A Santidade No Portugal Medieval - Maria de Lurdes Rosa (2001-2002)

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A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL:

NARRATIVAS E TRAJECTOS DE VIDA 1

MARIA DE LURDES ROSA *

1. “Celeste uitam in terra positus agebat”: narrar o sagrado, ver-


balizar a santidade. Textos hagiográficos dos séculos VII a XIII

No último quartel do séc. XII, um religioso do mosteiro de Santa


Cruz de Coimbra compôs uma biografia sagrada de Teotónio, primeiro
prior daquela casa, morto alguns anos antes, em 1162. Talvez uma das mais
elaboradas hagiografias medievais portuguesas, e a que apresenta maior
cultura e talento literário 2, é um texto cujo estatuto escapa às categorias

* Departamento de História da FCSH/UNL; CEHR/UCP.


1
A primeira versão deste trabalho foi escrita em 1995, para ser publicada numa
obra colectiva que nunca conheceu edição efectiva. Já em provas tipográficas, circulou
entre vários colegas, tendo sido citado por demasiadas vezes na quase-eterna condição de
“prelo”... Algumas partes foram parcialmente utilizadas em outros trabalhos meus, como
será anotado. A versão que agora se publica foi revista a fundo, tentando incorporar todos
os avanços que se deram, desde então para cá, na historiografia sobre o tema, em particu-
lar a portuguesa. Vários deles foram muito importantes para essa revisão, contribuindo
para algumas alterações de monta às suas propostas iniciais; outros, em curso de elabora-
ção, virão sem dúvida enriquecer este campo historiográfico, tornando porventura possí-
vel a realização de encontros colectivos de debate e troca de informações (do que fazemos
voto, seja-nos permitida a expressão «hagiográfica»). Agradecemos a todos os colegas as
correcções e sugestões. Resta salientar que não pretendemos aqui explorar monografica-
mente cada uma das personagens e textos, mas sim fornecer grandes linhas de análise, a
partir da renovação historiográfica neste campo, em particular dos trabalhos de A.
Vauchez, S. Boesch-Gajano, Th. Heffernan, Peter Brown.
2
A edição clássica foi feita por Mª Helena da Rocha Pereira, (pref., trad.e nts.),
Vida de S. Teotónio, pp. 1-4, Coimbra, Ed. Igreja Sta. Cruz de Coimbra, 1987; cfr, ainda
J. Geraldes Freire, “Problemas literários da Vita Sancti Theotonii”, in Santa Cruz de

LUSITANIA SACRA, 2ª série, 13-14 (2001-2002) 369-450


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modernas. Para o Autor, não se tratava só de compor uma biografia, pro-


por um modelo pastoral, ou tão pouco redigir uma ambiciosa obra pró-
pria. Aquilo que testemunhara e ia relatar impunha uma outra atitude,
numa missão decerto solene, mas insignificante face ao sobrenatural a
que dizia respeito. É que Teotónio fora um santo. E a santidade represen-
tou, para a civilização medieval, o mais nítido lugar da inscrição do
eterno no presente 3.
Uma tal perspectiva condiciona de modo decisivo a narrativa. Insere-
a num plano que ultrapassa a simples escrita e se abre para a relação que
esta tece com o Divino a relatar. Apresentar um santo era narrar o encon-
tro humano com Deus. Era manter aberta a fronteira entre as Duas
Cidades, que o santo abolira: na feliz síntese do seu anónimo biógrafo,
Teotónio, «colocado na terra, levava uma vida celestial» (“celestem
uitam in terra positus agebat”) 4. Era ter a capacidade de “sobrenaturali-
zar” realidades bem concretas, como a que rodeara Teotónio, que todos
conheciam. Através de uma alegoria que abre o caminho à verdadeira lei-
tura, resume-se, já no fim do texto, toda a lide do santo prior: Teotónio
chefia uma multidão de homens vestidos de branco que, colocados numa
eira, lutam contra as ondas do mar circundante. Termo a termo, o Autor
declina sabiamente uma precisa explicação: a eira é o mosteiro de Santa
Cruz, os homens de branco são os monges, e o mar, esse, é a cidade de
Coimbra, ou o mundo 5. Assim, pois, a Coimbra da Reconquista, esse
meio fervente de actividade e dos acesos conflitos que em algumas pas-
sagens o texto refere (os Moçárabes capturados pelo rei e soltos a instân-
cias de Teotónio, as facções que rodeavam Afonso Henriques, os clérigos
que se opõem à nova fundação...) é, no fundo, um cenário quotidiano que
apenas alguns sabem decifrar.

Coimbra do século XI ao século XX, pp. 85-117, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1984.
Deve agora ser utilizada a edição e tradução de Aires A. Nascimento, in Hagiografia de
Santa Cruz de Coimbra, pp. 138-222, Lisboa, Colibri, 1998, que oferece perspectivas
completamente novas e resulta de um apurado trabalho de contextualização histórica e
textual, que contou com a colaboração de Agostinho Frias.
3
Thomas J. Heffernan, Sacred biography. Saints and their biographers in the
Middle Ages, p. 16, p. 94, Nova Iorque/Oxford, Oxford Univ. Press, 1988.
4
Vita Theotonii, ed. e trad. de Aires A. do Nascimento, cit., pp. 186-87.
5
Vita Theotonni, ed. Aires A. Nascimento, cit., pp.196-197; Mª Helena R. Pereira,
Vida de S.Teotónio, cit., p. 45, nt. 45, já chamara a atenção para o carácter alegórico deste
trecho, remetendo para Mário Martins, Alegorias, símbolos e exemplos morais, que evoca
o episódio, inserindo-o na tradição das “visões-parábolas” hagiográficas (2ª ed, Lisboa,
Brotéria, 1980, pp. 29-30).
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Na tradição do que se convencionou designar por hagiografia, este


texto desafia leituras directas. Todavia também não se pode interpretar
apenas por meio de simples identificações inter-textuais ou da sua inte-
gração num “género literário”. Na realidade, é um texto cultual, um “tra-
tamento” integrado e intencional dos elementos biográficos de um
homem singular. Considerado de excepção por todos os contemporâneos
– fora mesmo objecto de uma canonização episcopal logo um ano após a
sua morte –, deverá ser, para alguns deles, “colocado” no seio de uma tra-
dição narrativa crucial ao cristianismo medieval, as vidas de santos.
Precisemos. “Para alguns”, exactamente aqueles que estabeleciam a
ponte entre passado e futuro por via da escrita, base da continuidade da
Igreja e instrumento da sua coesão e superioridade: não fora o
Cristianismo fundado sobre um relato de uma vida, a de Cristo, muito
mais que sobre preceitos soltos? 6. Avancemos ainda um pouco: não se
trata de uma escrita qualquer, administrativa ou legal. Essa era domínio
de outros especialistas, menos versados em algo de fundamental, o pró-
prio poder religioso da escrita, a sua capacidade para transmitir expe-
riências sagradas anteriores, para unificar, conferir sentido, garantir
exemplaridade; ou seja, os que trabalhavam com o elo entre Deus e a
palavra, forma visível do mistério da Criação. Voltando ao campo especí-
fico da hagiografia: os que criavam os santos para a posteridade.
Não de um modo mecanicista, manipulador da crença dos “leigos”.
Afastemos, de novo, leituras simplistas. Estes biógrafos do sagrado
sabiam que a manifestação do Divino que fora a vida do santo só perdu-
raria depois da sua morte, como exemplo actuante, dinâmico e gerador de
sucessores, se estivesse também então penetrado pelo Divino. Se esti-
vesse inserida na corrente da Palavra, escrita e oral, que as Sagradas
Escrituras transmitiam. A tarefa principal destes «cronistas do sagrado»
era, pois, a de fazer a crónica das irrupções divinas na história humana 7.
Só compreenderemos a evocação narrativa do sagrado como um dos fun-
damentais processos constituintes do Cristianismo, se trabalharmos com
a premissa coetânea – geradora de um dos mais intensos debates da teo-
logia medieval – da ligação entre o real, a linguagem e a Essência 8. Deus
estava presente nas Escrituras, nas obras dos Padres da Igreja, nas Actas

6
Alain Boureau, L’événement sans fin. Récit et christianisme au Moyen Âge, p.
10. Paris, Les Belles Lettres, 1993.
7
Th. Heffernan, op. cit, pp. 95-97.
8
R. Howard Bloch, Étymologie et généalogie. Une anthropologie littéraire du
Moyen Age français, pp. 46-80, Paris, du Seuil, 1989.
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de Mártires e nas Vidas de Santos; a composição de um novo exemplo


fazia-se justapondo temas, frases e palavras deste corpus com os dados
biográficos do bem-aventurado em causa. Fazia-se ainda recorrendo a
exercícios de estilo (metáforas, hipérboles, anagnorisis 9, linguagem figu-
rativa), tidos como mais apropriados à reprodução (se quisermos à repre-
sentação) do sobrenatural. Os escritores cultuais que eram os hagiógrafos
obtinham assim textos entretecidos, de que não eram os autores, mas sim
os artífices. As suas mãos perpetuavam a manifestação do divino que fora
a vida concreta de um santo; os textos que teciam não eram literatura, mas
instrumentos religiosos, de devoção e culto, como o “moderno” mendi-
cante Gérard de Frachet irá dizer, no século XIII, equiparando literal-
mente as vidas de santos à Eucaristia: “um grande número de pessoas ali-
mentou-se espiritualmente com o exemplo dos santos, tanto do Antigo
como do Novo Testamento, como se fosse pão partilhado. Para seguir
cumprindo o mandato divino, é conveniente agora recolher as sobras para
que não se percam por esquecimento ou negligência” 10.
Confrontado com uma ausência terrível, a de um Deus que vivera
entre os homens e partira, o Cristianismo tenta uma evocação permanente
desse momento, procurando identificar os sinais dos tempos, e relacio-
nando-os com o momento fundador 11. Não só através dos santos: a repe-
tição litúrgica da Eucaristia, a construção de tempos cíclicos dominados
pela permanente recriação do ciclo de vida de Cristo, a delimitação do
espaço pelos símbolos religiosos, e em última análise a definição do uni-
verso civilizacional pela adopção da religião cristã, são outras tantas for-
mas de tentar viver com o sentimento constante de um desaparecimento
culpabilizador (que desde o início se tenta enjeitar, lançando-o para os
ombros dos Judeus), com uma angustiante espera, na sombra permanente
da «Outra Cidade».
A formalização das ideias de exílio e de passagem temporária neste
Mundo, bem como a da inversão do sentido da morte tornada verdadeiro

9
Th. Heffernan, op. cit., pp. 115-122, considera essencial às vitae o uso desta téc-
nica de construção literária herdada da retórica clássica, que consistia na inserção de refe-
rências de outros textos cujo reconhecimento pela audiência criava uma associação ime-
diata e amplificava os elementos caracterizados.
10
G. Frachet, cit. in J. Gallego Salvatores, “S. Fr. Gil de Santarém: história e
lenda”, pp. 34-35, in Colóquio comemorativo de S. Frei Gil de Santarém, pp. 25-45,
Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, 1991.
11
Alain Boureau, op. cit., p. 45.
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nascimento (dies natalis, em que se celebra a maioria dos santos), data


dos primeiros tempos do Cristianismo. A sua permanência ao longo de
todo o período cultural e religiosamente cristão é um dado de fundo que
não pode ser desprezado, ou lido seja como topos, seja como fragmento
ideológico. A inserção daquelas ideias no tema da fuga mundi também
não basta para dar conta da amplitude da sua difusão e da natureza da sua
percepção. Mais do que ideias, tornaram-se categorias de apreensão e
vivência da realidade, de que os escritos escatológicos participam sem
necessidade de explicações. Voltando aos nossos textos, poderíamos citar
como exemplar a Vita Sancti Martini Sauriensis, também nascida no
âmbito de Santa Cruz de Coimbra, pela forma como apresenta uma leitura
do mal subjacente à acção narrada: “(...) desde que, por mordedura vipe-
rina da serpente matreira saímos da nossa pátria, passámos a viver neste
mundo de exílio como cativos e desterrados, e nunca o mundo deixará de
nos infligir maus tratos de toda a ordem (...)” 12. É que o próprio tempo
em que se vivia fora inaugurado pela vinda de Cristo, numa ruptura com
o círculo da morte que os homens tinham porém desprezado: “veio para o
que era Seu, e os Seus não o acolheram”, acusa João, logo no início do
seu Evangelho (1, 11). De novo o pecado interrompera a reunião da
Criação ao Criador, grande sonho religioso, que na época medieval inte-
grava mesmo a forma definitiva do conhecimento e da apreensão do sen-
tido da vida. A anulação do mal que é a acção do santo – basta verificar a
constante presença da impotente figura demoníaca, em qualquer vita – é
também uma anulação do tempo, do hiato entre Deus e os homens.

A Vita beatissimi domni theotonii é um fascinante exemplo do traba-


lho de narrativa sagrada, do esforço em verbalizar uma santidade que se
conhecera de perto e se quer preservar. A existência de trabalhos de eru-
dição textual que identificam grande parte dos textos utilizados, bem
como vocabulários e formas de construção narrativa específicas, permi-
tem-nos tentar demonstrar a partir desta Vita algumas das características
e funções que temos vindo a referir, para as biografias sagradas 13.

12
Na tradução de Aires Nascimento à edição deste texto, em Hagiografia de Santa
Cruz de Coimbra, cit., p. 241.
13
J. Geraldes Freire, “Problemas literários…”, cit.; Mª Helena da Rocha Pereira
(ed.,...) Vida de S. Teotónio; E. Austin O’Malley, Tello and Theotonio, the twelfth-cen-
tury founders of the monastery of Santa Cruz de Coimbra, Washington, The Catholic
Univ. Press, 1954; sobretudo, Aires A. Nascimento, Hagiografia de Santa Cruz de
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O Autor refere várias vezes ter conhecido Teotónio, e mesmo ter


mantido com ele uma relação de dependência e amizade profundas.
Porque descreve então a vida do santo, as suas acções e as suas palavras,
recorrendo a uma teia de citações que vão desde as Sagradas Escrituras
aos textos litúrgicos, passando pelos escritos dos padres da Igreja?
Descartada a falta de conhecimento pessoal, poderemos falar de dificul-
dades de redacção, que o levariam a recorrer ao pastiche, e mesmo ao plá-
gio 14 (nomeadamente porque boa parte das citações são implícitas 15)? A
análise dos textos empregues e das circunstâncias da sua utilização leva-
nos a afastar estas duas interpretações, correntes na análise historiográfica
destas narrativas, até há bem pouco tempo 16.

Coimbra, cit., pp. 203-209, e Agostinho F. Frias, “Fontes de cultura portuguesa na Vita
Theotonii”, Actas do 2º Congresso Histórico de Guimarães, vol. 4, pp. 143-149,
Guimarães, Câmara Muncipal/ Universidade do Minho, 1997.
14
J. Geraldes Freires foi pioneiro na identificação de intertextualidades da Vita
Theotonii; no entanto, a sua análise esta perspassada da convicção de aquelas resultam de
“convencionalismos”, “estereótipos”, citações “sem aviso!” (“Problemas literários...”,
cit., p. 97).
15
O Autor remete por vezes para as suas fontes, como S. Gregório e S. Jerónimo
(p.e., pp. 146-147 e pp. 168-169), o Novo Testamento ou as Cartas dos Apóstolos, (ed. cit.,
pp. 160-161, pp.170-171). Porém, como se torna claro através do enorme trabalho de iden-
tificação textual patente nas notas críticas da ed. de Aires A. Nascimento, a larguíssima
maioria das citações é implícita.
16
Th. Heffernan, op. cit., pp. 38 ss, pp. 100-122; François Dolbeau, “Les hagio-
graphes au travail: collecte et traitement des documents écrits (IXe.-XIIe. siècles)”, pp.
55-56, in Martin Heinzelmann (ed.), Manuscrits hagiographiques et travail des hagio-
graphes, pp. 49-75, Sigmarigen, Jan Thorbecke Verlarg, 1992; Pierre-André Sigal, “Le
travail des hagiographes aux XIe. et XIIe. siècles: sources d’information et méthodes de
rédaction”, Francia, vol. 15 (1987), 149-182. A explicação deste procedimento em termos
de convenção do género literário, se bem que tenha uma primeira função de relevo – pre-
cisamente a identificação das convenções – não pode ficar por aí. Empobreceria a análise,
reduziria ao campo literário a função dos “empréstimos”, esquecendo a sua função teoló-
gica e cultual, ou seja, a construção de uma santidade intertextual que tem o ponto de par-
tida precisamente no relato da vida de Cristo que são os Evangelhos. Uma análise das apo-
rias a que levou a classificação da hagiografia entre os “géneros literários” pode
encontar-se em Marc Van Uytfanghe, “L’ hagiographie: un “genre” chrétien ou antique tar-
dif?”, Analecta Bollandiana, t.111 (1993), fasc. 1-2, 135-188, onde se propõe o uso alter-
nativo do conceito de “discurso hagiográfico” (M. de Certeau), com alterações; sobre
hagiografia e géneros literários cfr. ainda F. Banos Vallejo, La hagiografia como genero
literario en la Edad Media: tipologia de doce vidas individuales castellanas, Oviedo,
Dep. de Filologia Española de la Universidad de Oviedo, 1989; Felice Lifshitz, “Beyond
positivism and genre. «Hagiographical» texts and historical narrative”, Viator, XXV
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Uma importante parte dos extractos intertextuais provém das


Sagradas Escrituras (cerca de 48, no que é o segundo maior “grande repo-
sitório” singular) 17, como seria de prever, dada a dupla função que estas
revestiram, especialmente importante para a redacção da vida de um
santo: por um lado eram o próprio modelo de narrativa sagrada 18; por
outro, a fonte do alimento espiritual dos crentes. Numa proporção bastante
equilibrada, cerca de metade das citações pertencem ao Antigo Testamento,
metade ao Novo, com ligeira predominância do primeiro 19. Entre estas,
cabe aos Salmos a grande vantagem 20. Muitas das citações dos Salmos
são, significativamente, postas na boca de Teotónio, para sintetizar os
seus pensamentos, palavras e acções. Esta escolha não é de modo algum
ocasional: desde o Antigo Testamento que os Salmos são a palavra orante
por excelência, a linguagem da comunicação entre o Homem e Deus, a
expressão do pedido, da gratidão, do amor. Além disso, no período medie-
val, o saltério foi particularmente apreciado pela espiritualidade e técnica
orante do monaquismo. Os salmos foram ainda, tanto numa época como
noutra, a corrente de veiculação das ideias mais poéticas, místicas e mes-
siânicas. A inserção da palavra de Teotónio nesta tradição de palavra poé-
tica 21, de ampla ressonância emocional, teria sem dúvida um forte efeito
numa audiência que nela tinha alguns dos seus principais referentes. De
resto, a grande maioria das citações bíblicas é empregue no texto em
estreita relação com a personagem do santo, reproduzindo as suas palavras
ou caracterizando as suas acções 22. Narrando deste modo a santidade

(1994), 95-113 e M. de Certeau, “Hagiographie”, Encycolpaedia Universalis, vol. 8, 207-


-209, Paris, Enc. Universalis France, 1980; sobre a função teológica dos “empréstimos”,
é fundamental Th. Heffernan, op. cit., pp. 123-184: “A theology of behaviour: communio
sanctorum and the use of sources”.
17
Encontram-se 48 citações num total de 188 (dados a partir das identificações fei-
tas em Aires A. Nascimento, ed. cit., pp. 203-209).
18
Northop Frye, The Great Code. The Bible and literature, San Diego..,
Harvest/HJB, 1983; M. Van Uytfanghe, op. cit.; o artigo de Armando Pereira nesta revista
aborda o uso dos motivos bíblicos noutro tipo de produção narrativa de Santa Cruz de
Coimbra, a historiográfica.
19
Antigo Testamento: 27 citações; Novo Testamento: 21.
20
Com um total de 13 citações; os próximos livros mais citados estão longe
daquele número (“Evangelho segundo S. Lucas”, com 5, e “Livro da Sapiência”, com 4).
21
Paul Zumthor, La lettre et la voix. De la “littérature” médiévale, p. 83, Paris, du
Seuil, 1987.
22
Exceptuando alguns conjuntos destas citações que descrevem a tempestade e
Jerusalém, as restantes são, na sua grande maioria, empregues para construir a personagem
376 MARIA DE LURDES ROSA

fazia-se Teotónio entrar directamente no mundo das figuras bíblicas e


reproduzia-se em texto a sua presença junto delas, à face de Deus, no
momento da redacção da Vita.
Para além das análises baseadas em dados quantitativos, o trabalho de
identificação da última edição disponível torna possível observar usos
qualitativos das narrativas sagradas, em determinadas partes ou momentos
especiais 23. Assim, repare-se na concentração de textos bíblicos e evangé-
licos quando se conta a forma como Teotónio aconselhava paternalmente
os seus monges, ou quando descreve as visões que tem da Jerusalém
celeste 24; há além disso a importante particularidade de, nestes dois tre-
chos, aquelas citações serem aduzidas sob forma de discurso directo, do
próprio Teotónio. Poderiam aduzir-se vários outros exemplos, dos quais
mencionamos alguns. No relato dos anos finais de Teotónio, ele é compa-
rado a Job, usando-se o “Livro” homónimo e os salmos 25; por detrás da
caracterização da vida contemplativa que pode passar a levar, estão ecos
da parábola dos Talentos 26; por fim, de forma muito significativa, ao
situar o início da cena da morte “num sábado, o sétimo dia”, tenta-se uma
associação daquela com o descanso divino 27. Estão ainda presentes outros
paralelos, como o feito entre Teotónio e José do Egipto, ou entre uma das
visões dos últimos dias do santo, e a alegoria da “escada de Jacob” –
ambos já referidos por Mário Martins 28.
A inserção de Teotónio na grande narrativa cristã passa ainda pelas
significativas referências a S. Jerónimo e S. Gregório Magno, em pontos

de Teotónio (identificação: ed. cit., nts. 25, 27, 42, 52, 92, 117, 149, 179, 183, 192, 193,
195, 186), e para reproduzir orações que fez e exortações, conselhos ou admoestações que
dirigia aos seus (nts. 90; 128, 130, 132-133, 135, 137-143, 167, 168, 171-174, 178-179,
183, 192, 193, 195-198, 201-203, 217). Destas últimas, uma boa parte são colocadas na
sua boca em discurso directo (cfr. nt seguinte).
23
Como faz de resto Agostinho Frias para os textos da tradição cristã, no seu artigo
“Fontes de cultura portuguesa...”, cit. (cfr. infra).
24
Respectivamente, ed. cit., notas 137 a 143, e 195-198.
25
Ed. cit., nts. 193 e 195; nt. 79 da tradução, chamando a atenção para o uso da lin-
guagem bíblica.
26
Ed. cit., nt. 80 da tradução.
27
Ed. cit., nt. 84 da tradução.
28
Teotónio e José do Egipto: pp. 153-153 da ed. cit. (refer. por Mª Helena da Rocha
Pereira, Vida de S. Teotónio, nt. 12; J. Geraldes Freire, “Problemas literários...”, cit., pp.
97-98; Mário Martins, Alegorias..., cit., p. 29); escada de Jacob: pp. 198-199 da ed. cit.
(refer. por Mª Helena da Rocha Pereira, id., nt. 45; Mário Martins, id., p.30, com parale-
los em “A escada celestial, em medievo-português”, Brotéria, 72 (1961), pp. 402-415).
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 377

cruciais do texto. Exprimir a própria dor e o pranto através de uma cita-


ção implícita e literal de S. Jerónimo 29, não significa um sacrifício do
afecto às convenções literárias. Antes, colocava o Autor num plano seme-
lhante ao grande Padre da Igreja, equiparando os lamentos de ambos. Por
outro lado, referir Jerónimo a propósito da comunhão dos “vivos em
Deus”, e Gregório na própria definição de santidade, ambas as citações
em directa relação com Teotónio 30, era inseri-lo francamente no número
dos eleitos tal como eram definidos pela grande tradição cristã.
De resto, como ressalta, de forma evidente, da identificação de auto-
ridades feita por Agostinho Frias e Aires Nascimento, os textos de S.
Jerónimo são a grande fonte desta Vita 31. Em termos de número de refe-
rências (68 num total de 180); mas também em extensão da utilização, e
em localização dos empréstimos. Assim, o prólogo recorre abundante-
mente às cartas 60 e 127 de Jerónimo, que constituem um elogio fúnebre
e uma vida de personagem santa (Santa Marcela): nas palavras de
Agostinho Frias, “a similitude de situação e de sentimento determina esta
escolha, sancionada com a adjunção de 4 citações dos Moralia in Iob de
S. Gregório” 32. As obras do Padre da Igreja voltam a ser convocadas em
variadíssimos momentos da narrativa, destacando-se a descrição da ida e
estadia em Jerusalém, bem como a dos momentos finais de Teotónio, que

29
Na ed. de Aires A. Nascimento, pp.138-139; identificações em p. 203 e comen-
tário à citação implícita em p. 211, nt. 5 (seguindo neste particular J. Geraldes Freire,
“Problemas literários da «Vita Sancti Theotonii»”, 97). Para análise de importantes
intertextualidades na hagiografia com S. Jerónimo, cfr. Th. Heffernan, op. cit., p. 68 e
p. 133.
30
S. Jerónimo: ed. cit., pp. 168-169: “(...) sinto-me agradecido por merecermos ter
tido nos nossos dias um pai assim, ou antes, por o termos; com efeito, para Deus todos os
seres estão vivos, e, como diz S. Jerónimo, tudo o que é transferido para Deus fica a ser
contado no número de família”; S. Gregório: ed. cit., pp. 146-147 (depois de referir as
qualidade de Teotónio, o Autor refere: “Têm, na realidade, como diz S. Gregório, os san-
tos isto de específico, que para estarem sempre longe das coisas ilícitas cortam muitas
vezes mesmo com as coisas lícitas”).
31
Remetemos evidentemente para estes autores, nos quais se baseiam as linhas que
seguem. Aqui procuramos apenas reunir alguns dos exemplos e ideais por eles oferecidos,
de modo a ilustrar a noção de “biografia dagrada” como “texto entretecido”. A este res-
peito, cfr. as interessantes observações de Aires Nascimento, na sua introdução à edição
das fontes crúzias, em que refere a tensão, patente no texto, entre as recordações pessoais
do Autor e o uso muito vasto de autoridades (p. 11).
32
“Fontes da cultura portuguesa...”, p. 147; e ainda as observações de Aires do
Nascimento, ed. cit., nts. 39, 42 e 43 da tradução.
378 MARIA DE LURDES ROSA

se baseia quase exclusivamente em cartas de Jerónimo 33. O recurso a S.


Gregório, disperso por vários pontos do texto, apresenta uma significativa
concentração aquando da narração dos milagres em vida, “quase exclusi-
vamente suportada pelos Diálogos (5) e passos bíblicos (6)” 34. Este facto
mais uma vez aponta para um conhecimento quase “profissional” das
autoridades por parte do Autor do texto, uma vez que o Liber Dialogorum
de Gregório Magno foi, na época, uma obra fundamental tanto em termos
de elaboração de uma teologia dos milagres, como enquanto repertório
dos mesmos 35.
A especial atenção dada à liturgia pela vida monástica – mesmo
quando se preconiza totalmente despojada – explica o terceiro universo
de referências da Vita em análise. A par do uso disseminado de vocabulá-
rio litúrgico 36, podem apontar-se pelo menos três instâncias de intertex-
tualidade com peças litúrgicas de importante significado. Em primeiro
lugar, a apreciação da forma como Teotónio alcançara a sua ordenação
sacerdotal, que é directamente bebida num livro de costumes do mosteiro
de S. Rufo de Avinhão, o cenóbio onde o Santo Prior fora buscar as regras
monásticas, as formas de vida comunitária, as leituras sagradas 37. Em
segundo lugar, a descrição da morte do santo, onde se evoca a liturgia dos
defuntos 38, assimilando portanto a sua morte ao passamento de todos os

33
A. Frias, idem, p. 148.
34
Ibidem. A partir do elenco em Aires A. Nascimento, ed. cit, contámos 18 inter-
textualidades com S. Gregório.
35
S. Boesch Gajano, “Demoni e miracoli nei “Dialogi” di Gregorio Magno”, in
Hagiographies, cultures et sociétés, IVe.-XIIe. siècles. Actes du Colloque organisé à
Nanterre et à Paris (2-5 mai 1979), pp. 263-281, Paris, Études Augustiniennes, 1981; José
Mattoso, “A cultura monástica...”, cit., pp. 387-88; McCready, William, Signs of sanctity:
miracles in the thought of Gregory the Great, Toronto, Pontifical Institute of Medieval
Studies, 1989.
36
J. Geraldes Freire, “Problemas literários da «Vita Sancti Theotonii»”, cit., p. 101.
37
Aires A. Nascimento, ed. cit, pp. 144-145, com identif. do passo na nt. 38 (p.
204); identificação, sem este sentido, em A. O’Malley, Telo and Teotonio, pp. 21-22; sobre
a importância cultural de S.Rufo: António Cruz, Santa Cruz de Coimbra na cultura por-
tuguesa da Idade Média, pp. 151 ss, Porto, 1964; reavaliação da influência de S. Rufo nos
trabalhos recentes de Armando Martins, O mosteiro de Santa Cruz de Coimbra nos sécu-
los XII a XV, vol. I, pp. 26-30, Lisboa, diss. de doutoramento apres. à FL da UL, 1996
(polic.) e “O programa dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho no séc. XII: tradição
e novidade”, in: Actas do 2º Congresso Histórico de Guimarães, cit., vol. 4, pp. 128-141;
para a identificação e análise das intertextualidades com S. Rufo, é imprescindível A.
Frias, op. cit...
38
Aires A. Nascimento, ed. cit., pp. 198-199; identificações nas nts. 87 e 88 da
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 379

fiéis. Na economia deste tipo de narrativas, como aliás em todos os textos


cristãos sobre a morte, o momento de passagem ao Além é crucial; as pala-
vras que se colocam na boca dos santos são especialmente escolhidas, pelo
poder profético de que se revestem. O emprego frequente da exclamação
de Cristo reportada em Lucas, 23:46 (“Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito”), é um dos mais claros exemplos de amplificação textual entre
uma vasta rede de narrativas, a começar pelos próprios Evangelhos 39.
Em terceiro e último lugar, refiramos o uso da liturgia de Sexta-feira
Santa ao descrever a Cruz do Calvário, aquando da visita de Teotónio a
Jerusalém. Mais significativamente ainda, recorre-se a um passo do hino
do poeta Venâncio Fortunato (m. c. 600), Vexilla regis prodeunt 40, escrito
para a recepção do fragmento da Vera Cruz de Jerusalém que foi ofere-
cido por Justiniano II de Constantinopla. No contexto da espiritualidade
de Santa Cruz de Coimbra, a inserção deste hino não passaria desperce-
bida. Também se conheceriam, provavelmente, as implicações políticas
que o culto da realeza de Cristo, a ele associado, sempre revestiu em mos-
teiros que o promoveram 41. Como veremos no final deste capítulo, a exal-
tação da Cruz confere um dinamismo muito próprio à pastoral dos cóne-
gos regrantes, susceptível de os aproximar do rei guerreiro que foi Afonso
Henriques.
Dois últimos grandes repositórios de referenciais tornaram-se visí-
veis depois da recente edição da Vita Theotonii: os textos relativos à vida

tradução; também já em J. Geraldes Freire, “Problemas literários da Vita Sancti Theo-


tonii”, p. 99.
39
J. Heffernan, Sacred biography, pp. 74-87; sobre a cena da morte dos santos,
Michel Lauwers, “La mort et le corps des saints: la scène de la mort dans les vitae du haut
Moyen Âge”, Le Moyen Âge, t. XCIV, nº 1 (1981), pp. 21-50; Jq. Dalarun, “La mort des
saints fondateurs. De Martin à François”, in La Fonction des saints dans le monde occi-
dental (IIIe.-XIIIe. siècles), pp. 103-145, Rome, École Française de Rome, 1991; Joaquin
Yarza Luaces, “El santo despues de la muerte en la Baja Edad Media hispanica”, in La
idea y el sentimiento de la muerte en la historia y en el arte de la Edad Media (II), pp. 95-
-117, Santiago de Compostela, Universidad de Santiago de Compostela, 1992).
40
Trecho em Aires A. Nascimento, ed. cit., pp. 158-159; a identificação é proposta
por Mª H. da Rocha Pereira, Vida de S. Teotónio, cit., p. 44, nt. 13; J. Geraldes Freire,
“Problemas literários da Vita Sancti Theotonii”, p. 99, já tinha feito uma identificação gené-
rica com a liturgia de Sexta-feira Santa; Aires Nascimento, ed. cit., nt. crítica 80, propõe
uma segunda identificação (o “sermo CLII, de Passione Domini”, do Pseudo-Agostinho).
41
Tudo seguindo Dominique IOGNA-PRAT, “La croix, le moine et l’empereur:
dévotion à la croix et théologie politique à Cluny autour de l’an mil”, in Michel Sot
(coord.), Haut Moyen-Âge. Culture, éducation et société. Études offertes à Pierre Riché,
pp. 449-475, La Garenne-Colombes, Erasme/Publidix, 1990.
380 MARIA DE LURDES ROSA

e espiritualidade canonical, e as vidas de santos produzidas no âmbito do


mosteiro coimbrão 42. Devem ser referidos a par, uma vez que testemu-
nham da intenção do Autor em inserir a Vita Theotonii em duas tradições
específicas, ambas fundamentais para o programa crúzio 43. No que diz
respeito ao primeiro conjunto, ele é especialmente referido nos trechos
dizendo respeito ao percurso de Teotónio até à ordenação presbiterial –
fornecendo assim um claro modelo do bom sacerdote segundo a espiritua-
lidade canonical, a partir sobretudo de Hugo de S. Victor 44. Quanto às
“vitae” provenientes de Santa Cruz de Coimbra, há um recurso dissemi-
nado à Vita Martini Sauriensis 45, onde está igualmente presente a pro-
posta do “bom sacerdote” 46, bem como um uso mais pontual da Vita
Tellonis 47. Como salientam vários Autores, de Aires Nascimento a
Agostinho Frias, passando por José Mattoso, Leontina Ventura e
Armando Martins, este uso tem um profundo significado: uma actualiza-
ção de modelos ideais, o reforço do programa crúzio através da hagiogra-
fia dos seus personagens exemplares 48. Era de resto um processo comum
às biografias sagradas que, como já referimos, tinham o objectivo de inse-
rir cada biografado numa espécie de “comunhão dos santos” textual 49.
Sem podermos explorar em pormenor vários outros aspectos, salien-
temos algumas grandes linhas da construção da narrativa. Desde logo, o
uso de vocabulário específico (latim monástico, litúrgico e teológico,
com palavras apenas compreensíveis nestes contextos) 50. Depois, o
emprego muito frequente de alegorias, na linha do método quadripartido

42
Ambas com 15 intertextualidades.
43
Agostinho Frias, op. cit., p. 149; Aires A. Nascimento, ed. cit., nts. 17 e 18 da
tradução (outros usos comentados em nts. 26, 30 e 31 de idem).
44
Agostinho Frias, op. cit., p. 147: “(...) representa o modelo «moderno» teórico da
formação sacerdotal, desde o grau de «ostiário» (porteiro) ao de presbítero, é colhido no
De sacramentis de Hugo de S. Victor, obra elaborada a partir de Amalário e do Liber
Quare mas que atesta, documentalmente, neste contexto, a ligação cultural precoce dos
crúzios aos vitorinos e uma concepção da vita apostolica característica do ordo antiquus
proveniente de S. Rufo de Avinhão”.
45
Aires A. Nascimento, ed. cit., nts. 26, 41, 43, 47 e 144 do texto latino (quase
todas dizem respeito à caracterização das qualidades presbiteriais de Teotónio)
46
Cfr. infra, pp. ***.
47
Aires A. Nascimento, ed. cit., nts. 54 e 146 do texto latino.
48
Agostinho Frias, op. cit., p. 147; para os restantes, cfr. infra, pp. **.
49
Th. Heffernan, Sacred biography, cit., pp. 118-120.
50
J. Geraldes Freire, “Problemas literários da Vita Sancti Theotonii”, p. 99, p. 101
e p. 115.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 381

de exegese dos textos sagrados (literal, alegórico, moral e anagógico,


sendo precisamente a leitura alegórica aquela que favorecia a fé, enquanto
as outras, induziam respectivamente ao saber, à acção e à busca da per-
feição) 51. É ainda de relevar o recurso à “retórica”, mesmo que se subor-
dine a este saber de origem pagã a “majestade do mistério”, no episódio
em que se compara Teotónio a José do Egipto 52. Os conhecimentos de
cultura clássica do Autor não se ficam de resto por aí, pois se pode apon-
tar um passo da Eneida como subjacente à descrição da tempestade
aquando da peregrinação a Jerusalém 53, e o texto abre mesmo com uma
citação do “Filósofo” 54 (Platão, no Timeu, conhecido, ao que tudo indica,
a partir da Consolação da Filosofia, de Boécio) 55.

Entendida como até agora a caracterizámos, a tradição narrativa das


biografias sagradas, do Portugal do séc. XII até finais do século XV, ser-
vir-nos-à de linha condutora de exposição. Que modelos de presença e
vivência do sagrado transmitem, que santos suscitam elas no território
português – (porque um santo estabelece-se sempre em função da tradi-
ção de santidade do seu tempo, mesmo que em ruptura com ela)? Como
se entrecruzam com outras formas de vivência do sagrado, de transmissão
e percepção da presença divina? Na primeira parte deste texto, trataremos
em especial dos séculos XI e XII, período no qual podemos falar de uma
santidade essencialmente ligada ao meio rural, mas em que se sentem
também já os ventos da mudança. Com efeito, as narrativas que se devem
aos cónegos regrantes de Sto. Agostinho, embora escritas no âmbito do
grande mosteiro, que se basta a si próprio, estão indissoluvelmente liga-
das a duas cidades, Coimbra e Lisboa. O contexto urbano da sua produção

51
Henri de Lubac, Éxègese médiévale. Les quatre sens de l’Écriture, 1e.partie, pp.
23-29, Paris, Aubier, 1959; sobre algumas alegorias desta Vita, Mário Martins Alego-
rias..., cit., pp. 29-30.
52
Mª H. da Rocha Pereira, Vida de S. Teotónio, cit., p. 13.
53
I, 81-123: Mª H. da Rocha Pereira, Vida de S. Teotónio, cit., p. 1; Mário Martins,
Peregrinações e livros de milagres na nossa Idade Média, 2ª ed., p. 148, Lisboa, Brotéria,
1957.
54
Aires A. Nascimento, ed. cit., pp. 138-139.
55
Identificação em A. Frias, op. cit., p. 147; e em Aires A. Nascimento, ed. cit., nt.
1 do texto latino e 2 da tradução. J. Geraldes Freire “Problemas literários da Vita Sancti
Theotonii”, p. 98, não conseguira identificar o passo, e indica a possibilidade de se poder
tratar também de Séneca, Platão ou Cícero (p. 98); no mesmo sentido, Mª H. da Rocha
Pereira, Vida de S. Teotónio, cit., p. 44, nt. 1.
382 MARIA DE LURDES ROSA

não pode todavia ser lido anacronicamente, atribuindo-lhes um moder-


nismo: os textos cultuais dos Crúzios incorporam elementos bem “arcai-
cos”, ligados à aliança entre guerreiros e sacerdotes para o domínio do
Inimigo, seja ele encarnado pelas forças da Natureza, seja pelos adversá-
rios de guerra. A grande ruptura dar-se-á sem dúvida a partir do séc. XIII,
quando a religiosidade das ordens mendicantes faz florescer os exemplos
de piedade e devoção individualizadas, interiorizadas e acessíveis a todos,
mesmo aos grandes excluídos até então, os leigos que viviam no Século.
Desta grande viragem e seus desenvolvimentos iremos ocupar-nos na
segunda parte deste artigo.

A tradição visigótica e moçárabe espalhara pelo território peninsular


um enorme número de corpos santos, de mártires, de virgens, venerados
em pequenos santuários de carácter local, e dos quais se possuem em
geral escassos elementos ou tradições envoltas em lendas. É o caso dos
“Varões Apostólicos”, míticos companheiros de Santiago, que o relato da
conquista de Lisboa refere várias vezes: S. Donato de Ovar e S. Torcato
de Guimarães pertencem a esse grupo 56. Na mesma linha, estão mártires
dos Romanos como Veríssimo, Máximo e Júlia, de Lisboa (também eles
invocados na conquista da cidade) 57; ou São Manços, de Évora, e tantos

56
A conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um cruzado, ed. Aires A.
Nascimento, p. 114 (com observ. e bibliografia sobre o tema: p. 166), Lisboa, Vega, 2001
(sobre o texto cfr., para além da introdução da obra, a cargo de Mª João Branco, a tese
recente de João Paulo Mota, A tomada de Lisboa em textos dos séculos XII a XV, Lisboa,
diss. mestr. apres. à FL da UL, 2001); Miguel de Oliveira, Lenda e História. Estudos
hagiográficos, pp. 99-101, Lisboa, União Gráfica, 1964; Carmen García-Rodriguez, El
culto de los santos en la Espana visigotica, pp. 346-51, Madrid, C.S.I.C., 1966; José
Mattoso, “Santos portugueses de origem desconhecida”, pp. 32-34, in Piedade popular.
Sociabilidades – Representações – Espiritualidades, pp. 27-42, Lisboa, Terramar, 1999;
para a análise da construção de uma “santidade territorial” por meio destes textos, Mª de
Lurdes Rosa, “Hagiografia e santidade”, p. 335, in Dicionário de História Religiosa de
Portugal, vol. II, pp. 326-361.
57
A conquista de Lisboa, cit., p. 95; já tinham aliás sido invocados na descrição que
o Cruzado faz de Lisboa, referindo o seu santuário de “Campolide” (ed. cit., p. 79). Sobre
o culto medieval a estes mártires cfr. as pp. 164 e 167 desta obra; cfr, por todos, a recente
revisão de Cristina Sobral, na sua tese de doutoramento, Adições portuguesas no Flos
Sanctorum de 1513. Estudo e edição crítica, pp. 142-164, Lisboa, tese de dout. apres. à
FL da UL, 2000, dact. (agradecemos à Autora a oferta de um exempl. dactil. da sua tese,
a leitura da primitiva versão deste texto e todas as informações prestadas); aguarda-se a
publicação de um estudo sobre o mesmo culto, de Odília Gameiro, nas actas do colóquio
“Nova Lisboa medieval”, realizado na FCSH da UNL em Janeiro de 2002.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 383

outros, que os antiquários e hagiógrafos dos sécs. XVI e XVII 58 haveriam


de recuperar para o território português, sob o pretexto da antiga pertença
à província da Lusitânia (destaquem-se André de Resende 59, Gaspar Esta-
ço 60, e o grande organizador de todos os dados dispersos que foi Jorge Car-
doso 61). Sendo conhecidas e divulgadas as vidas de poucos, são venerados
sobretudo em virtude da fama taumatúrgica dos seus santuários, como é o
caso de S.Torcato – ou simplesmente «homem santo», em Guimarães 62.
A esta difusa rede de “santos locais”, pouco servidos pela escrita, irá
sobrepor-se, numa primeira fase, uma tradição muito importante no
noroeste peninsular, emblemática da evolução religiosa da mesma região.
Referimo-nos aos dois grandes «bispos-abades» 63 do território português

58
Mas não só: poderia ser uma actividade muito anterior. A hipótese extremamente
interessante de Cristina Sobral sobre o Autor da primitiva (e perdida) lenda de S. Iria de
Tomar propõe um eventual hagiógrafo do séc. XIII, talvez membro da Colegiada de Santa
Iria de Santarém, a recuperar tradições muito antigas, talvez ligadas a uma divindade
aquática, cujo culto se teria fundido com uma mártir histórica, eventualmente visigótica
(Adições portuguesas..., cit., pp. 289-295 e pp. 315-316).
59
Libri quatuor de antiquatibus lusitaniae, Évora, Martim de Burgos, 1593; sobre
as “operações” hagiográficas de André de Resende, Baudouin de Gaiffier, “Le Bréviaire
d’Évora de 1548 et l’hagiographie ibérique”, Analecta Bollandiana, 60 (1942), pp. 131-
-138, e Mª de Lurdes Rosa, “Hagiografia e santidade”, cit., p. 338.
60
Gaspar Estaço, Várias antiguidades de Portugal, Lisboa, Pedro Craesbeck, 1625.
61
Agiologio lusitano, dos sanctos, e varoens illustres em virtudes do reino de
Portugal, e suas conquistas, ts. I-III, Lisboa, Off. Craesbeekiana, 1652, 1657, 1666 (que
aliás tece extensas reflexões sobre as lógicas de pertença dos santos às comunidades, e
propõe os critérios de selecção dos santos do reino de Portugal e suas conquistas, t. I, pp.
7-41: Mª de Lurdes Rosa, “Hagiografia e santidade”, cit., pp. 339-340. Sobre este autor
surgiram entretanto os estudos essenciais de Mª de Lurdes Correia Fernandes, “História,
hagiografia e identidade. O Agiológio Lusitano de Jorge Cardoso e o seu contexto”, Via
Spiritus, 3 (1996), pp. 25-68; “A biblioteca perdida de de Jorge Cardoso († 1669) e a biblio-
teca do Agiológio Lusitano. Livros de gosto e de uso”, Via Spiritus, 4 (1997), pp. 105-
-132; A biblioteca de Jorge Cardoso († 1669), autor do «Agiológio Lusitano». Cultura,
erudição e sentimento religioso no Portugal moderno, Porto, FLUP, 2000; e de José
Mattoso, “Santos portugueses de origem desconhecida”, cit.
62
João de Barros, Geographia d’Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes, Porto,
Tip. Progresso, [1919], p. 72; Mário J. Barroca, Manuel L. Real, “As caixas-relicário de
S.Torcato, Guimarães (séculos X-XIII)”, pp. 135-166, Arqueologia medieval, 1 (1992),
135-168; A. Santos Silva, “S. Torcato, 1805: o povo, a religião e o poder. (Análise de um
motim de província)”, Estudos contemporâneos, nº 0 (1979), 15-82; id., Tempos cruzados:
um estudo interpretativo da cultura popular, Lisboa, polic., 1991. Sobre o papel das des-
crições geográficas na construção de uma “santidade territorial portuguesa”, Mª de Lurdes
Rosa, “Hagiografia e santidade”, cit., pp. 337-338.
63
Sobre este tipo de santidade, Michel Sot, “La fonction du couple saint évêque/
384 MARIA DE LURDES ROSA

dos séculos VI e VII, S. Martinho de Dume e S. Frutuoso de Braga. Do pri-


meiro, São Martinho de Dume (m. 579), as informações de Gregório de
Tours, Venâncio Fortunato e Isidoro de Sevilha, traçam a imagem do
bispo activo, culto, evangelizador, último expoente do grande eclesiástico
do mundo antigo 64. Sobre a sua santidade não existe um escrito próprio,
embora logo em 656 o 10º Concílio de Toledo o refira como santo 65, e no
séc. IX o mosteiro de Dume apareça como centro do seu culto 66. Manter-
-se-à sempre viva a memória da sua acção no arcebispado de Braga, que
o venera liturgicamente pelo menos desde o séc. XIII, e que promovia
através dele a imagem do activo apóstolo 67. Não por acaso, a festa fora
instituída por D. João Peculiar, arcebispo de Braga e grande diplomata de
Afonso Henriques 68, que lutou precisamente pela restauração dos direitos
da metrópole bracarense, herdados do período áureo de Martinho de
Dume. É enquanto príncipe da Igreja que ainda nos séculos XV e XVI,
S. Martinho é venerado pelos grandes senhores temporais, nas pessoas de
D. João II, D. Manuel e Infante D. Luís 69.
Sobre S. Frutuoso (n. 600-610), pelo contrário, subsiste uma inte-
ressante Vita, construída a partir de um rico conjunto de referentes tex-
tuais, quase todos pertencentes à grande tradição hagiográfica e martiro-
lógica. Destacam-se a Vita Martini, de Sulpício Severo, os Diálogos de
S. Gregório Magno, a Vita Pauli, de S. Jerónimo, no que toca à tradição

saint moine dans la mémoire de l’Église de Reims au Xe. siècle”, in La fonction des saints,
cit., pp. 225-240; e ainda as interessantes observações sobre a contaminação do “bispo
cristão” pelo “mágico pagão”, em Valerie Flint, The rise of magic in early medieval
Europe, pp. 386-392, Oxford, Clarendon Press, 1991
64
José Mattoso, História de Portugal, vol. 1, pp. 340-42, Lisboa, Círculo de
Leitores, 1993.
65
Miguel de Oliveira, op. cit., p. 67 e p. 76.
66
C. García Rodriguez, El culto de los santos..., cit., p. 345.
67
Miguel de Oliveira, op. cit., p. 70. Muito recentemente, Aires A. Nascimento
analisou liturgia sobre Martinho e outros textos, para os quais propôs a interesante identi-
dade de produção hagiográfica bracarense, a par da crúzia de Coimbra, em “Um traço sin-
gular em textos hagiográficos bracarenses medievais: a 1ª pessoa verbal”, Theologica, 2ª
s., vol XXXV, fasc. 2 (2000), pp. 589-98.
68
António Cruz, “D. Teotónio, prior de Santa Cruz. O primeiro cruzado e o pri-
meiro santo de Portugal”, p. 49, in Santa Cruz de Coimbra, cit., pp. 21-58; Avelino de J.
da Costa, “D. João Peculiar, co-fundador do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, bispo do
Porto e arcebispo de Braga”, pp. 72-76, in id., pp. 59-83.
69
Mário Martins, Peregrinações..., cit., p. 59. Sobre o culto litúrgico a S. Martinho
de Dume, em Braga, cfr. ainda Manuel Pedro Ferreira, “São Geraldo de Braga e o seu
culto litúrgico” (em vias de publicação) (agradecemos ao autor a consulta do manuscrito).
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 385

dos mais insígnes escritores do início da medievalidade e aos textos


modeladores das figuras dos grandes dirigentes eclesiásticos, abades e
bispos. No que diz respeito ao enraizamento peninsular, o autor da Vita
utiliza amplamente o Passionário Hispânico, num interessante paralelo de
subentendidos com uma das devoções explicitadas do santo, ou seja, as
peregrinações pelos santuários dos mártires da Espanha 70.
Quanto à figura assim construída, em S. Frutuoso ressalta-se sem
dúvida mais o monge do que o bispo, numa contrapartida clara a Martinho
de Dume. Não somente, porém, o abade fundador: se Frutuoso surge
como um incansável fundador de conventos, e autor do célebre “Pacto”
reorganizador da vida monástica norte-peninsular, na Vita ele parece-nos
ser mais o protótipo do monge que anseia pela solidão, que foge para o
deserto, e que tem uma relação privilegiada com a natureza. O emprego
da Vita Pauli, de S. Jerónimo, fonte não muito comum, prender-se-à por-
ventura com estas características. O peso da atracção pela vida isolada e
contemplativa é uma das linhas de força de um texto que salienta a opção
radical de um membro da mais alta nobreza, após a morte dos pais, tendo
ainda de vencer alguns obstáculos temporais de monta. De resto, com aju-
das que equivalem à tenacidade do santo, e que passam pelo envio, aos
seus inimigos, do fogo divino e da doença. Ainda que dentro de todo um
enquadramento eclesiástico correcto, sobressaem traços de um homem
auxiliado por poderes sobrenaturais, que no deserto é servido por aves
domesticadas, e que protege, dos caçadores, os animais em fuga. Ele próprio
é uma vez confundido por um arqueiro com uma apetecível presa de caça,
devido às vestes de pele de cabra que envergava, enquanto orava estático
entre penedos. As águas – sejam elas rios, torrentes ou chuvas – são outro
dos teatros privilegiados dos seus poderes, que lhe permitem sair sempre
imune dos perigos nelas sucedidos. Esta vida eremítica e esta relação
íntima com a natureza, são permanentemente contrariadas pelos outros
homens de Igreja e do mundo, que o procuram e o arrancam às suas soli-
dões, fazendo-o iniciar períodos de grande actividade em que claramente
os seus dons são canalizados em benéfico já não da natureza mas da socie-
dade. O texto, no seu conjunto, exprime assim uma curiosa tensão, entre
a desejada relação individual com Deus de um homem com poderes a que
poderíamos chamar “cósmicos” (mais numa linha de monaquismo oriental),

70
M. C. Diaz y Diaz (estudio y edición critica), La vida de San Frutuoso de Braga,
Braga, s.n., 1974; recentemente, sobre a vida, o culto e a hagiografia de S. Frutuoso, até ao
Flos Sanctorum de 1513, cfr. Cristina Sobral, Adições portuguesas..., cit., pp. 231-262).
386 MARIA DE LURDES ROSA

e as permanentes tentativas da sua integração na sociedade eclesiástica e


civil, que o puxa e prende 71.
Em termos de difusão do culto, esta Vita, escrita entre 670 e 680,
parece estar ligada à promoção do santuário de Montélios, onde se exu-
mou o corpo do santo 72. O célebre roubo das relíquias, pelo arcebispo de
Compostela, em 1102, teve algumas repercussões no culto de Frutuoso no
Norte de Portugal 73, mas a sua memória perpetuou-se fortemente a vários
níveis. Na liturgia, para começar: já o “Breviário do Soeiro” recolhe, na
lição do santo, importantes extractos da Vita que brevemente analisámos;
e daí para a frente, estará presente, sem interrupção, nos diferentes bre-
viários de Braga 74. Por outro lado, a memória do corpo do santo persiste
em tradições que no século XVI fazem com que um João de Barros ou um
Mestre André o refiram entre os corpos santos que sacralizam e demar-
cam o Entre Douro e Minho 75.

A difusão do monaquismo beneditino no território galego e portuca-


lense do século X andou de par com a afirmação política de algumas gran-
des famílias condais da mesma área. A unificação de costumes, e o esboço
de grandes abadias semelhantes às carolíngias e cluniacenses, caracteri-
zam a acção de S. Rosendo (m. 977), pertencente aquelas mesmas famí-
lias. Procedendo a uma renovação que soube respeitar e aceitar os antigos
costumes monásticos 76, S. Rosendo irá ficar como o paradigma do grande
monge, construtor do mosteiro ideal que foi Celanova, conselheiro de reis
e ele próprio chefe militar 77. Terá tido em Sta. Senhorinha (m. 982) a sua

71
C. Keyes, “Charisma: from social life to sacred biography”, Journal of the
American Academy of Religion, Thematic Studies XLVIII – 3-4, (1982), pp.1-22; Michael
A Williams, “The «Life of Antony» and the domestication of charismatic wisdom”, in
Charisma and sacred biography – Journal of The American Academy of Religion,
Thematic Studies XLVIII – 3-4, (1982), pp. 23-45; Ph. Walter (ed.), Saint Antoine entre
mythe et légende, Grenoble, ELLUG, 1996.
72
M.C. Diaz y Diaz, La vida de S. Frutuoso, cit., pp. 14-15.
73
José Otero, “Las reliquias de San Frutuoso y su culto en Compostela”, Bracara
Augusta, XXII, nº51-54 (63-66), 1968, pp. 103-108.
74
M.C. Diaz y Diaz, La vida de S. Frutuoso, cit., pp. 130-140; Manuel Pedro
Ferreira, “São Geraldo de Braga e o seu culto litúrgico”, cit.
75
João de Barros, op. cit.; Luciano Cordeiro, “Uma descrição de Entre Douro e Minho
por Mestre André”, Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, vol. 22, fasc. 3-4 (Set.-
-Dez. 1959), pp. 441-460; Mª de Lurdes Rosa, “Hagiografia e santidade”, cit., pp. 337-338.
76
José Mattoso, Religião e cultura, cit., pp. 52-53.
77
Sobre este tipo de santidade, Alessandro Barbero, Un santo in famiglia.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 387

contrapartida feminina, embora muito pouco se possa saber sobre a vida


real desta personagem. A memória de um e de outra chegam até nós em
duas vitae muito posteriores às suas existências efectivas 78. Não se tra-
tando de verificar a coincidência de todos os pormenores com as vidas
concretas, estes textos interessam-nos enquanto produto do encontro entre
a memória e os documentos contemporâneos dos santos (que de resto
citam, atribuindo-lhes um estatuto de autoridade), e as concepções e
intenções dos biógrafos. Não será porém a partir das hagiografias que se
pode caracterizar de modo claro o tipo de santidade que os dois persona-
gens encarnaram, na época. De Santa Senhorinha, em particular, pouco
resta além de testemunhos comprovadamente tardios, que a transformam
no protótipo de um tipo de santidade muito diverso daquele que seria o do
seu tempo. Quanto a Rosendo, é menos polémico imaginá-lo, em vida,
como um importante modelo para a alta nobreza condal, da qual era, de
resto, oriundo 79. Vejamos, portanto, como se entrecruzam os dois níveis,
em termos da sua biografia sagrada. Santa Senhorinha será abordada mais
tarde, como um modelo da santidade feminina beneditina, no qual tenta-

Vocazioni religiosa e resistenze sociale nell’agiografia latina medievale, pp. 59-72,


Turim, Rosenberg & Sellier, 1991; Claudio Leonardi, “Modelli agiografici nel secolo
VIII: de Beda a Ugeburga”, in La fonction des saints, cit., pp. 507-515; Roman
Michalowski, “Il culto dei santi fundatori nei monasteri tedeschi dei secoli XI e XII.
Proposte di ricerca”, in S. Boesch Gajano, Lucia Sebastiani, Culto dei santi, istituzioni e
classi sociali in etá preindustriale, pp. 105-140, L’Aquila/Roma, Japadre, 1984.
78
Já José Mattoso observara que a hagiografia de Santa Senhorinha, “mais do que
um documento sobre a sua vida, deve ser empregada para estudar a espiritualidade e os
costumes das monjas beneditinas no fim do século XII, ou princípios do seguinte” (“A cul-
tura monástica em Portugal (875-1200)”, p. 375, in Religião e cultura, cit., pp. 355-393).
Afirmava então que a Vita estava por estudar. Esta tarefa foi cumprida, de modo exemplar,
por Odília Gameiro, em A construção das memórias nobiliárquicas medievais. O passado
da linhagem dos senhores de Sousa, Lisboa, Sociedade Histórica da Independência de
Portugal, 2000 (agradecemos a oferta de um exemplar polic. da tese à Autora, cuja leitura
nos permitiu corrigir a fundo as nossas ideias iniciais sobre este texto). Na linha de José
Mattoso, Odília Gameiro observa que já a primitiva hagiografia de Santa Senhorinha (per-
dida) reflectiria muito mais as condições do seu tempo de redacção (último quinquénio do
séc. XII/ inícios do séc. XIII), do que as realidades na primeira metade do séc. X, época
que seria a da vida real da santa (p. 95).
79
Para uma análise do contexto religioso e simbólico da acção de Rosendo, cfr. Mª
de Lurdes Rosa, “Dos dons aos santos ao esplendor sagrado: a religiosidade da Condessa
Mumadona”, in História Religiosa de Portugal, vol. I, dir. Ana Maria Rodrigues, Ana Mª
Jorge, pp. 423-432, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000.
388 MARIA DE LURDES ROSA

remos porém respigar os indícios de uma santidade anterior, porventura


consentânea com a proposta às grandes senhoras do século X.

Os textos hagiográficos sobre S. Rosendo foram compostos no mos-


teiro de Celanova entre meados ou último quartel do séc. XII e 1229 80,
visando a promoção do culto do santo no contexto próximo da sua cano-
nização, bem como a afirmação do mosteiro 81. Reflectem, porém, con-
cepções indubitavelmente arcaicas em termos de santidade monástica, só
explicáveis em função de uma filiação num modelo já consolidado da
figura do santo. São, em todo o caso, extremamente ricos e completos, em
termos de construção de biografia cultual. S. Rosendo é o filho tardio, e
de nascimento milagrosamente anunciado, de uma família da mais alta
estirpe, que segue uma carreira de prestígio eclesiático e civil (a primeira
começa com a sua eleição como bispo de Dume aos 18 anos, a segunda
com o desempenho de tarefas de defesa e organização dos territórios da
Galiza e Portucale) 82. No auge desta, o apelo monástico leva-o à funda-
ção de Celanova, onde viverá a partir de então.
De S. Rosendo não existe uma grande tradição de milagres em vida,
apenas se salienta a sua capacidade visionária. Esta sobriedade é porém
completamente ultrapassada pela imagem de santo todo-poderoso, vinga-
dor e mesmo violento que transmitem os seus livros de milagres, com-
plemento das Vitae. Os dons e acções reais do santo – capacidade de
defesa, organização, delimitação clara dos direitos do seu mosteiro – são
integrados num ciclo de acontecimentos milagrosos, que relançam Cela-
nova como um grande centro de poder monástico e dons taumatúrgicos.

80
J. Mattoso, Religião e cultura..., pp. 454-65, e pp. 471-72; idem, “Le Portugal de
950 à 1550”, pp. 87-88, in Histoire internationale de la littérature hagiographique latine
et vernaculaire en Occidente des origines à 1550, dir. Guy Philippart, vol. II, pp. 83-102,
Brepols, Turnhout, 1996; M. C. Diaz y Diaz (et al.), Ordono de Celanova: vida y milagros
de San Rosendo, La Coruna, Fundación Pedro Barrié de la Maza, 1990.
81
M. C. Diaz y Diaz, “El testamento monástico de San Rosendo”, Historia. Insti-
tuciones. Documentos, 16 (1989), pp. 47-102; id., Ordoño de Celanova, cit., pp. 52-53;
id., “Vita Rudesindi”, in Giulia Lanciani, Giuseppe Tavani (org.e coord.), Dicionário da
literatura medieval galega e portuguesa, p. 682, Lisboa, Caminho, 1993; id., “Sobre la
vida y milagros de S. Rosendo”, in Álvaro de Brito Moreira (coord.), Actas do 1º Ciclo de
Conferências “S. Rosendo e o séc. X” – 1992, pp. 35-44, Sto. Tirso, Câmara Municipal de
Sto. Tirso, 1994; José Geraldes Freire, “Os quatro livros de milagres da Vita Sancti
Rudesindi”, in idem, pp. 167-177.
82
Mª Helena da Rocha Pereira, Vida e milagres de S. Rosendo, cit., pp. 15-23.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 389

O próprio Afonso Henriques e os seus magnates serão alvo de uma das


típicas vinganças do santo, cujo relato mistura elementos heterogéneos –
entre os quais um esquadrão aéreo, rutilante e belo, presidido por
S. Rosendo, que faz evocar irresistivelmente a “Santa Companha” 83 – e
procura representar, quanto a nós, um período de enorme tensão entre as
forças celestes e as terrestres, que acabam derrotadas por virtude do inter-
cessor Rosendo 84.
Uma série muito vasta de milagres condensa uma relação retributiva
com um divino quotidianamente áspero, poderoso e exigente. Os monges
batem no túmulo de S. Rosendo e chamam-lhe impostor quando ele não
os liberta logo da opressão do magnate Pedro Gonçalves; este, pouco
depois, “quando estava a repousar seu leito, rebenta pelo meio com
grande estrondo, e imediatamente morreu como herege” 85. Uma mulher
cega que fora curada e não cumprira a promessa ao santo, perde de novo
a visão e o seu filho é atormentado pelo demónio, até que ela presta
homenagem a Rosendo. Uma das freiras do mosteiro de Tomino, para
obter o fim dos tormentos de um militar aí albergado, dirige-se sem
rodeios ao santo: “Bem-aventurado Rosendo, se não vos dignardes socor-
rer-nos e libertar aquele desgraçado homem, desnudarei completamente o
vosso altar” 86. Quando o Santo demora a socorrê-los dos ataques de
Afonso Henriques, as gentes da região de Limia comentam depreciativa-
mente a sua conduta 87. Mas S. Rosendo, por seu lado, dirige-se aos seus

83
A “santa companha” é o cortejo dos mortos, uma crença de amplas ramificações.
Sobre ela ver, para início de estudo, em Portugal: F. Adolfo Coelho, “De algumas tradi-
ções de Hespanha e Portugal. A propósito de Estantigua”, Revue Hispanique, 7 (1909),
390-453; tratámos da incidência do tema no Portugal medieval em “Salem em Guimarães.
Almas penadas e entreabertos” (no prelo); na Península Ibérica: A. Redondo, “La «Mesnie
Hellequin» et «Estantigua»: les traditions de la chasse sauvage et leur résurgence dans le
Don Quichote”, in Traditions populaires et diffusion de la culture en Espagne (XVIe.-XVII
siècles), pp. 1-27, Bordéus, Public. de l’Institut d’Études Ibériques, 1982 e François
Delpech, “Le chevalier-fantôme et le maure réconnaissant. Remarques sur la légende de
Muño Sancho de Finojosa”, in Philippe Walter (ed.), Le mythe de la chasse sauvage dans
l’Europe médiévale, pp. 73-123, Paris, Honoré Champion, 1997.
84
Mª Helena da Rocha Pereira, Vida e milagres de S. Rosendo, cit., pp. 73-79.Sobre
este milagre e os outros em que Afonso Henriques é castigado, existe numerosa biblio-
grafia; cfr. idem, p.10.
85
Mª Helena da Rocha Pereira, Vida e milagres de S. Rosendo, cit., p. 57.
86
Idem, p. 57 e p. 103.
87
Esta prática da coerção dos santos foi estudada por Patrick Geary, “La coercition
des saints dans la pratique religieuse médiévale”, in P. Boglioni (ed.), La culture populaire
390 MARIA DE LURDES ROSA

fiéis no mesmo tom: “Levanta-te, homem, levanta-te, nada temas, avança


tranquilo. Mas cumpre com as tuas acções o voto que fizeste”, responde
a um preso que lhe suplicava a liberdade 88.

Entravam entretanto em competição com estes, outros tipos de santi-


dade, acompanhando o evoluir das próprias tendências religiosas. É com-
pletamente diferente a figura episcopal que nos transmite a Vita Geraldi,
redigida entre 1128 e 1146 89. Escrita algum tempo depois da morte de
Geraldo de Moissac (1108), por um seu discípulo e conterrâneo,
Bernardo, é ao mesmo tempo um testemunho emocionado, uma biografia
sagrada construída segundo todos os cânones, e um libelo da acção pro-
gramática do notável e activo grupo de homens que foram os monges de
Cluny companheiros de Bernardo de Toledo, promotores da reforma gre-
goriana no ocidente da Península.
Desde 1073 que Cluny marcava etapas na expansão peninsular, ao
receber o primeiro de uma série de mosteiros em Leão. Pouco posterior-
mente, a sagração como arcebispo de Toledo do cluniacense Bernardo irá
permitir a solidificação deste processo, e terá em Portugal rápidas conse-
quências. Em 1089 aquele prelado preside à sagração da nova catedral de
Braga; em 1099 está à frente desta o discípulo Gerardo, que é coadjuvado
pelo arcediago Bernardo, seu futuro biógrafo 90. Três anos depois, suce-
derá ao também beneditino Crescónio de Tui, bispo de Coimbra, o ter-
ceiro discípulo trazido de França, Maurício Burdino. Em termos de estru-
turas monásticas, alguns anos mais tarde (1110) a doação do mosteiro de
S. Pedro de Rates a La Charité-sur-Loire pelo conde D. Henrique irá
constituir uma significativa etapa da influência cluniacense em Portugal.

au Moyen Âge, pp. 145-161, Québec, L’Aurore, 1979 e, recentemente, por Éric Palazzo,
Liturgie et société, pp. 184-186, Paris, Aubier, 2000; entre nós por José Mattoso, “Liturgia
monástica e religiosidade popular na Idade Média”, Estudos contemporâneos, 6 (1984),
pp. 11-20. M. C. Diaz y Diaz et al., Ordoño de Celanova, cit., p. 189.
88
Mª Helena da Rocha Pereira, Vida y milagres, cit., p. 63. Sobre o contexto polí-
tico dos milagres envolvendo Afonso Henriques, Odília Gameiro, op. cit., pp. 104-105.
89
Estas datas alteram substancialmente a datação tradicional, que apontava os anos
de 1108 a 1112, e são proposta de Cristina Sobral, no texto edit. nesta revista, p. ***(cfr.
ainda, sobre a hagiografia e o culto ao santo, desta Autora, Adições portuguesas.., cit., pp.
192-230). Será fundamental em toda a análise desta Vita o trabalho, há muito aguardado,
de Aires Nascimento (cfr. algumas indicações em “Um traço singular…”, cit.).
90
Síntese biográfica em Manuel Pedro Ferreira, “S. Geraldo de Braga...”, cit., a
partir dos dados revistos por Avelino Jesus da Costa e José Mattoso.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 391

Desde fins do século XI, espalham-se no território portucalense as exi-


gências da reforma eclesiástica e litúrgica de Gregório VII, e inicia-se
uma profunda mudança nas estruturas da Igreja, que se irá prolongar por
todo o século seguinte. No que diz respeito aos mosteiros, desaparecem
progressivamente os pequenos agregados de três ou quatro membros,
muito ligadas às suas comunidades rurais. Transformados em igrejas
seculares, serão colocados na dependência de mosteiros maiores, onde
doravante se torna mais próprio exercer a vocação monástica. Senhores
de ricos domínios fundiários, estes mosteiros dotam-se de uma organiza-
ção senhorial, que é acompanhada, no campo secular, pela senhorializa-
ção dos bispos 91. É neste contexto de rápidas modificações que se coloca
a Vita Geraldi. 92
O texto, com um bom enredo dramático, apresenta de entrada o
Geraldo que logo se compreende ter sido trazido por Bernardo de Toledo
para a Península, dada a breve mas brilhante carreira que desempenhara
no mosteiro de Moissac. De facto, não só por condição de vida (fora em
criança oferecido, pelos seus pais, à ordem de Cluny) mas também por
natureza, encarnava a figura do verdadeiro monge, de tal modo tinha as
capacidades necessárias. O texto põe o leitor perante um “profissional” da
vida monástica, como era entendida em Cluny, nos seus diferentes aspec-
tos: oração, estudo, liturgia e música, por um lado; organização dos mos-
teiros e ensino dos monges, por outro 93.
O mesmo profissionalismo e vigor acompanhará Geraldo no desem-
penho do pontificado bracarense, cujo relato ocupa lugar central na Vita
de Bernardo. Dir-se-ia que Cluny o prepara para exercer a prelatura dioce-
sana como espelho da organização da Ordem: é reformador dos clérigos e

91
J. Mattoso, Religião e cultura, cit., pp. 101-121 e pp. 197-223; id., História de
Portugal, cit., vol. II, 183-84).
92
José Mattoso, “Le Portugal de 950 à 1550”, cit., p. 85. Não nos sendo possível
desenvolver este assunto no âmbito do presente trabalho, anotamos aqui que a Vita
Geraldi deve também ser estudada no conjunto da restante produção hagiográfica clunia-
cence, fora de Portugal. A este respeito é fundamental Dominique Iogna-Prat, “Panorama
de l’hagiographie abbatiale clunisienne (v.940-v.1140)”, in Martin Heinzelmann (ed.),
Manuscrits hagiographiques et travail des hagiographes, pp. 77-118, Sigmarigen, Jan
Thorbecke Verlarg, 1992.
93
José Cardoso (trad., nts. e posfácio), Vida de S. Geraldo, pp. 5-7, Braga, Livr.
Cruz, 1959; José Mattoso “Géraud de Braga, saint”, in Dictionaire d’Histoire et
Géographie Écclésiastique, t. XX, Paris, Letouzey et Ané, 1984; e id., “Le Portugal de
950 à 1550”, cit., pp. 83-85.
392 MARIA DE LURDES ROSA

do povo 94, o cuidadoso restaurador da riqueza ornamental do culto 95,


sóbrio prelado que não participa na vida mundana 96, severo administra-
dor que se desloca a Roma para obter a restituição da dignidade arqui-
episcopal de Braga das mãos do seu antigo confrade, Pascoal II 97. Não é
por acaso que tal energia e reformismo levanta oposições, referidos pelo
texto, com a lógica que lhe é própria, sob a forma de acções ímpias e
pecaminosas. Algumas delas são fruto de claras diferenças nas concepções
de igreja e sociedade, com as quais não se compadece o zeloso Geraldo: o
incesto de que acusa os magnates portucalenses reflecte as novas ideias
da igreja sobre os impedimentos matrimoniais 98; a perseguição às igrejas
apresentadas por leigos, a resistência a ceder o direito de patronato sobre
igrejas de fundação familiar 99.
A morte de Geraldo é uma derradeira lição, a última fase de um pro-
grama cumprido. Irá falecer em plena missão pastoral, tentando difundir
a prática sacramental nos recantos mais longínquos do arcebispado. Abre-
-se uma época de prodígios, que acompanham a vinda do seu corpo a
Braga (passagem do Tâmega revolto, salvação de duas crianças de morte
por afogamento) 100 e a chegada à cidade. Entre a morte de Geraldo e a
redacção da Vita medeiam duas a quatro décadas, segundo as hipóteses de
datação mais recentes, acima citadas. No entanto, este período relativa-
mente curto foi suficiente para se dar um rápido e intenso desenvolvi-
mento do culto. Bernardo dá as circunstâncias pormenorizadas de dezas-
seis milagres junto ao sepulcro, e insiste na existência de muitos mais,
referindo a oferta de numerosos ex-votos 101. O texto encerra-se com o
tema da territorialização da santidade de Geraldo: todos os que vivem no
arcebispado de Braga podem dele socorrer-se, pois serão atendidos, ainda
que estejam longe, ou nas águas do mar. Depois de morto, S. Geraldo con-
tinua a ser o pastor tutelar do seu arcebispado.
Os arcebispos saberão orientar rapidamente a difusão do culto: em
1182, S. Geraldo é referido em actos públicos como o padroeiro da diocese,
e o calendário do Missal de Mateus (1150-1175) já refere a sua festa 102.

94
José Cardoso, ed. cit., pp. 9-10.
95
Idem, p. 10.
96
Idem, p. 10, p.14.
97
Idem, pp. 10-12.
98
José Mattoso, Religião e cultura, cit., p. 206; José Cardoso, ed. cit., pp. 15-20.
99
José Cardoso, idem, pp. 21-22, pp. 27-28; José Mattoso, idem, p. 206.
100
José Cardoso, idem, pp. 33-34.
101
José Cardoso, idem, pp. 33-43.
102
Manuel Pedro Ferreira, op. cit.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 393

Não por acaso, a devoção terá um grande impulsor na pessoa de D.


Fernando da Guerra, o enérgico prelado quatrocentista, que via no seu
santo antecessor um exemplo a imitar e a impor. Em torno à Sé e no Paço
episcopal, recria e reconstrói significativos lugares de memória e culto.
Em primeiro lugar, reforma a capela de S. Nicolau, de quem Geraldo fora
devoto e onde estava enterrado, e manda aí sepultar-se; coloca nela uns
grilhões de ferro, tidos como instrumentos de um dos milagres atribuídos
ao bispo, e facilita o seu toque pelos romeiros, em especial mulheres grá-
vidas, a quem alegadamente aliviam os partos; por fim, consagra no tes-
tamento que as alfaias e vestes litúrgicas que deixa ao tesouro da Sé pos-
sam ser emprestadas para a capela. Depois, no próprio paço, manda fazer
uma sala dedicada ao Santo, cujas paredes e tecto são decoradas com
cenas da sua vida 103. Os estudos recentes de Manuel Pedro Ferreira per-
mitem verificar ainda que D. Fernando da Guerra operou modificações
importantes na liturgia do seu santo predecessor, solenizando-a ao mais
alto nível. 104

A par da Vita Geraldi, surge-nos uma outra Vita de probabilíssima


origem beneditina, agora relativa a uma personagem feminina. Referimo-
-nos à Vita Sanctae Senorinae, que o trabalho recente de Odília Gameiro
permite contextualizar de modo claro. Resumamos as conclusões desta
Autora. Os textos existentes, tardios, remontam a um manuscrito perdido,
que dados de crítica interna permitem situar entre o último quinquénio do
século XII/ inícios do século XIII 105. O contexto de produção desse ori-
ginal tem a ver com várias realidades. Em primeiro lugar, a rivalidade
política com Leão, que promovia desde pouco antes o culto de S.
Rosendo, com os seus vexatórios milagres a D. Afonso Henriques. Em
segundo lugar, na corte régia que nisto estaria empenhada, era mordomo-
mor um suposto descendente da linhagem da Santa, o conde Mendo
Gonçalves de Sousa. A redacção da Vita estaria assim também ligada aos

103
Rodrigo da Cunha, História Ecclesiastica dos arcebispos de Braga, e dos santos,
e varoens ilustres, que florescerão neste Arcebispado, 2ª p., p. 235, Braga, Manuel
Manescal, 1635; Jorge Cardoso, op. cit., t. II, p. 392; José Marques, A arquidiocese de
Braga no século XV, pp. 146-147, Lisboa, INCM, 1988; Mário Martins, Peregrinações...,
cit., p. 39, pp. 66-70.
104
Manuel Pedro Ferreira, op. cit.
105
Odília Gameiro, A construção das memórias..., cit.; para os três testemunhos
existentes do texto, suas edições, e um quarto que se conhece a partir da referência a Jorge
Cardoso, cfr. idem, pp. 85-94. Já José Mattoso aventara esta ideia, a partir de traços da
espiritualidade proposta nesta vita (“A cultura monástica..”, cit., p. 375, nt. 42).
394 MARIA DE LURDES ROSA

Sousas, poderosos senhores da região de Basto, e que são exaltados num


texto contemporâneo de outra natureza, a chamada «Gesta de Afonso
Henriques». A redacção teria estado a cargo de um monge beneditino,
provavelmente do mosteiro de Refóios de Basto, o que explica a sua eru-
dição e o modelo de santidade proposto (de resto consentâneo com as
opções religiosas das senhoras do estrato nobiliárquico agora associado
ao poder) 106.
Quanto à relação com uma personagem real, Odília Gameiro com-
prova abundantemente as ideias de José Mattoso, de que o texto se dis-
tancia muito dela, propondo um modelo de santidade baseado em valores
muito diversos dos finais do século X 107; avança ainda com a sugestão de
que, com o patrocínio dos Sousas, se teria redigido “(...) uma hagiografia
onde, partindo da existência de um culto rural ligado a histórias e lem-
branças de milagres transmitidos oralmente de geração em geração, se
redefinisse e sublinhasse a primitiva condição fidalga da Santa de Basto,
competindo aos redactores da sua vida torná-la numa modelar abadessa
beneditina que pudesse servir de referência e exemplo às comunidades
monásticas femininas que então emergiam e se afirmavam” 108.
O trabalho que temos vindo a seguir, muito cuidado, dispensa-nos de
maior referência à “santa beneditina” que o texto propõe como modelo.
Apontamos portanto apenas algumas questões que nos ficaram, da sua lei-
tura. A primeira prende-se com uma das perspectivas que mais nos inte-
ressa, neste trabalho: a das referências intertextuais. A Vita Sanctae
Senorinae, sem se igualar ao esplendor da produção de Santa Cruz, é tam-
bém um texto denso, onde ressoam trechos e citações de vária proveniên-
cia, implícitos ou explícitos. Um trabalho de exaustiva identificação des-
tes elementos traria decerto novidades sobre algumas questões por
resolver. Aqui limitamo-nos a reunir algumas ideias. Uma boa parte dos
trechos “entretecidos” é constituída por extractos doutrinais, que servem
a construção da novel santidade: é o caso dos discursos de Godinha sobre
a virgindade, sobre a Regra de S. Bento, sobre o «corpo, o diabo e a
carne» 109. Abundam também as fontes hagiográficas, que estão por detrás

106
Odília Gameiro, op. cit., pp. 104-105; pp. 111-112; pp. 107 e 109.
107
Idem, pp. 110-111, e toda a sua análise da Vita, 112-117.
108
Idem, p. 133.
109
“Vida da bem-aventurada Virgem Santa Senhorinha”, pp. 115-116 e 125, ed. e tra-
dução de Mª Helena da Rocha Pereira, “Apêndice” a Vida de S. Rosendo, ed. cit., pp. 111-
-147; José Mattoso, “A cultura monástica...”, cit., p. 375; Odília Gameiro, op. cit., p. 110.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 395

do episódio do pretendente à mão da santa 110, e de vários milagres 111.


Como seria inevitável, na linha do que acima expusemos sobre o emprego
e a função dos textos bíblico e evangélico nas “biografias sagradas”,
abundam as citações deles provenientes. Tal como na Vita Theotonii, há
um privilegiar do recurso à palavra poética do Salmos 112.
Um destes milagres, em particular, leva-nos ao outro grupo de ques-
tões. Referimo-nos ao «milagre da seca», em que a Santa acode as preces
dos camponeses, impedindo que as colheitas desapareçam sobre a chuva
que caía. É apresentado em contraste com um milagre de Santa
Escolástica, figura por demais solene aos beneditinos; ora, a luz a que tal
é feito não nos descansa totalmente sobre uma total “refundição” de tra-
dições anteriores. Com efeito, Santa Senhorinha é posta a par da irmã de
S. Bento, colocando-se mesmo a questão sobre qual delas seria superior,
em virtude daquilo que Deus lhes concedera (em vez da subalternização
da «abadessa» à «irmã do fundador», que seria de esperar). O Autor, que
toma uma posição de salomónica igualdade, remete para cada leitor a
decisão final... 113
Entremos portanto nas restantes perplexidades, que se prendem com
o modelo de santidade proposto. Como vimos, os estudos de Odília Ga-
meiro apontam para a existência de uma figura protagonista de um culto
rural anterior, familiar e local. Poderemos alguma vez chegar a caracteri-
zar a figura que teria sido alvo desse culto rural? O caminho reside even-
tualmente na exploração de algumas pequenas incoerências, no que é de
facto um quase definitivo modelo de santidade feminina beneditina, do

110
Recorrente em várias hagiografias de “virgens”, como seja Santa Iria (Cristina
Sobral, “Santa Iria, virgem e trágica”, p. 143, Colóquio. Letras, nº 142 (Outº-Dezº 1996),
pp. 137-146 (embora na versão portuguesa do Flos Sanctorum de 1513, que a Autora aqui
analisa, o tratamento do pretendente revista outras formas). Ver também uma importante
contribuição em Jane Tibbets Schulenberg, Forgetfull of their sex. Fenale sanctity and
society, c. 500-1100, pp. 127-176, Chicago, Chicago U.P., 1998.
111
Identificações em José Mattoso, “A cultura monástica...”, cit., pp. 387-388. A uti-
lização da Vita Martini e do Liber Dialogorum faz do redactor da Vita um bom conhece-
dor da literatura hagiográfica típica (Jacques Fontaine, “Alle fonti dell’agiografia euro-
pea: storia e leggenda nella vita di san Martino di Tours”, Rivista di Storia e Letteratura
Religiosa, ano II, nº 2 (1966); e S. Boesch Gajano, “La tipologia dei miracoli nell’agio-
grafia altomedievale. Qualche riflessione”, 304-305, in Schede medievali, nº 5, Jul.-Dez.
1983, 303-312; sobre S. Gregório, neste contexto, cfr. bib. cit. nt ***.
112
Identificações em Mª Helena da Rocha Pereira, ed. cit. (porventura de uma
pequena parte).
113
Vita Sanctae Senorinae, ed. cit., p. 135.
396 MARIA DE LURDES ROSA

final do século XII. Elas são de molde a proporcionar interrogações sobre


a sua manutenção na hagiografia, se esta tivesse sido inteiramente re-
inventada pelo redactor beneditino, de tal modo se mostram contrárias aos
modelos que a Ordem beneditina propagava, para as suas monjas. Já
foram apontados por José Mattoso, que os classificou de “arcaísmo”,
sugerindo por outro lado que se poderiam explicar pela circulação recente
dos modelos de religiosidade implícitos 114. Trata-se, em primeiro lugar,
da referência às três igrejas que o pai de Senhorinha lhe dá, quando ela
ingressa definitivamente no mosteiro, que serviriam para seu sustento 115.
Vamos mais tarde encontrá-la a Santa a passear entre elas – o que, como
refere José Mattoso, seria contrário à regra da clausula imposta às monjas
beneditinas desde o início do século XII (o que seria de facto tempo sufi-
ciente para a difusão desta regra, em relação à data de redacção da Vita).
Não estará aqui, além disso, uma reminiscência das «igrejas próprias»
detidas pela nobreza condal – que as viam como fonte de prestígio –, que
os beneditinos tanto combateram? Se sim, porquê manter esta referência
tão explícita? O texto acrescenta que Santa Godinha – que representa niti-
damente a figura de uma “iniciadora” ao beneditismo, uma propaladora
da ortodoxia –, as retirou da mão de Senhorinha e as entregou a adminis-
tradores. Menciona contudo que a Santa embelezou duas delas, e sabemos
que circulava entre elas 116. Estas acções coadunam-se bem tanto com o
gosto pelo esplendor litúrgico das senhoras piedosas da nobreza condal,
como com a liberdade de movimentos das “devotas” da mesma época 117.
O segundo arcaísmo referenciado por aquele historiador prende-se com o
elogio das esmolas aos pobres dadas por Senhorinha, o que implicaria a
posse de fortuna pessoal. É certo, como ele aponta, que o elogio da
pobreza individual só se começaria a impor com os mendicantes; no
entanto, juntamente com o outro elemento de caracterização que acabá-
mos de mencionar, não poderia ser oriundo de uma outra figura de santa,
mais consentânea com a religiosidade sumptuosa da antiga aristocracia
onde a Vita coloca a santa, por nascimento? 118 Por fim, a familiaridade
com que Senhorinha visita as suas igrejas, acompanhada por S. Rosendo,
ressoaria ao mesmo período e formas de relacionamento entre, por exemplo,

114
“A cultura monástica...”, cit., p. 375.
115
Vita Sanctae Senorinae, ed. cit., p. 119; Odília Gameiro, op. cit., p. 113.
116
Tudo em Vita Sanctae Senorinae, ed. cit., pp. 119-121.
117
Mª de Lurdes Rosa, “Dons aos santos...”, cit., e bibliografia aí citada.
118
Idem.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 397

Mumadona e aquele santo, seu parente também 119 – mas seria já bem mal
compreendida no período da “refundição” beneditina, dando azo ao mila-
gre do castigo dos maldizentes 120.
Por fim, algo nos parece relevar da forma como Santa Senhorinha
aparece inserida no mundo rural. A análise atenta feita por Odília Gameiro
aos conjuntos de milagres post-mortem da santa evidencia uma figura
demasiado próxima, a nosso ver, de um domínio mágico da natureza, para
poder ser uma simples “abadessa administradora” 121. Neles, Santa Senho-
rinha surge-nos antes como uma santa do pequeno mosteiro rural, onde
tem servas e monjas, e ao qual preside como a propiciadora da natureza.
E onde assume, ainda, uma outra dimensão menos consentânea com uma
acabada figura de “abadessa beneditina” – a de protectora dos parentes,
do fabuloso irmão Gervásio ao real parente Gonçalo Mendes de Sousa.
Num e noutro milagre, Senhorinha não é diplomática, mas poderosa e
destemida 122...

O avanço da sociedade em expansão que foi Portugal nas primeiras


décadas do século XII, levou à transferência da sede do poder para o Sul,
e a uma recomposição generalizada dos equilíbrios sociais. No campo
religioso, e em particular no que respeita às concepções de santidade, irá
iniciar-se a etapa marcante que foi a da predominância dos crúzios de
Coimbra 123.
Em 1131, no jogo das alianças entre poderes políticos e eclesiásticos,
o candidato mais natural ao episcopado coimbrão, o arcediago Telo, é pre-
terido a favor de Bernardo, monge cluniacense a quem o apoio de Afonso
Henriques eleva àquela dignidade. Quatro anos depois, porém, o mesmo
Telo surge à frente de um grupo de notáveis e dinâmicos jovens eclesiás-
ticos, fundando o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Tal como nos são
transmitidos pelos dois grandes textos fundadores, a Vida de D. Telo e a

119
Idem.
120
“Outra Vida de Sancta Senhorinha dos «Acta Sanctorum», ed. cit., p. 155.
121
Odília Gameiro, op. cit., pp. 116-119, também parece ir neste sentido, sem con-
tudo tirar as mesmas conclusões.
122
Para as circunstâncias dos milagres, e salientando também a função de protectora
parental, Odília Gameiro, op. cit., pp. 132-133.
123
O estudo do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra tem progredido nos últimos
anos graças a um importante conjunto de estudos, que versam inclusivamente a sua pro-
dução hagiográfica. Remetemos para a primeira parte deste trabalho, relativa à Vita
Theotonii, onde tal bibliografia foi referenciada.
398 MARIA DE LURDES ROSA

Vida de S. Teotónio, estes factos – em termos de enredo, podemos falar da


superação da derrota pelo herói, e do encontro do verdadeiro caminho –
explicam-se à luz dos desígnios da Providência, da ordem escondida das
coisas 124. Telo desde há muito acalentava o desejo da vida monástica, e a
derrota é afinal uma vitória, um sinal que o leva a fundar o mosteiro. “(...)
aqui amostrou Deus como guardava dom Tello pera atanto bem e pera
fundar este santo moesteiro de Santa Cruz”, reza a tradução quatrocen-
tista da Vita Tellonis 125. Celebrando uma ruptura criadora, a primeira tra-
dição narrativa do mosteiro coloca-a claramente sob o signo da profecia
e do mistério, na lógica da inversão do real praticada pela pregação de
Cristo: não por acaso, recorre-se a um texto emblemático desta, as “bem-
-aventuranças”, para a narração da entrada de Teotónio no seio dos novos
“Doze Discípulos” 126.
Sintetizemos as inovadoras características religiosas da recente fun-
dação, nomeadamente em termos pastorais e culturais, a partir dos estu-
dos existentes: contacto com as classes vilãs, acompanhamento da pasto-
ral em territórios fronteiriços, proclamação ideológica da guerra santa,
atitude tolerante para com os moçárabes e cultura islâmica, transmissão
de correntes de pensamento oriundas de Roma e de França, pregação no
meio urbano 127. Destacam-se e contrapõem-se ao pesado e solene modelo
religioso dos beneditinos de Cluny, que aliás não terá suscitado um entu-
siasmo generalizado por parte dos mosteiros portucalenses e de diferen-
tes camadas de leigos 128. O enquadramento sociológico do lançamento e
rapidíssimo sucesso dos Cónegos Regrantes tem também sido objecto de
análise: os cavaleiros de Coimbra e da região do Entre Douro e Vouga, os
jovens guerreiros de Afonso Henriques, identificam-se de imediato com
uma fundação que aliás parte de um dos seus pares, Telo; encontram nele

124
A análise da fundação foi recentemente revista por Aires A. Nascimento, “Santa
Cruz de Coimbra: as motivações de uma fundação regular”, in Actas do 2º Congresso
Histórico de Guimarães, cit., vol. 4, pp. 116-127 (reed. em Hagiografia de Santa Cruz,
cit., pp. 19-30).
125
“Vida de D. Tello”, p. 276, ed. por Elisa M. B. Silva, in Aires A. Nascimento,
Hagiografia de Santa Cruz..., cit., pp. 273-286.
126
Vita Theotonii, ed. cit., pp. 164 e 165 (cfr. observ. de Aires Nascimento, nt. 48 da
tradução).
127
José Mattoso, “A nobreza medieval portuguesa. As correntes monásticas dos
séculos XI e XII”, pp. 111-112, in Portugal medieval. Novas interpretações, pp. 197-223,
Lisboa, INCM, 1984; cfr. nt. 123.
128
José Mattoso, idem, pp. 201-203.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 399

a formulação de um ideal religioso que os satisfaz e apoia, contrastante


com o dos mosteiros ligados aos magnates do Norte. À força, juventude e
autoconfiança dos cavaleiros afonsinos, correspondeu o dinamismo dos
Cónegos Regrantes 129.
Um e outro factor vão ser potenciados pela singular capacidade de
“leitura dos tempos” em que os crúzios se revelam mestres. O profetismo
e evangelismo dos fundadores, próprios, de resto, das correntes radicais
de renovação religiosa cristã, facilitam-lhe uma visão escatológica que se
mostrará extremamente sedutora no meio de guerreiros jovens em que
surge. Características como o conhecimento profundo da espiritualidade
e devoção hierosolamitana, a crítica à corrupção eclesiástica, o aceno da
vida comunitária despojada, e a arrojada independência que perpassam
nas Vitae de Telo e Teotónio – todas são de molde a seduzir um grupo
afeiçoado ao imprevisto, ao arriscado e ao novo. Tem sido sobejamente
salientado a atracção que exerceram sobre as aristocracias guerreiras
medievais as correntes religiosas radicais, especialmente as que utilizam
metáforas como o «miles christi», valores como o companheirismo e soli-
dariedade (monásticas, no caso), e rituais orantes em que se canalizam
forças semelhantes à agressividade militar 130.
Todos estes elementos estiveram presentes nos tempos iniciais de
Santa Cruz de Coimbra, e encontram-se perfeitamente reproduzidos nos

129
Idem, p. 212; Leontina Ventura, “Introdução”, pp. 9-20, in Livro Santo de Santa
Cruz. Cartulário do séc. XII, ed. L. Ventura, Ana S. Faria, pp. 9-44, Coimbra, INIC, 1990;
esta autora continuou a sua identificação sociológica dos “cavaleiros”, em Leontina
Ventura e João Cunha Matos, “Cavaleiros da Estremadura (Coimbra, Viseu, Seia) ao
tempo de D. Afonso Henriques”, in Actas do 2º Congresso Histórico de Guimarães, cit.,
vol. 2, pp. 95-107; para as concepções de Afonso Henriques, como rei e como cavaleiro,
nestes contextos plurais, J. Mattoso, “As três faces de Afonso Henriques”, Penélope, 8
(1992), pp. 25-49.
130
Barbara Rosenwein, “Feudal war and monastic peace: cluniac liturgy as ritual
aggression”, Viator, 2 (1971), pp. 129-157; Karl Bosl, “Il santo nobile”, reed. e trad. em Sofia
Boesch Gajano (ed.), Agiografia altomedioevale, Bolonha, Il Mulino, 1976; Étienne
Delaruelle, “Les saints militaires dans la région de Toulouse”, reed. em E. Delaruelle, L’ idée
de croisade au moyen âge, Turim, La Bottega d’Erasmo, 1980; Philippe George, “Noble, che-
valier, pénitent, martyr. L’idéal de sainteté d’après une Vita mosane du XIIe. siècle”, Le
Moyen Âge, t. 89 (1983), pp. 357-80; Alessando Barbero, L’aristocrazia nella società fran-
cesa del Medioevo. Analisi delle fonti literarie (secoli X-XIII), pp. 166-239, Bolonha, Capelli,
1987; Marcus Bull, Knightly piety and the lay response to the First Crusade. The Limousin
and Gascony, c.970-c.1130, Oxford, Clarendon Press, 1993; Giuseppe Sergi, L’aristocrazia
della preghiera. Politica e scelte religiose nel medioevo, Roma, Donzelli, 1994.
400 MARIA DE LURDES ROSA

escritos cultuais que, até meados do século XII, acompanham e incenti-


vam o avanço para sul dos guerreiros de Cristo 131. Este facto parece-nos
mesmo ser o mais importante elemento do sucesso de Santa Cruz, seja em
termos de adesões à Ordem, seja de enquadramento dos leigos que a ela
se ligam de diferentes formas. É extremamente significativo que a funda-
ção do convento seja equiparada a uma investidura cavaleiresca, na Vita
Theotonii: “no dia sexto antes das calendas de Março seguinte, ao come-
çar do jejum quaresmal, foram armados cavaleiros de Cristo não já doze,
mas quase setenta e dois, com o propósito apostólico de viverem em
comum debaixo do hábito e da regra de Santo Agostinho” 132. E ainda que,
no próprio dia do início da vida comunitária, se comece a travar uma bata-
lha, contra os cónegos da Sé que “levantavam “renhida oposição”, como
regista a mais acintosa Vita Tellonis, para em seguida pintar a rápida
acção de Telo, que convoca os irmãos e decide a estratégia: o recurso ime-
diato à Santa Sé 133.
A Vita Tellonis, redigida nos vinte anos que se seguiram à morte do
seu protagonista (m. c. 1136), por um dos companheiros de aventura, é
uma espécie de pedra angular do riquíssimo edifício de textos cultuais
construído por Santa Cruz de Coimbra em menos de cem anos. Estes tex-
tos englobam biografias, trasladações e livros de milagres, relatos de pro-
dígios, ordines litúrgicas, crónicas monásticas. Inserem na narrativa cristã
uma galeria de personagens que marcou de modo indelével os primeiros
tempos da existência de Portugal: Telo, Teotónio, Afonso Henriques, D.
João Peculiar. Erguem junto a elas figuras que teriam sido menos impor-
tantes, não fosse a narrativa crúzia: S. Martinho de Soure, o cavaleiro
Henrique de Bona. Memorializam acontecimentos fundadores: a criação
e fundação do mosteiro de Santa Cruz, a conquista prodigiosa de
Santarém, a conquista de Lisboa e posterior construção do grande mos-
teiro dedicado a S. Vicente, santo propiciador da desejada integração de

131
Retomámos e desenvolvemos algumas destas ideias em “O «guerreiro dos crú-
zios» e o «guerreiro dos guerreiros»: a construção do leigo pelos textos crúzios e a sua
recepção”, in História Religiosa de Portugal, cit., vol. I, pp. 445-452. Uma análise apro-
fundada da relação entre os textos crúzios e as ideias de “guerra santa” encontra-se em
Armando Pereira, Representações da guerra na cultura letrada dos séculos XI-XIII. A
fronteira hispânica ocidental, pp. 37 ss, Lisboa, diss. de mestrado apres. à FCSH da UNL,
2000, dact. (agradecemos ao Autor a oferta de um ex. dact.).
132
Vita Theotonii, ed. cit, pp. 166-167.
133
Vita Tellonis, pp. 64-65, ed., trad. e notas de Aires Nascimento, Hagiografia de
Santa Cruz..., cit, pp. 54-137.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 401

elementos tão díspares como eram os mocárabes e os cruzados do Norte


da Europa. A corrente de narrativas assim criadas coloca-se de facto,
como os Cónegos fazem dizer a Afonso Henriques, sob o signo das eras
novas sempre abertas, no Cristianismo, pelo regresso a Jerusalém, de
onde partira Telo: “Nos últimos tempos, [o Deus do céu] não repete os
milagres antigos, mas ultrapassa-os” 134.
Não sendo viável a exploração de cada um destes textos no conjunto
do presente trabalho, e dado vários deles têm sido alvo, nos últimos anos,
de inovadores e importantes estudos 135, limitar-nos-emos a acrescentar às
ideias acima expostas um facto que nos parece especialmente relevante. A
produção “sacra” dos Crúzios acompanha a expansão territorial de Afonso
Henriques, até estabelecer os dois pólos fixos de uma corrente religiosa,
cultural e política que dominará os primeiros reinados. De Santa Cruz de
Coimbra a S. Vicente de Fora, em Lisboa, textos comemorativos marcam
um avanço guerreiro que se torna ipso facto uma caminhada de santos
combatentes, ademais protegidos na retaguarda por rituais de intercessão
simultâneos às batalhas. O assalto a Santarém é acompanhado pela oração
colectiva e ineterrupta de Teotónio e seus monges em Santa Cruz de
Coimbra, e mais tarde é relatado pelo texto De expugnatione Scalabis 136.
Para o avanço nas terras a sul do Mondego, em simultâneo do ponto de
vista pastoral e guerreiro, surge a Vita Martini sauriensis, relato da acção
de um pároco que é também guerreiro, e irá morrer mártir, depois de
acompanhar os cavaleiros do Templo contra os Sarracenos 137. Em Lisboa,
finalmente, fecha o círculo a narrativa da fundação do mosteiro de S.
Vicente, com redacção da versão primitiva atribuível ao período decor-
rente entre a fundação dos mosteiro e a trasladação das relíquias de S.
Vicente, em 1173 (Indiculum Fundationis Monasterii Beatii Vincentii

134
De expugnatione Scalabis (trad. de Albino de Faria), p. 341, in A. Magalhães
Basto (ed.actual.), Fr. António Brandão, Crónica de D. Afonso Henriques, pp. 341-345,
Porto, Livr. Civilização, 1945.
135
Cfr. texto e notas supra.
136
Para a edição do texto, cfr. nota anterior; para a sua tradição, edições, e análise,
Armando Pereira, “A conquista de Santarém na tradição historiográfica portuguesa”, in
Actas do 2º Congresso Histórico de Guimarães, cit., vol. 5, pp. 27-323.
137
Esta Vita foi recentemente objecto de excelente edição crítica, trad. e anotações
por Aires A. Nascimento, Hagiografia de Santa Cruz..., cit., pp. 224-249, o que abre
novas possibilidades ao seu estudo; entre os estudos de que já foi objecto, cfr., ultima-
mente, com síntese da historiografia, Armando Pereira, Representações da guerra.., cit.,
pp. 52-60.
402 MARIA DE LURDES ROSA

Vlixbone). O texto foi alvo de uma edição crítica recente 138, bem como de
estudos já concluídos 139 e em curso 140, no que diz respeito a uma das suas
personagens principais, o “cavaleiro Henrique”. Será portanto necessário
aguardar, para se perceber completamente o contexto da sua produção, as
intencionalidades da narrativa, e as tradições subjacentes. Refira-se no
entanto que se filia claramente nos textos que reclamam para os mostei-
ros a “fundação régia”, sinal de prestígio e supremacia sobre as restantes
instituições eclesiásticas 141. Por outro lado, a sua figura central é a de um
“santo mártir”, Henrique de Bona, que seria alvo da veneração do próprio
D. Afonso Henriques. O acentuar destas características prende-se sem
dúvida com as mutações político-religiosas que ameaçavam a supremacia
dos Crúzios, nos anos em que se assistiu à estabilização da “sociedade
guerreira” que eles tão bem tinham enquadrado, do ponto de vista da espi-
ritualidade e legitimação religiosa. Com efeito, a Lisboa do Indiculum é
já uma de pluralidade religiosa, em que vários grupos de eclesiásticos dis-
putam o espaço e os favores do rei, e em que este a todos precisa de con-
tentar, mesmo que isso passe pela subalternização dos seus adjuvantes crú-
zios. Alguns anos mais tarde, a cidade que nos revela o texto de Mestre
Estêvão, chantre da Sé de Lisboa 142, aponta mesmo para um desfecho
menos feliz da situação, no que toca à supremacia crúzia: os cónegos do
mosteiro de S. Vicente não conseguem assegurar a posse do recém-che-
gado corpo de S. Vicente, apesar de a terem reclamado violentamente, con-
trastando em tal com a ponderação dos partidários da deposição na Sé 143.

138
Com tradução e notas, por Aires A. do Nascimento, A conquista de Lisboa aos
mouros, cit., pp. 178-201. A data proposta no texto é a deste Autor.
139
Armando Pereira, Representações da guerra..., cit., pp. 90-97, recenseando ainda
a última historiografia. O Autor do texto não será aliás de origem portuguesa, mas sim um
monge teutónico (segundo Armando Pereira, op. cit., p. 89), o que necessariamente matiza
a sua inserção nas narrativas crúzias anteriores.
140
Aguarda-se a publicação do trabalho de Armando Pereira sobre o “cavaleiro
Henrique” nas actas do colóquio “Nova Lisboa medieval”, realizado na FCSH da UNL em
Janeiro de 2002.
141
Amy Remensnyder, Remembering kings’past: monastic foundation legends in
medieval southern France, Ithaca, Londres, Cornell University Press, cop. 1995.
142
Referimo-nos ao texto dos Miracula S. Vicentii, datável do período entre 1173 e
1185 (ed. crítica, com tradução e notas, em Aires A. Nascimento e Saúl António Gomes,
S. Vicente de Lisboa e os seus milagres medievais, pp. 28-68). Sobre o texto e o contexto,
cfr., para além desta obra, a síntese recente de Cristina Sobral, Adições portugesas..., cit.,
pp. 548-552; sobre a evolução das narrativas, Maria de Lurdes Rosa, “O «guerreiro dos
crúzios»...”, cit., p. 447.
143
Miracula S. Vicentii, ed. cit., pp. 34-35. Sobre a crucial importância do culto de
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 403

Uma última vertente da produção ou utilização de textos sagrados de


Santa Cruz, paralela às crónicas e hagiografias, mas menos conhecida, é
a relativa a cerimoniais. Alguns destes não são de todo alheios à mística
guerreira que os restantes textos exploram; com a força própria dos rituais
religiosos, numa sociedade como a que nos ocupa, eles enquadrariam
cerimónias potencializadoras de toda a mensagem transmitida pelos
Crúzios noutros canais menos espectaculares. Embora seja necessário
alargar o inquérito para comprovar a ligação entre todos estes textos e
cerimónias, por agora destacaríamos dois em especial: a cópia do
«Pontifical» de Braga realizada no último quartel do século XII 144, e o
«Ritual» vindo de São Rufo, e copiado em Santa Cruz, entre 1228 e 1230,
mas com várias modificações, entre as quais uma oração que parece ori-
ginal, designada por “Pro Pace” 145. O primeiro é sobretudo importante
enquanto contém o Ordo benedicendi regis, com sinais claros de ter sido
efectivamente utilizado, e comprovando assim a tese da sagração dos pri-
meiros reis, ao que tudo indica em Santa Cruz 146. A oração Pro pace, que
contém também sinais de utilização, e mesmo notação musical, parece ter
sido composta no próprio mosteiro a fim de implorar a vitória das tropas
cristãs nas batalhas da Reconquista, segundo os indícios internos, entre os
quais avulta a súplica “insurgentesque repellat inimicos” 147. Os Crúzios
teriam assim alargado aos importantissímos níveis da liturgia e das ceri-
mónias o seu discurso de suporte dos “santos combatentes”. De resto,
toda a exploração que virão a fazer em torno da posse dos corpos dos pri-
meiros reis, em especial de Afonso Henriques, e das insígnias do seu
poder guerreiro, têm de ser vistas desde esta época, e à luz destes indícios.
Se a transferência dos favores régios para Alcobaça e, muito depois, para
a Batalha, lançam os Crúzios na sombra, e a própria Ordem atravessa
momentos difíceis, a recuperação é marcada por um imediato investimento

S. Vicente, que justificava toda a disputa, cfr., além da introdução dos Autores à ed. dos
Miracula, cit., Lídia Fernandes, “O culto vicentino na formação do reino português”,
Arqueologia medieval, 3 (1993), pp. 221-231; Luís Krus, “S. Vicente e o mar: das relí-
quias à moeda”, in Passado, memória e poder na sociedade medieval portuguesa.
Estudos, pp. 143-148, Redondo, Patrimonia, 1994; e Cristina Sobral, Adições portugue-
sas.., cit., pp. 548-551.
144
José Mattoso, Fragmentos de uma composição medieval, p. 222, Lisboa,
Estampa, 1987.
145
Joaquim O. Bragança, Ritual de Santa Cruz de Coimbra, Lisboa, Ed. Autor,
1976.
146
José Mattoso, Fragmentos..., p. 222.
147
J. Bragança, op. cit., p. 202.
404 MARIA DE LURDES ROSA

neste património tão simbólico. O século XV irá marcar um reviver na


insistência do poder sagrado do mosteiro a partir do apoio que lhe dão
agora as aparições dos «Santos Reis»; todo este movimento culminará nas
primeiras tentativas de canonização de Afonso Henriques, que começa-
ram no reinado de D. Manuel. Em Quatrocentos circulam várias lendas de
intervenções maravilhosas do primeiro monarca e por vezes do seu filho;
praticam-se diferentes rituais em frente aos túmulos dos santos reis; uma
crónica como a de Duarte Galvão e o apoio dado por D. Manuel à mesma,
são tudo fios de uma história que começou muito antes e que seria fasci-
nante deslindar... 148

2. Dos mendicantes aos místicos: o percurso das santidades indi-


viduais (sécs. XIII-XV)

Partindo do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra para se juntar aos


frades franciscanos de um pequeno eremitério dos arredores, Fernando de
Bulhões, o futuro Sto. António, é saudado por um dos seus antigos con-
discípulos com ambíguas palavras de despedida: “Vade, vade, quia sanctus
eris” 149. Ao jovem que se lançava fervorosamente numa vida nova, con-
tra obstáculos institucionais e familiares 150, e que pretendia seguir o mais

148
Tentámos entretanto algo neste sentido, em Maria de Lurdes Rosa, “O corpo do
chefe guerreiro, as chagas de Cristo e a quebra dos escudos: caminhos da mitificação de
Afonso Henriques na Baixa Idade Média”, Actas do 2º Congresso Histórico de Guima-
rães, cit., vol. 4, pp. 83-123. Aguarda-se a publicação das actas do 3º Congresso Histórico
de Guimarães, realizado em Novembro de 2001 e dedicado à figura de D. Manuel, no qual
foram apresentadas importantes comunicações neste âmbito, entre as quais se destaca a de
Ana Cristina Araújo.
149
Surge logo na Vita Prima, ou Assidua, e repete-se nas restantes versões de forma
quase imutável. Consultámos as diferentes “vidas” na colectânea que delas apresenta, para
o ingresso de Fernando Martins na ordem franciscana, A. D. Sousa Costa, S. Antonio
canonico regolare di S. Agostino e la sua vocazione francescana. Rilievi storico-storio-
grafici, pp. 166-173, Braga, Ed. Franciscana, 1982 (para a citação do texto, p. 167).
150
Segundo algumas fontes, a sua saída de Santa Cruz não fora pacífica, tanto para
os seus superiores eclesiásticos, como para os parentes de sangue. Quanto ao desagrado
dos cónegos regrantes, pode pressupor-se da dificuldade em obter a licença do Prior, que
surge mencionada logo na Assidua, (ed. cit., p. 167) e que se repete nas “vitae”posteriores
(ed. cit., 169-173). Como veremos de seguida, a repetição de casos de abandono das
ordens tradicionais em favor das mendicantes, foi de modo a causar alguma tensão, agra-
vada por todas as posteriores rivalidades jurisdicionais e religiosas. Quanto à provável
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 405

brevemente possível para Marrocos, pregar aos Infiéis – estas palavras


provocam uma resposta arrebatada: “Com me sanctum fore audieris,
Deum collaudabis” 151.
O diálogo é em breve transformado numa profecia, no rapidíssimo
processo de “mirabilização” que sofreu a vida do santo franciscano:
Fernando, “iam affaris incipiens spiritu prophetico veritatis”, conhece
antecipadamente a sua santidade 152. Porém, são possíveis duas leituras
alternativas, colocando o episódio no contexto de outras tantas concep-
ções religiosas e existenciais, que se confrontam. Em primeiro lugar, foi
um fenómeno bastante corrente o do abandono das ordens tradicionais por
alguns dos seus mais promissores membros, seduzidos e mesmo aliciados
pelos promotores das novas religiosidades mendicantes. Os conflitos com
as anteriores famílias religiosas chegaram a ser graves. É provável, pois,
que o cónego regrante de Santo Agostinho tivesse querido censurar a
deserção de Fernando de Bulhões. Num segundo nível, mais profundo, o
fosso entre eles alarga-se mais: pois o jovem cónego “queria ser santo”?
A ousadia da vontade individual, que fizera uma escolha, que optara por
uma via de santificação tão radical como a protagonizada pelos Mártires
de Marrocos, que consumara uma ruptura com os seus mestres e compa-
nheiros, e que aspirava à santidade difundida por um grupo de estrangei-
ros e recém-chegados que vivia pobremente num eremitério – eis todo um
processo que não deixaria de espantar o monge crúzio. O seu comentário
continha, certamente, a acusação fulcral da soberba, o pecado da exces-
siva confiança em si próprio e no domínio do destino individual.
Com este pequeno episódio tentámos equacionar o problema central
da segunda parte do nosso texto. Partindo já não só dos textos hagiográ-
ficos 153, mas também dos percursos pessoais dos candidatos à santidade

perseguição dos parentes, que o teria levado a mudar de nome, é também referida na
Assidua (ed. cit., p. 169) e em algumas das posteriores (Vita secunda e Dialogus, ed. cit.,
p. 168 e 169); outras preferem a explicação “etimológica” para a mudança de nome, já
presente na Assidua, que jogava com as palavras “alte tonans”, profetizando os dons ora-
tórios de António. Alessandro Barbero, Un santo in famiglia, cit., p. 247, enquadra esta
mudança de nome por possível perseguição parental no tema das resistências familiares,
comuns a muitas hagiografias.
151
Legenda prima, ed. cit., p. 167.
152
Apesar de antigo, continua fundamental Léon de Kerval, L’évolution et le déve-
loppement du merveilleux dans les légendes de St. Antoine de Padoue, p. 228, Paris, Lib.
Fischbacher, 1906.
153
Para os santos e beatos portugueses dos séculos XIII a XV não existe uma série de
406 MARIA DE LURDES ROSA

dos séculos XIII a XV, procuraremos caracterizar a evolução da nova


forma de encarar a relação santificante com o Divino: aquela que nasce
da afirmação da vontade individual e que se afirma em ruptura com as
concepções religiosas vigentes. Se bem que alguns destes traços sejam
característicos do afrontamento religioso do mundo, e tenham estado pre-
sentes ao longo de todo o Cristianismo, sobretudo em torno de personali-
dades fortes como os reformadores ou os profetas, nunca como a partir do
século XIII elas se exprimiram de forma tão coerente e difundida. Não
isenta de vicissitudes, porém: o élan dos reformadores irá esbater-se e
modificar-se, apertado entre as querelas internas, os limites impostos pelo
Papado, e o esgotar de alguns dos antagonismos que o tinham feito sur-
gir... Da síntese entre as novidades que trouxera – entre as quais avultam
as formas femininas de expressão religiosa –, as desilusões provocadas e
a evolução de toda a sociedade, nascerão as correntes místicas do final da
Idade Média / início da Época Moderna, num esforço de retracção inte-
rior que procura a resposta contra o esvaziamento de um evangelismo
demasiado dependente dos símbolos exteriores 154. Procuraremos dar
breve conta deste processo, tentando também tornar familiares os seus
fascinantes protagonistas.
À excepção das Infantas Teresa, Mafalda e Sancha, ligadas à Ordem
de Cister 155, todas as principais figuras de santos e aspirantes à santidade

textos hagiográficos tão completa como anteriormente, desde logo em função das alterações
históricas: os frades menores e os dominicanos organizam as suas hagiografias ao nível
das respectivas cúrias, inaugurando um registo hagiográfico de características muito dife-
rentes do anterior, como salienta p.e. Alain Boureau, L’évenement sans fin, cit., pp. 53-80
(cfr. também A. Vauchez, “Saints admirables et saints imitables: les fonctions de l’hagio-
graphie ont-elles changé aux derniers siècles du Moyen Âge?”, p. 170, in La fonction des
saints, cit., pp. 160-172 e Peter Dinzelbacher, “Nascita e funzione della santità mistica alla
fine del medioevo centrale”, pp. 496-497, in idem, pp. 489-506). Por outro lado, não se
encontram disponíveis ou perderam-se as versões mais antigas de vidas importantes, como
a de S. Gonçalo de Lagos ou a de S. Gonçalo de Amarante (cfr. infra, nestes santos). Por
fim, temos importantes notícias biográficas que, ainda que participando no género hagio-
gráfico, se afastam dele: é o caso da Crónica do Condestrabre ou da obra de Fr. João
Álvares sobre o Infante Santo (cfr. infra). Não deixaremos porém de utilizar os textos
“mais” hagiográficos, se existentes – é o caso da Rainha Santa Isabel ou da Infanta Santa
Joana – com os devidos reparos, que acompanharão o texto.
154
La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge, d’après les procès de
canonisation et les documents hagiographiques, pp. 475 ss, Roma, École Française de
Rome, 1981; G. Klaniczay, The uses of supernatural power. The transformation of popular
religion in medieval and early-modern Europe, pp. 76-77, Cambridge, Polity Press, 1990.
155
Cuja santidade é de resto muito posterior (a primeira abertura do túmulo, com vista
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 407

dos séculos XIII e XIV, em Portugal, se relacionam com as duas grandes


ordens de Mendicantes, franciscanos e dominicanos. Este panorama tem
evidentes paralelos no resto da Europa central e, sobretudo, mediterrâ-
nica, seja em termos de florescimento de santidades, seja em termos de
canonizações 156, e é afinal mais uma das manifestações da rapidez com
que se espalharam as novas ordens religiosas 157. Entre a conversão de
Francisco de Assis (1205) e a entrada em Portugal dos seus primeiros dis-
cípulos, medeiam uma dezena de anos; no caso dominicano, é ainda
menor o hiato, já que um ano depois da aprovação papal da ordem (1216),
se fundava em Montejunto o primeiro convento 158. A localização nos cen-
tros urbanos, ou junto dos mais desfavorecidos (leprosos, pobres, margi-
nais), em todo o caso predominantemente para o sul do Mondego, são as
principais características da rede franciscana 159. Quanto aos Domini-
canos, é igualmente o século XIII a época da grande dinâmica das funda-
ções, que irão decrescer acentuadamente na centúria seguinte 160.
Rápida e impressiva foi também a primeira grande manifestação da
nova santidade, em terras portuguesas: a chegada a Coimbra dos restos de
cinco franciscanos que, pouco antes de sofrerem o martírio em Marrocos,
tinham sido hóspedes da infanta D. Sancha, em Alenquer. Testemunha dos
seus esforços evangélicos e guardião dos despojos dos corpos, um outro
infante, Pedro Sanches, terá sido porventura um dos primeiros promotores
da canonização dos frades italianos 161. Não sem que tivesse manifestado
alguma perplexidade face às atitudes agressivas dos novos prosélitos, no
seio de uma sociedade onde ele gozava de relativa integração 162.

a eventual processo de beatificação, data de 1617: Maria de Lurdes Rosa, “Hagiografia e


santidade”, cit., p. 332 e p. 346). Sobre a “encruzilhada” religiosa em que viveram, e as
diferentes tonalidades da sua religiosidade, cfr. id., “Quatro infantes entre a «tradição» e
a «modernidade»: os «príncipes de Cister» – Teresa, Sancha, Mafalda e Pedro – encon-
tram os Mendicantes”, História Religiosa de Portugal, cit., vol. I, pp. 452-460.
156
Michael Goodich, ‘Vita perfecta’: the ideal of sainthood in the thirteenth cen-
tury, p. 172, e passim, Stuttgard, Anton Hiersemann, 1982; A. Vauchez, La sainteté, cit.,
pp. 449-478.
157
José Mattoso, Portugal medieval..., cit., pp. 329-346.
158
Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, 2ª ed., vol. I, p. 136 e
p. 139.
159
José Mattoso, Portugal medieval, cit., pp. 329-45.
160
Saul A. Gomes, O mosteiro de Santa Maria da Vitória no século XV, p. 6,
Instituto de História de Arte da FL da UC, 1990.
161
António D. de Sousa Costa, S. Antonio Canonico, cit., pp. 157-159.
162
António Brásio, “O Infante D. Pedro, senhor de Majorca”, Anais da Academia
408 MARIA DE LURDES ROSA

O culto dos Cinco Mártires de Marrocos irá progredir em Coimbra,


ora em relação com os Franciscanos, ora com o mosteiro Sta. Cruz, de
acordo com estratégias de promoção dos vários cultos, entre os quais o da
Rainha Santa Isabel. Uma das manifestações mais espontâneas foi a «pro-
cissão dos nus», associando os Mártires à cura da infertilidade agrícola e
humana, a partir do castigo que a sua morte trouxe aos marroquinos,
segundo o relato hagiográfico – cinco anos de esterilidade dos solos 163. A
canonização, porém, virá apenas no século XV (1481), apesar das tentati-
vas de Jaime de Aragão em 1321 164. Longe do culto local de Coimbra, que
aliás irá conhecer limitações nos seus aspectos mais populares, a partir de
Trento, a canonização dependerá estreitamente da conjuntura de favores
papais aos franciscanos, para a evangelização do Norte de África 165. No
entanto, um dos mais importantes acontecimentos ligados aos Santos
Mártires deu-se muito antes de tudo isto: a profunda conversão que a che-
gada das suas relíquias provoca no jovem cónego Fernando Martins de
Bulhões.
Fernando era sem dúvida um carácter de impulsos fortes, de decisões
fulminantes, e de inteligência talvez torturada, como indiciam alguns pas-
sos do seu percurso pré-franciscano. Uma crise juvenil precedendo a sua
entrada em S. Vicente de Fora e uma fuga às tentações mundanas moti-
vando a vinda para Coimbra, são manifestações de uma forte emotivi-
dade, a que se aliava uma memória notável e profunda capacidade de
estudo 166. As linhas em que as primeiras biografias descrevem a emoção

Portuguesa da História, 2ª s., vol. 9 (1959), pp. 161-240; desenvolvemos o tema em


“Quatro infantes entre a «tradição», cit.
163
Luis Krus, “Celeiro e relíquias: o culto quatrocentista dos Mártires de Marrocos
e a devoção dos nus”, Estudos Contemporâneos, 6 (1984), pp. 21-42
164
Mª Alice Fernandes, (ed. e estudo), Livro dos milagres dos Santos Mártires (cód.
770 da Biblioteca Pública Municipal do Porto), p. 15, tese de mestrado apres. à F.L.da
U.L., Lisboa, dact., 1988.
165
Luis Krus, “Celeiro e relíquias, p. 39, nt. 47; A. D. Soura Costa, Aproximação da
espiritualidade de Santa Beatriz da Silva e seu irmão Beato Amadeu com os Frades do
Santo Evangelho e Capuchos, evangelizadores da África, América e India”, p. 169, Actas
do Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua época, vol. 5, pp. 159-341, Porto,
CNCDPP, 1989 e O mosteiro de S. Salvador da Vila de Grijó (Vila Nova de Gaia), pp.
153-157, Grijó, Ed. da Fábrica Paroquial, 1993 (agradecemos ao Autor ter-nos facultado
a versão dactil., muito antes da sua publ.).
166
A bibliografia antoniana, científica ou não, é imensa. Não temos a pretensão de
poder resumir aqui o que disseram sobre a vida e cultura de Sto. António autores como F.
Félix Lopes, Pinto Rema, Sousa Costa, Gama Caeiro, Cândida Pacheco, para referir os
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 409

de Fernando de Bulhões na cerimónia da recepção das relíquias, a sua


persistência na decisão de deixar os Crúzios, a mudança de identidade, a
ida súbita para Marrocos e a obsessão pelo martírio – evocam imediata-
mente o tipo de conversões que conduziu à Ordem de São Francisco
vários jovens semelhantes: cultos, urbanos, ricos ou remediados, mas
insatisfeitos, em busca de uma espiritualidade radical, voluntariosa e
aventureira 167. No seio de uma Itália urbana e mercantilizada, desenvol-
vera-se um modelo de santidade cortês, onde o despego aos valores mate-
riais e a exaltação da dádiva como criadora de laços sociais lançava na
sombra as prudências burguesas. A hagiografia de Francisco, na versão
que talvez se possa considerar menos retocada em função das querelas da
Ordem – a “Lenda dos Três Companheiros” – exalta precisamente este
modelo na conversão inicial do santo 168. A piedade interiorizada, o afecto
à obra do Criador, o desapego extremo, serão valores mais lentamente
definidos. E, mesmo estes, revestiram por vezes a forma de desafios
directos à sociedade contemporânea, só suavizados pela hagiografia pos-
terior e por toda a tradição piedosa que envolveu os franciscanos, per-
meando a própria historiografia. A imitação literal que Francisco fez de
Cristo (o alter-Christus de vários sectores franciscanos), e que culminou
na difusão do fenómeno da estigmatização, foi considerada herética por
vastos sectores da igreja do seu tempo, e derivou em heresia de facto nas
correntes dos espirituais 169. A caracterização do santo como grande profeta
do final dos tempos, patente em escritos iniciais, é re-elaborada no seio dos
mendicantes ligados à Universidade de Paris, onde, no último quartel do
séc. XIII, o debate sobre a natureza do dom profético opunha os partidários

principais e portugueses apenas. Seguimos essencialmente os dados biográficos e as cita-


ções de fontes de A. D. Sousa Costa, S. Antonio Canonico…, cit., e “O autor da Vita prima
de S. António e seus informadores portugueses. Revisão crítica das opiniões sobre a idade
do Santo”, in Colóquio Antoniano. Na comemoração do 750º aniversário da morte de S.
António, pp. 27-48, Lisboa, C.M.L., 1982. Uma importante aprofundada síntese dos dados
conhecidos, com muitos elementos novos, foi feita por Maria Helena Coelho, Santa
António de Lisboa em Santa Cruz de Coimbra, Braga, 1996 (sep. do I vol. das Actas do
Congresso Internacional «Pensamento e testemunho». 8º centenário do nascimento de
Santo António); quanto ao seu culto e hagiografia, cfr. as imprescindíveis páginas de
Cristina Sobral, Adições portuguesas..., cit., pp. 323-376.
167
Alenandro Barbero, Un santo in famiglia, cit., pp. 233-251.
168
Idem, pp. 217-222.
169
A. Vauchez, Religion et société dans l’Occident médiéval, pp. 139-169, Turim,
Bottega d’Erasmo, 1980.
410 MARIA DE LURDES ROSA

da graça concedida e os do carisma individual, entre vários outros temas.


Sem deixar de afirmar claramente a Ordem Franciscana como herdeira da
corrente profética na Igreja, propõe-se uma concepção menos heróica da
profecia, que coloca a santidade de Francisco – o seu percurso interior no
sentido da perfeição – como fonte do dom profético 170.
Regressando ao santo português, uma re-leitura das fontes à luz des-
tas novas interpretações, equaciona diferentemente a aventura individual
de Fernando de Bulhões. Já foi salientado por alguns autores não ter sido
a pobreza ou o pacifismo do fransciscanismo a motivar a primitiva voca-
ção do futuro santo 171, mas sim uma atracção pelo martírio tingida de tra-
ços de cruzada 172. Nos relatos hagiográficos, a reviravolta dá-se numa
continuação da aventura, através de um episódio algo rocambolesco, que
poderia bem figurar nos livros de cavalaria. António adoece e é forçado a
desistir da pregação em Marrocos; ao voltar para Portugal, de barco, uma
tempestade desvia-o para a Sicília, e depois Itália, onde se irá juntar aos
Frades Menores e conhecer o próprio Francisco. Na economia das narra-
tivas franciscanas, é a intervenção divina a causadora da viragem, de resto
providencial, pois disponibiliza António para a urgência de um outro
combate, onde os seus estudos se revelaram fundamentais. Estava-se
numa fase em que a Ordem se virava predominantemente para a afirma-
ção na Europa, fracassada que fora a aventura de Francisco no Egipto.
António, que ainda procura esconder a sua cultura aos primeiros frades
que encontra em Assis, será reconhecido e eleito pelo próprio Francisco

170
Nicole Bériou “Saint François, premier prophète de son ordre dans les sermons
du XIIIe. siècle”, in André Vauchez (ed.), Les textes prophétiques et la prophétie en
Occident (XIIe.-XVIe. siècle), pp. 245-266, Roma, École Française de Rome, 1990. Sobre
a evolução agitada da hagiografia franciscana e as modificações internas à Ordem, que ela
reflecte, são agora essenciais algumas obras de renovação: Chiara Frugoni, Francesco e
l’invenzione delle stigmate: una storia per parole e per immagini fino a Bonaventura e
Giotto, Turim, Einaudi, 1993; a sua revisão, com muitos outros elementos, por Eamon
Duffy “Finding St. Francis: early images, early lives”, in P. Biller (et al.), Medieval theo-
logy and the natural body, pp. 193-236, York, York Medieval Press, 1997; Jq. Dalarun, La
malaventura di Francesco d’Assisi, Milão, Ed. Biblioteca Francescana, 1996 (depois
debatido no vol. de 1998 da Rivista di Storia e letteratura religiosa).
171
António D. de Sousa Costa, S.Antonio Canonico..., cit., pp. 174-176.
172
Fernando F. Lopes, “Notas antonianas”, pp. 12-24, Colectânea de estudos, nº 2
(1947), 13-29; Antonio Rigon, “Antonio di Padova e il minoritismo padano”, pp. 173-178,
in Società Internazionale di Studi Francescani (ed.), I Compagni di Francesco e la prima
generazione minoritica. Atti del XIX convegno internazionale, pp. 169-199, Espoleto,
Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1992.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 411

para a função de “seu bispo”. Data destas circunstâncias o que se poderia


chamar de verdadeira entrada na Ordem: a integração no novo combate
franciscano da ardente vocação de António, modificando-lhe o que tinha
de mais arcaico. Os vastos conhecimentos de teologia que lhe proporcio-
nara a formação numa ordem religiosa tradicional, que ele procurara
abandonar e esconder, serão afinal postos ao serviço de um grupo que
professava desprezar o saber mas que conhecia a importância do mesmo
no seio de uma sociedade em rápida mudança 173.

À Ordem de S. Domingos pertencem três figuras de grande interesse,


no contexto dos aspirantes à santidade do Portugal da segunda metade do
séc. XIII. Num período relativamente curto, viveram e morreram em fama
de santidade Paio de Coimbra, Gil de Santarém e Gonçalo de Amarante.
De cada um deles, memórias diversas fixam aspectos complementares de
um tipo de santidade que a ordem dominica também compendia, no tipo
de relato hagiográfico eminentemente prático e enciclopédico de que são
emblemáticas a Legenda Aurea e as Vitae Fratrum 174. No entanto, e este
facto não é menos interessante, sobre essas memórias ergueram-se esque-
cimentos e mutações significativas nas imagens que restaram dos santos
e beatos, testemunhando um trabalho da visão comum dos fiéis. Vejamos
alguns destes aspectos, tendo por fio condutor os três percursos acima
indicados.
Paio de Coimbra (m.c.1250), quase certamente o Fr. Paio Abril que
exerce importantes funções no seio da Ordem, foi um pregador de renome
e vasta cultura 175. Talvez tivesse frequentado Santa Cruz de Coimbra, tal
como Fernando de Bulhões, que terá conhecido; seria nesse caso mais um

173
Antonio Rigon, “S. Antonio e la cultura universitaria nell’Ordine francescano
delle origini”, in Società Internazionale di Studi Francescani (ed.), Francescanismo e cul-
tura universitaria. Atti del XVI convegno Internazionale, pp. 69-92, Perugia, Univ. degli
Studi di Perugia/Centro di Studi Francescani, 1990.
174
Alain Boureau, L’évenement sans fin..., cit., pp. 53-80; caracterização da santi-
dade dominica em Michael Goodich, ‘Vita perfecta’, cit., pp. 146-155.
175
Principais estudos bio-bibliográficos: Mário Martins, “O sermonário de Fr. Paio
de Coimbra do Cód.Alc. 5/ CXXX”, Didaskalia, III (1973), pp. 337-36; John G. Tuthill,
“Fr. Paio’s sermons on the Virgin Mary”, Congresso Histórico de Guimarães e sua cole-
giada, vol. II, pp. 193-203, Guimarães, Comissão Organizadora, 1981 e “Fr. Paio and his
406 sermons”, Actas do II Encontro sobre História Dominicana, I, pp. 347-363, Porto,
Arquivo Histórico Dominicano, 1984; Aires Nascimento, “Paio de Coimbra, frei”, in
Dicionário de Literatura, cit., pp. 504-506; Michael Goodich, ‘Vita perfecta’, cit., p. 235.
412 MARIA DE LURDES ROSA

dos clérigos de formação tradicional atraídos pela novidade das ordens


mendicantes. A colecção de sermões que chegaram até nós destaca-se
pela dimensão, abrangência de temas e profundidade de análise. Situados
entre a exegese bíblica e a pregação 176, testemunharão por este facto a
dupla formação religiosa do seu autor. Foram pregados em diversas cir-
cunstâncias e auditórios – perante leigos, mas também frades letrados e
teólogos –, em festas e peregrinações, por todo o País. Dão ainda conta da
itinerância do seu autor, viajado por Inglaterra e bom conhecedor de Itália.
De forte inspiração hagiográfica, a par de um claro à-vontade no santoral
tradicional, divulgam os novos santos dos pregadores e frades menores:
desde logo António, no que talvez sejam os mais antigos sermões sobre o
santo português, mas também, em número superior a todos os outros fun-
dadores de ordens religiosas, o próprio S. Domingos 177. Em suma, Paio de
Coimbra foi o culto e incansável pregador, encarnando como tal um dos
princípios ordenadores da família religiosa a que pertencera.
Poucos anos depois da sua morte, um confrade enviou ao cronista
geral da ordem, Gerardo de Frachet, um pequeno relato sobre ele 178. Em
termos biográficos, foca quase exclusivamente a morte de Paio, para em
seguida se espraiar sobre os milagres que se davam junto ao túmulo, no
convento dominicano de Coimbra. No conjunto dos capítulos temáticos
de Frachet 179, Fr. Paio encontra-se significativamente entre “os que
depois da morte resplandeceram com milagres”. É curioso e emblemático
este tipo de registo hagiográfico dos milagres. Situa-se entre a aceitação
da austeridade mendicante quanto ao papel dos milagres em vida na san-
tificação individual, e a integração da necessidade de maravilhoso de que
rapidamente os reformadores se deram conta, aqui relegada para o pe-
ríodo pós-morte 180.
Ora estes milagres, que testemunham de forma clara um culto junto
do túmulo, pouco se relatam com a actividade do pregador em vida, ou
com o tipo de santidade que encarnara ou perseguira. Num total de dez

176
Aires Nascimento, “Fr. Paio...”, cit., p. 506.
177
Mário Martins, “O sermonário...”, cit., pp. 353-354.
178
Gérard de Frachet, As vidas dos Irmãos, trad. port. de Alberto Mª Vieira, pp. 306-
-308, Fátima, Secretariado Provincial Dominicano, 1990.
179
Pietro Lippini (trad. e notas), Storia e leggende medievali. Le ‘Vitae Fratrum’ di
Geraldo di Frachet o.p., Bolonha, Ed. Studio Domenicano, 1988.
180
André Vauchez, “Saints admirables et saints imitables: les fonctions de l’hagio-
graphie ont-elles changé aux derniers siècles du Moyen Âge?”, pp. 165-172, in La fonc-
tion des saints, cit., pp. 160-172.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 413

milagres, apenas um se pode relacionar com a sua mensagem: o pecador


que se arrepende, confessa e converte. Dos restante, oito são curas físicas
do tipo taumatúrgico mais tradicional, indo desde a cegueira à febre, pas-
sando pela possessão demoníaca. O último é um estranho prodígio ligado
à multiplicação dos elementos naturais, testemunhando uma prática
“mágica” por parte dos seus próprios confrades. Vendo que não tem cobre
suficiente para fundir um sino, um deles junta terra do sepulcro de Paio à
fundição, multiplicando-a para além do necessário. Curiosamente, este
será o único milagre referido a propósito do dominicano muito mais tarde,
no século XVI, numa obra que condensa inúmeras tradições hagiográfi-
cas de Coimbra, o Livro da Vida dos Bispos do cónego Pedro Álvares
Nogueira. É aliás atribuído ao próprio Paio, referido como “bem-aventu-
rado”, e creditado com outra acção miraculosa, a de ter lançado os funda-
mentos da torre milagrosa onde se encontra o sino. Oscilando enorme-
mente quando o sino toca, a torre nunca cai. A crença no milagre
mantinha-se então bem viva, e era mesmo objecto de uma encenação para
eventuais incrédulos: o sino, que estava retirado porque os rapazes o esta-
vam sempre a tocar, era colocado na torre e repicado, para que todos vis-
sem uma das “maravilhas da torre”, como lhe chama Pedro Nogueira, que
fizera a experiência (“sam tantas que as marauilhas desta torre que as
não crera senão quem as esprementar como eu fiz, posto que sam muito
notórias nesta Cidade”) 181.
Frei Gil de Santarém (m. 1155 ou 1185), ao contrário de Paio, foi
protagonista de um circunstanciado relato biográfico após a morte, a per-
dida Vita de Fr. Pero Pais, seu condiscípulo. Esta é aliás a primeira de
várias outras, de autores dominicanos, entre as quais avultam, todas em
Quinhentos, a de Baltasar de S. João (1537) 182, André de Resende (ed.
[1586]) e António de S. Domingos (1552) 183. Nestas se encontra já aquela
que virá a ser a mais conhecida peripécia da existência deste frade, o pacto
que celebra com o Demónio para obter o conhecimento profano. Atribuível
a contextos que a moderna crítica tem tornado claros, a formação da lenda

181
Pedro Álvares Nogueira, Livro das vidas dos bispos da Sé de Coimbra, pp. 71-
-72, ed. A. G. da R. Madahil, Coimbra, Publicações Arquivo e Museu de Arte da
Universidade, 1942.
182
A vida do Bem-aventurado Gil de Santarém, por Fr. Baltazar de S. João, ed. A.
A. Nascimento, Lisboa, s.n., 1982.
183
Tudo segundo Aires Nascimento, A vida do Bem-aventurado, e “Gil de Santarém,
frei”, in Dicionário de Literatura, cit., pp. 294-295.
414 MARIA DE LURDES ROSA

não deixa de estar relacionada, ela própria, com características peculiares


da religiosidade e santidade dominica. Vejamos em maior pormenor algu-
mas destas ideias.
Os dados biográficos reais, em parte incorporados por Gérard de
Frachet nas Vitae Fratrum (a partir de registos fornecidos pelo próprio
Gil) e em parte expurgados das tramas mais lendárias das “vidas” portu-
guesas, permitem-nos um bom conhecimento do personagem. De origem
fidalga, muito provavelmente clérigo secular de Coimbra antes de se jun-
tar aos frades pregadores, exercia ainda a medicina. Pouco antes de 1223,
parte para Paris para cursar a Faculdade de Teologia, aí vivendo vários
anos. Embora talvez datassem de antes os seus contactos com os
Pregadores, será então que professa na Ordem, a crer pela entrada na
mesma época daquele que sabemos ter sido seu companheiro de novi-
ciado, Humberto de Romans. Prosseguidos os estudos, e sempre prati-
cando a medicina, acaba por regressar a Portugal em 1229. Exerce o ofí-
cio de pregador e chegará a provincial das Espanhas, em 1233; por
inerência deste cargo irá desempenhar o papel de executor da bula de
deposição de D.Sancho II. Parece ter continuado a exercer medicina em
Portugal, e é provável que seja da sua autoria uma tradução latina de uma
obra médica do árabe Razi 184.
Em termos de espiritualidade, as Vitae Fratrum apontam-no como um
frade humilde, austero e profundamente caritativo. A sua relação com o
saber que exercia é sobretudo prática: ajuda os doentes, limpa as enfer-
marias, e recusa especulações sobre o saber mundano, do qual procura
sempre desviar as conversas. Místico e iluminado, como ele próprio tes-
temunha, era dado a arrebatações súbitas e, pelo menos numa ocorrência,
mostrou possuir o dom de explicar as visões de um frade moribundo 185.
Não há porém acenos milagrosos nestes dons, e está completamente
ausente a explicação da origem demoníaca do seu saber.
Tanto o percurso de vida como as características espirituais que lhe
atribuem os confrades, demonstram ter sido Gil de Santarém um domini-
cano perfeitamente conforme ao espírito da sua Ordem. Teólogo e médico,
pregador e homem interveniente na política do seu tempo, viajado por

184
Aires Nascimento, A vida do bem-aventurado..., cit., p. 12 e pp. 16-18; Luciano
C. Cristino, “Presença dominicana na região de Leiria antes de Sta. Mª da Vitória (sécs.
XIII-XIV)”, Actas do II Encontro sobre História Dominicana, t. II, pp. 81-94, Porto,
Dominicanos, 1986.
185
G. Frachet, Vitae fratrum, ed. cit., pp. 146-147 e pp. 266-267.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 415

Paris, Espanha, Itália e Portugal, Gil encarna bem o tipo do novo religioso
idealizado por Domingos de Osma para a renovação da Igreja. Em termos
de santidade, por acréscimo, podemos reunir alguns indícios que apontam
para precoces tentativas de canonização, decerto popular mas talvez tam-
bém envolvendo os dominicanos. É assim que a primeira vida quinhen-
tista relata uma rápida veneração do túmulo pelo povo, que acaba por for-
çar o Prior do Convento de Coimbra a trasladar o corpo santo para uma
sepultura mais ilustre. Durante a trasladação sente-se a inevitável fra-
grância e realizam-se várias curas. O autor regista depois uma longa série
de milagres, enquadrados por referências humanas e geográficas concre-
tas, que apresenta como uma resenha dos mais coerentes, prosseguindo
até ao presente. Não é impossível aliás que a Vita do séc. XIII, embora
tivesse talvez um cunho mais memorialista que hagiográfico, se inserisse
num incipiente processo de canonização, que teria sido acompanhado
pela recolha de milagres (os mais antigos que figuram na obra de Baltasar
de S. João); pelo menos, ela é solicitada como peça para o processo de
canonização intentado em 1627 pelo bispo de Viseu, D. Frei João de
Portugal. Nesta época existia de resto um culto conventual de Fr. Gil, cir-
cunscrito aos cenóbios onde havia relíquias suas 186.
O reverso da medalha na história de Fr. Gil reside no episódio da gruta
de Toledo. Sucintamente, e tal como nos chega na fonte mais antiga
(Baltasar de S. João), consiste na história da atracção fatal do jovem estu-
dante em viagem para Paris, por uma gruta na região de Toledo onde os
nigromantes praticavam as suas artes. É conduzido aí pelo próprio demónio,
e acabará por lá ficar sete anos, completando um período ritual de aprendi-
zagem. Ao fim do primeiro ano, e a instâncias dos demónios seus professo-
res, faz um pacto com eles, entregando-lhes a alma, o que comprova através
de um documento escrito com o próprio sangue. Acabada a aprendizagem,
dirige-se a Paris, onde exerce medicina com dotes sobrenaturais. Um sonho
que lhe anuncia a morte próxima, caso não mude de vida, abre o processo
da conversão, alcançado por fim junto dos Pregadores. Várias vezes resis-
tindo a diferentes tentações, acaba por obter a anulação do documento infer-
nal que assinara, graças a uma ardente devoção à Virgem Maria 187.
Ausente nas fontes dominicanas do séc. XIII, esta lenda ter-se-à formado
nas duas centúrias seguintes. Às explicações anteriores para a presença

186
Sobre estes últimos dados, Aires Nascimento, Vida do bem-aventurado, ed. cit.,
p. 8.
187
Baltasar de S. João, ed. cit., pp. 28-54.
416 MARIA DE LURDES ROSA

deste estranho episódio na vida de Gil tem-se vindo a impor uma outra,
que parte da própria natureza do textos. Existe, antes de mais, uma incor-
poração de elementos mais antigos e de larga circulação, num processo
típico do discurso hagiográfico, que procurava ilustrar uma conversão
implicando radical mudança de vida, resgate e redenção. O tema do pacto
com o Demónio para aquisição de saberes profanos e ocultos, e inclusi-
vamente a ligação à medicina árabe de Espanha, surgem noutras vidas de
santos ou relatos edificantes: “Vida do Papa Silvestre II”, milagre ma-
riano de Teófilo, “exemplum” de Estêvão de Bourbon sobre o fidalgo
arruinado, etc. 188.
No âmbito do nosso texto, interessa-nos sobretudo averiguar se exis-
tirá alguma especificidade ligada à espiritualidade mendicante, por detrás
desta osmose. De facto, pela negativa, a aventura de Gil é uma fonte de
ensinamentos, e parece-nos poder afirmar-se que a incorporação do epi-
sódio do pacto tem duas funções principais. Em primeiro lugar é um
directo aviso contra o excessivo zelo e entusiasmo pela vida moderna e
mundana em que viviam e se movimentavam os irmãos pregadores. Em
segundo lugar, e ainda mais especificamente, alerta contra os perigos do
mundo universitário, onde a ascensão na escala docente provoca a ambi-
ção, e o saber corre o risco de valer em função de outros objectivos que
não os religiosos ou devocionais. Os poucos indícios que existem acerca
da difusão desta lenda corroboram as hipóteses expostas: não figura no
Flos Sanctorum de 1513, destinado à grande divulgação, e é sempre refe-
rida pelo exemplar existente em S. Domingos de Santarém. Terá assim
ficado circunscrito aos ambientes dominicanos, onde se destinaria sobre-
tudo à actuação da Ordem junto de camadas universitárias 189.
Deixámos para o final Gonçalo de Amarante (m. 1259) 190, pelas carac-
terísticas mais heterogéneas do seu percurso de vida e tipo de santidade.

188
Aires Nascimento (ed.), Vida do bem-aventurado..., pp. 13-14 e “Gil de
Santarém”, cit., p. 294.
189
Aires Nascimento, “Gil de Santarém”, cit., pp. 294-295. As linhas supra são lar-
gamente tributárias das obras de Aires Nascimento que temos vindo a citar, onde, como
referimos, se re-equaciona toda a lenda de Fr. Gil. Veja-se ainda, do mesmo autor, “Frei
Gil de Santarém, o Fausto português”, Actas do colóquio comemorativo de S. Frei Gil de
Santarém, pp. 351-364, Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, 1992 e “O
pacto com o demónio nas fontes medievais portuguesas: Teófilo e Fr. Gil de Santarém”,
Actas del III Congreso de la Asociación Hispanica de Literatura Medieval, t. IIII, pp. 737-
-745, Salamanca, 1994. Tentámos enquadrar as informações constantes nestas obras nas
linhas interpretativas do conjunto da presente análise.
190
M. Goodich, Vita perfecta, cit., p. 227; Arlindo de Magalhães R. da Cunha, S.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 417

Existem referências esparsas ao seu culto desde 1279, no que seriam uns
escassos vinte anos após o seu falecimento; do século XV datam as pri-
meiras menções à sua comemoração litúrgica 191. Cristina Sobral crê que
a “igreja de S. Gonçalo de Amarante” referida em 1279, 1338 e com
maior frequência durante o século XV, seria o oratório referido no texto
hagiográfico quinhentista e noutras fontes, construído sobre a sepultura
do santo, e que tinha também funções de santuário. Quanto à área de difu-
são do culto, ela sofre ao longo dos séculos XIV e XV uma progressiva
expansão, de Amarante e Guimarães, até Chaves e Braga 192.
Em termos hagiográficos, porém, nada subsiste anterior à “Vida”
inserta no Flos Sanctorum impresso em 1513 193. Certamente baseado em
tradições e escritos mais antigos 194, talvez depositados em Amarante, o texto
apresenta uma estranha figura de santo pároco, eremita-peregrino e por fim
dominicano, que aplica os seus dons milagrosos ao domínio das forças natu-
rais, em benefício da população. Os dados acrescentados pelos hagiógrafos
posteriores, entre os quais podemos citar como exemplar Fr. Luís de Sousa,
acusam uma grande fragilidade documental quando tentam discutir anti-
guidades, reflectindo ainda os conflitos – e invenções – dos autores de
diferentes famílias eclesiásticas que reivindicam o santo (dominicanos,
beneditinos e cónegos de N. Sra. da Oliveira, de Guimarães) 195. O que nos
interessa porém salientar é que em inícios do século XVI, no primeiro
escrito hagiográfico que nos chega, S.Gonçalo é um santo dominicano, que
aliás terá desde meados desse século culto autorizado nos conventos da
Ordem em Portugal e, no seguinte, no estrangeiro 196.

Gonçalo, História ou Lenda?, Amarante, Amarante Magazine/Paróquia de S. Gonçalo,


1995; sobre a discussão da data, Cristina Sobral, Adições portuguesas..., cit., p. 165.
191
Cfr. Cristina Sobral, id., p. 167, a partir da investigação de Arlindo M. R. Cunha
e de outras fontes.
192
Cfr. para tudo e sucessos posteriores id, pp. 167-169.
193
Na edição de Cristina Sobral, Adições portuguesas..., cit., ocupa as pp. 606-614.
194
Luís Krus, “Vida de S. Gonçalo de Amarante”, in Dicionário de Literatura, cit., pp.
668-669; toda a questão é revista por Cristina Sobral, que apresenta convincentemente a pro-
posta da existência de um texto anterior, redigido por um dominicano, no séc. XV, natural
de Amarante, do qual procura depois os vestígios (Adições portuguesas..., cit., pp. 183-187).
195
Fr. Luís de Sousa, História de S. Domingos, vol. 2, pp. 181-183, Porto, Lello &
Irmãos, [1977]; discussão renovada do tema em Cristina Sobral, Adições portuguesas...,
cit., pp. 166-167, que conclui pela razoabilidade das propostas de Arlindo de Magalhães
R. da Cunha, sobre a forte probabilidade de uma passagem pela Colegiada de Sta. Maria
da Oliveira.
196
Fr. António do Rosário, “Gonçalo de Amarante, são”, in Verbo Enciclopédia
Luso-Brasileira de Cultura, Lisboa, Verbo, 1969.
418 MARIA DE LURDES ROSA

Retomemos os textos acima referidos, a partir da versão mais antiga,


de 1513. Por devoção dos progenitores e inclinação natural, Gonçalo
segue a carreira eclesiástica em Braga, tendo sido levado ao arcebispo
pelo próprio pai, juntamente com vários presentes. Depois de ordenado,
recebe uma igreja paroquial, onde se desdobra em ascetismo, pregação,
culto e sentidas devoções a Cristo e Nossa Senhora. Permanece aí largos
anos, até que decide peregrinar a Roma e Jerusalém, deixando um sobri-
nho, que criara, a tomar conta do local e do culto. Começa uma segunda
fase da sua vida, na qual se transforma em errante e pobre peregrino,
durante catorze anos. Desejando por fim rever os paroquianos, vem
encontrar o sobrinho entregue a uma vida dissoluta, e é expulso e espan-
cado por ele, indo viver para uma cela, onde “fez vida de irmitaão” 197. Aí
retoma a actividade caritativa e o ascetismo, bem como a sua espirituali-
dade centrada na Virgem Maria. Será uma aparição da própria Senhora
que o manda ingressar na ordem religiosa que Lhe faz uma especial honra
litúrgica. A mensagem mariana reveste a forma de um enigma, que o
incita a uma “pia demanda”: “Levanta-te, vay e busca antre os estados
dos religiosos em o qual o meu officio de cada dia se começa em «Ave
Maria» e em «Ave Maria» se acaba. E entra aa cõpanhia dos frades
dessa religiom. Ca este he o estado o qual eu afermosentey cõ habito que
do Ceo trouxe e em elle acabarás e aa gloria sempiterna viinrás” 198.
Munido com estas instruções enceta a sua segunda errância, e acaba por
reconhecer nos Pregadores a ordem eleita. Ingressando no convento de
Guimarães, não irá ficar aí muito tempo, pois é enviado em pregação,
indo por fim viver na mesma cela eremítica. Depois de alguns anos, nos
quais realiza milagres vários, morre, orando sempre à Virgem Maria. A
sua santidade é então proclamada por coros de anjos, e as populações
locais correm a sepultá-lo, honrando o seu túmulo desde essa mesma
hora. Depois da morte, aparecerá vestido de Pregador para defender con-
tra as correntes invernais a ponte que edificara com o auxílio de vários
milagres.
Neste relato entrecruzam-se elementos muito diversos, não apagados
pelo que pensamos poder chamar de “refundição dominicana”, que em si
mesma também é curiosa. Vejamos aqueles, para em seguida abordarmos
esta. O percurso de Gonçalo antes de se tornar frade aponta-nos para duas
realidades religiosas anteriores aos mendicantes: a das igrejas familiares
e a do eremitismo. A primeira, patente na entrega da paróquia ao sobrinho,

197
Ed. cit., p. 609.
198
Idem.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 419

seu criado, é sobretudo interessante enquanto remete para uma organiza-


ção eclesiástica mista, contra a qual se manifestaram várias correntes de
reformadores. O resultado inesperado e negativo que é a ingratidão do
sobrinho, e a má orientação que durante vários anos sofrem os paroquia-
nos, são claras chamadas de atenção para os inconvenientes desta prática.
Mais interessante, porém, é o que pensamos ser o centro da opção reli-
giosa de Gonçalo. Com efeito, percorre toda a narrativa o seu pendor para
o eremitismo e vida ascética – já praticada enquanto pároco –, para a
errância e peregrinação. Ao todo, Gonçalo cumpre três grandes errâncias:
a peregrinação a Roma e Jerusalém, durante catorze anos; a procura dos
Dominicanos, obedecendo à ordem da aparição miraculosa da Virgem; e
a pregação e vida eremítica posterior. Por outro lado, os feitos miraculo-
sos que realiza revelam todos um domínio das forças naturais e terríveis:
rios, animais, torrentes invernais. Não é por acaso que o único mais direc-
tamente ligado a práticas eclesiásticas seja uma demonstração assom-
brosa do poder da excomunhão: Gonçalo transforma em pedras negras
uns alvos pães, fazendo ver à assombrada multidão o que a exclusão dos
fiéis pela Igreja faz às almas. Frei Luís de Sousa apercebe-se bem do
âmbito da referência, pois põe na boca de Gonçalo um discurso que equi-
para a excomunhão aos raios que fulminam, e cita dois outros milagres
onde as excomunhões secam árvores antes viçosas, como que atingidas
por relâmpagos 199.
Todas estas características nos remetem para um tipo de santidade
muito específica, a eremítica. Errância, correspondendo a uma busca da
alma visualizada no deambular do corpo; austeridade e devoções inten-
sas; vida em lugares recônditos; poderes sobre a natureza e os animais 200.
Talvez a que recolheu maior adesão espontânea por parte dos fiéis, ao

199
Fr. Luís de Sousa, op. cit., vol. 2, pp. 179-180.
200
A. Vauchez, La sainteté..., cit., pp. 381-84. Estudos recentes demonstram a liga-
ção entre o eremitismo e a errância cavaleiresca (aliás os eremitas que depois se revelam
“parentes” dos cavaleiros, são figuras correntes da literatura cavaleiresca); embora anterio-
res, os modelos porventura continuam influentes: E. Susi, L’ermita cortese. San Galgano
fra mito e storia nell’agiografia toscana del secolo XII, Spoletto, Centro It. di Studi
sull’Alto Medioevo, 1993; a sedução que o ermo exerceu, já no final da Idade Média, em
certos sectores da aristocracia cortesã, aficcionada aos valores da cavalaria, foi por nós
estudada em “Entre a corte e o ermo: reformismo e radicalismo religioso (fins do século
XIV – século XV)”, História Religiosa de Portugal, cit., vol. I, pp. 492-495 e “D. Jaime,
duque de Bragança: entre a cortina e a vidraça”, pp. 325-329, in Diogo Ramada Curto
(ed.), O Tempo de Vasco da Gama, pp. 319-332, Lisboa, Difel, 1998. Sobre o eremitismo
aguarda-se a diss. de doutoramento de João Luís Fontes (FCSH da UNL).
420 MARIA DE LURDES ROSA

longo de toda a Idade Média, nem por isso entusiasmou a Igreja institu-
cional, e o culto grande parte dos santos eremitas ficou ao nível local. Ou,
e aqui entra o que chamámos “refundição dominicana”, estes homens
milagrosos, carismáticos, são integrados no tipo de santidade e espiritua-
lidade mendicante, tornando-se possível uma sua aceitação menos caute-
losa. É exemplar a figura de S. Nicolau de Tolentino, tal como a transmite
o processo de canonização de 1325: eremita, acaba por se acolher à
influência do convento local de mendicantes, continuando embora a viver
solitário e a exercer com infatigável zelo a sua pastoral errante 201. Ora,
como relembra Cristina Sobral, já Frei Luís de Sousa notara as seme-
lhanças entre a hagiografia de S. Nicolau e a do santo amarantino 202.
Para que esta integração da “santidade de franja” se realizasse har-
moniosamente, havia porém que manter, mesmo reinterpretando-as no
global, sinais e devoções que lhe eram próprias. Assim se explica,
segundo nos parece, que seja a sua antiga devoção mariana, que Gonçalo
vivia de modo ardente, a indicar-lhe a Ordem Dominicana, mas sob a
forma de “enigma”, de busca, quase ao tipo do conto popular 203. Neste
último universo, por fim, talvez se encontrem algumas explicações para
outras características menos comuns desta hagiografia. Alguns aspectos
da ingratidão do sobrinho, o regresso incógnito de Gonçalo, a construção
de uma ponte, são traços que daí proviriam. De resto, parece-nos mesmo
encontrar sinais de uma estrutura narrativa de tipo tradicional, como
sejam os ditados e máximas (“se queres edificar ponte, edificarás antre
mõte e mõte” 204, e “sentença de excomunhõ nõ quebrava os ossos, ne~
danpnava a alma” 205), e os traços de rima, remetendo para uma leitura
oral e cadenciada (“E Gonçalo nom esquecido, novo sacerdote e novo

201
A. Vauchez, La sainteté..., cit., pp. 387-388.
202
Adições portuguesas..., cit., p. 185.
203
Como referimos supra, p. ***.
204
Ed. cit., p. 610.
205
Ed. cit.,. p. 611. Esta alocução tem um uso mais repandido, sendo por exemplo
reportada como de uso frequente, mesmo pelos eclesiásticos, na Montaillou de Jacques
Fournier (Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou. Cathars and Catholics in a French vil-
lage, 1294-1324, 3ª ed., p. 335, Londres, Penguin Books, 1990); entre nós surge, sob dife-
rentes formas, em queixas dos eclesiásticos ao rei, nos séculos XIII e XIV (1250: na Cúria
de Guimarães, o clero reporta que os meirinhos régios afirmam “quod non darent pro
excommunicatione paleam unam”; 1361: nas cortes de Elvas, queixam-se dos oficiais de
justiça do rei declararem “que escõmunhom nom brita osso, e que o vinho nom amarga ao
escõmungado” (cit. em Nuno E. Gomes da Silva, História do direito português, 3ª ed., p.
245, Lisboa, F. C. Gulbenkian, 2000).
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 421

prelado, do preceito sagrado do seu prelado, que sob tanta discriçom lhe
era emposto e mandado...”) 206.

Isabel de Aragão (m. 1336) avulta como a grande figura, quase


única, da santidade no século XIV português. É tanto mais interessante
quanto encarna um tipo de transição, de fortes características autónomas,
que os Franciscanos integraram durante os seus tempos áureos, mas sobre
o qual irão perder algum controlo na época das grandes controvérsias
internas. Falamos da santidade feminina, nascida do anseio de ascetismo
e pobreza, mas perfilando-se cada vez mais numa mística nem sempre
disposta a aceitar a mediação eclesiástica.
Campos historiográficos novos, florescentes sobretudo a partir dos
movimentos de libertação feminina dos anos 60/70 deste século, e do pós-
-Vaticano II, no campo católico, a espiritualidade e santidade das mulhe-
res suscitaram e suscitam uma enorme bibliografia. Cingindo-nos neces-
sariamente aos temas principais para a Idade Média tardia, tentemos uma
breve síntese 207. Os autores sublinham desde logo um significativo
aumento quantitativo das canonizações femininas, implicando um reco-
nhecimento e mesmo estratégia da alta hierarquia eclesiástica em relação
às aspirações religiosas das mulheres. Dos 10% do período entre 500 e
1200, passa-se a 18% de 1198 a 1431; esta percentagem elevam-se ainda
mais se excluirmos os santos necessariamente masculinos, como os bispos,
e os pertencentes às ordens religiosas tradicionais: 21,4% de mulheres entre
os santos mendicantes, e 58,8% entre os santos leigos 208. Como os últimos

206
Ed. cit., p. 607.
207
Para além da bibliografia citada de seguida a propósito de pontos concretos, cfr.
estados da questão e sínteses em obras como Angela Muñoz Fernandez (ed.), Las mujeres
en el cristianismo medieval. Imágenes teóricas y cauces de actuación religiosa, Madrid,
Associación Cultural Al-Mudayna, 1989; Angela Muñoz Fernandez, Mª del Mar Graña
(ed.), Religiosidad femenina: expectativas y realidades (secs. VIII-XVIII), Madrid,
Associación Cultural Al-Mudayna, 1991; Lucetta Scarafia, Gabriella Zarri (ed.), Donne e
fede. Santità e vita religiosa in Italia, Bari. Laterza, 1994; Angela Muñoz Fernandez,
Beatas y santas neocastellanas: ambivalencia de la religión y politicas correctoras del
poder, Madrid, Comunidade de Madrid, 1994; uma recentíssima nota bibliográfica sobre
a hagiografia confirma a importância deste campo de estudo: M. Lauwers, “Récits hagio-
graphiques, pouvoir et institutions dans l’Occident médiéval”, in Révue d’Histoire ecclé-
siastique, vol. 95/3 (Jul-Set. 2000), pp. 71-96 (nº especial: “Deux mille ans d’histoire de
l’Église. Bilans et perspectives historiographiques”).
208
A. Vauchez, Les laïcs au Moyen Age. Pratiques et expériences religieuses, p.
190, Paris, Du Cerf, 1987.
422 MARIA DE LURDES ROSA

números indiciam, as alterações têm uma raiz de ordem qualitativa: as


mulheres foram singularmente atraídas pelas novas ordens mendicantes,
tanto na sua versão de vida consagrada conventual como nas Ordens
Terceiras, que permitiam a manutenção do estado leigo. De resto e,
segundo fortes indícios, a partir dos movimentos mais espontâneos,
grande número de devotas optaram por um estado intermédio, em que se
votavam a Deus mas não professavam solenemente, mesmo que toda a
vida se movessem em círculos clericais e não contraíssem laços familia-
res. Entre os casos mais famosos conta-se Santa Catarina de Sena (m.
1380), que nunca professou na Ordem Dominicana, ainda que tivesse
sempre vivido rodeada de Pregadores, sobre os quais aliás exercia uma
considerável influência 209. As dificuldades que atravessam os mendican-
tes durante o século XIV, bem como uma certa desconfiança generalizada
em relação à excessiva proximidade entre as devotas e os seus confesso-
res 210, vão permitir que estes traços se desenvolvam com maior liberdade,
de tal modo que a centúria de Quatrocentos irá conhecer o apogeu destas
figuras de santas femininas, no que será talvez o cume da liberdade em
relação ao clero masculino: as “santas vivas” que alcançam o estatuto de
profetisas. Particularmente notório em Itália 211, este desenvolvimento terá
alguns paralelos entre nós, como veremos adiante. Entretanto, indique-
mos três últimas características da espiritualidade feminina deste período.
Em primeiro lugar, uma inclinação particular para o ascetismo e para
as devoções com acentuados traços afectivos, que nos casos extremos
assumem facetas mórbidas e mesmo sensuais. Sem querermos com isto
elaborar formulações valorativas, há que analisar com propriedade os con-
tornos de temas como, por exemplo, a aspiração ao martírio sangrento 212,
a devoção ao “Corpo de Cristo” na Eucaristia e o desejo da união mística 213,
ou ainda, a relação com o próprio corpo, entendido como palco da luta
contra o mal 214. Já no auge do período de influência mendicante, mas

209
Idem, pp. 265-271.
210
Anna Benvenuti Papi, “Devozioni private e guida di coscienze femminili”, Ricer-
che storiche, ano XVI, nº 3 (Set.-Dez. 1986); Blanca Garí, “El confesor de mujeres, media-
dor de la palabra femenina en la Baja Edad Media?”, Mediaevalia, 11 (1994), pp. 131-142.
211
Gabriella Zarri, Le sante vive. Profezie di corte e devozione femminile tra ‘400 e
‘500, Turim, Rosenberg & Sellier, 1990.
212
A. Vauchez, La sainteté..., cit., pp. 426-427.
213
A. Vauchez, Les laïcs..., cit., pp. 259-264.
214
Abundante bibliografia, da qual ver, em especial, Caroline Bynum, Holy fast
and holy food. The religious significance of food to medieval women, Berkeley/Londres,
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 423

sobretudo a partir da autonomização em relação aos confessores, a insis-


tência de algumas devotas nestes temas irá trazer-lhes problemas 215. É
conhecido sobretudo o desejo de comunhão frequente, e a crença no poder
de alimentação também corporal que tinham as partículas sagradas, a
ponto de se recusar outro alimento. Opôs violentamente aos respectivos
confessores e directores espirituais santas como Catarina de Sena ou
Doroteia de Montau (n. 1347), mas foi um fenómeno muito generalizado,
que continuará ao longo do misticismo feminino católico 216.
Em segundo lugar, deve apontar-se que, na generalidade dos casos,
muitas destas mulheres, e em especial as místicas, foram elementos extre-
mamente activos na sociedade. Seja em práticas caritativas, seja em inter-
venções directas na política eclesiástica e civil, toda uma galeria de
mulheres encontrou na razão religiosa um poderosa via de acção: entre as
principais, Isabel de Hungria, Catarina de Sena, Clara de Assis, Joana de
Maillé, Beatriz da Suécia, Isabel de Aragão 217.
Por fim, e regressando pois à virtuosa consorte de D. Dinis, parece-
nos poder falar da existência de uma certa consciência da força e dos tra-
ços distintivos da sua espiritualidade, por parte destas mulheres. Por um
lado, participava da piedade mendicante e era propiciada pela orientação
comum das redes franciscana e dominicana. Por outro, no entanto, era
existencial, e potencializava-se pelo conhecimento das vidas das mulhe-
res santas com as quais se identificavam as “aspirantes à santidade”. A
influência da literatura hagiográfica para os devotos em busca de perfei-
ção é de sempre, e já a salientámos várias vezes. De igual modo teve

Univ. of California Press, 1987; id., The ressurection of the body in Western Christianity,
200-1336, pp. 329-340, N. Iorque, Columbia U.P., 1995; R. M. Bell, La santa anoressia.
Digiuno e misticismo del Medioevo ad oggi, Roma/Bari, Laterza, 1987; Luisa Accati, “Tre
manuali di storia del corpo”, Studi medievali, ser. 3, 31:2 (1990), 805-836; A. Barbero, Un
santo in famiglia, cit., pp. 269-264; U. Wiethaus (ed.), Maps of flesh and light. The reli-
gious experience of medieval women mystics, N. Iorque, Syracuse U.P., 1993; para a for-
mação dos tópicos, Peter Brown, The body and society. Men, women and sexual renun-
ciation in Early Christianity, N. Iorque, Columbia U.P., 1988; para as fontes devocionais,
A. A. MacDonald (et al.) (eds.), The broken body. Passion devotion in late-medieval cul-
ture, Groningen, Egbert Forsten, 1998; vários estudos recentes em Medieval theology and
the natural body, cit.
215
Coakley, John, “Gender and authority of the friars: the significance of holy
women for thirteenth century franciscans and dominicans”, Church History, ano 60º, nº 4
(Dez. 1991), pp. 445-460.
216
A. Vauchez, Les laïcs..., cit., pp. 261-63; Rudolph Bell, La santa anoressia, cit.;
Caroline W. Bynum, Holy fast, cit.
217
M. Goodich, Vita perfecta, cit., pp. 179-184.
424 MARIA DE LURDES ROSA

influência nos processos que se diriam mais “administrativos” da Igreja


católica: é visível nos processos de canonização, através das respostas das
testemunhas, que um ou outro modelo de santidade é invocado, ao tentar
caracterizar o santo em questão 218. Entramos aqui no complexo problema
da construção individual e social da santidade em vida dos próprios san-
tos, e nas transformações a que se sujeitam estes, depois de mortos. As
lendas de santos funcionavam como “estratégias de vida” para os aspi-
rantes a santos 219; serviam ainda como quadros de reconhecimento e pro-
clamação de esta virtude ou mesmo daquele comportamento mais estra-
nho: choros, extâses, venda dos bens aos pobres, mendicância 220. É um
pouco de tudo isto que encontramos na tessitura da obra fundamental que
é o Livro que fala da boa vida que fez a Raynha de Portugal, dona Isabel,
e dos seus bõos feitos e milagres em sa vida e depoys da morte. 221
Esta obra, que terá sido escrita pelo próprio confessor da Rainha, o
mendicante Frei Salvado Martins, chegou até nós apenas numa versão
quinhentista, sendo o título acima indicado uma reconstituição. No
entanto, além de algumas acrescentos no fim do texto, o grosso da obra
permanece fiel ao original e constitui portanto um rico material de traba-
lho 222. Na impossibilidade de nos alongarmos sobre ele, apontaremos aqui
algumas ideias, na linha que temos vindo a seguir.

218
A. Vauchez, La sainteté, cit., pp. 590-615.
219
G. Klaniczay, The uses of supernatural..., cit., pp. 95-110.
220
Aviad Kleinberg, Prophets in their own country. Living saints and the making of
sainthood in the late Middle Ages, pp. 30-39, Chicago-Londres, Univ. of Chicago Press,
1992.
221
Ed. J. J. Nunes, Vida e milagres de Dona Isabel, Rainha de Portugal, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1921. Utilizámos parcialmente o texto que se segue em
“Mendicantes e redes de piedade feminina (1278-1336): três donas em busca de religiosi-
dade própria e uma Ordem que descobre a sua «santa»”, História Religiosa de Portugal,
cit., vol. I, pp. 470-480.
222
Estudos principais: A. Garcia Ribeiro de Vasconcellos, Evolução do culto de
Dona Isabel de Aragão, esposa do Rei Lavrador D. Dinis de Portugal (a Rainha Santa),
t. 1, Coimbra, Impr. Univ., 1894; Angela Munoz Fernandez, Mujer y experiencia religiosa
en el marco de la santidad medieval, Madrid, Associación Cultural Al-Mudayna, 1988;
id., “Santa Isabel Reina de Portugal: una infanta aragonesa paradigma de religiosidad y
comportamiento femenino en el Portugal bajomedieval”, Actas das II Jornadas Luso-
-Espanholas de História medieval, vol. III, pp. 1127-1143, Porto, I.N.I.C, 1989; Robert
Folz, Les saintes reines du Moyen Âge en Occident: VIe.-XIIe. siècles, Bruxelles, Société
des Bollandistes, 1992; Ana M.Machado, “Livro que fala da boa vida que fez a Rainha de
Portugal, D. Isabel”, in Dicionário de Literatura..., cit., pp. 417-418.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 425

Poder-lhe-iamos talvez chamar-lhe uma “crónica hagiográfica”, pois


o facto de evocar a vida de uma grande senhora leiga fá-la seguir algumas
regras da biografia cortesã; mas é necessário insistir no carácter exemplar,
de construção da santidade, que manifesta, pois este é singularmente
semelhante ao de outras vidas de grandes nobres ligadas aos franciscanos.
Aqui parece-nos residir precisamente a sua maior importância, nem sem-
pre suficientemente realçada pelo enfoque de que tem sido alvo, excessi-
vamente literário e restringido a Portugal. De facto, os traços biográficos
de Isabel de Aragão são completamente “versados” no modelo de vida
que percorre um certo número de vidas de grandes damas da corte que
optam pela vivência franciscana, entre as quais avulta Isabel da Hungria,
tia-avó da Santa. As circunstâncias reais da vida das várias santas reflec-
tem-se em diferentes enredos; porém, sempre presente, está uma das pro-
postas franciscanas de concretização prática do ideal de pobreza, por
parte de grandes senhoras temporais. Entre as várias, precisamente aquela
que propõe a via intermédia. Vejamos como.
Dada a grande receptividade do franciscanismo no seio das cortes
reais e senhoriais da Europa do sul, pôs-se muito cedo o problema da opo-
sição entre a riqueza e pobreza, entre poder e despojamento e, com maior
acuidade no caso das mulheres, entre o seguir a Deus ou cumprir a sua
função social, mormente no jogo das alianças matrimoniais 223. Nem sem-
pre os Frades Menores souberam formular o “elogio da moderação” que
alcançou consenso entre os seus congéneres Pregadores 224. Surgem assim
opções radicais, como a de Dauphine e Elzéar de Sabran (m.1360 e 1323),
um casal da mais alta nobreza provençal, que opta pela castidade conju-
gal e, mais, tenta criar no seu castelo e terras uma espécie de sociedade
pura, mandando banir pelos seus oficiais, os “sensuais e impúdicos” e os
adúlteros renitentes 225. As influências dos espirituais franciscanos são cla-
ras nesta atitude, que esteve longe de ser única: há vários outros casos
semelhantes 226, e o casal de aristocratas provençais teve uma vasta rede
de apoiantes ou admiradores na França do Sul, Espanha mediterrânica e

223
A. Vauchez, Religion et société..., cit., pp. 19-56, e “Influences franciscaines et
réseaux aristocratiques dans le Val de Loire: autour de la bienheureuse Jeanne-Marie de
Maillé (1331-1414)”, in Mouvements franciscains et société française, XIIe.-XXe. siècles,
pp. 95-105, ed. A.Vauchez, Paris, Beauchesne, 1984.
224
Alessandro Barbero, Un santo in famiglia, cit., p. 285.
225
A. Vauchez, Les laïcs..., cit., p. 212.
226
Idem, pp. 203-209.
426 MARIA DE LURDES ROSA

Itália, ao nível das famílias da alta nobreza, como demonstrou o inquérito


para a canonização. Facilmente se vê, porém, o perigo social da generali-
zação desta atitude, que os Franciscanos mais moderados tentam limitar.
No jogo de influências que se desenhou no seio da própria Ordem, tão
dependente de apoios políticos, podiam ser decisivas as formulações
alcançadas num problema que tocava de perto a própria função e objecti-
vos do poder temporal. A corte de Aragão, de onde provinha Isabel, era
uma bolsa de influência franciscana importante (Jaime de Aragão, avô da
santa, patrocina uma primeira tentativa de canonização dos mártires de
Marrocos, como vimos), ligada ainda por laços matrimoniais às dinastias
do centro da Europa onde houve pela mesma época um florescimento de
santas e beatas entre as altas senhoras de corte 227.
Assim, a mensagem que «Vidas» como a de Santa Isabel da Hungria,
ou Isabel de Aragão fazem passar, é a da “fidelidade à regra” através da
dupla conduta. Não no sentido de duplicidade, mas no sentido de vida
interior, de perfeição nos vários papéis sociais – rainha, esposa, mãe –, de
vida devota orientada. Se existem condições para tal, a nobre senhora
poderá então fazer mudanças radicais: é o caso da viuvez de Isabel de
Aragão, que verdadeiramente inaugura a sua nova vida. Desde logo anun-
ciada no privado cortesão: presente junto de D. Dinis nos últimos momen-
tos deste, a Rainha retira-se logo de seguida à sua câmara e veste o hábito
de Sta. Clara das mãos de uma freira da Ordem. Mas também em público,
no primeiro aniversário da morte, e de uma forma bem simbólica. Indo
em secreta peregrinação a Santiago, entrega aí valiosas jóias e tecidos
ricos, e o próprio símbolo daquilo a que renunciava: “a mais nobre coroa
que ela avia com muitas pedras preciosas” 228. A esmolas e os jejuns que
fazia às escondidas de D. Dinis equiparam-se aos cuidados de Isabel de
Hungria, que participava dos faustosos jantares de corte mas tentava saber
pelos criados se os alimentos que comia tinham sido obtidos justamente.
Uma e outra vão fundando hospitais e mantendo pobres em vida dos mari-
dos, por vezes sendo por eles censuradas, como a lenda lembra para Isabel
de Aragão, através do “milagre das rosas”. Mas é verdadeiramente depois
da viuvez que, mais libertas da função política, podem disponibilizar os

227
Quadro genealógico em G. Klaniczay, The uses of supernatural power, cit., p.
100; José A. de Freitas de Carvalho, “Conquistar e profetizar em Portugal dos fins do
século XVI aos meados do século XVI. Introdução a um projecto”, pp. 71-72, Revista de
História, vol. 11 (1991), pp. 65-93.
228
Vida e milagres de Dona Isabel, ed. cit., p. 52.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 427

seus bens para a causa da pobreza. De resto, durante a vida do marido e


depois da morte deste, Isabel de Aragão é a santa exemplar do ponto de
vista político: pela via da moderação, evita várias vezes os confrontos
armados entre os membros masculinos da sua família. Desde bebé: o seu
avô faz as pazes com o filho, pai de Isabel, enquanto tem à sua guarda a
pequena infanta 229.
A este elemento central agregaríamos apenas mais três ideias. Em pri-
meiro lugar, a presença no meio deste grande quadro de conduta de outras
pequenas lições, em especial sobre a piedade quotidiana das senhoras de
corte. Os momentos devocionais de Isabel são cuidadosamente retratados:
“ela em cada uu dia rezava as oras canonicas e as oras de Santa Maria
e dos passados e fazia comemoraçom de muitos santos e santas e saia-se
aa capela que ela consigo trazia, mui rica e mui bem apostada...” 230.
Depois, uma atenção especial às mulheres, por parte desta santa feminina,
demonstrada na esmola às pobres envergonhadas, no casamento das
jovens, no ensinamento das donzelas. É especialmente interessante o
facto desta protecção se prolongar após a morte da Rainha, pois tanto nos
milagres realizados imediatamente após a morte, como nos que refere o
inquérito de canonização iniciado em 1576, a maioria das beneficiadas
são mulheres 231.
Por fim, a atenção dada aos aspectos dinásticos no conjunto desta
obra merece alguma atenção. Tem sido objecto de debate historiográfico
o papel dos carismas familiares e dinásticos na dimensão da santidade dos
reis e rainhas. Dada a persistência, ao longo de todo o período medieval,
na crença da transmissão dos carismas pelo sangue, e da posse destes
pelas dinastias reinantes e aristocracias, os primeiros autores que investi-
garam a santidade régia tenderam a ver nela uma sobrevivência, cristiani-
zada, das ideias carismáticas da realeza sagrada, de origem germânica ou

229
Vida e milagres de Dona Isabel, ed. cit., pp. 18-19; R. Folz, Les saintes reines,
cit., pp. 147-149.
230
Vida e milagres de Dona Isabel, ed. cit., p. 41; Angela Muñoz Fernandez, “Santa
Isabel Reina de Portugal”, cit., pp. 1132-1136; enquadramento destas práticas na devoção
das grandes senhoras nobres suas coevas e próximas, em Mª Lurdes Rosa, “Mendicantes
e redes de piedade...”, cit. Para o estudo da intervenção da Rainha na fundação do mos-
teiro de Santa Clara de Coimbra, importante foco das vivências religiosas femininas, Ana
Paula Santos, A fundação do mosteiro de Santa Clara de Coimbra: da instituição por D.
Mor Dias à intervenção da rainha Santa Isabel, Coimbra, diss. de mestrado apres. à FL
da UC, 2000, dact.
231
Angela Muñoz Fernandez, “Santa Isabel Reina de Portugal”, cit., pp. 1142-1143.
428 MARIA DE LURDES ROSA

do mundo antigo. Mais recentemente, insiste-se antes no carácter pessoal


– e não de função, ou de carisma – dos homens e mulheres que, desem-
penhando cargos régios ou principescos, ascenderam à santidade. O que
não implica, porém, que nas interpretações posteriores e, sobretudo, nos
usos destas santidades, afinal eminentemente “políticas”, não se tivesse
tentado sobrepor ao esforço individual de perfeição a ideia de um dom
herdado, transmitido pelo sangue 232. Nas vidas de santos reis e rainhas
influenciados pela espiritualidade mendicante, onde é tão clara a afirma-
ção da vontade individual em seguir preceitos de santificação novos,
podemos falar da presença de crenças mais arcaicas quanto à fonte dos
seus poderes? Se sim, como se conciliam elas com as opções conscientes
de vida que preconiza a religiosidade do tipo “moderno” que é a mendi-
cante? Não podendo responder totalmente a este vasto problemas, no
âmbito deste trabalho, alinhemos uma síntese, restringindo-nos ao nosso
estudo da Rainha Santa Isabel.
Já referimos a função pacificadora de Isabel no seio da aristocracia
guerreira da sua parentela; funciona nela como uma espécie de entidade
tutelar da paz linhagística, fundamental para o equilíbrio e manutenção do
poder. A pertença de Isabel a uma vasta rede de príncipes e reis é várias
vezes realçada na obra, duas das quais em reminiscência da própria
senhora: no enterro do avô vira ela dois reis e três rainhas, e no fim da
vida, no mosteiro de Coimbra, orgulhava-se de ser a rainha que vira mais
parentes, homens e mulheres, nas várias famílias reinantes 233). Como já
referimos, dentro da parentela régia de Isabel existiam várias santas rai-
nhas e princesas, que por vezes funcionaram como modelos umas para as
outras. É ainda ela quem trata das missas por sufrágio da filha Constança,
com a qual mantém uma comunicação além da morte 234. Por fim, os seus

232
Pontos da situação em Patrick Corbet, Les saints ottoniens. Sainteté dynastique,
sainteté royale et sainteté féminine autour de l’an Mil, Sigmaringen, Jan Thorbecke
Verlag, 1986; Michel Lauwers “Sainteté royale et sainteté féminine dans l’Occident
médiéval. A propos de deux ouvrages récents”, Révue d’Histoire Écclésiastique, vol. 83,
nº 1, 1988, pp. 58-69; G. Klaniczay “Sainteté royale et sainteté dynastique au Moyen Âge.
Traditions, metamorphoses et discontinuités”, Cahiers du Centre de Recherches Histo-
riques, Abril 1989, nº 3, pp. 69-80; Valerie Flint, The rise of magic, cit., pp. 386-90 (cris-
tianização da “realeza sagrada” dinástica e linhagística).
233
Vida e milagres de Dona Isabel, ed. cit., p. 20 e pp. 64-66.
234
Idem, pp. 26-28. Eventualmente, um topos tirada da vida de Sta. Isabel de
Hungria, que, numa das suas versões mais tardias, apresenta um milagre com algumas
semelhanças (C. Sobral, Adições portuguesas..., cit., p. 116).
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 429

descendentes irão por vezes colocar-se sob o seu patrocínio directo em


acontecimentos especialmente importantes para a família real. Referimo-
-nos ao casamento do Infante D. Duarte na capela sepulcral da sua ante-
passada, junto ao próprio túmulo, e às palavras do Infante D. Henrique,
relatando a cerimónia, ao referir-se que a Infanta noiva repousara algum
tempo no paço da Rainha Santa Isabel: “... parecia que casava da casa da
Rainha D. Isabel, e assim foi d’Aragom, e todos entendemos que pela
santidade da dita Rainha D. Isabel foy esto feito tão bem, e honradamente
da sua casa” 235.
No seu conjunto, os diferentes indícios não nos parecem provar uma
crença na origem carismática dos poderes de Isabel de Aragão. No relato
da sua vida, é muito maior a insistência no caminho de aperfeiçoamento
individual, essencialmente baseado na renúncia e no sacrifício. O dom da
paz e a comunicação com o Além (de resto com uma presença muito dis-
creta) vem da sua relação privilegiada com Deus, e o facto de se exerce-
rem também sobre a sua parentela (não só de sangue, note-se bem), não
os prende a laços sacrais de origem familiar. No entanto, existiram sem
dúvida apropriações dinásticas da própria Rainha, que se estendem até às
santas suas parentas. Mas funcionaram num sentido inverso à transmissão
dos carismas nos períodos mais antigos, ou seja, a posteriori: a partir de
santidades individuais, tingiram-se os laços familiares da áurea que delas
derivava. O que não deixa de pôr em evidência um interessante contraste:
a percepção das santidades individuais por outros que não os próprios
candidatos à santidade ou o seu círculo próximo, fazia-se afinal por tra-
ços bem tradicionais.

Com Gonçalo de Lagos, eremita de Santo Agostinho morto em fama


de santidade em 1422, começamos a última grande etapa desta viagem
pelas formas de santidade do Portugal medieval. Quase cem anos depois
de Isabel de Aragão, Gonçalo irá ser a primeira figura de relevo numa
galeria de personagens cujo problema central é não já a afirmação da von-
tade individual quanto à forma extrema de vivência do sagrado, mas sim
o desenvolvimento de novos percursos para esta, cada vez mais no sen-
tido da relação directa e íntima com o Divino. A mais interessante carac-
terística do século XV, sob este ponto de vista, é o «estilhaçar» das vias

235
In A. Garcia Ribeiro de Vasconcellos, Evolução do culto, cit., vol. 1, pp. 273-74.
236
A. Vauchez, La sainteté, cit., pp. 457ss; G. Klaniczay, The uses of supernatural
power, cit., pp. 76-77; G. Zarri, Le sante vive, cit., pp. 87-89.
430 MARIA DE LURDES ROSA

tradicionais e mendicantes de religiosidade e santidade, resultando um


pluralismo nem sempre enquadrável, a que apenas a “reconquista” tri-
dentina tentará por cobro, ou organizar. Percorrendo todas elas, está a
substituição da santidade enquanto imitação literal de Cristo, que passava
quase sempre por uma forte intervenção social, pela afirmação do Eu reli-
gioso como diferente do Divino, podendo unir-se-lhe através de proces-
sos de recolhimento e relação íntima, desligados de preocupações com o
real 236. Se se afirma ainda com frequência na órbita das ordens mendi-
cantes, não se trata da mesma adesão voluntariosa dos tempos anteriores.
Pelo contrário, é corrente serem os mendicantes a verem-se na necessi-
dade e interesse de tentar integrar tentativas autónomas: é o que se passa
um pouco com a Duquesa Constança de Noronha, e claramente com o
movimento iniciado por Beatriz Leitão, que culmina na Infanta Santa
Joana. A crer no seu biógrafo, a corte modelo do Infante D. Fernando do
pré-cativeiro também apresenta sinais de um complexo projecto pessoal
do seu senhor, onde a influência franciscana existe mas não se sobrepõe
às ideias do leigo que era o filho de D. João I. Em Nuno Álvares Pereira,
por seu turno, vamos encontrar um riquíssimo caso de opção radical, onde
se encontram os dois caminhos paralelos que foram o misticismo carme-
lita do sul de Portugal e as tradições religiosas das ordens militares. Por
último, no final do século, o movimento irá culminar com a fundação de
uma ordem e de uma congregação de raiz autónoma, pese embora a pos-
terior integração nos Franciscanos: a Ordem da Conceição de Maria e os
Amadeítas, dos profundos místicos que foram os irmãos Beatriz da Silva
e João de Meneses (beato Amadeu). Não podendo analisar em grande por-
menor cada uma destas personagens (que de resto não são de todo as úni-
cas, no rico panorama religioso quatrocentista português), procuraremos
caracterizar em traços largos o seu contributo para a formação da nova
forma de santidade que caracteriza o fim do período medieval.
O mais antigo escrito biográfico sobre S. Gonçalo de Lagos (m.
1422) que subsiste, data de 1604, e é da autoria de um ilustre correligio-
nário, D.Frei Aleixo de Menezes 237. Prende-se talvez com a renovação do
culto que se dá na segunda metade do século XVI, se as duas trasladações
solenes de 1559 e 1580 se podem interpretar nesse sentido 238. Afirma-se

237
Carlos Alonso, “Vida del Beato Gonzalo de Lagos, por Alejo de Meneses, OSA,
arzobispo de Goa”, Archivo Agustiniano, LXXII, nº 190 (1988), 275-298. Aguarda-se um
trabalho de Ana Maria Rodrigues sobre a personagem real de Fr. Gonçalo.
238
Alberto Iria (ed. e coment.), Treslado da portentosa vida de S. Gonçalo de Lagos
por Frei Aleixo de Menezes, pp. 39-41, Lagos, Câmara Municipal de Lagos, 1964.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 431

baseado em tradições anteriores, e traça o retrato de um homem sereno, a


quem vozes interiores e o Espírito Santo cedo revelam a sua vocação e a
ordem onde a deve realizar. Embora a Portentosa Vida o mostre como
activo pregador na cidade de Torres Vedras, onde acaba por se fixar, e sai-
bamos ter ele sido detentor de cargos sucessivamente mais importantes no
seio da Ordem, o texto predomina na sua apresentação como grande con-
templativo e orante, exímio em exercícios espirituais 239. São estes os pou-
cos traços que conhecemos do primeiro grande aspirante à santidade do
séc. XV, que contudo ressaltam uma opção religiosa vivida com bem
menos peripécias que a dos santos mendicantes do primeiro período, e
onde a serena contemplação é uma faceta bem integrada 240. De resto, a
própria ordem a que pertencia Gonçalo engloba-se na religiosidade de
tipo mendicante de um modo algo especial. Criada a partir da reunião de
diferentes grupos eremíticos por Alexandre IV, em 1256, aos quais é dada
a regra de Santo Agostinho, cedo se substitui aos Franciscanos nos favo-
res papais, em especial com Bonifácio VIII. Desde então figurou como
um exemplo de bem sucedida conciliação entre elementos tão sensíveis
como a opção pela pobreza, o aprofundamento dos estudos teológicos, a
vida eremítica e vida cenobítica. Conseguem por outro lado escapar às
controvérsias que flagelaram os Franciscanos e desenvolver uma espiri-
tualidade própria de um modo eclesialmente menos conflituoso que estes
ou os Pregadores 241.
À morte de Gonçalo, logo o culto se espalhou, cedo apossado por
uma confraria reservada à nobreza de Torres Vedras, fundada em 1422.
Uma das suas acções será a de tresladar o corpo para um monumento
fúnebre, numa capela maior, em 1492, procurando-se expandir o culto 242.
Este, de resto, revestiu traços muito populares, sendo um deles invocação
dos marinheiros do Algarve, de onde era natural o santo. Esta naturali-
dade parece ainda explicar uma protecção especial aos Algarvios, em que
se vê forçado a crer o rei D. João II aquando duma visita ao Algarve.

239
Aleixo de Meneses, Portentosa vida de S. Gonçalo de Lagos, ed. cit., pp. 13-14,
p. 17.
240
Carlos de Azevedo, “Figuras e mosteiros dos Eremitas de Santo Agostinho na
segunda metade do século XV”, Actas do Congresso Internacional Bartolomeu Dias...,
cit., vol. 5, pp. 393-409.
241
M. Goodich, Vita perfecta, cit., pp. 168-170; Benigno Van Luijk, “Hagiografia
agustiniana”, Archivo Agustiniano, 53 (1959), pp. 17-41.
242
Antero Nobre, O túmulo de S. Gonçalo de Lagos descoberto em Torres Vedras,
Faro, s.n., 1961.
432 MARIA DE LURDES ROSA

Impressionado, irá mesmo escrever uma carta à Câmara de Torres Vedras,


em 1495, felicitando-a pela posse do corpo santo. Torres Vedras vai rea-
gir à territorialização da protecção do santo pelo Algarve, através de um
procedimento «administrativo», que consiste em nomear Gonçalo como
seu padroeiro 243. Estes aspectos, se nada nos adiantam na concepção da
santidade de Gonçalo, dão-nos em contrapartida vários elementos para o
conhecimento da sua apropriação pelos devotos, bem imediata e simples.

Em torno da santidade de Nuno Álvares Pereira (m. 1431), salien-


taríamos apenas alguns traços curiosos da sua vocação, que nos parecem
surgir como fruto de ligação entre a espiritualidade carmelita, conhecida
através do convento de Moura, e formas de vivência religiosa própria das
ordens militares. Movemo-nos num terreno difícil, pela escassez de estu-
dos; as associações que fazemos são um primeiro esboço de globalização
das várias influências que nos parecem susceptíveis de ter moldado a per-
sonalidade religiosa de Nuno, frequentemente estudada de modo dema-
siado a-histórico e espiritualista, ao sabor das inúmeras apropriações
desta figura mítica da nossa história 244.
Reconhecida como lendária uma origem directa nos profetas vetero-
testamentários, os últimos estudos salientam que a Ordem do Carmo
conheceu um grande impulso na altura das Cruzadas, em que numerosos
guerreiros optam pela vida eremítica junto à capela da Virgem, no Monte
Carmelo 245. A primeira fundação portuguesa, em meados do séc. XIII,
dever-se-ia aos Cavaleiros de S. João de Jerusalém, que teriam chamado
os Carmelitas ao seu convento de Moura, para desempenharem funções
sacerdotais e espirituais. A ligação entre os Carmelitas e as ordens milita-
res teria assim também funcionado em Portugal, até pela forte implanta-
ção destas últimas nos territórios alentejanos onde, em 1354, isto sem
qualquer dúvida, está em actividade o Carmo de Moura. Parece-nos muito

243
Aleixo de Meneses, Portentosa vida de S. Gonçalo de Lagos, ed. cit., pp. 37-38.
244
Dados sobre as várias tentativas de canonização, J. P. Oliveira Martins,
“Canonisação do Condestável” in A vida de Nun’Álvares, 3ª ed., pp. 470-474, Lisboa,
Parceria António Mª Pereira, 1917; Sérgio Campos de Matos, História, mitologia, imagi-
nário nacional. A História no curso dos liceus (1895-1939), pp. 137-142, Lisboa, Hori-
zonte, 1990; Sérgio C. Lima, Cruzada nacional D. Nuno Álvares Pereira: estudo de uma
organização política, Lisboa, polic., 1993; desenvolvi o tema em “Hagiografia e santi-
dade”, cit., pp. 341-42.
245
M. Goodich, Vita perfecta, cit., p. 170.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 433

provável que tivesse sido por esta via o conhecimento e frequência assí-
dua do Carmo de Moura, por Nuno Álvares, desde jovem 246.
No sul se situavam de resto importantes pólos da vivência religiosa
das ordens militares, entre os quais destacaremos o santuário da Vera
Cruz do Marmelar e Santa Maria de Tavira. O primeiro pertencia ao pró-
prio pai do Condestável, enquanto prior do S. João do Hospital; será ele
a levar a relíquia da Vera Cruz na batalha do Salado, proclamando a sua
eficácia e incutindo a confiança aos guerreiros 247. Santa Maria de Tavira,
por seu lado, encerrava os corpos de cinco cavaleiros e um comendador
de Santiago mortos à traição pelos Mouros, juntamente com um mercador
que os auxiliava 248. Em torno deste episódio rapidamente se forma uma
lenda de martírio, difundida talvez pela crónicas da Ordem de Santiago 249.
No séc. XV Rui de Pina recolhe uma tradição escrita, que mostra estes
Sete Cavaleyros Martyres como defensores de Tavira contra os invasores,
que eram no episódio em causa as tropas do rei de Castela, Afonso IV.
Aparecem sobre a igreja de Santa Maria sete gigantes vestidos de branco,
empunhando as bandeiras de Santiago. O velho guardião do templo
explica ao rei castelhano quem são eles, e os milagres que realizam.
Ainda segundo a mesma fonte, já o famoso Mestre Paio Peres Correia se

246
Arie G. Kallenberg, “O Santo Condestável e os primeiros Carmelitas em
Portugal”, p. 260, Actas do Congresso Internacional de história: Missionação portuguesa
e encontro de culturas, vol. 1, pp. 261-265, Braga, U.C.P., 1993.
247
Mário Martins, Peregrinações..., cit., p. 141; Bernardo Vasconcelos e Sousa, “O
sangue, a cruz e a coroa. A memória do Salado em Portugal”, Penélope. Fazer e desfazer
história, 2, Fev. 1989, pp. 27-48.
248
Mário Martins, Peregrinações..., cit., pp. 23-24.
249
A actividade cronística das ordens religiosas militares é mal conhecida; a
Crónica da Conquista do Algarve, onde este episódio se insere, pode encerrar parte da
perdida Crónica do Mestre Paio Peres Correia, que exalta os feitos do Mestre e seus com-
panheiros na reconquista do Algarve, subalternizando o papel régio (Luís Krus “Crónica
da conquista do Algarve”, in Dicionário de Literatura, p. 176). Assim sendo, o relato da
morte dos sete combatentes e a sua transformação em mártires e protectores das conquis-
tas da Ordem, reforçaria pela via sobrenatural as façanhas dos Cavaleiros de Santiago.
Recentemente, Bernardo Vasconcelos e Sousa explorou uma outra fonte que não a cronís-
tica da Ordem – a lápide funerária de Estêvão Vasques Pimentel –, para alcançar interes-
santes conclusões sobre a construção da figura daquele Hospitalário famoso, pelo mentor
da obra, precisamente o pai de Nuno Álvares, o prior Álvaro Gonçalves Pereira (Os
Pimentéis. Percursos de uma linhagem da nobreza medieval portuguesa (séculos XIII-
XIV), pp. 167-170, Lisboa, INCM, 2000); segundo a nova proposta de Odília Gameiro
sobre o culto quatrocentista aos Ss. Veríssimo, Máxima e Júlia, a Ordem de Santiago tam-
bém aí teria interesses, através das Donas de Santos (cfr. supra, nt. ****).
434 MARIA DE LURDES ROSA

fizera sepultar na Igreja de Santa Maria de Tavira por devoção àqueles


mártires, seus companheiros 250.
Luta, martírio, vida cenobítica centrada no misticismo e recolhi-
mento, com referência aos Lugares Santos: todos estes temas terão
influenciado o jovem filho do Prior Álvaro Gonçalves Pereira. A sua per-
sonalidade de base, tanto quanto a podemos alcançar, seria de molde a
acolhê-los favoravelmente. Com efeito, em termos pessoais, a vivência
religiosa de Nuno desde muito cedo envolve opções de algum radica-
lismo. Através do grande veículo de espiritualização das ordens militares
que foram as refundições mais místicas do romance arturiano (a “estória
de Galaaz”, que lia amiúde e queria imitar), Nuno aspirava, desde logo,
por manter a virgindade, pois essa condição proporcionara a Galaaz
“grandes feitos” 251. Casado pelo pai, procurou formas alternativas de
viver em contenção no casamento: foi sempre fiel a sua mulher, e a partir
de muito cedo acaba por fazer voto de castidade 252. Era devoto a um ponto
desconhecido no paço, conforme salienta sem rodeios a sua Crónica:
ouvia duas missas por dia, confessava-se com muita frequência e comun-
gava quatro vezes por ano. Rezava as horas, mesmo à meia-noite, “como
u~ religioso” 253, jejuava amiúde, era grande frequentador de peregrinações
e esmoler. Este retrato, que já aponta para uma vivência religiosa intensa,
completa-se com o seu projecto de abandono do mundo. Se acabou por
concretizar-se na fundação do Carmo de Lisboa e ingresso nele, inicial-
mente tinha um programa bem mais completo. Se bem que se torne difí-
cil distinguir entre uma real intenção de abandono do Mundo e uma forma
de pressão à Coroa, frequente neste personagem de génio tempestuoso, as
três formas de que se reveste revelam o pleno conhecimento de aventuras
eremíticas contemporâneas. O Condestável planeara em primeiro lugar
passar a viver de esmolas, pedindo por amor de Deus o seu alimento;
depois, abandonar a identidade conferida por títulos e apelidos, passando

250
Rui de Pina, “Crónica d’el-rei D. Affonso IV”, p. 408, in Crónicas de Rui de
Pina, Porto, Lello & Irmãos, 1977; o relato mais antigo foi recentemente estudado por
António Branco, “Verdade factual e verdade simbólica na «Crónica da Conquista do
Algarve»”, Colóquio. Letras, nº 142 (Out.-Dez. 1996), pp. 111-120; aguarda-se um estudo
de Pedro Picoito sobre o tema.
251
Estoria de Dom Nuno Alvarez Pereyra. Edição crítica da «Coronica do
Condestabre», com introd., notas e glossário de Adelino de Almeida Calado, p. 8,
Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1991.
252
Idem, p. 198.
253
Idem, p. 199.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 435

a chamar-se só “Nuno”; por fim, “ir fora da terra e acabar lá, que nom
soubessem dele parte” 254. Dissuadido de tal por D. Duarte, acaba por acei-
tar a via conciliatória da reclusão no Carmo de Lisboa, e receber ainda do
príncipe uma tença confortável que lhe permitiu assegurar os que com ele
haviam ficado, apesar de se ter desfeito de todos os bens.
O Condestável deve ter sido uma das figuras em torno da qual mais
rápida e solidamente tomou forma um culto de variadas irradiações.
Existe um livro de milagres seus, que é mesmo “a mais vasta compilação
[de milagres] que nos legou o século XV” 255. É legítimo supor que seria
uma recolha realizada tendo em vista a abertura de um processo de cano-
nização. O Infante D. Duarte e os seus irmãos tentam de várias formas
promover o culto: para além de patrocinarem a compilação dos milagres,
o Infante D. Pedro compõe uma oração litúrgica em honra do Condes-
tável, D. Duarte elabora um extenso sumário para um sermão em honra
deste, e finalmente escreve para o Abade D. Gomes para que este tente
abrir o processo de canonização na cúria, em 1437 256. Nesse mesmo ano,
nas vésperas da partida para Tânger, o convento do Carmo é palco de uma
significativa encenação, na qual a figura do Condestável é alvo de um tra-
tamento que elucida bem sobre a funcionalidade da sua santificação. Na
Igreja lê-se solenemente a bula da Santa Cruzada; dela sai a procissão
para a Sé, com um andor onde se coloca o pergaminho papal, uma relí-
quia do Santo Lenho e uma “bandeira do Santo Conde, que com ela já
fora em alguns bons feitos” 257. A mesma utilização sacro-bélica está pre-
sente na ida do Infante D. Henrique de Ceuta até Tânger, onde o cortejo
de bandeiras e relíquias é ainda mais curioso: a bandeira real, a da Ordem de

254
Idem, p. 206.
255
Mário Martins, Peregrinações..., cit., p. 181; Carlos da Silva Tarouca, “Onde
está o Rol dos Milagres do Bº Nuno Álvares Pereira, escrito por Gomes Eanes de
Azurara?”, Brotéria, vol. XLVII, fasc. 2-3 (Ag-.Set. 1948), pp. 155-163; aguarda-se a tese
de mestrado de Gilberto Moiteiro sobre o tema (FCSH da UNL). Agradecemos a este autor
várias sugestões e correcções.
256
Domingos M. Gomes dos Santos, “Para a história do culto do B. Nun’Álvares.
Um documento inédito”, Brotéria, vol. VII, (1928), pp. 393-399; “O “Santo Condestável”
pode ser canonizado?”, Brotéria, vol. XLIX, fasc. 2-3 (Ag-.Set. 1949), pp. 129-140.
257
Segundo a descrição de D. Duarte, na carta em que relata a cerimónia a D.
Gomes, abade de Florença, publ. por Domingos Maurício Gomes dos Santos, D. Duarte e
as responsabilidades de Tânger (1433-1438), Lisboa, 1960 (cit. in Jaime Cortesão, Jaime
CORTESÃO, Os descobrimentos portugueses, 2ª ed., vol. 2, p. 384, Lisboa, Horizonte,
1975).
436 MARIA DE LURDES ROSA

Cristo, uma imagem de Nossa Senhora e uma relíquia da Vera Cruz,


acompanham dois estandartes com os vultos de D. João I e do
Condestável... 258
Também interessados na sua santificação estariam os poderosos
representantes da Casa de Bragança, que se veriam assim dotados de um
Fundador-santo, figura de grande prestígio na cultura da época. No
entanto, esta aspiração parece ser mais tardia, em relação às tentativas da
Casa Real. Segundo o seu estudioso mais recente, é provável que a
Crónica do Condestabre (composta entre 1431 e 1443), tenha sido escrita
por patrocínio dos Braganças 259. Não lhe atribui, no entanto, uma clara
função hagiográfica, baseado na forma como Nuno Álvares é represen-
tado 260. Nesse sentido, avança a interessante hipótese de que existiam
ainda lembranças contraditórias, na sociedade de então, sobre a figura do
Condestável, e que o patrocinador da biografia “tivesse consciência que
demonstrar a legitimidade social e política do seu protagonista era um pro-
jecto exequível, mas que revelar um santo seria (ainda) impraticável” 261.
É plausível, portanto, que a Casa de Bragança mostrasse prudentes
reservas, não só aos entusiasmos da Ordem do Carmo, que gostaria de
contar com a prestigiosa figura do Condestável entre os seus santos, como
às tentativas de D. Duarte e seus irmãos, que podem mesmo ser vistas
como tentativas de apropriação régia de uma figura «santa» concorren-
cial. Para finais do século XV, contudo, parece-nos poder afirmar que os
poderosos descendentes de Nuno Álvares se mostravam mais interessados
em tal, talvez levados pela necessidade de reabilitar a sua Casa, depois
dos trágicos choques com D. João II. Sabemos que o manuscrito da ver-
são impressa foi fornecido ao impressor por D. Jaime de Bragança, e que
conteria vestígios de ter sido trabalhado com informações sobre os des-
cendentes do Condestável 262. Ora, num inventário do palácio de Vila
Viçosa, elaborado em finais do século XVI, mas contendo informações
sobre objectos antigos, desde o próprio Nuno Álvares, referem-se objectos

258
Rui de Pina, Crónica de D. Duarte, cit., in Jaime Cortesão, op. cit., pp. 384-385.
259
António Branco, Emergência de um herói (estudo da «Crónica do Condes-
tável»), pp. 49-61 e p. 363, Faro, diss. de doutoramento apres. à Univ. do Algarve, 1998.
260
Idem, pp. 366-68. Distancia-se portanto de João Gouveia Monteiro, “Fernão
Lopes e os cronistas coevos: o caso da Crónica do Condestabre”, pp. 48-52, Revista de
História das Ideias, 11 (1989), 37-61, que defende ser aí o Condestável representado em
claros traços hagiográficos, distinguindo-se nisso da forma mais sóbria e realista como é
tratado Nuno Álvares Pereira nas crónicas de Fernão Lopes.
261
Idem, p. 387.
262
Idem, p. 50.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 437

que remetem indiscutivelmente para o cultivo de uma memória do Funda-


dor 263. Assim, temos retratos seus, em tábua (“Hua tauoa em que esta o
Conde Nuno Alueres”) 264 e em panos de armar, que relatam a sua “estorea”
(“Huma cama da mesma historia do Conde Nunalueres, a qual he ceo
cabiseira e ilharga tem corrediçes de dobrete de Milão raxado de ouro e
prata e tem o ceo e cabeceira e ilhargua cemto e onze couados de raz e
ouro”) 265. A “história” deveria ser longa e prezada, pois são referidas três
arcas para guardar os panos, feitas em precioso pinho da Flandres 266. Os
Braganças conservavam, ainda, os textos. Na biblioteca dos Duques exis-
tia não só a Crónica (impressa?) 267, como uma recolha de milagres, que
não podemos infelizmente saber se seria a mesma daquela composta por
Zurara, hoje guardada no Arquivo da Casa de Cadaval, mas que era sem
dúvida manuscrita: (“Milagres do Condestabre Dom Nuno alvarez Pereira
escrito de mão”) 268. Por fim, conservavam e inventariam um significativo
objecto: “Hum relicairo de prata velho muito amtiguo posto em huma
cadeiinha de prata sem reliquias que foi do Condestabre Dom Nuno
Alueres” 269.
É certo que estes objectos, para os quais é quase impossível precisar
a data de aquisição ou confecção (excepto o último, herança do próprio
fundador), não nos revelam directamente o cultivo de uma memória
“sacra”. Não sabemos quais as cenas da “história” contada nos panos,
nem a forma como aparece retratado o Condestável. Mais conclusiva é a
presença do livro de milagres, que pelo menos testemunha do conheci-
mento dos mesmos. Do mesmo modo, a informação de que o Duque D.
Jaime manda o preceptor dos filhos, Juan Fernandez, traduzir para latim
a Crónica do Condestável 270. Entre as finalidades possíveis de tal tarefa,
estaria o envio para a Roma, sondando a probabilidade de canonização.

263
IAN/ TT, Ministério das Finanças, Inventário do Senhor Duque D. Teodósio, 2
vols. dactilografados (para a circunstâncias da existência desta cópia, remetemos para a
diss. de doutoramento que temos em curso de preparação).
264
Idem, vol. 1, fl. 262.
265
Idem, fls. 428-29.
266
“Tres arquas de pinho de frandes das que se fiserão pera os panos da Historia de
Nuno Alueres” (idem, fl. 504).
267
A referência é difícil de interpretar: “Hua chronica do conde Nuno Alueres em
purgaminho empresa em purgaminho” (idem, fl. 263).
268
Idem, fl. 685.
269
Idem, fl. 160.
270
Luís de Matos, A corte literária dos Duques de Bragança no Renascimento,
Lisboa, Fundação Casa Bragança, 1959, p. 18 e p. 24.
438 MARIA DE LURDES ROSA

Estariam os Braganças da época áurea, inaugurada pela ascensão de D.


Manuel ao trono, por fim interessados na canonização do Fundador? É
algo que só poderá ser totalmente respondido por posteriores descobertas
documentais e investigações.

A santificação do Infante D. Fernando (m. 1433) é a face mal-suce-


dida da empresa a que vimos Nuno Álvares ser posto a presidir em pompa
e circunstância. Com efeito, o Infante sacrificado em Marrocos aos inte-
resses políticos nacionais é transformado em mártir da conquista norte-
-africana, numa projecção sobre uma personalidade de base que teria for-
tes traços religiosos mas que não se desenvolvia nesse sentido. A história
do martírio, morte e “santificação” do Infante interessa-nos menos do que
um outro aspecto: a sua vivência religiosa anterior, enquanto grande
senhor leigo com projectos de reforma religiosa bastante completos, que
experimenta na sua corte 271.
Neste particular, a grande fonte para a vida e morte do Infante
D.Fernando, o Trautado de Fr. João Álvares, pode ser completada (e com-
provada na sua veracidade) pela correspondência do próprio ao abade D.
Gomes, na altura em Florença e Roma. O Trautado 272 começa o retrato do
príncipe relacionando-o com o Divino desde antes do nascimento – o
parto é feliz graças à intervenção da relíquia da Vera Cruz do Marmelar,
depois da heróica renúncia da Rainha D.Filipa em abortar, mesmo em
perigo de vida. O Infante sofrerá sempre de uma compleição frágil e de
dor do coração, à qual o seu biógrafo associa as virtudes que Deus nele
pôs 273. Um ser de excepção desde o nascimento, a quem a fragilidade
física teria favorecido o lado contemplativo, o Infante não deixou de ser

271
As linhas que se seguem foram escritas antes da elaboração da tese de mestrado
de João Luís Fontes sobre Fr. João Álvares (defendida em 1998 e agora publicada:
Percursos e memória: Do Infante D. Fernando ao Infante Santo, Cascais, Patrimonia,
2000). Cremos que no essencial não desmentem a análise que o Autor fez da santidade fer-
nandina, e mantivémo-las sem alteração de monta. Remetemos, evidentemente, para este
trabalho, análise cuidada e muito mais completa do assunto. Foi entretanto defendida uma
tese de doutoramento na Universidade de Coimbra (Dezembro de 2001), da autoria de
António Rebelo, sobre o texto latino Martyrium et Gesta Infantis Domini Fernandi, que
traz novos e importantes contributos ao tema (remetemos para o texto que amavelmente o
Autor da tese acedeu a publicar nesta revista).
272
Fr. João Álvares, Trautado da vida e feitos do muito vertuoso S.or Infante D.
Fernando, ed. Adelino de Almeida Calado, Coimbra, Por Ordem Universidade, 1960.
273
Idem, p. 7.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 439

porém perfeitamente determinado nas linhas porque pautou o seu com-


portamento religioso, muito exigentes de resto. Assim, à opção pela vir-
gindade aliou práticas devocionais bastante completas, e tentou alargar o
seu modo de vida à corte a que presidia. Fazia confessar e comungar
anualmente todos os seus dependentes em idade para tal, vigiava as con-
versas e actos dos seus criados, e tentava que eles se mantivessem castos
enquanto serviam em sua casa, ou até certa idade. A luxúria parecia-lhe
de facto o maior dos pecados, a ponto de se abster de alimentos e cheiros
que o pudessem a tal induzir 274. Empenhou-se a fundo na criação de um
espaço sagrado interno à sua própria corte, para a qual alcançou do Papa
graças especiais. Minuciosamente descritas numa carta de 1436 ao abade
Gomes, vão “das mais rreliquias de samctos que aa ssua sanctidade
prouuer” às “moores endulgençias que poderdes auer” para a assistência
a várias festividades na sua capela. E acrescenta o Infante, comentando
uma possível oposição papal a tantos pedidos, que eles não deveriam ser
negados por “quem deseia a ssaluaçom de todos” 275. Uma opinião por-
tanto perfeitamente nítida e voluntariosa em relação ao papel do Papa na
dispensação de favores aos leigos: os poderes de que dispõe o Pontífice
estão condicionados ao serviço dos fiéis. Uma série de outras exigências
passam por especificidades na administração dos sacramentos: escolha de
confessores, faculdades de absolvição, número de capelães e missas quo-
tidianas, relação privilegiada dos seus criados e comensais com os cape-
lães da casa no que toca aos mesmos assuntos. Também do ponto de vista
litúrgico o Infante planeia, pretendendo seguir pessoalmente o costume de
Salisbury e torná-lo ainda o comum da sua corte. Por fim, providencia
pelas almas dos que viviam nesse local tão devoto, ao pedir a absolvição
em artigo de morte de todos os seus servidores, quando morressem em sua
casa 276.
Estes e outros traços da sua piedade – atento seguimento dos ofícios
religiosos na sua capela, frequência de igrejas, procissões e confrarias,
prática de esmolas em grande humildade, preocupação pela justiça quanto
aos seus dependentes – traçam-nos um retrato bastante completo da vida
de um grande senhor devoto, um leigo que planeia extensamente sobre a
vida religiosa do universo a que preside, dominando bem os meandros

274
Idem, pp. 8-11.
275
Ed. in Domingos M. Gomes dos Santos, “O Infante Santo e a Cúria Pontifícia”,
Brotéria, vol. X, fasc. 1 (Jan. 1930), pp. 20-28.
276
Idem.
440 MARIA DE LURDES ROSA

institucionais da vida religiosa. Parece-nos poder afirmar que o Infante se


situa num estádio intermédio entre os grandes senhores ligados ao pri-
meiro franciscanismo, e uma vivência religiosa já claramente autonomi-
zada, neste caso concreto subjacente à lógica de manutenção e reforço
espiritual da sua corte 277.
O culto posterior organiza-se em torno de problemas bem diferentes,
excepção feita ao texto de Fr. João Álvares, cuja circulação se restringiu
decerto a pequenos círculos. As relíquias recuperadas em 1451, e o corpo
depois da conquista de Arzila, são recebidas em grande pompa e trans-
portadas processionalmente para a Batalha. Em redor do monumento
fúnebre do Infante cedo se forma um núcleo de culto, servido por ceri-
mónias litúrgicas várias (D. Henrique, por exemplo, instituíra uma missa
diária cantada) e por suportes iconográficos 278. Um deles, extremamente
interessante, fornece-nos a imagem quatrocentista da santidade em que se
engloba o Infante: o grande senhor cativo, que apesar disso é vencedor,
calcando sob os seus pés três coroas: o Diabo, o mundo e a carne 279. A
crónica de Fr.João Álvares recolhe ainda alguns milagres realizados pelo
corpo, que na edição impressa em 1577 são ampliados com vários outros
junto ao túmulo 280.

É nos mesmos círculos cortesãos que se enquadram as duas experiên-


cias de vivência feminina da santidade que nos parecem paradigmáticas
da transição operada durante a centúria de Quatrocentos. Vejamos em pri-
meiro lugar, a da “Santa Duquesa”, Constança de Noronha (m. 1480),
ligada aos Franciscanos de Guimarães, mas com uma autonomia de carac-
terísticas peculiares. Esta senhora, oriunda da alta nobreza de Castela e
relacionada em Portugal com as principais famílias, foi a segunda mulher
do Duque D. Afonso de Barcelos. Na tradição das aristocratas de influên-
cia franciscana, procurou viver em penitência um casamento faustoso,
disfarçando de várias maneiras as penitências e esmolas que não deixava de

277
Ricard, Robert, “Les lectures spirituelles de l’Infant Ferdinand du Portugal”,
Études sur l’histoire morale et religieuse du Portugal, pp. 53-61, Paris, Centro Cultural
Português, 1970.
278
Cfr., por todos, Saúl A. Gomes, “Retábulo do Infante Santo D. Fernando”, in Frei
Bartolomeu dos Mártires, Mestre Teólogo em Santa Maria da Batalha (1538 a 1552), pp.
65-67, Batalha, Câmara Municipal da Batalha/ Museu do Mosteiro de Santa Maria da
Vitória, 1992.
279
Domingos M. Gomes dos Santos, “O Infante Santo e a possibilidade do seu culto
canónico”, Brotéria, vol. IV, fasc. 1 (Jan. 1927), pp. 134-142 e pp. 197-206.
280
Crónica do Condestabre, ed. cit., p. 261.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 441

praticar. Tinha ainda o hábito de se consultar com um eremita que dava pelo
nome de “João o pobre”, e que algumas tradições querem de origem catalã,
aparentado aos Condes de Urgel 281. Teria ele tido particular influência na
direcção espiritual da Duquesa. Enviuvando, esta vai recolher-se aos seus
paços de Guimarães e professar na Ordem Terceira de S. Francisco. Embora
se mantenha ligada aos Franciscanos da cidade, cuja igreja frequentava,
nunca ingressará num convento, antes praticando esmolas e curas pela vila
e transformando a sua casa em “hospital de penitentes” 282.
A independência e a insistência em opções pessoais que o percurso da
Duquesa até aqui demonstra – em especial a ligação ao eremita e o tipo
de relação que estabelece com os Frades Menores – é reforçado pelas
características muito especiais dos seus dons de cura. Com efeito, a
Duquesa curava muitos doentes, pelos seus dotes de santidade, segundo
Fr. Manuel da Esperança, o cronista franciscano que temos vindo a seguir,
e cuja obra é uma das poucas fontes da sua vida. Mas por humildade e
para disfarçar, tratava-os sempre com uma mezinha por ela feita, com
uma erva que crescia no terreiro do seu paço, ainda no século XVII cha-
mada “erva da Duqueza Santa”. Além disso, usava ainda um globo de
cristal para sanar outras enfermidades, a “pedra do fastio” que na época
do Cronista ainda era levada pelos Franciscanos aos doentes que a reque-
riam 283. Depois da sua morte, os milagres sucederam-se junto da sua
sepultura, cuja terra milagrosa era colocada em saquinhos e colocada ao
pescoço dos fiéis. No ano de 1488, os prodígios eram suficientemente
numerosos para se proceder a uma inquirição por testemunhas, da qual Fr.
Manuel da Esperança ainda transcreve sete milagres circunstanciados 284.
Os fiéis respondiam com ex-votos, que segundo o notário da mesma
inquirição rodeavam completamente o sepulcro.
Uma mezinha de ervas e um globo de cristal, uma viúva que viveu
autónoma praticando em sua casa curas aos enfermos, e que recebera
direcção espiritual de um eremita. Mesmo a escassez das fontes e as

281
Jorge Cardoso, Agiológio, cit., vol. I, pp. 117-118, p. 124; Rodrigo da Cunha,
História Ecclesiastica dos arcebispos de Braga, ed. cit., t. 2, p. 245.
282
Manuel da Esperança, Fr., História Seráfica, t. 1, pp. 179-180, Lisboa, Off.
Craesbeckiana, 1656; Mário Martins, Peregrinações..., cit., p. 168.
283
Manuel da Esperança, Fr., História Seráfica, cit., t. 1, p. 180 e p. 183.
284
Idem, p. 182. É muito curioso que trabalhos de restauro em curso neste convento
tenham posto a descoberto uma tábua pintada com uma figura feminina, que os estudio-
sos pensam ser identificável com Constança de Noronha. O seu culto teria assim chegado
à fase da representação retabular (notícia, com hipótese de identificação, em jornal
Público de 13.02.01).
442 MARIA DE LURDES ROSA

explicações pias do cronista franciscano não escondem totalmente aspectos


menos heterodoxos do percurso da Duquesa. A santidade feminina, muito
mais que a masculina, bordejou com frequência o sobrenatural negativo
aos olhos da Igreja, depois categorizado como “bruxaria”. Os atributos da
figura de Santa Ana, na Baixa Idade Média, são um exemplo claro deste
facto: a iconografia chega a representá-la praticando exorcismos ao seu
neto Jesus, em traços logo censurados pelas autoridades eclesiásticas, se
captados 285... O caso da “Santa Duquesa”, cuja fama de santidade, de
resto, se esbatia pela centúria de Seiscentos, parece-nos exemplificar
entre nós o desenvolvimento fundamental da vivência feminina da santi-
dade quatrocentista que foi uma autonomia “de fronteira”, entre a santa,
a profetisa, a curandeira e a bruxa 286.
Também autónoma de raiz, mas rapidamente integrada com sucesso
na ordem dominicana, foi a experiência de vida reclusa iniciada por
Brites Leitão e suas filhas. Igualmente nascida das vivências religiosas
de círculos cortesãos, principia pela opção de recolhimento e pobreza, em
meados do século, de um casal de nobres da corte do Infante D. Pedro,
Duque de Coimbra. Diogo de Ataíde, que começara por tentar fugir aos
casamento programado pelo Infante escondendo-se no convento domini-
cano de Benfica, acaba por casar com a noiva em causa, Brites Leitão.
Depois do desastre de Alfarrobeira, o casal decide abandonar os círculos
palacianos e vai praticar a assistência aos pobres num eremitério em pro-
priedades suas, junto de Aveiro. Depois de peripécias várias, sempre no
eremitério, Brites Leitão, já viúva e com duas filhas, vê a sua opção de
vida atrair outras senhoras nobres, algumas das quais contra a vontade
familiar. Não obstante as oposições, a obra prossegue, até ao momento em
que, como relata a Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro,
se pôs uma questão crucial. Qual o tipo de vida religiosa a seguir, “ordem”
ou “beguinaria”? 287. Fruto dos tempos, a «beguinaria» é apresentada aos

285
Jean Wirth, “Sainte Anne est une sorcière”, Bibliothèque d’Humanisme et
Renaissance, t. XL, nº 3 (1978), 449-480.
286
Gábor Klaniczay, “Miraculum y maleficium. Algumas reflexiones sobre las
mujeres santas de la Edad Media en Europa central”, Mediaevalia, 11 (1994), 39-62;
Richard Kieckhefer, “The holy and the unholy: sainthood, witchcraft and magic in late
medieval Europe”, Journal of Medieval and Renaissance Studies, XXIV (1994), pp. 355-
-385; desenvolvemos o tema das santidades femininas alternativas em “A fundação do
convento de Beja pela Duquesa D. Beatriz”, pp. 266-269, em Diogo Ramada Curto (dir.),
O tempo de Vasco da Gama, cit., pp. 265-270.
287
Domingos M. Gomes dos Santos, O mosteiro de Jesus de Aveiro, vol. II/2, p. 189,
Lisboa, Diamang, 1967.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 443

olhos das piedosas senhoras como fonte de “perigos de infamia e grandes


erros” pelo conselheiro eclesiástico a que se tinham dirigido 288. Não por
acaso, era um dominicano..., membro de uma ordem que preconizava um
modelo “sensato” de integração dos movimentos religiosos de franja, em
especial femininos 289. Estamos em 1461, nos primórdios do Mosteiro de
Jesus de Aveiro, que se tornará duplamente célebre depois do ingresso da
Infanta Joana, filha de Afonso V 290.
A interessante experiência que percorre toda a aventura do grupo de
fundadoras e primeiras monjas terá de ser deixada por aqui, uma vez que
no âmbito da santidade é a figura da Infanta Joana que se destaca 291. Não
separável de todo o ambiente que indiciam os percursos brevemente refe-
ridos, a opção religiosa de Joana e a sua espiritualidade ressaltam pela
convicção e empenho com que são vividas. Brites Leitão é sempre “a fun-
dadora”, mas Joana é a “santa senhora”, um pouco como vimos para Telo
e Teotónio, no caso do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
A fonte para a história da vocação da “Infanta Santa” é a crónica de
Margarida Pinheiro, freira do Mosteiro de Jesus, que conviveu, serviu e
profundamente admirou a Princesa. O Memorial da mujto excellente
Princessa 292 é, nestas circunstâncias, uma obra “empenhada” e, mais do
que isso, um texto afectivo e reverencial. Tem, ainda, um enraizamento
concreto em situações reais de conflito, de passado recente – não só os
aspectos políticos, mas toda a opção religiosa da Princesa; por fim, retrata
uma espiritualidade feminina vivida de modo não isento de críticas, por
parte da Igreja, apesar de, como aqui, quase sempre se confinar a claus-
tros de mosteiros 293. Margarida Pinheiro conhece o ambiente religioso
da época, conhece a história da fundação do seu mosteiro, presenciou a
luta da Infanta, faz parte da mesma comunidade. Escreve um texto que

288
Idem, p. 191.
289
Alessandro Barbero, Un santo in famiglia, cit., pp. 285 ss.
290
A obra de referência, em termos de fontes documentais e análise monográfica, é
Domingos M.Gomes dos Santos, O mosteiro de Jesus de Aveiro, cit.. O estudo que se
segue, de Santa Joana, já foi por nós parcialmente publicado, em “Da corte ao ermo...”,
cit.
291
Retomamos este tema no âmbito da dissertação de doutoramento em que estamos
a trabalhar.
292
Ed. in D. M. Gomes dos Santos, O mosteiro de Jesus de Aveiro, cit., vol. II/2, pp.
225-301; cfr. Mário Martins, Alegorias..., cit., pp. 295-298, e Mª João V. B. M. da Silva,
“Crónica da fundação do mosteiro de Jesus de Aveiro”, in Dicionário de Literatura, cit.,
pp. 176-177 e idem, “Vida da Infanta Santa Joana”, in idem, pp. 660-661.
293
André Vauchez, Les laïcs, cit., pp. 245-249 e pp. 265-275.
444 MARIA DE LURDES ROSA

memorializa, fixa e louva, todo este processo; vem de, e redige para, um
ambiente específico, um convento de mulheres que preconizou experiên-
cias religiosas novas, no século do grande desenvolvimento da mística
feminina. Testemunho de uma vivência religiosa específica, libelo da sua
defesa, texto devocional para gerar exemplos... 294 Todos estes factores
nos obrigam a falar de “devolver” a este texto a funcionalidade e actuali-
dade que teve, e a afirmar estarmos perante um caso especialmente feliz,
em termos de fontes históricas. Não nos parece que retrate a Infanta de
modo estereotipado; o recurso a imagens, tópicos, afirmações reiteradas
de veracidade, deve encarar-se como temos vindo a sugerir, para este tipo
de obras. Temos a sorte adicional de nos encontrarmos face a um teste-
munho tocado pela própria experiência de santidade que narra, que foi
forte e arrojada a ponto de marcar uma das suas testemunhas de modo
indelével, e reflectir-se na obra escrita, de modo a quase com ela se fun-
dir. A própria afectividade e a força posta na transmissão das devoções e
experiências vividas da Infanta, tornam novo este texto, um dos primei-
ros testemunhos, ainda que indirecto, de uma vivência mística.
A Infanta Santa do Memorial é a figura de grande lutadora pela liber-
dade de prosseguir uma experiência religiosa pessoal, de cariz afectivo e
místico, que não contemporizava com razões de Estado ou com vivências
religiosas impostas: “a não vencida donzela e forte batalhadora de Cristo
mais que mártir” 295. Toda a espiritualidade que experimenta desde
pequena desenvolve-se em torno de traços típicos, dos quais destacare-
mos três: i)seguimento pessoal da paixão de Cristo; ii) consciência aguda
do pecado e empenhamento existencial, físico, na redenção dos pecado-
res; iii) relação directa com Deus.
Assim, a Infanta seguia passo a passo a liturgia da Paixão, identifi-
cando-se ao Cristo sofredor através de gestos físicos de flagelação e dor 296;
prepara-se para a morte recriando de diferentes formas a agonia de Cristo 297;

294
Sobre estes textos, G. Zarri, Le sante vive, cit., pp. 21-50; Marilena Modica Vasta
(ed.), Esperienza religiosa e scritture femminili tra medievo ed età moderna, Palermo,
Bonanno, 1992; Jane Chance, “Speaking in propria persona. Authorizing the subject as a
political act in late meideval feminine spirituality”, in Juliette Ddor (et al.) (eds.), New
trends in feminine spirituality: the Holy Women of Liège and their impact, pp. 269-294,
Turnhout, Brepols, 1999; Rosalyn Voaden, God’s words, women’s voices: the discernment
of spirits in the writing of late-medieval women visionaries, Woodbridge/N. Iorque, York
Medieval Press/ Boydell & Brewer 1999.
295
Margarida Pinheira, Memorial, ed. cit., p. 264.
296
Idem, p. 244, p. 269, p. 276, e p. 286.
297
Idem, p. 275, p. 280, pp. 286-287.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 445

toda a vida contempla os passos, sinais e instrumentos da Paixão: coroa


de Espinhos, oração no Horto, agonia..Chora abundantemente 298, cai no
chão, e geme, repetindo as palavras de Cristo, quando ouve ou lê a
Paixão, que tem representada no quarto no seu quadro preferido, centro
do oratório privado 299. Quando morre, é o próprio Céu que confirma esta
ardente devoção da Princesa: um seu capelão, longe do convento, conhece
a sua morte através de uma impressiva visão – uma grande claridade, e no
meio dela “uma muito grande, formosa e resplandescente coroa de espi-
nhos; e assim a coroa como os espinhos eram todos robricados e cheios
de um muito vermelho e fresco sangue e em cada ponta de cada um dos
espinhos pendia uma muito grande e clara gota de sangue” 300. Note-se
que estas expressões claras e, por vezes, rudes, da afectividade religiosa,
apanágio sobretudo de mulheres, só pouco a pouco foram aceites como
sinal de santidade 301. Por outro lado, nunca deixaram de ser alvo, ao longo
de todo o período tardo-medieval, de fortes críticas de vários sectores da
Igreja, inclusivamente dos teólogos do misticismo moderado 302.
O pecado, próprio e alheio, era para a Princesa um tema central,
vivido de forma quase obsessiva. Inventava penitências especialmente
dolorosas para o sacrifício pessoal, fonte de redenção; assentava num
pequeno papel que trazia sempre consigo, todos os pecados que cometia
para depois se confessar e penitenciar; orava e pregava continuamente
pela salvação dos pecadores, dizendo mesmos as freiras que ela, em vida,
salvara do pecado várias condicípulas, pelas suas orações 303.
Por fim, a Infanta várias vezes recebe mensagens divinas directas,
bem como se dirige a Cristo e Nossa Senhora e com eles conversa. Assim,
é um “fremoso e splandecente mancebo” que lhe anuncia a morte do
marido que D. João II lhe pretende impor, tendo ela caído em “leve
sonho” no decurso da oração em que implorava desesperado socorro ao
“seu amado sposo” (o que remete esta ocorrência para o campo da visão,

298
Sobre a importância devocional das lágrimas, cfr. José Mattoso, “A mística das
emoções: o dom das lágrimas”, in Naquele tempo. Ensaios de história medieval, pp. 79-
-92, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000; para as bases teológicas, com uma interessante
análise de antropologia religiosa: Piroska Nagy, Le don des larmes au Moyen-Âge. Un ins-
trument spirituel en quête d’institution (Ve.-XIIIe. siècle), Paris, Albin Michel, 2000.
299
Margarida Pinheira, Memorial, ed. cit., p. 244.
300
Idem, p. 295.
301
A. Kleinberg, Prophets in their own country, cit., pp. 30-39.
302
A. Vauchez, Les laïcs, cit., pp. 272-275.
303
Margarida Pinheira, Memorial, ed. cit., p. 259, p. 268, p. 271, p. 284, pp. 255-
-256.
446 MARIA DE LURDES ROSA

e não do sonho em sono profundo) 304. A cena da sua morte é atravessada


por alocuções directas a Deus, pedindo misericórdia e perdão: “... falava
com ele razoando-se como com amigo e senhor que muito senpre amara
e amava e desejava ver...”; a Nossa Senhora e outras imagens que esta-
vam junto ao leito; e, sublinhemos o facto, ao Santíssimo Sacramento,
quando o recebe 305. Todo o texto é, por fim, percorrido pela convicção nos
dotes proféticos da Princesa, manifestação evidente da sua relação privi-
legiada com Deus. Dotes que se manifestam de forma indirecta, através
de sinais: o cometa que precede a sua entrada no mosteiro e que desapa-
rece à sua chegada, momento em que todos percebem a presença da
estrela; o rosto resplandecente quando morre; a visão do seu dedicado
capelão 306. Mas também de forma directa, pois ela desde pequena tem
“palavras de sabedoria” e grande “eloquência” 307 – termos que num con-
texto não equívoco como o de Margarida Pinheiro remetem para a figura
do profeta do Antigo Testamento. Aliás, a expressão é utilizada, e num
contexto fundamental...: “profetica palavra”, ao relatar-se uma citação
literal dos Salmos feita pela Infanta, em relação ao local da sua morte.
Não por acaso, Margarida Pinheiro invoca o estatuto de testemunha pre-
sencial (com outras freiras), para a veracidade do episódio e sua realiza-
ção posterior 308. A Infanta de resto prevê mais coisas: a morte do filho do
rei de França, outro dos impostos noivos; idêntico destino a todos os
eventuais pretendentes; o seu próprio fim 309. Numa aparição depois de
morta, a Infanta irá mesmo mostrar que soube morrer em bom tempo, já
que pouco depois se seguiriam as mortes do Infante D. Afonso e de D.
João II, que a obrigariam a desempenhar as suas funções de herdeira.
Sobre estas premonições, explicadas de forma velada a uma irmã,
comenta Margarida Pinheiro: “evidentemente vimos em breve tempo cum-
prido, per obra, o que esta santa senhora alumiada já mui inteiramente
do espírito profético, em aquele espelho divinal vendo e sabendo todas as
coisas e o que a sabedoria eternal ordenava de se fazer” 310.
Não por acaso, é neste último conjunto de relatos que Margarida
Pinheiro se mostra mais cautelosa, fazendo por diversas vezes o reparo de
que só o presenciamento dos prodígios relatados pode levar à total crença

304
Tudo em idem, p. 264.
305
Tudo em idem, p. 277, pp. 284-285 e p. 280.
306
Idem, pp. 242-243 e p. 249, p. 288 e p. 295.
307
Idem, p. 240, p. 245.
308
Idem, p. 269.
309
Idem, p. 262, p. 271, p. 273, e pp. 285-86.
310
Idem, p. 297.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 447

neles. Se bem que algumas vezes se possa ter estas afirmações na conta
de topos, o mesmo não sucede para o longo excurso que faz sobre revela-
ções e visões divinas, antes de relatar as diferentes experiências visioná-
rias que as monjas tiveram depois da morte da Infanta. Remetendo o
tempo das visões para um passado mais afortunado, crê contudo que Deus
dá a mortos muito especiais o poder de consolar os vivos. É neste con-
texto que a Infanta Santa aparece às suas monjas. E a Autora redobra de
cuidados, nesta altura: atrever-se-à a falar disso, mas através de passos
das Escrituras e exemplos de santos. E, sobretudo, afirma a sua ortodoxia:
“Não digo isto porque contra a santa fé católica aja de afirmar o que ela
nega, defende e manda: não avermos de crer em sonhos; mas porque
levemente leia e ouça o que aqui disser com boa e sã consciência, para
nisso receber alguma consolação” 311. A extensão e meandros deste texto
só nos parecem explicáveis face a contextos de crítica e suspeita em rela-
ção a este tipo de experiências, deste modo justificados directamente atra-
vés da santidade de Joana.

Beatriz da Silva (m. 1492) e o seu irmão João, mais conhecido por
Amadeu (m.1482), viveram fora de Portugal as suas experiências reli-
giosas: a primeira, residindo em Toledo durante quase três décadas no
convento de dominicanas, funda pouco antes de morrer a Ordem da
Imaculada ou da Conceição de Maria (1489); o segundo, depois de viver
alguns anos entre os eremitas jerónimos, no santuário de Guadalupe, irá
criar e espalhar em Itália a congregação dos Amadeítas. A ausência de
estudos que temos referido para vários dos personagens em estudo, é mais
grave para estas duas grandes figuras da espiritualidade quatrocentista.
Envolvidos por alguma historiografia numa aura romanesca que ligava as
suas vocações com desgostos de amor palacianos, ou que, quanto ao
Beato Amadeu em particular, lhe conferiu fama de herético pela atribuída
obra Apocalipsys Nova, apenas recentemente se têm vindo a renovar os
estudos a seu respeito 312. Assim sendo, e porque nos pareceu incorrecto

311
Idem, p. 296.
312
Mário Martins, “O ciclo franciscano da nossa espiritualidade medieval”, Biblos,
27 (1951), pp. 141-247; António D. de Sousa Costa, “Beato Amadeu”, in Hernâni Cidade
(dir.), Os grandes Portugueses, vol. 1, pp. 189-205, Lisboa, Arcádia, s.d.; id., “Studio cri-
tico e documenti inediti sulla vita del Beato Amadeo da Silva nel quinto centenario della
morte”, Noscere Sancta. Miscellanea in memoria di Agostino Amore, I, pp. 169-196,
Roma, Ed. Antonianum, 1985; id., “Alcaides-mores de Portalegre no século XV”, in Actas
do 1º Encontro de História regional e local do distrito de Portalegre, pp. 233-248,
Portalegre, Escola Superior de Educação, 1987; id., “Aproximação da espiritualidade de
448 MARIA DE LURDES ROSA

terminar sem os referir, faremos uma síntese da sua espiritualidade a par-


tir dos trabalhos disponíveis. Beatriz e Amadeu parecem-nos sobretudo
paradigmáticos de uma das formas de resolução das mais importantes
questões subjacentes à variedade das propostas quatrocentistas de santi-
dade: aceitação decisiva da vivência mística da relação com Deus, no
quadro porém de um empenhamento reformista activo 313.
Amadeu da Silva surge na sua Vita mais antiga como um campeão da
vida austera, solitária e contemplativa. Vivera numa “caverna da monta-
nha”, “caminhava descalço e vestido só com a túnica; o seu alimento era
pão e água, uma vez por dia, depois da Noa, logo após a Missa”. Outros
testemunhos contemporâneos reforçam esta imagem: em constante peni-
tência de cilícios e jejuns, chegou a ser humilhado pelas populações, que
o consideravam herege 314. No entanto, o movimento religioso por ele ini-
ciado irá depois gozar de grande popularidade, reclamando por exemplo
as povoações de Burgos, em 1478, a vinda dos Amadeítas, tidos como
austeros e devotos 315. É difícil delinear influências sofridas, na sua infân-
cia, passada entre Ceuta e o Alentejo, por parte de correntes religiosas
radicais que tiveram nessas zonas algum impacto (por exemplo, a sur-
preendente rapidez da expansão dos eremitas da Serra de Ossa, na centú-
ria de quatrocentos) 316; no entanto, têm sido salientadas as impressões
que, tanto sobre ele como sobre sua irmã Beatriz, causaram duas cons-
tantes da religiosidade cortesã portuguesa: a evangelização norte-afri-
cana, e a devoção à Imaculada Conceição, uma e outra na órbita da Ordem

Santa Beatriz da Silva e seu irmão Beato Amadeu com os Frades do Santo Evangelho e
Capuchos, evangelizadores da África, América e India”, Actas do Congresso Interna-
cional Bartolomeu Dias.., cit., vol. 5, pp. 159-341; algumas observações em José A. de
Freitas de Carvalho, “Conquistar e profetizar...”, cit..; id., “Joachim de Flore au Portugal:
XIIIème-XVIème siècles: un itinéraire possible”, in Gianluca Potestá (ed.), Il profetismo
gioachimita tra Quattrocento e Cinquecento: Atti del 3º Congresso Internazionale di Studi
Gioachimiti, pp. 415-432, Génova, Marietti, 1991.
313
Iremos abordar estas duas figuras e os temas referidos na tese de doutoramento
que temos em preparação. Já desenvolvemos alguns tópicos em “Da corte ao ermo...”, cit.;
“A fundação do convento de Beja...”, cit.; e em “D. Jaime, duque de Bragança...”, cit.
(onde defendemos que Amadeu da Silva é alvo de um tratamento semelhante ao de D.
Jaime, pela “psicologia histórica” de finais do século XIX, o que muito contribui para a
incompreensão do percurso religioso destes personagens).
314
Cit. in Mário Martins, O ciclo fanciscano, cit., p. 289.
315
A. D. Sousa Costa, “Aproximação da espiritualidade”, cit., p. 163.
316
Fortunato de Almeida, op. cit., vol. I, p. 331; Maria Ângela Beirante, “Eremi-
térios da pobre vida no Alentejo dos séculos XIV-XV”, p. 262, in 1383-1385 e a crise
geral dos séculos XIV-XV. Jornadas de História Medieval. Actas, pp. 257-265, Lisboa,
História & Crítica, 1985.
A SANTIDADE NO PORTUGAL MEDIEVAL 449

Franciscana 317. Surge-nos depois entre os eremitas de S. Jerónimo, onde


levou por dez anos vida contemplativa; a fundação dos Amadeítas insere
na corrente de renovação franciscana, preconizando pequenos eremitérios
rudes e em locais ermos, e a vivência de uma espiritualidade contempla-
tiva, penitência corporal e imitação literal de Cristo 318. Neste sentido,
seriam várias as afinidades e laços com a corrente de renovação francis-
cana dos “Frades do Santo Evangelho”, também nascida de experiências
de vida eremítica ligadas a círculos cortesãos. Esta corrente veio a esta-
belecer amplas ligações com as cortes de D. João II e D. Manuel e foi pro-
tegida em especial do Duque D. Jaime de Bragança, que tentou mesmo
fazer-se frade capucho. Um dos resultados palpáveis desta protecção foi
a fundação do convento da Piedade em Vila Viçosa, nas terras do Duque,
no terreno propício a estas experiências de vida religiosa que foi o sul de
Portugal 319. Retornando aos Amadeítas, refira-se ainda que os aspectos de
pregação e estudo não eram descurados, havendo notícia de bibliotecas
bem providas em alguns dos pequenos conventos italianos 320. Amadeu
gozou da protecção dos duques de Milão, que ajudaram à expansão da sua
ordem na Lombardia, e do Papa Sisto V, que o escolhe para confessor e
favorece o estabelecimento do seu movimento religioso em congregação
autónoma, sob obediência directa do geral dos Franciscanos 321. Será em
Roma que escreve a Apocalypsis Nova, cuja versão actual parece conter
relativamente pouco da sua autoria 322. É uma obra profética e visionária,
de ressonâncias evangélicas e apocalípticas, onde as revelações e os extâ-
ses constituem a tessitura de base 323. Texto de grande difusão, foi proibido
em Portugal pela Inquisição, em 1581, o que não impediu a sua circula-
ção entre nós por outras vias, algumas das quais ligadas aos altos círculos
da corte e da Igreja 324.

317
A. D. Sousa Costa, “Aproximação da espiritualidade”, cit., pp. 160-161; Enrique
Gutiérrez, “La Beata Beatriz y la Inmaculada – influencia de los Franciscanos en ella”,
Archivo Ibero Americano, 2ª época, vol. XV (1955), pp. 1077-1102.
318
Mário Martins, O ciclo franciscano, cit., pp. 239-240.
319
A. D. Sousa Costa, “Aproximação à espiritualidade”, cit., pp. 181-182.
320
Idem, p. 163, p. 166.
321
Idem, p. 162.
322
Idem, p. 163; José A. de Freitas de Carvalho, “Conquistar e profetizar”, cit., p. 88.
323
Mário Martins, O ciclo franciscano, cit., pp. 240-242; Cesare Vasoli, “Dall’«Apo-
calypsis Nova» all «De Harmonia Mundi». Linee per una ricerca”, in Società Interna-
zionale di Studi Francescani (ed.), I Frati Minori tra ‘400 e ‘500. Atti del XII convegno
internazionale, pp. 257-291, Assis, Univ. di Perugia/ Centro di Studi Francescani, 1986.
324
Mário Martins, O ciclo franciscano, cit., pp. 241; sobre a difusão: José A. de
Freitas de Carvalho, “Conquistar e profetizar”, cit., pp. 89-91.
450 MARIA DE LURDES ROSA

Também a sua irmã Beatriz viveu percursos religiosos específicos.


Residindo no convento dominicano durante quase trinta anos, nunca nele
professou, mas veio a fundar uma ordem religiosa no fim da vida 325. A
protecção directa da Rainha Isabel, a Católica, está patente na súplica ao
Papa que marca o início da nova Ordem, então ligada juridicamente a
Cister porventura para efeitos de facilidade de aprovação, mas de clara
influência franciscana. Em 1511, por via da regra concedida pelo Papa
Júlio II, passará a estar formalmente sujeita aos Franciscanos 326. Tal como
é definida pelo seu principal estudioso, a espiritualidade de Beatriz da
Silva, na directa influência de S. Francisco, caracteriza-se pelo “espírito
de oração contínua, a raiar pelo alto misticismo da contemplação, da
humildade e penitência ligada à devoção da Paixão de Cristo e à
Eucaristia (....), da terna devoção à Imaculada, crença e doutrina ilustrada
pelos teólogos franciscanos e vivida também pelo irmão...” 327. Alguns
destes traços, como tivemos oportunidade de mostrar, foram característi-
cos da espiritualidade de figuras como Isabel de Aragão ou a Infanta
Joana. Encontram-se perfeitamente definidos em Beatriz da Silva, no cul-
minar de um processo onde, tal como para seu irmão Amadeu, se entre-
cruzam múltiplas influências 328. O facto de virem a constituir as bases de
uma ordem religiosa original e autonomizada, que irá conhecer rápida
expansão, é emblemático da resolução positiva de tendências que nem
sempre tiveram antecedentes fáceis, mas que ocuparam um lugar primor-
dial no debate teológico e, sobretudo no empenhamento existencial da
galeria de personagens que viemos a conhecer.

325
Enrique Gutiérrez, Vida de la Beata Beatriz da Silva y origenes de la Orden de
la Inmaculada Concepción, Valladolid, Franciscanos, 1967; I. Omaechevarria, “Santa
Beatriz da Silva”, Theologica, 11 (1976), pp. 457-460 [é importante confrontar estas obras
com os dados mais recentes e críticos de A. D. Sousa Costa, na bibliografia cit.. na nt. 312;
Actas del I Congreso Internacional “La Orden Concepcionista”, Léon, Universidad de
Leon, 1990.
326
A. D. Sousa Costa, “Aproximação à espiritualidade”, cit., pp. 163-165.
327
Idem, p. 166; A devoção à Imaculada Conceição estava, significativamente, pre-
sente em círculos tão próximos quanto a corte de Beja de D. Beatriz (cfr. o nosso “A fun-
dação do convento da Conceição...”, cit., p. 269).
328
Maria del Mar Graña/ Angela Muñoz Fernandez, “La Orden Concepcionista: for-
mulación de un modelo religioso femenino y su contestación social en Andalucia”, in Las
mujeres en la Historia de Andalucia. Actas del II Congresso de Historia de Andalucia,
Cordoba 1991, pp. 279-298, Córdova, Publ. de la Consejeria de Cultura y Medio
Ambiente de la Junta de Andalucia y Obra Social y Cultural Cajasur, 1994.

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