Diálogo de Saberes e Pedagogias Decoloniais

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Cadernos CIMEAC – v. 11, n. 1, 2021.

ISSN 2178-9770
UFTM | Uberaba – MG, Brasil

DOI: 10.18554/cimeac.v11i1.5565

DIÁLOGO DE SABERES E PEDAGOGIAS DECOLONIAIS


ENTREVISTA COM MARIA PAULA MENESES

Nossa entrevistada nesse dossiê, Maria Paula Meneses, nasceu em Maputo


(Moçambique). Atualmente é investigadora e coordenadora do Centro de
Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, integrando o núcleo de
estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe). É doutora em
Antropologia pela Universidade de Rutgers (EUA) e mestre em História pela
Universidade de São Petersburgo (Rússia). Em 2019 foi investigadora visitante
junto da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris.
Dentre os temas de investigação sobre os quais se debruça, destacam-se os
debates pós-coloniais em contexto africano, o pluralismo jurídico – com ênfase
para as relações entre o Estado e as “autoridades tradicionais” no contexto
africano – e o papel da história oficial, da(s) memória(s) e de “outras” narrativas
de pertença nos processos identitários contemporâneos. Seus trabalhos foram
publicados em diversos países, incluindo Moçambique, Espanha, Portugal,
Brasil, Senegal, Estados Unidos, Inglaterra, Argentina, Alemanha, Holanda e
Colômbia. Em co-autoria com Boaventura Sousa Santos, Meneses organizou a
obra Epistemologias do Sul. Nossa entrevista foi realizada no dia 29 de março
de 2021, de forma remota. Devido à riqueza da fala, decidimos publicá-la na
íntegra. Agradecemos ao precioso tempo da profa. Maria Paula Meneses e
desejamos uma excelente leitura. Entrevista realizada por Alessandro Tomaz
Barbosa (UFT) e Suzani Cassiani (UFSC).

***
Alessandro Tomaz Barbosa: Professora Maria Paula, é uma honra tê-la conosco.
Diante de um mundo marcado pela homogeneização e universalização de
modelos de currículos e conhecimentos produzidos em países do norte global,
eu gostaria que comentasse algumas possibilidades metodológicas que
apontem para o diálogo de saberes e a construção de pedagogias decoloniais.

Maria Paula Meneses: Essa questão, muito interessante, corresponde a um


grande desafio analítico. Talvez a primeira questão que eu colocasse é a
necessidade de compreendermos o que foi o exercício da violência colonial. E a
violência colonial moderna, ou seja, o que é que foi este exercício brutal de
exportação do modelo de funcionamento do estado europeu, aquilo que o
Edward Said chama de as pequenas europas. Exemplos dessas pequenas
europas estão hoje em Timor-Leste, Moçambique, Portugal e o Brasil, onde
temos tribunais que funcionam de maneira similar, escolas que funcionam mais

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ou menos da mesma maneira. Isto tudo são heranças de uma determinada forma
de pensar e conceber o mundo que é exportada para outros locais, sobretudo
para que os colonos que vão para esses locais, possam continuar a viver ai tal
como se vivia nas então metrópoles.
E é nesse sentido que há uma série de nós, que temos inclusivamente vindo a
discutir que as pessoas deixaram, mesmo quando se faz turismo, de viajar no
sentido amplo. As pessoas deslocam-se num mesmo espaço, o espaço de
conforto, o espaço de proximidade. Antes as pessoas viajavam e descobriam o
outro. Inclusivamente, quando nós olhamos para grande parte dos intelectuais
que fizeram parte da geração iluminista, quando eles vão à procura do Oriente,
por exemplo, eles vão à procura do outro, com quem eles querem dialogar. As
suas representações parte deste desejo de viajar, são, também, sobre os que os
diferencia, mas eles reconhecem que há um outro com quem vão falar. O que
acontece é que nos últimos 100, 150 anos não reconhecemos mais que este
outro existe e é portador de saberes válidos. Num segundo momento, se alguma
coisa está lá, vamos dizer que somos nós que descobrimos. Aí está a ‘síndrome
da descoberta’, como se as pessoas que estivessem desse outro lado, não
estivessem a funcionar com esses temas, experienciando como resolver esses
problemas há muitos mais anos e que não precisavam ser descobertas. É são
esses saberes silenciados, esses saberes que marcam as lutas do Sul global,
um Sul que reclama o reconhecimento de outros sujeitos, dotados de saberes,
que reclamam outro projeto político.
Eu creio que, nas nossas práticas educativas, do nível micro ao nível macro,
temos feito pouco trabalho em prol da descolonização das mentes e das
instituições. Estamos permeados destas intervenções colonizadoras, que
continuam a ser, de fato, instrumentos da nossa vivência, das práticas do dia a
dia. Portanto, desde logo, esta ideia de que há um sistema único de escolas e,
portanto, a criança pode transitar do Brasil para Moçambique ou para Timor,
porque o sistema educativo é igual. Isto é uma violência. Como é que o sistema
educativo é igual? Se as realidades, se os contextos são tão diferentes.
Eu lembro-me, no período colonial em Moçambique, como era absurda a
questão do sistema único. Nós tínhamos as férias de verão no inverno, que era
para ser de acordo com o tempo português, o tempo da metrópole. E tínhamos
férias em junho, julho e agosto, em plena época fria. É a época do ano que faz
20 graus, e não dava para ir à praia. E isto é exemplo mínimo desta violência
que hoje continua, porque não conseguimos muitas vezes dar-nos conta de que
quando nós queremos fazer as nossas crianças transitarem, viajarem, não é para
ir à procura do mesmo. Elas deviam ir para aprender o que é que o outro lado
tem, o que torna específica a identidade do Timor Leste e a identidade de
Moçambique, e não ir à procura do mesmo.
Agora ao nível da escola, das línguas. Quais as línguas que as nossas crianças
aprendem? Aprendem inglês, aprendem francês, português, espanhol, mas eu
já vejo muitos pais a levantar as sobrancelhas quando a escola propõe
mandarim. E são muito menos recetivos às propostas de ensino das línguas
locais, que são, nos nossos casos, no contexto africano e asiático, línguas
nacionais. E nos currículos que submetemos para candidatura a empregos, se
eu disser que falo uma língua indígena, provavelmente esse elemento não é visto
como uma mais-valia. É que qualquer língua é uma forma de conhecimento, de

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exportação de diálogo. Eu não sei... a professora Suzani tem muito mais


experiência que eu neste campo, deve ter esta experiência grande, desta
violência. Quando trabalhamos em Timor, ou noutros contextos, é uma questão
central da cidadania: como é que eu entro num tribunal, em que a língua oficial
do tribunal é o português, mas onde quer o juiz, quer era o procurador, quer
ainda as duas partes, não falam português? Isso tudo é kafkaniano, não faz
sentido. Faz sentido se aceitarmos que se trata de um projeto de justiça
moderna, imposta como a forma mais avançada de resolver conflitos. Será?
Creio que não.
E este é o tal problema da ideia de modernidade. A modernidade tem dois ou
três artifícios que estão mais ou menos bem identificados, mas que convém
recordar. Primeiro lugar, a Europa, que é um lugar de circulação de saber,
sobretudo a Europa do sul, não a Europa do norte. Dussel fala nisso, quando
fala na primeira modernidade. É uma Europa de circulação de conhecimento. E
quando falamos do Leo Africanus1, do Ibn Khaldoun2, de São Thomas de Aquino,
eles circulavam em vários lugares no Mediterrâneo e aprendiam em vários
lugares e ensinavam em vários lugares. Não era uma Europa como nós hoje a
conceituamos, nem sequer existia esta noção de Europa, era um espaço de
conhecimento.
O que é interessante é que no século XVI, XVII, com a ruptura com a igreja etc.,
começamos a ver uma região da Europa – a Europa do norte-, que era uma
região que não tinha sido palco de grande parte destes debates, a procurar
construir-se como um espaço com um saber distinto, sem reconhecer muitas
vezes que este conhecimento circulava, tinha várias origens. Assistimos a uma
apropriação de conhecimentos. É importante introduzir esta noção de
apropriação, porque é um problema... Se reconhecemos que circulamos com
conhecimentos, há que reconhecer que há um conhecimento-mundo. O
problema é quando o conhecimento é apropriado por um determinado setor do
mundo, por uma parte do mundo, pelo Atlântico Norte, como tem acontecido nos
últimos séculos. E este passa a dizer: este conhecimento é meu. E aí, começa a
violência da apropriação e da transformação do conhecimento em mercadoria.
E isto acontece com a Revolução Iluminista, quer dizer, este conhecimento é
nosso, do mundo, incluindo conhecimento que não é europeu. Por exemplo, as
constantes de Fermi3 têm raízes que não eram europeias, o mundo estava lá,
mas durante muito tempo a grande dificuldade era saber como é que o Fermi
tinha chegado aquele modelo. Andaram quase 100 anos à procura de como é
que aquilo tinha sido feito.
E de fato, o conhecimento não tem fronteiras, é como o Sars-CoV-2, o vírus que
está na origem da Covid. O conhecimento não tem passaporte. Eu não posso
dizer que o conhecimento é daqui ou dali. Boaventura de Sousa Santos tem
tratado este tema em detalhe, a partir das Epistemologias do Sul. Nós
construímos conhecimento refletindo uns com os outros. No entanto, de fato, a

1 Nascido no século XV é também conhecido como Giovan Lioni, um diplomata Berber Andaluz,
autor de Dela descrittione dell’Africa et dele cose notablo che ivi sono.
2 Nascido no século XIV era um árabe socilólogo, filósofo e historiador que é descrito com oum

fundador das disciplinas modernas como: historiagrafia, sociologia, economia e demografia.


3 Enrico Fermi propôs em 1933 o constante de Fermi (também chamada de Teoria de

Desintegração Beta de Fermi.

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ciência moderna, a sua racionalidade, é uma das formas fundamentais de


relação colonial-capitalista, porque é uma tentativa de apropriação do
conhecimento. E não deixamos às nossas crianças a liberdade para pensarem,
sobretudo na escola primária. Nós não ensinamos as nossas crianças a pensar,
a desenvolver um percurso criativo. É ao contrário, não queremos que pensem
por si mesmos.
Porque isto é um dos problemas nacionais, a ‘nacionalização’ do conhecimento.
Nenhum de nós diz às crianças que os números que usamos são números
árabes. E não dizemos que o zero não é um produto europeu, que há três
grandes civilizações no mundo: a Inca, a da Mesopotâmia e depois o caso dos
Moghul, na Índia, que têm o zero na sua essência, tanto o zero como o nada,
tanto o zero como acrescente de valor. Se formos por aí, nacionalizando o
conhecimento, podemos dizer com ar muito descontraído aos colegas europeus
com ironia: vocês fiquem com os numerais romanos, europeus, que são muito
úteis para as trocas comerciais no sistema capitalista, ou mesmo para as
linguagens dos computadores. A linguagem dos computadores, que é 010101,
não pode ser realizada com os números romanos que supostamente são os
números oriundos da Europa.
Assim, como nós explicamos que a forma de organização política que hoje
chamamos o Estado, não é uma invenção europeia. Quando estamos a dar à
história às crianças, dizemos que no Antigo Egito, o Estado Egípcio era a
instituição que regulava as cheias do Nilo, e os processos de irrigação. Como se
tudo acontecesse sem haver instituições de poder para regular o funcionamento
social. É óbvio que houve várias instituições de poder no passado, que houve
vários tipos de estado.
A grande questão, é que quando a colonização moderna acontece, a Europa é
declarada como um espaço civilizado, e por outro lado, as Américas são
declaradas em estado de barbárie, sem capacidade para se autogovernar.
Grosso modo é assim que se conceptualiza a necessidade de apoio europeu.
Isto ainda acontece hoje na cooperação internacional, com o apoio do Norte. E
não se tenta dialogar com o lugar; chega-se e diz-se: isto vai funcionar assim.
O que nós temos hoje é uma transição deste iluminismo que se apropriou de
uma série de conhecimentos. Ou seja, muito do conhecimento difundido como
iluminista não é europeu. É ai que está a minha diferença com certo
essencialismo, que alguns colegas do grupo decolonial dizem: porque o
conhecimento científico é europeu. Eu defendo que devemos analisar
criticamente a narrativa europeia sobre aquele conhecimento. E aquele
conhecimento é conhecimento-mundo.
Temos de assumir que a geometria é produzida e começa a ser reflexionada a
partir do antigo Egito. Não é um produto europeu do século XIV ou XV.
Poderíamos continuar, eu gosto muito de matemática, de física, etc. É muito
interessante agarrarmos nestes assuntos para vermos como é que acontece a
apropriação deste conhecimento, do conhecimento-mundo pelo conhecimento
europeu. Ou seja, como é que um conhecimento fruto de experiências em vários
contextos vai ser sistematizado através de opções metodológicas e teorizado em
função de uma certa visão do mundo, e é apresentado como ciência. Em suma,
a ciência é uma forma de racionalizar analiticamente que eu muito prezo. Mas
não é a única. E a ciência é a forma de interpretar o mundo válida para o norte

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global, que vai dizer: é o conhecimento mais avançado. Mas é um conhecimento


declarado como mais avançado pelo Norte, não foi por mais ninguém no mundo!
E aqui é que está a grande complexidade. Porque isto acontece nos últimos 150
a 300 anos, dependendo do contexto. Esta declaração de que nós somos os
mais avançados, este é o melhor conhecimento. E a partir daí começa tudo a ser
julgado em função da ciência. Mas a ciência, que é um conhecimento válido, não
é a única forma de experimentar e interpretar o mundo.
Por exemplo, agora estamos a discutir o confinamento, o uso de máscaras etc.,
mas estes saberes são anteriores à emergência da ciência, são desenvolvidos
por conhecimentos anteriores. A ciência é um projeto de interpretação do mundo
e validação de interpretações, sobretudo a partir do século XVII e XVIII. As
máscaras e o uso do confinamento, e da quarentena, é de 1.300 e tal. E grande
parte deste conhecimento acontece sobretudo naquilo que a antiga Iugoslávia,
na Sérvia. Mas nós nem sequer nos damos ao trabalho de procurar saber, dentro
da própria ciência, as origens destes outros conhecimentos agora validados pela
ciência. É uma apropriação, pela ciência, de outras formas de conhecimento.
Por exemplo, a ciência diz que faz experimentação, o conhecimento é baseado
em experimentação. Agora vocês vêm convencer a mim que um camponês não
faz experimentação com sementes? Ou que um médico, um Xamã também não
faz experimentação com os seus medicamentos para ver as quantidades? Claro
que faz. Portanto, a experiência não é algo que é único da ciência.
No entanto, nós ensinamos que na base do conhecimento científico está a
experimentação. É este nível de crítica quer interna da ciência sobre as suas
origens, quer da ciência com os outros conhecimentos, que eu creio que a nossa
escola vai ter de fazer, se nós queremos de fato ter uma escola que responda
ao contexto onde ela está inserida.
Estamos a falar, por exemplo, do problema de revoluções. Como é que eu vou
explicar a uma criança em Cuba, que a Revolução Cubana não teve um impacto
global? Teve um impacto tão grande que os Estados Unidos continuaram
boicotando Cuba, isto é, a maior dimensão do impacto global da Revolução
Cubana, é haver um boicote. Mas é por estar em um outro projeto político que
dá muita comichão aos Estados Unidos. Obviamente os políticos norte-
americanos não querem que aquilo vingue, e fazem tudo para que as propostas
cubanas não vinguem. Claro que há muitos problemas com o processo político
cubano, sem dúvida. Mas com um vizinho tão complicado como é os Estados
Unidos, o projeto democrático com eleições nunca poderia funcionar.
De fato, as eleições funcionam, quando existem condições para que elas
aconteçam, sem interferências externas. E o que nós vemos hoje, muitas vezes,
que é o nível da própria educação política, é a exportação de um determinado
modelo de democracia. O multipartidarismo é nos apresentado como o modelo
mais avançado de funcionamento democrático. Quer dizer, se eu hipotecar o
meu voto durante 5 anos a um certo governante, é a melhor forma de
participação política? Provavelmente não. É claro que nós temos aqui um
problema grande, que é o problema da escala. O Brasil tem uma experiência
excelente que é o orçamento participativo, mas funciona à escala da cidade, não
pode funcionar à escala nacional. Hoje a Covid vem mostrar mais uma vez a
importância e o problema dos grandes projetos políticos, como é o caso do
Brasil, de uma Índia, de uma China, não parecem fazer sentido. Quer dizer, são

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retalhos coloniais que nós vamos ter que pensar como gerir, porque de fato os
grandes problemas que temos são sobretudo em contextos urbanos que são
altamente difíceis de controlar quando há uma pandemia.
Se nós tivéssemos estudado bem a história, teríamos visto que sempre que há
pandemias, as pessoas fogem das cidades. Foi assim que Boccaccio, escreveu
o Decamerão, e o Ibn Kkaldoun cujos pais morreram de peste, e que também
teve que fugir, como refere no seu Muqaddimah.4 E, portanto, a história de vez
em quando dá uns sustões sobre o que está certo e o que está errado, e nós
deixamos de prestar atenção.
E eu creio que este é um dos impactos da queda do Muro de Berlim. Termos
implicitamente aceite que a história acabou e, consequentemente, deixámos de
olhar para o sul em busca de reflexões sobre como construir alternativas. Assim,
a queda do Muro de Berlim não é um problema da Europa, é um problema do
mundo, e nós assumimos que a história acabou. Um conclusão de uma certa
forma perversa, pois parece que não precisamos aprender mais, porque está
tudo feito. E não está. É neste contexto que eu vejo o grande problema da
colonização, a um nível tão profundo, que nós temos de voltar a este conceito.
Não é possível analisar o mundo de hoje, sem um conhecimento profundo do
impacto da herança colonial.
Temos que ter a coragem de perguntar: quando é que os Estados Unidos se
descolonizou? O que é que há a descolonizado nos Estados Unidos? Quando
começamos a colocar perguntas aparentemente simples, como fazem as
crianças, as respostas que começamos a ter mostram-nos o mundo com outros
contornos. De fato, os Estados Unidos continuam a ser aquele país, na essência,
que é a continuação do projeto colonial. O Estado Mínimo é a proposta de
explorar economicamente ao máximo um território. É um estado que não quer
ter responsabilidade em relação a ninguém, porque a população que está lá, está
lá para garantir a exploração econômica daquele território e nada mais. Na sua
larga maioria são sub-humanos, como destaca Fanon, que não ‘merecem’
atenção por parte do Estado. É este modelo que queremos, um modelo que
explora ao limite as pessoas e a natureza? E importa colocar esta pergunta para
trás. Por que é que há este modelo de estado, nos Estados Unidos, e por que é
que ele foi implementado e continua como referência? Para mim, a partir de uma
perspectiva de economia política, assistimos à continuação do modelo das
grandes companhias, constituídas para levar a cabo a exploração econômica.
Na visão destas companhias, as pessoas que habitam esses territórios, os ‘sub-
humanos’, podem ser substituídas. Haverá, supostamente, sempre onde ir
buscar mais mão de obra, recorrendo, inclusive, à migração. Se colocarmos a
questão ao contrário, por exemplo, a partir do sul global – e há teorização muito
boa no Sul – teremos um olhar ao espelho para o norte. A questão colonial não
aconteceu apenas à Sul. O Sul foi um laboratório, e as ondas deste processo
estão a chegar agora ao norte.
Por exemplo, no caso do Timor-Leste, há uma inovação que para mim é
fabulosa, que é o problema da história oral para fazer o presente e o passado do
Timor-Leste. Como há muita gente que esteve envolvida nos dois momentos, no
momento da resistência à presença colonial de Portugal e na resistência à
4Livro escrito por Ibn Khaldoun em finais do séc. XIV, registando uma interpretação da época da
história universal.

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Indonésia, “O chega!”, o centro Nacional Chega e outros semelhantes


recolheram narrativas históricas, memórias de luta, sistematizam-nas e usam-
nas agora nas escolas para que as crianças, de fato, não se esqueçam deste
passado presente. De outra forma teremos uma história única. Provavelmente
estou a ser radical na minha análise, porque não tenho muita paciência para
continuar a assistir a interpretações analiticamente pouco sofisticadas sobre a
questão colonial.
A questão colonial é muito perversa, sobretudo quando se trata da apropriação
do conhecimento. Você repare, foi o Brasil e Timor que me explicaram a
dimensão da violência colonial. Quando estamos na nossa terra, no nosso país,
temos dificuldade em analisá-la, porque é sempre o nosso lugar de grande
paixão. Para mim não é fácil criticar o meu país, Moçambique. Foi no Brasil onde,
pela primeira vez comecei a perceber a dimensão do problema: por que as
populações indígenas falam de território e a Constituição brasileira fala de terra?
Porque o território é a identidade, são os conhecimentos, são os espíritos, são
os antepassados, é tudo. O território é o que nos faz pertencer àquele lugar. E é
muito estranho termos uma Constituição a falar de terra e os outros falam
território. Identifica-se uma dissonância cognitiva óbvia nesse processo. Em
Timor há um processo semelhante, há uma diferença conceptual entre o território
e a terra. A terra é propriedade privada, a terra não tem valor intrínseco, o que
tem valor é o que vale para o mercado, as árvores ou os recursos do sub-solo.
A história não vale nada, os antepassados não valem nada, a nossa identidade
não vale nada. Por quê? A ideia capitalista colonial é que se pode ocupar um
território, explorá-lo e, depois, passar a outro. O modelo norte-americano é, de
fato, na sua essência o modelo colonial que permanece até hoje. Na minha
versão, um Estado falhado, é um Estado que não se preocupa com as pessoas,
preocupa-se com as finanças, com a economia. E defende acerrimamente a
noção de propriedade, porque a terra pode ser privatizada. Mas um território não
se pode privatizar. Como é que eu vou privatizar uma coisa a qual eu pertenço?
Não faz sentido. São questões profundas, pois os territórios somos nós, não
podem ser propriedade de um punhado de pessoas.
Há alguns anos, vocês devem ter sabido do debate, uma das líderes do partido
político sul-africano Democratic Allience defendeu publicamente que havia um
lado bom no colonialismo, a partir da sua análise do progresso de Singapura,
nomeadamente um judiciário independente, infraestruturas de transporte, água
encanada, etc. Muitos sul-africanos ficaram profundamente revoltados e
perguntaram sobre quantos corpos havia sido feita essa intervenção colonial-
capitalista. Ou seja, temos que discutir o que é a violência colonial, essa negação
do outro, corpos sem direitos, corpos cujos saberes não são reconhecidos, e por
isso não são parte do ‘mundo desenvolvido’. Isto leva-nos à necessidade de um
debate mais amplo: o mundo que habitamos não é apenas interpretado pela
ciência; o mundo é feito de províncias epistêmicas. E eu creio que o grande
impulso a esta reflexão veio, sobretudo, da Ásia, depois do continente africano
e, agora temos as reflexões no continente americano. Não sei quando é que ela
chegará em pleno à Europa. Quando vamos à China, ao Vietnã, à Malásia, há
vários sistemas médicos. E antes de irmos ao médico perguntam-nos a qual
sistema se quer ir? Quer ir ao biomédico? Quer ir ao médico Ayurveda? São
situações normais de coexistência.

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Agora onde os contextos atuais apresentam uma forte presença de


descendentes de imigrantes de origem europeia a situação é mais complicada.
Em contextos urbanos, sobretudo, continua-se a ter a presença de ‘pequenas
Europas’ a funcionar, modelos de exportação europeu. Identificamos o correio,
o hospital, a escola. Mas é difícil ver que a algumas quadras dali há um outro
espaço numa favela que também educa, mas não é uma escola. Como dizia no
início, andamos à procura do mesmo. Deixamos de ser capazes de dialogar com
a diferença de forma tendencialmente horizontal. Estamos a ser reeducados
para pensar que só há um modelo e andamos sempre em busca desse modelo,
dessa referência. O que está fora desse modelo ou é para deixar de lado ou,
então, para transformar esses conhecimentos em dados que a ciência irá
processar e validar. E deixamos de conseguir olhar para o outro e aprender com
o outro, nem que seja, às vezes, em discordância profunda, mas tentar perceber
com eles. Para mim é isso que, como humanos, nos caracteriza.
Platão, nos seus diálogos, espelha não apenas debates de conteúdo importante,
como forma de produzir conhecimento em diálogo, onde participam várias
personagens, discordando frequentemente. Hoje este exercício de libertar a
capacidade de cada um e de cada uma está muito cerceado. Creio que os
programas escolares monoculturais e uniformizantes, burocratizam a educação.
A escola opera sobretudo através de uma prática burocrática e não de uma
prática criativa. Se Paulo Freire estivesse hoje vivo, já teria morrido outra vez
com o choque.

Suzani Cassiani: Então, posso fazer uma pergunta que me surgiu agora? Bom,
nosso grupo está trabalhando muito com essas questões do colonialismo, da
colonialidade, dos estudos decoloniais. E nós percebemos que eles são muito
potentes para os professores, para a área de educação e para outras áreas
também, para nos percebermos hierarquizados e compreendermos esses
processos históricos que passamos e que a gente vive ainda em função desse
colonialismo, que não acabou ainda. Então, sobre as contradições da Teoria
Decolonial, você gostaria de apontar algumas dessas contradições? Porque
apesar de ser uma ferramenta, uma teoria muito potente, a gente percebe que,
muitas vezes, as pessoas usam como uma moda, sem aprofundamentos. E
também as contradições que têm, nos cânones da decolonialidade. E, enfim,
pensar esses limites da teoria e as possibilidades também para a gente avançar,
tanto na educação, quanto nas pesquisas. Porque a gente percebe também que
as pesquisas acabam copiando modelos da Europa, dos Estados Unidos, sem
pensar nos problemas locais, nos problemas que são nossos, da América Latina.
E aí a gente tem, então, um desvio dos resultados para problemas que não são
nossos. Ou seja, a gente conversar um pouco sobre essas contradições e tentar
apontar avanços. Nós temos tentado trazer autores africanos, asiáticos, latino-
americanos, mas a gente sabe que tem muito mais coisa ainda para fazer e para
pensar. Acho que é um pouco isso. Você falou da decolonialidade que foca muito
na questão do racismo, não é? E que isso é um problema, é um limite, não é?
Porque...

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Maria Paula Meneses: Eu não diria que é um limite, é uma teorização que
responde alguns dos problemas das Américas. Ou seja, responde a um dos
grandes elementos que vai marcar o processo colonial nas Américas, a
descriminação etno-racial, sistémica, do outro. Mas não explica o impacto das
relações coloniais, da colonização no resto do mundo. Pensar o Sul, que tem
sido objeto de epistemicídios, linguicídios, genocídios, em contextos específicos,
requer um cuidado especial. A questão colonial, apesar de ser um projeto que
emerge, no colonialismo moderno, sobretudo, com aas potências da Europa,
tem especificidades próprias, em função dos contextos onde esta relação de
violência ontológica, epistémica e política aconteceu. E estas diferenças vão
marcar também as opções pela descolonização. Eu vejo as reflexões sobre a
colonialidade como parte de um amplo grupo de reflexões críticas sobre a
questão colonial; tentar simplificar ou resumir histórias complexas não ajuda à
reflexão sobre o impacto presente da violência colonial.
Para compreender a questão colonial moderna temos que levantar também, a
colonização dentro da Europa. E aqui há que compreender que a ideia de Europa
é relativamente recente, é um projeto com dois ou três séculos. É, sobretudo,
forjada na segunda modernidade. E, portanto, quando o colonialismo é visto a
partir do ângulo racial, não estamos talvez a ter em atenção situações coloniais
de europeus sobre europeus. O Code Noir de Louis XIV discrimina
religiosamente os judeus, que são declarados sub-humanos, tal como os negros.
Portanto, ao longo da história, quem é o outro sub-humano vai sendo alterado.
Aqui é importante a análise crítica da História, que é a forma de reivindicarmos
a nossa presença e contribuição ao conhecimento-mundo. Esta dimensão é
fundamental, para ampliar os diálogos a Sul, para perceber o que nós,
Continente Africano, produzimos como conhecimento e que nos tem sido
roubado, para dizer: o conhecimento-mundo também é nosso! Agora, que haja
lá uns tios e umas tias que resolveram que aquilo era deles, é um problema
deles. Jack Goody chama a esse processo de destituição epistémica o Roubo
da História. E é preciso analisar como se processou e processa ainda este
exercício do roubo da História. Por exemplo, entre a administração Inca, o quipu
era um instrumento usado quer para o registro de dados, quer para a
comunicação. Em suma, um sistema altamente sofisticado de controle
burocrático, fundamental ao funcionamento da administração deste estado.
Estamos a falar de um momento em que os incas sabiam melhor o que é que
havia naquele território do que os espanhóis que estavam a chegar, com os seus
livros e sistemas de contabilidade. Portanto, eu não vou dizer que não era porque
eles não tinham a escrita gráfica que nós usamos hoje que eles não tinham uma
forma de registrar o conhecimento. Tinham. E, hoje, esse tipo de conhecimento
está a ser resgatado. Este exemplo mostra-nos que nós não podemos ter uma
escola centrada em uma forma de escrever única, sobretudo, com o alfabeto,
que, hoje, se chama o alfabeto dito europeu. Não nos podemos esquecer que o
mundo guarda memória de outros saberes, desafiando os esquecimentos,
silenciamentos e epistemicidios, como Boaventura de Sousa Santos destaca.
Por exemplo, o colonialismo português, chega ao sub-continente africano - e o
colonialismo português é, sobretudo, o colonialismo moderno – na segunda
metade do século XIX. Quando acontecem as independências africanas, na
década de 1960-1970, ainda havia gente viva que se lembrava do tempo anterior

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ao colonialismo moderno. E estes relatos, e os conhecimentos guardados


resultaram em processos distintos de descolonização.
Mas o que é que Portugal vai dizer? Que vem para o contexto africano, em nome
da fé e do Império. Agora, a parte que é interessante é que o Império de Axum,
que é hoje parte da Etiópia, no século V tem já o cristianismo como religião de
Estado [antes da invasão europeia]. Ou seja, esta história oficial, que se ensina
nas escolas, precisa de ser revistas. Ao mesmo tempo, isto mostra-nos que o
Cristianismo é, também, uma religião endógena do continente africano. E isto é
muito complicado explicar a um europeu que acha que o cristianismo é uma
religião sua, e que, de fato, não é.
O Cristianismo Copta é um Cristianismo que está na região da África Oriental e
do norte, e que está também em algumas regiões da Ásia. O problema reside na
transformação de uma situação, de uma explicação, num projeto universal, com
carácter prescritivo. A grande questão colonial aqui é a suspensão dos
conhecimentos e das instituições dos outros, as quais são permanentemente
apresentadas como sendo apenas de valor local e símbolo do passado, para
serem substituídas pelas referências e instituições modernas.
É muito importante falar sobre estes detalhes. Como abrir a escola a esta
diversidade de saber. Por que é que eu só posso ser letrada se souber escrever
uma língua europeia? Por que é que eu não posso escrever em árabe? Por que
é que eu não posso usar o quipu do Império Inca? São exemplos da presença
tão violenta de um determinado pensamento único sobre que conhecimento é
valido. E quando singularizamos o saber, estamos a apagar a diversidade que
nos caracteriza, o que é terrível. Reparem que este processoe está a acontecer
numa época em que a internet está em todo o lado, quando vários colegas
defendem que a internet democratiza o conhecimento. Não democratiza nada,
nós continuamos a usar as línguas dominantes, e a apostar na escrita. Só algum
conhecimento continua a circular como ‘universal’. Eu defendo que é muito
importante expormos as nossas crianças a esta diversidade, porque elas, de
fato, de uma forma um bocadinho complicada, circulam entre vários universos
do conhecimento. Que é o universo da família, o universo dos amigos. E nestes
vários universos, elas absorvem muita coisa. E a escola moderna normalmente
não cria espaços para que estes saberes plurais circulem e as crianças possam,
desde cedo, aprender a circular e a reconhecer a diversidade a partir de critérios
tendencialmente equitativos.
Por exemplo, o meu neto, há uns tempos teve de fazer uma apresentação sobre
os heróis. Acontece que no lado da família do pai, a avó dele foi guerrilheira.
Claro que hoje é avó, mas na juventude, a avó participou da luta pela
independência de Moçambique. Porque é um bocadinho difícil para dele
escrever sozinho sobre a avó, eu sugeri-lhe que lhe fizesse uma entrevista. Ele
fez e foi para a escola todo orgulhoso. Mas para a professora, e de acordo com
o manual, herói em Moçambique só há um, que é o Presidente Samora Machel.
Isto é uma forma violentíssima de cercear a pesquisa e o orgulho que este miúdo
tem na história da sua família, na construção do país. E todos nós construímos
com qualquer coisa e devemos ampliar esta co-construção de saberes desde a
escola.
Nós, em Moçambique, tentamos fazer um processo que apesar de não está a
correr muito bem, do ponto de vista teórico é importante: 30% do tempo de

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lecionação tem que ser sobre conteúdos locais. Por exemplo, transplantando a
ideia para o Brasil, um professor no nordeste brasileiro tem que ensinar coisas
que fazem sentido para o nordeste brasileiro. Não pode estar a falar de uvas e
de pêssegos, ou de neve, porque a probabilidade de na zona da Amazônia haver
neve, eu acho que é 0,001%. Eu não estou a dizer que as crianças não precisem
saber que lá em um outro sítio onde há neve, mas é preciso que a gente conheça
o que é que está ali e como é que isto é feito, como é que este conhecimento se
passa. E que este conhecimento, diverso, faz o Brasil todo ser o que é.
O Japão tem um processo que ando a seguir, sobre o que guardamos, e como
guardamos factos importantes da memória comunitária. Em vários lugares,
sempre que há tsunamis, erguem estelas de pedra onde escrevem a data e o
impacto da onda no local. A mensagem é: não deve construir daqui para baixo,
porque isto é zona potencialmente afetada por tsunamis no futuro. E as escolas
visitam estas estelas para conhecer o impacto do que é um tsunami. O tsunami
não é uma representação geográfica; o tsunami é algo que eles veem e que
ouvem os mais velhos a falar. Isto nós não fazemos, a escola é o professor e é
o programa único. A proposta do conteúdo local não é só uma questão de
história, é uma questão de tentar entender as plantas, por exemplo. Para que
servem? Como é que é feita a sistemática daquelas plantas, sem ser a
sistemática de Lineu? O que é que os xamãs e os agricultores conhecem dos
usos destas plantas? Como é que se analisam os solos? Como é que os
camponeses sabem que aquele solo serve para plantar determinadas plantas e
não outras? Para mim, a escola deve cria nestas pessoas mais jovens o prazer
de investigar, de querer saber mais e de procurar fazer avançar o conhecimento,
sobre si e sobre o país e para o mundo. De outra forma, o se está a fazer é
reduzi-los a pequenas máquinas reprodutoras de conhecimento e não
produtoras de conhecimento. Há várias possibilidades para descolonizar a nossa
escola, temos é de ensinar os professores, como é que isto se faz com pequenos
gestos.
Por exemplo, eu lembro uma vez de estar em uma praia do nordeste do Brasil a
falar com crianças na praia e perguntar: Então, o teu pai faz o quê? É pescador?
E também que escola que tu está? E vi um deles que estava no nono ano, com
um problema de física, que ele dizia que tinha grande dificuldade. Estivemos a
discutir o que é que era o barco à vela, o que era a energia eólica, energia
motora. No final o menino olhava para mim e dizia: mas isso, afinal, é fácil. Eu
disse: claro. O problema é tu pores a cabeça a perceber que aquilo que o teu
professor está a dizer tem implicação na vida do teu pai. Quando o teu pai lança
a vela, ele transforma a energia eólica em energia motora. Então, o meu pai é
físico? Chama do que tu quiseres respondi-lhe. Tu dizias que o teu pai era
pescador, agora, se quiseres podes dizer que o teu pai é um físico pescador.
Mas é esta segurança deles terem orgulho naquilo que é o seu pequeno
contributo a um conhecimento muito maior e não limitá-los nem terem vergonha
de quem são. Quer dizer, se uma mãe vende marisco, claro que a senhora tem
um saber imenso de ecossistema. É muito interessante perguntar a uma criança:
então, olha lá, vocês vão lá fazer uma visita, se puderem ir com a tua mãe
apanhar marisco na praia para percebermos como é que ela conhece o
ecossistema. Quais os mariscos nas várias épocas do ano? Onde é que estão?
A que horas? Como é que se tira? Etc. E é isto que eu ando a fazer, a

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experiênciar o mundo que nos rodeia, com perguntas que fazemos um ao outro,
eu e o meu neto. É este o questionamento permanente que eu trago dentro de
mim, e que já vem de toda uma família e de toda uma comunidade, de todo um
grupo. E não é só em Moçambique. Acontece aqui no Brasil também, isto tudo
faz o Brasil a andar, porque esta gente toda tem um conhecimento enorme.
Muitas vezes nós nos apropriamos de uma forma muito violenta destes
conhecimentos, transformamo-os em dados e, depois, escrevemos artigos
‘limpos’ para as revistas da especialidade. Porque as revistas querem um
conhecimento muito escalpelizado, muito sistematizado, que seja científico. Mas
como fazer com que este conhecimento faça sentido para todos, mesmo para
uma criança?
Eu venho de um contexto de cultura oral, que é o contexto em Moçambique, é
muito parecido ao contexto de Timor-Leste. E que eu creio que vocês, no Brasil,
também têm muito a cultura oral. A cultura oral é circular; um começa a falar,
depois, fala o outro, fala o outro, fala o outro, fala o outro. E podemos começar
a falar sobre as estrelas e acabamos a falar do cachorro do vizinho que, afinal,
estava doente. Porque a conversa flui, não é controlada. Mas na escola, nós
ensinamos as crianças a fazer redação. A redação é um microprojeto: tem
objetivo, o desenvolvimento e a conclusão. E a redação não dialoga com os
colegas da sala, não está aberta ao debate, à conversa, à coprodução do
conhecimento. Nós fazemos pequenos indivíduos na escola e eu acho que isso
não devia ser assim. E eu creio que o grande problema que nós temos com a
burocracia e os sistemas é que passamos a ter indivíduos e eu não gosto de
indivíduos, eu gosto de pessoas. Porque a pessoa pensa, reage, tem uma
história, que tem um lugar de que vai deixar. E nós precisamos conhecer
pessoas e não indivíduos. Indivíduo é um número. Não sei, Profa. Suzani, se eu
respondi à sua pergunta.

Suzani Cassiani: Maravilha. Nossa! Muito obrigada. Acho que você tratou de
muitas coisas que a gente estava querendo ouvir mesmo, muito legal, Maria
Paula. Maravilhoso! É uma riqueza também para pensar a educação em ciências
e tantas outras coisas.

Maria Paula Meneses: Tem razão, profa. Suzani, porque às vezes, não
prestamos atenção ao que acontece à nossa volta. Uma vez eu estava no norte
de Moçambique, numa expedição geológica. Trata-se de uma região muito
antiga da terra, parte do Cratão ou escudo africano. Nessa zona, que apresenta
várias fraturas, por ser uma região de instabilidade sísmica, por vezes quase se
tem um pé no cretáceo e o outro pé está no quaternário. Tem estas diferenças
fabulosas. Eu andava lá a trabalhar com colegas da geologia que procuravam
identificar onde existiria carvão mineral. Eu, na altura, estava a fazer pesquisa
com eles, mais da parte mais social. E não havia meio de conseguirmos
identificar os locais, apesar de referências anteriores citarem afloramentos de
carvão mineral. Numa conversa com pessoas locais, perguntámos a uma
senhora, que estava a preparar o jantar, onde iam buscar carvão. E respondeu-
nos que era ali, na comunidade, no sítio onde estávamos. Só depois
compreendemos o que ela nos estava a chamar a atenção. Ela respondeu-nos,

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na língua da região, que aquele sítio onde estávamos era o sítio do carvão. Ou
seja, nós estávamos em cima do território do carvão fossilizado. Como na altura
ainda não havia GPS, e não tínhamos trabalhado com essas pessoas da
comunidade, e tínhamos privilegiado os mapas geológicos, obviamente não
estávamos a perceber muito bem onde estávamos. No dia seguinte começaram
a cavar trincheiras e aí a cinco metros de profundidade já tínhamos carvão. Mas
o problema é que a gente, às vezes, não pergunta às pessoas, acha que eles
não sabem. É um ato de arrogância científica. E as pessoas dessa comunidade
deram-nos uma lição, quando nos disseram ‘está aqui o carvão’. Porque era a
expressão que eles diziam: nós somos do território do carvão. A nossa
ignorância da língua, a opção inicial em não fazer pesquisa com a comunidade
envolvida, explicaram o nosso problema. Às vezes é uma questão de
aprendermos uns dos outros... Falávamos todos do carvão, só que ninguém do
grupo falava a língua da região e nós não explicámos de início o que estávamos
lá a fazer. Era como fôssemos, apesar de sermos todos teoricamente de
Moçambique, uns eram da universidade e os outros eram povo. Não. Aquilo foi
uma coprodução, a identificação do carvão fóssil e, naquela altura, foi conjunta.
Foi mais deles do que nossa, porque eles já sabiam que havia lá carvão, nós é
que descobrimos, naquela altura, que havia lá carvão.

Alessandro Tomaz Barbosa: Eu queria aproveitar mais um pouco do nosso


tempo para levantar uma questão. Na América Latina, recentemente políticas
educacionais neoliberais, planejadas e executadas por governos de direita e
extrema direita, têm avançado e ocasionado uma série de implicações para as
cooperações educacionais Sul-Sul. Diante desse contexto, relembrando uma
conversa que tivemos no Brasil, há quase quatro anos atrás, a senhora
comentou sobre uma visita ao Brasil na gestão do Fernando Henrique Cardoso
(FHC), relatando brevemente uma experiência relacionada a um sistema de
cooperação que tinha como base, o norte global. Então, como a senhora avalia
a construção e a execução de projetos de cooperação internacional nessa
conjuntura política? Gostaria que comentasse sobre isso, apontando quais as
consequências desse tipo de cooperação.

Maria Paula Meneses: Quer dizer, eu tenho muitos problemas com cooperação.
Estive a ler um dos últimos relatórios do PNUD (Nações Unidas para o
Desenvolvimento) que é sobre o antropoceno e as novas fronteiras. Pois no
relatório nem o Sumac Kawsay, nem o Swadeshi ou o Ubuntu são alternativas
para repensar a relação sociedade-natureza, lá citadas. É brevemente
apresentado o exemplo de uma relação de proximidade da Nova Zelândia, sem
dúvida. A Nova Zelândia, neste momento, já permite que florestas, rios e etc.
sejam sujeitos de direito. Mas quando chegamos a uma escala maior e saímos
para questões a nível continental, o relatório não trata. Por quê? Porque há uma
ideia de que há um conhecimento produzido em uma determinada região e este
é o bom conhecimento e vai ser exportado através do mecanismo da
cooperação. Que não é, de fato, um grande mecanismo de cooperação. E eu
venho ainda da tradição de que há uma cooperação, a solidariedade, eu diria
que a solidariedade é aquilo que marca uma relação entre iguais, uma relação

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entre pessoas que estão interessadas, de fato, em transformar o mundo. Quando


entram políticas de Estado (e como nós estávamos aqui a falar, os nossos
Estados são todos herdeiros de uma matriz colonial), o que as políticas de
cooperação querem é o próximo igual, de novo. E as especificidades outras
desaparecem. E se houvesse, de fato, uma cooperação desinteressada nem
sequer era preciso referir a cooperação. Vejam que nestes projetos de
cooperação está lá o carimbo de que é o apoio da Itália, é o apoio de Portugal,
é o apoio do Brasil. Moçambique, o meu país, tornou-se independente em 1975.
Porque a independência foi fruto de uma luta armada, os portugueses que
estavam em Moçambique, ao contrário, por exemplo, do que aconteceu no
Brasil, saíram de Moçambique a curto prazo. Ao todos, saem 200 mil
portugueses, em três anos, que correspondia, sobretudo, à estrutura burocrática
do Estado. Quase não ficaram médicos, quase não ficam professores, etc. Eu
própria fui dar aulas, eu andava na nona classe, ia dar aulas à sexta classe.
Porque era preciso, durante dois ou três anos, ajudar a governar o país. E há um
projeto muito interessante, muito solidário, de apoio a Moçambique, por parte de
exilados políticos latino-americanos. Solidariamente, vários brasileiros, chilenos,
argentinos vieram trabalhar para Moçambique. E ensinavam-nos, em primeiro
lugar, que a luta continuava no mundo para mudar o mundo, que havia grandes
opções ainda no mundo. Mas que, ao mesmo tempo, estavam, de fato,
sinceramente envolvidos na busca de um outro projeto político, estavam lá a
trabalhar conosco, a ganhar salários iguais aos nossos, sem grandes proteções,
não tinham proteção dos respectivos governos. Eu lembro de uma colega
chilena, que teve um grande problema. Para ela, e os pais, renovarem o
passaporte tinham de ir à África do Sul. E creio que o pai era do Partido
Comunista Chileno. Obviamente se ele fosse à África do Sul, do apartheid, ia ser
preso. E assim a solução foi dar-lhe a ela, e à família, durante algum tempo,
cidadania moçambicana. Foi a forma que se arranjou para aquela família, e
presumo que muitas outras, continuarem a ter documentos. Mas à medida que
as transições começaram a acontecer no Brasil e etc., foram regressando aos
seus países. Creio que nós, Moçambique, nunca prestamos o respeito que se
lhes deve a estes colegas que solidariamente se envolveram na reconstrução do
projeto educativo em Moçambique e em Angola, sobretudo, porque eles vieram
trabalhar conosco. Não vieram só eles, vieram também colegas da Suécia, e de
Itália, e etc. Mas quando começou a cooperação, nós inclusivamente na altura
tínhamos um comentário jocoso, que chamávamos a região onde ficavam os
cooperantes de Cooperantustão, porque era uma zona separada, uma onde
habitavam os que vinham através da cooperação. E, portanto, eram cooperantes
da República Democrática Alemã, da União Soviética, da Suécia e etc., mas eles
viviam ali naquela zona e nós vivíamos nas outras zonas da cidade. Havia uma
série de demarcações que se sentiam, uma espécie de micro apartheid. Agora,
com estes colegas que solidariamente trabalharam conosco foi um processo
diferente. Eu quando estive no Brasil, por acaso, soube de um antigo professor
meu de Química, que foi um professor do ensino secundário, e, depois, muito
mais tarde, eu soube que ele era casado com uma das filhas do [Luis Carlos]
Prestes. Mas só muito mais tarde é que eu soube, porque ele estava mais ou
menos clandestino em Moçambique. Foi um professor importante para nós, mas
ele era um professor igual a outro qualquer que estava lá. Havia um grupo

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cultural brasileiro superinteressante. O Professor Massena, o meu professor de


Química, não falava só de Química, mas também do problema da América
Latina. Eram aulas de educação política, no bom sentido. Estas ações, para mim,
sinalizavam a demarcação, entre quem vinha com a agenda para ajudar a fazer
um país, e quem vinha como podia ter ido para qualquer outro lugar. E eu acho
que é isso que marca uma cooperação com êxito, é quando se deixa uma marca,
como é que eu sou capaz, ainda hoje, de me lembrar desses professores. E
foram vários os professores que nos marcaram: professores do Vietnã, da Guiné-
Conacri, da Tanzânia, do Chile, de Portugal, que estavam ali a trabalhar. No
início da década de 1980, nós éramos 300 no país inteiro, numa só escola a
terminar o ensino secundário. Trabalhávamos todos juntos e tínhamos o apoio
desses professores todos. Foi um momento superinteressante, eu não posso
queixar, porque tivemos uma grande capacidade de compreender outras coisas.
Este processo marcou-me muito como prática pedagógica. Ainda hoje, eu sou
capaz de numa aula, se há um assunto importante, começar a aula a discutir
esse assunto, para depois, chegar ao tema da aula. Porque, eu não posso
começar uma aula dissociando a minha pessoa e o meu interesse em
transformar o mundo a falar só de Física ou Química. Não! É preciso explicar por
que é que Física, Química, Matemática movem o mundo, mas movem,
sobretudo, a nossa cabeça e a nossa forma de querer modificar o mundo.
Portanto, quando nós tiramos as pessoas da narrativa fica com a cooperação e
a cooperação são políticas de Estado, não têm rosto. Infelizmente o que
predomina agora são política do Estado, e não o interesse pelas pessoas. E eu
creio que se nós queremos fazer um sul, é um sul com pessoas e para pessoas
e não Estados sobre Estados. E que isso é uma dimensão muito marcada por
determinadas referências que não são próximas, muitas vezes. Não sei, a Suzani
teve em Timor e a dificuldade que é, quer dizer, há um projeto de apoio ao Timor
que é desenhado no Brasil, para ser aplicado em Timor. Não se faz com os
timorenses, não se ouvem os timorenses. Aprender vai além da disciplina. Na
primeira vez que eu fui à Argentina, alguém me disse: ah, porque tu ainda não
sabes, da repressão, do Presidente Vilela… e eu respondi: Vilela al paredon,
porque eu aprendi com os nossos colegas argentinos sobre a ditadura. Tivemos
colegas de turma que eram refugiados isso levou-nos, em jovens, a desenvolver
uma capacidade de entender que as pessoas que estão na sala de aula têm uma
história, têm um conhecimento e uma experiência que nós temos de aprender
também. E eu creio que vocês têm uma iniciativa, no Brasil, muito bonita, que
são as rodas de conhecimento. Mas que nós só exploramos no fim, quando já
somos adultos. Na escola não colocamos as crianças a falar umas com as outras
assim: porquê é que tu pensas assim sobre este assunto? Ou que brincadeiras,
por exemplo, com o teu grupo, na tua comunidade, a tua avó fazia ou o teu avô
fazia. E a gente, desta forma, consegue por as crianças a discutir coisas
diferentes sem ser os jogos de computador, que nos bloqueiam a capacidade de
pensar com os outros. Voltando à cooperação, eu vejo, muitas vezes, a
cooperação um bocadinho como jogos de computador, quer dizer, tá ali o modelo
e a gente só pode jogar com aquilo. E quando queremos quebrar esta lógica, é
difícil. Por exemplo, isto que nós estamos aqui a falar, a experiência de Timor
Leste, sobre a abertura da memória para fazer a história presente de Timor, é
uma lição seja para Moçambique, seja para o Brasil. Nós, no Brasil, não falamos

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do que é que foi a Ditadura. Há crianças de 15, 16 anos, não tem a mínima ideia
do que é que foi a Ditadura. E é, pois, para essas pessoas é fácil dizer agarrar a
narrativa dominante que antigamente estava tudo bom. A questão é esta, que a
gente deve pôr a história a ser contada por quem a viveu num passado ainda
presente. E estas narrativas todas é aquilo que nos faz todos e todas pertencer
a um projeto maior. Porque, neste caso, como eu estou a dizer, estes colegas
da América Latina, vários do continente africano, asiático e europeu, foram
aqueles que nos fizeram pessoas, talvez, com esta cabeça um bocado
desarrumada que é a minha, mas que é uma desarrumação boa.

Suzani Cassiani: O trabalho do Alessandro foi muito interessante, porque ele foi
como cooperante do Timor e ficou vários meses, trabalhando as questões do
currículo. Além da denúncia observada nos livros didáticos e documentos
curriculares transnacionais, ele também trouxe anúncios, como diria o Paulo
Freire, pensando em uma antropofagia curricular decolonial, trabalhando com
(e não para) os professores timorenses o círculo de cultura e leitura, com as
análises dos livros realizadas pelos próprios professores, bem interessante.
Acho que é assim um pouco trabalhar nesse sentido aí que você está falando,
acho que a gente, às vezes, consegue.

Maria Paula Meneses: É muito importante. Eu acho que se consegue, o


problema é a gente não reportar isso aos superiores. Foi das poucas coisas que
eu aprendi que a gente pode fazer experiências, mas até elas se consolidarem,
não podemos fazer muito ruído à volta. E eu gosto de ir fazendo as coisas
devagarinho para consolidar os projetos e transformá-los em plataformas de
ação, que continuam para lá de nós.
Eu continuo com muita fé no Brasil, porque as mudanças que acontecem no
Brasil são tão profundas, que não se pode voltar atrás. Creio que estamos num
interregno, mas não é possível voltar atrás, não é. Hoje vemos que as pessoas
pensam a sério o que se passa no Brasil. E isso é a maior riqueza de um país, é
ter pessoas que pensam. Portanto, não é possível voltar atrás. Vocês têm muita
força dentro de vocês. O problema, agora, é pôr tudo a pensar junto. Por vezes
há acidentes de percurso na escolha dos líderes, como o momento que o Brasil
conhece, imagem que encontramos repetidamente na História. Mas o que eu
gostava de dizer era que o problema não é ele, o problema é quem o pôs lá e
esses nunca vão ser atacados. Um presidente nunca chega ao poder sozinho,
há sempre uma ancoragem política e essa ancoragem, quando vê a coisa mal
aparada, começa a sair. Importa perguntar como é que o judiciário brasileiro, que
era um judiciário que vinha do tempo da Ditadura, continuou a funcionar? Como
é que há um exército que vem da Ditadura e continua a funcionar? Como é que
há uma polícia que vem da Ditadura e continua a funcionar? Ou seja, a Ditadura
continuou, apenas ficou mais silenciada. Para mim, a grande lição é a vossa
vontade de continuar a lutar e a pensar nas consequências e implicações de
cedências anteriores em relação a setores conservadores. Por exemplo, o
judiciário, que espelha ainda, em larga medida, a velha escola, é a faculdade de
Direito que é faculdade de “direita”. É ali que são formadas as pessoas que vão
defender a estrutura, de um Estado que nunca se descolonizou.

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Suzani Cassiani: A gente queria continuar. Que beleza de discussão!

Maria Paula Meneses: Há esperança, vocês criaram pessoas, vocês ensinaram


tanta gente a pensar, não é possível calar essas pessoas. Pode demorar alguns
anos, mas não é possível que a situação não se altere. A educação, como dizia
o falecido presidente Samora Machel, é uma arma, é uma arma muito poderosa.
Não é possível lutar contra cabeças que pensam. É por isso que a educação é
tão problemática. Nesse sentido, temos que ter cautela, e compreender bem qual
é o projeto que está a aparecer sobre a denominação decolonial,
descolonizadora do sul, etc. Porque muito deste sul é muito reacionário, não
mudou.

Suzani Cassiani: Você vê pequenas europas?

Maria Paula Meneses: Estou a falar por causa do Boko Haram no contexto
africano.5 O Boko Haram tem um discurso a favor da descolonização. Mas a
descolonização é voltar ao século IX do Islã, e, portanto, só com as escolas e a
educação de matriz islâmica. Há movimentos progressistas islâmicos
importantes, que têm vindo a promover escolas transformadoras, que
transformam as pessoas, que garantem a reconexão permanente com o
território, com os saberes, com as experiências. Mas não o Boko Haram e vários
outros movimentos. Temos que ser muito cuidadosa na leitura destes processos
de luta e descodificar as suas intenções, os seus objetivos.
Outro exemplo, aqui mais próximo, é o de Cuba, que tem uma experiência
fabulosa e talvez menos conhecida. Em 1977 ou 78, Cuba resolve apostar na
construção de escolas secundárias, na ilha da juventude, as ESBECS, para
formar jovens a nível do ensino secundário, de países africanos sobretudo. Havia
quatro escolas de Angola, duas de Moçambique, uma da África do Sul, uma da
Etiópia, uma do Burkina, etc. Os estudantes que passaram por estas escolas
contam a sua experiência como um momento de transformação. Como tenho
interesse no tema, tenho lido sobre este processo. Para vários jornais norte-
americanos, que publicaram matérias sobre esta presença africana em Cuba, o
que é dito com muito cuidado é o seguinte: é que é um problema com esses
estudantes que estudam em Cuba; eles são ensinados não a construir uma
estrada, mas a construir uma estrada que serve ao país. Ou seja, eles estão a
aprender a pensar pelas próprias cabeças e isto não interessa a quem quer ter
mentes controladas. Porque há uma grande diferença entre nós pensarmos a
partir daquilo que a gente conhece no mundo, mas para mudar o nosso lugar e
aquilo que a gente acha que é o nosso lugar é os Estados Unidos, e, portanto,
criamos um pequeno Estados Unidos, ou uma pequena Europa em
Moçambique, em Timor ou no Brasil. E criamos jovens com a mente colonizada.
Aqui o desafio é grande, pois é preciso descolonizar a mente e ter esta abertura.

5 Movimento sunita fundamentalista, que tem como uma das bandeiras de luta a educação
ocidental, não-islâmica, que classifica como um pecado.

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Alessandro Tomaz Barbosa: Eu gostaria que a senhora comentasse um pouco


que ensinamentos esse contexto pandêmico traz para o pensamento decolonial,
a educação anticolonialista e a educação desde o sul global, neste momento de
pandemia?

Maria Paula Meneses: Eu acho que a pandemia nos está a mostrar muitas
coisas. Para começar, que os passaportes não funcionam, porque o vírus
passeia sem passaporte. O que não é uma novidade, quer dizer, quando se
estuda a chamada Peste Negra, percebe-se que há dois grandes fenômenos
que justificam a difusão da Covid: a rede dos contatos comerciais e os cordões
militares. Hoje, se olharmos para a dispersão da Covid, vemos um padrão
semelhante, através das ligações comerciais. O problema é que muitas vezes
não se consegue resgatar o que é que deveríamos saber sobre o assunto. E,
sobretudo, porque continuamos muito reféns de um saber do norte, que,
inclusivamente, está nas Nações Unidas, na OMS, e que tem influenciado a
forma de lutar com a pandemia. Periodicamente são tomadas decisões globais,
mas esta opção por um modelo único não vai funcionar. A própria OMS tem
bebido de experiências em contextos africanos, por exemplo. Um dos grandes
resultados da tentativa de controlar as pandemias do Ébola tem sido usado para
conter a pandemia atual. Tal como no caso do Dengue, um dos vectores mais
importantes têm sido as campanhas de sensibilização junto da população. É
preciso explicar o que é a Dengue, é preciso explicar o que é o Ebola, e como
se pode lutar contra a Dengue ou contra o Ébola. No caso do Brasil, eu creio que
o que não funcionou foi o governo, que manteve uma política negacionista
durante muito tempo, face ao avance da pandemia. Algo semelhante ao que
aconteceu com o presidente da Tanzânia, John Magufuli, que também afirmava
que não há Covid e que não interessava ao país investir no rastreio das pessoas
infetadas. Até à morte de Magufuli, em março deste ano, não havia praticamente
casos de Covid na Tanzânia. Na maior parte dos países do mundo, começou
desde muito cedo uma explicação do que é que era a Covid, e, portanto, a Covid
entrou na casa das pessoas pelos meios de comunicação.
Uma experiência pedagógica interessante que aconteceu em Moçambique e que
vem do apoio à pandemia que marcou a minha geração – o AIDS. De repente,
um dia dizem-nos que não pode usar seringas de qualquer maneira, que é
preciso cuidado com o dentista, cuidado com as tatuagens, cuidado com as
relações sexuais. Foi um choque, num momento em que os jovens da minha
geração viviam um momento de euforia. Cada geração tem tido a sua pandemia,
só que nos esquecemos de passar as experiências. Talvez, a gente precisasse
daquelas estelas do Japão para, de vez em quando, ir lembrando que todos
temos tido a nossa pandemia. Eu tive vários amigos que morreram com AIDS,
foi um drama que me tocou muito, com vários amigos que faleceram. E até que
se desenvolvesse o remédio demorou, agora, foi mais rápido. O que é que eu
achei de interessante? Uma mudança que aconteceu no mundo, a enorme onda
de colaboração de cientistas, globalmente, na construção do genoma do
SarsCov2, portanto os CDC’s, grandes CDC’s - Centers For Disease Control -
brasileiros, argentinos, cubanos, etc., participaram desse mapeamento genético.
Os CDC’s em África, na África do Sul, no Gabão, no Gana, etc., também

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Cadernos CIMEAC – v. 11, n. 1, 2021. ISSN 2178-9770
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fizeram... no Quênia, e contribuíram para os mapeamentos. Ou seja, o


conhecimento que está na origem do desenvolvimento das vacinas é um
conhecimento-mundo, não é um conhecimento europeu. E é isso que não se
está a relevar nesta altura. Este mapeamento foi feito também a partir do Sul por
homens e mulheres. O problema do silenciamento e da ocultação das
contribuições ao conhecimento-mundo acontece também dentro da própria
ciência e nós ocultamos o Sul. Agora não já estamos a falar de outros
conhecimentos, estamos a falar desta pandemia em que há aqui uma estrutura
coletiva para tentar controlar e ultrapassar este processo de contágio macro.
Mas, no média, continua-se a falar pouco das experiências exitosas do Sul, se
conhecem as medidas e como, por exemplo, entre os países do sul que têm
pouca água, que alternativas estão a ser desenvolvidas para se assegurar a
limpeza das mãos. Este modelo de lavar as mãos muitas vezes é o modelo de
classe média europeia, que tem água, que pode estar em confinamento, que
pode estar a dar aulas à distância. O meu neto esteve um ano a ter aulas à
distância, num contexto em que ele é um privilegiado, porque ele tem um
computador. Mas não estávamos preparados. Eu sei que no final se ganha, não
perde, porque se ganha conhecimento, se ganha experiência. Mas é preciso
pensarmos o que está a acontecer nas escolas, como lidar com as crianças. E,
sobretudo, por exemplo, ouvir as crianças. Eu falava muito com o meu neto, que
andava angustiadíssimo, sobre todo este problema, do que é que era o Covid.
Ele ficou absolutamente em êxtase quando soube que ia voltar à escola. E
apesar de voltar de máscara e etc., mas que ia voltar a ter amigos para jogar
futebol. Mas ele é parte de uma geração de crianças marcadas pela Covid. As
crianças estão profundamente perturbadas e nós, professores, temos que lhes
ouvir. E eu creio que, antes de qualquer matemática ou português, nós vamos
ter de ouvir, como é que eles estão a viver este problema e o que é que eles não
entenderam, onde é que nós falhamos como adultos, se calhar não percebemos
o problema na totalidade. A Covid vai marcar a vida deles…. Eles são crianças
com cinco, seis, sete anos… Como é que a Covid mudou toda a estrutura de
brincadeira, de pensar, de ir à escola. E nós vamos ter de lhes ouvir e de fazer
processos diferentes para os reintegrar.
De fato, o mundo falhou e falhou, sobretudo, às crianças. Eu acho que se veem
problema é com as nossas crianças. Daquilo que eu percebo com vários pais,
andamos todos muito preocupados, sobretudo, o que é os miúdos estão a pensar
do que é isto? E acho que é por aí que a gente vai ter que começar a repensar
a escola, em que eles possam falar devagarinho, ir abrindo os traumas que eles
experimentaram, porque eles viram mortos ao lado, viram o problema todo. O
que é que é isto? Nós prometemos em teoria um mundo seguro e o mundo que
nós estamos a dar não é um mundo seguro. Isso, talvez, seja outra necessidade
que nós temos e, talvez, eu tenha um bocado em mim, porque nós passamos
por guerras, guerras civis, etc. A morte é qualquer coisa que está conosco, não
é algo que a gente não fala, a morte acontece e nós não podemos prever o que
vem aí.
E acho que esta ideia de que a gente quer poupar as crianças à morte, a morte
tem que ser... como é que é dizer? Domesticada na escola, como... acontece.
As pessoas não só porque são mais velhas, porque tem doenças, tem
problemas, acontece. E temos de estar com as pessoas enquanto as temos

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conosco, ao máximo. É o que eu digo ao meu neto, ao invés de estar agarrado


a porcaria do computador, usa a tua mãe e o teu pai, porque tu não sabes quanto
tempo vais ter a mãe e o pai contigo. Usa a mãe, usa o pai, eles não gastam,
não precisam pilhas.
Mas eu acho que é muito por aí, estes aprendizados, sobretudo, o valor da
humanidade. Normalmente as pandemias fazem isto, fazem-nos ter muito medo
mas também nos leva a não perder a noção da humanidade. Vocês já viram a
quantidade de experiência que a gente desperdiça com as pandemias todas que
acontecem? E a Suzani também quando esteve em Timor também deve ter
apanhado com Cólera lá, com Dengue e etc. Quer dizer, há cuidados, as
pessoas sabem como lidar com epidemias, mas é preciso não desperdiçar esta
experiência. É passar da teoria à prática, que eu só existo porque há pessoas,
porque vocês estão aqui, se vocês não tivessem me desafiado para esta
conversa, nada tinha acontecido, isto aconteceu por causa de vocês, não é por
causa de mim. Eu sou apenas uma roda da engrenagem, a máquina são vocês.
É a esta interrelação que no meu lado do mundo chamamos ubuntu. Temos que
ver a força que vem destas interações, é isto que nos faz humanos. Eu sei que
não era a resposta que estavam à espera, mas eu acho que é muito importante
pensar na humanidade.

Suzani Cassiani e Alessandro Tomaz Barbosa: Gostaríamos de agradecer à


professora. Eu não sei se ela quer dizer mais alguma coisa. Mas eu acho que
tem tanta coisa que ela falou muito além do que a gente tinha pensado. E, então,
é uma honra para nós fazermos parte desse momento. Gratidão por ter cedido
com tanta generosidade esse tempo para nós. E tem tantas reflexões incríveis e
poderosas nessa entrevista, que com certeza vai ser lida por muita gente.
Agradecemos imensamente poder te ouvir.

Recebido em: 10/06/2021


Aprovado em: 22/06/2021

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