A Arte Como Expressao Do Sagrado

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DOI - 10.23925/2236-9937.

2019v19p279-309

A arte como expressão do


sagrado: uma meditação
sobre a liturgia e arte sacra.

Art as an expression of the sacred: a


meditation on liturgy and sacred Art.

Wilma Steagall De Tommaso*

Texto enviado em RESUMO:


22.06.2019
e aprovado em
02.09.2016.
Pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, so-
mos convidados a nos inspirar na arte e na
arquitetura dos cristãos do Primeiro Milênio.
V. 9 - N. 19 - 2019
Sob a premissa de que o simbolismo do tem-
plo cristão repousa na analogia que há entre
*Doutora em Ciências da o templo e o Corpo de Cristo, esta comuni-
Religião pela Pontifícia cação tem como objetivo entender como os
Universidade Católica cristãos, a partir do século IV, após o Edito de
de São Paulo, Professora Milão em 313, conceberam a arquitetura e a
no Museu de Arte Sacra arte nas paredes de seus templos. No Antigo
de São Paulo (MAS SP); Testamento (Êxodo 25), Moisés recebe de
Professora e pesquisadora Deus a ordem de construir duas tendas, as
do LABÔ (Laboratório de duas são separadas por um véu, a Carta aos
Política, Comportamento Hebreus (Hb 8,9,10), retoma o pedido feito
ao profeta, interpreta e explica toda a litur-
e Midia) PUC-SP
gia segundo a qual nasce o templo. A partir
daí, demonstrar com citações e slides como
eram decoradas interiormente as igrejas do
Primeiro Milênio e entender sua coerência
teológica, tendo como base textos bíblicos e
conciliares, cartas dos papas Pio XII, Paulo
VI, João Paulo II e Bento XVI. Expor a arte e
a obra literária de dois artistas sacros contem-
porâneos: o brasileiro Cláudio Pastro (1948-
2016) e o esloveno Marko Ivan Rupnik (1957),
e colocar em foco as atribuições necessárias
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aos artistas da atualidade que se propõem a realizar esse trabalho nas igrejas.

Palavras-chave: Arte Sacra - Concílio Vaticano II - Primeiro Milênio -


Liturgia.

ABSTRACT:

By the Second Vatican Ecumenical Council, we are invited to take inspiration


from the art and architecture of the Christians of the First Millennium. Under the
premise that the symbolism of the Christian temple rests on the analogy between
the temple and the Body of Christ, this communication aims to understand how
Christians, from the fourth century, after the Edict of Milan in 313, conceived the
architecture and art on the walls of their temples. In the Old Testament (Exodus
25), Moses receives from God the order to build two tents, the two are separated
by a veil, the Letter to the Hebrews (Heb 8,9,10), takes up the request made to
the prophet, interprets and explains all the liturgy according to which the temple
is born. From there, demonstrate with citations and slides how the churches of
the First Millennium were interiorly decorated and understand their theological
coherence, based on biblical and conciliar texts, letters of the Popes Pius XII,
Paul VI, John Paul II and Benedict XVI. To expose the art and literary work of two
contemporary sacred artists: the Brazilian Cláudio Pastro (1948-2016) and the
Slovene Marko Ivan Rupnik (1957), and put in focus the attributions necessary to
the artists of the present time who propose to carry out this work in the churches.

Keywords: Sacred Art - Vatican Council II - First Millennium - Liturgy.

Introdução

O cristianismo nasceu no Oriente, na região da Palestina, porém,


é no Ocidente do Império Romano – onde foi aceito após três
séculos de existência – que acontece seu maior desenvolvimen-
to. Roma é o centro da vida cultural e atrai todos os movimentos espiri-
tuais que se desenvolviam no século I. A Igreja cristã surge no auge do
Império romano em um mundo cosmopolita e uma miríade de pessoas
da Europa, África do Norte e Oriente Médio.

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Figura 1: Império Romano no ano 117.

Há dois milênios o movimento cristão entrou em um mundo onde


havia muitas religiões, um universo diversificado em termos sociais e
culturais, com muitas línguas, práticas religiosas, costumes diversos e
uma infinidade de divergências culturais. O cristianismo nasceu como
seita em um contexto em que Israel estava inserido no mundo dominado
militarmente pelos romanos, porém, cultural e religiosamente, dominado
pelos gregos. Esse povo diversificado, ao ouvir a mensagem dos após-
tolos, não era uma página em branco, mas já trazia sua tradição e levava
consigo suas ideias sobre a vida e a salvação quando aderiu à nova
doutrina, o cristianismo.

Os cristãos primitivos assimilaram as práticas religiosas das culturas


helenística e romana e com elas interagiram, porém, a maior herança
veio da religião de Israel, cujo povo adorava ao Deus único e onde a
interdição das imagens era ponto fora de discussão.

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A perseguição ordenada pelo imperador Nero no ano 64 conduziu


ao martírio uma grande quantidade de cristãos. Os cristãos eram qualifi-
cados como ateus – negavam-se a prestar culto ao imperador –, perigo-
sos para a unidade do império e inimigos do gênero humano; a eles se
atribuíam as piores atrocidades: infanticídios, antropofagia e desordens
morais de todo o tipo.

Com o Édito de Milão, promulgado pelos imperadores Constantino


e Licínio em fevereiro de 313, os cristãos não foram mais persegui-
dos, alcançou-se a paz, e ele puderam professar livremente a fé. É
certo que as perseguições não tiveram sempre a mesma intensidade
e que, excetuando alguns períodos, os cristãos seguiam suas vidas
com normalidade; mas o risco de serem martirizados estava sempre
presente. O martírio era considerado entre os fiéis um privilégio e uma
graça de Deus: uma possibilidade de se identificar plenamente com
Cristo no momento da morte. As relíquias dos mártires eram recolhidas
e sepultadas com devoção e, a partir desse momento, recorria-se a eles
como intercessores.

Tomas Spidlik nos aponta três dimensões da síntese espiritual e cul-


tural que cristalizam com o nascimento da cristandade: a dimensão bí-
blica da fé judaico-cristã; a dimensão intelectual e conceitual da reflexão
procedente da Grécia e a dimensão jurídica organizativa e programática
procedente de Roma. Essas três dimensões, articuladas em um só orga-
nismo conceberam uma nova e inédita civilização1.

1. O império Romano e a cultura helênica


Para entender o mecanismo central desta exposição, há que se re-
cuperar o conceito de arte, harmonia e beleza na Grécia antiga.

A cultura helênica dá preferência à arquitetura e à escultura. Privilegia

1. Cf. Marko Ivan RUPNIK. La belleza, lugar del conocimiento integral. Disponível
em http://comunicacioninstitucional. ufv.es/wp-content/uploads/2013/10/Lectio-DHC-
Rupnik-.pdf. Acessado em 29 de jun. de 2018.

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o trabalho com o componente material: construção do espaço como es-


pécie de devir do Cosmo do qual a arquitetura é um prolongamento.
Impressionam as formas ideais, perfeitas, corpos com harmonia inexis-
tente na natureza, templos com precisão óptica impecável. Há, portanto,
o primado da ideia.

O pensamento grego testemunha uma certa divergência entre a


ideia que representa a harmonia – portanto a eternidade — e a matéria,
menos segura tanto em sua existência como em sua forma e sentido. Na
civilização helênica o espaço entre esses dois mundos ficou sem solu-
ção. Foi a mitologia que criou pontes entre essas duas realidades, não
a filosofia. Por isso o pensamento grego é trágico. Para evitar o aspecto
trágico seria necessário fazer o corpo conforme a ideia: seria perfeito,
tirá-lo da corrupção do futuro e da imperfeição. Os gregos desafiam a
morte convencidos de que suas ideias permanecem: esta é sua mensa-
gem unânime.

Precisamente sobre essa divergência abismal entre um mundo e ou-


tro é que surge a arte. Se não se pode passar de um mundo ao outro,
com base no conhecimento, pode-se intervir no mundo, conformando-o
à ideia, que por si só, reside nele. Assim como se distinguem diferentes
escolas do pensamento, há também enfoques distintos sobre a arte gre-
ga, porém, substancialmente, esta era a questão. Há uma idealização,
ou seja, se vê segundo a ideia, mas não só, corrige-se, embeleza-se e
se aperfeiçoa sobre a base da ideia concebida.

Os cristãos entram no campo cultural e artístico governado pelo


mundo greco-romano, ainda com um pouco de influência do Egito e da
Síria. Porém, os cristãos não foram atraídos por essa arte. Sua arte, ao
contrário, não buscava a perfeição formal, nem estética, mas queria de
algum modo evocar uma memória viva, não de qualquer valor, ideia ou
doutrina, mas de uma pessoa precisa, Jesus Cristo. Por isso, abando-
nam esse modo grego de fazer arte, tanto que sob o ponto de vista da
perfeição da forma, a arte cristã é uma verdadeira decadência. A forma,

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entretanto, não lhes interessa, não porque não estejam a altura de rea-
lizá-la, mas porque a visão clássica não se afina com a fé cristã. É uma
arte que procura fazer ver as coisas, a criação e a humanidade segundo
o Cristo e não segundo uma ideia2.

2. A arte das catacumbas


na contracorrente do Clássico greco-romano
A arte cristã surge nas catacumbas, na contracorrente das grandes
esculturas greco-romanas e apresenta o evento Cristo de modo a tornar
compreensível a intervenção de Deus na humanidade. Essa arte cria um
espaço onde o fiel contempla a unidade de tudo junto a tudo, como orga-
nismo vivo, pessoal, capaz de comunhão. No interior do organismo que
é Cristo – significado de tudo – o fiel em sinergia com o Espirito Santo
encontra a unidade do tudo3. Mas o povo que aderiu à nova doutrina já
trazia sua tradição e suas concepções de vida e salvação:

Por mais que a mensagem do evangelho cristão exor-


tasse seus ouvintes a romper com seu passado em ato
radical de conversão, a prática era tomar contato com o
mundo circunstante nas suas profundezas linguísticas
e culturais. Para entender a história das igrejas cristãs
primitivas, devemos, pois, ter em vista a diversidade dos
ambientes sociais e culturais em que o movimento se
espalhou4.

As catacumbas continham grafites, esboços, signos e símbolos. Os


símbolos pagãos ganharam nova significação. O jardim, a palmeira e o
pavão designam o paraíso terrestre; Hermes, símbolo da humanidade,
representa o Bom Pastor. Há cenas do Antigo Testamento: Daniel e os
leões, Adão e Eva. Ao fim do século II surgem símbolos de fato cris-

2. Cf. Natasa Govekar, curadora. Il rosso della piazza d’oro: Intervista a Marko Ivan
Rupnik su arte, fede ed evangelizzazione, p. 114-115.
3. Natasa Govekar, curadora. Il rosso della piazza d’oro: Intervista a Marko Ivan Rupnik
su arte, fede ed evangelizzazione 19-219.
4. Dale T. IRVIN; Scott W. SUNQUIST, História do movimento cristão mundial: do cristia-
nismo primitivo a 1453, v. I, p.73.

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tãos: multiplicação dos pães – o banquete eucarístico; adoração dos reis


Magos – a entrada dos pagãos na Aliança; e símbolos compreendidos
por poucos, como a vinha e o peixe, ichthys5. Tais signos são encontra-
dos na Espanha, na Ásia Menor, da África até o Reno, em traços sumá-
rios e uma estrita gama de cores.

As imagens, não cultuais, retratam momentos do Cristo ou da


Virgem6. Como diz Evdokmov, nas catacumbas havia uma arte pura-
mente significativa, didática, que proclama a salvação e traça seus ins-
trumentos por meio de signos decifráveis, que:

Podem ser classificados em três grupos: 1) tudo o que


se refere a água: a arca de Noé, Jonas, o peixe, a ân-
cora; 2) tudo o que se relaciona com o pão e o vinho:
a multiplicação dos pães, o trigo, a vinha; 3) tudo o que
diz respeito à salvação e aos que foram salvos: os três
jovens na fornalha, Daniel entre os leões, o pássaro fê-
nix, Lázaro ressuscitado, o Bom Pastor. [...] Observa-
se maior negligência na forma artística e ausência de
um desenvolvimento teológico. O Bom Pastor não re-
presenta o Cristo histórico, mas quer dizer: o Salvador
salva realmente7.

As pinturas das catacumbas mostram uma unidade de estilo e de


temas: foram encontrados os mesmos símbolos na Ásia Menor, na
Espanha, na África do Norte e na Itália, sem que a Igreja tenha dado
uma indicação de um programa oficial. A fé manteve-se única, graças ao
contato entre as igrejas locais. De acordo com Ouspensky:

A arte das catacumbas era, sobretudo, uma arte que


visava o ensino da fé. Grande parte desses temas, tanto
os simbólicos como os diretos, correspondem a textos
sagrados do Antigo e Novo Testamento, textos litúrgicos
e textos patrísticos. Paralelamente às representações
diretas e muito numerosas, a linguagem simbólica se
estendeu e desempenhou um papel fundamental na
Igreja dos primeiros séculos. Essa linguagem simbólica

5. Do grego ΙΧΘϒΣ: Iésous Chistós Théou Yós Sóter.


6. Cf. Alain BESANÇON, L’image interdite: une histoire intellectuelle de l´iconoclasme,
p. 206-207.
7. Paul EVDOKMOV, L’art de l´icône: théologie de la beauté, p. 149.

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a princípio é explicada pela necessidade de expressar


pela arte uma realidade que não poderia ser expressa
diretamente. Por outro lado, não revelar aos catecúme-
nos, até um certo momento, os sacramentos cristãos
essenciais era uma regra estabelecida pelos Pais da
Igreja e fundamentada sobre as Escrituras sagradas.
Assim o sentido dos símbolos cristãos foi revelado aos
catecúmenos progressivamente na preparação de seu
batismo. Por outro lado, as relações entre os cristãos e
o mundo exterior exigiam uma linguagem cifrada.8

Não havia interesse dos cristãos em divulgar ao mundo pagão e


hostil os mistérios sagrados. Os primeiros cristãos empregaram antes os
símbolos bíblicos: o cordeiro, a arca etc. Mas aos pagãos que entravam
na Igreja, esses símbolos não bastavam, pois lhes eram incompreen-
síveis. Então a Igreja adotou certos símbolos pagãos para reaproximá-
-los da “verdade” e transmitir diversos aspectos do ensinamento cristão.
Esses símbolos foram direcionados, purificados e reencontraram seu
significado, antes adulterados por uma longa degeneração, e serviram
para exprimir a salvação consumada na encarnação9.

3. Domus Ecclesiae
Os cristãos reuniam-se, em sua origem, nas casas de alguns deles
ou nas sinagogas dos membros que haviam se convertido à fé́ cristã.
Porém, no século II, já tendo sido consumada a separação entre cristãos
e judeus e, sobretudo, com o crescimento do número dos primeiros, es-
tes adquiriam casas maiores, que pudessem abrigar toda a comunidade
cristã e serem locais exclusivos de culto10.

As comunidades cristãs eram bastante grandes desde o fim do sé-


culo I para poderem se reunir em casas particulares, pois precisavam de
uma sala ampla com um altar, sob a presidência de um bispo. Em mea-

8. Léonide OUSPENSKY, La théologie de l´icône dans l’Église Orthodoxe, p. 43.


9. Ibid. p. 43.
10. JEDIN, Hubert. Manual de historia de la Iglesia I. Barcelona: Herder, 1966. p. 418-
419.

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dos do século II, a assembleia eucarística tinha se separado da refeição


dos ágapes11 e havia se ritualizado em liturgia.12

Muitas casas foram construídas para esse fim, outras foram adap-
tadas, como as sinagogas. Nestas últimas, toda a vida litúrgica passou
a ser realizada, uma vez que já se começava a não mais celebrar a
Eucaristia durante uma refeição. O batismo, antes celebrado em lugares
de água abundante, portanto, públicos, agora era celebrado em lugares
privados, e muitas dessas sinagogas possuíam uma pequena piscina
onde se praticava um banho ritual. Esses locais exclusivos de culto cris-
tão ficaram então conhecidos como domus ecclesiae (casa da Igreja).

  Figura 2: esquema de sinagoga adaptada para o uso dos cristãos.

Nesse período, o culto cristão não era centrado em imagem, mas no


altar do sacrifício. O templo não se limitava à mesa com a estátua de um
deus, mas reunia uma comunidade em torno do banquete sagrado. Os
cristãos recusavam a imagem cultual, considerada expressão do culto
pagão aos ídolos, como recusavam a imagem imperial, motivo pelo qual
eram perseguidos. As imagens também contrariavam a Lei mosaica. A
Igreja acabou aceitando a imagem no espaço cultual, não na forma de

11. Os cristãos deram o nome de ágape às refeições comunitárias distintas da eucaristia


e acompanhadas de orações. Esse nome ágape é tomado do nome grego que designa
caridade, cujo aspecto comunitário ele sublinha. (IN: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário
crítico de teologia. Ágape, Pierre Marie GY. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2004, p 66).
12. Cf. LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. Arquitetura, Lynne
BROUGHTON, p 186.

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estátuas, mas de pinturas. Isso se deu após discussões teológicas da


natureza do Cristo, quando surge uma doutrina das imagens que justifica
em retrospecto o uso cultual. Segundo Hans Belting, autores atuais reto-
mam o argumento com o mesmo respeito dispensado ao ícone:

É assim que persiste o erro de acreditar que se trata-


va de uma interpretação originalmente cristã e original-
mente intelectual da imagem, como se os cristãos tives-
sem tido uma relação clara, face a face das imagens
cultuais de seus ancestrais pagãos. Mas não se deve
deixar induzir por esse erro de uma doutrina apologética
que sublima práticas existentes buscando uma justifica-
tiva teórica a posteriori. A doutrina dos ícones não pode
então ser tomada tal qual, pois ela não deixa de ser um
produto da controvérsia histórica em torno da imagem
religiosa13.

Na liturgia da Domus Ecclesia, celebrava-se em volta da mesa, a


prioridade era o cenáculo na forma do que era a Última Ceia, na qual
Cristo mostra aos discípulos que Ele é o Dom, a Oferta do Pai, e se
entrega nas mãos dos homens, para que esses “destruindo”, comendo
desse dom, descubram a bondade do Pai e voltem ao Pai. O sentido
teológico da Última Ceia é o retorno ao Pai, esse era o espirito da liturgia
doméstica dos primeiros cristãos. Pelo batismo o cristão se torna filho e
na eucaristia retorna ao Pai e essa é a casa dos cristãos, a casa do Pai.

As primeiras imagens cristãs de que se tem conhecimento aparece-


ram nas catacumbas, como exposto anteriormente. Essa arte funerária
se revestia de alegria, pois, se a morte é inexorável, para os cristãos
havia a certeza da ressurreição. De acordo com Ouspensky e Lossky,

As pinturas das catacumbas desde os primeiros dois


séculos tinham como tema não somente alegorias e
símbolos tais como a âncora, o peixe, o cordeiro, etc.,
mas toda uma série de imagens que vieram do Antigo e
do Novo Testamento. Essas pinturas correspondem aos
textos sagrados, bíblicos, litúrgicos, patrísticas. O prin-
cípio fundamental dessa arte é de exprimir por pinturas

13. Hans BELTING, Image et culte: une histoire de l’image avant l’époque de l’art, p.
193-194.

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a doutrina da Igreja, representando os acontecimentos


concretos da História santa e indicando também o seu
sentido. Essa arte não tem por fim refletir os problemas
da vida, mas sim de respondê-los, assim desde a sua
aparição14.

Nas casas ou nas catacumbas, os cristãos adotaram símbolos pa-


gãos e lhes deram um significado mais profundo: o barco, símbolo da
prosperidade e de uma travessia feliz pela vida, tornou-se o símbolo da
Igreja; a entrada do navio em um porto não significa mais a morte, mas a
paz eterna; os símbolos eróticos (Eros e Psique) tornaram-se a sede da
alma pelo amor de Deus. Esses símbolos são o reflexo do ensinamento
das verdades da fé. Por eles, os fiéis são conduzidos para um conheci-
mento mais profundo do cristianismo15.

A liturgia, embora ainda não esteja completa — o que irá acontecer


na segunda metade do século IV — já se encontra em um estado de
evolução bastante adiantado, bem como a hierarquia das Igrejas. Isso
requereu das domus ecclesiae uma estrutura interna que permitisse o
desenvolvimento dos ritos, acomodação dos ministros e da assembleia.

A partir do momento em que os cristãos deixam de celebrar nas ca-


sas e começam a celebrar em edifícios públicos, que eram muitas vezes
mercados, pois homens poderosos se converteram e doaram imóveis
para a celebração do culto cristão, os cristãos entravam e celebravam
a liturgia, mas quando terminavam, percebiam que o espaço havia se
transformado. A liturgia é transfiguração do mundo. O que acontece no
altar acontece no cristão, e onde termina? Ninguém pode responder, é
algo que penetra no mundo, é a cristificação, a transfiguração do mundo.
Os cristãos entenderam que a liturgia muda o espaço, é propriamente a
liturgia que modela o espaço e que se tornou a casa, a sua casa.

14. Léonide OUSPENSKY; Vladimir LOSSKY, Le sens des icônes, p. 25.


15. Cf. Alain BESANÇON, L’image interdite: une histoire intellectuelle de l’iconoclasme,
p. 206-207.

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4. Basílica paleocristã
A partir do século IV a comunidade cristã obteve a liberdade de cul-
to, iniciando a construção de edifícios para celebrar seus ritos que até o
momento eram celebrados em casas privadas, como já descrito no item
anterior.

Com o Édito de Milão de 313, o imperador Constantino não só́


concedeu aos cristãos liberdade de culto, mas deu ao Estado uma estru-
tura cristã, embora o cristianismo se tornasse religião oficial do Estado
somente com o imperador Teodósio em fins do século IV.

A Igreja paleocristã se inspira na arquitetura romana e em particular


na planta longitudinal da basílica. A basílica romana era uma adaptação
da basílica helênica que chegou a Roma no século II a. C., com fins co-
merciais ou forenses.

Ecclesia Basilicalis” corresponde a construções gran-


diosas, concebidas para engrandecer a glória de Deus e
para dar maiores espaços à crescente frequência dos fi-
éis. Basílicas essas que eram, no inicio, uma adaptação
de locais romanos (fórum, senado, termas...) ou apro-
veitamento de materiais de edifícios e templos pagãos.16

A simetria da basílica romana se constata no fato de ela ter duas


ordens de colunatas, uma frente à outra, e duas absides, também uma
frente à outra, criando assim um centro precioso e único, função do edi-
fício e não do caminho do homem17. O arquiteto cristão, por sua vez, su-
prime uma das absides e desloca a entrada para o lado menor e, desta
forma, rompe a dupla simetria do retângulo, deixa o único eixo longitudi-
nal e faz dele a diretriz do caminho do homem18. Os cristãos deram aos
esquemas da basílica uma alma e uma função, de modo que o eixo se
tornou uma metáfora “do caminho” que o homem deve percorrer rumo
à parusia, representada pela abside única. Contudo, a basílica romana

16. PASTRO, Cláudio. A arte no cristianismo: fundamentos, linguagem, espaço. p. 262.


17. ZEVI, Bruno. Saber Ver a Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, p. 71.
18. Idem.

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só empresta aos cristãos a sua forma externa, porque internamente foi


adaptada para a liturgia cristã.

Figura 3: esquema da antiga Basílica de São Pedro em Roma.

As basílicas se multiplicavam por todo o Império, embora se conser-


vassem também construções mais modestas, mas certamente para as
igrejas episcopais adotava-se o estilo basilical, que podia variar de um
lugar a outro segundo as necessidades locais e o gênio dos arquitetos
– é incorreto pensar que o estilo basilical fosse único. Em Roma, não
somente a sede episcopal era uma grande basílica, mas muitos tituli
reconstruíram suas igrejas com certa suntuosidade e, por isso, foram
escolhidas como lugares onde o bispo de Roma celebrava as grandes
festas do Calendário Romano. Esta parece ser também a realidade de
muitas dioceses no Império Romano.

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5. Carta aos Hebreus e o templo19


A melhor reflexão sobre a superação do templo de Jerusalém e de
sua liturgia sacrifical encontra-se na Carta aos Hebreus. Trata-se de uma
homilia dirigida a uma comunidade cristã em crise de perseverança por
inseguranças internas (medos, desânimos, cansaço ou dúvidas) e pe-
las dificuldades externas (violência, boicote econômico e social). A Carta
aos Hebreus contrapõe o sacrifício de Jesus aos sacrifícios oferecidos
no templo da antiga aliança e, a partir disso, percebe-se a nova concep-
ção de templo, ou seja, de lugar da habitação e manifestação de Deus e,
portanto, sua importância salvífica.

Toda a teologia da Carta aos Hebreus está a serviço da cristologia.


Aos cristãos desanimados, ela lembra que o sacrifício de Jesus é infini-
tamente superior aos sacrifícios oferecidos no templo. Estes são incapa-
zes de salvar o homem, apenas são uma imagem do verdadeiro sacrifício
oferecido por Jesus no altar da cruz e, portanto, o sacerdócio hebraico
é também uma imagem do verdadeiro sacerdócio do Cristo. A lógica da
carta reside no fato de que o real, o sacrifício de Cristo, é superior à pre-
figuração. Por esse motivo, o autor não se detém em descrever o templo
detalhadamente, mas se satisfaz em dar uma breve descrição daquela
parte onde o rito sacrifical se desenvolvia, a saber, as duas tendas:

Pois a primeira aliança tinha um ritual para o culto e um


templo terrestre. De fato, foi instalada uma tenda, uma
primeira tenda denominada Santo, onde estavam o can-
delabro, a mesa e os pães da proposição. A seguir, atrás
do segundo véu, encontrava-se uma tenda, chamada
Santo dos Santos, com um perfumador de ouro e a arca
da aliança toda recamada de ouro; dentro desta, um
vaso de ouro que continha o maná, a vara de Aarão que
florescera e as tábuas da aliança. Por cima da arca, os
querubins de glória cobriam com sua sombra o propicia-
tório. Mas não vem ao caso entrar aqui em pormenores
(Hb 9:1-5).

19. Esse item e os desenhos nele contidos foram inspirados pela conferencia proferida
pelo jesuíta esloveno Prof. Dr Mark Ivan Rupnik no11º Encontro Nacional de Arquitetura e
Arte Sacra, realizado em Curitiba pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
e pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) em 20 de setembro de 2017.

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Os cristãos compreenderam que é a liturgia que faz o espaço. É pre-


ciso compreender a liturgia como uma passagem. Os cristãos se reúnem
e pela eucaristia entram na casa do Pai. No Santuário do santuário, na
Jerusalém celeste, na Praça de Ouro, do Apocalipse 21,22. É ai que se
convoca todo o Corpo de Cristo, de Abraão a nós. Na anáfora20 armênia,
por exemplo, até as crianças que ainda não nasceram são convocadas.
Todos os que pertencem a Cristo são convocado a uma única assem-
bleia. E juntos cantam: “Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do Universo”,
sintonizados à musica celeste. Não são os cristãos que fazem a festa
ao Senhor, “bendito os que vêm em nome do Senhor”, os cristãos são
convidados do Senhor à casa do Pai. A Eucaristia é o ingresso no Reino
e começa quando os cristãos deixam suas casa domingo para ir à cele-
bração eucarística e termina no Escathon. Na casa do Pai entram, “por
Cristo, com Cristo, em Cristo”, a vós Deus Pai estão todos aqui e agora
sim podem dizer: “Pai Nosso que estais no céu”. Ao voltar, estão com os
olhos limpos por tudo o que viram no santuário em comunhão, conhe-
cendo o Pai, e recebendo o que ofertaram, o Corpo de Cristo.

A liturgia é uma passagem de um espaço a outro. De uma história


ordinária a uma história santa, da criação inicial a uma nova criação, de
uma realidade de pecado a uma realidade santa. Os cristãos se recor-
daram de Moisés quando Deus lhe pede para construir a tenda do en-
contro. A carta aos Hebreus, capítulos 8, 9 e 10, diz que Deus fez esse
gesto a Moisés para dar a chave de leitura de toda obra de Cristo e de
tudo o que é a Igreja. O que acontece no monte? Deus lhe diz que deve
fazer uma primeira tenda, onde os sacerdotes e o povo entram e fazem
a liturgia. Mas há ao lado uma segunda tenda, que é a habitação de
Deus, o Santo dos Santos, a verdadeira casa de Deus que Moisés não
viu, porque Deus não permitiu, deu-lhe apenas o modelo, mas modelo
não é o original.

20. Palavra grega que advém de (ana-fero). O que elevamos a Deus é louvor ou o sacrifí-
cio. É o nome que recebe nas liturgias orientais o que chamamos de Oração Eucarística.

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  Figura 4: as duas tendas de Moisés.

A primeira tenda é a humanidade, mas o homem não pode caminhar


para Deus, não pode sair dele mesmo. Pode lançar-se em um mundo ideal,
um mundo metafisico que acaba em moralismo e que não leva um quilo de
humanidade ao Reino. Entre as duas tendas há uma cortina que representa
o pecado e a morte, ninguém jamais superou essas duas coisas. Mas, sim-
bolicamente, uma vez ao ano, o sumo sacerdote entra nesse espaço que
não é o verdadeiro santuário, mas um modelo.

  Figura 5: representação da primeira tenda.

A carta aos Hebreus diz, refletindo sobre essa estrutura veterotesta-


mentária, que na segunda tenda habita o Pai que enviou seu Filho, que
atravessou o céu e se fez Homem. Na Septuaginta, tradução grega da
Bíblia, há uma belíssima expressão que fala da humanidade como uma
tenda. Deus criou o homem e depois entra na sua tenda, se fazendo ho-
mem. Deus entra como Homem e vai em direção a essa cortina.

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  Figura 6: o simbolismo do Filho na tenda.

Os capítulos 4 e 5 da Carta ao Hebreus descrevem dramaticamente


uma liturgia de gritos e lágrimas para ser liberado da morte, solidário a
todos os homens, passando por tudo que a humanidade passa. A carta
fala de sacrifícios, gritos e sofrimentos, porém, Deus deu a seu Filho a
vitória, vencendo a morte. Está nos Evangelhos que ao ser morto, o véu
do templo se rompeu, pois, só o Filho sabia que além do véu, ou seja, da
morte, está o Pai. Por isso o pai o envio — importante notar como Cristo
insiste em muitas passagens que o Pai o envio — porque assim o Pai o
ressuscita. Essa abertura é a liturgia.

Essas duas realidades juntas, as duas tendas, formam o Cristo, a


unidade, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Tudo o que é divino
pode vir em direção ao homem e tudo o que é humano tem acesso a
Deus. Mas a Igreja ensina que essa unidade é a igreja e que não coinci-
de perfeitamente com o Cristo, mas é o ingresso ao Reino, e a liturgia é
essa passagem.

O que é o ofertório? O cristão leva ao altar pão e vinho, as suas ofertas


ao universo, à terra e seu trabalho, depois desce o Espirito Santo, - momento
da Epíclese - que transforma a oferta em Corpo de Cristo. Não é uma oferta
pura, o Espírito Santo a torna Corpo de Cristo e logo após a consagração,
entra-se na memória da Páscoa de Jesus, participa-se da sua morte na cruz,
e o que sucede? Quando toda a humanidade de Cristo penetrada da vida do
Filho se torna um dom, e toda humanidade se torna um dom, uma oferenda

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perfeita, o que acontece? Ele morre como Cristo e o Pai o ressuscita. A oferta
do cristão entrou no Corpo de Cristo. O Corpo de Cristo eucarístico é cons-
tituído pelas ofertas. Essa oferta ao ser transportada é a princípio ordinária,
depois se transforma em Cristo ressuscitado. O Corpo de Cristo é constituído
do pão e do vinho do cristão que celebra, isto é, do seu trabalho. Não há
Cristo eucarístico sem o cristão. Na eucaristia o cristão não se imagina no
Reino, ele realmente está no Reino, porque minha oferta passou, minha vida,
meu trabalho, meu cansaço, pois tudo isso foi ofertado. Tudo isso passou e
isso deve ser respeitado na edificação de uma igreja.

Respeitar essa estrutura teológica — a igreja ter visivelmente essas


duas tendas — essa foi a conquista dos cristãos dos primeiros séculos. A
igreja deve ter visivelmente essas duas tendas: humanidade e divindade
que se transformam em uma Pessoa, Cristo, a unidade. Deve ser visível
na estrutura a passagem de uma para outra e ao mesmo tempo deve ser
visível a unidade, porque Cristo é uma só Pessoa. Essa deve ser a inspi-
ração para se construir uma igreja. Esse é um fundamento sobre o qual
não há objeções nem objeto para discussões, essa é a fé dos cristãos.

  Figura 7: o simbolismo da unidade das duas tendas.

Na Basílica de Santa Maria Madalena em Veselay, França, no pórtico


havia no início São João Batista e na nártex a memória do batismo que expri-
me a vida nova. No solstício de verão, há pontos de luz no chão que traçam
o caminho para a casa do Pai, que é o Altar, que é Cristo, na semana de 24
de junho, quando se celebra São João Batista. Os construtores elaboraram

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o espaço inspirados na liturgia, a arquitetura e a arte serviam ao Cristo. No


solstício de inverno, na semana do Natal, o sol reflete nos capitéis norte, nos
quais estão representadas a fauna e a flora, a Criação, a qual só se entende
sob a luz de Cristo, e cenas do Antigo testamento, que só se entendem à luz
de Cristo.

  Figuras 8 e 9: trilha de luz durante o solstício de verão e reflexo nos capitéis no


solstício de inverno na Basílica de Santa Maria Madalena em Veselay.

Outro exemplo é a Basílica de Monreale na Sicília, Itália, construí-


da na mesma época que Veselay. Um espaço que exprime o Corpo de
Cristo, e Cristo é a Cabeça desse Corpo, a Esposa e o Esposo. O Corpo
de Cristo, a humanidade revela todo o mistério do pai, do Filho, do pe-
cado e da Redenção. Cristo é apresentado como o sacerdote dos bens
vindouros, dos quais o culto da antiga aliança é apenas uma sombra.
O sacrifício de Cristo não é menos real do que os que outrora eram
oferecidos no templo, pois houve efetivamente derramamento de sangue:

Foi através de uma tenda maior e mais perfeita, que


não é obra das mãos – isto é, que não pertence a esta
criação –, e pelo sangue, não de bodes e novilhos, mas
por seu próprio sangue, que ele entrou de uma vez para
sempre no santuário, e obteve a libertação definitiva (Hb
9:11-12).

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  Figura 10: Cristo na Basílica de Monreale na Sicília.

O autor pretende assim demonstrar a caducidade da liturgia do tem-


plo, “... se o sangue de bodes e de novilhos, e se a cinza da novilha,
espalhada sobre os seres ritualmente impuros os santifica, purificando
seus corpos, quanto mais o sangue de Cristo que, pelo espírito eterno,
se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha, há de puri-
ficar a nossa consciência das obras mortas para que prestemos culto
ao Deus vivo.” (Hb 9:13-14). A antiga aliança foi então substituída por
uma nova, muito superior, porque não é mais o esboço, mas a realidade
mesma “Eis porque ele é mediador de nova aliança.(...) Portanto se as
copias das realidades celestes são purificadas com tais ritos, é preciso
que as próprias realidades celestes sejam purificadas com sacrifícios
bem melhores que estes!” (Hb 9:15-23), e esta nova aliança foi selada
com o próprio sangue de Cristo, derramado de uma vez por todas. Trata-
se, pois, de um sacrifício único, sem repetição (Hb 10:1-18).

Os cristãos não precisam mais de um templo para oferecer sacrifí-


cios a Deus, pois “ Ora, onde existe a remissão dos pecados, já não se
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faz oferenda por eles.” (Hb 10:18). A eficácia do sacrifício pessoal de


Cristo dispensa tais sacrifícios e, portanto, um templo para oferecê-los.
Cristo, tendo superado a primeira tenda, garante aos cristãos o acesso
direto ao santuário verdadeiro, isto é, os céus onde Deus habita, e esse
acesso se dá pela fé: “a fé é a garantia dos bens que se esperam, a
prova das realidades que não se vêem.” (Hb 11:1).

Segundo a Carta aos Hebreus, o verdadeiro templo não está aqui


neste mundo, o templo que aqui existia era apenas uma cópia do verda-
deiro, que é a morada do Altíssimo. A antiguidade cristã nos demonstra
que o espaço litúrgico não é apenas um abrigo para a reunião do povo,
Christi fideles, mas é espaço mistagógico, que ajuda a cada cristão a
contemplar na arquitetura do lugar de culto de sua comunidade o misté-
rio de seu Senhor e de sua Igreja.

6. O Concílio Ecumênico Vaticano II


O Concílio Ecumênico Vaticano II foi consagrado como o maior
evento católico do século XX. Convocado pelo Papa João XXIII em 25
de dezembro de 1961 e aberto oficialmente em 11 de outubro de 1962,
foi encerrado pelo Papa Paulo VI em 8 de dezembro de 1965. Foram
quatro anos de encontros, reflexões, debates e conclusões. Nesse elen-
co doutrinário e pastoral se encontra o indispensável para a atualização
e a renovação da Igreja, maior objetivo do Concilio. Os documentos do
Vaticano II exigiriam estudo, prática, compreensão e iniciativa não só
da hierarquia, como também dos cristãos. Durante a sua realização, e
depois da sua conclusão, houve aplausos, mas não faltaram críticas.
Foram muitos os que se dispuseram a pôr em prática suas conclusões,
mas também não faltou oposição, o que indica que na Igreja há lugar
tanto os que olham para frente como os que se prendem ao passado,
rejeitando qualquer inovação21. Segundo Libânio,

21. Cf. Dom Geraldo Majella AGNELO, Arcebispo Emérito de Salvador. Disponível em:
www.paulus.com.br/ institucional/odomingopalavra/9-de-dezembro-2o-domingo-do-ad-
vento. Acessado em 4 de jan. de 2013.

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O modelo de Igreja-sociedade perfeita, cujos contor-


nos visíveis e jurídicos se deixavam identificar, eclipsa-
-se diante da visão de uma Igreja-mistério que vem da
Trindade, é-lhe ícone e orienta-se para ela. Recupera-
se este aspecto de mistério, seja superando a visão
objetivista pré-moderna, como revalorizando as fontes
teológicas através das pesquisas históricas22.

As declarações do magistério sobre a arte nunca foram tão nume-


rosas na história bimilenar da Igreja quanto no curso da segunda me-
tade do século XX, principalmente, desde o encerramento do Concílio.
Porém, as declarações do próprio Concílio sobre as artes – arquitetura,
literatura, poesia, música e belas artes – foram raras. As decisões conci-
liares estão concentradas, em sua maior parte, na Constituição sobre a
liturgia, Sacrosanctum concilium. Pouco desenvolvidas, elas são, toda-
via, de grande valor e revelam uma audácia de concepção.23

6.1. O Vaticano II e as artes


Há três textos significativos da reflexão da Igreja sobre a sua relação
com a arte contemporânea. Trata-se de duas constituições do Concílio
Vaticano II – uma sobre a liturgia, Sacrosanctum Concilium e outra,
Gaudium et Spes, sobre a relação da Igreja com o mundo contemporâ-
neo, e algumas palavras que, entre a aprovação destes dois documen-
tos, Paulo VI dirigiu aos artistas, antes mesmo do término do Concílio.

No Sacrosanctum concilium, a Igreja se diz amiga das belas artes


e solicita seu ministério. Ela não se satisfaz em sujeitar-se à sua evolu-
ção e esperar que os artistas pudessem apresentar propostas. A Igreja
tem como objetivo mais que apenas acolher obras novas ou preservar
as antigas de serem descartadas quando muda o gosto (124). Ela não
vai se limitar ao papel de comandatária, pretende também formar os

22. J.B. LIBANIO, O Concilio Vaticano II e a Modernidade. Disponível em: www.jblibanio.


com.br/modules/mastop_ publish/?tac=101. Acessado em 26 de jan. de 2013.
23. Cf. François BOESPFLUG, Dieu et ses images: une histoire de l’Eternel dans l’art,
p. 445.

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artistas e vai até reivindicar para si a competência e o direito de julgar


suas obras (124 e 126). Como “julgar” entenda-se o direito de avaliar se
a obra é aceitável em função do seu acordo com a fé, a verdadeira pie-
dade, a tradição. O Concílio concede às comissões nacionais de liturgia
diocesanas de arte sacra o cuidado desse julgamento (126). A Igreja não
elegeu nenhum estilo (123), o que significa que não vai privilegiar ne-
nhum. Todos os estilos podem servir ao rito, mas não serão aceitos sem
crítica (126). A Igreja assegura que admite sem reticências os gêneros
típicos de cada época e de cada região desde que sirvam aos edifícios
e ritos sagrados com o respeito e honra que lhes são devidos. Ela quer
continuar sendo “amiga das artes” (122), mas uma amiga exigente, pois
essa acolhida das inovações em todos os gêneros não significa que ela
assine em branco. Ela lhes dá lugar, contanto que sejam capazes de
suscitar obras em harmonia com a prática litúrgica e sua doutrina, esse
é o ponto chave24.

Em 7 de maio de 1964, portanto antes do término do Concílio, Paulo


VI dirige-se de forma corajosa aos artistas. Lembra a responsabilidade
da Igreja no distanciamento da arte do seu tempo, estimula os artistas a
obter a sólida informação religiosa necessária à arte litúrgica e manifesta
o desejo de retomar o diálogo com os artistas, tão fecundo no passado.

Finalmente, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (1965), num


capítulo dedicado à questão do diálogo com a cultura, encoraja a Igreja a
aderir às correntes de arte contemporânea que, na sua qualidade de ex-
pressão do humano, ajudam a enraizar e exprimir a fé. Trata-se de uma
Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual. Este documento,
no entanto, é prudente no que diz respeito à arte litúrgica, convidando a
se promover uma “nobre beleza” sem se referir a nenhum estilo em par-
ticular, conforme o n.123 do documento Sacrosanctum Concilium, onde
também se declara que a Igreja admite todo tipo de arte:

24. Cf. François BOESPFLUG, Dieu et ses images: une histoire de l’Eternel dans l’art,
p. 445.

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A Igreja deve reconhecer as novas formas artísticas, que


se adaptam às exigências dos nossos contemporâneos.
Sejam admitidas nos templos quando, com linguagem
conveniente e conforme as exigências litúrgicas levan-
tam o espírito a Deus. Deste modo, o conhecimento de
Deus é mais perfeitamente manifestado; a pregação
evangélica torna-se mais compreensível ao espírito dos
homens e aparece como integrada nas suas condições
normais de vida. (GS 62)

O Movimento Litúrgico e o Concilio Vaticano II mudaram a concep-


ção da liturgia e, portanto, a concepção das igrejas. No domínio católico,
não é mais o sacerdote que leva o povo a Deus e o representa diante
d’Ele; o povo reunido ante o altar e às vezes em torno dele, participa
plenamente da liturgia. É esse o grande desafio dos arquitetos e artistas
sacros pós-Vaticano II.

7. Cláudio Pastro: um artista pós-Concílio


Cláudio Pastro comparava seu trabalho ao do que pode ser con-
siderado o primeiro artista sacro cristão: o fóssore. No ano de 2008,
na palestra “A ferida da Beleza”, Pastro diz que enquanto artista sacro,
artista cristão, vê a si mesmo como um bom fóssore: aquele coveiro das
catacumbas, cuja função era preparar o pré-defunto antes de morrer,
confortar a família, preparar a cova, até a “festa” da passagem, o velório,
de modo a conduzir esta alma ao paraíso. Insistia que a função de um
artista sacro é, com muita responsabilidade, ser um mistagogo, ou seja,
levar primeiramente a si mesmo e, depois, os demais para o paraíso.
Paraíso que, nas palavras de Pastro, acontece a cada celebração litúr-
gica, quando o céu desce à terra, antecipando a Jerusalém Celeste, e é
para isso que ele prepara o espaço sagrado.

O artista sempre se inspirou nos primitivos cristãos, nos traços e


cores da arte românica e na dignidade hierática e nobre da arte do ícone
bizantino, em que os pobres apóstolos e santos (os humanos) se reves-
tem da beleza de Deus.

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Nas declarações conciliares referentes à arte, os depoimentos feitos


por Pastro e sua autodenominação como artista “pós-conciliar” de arte
sacra ficam transparentes. Podem-se distinguir alguns aspectos referen-
tes à arte no Concílio presentes na obra do artista tais como a volta às
fontes, a nobreza da arte, o lugar que ocupa na fé cristã, a arte como
ministério, o serviço à liturgia, a relação entre a liberdade da arte e a
inculturação.

A “volta às fontes” estava entre as intenções subjacentes que ca-


racterizaram o Concílio, com o intento de redescobrir as riquezas espiri-
tuais, doutrinárias e litúrgicas dos primeiros tempos da Igreja. Anterior ao
Concílio, no Movimento Litúrgico já se clamava por uma liturgia renova-
da que atendesse aos novos tempos. Pastro exorta o ad Fontes, a volta
do Senhorio de Cristo, a qual interpreta como a intenção fundamental do
Vaticano II.

A arte havia se tornado cada vez mais acadêmica, mais secular,


arte com temas religiosos, mas não arte sacra. O devocionismo levou
os santos ao centro de muitos santuários25 no lugar de destaque, o lugar
central, que seria do Cristo, o Senhor ressuscitado. A proposta ad fontes
vai permitir resgatar a arte do subjetivismo da livre expressão artística
e dirigir a ação litúrgica ao Senhor Ressuscitado. Como diz Pastro, “e a
arte como expressão do belo, da presença, da glória de Deus em nosso
meio, não poderia ser a mesma dos últimos séculos”26.

A arte no Concílio é apresentada como nobre, ou seja, é digna de


contribuir para a realização da liturgia. O que torna a arte sacra, em
outros termos, é a sua capacidade de se colocar a serviço do culto.
Trata-se de uma sacralidade do tipo cultual e não de sacralidade natural.
Parece que na expressão “nobre simplicidade” o Vaticano II também não
se esqueceu da suntuosidade que provocou um debate na época da

25. Santuário é o mesmo que presbitério: lugar mais importante de todo espaço celebra-
tivo, por isso deve ser de preferência visível a toda assembleia. Nele ficam: altar, sédia,
ambão, cruz processional, relíquia do santo ou mártir.
26. Cláudio PASTRO, Guia do espaço sagrado, p. 13.

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Contrarreforma. A arte sacra, diz Boespflug, constitui

O mais alto nível que pode alcançar a arte religiosa e a


arte em geral: aqui prevalece uma graduação que vai na
contramão da tendência que prevaleceu desde o século
XIX nos meios da arte e cultura, onde a arte religiosa foi
geralmente considerada como um grau inferior da arte,
ao ponto que os artistas não aceitavam, de bom grado,
ser artista religioso, pois tinha um aspecto restritivo e
pejorativo.27

Por isso, é a forma, para Pastro, quem faz a arte sacra, não o tema.
Quando faz o projeto ou cuida do programa iconográfico, ele recomenda
que se coloque um Pantocrator na abside ou na parede frontal do san-
tuário da igreja: Cristo é o celebrante, o sacerdote preside. Diz ele:

Porque celebramos unicamente o mistério pascal, a ico-


nostase é um belo e proveitoso elemento litúrgico. Como
centro é o Cristo, recomenda-se pintar um Pantocrator.
É o Cristo, Mestre e Senhor, com a Escritura em sua
mão esquerda contendo uma frase-mantra para a co-
munidade, por exemplo: “Eu sou o Caminho, a Verdade
e a Vida” ou “Eu faço nova todas as coisas28.”

8. Marko Ivan Rupnik o artista da Beleza


O religioso jesuíta e artista esloveno Marko Ivan Rupnik (Salloga
d’Idria, 28 novembro de 1954), revela que a sua primeira inspiração é a
Palavra de Deus e, como Cláudio Pastro, tem como guia principal na arte
litúrgica o Concílio Vaticano II, que convida a reler aquele grande período
que foi o Primeiro Milênio, a era patrística e a procurar iluminação nos for-
tes períodos da arte dos cristãos, como o românico, o primeiro bizantino.

Rupnik considera que a cultura ocidental deu precedência à verdade


e ao bom. “Certamente negligenciou o belo ao reduzi-lo a algo pura-
mente decorativo e não absolutamente necessário como o verdadeiro

27. François BOESPFLUG, Dieu et ses images: une histoire de l’Eternel dans l’art, p.
445.
28. Cláudio PASTRO, Guia do espaço sagrado, p. 79.

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e o bom”, afirmou em entrevista publicada no semanário “Igreja Viva”,


suplemento do “Diário do Minho”, da arquidiocese de Braga29.

O artista sacro e jesuíta é especialista nos pensadores russos do fim do


século XIX e do século XX que refletiram, entre outros assuntos, sobre a be-
leza, como Vladimir Solov’ëv, Pavel Florenskij e Nicolas Berdiaev. Solov’ëv
sustenta que um bem que não se torna beleza é um perigo para o homem,
a ditadura do bem é a suprema expressão do mal. Da mesma forma, uma
verdade que não se torna beleza é um monstro que destrói o homem. Em
nome da verdade muitos morreram e em nome de ideias humanistas a épo-
ca moderna matou dez milhões de pessoas. Solov’ëv ainda afirma que a
ideia que não é capaz de encarnar-se como beleza demonstra sua impotên-
cia30. Segundo Rupnik, o padre e mártir Pavel Florenskij fez a melhor síntese
da beleza: “a Verdade manifestada é o amor – Cristo – o amor realizado é a
beleza. A beleza realizada é a manifestação da verdade como amor31”.

Quanto à arte paleocristã, Rupnik em palestra na PUC-PR em se-


tembro de 2017, sublinhava que a arte cristã começou nas catacumbas,
no subsolo, lugar da morte, na contramão da arte clássica greco-romana
da época, abandonando completamente a ideia de perfeição. A arte cris-
tã nasceu simbólica e deve ser simbólica32!

9. Cláudio Pastro e Marko Ivan Rupnik


Pastro e Rupnik nunca se encontraram, porém, a arte de ambos em-
bora diferentes quanto ao processo — Rupnik e sua equipe trabalham
com mosaico e Pastro usava outras técnicas – os dois artistas têm muito
em comum: a arte é um serviço litúrgico, deve ser simbólica, levar o fiel

29. Disponível em: http://www.snpcultura.org/cultura_ocidental_negligenciou_o_belo_


marko_rupnik.html. Acessado em 12 de jul. de 2018.
30. Cf. Marko Iva Rupnik. L’autoritratto della chiesa, arte, bellezza e spiritualità. Bologna.
EDB Lampi, Centro Editoriale Dehoniano, 2015, p. 18.
31. Cf. Marko Ivan Rupnik. Via della bellezza sapienza di vita. Museu della Basilica,
Santa Maria delle Grazie, Quaderni 5. Firenze: Edizione Feeria, 2007. p. 19
32. 11º Encontro Nacional de Arquitetura e Arte Sacra, realizado em Curitiba pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUCPR). Segunda palestra do dia 20 de set. de 2017.

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à contemplação, sentir o desejo de ajoelhar-se e rezar. Diferente da arte


Renascentista, que leva ao deslumbramento pelo virtuosismo do artista
que a criou.

São críticos do Renascimento enquanto arte para a Igreja, pois


nos últimos séculos da modernidade, a característica fundamental sob
o aspecto espiritual foi do maleficio vindo a partir do Renascimento de
conviver com o paganismo, a tentativa de fazer conviver Cristandade e
Antiguidade pagã, fazer uma relação dessas duas realidades. Ambos
também concordam que o Barroco foi uma tentativa de voltar à arte sa-
cra que fracassou.

Em seus textos os dois artistas sacros insistem que a Presença do


Invisível só é percebida em uma cultura do símbolo, em que “as coisas e
acontecimentos” indicam outra realidade. Em um universo limitado pelo
visível, não há a ação do Mistério, mas apenas a ação humana, que em
si é fraca e limitada, quando não usurpadora.

Os símbolos são sinais repletos, contém toda realidade. Desde a


iconografia cristã primitiva, os símbolos que entraram na sua configura-
ção tornaram-se tradicionais e se repetem, não sem algumas variantes,
mas, segundo um estilo convencional, segundo cânones que evoluíram
consideravelmente tanto no Oriente como no Ocidente.

Os símbolos cristãos estão culturalmente situados e têm como sua pri-


meira e fundamental raiz a Tradição bíblica. O profeta Isaías faz Iahweh di-
zer: “Eu sou o primeiro e o último, fora de mim não há Deus.” (Is 44:6). Jesus
Cristo, Alfa e Ômega, exprime por sua vez a totalidade do tempo, do início
ao fim da Criação. Tudo é dominado por Ele. O autor do Apocalipse cita o
mesmo texto de Isaias e acrescenta, dirigindo-se aos fiéis de cultura grega,
uma fórmula equivalente valendo-se do simbolismo das letras. Sendo alfa e
ômega, primeira e última letras do alfabeto, faz o Senhor dizer: “Eu sou Alfa e
Ômega, Aquele que é, Aquele que era e Aquele que vem, o Todo Poderoso”
(Ap 1:8). Após a visão de Deus sobre seu trono de glória, presidindo a nova
criação, João o ouve falar: “eis que faço nova todas as coisas” [...] “Eu sou

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Alfa e Ômega, o Princípio e o Fim” (Ap 21:5-6). Enfim, no capítulo 22, que
encerra o Apocalipse, é o próprio Cristo que assume os títulos antes reser-
vados a Deus: “Eu sou alfa e Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o
Fim” (Ap 22:13).33

Pastro, a começar pela década de 80 do século passado, entendeu


ainda jovem o chamado do Concilio Vaticano II. Na contracorrente dos
artistas contemporâneos, que exaltavam a novidade de estilos artísticos
e arquitetônicos e, em uma cultura que admira e está habituada ao bar-
roco, inspira-se nos ícones, na arte bizantina, na simplicidade do româ-
nico e em alguns modernistas, levando às paredes das igrejas a Biblia
pauperum e ao presbitério o Cristo Pantocrator. Causou estranhamento
e muitas críticas, mas deixou muita beleza, preparou de forma sublime
muitos espaços sagrados no mundo e nas igrejas do Brasil, sobretudo
no magnífico Santuário Basílica de Nossa Senhora Aparecida no Estado
de São Paulo.

Ao que tudo indica, há um projeto em andamento para que Rupnik


faça a parte externa do Santuário de Aparecida. Se acontecer, os dois
artistas estarão juntos e eternizados em suas obras.

Referências
BELTING, Hans. Image et culte: une histoire avant l´époque de l´art. Paris: Les Éditions
du Cerf, 2007.
BAUDRY, Gérard-Henry. Les symboles du christianisme ancien: Ier-VII siècle.
Paris: Édition du Cerf, 2009.
BESANÇON, Alain. L’image interdite: une histoire intellectuelle de l’iconoclas-
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