade

em que vive e opera? Em cada época, e esta não é exceção, volta de modo diferente o

mesmo problema, ou seja, o de encarnar de modo novo antigos valores, de purificar e

ordenar a um fim sobrenatural, ideias e aspirações muitas vezes confusos e não

totalmente puros.

Os católicos liberais notavam, enfim, a ambiguidade, as contradições e os danos

de uma política que, fazia-se minoria para reivindicar para si a liberdade, forçando a

maioria a negá-la aos demais. A liberdade da Igreja podia ser salva no mundo

contemporâneo através de um apelo ao princípio da liberdade geral, não a uma especial

missão da Igreja24. No que diz respeito à concepção da Igreja em si mesma, ainda que

entre incertezas e oscilações, visíveis sobretudo nos escritores leigos não

suficientemente preparados para um aprofundamento da questão, podem-se notar nos

católicos liberais alguns elementos comuns. Insiste-se sobretudo na autonomia entre as

duas sociedades: civil e religiosa, cada uma delas com fins e meios especificamente

diferentes, e numa distinção mais nítida das suas competências25. O aprofundamento da

missão espiritual da Igreja, os anseios por um regresso à sua pobreza original, a firme

vontade de renunciar a todo o meio de alcançar o prestígio, como suporte da própria

autoridade, levam obviamente a ver com muita distância o apoio do Estado, repleto de

perigos e, portanto, a augurar a renúncia ao sistema concordatário, desde que fosse

23
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 183.
24
Cf. R. G. VILLOSLADA e B. LLORCA, Historia de la Iglesia Católica, vol. III, BAC, Madrid, 1960,
p. 183.
25
Cf. R. G. VILLOSLADA e B. LLORCA, Historia de la Iglesia Católica …, vol. III, p. 184.

20
conseguida a plena liberdade de acção26. Contudo e, como podemos ver a seguir, nem

tudo na Igreja foram divisões e desastres.

1.2.3. Um discreto, mas rico ardor missionário

Enquanto por um lado se defendia, vigorosamente, contra a laicização no velho

continente, pelo outro a Igreja retomava, com novo vigor, a acção missionária que,

depois do declínio e da crise do séc. XVIII, tinha chegado a uma ruína quase total com a

tempestade franco-revolucionária e napoleónica. O movimento missionário tornou-se

cada vez mais popular e a figura do missionário, revestido de uma auréola romântica,

conquistou cada vez mais a simpatia das multidões cristãs27. Nesta época tocar num

missionário significava tocar na França! Todavia, quem confrontar o quadro geral das

missões do ancien régime, rigorosamente controladas pelo padroado espanhol e

português, como o dos séculos XIX e XX, no qual o padroado limitou as reivindicações

efetivas da coroa portuguesa aos poucos domínios restantes, remetendo as ulteriores

reivindicações a um futuro incerto, deve admitir uma notável diferença, nitidamente

positiva28. A Igreja, que é por natureza missionária, age, no final das contas, com maior

liberdade, sacudindo as embaraçosas tutelas de outrora, mesmo que não tenha

conseguido ainda a plena liberdade do recorrente jurisdicionalismo e nacionalismos de

origem colonialista. O relançamento missionário foi o resultado de vários factores: do

romantismo que exaltava a obra civilizadora da Igreja; das novas explorações dirigidas

sobretudo à África, que se tornara quase impenetrável até ao séc. XIX, essencialmente

por causa do seu clima e do seu especial especto geográfico; do entrelaçamento das

iniciativas dos pontífices, de Pio VII a Gregório XVI29. Nomes como Daniel Comboni,

26
Cf. R. G. VILLOSLADA e B. LLORCA, Historia de la Iglesia Católica …, vol. III, p. 185.
27
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 135.
28
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 136.
29
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 141.

21
João Maria Vianney, João Bosco, Ana Maria Javouhey, Frederico Ozanam, Teresa do

Menino Jesus e até o próprio Charles de Foucauld são exemplos notáveis que

provocaram entre os fiéis uma resposta rápida para a missão. Segundo este autor, nesta

altura o trabalho missionário ainda estava ligado a esquemas anacrónicos e obsoletos

que uniam a evangelização à europeização e, fundados numa teologia pietista, que

limitava perigosamente a possibilidade da salvação fora da Igreja visível, e desprezava

os autênticos valores das religiões orientais30.

Contudo, um olhar de conjunto apresenta-nos uma Igreja com traços diferentes

nos vários continentes: uma Igreja sobrecarregada de anacrónicas tradições e de

vínculos, muito estreitos com o Estado, que provocam fortes reações anticlericais, na

América Latina; uma Igreja quase sem tradições que enfrenta, com ânimo juvenil, os

graves problemas que a esperam mas que, ao mesmo tempo, consegue substancialmente

salvar a fé e a prática religiosa dos milhões de imigrantes, graças também ao sistema de

paróquias nacionais; uma Igreja que com o sacrifício dos missionários ceifados pela

febre do Nilo, com o sangue dos mártires (do qual é exemplo Charles de Foucauld),

vítima da ambição desenfreada de chefes das tribos equatoriais ou da xenofobia asiática,

prepara o desenvolvimento de extraordinárias comunidades cristãs, como na África e na

Ásia.

De um outro ponto de vista, notamos também dois aspectos complementares:

por um lado uma certa solidez, pelo menos exterior, dos tradicionais comportamentos

morais, e por outro um abandono cada vez maior da prática religiosa propriamente dita.

Como em todas as épocas, também no séc. XIX é difícil apresentar uma Igreja

monolítica, de uma só cor, ou com luzes e sombras que se contrapõem 31. O quadro é

30
Cf. R. G. VILLOSLADA, Historia de la Iglesia Católica …, vol. III, p. 203.
31
Cf. R. G. VILLOSLADA, Historia de la Iglesia Católica …, vol. III, p. 207.

22
muito mais complexo e amplo e abarca todos os âmbitos, pois todos os elementos mais

contrários estranhamente coexistem. A Igreja do período liberal mostra-se não só capaz

de resistir aos novos ataques, mas também de criar novas e ricas iniciativas, ainda que

em muitos casos ande à procura do caminho, ou melhor, do sentido do seu caminho.

1.3. A espiritualidade no séc. XIX: a génese do pensamento


espiritual contemporâneo

Se a História da Igreja não é alheia à História da humanidade, logo a própria

espiritualidade, neste caso concreto a contemporânea, também não será alheia à vida do

Homem, quer sejam pelas melhores ou até mesmo pelas piores razões. As raízes mais

profundas desta espiritualidade remontam ao séc. XVI, no chamado “Outono da Idade

Média” na época em que nasce o espírito laicista que consiste na dessacralização do

poder eclesiástico, sobretudo com o Papa Bonifácio XVIII. A partir de então, o Homem

tenta a todo o custo superar Deus, impondo uma visão dessacralizada da vida, onde a

filosofia se sobrepõe à teologia, e esta, por sua vez, se sobrepõe à própria

espiritualidade; o direito civil impõe-se ao eclesiástico; a crítica racionalista defronta fé

a e crença; a ciência opõe-se à magia e à religião; a cultura sobrepõe-se à natureza32.

Mais tarde, e como foi abordado anteriormente, tem também um papel preponderante na

difusão do espírito laicista-liberal que abunda na sociedade em que Foucauld se

encontra inserido e na qual contribuiu para o seu agnosticismo e ateísmos iniciais da sua

vida.

Segundo Daniel Pablo Maroto, padre carmelita, é a partir deste contexto que

surgem os primeiros influxos de determinados movimentos modernos que influenciam a

32
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana, Editorial de Espiritualidad, Madrid, 1990,
p. 327.

23
espiritualidade cristã de então, dos quais abordarei os três mais significativos, seguindo

o esquema proposto pelo autor: o americanismo; o modernismo; o problema místico33;

O americanismo34 era desconhecido pelos historiadores da espiritualidade até

algum tempo, no entanto, encontra um lugar próprio e de especial importância na

espiritualidade. Como aconteceu várias vezes na História, o nome não nasceu nos

E.U.A., mas nos círculos mais conservadores da França, especialmente através da obra

do padre Charles Maignen que criticou duramente este movimento anacrónico. Na

realidade, mais que um movimento teológico estruturado, é de facto, uma praxis cristã

fundada no desejo pastoral e espiritual de acomodar a mentalidade tradicional aos

tempos modernos. Figura – chave deste movimento é o padre Hecker que foi o fundador

dos Missionários de São Paulo, de que foi superior geral até 1888, tendo sido muito

apoiado pelo Papa Pio IX. O clima favorável ao americanismo terá sido preparado em

França, tendo sido uma das linhas da frente contra o modernismo, no entanto, nem todos

apoiavam este movimento, nomeadamente a ala liberal da Igreja.

O modernismo35 aparece nos documentos pontifícios e recolhe um complexo

sistema doutrinal referente à religião, ao cristianismo, bem como à espiritualidade,

devido à proliferação ideológica dos finais do séc. XIX. Este movimento procura

reduzir a religião a um sentimento subconsciente que fala sobre a necessidade de Deus

que acaba por ser encarado como sendo o reflexo da imanência vital, tendo em primeiro

lugar Jesus que, por sua vez, transmite aos Apóstolos. Daí deriva que a religião, a fé e

os dogmas são indemonstráveis racionalmente porque a religião é um sentimento prévio

a todo o raciocínio que se confunde com a fé e que, ao mesmo tempo, cria os dogmas. É

33
Neste âmbito irei seguir o esquema de D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana,
Editorial de Espiritualidad, Madrid, 1990.
34
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, pp. 330-334.
35
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, pp. 334 e 335.

24
o sentimento religioso coletivo que cria os dogmas, a fé, a Igreja, a Revelação, etc.

Enfim, a religião e a fé são reduzidas a fenómenos naturais, semelhantes a uma espécie

de quimera subjetiva.

Quanto ao problema místico36 este representa, para a época, uma autêntica

reviravolta na espiritualidade. Começa em França com o abade A. Saudreau que

considerava que todas as pessoas eram chamadas à vida mística, ou seja, para se ser

cristão não existe mais nenhum caminho a não ser o místico, o único em que existe

unicidade de vida. Segundo este movimento, o único caminho para se ser santo é a via

da mística. A mística não é outra coisa senão o desenrolar normal da graça sobrenatural,

ou seja, trata-se de uma contemplação infusa (para todos) e não de uma contemplação

adquirida, ou seja, só reservada a alguns37. A escola mística carmelita propõe a

contemplação adquirida como meta daqueles que não conseguem chegar à

contemplação mística que seria uma forma de oração, acompanhada de uma vida

virtuosa e adequada, simplificada no final dos exercícios de meditação. Tudo isto

porque para esta escola, a mística é um caminho, mas não o único. É importante ter em

conta que toda a mística conduz à ascese, mas nem toda a ascese conduz à mística. A

ascese, sendo a colaboração do Homem com Deus na formação e educação da vida

espiritual, é um compromisso pessoal, consciente, voluntário e amoroso no itinerário da

vida espiritual que abrange canseiras, mortificações, renúncias e sacrifícios, mas nem

sempre este compromisso é assumido inteiramente, daí o facto de nem sempre conduzir

o Homem à mística.

Uma das características que surgem na idade contemporânea são a defesa e a

promoção da liberdade que irá ser o paradigma entre o antiquo e o novum. A razão

36
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, p. 336 e 337.
37
Para um melhor aprofundamento acerca deste tema ver C. GARCÍA, Teologia Espiritual
Contemporanea, Corrientes y perspectivas, Monte Carmelo, Burgos, 2002, p. 50-56.

25
descobre que a pessoa humana tem uma dignidade não só como ser sobrenatural, como

diria Tomás de Aquino, como Capax Dei38, mas também como cidadão e, como todos

os cidadãos têm os mesmos direitos perante a lei (no sentido positivista do termo, ou

seja no âmbito do jurisdicionalismo civil, não tendo em conta o direito natural). A

liberdade de consciência surge assim como a garantia da subsistência da sociedade. A

História do séc. XIX e parte do séc. XX é abundantemente fértil em lutas entre a Igreja

e os distintos Estados, entre o pensamento católico e o liberal, como se abordou

anteriormente39. Alguns pontífices chegaram até a afirmar que o liberalismo era

pecado, negando assim os semina verba que existiam nesse tipo de pensamento. Enfim,

viviam-se os frutos daquela guerra inútil, perdida pela Igreja hierárquica, que já há

muito se tinha distanciado do mundo e do seu progresso. Hoje, no entanto é diferente,

pois a Igreja defende o direito do Homem à vida; o direito de viver honradamente; o

direito à vocação, etc40. No entanto, até aí teve que se fazer um longo percurso que já se

iniciou precisamente no séc. XIX e no qual a espiritualidade cristã deu o seu importante

contributo, de que irei tratar sucintamente.

1.3.1. As correntes de espiritualidade

O séc. XIX é um século com alguns altos e baixos, pois não tem tempo para

pensar, porque tem muito que fazer. Segundo o estudo do padre Daniel Pablo Maroto, a

acção predominante sobre o pensamento tem que readaptar-se à nova mentalidade:

racionalistas e positivistas e por isso (re) surgem algumas correntes de espiritualidade

que o autor elenca da seguinte forma: o ultramontanismo; o laicismo estatal e a

secularização; a sensibilidade social; o novo espírito eclesial.

38
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, I, q. 2, a. 3, c; Ed. Leon. 4, 31.
39
G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 189.
40
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 150.

26
O ultramontanismo41 surge numa época em que o prestígio do papado sai

fortalecido após a Revolução Francesa, sobretudo devido à perseguição da Igreja, ao

espírito romancista e à desestabilização geral dos espíritos (passo a redundância), o que

permitiu e promoveu a devoção ao Santo Padre e à definitiva derrota do espírito

nacionalista de certas Igrejas europeias, sobretudo a francesa. Esta corrente defendia

uma espécie de teocracia papal, ou melhor, a restauração dessa mesma teocracia

perdida com o liberalismo e, no qual, conduziu a Igreja ao dogma da infalibilidade e

primado do Pontífice Romano no Concílio Vaticano I. Um dos grandes defensores desta

corrente ultramontana foi o leigo francês Joseph de Maistre.

Quanto ao laicismo42 e consequente secularização, vai buscar os seus princípios

à Revolução de 1789 sobre a liberdade de consciência, de culto e de religião, que não só

separou a Igreja do Estado, mas que levou também a uma concepção laicista do Estado,

em que a doutrina moral e os dogmas cristãos não orientam a legislação nos

parlamentos europeus, mas a ética e o direito natural. Os clérigos são considerados

como simples cidadãos, ou melhor, funcionários públicos, devido à perda de privilégios,

sendo o Estado que assume todas as tarefas de cuidar dos doentes e necessitados,

substituindo a caridade cristã por uma segurança social estatal, bem como o próprio

ensino, que antes estava sob a tutela da Igreja e que agora é assumido pelo Estado.

Acusar a Igreja do séc. XIX de invasão e desencarnação perante os problemas

sociais é uma injustiça. Apesar de tudo ainda existe uma certa sensibilidade social43,

pobre é claro comparável ao que se sucederá mais tarde sobretudo após o Concílio

Vaticano II, mas, no entanto, não menos preciosa que esta. É preciso ter em conta que é

41
Para um estudo mais completo ver D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana, Editorial
de Espiritualidad, Madrid, 1990, p. 299.
42
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, p. 299.
43
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, p. 301.

27
nesta época que surge a consciência social cristã que dá origem à Acção Católica,

conceito este que já se encontra nos escritos de Félicité de Lamennais. Daqui surgem

vários movimentos como a Conferências de São Vicente de Paulo com Frederick

Ozanam, bem como o apostolado juvenil, sobretudo com João Bosco. Em relação às

Congregações, sobretudo femininas, surgem as primeiras congregações de vida ativa,

que rompem com a estrutura clássica da clausura, sendo uma mais-valia, no sentido da

atenção aos idosos, crianças, órfãos e jovens marginalizados. Um desses exemplos é a

Congregação de São José de Clunny fundada por Ana Maria Javouhey.

O espírito eclesial44 do séc. XIX é bastante difuso, como pudemos observar, que

vai desde o ultramontanismo até ao secularismo, passando pela sensibilidade social. No

entanto existe uma tentativa, sobretudo da parte de teólogos alemães de renovação da

Igreja, ainda vista como societas perfecta, onde predominam, por pouco tempo é certo,

o clericalismo e o regalismo, para falar de uma Igreja mais espiritual, de comunhão, de

Corpo Místico de Cristo, mais carismática do que jurídica, mas do Espírito do que do

mundo45. Uma das figuras centrais deste movimento é Möhler (1838), pois influenciou

definitivamente alguns teólogos da escola romana, sobretudo Perrone, que irá ser um

dos principais peritos e impulsionadores do Concílio Vaticano I.

1.3.2. A piedade popular

Paralelamente às correntes de espiritualidade, vão surgindo novas formas de

piedade popular. Um dos aspectos que fazem parte da História da Espiritualidade do

séc. XIX são as devoções e as suas variantes. O séc. XIX neste aspecto não só não é

44
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, p. 302.
45
Cf. G.B. SAUVIGNY, Nueva historia de la Iglesia, vol. IV, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1977, p.
396.

28
exceção, mas é sobretudo o século onde as devoções atingem o seu auge46. É claro que

existem as devoções cristológicas essenciais: Deus Pai, Trindade, o Espírito Santo,

Maria, os Santos e Anjos; mas surgem muitas outras variantes como a oração, as

peregrinações, as adorações, as edificações dos santuários, etc47. Estas são marcadas

simplesmente por gestos externos, pela simpatia e prazer do sobrenatural, ou melhor

será dizer, do numinoso; também o forte sentimentalismo e pouco interesse pelo facto

de se ser cristão no mundo, é uma constante48. É um período em que a própria Palavra

de Deus é posta de lado, restringindo-se ao estudo por parte dos eclesiásticos e

profundamente desconhecida pelos leigos, restringindo-os à mera piedade. Ao pôr a

Sagrada Escritura fora do âmbito litúrgico, a tendência será a de sobrevalorizar o culto

externo do Santíssimo Sacramento49, fortemente carregado de um individualismo, do

culto pessoal, a par com o orgulho da fé e do amor individual e desinteressado. Devido

a estes factores, fundaram-se muitas irmandades e congregações ligadas mesmo a essa

devoção.

Contudo, o essencial deverá ser o verdadeiro, franco, humilde e sincero encontro

com o sobrenatural para conseguir atingir a perfeição, as graças temporais e, no fim, a

salvação. Neste século verifica-se sobretudo o aparecimento de algumas devoções,

nomeadamente ao Sagrado Coração de Jesus50 (devido à beatificação, neste século, de

Margarida Maria Alacoque), ao Menino Jesus51, à devoção pela Eucaristia, não só como

46
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità, EDB, Bologna, 1987, p. 333.
47
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità …, p. 334.
48
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità, Edizioni Borla, Roma, s.d., p. 102.
49
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 108.
50
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 105.
51
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 109.

29
objeto de adoração, mas também como fonte de graça (comunhão)52, para além da

adoração perpétua, desde que Pio IX o recomendou em 1851. Em relação às devoções

marianas, a proclamação do dogma da Imaculada Conceição em 1854 por Pio IX

constituiu um acontecimento que aumentou o seu interesse pelo povo. Para além das

aparições marianas, sobretudo em La Sallete (1846) e Lourdes (1858)53.

Em comparação com os séculos anteriores, percebe-se uma certa recuperação do

otimismo e uma superação do espírito de rigor do jansenismo. Pelo contrário, as

missões populares acabam por causar um certo terrorismo espiritual, pois usam e

abusam da forma como dão a conhecer Deus: um Deus Juíz em vez de um Deus

misericordioso. Estas devoções são vividas num clima de piedade sentimental, com

fundos dogmáticos e fortemente moralizada casuisticamente, que encontra no

individualismo o seu melhor aliado, valorizando mais o mistério sacramental que o

símbolo. Para além disso, a própria Palavra de Deus ainda continua no esquecimento e o

seu acesso bastante restringido e distante, devido ao uso do latim que só os eclesiásticos

sabiam (e nem todos)54. Todo o cumprimento sacramental continua reduzido a um mero

preceito que não compromete a vida, favorecendo o individualismo e a suposta salvação

pessoal55. Tudo isto não é exclusivamente negativo porque o povo tem a sua própria

forma de expressar a religiosidade, pois a crítica só deve existir em relação ao ideal e

não ao possível. Esse ideal só chegará em 1962 com o Concílio Vaticano II.

52
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 105.
53
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità, EDB, Bologna, 1987, p. 333.
54
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità …, p. 77.
55
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità, EDB, Bologna, 1987, p. 333.
55
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità …, p. 78.

30
1.3.3. Os primeiros passos da renovação litúrgico-espiritual

Como vimos, a sociedade política e religiosa desta época sofria de um mal-estar

de difícil diagnóstico. Na verdade, o mal era muito mais remoto, pois tinha a sua origem

no protestantismo e na constelação dos seus rebentos (jansenismo, galicanismo,

quietismo, etc.), os quais tinham escravizado o Homem a partir de um erro filosófico-

teológico: a não gratuidade da graça, a inutilidade das obras e a falibilidade do Sumo

Pontífice, favorecendo as mais diversas formas de individualismo e devocionismo,

como se pôde verificar anteriormente.

Foi contra esta situação que Próspero Guéranger56 (1805-1855), principal

responsável pelo recomeço litúrgico em França, despertou a consciência católica para o

sentido do divino. Guéranger tinha então recebido a ordenação sacerdotal em 1827 e

logo se interessou pela agitada questão da unidade dos católicos franceses, à qual quis

dedicar toda a sua atividade. O seu ponto de partida foi a restauração da vida beneditina

(que juntamente com as outras ordens religiosas tinham sido expulsas de França, devido

aos motivos anteriormente mencionados), no mosteiro de Solesmes, desde 1833, do

qual se tornou o primeiro abade em 1837 (esta abadia beneditina esteve para ser

frequentada pelo próprio Charles de Foucauld, mas a sua ida nunca chegou a ser

realizada, pois já tinha decidido entrar para a Trapa). Esta restauração assumia, como

explica E. Cattaneo57, um duplo significado para a Igreja: por um lado, tratava-se de

renascimento beneditino na França de Foucauld e, dali irradiaria para a Alemanha

(Beuron) e para a Bélgica (Maredsous); por outro lado, Solesmes e as suas filiais

exerceriam um papel considerável na renovação litúrgico-espiritual e da vida cristã.

Guéranger tinha manifestado a Lamennais, o seu primeiro mestre, o desejo de restaurar

56
A biografia mais completa de Guéranger pertence a P. DELATTE, Dom Guéranger, maestro di liturgia
e di vita monástica, Ed. Benedittine di S. Maria di Rosano, Queriniana, Brescia, 1999.
57
Cf. E. CATTANEO, Il culto cristiano in Occidente. Note storiche, CLV, Roma, 2003 p. 465.

31
a vida beneditina, na qual encontrava a manifestação mais viva da espiritualidade da

Igreja. Este objetara dizendo-lhe que naquela ordem existia o coro58. Ao que Guéranger

respondeu que era justamente por esse motivo que a escolhia. Tornava-se inevitável a

rutura, pois entre eles, existia uma diferença profunda: enquanto Guéranger era

essencialmente um homem da Igreja, Lamennais não o era. A religião era para ele um

simples meio, como muitos outros, ao serviço da comunidade política, uma panaceia

para todos os males da sociedade para a qual ele elaborava uma nova teoria social. O

principal desejo de Guéranger era o de restituir à Igreja os seus centros de oração e às

almas contemplativas um claustro para viver sob o olhar de Deus. O seu ponto de

referência era o monaquismo medieval, essencialmente e, em particular, o modelo de

Cluny.

A originalidade de Guéranger, que viria a marcar o movimento litúrgico, foi,

segundo E. Cattaneo, o amor à Sagrada Escritura, o sentido da sua interpretação

tradicional segundo a teologia dos Padres da Igreja, o conceito profundo do valor da

Tradição e da sua continuidade indefetível, a fidelidade absoluta ao magistério ordinário

da Igreja59. Ancorado no princípio de que a unidade da Igreja exige a uniformidade

litúrgica para os cristãos ligados a Roma, Guéranger defendia energicamente o retorno

ao que ele acreditava ser a antiguidade cristã. Em 1840 iniciou a publicação da

Institutions Liturgiques com a finalidade de oferecer um ensinamento geral de todas as

matérias relativas à ciência litúrgica60. Trata-se de um trabalho proveitoso, fruto de uma

investigação minuciosa, importante pelas notícias cronológicas e bibliográficas acerca

dos autores que trataram a liturgia ou compuseram fórmulas litúrgicas. Não faltam

referências às vicissitudes dos livros litúrgicos publicados em França, com a finalidade

58
Cf. F.R. LAMENNAIS, Essai sut l’indifference en matière de religion 2, Paris, 1834, p. 37.
59
Cf. E. CATTANEO, Il culto cristiano in Occidente. Note storiche …, p. 460.
60
Citação de E. Cattaneo no seu livro, com os anos dos vários volumes: P. GUÉRANGER, Institutions
Liturgiques, Paris, 1840, 1841, 1851 e 1885.

32
de demonstrar a necessidade de voltar à unidade litúrgica com Roma. Ele via na Igreja

de Roma o instrumento de unidade e de renascimento religioso tanto para Ocidente

como para Oriente. Esta luta deve-se à liturgia celebrada pelos ultramontanistas que

pretendiam restaurar a antiga liturgia galicana, pelo que Guéranger achava um atentado

à unidade litúrgica universal. Por causa deste problema, este liturgo não concebeu

qualquer possibilidade de reforma dos ritos e livros litúrgicos, como também exclui a

possibilidade de introdução na liturgia da língua vulgar. Este considerava o latim como

a língua sagrada, parte de uma tradição impossível de contradizer.

Convicto do valor da oração litúrgica, Guéranger forneceu aos fiéis uma

explicação do ciclo anual das celebrações da Igreja. Para isso, publicou L’Année

Liturgique, uma das suas obras mais conhecidas61. É uma verdadeira biblioteca de

espiritualidade litúrgica, patenteando de festa em festa o mistério de Cristo, fornecendo

aos cristãos elementos substanciais a partir da própria oração da Igreja62. Com esta obra,

contribui para uma consciente participação do povo nas celebrações litúrgicas,

distanciando-se dos trabalhos análogos que, precedentemente, tinham feito uma

tentativa semelhante. Outros, de facto, tinham procurado tornar acessível aos fiéis o

Ano Litúrgico, mas sem grande resultado, ou porque não se afastaram do espírito

devocional da época, ou porque não valorizaram os textos litúrgicos63.

O movimento espiritual de Solesmes propagou-se não só na França, mas

também na Alemanha e, mais tarde, na Bélgica. Em 1863, dois sacerdotes diocesanos de

Colónia realçaram a vida beneditina, com a reabertura do mosteiro de Beuron, destruído

durante a época iluminista. Os fundadores, os irmãos Wolter, tinha recebido a sua

formação no mosteiro de São Paulo extramuros (Roma) e, em curtos períodos, em

61
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità, EDB, Bologna, 1987, p. 115.
62
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità …, p. 115.
63
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità …, p. 115.

33
Solesmes. Desde então, era o espírito de Solesmes que estimulava a jovem comunidade

alemã: as duas fundações sentiam a necessidade de combater o laicismo através de um

regresso às verdadeiras fontes do cristianismo e, especialmente, através de uma

renovação da vida litúrgica64. Entre a fundação monástica de Solesmes e a de Beuron

não só existia uma semelhança de vocação, mas também a mesma razão de ser e o

mesmo ideal. Foi através da liturgia de Mauro Wolter, seguindo o exemplo de

Guéranger, procurou contribuir para o renascimento religioso da Alemanha. Convém

assinalar as suas primeiras obras: uma consagrada à vida monástica Praecipua Ordinis

monastici elementa65, na qual dedicou um capítulo ao Ofício divino, a tarefa principal

do monge, pela qual deve pautar toda a sua actividade; e outra dedicada à oração dos

salmos, Psallite Sapienter66, um comentário com amplas referências patrísticas. A

abadia de Beuron depressa se enriqueceu com novas vocações que viam na vida

beneditina um desenvolvimento da riqueza eclesiológica contida na liturgia cristã e o

meio mais adequado para viver a perfeição evangélica. Beuron representava um novo

estímulo para a aquisição de uma nova mentalidade litúrgica, distinguindo-se pela

particular atenção prestada ao canto gregoriano e à arte sacra, fundando para esta uma

escola em 189467.

Em 1872, um grupo de monges de Beuron estabelecera-se na Bélgica para

restaurar a vida beneditina extinta pela Revolução Francesa. Teve assim origem mais

um mosteiro: Maredesous. Este tornou-se logo um centro de atividade litúrgica, uma

verdadeira novidade para a Bélgica daquele tempo, marcada pelo individualismo e pela

magnificência meramente exterior. Um monge deste mosteiro, van Caloen, foi um dos

pioneiros dessa atividade pastoral, pela qual procurou incutir no povo uma autêntica

64
Cf. L. BOUYER, La vie de la liturgie (Lex Orandi 20), Cerf, Paris, 1956, p. 79.
65
Cf. M. WOLTER, Gli elementi essenziale della vita monástica, Montecassino, 1937, p. 69.
66
Cf. M. WOLTER, Psallite Sapienter, vol. 5, Herder, Friburg, 1987, p. 101.
67
Cf. ROUSSEAU, Storia del movimento liturgico, p. 123.

34
espiritualidade litúrgica. Depois de uma breve estadia em Solesmes, iniciou o

renovamento litúrgico, testemunhado pelo Missel des fidèles, com a tradução francesa

dos textos latinos, publicado em 1882. Não se tratava, contudo, de uma tradução literal

do texto latino do ordinário da missa, mas sobretudo de uma transposição de longos

trechos de L’Année Liturgique de Guéranger. Foi ainda, por iniciativa sua, que

Maredsous começou, em 1884, a publicação do Messager des fidèles, uma revista de

carácter litúrgico que, desde 1890, se converteu na Revue bénédictine, a qual continua

hoje a oferecer um contributo precioso com estudos bíblicos, patrísticos e históricos,

que facultam a compreensão da liturgia. Com este subsídio, van Caloen queria ajudar os

leitores a crescer como filhos da Igreja, ensinando-os a nutrir-se daquele maná sempre

antigo e sempre novo concedido pela Igreja.

Através da acção de Beuron e, sobretudo de Solesmes, o mesmo movimento

litúrgico tinha chegado aos mosteiros de Emaús, na Checoslováquia e de Erdington, na

Inglaterra. Existia entre aqueles uma íntima conexão, não somente pelas ideias

promotoras, mas também porque os elementos mais empenhados neste trabalho tinham

bebido na mesma escola de espiritualidade. Assim, poderemos concluir com Cattaneo:

se não fosse Guéranger, tudo se teria processado noutro tempo e de outro modo. Além

disso, necessário se torna salientar que tudo teve a sua origem na reconstrução da vida

beneditina nos países onde ela tinha sido destruída68.

1.3.4. A espiritualidade laical

No mundo contemporâneo, com as suas grandes descobertas, sobretudo

científicas, cria-se uma nova consciência de si mesmo perante a Igreja: Há uma

característica que marca profundamente o nascimento deste mundo: a tomada de

68
Cf. E. CATTANEO, Il culto cristiano in Occidente. Note storiche …, p. 465.

35
consciência, da seriedade intrínseca e, portanto, da autonomia do mundo humano e

terreno. A emancipação da sociedade civil em relação à eclesiástica e a afirmação de

valores terrenos, fora de todo o condicionamento religioso, por vezes repressivo, faz

com que a Igreja se encontre perante um «mundo» completamente novo: um mundo

«encarnado», concreto e não abstrato, fora da vida das pessoas. Perante este confronto

inevitável, a Igreja reage tentando reconstruir alguns quadros que substituam as velhas

estruturas da cristandade com organizações católicas que se tornarão, mais tarde, nos

grandes movimentos da Acção Católica, com novas experiências pastorais e com a vida

mais profunda na fé e no apostolado69. É a partir destes princípios que se desenvolve,

então, toda uma espiritualidade marcada por um forte dinamismo evangélico e

missionário, como se viu anteriormente, e pelo impulso para o serviço aos irmãos em

todos os campos de atividade humana. Imbuídos neste espírito são criadas as chamadas

confrarias70 e irmandades71, demonstrando o zelo, o empenho, o interesse da parte do

laicado católico, o que até aqui era impossível. Estas confrarias, apesar de fortemente

caracterizadas pelas devoções e suas variantes, são esta bela amostra de como a Igreja,

nos finais do séc. XIX, já dava passos no sentido de (re) valorizar o papel preponderante

dos leigos, quer seja na Igreja, mas sobretudo no mundo, onde estes deverão ser sal e

luz. Gradualmente os leigos vão assumindo, já no séc. XIX, uma presença ativa nas

novas estruturas sociais e políticas, essencialmente na Itália, como sequência da célebre

Questão Romana.

69
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 136.
70
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 138.
71
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 138.

36
CAPÍTULO II:

UM APELO: A VOCAÇÃO DE TODOS À SANTIDADE


“Quanto mais coisas nos faltam na Terra,
mais encontraremos o que de melhor ela nos pode dar: a Cruz”
(C. de Foucauld)

Todo o bom cristão, por excelência, é chamado a uma vida espiritual,

fortalecendo assim a sua própria santidade. A palavra espiritualidade vem de Spiritus,

ou do verbo spirare, que quer dizer “soprar”72. O Espírito é o que há de mais profundo,

forte e verdadeiro no Homem impulsionando-o a viver plenamente: “Eu vim para que

todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo. 10,10). A espiritualidade é a força que

Deus oferece à humanidade mantendo-a fiel aos compromissos pessoais e comunitários

voltados para a transformação da sociedade e tendo em vista o Bem Comum, embora

nem sempre seja assim vivida nem interpretada como veremos.

Assim o fez Charles de Foucauld, que também pautou a sua vida de místico e

eremita segundo estes mesmos princípios espirituais. Decerto que terá sido com alguns

altos e baixos, próprios de quem caminha, em busca da perfeição cristã, contudo sempre

com a esperança na superação desses mesmos recuos espirituais. Esta experiência sendo

vivida no Pai, no Filho e no Espírito Santo torna o ser humano mais autêntico,

dinâmico, firme na fé e perseverante na missão da Igreja confiada a cada pessoa,

levando o Homem a ver os acontecimentos do mundo com os “olhos de Deus”73.

2.1. A importância vital da espiritualidade

Nos dias que correm, o termo espiritualidade é encarado num certo prisma de

inutilidade. Num mundo em que reina o imediatismo das coisas, a espiritualidade acaba

72
Cf. CIC nº 691.
73
Cf. SÃO BASÍLIO MAGNO, Liber de Spiritu Sancto 15, 36: Sch. 17, 370 (PG 32, 132).

37
por ser posta de parte. Normalmente encontra-se associada, meramente, a “gigantes” de

outrora (por exemplo os eremitas como Santo Antão, os estilitas como São Pacómio, os

teólogos como Santo Agostinho e São Tomás, os místicos como Inácio de Loyola e

Teresa de Jesus, Charles de Foucauld, etc) que pareciam pertencer a tudo, menos a este

mundo. Mas será realmente assim? Toda esta austeridade, aos olhos da sociedade pós-

moderna, na maior parte das vezes, é olhada como inútil, desprezível e pouco edificante

para o Homem. Não nos deve admirar muito esta realidade pois o mundo que nos rodeia

(sobretudo o contexto europeu) já há muito que esqueceu a sua raíz espiritual, tão

intrínseca e real no ser humano ou então, senão abandonou, é mal interpretada, mal

assimilada e, não poucas as vezes, resulta numa espiritualidade que é quase tudo menos

encarnada na realidade da própria vida do Homem. Um exemplo disto mesmo é o

ocultismo, caso concreto e verdadeiro, e como todo o “ismo”, este acaba por resultar

num enfraquecimento e, ao mesmo tempo, numa redução espiritual-evolutiva do

horizonte do Homem, resultado de uma “fragilidade” cultural, já para não falar de uma

incapacidade para elaborar novos valores alternativos por parte de uma sociedade em

que o indivíduo se sente isolado, desprotegido e, portanto, frustrado. No meio desta

“confusão espiritual” há que resolver a importância da espiritualidade na cultura de cada

povo, inculturando-a na realidade cultural do mesmo, no intuito de ser Palavra de Deus

para o Homem histórico. À semelhança de Cristo feito Homem, a cultura cristã deve ser

encarnada; deve ganhar corpo, forma, base sociológica, dimensão histórica, imaginação

inédita. Mas é claro, mantendo sempre o seu perene juízo crítico face às condições não

pouco adversas da sociedade vigente. Com Cristo Crucificado, a cultura cristã deverá

resistir ao mundo, como Cristo Ressuscitado, a cultura cristã deve ajudar o mundo a

regenerar-se e a concretizar ações específicas que tirem verdadeiramente o Homem da

escravidão do pecado.

38
2.1.1. A interpretação da pós-modernidade

Mais do que falar em retorno de espiritualidade, tema hoje tão díspar em

orientações e cuja literatura me parece inabarcável, mesmo até na velha europa (para

não se falar nos E.U.A. e no Brasil), gostava de apresentar dois âmbitos de reflexão:

O retorno do religioso no atual pensamento filosófico europeu;

Os problemas de fé cristã perante um cristianismo pseudo-gnóstico, agravado

pela presença de uma espiritualidade excessivamente afetiva, no qual o movimento

Nova Era é paradigma;

Um dos aspectos mais interessantes no atual pensamento europeu é o retorno da

temática, após uma longa época de pensamento crítico e de consideração da religião,

como mandava Kant, nos limites simples da Razão e no célebre confronto face aos

famosos juízos sintéticos a priori, para não falar de pensadores eminentes, mais ou

menos marginais ao sistema universitário, como Maurice Blondel, sempre tiveram em

conta este pensamento74. Mas a atual qualidade (e, já agora, quantidade) desta temática

é tão vasta, como disse anteriormente, que permite-nos pensar numa quase viragem

relativamente ao passado recente. É caso para dizer que este retorno não é de todo

impertinente dado que poderá ser uma possibilidade de reestabelecer o diálogo entre a

Fé e a Razão há já muito perdido75 (no qual mereceu especial preocupação e destaque

durante o pontificado do Papa Emérito Bento XVI) após a Revolução Francesa de 1789

e ao consequente Laicismo, Liberalismo e Iluminismo que daí lhe advém, ao qual tive a

oportunidade de fazer referência no capítulo anterior.

74
Cf. ARNALDO PINHO, Algumas notas sobre o retorno do religioso na cultura actual, in HumTeo, 25
(2004), Fasc. 2, p. 263.
75
Cf. ARNALDO PINHO, Algumas notas sobre o retorno do religioso na cultura actual …, p. 263.

39
O carácter redutor da racionalidade moderna tem sido descoberto a partir do

retorno da memória. Visto assim, o pensamento moderno e racionalista tem sido

criticado por tratar apenas do óbvio, esquecendo-se do profundo. Em resultado dessa

metodologia, tem-se caído naquilo que Eugene Trias chamou de o obscurecimento do

símbolo76. O contributo de L. Wittgenstein para mostrar que a Razão apenas nos permite

pensar dentro de uma linguagem a que não podemos escapar, como se fossemos moscas

aprisionadas dentro de uma garrafa, foi notável, e daí a pergunta: Será que pensamos

dentro de um espaço determinado pela linguagem ou atingimos a realidade tal como ela

é? Conhecemos, pois, melhor os limites da Razão. E, desde logo, a hipótese de novas

explicações, menos dependentes de mestres consagrados e, quiçá, frustrados.

Para a Fé, a insistente análise dos limites da Razão tem levado a ciência a passar

de tentações antiteístas, que o eram as do positivismo de A. Comte do séc. XIX que

alguns chamavam de cientismo, a uma atitude dita de “ateísmo metodológico”,

deixando a ciência de referir as questões do sentido; ao mesmo tempo em que a

Filosofia faz uma espécie de retirada sobre as pretensões metafísicas de negar a

existência de Deus, ou seja o princípio de causalidade. Podemos até dizer que, hoje em

dia, já não existem razões para se ser ateu77. Juntamente com o “regresso” ao Olimpo,

podemos juntar a paixão pelo arcaico e pelo narrativo, com o retorno das tradições, das

feiras medievais ou das medicinas alternativas, para não falar da paixão pelos

horóscopos e da mística esotérica, enfim uma glória distante78, como nos diz Peter

Berger.

76
Cf. EUGENE TRIAS, A Filosofia e a sua sombra, Edições Loyola, São Paulo, 1993, p. 86.
77
Cf. ARNALDO PINHO, Algumas notas sobre o retorno do religioso na cultura actual, in HumTeo, 25
(2004), Fasc. 2, p. 264.
78
Cf. PETER BERGER, Una gloria lejana. La búsqueda de la fe en época de credulidad, Barcelona,
1994, p. 183.

40
Quanto aos autores mais sensíveis à situação da Ratio moderna, salientam que o

principal problema reside no declínio dos meta-relatos e a consequente crise de

fundamentação no discurso moderno79.

Outros autores falam hoje no fim das grandes transcendências abstratas e no

retorno dum pensamento kenótico, palavra bem conhecida da Teologia e que significa

um certo obscurecimento do pensamento, para dar lugar à experiência; para dar lugar a

pequenas encarnações ou vislumbres de presenças verdadeiramente reais 80. A obra de E.

Lévinas tem toda ela, como centro, a diferença entre uma abordagem acerca de Deus e o

discurso de um Deus que se revela na tradição judaico-cristã: o Deus do rosto. Nesta

tradição Deus é o rosto ensanguentado de Jesus, justamente o contrário dos ídolos de

Deus, criados pelo Homem81. Este autor, partindo da simbólica bíblica, mostrou que é

na profundidade do rosto e da sua alteridade, que se apresentam a glória e a humilhação

e também, mais que em nenhum lugar o mistério da ausência e da transcendência que o

salmista resumiu naquele versículo “a luz do Teu rosto, Senhor, brilhe sobre nós” (Sl.

4,7)82.

As espiritualidades que têm preenchido este distanciamento de Deus e da Razão,

são, não raro, de grande debilidade, tanto no catolicismo como fora dele. Para utilizar as

palavras de F. Nietzsche, citadas numa biografia elaborada pelo jesuíta francês Paul

Valadier, “vivemos num mundo que podíamos classificar de busca de novos deuses”83.

Assistimos, de facto, a uma banalização do sagrado e a sua difusão neutra, situação que

tem aparecido particularmente nas idiossincrasias sectárias, sobretudo a Nova Era, mas

também no desenvolvimento de formas arcaicas do religioso, que vão desde o culto do


79
Cf. P. LAÍN ENTRALGO, Sobre la amistad, Ediciones Castilla, Madrid, 1972, p. 69.
80
Cf. G. VATTIMO, Creer que se cre, Editorial Herder, Barcelona, 1982, p. 67.
81
Cf. E. LÉVINAS, Fuera del sujeito, Editorial Herder, Madrid, 1977, p. 117.
82
Cf. ETELVINA P. L. NUNES, O outro rosto. Problemas da alteridade em Emanuelle Lévinas,
Universidade do Minho Editora, Braga, 1993, p. 134.
83
Cf. P. VALADIER, Nietzsche: l’athée de rigueur, DDB, Paris, 1975, p. 150.

41
diabo, a missas negras, do espiritismo estreitamente ligado à escola espírita francesa

fundada por Alan Kardec no séc. XIX, à Igrejas cientológicas, etc. Escusado será dizer

que a situação é, provavelmente, mais difícil do que aquela que existia no tempo dos

mestres da suspeita (Marx, Nietzsche, Freud).

Nos inícios de 2003 foi publicado um documento sobre a Nova Era pela Santa

Sé, envolvendo o Conselho Pontifício para a Cultura e o Conselho Pontifício para o

Diálogo Inter-Religioso. Esse documento destaca o contraste entre este movimento e a

fé cristã, levando a uma melhor compreensão da diferença entre os movimentos

espirituais e as espiritualidades alicerçadas na tradição cristã84. Intitulado “Jesus Cristo,

portador da água viva: uma reflexão cristã sobre o movimento Nova Era”, este texto

denuncia as raízes e o enquadramento duma espiritualidade que, como a gnose dos

primeiros séculos do cristianismo, tenta uma harmonização de várias tendências,

dissolvendo o núcleo do cristianismo numa harmonia do “self”, apresentando-se como a

gnose, com o perfil de uma doutrina salvacionista85. Existem pessoas que fazem o que

lhes apetece ou convém, em nome de uma desejada e imaginada sugestão divina. O

Apóstolo chama a atenção para estes riscos (2Cor. 1,14-15). Por mais intensas que

sejam estas experiências e a argumentação explicativa seja lógica, objetivamente trata-

se de algo provocado que é iniciado e controlado, recorrendo a técnicas de influência

humana em que o sujeito e o objeto das experiências é previsto, programado e

executado segundo processos e crenças sincréticas, praticadas nomeadamente na Ásia

ao longo de milénios86.

84
Cf. B. DOMINGUES, Experiências religiosas e autenticidade, in EspCarm, nº 27, Julho-Setembro,
1999, p. 223.
85
Cf. CONSELHO PONTIFÍCIO DA CULTURA e CONSELHO PONTIFÍCIO PARA O DIÁLOGO
INTER-RELIGIOSO, Jesus Cristo, portador da água viva. Uma reflexão cristã sobre a «Nova Era», 2ª
Edição, Paulinas, Lisboa, 2003, p. 8.
86
Cf. B. DOMINGUES, Experiências religiosas e autenticidade …, p. 224.

42
O diagnóstico traçado por este texto do Magistério, a meu ver, para

discernimento de muitas tendências actuais do religioso, ressalva-se na necessidade de

ter em conta a revelação de um Deus pessoal, contra um divino vago, bem como a

importância da narrativa bíblica como lugar de identidade do cristianismo e, enfim, o

lugar da comunidade eclesial, como corpo de aferição da verdade87. Desta simples e

mais do que modesta busca pelo regresso à Filosofia do religioso, da gnose e do

Transcendente, poder-se-á concluir que a afirmação, tantas vezes proferida, de um

Ocidente espiritual, merecerá mais do que uma resposta exclusiva no âmbito teórico-

espiritual.

2.1.2. Em busca de uma espiritualidade cristã: a verdadeira


resposta aos anseios do Homo spiritualis

A espiritualidade cristã não se confunde com vida espiritual enquanto

spiritualitas, termo desconhecido nos autores do primeiro milénio, mas antes se define

enquanto “vida segundo o Espírito” que, em S. Paulo, se opõe à vida segundo a carne,

baseada no egoísmo. Na perspectiva cristã, “é espiritual, tudo o que vem do Espírito

Santo e não de um outro qualquer espírito; tudo o que vem do Espírito Santo, por outro

lado é dom para o Homem”88, no entender do jesuíta Luís Rocha e Melo. Tudo o que

torna o Homem mais espiritual também é designado com essa mesma palavra. Assim S.

Paulo amplia o adjetivo espiritual para qualificar, por exemplo, os dons (cf. 1Cor. 12,

1), a linguagem (cf. 1Cor. 2, 13), a inteligência ou a sabedoria (cf. Cl. 1, 9), o alimento

(cf. 1Cor. 10, 3), a lei (Rm. 7, 14), etc. Este Homo spiritualis é chamado a despojar-se

do homem velho e a revestir-se do homem novo (cf. Ef. 4, 23-24), ou seja,

87
Cf. CONSELHO PONTIFÍCIO DA CULTURA e CONSELHO PONTIFÍCIO PARA O DIÁLOGO
INTER-RELIGIOSO, Jesus Cristo, portadora da água viva. Uma reflexão cristã sobre a «Nova Era» …,
p. 10.
88
LUÍS ROCHA E MELO, O vento sopra onde quer: notas de Espiritualidade, Editorial A.O., Braga,
2001, p. 69.

43
simbolicamente é convidado a fazer uma transformação profunda (Nova Criação) do

próprio ser, o que comporta um crescimento. Formar Cristo em nós só pode ser obra do

Espírito Santo e não do próprio Homem; daí que o Homem transformado ou recriado

pelo Espírito Santo deva ser chamado de Homem Espiritual. Esta afirmação tem uma

dimensão claramente escatológica; mas o que há-de vir, vive-se no presente, em

esperança. Nesta passagem do corpo natural ao corpo espiritual há uma noção de

transfiguração que se vive desde já; na ressurreição a passagem da morte à vida será

definitiva.

Tudo isto acontece ao nível da consciência e da liberdade. Deus vem ao encontro

do Homem no seu desígnio de amor e o Homem é convidado a responder em medida

semelhante. A vida espiritual é vida teologal, relação do amor com Deus em Jesus

Cristo na energia criadora do Espírito Santo e na plena responsabilidade do Homem

adulto89; A vida espiritual não é outra vida senão aquela que vivemos no nosso corpo.

Esta vida leva à plena humanização do homem no seu corpo90. Mas afinal será que

temos o direito de falar de vida interior? Devemos fazê-lo a partir da vida interior

humana. Devemos recuperar a unidade e unicidade da vida espiritual cristã. O mesmo

Espírito que nos habita chama-nos a cumprir funções diversas no Corpo de Cristo, mas

não se deve falar em diferentes espiritualidades nas suas aplicações exteriores, devendo

a espiritualidade cristã manter-se inalterável91.

A vida espiritual cristã tem uma forma cristocêntrica, pois encontra o seu ponto

ómega92 em Cristo. Ele é o Narrador e a Revelação do Deus Trinitário, é a imagem de

Deus invisível. Sabemos qualquer coisa de Deus a partir daquilo que Jesus narrou e

89
Cf. K. RAHNER, Escritos de Teologia, II, BAC, Madrid, 1961-1967, p. 76.
90
Cf. K. RAHNER, Escritos de Teologia, II …, p. 76.
91
Cf. L. BOUYER, Introducción à la vie spirituelle, Cerf, Paris, 1992, p. 152.
92
Cf. P. THEILHARD DE CHARDIN, O Fenômeno Humano, Edições Loyola, São Paulo, 1984, p. 152.

44
disse (cf. Jo 1, 18). Procurar Deus significa seguir Cristo. Mas se o Espírito Santo é o

invisível de Deus que se torna visível nos seus frutos, então o Espírito Santo torna-se

visível na humanidade de Jesus Cristo (nos Seus gestos, no Seu falar, na Sua relação

com a natureza e os pobres, etc), e não apenas no momento inicial da vida de Jesus93. A

Sua vida é gerada e guiada pelo Espírito Santo. Se Paulo fala do Homem que se deixa

guiar pelo Espírito, e por isso é filho de Deus, então Jesus é aquele filho do Homem que

mais se deixou guiar totalmente pelo Espírito de Deus. A vida segundo o Espírito tem,

portanto, uma forma cristológica. Jesus vive a sua vida espiritual na dinâmica de relação

com o Pai, que é Abba. À luz de Cristo, verdadeiro centro focal que ilumina a nossa

vida espiritual, a vida espiritual cristã aparece como cura / cuidado do humano.

No cristianismo, o Homem aparece como (re) criado em Cristo. O corpo humano

é templo do Espírito Santo. Então a vida espiritual cristã é chamada a colocar em prática

a vida espiritual de Cristo, afirmando o primado da pessoa94. Pessoa que se realiza no

encontro com os outros e no amor. Devemos realizar em nós o nome e o rosto de Cristo.

A vida espiritual cristã tende a construir plenamente o Homem, e não um tipo de

Homem, certo de que em Cristo está a revelação do Homem como Deus o quer. Se não

há o Homem, não há o padre, o monge, nem sequer o cristão.

O cristão, sendo um discípulo da revolução feita pela Encarnação de Deus em

Jesus Cristo, deve aceitá-l’O como Mediador, Salvador pessoal e universal. Ele convida

todos a partilharem a vida com Deus (cf. Jo.10,10). A relação com Ele na e pela fé deve

tornar-se uma relação dialogal, confiante, fiel e coerente entre o crer e o viver a vida

concreta. A autêntica fé traduz-se na qualidade de vida competente, honesta e solidária

93
Cf. K. RAHNER, Aimer Jésus, Desclée, Paris, 1985, p. 22.
94
Cf. K. RAHNER, Aimer Jésus …, p. 22.

45
na vida familiar, profissional e eclesial95. A razão e o bom senso nunca devem ficar à

margem da fé que não sendo racional é razoável.

O Homem deve viver como Cristo viveu pois é Ele que deverá ser o critério de

vida espiritual. O que é humano autenticamente segundo Cristo é autenticamente

espiritual; e o que é autenticamente espiritual segundo Cristo é autenticamente

humano96. Autores antigos falavam de deificação (Theosis) não no sentido ontológico,

mas no sentido personalístico. Mas como poderemos ser “deus” se ainda não somos

homens? Precisamos primeiro de ser homens segundo Cristo, isto é, pessoas que amam

como Cristo amou.

2.2. Um percurso com sentido que dá sentido

A vida espiritual, sendo um dinamismo intrínseco ao próprio Homem, não se

coaduna com a estaticidade, ou seja, na vida espiritual não existem momentos estáticos

ou neutros: haverá, certamente, momentos em que se progride e outros momentos em

que se regride. É neste sentido que falamos de um determinado percurso espiritual que o

Homem deverá percorrer no intuito de poder confrontar-se e superar algumas eventuais

falhas (pecado) que poderão perturbar a vida espiritual. Também o próprio Charles de

Foucauld se deparou com estes avanços e recuos na sua vida espiritual. Seria uma

utopia pensar que a vida espiritual está isenta/imune a qualquer tipo de pecado, pois o

pecado faz parte integrante dessa própria vida, fortalecendo-a e dando-lhe mais

credibilidade, razoabilidade e sustentabilidade. É nesse intuito que decidimos falar

acerca de um possível percurso espiritual que eventualmente o Homem poderá

percorrer, tendo em conta quer o seu progresso, quer o seu retrocesso espiritual, da

95
Cf. B. DOMINGUES, Espiritualidade, fonte de esperança para um futuro humanizado, in EspCarm, nº
48, Outubro-Dezembro, 2004, pp. 315-320.
96
Cf. L. BOUYER, Introducción à la vie spirituelle, Cerf, Paris, 1992, p. 157.

46
mesma forma que o próprio beato Charles de Foucauld teve. Durante todo este percurso

é importante ter presente que a vida espiritual não surge da parte do Homem, mas sim

da parte de Deus que a torna iniciativa pessoal, gratuita, salvífica e universal.

2.2.1. O chamamento

A vocação cristã é a vocação à santidade, nascida a partir da graça batismal.

Esta vocação deve ser cultivada ao longo de toda a vida de cada discípulo de Jesus. Sem

escutar este apelo à santidade: “Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo”

(Lv. 11,44); ou, na versão do Evangelho de Mateus: “Sede perfeitos como o vosso Pai do

Céu é perfeito” (Mt. 5,48) e sem o desejo de segui-lo, é impossível escutar seriamente

qualquer outro apelo de Deus – porque as diversas vocações cristãs não constituem

senão os modos concretos de viver este chamamento à santidade. A vocação, portanto,

vem a ser o eco de Deus a ressoar dentro da pessoa. Está claro que Deus, tendo criado

todos os homens, assinalou em cada um, desde toda a eternidade, uma tarefa própria a

desempenhar no conjunto do universo. E quis que a essa tarefa correspondesse uma

inclinação espontânea no homem, para que, assim como o Senhor tudo fez por amor,

assim também o homem realize com amor o que deve realizar97.

O ser humano não tem apenas um destino natural. Foi elevado à ordem

sobrenatural, isto é, chamado pelo Criador para participar (além de qualquer exigência

de sua natureza) da filiação divina, o que implica ver a Deus face a face na eternidade.

É, portanto, neste plano sobrenatural que o conceito de vocação toma o seu sentido

pleno. A vocação por excelência vem a ser o chamamento divino pelo qual Deus se

digna atrair o homem à intimidade consigo como a seu Último Fim. Este chamamento

geral toma os seus aspectos ou formas concretas aqui na terra: há a vocação sacerdotal,

97
Cf. C. CABARRÚS, A Pedagogia do Discernimento, Edições Loyola, S. Paulo, 1991, p. 76.

47
a vocação religiosa, a vocação conjugal (o matrimónio é, sim, uma tarefa santa e

sobrenatural) e a vocação secular. Em última análise, estas formas de vida convergem

para a união consumada da criatura com o Criador ou, noutras palavras, para a

santidade. A cada uma destas vocações o Senhor anexou os auxílios necessários ao bom

desempenho da mesma e à santificação do indivíduo. É apenas na sua vocação própria

que a pessoa humana encontra as graças divinas de que precisa para chegar à con-

sumação: fora da sua vocação, o homem perde tempo e esforços; em vão seria, pois,

tentar a tarefa que o Senhor não tivesse assinalado, por mais sedutora que fosse tal

incumbência98. A este propósito convém notar que o Senhor Deus pode chamar uma

criatura humana a percorrer sucessivamente caminhos diversos, até mesmo contrários.

Em tais casos, é preciso frisar que Deus não muda o Seu desígnio a respeito de tal

homem; a variedade está incluída desde toda a eternidade no único propósito divino;

embora não entendamos o porquê da Vontade de Deus se manifestar tão variavelmente

no percurso de vida da mesma criatura, não duvidamos de que a linha sinuosa da

caminhada é certeira, tendendo ao único objectivo de toda e qualquer vocação, isto é, à

união da criatura com o Criador99. E quais seriam os critérios pelos quais alguém

deveria de reconhecer a sua vocação?

Sem querer realçar, especialmente, o estado religioso ou sacerdotal, deve-se

dizer que cada qual pode começar a perceber a sua vocação perscrutando as aptidões da

sua própria natureza. Assim, conforme se disse anteriormente, a vocação pode ser

comparada ao atrativo e deleite que o artista experimenta no exercício da sua arte; assim

como Deus, o Supremo Artífice, tudo realizou e realiza com amor, assim também quis

Ele que o homem desempenhasse com amor a sua missão neste mundo. Donde se vê

quão pouco acertada seria a tese segundo a qual é preciso em tudo contrariar a natureza,

98
Cf. C. CABARRÚS, A Pedagogia do Discernimento …, p. 77.
99
Cf. A. BLOOM, Escola de Oração, Paulinas, São Paulo, 1986, p. 43.

48
mormente no tocante à escolha da vocação. Não. Deus, chamando o homem para a

tarefa predominante da sua vida, certamente não tem intenção de sufocar as aspirações

próprias que Ele mesmo, ao criar, infundiu em cada personalidade humana.

A Igreja, também ela, é uma Igreja vocacional porque é o povo reunido pela

unidade do Pai, Filho e do Espírito Santo, gerado pela iniciativa gratuita do Pai, que

chama a todos a santificarem-se para a glória de Deus100. A sua origem é a eleição

prévia e gratuita do Pai, que nos “abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em

Cristo” (Ef. 1,3-5). A Igreja é originariamente Igreja vocacional porque nasce do

Mistério do Filho chamado e enviado pelo Pai para anunciar o Reino. É

constitucionalmente vocacional porque é uma convocação para formar a assembleia de

Deus, animada pelo Espírito Santo. Tanto a teologia da vocação como a pastoral

vocacional devem ser enquadradas dentro do horizonte do Mistério da Igreja como

“Mysterium vocationis”101. Sendo assim, toda a vocação na Igreja deverá ser um dom

divino; qualquer vocação na Igreja é sempre eclesial porque acontece na Igreja, para a

Igreja e pela Igreja; a Igreja é a mãe que gera no seu seio todas as vocações; a vocação

cristã na Igreja verifica-se na vocação laical, ministerial e religiosa.

No entanto, a vocação secular também tem o seu enquadramento eclesial, sendo

claro que qualquer vocação profana está, em última análise, subordinada à vocação

religiosa, isto é, ao apelo à santificação que Deus dirige a todas as criaturas. É para ser

santo, segundo as suas notas pessoais, que o Homem é chamado à missão de escritor, tal

como um outro é chamado a exercer medicina, etc. Enfim, existe uma vocação comum,

para ao qual todas as demais convergem — a vocação à santidade.

100
Cf. J. LAPLACE, O Espírito e a Igreja, Paulinas, Lisboa, 1991, p. 54.
101
Cf. PDV nº 34;

49
2.2.2. O desprendimento

O desprendimento, no contexto da vida espiritual cristã, toca um dos pontos

mais fundamentais e sensíveis do Evangelho e da renovação da Igreja. Este

desprendimento conduz ao caminho do seguimento de Jesus que, por sua vez, conduz à

pobreza. Não se pode falar de vida espiritual cristã sem nos referirmos a Jesus e, por sua

vez, não podemos falar de Jesus sem nos referirmos à pobreza. Por isso, deve-se falar

de pobreza evangélica, embora com a consciência de que por vezes a própria Igreja,

como Povo de Deus, não cumpre este pré-requisito fundamental, quer seja no estado

laical ou sacerdotal102.

A crise da vida cristã e da vida da Igreja não está tanto nas dificuldades de

adaptação à mentalidade moderna, mas sim na dificuldade de nos adaptarmos a Jesus

Cristo e ao Reino de Deus em que se enraíza a nossa esperança e a nossa confiança.

Neste sentido, a fonte de renovação das nossas vidas e da vida eclesial reside na

superação destas dificuldades da adaptação Àquele que invocamos e de quem vivemos

para O seguirmos de um modo mais coerente. A pobreza, no seguimento de Jesus, não

se reduz a uma questão de perfeição ascética ou de uma aplicação moral prática, mas

situa-se no centro da cristologia103. Não podemos confessar interiormente Jesus Cristo e,

de seguida, perguntarmo-nos em que consiste o desprendimento. O desprendimento não

está à descrição do cristão mas encontra-se no fundamento da fé. Só na medida em que

seguirmos Jesus na sua pobreza faremos também a experiência do que Ele é104.

“Conhecei a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Qual, sendo rico, se fez

pobre por vós a fim de vos enriquecer pela pobreza” (2Cor. 8,9). Este é o único texto

102
Cf. LUÍS ROCHA E MELO, O vento sopra onde quer: notas de Espiritualidade …, p. 109.
103
Cf. W. KASPER, Jesús, el Cristo, 2ª edición, Ediciones Sígueme, Salamanca, 2006, p. 117.
104
Cf. W. KASPER, Jesús, el Cristo …, p. 120.

50
que fala directamente do desprendimento de Jesus. Jesus era rico e, por nosso amor, fez-

se pobre. O que significará isto?

Na carta aos Filipenses, o hino cristológico é uma explicação desta afirmação de

São Paulo aos Coríntios: “Ele que era de condição divina não se valeu da sua igualdade

com Deus, mas despojou-se a si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se

semelhante aos homens…” (Fil. 2,6-7). Este hino canta a história de Jesus. A história da

sua kenosis, do seu desprendimento, despojamento que começa já em Deus. Deus era

toda a Sua riqueza. Com Deus Ele tinha tudo105. Que mais poderia ambicionar?

Contudo, Jesus entregou tudo o que possuía, por nosso amor. No final da sua vida, Jesus

nada tinha que os verdugos e a morte lhe pudessem tirar. Tinha entregado tudo,

despojando-se a si mesmo até à morte e morte de Cruz. Jesus percorre o caminho

contrário àquele que foi percorrido por Adão. Adão quer ser como Deus. Jesus é como

Deus e faz-se homem, um homem pobre, redimido. O Homem continua a ser Homem e

Deus é a sua riqueza e alegria. Jesus percorre o caminho de Deus, o caminho da kenosis,

do abaixamento, do despojamento, enfim, do desprendimento. Desde os primeiros

momentos da sua atividade pública, Jesus coloca-se na fila dos pecadores para ser

batizado por João. O seu lugar é junto dos pecadores. O seu caminho de Messias condu-

lo ao último lugar e Jesus assume as consequências desse caminho de pobreza até à

Cruz106. Jesus permanece fiel ao seu caminho, superando todos os obstáculos. Assim

no-lo afirmam as tentações. As três tentações correspondem como que a três ataques à

pobreza, ou seja, ao seu caminho de despojamento e entrega. O não proferido por Jesus

é um sim à pobreza da condição humana. Jesus fez-se um de nós, embora com a

diferença de ter sido vencedor das tentações. Jesus percorre o nosso caminho até ao fim,

e um fim amargo… Jesus não foge mas segue fielmente o caminho da pobreza. Jesus

105
Cf. W. KASPER, Jesús, el Cristo …, p. 197.
106
Cf. W. KASPER, Jesús, el Cristo …, p. 200.

51
esteve mais próximo do estábulo do que do palácio – “as raposas têm tocas e as aves do

céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt. 8,20). O

seu nascimento foi numa gruta, no meio dos animais e dos pastores. Nasceu pobre, no

meio dos pobres e num lugar que não Lhe pertencia. No final da vida, foi colocado num

sepulcro que pertencia a outros. É esta a vida de Jesus. Não tem, de facto, onde reclinar

a cabeça.

O desprendimento de Jesus não é um fim em si mesmo, mas uma expressão da

sua entrega ao Pai. Neste sentido, o desprendimento é a forma da sua obediência. Ele

não foi neutral entre o pobre e o rico. Dirigindo-se a todos, a ninguém excluiu do seu

amor. No entanto, os pobres foram os seus prediletos e os que lhe foram mais próximos.

Mas afinal quem são os pobres a quem Jesus chamava bem-aventurados?

Reconhecemo-los no modo de Jesus atuar, pois, a sua palavra e a sua acção estão

sempre profundamente unidos. Cura os enfermos, liberta os possessos do demónio,

come com os publicanos e pecadores, dirige a palavra a mulheres e crianças, etc107.

Jesus põe em prática tudo quanto os profetas haviam anunciado108. Pobres são, pois,

todos aqueles a quem falta o necessário. Em Jesus vêm confirmados os seus direitos.

Têm um futuro em Deus, são cidadãos do Reino de Deus. Jesus não os consola com o

pensamento de tempos futuros, para além do tempo e da história, mas realiza neles a

novidade que ele mesmo anuncia, inaugura. O Reino de Deus já não está longe, mas

faz-se próximo naquilo que Jesus diz e faz.

Na bem-aventurança proclamada pelo evangelista Mateus – “Bem-aventurados

os pobres de espírito” (Mt. 5,3) – este, atendendo à sua comunidade, deixa claro que a

ação exterior conta pouco por si mesma. A exigência da pobreza deve plasmar o

107
Cf. LUÍS ROCHA E MELO, O vento sopra onde quer: notas de Espiritualidade …, p. 181.
108
Cf. LUÍS ROCHA E MELO, O vento sopra onde quer: notas de Espiritualidade …, p. 181.

52
discípulo de Jesus do fundo do coração. A pobreza é, assim, uma atitude espiritual

fundamental e, ao mesmo tempo, revela aqueles que estão recetivos a Deus a partir do

mais fundo do coração. A expressão bem-aventurados os pobres em espírito refere-se a

pessoas que chegaram ao limite das suas possibilidades e que se abandonaram nas mãos

de Deus. Os pobres em espírito são pessoas tão pobres que encontraram em Deus a sua

única riqueza. A pobreza em espírito consiste em tornar-se livre para Deus e assim

receber o Reino dos Céus.

2.2.3. A luta espiritual

Todo o Homem teve, tem e terá a experiência de uma força que se opõe ao amor

e à liberdade, provocando uma divisão interna. O próprio irmão universal é exemplo

disso. A vida espiritual não é, portanto, uma pura elevação à vida divina; é também uma

superação contínua de uma existência pecadora e luta contra as forças do mal. O pecado

é redimido por Jesus Cristo através do Baptismo e da Reconciliação mas, na medida em

que obscurece a inteligência espiritual e enfraquece a vontade, deixa uma ferida a que se

dá o nome de concupiscência109. Além disso, o mundo em que vivemos, sendo um

mundo de Graça, também é um mundo de pecado devido à auto-insuficiência das

criaturas. Para S. João, a palavra mundo tem algumas vezes um sentido pejorativo;

existe nele um poder misterioso e mau que atua sobre a humanidade através da tentação.

Facilmente deduz-se, perante uma tal realidade, que a vida espiritual, sendo a vida do

Homem pecador inserido num mundo de pecado, implica necessariamente uma luta.

A concupiscência, sendo uma inclinação para o mal que coexiste com a própria

vida, permanece depois do Baptismo. Ela tem a sua origem no egocentrismo inato e na

109
Cf. C. A. BÉRNARD, Traité de Théologie Spirituelle, Cerf, Paris, 1994, pp. 235-253.

53
incapacidade radical de acesso a Deus e à plenitude do bem110. Podíamos descrevê-la

como sendo uma tendência desordenada, seja qual for a sua origem (empírica ou

racional); desordenada no sentido de fora da ordem natural: aponta para um caminho

errado a priori, que não só não conduz o Homem à plenitude de existência, como o

desvia dela, provocando uma frustração do fim se o Homem pactua com a mesma; uma

tendência, portanto, que aponta para um caminho contrário ao do Evangelho111. Estamos

na presença de um facto e não de apenas só mais uma teoria: a natureza humana está

ferida desde o início da sua existência112.

Em relação ao mundo, fala-se neste contexto, enquanto lugar de pecado. Dentro

dos vários contextos, podemos entender que este mundo opõe a vida presente à vida

eterna113; por outras palavras, as instituições ou organizações deste mundo visam

sempre o bem imediato, ignoram, no todo ou em parte, a dimensão transcendente e o

fim último da existência humana e declaram, por isso, uma espécie de autonomia em

relação a Deus114. Nessa medida, constituem resistência às interpelações da graça. Mais

ainda, quando a razão se arvora em absoluto e recusa toda a finalidade do Homem que

não seja terrestre. Neste sentido, o mundo opõe-se, de facto, aos desígnios de Deus e

exerce um poder contagioso e vicioso sobre os homens, sem excluir os homens da Igreja

que também estão no mundo.

Em relação à tentação, trata-se de uma sedução que induz directamente ao

pecado, mas não tem de o provocar se o Homem não quiser. As suas causas foram

apontadas nos tópicos anteriores: são o mundo e a concupiscência a que a Sagrada

Escritura e a Tradição acrescentam “satanás”, “diabo” ou “príncipe deste mundo” (cf.

110
Cf. S. GAMARRA, Teología Espiritual, BAC, Madrid, 1994, pp. 207-244.
111
Cf. S. GAMARRA, Teología Espiritual …, pp. 207-244.
112
Cf. LUIS F. LADARIA, Teología del pecado original y de la gracia, BAC, Madrid, 2001, p. 56.
113
Cf. J. AUMANN, Teologia Spirituale, Edizioni Dehoniane, Roma, 1991, pp. 161-207.
114
Cf. LUIS F. LADARIA, Teología del pecado original y de la gracia …, p. 57.

54
Jo. 4,30). Esta força misteriosa que age no mundo através das suas estruturas é

personificada como adversária do plano salvífico de Deus. A sua acção perversa, bem

como a do mundo, seriam no entanto, ineficazes se não encontrassem na natureza

humana a predisposição para se deixar conduzir: a concupiscência. Nalguns casos, a

tentação pode-se apresentar com evidência e então é fácil detetar a sua presença, mas

noutros poder-se-á apresentar disfarçada com aparências de bem e necessita de “maior

descrição de espíritos”115. O discernimento deve ser feito a partir dos critérios do Reino

pregado por Jesus, durante a sua peregrinação na terra, pois não é possível construí-lo

com outros que lhe sejam contrários. Não basta saber se o que se pretende é algo de

bom ou de mau. Supondo que o objectivo é sempre bom ao pretender-se a construção

do Reino, importa discernir se os meios a empregar também são bons, se estão ou não

em conformidade com a acção do Espírito Santo116.

Quanto à provação, seja ela espiritual ou corporal, fazem parte integrante da vida

e são imprescindíveis no amadurecimento espiritual e humano da pessoa. Constituem,

além disso, o momento valioso de purificação da fé e do egoísmo. A doença, o fracasso,

a deceção afetiva podem ser tentações se provocarem desânimo; superadas e vencidas

introduzem o Homo spiritualis em atitudes mais profundas de humanidade, humildade,

fé e confiança.

2.2.4. O tempo de deserto

A atenção exercida pelo deserto sentiu-se de modo especial e original pelos

místicos cristãos: o próprio Charles de Foucauld fez essa experiência durante a sua vida,

entregando-se totalmente ao Criador. Não só porque se sentiam estranhos e peregrinos,

sem cidade permanente na terra (cf. 1Ped. 2,11; Heb. 13,14), mas também para melhor

115
Cf. SANTO INÁCIO DE LOYOLA, Exercícios Espirituais, nº 328, AI, Braga, 1999, p. 170.
116
Cf. A. MARTÍNEZ SIERRA, Antropología Teológica Fundamental, BAC, Madrid, 2002, p. 108.

55
se disporem à cidade futura de Deus com a eficácia da ascese penitencial, contemplativa

e escatológica do deserto. A experiência bíblico-espiritual do deserto segue a evolução

histórica, cujos pontos salientes são os do período áureo dos “Padres do deserto” (séc.

IV e V), o reflorescimento com as reformas beneditinas e a proliferação dos

mendicantes (séc. XI ao XIII), um “renascimento patrístico” em conexão com o

renascimento humanista e com os movimentos reformistas católicos (séc. XV ao XVIII)

com os seus sucessivos retornos que se tornaram mais rigorosos nos nossos dias, em que

o fuga mundi começa a estar outra vez em voga117.

Da época patrística, basta o exemplo representativo de S. Antão (251-356),

eremita egípcio, que encheu a história do monaquismo antigo, tanto Oriental como

Ocidental, graças à admirável síntese biográfico-ascética composta por S. Atanásio de

Alexandria, que teve um profundo relacionamento com o santo e o seu estilo, muito

característico, de vida. Antão coloca na base da sua espiritualidade do deserto, uma

tradição popular de profundos motivos quer bíblicos, quer evangélicos118. A solidão, o

ocultamento em busca da obscuridade vê, no deserto, o espaço favorável119. O deserto

revelava-se o espaço propício para desalojar o inimigo no seu território, mostrando

assim uma certa eficácia espiritual. Mas houve outros que seguiram este exemplo como

S. Pacómio (287-347), S. Basílio (329-379), etc. A espiritualidade do deserto que tem

início sobretudo mo Oriente, começa a ganhar outra importância no Ocidente graças à

tradução latina que é feita do livro “A vida de Antão” de S. Atanásio de Alexandria.

Um dos seus elementos mais focados é o penitencial, levado às vezes até aos extremos

limites da resistência física com austeridades rígidas e engenhosas.

117
Cf. A. MIGUEL, Le désert dans la poésie arabe pré-islamique, en les mystiques du désert, dans
L’Islam, le judaísme et le cristianisme, Imprimerie Louis-Jean, Gap, 1975, p. 87.
118
Cf. S. DE FIORES, A Espiritualidade do deserto, in Dicionário de Espiritualidade, Edições Paulinas,
São Paulo, 1989, pp. 264-267.
119
Cf. S. DE FIORES, A Espiritualidade do deserto …, pp. 264-267.

56
Um renovado fervor de espiritualidade observou-se por ocasião das reformas do

monaquismo beneditino (camaldulenses, valumbrosianos, cartuxos, etc) e com as

ordens mendicantes, na sua maioria conciliando a vida cenobítica (contemplativa) com a

eremítica (ativa)120. Desde o séc. XVI até ao séc. XVIII diversas reformas, fundações e

intervenções da autoridade eclesiástica demonstram a vitalidade da ascese eremítica que

se organiza melhor, que se institucionaliza e que recebe assistência. Multiplicam-se os

eremitérios em todos os países que permanecem ou se tornam católicos. Mesmo no

nosso tempo, o desejo de buscar/procurar Deus na solidão inspira novamente um

número considerável de experiências individuais e comunitárias121. Mas o renascimento

deve muito ao exemplo de Charles de Foucauld (1858-1916) que, depois de ter vivido

alguns anos na Trapa e depois ao serviço das Clarissas (em Nazaré e depois mais tarde

em Jerusalém), ordenado sacerdote em 1901, se retirou para o deserto do Sahara até

1916, ano em que foi assassinado122.

O deserto, como lugar geográfico e como posição de separação da sociedade

humana, não pode ser considerado como permanente. O deserto não tem nada a ver com

a mística do tipo fuga mundi. Considerando a história dos crentes, é preciso incutir com

convicção, este aspecto provisório do deserto. Se houve erros e desvios na interpretação

do deserto bíblico, eles estão bem presentes e têm-se deixado perceber sempre que se

quis fazer do deserto a situação definitiva e duradoura do crente, como se pôde

comprovar anteriormente ao termos feito na breve resenha histórica123. O crente é

chamado a viver em comunidade, em Igreja e em sociedade. Deve caminhar durante

algum tempo pelo deserto, a fim de se preparar para a missão, para o contacto com os

120
Cf. A. MIGUEL, Le désert dans la poésie arabe pré-islamique …, p. 87.
121
Cf. R. VOILLAUME, Orar para vivir, Narcea, Madrid, 1972, p. 145.
122
Para mais desenvolvimentos, acerca da importância do deserto para o beato Charles de Foucauld,
trataremos no capítulo seguinte.
123
Cf. R. VOILLAUME, Orar para vivir …, p. 145.

57
outros. Para o Povo Eleito, o deserto sempre representou o “tempo intermediário”,

entre a escravidão do Egipto e a Terra Prometida; depois da infidelidade deve voltar ao

deserto, não como ideal de vida, mas como lugar de passagem e de purificação, a fim de

ser encaminhado na justiça (cf. Os. 2,16-22). Tanto para Abraão (cf. Gn. 12,4-9)124,
125
Moisés (cf. Ex.16,1-2) e Elias (cf. 1Rs. 17,2-9)126, como para Jesus (cf. Mc. 1,12-

13)127, a permanência no deserto insere-se plenamente na sua missão; é parte de um

itinerário espiritual como momento forte (a “catarse”) do amadurecimento das próprias

opções e de encontro com Deus. Como todo o “tempo intermediário”, o deserto

caracteriza-se pela tendência dinâmica do passado para o futuro, que não é espectativa

passiva, mas sim construção do termo para o qual se tende: a dinâmica do “já” e do

“ainda não”128.

Também não se deve confundir o deserto com os retiros ou recoleções comuns,

onde se dispõe previamente de uma série de meios (sejam conferências, colóquios

espirituais, orações, etc), para renovar ou retemperar o espírito. Como afirma Reneé

Voillaume:

124
«Abrão partiu, como o Senhor lhe dissera, levando consigo Lot. Quando saiu de Haran, Abrão tinha
setenta e cinco anos. Tomou Sarai, sua mulher, e Lot, filho do seu irmão, assim como todos os bens que
possuíam e os escravos que tinham adquirido em Haran, e partiram todos para a terra de Canaã, e
chegaram à terra de Canaã. Abrão percorreu-a até ao lugar de Siquém, até aos carvalhos de Moré. E
Abrão construiu ali um altar ao Senhor, que lhe tinha aparecido. Deixando esta região, prosseguiu até
ao monte situado ao oriente de Betel, e montou ali as suas tendas, ficando Betel ao ocidente e Ai ao
oriente. Abrão continuou a sua viagem, acampando aqui e ali, em direção ao Négueb».
125
«Partiram de Elim e toda a comunidade dos filhos de Israel chegou ao deserto de Sin, que está entre
Elim e o Sinai, no décimo quinto dia do segundo mês, após a sua saída da terra do Egipto. Toda a
comunidade dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e Aarão no deserto».
126
«A palavra do Senhor foi-lhe dirigida nestes termos: «Vai-te daqui, dirige-te para Oriente e esconde-
te na torrente de Querit, que fica em frente do Jordão. Beberás da torrente, e Eu já ordenei aos corvos
que te levem lá de comer.» Então ele partiu segundo a palavra do Senhor e foi morar junto à margem do
Querit, em frente do Jordão. Os corvos traziam-lhe pão e carne, de manhã e de tarde, e ele bebia água
da torrente. Ao fim de algum tempo, a torrente secou, pois não chovia sobre a terra. Então o Senhor
disse-lhe: «Levanta-te, vai para Sarepta de Sídon e fica lá, pois ordenei a uma mulher viúva de lá que te
alimente».
127
«Em seguida, o Espírito impeliu-o para o deserto. E ficou no deserto quarenta dias. Era tentado por
Satanás, estava entre as feras e os anjos serviam-no».
128
Cf. V. SERRANO, Espiritualidad del desierto, Studium, Madrid, 1968, p. 93.

58
“O deserto é mais do que o lugar do retiro, já que dada a sua extensão e pelo seu

aspecto inóspito, possui valores próprios. Ele traz em si o sinal da pobreza, da

austeridade, da simplicidade mais extrema; o sinal da total impotência humana, que

descobre a sua fraqueza porque não pode subsistir no deserto, pois ele é lugar onde

habita o nada. O nada que afinal é tudo”129.

O deserto é a tentativa do progresso desnudado, destituído de todo o apoio

humano, na carência, e na falta de todo o sustento terreno, inclusivé o espiritual, para

encontrar Deus. Tudo isto porque “os dias no deserto são o ensaio, a tentativa cheia de

confiança para pedir a Deus que venha buscar-nos, na nossa impotência, para nos

encaminhar até Ele. O que é essencial no deserto é o despojamento total, bem como a

espera paciente e silêncio de Deus na inatividade das nossas faculdades”130.

2.3. A perfeição cristã

Existem diversos tipos de aproximação ao tema da perfeição e, todos eles,

pressupõem um ponto de referência que se identifica com a diversa interpretação

filosófica ou teológica do espírito humano. Aristóteles define a perfeição a partir da

plenitude do ser humano, pois “perfeito é aquele ser a que nada falta ao seu género”131,

no seu ser, nas suas obras, segundo a virtude, e tendo como objectivo o fim último. A

versão cristã, desta aproximação ao tema da perfeição, põe como tónica principal o fim

último do Homem, considerado como a contemplação de Deus. A bem-aventurança

final será um dia a visão de Deus face a face, logo a vida do Homem deverá ser

encarada como uma tensão para este fim último, não só espiritual, mas também

escatológico132. Podemos afirmar que a ideia cristã de perfeição, sem negar os aspectos

129
R. VOILLAUME, Orar para vivir …, p. 147.
130
R. VOILLAUME, Orar para vivir …, p. 147.
131
ARISTÓTELES, Metaphysis, cap. IV, 16. 1021b.
132
Cf. J.R.DE LA PEÑA, La pascua de la creación, 2ª Edición, BAC, Madrid, 2002, pp. 201-203.

59
anteriores, coincide com o ponto de vista mais importante, tanto da psicologia-

antropologia, como da tradição espiritual133.

O Homem é perfeito na medida em que o ser espiritual dispõe livremente de si,

sem condicionamentos de nenhuma natureza e género no exercício da sua liberdade; por

sua vez e, pela sua condição social-solidária, este chega à sua maturidade na medida em

que as relações humanas alcançam a sua plenitude no desinteresse pelo amor

incondicional ao seu próximo. A expressão própria do amor é a atitude tipicamente

humana que se assemelha ao proceder de Deus com a humanidade e que dá a esta

acesso a uma plenitude superior, que Deus confere com o dom da auto-comunicação de

si mesmo no amor e na consolação134. Esta liberdade, proveniente do amor de Deus,

supera a frágil indigência do ser humano como um dom que o Homem jamais chega a

possuir na sua totalidade: a perfeição do próprio Deus quase que se identificará com o

tempo, com a sua própria vontade salvífica e com a sua glória135.

A perfeição cristã também está intrinsecamente ligada à santidade. Ninguém

poderá aspirar à perfeição, sem antes aspirar à santidade. A crítica que Jesus faz aos

“homens justos” do seu tempo, ensina-nos muitas coisas importantes. A santidade não

coincide nem com o perfeccionismo do Homem, nem com a prática das boas obras. Não

se identifica simplesmente com o desejo de melhorar e crescer, nem com o ato de situar-

se na vida e sentir-se reconhecido e seguro de si. A prática das boas obras não é,

todavia, a própria santidade, já que o Homem pode chegar a “cumprir” a perfeição

obedecendo meramente a tudo o que está prescrito e ter um “coração de pedra” (cf. Sl.

17,16). O sentido de pertença a Deus vai para além de um mero cumprimento

133
Cf. Cf. S. DE FIORES, A perfeição, in Dicionário de Espiritualidade, Edições Paulinas, São Paulo,
1989, p. 612.
134
Cf. S. G. ARZUBIALDE, Theologia Spiritualis, el camiño espiritual del seguimento a Jésus, tomo I,
UPCO, Madrid, 1989, pp. 66-75.
135
Cf. S. G. ARZUBIALDE, Theologia Spiritualis, el camiño espiritual del seguimento a Jésus …, p. 67.

60
circunstancial. O coração do Homo spiritualis torna-se maduro na medida em que o

desinteresse chega a pertencer totalmente a Deus. As boas obras pois não são, todavia, a

santidade, não justificam os homens, mas são necessárias para nós caminharmos em

ordem a elas. A santidade, por ser só de Deus, transcende todo o puritanismo,

eventualmente até a sua própria segurança e os próprios direitos, por situar o Homem

perante Deus como um mero indigente e com a máxima disponibilidade para fazer a Sua

vontade136. É esta disponibilidade que ajudará o Homem a superar as suas seguranças,

tendo como alimento o próprio Deus que oferece todos os tipos de disponibilidade, com

o seu amor e a glória da sua amizade. É este verdadeiramente o caminho da santidade.

A prevalência de determinados valores em certas épocas e contextos sociais não

significa, necessariamente, a negação de outros, mas podem resultar de determinadas

circunstâncias que os desencadeiam, favorecem e sustentam. Mas quem está atento à

dinâmica da história e da própria consciência ética dá-se conta que há um permanente

impulso vital, que tudo orienta com firmeza e discrição a finalidade da realização

pessoal e comunitária que passam, precisamente, pela perfeição e, simultaneamente,

pela santidade, que encaminham a humanidade para a sua felicidade, resultantes de um

viver e partilhar a vida com sentido orientado para um fim estimulante, nas suas

diferentes culturas e religiões. Em certos meios as palavras perfeição e santidade

confundem-se com comportamentos estranhos e desviantes do prevalente modo de ser e

de viver do “comum dos mortais”. Ora, a perfeição e a santidade devem então associar-

se à normalidade humana, ou seja, às pessoas que cumprem a vida pessoal e social,

seguindo as normas da racionalidade coerente e as opções éticas e espirituais da fé

esclarecida e empenhada nas diversas formulações137.

136
Cf. S. G. ARZUBIALDE, Theologia Spiritualis, el camiño espiritual del seguimento a Jésus …, p. 69.
137
Cf. B. DOMINGUES, Espiritualidade, fonte de esperança para um futuro humanizado, in EspCarm,
nº 48, Outubro-Dezembro, 2004, pp. 315-320.

61
Existe um fenómeno que se repete estatisticamente com muitas pessoas que

buscam incessantemente e sinceramente a Deus. Defraudados pelos próprios erros na

busca correta da santidade, abandonaram a docilidade como guia do Espírito, o desejo

de superação, e deixam de seguir toda a acção misericordiosa da graça incriada (que

tem origem em Deus)138. A busca pela perfeição tem de passar necessariamente por uma

crise e uma transformação profunda. Podemos formulá-la de diversos modos: como a

passo da própria justiça (humana) à justiça que vem de Deus, bem como o passo do

puritanismo do “justo” ao abandono confiado e gozoso, desde a própria fragilidade e

indigência, nas mãos de Deus139. O Homem é chamado a ultrapassar os umbrais do

amor-próprio, a libertar-se do próprio ego, para se deixar enamorar pela misericórdia de

Deus, reconhecendo a sua própria contingência. Só assim o Homem poderá ser capaz de

compreender a santidade como o reflexo da misericórdia e glória de Deus em si mesmo;

a indigência pessoal deixa de ser um obstáculo para se converter numa mais-valia, num

lugar exato e concreto de adoração, onde reina a misericórdia para com os homens, sem

exceção140. Estamos perante aquilo a que tradicionalmente chamam de pedagogia

divina141.

2.4. A caridade

Se quisermos expressar numa só ideia o que distingue profundamente a caridade

cristã da filantropia humanista ou da benevolência das grandes religiões não-cristãs,

sobretudo do budismo, poderíamos dizer que a sua característica distintiva é Cristo. É

Ele a sua fonte, o seu centro e o seu fim: “Através da sua fé em Cristo e da comunhão

138
Cf. J. A. GARCIA, Sed perfectos, canto y compromisso en el cercamiento salvador de Dios, in SalTer,
74 (1986), p. 709.
139
Cf. A. FONCK, Perfection Chrétienne, in DThC, tomo XII, 1ª part, Paris, 1933, pp. 1219-1251.
140
Cf. IGNACIO DE LOYOLA, Carta a los hermanos estudiantes del Colegio de Coimbra, Roma, 7 de
Mayo de 1547, en Obras Completas, BAC, Madrid, 1963, p. 683.
141
Para um estudo, neste caso bíblico, aprofundado acerca do tema cf. MAURICE GILBERT, Volonté de
Dieu et don de la Sagesse (Sg 9, 17s), in NRTh, 93 (1971), p. 84-166.

62
vivida com ele, o cristão está em condições de amar os homens, como o próprio

Nazareno os amou e continua a amar”142. Ora justamente da riqueza da caridade que é

Cristo e que está em Cristo, é que brotam peculiaridades específicas da caridade cristã.

A caridade dirige-se a todos os homens pois afasta a tentação de parcialidade, ou

seja, a ideia de escolher ou eleger estando contra a exclusão. Ela é para todos, como

para todos é a luz do sol que Deus, como reflexo do Seu Amor, faz nascer “sobre bons e

maus”, bem como faz “chover sobre os justos e os injustos” (Mt. 5,45). A caridade é,

por sua natureza, universal, pois Deus ama a todos e, no seu amor paterno, faz-nos um

com Ele: “Todos vós sois irmãos” (Mt. 23,8). Distingue-se do amor humanamente

entendido porque este é, por sua natureza, restritivo e possessivo, ao passo que a

caridade tem como característica a universalidade: Jesus exclui para sempre a restrição

do amor ao próximo, limitado aos compatriotas, e concentra-o nos humildes e nos

necessitados; torna uma questão jurídica e controversa, numa questão de coração, e de

modo tão categórico que exclui reservas e exceções. Esta universalidade, perfeita em

Deus, pode converter-se para o Homem em astúcia subtil, evasão e generalização,

mediante as quais, manifestando o desejo de amar a todos, não se ama concretamente

ninguém no final de contas143. O critério de proximidade tem, e deverá ter, um sentido

prático concreto. Na superabundância da sua riqueza natural, a caridade dirigida a todos,

dirige-se também a cada um de nós: como família e como cidadãos, pois como diz o

Apóstolo: “Façamos bem a todos, e especialmente aos irmãos na fé” (Gl. 6,10), pois a

caridade não é um sentimento vago, mas sim um compromisso concreto. Este

compromisso concreto exige da parte do Homem a gratuidade e o desinteresse de

intenções, como expressão de uma saída de si sem retorno. O beato João Paulo II

142
M. RIQUET, La carità di Christo in atto, Ed. Paoline, Catania, 1962, p. 21.
143
Cf. M. SBAFFI, A caridade, princípio ativo de vida espiritual, in Dicionário de Espiritualidade,
Edições Paulinas, São Paulo, 1989, pp. 81-88.

63
chamou-lhe mesmo “a fantasia da caridade”144 que se manifesta não só e nem sobretudo

na eficácia dos socorros prestados, mas na capacidade de pensar e ser solidário com

quem sofre, de tal modo que o gesto de ajuda seja sentido, não como esmola

humilhante, mas como partilha fraterna, o que conduz o Homem à gratuidade, a sua

segunda característica.

A caridade não podia ser universal se não fosse gratuita, à imagem e semelhança

do amor de Jesus Cristo: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” (Jo. 15,12-17).

A novidade do mandamento de Jesus está no “como eu” que, em S. João, traduz uma

identificação do Cristão com Cristo145. O mandamento podia ser formulado desta

maneira: “Amai-vos uns aos outros com o mesmo amor derramado nos vossos corações

pelo Espírito Santo”. Entenda-se gratuidade como a qualidade de um gesto livre, não

condicionado por interesses nem por qualquer forma de pressões vindas do exterior. O

amor autojustifica-se e, por isso, é gratuito. No âmbito da justiça e das obrigações há

motivações para agir.

O amor é gratuito no ponto de partida pois “Deus não tinha a obrigação de

estabelecer uma aliança com a casa de Israel, bem como Jesus não tinha a obrigação de

dar a vida pelos homens”146, como nos mostra o jesuíta Luís Rocha e Melo. No amor

imperfeito, que se vai assemelhando cada vez mais ao amor de Jesus Cristo, ainda se

misturam a gratuidade e as obrigações. Embora seja verdade, muitas vezes seria

insensato e inoportuno, na linguagem humana, dizer a alguém: “amo-te por obrigação”.

O amor cristão do presente não prescinde das obrigações, mas é convidado a ultrapassá-

las na dinâmica do Espírito que reproduz em nós a imagem do Filho.

144
Cf. NMI, nº 50.
145
Cf. R. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan: version y comentario, Tomo III, Editorial
Herder, p. 30.
146
LUÍS ROCHA E MELO, O vento sopra onde quer: notas de Espiritualidade …, p. 66.

64
O amor é gratuito no ponto de chegada, pois a caridade não é interesseira (cf.

1Cor. 13,5). Não procura dividendos na sua atuação; não compra bilhete de ida e de

volta. O dom justifica-se por si mesmo sem motivações que devolvam o seu gesto ao

ponto de partida. Não tem retorno, pois investe a fundo perdido. Não apresenta fatura,

tenha ela o rosto que tiver. É importante ter o conhecimento que, na relação humana,

uma “reciprocidade não pode ser ignorada, sob pretexto algum, incluindo até mesmo a

própria gratuidade”147, como nos diz o monge italiano Amedeo Cencini. Dar “sem nada

esperar em troca” (cf. Lc. 6,35) é certamente uma atitude gratuita, mas também pode ser

atitude de auto-suficiência que prescinde dos outros e os olha de cima para baixo, tendo

um mero olhar vertical da realidade, ao invés de ter um olhar mais horizontal. O amor

antes de ser acolhimento é dom, ou melhor, o acolhimento do outro é, provavelmente, o

primeiro passo do dom148. Toda a pessoa normal tem gosto em dar e alegria em ser

acolhido. Receber e acolher em troca o dom do outro é dar-lhe a alegria de dar. Só na

gratuidade é que se entende o amor aos inimigos (cf. Mt. 5,43-47), caso particular de

uma relação sem reciprocidade ou cuja reciprocidade é a indiferença ou o ódio, muitas

vezes manifestado no ataque ou na agressão. O amor dos inimigos é o ponto que

identifica o cristão e o distingue do pagão (cf. Mt. 5,43-47). De facto, se o amor é

gratuito, sem motivos exteriores que o justifiquem, também não há razões que o

desmotivem, nem mesmo a inimizade. Amar os inimigos significa, no fim de contas,

não os ter, ou melhor ainda, transformá-los em amigos.

147
A. CENCINI, Por amor, con amor, en el amor, Sociedad de Educación Atenas, Madrid, 1996, p.57.
148
Cf. A. CENCINI, Por amor, con amor, en el amor …, p. 57.

65
CAPÍTULO III:

CHARLES DE FOUCAULD: UM SINAL ESPIRITUAL DOS TEMPOS

“Quanto mais abraçamos a Cruz,


mais estreitamos nos nossos braços o Senhor”
(C. de Foucauld)

Basta apenas evocar o seu nome para desencadear uma série de associações

mentais: um fascínio sempre novo pela vida contemplativa; uma preocupação pelo

florescimento de vocações religiosas entre os homens e as mulheres que desejam

compartilhar da existência dos mais humildes quer como “irmãozinhos”, quer como

“irmãzinhas”; a reconstituição da missão cristã, partindo da silenciosa presença do

serviço, aprofundada e enraizada na chamada vida oculta de Jesus. Nada, mas mesmo

nada, durante a sua vida fazia prever o êxito extraordinário que haveria de o tornar

numa das figuras mais representativas da espiritualidade cristã dos finais do séc. XIX e

inícios do séc. XX. O bem-aventurado Charles de Foucauld procurou sempre um ideal

de ocultamento, no bom sentido do termo, que o levou a encerrar-se sucessivamente

nalguns conventos de clausura, tais como os trapistas nos ermos do deserto. A única

obra que desejou e tentou repetidamente fundar – comunidades religiosas que vivessem

dentro de um estilo de “pequenas fraternidades” – caiu no esquecimento durante a sua

vida e só se realizaria vinte anos depois da sua morte.

3.1. Uma caminhada sobre as ondas

Para melhor se compreender o irmão universal é preciso recordar (“trazer ao

coração”) que ele foi um homem totalmente dominado por Deus. Tal como ele

confessou:

“Logo compreendi que Deus existe, compreendi que nada mais poderei fazer que

não seja viver para Ele: a minha vocação religiosa nasceu ao mesmo tempo que a

66
fé; Deus é tão grande! E entre aquilo que Deus é, e tudo aquilo que Ele não é há

uma diferença muito grande”149.

Assim, renovou a sua opção radical pela “sequela” (ou seguimento) de Cristo,

em etapas bem distintas: através do encontro com os lugares santos, na austeridade da

Trapa, no serviço humilde em Nazaré. Para si só queria a oração, a pobreza, a

penitência, enquanto aos outros dava o tesouro do amor que ardia no seu coração.

Depois da ordenação sacerdotal (1901) e da vivência de Beni-Abbès, estabelecer-se-ia

definitivamente em Tamanrasset (1905), em pleno deserto, para dedicar a sua vida aos

Tuaregues. Escolheu portanto um “modo novo” de viver a sua vocação que poderíamos

chamar de “paradoxal”. Foi um monge sem mosteiro, um mestre sem discípulos, enfim,

um eremita entre as pessoas para as levar a Jesus. Como fundador, escreveu várias

regras que só depois da sua morte iriam dar origem a novas famílias religiosas.

O maior paradoxo foi o de ter colocado as suas passadas exatamente sobre as

pegadas de Jesus. O testemunho de santidade que ele oferece à Igreja e ao mundo está

marcado por um estilo singular de “sequela” que se poderia chamar de coincidência dos

opostos: contemplação e acção, paragem solitária com Deus e dedicação

incondicionada aos irmãos, aniquilação da cruz e amizade fraterna, heroicidade de vida

e necessidade incontrolável de o anunciar aos outros150. Apaixonado por Jesus, quis

segui-Lo, imitá-Lo e anunciá-Lo até aos confins da terra.

Cada etapa da vida do beato Charles de Foucauld traduziu-se numa mudança

evidente de rumo e numa realização progressiva da vocação que entrevira. Uma etapa

após outra, o gérmen inicial atingia a maturidade graças a passagens e mudanças

contínuas; e a sua vocação, embora se fosse desenvolvendo, ia ficando fiel ao ideal

149
C. DE FOUCAULD, Seul avec Dieu, Nouvelle Cité, Paris 1975, pp. 77-78.
150
Cf. R. ESCUDIER, Charles de Foucauld, o Irmão Universal, Paulus Editora, Lisboa 2005, p. 82.

67
inicial. Em 1886, decidira oferecer-se inteiramente a Deus, viver para Jesus Cristo.

Abraçou a vida de trapista. Passados alguns anos deixou a Trapa e foi viver à sombra do

convento das Clarissas de Nazaré. Preparou-se para o sacerdócio com a ideia de ir para

as regiões mais abandonadas da terra para lá tornar presente Cristo. Penetrou no deserto,

cada vez mais no interior do Sara, até à suprema imolação de si mesmo. A procura

duma forma de vida que lhe permitisse imitar cada vez mais perfeitamente a vida de

Jesus em Nazaré não foi fácil nem rápida151. Aceitou o peso e o fascínio duma procura

atenta que nunca foi realizada, orientada ou dirigida pela sua liberdade pessoal. De

facto, a vontade de Deus conhece-se prestando atenção aos movimentos do Espírito,

cuja acção não obriga nem desresponsabiliza a pessoa humana. A sua caminhada de

discernimento sempre se distinguiu por um amor radical ao Senhor, pelo empenho em

se conformar inteiramente com Ele, sem nunca esquecer a radicalidade do dom recebido

e o empenho em o restituir mediante a oferta de si mesmo ao Senhor.

A Palavra reproduz no seu coração os sentimentos de Jesus; ajuda-o a colocar-se

numa atitude de atenção e perceção da vontade do Pai; dá-lhe a luz e a força do Espírito,

ambas necessárias para realizar a missão salvadora do Verbo, no estilo específico da sua

vocação. Graças a um método que envolvia inteligência e sensibilidade, o beato Charles

de Foucauld, soube entrar numa relação viva com Jesus e aplicar à vida quotidiana o

projeto que brotava da própria Palavra.

O beato Charles de Foucauld revela saber avançar no caminho da exploração de

si mesmo, do rico e misterioso universo das suas próprias capacidades e limitações,

consciente de que Deus não o obriga a vestir um hábito contrário à sua estatura. Os seus

escritos revelam vigilância na delicada interpretação dos estados afetivos: regista com

151
Cf. R. ESCUDIER, Charles de Foucauld, o Irmão Universal …, p. 118.

68
diligência os sentimentos de alegria e paz, de cansaço e de perturbação, que

experimentara num dado período. A análise dos estados de espírito, como bem sabemos,

é um elemento importante que o discernimento sério não pode evitar nem deixar de

sublinhar:

“O amor não consiste em sentir que se ama; mas em querer amar: quando se quer

amar, ama-se. Quanto ao amor que Jesus tem por nós, já Ele o demonstrou à

saciedade, porque nós acreditamos nele sem o sentirmos: sentir que O amamos e

que Ele nos ama, seria atingir o paraíso; e o paraíso não existe aqui em baixo, salvo

em raros momentos e exceções”152.

Por isso torna-se indispensável conformar a nossa sensibilidade com o sentir de

Cristo (cf. Fil 2,5) para aprender a ler a história como Ele a vê, a alegrarmo-nos com

aquilo que a Ele causa prazer; a entristecermo-nos com aquilo que o fere (cf. Rm 12,2).

Assim, Charles procura alimentar a sua imaginação com o Jesus dos Evangelhos para

aguçar a sua visão, para formar cristologicamente a sua interioridade e adquirir um

autêntico gosto espiritual.

O beato Charles de Foucauld está plenamente convencido de que a vontade de

Deus se revela mais claramente onde a caridade for solicitada a identificar e a responder

às necessidades, sempre novas, das pessoas e às urgências vivas e palpitantes da história

do seu tempo e do contexto em que vivia: “É preciso ir até onde a terra já não é santa,

aonde se encontram as almas em maior necessidade”153. E assim, ultrapassando os

limites estreitos do projeto pessoal, está sempre disponível para responder às

necessidades que, pouco a pouco, vão sendo identificadas por aqueles que têm a

responsabilidade dos cuidados pastorais.

152
C. DE FOUCAULD, L’Esprit de Jésus, Nouvelle Cité, Paris 1978, pp. 32-33.
153
C. DE FOUCAULD, Règlements et Directoire, Nouvelle Cité, Paris 1995, p. 87.

69
No início da sua procura de Deus, Foucauld aspirava à fé como se fosse uma

certeza racional:

“Esta religião afinal poderia não ser uma loucura, mas talvez seja a verdade.

Lancemo-nos para o estudo desta religião: arranjemos um professor de religião, um

padre instruído e vejamos que virá cá para fora, e se há razão para acreditar no que

ele diz”154.

Logo foi procurar um “mestre”, encontrando-o na pessoa do Padre Henri

Huvelin. Não tinha vontade de se confessar; apenas queria ter informação sobre a

religião católica. Mais tarde, num dos seus retiros espirituais viria a escrever, ao falar a

Deus do seu mestre espiritual:

“Puseste-me sob as asas deste santo e aí fiquei: com as suas mãos tu me levaste

desde então e não tem havido senão uma graça atrás da outra: eu pedia lições de

religião mas ele fez-me pôr de joelhos e confessar-me; e enviou-me logo a fazer a

comunhão. […] Desde então que só tem havido uma graça após outra”155.

Aquele venerando ancião dirigiu-o sempre com mão firme. Era um homem de

Deus, um homem “que se tornara oração”. A santidade é sempre a força que maior

poder de atração exerce sobre as pessoas. Charles de Foucauld considera a submissão ao

diretor espiritual uma garantia de segurança na difícil procura da vontade divina. Expõe

os seus sentimentos em cada carta que lhe escreve, abre a sua alma o mais possível,

tenta colocar-se num estado de indiferença e promete renunciar a tudo se o seu diretor

154
C. DE FOUCAULD, Qui peut résister à Dieu? Nouvelle Cité, Paris 1980, p. 76.
155
C. DE FOUCAULD, Qui peut résister à Dieu? (…), p. 76.

70
espiritual lho pedir, terminando sempre com uma confissão de obediência e com atos de

abandono ao juízo do seu diretor156.

É impressionante a radicalidade da conversão de Charles de Foucauld. Fica,

radicalmente, de relações cortadas com o seu passado decidido a colocar-se

radicalmente ao serviço de Deus. Nunca foi um homem de meias medidas. Sempre quis

ir até ao fundo das coisas em tudo. Até na sua conversão: “Não procuremos corrigir-nos

a meias, ou converter-nos a meias: isso será impossível. É preciso chegar a converter-

nos completamente, se não nunca nos converteremos”157. Afinal trata-se de passar dum

querer individualista à adesão total e livre ao projeto de Deus:

“Tudo me diz para me converter; tudo me canta a necessidade de me santificar;

tudo me repete e grita para que, se um bem que eu quero não aparecer, será apenas

por minha culpa; e então eu tenho que me despachar na conversão”158.

No seu itinerário de conversão, Charles só tem um modelo: Jesus:

“Segue-me, apenas a mim. Não venhas a Betânia para me ver a mim e também a

Lázaro; vem para me ver, só a mim. Pergunta-me o que eu fazia; “Examina as

Escrituras” (cf. Act. 11); observa os santos, não para os seguires, mas para veres

como me seguiram e pega, de cada um, aquilo que achares que vem de mim, ou é a

minha imitação e segue-me, só a mim”159.

156
Cf. R. BAZIN, Charles de Foucauld, explorateur du Maroc, ermite au Sahara, Nouvelle Cité, 2003, p.
108.
157
C. DE FOUCAULD, Voyageur dans la nuit, Nouvelle Cité, Paris 1979, pp. 207-208.
158
C. DE FOUCAULD, Voyageur dans la nuit (…), pp. 207-208.
159
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé, tomo II, Nouvelle Cité, Paris 1997, pp. 84-89.

71
Desde este momento, Charles apenas toleraria um desejo: o de responder a este

amor de Deus, impelido por uma necessidade desmedida de o imitar: “Eu amo Nosso

Senhor Jesus Cristo; amo-o e não poderei levar uma vida diferente da dele”160.

3.2. A imitatio Christi: uma imitação literal ou literalista?

A vida espiritual foucauldiana desenvolveu-se em várias etapas, durante as quais

ele viveu radicalmente à parte das instituições eclesiásticas tradicionais, mais

interessadas no trono do que no altar (pelo menos as do seu tempo)161. No início,

Foucauld entra na Trapa para se santificar, observando a regra de Cister, mas bem

depressa a abandona para explorar novos caminhos, abandonando assim a dignidade do

estado monástico para ir servir de empregado num convento de Clarissas em Nazaré;

transfere-se depois para Beni Abbés (Argélia), no intuito de dar testemunho de Cristo

entre os Muçulmanos, mas fora da realidade e contexto missionário do tipo colonial,

que de novo reflorescia na sua época; retira-se depois para Tamanrasset, no centro do

Sahara, para compartilhar a vida dos tuaregues e chegar a converter-se num deles162.

Monge sem convento, sacerdote sem comunidade, missionário sem nenhum apoio

militar, o “irmão universal” parece ter tido o dom de criar algumas formas atípicas de

vida cristã, as quais se afastam das formas homologadas do seu tempo163, como se

referiu anteriormente. É justamente esta criatividade que fascina os crentes e não-

crentes de hoje. Perante a sensibilidade contemporânea, o beato gosta de enfatizar que a

vida espiritual é mais a busca e a procura do que a cópia passiva de alguns modelos

reconhecidos. A fidelidade, no campo ético e espiritual, é algo mais que uma simples

160
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé (…), pp. 84-89.
161
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 299.
162
Cf. C. MORRY, Charles de Foucauld, col. Chemins d’Éternité, Pygmalion, 2005, p. 77.
163
Cf. C. MORRY, Charles de Foucauld …, p. 77.

72
âncora lançada uma vez para sempre no passado; é simultaneamente a corda estendida

para o futuro sem rosto.

Na vida de Charles de Foucauld a fidelidade demonstrou que a estabilidade não

é contrária à novidade. As inúmeras formas que o seu projeto de vida assumiu podem

reduzir-se facilmente à unidade, sintetizando-se numa única imagem, a mais antiga e a

mais plástica da história da espiritualidade cristã: a imitação de Cristo na sua vida

oculta164. A vida no espírito, segundo o beato, parece corresponder no mais alto grau, às

exigências da espiritualidade da imitação na sua expressão mais linear. Já na época da

sua conversão ele ficara impressionado com uma frase do Padre Huvelin, que continuou

a ser, durante toda a sua vida, o seu diretor espiritual: “Jesus Cristo a tal ponto ocupou o

último lugar que ninguém consegue arrebatá-Lo dele”165. A conversão ao cristianismo

aponta-lhe depois, em Jesus de Nazaré, o caminho para chegar ao Deus Absoluto e

Inacessível; desde aquele momento não terá outra preocupação senão a de buscar o

último lugar entre os homens do seu tempo, já que somente aí poderá ficar perto de

Cristo, realizando deste modo a sua aspiração de viver só para Deus.

Buscar o último lugar e compartilhá-lo com Cristo para ser totalmente de Deus:

esta é a ideia que unifica toda a vida daquele que quis chamar-se: Charles de Jesus. Mas

os homens de Espírito, mais do que ideias, alimentam-se de imagens. A imagem

dominante no mundo foucauldiano foi a de Jesus, o carpinteiro de Nazaré. Outros

sentiram-se atraídos por Jesus mestre e profeta de Nazaré, ou terapeuta bom, ou então

homem das dores. Foucauld preferiu ver Jesus como Salvador do mundo, como obscuro

carpinteiro de uma remota aldeia da desprezada Galileia. Encontramos esta imagem em

todas as dimensões da sua busca espiritual. Principalmente no momento que pode ser

164
Cf. C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé, tomo II, Nouvelle Cité, Paris 1997, p. 94.
165
LAH (15 de octubre de 1898).

73
considerado como a catarse decisiva da sua aventura cristã: o abandono da vida

cisterciense para se aventurar por terrenos inexplorados e inexploráveis. Nesse período

escreveu:

“Tenho sede de levar a vida que estou a procurar há sete anos; consegui

vislumbrá-la e adivinhá-la, andando pelas ruas de Nazaré, que noutros

tempos nosso Senhor percorreu, como pobre, artesão escondido na

abnegação e na obscuridade”166.

O beato não esquematizou, nem transformou em teoria nenhuma via espiritual

nova. Se ele, de facto, renovou todas as coisas nas suas intenções nada mais encontra a

não ser um projeto essencial e monolítico: imitar Cristo. A melhor expressão da sua

busca encontra-se no opúsculo em que reuniu alguns textos evangélicos com o título e o

seu lema: “O discípulo não é maior do que o seu mestre; é perfeito quando é igual ao

seu mestre (…) Segui-Me”167, resumem toda a sua doutrina. Com as suas palavras e

com a sua vida, Foucauld, situou-se inequivocamente nesta corrente de espiritualidade

cristã que pode ser designada sumariamente como “Imitação de Cristo”. Esta corrente

acha-se organicamente unida ao desenvolvimento da devoção à humanidade de Jesus,

de origem medieval. O movimento franciscano foi o seu berço e São Francisco de Assis

o seu fruto inigualável. Embora o verbo “imitar” não se encontre literalmente no

Evangelho, os cristãos compreenderam que o convite para “seguir” Jesus significava,

precisamente, ser chamado para poder imitá-lo. No entanto, foi preciso chegar à

Reforma protestante para se assistir à discussão sobre a doutrina da imitação. À

pregação de Cristo-modelo a imitar, Martinho Lutero opõe a pregação de Cristo como

166
C. DE FOUCAULD, Carnet de Beni-Abbès, Nouvelle Cité, Paris 1993, p. 66.
167
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé, tomo II, Nouvelle Cité, Paris 1997, p. 94.

74
Salvador168. Não se trata de uma rotatividade insignificante dos termos. No fundo pode-

se reconhecer a doutrina da justificação, apenas e apenas só, pela fé. E mais, admitindo

que Cristo é ao mesmo tempo “dom” e “exemplo”, os reformadores enfatizaram mais o

primeiro aspecto, no intuito de impedir que a imitação se convertesse numa tentativa do

Homem de adquirir méritos e salvar-se em virtude deles169. À imitatio Christi, eles

preferiram o sofrimento concebido como resposta na e para a obediência ao

chamamento de Cristo.

A crítica luterana tem algumas boas razões a seu favor. Não se pode imitar

Cristo como um ser humano. O esforço do crente para se assemelhar ao seu Mestre

desenrola-se no terreno da graça e não no do mero empenho voluntarista170; por isso é

mais obra do Espírito Santo do que do ascetismo. Charles de Foucauld oferece com a

sua vida a prova de que a imitação literal não coincide com o literalismo. Segundo as

pegadas de São Francisco, ele tentou alcançar através da letra que mata, o Espírito que

salva. Este é também o Espírito que renova todas as coisas. Porque uma imitação que

tenha tendência a interiorizar o Espírito de Cristo é sempre fonte de novidade.

A imitação de Jesus Cristo, o Universale Concretum171 por excelência, continua

a ser um imperativo categórico constante da vida cristã, pois toda ela deverá ser um

seguimento. Talvez seja necessário que em cada época surjam homens e mulheres que

pratiquem um tipo de imitação literal mais acentuada para lembrar aos outros cristãos o

que é que constitui o núcleo específico e irrenunciável de toda a vida cristã. Charles de

Foucauld morreu de forma impressionante, semelhante à de Cristo. Traído por um dos

seus companheiros, sofreu uma morte violenta nas mãos de alguns revoltados. No seu
168
Cf. R. GARCÍA VILLOSLADA e B. LLORCA, Historia de la Iglesia Católica, vol.III …, p. 179.
169
Cf. R. GARCÍA VILLOSLADA e B. LLORCA, Historia de la Iglesia Católica …, p. 180.
170
Cf. S.G.ARZUBIALDE, Theologia Spiritualis – El camino espiritual del seguimento a Jésus …, pp.
66 e 72.
171
Cf. SALVADOR PIÉ-NINOT, La Teología Fundamental, 7ª edición, Secretariado Trinitario,
Salamanca 2009, pp. 285-291.

75
ardor pela imitação, ele tinha desejado o martírio como a melhor maneira de consumar a

semelhança mais elevada com Cristo.

3.3. A vida oculta de Nazaré: os trinta anos de preparação

Todos sabemos o que Jesus fez durante os três anos da sua vida pública: como

percorreu as cidades e aldeias da Palestina pregando o Reino de Deus, curando os

doentes, ressuscitando os mortos e ensinando em parábolas. Mas o que fez durante os

outros trinta anos anteriores? Por que motivo os evangelhos guardam silêncio acerca

desta etapa da sua vida? O único que sabemos desse longo período é um episódio que

sucedeu aos doze anos, quando Ele se perdeu em Jerusalém durante a festa da Páscoa, e

como José e Maria o encontraram “no Templo sentado no meio dos doutores,

escutando-os e fazendo-lhes perguntas; e todos os que o ouviam estavam admirados

pela sua inteligência e pelas suas respostas” (Lc. 2,46-47). Mas, imediatamente a

seguir, o evangelho diz que regressou a Nazaré e o véu do mistério desce de novo sobre

a sua vida, ocultando todas as suas atividades durante os dezoito anos seguintes.

Este enigmático silêncio sobre a juventude de Jesus fez com que muitos

“inventassem” histórias e relatos incríveis. Estes relatos puderam ser inventados porque,

segundo a crença popular, os evangelhos não abordam nada acerca dos anos de vida

oculta de Jesus. Mas, será que os evangelhos silenciam absolutamente? Não darão

indícios, em lado nenhum, do que Jesus fez durante todos aqueles anos? Na verdade não

é assim. O evangelho de São Lucas proporciona duas pistas172 muito importantes:

A primeira, depois de narrar a Apresentação do Menino Jesus no Templo de

Jerusalém poucos dias depois de ter nascido. O Evangelho diz-nos que José, Maria e o

menino “voltaram para a sua cidade de Nazaré, na Galileia. E ali o menino crescia e
172
Cf. L. BOUYER, La Spiritualité du Nouveau Testament et des Péres, Aubier, s.l., 1966, p. 79.

76
fortalecia-se, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc. 2,39-

40). Portanto, o evangelista informa-nos claramente que Jesus passou os anos seguintes

da sua vida na povoação de Nazaré, onde se desenvolveu física, intelectual e

religiosamente, como qualquer outro menino da sua idade173;

A segunda, depois de relatar que o menino Jesus se tinha perdido aos doze anos

na cidade de Jerusalém e foi encontrado no Templo174. Ele diz-nos que “voltou com

eles para Nazaré, e ali viveu, obedecendo-lhes em tudo. E Jesus continuava a crescer em

sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens” (Lc. 2,51-52).

Se nos limitarmos, pois, ao evangelho, teremos de concluir que Jesus não saiu de

Nazaré durante todos estes anos. Voltou para Nazaré, segundo Lucas. E ali, no seu

círculo familiar, sendo «submisso» aos pais, adquiriu a sua maturidade humana,

intelectual e psicológica, tal como os outros meninos judeus do seu tempo. Isto é

confirmado por um episódio relatado no evangelho de Marcos. Quando Jesus pregou

pela primeira vez na sinagoga de Nazaré, os aldeãos galileus, ao ouvi-lo, maravilharam-

se e disseram: “De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada?

Como se operam tão grandes milagres por sua mão? Não é Ele o carpinteiro, o filho de

Maria” (Mc. 6,2-3).

A vida de Jesus, pois, deve ter decorrido de um modo tão ordinário e normal na

sua aprazível aldeia de Nazaré, que no dia em que se apresentou em público com uma

sabedoria fora do comum os seus concidadãos de Nazaré ficaram realmente

surpreendidos. Nunca tinham suspeitado que Ele fosse mais do que “o carpinteiro”, “o

filho de Maria”. Se Jesus se tivesse ausentado da sua terra para estudar e aperfeiçoar-se,

173
Cf. X. LÉON-DUFOUR, Diccionario del Nuevo Testamento, Nazaré (voc.) Cristiandad, col. II Madrid
1977, p. 145.
174
Cf. X. LÉON-DUFOUR, Diccionario del Nuevo Testamento, Nazaré (voc.) …, p. 145.

77
os galileus não se teria surpreendido dos seus prodigiosos conhecimentos. Se Jesus não

saiu de Nazaré durante a sua infância e a sua juventude (além das suas peregrinações a

Jerusalém, ou de uma viagem ocasional a alguma povoação vizinha), o que fez

realmente em todos esses anos? É possível conhecer algo da sua vida oculta? Sim, é

possível, graças aos descobrimentos arqueológicos e literários que atualmente existem.

A primeira coisa que fizeram os pais com o menino Jesus, pouco depois do seu

nascimento, foi dar-lhe um nome. Isto realizava-se no meio de uma alegre cerimónia,

celebrada no oitavo dia e perante várias testemunhas (cf. Gn.17,12). O nome que José e

Maria lhe puseram foi Yehoshua, que em hebraico significa Josué. Através da Bíblia

sabemos que na Palestina esse nome costumava ser abreviado e pronunciar-se Yeshua,

por razões de familiaridade. Por sua vez, na Galileia, onde se falava de um modo

diferente do resto do país, e onde vivia a sagrada família, abreviava-se ainda mais e

pronunciava-se Yeshu. Por isso, os primeiros cristãos de origem grega traduziram-no

mais tarde por Jesus. O nome de Yeshua, no século I, era um dos mais comuns de então.

Assim o vemos, por exemplo, no escritor Flávio Josefo (37-100)175, que nas suas obras

menciona mais de vinte pessoas que se chamavam Jesus na história judaica; das quais,

pelo menos dez são contemporâneas de Jesus de Nazaré176. Em hebraico, Jesus (ou

Josué) significa “Deus salva”. E não lhe puseram esse nome ao menino apenas em

homenagem ao profeta hebreu Josué, mas porque, segundo Mateus, um anjo disse a São

José: “Dar-lhe-ás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos seus pecados”

(Mt. 1,21).

175
Foi um historiador e apologista judaico-romano do séc. I d.C., descendente de uma linhagem de
importantes sacerdotes e reis, que assistiu in loco à destruição de Jerusalém, em 70 d.C., pelas tropas do
imperador romano Vespasiano, comandadas pelo seu filho Tito, futuro imperador. As duas obras mais
importantes são a Guerra dos Judeus (ano 75) e as Antiguidades Judaicas (ano 94). O primeiro faz um
estudo acerca da revolta judaica contra Roma (ano 66-70), enquanto o segundo relata a história do mundo
sob uma perspectiva judaica.
176
Cf. FLÁVIO JOSEFO, História dos Hebreus, tradução de Vítor Pedroso, 8ª edição, APAD, Rio de
Janeiro 2004, p. 273.

78
Terá Jesus aprendido a ler e a escrever durante a sua infância, numa pequena

povoação tão insignificante como Nazaré, ou permaneceu analfabeto? Muitos pensam

que semelhante pergunta é absurda, pois três episódios dos Evangelhos mostram

claramente que Ele sabia ler e escrever.

O primeiro é aquele em que os escribas e fariseus lhe apresentaram uma mulher

surpreendida em adultério, perguntando se deviam apedrejá-la ou não. “Jesus,

inclinando-se para o chão, pôs-se a escrever com o dedo na terra” (Jo.8,6).

O segundo foi quando Ele, “segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na

sinagoga e levantou-se para ler e lhe entregaram o livro do profeta Isaías” (Lc. 4,16-17).

O terceiro é aqueles em que os judeus, ao ouvi-lo pregar em Jerusalém,

perguntavam-se maravilhados: “Como é que este é letrado, se não estudou?” (Jo. 7,15).

Mas, lamentavelmente, nenhum destes três textos serve para provar a capacidade

de Jesus para ler e escrever: o primeiro porque, ao mostrar Jesus a “escrever” com o

dedo no chão, mas sem dizer o que Ele escrevia, levou a pensar que só traçou umas

linhas sobre o pó, talvez com a intenção de manifestar o seu incómodo aos acusadores

da mulher, mas sem escrever realmente nada; o segundo porque o texto do profeta Isaías

que Jesus lê na sinagoga de Nazaré, tal como está, não existe. É uma passagem

construída pelo evangelista Lucas com versículos salteados desse livro (isto é: Is. 61,1;

58,6; e 61,2)177. Como teria Jesus conseguido ler esse texto no livro de Isaías?

O terceiro, mostrando Jesus a saber escrever sem ter estudado, de facto não diz que

Jesus sabia “escrever”, mas que sabia usar as Sagradas Escrituras (ou seja, o Antigo

Testamento) numa discussão teológica, coisa que podia ter aprendido oralmente de cor,

177
Cf. J. N. ALETTI, Jesu-Cristo ¿factor de unidad del Nuevo Testamento? Secretariado Trinitario,
Salamanca 2000, p. 89.

79
sem necessidade de saber ler178. Não temos, pois, nos Evangelhos provas seguras de que

Jesus soubesse ler e escrever. Poderemos sabê-lo por outra via? Sim. Pela literatura

judaica sabemos que quando Jesus era criança existia em Nazaré, como nas demais

aldeias da Palestina, uma pequena escola, aonde iam os meninos a partir dos cinco anos.

O local estava anexo à sinagoga e o programa escolar constava de dois ciclos básicos179:

O primeiro ciclo durava cinco anos. Os meninos começavam a aprender as letras

do alfabeto hebraico e eram logo iniciados na leitura da Bíblia, a partir do livro do

Levítico180. Daí passavam para os outros livros bíblicos, repetindo-os versículo por

versículo, até aprenderem o texto sagrado quase de memória. Pela Bíblia, os alunos

estudavam tudo: a língua, a gramática, a história, a geografia. Quanto ao segundo ciclo,

que durava dois anos, aplicava-se ao conhecimento da Lei Oral judaica (chamada

Mishná), isto é, às interpretações e complementos que os doutores da Lei faziam das

leis bíblicas181. Ao chegarem aos doze anos, os meninos terminavam os seus estudos. Se

algum era particularmente brilhante, então podia cursar estudos mais avançados; para

isso tinha de ir para Jerusalém ou outra cidade importante do país, e inscrever-se nas

escolas dirigidas pelos mais célebres doutores da Lei182. Mas isso era privilégio de uns

poucos; a maioria dos jovens reintegrava-se na sua família, onde começava a aprender

com seu pai uma profissão para ganhar a vida.

Sem dúvida, Jesus, durante a sua infância, assistiu como todos os meninos da

sua época aos dois ciclos básicos escolares na sinagoga de Nazaré, onde aprendeu a ler e

a escrever. Mas não parece ter recebido o ensino superior próprio dos centros urbanos

como Jerusalém pois os comentários que os judeus faziam dele confirmam-no.


178
Cf. J. N. ALETTI, Jesu-Cristo ¿factor de unidad del Nuevo Testamento? …, p. 90.
179
Cf. FLÁVIO JOSEFO, História dos Hebreus …, p. 286.
180
Cf. FLÁVIO JOSEFO, História dos Hebreus …, p. 121.
181
Cf. FLÁVIO JOSEFO, História dos Hebreus …, p. 122.
182
Cf. FLÁVIO JOSEFO, Antiguidades Judaicas, tradução de Vítor Pedroso, 6ª edição, APAD, Rio de
Janeiro 2002, p. 134.

80
Que profissão praticou Jesus durante a sua adolescência? Sabemos que todos os

pais das famílias judaicas procuravam uma ocupação para os seus filhos, pois os rabinos

diziam: “Quem não ensina uma profissão ao seu filho, ensina-o a roubar”183. Como

vimos, São Marcos diz que quando Jesus pregou na sinagoga de Nazaré, os seus

conterrâneos comentaram: “Não é este o carpinteiro?” (Mc. 6,3). Daí se ter pensado

sempre que ele foi carpinteiro. Mas muitos exegetas têm colocado em dúvida esta

afirmação. Primeiro, porque os outros Evangelhos trazem uma versão diferente. Já São

Mateus, por exemplo, diz que a pergunta das pessoas foi: “Não é este o filho do

carpinteiro?” (Mt. 13,55), quer dizer, atribui o ofício de carpinteiro a São José, não a

Jesus. Enquanto em São Lucas as pessoas perguntavam: “Não é este o filho de José?”

(Lc. 4,22) pelo que em nenhum dos dois é apresentado como carpinteiro. Segundo,

porque Nazaré, situada na fértil região da Galileia, era uma povoação de camponeses, a

maioria dos quais se dedicava à agricultura e a criar gado184. Terceiro, porque em quase

todas as parábolas de Jesus há imagens do meio agrícola (o semeador, a cizânia, a vinha,

a figueira, o grão de mostarda, etc.), e não do ambiente semelhante a uma carpintaria.

Contudo, hoje os exegetas concluíram que Marcos, o primeiro evangelista a

escrever, não se teria animado a chamar a Jesus “carpinteiro”, ocupação que gozava de

pouco prestígio naquela época, se realmente não fosse certo. Pelo contrário, há motivos

para Mateus ter alterado a informação: como pretendia acentuar mais a figura solene e

majestosa de Jesus, pensou que tal atribuição era desrespeitosa, preferindo transferi-la

para José. E Lucas, mais sensível ainda que Mateus, considerou a referência àquela

profissão como um insulto dos galileus, e optou por eliminá-la tanto de José como de

Jesus. A alusão à agricultura nas suas parábolas, deve-se ao facto de os seus ouvintes

183
FLÁVIO JOSEFO, Antiguidades Judaicas …, p. 208.
184
Cf. FLÁVIO JOSEFO, Antiguidades Judaicas …, p. 154.

81
serem formados, na sua maioria, por agricultores, pelo que procurou adaptar-se à sua

linguagem185. Podemos, pois, concluir que Jesus, durante os trinta anos da sua vida

oculta, trabalhou como carpinteiro186.

Outras das coisas que Jesus aprendeu durante a sua adolescência em Nazaré foi a

rezar, pois qualquer criança israelita, a partir dos treze anos, adquiria o hábito de orar

três vezes por dia: de manhã, ao meio-dia e à noite (cf. Sl. 55,18; Dn. 6,11; Act.

10,9)187. Havia duas orações que um judeu, a partir da sua adolescência, devia recitar

cada dia. A primeira chamava-se “Shemá” (em hebraico, “Escuta”), porque começava

assim: “Escuta, Israel: Yahvé é o nosso único Deus”. Mais do que uma oração, era uma

profissão de fé, tirada do livro do Deuteronómio (6,4-7). E na segunda era a chamada

“Shemoné Esre” (em hebraico, “Dezoito”) porque consistia em dezoito orações (três

louvores, doze petições e três agradecimentos a Deus). Nestas orações, repetidas ao

longo do dia, o menino Jesus foi aprendendo a chamar a Deus Pai nosso. E foram estas

que criaram o clima espiritual em que Ele cresceu e que marcaram profundamente a sua

psicologia religiosa infantil.

Como vemos, a vida oculta de Jesus não teve nada de extraordinário nem

prodigioso, como a pintam as absurdas lendas tecidas sobre ela. Foi nesta atmosfera

simples e familiar, própria das aldeias da Galileia, que o menino Jesus cresceu,

amadureceu e descobriu a vida, como nos relata o beneditino Daniel Faria:

“O coro dos meninos na escola, a voz das raparigas na fonte de água, o monótono

golpear do martelo na carpintaria, o grito repetido das mães a chamar para casa as

suas filhas entretidas na rua, foram o clima que Jesus respirou e assimilou durante

185
Cf. J.N.ALETTI, Jesu-Cristo ¿factor de unidad del Nuevo Testamento? …, p. 91.
186
Cf. J.N.ALETTI, Jesu-Cristo ¿factor de unidad del Nuevo Testamento? …, p. 90.
187
Cf. FLÁVIO JOSEFO, História dos Hebreus, tradução de Vítor Pedroso, 8ª edição, APAD, Rio de
Janeiro 2004, p. 224.

82
trinta anos. E quando um dia o Pai do céu lhe pediu que deixasse tudo e fosse

pregar a mensagem de salvação aos seus irmãos, nunca se arrependeu dos anos

passados na sua aldeia, na sua casa com os seus familiares; dos seus anos ocultos e

silenciosos; do seu trabalho na oficina e dos encontros com amigos”188.

Nunca considerou esse tempo como “perdido”, pois viveu cada dia e cada ano

como o melhor que tinha. De igual modo assim o ensinou também, quando se tornou

adulto: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas

preocupações. Basta. Cada dia o seu problema” (Mt. 6,34).

3.4. A espiritualidade de Nazaré: radicalidade e profecia

O núcleo central da espiritualidade de Charles de Foucauld é a espiritualidade de

Nazaré. Nazaré é um lugar, uma experiência, um símbolo na sua espiritualidade.

Poderíamos até dizer que se trata de um locus teologiae na sua espiritualidade. A

investigação, por vezes bastante fiel e credível, de muitos estudiosos do seu itinerário

espiritual, parece ser unânime em afirmar que viver “como pequeno irmão de Jesus em

Nazaré”189 é certamente a bitola que alumia a sua (a) venturosa vocação religiosa e

unifica o itinerário da sua maturação eclesial. Ser um pequeno irmão de Jesus equivale

dar à vida a uma relação teologal que se exprime numa coabitação fraterna com o

Senhor em prol dos outros.

Os elementos essenciais da espiritualidade de Nazaré podem sintetizar-se nos

seguintes pontos:

1. A imitação do “nosso muito amado Senhor Jesus”190

188
DANIEL FARIA, Poesia, 3ª edição, Edições Quasi, V. N. Famalicão 2009, p. 247.
189
F. CERRO CHAVES, Carlos de Foucauld. Como un viajero en la noche, Monte Carmelo, Burgos
2002, p. 143.
190
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé, tomo II, Nouvelle Cité, Paris 1997, pp. 76-80.

83
“Quem quiser viver segundo a espiritualidade de Nazaré terá como princípio

perguntar-se a todo o momento sobre o que pensaria, diria e faria Jesus se estivesse

no seu lugar, e fazê-lo. Esforçar-se-á continuamente por se tornar cada vez mais

semelhante ao Nosso Senhor Jesus tomando como modelo a sua vida de Nazaré,

que nos serve de exemplo para todas as situações191”.

O beato Charles de Foucauld, desde que se converteu, recebeu a graça duma

profunda amizade com Cristo, a ponto de não ter senão um desejo: o de ser como Ele. É

ele próprio quem o diz numa meditação, cinco meses antes da sua morte: “Ficar sempre

em último lugar: Quando vos convidarem a um banquete, sentai-vos sempre no último

lugar”192. Foi isto que Ele fez, ao participar no banquete da vida, e fê-lo até à morte.

2. A adoração eucarística

A Eucaristia, que marcou a sua vida desde o momento da conversão, sempre

permaneceu como centro da sua oração. Passava longas horas em adoração diante da

Presença eucarística, na companhia do seu “muito amado irmão e Senhor Jesus”193.

Pouco a pouco, diante da Eucaristia, foi amadurecendo na sua vocação sacerdotal, para

oferecer este “divino banquete aos afastados, aos cegos e aos pobres, quer dizer, às

almas que não têm sacerdotes”194. Construiu em Beni-Abbés uma capela e decorou-a ele

próprio, desenhando na tela um Cristo que abre os braços a receber, abraçar e chamar

todos os homens e a dar-se a eles. É naquele sítio que ele passa longas horas, do dia e da

noite, em adoração ou em meditação. Vive com ele na sua habitação e mantém com Ele

um diálogo contínuo de amigo para amigo, um diálogo que continua ao longo da noite

ou nas viagens pelo deserto.

191
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé …, pp. 76-80.
192
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé …, pp. 76-80.
193
C. DE FOUCAULD, La Bonté de Dieu, tomo I, Nouvelle Cité, Paris 1996, p. 112.
194
C. DE FOUCAULD, La Bonté de Dieu …, p. 112.

84
3. A opção preferencial pelos pobres

“A opção pelos mais pobres será a tarefa da minha vida. Juntarei todos os esforços

sobretudo pela conversão daqueles que são espiritualmente mais pobres, isolados,

cegos, as almas mais abandonadas, as mais doentes, as ovelhas mais

desesperadas”195.

Quando em Beni-Abbès, poucos dias depois da sua chegada, se deu conta da

miséria material e moral do lugar, decidiu que o seu primeiro trabalho seria “ajudar os

escravos” que eram tratados com muita dureza pela população. O segundo trabalho seria

acolher os viajantes pobres. Por fim, iria oferecer instrução escolar às crianças que

ficavam sozinhas todo o dia.

Optar pelos pobres não é porém a mesma coisa que amar os pobres. Optar por

eles equivale a viver no seu mundo e manifestar-lhes um amor crítico, solidário e

empenhado. O beato Charles de Foucauld estava convencido de que é preciso não

apenas ter grande amor pelos pobres, mas sim ter um amor que parte dos pobres e

estabelecer com eles uma aliança estável. E assim, perante o seu confessor, fez um voto

de nada possuir para seu uso pessoal senão quanto um pobre operário também tivesse. E

cultivava no coração o projeto de fundar uma nova congregação com a finalidade de

“viver o mais exatamente possível a vida de Nosso Senhor, vivendo unicamente do

trabalho das próprias mãos (…), não possuindo nada (…). Não formar senão apenas

pequenos grupos (…), e espalhar-se sobretudo por países não cristãos”196.

195
C. DE FOUCAULD, Règlements et Directoire, Nouvelle Cité, Paris 1995, p. 228.
196
C. DE FOUCAULD, Règlements et Directoire …, p. 228.

85
4. O amor à Igreja

“Apego inviolável à Igreja, que é Esposa de Jesus, em que ele vive. Ele é a sua

alma, ama-a como sua esposa […]. Apego a tudo o que dela vem, das suas

instituições, dos seus ritos, dos seus ministros […]. Apego ao Santo Padre, seu

chefe e representante. Rezarei muitíssimo pelo Santo Padre, pelas suas intenções

[…]. Quanto mais se ama a Igreja, tanto mais possui o Espírito Santo que a anima.

Quanto mais se ama a Igreja, tanto mais se ama Aquele de que ela é corpo, Nosso

Senhor Jesus Cristo”197.

5. A obediência ao diretor espiritual

“A escolha do diretor espiritual tem uma importância vital porque tal como for o

mestre, tal será o discípulo. Deve ser uma pessoa devota, prudente, instruída e

perita. Uma vez feita essa escolha depois de ter rezado ardentemente a Deus,

devemos confidenciar-lhe a nossa vida, pedir-lhe conselho e ser obedientes”198.

O beato Charles de Foucauld teve sempre um relacionamento profundo e fiel

com o seu diretor espiritual – como a de filho em relação ao pai. Quando ele morreu,

escreveu a um amigo dizendo-lhe que o seu Padre Espiritual fora um enxerto paciente

do amor de Jesus no mais íntimo do seu ser.

6. A oração e a fecundidade contemplativa

“Quem desejar viver segundo a espiritualidade de Nazaré deve integrar-se no

projeto pastoral da Igreja local, procurando tornar-se útil segundo a sua vocação,

197
C. DE FOUCAULD, Carnets de Tamanrasset, Nouvelle Cité, Paris 1986, p. 243.
198
C. DE FOUCAULD, En vue de Dieu seul, tomo I, 2º édition, Nouvelle Cité, Paris 1999, p.
94.
86
para além de ser solidário sobretudo com aqueles que se encontram nos lugares

mais difíceis de missão e de colaboração fraterna”199.

O beato Charles de Foucauld estava convencido de que existe um tipo de

fecundidade que não depende da acção: e é aquela que possui espírito contemplativo,

que procura viver o espírito de Nazaré, a realidade concreta até ao fundo, no momento

atual, que dá importância aos relacionamentos fraternos e de amizade, bem como à

gratuidade do dom. Ele mesmo fazia experiência contínua disso vivendo “a vida de

Nazaré” com os nómadas mais isolados, entre os mais pobres de Beni-Abbés. Em 1911

estabeleceu-se em Askrem por se tratar de um lugar de passagem das caravanas. Assim

permitiu-lhe cultivar relacionamentos com os Tuaregues e estabelecer uma profunda

amizade com eles.

7. A evangelização libertadora

“Quem pretender viver segundo a espiritualidade de Nazaré deverá estar consciente

de que ela é a base da sua existência, quer se encontre no deserto quer na missão

apostólica. Quer dizer que não pode haver apostolado sem Nazaré nem deserto sem

Nazaré, nem Nazaré sem deserto nem apostolado”200.

Para que se dê uma inserção em qualquer lugar da terra, Charles acredita que o

cristão deverá partir sempre do modo de agir de Deus, tal como aparece nos

Evangelhos, e acolher e apreciar tudo o que de bom e peculiar existe em cada povo e

cultura.

199
C. DE FOUCAULD, Qui peut résister à Dieu? Nouvelle Cité, Paris 1980, p. 27.
200
C. DE FOUCAULD, Carnets de Tamanrasset, Nouvelle Cité, Paris 1986, p. 63.

87
3.5. Foucauld: um santo à nossa medida

É convicção profunda do beato Charles de Foucauld que Jesus Cristo deve estar

no centro da nossa vida para que possamos ter gosto em conhecê-lo, deixar-nos seduzir

por ele, segui-lo e imitá-lo, levar a nossa cruz atrás d’Ele. Desta forma, permitimos-lhe

que nos diga a verdade a respeito da nossa vida, dos nossos desejos, dos nossos projetos

e da nossa história. E isto tem de acontecer mesmo à custa do martírio, que ele não

excluía da sua vida: “Pensa que terás de morrer mártir, despojado de tudo, estendido por

terra, nu, irreconhecível, coberto de sangue e feridas, violenta e dolorosamente

assassinado e deves desejar que seja hoje”201. Assim foi com ele, que morreu

“violentamente e dolorosamente assassinado”202 tal como sempre tinha desejado, para

se configurar com Cristo até na morte.

1. “Ser caridosos, mansos, humildes com todos: é isto que se aprende com

Jesus”203

A exemplo de Charles de Foucauld, também nós somos chamados a viver um

novo modo de ser Igreja, sacramento de salvação para a humanidade. Na fraternidade

evangélica, antes de mais, que não é apenas uma fraternidade reunida no amor à volta

de Jesus e com Jesus, mas uma fraternidade que faz da caridade, tanto por dentro como

por fora, o mandamento supremo até “fazer da salvação do próximo, bem como da

salvação pessoal, a grande tarefa da vida”204. Este ideal só é atingível se formos capazes

de ver um irmão em cada ser humano. Se vivermos superficialmente, só acolhemos o

outro superficialmente. Se vivermos em profundidade, que é onde Deus habita,

acolheremos o outro com profundidade, ou seja, como irmão e filho do mesmo Pai.

201
C. DE FOUCAULD, La dernière place, Nouvelle Cité, Paris 1974, p. 243.
202
C. DE FOUCAULD, La dernière place …, p. 244.
203
C. DE FOUCAULD, Règlements et Directoire, Nouvelle Cité, Paris 1995, p. 228.
204
C. DE FOUCAULD, Règlements et Directoire …, p. 228.

88
Somos chamados a viver uma vida comunitária que saiba apreciar e valorizar a

vida ordinária, diária, o lugar onde realizaremos santidade. Uma santidade que se

manifesta na comunhão profunda com Deus, no trabalho e na proximidade com as

pessoas para tornarmos a nossa vida mais semelhante à de Jesus nos trinta anos que

passou em Nazaré. Ele ensina-nos a não fugir ao aspecto quotidiano e ordinário da

nossa existência, à procura de experiências extraordinárias. Só se soubermos viver de

maneira extraordinária e com amor o “ordinário” é que conseguiremos que os nossos

relacionamentos se tornem cada vez mais justos, mais verdadeiros, mais fraternos e

mais ricos em humanidade e ternura para com os outros.

2. “Ler e reler incessantemente o Santo Evangelho”205

O beato Charles de Foucauld converteu-se a Deus através do Evangelho. A

procura vocacional e a sua vida espiritual, como um todo, desenrolaram-se até à morte

sob o signo do Evangelho meditado, ruminado, assimilado e vivido. Nutria um grande

amor pelo Evangelho que via não como um estudo de normas e leis, mas como encontro

com “o esposo, o namorado, o bem-amado”206, para assim lhe poder agradar, servir,

glorificar, consolar, como deseja que tudo seja feito. A vida de comunidade e o caminho

do discipulado, nas suas várias modalidades e critérios, juízos e valores, devem passar

pela peneira da Palavra:

“Ler e reler incessantemente o Santo Evangelho para ter sempre diante da mente as

ações, as palavras, os pensamentos de Jesus para poder pensar, falar e agir como

Jesus, seguir os exemplos e os ensinamentos de Jesus e não os exemplos e os

205
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé, tomo II, Nouvelle Cité, Paris 1997, p. 94.
206
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé …, p. 94.
89
modos de fazer do mundo, em que recaímos tão rapidamente mal afastamos os

nossos olhos do divino Modelo”207.

Na vida de qualquer comunidade missionária, a primazia do Evangelho deve

assemelhar-se à semente que germina e produz fruto no escondimento e no silêncio,

para depois de tornar alimento abundante para todos aqueles que têm fome.

3. “Fazer-se todo para todos para tudo dar a Jesus”208

É outra característica que deve distinguir a nossa vida. Uma vida que, como a de

Jesus Cristo, se torna dádiva para bem de todos os homens, especialmente dos pobres

com que Jesus se identificou (cf. Mt 25,31-46). Fomos chamados, até mesmo à luz do

testemunho e doutrina de Charles de Foucauld, a revalorizar a nossa presença

missionária na fraqueza e na eficácia evangélica dos meios pobres:

“Os meios de que Ele (Jesus) se serviu no presépio, em Nazaré, na cruz, são:

pobreza, abnegação, humilhação, abandono, perseguição, sofrimento e cruz. Eis as

nossas armas, as mesmas do Esposo divino, que nos pede para deixarmos continuar

em nós a sua vida, ele o único amante, o único esposo, o único Salvador e até

mesmo a única Sabedoria e única Verdade”209.

4. “Tornar-se uma Maria viva e operante”210

“Eu faço o propósito de guardar em mim a vontade de trabalhar para me

transformar em Maria para me tornar uma outra Maria vivente e operante”211. Também

o nosso modo de viver e trabalhar no meio do povo deve encontrar na experiência

207
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile, 2º édition, Nouvelle Cité, Paris 1982, p. 84.
208
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile …, pp. 84-89.
209
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile …, pp. 84-89.
210
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile …, p. 84.
211
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile …, pp. 84-89.

90
mariana de Charles de Foucauld mais um empurrão para incarnar aquele estilo de

consolação “materno” e “missionário”.

3.6. A herança de Foucauld

Charles de Foucauld foi, sem dúvida, um dos grandes luzeiros dos inícios do

século XX, sendo um místico em estado puro, um apaixonado por Jesus que fez da

religião um amor. Nele, a fé e o amor nunca existiram separados. O Espírito Santo

sempre age de forma nova e criativa na história do mundo e da Igreja. Ele é livre para

suscitar homens e mulheres que nos surpreendem pela radicalidade no seguimento de

Jesus, pela prática do Evangelho, e suscita novos impulsos e formas inesperadas de

espiritualidade e evangelização. Foucauld deixou-se conduzir pelo vento da liberdade e

da criatividade do Espírito. Por isso, o seu carisma e o seu testemunho surpreenderam e

continuam a surpreender. De forma radical, ele convida a Igreja toda a regressar à fonte,

que é o próprio Evangelho, para encontrar e seguir Jesus, o único modelo, isto é, ir às

raízes daquilo que faz com que uma existência seja realmente cristã e evangelizadora.

Todos os que salientam a novidade do testemunho de Charles de Foucauld, desde René

Bazin (1855-1924)212, o seu primeiro biógrafo, até Jacques Maritain (1882-1973)213,

passando por Louis Massignon (1883-1962)214 e muitos outros, insistem sobre o caráter

radical da sua experiência de Deus. Desde que Foucauld se deixou seduzir por Jesus, a

sua vida permaneceu centrada no mistério do absoluto de Deus em quem se abandonou

perdidamente. A sua vida, marcada por extremos, passou por sucessivas conversões.

Tendo reencontrado Jesus através da mediação dos muçulmanos que lhe causaram
212
Foi diretor da Escola de Letras de Argel, mais tarde decano da Faculdade de Letras. Era um famoso
especialista em línguas berberes, com o qual Charles de Foucauld entrou em contacto a partir de 1907,
tendo sido seu grande amigo.
213
Foi um neo-convertido, filósofo, humanista francês do séc. XX que se tornou, depois de enviuvar,
irmãozinho de Jesus. Foi amigo pessoal do Papa Paulo VI, enquanto este foi Núncio Apostólico em
França, tendo sido consultor no Concílio Vaticano II (1962-1965).
214
Foi um sacerdote, especialista em mística islâmica, que Foucauld conheceu no ano de 1909, tendo
mantido contacto com o beato até à sua morte.

91
profundo impacto na Argélia, dos judeus que o protegeram durante a longa expedição

em Marrocos, da prima Maria de Bondy, do Pe. Huvelin, o seu conselheiro espiritual,

dos monges trapistas com os quais conviveu durante seis anos, das irmãs clarissas que o

acolheram em Nazaré, dos pobres e tuaregues do Sahara que se tornaram também os

seus mestres na última etapa de sua vida. Entre Deus e nós, existe sempre a mediação

humana. Sobretudo em Nazaré, descobriu a humanidade de Jesus, o rosto humano de

Deus e o rosto divino do homem.

Num tempo em que a religiosidade se reveste de ruídos, balbúrdia de palavras e

jogos de entretenimento esporádicos, a espiritualidade foucauldiana é um contraponto

para quem se sente mais evangélico no silêncio da oração, na adoração silenciosa da

Eucaristia, na busca do deserto, no serviço aos pobres e na defesa da vida, no anonimato

inspirado na vida oculta de Jesus em Nazaré. É interessante porque, bem antes do

Concilio Ecuménico Vaticano II, Foucauld começou a praticar o que chamamos de

macro ecumenismo:

“Estou aqui não para converter os tuaregues, mas para compreendê-los. Acredito

que o Bom Deus acolherá no céu aqueles que forem bons e honestos. Os tuaregues

são muçulmanos, mas Deus receberá a todos, se o merecermos”215.

Diante de tantos preconceitos raciais, culturais, religiosos e sociais que geram

conflitos e exclusões em toda a parte, o irmão universal ensina-nos que somos

diferentes, mas profundamente iguais em dignidade e direitos. Precisamos de aprender a

dialogar sem julgar, sem impor, sem condenar.

Durante a sua vida, Foucauld não conseguiu formar pessoas que o

acompanhassem e colaborassem com ele na missão de levar o Evangelho aos mais

215
C. DE FOUCAULD, La Bonté de Dieu, tomo I, Nouvelle Cité, Paris 1996, p. 243.

92
afastados216. Os poucos que se dispuseram a aceitar o seu convite aguentaram por pouco

tempo a pobreza e o ritmo intenso de oração e trabalhos vividos e propostos por ele.

Além disso, a sua vida permaneceu escondida e muito longe de tudo e de todos. Após a

sua morte, quando foi divulgada a sua biografia e se começaram a publicar os seus

numerosos escritos, principalmente as originais meditações do Evangelho, surgiram

vários grupos que se propuseram concretizar a sua mensagem e vigorosa espiritualidade.

Hoje são cerca de vinte grupos: onze congregações religiosas e oito associações de fiéis,

espalhados pelos cinco continentes217. Além dos membros das congregações e

associações de fiéis, há muitíssimos homens e mulheres que, tal como o fermento na

massa, vivem, rezam e evangelizam seguindo as pegadas foucauldianas em todos os

continentes218.

A Igreja, perante isto, não pode deixar de se alegrar quando a novidade de Cristo

e a verdade do Evangelho se irradiam para além dos marcos habituais. Com a

beatificação, Charles de Foucauld tornou-se um presente de Deus para a renovação da

Igreja. Num mundo que parece cada vez mais escravo do materialismo, do conforto e do

consumismo, ele significa uma resposta a esta sede de espiritualidade que marca os

nossos dias.

216
Cf. BACF (octubre de 1986).
217
Cf. BACF (octubre de 1986).
218
Cf. CCF (abril de 2001).

93
CONCLUSÃO

A razão de ter elaborado esta dissertação deveu-se ao facto de vivermos numa

época em que a Igreja está a tornar-se uma minoria em muitos países tradicionalmente

considerados cristãos. Ao mesmo tempo, está a espalhar-se na Igreja a consciência e a

necessidade de um testemunho evangélico por parte de muitos cristãos que, com

humildade, sem arrogância, sabem viver e anunciar o Evangelho em sectores da

sociedade que vivem em situações aparentemente extremas e paradoxais. É através

destas formas surpreendentes, retas e, ao mesmo tempo, sinuosas que Deus conduziu,

conduz e conduzirá os seus filhos e é, portanto com esta admiração, que Ele continua a

guiar o Seu povo por caminhos desconhecidos. Estes, por sua vez, conduzem o Homem

à salvação, no intuito de cumprir a vontade de Deus que se revela à humanidade como

um excesso de dom e uma árdua tarefa; são também caminhos que permitem a sã

vivência das suas vidas de uma forma mais pessoal e comunitária, ao serviço de Deus e

dos homens, sempre na obediência ao duplo mandamento do amor, que Jesus de Nazaré

nos deixou.

O beato Charles de Foucauld foi certamente um cristão que soube interpretar e

proclamar o Evangelho utilizando a eloquência do silêncio, a força da fraqueza e a

sabedoria da loucura da Cruz. Charles de Foucauld nem sempre foi um homem

“perfeito”. Pelo contrário, a sua conduta foi por muitos anos oposta aos padrões cristãos

tradicionais. Era filho do seu tempo, com muitas fraquezas. Mas um dia, o encontro

com Deus causou nele uma revolução tão grande que foi impelido a iniciar uma

caminhada decisiva para a santidade – original, definitiva, sem olhar para trás. Ele

continua a interpelar a humanidade ainda hoje, convidando-a a deixar a sua rigidez, as

94
suas fronteiras tranquilizadoras ou os pequenos confortos espirituais, para responder aos

inúmeros desafios que ele enfrentou, mesmo que nem sempre tenha cantado vitória.

Charles de Foucauld, por sua vez, representa, de modo mais destacado, a

espiritualidade que abrange esse relacionamento islâmico-cristão. A afinidade que sentia

com os fiéis muçulmanos da região também o levou a uma reflexão interior. Como

resultado dessas experiências, ele sentiu uma inquietação religiosa profunda e um

conflito espiritual no seu íntimo. Finalmente, redescobriu a sua fé cristã e decidiu

dedicar toda a sua vida a Cristo. Depois de uma série de experiências diversas na busca

pela sua realização vocacional, Charles de Foucauld volta para o norte da África e

estabelece-se definitivamente no Saara.

O irmão universal descobriu que, vivendo segundo o modelo do Jesus de Nazaré

na Sua vida oculta, poderia suprir a necessidade espiritual dos povos nómadas do

deserto. Foucauld, na fraternidade espiritual, auto propôs-se a proclamar o Evangelho

com o testemunho de uma vida consagrada219. Ainda que não tenha gerado grandes

conversões, o eremita, na solidão da experiência em Cristo, amou os muçulmanos a

partir da experiência do desprendimento e da abnegação. Os muitos escritos espirituais

descrevem o carácter e o propósito de sua experiência no deserto, vivendo entre uma

minoria cristã:

“A minha evangelização deve ser dirigida a este homem que é tão bom, portanto, a

sua religião deve ser muito boa. Se eles perguntam por que eu sou sensível e bom,

devo dizer: Porque eu sou o servo de Alguém muito melhor do que eu. Se tu

soubesses o quão bom é o meu Mestre Jesus! Gostaria de ser bom para que se

pudesse dizer: Se assim é o servo como será o Mestre?”220

219
Cf. FR nº 71.
220
C. DE FOUCAULD, Carnet de Beni-Abbès, Nouvelle Cité, Paris 1993, p. 32.
95
Charles de Foucauld escreveu:

“Logo que descobri que existe Deus entendi que não podia mais fazer outra coisa a

não ser viver por ele: a minha vocação religiosa começa no exato momento em que

despertou a minha fé”221.

Desde aquele momento, Charles esvazia-se de tudo o que não é o Evangelho,

“porque existe uma grande diferença entre quem Deus é, e aquilo que Ele não é” 222. No

silêncio e no abandono, mergulha no essencial: “O nosso aniquilamento é o meio mais

poderoso que temos para nos unir a Jesus e fazer o bem” 223. Quando ainda estava no

mosteiro trapista e decidiu deixá-lo, escreveu: “No mosteiro passei seis anos e meio,

depois, desejando querer me assemelhar a Jesus, fui autorizado a viver como alguém

desconhecido, vivendo do meu trabalho quotidiano”224. O coração de Charles vai-se

alargando a uma escala universal, exatamente porque se torna pequeno, tornando-se

assim participante ativo da humildade do Senhor. Foi chamado o irmão universal

porque abrangeu o mundo todo e todos os povos, a partir da intensidade da presença

entre os tuaregues.

Esta universalidade tem, portanto, duas vertentes: uma é representada pela

potencialidade e a intensidade da presença e a outra pela extensão e abertura até aos

confins da terra. A presença e o aniquilamento não são dimensões que alimentam a

tristeza da vida cristã, mas representam o caminho mais simples do seguimento de Jesus

que se fez pobre e para todos ofereceu a Sua vida. O esvaziamento é o processo de

diminuição para que, à semelhança de João Baptista, o missionário deixe que Deus

possa intervir e agir na História dos povos e das pessoas. Na vida de Charles de

221
LAH (15 de octubre de 1898).
222
LHC (14 de agosto de 1901).
223
LMB (16 de julio de 1891).
224
CCF (19 de noviembre de 1901).
96
Foucauld, o protagonista que deve sempre mais aparecer e agir, através do discípulo, é o

próprio Deus. Charles emprestou a sua própria vida a Deus, uma vida não retida, mas

doada. Quem guarda a própria vida para si, perdê-la-á, mas quem a entrega, ganhá-la-á.

A decisão que levou Charles de Foucauld a viver junto com os tuaregues, os

pobres do deserto, é a condição de um caminho místico. O amor radical nasce dessa

entrega. Neste caminho está o processo de evangelização: antes de evangelizar, é

necessário amar. Antes de proclamar a palavra e anunciar a mensagem, é necessário

vivê-la, sem arrogância e orgulho, na própria vida. Por isso os tuaregues começaram a

chamá-lo de marabuto branco, isto é, o homem da oração e o homem de Deus. A

missão de Charles de Foucauld foi o inverso do proselitismo, isto porque foi através da

sua vida concreta, hodierna, que Deus se revelou presente e completamente

comprometido para com os pobres.

Mas afinal o que representará Charles de Foucauld para a vida missionária? É o

homem que, vivendo quase 50 anos antes do Concílio Ecuménico Vaticano II,

antecipou a primavera da Igreja: aquela espiritualidade do caminho que nos possibilita

ver, de novo, o futuro da Igreja e de sonhar, também de novo, com a presença do Reino

no meio de nós. O próprio Enzo Bianchi escreve que, depois de Francisco de Assis e,

agora, depois de Charles de Foucauld, toda a vida religiosa e cada forma de testemunho

na Igreja não podem mais ser vividos como antes, pois o irmão universal mudou as

formas até às suas próprias raízes225.

225
Cf. ENZO BIANCHI, Procura a vontade de Deus, Paulus Editora, Lisboa 2007, p. 167.
97
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