Tim Ingold O Que e Um Animal What Is An
Tim Ingold O Que e Um Animal What Is An
Tim Ingold O Que e Um Animal What Is An
Tim Ingold*
Introdução a O que é um animal?**
O texto que segue é a introdução de um livro organizado por Tim Ingold no qual ele
também tem um capítulo intitulado “O animal e o estudo da humanidade”. Nesta
Introdução, Ingold discute as principais ideias de cada um dos autores que participaram da
obra, evidenciando seus próprios pressupostos, sempre caracterizados por originalidade de
reflexão e habilidade em enfrentar o diálogo com outras disciplinas; por isso o interesse em
traduzi-la. Um segundo motivo para a tradução é estimular a divulgação da obra como
umtodo. Assim, a transcrição de um sumário, 1 além de melhor situar o leitor em relação às
passagens em que Ingold se remete aos diversos autores colaboradores, é um convite a sua
leitura.
a eles são correspondentemente tão variáveis, em todo o detalhe, como as suas formas de se
relacionarem uns com os outros, em ambos os casos (homem/homem, homem/animal),
refletindo a surpreendente diversidade de tradições culturais que é amplamente vista como a
marca oficial da humanidade. Mas, ao reconhecermos essa diversidade, somos
imediatamente confrontados com um estranho paradoxo. Como podemos alcançar uma
compreensão comparativa das atitudes culturais dos homens para com os animais, se a
própria concepção do que um animal pode ser – e, conseqüentemente, do que significa ser
humano – ela mesma culturalmente relativa? O projeto antropológico de comparação trans-
cultural não repousa sobre uma implícita pressuposição da singularidade humana vis-à-vis a
outros animais, que é fundamentalmente antropocêntrica? Além do mais, se nós seguirmos
as pressões da teoria evolucionista moderna reconhecendo a continuidade essencial entre
animais humanos e não-humanos, isso não implica a adoção de uma noção
etnocentricamente ocidental de natureza humana? É possível,mesmo em teoria, transcender
simultaneamente as limitações tanto do antropocentrismo quanto do etnocentrismo?
Com dilemas como esse em mente, o programa para o tema principal do Congresso Mundial
de Arqueologia sobre “Atitudes culturais em relação aos animais” foi aberto com uma
sessão na qual os participantes foram convidados a tratar da seguinte questão-chave: “O que
é um animal?”. Foi solicitado a cada participante enfrentar a questão do seu ponto de vista
pessoal ou disciplinar, e eu fiz uma tentativa deliberada de abranger perspectivas de um
espectro de disciplinas tão vasto quanto possível, incluindo antropologia cultural e social,
arqueologia, biologia, psicologia, filosofia e semiótica. Não foi surpresa que minha
observação tenha gerado respostas de tipos variados, e que elas tenham discordado em
muitas premissas fundamentais. Talvez o mais surpreendente tenha sido o grau de paixão
despertado ao longo da discussão, o que me pareceu confirmar dois pontos sobre os quais
acredito que todos os participantes concordariam: primeiro, que existe um forte conteúdo
emocional subjacente em nossas idéias sobre animalidade; segundo, que essas idéias,
quando submetidas ao escrutínio crítico, revelam aspectos altamente sensíveis e bastante
inexplorados da compreensão sobre a nossa humanidade.
Os limites do animado2
3
É claro que a questão “O que é um animal?” pode ser construída de muitas maneiras. Todas
elas preocupadas com problemas de definição de fronteiras, sejam estabelecidas entre
animais humanos e não-humanos, ou entre animais e plantas ou ainda entre seres vivos e
não-vivos. A última dessas fronteiras é a mais inclusiva, pois baseia-se no critério da
animalidade,3 sobre a distinção mesma entre objetos animados e inanimados. Esse tema é
central em duas contribuições do presente volume: as de Reed e as de Goodwin.
Reed argumenta que a propriedade distintiva dos seres animados está na sua capacidade de
movimento autônomo – ou seja, movimento é mais aquilo que os animais fazem do que o
resultado mecânico do que é feito a eles. Isso leva Reed a perguntar o que um animal pode
proporcionar a um outro em seu ambiente que um objeto inanimado não possa. Ele mostra
que, além de serem agentes autônomos que podem “agir em resposta” ou, literalmente,
interagir, todos os objetos animados têm a propriedade de crescer e que, diferentemente das
máquinas, sua atividade nunca é perfeitamente repetitiva.
Para Goodwin, essas propriedades dinâmicas dos organismos representam o ponto de
partida a partir do qual ele tenta resolver o problema da geração da forma em biologia,
problema este que até agora se mostrou resistente a abordagens expressas em termos de um
paradigma convencional e reducionista, inspirado na visão cartesiana do animal como um
autômato complexo. Adotando uma lógica de processo, ele mostra que a estabilidade da
forma não é dada pela interação de seus elementos constituintes; para Goodwin, a
estabilidade da forma é ativamente mantida por um movimento de intenção: assim, a
mudança vem primeiro, a persistência é conseqüência. Nas palavras de Goodwin “não é a
composição que determina a forma e a transformação do organismo, mas a organização
dinâmica”. Conclui, então, que o animal não é um autômato mas “um centro de poder
imanente, autogerador ou criativo”, um locus no contínuo desdobramento ou modulação de
um campo total das relações. Mas levar essa filosofia de processo à sua conclusão última é
dissolver as fronteiras mesmas do animado, é reconhecer que, num certo sentido, o mundo
inteiro é um organismo e seu desdobramento é um processo orgânico.
A pergunta “O que é um animal?”, de forma bem menos inclusiva, é uma questão de
macrotaxonomia – distinguir os animais de outras classes amplas de formas de vida, tais
como plantas, fungos e bactérias. É assim que Sebeok vê o problema. Ele começa com a
caracterização das propriedades fundamentais dos sistemas vivos, que conectam dois
4
Animalidade e humanidade
Embora nosso Embora nosso questionamento se refira tanto às propriedades do ser vivo,
quanto àquelas relativas às principais classes de organismos, ele é mais comumente
entendido, de modo estreito e reflexivo, como uma questão sobre nós mesmos. É suposto
que todo atributo considerado como unicamente nosso estará, conseqüentemente, ausente
nos animais; então, o conceito genérico de animal é constituído negativamente pela soma
dessas deficiências. Porém, como Clark observa na sua contribuição a este livro, quaisquer
que sejam os atributos que possam ser usualmente selecionados como marcas distintivas da
humanidade (e estes variam de uma cultura para outra), nós encontraremos algumas
5
criaturas nascidas do homem e da mulher que – por uma razão qualquer – não se enquadram
(ver também HULL, 1984, p. 35).
Um atributo controverso sobre o qual discutirei a seguir, mas que servirá agora como
exemplo, é a faculdade da linguagem. Existem alguns indivíduos da descendência humana
aos quais falta essa capacidade. Até agora, nenhum animal de outra espécie mostrou
conclusivamente possuí-la, embora muitas reivindicações a este respeito tenham sido feitas.
Isso não significa, entretanto, que nunca possamos descobrir um animal que a possua, nem
que devamos descartar a possibilidade de que, no futuro, essa capacidade lingüística evolua
de forma totalmente independente em descendentes de alguma outra linhagem, sem que seus
membros por isso sejam classificados como pertencentes à espécie humana.
Supondo-se que a humanidade fosse definida como Homo loquens, uma espécie natural
incluindo todos os animais com linguagem e discurso, poderíamos admitir a possibilidade
tanto de ela excluir indivíduos aparentados com os humanos como de incluir seres de
ascendência nãohumana. Mas se, por humanidade, designamos a espécie biológica Homo
Sapiens, somente aquela primeira classe de seres poderia, sem dúvida, ser incluída nessa
categoria, e não a última.
Comparando a taxonomia “folk” com a “científica”, Clark mostra que as espécies
biológicas (a nossa inclusive) não são tipos naturais. Ou seja, os indivíduos de uma espécie
são ligados por uma conexão genealógica, na verdade como co-descendentes de um
ancestral comum ou como um co-ancestral potencial de descendentes comuns. Dadas a
variabilidade e a imprevisibilidade das similaridades e diferenças entre seres humano e
organismos de outras espécies, segue daí que, se as fronteiras da comunidade moral são
definidas de forma ampla o suficiente para abarcar todos os seres humanos e seus futuros
descendentes, então justamente por isso elas devem abarcar os animais não-humanos com os
quais os humanos partilham uma ancestralidade comum.
Isso leva ao imediato questionamento até mesmo das mais bem-intencionadas tentativas de
validar nossas idéias morais e políticas de apelo a uma humanidade comum específica de
uma espécie, e tem implicações consideráveis relacionadas a nossas responsabilidades em
relação aos animais não-humanos. Pois isso inevitavelmente turva aquelas distinções
confortáveis com as quais organizamos nossas vidas: domesticação e escravidão, caça e
homicídio, comer carne e canibalismo.
6
Midgley argumenta, em sua discussão sobre a história dos termos “animal” e “besta”, que o
primeiro deles é agora comumente empregado em dois sentidos contraditórios: um benigno
e inclusivo de humanidade; e outro negativo e exclusivo, denotando todos os seres que são
considerados inumanos ou anti-humanos. Também Tapper observa, a respeito desse mesmo
fenômeno, que tal ambivalência na concepção de animais, como sendo aparentados mas
também muito distantes de nós nos seus comportamentos, faz com que eles sejam
especialmente adequados para serem usados como modelos ou exemplos no processo de
socialização ou de transmissão da cultura e da moralidade entre gerações.
Coy também observa a inconsistência, presente na recente literatura ocidental sobre o bem-
estar dos animais, que os trata como “bestas irracionais” que precisam ser muito bem
protegidas, ao mesmo tempo em que atribui a eles uma gama plena de sentimentos
humanos. Essas contradições originam-se, em larga medida, da nossa propensão para oscilar
entre duas abordagens muito diferentes na definição de animalidade: como um domínio ou
“reino”, incluindo humanos; e como um estado ou condição opostos à humanidade (ver
Figura 1).
Figura 1
Duas visões sobre animalidade: como um reino (incluindo a
humanidade) e como uma condição (excluindo a humanidade).
A área sombreada representa a natureza humana ou a
“animalidade humana”.
por impulsos emocionais inatos que não são disciplinados nem pela razão nem por um senso
de responsabilidade. Dessa mesma perspectiva, animalidade tem sido estendida para
descrever a hipotética condição de seres humanos “em estado bruto”, intocados pelos
valores e princípios da cultura ou da civilização. “Tornar-se humano”, então, é equivalente
ao processo de endoculturação ao qual virtualmente todas as crianças da nossa espécie se
submetem ao longo de sua passagem para a maturidade, e – segundo acreditaram os
primeiros antropólogos – pelo qual toda a espécie está destinada a passar em seu
deslocamento desigual em direção à civilização.
Essa visão de uma humanidade emergente – antes como superação de uma animalidade
intrínseca do que propriamente uma extensão da mesma – esteve subjacente às tentativas de
muitos antropólogos do século XIX para reconstruir a “natureza humana” como um ponto
de partida para toda a subseqüente evolução cultural e social. Esse pressuposto continua a
informar muito a respeito da especulação sociobiológica de cunho mais popular sobre o
mesmo tema, o que usualmente se materializa na procura por protótipos de respostas
comportamentais humanas em meio ao repertório inato de outras espécies. Tal concepção é
exemplificada neste livro por Mundkur, embora, em essência, sua contribuição pertença a
uma classe totalmente diferente, na medida em que se apóia numa formidável erudição,
quando procede a um rastreamento da disciplina, e num peso colossal de documentação
empírica, do tipo que claramente falta na maior parte da sociobiologia humana.
Mundkur está preocupado em revelar os principais fundamentos do que chama
“religiosidade”, definida como “o estado mental incitado pelacrença em forças percebidas
como sobrenaturais”. Ele argumenta que esse estado mental está envolvido pela emoção do
medo, o que é passível de demonstração pela disposição dos sistemas sensoriais de no
mínimo todos os vertebrados superiores, e que tem claras funções adaptativas as quais
teriam promovido seu estabelecimento sob pressões da seleção natural. O que aparece na
história das religiões como uma diversidade quase caprichosa de crenças e práticas, na
verdade, é essa religiosidade de base, refratada de modos incontáveis através das formas das
tradições culturais, que têm sido superpostas à mesma.
É muito significativo que Mundkur apresente seu projeto como uma pesquisa sobre a
“animalidade humana”, uma pesquisa que requer explanações mecanicistas expressas nos
termos das ciências biológicas “mais hard” – genética, bioquímica e neurofisiologia.
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Intencionalidade e linguagem
Midgley expôs vigorosamente o duplo padrão inerente a essa visão. A autora indaga por que
a intencionalidade deveria ser excluída de uma concepção científica de animal, embora ela
pareça tão evidente aos olhos dos técnicos que trabalham com animais (cachorros, elefantes
ou chimpanzés) quanto a intencionalidade de nossas ações é auto-evidente para nós.
Midgley responde que a ciência do comportamento animal tem sido frustrada por um tipo de
“solipsismo de nossa espécie”, ceticismo pretensioso, fruto da ignorância sobre o conteúdo
dos estados de consciência dos animais.
Os cientistas, em suas tentativas de dar conta das performances freqüentemente muito
complexas e variáveis de outras espécies, evitando transgredir as fronteiras convencionais
da animalidade, foram forçados ou a simplificar suas descrições sobre o que os animais
fazem, omitindo certos detalhes perturbadores, ou a propor mecanismos, os mais tortuosos e
enrolados, para explicar o que geraria os padrões observados. No entanto, o princípio
regular da parcimônia explanatória, cientificamente aprovado, se fosse consistentemente
aplicado, favoreceria explicações muito mais econômicas expressas em termos de
habilidades animais que servem para fazer seu próprio ajuste entre meios e fins por meio do
processo de deliberação racional.
A visão segundo a qual animais não-humanos podem ser considerados como sujeitos
autoconscientes com pensamentos e sentimentos próprios é ainda uma heresia em círculos
psicológicos e etológicos. Isso tem sido vigorosamente defendido nos anos recentes por
Griffin (1984), cujo trabalho encontrou em Midgley uma forte defensora. As idéias de
Griffin sobre a questão da consciência animal são ainda discutidas neste livro, por Coy e por
Ingold. Coy reconhece isso com algum ceticismo, mas aceita a noção de que os animais
não-humanos se utilizam de um pensamento consciente, no mínimo como uma hipótese de
trabalho, e com a finalidade de amenizar um forte e tendencioso legado cartesiano favorável
à idéia de que eles não seriam capazes disso.
Finalmente, não há razão a priori para se atribuir mais credibilidade ao mencionado legado
cartesiano do que à sua crítica. Além disso, os tipos de pressões seletivas que podem ter
promovido o desenvolvimento da consciência em humanos poderiam ter igualmente atuado
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sobre outras espécies com as quais a espécie humana manteve estreito e duradouro contato.
Coy sugere que essas pressões estariam nas vantagens adaptativas para o indivíduo de uma
espécie conferidas pela habilidade de predizer ações plausíveis de outros da mesma espécie
ou de espécies diferentes – predadores, competidores ou presas.
Então, na mesma medida em que o caçador humano se beneficia ao prever as reações do
veado, o veado também se beneficia ao ser capaz de prever a previsão do caçador e de
confundi-lo, por meio do exercício de poderes autônomos de ação intencional. Então, cada
aumento no desenvolvimento da consciência dos indivíduos de um dos lados de uma relação
entre espécies diferentes incrementaria a pressão para um maior desenvolvimento da
consciência nos indivíduos da outra espécie, e vice-versa.
Enquanto Midgley defende os argumentos de Griffin, e Coy os vê com desconfiança, Ingold
os considera altamente criticáveis. As críticas deste último ligam-se à questão controversa se
os animais não-humanos são ou não dotados da faculdade de linguagem, questão também
tocada por Tanner. Sua questão é que o argumento segundo o qual “somente os humanos
possuem linguagem” só pode ser sustentado pela seleção arbitrária de fatores aparentemente
peculiares à comunicação humana para definir o que seja linguagem, a saber, o emprego de
palavra e sintaxe. Mas, em comum com outros animais, os humanos se comunicam
utilizando um extenso repertório de signos não-verbais. Com que direito privilegiamos a
comunicação verbal encontrada entre os seres humanos em detrimento da não-verbal
encontrada entre os não-humanos? Se fosse verdade que a linguagem não é nada além de
um mecanismo interespecífico de comunicação, e, nesse sentido, comparável a outros
mecanismos igualmente distintivos empregados por outras espécies, então haveria alguma
consistência nessa objeção. Todavia, há fortes argumentos contra a pressuposição de que a
primeira função da linguagem é a comunicação.
Esses contra-argumentos foram particularmente colocados por Chomsky (1980), cujas
idéias são brevemente avaliadas neste livro por Goodwin e por Sebeok (1986). Esses autores
sustentam que, principalmente e antes de mais nada, a linguagem é um instrumento de
cognição ou um mecanismo modelador que capacita seus detentores para construir, em sua
imaginação, mundos futuros possíveis, cenários alternativos e planos de ação. Como tal, a
linguagem não se coloca num continuum evolucionário com a comunicação não-verbal.
Além disso, as formas desta última, longe de serem gradualmente deslocadas e substituídas
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Animais e autômatos
Ingold documenta como uma visão bastante parecida já existia há um século atrás nos
escritos de Lewis Henry Morgan, um dos fundadores da Antropologia moderna. Mas
Morgan era um racionalista convicto que não tinha dúvidas sobre a separação complementar
dos estados corporal e mental, acreditando que agir propositalmente constitui, antes,
considerar as alternativas e, depois, executar um plano escolhido. Similarmente, quando
Griffin atribui consciência aos animais, esta toma a forma da capacidade para a deliberação
racional e a autoconsciência reflexiva e sua noção de ação intencional pressupõe que todo
ato é precedido de pensamento. Isto é, na medida em que o animal age de forma intencional
e consciente, possui em sua mente imagens dos estágios futuros desejados, escolhe os meios
de consegui-los e age de acordo.
Mas, como diz Ingold, é muito irônico que, para se conceder ao animal a condição de
cônscio, deva-se supor que ele sempre pense antes de agir, quando sabemos perfeitamente
que muitas das coisas que nós próprios fazemos, mesmo de forma bastante consciente e
intencional, não são tão premeditadas. Aceitando a premissa cartesiana de que o
pensamento, enquanto construção de intenções prévias, dependente da linguagem, é uma
capacidade especificamente humana, Ingold rejeita a visão segundo a qual tal planejamento
seja a condição para a intencionalidade da ação. Então, “a questão da consciência animal
[...] precisa [...] ser separada da questão do pensamento animal”. O animal que não
premedita ou planeja não é por isso um autômato, mas um agente e paciente cônscio, que
age, sente e sofre exatamente como nós.
E como nós, é responsável por suas ações, sabendo mesmo que provocou seu
acontecimento, embora ao mesmo falte a habilidade humana de apresentar uma avaliação de
sua performance, seja em primeira mão – como plano ou retrospectivamente como relato.
Essa visão requer que adotemos uma percepção de consciência e criatividade bastante
diferente daquela implicada no racionalismo cartesiano, e que é igualmente aceita pelos
críticos de Descartes que atribuiriam racionalidade aos animais. A consciência não deve
mais ser vista como a capacidade de gerar pensamentos, mas como um processo ou
movimento, do qual os pensamentos são um subproduto não essencial (INGOLD, 1986, p.
210). Esse processo não é nada além da autocriação do sujeito agente.
É exatamente nesse ponto que o argumento de Ingold converge em direção à crítica da
biologia cartesiana feita por Goodwin, e ambos são independentemente inspirados pela
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filosofia do organismo de Whitehead. Os animais, de acordo com Goodwin, ‘são tanto causa
como efeito de si mesmos, pura atividade auto-sustentada’. E é por isso, e não por
possuírem a faculdade de razão, que eles são realmente o oposto das máquinas. O que se
levanta contra Descartes não é tanto que ele tenha desenhado uma fronteira entre o mental e
o orgânico na interface entre os seres humanos e os outros animais, mas por ele ter
simplesmente desenhado tal fronteira, como se os organismos fossem opostos às mentes,
como a matéria ao espírito, ou máquinas aos projetistas.
Dualismos desse tipo, uma vez implantados na imaginação científica, tendem a proliferar
em todos os ramos de investigação e é precisamente o legado do pensamento dualista em
biologia, manifestado em oposições bastantes surradas tais como genótipo/fenótipo e
organismo/meio ambiente, que Goodwin está disposto a recusar. A implicação de seu
argumento é que mente (ou consciência) e organismo, longe de estarem em contraponto
como substâncias contrárias (ideal e material), são ambos processos no mundo real, aspectos
de um movimento global de existir, através da natureza em sua inteireza, ao qual Whitehead
(1929, p. 314) se referiu como um “avanço criativo em direção à novidade”.
Se aceitarmos que outros animais, que não os da espécie humana, podem ser agentes
conscientes e dotados de intenção, então devemos também atribuir-lhes poderes pessoais,
além dos naturais. Ou seja, somos forçados a reconhecer que eles encarnam atributos de
pessoalidade, que são no ocidente comumente identificados com a condição de
“humanidade”. Como Clark argumenta, “outras criaturas diferentes biologicamente das
humanas podem ser pessoas”, uma visão que pode parecer estranha para nós, mas que, para
muitas culturas não-ocidentais, soa mais como uma afirmação do óbvio (HALLOWELL,
1960). Todavia, Tapper adverte que em qualquer investigação sobre a “humanidade animal”
certamente corremos o risco de saltar de um antropocentrismo cartesiano questionável, que
restringe a pessoalidade aos seres humanos, para um igualmente questionável
antropomorfismo (ou, pior ainda, etnomorfismo) que simplesmente transporta para as
mentes animais os pensamentos e sentimentos que reconhecemos em nós mesmos,
impregnados como são de nossa bagagem cultural, específica de nossa espécie. O risco é,
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sem dúvida, real, e Tapper dirige críticas bastante fortes aos filósofos moralistas, tal como
Midgley que, segundo ele, não enfrenta o problema antropológico da tradução, pressupondo
similaridades entre mentes humanas e outras, quando o real problema é entender suas
diferenças.
Contudo, o antropomorfismo não é uma conseqüência inevitável de se tratar animais como
pessoas. Para entender os elefantes, por exemplo, não temos de fazer de conta que eles são
“exatamente como nós, humanos”, e muito menos que eles são como os humanos ocidentais
de classe média, em pleno século XX. Mas talvez tenhamos de aplicar alguns dos métodos
interpretativos comuns às ciências humanas e classicamente reservados ao estudo da cultura
e da história humanas. Sugerir que tais métodos podem ser igualmente apropriados para a
compreensão das vidas e ritmos de animais não-humanos é meramente o inverso da tese de
Mundkur, que julga necessárias as abordagens das ciências naturais “mais duras” para
explicar as bases psicobiológicas do comportamento animal humano e não-humano.
Resumindo, a divisão disciplinar entre humanidades e ciências não pode mais acompanhar a
divisão dos seus objetos de estudo em mundo humano e mundo animal, porque na verdade
essas disciplinas atravessam tal divisão.
Não é obviamente antropocêntrico asseverar que a espécie humana é única, pois a
singularidade é uma propriedade que todas as espécies – enquanto entidades históricas
(HULL, 1984) – têm em comum. Realmente, é bem mais antropocêntrico basear estimativas
sobre outras espécies a partir daquilo em que elas podem ter a mesma performance que nós;
por isso, colocações do tipo “chimpanzés (ou golfinhos, elefantes, papagaios ou o que seja)
podem fazer isso também” sempre tiveram tamanho apelo popular. Como Coy
acertadamente ressalta: “outras espécies são diferentes”, elas não devem ser vistas como
tentativas frustradas – ou parcialmente bem-sucedidas – de humanidade; e o nosso respeito
pelos chimpanzés, por exemplo, não deveria depender de sua habilidade de usar a
linguagem, da mesma maneira que o nosso respeito pelos nativos de outra cultura não
deveria ser condicionado por sua habilidade de ler e escrever.
Para vencermos o antropocentrismo devemos parar de interpretar afirmações sobre outras
espécies como declarações de sua inferioridade. Pode ser verdade que os seres humanos se
distinguem por um nível de complexidade cognitiva interna não rivalizado por nenhuma
espécie do mundo animal, mas precisamente graças à liberdade em relação aos
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constrangimentos ambientais, que tal complexidade confere, isso é contrabalançado por uma
simplicidade equivalente no campo de suas relações sociais externas e ecológicas. Então,
com todas essas habilidades cognitivas, a organização social dos caçadores coletores é bem
rudimentar se comparada àquela de muitos animais não-humanos. A complexidade real das
sociedades humanas é tributária da emergência de diferenciais de poder e da repressão
sistemática à autonomia pessoal. Isso é o que origina os vocabulários impessoais de
dominação hierárquica e controle; e Tanner, muito acertadamente, enfatiza sua absoluta
inadequação para descrever as relações íntimas de pequenos primatas ou ainda de grupos de
caçadores e coletores.
diferença entre a cultura ocidental e as outras é que a visão de mundo da primeira incorpora
a idéia de homem como um fazedor, ou Homo faber, enquanto que as últimas incorporam a
negação da autoria humana.
Essa diferença tem um efeito crucial no problema antropológico clássico do totemismo, pois
uma premissa do culto e da crença totêmicos é a de que foram os animais que fizeram o
mundo para os homens e estabeleceram a ordem e as determinações da existência social
humana, e que são afinal responsáveis por sua continuidade. O culto ocidental da
conservação precisamente inverte essa premissa, proclamando que a partir de agora é o
homem que determina as condições de vida para os animais (mesmo aqueles tecnicamente
selvagens serão “geridos”), e que assume a responsabilidade por sua sobrevivência ou
extinção. Mas, da perspectiva relativizadora dos antropólogos, os animais que ocupam os
mundos de culto dos totemistas e dos conservacionistas são ambos, igualmente, criações da
imaginação humana.
Concluindo sua incursão sobre o pensamento totêmico, Tapper observaque não importa se
existem na realidade animais por aí que sejam isomórficos com relação a essas concepções:
“há sempre animais por aí, mesmo que eles existam como imagens mentais”. Similarmente,
para um telespectador ocidental, que observa as extravagâncias de um animal exótico e
estranho em sua tela, ele pode tanto estar vendo um produto de ficção científica como um
documentário sobre a natureza. Então, qual é a relação entre esses “animais que temos na
mente” e aqueles que nos circundam realmente? Podemos ver os últimos apenas interpondo
os primeiros entre eles e nós? Os animais existem para nós como entidades significativas
somente na medida em que cada um exemplifica um tipo ideal constituído dentro do
conjunto de valores simbólicos que compõem a “taxonomia folk” específica da nossa
cultura? Ou nós percebemos os animais diretamente em virtude da sua imersão num
ambiente que é também amplamente o nosso, independentemente das imagens que fazemos
deles, e independente mesmo de termos tais imagens?
Reed, em seu artigo deste livro, argumenta enfaticamente a favor dessa última visão. Assim
fazendo, ele lança um ataque frontal contra a ideia de que todo significado é obra do
homem, desafiando a antropologia na sua mais fundamental premissa. Então, enquanto
Tapper sustenta que “o animal” é uma categoria culturalmente construída, Reed afirma
justamente o contrário: que a animacidade é uma característica inerente daqueles objetos do
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meio ambiente que têm a capacidade de movimento autônomo, e isso independe totalmente
da interpretação simbólica que os sujeitos humanos, de não importa qual cultura, possam
atribuir a eles. Por causa das propriedades distintivas de crescimento transformacional e
movimento não repetitivo, nós vemos os animais tais como eles são, independente de como
podemos vir a descrevê-los e classificá-los; além disso, existe uma boa base experimental
para acreditarmos que mamíferos e aves – aos quais falta o pendor humano para a
classificação simbólica –, de maneira bem similar, percebem diretamente objetos animados
e ações.
Argumentar, como os antropólogos fazem, que todo o significado do mundo é investido
sobre ele pela imaginação cultural de sujeitos pensantes, implicaria afirmar que a
“realidade” assim investida é – ela em si mesma – totalmente desorganizada e
desestruturada, mera substância ou, como do ponto de vista dos físicos, um espaço ilimitado
preenchido com quanta de matéria e energia. Isso, pondera Reed, equivale à dissolução do
ambiente em que vivemos, um ambiente que consiste, na realidade, de superfícies
estruturadas e configurações de lugares, objetos animados e inanimados com suas
propriedades inerentes. Por causa dessas propriedades, os objetos ambientais, incluindo
animais, provêem o sujeito de algumas coisas e impedem (desprovêem) de outras. Assim, a
natureza não é infinitamente maleável; ao nos relacionarmos com nossos ambientes, nós não
tanto impomos nossos significados às coisas, quanto descobrimos o significado para nós dos
significados que as coisas já têm.
imputando significados funcionais aos objetos com que se depara, integrando-os, assim,
num sistema coerente para ele mesmo. Esses sentidos, ele insistia, não estavam dados nos
objetos em si, mas eram adquiridos por esses objetos graças ao fato de entrarem em relação
com um sujeito animal. Desse modo, uma pedra adquire a “qualidadeprojétil” para um
homem zangado que a lança contra seu adversário; ou se reveste de uma “qualidade-
bigorna” para o tordo que a utiliza para quebrar a concha de uma lesma.
Um importante corolário dessa perspectiva é que os seres humanos não estão sozinhos na
construção de seus ambientes. Ao contrário, como eu já sugeri, sua distinção pode residir no
grau em que são autores de seus próprios projetos de construção, com a ajuda do
instrumento de modelagem que é a linguagem, igualando o mundo a sua volta a sua
concepção conceitual interna.
O conceito de Gibson de affordance corresponde rigorosamente ao conceito de qualidade de
Uexküll: ambos se referem às propriedades de um objeto que o tornam apto a um projeto de
um sujeito. Assim, Gibson poderia incluir no catálogo de affordances lançar e quebrar uma
pedra – embora, é claro, projétil e bigorna sejam apenas duas das várias possibilidades.
Todavia, existe uma diferença crucial: affordances não são adquiridos pelos objetos de um
ambiente; eles existem enquanto propriedades invariantes dos próprios objetos de maneira
completamente independente de eles serem colocados em uso por um sujeito. Conclui-se daí
que, embora para Uexküll todo animal seja fechado em seu próprio mundo subjetivo, um
tipo de “realidade-bolha”, acessível somente a ele mesmo, para Gibson, diferentes animais
podem viver em um ambiente partilhado, e, além disso, podem compartilhar suas
percepções sobre oque esse ambiente provê.
Como Reed argumenta, a percepção não precisa de jeito nenhum ser uma questão particular:
realmente, ele conclui que a socialidade tem seu fundamento na consciência de percepções
partilhadas, na mutualidade direta ou no envolvimento intersubjetivo que advém do ato de
se viver em ambiente comum. Aqui novamente ele desafia a sabedoria antropológica
convencional, que considera a vida social como algo que depende de uma objetivação da
experiência de sujeitos particulares, inicialmente fechados uns para os outros, dentro de
sistemas públicos de representações coletivas e simbolicamente codificados.
As relações homem-animal
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que “é considerado” um animal para os seres humanos, ou a maneira pela qual o próprio
animal se torna um signo – “um pedaço de informação concentrada” – na interação social
humana.
Coy nitidamente vira a mesa com relação à tendência usual para considerar as relações entre
homens e animais apenas do ponto de vista humano. O tema central de sua contribuição é a
empatia mútua que pode se desenvolver quando tais relações se tornam próximas e intensas,
uma empatia que permite a cada parte “ler a mente” da outra e, por isso, pelo menos numa
certa medida, prever suas ações. Coy sugere que não somente os animais humanos, mas
também os não-humanos, devem ter níveis suficientes de discernimento para serem capazes
de imputar motivações a outros indivíduos, tanto de sua própria espécie como de outras – aí
incluídos os seres humanos. A habilidade do animal em predizer o comportamento humano
pode difícultar o ato de caçar, mas poderia facilitar significativamente o processo de sua
domesticação. Ela conclui que o mais importante para nós é compreendermos as espécies
domésticas com as quais temos ligações mais próximas porque são as mais prováveis de
revelar as atitudes dos animais para com as pessoas. Entretanto, esta conclusão poderia ser
qualificada pela observação de Sebeok de que o treinamento humano dos animais pode
assumir duas formas opostas: uma delas (aprendizagem) é um tipo inteiramente impessoal
de condicionamento comportamental; a outra (adestramento) depende de uma relação de
intimidade máxima entre o treinador e o animal adestrado. Enquanto nessa última forma, o
mútuo envolvimento do ser humano com o animal alcança seu máximo, na primeira, fica
reduzido a um mínimo.
A contribuição de Tapper concerne também à questão da familiaridade humana com os
animais, e compartilha com Coy o interesse sobre as maneiras pelas quais os animais
figuram na literatura popular, especialmente como modelos didáticos e de socialização. Em
uma revisão engenhosa do paradigma clássico marxista, Tapper estende o conceito de
relações sociais de produção para além da fronteira da espécie, e examina uma gama
paralela de formas de “relações de produção homem-animal”. Assim, em uma sociedade de
caçadores, na qual as presas são consideradas como pessoas iguais, as relações homem-
animal “comunais” prevalecem. Já sob a era da domesticação, em que os animais são
tratados como membros da família, tais relações transformam-se em “escravização”. O
desenvolvimento do pastoreio, no qual os animais são criados sem necessariamente serem
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Tentei, com essa Introdução, dar ao leitor uma noção da diversidade e da riqueza das
contribuições que se seguem e, mais importante, evidenciar as principais conexões entre
elas. Há, naturalmente, muito mais pontos de contato além daqueles que resenhei aqui. Não
acredito que a questão de “O que é um animal?” possa ser resolvida por um único
paradigma teórico ou conceitual. Minha intenção foi, antes, mostrar que todos esses
paradigmas já têm profundamente incorporada, em suas suposições mais fundamentais,
alguma visão de animalidade, o que é sempre apenas vagamente reconhecido.
Conseqüentemente, nossa questão não pode ser nem mesmo perguntada e menos ainda
respondida, dentro da estrutura axiomática constitutiva de qualquer sistema particular do
pensamento. É somente com um esforço concertado dos acadêmicos, com a representação
de muitas disciplinas e tradições intelectuais que nós poderemos começar a desembrulhar os
diversos e multiestratificados significados de “animal”. Este livro representa um passo nessa
direção, e o que liga as contribuições dos seus dez autores não é uma teoria, mas uma
questão.
Abstract
In the introduction of the book “What Is an Animal”, Tim Ingold presents
the points of view of the contributing authors giving emphasis to what joins
and what differentiates their perspectives. The editor/He addresses the issue
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Referências
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Press, 1980.
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WHITEHEAD, A. N. Process and reality. Cambridge: Cambridge
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Notas
1 Sumário: 1 – Introdução Tim Ingold; 2 – É a humanidade um tipo natural? Stephen R. L.
Clark; 3 – Bestas, brutos e monstros Mary Midgley; 4 – Animalidade,
humanidade, moralidade, sociedade Richard L. Tapper; 5 – ‘Animal’ numa perspectiva
biológica e semiótica Thomas A. Sebeok; 6 – As atitudes dos animais para com as pessoas
Jennie Coy; 7 – O animal no estudo da humanidade Tim Ingold; 8 – Organismos e mentes: a
dialética da interface animal-humano na biologia Brian Goodwin; 9 – Affordances do
ambiente animado: as ciências sociais do ponto de vista da ecologia Edward S. Reed; 10 –
Tornarse humano, nossos vínculos com nosso passado Nancy M. Tanner; 11 – A
animalidade humana, a imagem mental do medo e religiosidade Balaji Mundkur.
2 No inglês, animale.
3 No inglês, animacy.
4 Nota das tradutoras: optamos por não traduzir o termo affordance sugerindo, entretanto,
que ele pode ser tomado no sentido de provimento.