A Espiritualidade Da Vida Oculta de Jesus de Nazaré - Pedro Simões
A Espiritualidade Da Vida Oculta de Jesus de Nazaré - Pedro Simões
A Espiritualidade Da Vida Oculta de Jesus de Nazaré - Pedro Simões
FACULDADE DE TEOLOGIA
Dissertação Final
sob a orientação de:
Prof. Doutor António Abel Rodrigues Canavarro
Porto
2014
1
Índice
SIGLÁRIO........................................................................................................................................ 4
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 6
CAPÍTULO I: ................................................................................................................................... 8
2.1.2. Em busca de uma espiritualidade cristã: a verdadeira resposta aos anseios do Homo
spiritualis ..................................................................................................................................... 43
2
2.2.4. O tempo de deserto .......................................................................................................... 55
2.4. A caridade............................................................................................................................. 62
CONCLUSÃO ................................................................................................................................ 94
BIBLIOGRAFIA: ............................................................................................................................. 98
I. Fontes ....................................................................................................................................... 98
3
SIGLÁRIO
Gn - Génesis
Ex - Êxodo
Lv - Levítico
Sl - Salmos
Is – Isaías
Dn – Daniel
Os - Oseias
Mt – São Mateus
Mc – São Marcos
Lc – São Lucas
Jo – São João
Rm - Romanos
Gl – Gálatas
Ef - Efésios
Fl - Filipenses
Cl - Colossenses
1 Tim – 1ª a Timóteo
4
2 Tim – 2ª a Timóteo
5
INTRODUÇÃO
seus escritos são um motivo, mais do que suficiente, para se poder aprofundar a sua
espiritualidade. O apóstolo dos tuaregues fala ao séc. XXI através de uma linguagem
compartilhada com Deus. Foi essa a razão que me levou à elaboração desta presente
dissertação.
superação absoluta das coisas terrenas; fazendo o seu apostolado de bondade no meio
dos muçulmanos; lutando pela superação das diversas desigualdades que existiam entre
os povos. Este mundo que, como veremos, vivia muito mais centrado em si mesmo do
que em Deus. O mesmo se diz em relação à Igreja hierárquica que estava muito mais
interessada no trono do que no altar. Nesta época pós - revolução de 1789, a Igreja vivia
coisas terrenas permanecia, mesmo que fosse necessário viver presa numa gaiola
dourada.
Os dias de hoje não são muito diferentes dos da época de Charles de Foucauld:
palavra de ordem, não será de todo fácil escutar a voz do (verdadeiro) Espírito que soa
6
no coração de cada homem e cada mulher. Por estas razões e, infelizmente tantas outras
mais, ninguém tem dúvida que o testemunho espiritual de Foucauld se trata de uma luz
vontade.
Esta dissertação encontra-se dividida em três partes: na primeira farei uma breve
de Nazaré, embora possa fazer referência a outros âmbitos da sua espiritualidade, mas
ocupações onde Deus se deve propor como objeto de meditação ardente. Foucauld é um
Evangelho.
7
CAPÍTULO I:
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-ESPIRITUAL
“Viver como se tivesse de morrer hoje, mártir”
(C. de Foucauld)
Neste ponto procurarei fazer uma breve resenha biográfica acerca do beato
místico francês (onde nasceu, a sua caminhada de fé, o seu carisma, entre outros). Tudo
Nazaré presente na Eucaristia. Durante toda a sua vida desde Paris, passando pela Terra
Santa, depois pela Argélia e até Tamanrasset ele procurará ficar na presença d’Ele e
1.1. Biografia
1858 e viveu até ao dia 1 de Dezembro de 1916, quando foi assassinado por um jovem
de 15 anos. Era membro de uma família nobre, pois o seu pai Francisco Eduardo de
franceses. Muito cedo, porém, primeiramente ficou órfão de mãe e, uns meses depois,
também do pai. Desde os seis anos de idade passou a ser criado pelo avô, que se
encarregou de educá-lo como militar, partindo da sua própria experiência1. Daí nasce-
lhe um forte sentimento nacionalista, desenvolvendo nele um grande amor pela França.
Foi criado juntamente com a sua irmã Maria, dois anos mais jovem que ele. Também
1
Cf. A. CHATELARD, Carlos de Foucauld, El caminho de Tamanrasset, Ediciones San Pablo, Madrid,
2003, p. 22.
8
sofreu influência de sua tia, Inês, e das suas primas, Maria e Catarina. Essas três
grande devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que reaparecerá, mais tarde, na conversão
com a sua família para a Suíça antes mesmo de ver Estrasburgo render-se em 9 de
Setembro do mesmo ano. Esse acontecimento marcou muito a vida do jovem Charles,
que mais tarde, já vivendo em Nancy, chegou mesmo a pensar numa guerra contra a
Alemanha.
O jovem Charles era um aluno brilhante tendo como mestres grandes iluministas
e agnósticos e, por isso, passou algum tempo de sua vida, negando ou duvidando da
existência de Deus, cerca de dois anos depois de ter recebido pela primeira vez a
fez, mais tarde, em Paris, no Colégio Santa Genoveva, dirigido pelos jesuítas, não
cristã. Permaneceu aí durante dois anos: no primeiro ano foi um aluno brilhante; no
segundo ano, mais preguiçoso e desleixado. Foi praticamente expulso, pelos padres
jesuítas, em 1876. Desde essa data até 1882, Charles entrou no exército, em Saint-Cyr.
Com dezoito anos, foi considerado como adulto pelo seu avô, que decidiu conferir-lhe
uma pensão mensal3. Aborreceu-se com a disciplina exigente da vida militar sobretudo,
com os treinos. Com a morte do seu avô, Charles recebeu em herança uma fortuna, que
2
Cf. LHC (14 de Agosto de 1901).
3
Cf. J. SIX, Itinéraire spirituel de Charles de Foucauld, Seuil, París, 1958, p. 114.
9
o desequilibrou bastante, ao ponto de ser suspenso do exército por algum tempo. Nessa
ocasião, adotou como lema da sua vida o carpe diem, sem compromisso com o futuro.
Por isso, quando pôde voltar ao exército não o fez com o intuito de regressar ao seu
Comparando com a sua vida no quartel, descobre que é extremamente melhor a vida no
forte sentimento religioso adormecido durante muitos anos. Compôs uma pequena
oração que repetia constantemente: “Deus, se existis, fazei com que eu vos conheça”4.
Disfarçado de judeu, ao lado de outro judeu, empreendeu essa viagem, que durou um
ano e lhe valeu uma medalha de ouro da Sociedade de Geografia de França. Depois de
voltou a Argel e apaixonou-se por uma jovem protestante, a filha do comandante Titre,
convertida ao catolicismo. Por forte influência da sua família, não levou adiante esse
Charles continuou a procurar o sentido para a sua vida e assim voltou a Paris, em
finais de Janeiro de 1886, já com 28 anos. Foi bem acolhido pelos familiares durante
contribuíram para a sua conversão. Quando solicitou à sua prima que lhe indicasse
4
LHC (14 de Agosto de 1901), citado por A. CHATELARD, Carlos de Foucauld, El caminho de
Tamanrasset …, p. 41.
10
alguém com quem pudesse dialogar sobre o cristianismo, a prima encaminhou-o para o
padre Huvelin, confessor da igreja de Santo Agostinho, que já o tinha visto passar horas
em silêncio dentro da igreja. Ao aproximar-se dele para dialogar recebeu a ordem para
Eucaristia. O encontro com Deus que perdoa e ao mesmo tempo se entrega na Eucaristia
ficará para sempre na sua memória e marcará a sua espiritualidade centrada no Mistério
Eucarístico. Anos mais tarde, recordando aquele final de outubro de 1886, escreve:
“Quando descobri que Deus existia, descobri também que não poderia viver senão só
para Ele. A minha vocação religiosa nasceu no mesmo instante de minha conversão”5.
O padre Huvelin foi o amigo e o conselheiro espiritual que exerceu uma profunda
influência na vida de Charles de Foucauld, tendo causado nele grande impacto estas
palavras proferidas numa homilia: “Jesus escolheu de tal modo o último lugar que
ninguém lhe pôde tirar”6. A conversão transformou este homem de alma de fogo que,
em tudo, queria ir até o fim. De radical que eram as suas próprias iniciativas, tornou-se
radical no duplo e único amor e serviço a Deus e aos outros. Passou por isso a alimentar
o desejo de fazer o maior sacrifício possível para oferecer a Deus: abandonar a família
que era toda a sua felicidade, e ir viver e morrer longe dela; assemelhar-se ao máximo à
vida de Jesus: ser rejeitado, pobre, viver de trabalho humilde, ser sepultado na
rosto de Jesus de Nazaré, rosto humano de Deus e rosto divino do Homem. Sobretudo
ficou fascinado pelo tempo em que Jesus aí viveu sem ser notado. Passou sete anos na
5
C. DE FOUCAULD, La dernière place, Nouvelle Cité, París, 1974, p. 106.
6
C. DE FOUCAULD, Correspondances sahariennes, Cerf, París, 1998, p. 191. Também cf. CCF (29 de
noviembre de 1901).
11
Por um extremo amor à Eucaristia, sobretudo ao Sagrado Coração de Jesus, influência
ser amigo e irmão dos nómadas do deserto. Não procura convertê-los, mas amá-los e
proclamar para eles o Evangelho com a sua própria vida. Se alguma palavra pode
expressar a sua mensagem, é a “vida de Nazaré” com tudo o que ela contém de
amor apaixonado pela pessoa de Jesus, nas situações mais banais da vida dos homens e
mulheres, a exemplo do próprio Jesus, que não escapou à servidão das relações
humanas, tomando ele mesmo a condição de servo para viver plenamente a sua relação
única de intimidade com o seu Pai, numa família humana, num ofício, num lugar
cordiais, numa proximidade cada vez maior com as pessoas, demostrando que essa
Charles vive no meio dos tuaregues (povo nómada, que se desloca entre o centro
que o salvam de uma profunda enfermidade. Em 1907, Hogar foi vítima de uma terrível
seca, com 17 meses sem chuva. Charles partilhou com os seus amigos nómadas todas as
suas reservas e, finalmente, esgotado, também adoece. Desta vez, era ele o pobre que,
nesse estado de fraqueza e doença, precisava da ajuda daqueles que ele tanto ajudara
7
Cf. J. SIX, Itinéraire spirituel de Charles de Foucauld, Seuil, París, 1958, p. 114.
12
anteriormente. Essa foi uma experiência marcante para a sua vida, pois foi salvo da
morte por aqueles por quem tinha dado a sua vida. Aprendeu com os pobres tuaregues a
viver como pobre entre eles, fazendo a experiência de uma vida inteiramente encarnada
na vida daqueles que assumiu como irmãos; soube fazer-se próximo deles, aprendendo
os seus costumes, as suas reações e até mesmo a sua língua. Compreende que os seus
de Irmãos e Irmãs do Sagrado Coração de Jesus para a evangelização dos povos infiéis,
mas não vê essa obra progredir. Apesar dos seus esforços, não conseguiu mais que 46
membros na França. A partir de 1910, sobretudo depois da morte de dois dos seus
amigos, irmãos e inspiradores, o padre Huvelin e Mons. Guérin, Charles sente a pressão
cada vez maior da sua solidão. Estando em 1911 na França, tentou animar a sua
Associação; regressa para Tamanrasset e aí permanece até 1913, quando volta à França,
“Não posso afirmar que desejo a morte; desejei-a em outras ocasiões; agora vejo
tanto bem por fazer, tantas almas sem pastor, que gostaria de fazer um pouco de
bem e trabalhar um pouco na salvação dessas pobres almas; mas o Bom Deus ama-
A banalidade e a rapidez da sua morte é semelhante à coroação de uma vida que quisera
ser inteiramente escondida por Deus, com Deus e em Deus, sem aparecer aos olhos
humanos. Para um olhar despojado da fé, com efeito, essa morte parece um fracasso, faz
violência. Essa morte diz-nos que o importante é o que não se vê: “O bom Deus não
8
C. DE FOUCAULD, L’Imitación du Bien-Aimé, Nouvelle Cité, Montrouge, 1997, p. 78.
13
precisa de mim, que a Sua vontade se faça”9. É a mensagem de gratuidade que deixa ao
mundo este homem de acção, nascido para a eficácia e para o rendimento. Ele quis
gritar em silêncio com toda a sua vida uma Boa Nova para o mundo. A sua morte está
A sua espiritualidade inspira até hoje inúmeros irmãos e irmãs que formam a
Sociedades de Vida Apostólica. A sua profunda paixão por Deus, pelo Absoluto na sua
vida, e pela pessoa humana, imagem de Deus na história, leva-o a radicalizar cada vez
abandono nas mãos de Deus Pai e percebe a eficiência de uma vida entregue pelos
irmãos, mas no anonimato. Embora pressinta a força do último lugar, afirma: “Deus, se
encarnou, tomou as feições do irmão pobre e assumiu o último lugar que ninguém lhe
pode tirar”10. A kenosis de Jesus, relatada por Paulo na carta que escreve aos Filipenses
Neste ponto irei fazer uma breve abordagem histórica acerca da Europa no
tempo de Charles de Foucauld. Sabe-se que a segunda metade do séc. XIX foi uma
época de viragem, tanto a nível do pensamento filosófico como teológico, que irá ter
9
C. DE FOUCAULD, L’Imitación du Bien-Aimé …, p. 78.
10
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile, Nouvelle Cité, París, 1982, p. 120. Também cf. LMB (16 de
julho de 1891).
14
repercussões na própria espiritualidade. É a época do aparecimento de vários
bíblico e até mesmo espiritual, que tentam (re) conciliar a Fé com a Razão que já desde
o séc. XVI tinha tendência para um certo afastamento entre ambos e que os séculos
lado o medo e a condenação, por parte da hierarquia católica, de todo este pensamento
moderno que estava a ser difundido pela Europa do séc. XIX e que ainda persiste
que pode conservar elementos teístas, mas que é hostil à Igreja e especialmente a
anticlericalismo que, como vimos anteriormente, fez parte da vida do próprio beato pois
este, já no seu percurso escolar e académico, tinha tido professores que partilhavam
Revolução no seu aspecto mais hostil, reúne toda a herança do Iluminismo francês, que
11
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo, Edições Loyola,
São Paulo, 2005, p. 288.
12
Foram uma série de desentendimentos que existiram nos anos de 1859 a 1871 entre Turim (Estado
liberal piemontês) e Roma (Estado absolutista papal). O primeiro defendia a separação hostil entre o
Estado e a Igreja; já o segundo defendia o que considerava os seus direitos e pressupostos
“indispensáveis” para o desenvolvimento da sua missão, defendendo e reforçando o seu poder temporal.
15
tinha atacado violentamente a Igreja e pregado o ateísmo militante13. A partir de 1870, o
anticlericalismo é reforçado pelo positivismo que vai sendo difundido e também por três
maçonaria; o avanço socialista que vê na Igreja uma aliada dos ricos em prejuízo dos
pobres, aos quais sabe pregar somente a obediência e a resignação. Estas consequências
ficam cada vez mais claras a partir de um breve confronto entre a sociedade do ancien
defendem-se vigorosamente autênticos valores que podem ser resumidos neste: uma
dignidade da pessoa, pois embora defendida por um lado, é ameaçada pelo outro. No
autenticamente cristãs são despojadas da sua base cristã, e a ordem natural não é
enfim, a ordem sobrenatural não protege de modo suficiente a ordem natural 15. Por
outras palavras, a sociedade moderna, do séc. XVI até à Revolução Francesa, exalta a
uma independência absoluta. A autonomia própria da atividade política, que tem como
fim imediato o Bem Comum temporal e não o sobrenatural, não busca a sua justificação
na Igreja, mas cria o laicismo que exclui toda a influência da Igreja sobre a sociedade,
não reconhecendo na sua atividade o fim último sobrenatural, a que o Homem também
13
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 297.
14
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 298.
15
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 298.
16
está chamado a viver e a buscar, incluindo a sua própria espiritualidade16. Esta
exemplificação poderia ir mais longe, mas o que já se afirmou sobre esse processo que,
seus últimos frutos com a Revolução de 1789 onde se verifica que o progresso humano
própria Igreja, mais voltada para o trono do que para o serviço, habituada a muitos
privilégios e propensa a admitir às ordens sacras homens sem vocação e até mesmo sem
Perante o novo mundo que surgiu com a Revolução Francesa, enquanto a luta
entre o antigo e o novo estava longe determinar, e o absolutismo parecia sair vitorioso
das cinzas, que atitudes é que foram seguidas pelos católicos de então? Num período de
surgir, não era fácil separar o trigo do joio, o erro da verdade, os aspectos contingentes e
inferiores do fenómeno dos valores perenes que a Revolução jacobina tinha afirmado, e
16
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p.299.
17
Cf. J. MARITAIN, Trois réformateurs: Luther, Descartes, Rousseau, Cerf, Paris, 1925, p. 125.
18
Para poder aprofundar melhor esta temática ver J. LEFLON, La crisi rivoluzionaria (1789-1815),
Turim, 1971, p. 76.
17
católicos uma dupla tendência: de um lado temos os intransigentes ou conservadores,
Já que o liberalismo é “intrinsecamente mau” não resta senão rejeitar em bloco todas as
suas doutrinas. Tudo isto leva a afirmar que temos presente um forte conservadorismo
(característica que, umas vezes mais outras vezes menos, se manifesta em todas as
épocas), mas que agora tira um novo estímulo dos horrores da Revolução Francesa.
perante tudo o que é desconhecido, sobretudo quando este é comparado com o que já é
antigos hábitos e adaptar-se aos novos, tudo isto e muito mais era reavivado e
fortalecido no início do séc. XIX e que se estenderá até aos inícios do séc. XX. Por isso
é que se diz que nesta época toda a novidade na política é revolução, na filosofia é um
erro e na teologia é uma heresia20. Fica claro para os católicos intransigentes que a
Monarquia absoluta era o melhor regime para a Igreja porque salvaguardava o seu
poder, quer espiritual, mas sobretudo temporal. Entre estes católicos estava presente um
certo espírito maniqueu, mostrando-se com especial vivacidade quando a Igreja está
perante uma sociedade fundamentada em estruturas puramente naturais, o que vem a ter
tentação de considerar simplesmente mau o que ainda não está elevado à ordem
19
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 149.
20
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 150.
18
necessariamente consideradas sob uma luz desfavorável ainda que não contenham nada
contra a fidei e o ethos. Isto verifica-se mesmo nas atitudes de alguns pontífices
romanos tais como Pio IX, Gregório XVI e Pio X. No caso de Gregório XVI, este não
quis introduzir nos Estados Pontifícios as linhas férreas, com medo de que graças a elas
herege mundo, assim como a iluminação a gás21. Os intransigentes iam mais longe e
classes menos favorecidas, bem como a difusão da instrução. Nomes sonantes como
Félicité de Lamennais, Joseph de Maistre e Louis Veuillot estiveram ligados a esta ala
da Igreja22.
dos princípios de 1789. Os liberais eram impelidos nessa direção por causa de um
início do séc. XIX, com a reivindicação iluminista dos direitos do cidadão, a luta pelo
entre liberalismo e cristianismo, mas porque os católicos na sua maioria não aceitaram
ainda com sinceridade o novo regime político e nos seus corações continuam fiéis ao
21
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 153.
22
Como se pode comprovar graças aos estudos de G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos
dias: a Era do Liberalismo …, p. 164-166.
19
absolutismo23. Mas esse regime já se encontra morto, pois o futuro pertence ao
políticas. Acaso não foi sempre esta a atitude da Igreja que, posta no mundo como
fermento na massa, não condena, mas acolhe, batiza e eleva as tendências da sociedade
em que vive e opera? Em cada época, e esta não é exceção, volta de modo diferente o
totalmente puros.
de uma política que, fazia-se minoria para reivindicar para si a liberdade, forçando a
maioria a negá-la aos demais. A liberdade da Igreja podia ser salva no mundo
missão da Igreja24. No que diz respeito à concepção da Igreja em si mesma, ainda que
duas sociedades: civil e religiosa, cada uma delas com fins e meios especificamente
missão espiritual da Igreja, os anseios por um regresso à sua pobreza original, a firme
autoridade, levam obviamente a ver com muita distância o apoio do Estado, repleto de
23
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 183.
24
Cf. R. G. VILLOSLADA e B. LLORCA, Historia de la Iglesia Católica, vol. III, BAC, Madrid, 1960,
p. 183.
25
Cf. R. G. VILLOSLADA e B. LLORCA, Historia de la Iglesia Católica …, vol. III, p. 184.
20
conseguida a plena liberdade de acção26. Contudo e, como podemos ver a seguir, nem
continente, pelo outro a Igreja retomava, com novo vigor, a acção missionária que,
depois do declínio e da crise do séc. XVIII, tinha chegado a uma ruína quase total com a
cada vez mais popular e a figura do missionário, revestido de uma auréola romântica,
conquistou cada vez mais a simpatia das multidões cristãs27. Nesta época tocar num
missionário significava tocar na França! Todavia, quem confrontar o quadro geral das
português, como o dos séculos XIX e XX, no qual o padroado limitou as reivindicações
positiva28. A Igreja, que é por natureza missionária, age, no final das contas, com maior
romantismo que exaltava a obra civilizadora da Igreja; das novas explorações dirigidas
sobretudo à África, que se tornara quase impenetrável até ao séc. XIX, essencialmente
por causa do seu clima e do seu especial especto geográfico; do entrelaçamento das
iniciativas dos pontífices, de Pio VII a Gregório XVI29. Nomes como Daniel Comboni,
26
Cf. R. G. VILLOSLADA e B. LLORCA, Historia de la Iglesia Católica …, vol. III, p. 185.
27
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 135.
28
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 136.
29
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 141.
21
João Maria Vianney, João Bosco, Ana Maria Javouhey, Frederico Ozanam, Teresa do
Menino Jesus e até o próprio Charles de Foucauld são exemplos notáveis que
provocaram entre os fiéis uma resposta rápida para a missão. Segundo este autor, nesta
vínculos, muito estreitos com o Estado, que provocam fortes reações anticlericais, na
América Latina; uma Igreja quase sem tradições que enfrenta, com ânimo juvenil, os
graves problemas que a esperam mas que, ao mesmo tempo, consegue substancialmente
paróquias nacionais; uma Igreja que com o sacrifício dos missionários ceifados pela
febre do Nilo, com o sangue dos mártires (do qual é exemplo Charles de Foucauld),
Ásia.
por um lado uma certa solidez, pelo menos exterior, dos tradicionais comportamentos
morais, e por outro um abandono cada vez maior da prática religiosa propriamente dita.
Como em todas as épocas, também no séc. XIX é difícil apresentar uma Igreja
monolítica, de uma só cor, ou com luzes e sombras que se contrapõem 31. O quadro é
30
Cf. R. G. VILLOSLADA, Historia de la Iglesia Católica …, vol. III, p. 203.
31
Cf. R. G. VILLOSLADA, Historia de la Iglesia Católica …, vol. III, p. 207.
22
muito mais complexo e amplo e abarca todos os âmbitos, pois todos os elementos mais
de resistir aos novos ataques, mas também de criar novas e ricas iniciativas, ainda que
espiritualidade, neste caso concreto a contemporânea, também não será alheia à vida do
Homem, quer sejam pelas melhores ou até mesmo pelas piores razões. As raízes mais
poder eclesiástico, sobretudo com o Papa Bonifácio XVIII. A partir de então, o Homem
tenta a todo o custo superar Deus, impondo uma visão dessacralizada da vida, onde a
Mais tarde, e como foi abordado anteriormente, tem também um papel preponderante na
encontra inserido e na qual contribuiu para o seu agnosticismo e ateísmos iniciais da sua
vida.
Segundo Daniel Pablo Maroto, padre carmelita, é a partir deste contexto que
32
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana, Editorial de Espiritualidad, Madrid, 1990,
p. 327.
23
espiritualidade cristã de então, dos quais abordarei os três mais significativos, seguindo
espiritualidade. Como aconteceu várias vezes na História, o nome não nasceu nos
E.U.A., mas nos círculos mais conservadores da França, especialmente através da obra
realidade, mais que um movimento teológico estruturado, é de facto, uma praxis cristã
tempos modernos. Figura – chave deste movimento é o padre Hecker que foi o fundador
dos Missionários de São Paulo, de que foi superior geral até 1888, tendo sido muito
apoiado pelo Papa Pio IX. O clima favorável ao americanismo terá sido preparado em
França, tendo sido uma das linhas da frente contra o modernismo, no entanto, nem todos
devido à proliferação ideológica dos finais do séc. XIX. Este movimento procura
que acaba por ser encarado como sendo o reflexo da imanência vital, tendo em primeiro
lugar Jesus que, por sua vez, transmite aos Apóstolos. Daí deriva que a religião, a fé e
a todo o raciocínio que se confunde com a fé e que, ao mesmo tempo, cria os dogmas. É
33
Neste âmbito irei seguir o esquema de D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana,
Editorial de Espiritualidad, Madrid, 1990.
34
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, pp. 330-334.
35
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, pp. 334 e 335.
24
o sentimento religioso coletivo que cria os dogmas, a fé, a Igreja, a Revelação, etc.
de quimera subjetiva.
considerava que todas as pessoas eram chamadas à vida mística, ou seja, para se ser
cristão não existe mais nenhum caminho a não ser o místico, o único em que existe
unicidade de vida. Segundo este movimento, o único caminho para se ser santo é a via
da mística. A mística não é outra coisa senão o desenrolar normal da graça sobrenatural,
ou seja, trata-se de uma contemplação infusa (para todos) e não de uma contemplação
contemplação mística que seria uma forma de oração, acompanhada de uma vida
porque para esta escola, a mística é um caminho, mas não o único. É importante ter em
conta que toda a mística conduz à ascese, mas nem toda a ascese conduz à mística. A
vida espiritual que abrange canseiras, mortificações, renúncias e sacrifícios, mas nem
sempre este compromisso é assumido inteiramente, daí o facto de nem sempre conduzir
o Homem à mística.
promoção da liberdade que irá ser o paradigma entre o antiquo e o novum. A razão
36
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, p. 336 e 337.
37
Para um melhor aprofundamento acerca deste tema ver C. GARCÍA, Teologia Espiritual
Contemporanea, Corrientes y perspectivas, Monte Carmelo, Burgos, 2002, p. 50-56.
25
descobre que a pessoa humana tem uma dignidade não só como ser sobrenatural, como
diria Tomás de Aquino, como Capax Dei38, mas também como cidadão e, como todos
os cidadãos têm os mesmos direitos perante a lei (no sentido positivista do termo, ou
História do séc. XIX e parte do séc. XX é abundantemente fértil em lutas entre a Igreja
pecado, negando assim os semina verba que existiam nesse tipo de pensamento. Enfim,
viviam-se os frutos daquela guerra inútil, perdida pela Igreja hierárquica, que já há
direito à vocação, etc40. No entanto, até aí teve que se fazer um longo percurso que já se
iniciou precisamente no séc. XIX e no qual a espiritualidade cristã deu o seu importante
O séc. XIX é um século com alguns altos e baixos, pois não tem tempo para
pensar, porque tem muito que fazer. Segundo o estudo do padre Daniel Pablo Maroto, a
38
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, I, q. 2, a. 3, c; Ed. Leon. 4, 31.
39
G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 189.
40
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 150.
26
O ultramontanismo41 surge numa época em que o prestígio do papado sai
separou a Igreja do Estado, mas que levou também a uma concepção laicista do Estado,
sendo o Estado que assume todas as tarefas de cuidar dos doentes e necessitados,
substituindo a caridade cristã por uma segurança social estatal, bem como o próprio
ensino, que antes estava sob a tutela da Igreja e que agora é assumido pelo Estado.
sociais é uma injustiça. Apesar de tudo ainda existe uma certa sensibilidade social43,
pobre é claro comparável ao que se sucederá mais tarde sobretudo após o Concílio
Vaticano II, mas, no entanto, não menos preciosa que esta. É preciso ter em conta que é
41
Para um estudo mais completo ver D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana, Editorial
de Espiritualidad, Madrid, 1990, p. 299.
42
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, p. 299.
43
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, p. 301.
27
nesta época que surge a consciência social cristã que dá origem à Acção Católica,
conceito este que já se encontra nos escritos de Félicité de Lamennais. Daqui surgem
Ozanam, bem como o apostolado juvenil, sobretudo com João Bosco. Em relação às
que rompem com a estrutura clássica da clausura, sendo uma mais-valia, no sentido da
O espírito eclesial44 do séc. XIX é bastante difuso, como pudemos observar, que
Igreja, ainda vista como societas perfecta, onde predominam, por pouco tempo é certo,
Corpo Místico de Cristo, mais carismática do que jurídica, mas do Espírito do que do
mundo45. Uma das figuras centrais deste movimento é Möhler (1838), pois influenciou
definitivamente alguns teólogos da escola romana, sobretudo Perrone, que irá ser um
séc. XIX são as devoções e as suas variantes. O séc. XIX neste aspecto não só não é
44
Cf. D. P. MAROTO, Historia de la Espiritualidad Cristiana …, p. 302.
45
Cf. G.B. SAUVIGNY, Nueva historia de la Iglesia, vol. IV, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1977, p.
396.
28
exceção, mas é sobretudo o século onde as devoções atingem o seu auge46. É claro que
Maria, os Santos e Anjos; mas surgem muitas outras variantes como a oração, as
será dizer, do numinoso; também o forte sentimentalismo e pouco interesse pelo facto
devoção.
Margarida Maria Alacoque), ao Menino Jesus51, à devoção pela Eucaristia, não só como
46
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità, EDB, Bologna, 1987, p. 333.
47
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità …, p. 334.
48
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità, Edizioni Borla, Roma, s.d., p. 102.
49
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 108.
50
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 105.
51
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 109.
29
objeto de adoração, mas também como fonte de graça (comunhão)52, para além da
constituiu um acontecimento que aumentou o seu interesse pelo povo. Para além das
missões populares acabam por causar um certo terrorismo espiritual, pois usam e
abusam da forma como dão a conhecer Deus: um Deus Juíz em vez de um Deus
misericordioso. Estas devoções são vividas num clima de piedade sentimental, com
símbolo. Para além disso, a própria Palavra de Deus ainda continua no esquecimento e o
seu acesso bastante restringido e distante, devido ao uso do latim que só os eclesiásticos
pessoal55. Tudo isto não é exclusivamente negativo porque o povo tem a sua própria
não ao possível. Esse ideal só chegará em 1962 com o Concílio Vaticano II.
52
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 105.
53
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità, EDB, Bologna, 1987, p. 333.
54
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità …, p. 77.
55
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità, EDB, Bologna, 1987, p. 333.
55
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità …, p. 78.
30
1.3.3. Os primeiros passos da renovação litúrgico-espiritual
de difícil diagnóstico. Na verdade, o mal era muito mais remoto, pois tinha a sua origem
logo se interessou pela agitada questão da unidade dos católicos franceses, à qual quis
dedicar toda a sua atividade. O seu ponto de partida foi a restauração da vida beneditina
(que juntamente com as outras ordens religiosas tinham sido expulsas de França, devido
qual se tornou o primeiro abade em 1837 (esta abadia beneditina esteve para ser
frequentada pelo próprio Charles de Foucauld, mas a sua ida nunca chegou a ser
realizada, pois já tinha decidido entrar para a Trapa). Esta restauração assumia, como
(Beuron) e para a Bélgica (Maredsous); por outro lado, Solesmes e as suas filiais
56
A biografia mais completa de Guéranger pertence a P. DELATTE, Dom Guéranger, maestro di liturgia
e di vita monástica, Ed. Benedittine di S. Maria di Rosano, Queriniana, Brescia, 1999.
57
Cf. E. CATTANEO, Il culto cristiano in Occidente. Note storiche, CLV, Roma, 2003 p. 465.
31
a vida beneditina, na qual encontrava a manifestação mais viva da espiritualidade da
Igreja. Este objetara dizendo-lhe que naquela ordem existia o coro58. Ao que Guéranger
respondeu que era justamente por esse motivo que a escolhia. Tornava-se inevitável a
rutura, pois entre eles, existia uma diferença profunda: enquanto Guéranger era
essencialmente um homem da Igreja, Lamennais não o era. A religião era para ele um
simples meio, como muitos outros, ao serviço da comunidade política, uma panaceia
para todos os males da sociedade para a qual ele elaborava uma nova teoria social. O
almas contemplativas um claustro para viver sob o olhar de Deus. O seu ponto de
Cluny.
dos autores que trataram a liturgia ou compuseram fórmulas litúrgicas. Não faltam
58
Cf. F.R. LAMENNAIS, Essai sut l’indifference en matière de religion 2, Paris, 1834, p. 37.
59
Cf. E. CATTANEO, Il culto cristiano in Occidente. Note storiche …, p. 460.
60
Citação de E. Cattaneo no seu livro, com os anos dos vários volumes: P. GUÉRANGER, Institutions
Liturgiques, Paris, 1840, 1841, 1851 e 1885.
32
de demonstrar a necessidade de voltar à unidade litúrgica com Roma. Ele via na Igreja
como para Oriente. Esta luta deve-se à liturgia celebrada pelos ultramontanistas que
pretendiam restaurar a antiga liturgia galicana, pelo que Guéranger achava um atentado
à unidade litúrgica universal. Por causa deste problema, este liturgo não concebeu
qualquer possibilidade de reforma dos ritos e livros litúrgicos, como também exclui a
explicação do ciclo anual das celebrações da Igreja. Para isso, publicou L’Année
Liturgique, uma das suas obras mais conhecidas61. É uma verdadeira biblioteca de
aos cristãos elementos substanciais a partir da própria oração da Igreja62. Com esta obra,
tentativa semelhante. Outros, de facto, tinham procurado tornar acessível aos fiéis o
Ano Litúrgico, mas sem grande resultado, ou porque não se afastaram do espírito
61
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità, EDB, Bologna, 1987, p. 115.
62
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità …, p. 115.
63
Cf. T. GOFFI, La Spiritualità contemporanea: Storia della Spiritualità …, p. 115.
33
Solesmes. Desde então, era o espírito de Solesmes que estimulava a jovem comunidade
não só existia uma semelhança de vocação, mas também a mesma razão de ser e o
assinalar as suas primeiras obras: uma consagrada à vida monástica Praecipua Ordinis
do monge, pela qual deve pautar toda a sua actividade; e outra dedicada à oração dos
abadia de Beuron depressa se enriqueceu com novas vocações que viam na vida
meio mais adequado para viver a perfeição evangélica. Beuron representava um novo
particular atenção prestada ao canto gregoriano e à arte sacra, fundando para esta uma
escola em 189467.
restaurar a vida beneditina extinta pela Revolução Francesa. Teve assim origem mais
verdadeira novidade para a Bélgica daquele tempo, marcada pelo individualismo e pela
magnificência meramente exterior. Um monge deste mosteiro, van Caloen, foi um dos
pioneiros dessa atividade pastoral, pela qual procurou incutir no povo uma autêntica
64
Cf. L. BOUYER, La vie de la liturgie (Lex Orandi 20), Cerf, Paris, 1956, p. 79.
65
Cf. M. WOLTER, Gli elementi essenziale della vita monástica, Montecassino, 1937, p. 69.
66
Cf. M. WOLTER, Psallite Sapienter, vol. 5, Herder, Friburg, 1987, p. 101.
67
Cf. ROUSSEAU, Storia del movimento liturgico, p. 123.
34
espiritualidade litúrgica. Depois de uma breve estadia em Solesmes, iniciou o
renovamento litúrgico, testemunhado pelo Missel des fidèles, com a tradução francesa
dos textos latinos, publicado em 1882. Não se tratava, contudo, de uma tradução literal
trechos de L’Année Liturgique de Guéranger. Foi ainda, por iniciativa sua, que
carácter litúrgico que, desde 1890, se converteu na Revue bénédictine, a qual continua
que facultam a compreensão da liturgia. Com este subsídio, van Caloen queria ajudar os
leitores a crescer como filhos da Igreja, ensinando-os a nutrir-se daquele maná sempre
Inglaterra. Existia entre aqueles uma íntima conexão, não somente pelas ideias
promotoras, mas também porque os elementos mais empenhados neste trabalho tinham
se não fosse Guéranger, tudo se teria processado noutro tempo e de outro modo. Além
disso, necessário se torna salientar que tudo teve a sua origem na reconstrução da vida
68
Cf. E. CATTANEO, Il culto cristiano in Occidente. Note storiche …, p. 465.
35
consciência, da seriedade intrínseca e, portanto, da autonomia do mundo humano e
valores terrenos, fora de todo o condicionamento religioso, por vezes repressivo, faz
«encarnado», concreto e não abstrato, fora da vida das pessoas. Perante este confronto
inevitável, a Igreja reage tentando reconstruir alguns quadros que substituam as velhas
estruturas da cristandade com organizações católicas que se tornarão, mais tarde, nos
grandes movimentos da Acção Católica, com novas experiências pastorais e com a vida
missionário, como se viu anteriormente, e pelo impulso para o serviço aos irmãos em
todos os campos de atividade humana. Imbuídos neste espírito são criadas as chamadas
laicado católico, o que até aqui era impossível. Estas confrarias, apesar de fortemente
caracterizadas pelas devoções e suas variantes, são esta bela amostra de como a Igreja,
nos finais do séc. XIX, já dava passos no sentido de (re) valorizar o papel preponderante
dos leigos, quer seja na Igreja, mas sobretudo no mundo, onde estes deverão ser sal e
luz. Gradualmente os leigos vão assumindo, já no séc. XIX, uma presença ativa nas
Questão Romana.
69
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 136.
70
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 138.
71
Cf. L. BORRIELLO, G. DELLA CROCE e B. SECONDIN, La Spiritualità cristiana nell’età
contemporânea: Storia della Spiritualità …, p. 138.
36
CAPÍTULO II:
ou do verbo spirare, que quer dizer “soprar”72. O Espírito é o que há de mais profundo,
forte e verdadeiro no Homem impulsionando-o a viver plenamente: “Eu vim para que
todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo. 10,10). A espiritualidade é a força que
Assim o fez Charles de Foucauld, que também pautou a sua vida de místico e
eremita segundo estes mesmos princípios espirituais. Decerto que terá sido com alguns
altos e baixos, próprios de quem caminha, em busca da perfeição cristã, contudo sempre
com a esperança na superação desses mesmos recuos espirituais. Esta experiência sendo
vivida no Pai, no Filho e no Espírito Santo torna o ser humano mais autêntico,
Nos dias que correm, o termo espiritualidade é encarado num certo prisma de
inutilidade. Num mundo em que reina o imediatismo das coisas, a espiritualidade acaba
72
Cf. CIC nº 691.
73
Cf. SÃO BASÍLIO MAGNO, Liber de Spiritu Sancto 15, 36: Sch. 17, 370 (PG 32, 132).
37
por ser posta de parte. Normalmente encontra-se associada, meramente, a “gigantes” de
outrora (por exemplo os eremitas como Santo Antão, os estilitas como São Pacómio, os
teólogos como Santo Agostinho e São Tomás, os místicos como Inácio de Loyola e
Teresa de Jesus, Charles de Foucauld, etc) que pareciam pertencer a tudo, menos a este
mundo. Mas será realmente assim? Toda esta austeridade, aos olhos da sociedade pós-
moderna, na maior parte das vezes, é olhada como inútil, desprezível e pouco edificante
para o Homem. Não nos deve admirar muito esta realidade pois o mundo que nos rodeia
(sobretudo o contexto europeu) já há muito que esqueceu a sua raíz espiritual, tão
intrínseca e real no ser humano ou então, senão abandonou, é mal interpretada, mal
assimilada e, não poucas as vezes, resulta numa espiritualidade que é quase tudo menos
ocultismo, caso concreto e verdadeiro, e como todo o “ismo”, este acaba por resultar
horizonte do Homem, resultado de uma “fragilidade” cultural, já para não falar de uma
incapacidade para elaborar novos valores alternativos por parte de uma sociedade em
para o Homem histórico. À semelhança de Cristo feito Homem, a cultura cristã deve ser
encarnada; deve ganhar corpo, forma, base sociológica, dimensão histórica, imaginação
inédita. Mas é claro, mantendo sempre o seu perene juízo crítico face às condições não
pouco adversas da sociedade vigente. Com Cristo Crucificado, a cultura cristã deverá
resistir ao mundo, como Cristo Ressuscitado, a cultura cristã deve ajudar o mundo a
escravidão do pecado.
38
2.1.1. A interpretação da pós-modernidade
orientações e cuja literatura me parece inabarcável, mesmo até na velha europa (para
não se falar nos E.U.A. e no Brasil), gostava de apresentar dois âmbitos de reflexão:
como mandava Kant, nos limites simples da Razão e no célebre confronto face aos
famosos juízos sintéticos a priori, para não falar de pensadores eminentes, mais ou
conta este pensamento74. Mas a atual qualidade (e, já agora, quantidade) desta temática
é tão vasta, como disse anteriormente, que permite-nos pensar numa quase viragem
relativamente ao passado recente. É caso para dizer que este retorno não é de todo
impertinente dado que poderá ser uma possibilidade de reestabelecer o diálogo entre a
durante o pontificado do Papa Emérito Bento XVI) após a Revolução Francesa de 1789
e ao consequente Laicismo, Liberalismo e Iluminismo que daí lhe advém, ao qual tive a
74
Cf. ARNALDO PINHO, Algumas notas sobre o retorno do religioso na cultura actual, in HumTeo, 25
(2004), Fasc. 2, p. 263.
75
Cf. ARNALDO PINHO, Algumas notas sobre o retorno do religioso na cultura actual …, p. 263.
39
O carácter redutor da racionalidade moderna tem sido descoberto a partir do
símbolo76. O contributo de L. Wittgenstein para mostrar que a Razão apenas nos permite
pensar dentro de uma linguagem a que não podemos escapar, como se fossemos moscas
aprisionadas dentro de uma garrafa, foi notável, e daí a pergunta: Será que pensamos
dentro de um espaço determinado pela linguagem ou atingimos a realidade tal como ela
Para a Fé, a insistente análise dos limites da Razão tem levado a ciência a passar
existência de Deus, ou seja o princípio de causalidade. Podemos até dizer que, hoje em
dia, já não existem razões para se ser ateu77. Juntamente com o “regresso” ao Olimpo,
podemos juntar a paixão pelo arcaico e pelo narrativo, com o retorno das tradições, das
feiras medievais ou das medicinas alternativas, para não falar da paixão pelos
horóscopos e da mística esotérica, enfim uma glória distante78, como nos diz Peter
Berger.
76
Cf. EUGENE TRIAS, A Filosofia e a sua sombra, Edições Loyola, São Paulo, 1993, p. 86.
77
Cf. ARNALDO PINHO, Algumas notas sobre o retorno do religioso na cultura actual, in HumTeo, 25
(2004), Fasc. 2, p. 264.
78
Cf. PETER BERGER, Una gloria lejana. La búsqueda de la fe en época de credulidad, Barcelona,
1994, p. 183.
40
Quanto aos autores mais sensíveis à situação da Ratio moderna, salientam que o
retorno dum pensamento kenótico, palavra bem conhecida da Teologia e que significa
um certo obscurecimento do pensamento, para dar lugar à experiência; para dar lugar a
Lévinas tem toda ela, como centro, a diferença entre uma abordagem acerca de Deus e o
Deus, criados pelo Homem81. Este autor, partindo da simbólica bíblica, mostrou que é
salmista resumiu naquele versículo “a luz do Teu rosto, Senhor, brilhe sobre nós” (Sl.
4,7)82.
são, não raro, de grande debilidade, tanto no catolicismo como fora dele. Para utilizar as
palavras de F. Nietzsche, citadas numa biografia elaborada pelo jesuíta francês Paul
Valadier, “vivemos num mundo que podíamos classificar de busca de novos deuses”83.
Assistimos, de facto, a uma banalização do sagrado e a sua difusão neutra, situação que
tem aparecido particularmente nas idiossincrasias sectárias, sobretudo a Nova Era, mas
41
diabo, a missas negras, do espiritismo estreitamente ligado à escola espírita francesa
fundada por Alan Kardec no séc. XIX, à Igrejas cientológicas, etc. Escusado será dizer
que a situação é, provavelmente, mais difícil do que aquela que existia no tempo dos
Nos inícios de 2003 foi publicado um documento sobre a Nova Era pela Santa
portador da água viva: uma reflexão cristã sobre o movimento Nova Era”, este texto
gnose, com o perfil de uma doutrina salvacionista85. Existem pessoas que fazem o que
Apóstolo chama a atenção para estes riscos (2Cor. 1,14-15). Por mais intensas que
ao longo de milénios86.
84
Cf. B. DOMINGUES, Experiências religiosas e autenticidade, in EspCarm, nº 27, Julho-Setembro,
1999, p. 223.
85
Cf. CONSELHO PONTIFÍCIO DA CULTURA e CONSELHO PONTIFÍCIO PARA O DIÁLOGO
INTER-RELIGIOSO, Jesus Cristo, portador da água viva. Uma reflexão cristã sobre a «Nova Era», 2ª
Edição, Paulinas, Lisboa, 2003, p. 8.
86
Cf. B. DOMINGUES, Experiências religiosas e autenticidade …, p. 224.
42
O diagnóstico traçado por este texto do Magistério, a meu ver, para
ter em conta a revelação de um Deus pessoal, contra um divino vago, bem como a
Ocidente espiritual, merecerá mais do que uma resposta exclusiva no âmbito teórico-
espiritual.
spiritualitas, termo desconhecido nos autores do primeiro milénio, mas antes se define
enquanto “vida segundo o Espírito” que, em S. Paulo, se opõe à vida segundo a carne,
Santo e não de um outro qualquer espírito; tudo o que vem do Espírito Santo, por outro
lado é dom para o Homem”88, no entender do jesuíta Luís Rocha e Melo. Tudo o que
torna o Homem mais espiritual também é designado com essa mesma palavra. Assim S.
Paulo amplia o adjetivo espiritual para qualificar, por exemplo, os dons (cf. 1Cor. 12,
1), a linguagem (cf. 1Cor. 2, 13), a inteligência ou a sabedoria (cf. Cl. 1, 9), o alimento
(cf. 1Cor. 10, 3), a lei (Rm. 7, 14), etc. Este Homo spiritualis é chamado a despojar-se
87
Cf. CONSELHO PONTIFÍCIO DA CULTURA e CONSELHO PONTIFÍCIO PARA O DIÁLOGO
INTER-RELIGIOSO, Jesus Cristo, portadora da água viva. Uma reflexão cristã sobre a «Nova Era» …,
p. 10.
88
LUÍS ROCHA E MELO, O vento sopra onde quer: notas de Espiritualidade, Editorial A.O., Braga,
2001, p. 69.
43
simbolicamente é convidado a fazer uma transformação profunda (Nova Criação) do
próprio ser, o que comporta um crescimento. Formar Cristo em nós só pode ser obra do
Espírito Santo e não do próprio Homem; daí que o Homem transformado ou recriado
pelo Espírito Santo deva ser chamado de Homem Espiritual. Esta afirmação tem uma
transfiguração que se vive desde já; na ressurreição a passagem da morte à vida será
definitiva.
semelhante. A vida espiritual é vida teologal, relação do amor com Deus em Jesus
adulto89; A vida espiritual não é outra vida senão aquela que vivemos no nosso corpo.
Esta vida leva à plena humanização do homem no seu corpo90. Mas afinal será que
temos o direito de falar de vida interior? Devemos fazê-lo a partir da vida interior
Espírito que nos habita chama-nos a cumprir funções diversas no Corpo de Cristo, mas
não se deve falar em diferentes espiritualidades nas suas aplicações exteriores, devendo
A vida espiritual cristã tem uma forma cristocêntrica, pois encontra o seu ponto
Deus invisível. Sabemos qualquer coisa de Deus a partir daquilo que Jesus narrou e
89
Cf. K. RAHNER, Escritos de Teologia, II, BAC, Madrid, 1961-1967, p. 76.
90
Cf. K. RAHNER, Escritos de Teologia, II …, p. 76.
91
Cf. L. BOUYER, Introducción à la vie spirituelle, Cerf, Paris, 1992, p. 152.
92
Cf. P. THEILHARD DE CHARDIN, O Fenômeno Humano, Edições Loyola, São Paulo, 1984, p. 152.
44
disse (cf. Jo 1, 18). Procurar Deus significa seguir Cristo. Mas se o Espírito Santo é o
invisível de Deus que se torna visível nos seus frutos, então o Espírito Santo torna-se
visível na humanidade de Jesus Cristo (nos Seus gestos, no Seu falar, na Sua relação
com a natureza e os pobres, etc), e não apenas no momento inicial da vida de Jesus93. A
Sua vida é gerada e guiada pelo Espírito Santo. Se Paulo fala do Homem que se deixa
guiar pelo Espírito, e por isso é filho de Deus, então Jesus é aquele filho do Homem que
mais se deixou guiar totalmente pelo Espírito de Deus. A vida segundo o Espírito tem,
portanto, uma forma cristológica. Jesus vive a sua vida espiritual na dinâmica de relação
com o Pai, que é Abba. À luz de Cristo, verdadeiro centro focal que ilumina a nossa
vida espiritual, a vida espiritual cristã aparece como cura / cuidado do humano.
é templo do Espírito Santo. Então a vida espiritual cristã é chamada a colocar em prática
encontro com os outros e no amor. Devemos realizar em nós o nome e o rosto de Cristo.
Homem, certo de que em Cristo está a revelação do Homem como Deus o quer. Se não
Jesus Cristo, deve aceitá-l’O como Mediador, Salvador pessoal e universal. Ele convida
todos a partilharem a vida com Deus (cf. Jo.10,10). A relação com Ele na e pela fé deve
tornar-se uma relação dialogal, confiante, fiel e coerente entre o crer e o viver a vida
93
Cf. K. RAHNER, Aimer Jésus, Desclée, Paris, 1985, p. 22.
94
Cf. K. RAHNER, Aimer Jésus …, p. 22.
45
na vida familiar, profissional e eclesial95. A razão e o bom senso nunca devem ficar à
O Homem deve viver como Cristo viveu pois é Ele que deverá ser o critério de
mas no sentido personalístico. Mas como poderemos ser “deus” se ainda não somos
homens? Precisamos primeiro de ser homens segundo Cristo, isto é, pessoas que amam
coaduna com a estaticidade, ou seja, na vida espiritual não existem momentos estáticos
que se regride. É neste sentido que falamos de um determinado percurso espiritual que o
falhas (pecado) que poderão perturbar a vida espiritual. Também o próprio Charles de
Foucauld se deparou com estes avanços e recuos na sua vida espiritual. Seria uma
utopia pensar que a vida espiritual está isenta/imune a qualquer tipo de pecado, pois o
pecado faz parte integrante dessa própria vida, fortalecendo-a e dando-lhe mais
percorrer, tendo em conta quer o seu progresso, quer o seu retrocesso espiritual, da
95
Cf. B. DOMINGUES, Espiritualidade, fonte de esperança para um futuro humanizado, in EspCarm, nº
48, Outubro-Dezembro, 2004, pp. 315-320.
96
Cf. L. BOUYER, Introducción à la vie spirituelle, Cerf, Paris, 1992, p. 157.
46
mesma forma que o próprio beato Charles de Foucauld teve. Durante todo este percurso
é importante ter presente que a vida espiritual não surge da parte do Homem, mas sim
2.2.1. O chamamento
Esta vocação deve ser cultivada ao longo de toda a vida de cada discípulo de Jesus. Sem
escutar este apelo à santidade: “Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo”
(Lv. 11,44); ou, na versão do Evangelho de Mateus: “Sede perfeitos como o vosso Pai do
Céu é perfeito” (Mt. 5,48) e sem o desejo de segui-lo, é impossível escutar seriamente
qualquer outro apelo de Deus – porque as diversas vocações cristãs não constituem
vem a ser o eco de Deus a ressoar dentro da pessoa. Está claro que Deus, tendo criado
todos os homens, assinalou em cada um, desde toda a eternidade, uma tarefa própria a
inclinação espontânea no homem, para que, assim como o Senhor tudo fez por amor,
O ser humano não tem apenas um destino natural. Foi elevado à ordem
sobrenatural, isto é, chamado pelo Criador para participar (além de qualquer exigência
de sua natureza) da filiação divina, o que implica ver a Deus face a face na eternidade.
É, portanto, neste plano sobrenatural que o conceito de vocação toma o seu sentido
pleno. A vocação por excelência vem a ser o chamamento divino pelo qual Deus se
digna atrair o homem à intimidade consigo como a seu Último Fim. Este chamamento
geral toma os seus aspectos ou formas concretas aqui na terra: há a vocação sacerdotal,
97
Cf. C. CABARRÚS, A Pedagogia do Discernimento, Edições Loyola, S. Paulo, 1991, p. 76.
47
a vocação religiosa, a vocação conjugal (o matrimónio é, sim, uma tarefa santa e
para a união consumada da criatura com o Criador ou, noutras palavras, para a
santidade. A cada uma destas vocações o Senhor anexou os auxílios necessários ao bom
que a pessoa humana encontra as graças divinas de que precisa para chegar à con-
sumação: fora da sua vocação, o homem perde tempo e esforços; em vão seria, pois,
tentar a tarefa que o Senhor não tivesse assinalado, por mais sedutora que fosse tal
incumbência98. A este propósito convém notar que o Senhor Deus pode chamar uma
Em tais casos, é preciso frisar que Deus não muda o Seu desígnio a respeito de tal
homem; a variedade está incluída desde toda a eternidade no único propósito divino;
união da criatura com o Criador99. E quais seriam os critérios pelos quais alguém
dizer que cada qual pode começar a perceber a sua vocação perscrutando as aptidões da
sua própria natureza. Assim, conforme se disse anteriormente, a vocação pode ser
comparada ao atrativo e deleite que o artista experimenta no exercício da sua arte; assim
como Deus, o Supremo Artífice, tudo realizou e realiza com amor, assim também quis
Ele que o homem desempenhasse com amor a sua missão neste mundo. Donde se vê
quão pouco acertada seria a tese segundo a qual é preciso em tudo contrariar a natureza,
98
Cf. C. CABARRÚS, A Pedagogia do Discernimento …, p. 77.
99
Cf. A. BLOOM, Escola de Oração, Paulinas, São Paulo, 1986, p. 43.
48
mormente no tocante à escolha da vocação. Não. Deus, chamando o homem para a
tarefa predominante da sua vida, certamente não tem intenção de sufocar as aspirações
A Igreja, também ela, é uma Igreja vocacional porque é o povo reunido pela
unidade do Pai, Filho e do Espírito Santo, gerado pela iniciativa gratuita do Pai, que
prévia e gratuita do Pai, que nos “abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em
Deus, animada pelo Espírito Santo. Tanto a teologia da vocação como a pastoral
“Mysterium vocationis”101. Sendo assim, toda a vocação na Igreja deverá ser um dom
divino; qualquer vocação na Igreja é sempre eclesial porque acontece na Igreja, para a
Igreja e pela Igreja; a Igreja é a mãe que gera no seu seio todas as vocações; a vocação
claro que qualquer vocação profana está, em última análise, subordinada à vocação
religiosa, isto é, ao apelo à santificação que Deus dirige a todas as criaturas. É para ser
santo, segundo as suas notas pessoais, que o Homem é chamado à missão de escritor, tal
como um outro é chamado a exercer medicina, etc. Enfim, existe uma vocação comum,
100
Cf. J. LAPLACE, O Espírito e a Igreja, Paulinas, Lisboa, 1991, p. 54.
101
Cf. PDV nº 34;
49
2.2.2. O desprendimento
desprendimento conduz ao caminho do seguimento de Jesus que, por sua vez, conduz à
pobreza. Não se pode falar de vida espiritual cristã sem nos referirmos a Jesus e, por sua
vez, não podemos falar de Jesus sem nos referirmos à pobreza. Por isso, deve-se falar
de pobreza evangélica, embora com a consciência de que por vezes a própria Igreja,
como Povo de Deus, não cumpre este pré-requisito fundamental, quer seja no estado
laical ou sacerdotal102.
A crise da vida cristã e da vida da Igreja não está tanto nas dificuldades de
Neste sentido, a fonte de renovação das nossas vidas e da vida eclesial reside na
se reduz a uma questão de perfeição ascética ou de uma aplicação moral prática, mas
seguirmos Jesus na sua pobreza faremos também a experiência do que Ele é104.
“Conhecei a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Qual, sendo rico, se fez
pobre por vós a fim de vos enriquecer pela pobreza” (2Cor. 8,9). Este é o único texto
102
Cf. LUÍS ROCHA E MELO, O vento sopra onde quer: notas de Espiritualidade …, p. 109.
103
Cf. W. KASPER, Jesús, el Cristo, 2ª edición, Ediciones Sígueme, Salamanca, 2006, p. 117.
104
Cf. W. KASPER, Jesús, el Cristo …, p. 120.
50
que fala directamente do desprendimento de Jesus. Jesus era rico e, por nosso amor, fez-
São Paulo aos Coríntios: “Ele que era de condição divina não se valeu da sua igualdade
semelhante aos homens…” (Fil. 2,6-7). Este hino canta a história de Jesus. A história da
sua kenosis, do seu desprendimento, despojamento que começa já em Deus. Deus era
toda a Sua riqueza. Com Deus Ele tinha tudo105. Que mais poderia ambicionar?
Contudo, Jesus entregou tudo o que possuía, por nosso amor. No final da sua vida, Jesus
nada tinha que os verdugos e a morte lhe pudessem tirar. Tinha entregado tudo,
contrário àquele que foi percorrido por Adão. Adão quer ser como Deus. Jesus é como
Deus e faz-se homem, um homem pobre, redimido. O Homem continua a ser Homem e
Deus é a sua riqueza e alegria. Jesus percorre o caminho de Deus, o caminho da kenosis,
momentos da sua atividade pública, Jesus coloca-se na fila dos pecadores para ser
batizado por João. O seu lugar é junto dos pecadores. O seu caminho de Messias condu-
Cruz106. Jesus permanece fiel ao seu caminho, superando todos os obstáculos. Assim
no-lo afirmam as tentações. As três tentações correspondem como que a três ataques à
pobreza, ou seja, ao seu caminho de despojamento e entrega. O não proferido por Jesus
diferença de ter sido vencedor das tentações. Jesus percorre o nosso caminho até ao fim,
e um fim amargo… Jesus não foge mas segue fielmente o caminho da pobreza. Jesus
105
Cf. W. KASPER, Jesús, el Cristo …, p. 197.
106
Cf. W. KASPER, Jesús, el Cristo …, p. 200.
51
esteve mais próximo do estábulo do que do palácio – “as raposas têm tocas e as aves do
céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt. 8,20). O
seu nascimento foi numa gruta, no meio dos animais e dos pastores. Nasceu pobre, no
meio dos pobres e num lugar que não Lhe pertencia. No final da vida, foi colocado num
sepulcro que pertencia a outros. É esta a vida de Jesus. Não tem, de facto, onde reclinar
a cabeça.
sua entrega ao Pai. Neste sentido, o desprendimento é a forma da sua obediência. Ele
não foi neutral entre o pobre e o rico. Dirigindo-se a todos, a ninguém excluiu do seu
amor. No entanto, os pobres foram os seus prediletos e os que lhe foram mais próximos.
Reconhecemo-los no modo de Jesus atuar, pois, a sua palavra e a sua acção estão
Jesus põe em prática tudo quanto os profetas haviam anunciado108. Pobres são, pois,
todos aqueles a quem falta o necessário. Em Jesus vêm confirmados os seus direitos.
Têm um futuro em Deus, são cidadãos do Reino de Deus. Jesus não os consola com o
pensamento de tempos futuros, para além do tempo e da história, mas realiza neles a
novidade que ele mesmo anuncia, inaugura. O Reino de Deus já não está longe, mas
os pobres de espírito” (Mt. 5,3) – este, atendendo à sua comunidade, deixa claro que a
ação exterior conta pouco por si mesma. A exigência da pobreza deve plasmar o
107
Cf. LUÍS ROCHA E MELO, O vento sopra onde quer: notas de Espiritualidade …, p. 181.
108
Cf. LUÍS ROCHA E MELO, O vento sopra onde quer: notas de Espiritualidade …, p. 181.
52
discípulo de Jesus do fundo do coração. A pobreza é, assim, uma atitude espiritual
fundamental e, ao mesmo tempo, revela aqueles que estão recetivos a Deus a partir do
pessoas que chegaram ao limite das suas possibilidades e que se abandonaram nas mãos
de Deus. Os pobres em espírito são pessoas tão pobres que encontraram em Deus a sua
única riqueza. A pobreza em espírito consiste em tornar-se livre para Deus e assim
Todo o Homem teve, tem e terá a experiência de uma força que se opõe ao amor
disso. A vida espiritual não é, portanto, uma pura elevação à vida divina; é também uma
superação contínua de uma existência pecadora e luta contra as forças do mal. O pecado
que obscurece a inteligência espiritual e enfraquece a vontade, deixa uma ferida a que se
criaturas. Para S. João, a palavra mundo tem algumas vezes um sentido pejorativo;
existe nele um poder misterioso e mau que atua sobre a humanidade através da tentação.
Facilmente deduz-se, perante uma tal realidade, que a vida espiritual, sendo a vida do
Homem pecador inserido num mundo de pecado, implica necessariamente uma luta.
A concupiscência, sendo uma inclinação para o mal que coexiste com a própria
vida, permanece depois do Baptismo. Ela tem a sua origem no egocentrismo inato e na
109
Cf. C. A. BÉRNARD, Traité de Théologie Spirituelle, Cerf, Paris, 1994, pp. 235-253.
53
incapacidade radical de acesso a Deus e à plenitude do bem110. Podíamos descrevê-la
como sendo uma tendência desordenada, seja qual for a sua origem (empírica ou
errado a priori, que não só não conduz o Homem à plenitude de existência, como o
desvia dela, provocando uma frustração do fim se o Homem pactua com a mesma; uma
na presença de um facto e não de apenas só mais uma teoria: a natureza humana está
dos vários contextos, podemos entender que este mundo opõe a vida presente à vida
fim último da existência humana e declaram, por isso, uma espécie de autonomia em
ainda, quando a razão se arvora em absoluto e recusa toda a finalidade do Homem que
não seja terrestre. Neste sentido, o mundo opõe-se, de facto, aos desígnios de Deus e
exerce um poder contagioso e vicioso sobre os homens, sem excluir os homens da Igreja
pecado, mas não tem de o provocar se o Homem não quiser. As suas causas foram
110
Cf. S. GAMARRA, Teología Espiritual, BAC, Madrid, 1994, pp. 207-244.
111
Cf. S. GAMARRA, Teología Espiritual …, pp. 207-244.
112
Cf. LUIS F. LADARIA, Teología del pecado original y de la gracia, BAC, Madrid, 2001, p. 56.
113
Cf. J. AUMANN, Teologia Spirituale, Edizioni Dehoniane, Roma, 1991, pp. 161-207.
114
Cf. LUIS F. LADARIA, Teología del pecado original y de la gracia …, p. 57.
54
Jo. 4,30). Esta força misteriosa que age no mundo através das suas estruturas é
personificada como adversária do plano salvífico de Deus. A sua acção perversa, bem
tentação pode-se apresentar com evidência e então é fácil detetar a sua presença, mas
descrição de espíritos”115. O discernimento deve ser feito a partir dos critérios do Reino
pregado por Jesus, durante a sua peregrinação na terra, pois não é possível construí-lo
com outros que lhe sejam contrários. Não basta saber se o que se pretende é algo de
do Reino, importa discernir se os meios a empregar também são bons, se estão ou não
Quanto à provação, seja ela espiritual ou corporal, fazem parte integrante da vida
fé e confiança.
místicos cristãos: o próprio Charles de Foucauld fez essa experiência durante a sua vida,
sem cidade permanente na terra (cf. 1Ped. 2,11; Heb. 13,14), mas também para melhor
115
Cf. SANTO INÁCIO DE LOYOLA, Exercícios Espirituais, nº 328, AI, Braga, 1999, p. 170.
116
Cf. A. MARTÍNEZ SIERRA, Antropología Teológica Fundamental, BAC, Madrid, 2002, p. 108.
55
se disporem à cidade futura de Deus com a eficácia da ascese penitencial, contemplativa
histórica, cujos pontos salientes são os do período áureo dos “Padres do deserto” (séc.
com os seus sucessivos retornos que se tornaram mais rigorosos nos nossos dias, em que
eremita egípcio, que encheu a história do monaquismo antigo, tanto Oriental como
Alexandria, que teve um profundo relacionamento com o santo e o seu estilo, muito
assim uma certa eficácia espiritual. Mas houve outros que seguiram este exemplo como
Um dos seus elementos mais focados é o penitencial, levado às vezes até aos extremos
117
Cf. A. MIGUEL, Le désert dans la poésie arabe pré-islamique, en les mystiques du désert, dans
L’Islam, le judaísme et le cristianisme, Imprimerie Louis-Jean, Gap, 1975, p. 87.
118
Cf. S. DE FIORES, A Espiritualidade do deserto, in Dicionário de Espiritualidade, Edições Paulinas,
São Paulo, 1989, pp. 264-267.
119
Cf. S. DE FIORES, A Espiritualidade do deserto …, pp. 264-267.
56
Um renovado fervor de espiritualidade observou-se por ocasião das reformas do
eremítica (ativa)120. Desde o séc. XVI até ao séc. XVIII diversas reformas, fundações e
deve muito ao exemplo de Charles de Foucauld (1858-1916) que, depois de ter vivido
alguns anos na Trapa e depois ao serviço das Clarissas (em Nazaré e depois mais tarde
humana, não pode ser considerado como permanente. O deserto não tem nada a ver com
a mística do tipo fuga mundi. Considerando a história dos crentes, é preciso incutir com
do deserto bíblico, eles estão bem presentes e têm-se deixado perceber sempre que se
algum tempo pelo deserto, a fim de se preparar para a missão, para o contacto com os
120
Cf. A. MIGUEL, Le désert dans la poésie arabe pré-islamique …, p. 87.
121
Cf. R. VOILLAUME, Orar para vivir, Narcea, Madrid, 1972, p. 145.
122
Para mais desenvolvimentos, acerca da importância do deserto para o beato Charles de Foucauld,
trataremos no capítulo seguinte.
123
Cf. R. VOILLAUME, Orar para vivir …, p. 145.
57
outros. Para o Povo Eleito, o deserto sempre representou o “tempo intermediário”,
deserto, não como ideal de vida, mas como lugar de passagem e de purificação, a fim de
ser encaminhado na justiça (cf. Os. 2,16-22). Tanto para Abraão (cf. Gn. 12,4-9)124,
125
Moisés (cf. Ex.16,1-2) e Elias (cf. 1Rs. 17,2-9)126, como para Jesus (cf. Mc. 1,12-
caracteriza-se pela tendência dinâmica do passado para o futuro, que não é espectativa
passiva, mas sim construção do termo para o qual se tende: a dinâmica do “já” e do
“ainda não”128.
espirituais, orações, etc), para renovar ou retemperar o espírito. Como afirma Reneé
Voillaume:
124
«Abrão partiu, como o Senhor lhe dissera, levando consigo Lot. Quando saiu de Haran, Abrão tinha
setenta e cinco anos. Tomou Sarai, sua mulher, e Lot, filho do seu irmão, assim como todos os bens que
possuíam e os escravos que tinham adquirido em Haran, e partiram todos para a terra de Canaã, e
chegaram à terra de Canaã. Abrão percorreu-a até ao lugar de Siquém, até aos carvalhos de Moré. E
Abrão construiu ali um altar ao Senhor, que lhe tinha aparecido. Deixando esta região, prosseguiu até
ao monte situado ao oriente de Betel, e montou ali as suas tendas, ficando Betel ao ocidente e Ai ao
oriente. Abrão continuou a sua viagem, acampando aqui e ali, em direção ao Négueb».
125
«Partiram de Elim e toda a comunidade dos filhos de Israel chegou ao deserto de Sin, que está entre
Elim e o Sinai, no décimo quinto dia do segundo mês, após a sua saída da terra do Egipto. Toda a
comunidade dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e Aarão no deserto».
126
«A palavra do Senhor foi-lhe dirigida nestes termos: «Vai-te daqui, dirige-te para Oriente e esconde-
te na torrente de Querit, que fica em frente do Jordão. Beberás da torrente, e Eu já ordenei aos corvos
que te levem lá de comer.» Então ele partiu segundo a palavra do Senhor e foi morar junto à margem do
Querit, em frente do Jordão. Os corvos traziam-lhe pão e carne, de manhã e de tarde, e ele bebia água
da torrente. Ao fim de algum tempo, a torrente secou, pois não chovia sobre a terra. Então o Senhor
disse-lhe: «Levanta-te, vai para Sarepta de Sídon e fica lá, pois ordenei a uma mulher viúva de lá que te
alimente».
127
«Em seguida, o Espírito impeliu-o para o deserto. E ficou no deserto quarenta dias. Era tentado por
Satanás, estava entre as feras e os anjos serviam-no».
128
Cf. V. SERRANO, Espiritualidad del desierto, Studium, Madrid, 1968, p. 93.
58
“O deserto é mais do que o lugar do retiro, já que dada a sua extensão e pelo seu
descobre a sua fraqueza porque não pode subsistir no deserto, pois ele é lugar onde
encontrar Deus. Tudo isto porque “os dias no deserto são o ensaio, a tentativa cheia de
confiança para pedir a Deus que venha buscar-nos, na nossa impotência, para nos
encaminhar até Ele. O que é essencial no deserto é o despojamento total, bem como a
plenitude do ser humano, pois “perfeito é aquele ser a que nada falta ao seu género”131,
no seu ser, nas suas obras, segundo a virtude, e tendo como objectivo o fim último. A
versão cristã, desta aproximação ao tema da perfeição, põe como tónica principal o fim
final será um dia a visão de Deus face a face, logo a vida do Homem deverá ser
encarada como uma tensão para este fim último, não só espiritual, mas também
escatológico132. Podemos afirmar que a ideia cristã de perfeição, sem negar os aspectos
129
R. VOILLAUME, Orar para vivir …, p. 147.
130
R. VOILLAUME, Orar para vivir …, p. 147.
131
ARISTÓTELES, Metaphysis, cap. IV, 16. 1021b.
132
Cf. J.R.DE LA PEÑA, La pascua de la creación, 2ª Edición, BAC, Madrid, 2002, pp. 201-203.
59
anteriores, coincide com o ponto de vista mais importante, tanto da psicologia-
sua vez e, pela sua condição social-solidária, este chega à sua maturidade na medida em
acesso a uma plenitude superior, que Deus confere com o dom da auto-comunicação de
supera a frágil indigência do ser humano como um dom que o Homem jamais chega a
possuir na sua totalidade: a perfeição do próprio Deus quase que se identificará com o
poderá aspirar à perfeição, sem antes aspirar à santidade. A crítica que Jesus faz aos
“homens justos” do seu tempo, ensina-nos muitas coisas importantes. A santidade não
coincide nem com o perfeccionismo do Homem, nem com a prática das boas obras. Não
se identifica simplesmente com o desejo de melhorar e crescer, nem com o ato de situar-
se na vida e sentir-se reconhecido e seguro de si. A prática das boas obras não é,
obedecendo meramente a tudo o que está prescrito e ter um “coração de pedra” (cf. Sl.
133
Cf. Cf. S. DE FIORES, A perfeição, in Dicionário de Espiritualidade, Edições Paulinas, São Paulo,
1989, p. 612.
134
Cf. S. G. ARZUBIALDE, Theologia Spiritualis, el camiño espiritual del seguimento a Jésus, tomo I,
UPCO, Madrid, 1989, pp. 66-75.
135
Cf. S. G. ARZUBIALDE, Theologia Spiritualis, el camiño espiritual del seguimento a Jésus …, p. 67.
60
circunstancial. O coração do Homo spiritualis torna-se maduro na medida em que o
desinteresse chega a pertencer totalmente a Deus. As boas obras pois não são, todavia, a
santidade, não justificam os homens, mas são necessárias para nós caminharmos em
eventualmente até a sua própria segurança e os próprios direitos, por situar o Homem
perante Deus como um mero indigente e com a máxima disponibilidade para fazer a Sua
tendo como alimento o próprio Deus que oferece todos os tipos de disponibilidade, com
impulso vital, que tudo orienta com firmeza e discrição a finalidade da realização
viver e partilhar a vida com sentido orientado para um fim estimulante, nas suas
de viver do “comum dos mortais”. Ora, a perfeição e a santidade devem então associar-
136
Cf. S. G. ARZUBIALDE, Theologia Spiritualis, el camiño espiritual del seguimento a Jésus …, p. 69.
137
Cf. B. DOMINGUES, Espiritualidade, fonte de esperança para um futuro humanizado, in EspCarm,
nº 48, Outubro-Dezembro, 2004, pp. 315-320.
61
Existe um fenómeno que se repete estatisticamente com muitas pessoas que
tem origem em Deus)138. A busca pela perfeição tem de passar necessariamente por uma
passo da própria justiça (humana) à justiça que vem de Deus, bem como o passo do
Deus, reconhecendo a sua própria contingência. Só assim o Homem poderá ser capaz de
a indigência pessoal deixa de ser um obstáculo para se converter numa mais-valia, num
lugar exato e concreto de adoração, onde reina a misericórdia para com os homens, sem
divina141.
2.4. A caridade
Ele a sua fonte, o seu centro e o seu fim: “Através da sua fé em Cristo e da comunhão
138
Cf. J. A. GARCIA, Sed perfectos, canto y compromisso en el cercamiento salvador de Dios, in SalTer,
74 (1986), p. 709.
139
Cf. A. FONCK, Perfection Chrétienne, in DThC, tomo XII, 1ª part, Paris, 1933, pp. 1219-1251.
140
Cf. IGNACIO DE LOYOLA, Carta a los hermanos estudiantes del Colegio de Coimbra, Roma, 7 de
Mayo de 1547, en Obras Completas, BAC, Madrid, 1963, p. 683.
141
Para um estudo, neste caso bíblico, aprofundado acerca do tema cf. MAURICE GILBERT, Volonté de
Dieu et don de la Sagesse (Sg 9, 17s), in NRTh, 93 (1971), p. 84-166.
62
vivida com ele, o cristão está em condições de amar os homens, como o próprio
Cristo e que está em Cristo, é que brotam peculiaridades específicas da caridade cristã.
seja, a ideia de escolher ou eleger estando contra a exclusão. Ela é para todos, como
para todos é a luz do sol que Deus, como reflexo do Seu Amor, faz nascer “sobre bons e
maus”, bem como faz “chover sobre os justos e os injustos” (Mt. 5,45). A caridade é,
por sua natureza, universal, pois Deus ama a todos e, no seu amor paterno, faz-nos um
com Ele: “Todos vós sois irmãos” (Mt. 23,8). Distingue-se do amor humanamente
entendido porque este é, por sua natureza, restritivo e possessivo, ao passo que a
caridade tem como característica a universalidade: Jesus exclui para sempre a restrição
modo tão categórico que exclui reservas e exceções. Esta universalidade, perfeita em
dirige-se também a cada um de nós: como família e como cidadãos, pois como diz o
Apóstolo: “Façamos bem a todos, e especialmente aos irmãos na fé” (Gl. 6,10), pois a
intenções, como expressão de uma saída de si sem retorno. O beato João Paulo II
142
M. RIQUET, La carità di Christo in atto, Ed. Paoline, Catania, 1962, p. 21.
143
Cf. M. SBAFFI, A caridade, princípio ativo de vida espiritual, in Dicionário de Espiritualidade,
Edições Paulinas, São Paulo, 1989, pp. 81-88.
63
chamou-lhe mesmo “a fantasia da caridade”144 que se manifesta não só e nem sobretudo
na eficácia dos socorros prestados, mas na capacidade de pensar e ser solidário com
quem sofre, de tal modo que o gesto de ajuda seja sentido, não como esmola
humilhante, mas como partilha fraterna, o que conduz o Homem à gratuidade, a sua
segunda característica.
A caridade não podia ser universal se não fosse gratuita, à imagem e semelhança
do amor de Jesus Cristo: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” (Jo. 15,12-17).
A novidade do mandamento de Jesus está no “como eu” que, em S. João, traduz uma
maneira: “Amai-vos uns aos outros com o mesmo amor derramado nos vossos corações
pelo Espírito Santo”. Entenda-se gratuidade como a qualidade de um gesto livre, não
condicionado por interesses nem por qualquer forma de pressões vindas do exterior. O
estabelecer uma aliança com a casa de Israel, bem como Jesus não tinha a obrigação de
dar a vida pelos homens”146, como nos mostra o jesuíta Luís Rocha e Melo. No amor
imperfeito, que se vai assemelhando cada vez mais ao amor de Jesus Cristo, ainda se
O amor cristão do presente não prescinde das obrigações, mas é convidado a ultrapassá-
144
Cf. NMI, nº 50.
145
Cf. R. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan: version y comentario, Tomo III, Editorial
Herder, p. 30.
146
LUÍS ROCHA E MELO, O vento sopra onde quer: notas de Espiritualidade …, p. 66.
64
O amor é gratuito no ponto de chegada, pois a caridade não é interesseira (cf.
1Cor. 13,5). Não procura dividendos na sua atuação; não compra bilhete de ida e de
volta. O dom justifica-se por si mesmo sem motivações que devolvam o seu gesto ao
ponto de partida. Não tem retorno, pois investe a fundo perdido. Não apresenta fatura,
tenha ela o rosto que tiver. É importante ter o conhecimento que, na relação humana,
uma “reciprocidade não pode ser ignorada, sob pretexto algum, incluindo até mesmo a
própria gratuidade”147, como nos diz o monge italiano Amedeo Cencini. Dar “sem nada
esperar em troca” (cf. Lc. 6,35) é certamente uma atitude gratuita, mas também pode ser
atitude de auto-suficiência que prescinde dos outros e os olha de cima para baixo, tendo
um mero olhar vertical da realidade, ao invés de ter um olhar mais horizontal. O amor
primeiro passo do dom148. Toda a pessoa normal tem gosto em dar e alegria em ser
gratuidade é que se entende o amor aos inimigos (cf. Mt. 5,43-47), caso particular de
gratuito, sem motivos exteriores que o justifiquem, também não há razões que o
147
A. CENCINI, Por amor, con amor, en el amor, Sociedad de Educación Atenas, Madrid, 1996, p.57.
148
Cf. A. CENCINI, Por amor, con amor, en el amor …, p. 57.
65
CAPÍTULO III:
Basta apenas evocar o seu nome para desencadear uma série de associações
mentais: um fascínio sempre novo pela vida contemplativa; uma preocupação pelo
compartilhar da existência dos mais humildes quer como “irmãozinhos”, quer como
serviço, aprofundada e enraizada na chamada vida oculta de Jesus. Nada, mas mesmo
nada, durante a sua vida fazia prever o êxito extraordinário que haveria de o tornar
numa das figuras mais representativas da espiritualidade cristã dos finais do séc. XIX e
nalguns conventos de clausura, tais como os trapistas nos ermos do deserto. A única
obra que desejou e tentou repetidamente fundar – comunidades religiosas que vivessem
coração”) que ele foi um homem totalmente dominado por Deus. Tal como ele
confessou:
“Logo compreendi que Deus existe, compreendi que nada mais poderei fazer que
não seja viver para Ele: a minha vocação religiosa nasceu ao mesmo tempo que a
66
fé; Deus é tão grande! E entre aquilo que Deus é, e tudo aquilo que Ele não é há
Assim, renovou a sua opção radical pela “sequela” (ou seguimento) de Cristo,
penitência, enquanto aos outros dava o tesouro do amor que ardia no seu coração.
definitivamente em Tamanrasset (1905), em pleno deserto, para dedicar a sua vida aos
Tuaregues. Escolheu portanto um “modo novo” de viver a sua vocação que poderíamos
chamar de “paradoxal”. Foi um monge sem mosteiro, um mestre sem discípulos, enfim,
um eremita entre as pessoas para as levar a Jesus. Como fundador, escreveu várias
regras que só depois da sua morte iriam dar origem a novas famílias religiosas.
pegadas de Jesus. O testemunho de santidade que ele oferece à Igreja e ao mundo está
marcado por um estilo singular de “sequela” que se poderia chamar de coincidência dos
evidente de rumo e numa realização progressiva da vocação que entrevira. Uma etapa
149
C. DE FOUCAULD, Seul avec Dieu, Nouvelle Cité, Paris 1975, pp. 77-78.
150
Cf. R. ESCUDIER, Charles de Foucauld, o Irmão Universal, Paulus Editora, Lisboa 2005, p. 82.
67
inicial. Em 1886, decidira oferecer-se inteiramente a Deus, viver para Jesus Cristo.
Abraçou a vida de trapista. Passados alguns anos deixou a Trapa e foi viver à sombra do
convento das Clarissas de Nazaré. Preparou-se para o sacerdócio com a ideia de ir para
as regiões mais abandonadas da terra para lá tornar presente Cristo. Penetrou no deserto,
cada vez mais no interior do Sara, até à suprema imolação de si mesmo. A procura
duma forma de vida que lhe permitisse imitar cada vez mais perfeitamente a vida de
Jesus em Nazaré não foi fácil nem rápida151. Aceitou o peso e o fascínio duma procura
atenta que nunca foi realizada, orientada ou dirigida pela sua liberdade pessoal. De
cuja acção não obriga nem desresponsabiliza a pessoa humana. A sua caminhada de
se conformar inteiramente com Ele, sem nunca esquecer a radicalidade do dom recebido
numa atitude de atenção e perceção da vontade do Pai; dá-lhe a luz e a força do Espírito,
ambas necessárias para realizar a missão salvadora do Verbo, no estilo específico da sua
de Foucauld, soube entrar numa relação viva com Jesus e aplicar à vida quotidiana o
consciente de que Deus não o obriga a vestir um hábito contrário à sua estatura. Os seus
escritos revelam vigilância na delicada interpretação dos estados afetivos: regista com
151
Cf. R. ESCUDIER, Charles de Foucauld, o Irmão Universal …, p. 118.
68
diligência os sentimentos de alegria e paz, de cansaço e de perturbação, que
experimentara num dado período. A análise dos estados de espírito, como bem sabemos,
é um elemento importante que o discernimento sério não pode evitar nem deixar de
sublinhar:
“O amor não consiste em sentir que se ama; mas em querer amar: quando se quer
amar, ama-se. Quanto ao amor que Jesus tem por nós, já Ele o demonstrou à
saciedade, porque nós acreditamos nele sem o sentirmos: sentir que O amamos e
que Ele nos ama, seria atingir o paraíso; e o paraíso não existe aqui em baixo, salvo
Cristo (cf. Fil 2,5) para aprender a ler a história como Ele a vê, a alegrarmo-nos com
aquilo que a Ele causa prazer; a entristecermo-nos com aquilo que o fere (cf. Rm 12,2).
Assim, Charles procura alimentar a sua imaginação com o Jesus dos Evangelhos para
Deus se revela mais claramente onde a caridade for solicitada a identificar e a responder
do seu tempo e do contexto em que vivia: “É preciso ir até onde a terra já não é santa,
necessidades que, pouco a pouco, vão sendo identificadas por aqueles que têm a
152
C. DE FOUCAULD, L’Esprit de Jésus, Nouvelle Cité, Paris 1978, pp. 32-33.
153
C. DE FOUCAULD, Règlements et Directoire, Nouvelle Cité, Paris 1995, p. 87.
69
No início da sua procura de Deus, Foucauld aspirava à fé como se fosse uma
certeza racional:
“Esta religião afinal poderia não ser uma loucura, mas talvez seja a verdade.
padre instruído e vejamos que virá cá para fora, e se há razão para acreditar no que
ele diz”154.
Huvelin. Não tinha vontade de se confessar; apenas queria ter informação sobre a
religião católica. Mais tarde, num dos seus retiros espirituais viria a escrever, ao falar a
“Puseste-me sob as asas deste santo e aí fiquei: com as suas mãos tu me levaste
desde então e não tem havido senão uma graça atrás da outra: eu pedia lições de
religião mas ele fez-me pôr de joelhos e confessar-me; e enviou-me logo a fazer a
comunhão. […] Desde então que só tem havido uma graça após outra”155.
Aquele venerando ancião dirigiu-o sempre com mão firme. Era um homem de
Deus, um homem “que se tornara oração”. A santidade é sempre a força que maior
diretor espiritual uma garantia de segurança na difícil procura da vontade divina. Expõe
os seus sentimentos em cada carta que lhe escreve, abre a sua alma o mais possível,
tenta colocar-se num estado de indiferença e promete renunciar a tudo se o seu diretor
154
C. DE FOUCAULD, Qui peut résister à Dieu? Nouvelle Cité, Paris 1980, p. 76.
155
C. DE FOUCAULD, Qui peut résister à Dieu? (…), p. 76.
70
espiritual lho pedir, terminando sempre com uma confissão de obediência e com atos de
radicalmente ao serviço de Deus. Nunca foi um homem de meias medidas. Sempre quis
ir até ao fundo das coisas em tudo. Até na sua conversão: “Não procuremos corrigir-nos
nos completamente, se não nunca nos converteremos”157. Afinal trata-se de passar dum
tudo me repete e grita para que, se um bem que eu quero não aparecer, será apenas
“Segue-me, apenas a mim. Não venhas a Betânia para me ver a mim e também a
Escrituras” (cf. Act. 11); observa os santos, não para os seguires, mas para veres
como me seguiram e pega, de cada um, aquilo que achares que vem de mim, ou é a
156
Cf. R. BAZIN, Charles de Foucauld, explorateur du Maroc, ermite au Sahara, Nouvelle Cité, 2003, p.
108.
157
C. DE FOUCAULD, Voyageur dans la nuit, Nouvelle Cité, Paris 1979, pp. 207-208.
158
C. DE FOUCAULD, Voyageur dans la nuit (…), pp. 207-208.
159
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé, tomo II, Nouvelle Cité, Paris 1997, pp. 84-89.
71
Desde este momento, Charles apenas toleraria um desejo: o de responder a este
amor de Deus, impelido por uma necessidade desmedida de o imitar: “Eu amo Nosso
Senhor Jesus Cristo; amo-o e não poderei levar uma vida diferente da dele”160.
Foucauld entra na Trapa para se santificar, observando a regra de Cister, mas bem
transfere-se depois para Beni Abbés (Argélia), no intuito de dar testemunho de Cristo
que de novo reflorescia na sua época; retira-se depois para Tamanrasset, no centro do
Sahara, para compartilhar a vida dos tuaregues e chegar a converter-se num deles162.
Monge sem convento, sacerdote sem comunidade, missionário sem nenhum apoio
militar, o “irmão universal” parece ter tido o dom de criar algumas formas atípicas de
vida cristã, as quais se afastam das formas homologadas do seu tempo163, como se
vida espiritual é mais a busca e a procura do que a cópia passiva de alguns modelos
reconhecidos. A fidelidade, no campo ético e espiritual, é algo mais que uma simples
160
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé (…), pp. 84-89.
161
Cf. G. MARTINA, História da Igreja, de Lutero a nossos dias: a Era do Liberalismo …, p. 299.
162
Cf. C. MORRY, Charles de Foucauld, col. Chemins d’Éternité, Pygmalion, 2005, p. 77.
163
Cf. C. MORRY, Charles de Foucauld …, p. 77.
72
âncora lançada uma vez para sempre no passado; é simultaneamente a corda estendida
é contrária à novidade. As inúmeras formas que o seu projeto de vida assumiu podem
oculta164. A vida no espírito, segundo o beato, parece corresponder no mais alto grau, às
sua conversão ele ficara impressionado com uma frase do Padre Huvelin, que continuou
a ser, durante toda a sua vida, o seu diretor espiritual: “Jesus Cristo a tal ponto ocupou o
Inacessível; desde aquele momento não terá outra preocupação senão a de buscar o
último lugar entre os homens do seu tempo, já que somente aí poderá ficar perto de
Buscar o último lugar e compartilhá-lo com Cristo para ser totalmente de Deus:
esta é a ideia que unifica toda a vida daquele que quis chamar-se: Charles de Jesus. Mas
sentiram-se atraídos por Jesus mestre e profeta de Nazaré, ou terapeuta bom, ou então
homem das dores. Foucauld preferiu ver Jesus como Salvador do mundo, como obscuro
todas as dimensões da sua busca espiritual. Principalmente no momento que pode ser
164
Cf. C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé, tomo II, Nouvelle Cité, Paris 1997, p. 94.
165
LAH (15 de octubre de 1898).
73
considerado como a catarse decisiva da sua aventura cristã: o abandono da vida
escreveu:
“Tenho sede de levar a vida que estou a procurar há sete anos; consegui
abnegação e na obscuridade”166.
nova. Se ele, de facto, renovou todas as coisas nas suas intenções nada mais encontra a
não ser um projeto essencial e monolítico: imitar Cristo. A melhor expressão da sua
busca encontra-se no opúsculo em que reuniu alguns textos evangélicos com o título e o
seu lema: “O discípulo não é maior do que o seu mestre; é perfeito quando é igual ao
seu mestre (…) Segui-Me”167, resumem toda a sua doutrina. Com as suas palavras e
cristã que pode ser designada sumariamente como “Imitação de Cristo”. Esta corrente
de origem medieval. O movimento franciscano foi o seu berço e São Francisco de Assis
precisamente, ser chamado para poder imitá-lo. No entanto, foi preciso chegar à
166
C. DE FOUCAULD, Carnet de Beni-Abbès, Nouvelle Cité, Paris 1993, p. 66.
167
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé, tomo II, Nouvelle Cité, Paris 1997, p. 94.
74
Salvador168. Não se trata de uma rotatividade insignificante dos termos. No fundo pode-
se reconhecer a doutrina da justificação, apenas e apenas só, pela fé. E mais, admitindo
chamamento de Cristo.
A crítica luterana tem algumas boas razões a seu favor. Não se pode imitar
Cristo como um ser humano. O esforço do crente para se assemelhar ao seu Mestre
mais obra do Espírito Santo do que do ascetismo. Charles de Foucauld oferece com a
sua vida a prova de que a imitação literal não coincide com o literalismo. Segundo as
pegadas de São Francisco, ele tentou alcançar através da letra que mata, o Espírito que
salva. Este é também o Espírito que renova todas as coisas. Porque uma imitação que
a ser um imperativo categórico constante da vida cristã, pois toda ela deverá ser um
seguimento. Talvez seja necessário que em cada época surjam homens e mulheres que
pratiquem um tipo de imitação literal mais acentuada para lembrar aos outros cristãos o
que é que constitui o núcleo específico e irrenunciável de toda a vida cristã. Charles de
seus companheiros, sofreu uma morte violenta nas mãos de alguns revoltados. No seu
168
Cf. R. GARCÍA VILLOSLADA e B. LLORCA, Historia de la Iglesia Católica, vol.III …, p. 179.
169
Cf. R. GARCÍA VILLOSLADA e B. LLORCA, Historia de la Iglesia Católica …, p. 180.
170
Cf. S.G.ARZUBIALDE, Theologia Spiritualis – El camino espiritual del seguimento a Jésus …, pp.
66 e 72.
171
Cf. SALVADOR PIÉ-NINOT, La Teología Fundamental, 7ª edición, Secretariado Trinitario,
Salamanca 2009, pp. 285-291.
75
ardor pela imitação, ele tinha desejado o martírio como a melhor maneira de consumar a
Todos sabemos o que Jesus fez durante os três anos da sua vida pública: como
outros trinta anos anteriores? Por que motivo os evangelhos guardam silêncio acerca
desta etapa da sua vida? O único que sabemos desse longo período é um episódio que
sucedeu aos doze anos, quando Ele se perdeu em Jerusalém durante a festa da Páscoa, e
como José e Maria o encontraram “no Templo sentado no meio dos doutores,
pela sua inteligência e pelas suas respostas” (Lc. 2,46-47). Mas, imediatamente a
seguir, o evangelho diz que regressou a Nazaré e o véu do mistério desce de novo sobre
a sua vida, ocultando todas as suas atividades durante os dezoito anos seguintes.
Este enigmático silêncio sobre a juventude de Jesus fez com que muitos
“inventassem” histórias e relatos incríveis. Estes relatos puderam ser inventados porque,
segundo a crença popular, os evangelhos não abordam nada acerca dos anos de vida
oculta de Jesus. Mas, será que os evangelhos silenciam absolutamente? Não darão
indícios, em lado nenhum, do que Jesus fez durante todos aqueles anos? Na verdade não
Jerusalém poucos dias depois de ter nascido. O Evangelho diz-nos que José, Maria e o
menino “voltaram para a sua cidade de Nazaré, na Galileia. E ali o menino crescia e
172
Cf. L. BOUYER, La Spiritualité du Nouveau Testament et des Péres, Aubier, s.l., 1966, p. 79.
76
fortalecia-se, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc. 2,39-
40). Portanto, o evangelista informa-nos claramente que Jesus passou os anos seguintes
A segunda, depois de relatar que o menino Jesus se tinha perdido aos doze anos
na cidade de Jerusalém e foi encontrado no Templo174. Ele diz-nos que “voltou com
eles para Nazaré, e ali viveu, obedecendo-lhes em tudo. E Jesus continuava a crescer em
Se nos limitarmos, pois, ao evangelho, teremos de concluir que Jesus não saiu de
Nazaré durante todos estes anos. Voltou para Nazaré, segundo Lucas. E ali, no seu
círculo familiar, sendo «submisso» aos pais, adquiriu a sua maturidade humana,
intelectual e psicológica, tal como os outros meninos judeus do seu tempo. Isto é
se e disseram: “De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada?
Como se operam tão grandes milagres por sua mão? Não é Ele o carpinteiro, o filho de
A vida de Jesus, pois, deve ter decorrido de um modo tão ordinário e normal na
sua aprazível aldeia de Nazaré, que no dia em que se apresentou em público com uma
surpreendidos. Nunca tinham suspeitado que Ele fosse mais do que “o carpinteiro”, “o
filho de Maria”. Se Jesus se tivesse ausentado da sua terra para estudar e aperfeiçoar-se,
173
Cf. X. LÉON-DUFOUR, Diccionario del Nuevo Testamento, Nazaré (voc.) Cristiandad, col. II Madrid
1977, p. 145.
174
Cf. X. LÉON-DUFOUR, Diccionario del Nuevo Testamento, Nazaré (voc.) …, p. 145.
77
os galileus não se teria surpreendido dos seus prodigiosos conhecimentos. Se Jesus não
saiu de Nazaré durante a sua infância e a sua juventude (além das suas peregrinações a
realmente em todos esses anos? É possível conhecer algo da sua vida oculta? Sim, é
A primeira coisa que fizeram os pais com o menino Jesus, pouco depois do seu
nascimento, foi dar-lhe um nome. Isto realizava-se no meio de uma alegre cerimónia,
celebrada no oitavo dia e perante várias testemunhas (cf. Gn.17,12). O nome que José e
Maria lhe puseram foi Yehoshua, que em hebraico significa Josué. Através da Bíblia
sabemos que na Palestina esse nome costumava ser abreviado e pronunciar-se Yeshua,
por razões de familiaridade. Por sua vez, na Galileia, onde se falava de um modo
diferente do resto do país, e onde vivia a sagrada família, abreviava-se ainda mais e
mais tarde por Jesus. O nome de Yeshua, no século I, era um dos mais comuns de então.
Assim o vemos, por exemplo, no escritor Flávio Josefo (37-100)175, que nas suas obras
menciona mais de vinte pessoas que se chamavam Jesus na história judaica; das quais,
pelo menos dez são contemporâneas de Jesus de Nazaré176. Em hebraico, Jesus (ou
Josué) significa “Deus salva”. E não lhe puseram esse nome ao menino apenas em
homenagem ao profeta hebreu Josué, mas porque, segundo Mateus, um anjo disse a São
José: “Dar-lhe-ás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos seus pecados”
(Mt. 1,21).
175
Foi um historiador e apologista judaico-romano do séc. I d.C., descendente de uma linhagem de
importantes sacerdotes e reis, que assistiu in loco à destruição de Jerusalém, em 70 d.C., pelas tropas do
imperador romano Vespasiano, comandadas pelo seu filho Tito, futuro imperador. As duas obras mais
importantes são a Guerra dos Judeus (ano 75) e as Antiguidades Judaicas (ano 94). O primeiro faz um
estudo acerca da revolta judaica contra Roma (ano 66-70), enquanto o segundo relata a história do mundo
sob uma perspectiva judaica.
176
Cf. FLÁVIO JOSEFO, História dos Hebreus, tradução de Vítor Pedroso, 8ª edição, APAD, Rio de
Janeiro 2004, p. 273.
78
Terá Jesus aprendido a ler e a escrever durante a sua infância, numa pequena
que semelhante pergunta é absurda, pois três episódios dos Evangelhos mostram
O segundo foi quando Ele, “segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na
sinagoga e levantou-se para ler e lhe entregaram o livro do profeta Isaías” (Lc. 4,16-17).
perguntavam-se maravilhados: “Como é que este é letrado, se não estudou?” (Jo. 7,15).
Mas, lamentavelmente, nenhum destes três textos serve para provar a capacidade
de Jesus para ler e escrever: o primeiro porque, ao mostrar Jesus a “escrever” com o
dedo no chão, mas sem dizer o que Ele escrevia, levou a pensar que só traçou umas
linhas sobre o pó, talvez com a intenção de manifestar o seu incómodo aos acusadores
da mulher, mas sem escrever realmente nada; o segundo porque o texto do profeta Isaías
que Jesus lê na sinagoga de Nazaré, tal como está, não existe. É uma passagem
construída pelo evangelista Lucas com versículos salteados desse livro (isto é: Is. 61,1;
58,6; e 61,2)177. Como teria Jesus conseguido ler esse texto no livro de Isaías?
O terceiro, mostrando Jesus a saber escrever sem ter estudado, de facto não diz que
Jesus sabia “escrever”, mas que sabia usar as Sagradas Escrituras (ou seja, o Antigo
Testamento) numa discussão teológica, coisa que podia ter aprendido oralmente de cor,
177
Cf. J. N. ALETTI, Jesu-Cristo ¿factor de unidad del Nuevo Testamento? Secretariado Trinitario,
Salamanca 2000, p. 89.
79
sem necessidade de saber ler178. Não temos, pois, nos Evangelhos provas seguras de que
Jesus soubesse ler e escrever. Poderemos sabê-lo por outra via? Sim. Pela literatura
judaica sabemos que quando Jesus era criança existia em Nazaré, como nas demais
aldeias da Palestina, uma pequena escola, aonde iam os meninos a partir dos cinco anos.
O local estava anexo à sinagoga e o programa escolar constava de dois ciclos básicos179:
Levítico180. Daí passavam para os outros livros bíblicos, repetindo-os versículo por
versículo, até aprenderem o texto sagrado quase de memória. Pela Bíblia, os alunos
que durava dois anos, aplicava-se ao conhecimento da Lei Oral judaica (chamada
leis bíblicas181. Ao chegarem aos doze anos, os meninos terminavam os seus estudos. Se
algum era particularmente brilhante, então podia cursar estudos mais avançados; para
isso tinha de ir para Jerusalém ou outra cidade importante do país, e inscrever-se nas
escolas dirigidas pelos mais célebres doutores da Lei182. Mas isso era privilégio de uns
poucos; a maioria dos jovens reintegrava-se na sua família, onde começava a aprender
Sem dúvida, Jesus, durante a sua infância, assistiu como todos os meninos da
sua época aos dois ciclos básicos escolares na sinagoga de Nazaré, onde aprendeu a ler e
a escrever. Mas não parece ter recebido o ensino superior próprio dos centros urbanos
80
Que profissão praticou Jesus durante a sua adolescência? Sabemos que todos os
pais das famílias judaicas procuravam uma ocupação para os seus filhos, pois os rabinos
diziam: “Quem não ensina uma profissão ao seu filho, ensina-o a roubar”183. Como
vimos, São Marcos diz que quando Jesus pregou na sinagoga de Nazaré, os seus
conterrâneos comentaram: “Não é este o carpinteiro?” (Mc. 6,3). Daí se ter pensado
sempre que ele foi carpinteiro. Mas muitos exegetas têm colocado em dúvida esta
afirmação. Primeiro, porque os outros Evangelhos trazem uma versão diferente. Já São
Mateus, por exemplo, diz que a pergunta das pessoas foi: “Não é este o filho do
carpinteiro?” (Mt. 13,55), quer dizer, atribui o ofício de carpinteiro a São José, não a
Jesus. Enquanto em São Lucas as pessoas perguntavam: “Não é este o filho de José?”
(Lc. 4,22) pelo que em nenhum dos dois é apresentado como carpinteiro. Segundo,
porque Nazaré, situada na fértil região da Galileia, era uma povoação de camponeses, a
maioria dos quais se dedicava à agricultura e a criar gado184. Terceiro, porque em quase
escrever, não se teria animado a chamar a Jesus “carpinteiro”, ocupação que gozava de
pouco prestígio naquela época, se realmente não fosse certo. Pelo contrário, há motivos
para Mateus ter alterado a informação: como pretendia acentuar mais a figura solene e
majestosa de Jesus, pensou que tal atribuição era desrespeitosa, preferindo transferi-la
para José. E Lucas, mais sensível ainda que Mateus, considerou a referência àquela
profissão como um insulto dos galileus, e optou por eliminá-la tanto de José como de
Jesus. A alusão à agricultura nas suas parábolas, deve-se ao facto de os seus ouvintes
183
FLÁVIO JOSEFO, Antiguidades Judaicas …, p. 208.
184
Cf. FLÁVIO JOSEFO, Antiguidades Judaicas …, p. 154.
81
serem formados, na sua maioria, por agricultores, pelo que procurou adaptar-se à sua
linguagem185. Podemos, pois, concluir que Jesus, durante os trinta anos da sua vida
Outras das coisas que Jesus aprendeu durante a sua adolescência em Nazaré foi a
rezar, pois qualquer criança israelita, a partir dos treze anos, adquiria o hábito de orar
três vezes por dia: de manhã, ao meio-dia e à noite (cf. Sl. 55,18; Dn. 6,11; Act.
10,9)187. Havia duas orações que um judeu, a partir da sua adolescência, devia recitar
cada dia. A primeira chamava-se “Shemá” (em hebraico, “Escuta”), porque começava
assim: “Escuta, Israel: Yahvé é o nosso único Deus”. Mais do que uma oração, era uma
“Shemoné Esre” (em hebraico, “Dezoito”) porque consistia em dezoito orações (três
longo do dia, o menino Jesus foi aprendendo a chamar a Deus Pai nosso. E foram estas
que criaram o clima espiritual em que Ele cresceu e que marcaram profundamente a sua
Como vemos, a vida oculta de Jesus não teve nada de extraordinário nem
prodigioso, como a pintam as absurdas lendas tecidas sobre ela. Foi nesta atmosfera
simples e familiar, própria das aldeias da Galileia, que o menino Jesus cresceu,
“O coro dos meninos na escola, a voz das raparigas na fonte de água, o monótono
golpear do martelo na carpintaria, o grito repetido das mães a chamar para casa as
suas filhas entretidas na rua, foram o clima que Jesus respirou e assimilou durante
185
Cf. J.N.ALETTI, Jesu-Cristo ¿factor de unidad del Nuevo Testamento? …, p. 91.
186
Cf. J.N.ALETTI, Jesu-Cristo ¿factor de unidad del Nuevo Testamento? …, p. 90.
187
Cf. FLÁVIO JOSEFO, História dos Hebreus, tradução de Vítor Pedroso, 8ª edição, APAD, Rio de
Janeiro 2004, p. 224.
82
trinta anos. E quando um dia o Pai do céu lhe pediu que deixasse tudo e fosse
pregar a mensagem de salvação aos seus irmãos, nunca se arrependeu dos anos
passados na sua aldeia, na sua casa com os seus familiares; dos seus anos ocultos e
Nunca considerou esse tempo como “perdido”, pois viveu cada dia e cada ano
como o melhor que tinha. De igual modo assim o ensinou também, quando se tornou
adulto: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas
investigação, por vezes bastante fiel e credível, de muitos estudiosos do seu itinerário
espiritual, parece ser unânime em afirmar que viver “como pequeno irmão de Jesus em
Nazaré”189 é certamente a bitola que alumia a sua (a) venturosa vocação religiosa e
unifica o itinerário da sua maturação eclesial. Ser um pequeno irmão de Jesus equivale
dar à vida a uma relação teologal que se exprime numa coabitação fraterna com o
seguintes pontos:
188
DANIEL FARIA, Poesia, 3ª edição, Edições Quasi, V. N. Famalicão 2009, p. 247.
189
F. CERRO CHAVES, Carlos de Foucauld. Como un viajero en la noche, Monte Carmelo, Burgos
2002, p. 143.
190
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé, tomo II, Nouvelle Cité, Paris 1997, pp. 76-80.
83
“Quem quiser viver segundo a espiritualidade de Nazaré terá como princípio
perguntar-se a todo o momento sobre o que pensaria, diria e faria Jesus se estivesse
no seu lugar, e fazê-lo. Esforçar-se-á continuamente por se tornar cada vez mais
semelhante ao Nosso Senhor Jesus tomando como modelo a sua vida de Nazaré,
profunda amizade com Cristo, a ponto de não ter senão um desejo: o de ser como Ele. É
ele próprio quem o diz numa meditação, cinco meses antes da sua morte: “Ficar sempre
lugar”192. Foi isto que Ele fez, ao participar no banquete da vida, e fê-lo até à morte.
2. A adoração eucarística
permaneceu como centro da sua oração. Passava longas horas em adoração diante da
Pouco a pouco, diante da Eucaristia, foi amadurecendo na sua vocação sacerdotal, para
oferecer este “divino banquete aos afastados, aos cegos e aos pobres, quer dizer, às
almas que não têm sacerdotes”194. Construiu em Beni-Abbés uma capela e decorou-a ele
próprio, desenhando na tela um Cristo que abre os braços a receber, abraçar e chamar
todos os homens e a dar-se a eles. É naquele sítio que ele passa longas horas, do dia e da
noite, em adoração ou em meditação. Vive com ele na sua habitação e mantém com Ele
um diálogo contínuo de amigo para amigo, um diálogo que continua ao longo da noite
191
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé …, pp. 76-80.
192
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé …, pp. 76-80.
193
C. DE FOUCAULD, La Bonté de Dieu, tomo I, Nouvelle Cité, Paris 1996, p. 112.
194
C. DE FOUCAULD, La Bonté de Dieu …, p. 112.
84
3. A opção preferencial pelos pobres
“A opção pelos mais pobres será a tarefa da minha vida. Juntarei todos os esforços
sobretudo pela conversão daqueles que são espiritualmente mais pobres, isolados,
desesperadas”195.
miséria material e moral do lugar, decidiu que o seu primeiro trabalho seria “ajudar os
escravos” que eram tratados com muita dureza pela população. O segundo trabalho seria
acolher os viajantes pobres. Por fim, iria oferecer instrução escolar às crianças que
Optar pelos pobres não é porém a mesma coisa que amar os pobres. Optar por
apenas ter grande amor pelos pobres, mas sim ter um amor que parte dos pobres e
estabelecer com eles uma aliança estável. E assim, perante o seu confessor, fez um voto
de nada possuir para seu uso pessoal senão quanto um pobre operário também tivesse. E
trabalho das próprias mãos (…), não possuindo nada (…). Não formar senão apenas
195
C. DE FOUCAULD, Règlements et Directoire, Nouvelle Cité, Paris 1995, p. 228.
196
C. DE FOUCAULD, Règlements et Directoire …, p. 228.
85
4. O amor à Igreja
“Apego inviolável à Igreja, que é Esposa de Jesus, em que ele vive. Ele é a sua
alma, ama-a como sua esposa […]. Apego a tudo o que dela vem, das suas
instituições, dos seus ritos, dos seus ministros […]. Apego ao Santo Padre, seu
chefe e representante. Rezarei muitíssimo pelo Santo Padre, pelas suas intenções
[…]. Quanto mais se ama a Igreja, tanto mais possui o Espírito Santo que a anima.
Quanto mais se ama a Igreja, tanto mais se ama Aquele de que ela é corpo, Nosso
“A escolha do diretor espiritual tem uma importância vital porque tal como for o
mestre, tal será o discípulo. Deve ser uma pessoa devota, prudente, instruída e
perita. Uma vez feita essa escolha depois de ter rezado ardentemente a Deus,
com o seu diretor espiritual – como a de filho em relação ao pai. Quando ele morreu,
escreveu a um amigo dizendo-lhe que o seu Padre Espiritual fora um enxerto paciente
projeto pastoral da Igreja local, procurando tornar-se útil segundo a sua vocação,
197
C. DE FOUCAULD, Carnets de Tamanrasset, Nouvelle Cité, Paris 1986, p. 243.
198
C. DE FOUCAULD, En vue de Dieu seul, tomo I, 2º édition, Nouvelle Cité, Paris 1999, p.
94.
86
para além de ser solidário sobretudo com aqueles que se encontram nos lugares
fecundidade que não depende da acção: e é aquela que possui espírito contemplativo,
que procura viver o espírito de Nazaré, a realidade concreta até ao fundo, no momento
gratuidade do dom. Ele mesmo fazia experiência contínua disso vivendo “a vida de
Nazaré” com os nómadas mais isolados, entre os mais pobres de Beni-Abbés. Em 1911
7. A evangelização libertadora
de que ela é a base da sua existência, quer se encontre no deserto quer na missão
apostólica. Quer dizer que não pode haver apostolado sem Nazaré nem deserto sem
Para que se dê uma inserção em qualquer lugar da terra, Charles acredita que o
cristão deverá partir sempre do modo de agir de Deus, tal como aparece nos
Evangelhos, e acolher e apreciar tudo o que de bom e peculiar existe em cada povo e
cultura.
199
C. DE FOUCAULD, Qui peut résister à Dieu? Nouvelle Cité, Paris 1980, p. 27.
200
C. DE FOUCAULD, Carnets de Tamanrasset, Nouvelle Cité, Paris 1986, p. 63.
87
3.5. Foucauld: um santo à nossa medida
É convicção profunda do beato Charles de Foucauld que Jesus Cristo deve estar
no centro da nossa vida para que possamos ter gosto em conhecê-lo, deixar-nos seduzir
por ele, segui-lo e imitá-lo, levar a nossa cruz atrás d’Ele. Desta forma, permitimos-lhe
que nos diga a verdade a respeito da nossa vida, dos nossos desejos, dos nossos projetos
e da nossa história. E isto tem de acontecer mesmo à custa do martírio, que ele não
excluía da sua vida: “Pensa que terás de morrer mártir, despojado de tudo, estendido por
assassinado e deves desejar que seja hoje”201. Assim foi com ele, que morreu
1. “Ser caridosos, mansos, humildes com todos: é isto que se aprende com
Jesus”203
evangélica, antes de mais, que não é apenas uma fraternidade reunida no amor à volta
de Jesus e com Jesus, mas uma fraternidade que faz da caridade, tanto por dentro como
por fora, o mandamento supremo até “fazer da salvação do próximo, bem como da
salvação pessoal, a grande tarefa da vida”204. Este ideal só é atingível se formos capazes
acolheremos o outro com profundidade, ou seja, como irmão e filho do mesmo Pai.
201
C. DE FOUCAULD, La dernière place, Nouvelle Cité, Paris 1974, p. 243.
202
C. DE FOUCAULD, La dernière place …, p. 244.
203
C. DE FOUCAULD, Règlements et Directoire, Nouvelle Cité, Paris 1995, p. 228.
204
C. DE FOUCAULD, Règlements et Directoire …, p. 228.
88
Somos chamados a viver uma vida comunitária que saiba apreciar e valorizar a
vida ordinária, diária, o lugar onde realizaremos santidade. Uma santidade que se
pessoas para tornarmos a nossa vida mais semelhante à de Jesus nos trinta anos que
relacionamentos se tornem cada vez mais justos, mais verdadeiros, mais fraternos e
procura vocacional e a sua vida espiritual, como um todo, desenrolaram-se até à morte
amor pelo Evangelho que via não como um estudo de normas e leis, mas como encontro
com “o esposo, o namorado, o bem-amado”206, para assim lhe poder agradar, servir,
glorificar, consolar, como deseja que tudo seja feito. A vida de comunidade e o caminho
do discipulado, nas suas várias modalidades e critérios, juízos e valores, devem passar
“Ler e reler incessantemente o Santo Evangelho para ter sempre diante da mente as
ações, as palavras, os pensamentos de Jesus para poder pensar, falar e agir como
205
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé, tomo II, Nouvelle Cité, Paris 1997, p. 94.
206
C. DE FOUCAULD, L’Imitation du Bien-aimé …, p. 94.
89
modos de fazer do mundo, em que recaímos tão rapidamente mal afastamos os
para depois de tornar alimento abundante para todos aqueles que têm fome.
É outra característica que deve distinguir a nossa vida. Uma vida que, como a de
Jesus Cristo, se torna dádiva para bem de todos os homens, especialmente dos pobres
com que Jesus se identificou (cf. Mt 25,31-46). Fomos chamados, até mesmo à luz do
“Os meios de que Ele (Jesus) se serviu no presépio, em Nazaré, na cruz, são:
nossas armas, as mesmas do Esposo divino, que nos pede para deixarmos continuar
em nós a sua vida, ele o único amante, o único esposo, o único Salvador e até
transformar em Maria para me tornar uma outra Maria vivente e operante”211. Também
207
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile, 2º édition, Nouvelle Cité, Paris 1982, p. 84.
208
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile …, pp. 84-89.
209
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile …, pp. 84-89.
210
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile …, p. 84.
211
C. DE FOUCAULD, Crier l’Évangile …, pp. 84-89.
90
mariana de Charles de Foucauld mais um empurrão para incarnar aquele estilo de
Charles de Foucauld foi, sem dúvida, um dos grandes luzeiros dos inícios do
século XX, sendo um místico em estado puro, um apaixonado por Jesus que fez da
sempre age de forma nova e criativa na história do mundo e da Igreja. Ele é livre para
continuam a surpreender. De forma radical, ele convida a Igreja toda a regressar à fonte,
que é o próprio Evangelho, para encontrar e seguir Jesus, o único modelo, isto é, ir às
raízes daquilo que faz com que uma existência seja realmente cristã e evangelizadora.
passando por Louis Massignon (1883-1962)214 e muitos outros, insistem sobre o caráter
radical da sua experiência de Deus. Desde que Foucauld se deixou seduzir por Jesus, a
perdidamente. A sua vida, marcada por extremos, passou por sucessivas conversões.
Tendo reencontrado Jesus através da mediação dos muçulmanos que lhe causaram
212
Foi diretor da Escola de Letras de Argel, mais tarde decano da Faculdade de Letras. Era um famoso
especialista em línguas berberes, com o qual Charles de Foucauld entrou em contacto a partir de 1907,
tendo sido seu grande amigo.
213
Foi um neo-convertido, filósofo, humanista francês do séc. XX que se tornou, depois de enviuvar,
irmãozinho de Jesus. Foi amigo pessoal do Papa Paulo VI, enquanto este foi Núncio Apostólico em
França, tendo sido consultor no Concílio Vaticano II (1962-1965).
214
Foi um sacerdote, especialista em mística islâmica, que Foucauld conheceu no ano de 1909, tendo
mantido contacto com o beato até à sua morte.
91
profundo impacto na Argélia, dos judeus que o protegeram durante a longa expedição
dos monges trapistas com os quais conviveu durante seis anos, das irmãs clarissas que o
seus mestres na última etapa de sua vida. Entre Deus e nós, existe sempre a mediação
macro ecumenismo:
“Estou aqui não para converter os tuaregues, mas para compreendê-los. Acredito
que o Bom Deus acolherá no céu aqueles que forem bons e honestos. Os tuaregues
215
C. DE FOUCAULD, La Bonté de Dieu, tomo I, Nouvelle Cité, Paris 1996, p. 243.
92
afastados216. Os poucos que se dispuseram a aceitar o seu convite aguentaram por pouco
tempo a pobreza e o ritmo intenso de oração e trabalhos vividos e propostos por ele.
Além disso, a sua vida permaneceu escondida e muito longe de tudo e de todos. Após a
sua morte, quando foi divulgada a sua biografia e se começaram a publicar os seus
Hoje são cerca de vinte grupos: onze congregações religiosas e oito associações de fiéis,
continentes218.
A Igreja, perante isto, não pode deixar de se alegrar quando a novidade de Cristo
Igreja. Num mundo que parece cada vez mais escravo do materialismo, do conforto e do
consumismo, ele significa uma resposta a esta sede de espiritualidade que marca os
nossos dias.
216
Cf. BACF (octubre de 1986).
217
Cf. BACF (octubre de 1986).
218
Cf. CCF (abril de 2001).
93
CONCLUSÃO
época em que a Igreja está a tornar-se uma minoria em muitos países tradicionalmente
destas formas surpreendentes, retas e, ao mesmo tempo, sinuosas que Deus conduziu,
conduz e conduzirá os seus filhos e é, portanto com esta admiração, que Ele continua a
guiar o Seu povo por caminhos desconhecidos. Estes, por sua vez, conduzem o Homem
um excesso de dom e uma árdua tarefa; são também caminhos que permitem a sã
vivência das suas vidas de uma forma mais pessoal e comunitária, ao serviço de Deus e
dos homens, sempre na obediência ao duplo mandamento do amor, que Jesus de Nazaré
nos deixou.
“perfeito”. Pelo contrário, a sua conduta foi por muitos anos oposta aos padrões cristãos
tradicionais. Era filho do seu tempo, com muitas fraquezas. Mas um dia, o encontro
com Deus causou nele uma revolução tão grande que foi impelido a iniciar uma
caminhada decisiva para a santidade – original, definitiva, sem olhar para trás. Ele
94
suas fronteiras tranquilizadoras ou os pequenos confortos espirituais, para responder aos
inúmeros desafios que ele enfrentou, mesmo que nem sempre tenha cantado vitória.
com os fiéis muçulmanos da região também o levou a uma reflexão interior. Como
dedicar toda a sua vida a Cristo. Depois de uma série de experiências diversas na busca
pela sua realização vocacional, Charles de Foucauld volta para o norte da África e
na Sua vida oculta, poderia suprir a necessidade espiritual dos povos nómadas do
com o testemunho de uma vida consagrada219. Ainda que não tenha gerado grandes
minoria cristã:
“A minha evangelização deve ser dirigida a este homem que é tão bom, portanto, a
sua religião deve ser muito boa. Se eles perguntam por que eu sou sensível e bom,
devo dizer: Porque eu sou o servo de Alguém muito melhor do que eu. Se tu
soubesses o quão bom é o meu Mestre Jesus! Gostaria de ser bom para que se
219
Cf. FR nº 71.
220
C. DE FOUCAULD, Carnet de Beni-Abbès, Nouvelle Cité, Paris 1993, p. 32.
95
Charles de Foucauld escreveu:
“Logo que descobri que existe Deus entendi que não podia mais fazer outra coisa a
não ser viver por ele: a minha vocação religiosa começa no exato momento em que
“porque existe uma grande diferença entre quem Deus é, e aquilo que Ele não é” 222. No
poderoso que temos para nos unir a Jesus e fazer o bem” 223. Quando ainda estava no
mosteiro trapista e decidiu deixá-lo, escreveu: “No mosteiro passei seis anos e meio,
depois, desejando querer me assemelhar a Jesus, fui autorizado a viver como alguém
entre os tuaregues.
tristeza da vida cristã, mas representam o caminho mais simples do seguimento de Jesus
que se fez pobre e para todos ofereceu a Sua vida. O esvaziamento é o processo de
diminuição para que, à semelhança de João Baptista, o missionário deixe que Deus
possa intervir e agir na História dos povos e das pessoas. Na vida de Charles de
221
LAH (15 de octubre de 1898).
222
LHC (14 de agosto de 1901).
223
LMB (16 de julio de 1891).
224
CCF (19 de noviembre de 1901).
96
Foucauld, o protagonista que deve sempre mais aparecer e agir, através do discípulo, é o
próprio Deus. Charles emprestou a sua própria vida a Deus, uma vida não retida, mas
doada. Quem guarda a própria vida para si, perdê-la-á, mas quem a entrega, ganhá-la-á.
vivê-la, sem arrogância e orgulho, na própria vida. Por isso os tuaregues começaram a
missão de Charles de Foucauld foi o inverso do proselitismo, isto porque foi através da
homem que, vivendo quase 50 anos antes do Concílio Ecuménico Vaticano II,
ver, de novo, o futuro da Igreja e de sonhar, também de novo, com a presença do Reino
no meio de nós. O próprio Enzo Bianchi escreve que, depois de Francisco de Assis e,
agora, depois de Charles de Foucauld, toda a vida religiosa e cada forma de testemunho
na Igreja não podem mais ser vividos como antes, pois o irmão universal mudou as
225
Cf. ENZO BIANCHI, Procura a vontade de Deus, Paulus Editora, Lisboa 2007, p. 167.
97
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CONSELHO PONTIFÍCIO DA CULTURA e CONSELHO
PONTIFÍCIO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO, Jesus Cristo,
portador da água viva. Uma reflexão cristã sobre a «Nova Era», 2ª Edição,
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SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan: version y
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104