Mediacao Pedagogica-Critica Ensino Remoto

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Fauston Negreiros

Breno de Oliveira Ferreira


organizadores

Onde está a psicologia escolar no


meio da pandemia?

2 0 2 1
São Paulo
Capítulo 2

PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO:
MEDIAÇÕES EM TEMPOS
DE PANDEMIA

Maria da Apresentação Barreto


UFRN, [email protected]

Cynara Carvalho de Abreu


UFRN, [email protected]

Gêdson Resende de Almeida


UFRN, [email protected]
1 INTRODUÇÃO

Este artigo fará o compartilhamento de uma experiência desen-


volvida numa Instituição de Ensino Superior (IES) do ramo público,
por meio do qual almejava-se ampliar o diálogo entre a psicologia e
a educação, visando a construção de mediações promotoras de hu-
manização. O Departamento de Psicologia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), em parceria com outros setores da
mesma IES, como o Centro de Educação e o Curso de Psicologia da
Faculdade de Ciências da Saúde (FACISA/UFRN), promoveu um ci-
clo de mesas-redondas na modalidade remota. Uma prática que foi
realizada num momento em que o isolamento social fora orientado, a
fim de conter o aumento dos casos de infecção pela COVID-19, e em
que a modalidade remota se materializou como recomendação para o
desenvolvimento das atividades de ensino.

O ciclo de mesas-redondas foi planejada como uma alternativa


para responder à exigência de ofertar atividades durante o Período
Letivo Suplementar Excepcional (PLSE), na modalidade on-line,
tematizando conteúdos pertinentes ao contexto da pandemia. O
aporte teórico da psicologia histórico-cultural foi adotado como base
da discussão nessa experiência.

Importa situar, brevemente, como essa recomendação de


afastamento social chegou até nós. Mal havíamos começado o ano de
2020 quando tivemos notícias de que na cidade de Wuhan, província de
Hubei, na China, um grupo de pessoas começou a apresentar sintomas
de uma doença causada por um vírus e que provocava um grande
número de mortes. Estávamos começando a ouvir falar da COVID-19.
Dois meses depois, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial
de Saúde (OMS) declarou que, devido ao aumento da contaminação
e propagação da doença de forma global, estávamos diante de

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uma pandemia. Nesse sentido, toda a comunidade internacional,
até mesmo onde o vírus ainda não havia chegado, deveria ficar em
alerta. Aqui no Brasil, ainda no fim de fevereiro, alguns casos de
contaminação já haviam sido registrados e, na segunda quinzena do
mês de março, chegou a recomendação pela suspensão das aulas,
bem como de diversas outras atividades, e, junto, a indicação explícita
de distanciamento social.

Foi assim que, como num piscar de olhos, em todo país, tivemos
a suspensão das aulas presenciais. A rapidez da paralisação também
engendrou uma rápida alternativa para levar adiante as atividades de
ensino: a educação remota passou a ser apontada como solução
viável. De uma hora para outra, tivemos que nos render aos encantos
e desafios das ferramentas tecnológicas. Destacamos que, na UFRN,
a recomendação para retomada das atividades de ensino nessa
modalidade foi discutida e vivenciada num movimento permeado
por severas críticas e muita resistência por parte de docentes e
discentes. A indicação foi deflagrada sem uma discussão mais ampla
e sem consideração das reais condições de alunos e professores. As
discussões sobre o ensino remoto aguça mais inquietações do que
certezas, quem sabe a sistematização da experiência nos ajude a
ampliar essa discussão.

O momento histórico no qual a pandemia foi oficializada já reve-


lava a exacerbação das desigualdades sociais. Tanto o cenário político
quanto o econômico e o social apresentavam fragilidades generaliza-
da, tendo, como consequência, o escancaramento das disparidades
sociais e as disputas entre salvar vidas e salvar a economia. Dessa
forma, explicitou-se a rápida necessidade de reabertura da indústria
e do comércio em concorrência com a urgência para ampliar o nú-
mero de leitos a fim de diminuir a quantidade crescente de óbitos. A
pandemia tem nos ensinado a enxergar, de maneira mais explícita, o
histórico abismo entre ricos e pobres (SANTOS, 2020). Essas contradi-
ções ficaram nítidas em diversos espaços nos quais a vida concreta se

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materializa: condições de atendimento na educação pública e privada,
na saúde, na assistência social e até nas condições de sepultamento.
Os enterros dos mais pobres nas valas comuns jamais serão apaga-
dos da nossa memória, uma triste imagem da desigualdade que nos
marca da chegada ao final da vida. No momento em que estamos
fazendo esta escrita, aqui no Brasil, mais de cento e quarenta mil vidas
já foram ceifadas.

Historicamente, estamos imersos numa crise que a pandemia


só veio acentuar. Crise que é tecida por fios que se interligam entre
economia, política, concentração de riquezas nas mãos de poucos,
diminuição dos índices de desenvolvimento humano, acentuação das
desigualdades entre ricos e pobres, entre outros fatores. Esse é um
cenário no qual a vida corre sérios riscos e a nossa humanidade está
sendo posta à prova.

Tendo em vista o contexto, faz-se mister tecer algumas


considerações que julgamos pertinentes para ampliarmos nossa
discussão e, especialmente, para conhecermos alguns determinantes
atrelados à recomendação para o ensino remoto.

Primeiramente, sob as lentes do referencial adotado neste


estudo, vislumbramos que os impactos trazidos por essa modalidade
de ensino não podem ser contemplados isolados de outros desafios
que, nos últimos tempos, têm sido impostos à educação. Tanto no
âmbito do ensino superior quanto nas outras esferas de ensino, temos
constatado o quanto as políticas neoliberais têm tomado a pandemia
como uma desculpa ou um atalho para o cerceamento e abandono
do que já vinha sendo precarizado na educação (FACCI e URT, 2017).

Tomando apenas os últimos quatro anos, observamos um


movimento no qual a extrema direita deste país tem tentado silenciar
o pensamento crítico dentro das universidades; uma investida
extremamente danosa, posto que busca desvincular a atividade

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de ensino da atividade de pensar as contradições para além das
aparências (VIÉGAS e GOLDSTEIN, 2017). Notadamente, esses
movimentos visam sedimentar a educação como ferramenta a favor
do capital, preparando pessoas úteis ao processo produtivo, alienadas
em relação ao que produzem e cada vez mais distantes dos processos
de humanização defendidos por Leontiev (2004). Esse, portanto, é um
explícito retrocesso das universidades em relação ao que estávamos
começando a vislumbrar através das políticas de expansão e acesso
ao ensino superior que, talvez, se encaminhavam para provocar
rupturas nas desigualdades que são centenárias em nosso país. Os
filhos da classe trabalhadora, os mais pobres, os negros, os indígenas,
os quilombolas e as pessoas com deficiência começavam a se
aproximar dos espaços de saber erudito. No entanto, os caminhos
formativos que se vislumbram daqui em diante poderão retroceder e
voltar a reforçar aquela lógica que, durante tantas décadas, fez dos
espaços universitários lugares seletos, para pessoas que utilizavam
do conhecimento para impor dominação e manutenção de privilégios.

O modo de produção capitalista, no mundo globalizado,


vem sendo sustentado por conhecimentos muito específicos. Nos
requisitos para se tornar útil e produtivo, é desejável que não haja lugar
para pensamentos divergentes ou críticas ao modo de funcionamento
dessa engrenagem perversa, ou seja, no bojo desses conhecimentos
específicos ou pragmáticos, não há lugar para questionamentos.
Embora imersos numa avalanche de provocações que nos impele a
essa lógica produtiva, não podemos, como formadores de psicólogos,
nos conformar com os modelos que o capital vai nos impondo. Nossa
atenção e nossas práticas não podem se distanciar de projetos
formativos que promovam descontinuidade de todo tipo de ação
promotora de desigualdades sociais e de processos de exclusão.

Apesar de, historicamente, termos desenvolvido intervenções


que nos colocaram muito mais numa perspectiva de alinhamento com

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o ajustamento dos indivíduos às demandas do capital e, consequen-
temente, de uma ampliação dos processos de exclusão, o aporte teó-
rico da psicologia histórico-cultural aponta possibilidades de rupturas
através da promoção do acesso ao conhecimento. Precisamos nos
comprometer com projetos de formação que removam os obstáculos
que estão postos entre os sujeitos e o conhecimento (TANAMACHI e
MEIRA, 2003), comprometimento esse que defende o cultivo do pen-
samento crítico e que se materializa em práticas alinhadas com os
processos de humanização.

É imperioso, como já aludido, promovermos o distanciamento


das concepções de formação que coloca em primeiro plano as
demandas do mercado e toma como meta a formatação de um homem
flexível, criativo, multifuncional e apto a desenvolver intervenções
em diversos contextos. Ora, se a educação se alinha às demandas
do capital e adota os princípios do Toyotismo - “Just in time” -, a
necessidade do mercado vai ditar para as IES o tipo de formação
a ser veiculada. Num panorama dessa envergadura, notadamente,
não haverá lugar para os processos de humanização nem para os
movimentos de emancipação humana.

A universidade se sobressai como lócus privilegiado da edu-


cação formal e, nas circunstâncias de uma pandemia, não podemos
nos furtar a uma discussão sobre as (im)possibilidades dos proces-
sos educativos num contexto que tem a marca da excepcionalidade.
Santos (2020) afirma que, nos últimos 40 anos, o capitalismo tem for-
jado um estado de crise permanente para explicar o regramento ou a
supressão dos nossos direitos sociais e a concentração de riqueza
nas mãos de poucos. Vivemos a “normalidade da exceção”, pois a
pandemia não pode ser interpretada como uma crise que se contrapõe
a uma situação de normalidade.
“... a crise é, por natureza, excepcional e passageira, e constitui
a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor

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estado de coisas. Por outro lado, quando a crise é passageira,
ela deve ser explicada pelos factores que a provocam. Mas
quando se torna permanente, a crise transforma-se na causa
que explica todo o resto”. (SANTOS, 2020, p. 5)

Imersos nessa crise que não é recente, agora temos como


inimigo comum um vírus, e, para combatê-lo, temos de nos distanciar
uns dos outros, dos nossos espaços de referência e das atividades
de rotina. Em meio a esse caos instalado, somos convocados a
desenvolver uma reorganização da vida, e, como parte da vida, uma
reorganização das atividades de ensino.

Aqui nos propomos a compartilhar a experiência do ciclo de


mesas-redondas que foi concebida num movimento dialético entre
a necessidade de retomar as atividades de ensino na modalidade
remota e a discordância em ofertar disciplinas obrigatórias nesse
mesmo formato para a formação do psicólogo. Tomaremos alguns
fundamentos da psicologia histórico-cultural para resgatar a importância
da mediação pedagógica nos processos de aprendizagem, para, em
seguida, compartilhar a experiência, aludindo sobre o processo e
alguns resultados que já se evidenciam.

MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA E
EDUCAÇÃO REMOTA

A discussão sobre o que foi desenvolvido na experiência


irá dialogar com o aporte da psicologia histórico-cultural, que foi
engendrada na União Soviética no início do século XX e tem como
principais fundadores Lev Semyonovich Vigotski (1896-1934), Aléxis
Nikolaevich Leontiev (1903-1979) e Alexander Romanovich Luria (1902-
1977). Essa teoria possui um conjunto de princípios que adota as
mesmas bases filosóficas do materialismo histórico-dialético e, nessa

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perspectiva, assinala que, para tratarmos sobre qualquer fenômeno, faz-
se necessário o conhecimento das condições concretas que permitem
sua emergência. Somente desvelando essas condições é que também
conheceremos sua dinâmica e suas contradições (VIGOTSKI, 1996).
Para esse psicólogo soviético, era importante se opor a toda forma de
determinismos e defender a adoção da perspectiva histórica e o papel
ativo dos homens na criação das suas condições de vida.

Em consonância com esses pressupostos da psicologia


histórico-cultural, defendemos os processos educacionais como
determinantes na criação das possibilidades de humanização e
emancipação humana. Nesse sentido, quando discute as possíveis
articulações entre a psicologia histórico-cultural e a Psicologia da
Educação, Meira (2007) enaltece a educação como possuindo um
papel importante na transformação do homem. Também Maciel e
Oliveira (2018, p. 101) corroboram com essa visão: “se a apropriação
é a condição para a concretização da humanidade em cada indivíduo,
a educação de qualidade como direito de todos os cidadãos coloca-
se como questão central”. Além de enaltecer o papel da educação, as
autoras ainda assinalam que não estão falando de qualquer educação,
mas de uma educação de qualidade e como direito de todos.

Leontiev (2004) também se posicionava favoravelmente a essa


visão, e, tratando sobre o desenvolvimento do psiquismo, afirmava
que, para nos tornarmos humanos, precisávamos nos apropriar das
objetivações humanas. Apropriação que não é dada naturalmente e
nem de forma passiva, mas que exige a atuação dos homens sobre
a realidade. Para ele, o processo de apropriação se materializa nas
interações dos homens com a realidade objetiva. Somente agindo
sobre a realidade é que os homens se deparam com as contradições,
ao mesmo tempo em que forjam as condições para superá-las e
para construir sua humanidade. Como já assinalado, a apropriação
é processual, movimentos que são, ao mesmo tempo, históricos e

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dialéticos. Ressalta-se, portanto, a importância do conhecimento
das condições concretas nas quais a vida se materializa. Destarte,
também Tuleski (2008) discorre sobre a obra de Vigotski e enaltece
sua postura de se contrapor a uma prática de psicologia restrita aos
espaços de laboratório.

A inserção de uma discussão sobre a importância da educação


para os processos de humanização também nos convida a dialogar
com a Pedagogia Histórico-Crítica, que tem Saviani (2011) como
um dos seus principais expoentes. O autor resgata a função social
da escola como propiciadora de condições para que aconteça
a apropriação do que denomina de saber científico ou erudito.
A escola se insere, portanto, como espaço formal de educação e
lócus privilegiado onde serão desenvolvidas as ações educativas.
De acordo com esse mesmo autor, “o trabalho educativo é o ato
de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto
dos homens” (SAVIANI, 2011, p. 13).

Em concordância com o que foi exposto como sendo o


cerne da atividade educativa, e ressaltando a importância da
intencionalidade nas atividades relacionadas à educação formal,
convém assinalar que estamos tratando do conceito de mediação.
Notadamente, em Vigotski (1993), encontramos uma definição que
confirma o que autores contemporâneos referem como sendo a
mediação pedagógica. O teórico afirma que, para se tornar concreta,
a mediação requer ações planejadas, articuladoras dos conceitos
científicos e dos conhecimentos espontâneos que os alunos já
trazem quando se inserem na educação formal. No relacionamento
e na influência mútua entre conceitos científicos e espontâneos, vai
se concretizando, o processo da formação de conceitos que, de
maneira dialética, não excluirá os antagonismos, mas estabelecerá
uma relação de complementaridade, promovendo possibilidades

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de generalização, abstração e desenvolvimento do intelecto. A
mediação como processo aparece ainda nos estudos de Maciel e
Oliveira (2018, p. 103), que afirmam: “Vigotski utilizou o conceito de
mediação não simplesmente como “ponte”, “elo” ou “meio” entre as
coisas, mas sim como um processo”.

Sforni (2008) compartilha dessa visão e enfatiza a importância


do conhecimento quando discute o papel da mediação. A autora diz
que os conteúdos escolares funcionam como mediadores culturais.
Para a psicologia histórico-cultural, aprendizagem e desenvolvimento
acompanham os sujeitos desde seu nascimento, mas, quando estes
são expostos à educação formal, precisam ter acesso a mediações que
contribuam com processos de humanização enquanto apropriação
das objetivações humanas construídas ao longo da história. Conforme
assinalam Maciel e Oliveira (2018, p. 103):
A educação precisa garantir que as novas gerações se
apropriem dos conhecimentos historicamente acumulados
pela humanidade, construindo e ampliando sua capacidade
de pensamento crítico, portanto o professor possui papel de
mediação entre o indivíduo e o conhecimento.

O estudo de Facci (2004) sobre o trabalho do professor indica


a mediação pedagógica como processo que articula professor,
conhecimento e alunos numa interação que deverá promover a
apropriação desses conhecimentos científicos. A autora destaca o papel
do professor como mediador que, em consonância com a psicologia
histórico-cultural, terá de intervir na Zona de Desenvolvimento Potencial
dos alunos. No dizer de Pasqualini (2008, p. 12):
[...] zona de desenvolvimento potencial (ZDP) é determinada
pela discrepância entre, por um lado, o nível atual de
desenvolvimento, que se refere aos problemas resolvidos pela
criança com autonomia, apoiada nas funções já desenvolvidas
(em outras palavras, o que ela já sabia fazer sozinha); e, por

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outro, o nível atingido pela criança com auxílio e colaboração de
outra pessoa, apoiada nas funções em processos de maturação.

Embora faça referência, especialmente, ao desenvolvimento


infantil, o conceito pode ser generalizado ao preconizar que as estratégias
de ensino terão de considerar a realidade na qual os estudantes estão
imersos a fim de assegurar a apropriação do conhecimento. Também
Barreto et al (2019, p. 23) corroboram com essa ideia: “defendemos
que somente um ensino pautado na transmissão-apropriação dos
conhecimentos científicos é que pode enfrentar as visões deterministas
ou mercadológicas tão em voga nos espaços de educação formal”.
Estudos de Facci e Urt (2017) reforçam essa concepção e enaltecem
o papel do professor, que faz a mediação e transmite os conteúdos
científicos que podem contribuir para que o aluno compreenda a
realidade para além do que se apresenta aparentemente.

Em concomitância com o processo de mediação que persegue


a emancipação, temos aqueles que lutam para silenciar o pensamento
crítico dentro da universidade e que tentam, por múltiplos caminhos,
ofuscar o seu papel na construção de projetos de sociedade diferente
do que está posto. No Brasil contemporâneo, avolumam-se as mentiras
sobre o que se pratica dentro das universidades: “lugar de balbúrdia”,
“lugar onde as pessoas andam nuas”, “lugar que tem servido para
plantação de maconha” e, por último, “lugar onde se ensina sexo sem
limites”. Mentiras proferidas por quem ocupa postos importantes na
gestão central do Ministério da Educação e Cultura (MEC), esfera essa
que tem sofrido uma troca constante de líderes. A educação superior
tem sido destituída do seu caráter formativo enquanto tentam provar,
com mentiras infundadas, que está a serviço da doutrinação.

Seria ingenuidade pensar que esse projeto que combina


desmonte e descaso com a universidade pode ser avaliado como
um desgoverno. Ao contrário, faz parte de uma proposta bastante
articulada, que visa, entre outras coisas, destruir a produção de

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conhecimento que possa escancarar a insustentabilidade desse
modelo de sociedade excludente. São ações planejadas que
almejam implantar um governo totalitário capaz de controlar a vida
pública e privada dos seus cidadãos e, por compreender o potencial
da educação, começa minando os espaços de disseminação do
conhecimento. Uma explícita tentativa de defender a educação
deslocada de sua dimensão política, uma educação que supostamente
seja neutra e que não defenda interesses partidários.

Considerando esse cenário e reiterando a importância da


mediação, a realização da atividade das mesas-redondas remotas foi
um movimento de resistência ao desmonte da dimensão crítica que
deve perpassar a formação universitária. Para isso, inserimos temáticas
diversas, mas que tinham um fio invisível de intencionalidades que
perpassava a exposição e discussão de temas pertinentes que, por
sua vez, reafirmariam o compromisso de promover ações educativas
que pudessem ajudar os alunos a pensar e agir de forma autônoma
e crítica na sociedade em que estão inseridos. Esses diálogos se
opuseram à conformação e ao ajuste à ordem existente, sendo
tentativas de romper com a lógica de dominação que nos vem sendo
imposta de múltiplas formas.

Dada a importância dos processos de mediação para que o


conhecimento científico possa ser apropriado e a realidade possa
ser decifrada num patamar mais profundo do que a superfície
revela, trazemos o ensino remoto para o contexto das nossas
ações. O que essa modalidade de ensino tem a nos dizer sobre
os processos educativos?

Na educação superior, não é de hoje que temos visto grupos


internacionais privados comprando e incorporando pequenas IES ao
seu domínio como grupos empresariais. E, somando-se a essa ideia
de mercantilização da educação, também vem ganhando campo as
empresas que vendem suas plataformas de ensino, constituindo-se em

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um mercado rentável no setor da educação. Agora, desde o princípio
da pandemia, se escancara a venda dos pacotes de tecnologias de
informação e comunicação (TICs) que já rondavam as IES com a
oferta do ensino a distância e similares. A paralisação das atividades
presenciais de ensino colocou essas TICs como redentoras do ano
letivo, visto que seriam a alternativa viável para explorar o ensino
remotamente em meio à necessidade do distanciamento físico.

O que ora observamos é a explicitação da educação disputada


como mercadoria, engendrando processos que colocam em risco
a continuidade do que chamamos de universidade inclusiva, que
conquistamos a duras lutas e que ainda não tem políticas que a
consolidem. Vai ficando cada vez mais distante a concretização da
universidade que permite o acesso dos pobres, dos negros, dos
indígenas e de todos os excluídos que têm se aproximado do ensino
superior. O acesso só foi possível após ser travada uma árdua batalha
contra os requisitos que foram postos para o ingresso. No entanto,
agora que esses grupos conseguiram ingressar, nem sempre há a
garantia de políticas de assistência estudantil que assegurem sua
permanência (IMPERATORI, 2017).

O ensino remoto é apenas mais um dos múltiplos desafios que


os estudantes pobres estão tendo de enfrentar, ainda mais nesse
momento em que a vida de todos nós parece estar segurada apenas
por um fio. Falta condições para se manter financeiramente, falta
condições de acesso a essa modalidade de ensino, falta espaço para
estudos, falta saúde mental e física e falta apoio institucional que seja
suficiente para suprir algumas dessas carências. Explicita-se, assim,
uma exclusão extremamente perversa. Aqueles que dispõem das
condições para o ensino remoto avançam na sua formação, já aqueles
que estão privados dessas condições, caso nos seus cursos estejam
sendo ofertadas disciplinas obrigatórias, além de se verem excluídos,

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se atrasam, desanimam, pensam em desistir e alguns chegam a
duvidar se são merecedores de terem ingressado no ensino superior.

Quando vamos tratar das experiências desenvolvidas nos


espaços educativos, não podemos nos furtar de um posicionamento
frente ao modo como estamos organizados socialmente, inclusive em
termos de acesso ou não acesso à educação nessa modalidade. A
Psicologia, em diálogo com a Educação, precisa, pois, assumir cada
vez mais o compromisso com a disseminação de aprendizagens
promotoras de emancipação, inclusão e desenvolvimento humano.

O CICLO DE MESAS-REDONDAS

No momento em que as aulas presenciais foram suspensas,


passado o primeiro mês, a gestão central da UFRN começou a
manter um diálogo permanente junto aos comitês científicos para
investigar e apontar as condições que evidenciariam os indicadores
das possibilidades ou impossibilidades de retomada das atividades
com segurança. Além dos comitês internos à IES, o governo
estadual também foi regulamentando esse retorno por meio de
decretos. Assim, dois meses após a suspensão, de maneira muito
pouco democrática, uma resolução orientou para que docentes e
discentes retomassem as atividades de ensino num Período Letivo
Suplementar Excepcional (PLSE).

Os comitês, na esfera do estado e da IES, nãos aconselharam


o retorno presencial, uma vez que indicadores ainda apontavam o
avanço da pandemia, principalmente no interior do estado. Desse
modo, a modalidade remota foi apontada como alternativa possível
e logo chegou-nos a orientação para experimentá-lo em um período
letivo - orientação essa que provocou desconforto, uma vez que não

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foram efetivamente consideradas as condições concretas de que um
grupo considerável de professores e alunos dispunha ou não para
levar adiante aquela proposta; e estranhamento, que se deu porque
teríamos de executar uma proposta que não havíamos concebido e
que excluiria muitos alunos das possibilidades de participação.

O colegiado do Curso de Psicologia do Campus Central se fez


resistente. Fazendo uso das possibilidades de flexibilização que o
PLSE dava margem, deliberou que, em vez de oferecer componentes
curriculares obrigatórios, promoveria outras atividades que pudessem
estabelecer um diálogo entre conteúdos acadêmicos, o contexto
da pandemia e as condições concretas dos alunos. Tais atividades
seriam registradas e certificadas como complementares, visto que,
para concluir o Curso de Psicologia, o aluno precisa comprovar
200 horas em componentes desse tipo. Após essa deliberação,
concomitante às elaborações do que seria proposto, fizemos
associações com outros setores da Universidade, notadamente com
o Centro de Educação e o Curso de Psicologia da FACISA/UFRN.
Mediante articulações com um grupo considerável de docentes e
com outros profissionais, conseguimos registrar o Ciclo de Mesas-
redondas como uma atividade de extensão que se materializou em
19 temáticas abordadas num espaço de 45 dias. Abaixo, a Tabela 1
apresenta as datas e os temas tratados.

Tabela 1 - Datas, temas e número de participantes das mesas-redondas

Data Tema Participantes


15/06 Pensando a resiliência em tempos 120
de pandemia da COVID-19
17/06 Alterações ou desordens relacionadas 157
ao sono em tempos de pandemia
22/06 Psicologia e Democracia em tempos de pandemia 117
24/06 Impactos do trabalho remoto e os vínculos domésticos 104
26/06 Enfrentamento ao racismo: uma 114
questão para a psicologia

80
29/06 Suicídio em tempos de pandemia 201
01 /07 Ansiedade em tempos de pandemia 189
06/07 Ciência, verdade e pandemia: e a psicologia com isso? 136
08/07 Saúde do trabalhador em tempos de pandemia 167
13/07 Crise, pandemia e Psicologia 126
15/07 Isolamento Social, Política e Saúde 153
Mental em tempos de pandemia
20/07 Feminismos e resistências em tempos de pandemia 133
21/07 A psicoterapia e avaliação em tempos remotos 121
22/07 Saúde Mental em tempos de pandemia 156
23/07 Racismo, Psicologia Transpessoal e 110
necropolítica além da pandemia
24/07 Relações Pessoa-Ambiente e pandemia: 105
espacializando desigualdades
27/07 Educação remota em tempos de pandemia 116
28/07 Mídias, infâncias e escola: reflexões 122
para além da pandemia
29/07 Luto em Tempos de Pandemia 179

Tabela construída pelos autores

O Ciclo de Mesas-redondas remotas, proposto para ser


transmitido em tempo real via videoconferência, foi registrado como
atividade de extensão e divulgado previamente junto aos fóruns dos
alunos, por meio das redes sociais e da agência de comunicação da
universidade. Dessa forma, atingimos um público total de 711 pessoas,
embora o somatório dos participantes ultrapasse esse número, visto
que muitos participantes estiveram em várias mesas e só foram
contados uma vez. Esses estudantes, professores e profissionais das
comunidades interna e externa à Universidade poderiam fazer adesão
ao evento mediante inscrição na plataforma do Sistema Integrado de
Gestão de Atividades Acadêmicas (SIGAA) e participar de todas as
mesas que fossem de seu interesse.

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A experiência almejava proporcionar espaços de diálogos entre
a Psicologia e a Educação, bem como com outras áreas do saber.
Ambicionava, ainda, dispor de um espaço de interação online com
os participantes, a fim de ampliar os caminhos de aprendizado,
formação e reflexão e proporcionar à comunidade interna e externa à
UFRN um ambiente de trocas de saberes e experiências a partir dos
temas tratados e em meio à pandemia. De fato, esse tipo de atividade
possibilitou a participação de pessoas de outras localidades do estado
do Rio Grande do Norte e de outras cidades do território nacional
(Niterói/RJ, São Paulo/SP, Porto Alegre/RS, Brasília/DF) e internacional
(Sheffield/UK e Santiago/Chile).

Foi utilizada a plataforma Conferência Web, que é operacionalizada


pela Rede Nacional de Estudos e Pesquisa (RNP) e vinculada ao
Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).
Durante o evento, a plataforma prestou suporte ativo, disponibilizando
uma estagiária para acompanhar todas as transmissões a partir da 9ª
mesa-redonda. Outro ponto que pode ser destacado como formativo,
proporcionado por essa atividade mediada pelas tecnologias,
foi a formação de uma equipe de estudantes, que se engajaram
voluntariamente no projeto e formaram uma equipe de trabalho para
operacionalizar o que fora idealizado. A fim de monitorar possíveis
dificuldades dos participantes em acessar ou assistir integralmente
aos eventos, foram criados formulários de avaliação, com a ferramenta
Google Forms, os quais eram enviados para o email dos participantes
ao final de cada uma das mesas-redondas.

É possível afirmar que, ao final do projeto, foram criadas


condições para formar e desenvolver uma equipe de trabalho voltada
para uma atividade essencialmente remota e online; além disso, foi
proporcionado aos estudantes voluntários envolvidos a experiência
prática da participação em equipe de trabalho e suas divisões de
tarefas, bem como possibilitado a esses estudantes práticas formativas

82
e aprendizados acerca dos processos psicossociológicos em contexto
de trabalho remoto, notadamente, sobre trabalho em equipe.

Mesmo que as pesquisas relacionadas ao ensino remoto


nesse contexto de excepcionalidade, como o de pandemia, sejam
ainda escassas, essa experiência já nos apontou dados que
merecem consideração. Por um lado, promovemos a discussão de
temáticas diversificadas, que, todas dialogando com os problemas
que a pandemia fez emergir, causaram identificação no público e os
motivaram a participar das demais mesas-redondas. Por outro lado,
contraditoriamente, a despeito de parecer uma proposta com potencial
para envolver a participação massiva dos alunos, alguns relataram
o quão difícil foi conseguir participar. Em decorrência das múltiplas
solicitações virtuais, alguns tiveram de escolher o que assistir, visto que
não suportavam o cansaço que a tela do computador parece imprimir.

Outro aspecto que a condução dessa atividade nos remete a


discutir é sobre a educação remota e o papel da universidade. São
múltiplas as preocupações, sobretudo com relação ao que está
envolvido no bojo da paralisação das atividades de ensino. Muitos
projetos e sonhos foram interrompidos, e muitos planos, adiados.
Entretanto, num movimento dialético, alguns percursos foram
construídos como alternativa em relação à retomada dos processos
de ensino e tem muito conhecimento sendo produzido. Resta-nos
indagar: a paralisação deflagrada em março de 2020 estaria nos
encaminhando para perdas irreversíveis? Se vários movimentos que
levaram à produção de conhecimento continuaram e continuam a
acontecer, por que falamos em paralisação? Qual tem sido o lugar da
universidade no enfrentamento da pandemia?

O diálogo estabelecido entre a Psicologia e a Educação também


nos aguçou a percepção sobre o quanto funcionamos a partir de uma
lógica ligada à produtividade, à busca de resultados e ao alcance de
metas. Agora, já é possível fazermos a observação de que, mesmo em

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momentos que fogem à normalidade, como esse que estamos vivendo,
ainda continuam nos avaliando e nos cobrando um desempenho
pautado nessa lógica. Para ilustrar essa afirmativa, basta observar
que, logo após a suspensão das aulas presenciais, ainda na primeira
semana, já começaram as preocupações das universidades sobre o
que seria feito para salvar o ano letivo.

Embora possa parecer uma real preocupação com os


processos de aprendizagem, devemos questionar: a quem interessa
essa apreensão e o que ela pode estar revelando? A excepcionalidade
do momento continua nos apresentando desafios de outra ordem.
Precisávamos e precisamos preservar a vida, mas a lógica da busca
de resultados já se antecipava para evitar a perda do ano letivo. E, com
esse propósito, o Conselho Nacional de Educação (CNE), desde o mês
de março, vem emitindo portarias sobre a reorganização do calendário
escolar. Ainda em março, já apareceu a orientação para que, nesses
tempos de pandemia, o ensino online se constituísse uma modalidade
viável para que os alunos, em geral, não sofressem prejuízos em relação
à escolaridade. Outros marcos legais regulamentaram acerca desse
assunto, como o parecer nº 5/2020 (BRASIL, 2020), que sinalizou que
as atividades pedagógicas não presenciais poderiam ser utilizadas no
cômputo da carga horária mínima.

Sobre a atividade ora aqui relatada, destacamos que o ensino


remoto foi a modalidade possível, mas não acessível para todos.
A mediação tecnológica, sem dúvida alguma, tem conquistado
espaços importantes como ferramenta de ensino, mas não podemos
deixar de elencar algumas preocupações que a experiência nos fez
perceber. Durante o processo, alguns alunos deixaram de participar
de algumas mesas ou não participaram durante o tempo previsto
porque não conseguiram manter-se conectados. Também alguns
expositores tiveram limitações na discussão das temáticas devido
à instabilidade em suas conexões e, por isso, se desconectavam

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momentaneamente da sala virtual ou a qualidade do áudio não permitia
uma boa comunicação. Segundo relatos registrados nos formulários
de avaliação aplicados após cada mesa-redonda, duas horas de
transmissão ao vivo consumiam cerca 2GB do seu pacote de dados
e, frequentemente, houve o pedido para que o evento fosse concluído
em menos tempo. Alguns participantes ainda relataram que essa
experiência foi a oportunidade de saírem da ociosidade acadêmica.

A experiência das mesas permitiu, ainda, acompanhar a


angústia de muitos professores em relação a esse novo jeito de fazer
educação, para o qual não fomos consultados nem preparados, mas
que se impõe e nos cobra resultados. Impõe-se a familiarização com
as tecnologias, sem considerar as condições e os conhecimentos.

Os problemas observados não podem aparecer desvinculados


das tomadas de decisões para o ensino nessa modalidade. A opção
pelo ensino remoto precisa considerar o caráter público, inclusivo
e democrático da universidade. Nesse sentido, questiona-se: que
condições concretas foram oferecidas para esse tipo de ensino? Como
foram tratados os que não tiveram acesso a essa tecnologia?

Por parte da IES, a fim de viabilizar a participação de todos os


alunos nas atividades remotas, foi oferecido, aos comprovadamente
prioritários, um auxílio de inclusão digital, que deveria subsidiar
a contratação de pacote de dados de internet. Entretanto, os
levantamentos feitos na época da implantação do PLSE revelaram
que garantir tal acesso não seria suficiente. Muitos alunos registraram
não ter equipamento para acessar, alguns residiam em áreas em
que não chegava o sinal de internet, outros dividiam a moradia com
várias pessoas, não tendo condições para se concentrar num espaço
reservado e participar ativamente da atividade proposta. Além disso, foi
identificada a falta de acessibilidade para as pessoas com deficiência.

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E não se trata apenas dos determinantes associados a ter ou não
ter acesso. Além da dimensão relacionada às condições concretas,
para funcionar como atividades de ensino, tínhamos de garantir a
adequada mediação pedagógica, visto que a aprendizagem deveria
ser assegurada aos envolvidos. E, nesse sentido, o ensino remoto
demonstrou limitações. Não proporcionamos a todos os estudantes
as mesmas garantias de acesso e de permanência. Constatamos
que a plataforma utilizada apresentava instabilidades em alguns
momentos e também não permitia que os usuários visualizassem
as mensagens enviadas pelos demais, dificultando, segundo eles, o
processo de aprendizagem. Se defendemos que a educação é um
direito de todos, não podemos pactuar com as modalidades que já
promovem exclusão desde o ponto de partida.

O Ciclo de Mesas-redondas se afirmou, portanto, como


movimento de resistência, pois permitia aos alunos participar do
que era possível, sem representar atrasos na sua formação. Caso
tivéssemos cedido às pressões para ofertarmos componentes
obrigatórios, certamente muitos alunos teriam sido excluídos da
possibilidade de acompanhar.

Ao nos comprometermos com a defesa de uma formação


inclusiva em Psicologia, temos clareza da necessidade de promovermos
rupturas com aquelas práticas que, historicamente, se posicionavam
alinhadas aos interesses de uma elite. No contexto da pandemia,
permanecer ao lado dos mais fracos é assumir um compromisso ético
e político em defesa da vida. Defender o ensino remoto, num contexto já
bastante desafiador, como o que estamos vivendo, é também advogar
que o ensino superior não é para todos. Ademais, a exclusão e o
acirramento das desigualdades que observamos neste momento não
podem ser justificados pelo contexto da pandemia, mas fazem parte
de um projeto que há muito vinha sendo engendrado e que apenas se
aproveitou dessa turbulência para começar a ser posto em ação.

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Os interesses e propósitos defendidos por trás dessa modalidade
de ensino ensejam vigilância constante. A educação pública tem se
tornado uma arena de disputa de alguns conglomerados empresariais
de educação a distância. Agora, muitos desses grupos têm apresentado
soluções rápidas, colocando-se como alternativa viável e buscando as
brechas para abocanhar, com avidez, fatias de um mercado promissor;
eles vendem suas plataformas digitais e negociam a educação como
mercadoria a ser repartida entre os mais “espertos”. Para Costa
(2012), o Estado, ao invés de atuar com investimentos que assegurem
educação de qualidade para todos, defende a acumulação do capital
e incentiva as iniciativas privadas. Ademais, compromete os processos
de ensino, uma vez que, em função de quem financia, os resultados
esperados assumem conotações diferenciadas. A preocupação em
preparar para o mercado se sobrepõe aos processos de humanização,
e, assim, prevalecem os interesses de quem financia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento dessa atividade formativa na modalidade


remota permitiu debruçarmos sobre os pontos de aproximação e
distanciamento entre ensino remoto e mediação pedagógica. A
partir do referencial teórico da psicologia histórico-cultural, evidencia-
se que as atividades de ensino só promoverão desenvolvimento se
houver mediação adequada. Portanto, a aprendizagem decorre de um
processo que requer organização e intencionalidade.

A mediação consiste em oferecer as condições para que o aluno


aprenda, e, como processo, requer interação, articulação permanente
entre afeto e cognição, parceria, confiança, estreitamento de vínculos,
compreensão do contexto no qual os alunos estão inseridos, entre
outros. Conjugando processualidade e intencionalidade, necessárias

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para a mediação acontecer, não podemos deixar de reafirmar algumas
dificuldades que sobressaíram nessa experiência: fadiga mental,
questões ergonômicas inerentes à postura diante de longo período em
frente a telas de computadores e/ou smartphones, dificuldade de acesso
online, condições adequadas para concentração e participação ativa
da atividade, falta de familiaridade com as tecnologias da informação
e comunicação, falta de equipamento com configurações necessárias
para a participação, entre outras.

Como docentes, no cotidiano das aulas presenciais, tem


aparecido com certa frequência a preocupação com relação à falta
de atenção de alguns alunos em sala de aula. O ensino remoto, sem
dúvida, enseja maiores estudos que possam articular as mediações
desenvolvidas e a capacidade de envolver o aluno do ensino superior.
Talvez seja uma modalidade possível para uma parcela bem pequena
da sociedade brasileira, mas uma grande parcela fica à margem desse
processo. Considerando esse panorama, cabe-nos suscitar alguns
questionamentos que talvez ampliem, ainda mais, nossas inquietações
sobre o que seria o papel da universidade nesse contexto. A
desigualdade social que já existia há séculos, e que agora, na época da
pandemia, ficou ainda mais escancarada, expõe a miséria de milhares
de famílias em situação de extrema pobreza. Essa concretude já nos
obriga a pensar em que condições vem acontecendo a substituição do
ensino presencial pelo ensino remoto.

Nesse momento, o conhecimento mais necessário está ligado


à sobrevivência. Precisamos evitar a contaminação pelo vírus, criar
condições para manter hábitos de higiene, disseminar informações
para lidar com os sintomas que a COVID-19 produz, desenvolver
condições emocionais para lidar com o medo, a ansiedade e as perdas.
São saberes mais imediatos e garantidores da nossa vida. Como a
universidade poderia se fazer parceira e instrumentalizar alunos e
professores para responder a esses problemas? Essa experiência das

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mesas-redondas abriu possibilidades de interlocução com temáticas
que podem ampliar os interesses de discentes e docentes na construção
de conhecimentos que coloquem a psicologia e a educação a serviço
da vida e dos diálogos promotores de emancipação humana.

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