Diálogo de Saberes e Pedagogias Decoloniais
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Diálogo de Saberes e Pedagogias Decoloniais
ISSN 2178-9770
UFTM | Uberaba – MG, Brasil
DOI: 10.18554/cimeac.v11i1.5565
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Alessandro Tomaz Barbosa: Professora Maria Paula, é uma honra tê-la conosco.
Diante de um mundo marcado pela homogeneização e universalização de
modelos de currículos e conhecimentos produzidos em países do norte global,
eu gostaria que comentasse algumas possibilidades metodológicas que
apontem para o diálogo de saberes e a construção de pedagogias decoloniais.
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ou menos da mesma maneira. Isto tudo são heranças de uma determinada forma
de pensar e conceber o mundo que é exportada para outros locais, sobretudo
para que os colonos que vão para esses locais, possam continuar a viver ai tal
como se vivia nas então metrópoles.
E é nesse sentido que há uma série de nós, que temos inclusivamente vindo a
discutir que as pessoas deixaram, mesmo quando se faz turismo, de viajar no
sentido amplo. As pessoas deslocam-se num mesmo espaço, o espaço de
conforto, o espaço de proximidade. Antes as pessoas viajavam e descobriam o
outro. Inclusivamente, quando nós olhamos para grande parte dos intelectuais
que fizeram parte da geração iluminista, quando eles vão à procura do Oriente,
por exemplo, eles vão à procura do outro, com quem eles querem dialogar. As
suas representações parte deste desejo de viajar, são, também, sobre os que os
diferencia, mas eles reconhecem que há um outro com quem vão falar. O que
acontece é que nos últimos 100, 150 anos não reconhecemos mais que este
outro existe e é portador de saberes válidos. Num segundo momento, se alguma
coisa está lá, vamos dizer que somos nós que descobrimos. Aí está a ‘síndrome
da descoberta’, como se as pessoas que estivessem desse outro lado, não
estivessem a funcionar com esses temas, experienciando como resolver esses
problemas há muitos mais anos e que não precisavam ser descobertas. É são
esses saberes silenciados, esses saberes que marcam as lutas do Sul global,
um Sul que reclama o reconhecimento de outros sujeitos, dotados de saberes,
que reclamam outro projeto político.
Eu creio que, nas nossas práticas educativas, do nível micro ao nível macro,
temos feito pouco trabalho em prol da descolonização das mentes e das
instituições. Estamos permeados destas intervenções colonizadoras, que
continuam a ser, de fato, instrumentos da nossa vivência, das práticas do dia a
dia. Portanto, desde logo, esta ideia de que há um sistema único de escolas e,
portanto, a criança pode transitar do Brasil para Moçambique ou para Timor,
porque o sistema educativo é igual. Isto é uma violência. Como é que o sistema
educativo é igual? Se as realidades, se os contextos são tão diferentes.
Eu lembro-me, no período colonial em Moçambique, como era absurda a
questão do sistema único. Nós tínhamos as férias de verão no inverno, que era
para ser de acordo com o tempo português, o tempo da metrópole. E tínhamos
férias em junho, julho e agosto, em plena época fria. É a época do ano que faz
20 graus, e não dava para ir à praia. E isto é exemplo mínimo desta violência
que hoje continua, porque não conseguimos muitas vezes dar-nos conta de que
quando nós queremos fazer as nossas crianças transitarem, viajarem, não é para
ir à procura do mesmo. Elas deviam ir para aprender o que é que o outro lado
tem, o que torna específica a identidade do Timor Leste e a identidade de
Moçambique, e não ir à procura do mesmo.
Agora ao nível da escola, das línguas. Quais as línguas que as nossas crianças
aprendem? Aprendem inglês, aprendem francês, português, espanhol, mas eu
já vejo muitos pais a levantar as sobrancelhas quando a escola propõe
mandarim. E são muito menos recetivos às propostas de ensino das línguas
locais, que são, nos nossos casos, no contexto africano e asiático, línguas
nacionais. E nos currículos que submetemos para candidatura a empregos, se
eu disser que falo uma língua indígena, provavelmente esse elemento não é visto
como uma mais-valia. É que qualquer língua é uma forma de conhecimento, de
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1 Nascido no século XV é também conhecido como Giovan Lioni, um diplomata Berber Andaluz,
autor de Dela descrittione dell’Africa et dele cose notablo che ivi sono.
2 Nascido no século XIV era um árabe socilólogo, filósofo e historiador que é descrito com oum
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retalhos coloniais que nós vamos ter que pensar como gerir, porque de fato os
grandes problemas que temos são sobretudo em contextos urbanos que são
altamente difíceis de controlar quando há uma pandemia.
Se nós tivéssemos estudado bem a história, teríamos visto que sempre que há
pandemias, as pessoas fogem das cidades. Foi assim que Boccaccio, escreveu
o Decamerão, e o Ibn Kkaldoun cujos pais morreram de peste, e que também
teve que fugir, como refere no seu Muqaddimah.4 E, portanto, a história de vez
em quando dá uns sustões sobre o que está certo e o que está errado, e nós
deixamos de prestar atenção.
E eu creio que este é um dos impactos da queda do Muro de Berlim. Termos
implicitamente aceite que a história acabou e, consequentemente, deixámos de
olhar para o sul em busca de reflexões sobre como construir alternativas. Assim,
a queda do Muro de Berlim não é um problema da Europa, é um problema do
mundo, e nós assumimos que a história acabou. Um conclusão de uma certa
forma perversa, pois parece que não precisamos aprender mais, porque está
tudo feito. E não está. É neste contexto que eu vejo o grande problema da
colonização, a um nível tão profundo, que nós temos de voltar a este conceito.
Não é possível analisar o mundo de hoje, sem um conhecimento profundo do
impacto da herança colonial.
Temos que ter a coragem de perguntar: quando é que os Estados Unidos se
descolonizou? O que é que há a descolonizado nos Estados Unidos? Quando
começamos a colocar perguntas aparentemente simples, como fazem as
crianças, as respostas que começamos a ter mostram-nos o mundo com outros
contornos. De fato, os Estados Unidos continuam a ser aquele país, na essência,
que é a continuação do projeto colonial. O Estado Mínimo é a proposta de
explorar economicamente ao máximo um território. É um estado que não quer
ter responsabilidade em relação a ninguém, porque a população que está lá, está
lá para garantir a exploração econômica daquele território e nada mais. Na sua
larga maioria são sub-humanos, como destaca Fanon, que não ‘merecem’
atenção por parte do Estado. É este modelo que queremos, um modelo que
explora ao limite as pessoas e a natureza? E importa colocar esta pergunta para
trás. Por que é que há este modelo de estado, nos Estados Unidos, e por que é
que ele foi implementado e continua como referência? Para mim, a partir de uma
perspectiva de economia política, assistimos à continuação do modelo das
grandes companhias, constituídas para levar a cabo a exploração econômica.
Na visão destas companhias, as pessoas que habitam esses territórios, os ‘sub-
humanos’, podem ser substituídas. Haverá, supostamente, sempre onde ir
buscar mais mão de obra, recorrendo, inclusive, à migração. Se colocarmos a
questão ao contrário, por exemplo, a partir do sul global – e há teorização muito
boa no Sul – teremos um olhar ao espelho para o norte. A questão colonial não
aconteceu apenas à Sul. O Sul foi um laboratório, e as ondas deste processo
estão a chegar agora ao norte.
Por exemplo, no caso do Timor-Leste, há uma inovação que para mim é
fabulosa, que é o problema da história oral para fazer o presente e o passado do
Timor-Leste. Como há muita gente que esteve envolvida nos dois momentos, no
momento da resistência à presença colonial de Portugal e na resistência à
4Livro escrito por Ibn Khaldoun em finais do séc. XIV, registando uma interpretação da época da
história universal.
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Suzani Cassiani: Então, posso fazer uma pergunta que me surgiu agora? Bom,
nosso grupo está trabalhando muito com essas questões do colonialismo, da
colonialidade, dos estudos decoloniais. E nós percebemos que eles são muito
potentes para os professores, para a área de educação e para outras áreas
também, para nos percebermos hierarquizados e compreendermos esses
processos históricos que passamos e que a gente vive ainda em função desse
colonialismo, que não acabou ainda. Então, sobre as contradições da Teoria
Decolonial, você gostaria de apontar algumas dessas contradições? Porque
apesar de ser uma ferramenta, uma teoria muito potente, a gente percebe que,
muitas vezes, as pessoas usam como uma moda, sem aprofundamentos. E
também as contradições que têm, nos cânones da decolonialidade. E, enfim,
pensar esses limites da teoria e as possibilidades também para a gente avançar,
tanto na educação, quanto nas pesquisas. Porque a gente percebe também que
as pesquisas acabam copiando modelos da Europa, dos Estados Unidos, sem
pensar nos problemas locais, nos problemas que são nossos, da América Latina.
E aí a gente tem, então, um desvio dos resultados para problemas que não são
nossos. Ou seja, a gente conversar um pouco sobre essas contradições e tentar
apontar avanços. Nós temos tentado trazer autores africanos, asiáticos, latino-
americanos, mas a gente sabe que tem muito mais coisa ainda para fazer e para
pensar. Acho que é um pouco isso. Você falou da decolonialidade que foca muito
na questão do racismo, não é? E que isso é um problema, é um limite, não é?
Porque...
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Maria Paula Meneses: Eu não diria que é um limite, é uma teorização que
responde alguns dos problemas das Américas. Ou seja, responde a um dos
grandes elementos que vai marcar o processo colonial nas Américas, a
descriminação etno-racial, sistémica, do outro. Mas não explica o impacto das
relações coloniais, da colonização no resto do mundo. Pensar o Sul, que tem
sido objeto de epistemicídios, linguicídios, genocídios, em contextos específicos,
requer um cuidado especial. A questão colonial, apesar de ser um projeto que
emerge, no colonialismo moderno, sobretudo, com aas potências da Europa,
tem especificidades próprias, em função dos contextos onde esta relação de
violência ontológica, epistémica e política aconteceu. E estas diferenças vão
marcar também as opções pela descolonização. Eu vejo as reflexões sobre a
colonialidade como parte de um amplo grupo de reflexões críticas sobre a
questão colonial; tentar simplificar ou resumir histórias complexas não ajuda à
reflexão sobre o impacto presente da violência colonial.
Para compreender a questão colonial moderna temos que levantar também, a
colonização dentro da Europa. E aqui há que compreender que a ideia de Europa
é relativamente recente, é um projeto com dois ou três séculos. É, sobretudo,
forjada na segunda modernidade. E, portanto, quando o colonialismo é visto a
partir do ângulo racial, não estamos talvez a ter em atenção situações coloniais
de europeus sobre europeus. O Code Noir de Louis XIV discrimina
religiosamente os judeus, que são declarados sub-humanos, tal como os negros.
Portanto, ao longo da história, quem é o outro sub-humano vai sendo alterado.
Aqui é importante a análise crítica da História, que é a forma de reivindicarmos
a nossa presença e contribuição ao conhecimento-mundo. Esta dimensão é
fundamental, para ampliar os diálogos a Sul, para perceber o que nós,
Continente Africano, produzimos como conhecimento e que nos tem sido
roubado, para dizer: o conhecimento-mundo também é nosso! Agora, que haja
lá uns tios e umas tias que resolveram que aquilo era deles, é um problema
deles. Jack Goody chama a esse processo de destituição epistémica o Roubo
da História. E é preciso analisar como se processou e processa ainda este
exercício do roubo da História. Por exemplo, entre a administração Inca, o quipu
era um instrumento usado quer para o registro de dados, quer para a
comunicação. Em suma, um sistema altamente sofisticado de controle
burocrático, fundamental ao funcionamento da administração deste estado.
Estamos a falar de um momento em que os incas sabiam melhor o que é que
havia naquele território do que os espanhóis que estavam a chegar, com os seus
livros e sistemas de contabilidade. Portanto, eu não vou dizer que não era porque
eles não tinham a escrita gráfica que nós usamos hoje que eles não tinham uma
forma de registrar o conhecimento. Tinham. E, hoje, esse tipo de conhecimento
está a ser resgatado. Este exemplo mostra-nos que nós não podemos ter uma
escola centrada em uma forma de escrever única, sobretudo, com o alfabeto,
que, hoje, se chama o alfabeto dito europeu. Não nos podemos esquecer que o
mundo guarda memória de outros saberes, desafiando os esquecimentos,
silenciamentos e epistemicidios, como Boaventura de Sousa Santos destaca.
Por exemplo, o colonialismo português, chega ao sub-continente africano - e o
colonialismo português é, sobretudo, o colonialismo moderno – na segunda
metade do século XIX. Quando acontecem as independências africanas, na
década de 1960-1970, ainda havia gente viva que se lembrava do tempo anterior
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lecionação tem que ser sobre conteúdos locais. Por exemplo, transplantando a
ideia para o Brasil, um professor no nordeste brasileiro tem que ensinar coisas
que fazem sentido para o nordeste brasileiro. Não pode estar a falar de uvas e
de pêssegos, ou de neve, porque a probabilidade de na zona da Amazônia haver
neve, eu acho que é 0,001%. Eu não estou a dizer que as crianças não precisem
saber que lá em um outro sítio onde há neve, mas é preciso que a gente conheça
o que é que está ali e como é que isto é feito, como é que este conhecimento se
passa. E que este conhecimento, diverso, faz o Brasil todo ser o que é.
O Japão tem um processo que ando a seguir, sobre o que guardamos, e como
guardamos factos importantes da memória comunitária. Em vários lugares,
sempre que há tsunamis, erguem estelas de pedra onde escrevem a data e o
impacto da onda no local. A mensagem é: não deve construir daqui para baixo,
porque isto é zona potencialmente afetada por tsunamis no futuro. E as escolas
visitam estas estelas para conhecer o impacto do que é um tsunami. O tsunami
não é uma representação geográfica; o tsunami é algo que eles veem e que
ouvem os mais velhos a falar. Isto nós não fazemos, a escola é o professor e é
o programa único. A proposta do conteúdo local não é só uma questão de
história, é uma questão de tentar entender as plantas, por exemplo. Para que
servem? Como é que é feita a sistemática daquelas plantas, sem ser a
sistemática de Lineu? O que é que os xamãs e os agricultores conhecem dos
usos destas plantas? Como é que se analisam os solos? Como é que os
camponeses sabem que aquele solo serve para plantar determinadas plantas e
não outras? Para mim, a escola deve cria nestas pessoas mais jovens o prazer
de investigar, de querer saber mais e de procurar fazer avançar o conhecimento,
sobre si e sobre o país e para o mundo. De outra forma, o se está a fazer é
reduzi-los a pequenas máquinas reprodutoras de conhecimento e não
produtoras de conhecimento. Há várias possibilidades para descolonizar a nossa
escola, temos é de ensinar os professores, como é que isto se faz com pequenos
gestos.
Por exemplo, eu lembro uma vez de estar em uma praia do nordeste do Brasil a
falar com crianças na praia e perguntar: Então, o teu pai faz o quê? É pescador?
E também que escola que tu está? E vi um deles que estava no nono ano, com
um problema de física, que ele dizia que tinha grande dificuldade. Estivemos a
discutir o que é que era o barco à vela, o que era a energia eólica, energia
motora. No final o menino olhava para mim e dizia: mas isso, afinal, é fácil. Eu
disse: claro. O problema é tu pores a cabeça a perceber que aquilo que o teu
professor está a dizer tem implicação na vida do teu pai. Quando o teu pai lança
a vela, ele transforma a energia eólica em energia motora. Então, o meu pai é
físico? Chama do que tu quiseres respondi-lhe. Tu dizias que o teu pai era
pescador, agora, se quiseres podes dizer que o teu pai é um físico pescador.
Mas é esta segurança deles terem orgulho naquilo que é o seu pequeno
contributo a um conhecimento muito maior e não limitá-los nem terem vergonha
de quem são. Quer dizer, se uma mãe vende marisco, claro que a senhora tem
um saber imenso de ecossistema. É muito interessante perguntar a uma criança:
então, olha lá, vocês vão lá fazer uma visita, se puderem ir com a tua mãe
apanhar marisco na praia para percebermos como é que ela conhece o
ecossistema. Quais os mariscos nas várias épocas do ano? Onde é que estão?
A que horas? Como é que se tira? Etc. E é isto que eu ando a fazer, a
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experiênciar o mundo que nos rodeia, com perguntas que fazemos um ao outro,
eu e o meu neto. É este o questionamento permanente que eu trago dentro de
mim, e que já vem de toda uma família e de toda uma comunidade, de todo um
grupo. E não é só em Moçambique. Acontece aqui no Brasil também, isto tudo
faz o Brasil a andar, porque esta gente toda tem um conhecimento enorme.
Muitas vezes nós nos apropriamos de uma forma muito violenta destes
conhecimentos, transformamo-os em dados e, depois, escrevemos artigos
‘limpos’ para as revistas da especialidade. Porque as revistas querem um
conhecimento muito escalpelizado, muito sistematizado, que seja científico. Mas
como fazer com que este conhecimento faça sentido para todos, mesmo para
uma criança?
Eu venho de um contexto de cultura oral, que é o contexto em Moçambique, é
muito parecido ao contexto de Timor-Leste. E que eu creio que vocês, no Brasil,
também têm muito a cultura oral. A cultura oral é circular; um começa a falar,
depois, fala o outro, fala o outro, fala o outro, fala o outro. E podemos começar
a falar sobre as estrelas e acabamos a falar do cachorro do vizinho que, afinal,
estava doente. Porque a conversa flui, não é controlada. Mas na escola, nós
ensinamos as crianças a fazer redação. A redação é um microprojeto: tem
objetivo, o desenvolvimento e a conclusão. E a redação não dialoga com os
colegas da sala, não está aberta ao debate, à conversa, à coprodução do
conhecimento. Nós fazemos pequenos indivíduos na escola e eu acho que isso
não devia ser assim. E eu creio que o grande problema que nós temos com a
burocracia e os sistemas é que passamos a ter indivíduos e eu não gosto de
indivíduos, eu gosto de pessoas. Porque a pessoa pensa, reage, tem uma
história, que tem um lugar de que vai deixar. E nós precisamos conhecer
pessoas e não indivíduos. Indivíduo é um número. Não sei, Profa. Suzani, se eu
respondi à sua pergunta.
Suzani Cassiani: Maravilha. Nossa! Muito obrigada. Acho que você tratou de
muitas coisas que a gente estava querendo ouvir mesmo, muito legal, Maria
Paula. Maravilhoso! É uma riqueza também para pensar a educação em ciências
e tantas outras coisas.
Maria Paula Meneses: Tem razão, profa. Suzani, porque às vezes, não
prestamos atenção ao que acontece à nossa volta. Uma vez eu estava no norte
de Moçambique, numa expedição geológica. Trata-se de uma região muito
antiga da terra, parte do Cratão ou escudo africano. Nessa zona, que apresenta
várias fraturas, por ser uma região de instabilidade sísmica, por vezes quase se
tem um pé no cretáceo e o outro pé está no quaternário. Tem estas diferenças
fabulosas. Eu andava lá a trabalhar com colegas da geologia que procuravam
identificar onde existiria carvão mineral. Eu, na altura, estava a fazer pesquisa
com eles, mais da parte mais social. E não havia meio de conseguirmos
identificar os locais, apesar de referências anteriores citarem afloramentos de
carvão mineral. Numa conversa com pessoas locais, perguntámos a uma
senhora, que estava a preparar o jantar, onde iam buscar carvão. E respondeu-
nos que era ali, na comunidade, no sítio onde estávamos. Só depois
compreendemos o que ela nos estava a chamar a atenção. Ela respondeu-nos,
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na língua da região, que aquele sítio onde estávamos era o sítio do carvão. Ou
seja, nós estávamos em cima do território do carvão fossilizado. Como na altura
ainda não havia GPS, e não tínhamos trabalhado com essas pessoas da
comunidade, e tínhamos privilegiado os mapas geológicos, obviamente não
estávamos a perceber muito bem onde estávamos. No dia seguinte começaram
a cavar trincheiras e aí a cinco metros de profundidade já tínhamos carvão. Mas
o problema é que a gente, às vezes, não pergunta às pessoas, acha que eles
não sabem. É um ato de arrogância científica. E as pessoas dessa comunidade
deram-nos uma lição, quando nos disseram ‘está aqui o carvão’. Porque era a
expressão que eles diziam: nós somos do território do carvão. A nossa
ignorância da língua, a opção inicial em não fazer pesquisa com a comunidade
envolvida, explicaram o nosso problema. Às vezes é uma questão de
aprendermos uns dos outros... Falávamos todos do carvão, só que ninguém do
grupo falava a língua da região e nós não explicámos de início o que estávamos
lá a fazer. Era como fôssemos, apesar de sermos todos teoricamente de
Moçambique, uns eram da universidade e os outros eram povo. Não. Aquilo foi
uma coprodução, a identificação do carvão fóssil e, naquela altura, foi conjunta.
Foi mais deles do que nossa, porque eles já sabiam que havia lá carvão, nós é
que descobrimos, naquela altura, que havia lá carvão.
Maria Paula Meneses: Quer dizer, eu tenho muitos problemas com cooperação.
Estive a ler um dos últimos relatórios do PNUD (Nações Unidas para o
Desenvolvimento) que é sobre o antropoceno e as novas fronteiras. Pois no
relatório nem o Sumac Kawsay, nem o Swadeshi ou o Ubuntu são alternativas
para repensar a relação sociedade-natureza, lá citadas. É brevemente
apresentado o exemplo de uma relação de proximidade da Nova Zelândia, sem
dúvida. A Nova Zelândia, neste momento, já permite que florestas, rios e etc.
sejam sujeitos de direito. Mas quando chegamos a uma escala maior e saímos
para questões a nível continental, o relatório não trata. Por quê? Porque há uma
ideia de que há um conhecimento produzido em uma determinada região e este
é o bom conhecimento e vai ser exportado através do mecanismo da
cooperação. Que não é, de fato, um grande mecanismo de cooperação. E eu
venho ainda da tradição de que há uma cooperação, a solidariedade, eu diria
que a solidariedade é aquilo que marca uma relação entre iguais, uma relação
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do que é que foi a Ditadura. Há crianças de 15, 16 anos, não tem a mínima ideia
do que é que foi a Ditadura. E é, pois, para essas pessoas é fácil dizer agarrar a
narrativa dominante que antigamente estava tudo bom. A questão é esta, que a
gente deve pôr a história a ser contada por quem a viveu num passado ainda
presente. E estas narrativas todas é aquilo que nos faz todos e todas pertencer
a um projeto maior. Porque, neste caso, como eu estou a dizer, estes colegas
da América Latina, vários do continente africano, asiático e europeu, foram
aqueles que nos fizeram pessoas, talvez, com esta cabeça um bocado
desarrumada que é a minha, mas que é uma desarrumação boa.
Suzani Cassiani: O trabalho do Alessandro foi muito interessante, porque ele foi
como cooperante do Timor e ficou vários meses, trabalhando as questões do
currículo. Além da denúncia observada nos livros didáticos e documentos
curriculares transnacionais, ele também trouxe anúncios, como diria o Paulo
Freire, pensando em uma antropofagia curricular decolonial, trabalhando com
(e não para) os professores timorenses o círculo de cultura e leitura, com as
análises dos livros realizadas pelos próprios professores, bem interessante.
Acho que é assim um pouco trabalhar nesse sentido aí que você está falando,
acho que a gente, às vezes, consegue.
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Maria Paula Meneses: Estou a falar por causa do Boko Haram no contexto
africano.5 O Boko Haram tem um discurso a favor da descolonização. Mas a
descolonização é voltar ao século IX do Islã, e, portanto, só com as escolas e a
educação de matriz islâmica. Há movimentos progressistas islâmicos
importantes, que têm vindo a promover escolas transformadoras, que
transformam as pessoas, que garantem a reconexão permanente com o
território, com os saberes, com as experiências. Mas não o Boko Haram e vários
outros movimentos. Temos que ser muito cuidadosa na leitura destes processos
de luta e descodificar as suas intenções, os seus objetivos.
Outro exemplo, aqui mais próximo, é o de Cuba, que tem uma experiência
fabulosa e talvez menos conhecida. Em 1977 ou 78, Cuba resolve apostar na
construção de escolas secundárias, na ilha da juventude, as ESBECS, para
formar jovens a nível do ensino secundário, de países africanos sobretudo. Havia
quatro escolas de Angola, duas de Moçambique, uma da África do Sul, uma da
Etiópia, uma do Burkina, etc. Os estudantes que passaram por estas escolas
contam a sua experiência como um momento de transformação. Como tenho
interesse no tema, tenho lido sobre este processo. Para vários jornais norte-
americanos, que publicaram matérias sobre esta presença africana em Cuba, o
que é dito com muito cuidado é o seguinte: é que é um problema com esses
estudantes que estudam em Cuba; eles são ensinados não a construir uma
estrada, mas a construir uma estrada que serve ao país. Ou seja, eles estão a
aprender a pensar pelas próprias cabeças e isto não interessa a quem quer ter
mentes controladas. Porque há uma grande diferença entre nós pensarmos a
partir daquilo que a gente conhece no mundo, mas para mudar o nosso lugar e
aquilo que a gente acha que é o nosso lugar é os Estados Unidos, e, portanto,
criamos um pequeno Estados Unidos, ou uma pequena Europa em
Moçambique, em Timor ou no Brasil. E criamos jovens com a mente colonizada.
Aqui o desafio é grande, pois é preciso descolonizar a mente e ter esta abertura.
5 Movimento sunita fundamentalista, que tem como uma das bandeiras de luta a educação
ocidental, não-islâmica, que classifica como um pecado.
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Maria Paula Meneses: Eu acho que a pandemia nos está a mostrar muitas
coisas. Para começar, que os passaportes não funcionam, porque o vírus
passeia sem passaporte. O que não é uma novidade, quer dizer, quando se
estuda a chamada Peste Negra, percebe-se que há dois grandes fenômenos
que justificam a difusão da Covid: a rede dos contatos comerciais e os cordões
militares. Hoje, se olharmos para a dispersão da Covid, vemos um padrão
semelhante, através das ligações comerciais. O problema é que muitas vezes
não se consegue resgatar o que é que deveríamos saber sobre o assunto. E,
sobretudo, porque continuamos muito reféns de um saber do norte, que,
inclusivamente, está nas Nações Unidas, na OMS, e que tem influenciado a
forma de lutar com a pandemia. Periodicamente são tomadas decisões globais,
mas esta opção por um modelo único não vai funcionar. A própria OMS tem
bebido de experiências em contextos africanos, por exemplo. Um dos grandes
resultados da tentativa de controlar as pandemias do Ébola tem sido usado para
conter a pandemia atual. Tal como no caso do Dengue, um dos vectores mais
importantes têm sido as campanhas de sensibilização junto da população. É
preciso explicar o que é a Dengue, é preciso explicar o que é o Ebola, e como
se pode lutar contra a Dengue ou contra o Ébola. No caso do Brasil, eu creio que
o que não funcionou foi o governo, que manteve uma política negacionista
durante muito tempo, face ao avance da pandemia. Algo semelhante ao que
aconteceu com o presidente da Tanzânia, John Magufuli, que também afirmava
que não há Covid e que não interessava ao país investir no rastreio das pessoas
infetadas. Até à morte de Magufuli, em março deste ano, não havia praticamente
casos de Covid na Tanzânia. Na maior parte dos países do mundo, começou
desde muito cedo uma explicação do que é que era a Covid, e, portanto, a Covid
entrou na casa das pessoas pelos meios de comunicação.
Uma experiência pedagógica interessante que aconteceu em Moçambique e que
vem do apoio à pandemia que marcou a minha geração – o AIDS. De repente,
um dia dizem-nos que não pode usar seringas de qualquer maneira, que é
preciso cuidado com o dentista, cuidado com as tatuagens, cuidado com as
relações sexuais. Foi um choque, num momento em que os jovens da minha
geração viviam um momento de euforia. Cada geração tem tido a sua pandemia,
só que nos esquecemos de passar as experiências. Talvez, a gente precisasse
daquelas estelas do Japão para, de vez em quando, ir lembrando que todos
temos tido a nossa pandemia. Eu tive vários amigos que morreram com AIDS,
foi um drama que me tocou muito, com vários amigos que faleceram. E até que
se desenvolvesse o remédio demorou, agora, foi mais rápido. O que é que eu
achei de interessante? Uma mudança que aconteceu no mundo, a enorme onda
de colaboração de cientistas, globalmente, na construção do genoma do
SarsCov2, portanto os CDC’s, grandes CDC’s - Centers For Disease Control -
brasileiros, argentinos, cubanos, etc., participaram desse mapeamento genético.
Os CDC’s em África, na África do Sul, no Gabão, no Gana, etc., também
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M ARIA PAULA MENESES | ALESSANDRO TOMAZ BARBOSA | SUZANI CASSIANI
Cadernos CIMEAC – v. 11, n. 1, 2021. ISSN 2178-9770
UFTM | Uberaba – MG, Brasil
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