Tese - Marcelo Senna Guimaraes
Tese - Marcelo Senna Guimaraes
Tese - Marcelo Senna Guimaraes
Rio de Janeiro
2013
Marcelo Senna Guimarães
Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
es CDU 37.016::1
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
tese, desde que citada a fonte.
___________________________________ _______________
Assinatura Data
Marcelo Senna Guimarães
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Profª. Dra. Siomara Borba Leite (Orientadora)
Faculdade de Educação – UERJ
_____________________________________________
Profª. Dra. Rita Marisa Ribes Pereira
Faculdade de Educação – UERJ
_____________________________________________
Profo. Dro. Walter Omar Kohan
Faculdade de Educação – UERJ
_____________________________________________
Profª. Dra. Andrea Bieri
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Profo. Dro. Filipe Ceppas de Carvalho e Faria
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2013
AGRADECIMENTOS
GUIMARÃES, Marcelo Senna. Culture and knowledge: philosophy in school. 2013. 150 f.
Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
This work investigates the history of the school in modernity, identifying some school
projects that are shaped into a kind of educational matrices. These are elements of a transition
from a humanistic, theological or religious pedagogic model to another, scientific one. This
transition has had effects throughout the curriculum and educational models. Some of these
effects have consequences not only in the teaching of philosophy, but also in secondary
educations, and the establishment of the school. In Brazil, the debate on the model of high
school education in public schools was raised by Silvio Romero on the occasion of the
proposed curriculum for the teaching of philosophy of Colégio Pedro II, Rio de Janeiro (RJ) ,
in the nineteenth century. The concepts of culture, knowledge and education are studied in the
work of Nietzsche, Foucault and Rancière, and this investigation is aimed at identificating
elements to consider teacher performance philosophy today. Critical to a school subservient to
the interests of the state and market, focused on mere survival and occupying the space of an
institution that could promote culture; the distinction between knowledge and spirituality,
examining their forms of association and dissociation , the practice of various forms of
mastery and self-care; the distinction between emancipation and brutalisation and
rapprochement between the ontology of the present and the practice of the ignorant master;
these elements found in the three authors respectively cited are raised as part of the analysis
on the relationship between philosophy and education. These analyzes, taken up an attitude
that should serve as a backdrop for the investigation of some aspects of the working
conditions of the professor of philosophy at the current school. The characteristics of the high
school, the specific training requirements for teachers of philosophy are associated with three
characters which prove to be adequate to represent the crossroads where these teachers are
located. In conclusion, it is pointed out a way for the practice of philosophy teachers in
schools that is understood and realized as a form of didactic research.
Keywords: Culture. Knowledge. Philosophy teaching. High school Teacher’s training and
practice.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 9
1 TRAJETÓRIA DO ENSINO SECUNDÁRIO: A HISTÓRIA DO ENSINO
MÉDIO ...................................................................................................................... 18
1.1 Uma história da educação secundária .................................................................... 18
1.1.1 Sobre as escolas científicas e a presença dos estudos científicos nos colégios .......... 24
1.2 Enciclopedismo e burguesia: em direção ao iluminismo setecentista .................. 29
1.2.1 A educação na Enciclopédia....................................................................................... 34
1.2.2 A educação na Revolução Francesa ........................................................................... 39
1.3 A escola e a filosofia no Brasil ................................................................................. 43
1.3.1 Silvio Romero, a filosofia e a escola no Brasil .......................................................... 46
1.3.1.1 O contexto de influência............................................................................................. 52
1.2.1.2 O contexto de definição de textos .............................................................................. 55
2 OLHARES DA FILOSOFIA SOBRE EDUCAÇÃO, O CONHECIMENTO
E A CULTURA ......................................................................................................... 57
2.1 A Segunda Extemporânea e a cultura .................................................................... 61
2.1.1 Nietzsche e as escolas................................................................................................. 69
2.1.2 Nietzsche e Schopenhauer .......................................................................................... 75
2.2 Michel Foucault e as transformações do conhecimento........................................ 79
2.2.1 O capital e a espiritualidade da ciência moderna ....................................................... 82
2.2.2 A questão da espiritualidade no conhecimento moderno ........................................... 90
2.2.3 Foucault: Cuidado de si, emancipação e ensino de filosofia ...................................... 98
2.2.4 Michel Foucault e a mestria do cuidado de si ............................................................ 99
2.3 Jacques Rancière e o mestre ignorante ................................................................ 101
2.3.1 Emancipação e ontologia do presente ...................................................................... 105
3 CULTURA E CONHECIMENTO NA ESCOLA E OS ESFEITOS SOBRE
A FORMAÇÃO ...................................................................................................... 109
3.1 Fausto e a tragédia do desenvolvimento ............................................................... 115
3.1.1 Fausto e Zaratustra na escola.................................................................................... 116
3.1.2 Fausto e Zaratustra encontram Macunaíma.............................................................. 117
3.2 Sobre a relação entre a filosofia no ensino médio e a filosofia no ensino
superior.................................................................................................................... 120
3.2.1 A pesquisa do professor de filosofia no ensino médio ............................................. 126
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 140
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 144
9
INTRODUÇÃO
alheia, dos interlocutores que se dispunham a dialogar com ele. O primeiro gesto de Sócrates
parece manifestar a necessidade da primeira educação, que é a de si próprio e, através de suas
refutações, a dos outros.
Sócrates não busca a própria educação sem relacionar-se com seus concidadãos
através do diálogo. Filosofar significa despertar para a necessidade de educar-se em diálogo
com os outros homens. Educar-se a si mesmo, realizar a própria busca, buscar o saber
necessário à própria vida, saber viver, conhecer-se a si mesmo, buscar saber o que é a virtude,
o que é a excelência humana, abrir-se ao diálogo com os homens sobre a busca da nossa
excelência. Assim educar-se torna-se uma ação coletiva.
Essa forma de conceber a educação, não como um saber a transmitir, mas a ser
buscado coletivamente, não foi certamente a única nos primórdios da filosofia. Pode-se pensar
em Pitágoras e o longo período de escuta muda a que eram submetidos os noviços em sua
comunidade. Ali conhecer significa alcançar, progressivamente, um saber iniciático, uma
sabedoria oculta, que envolve desde os números e suas relações até a transmigração das
almas. Ou ainda, considerar, como Aristóteles, que “só os que dizem as causas de cada coisa é
que ensinam”. (ARISTÓTELES, 1984, p. 14). O conhecimento, aqui, ainda que difícil, se
necessário chegar à universalidade dos primeiros princípios e causas, é, no entanto, aberto à
compreensão daqueles que se dedicarem o suficiente, não é um mistério restrito a iniciados.
Se pensarmos em duas histórias que se contam sobre Tales, pode-se ver a ligação da atividade
educativa com o trabalho.
Na primeira história, uma escrava ri do filósofo que cai num buraco ao andar olhando
o céu – o mundo do trabalho troça do mundo do pensamento abstrato por sua inépcia prática;
na segunda história, Tales mostra aos cidadãos seu senso prático ao comprar por preço baixo,
numa época de seca, diversos lagares, o que teria lhe permitido enriquecer na estação
seguinte, alugando os instrumentos após uma grande safra de azeitonas. Pode-se arriscar dizer
que Tales aprendeu com a risada da escrava.
Em todo caso, a utilidade prática dos conhecimentos é evidenciada nas duas situações.
Para não ficarmos apenas no campo das anedotas, pode-se pensar também na República, de
Platão. Ao comentar essa obra, em geral trata-se da educação dos filósofos, daqueles que
serão os governantes da cidade ideal. Porém, podemos atentar para a educação dos guardiões
e dos produtores, daqueles que serão responsáveis pela defesa da cidade e pela produção dos
artigos necessários para a sobrevivência de todos.
Nesse caso, a educação deve preocupar-se com que esses grupos reconheçam a
liderança dos governantes-filósofos e atuem em favor da manutenção da cidade. Deve-se
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educar a todos – quase dizemos, aos trabalhadores – para a obediência (através das virtudes da
moderação e da temperança), além das capacidades específicas da guerra e da produção
(PLATÃO, 1987, p. 161-208). Em outros termos, só a educação dos filósofos e governantes é
que capacitará para a direção, enquanto a educação dos trabalhadores (soldados e produtores)
se resumirá à obediência?
Não pretendo, como disse anteriormente, com essas breves indicações sobre diferentes
formas como as relações entre filosofia, conhecimento e educação foram concebidas na época
clássica dos gregos, esgotar o campo dessas relações. Mas os quatro exemplos citados, Tales,
Pitágoras, Sócrates e Aristóteles podem ser aqui utilizados para indicar matrizes clássicas do
modo de pensar essas relações.
Poderíamos, talvez, sob o risco das denominações anacrônicas, associar a Sócrates a
idéia de uma educação humanista – com a abertura para o diálogo sobre a excelência humana,
com o grande diálogo com a cultura; a Pitágoras, uma vertente da educação religiosa, mas
permeada com o conhecimento da unidade do mundo; e a Aristóteles, a idéia de uma
educação científica, o conhecimento das causas – ainda que para o Estagirita as causas finais
fossem importantes na explicação da natureza, recurso que a ciência moderna procurou
abandonar em proveito das causas eficientes; e, finalmente, com Tales (e novamente Platão),
aspectos de uma educação para o trabalho, “profissionalizante”.
Essas quatro matrizes são sugeridas aqui como uma forma de evidenciar que diferentes
concepções de filosofia, conhecimento e educação costumam estar associadas entre si, e
atentar para as suas relações pode ser uma maneira de desvendar sentidos subjacentes a
modos de pensar e de realizar a educação. Assim, talvez possamos considerar essas matrizes
como tendo ressonâncias em concepções de educação que ainda vigoram – justamente aquelas
que poderíamos indicar pelos termos humanista, religioso, científico e profissional. Elas
podem não esgotar o campo das concepções educativas, mas abrangem um espectro
importante.
Atualmente, nas discussões sobre educação, posições próximas a essas aqui sugeridas
se fazem presentes. Por exemplo, quando discutimos o caráter laico da educação, percebe-se
que o projeto de uma educação religiosa não foi abandonado, mas surge com inesperada força
em alguns contextos, buscando ocupar espaço dentro da educação pública. Questões e
projetos para o ensino profissionalizante têm sido levantadas nos anos recentes no Brasil de
forma intensa, como uma alternativa importante para a formação de grandes parcelas da
população. E também a tensão entre uma educação predominantemente científica – ou mesmo
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técnica – e uma educação de caráter humanista faz-se presente na discussão do ensino médio e
nos processos de seleção para o ensino superior.
É claro que aqui essas quatro matrizes de projetos educacionais estão apenas
indicadas. Sem dúvida que merecem muito mais desenvolvimento e contextualização, para se
realizar uma discussão esclarecedora sobre elas. Mas o intuito dessa breve apresentação é
mostrar a possibilidade de diversas imbricações entre filosofia, conhecimento e educação.
Pretende-se, assim, sugerir a fecundidade do estudo dessas relações através de uma
perspectiva filosófica. Uma perspectiva que, ao buscar compreender que conceito de
conhecimento se produz em educação, reflita sobre a dimensão filosófica da relação entre
conhecimento e educação.
A dimensão filosófica, aqui, quer dizer: aquela que aponta para os conceitos de
homem, de cultura e de vida implicados na relação entre conhecimento e educação. E que
tome para isso algumas matrizes dessa relação que se podem observar na teoria e na prática da
educação ainda hoje em dia. Parece plausível que as quatro matrizes anteriormente indicadas
poderiam estar nessa situação: humanista, científica, religiosa e profissional. E o estudo delas
parece ser capaz de propiciar um fecundo campo de discussão.
Essa discussão deve se realizar com referência a um tempo mais próximo de nós do
que aquele dos primeiros filósofos, anteriormente citados. Propõe-se aqui investigar as
relações entre filosofia, conhecimento e educação a partir do marco histórico do Iluminismo e
da sociedade moderna. Partindo desse marco, podemos considerar que as quatro matrizes
indicadas também se desenvolveram, sob novas bases, e mantiveram diferentes modos de
relação.
A partir do século XVIII, o projeto iluminista, que assumiu formas variadas em
diferentes contextos, produziu também projetos de educação. Pretendia superar a educação
religiosa vigente por uma educação científica que não dispensava o caráter técnico; e também
por uma educação política, visando formar o cidadão para atuar nas sociedades republicanas e
democráticas.
Em relação à Grécia antiga, talvez possamos resumir as mudanças de contexto com as
seguintes noções: cristianismo, capitalismo e ciência moderna.
O cristianismo é a marca religiosa evidentemente mais forte, ainda que
possamos falar da pluralidade religiosa a partir de um certo momento da modernidade. O
capitalismo é a estrutura social onde nos situamos. Enfatizarei aqui, o campo mais
diretamente ligado ao conhecimento: no século XVIII, o “século das Luzes”, a ciência já tinha
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tempo. Propõe-se tomar essa análise como referência para o tipo de estudo proposto neste
projeto. Várias mediações precisarão ser feitas.
Se a escola da época de Nietzsche sofria com o que ele chamava de influência da
cultura jornalística, o que podemos pensar quando vemos a influência avassaladora da cultura
da imagem e da mercadoria hoje em dia? A própria criação de uma instituição como a escola
já envolve um modo de conceber o conhecimento e a cultura. Investigar diferentes
concepções de escola, portanto, significa investigar diferentes concepções de conhecimento e
de educação como transmissão cultural – em certo sentido, podemos dizer: diferentes
filosofias.
Estabeleceremos como foco de análise deste estudo as escolas de nível secundário.
Pretende-se realizar um estudo do papel que a filosofia pode ter na escola, através do estudo
do modo como o conhecimento se faz presente em alguns modelos de educação ligados a
concepções de currículo que marcaram, de algum modo, as formas escolares atuais. Nessas
concepções de currículo, pretende-se investigar a sua compreensão de cultura investigando o
papel que foi atribuído, em cada um, à filosofia.
Pode-se falar, genericamente, de alguns tipos, que precisarão ser mais bem
investigados e delimitados: são os tipos referentes às quatro matrizes anteriormente indicadas:
ensino humanista, científico, profissional e religioso. Entende-se que para questionar
adequadamente o papel da filosofia em cada currículo é necessário discutir o conceito de
cultura envolvido em cada um. Supõe-se que há distintos modos de entender a cultura, e
distintas concepções de cultura que precisam ser colocadas em confronto para podermos
pensar adequadamente – o que é a escola? Que tipo de educação se realiza em cada forma de
realização da escola?
Três etapas podem ser inicialmente delineadas para essa investigação: a primeira tem
caráter histórico e envolve a (1) história do ensino médio. Faremos um levantamento da
história dos colégios e da educação média, ou da educação secundária que nos permita ver,
em uma perspectiva diacrônica, como se desenvolveram as matrizes curriculares que
investigaremos. Nessa capítulo, ficará claro que, daquelas quatro matrizes apontadas nesta
introdução, nos fixaremos em duas principais, que são os currículos humanista e científico, e
como elas estiveram em disputa em diversas concepções de escola e de educação. Para
completar esse capítulo, voltamo-nos para um acontecimento escolar no Brasil.
Pretende-se tomar como referência a história da educação brasileira, especialmente
através da história do Colégio Pedro II, buscando avaliar seu desenvolvimento interno mas
também sua relação com os liceus e as outras escolas no Brasil. A pesquisa histórica pode
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Clarice Nunes (2000) relata, em seu artigo “O ‘velho’ e o ‘bom’ ensino secundário:
momentos decisivos”, as várias etapas de criação dos colégios. Os antecedentes do colégio no
Brasil, e da escola secundária no Brasil, são traçados numa longa distância que vai até os
séculos intermediários entre o medievo e a modernidade. Os colégios são instituições que
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consolidaram sua forma por volta do século XVI, tendo sua origem nos pensionatos para
bolsistas universitários fundados por benfeitores. Os primeiros datam do século XIII, e no
século XIV muitos passaram a receber pensionistas pagantes entre os bolsistas. Instaurados e
promovidos pelas famílias e autoridades universitárias, se constituíram ao modo de uma
espécie de curso pré-universitário, preparatório para a vida acadêmica, o que significava
“introduzir ordem e disciplina entre os discentes” (NUNES, 2000, p. 37).
Na segunda metade do século XV o ensino das Faculdades de Artes desloca-se para os
colégios. Com isso transferem-se também seu currículo e suas regras de organização. A
formação, incluindo instrução e disciplina, é propiciada a estudantes numa idade mais jovem.
A pedagogia moderna, diferente das práticas educativas gregas, aborda progressivamente a
infância, assim como, por outro lado, abandona o saber de espiritualidade em favor do saber
de conhecimento. “Em 1530, os colégios parisienses estão divididos em classes, ... seus
superiores são os ‘principais’, seus horários e disciplinas estão definidos e os estudantes
aprendem latim e grego para ler e explicar os principais autores” (NUNES, 2000, p. 37).
Ficará conhecido como modus parisiensis, esse conjunto de elementos, que oferecerá o
modelo para os colégios jesuítas e para os protestantes.
A autora apresenta a análise de André Petitat, que mostra a inovação introduzida pelos
colégios em quatro dimensões: “[...] o espaço, o tempo, a seleção de aspectos socioculturais e
a estrutura de poder”. Quanto ao espaço, locais dispersos mantidos por professores
independentes são substituídos por salas de aula concentradas em um prédio único; nesse
novo espaço pode surgir “[...] o controle, a racionalização e a planificação de estudos, a
vigilância dos alunos, a gestão centralizada”. Esse ambiente propicia a sistematização do
tempo que vai além do planejamento cotidiano (como se faziam nos mosteiros) e passa a
abarcar o conjunto do ensino, com “[...] a gradação sistemática e a divisão das matérias”. A
vigilância dos corpos, das faixas etárias e dos espíritos, torna-se prática habitual. Mudam
também os conteúdos ensinados. De um programa centrado na lógica e na dialética, passa-se
a um programa voltado para o estudo das belas letras. “[...] A pedagogia do colégio é fundada
na escrita.”. O poder moderno exercia-se, dentro dos colégios, em uma organização
burocrática similar à que se constitui fora deles, quando a ascensão do Estado impõe-se diante
da autonomia dos senhores e das cidades (NUNES, 2000, p. 37).
A Ratio Studiorum, documento que sintetiza as orientações educacionais dos jesuítas,
relê o modus parisiensis e o consolida, permitindo a multiplicação dos colégios. Seu êxito se
dá por serem simultaneamente “[...] instituições organizadas e regulamentadas com um
método moderno de ensino” (NUNES, 2000, p. 37). Os colégios eram instituições menos
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complexas que a Universitas medieval e mais funcionais e eficazes para a transmissão dos
conhecimentos.
Nos vários países europeus várias gerações de colégios foram criadas, principalmente
pelos conselhos das cidades, em nível municipal. Os colégios jesuítas na França pertenciam à
terceira geração e consagraram a fórmula da “[...] escola como instituição de vida ativa,
especializada no catecismo e cujos padres e irmãos não eram obrigados a mendigar para
subsistir” (NUNES, 2000, p. 37). Dividiam-se em duas categorias: dependentes das
universidades ou não dependentes delas. Eram na maioria das vezes gratuitos. A cidade dava
o colégio e a congregação o recebia, essa era a forma do contrato celebrado no
estabelecimento dos colégios.
A subsistência dos regentes, ou o salário dos professores, é papel da cidade, do poder,
que nem sempre cumpriu estritamente seus compromissos de pagamento ou remuneração.
Fundados no interesse da cidade, os colégios são escolas congregacionistas e públicas, abertas
aos jovens, mas a pensão não é gratuita. Para manter os estudantes são necessárias rendas que
não estão disponíveis a todos. Os que conseguem permanecer, sobretudo artesãos, efetivam as
escolas como uma via de ascensão social. Buscava-se levar à juventude a piedade, os bons
costumes e as letras (NUNES, 2000, p. 37).
Enquanto os colégios jesuítas constituem a pedagogia e a educação que se pode
chamar de tradicional – e que evocamos ainda hoje nas escolas e nas discussões sobre elas –
as transformações históricas da forma colegial tiveram um percurso mais variado do que uma
narrativa linear que simplesmente faça suceder a um modo tradicional de conceber a
educação, um outro modo, chamado moderno. As configurações escolares, assim como suas
elaborações teóricas, foram mais diversas do que esse percurso linear pode fazer supor. Para
acompanhar algumas das transformações na história da educação escolar na Modernidade,
seguiremos, como referência principal, o abrangente levantamento sobre a criação das escolas
humanista e científica, realizado por Maria Lúcia Spedo Hilsdorf (2006) em seu livro sobre o
aparecimento da escola moderna.
Hilsdorf (2006, cap. 2, em especial p. 55-72) mostra que os colégios predominantes
nos séculos XVI e XVII na Europa tiveram sua proveniência no humanismo: este “[...]
assumiu a forma de colégios de estudos humanísticos, um modelo de escola que, ao se
interpor entre as escolas elementares e as universidades, vai constituir o ensino secundário
moderno”. (HILSDORF, 2006, p. 56). Demorou menos de um século para que as doutrinas
pedagógicas humanistas assumissem a forma colegial, sendo que a partir do século XVI essa
influência se fez sentir de forma crescente. As práticas medievais e os currículos fechados a
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conteúdos oriundos de fora da doutrina cristã foram levadas a dividir o espaço com as
referências humanistas, a princípio, e depois com as científicas.
Esses colégios de artes humanísticas se difundiram pela Europa e pelas zonas de
colonização. Foram constituídos a partir das experiências anteriores dos pensionatos-colégios
de artes medievais e dos contubernia humanistas (pensionatos domésticos onde lecionavam
mestres particulares), e substituíram, como forma institucional, os modos de educação e
ensino medieval, embora não impedissem a sobrevivência de várias de suas práticas. De
qualquer modo, foram protagonistas da educação escolar, chegando a ter grande importância
para famílias, estados e igrejas, e a adquirir mais prestígio do que universidades – como se
pode ver pelos colégios que até hoje são conhecidos, de longa tradição. Hilsdorf (2006, p. 73)
afirma que “é possível dizer que a história da educação escolar ocidental entre os séculos XVI
e XVIII é a história dos colégios de humanidades. (...)” (HILSDORF, 2006, p. 73).
A autora aponta cinco razões principais para o êxito desses colégios e para que eles
possam ser considerados como “a grande criação escolar do início dos tempos modernos”
(HILSDORF, 2006, p. 79): a existência de uma clientela, as práticas de leitura e escrita, o uso
do colégio como signo religioso, as concepções antropológicas da época e a ordenação
pedagógica estabelecida. (HILSDORF, 2006, p.73-79). A ordenação pedagógica que então
se consagra e é representada em gravura que abre a edição da Didática Magna, de
Comenius, de 1657, pode ser descrita brevemente:
[...] o êxito dos colégios do final do século XVI aos meados do século XVIII teria,
então, propiciado a constituição da infância nesse período: criança é aquela que vai
às classes dos colégios, isto é, que vive o tempo do não-trabalho (em grego,
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Por essa citação, pode-se notar como a questão da língua está ligada ao poder que gere
e institui a escola. A posição do latim nas escolas jesuíticas se parece com uma espécie de
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política cultural e educativa da ortodoxia da igreja, assim como as variações no modo de lidar
com a língua clássica e com a língua materna vão acabar se constituindo em formas de
renovar a escola, consoante novos contextos históricos, sociais e políticos. Os Estados
modernos, em sua transição de Estados monárquicos e cortesão para Estados nacionais, vão
ter as escolas e a questão da língua nas escolas como uma questão central em suas estratégias
de expansão e consolidação de poder.
As escolas oratorianas apresentavam ainda outras novidades. Entre elas, a presença do
pensamento cartesiano no currículo. Enquanto os jesuítas permaneciam aristotélico-tomistas,
nas escolas dos oratorianos “a filosofia racionalista, as línguas vivas, a física e a matemática –
ciências cartesianas por excelência” – tinham seu lugar. Uma apropriação das regras do
método de Descartes, consistindo nas “etapas de dividir em partes o problema a ser analisado,
passar do conhecido para o desconhecido, fazer sínteses de tempos em tempos, proceder
sempre com ordem e garantir raciocínios corretos e conceitos claros e distintos” tornaram-se
“critérios de organização dos grupos de alunos e de estruturação metódica dos conteúdos”.
(HILSDORF, 2006, p. 85).
Já as escolas jansenistas enfatizavam mais a rígida formação moral que incluía
exercícios ascéticos e o distanciamento da vida social. Tinham em comum com as oratorianas,
porém, a valorização da língua materna e a proposição de um outro currículo, aberto às
novidades filosóficas e científicas da época, o que incluía o estudo de outras línguas vivas.
Um modelo de colégio de humanidades foi publicado pelo jansenista Rollin (1661-1741)
entre os anos de 1726 e 1728.
Esse colégio era “apoiado no tripé das línguas e literaturas latina, grega e francesa,
acrescido da educação moral cristã rigorosa, da história e da geografia pátrias, das
matemáticas e da filosofia moderna de Descartes e Pascal”. Além disso, “(...) manteve o
estudo das línguas como a atividade escolar colegial por excelência, mas confirmou a língua
materna como saber erudito”. Isso significou a introdução da língua popular, o francês, no
corpo das disciplinas humanistas. Era chegada a hora “da promoção do francês ao nível de
língua de cultura”. (HILSDORF, 2006, p. 88-89).
A atuação de oratorianos e jansenistas ajudou a promover uma nova cultura escolar,
reconfigurando os conteúdos estudados, sem chegar a modificar o modelo colegial – embora
abrandasse alguns procedimentos ou reforçasse outros, conforme o caso. A mudança nos
conteúdos se dava à medida que se reconhecia que a língua materna, assim como o latim, era
capaz de expressar pensamentos corretos com clareza; e que “a razão reta e flexível, base do
bem agir, era formada pelos clássicos, mas não apenas por eles”. (HILSDORF, 2006, p. 89).
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No século XVIII, já no contexto das Luzes, o “processo do latim” significará uma grande
contestação ao colégio de humanidades tradicional, e estará presente nos textos e documentos
de autores iluministas, como veremos mais adiante.
Desse modo, a escolarização da infância e da sociedade promovida pela expansão dos
colégios não foi aceita com o mesmo sentido nos diferentes lugares. A autora ainda comenta o
contexto holandês, onde a educação doméstica era mais valorizada do que a educação escolar.
O exame desses polos permite traçar um retrato mais abrangente dos papéis que as escolas e a
educação assumiram nas sociedades, em uma mesma época. Vemos também que, embora
diversos modos de educar estejam sempre em disputa, mesmo o predomínio de uns não
significa necessariamente a eliminação completa de outros. No caso aqui em questão, vimos
que um modelo alternativo num século acaba fornecendo elementos para um modelo que se
tornará predominante em outro século.
1.1.1 Sobre as escolas científicas e a presença dos estudos científicos nos colégios
O cientista dos séculos XV e XVI não era a mesma figura que conhecemos
hoje. Sob essa designação, era possível incluir um conjunto amplo e variado de intelectuais,
além dos mestres universitários. Podiam ser sábios envolvidos com discussões teóricas de
problemas práticos da vida cotidiana dos burgueses, como Leonardo da Vinci e L. B. Alberti;
ou aqueles que dominavam saberes ligados às atividades marítimas, com geógrafos,
cartógrafos, desenhistas e astrônomos; os que cultivavam as ciências da natureza e do homem,
exploradores, viajantes e naturalistas. Tinham em comum com sua base social, que incluía a
nobreza e a burguesia nascente, o interesse e a atenção dedicadas ao concreto. Leonardo da
Vinci, por exemplo, apresentava-se como anti-humanista e moderno, isto é, homem sem letras
(para ele, as artes da palavra eram sofísticas e falsas) e cientista.
Burgueses e cientistas compartilhavam o interesse pelo rosto humano, pelas paisagens,
pelas plantas, pela geografia; e o desejo de “dominar o tempo e o espaço e organizar
racionalmente o mundo, possibilitado pela contabilidade, a matemática, a burocracia e a
geometria que ambos praticavam”. (HILSDORF, 2006, p. 112). Apenas essa situação social,
porém, não explica porque as ciências não faziam parte dos currículos dos colégios, já que os
humanistas, que também atendiam a interesses da mesma base social, logo conseguiram sua
inserção naquelas instituições. (HILSDORF, 2006, p. 113).
Tomando como base os estudos do historiador Eugenio Garin, a autora observa que “o
cientista dos séculos XV e XVI era ao mesmo tempo o filósofo, o sábio, o humanista e o
mago do Renascimento”. (HILSDORF, 2006, p. 117). Ainda aproximavam-se desse espectro
artistas e artesãos, como era o caso de Leonardo da Vinci, entre outros. O aspecto comum que
tornava semelhantes todas essas figuras era o fato de refletirem criticamente sobre suas
experiências e de agir sobre o ambiente, desfazendo limites entre o campo do saber e o campo
da ação. (HILSDORF, 2006, p. 116-117). Desse modo, o cientista-investigador da realidade
natural poderia ser desde um humanista que se manifestava sobre a vida moral e social até um
cientista-mago que operava “por meio de manipulações maravilhosas para transformar o
mundo”. (HILSDORF, 2006, p. 118).
Em muitos casos, era provável que a mesma pessoa apresentasse essas diversas facetas
que para nós podem parecer inconciliáveis com a nossa representação contemporânea de
cientista. Porém, nos séculos XV e XVI, as influências mágicas, místicas e esotéricas
associavam-se e misturavam-se com doutrinas platônicas, herméticas e cabalísticas. Essa
figura do sábio, entre cientista e mago, derivava suas concepções de múltiplas fontes e aos
poucos foi se evidenciando a ideia de que se devia ensinar os homens “a refletir, a teorizar e a
agir, formando uma concepção de ciência do mundo operativa e transformadora”.
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com Galileu, Francis Bacon, e, podemos acrescentar, René Descartes e Isaac Newton. Além
disso, o caráter aberto da investigação científica, com a livre participação de diversos
investigadores, seria instaurada a poucos e, paradoxalmente, por meio da influência de
sociedades esotéricas como a Fraternidade ou Irmandade Rosa Cruz. (HILSDORF, 2006,
p.123).
Francis Bacon (1561-1626) foi importante para essas transformações, pois ele foi um
dos primeiros a apresentar uma representação do cientista que desvinculava a atividade de
investigação da natureza das questões teológicas e esotéricas; e defendia a promoção de uma
investigação sistemática, contínua, com a colaboração e troca de diversos investigadores.
Além disso, Bacon formulou o método indutivo, baseado em procedimentos de observação e
experimentação controlados, a partir dos quais deveria ser possível formular leis gerais
válidas para todos os casos.
Finalmente, a “recusa do segredo e da prática iniciática dos cientistas-magos, e a
adoção dos princípios da igualdade das inteligências e da acessibilidade do conhecimento para
todos os homens” (HILSDORF, 2006, p.123) fizeram com que sua contribuição ajudasse a
construir uma outra ideia de instituição investigativa e educativa. Mesmo que ele não tenha
assumido a leitura matemática da natureza como parte de sua concepção, e mesmo que
expresse influências de sociedades esotéricas em sua obra A nova Atlântida, de 1627, onde
formula sua visão da ciência operativa construída por uma comunidade de sábios interessados
em conhecer a natureza e produzir obras benéficas para os homens, Bacon é capaz de
substituir a “aparência titânica do mago do Renascimento” por um retrato do homem de
ciência maduro, tranquilo, sereno e amigável. (HILSDORF, 2006, p.123).
Cabe mencionar mais uma vez a figura de Leonardo da Vinci para evidenciar a
importância de algumas contribuições de Francis Bacon. Se Leonardo tinha uma concepção
de natureza que excluía as forças místicas, por outro, exercia uma prática investigativa
inquieta, dispersa, oculta e isolada, consagrada em um dito seu: “não ensines, e serás o único
excelente”. (HILSDORF, 2006, p. 124). Ou seja, o segredo ainda exerce um papel importante
na atividade de Da Vinci, enquanto terá de ser ou abandonado ou bastante reformulado na
atividade dos cientistas modernos, que emergem da revolução científica.
A trajetória da Fraternidade Rosa-Cruz mostra as idas e vindas dessa questão. Essa
sociedade que pretendia reunir sábios religiosos capazes de operar uma “iluminação
científica” para o bem da humanidade (HILSDORF, 2006, p. 125), tinha, em sua
representação pictórica a designação de “Colégio Invisível”. Essa designação aproxima a
principal instituição educativa do período, onde os sábios se reuniam, com a marca do
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segredo, a invisibilidade. Ao que parece, Bacon recusou esse “secretismo” por razões de
cautela, para evitar que suas propostas fossem confundidas com prática de magia e feitiçaria.
(HILSDORF, 2006, p. 125-6). Mas sua obra e atuação acarretou mudanças institucionais nos
colégios da Inglaterra, que significaram a progressiva presença das ciências nos currículos.
Entre essas mudanças, estavam a influência sobre parlamentares e sobre protestantes radicais
que propuseram a criação de “corporações para que todos tivessem acesso aos ofícios, e a
criação de escolas de língua vernácula e ciências matemáticas e naturais, abertas a alunos das
várias camadas sociais”. (HILSDORF, 2006, p. 126). Em suma, o conteúdo das ideias de
Bacon que influenciaram esses movimentos pode ser assim expresso:
[...] o homem podia mudar o mundo (...) era livre e digno, não estando condenado ao
fardo do trabalho brutal, à condição de despossuído, sujeito ao controle do clero, e –
porque enunciava a igualdade das consciências para aprender – ... a ciência operativa
estava ao alcance dos homens comuns por meio do trabalho cooperativo.
(HILSDORF, 2006, p. 126).
Porém, como já foi sugerido no caso das dúvidas sobre a massificação da educação,
mesmo nessa obra e na sua diversidade de autores podem se encontrar elementos de ruptura e
de continuidade. Algumas rupturas só iam se tornar mais evidentes com o advento da
Revolução Francesa.
Para caracterizar o conteúdo do pensamento da Enciclopédia sobre a educação,
Carlota Boto analisa três verbetes que dizem respeito a esse tema. Os verbetes são
“Preceptor”, “Educação” e “Colégio”. Destacaremos alguns pontos que mais nos interessam
nessa análise.
A análise do verbete “Preceptor” é mais ligeira, e destaca a atenção e a atitude de
escuta que o preceptor responsável pela formação das crianças nas casas dos senhores deveria
ter em relação a elas. Recordando Montaigne, prefere-se uma criança com uma cabeça bem
feita do que com uma cabeça cheia. (BOTO, 1996, p. 53). Ainda que sumariamente, aí
também estão contidas críticas àquilo que se entendia como características da educação
tradicional.
O verbete “Educação”, além de afirmar a importância política da educação,
ressaltando seu papel no engrandecimento da nação, discute de modo mais detido questões
relativas ao método e aos conteúdos do ensino. No que diz respeito ao método, tendo em vista
a analogia entre a educação das crianças e a cultura de plantas, assume-se que a guia do
processo educativo é a natureza. Ao mestre cabe observar seus alunos, “com discernimento e
experiência”, para, a partir da identificação de seus gostos e inclinações, encaminhá-los para o
interesse social. A educação deve “aclarar o espírito, instruí-lo e postular suas normas e
regras”. A docilidade é considerada uma virtude social a ser buscada como resultado da
educação. Com ela, valorizam-se também a razão e o espírito persuasivo diante da erudição.
Critica-se a distância entre a escola e a vida e propõem-se modos de aproximá-las. (BOTO,
1996, p. 54-56).
Esse verbete traz ainda considerações sobre a filosofia que vale a pena destacar. Não
se trata de ensinar às crianças conceitos ou abstrações filosóficas, mas considera-se que o
professor deve ter clareza sobre temas relativos ao conhecimento, à origem, ligação e
subordinação das ideias, sobre sofismas e falsas suposições; além disso, deve saber atuar de
modo socrático, fazendo os discípulos perceberem sua própria ignorância e estimulando o
pensamento e o raciocínio delas. (BOTO, 1996, p. 56).
Um princípio, em particular, já apresentado no Discurso preliminar escrito por
D’Alembert e que serve de fundamentação geral para a própria Enciclopédia é o princípio de
que os conhecimentos gerais derivam de conhecimentos particulares, assim como as ideias
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abstratas derivam de ideias simples. Com isso, pretende-se evitar toda especulação metafísica,
desvinculada da experiência e se formula o próprio princípio da didática que, como arte de
ensinar, deve ser capaz de “desvendar a subordinação dos conhecimentos”. (BOTO, 1996, p.
57). Apontando para uma noção da educação como ciência social, valorizam-se hábitos de
conduta, higiene, moral e disciplina intelectual, tomando-se como padrão irrepreensível de
condução da criança a escola militar. (BOTO, 1996, p. 58).
O verbete “Colégio”, redigido por D’Alembert, apresenta uma definição de colégio
apresentada no verbete permite uma visualização da instituição:
[...] os discípulos que, quer por temperamento, quer por preguiça, quer por
docilidade, se conformam sobre esse ponto com as ideias do seu mestre [as
atividades religiosas excessivas] saem do colégio com um grau a mais de ignorância
e imbecilidade. Resulta deste detalhe que um jovem, após passar dez anos num
colégio, sendo estes os mais preciosos da sua vida, sai e, ao invés de ter empregado
melhor o seu tempo, aprendeu de forma imperfeita uma língua morta, preceitos de
retórica e filosofia, que ele logo deve tratar de esquecer. (BOTO, 1996, p. 63).
Assim, o currículo como um todo, com uma de certo modo desvalorizada parte
de história exemplar, incluía uma suma racional-empirista da filosofia, a aplicação às
experiências da física e aos procedimentos da geometria. Não deixava de fora a formação do
gosto e a docilização dos costumes que deveria se realizar por meio do estudo das belas-artes
e da música. (BOTO, 1996, p. 64). O ensino das diferentes matérias não seria simultâneo, mas
sucessivos; do gosto de cada um derivariam as vocações. Esse plano de estudos supõe a
formação dos mestres e a ampliação do tempo dedicado à educação da juventude.
O pressuposto desse entusiasmo reside na crença da perfectibilidade humana, derivada
do progresso das Luzes. O aprimoramento da instrução seria assim o “tributo ao talento”. O
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verbete remete ao governo a iniciativa para a superação dos obstáculos para a realização da
educação tal como deve ser e a reforma dos colégios, mas não deposita demasiada esperança
nisso, e sugere a educação doméstica como via de transformação mais imediatamente
disponível para os ilustrados do século XVIII. Remete a solução da questão para um futuro
não muito longínquo “...essa reforma que nossos netos talvez venham a presenciar”. (BOTO,
1996, p. 65).
Em resumo, a autora nota que a esfera educativa pareceu ganhar autonomia diante de
outros setores sociais, como consequência “da confiança no processo histórico como motor do
aperfeiçoamento da condição humana”. (BOTO, 1996, p. 66). Para se afirmar a escola pública
como projeto de construção da cidadania, seria preciso esperar pela Revolução Francesa e as
novas formulações que viriam nesse momento de transformações e acontecimentos extremos.
A Revolução, “na França, ecoa como gesto de inauguração de uma nova era, pretendendo, na
dinâmica do seu pulso, zerar o passado e fundar o novo: seja o novo em termos de Estado e de
construção da política, seja o novo em termos de ética, seja o novo em termos de formação
humana”. (BOTO, 1996, p. 67).
Na crítica veemente que o Iluminismo elaborou ao método jesuítico de ensino, um
novo retrato da infância é traçado, que contrariava os velhos hábitos da educação tradicional.
A criança representa agora uma “etapa específica da condição humana”, recebendo uma
“valorização ilimitada”: pressupunha-se uma analogia com o “prospecto de perfectibilidade
do espírito e da razão”. A infância traz em si um grau de pureza que é corroído pela sociedade,
no trajeto de seu desenvolvimento, como em Rousseau. (BOTO, 1996, p. 50-51).
A vinculação entre o sentimento de infância consolidado nesse período e a sensação de
progresso intermitente e de confiança na natureza humana em suas múltiplas dimensões é
evidenciada: “[...] nesse cuidado pelo qual buscamos adivinhar o que se tornarão as crianças e
a preparar seu futuro vibra a esperança, a convicção de que nossas crianças farão melhor que
nós e realizarão aquilo que pudemos apenas entrever”. (BOTO, 1996, p. 51).
Uma outra compreensão da infância abria o caminho para uma nova prática que
prometia um outro futuro. Um outro mundo é possível, desde que se compreenda
adequadamente as características peculiares da infância e, conhecendo-as e respeitando-as,
saber atuar para abrir caminhos e descortinar horizontes de um mundo novo, de um homem
novo, livre das tiranias e das servidões de corpo e espírito causados pelo estado do
conhecimento de sua época.
Paralelamente ao interesse do Estado pela educação, “o conhecimento, a multiplicação
das Luzes, exerciam, aos olhos da intelectualidade da época, um papel fundamental no
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Diante desse novo mundo, desses novos começos, abertos pelas utopias elaboradas no
Iluminismo, o advento da Revolução Francesa vai acelerar os acontecimentos e forçar
formulações e decisões que antes se situavam no plano dos projetos e das expectativas. O
problema pedagógico aparecerá em nova chave, radicalizando e rompendo com as posições
anteriores. O modelo de escola ensaiado nesses tempos turbulentos se tornou referência
inescapável para o imaginário contemporâneo que se ocupa da educação democrática. A
pedagogia passa do terreno das discussões filosóficas para o campo da prática política e da
institucionalização das novas formas. Não é mais considerada como um privilégio do
indivíduo, mas agora é um direito e uma capacidade de toda a espécie humana. O
individualismo e o elitismo que ainda houvesse nas formulações prévias se veem radicalmente
questionados. (BOTO, 1996, p. 22-23).
Tínhamos visto anteriormente que Hilsdorf (2006, p. 144) considerava o Rapport
elaborado por Condorcet para o Comitê de Instrução Pública, submetido à Assembléia em
abril de 1792, como uma das linhas de desdobramento do Iluminismo do século XVIII. Esse
documento, cujo nome completo traduzido é “Relatório e projeto de decreto sobre a
organização geral da instrução pública” (CONDORCET, 2010, p. 21-36), ainda é considerado
como um dos maiores ou talvez o maior documento elaborado pelos revolucionários acerca da
questão educativa. Boto (1996, p. 109-188), seguindo Lopes (2008) (um estudo publicado
originalmente em 1981), porém, considera que, além dele, há que se examinar também, pelo
menos, as propostas jacobinas para a educação, formuladas por Lepeletier. A seguir,
buscaremos destacar alguns pontos nesses dois documentos que interessam à nossa discussão
aqui.
As questões sobre até que ponto e de que forma o Estado deveria atuar na educação
foram levantadas e tornadas prementes com a explosão revolucionária. (BOTO, 1996, p. 117).
Diante dessas questões, que tratavam da obrigatoriedade, da extensão do ensino, de seu
caráter público e gratuito, entre outras, Condorcet formula em seu Rapport (manteremos essa
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designação, por ser conhecida e mais sintética) a finalidade da instrução nacional, na qual
consta além da tarefa de suprir as necessidades, assegurar o bem estar, conhecer e exercer
direitos e deveres, aperfeiçoar o engenho e os talentos, tudo isso convergia “para estabelecer
uma igualdade de fato entre os cidadãos e tornar real a igualdade política reconhecida pela
lei”. (CONDORCET, 2010, p. 22).
Nesse sentido, ele apresenta uma proposta de dividir a instrução em cinco
graus: “escolas primárias, escolas secundárias, institutos, liceus e Sociedade Nacional das
Ciências e Artes”. (BOTO, 1996, p. 121). Enquanto as escolas primárias seriam universais, já
as secundárias, mais ou menos correspondentes ao que chamamos de ensino médio hoje em
dia no Brasil, seriam destinadas àqueles alunos cujos pais tivessem condições financeiras de
sustentá-los. (BOTO, 1996, p. 125).
De qualquer modo, o espírito geral das propostas de Condorcet é o de uma instrução
da razão, com prioridade ao ensino científico. O desenvolvimento do raciocínio e das
faculdades intelectuais em vista da precisão, do método e da lógica; facilidade do aprendizado
infantil das ciências; a utilidade social; e o combate aos preconceitos e superstições são as
razões apresentadas para dar preferência às ciências físicas e matemáticas. (BOTO, 1996, p.
127). Diferente de Talleyrand, que defendeu a efetivação na escola de um catecismo político,
propõe que a Constituição deve ser estudada como um fato, e não como um dogma,
advogando em favor de uma pedagogia política que promova a crítica e o espírito público
pelo desenvolvimento de consciências livres. (BOTO, 1996, p. 153).
A cultura, especificamente a cultura científica e racional, é apresentada como o
meio de promoção dos talentos e do progresso da sociedade, uma tarefa gradativa que se
realizaria por meio da atuação cultural das escolas: os homens devem se tornar instruídos e
não espertos. (BOTO, 1996, p. 130). A escola era considerada o templo da república, e tinha o
papel de fazer os livros substituírem os charlatães, o raciocínio substituir a eloquência, e
permitir que a moralidade fosse avaliada pela filosofia e pelos métodos das ciências físicas.
Dava-se grande importância aos livros escolares e à autoridade da razão, que deve prevalecer
sobre qualquer outra. (BOTO, 1996, p. 132).
O projeto de Condorcet estava impregnado pela filosofia das Luzes e pretendia
“libertar a racionalidade das teias que ainda a prendiam”. (BOTO, 1996, p. 139). Ainda que
possa ser considerado marcado por limitações de classe, o Rapport apresentava a proposta de
uma escola pública, universal e gratuita (BOTO, 1996, p. 150-151) e tornou-se uma espécie
de paradigma da escola democrática. (BOTO, 1996, p. 155).
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instruções de uma moral universal” e incluiria objetos de uma aprendizagem básica, como ler,
escrever, contar, sistemas de medida e de economia doméstica e rural, conhecimento sumário
da Constituição, “belos relatos da história dos Povos livres e da Revolução Francesa” para
formar a memória. (BOTO, 1996, p. 176-177).
Boto (1996, p. 178) afirma que esse projeto abandona o pressuposto da
perfectibilidade da espécie, pois a Revolução, sendo consumada por esse plano, “colocaria
também termo à história”. Os revolucionários pareciam se julgar epílogos da história e por
isso se sentiam capazes de estabelecer saberes definitivos para a escola. Diferentemente, na
perspectiva iluminista, a caminhada do esclarecimento humano não teria um ponto final, de
modo que seus projetos de educação mantinham a universalização progressiva como uma
meta pressuposta. Independente da não realização imediata de suas ideias, o plano de
Lepeletier fez o debate pedagógico da Revolução deslocar-se novamente e ganhar novos
contornos. A educação se tornava o instrumento revolucionário por excelência, sendo
explicitado de forma contundente o “substrato político da ação educacional”. (BOTO, 1996,
p. 183).
O desdobramento dessas tendências levou a várias consequências, como as duas
seguintes: a defesa do desenho como uma disciplina central, sendo “arte aplicada que
possibilita a formação de conceitos a partir da observação e da manipulação de objetos e, ao
mesmo tempo, a idealização e a confecção de utensílios do cotidiano material mais luxuosos e
confortáveis”; (HILSDORF, 2006, p. 145) e a proposição das Escolas Centrais de Engenharia
e Serviço Público (Politécnica), que “foram projetadas [entre 1794 e 1795] para substituir
todas as instituições escolares de ensino secundário e superior existentes – tanto os colégios
de humanidades e as universidades profissionais quanto os institutos enciclopédicos (...), bem
como o ensino artesanal, dado pelas corporações de ofício e organizado segundo o tradicional
modelo iniciático”. (HILSDORF, 2006, p. 145).
As escolas centrais acabaram suprimidas em 1802 e substituídas pelos Liceus, cuja
cultura escolar voltou a se assentar na organização colegial e no tradicional ensino das
matemáticas e do latim; às crianças da classe trabalhadora ficava reservada uma educação
elementar sumária; ao longo do século XIX, o ensino secundário na França será
predominantemente literário; somente em 1902 o ensino de ciências como “aquisição dos
meios adequados a transformar o mundo exterior” teve reconhecimento legal e pôde
permanecer no currículo secundário. (HILSDORF, 2006, p. 146).
Marco Braga (2000, p. 53) descreve a construção de uma nova Paidéia relacionando
ciência, técnica e educação. Esse processo teria se dado paulatinamente, em especial no
43
século XVIII, quando se formula um projeto civilizacional de matriz iluminista. Nessa cultura
racional, ciência e técnica ainda caminhavam paralelas, mas viriam a se encontrar e se
entrelaçar num projeto de formação concreto na École Polytechnique, na virada dos séculos
XVIII/XIX. A formação de um novo homem e de novos dirigentes capazes de articular
técnica, ciência e política. Num movimento mais amplo da cultura, as técnicas tradicionais
ganharam o estatuto de tecnologia, inseridas em outro sistema de conhecimentos e de
produção.
O autor expõe o estado da técnica e da ciência à época para compreender melhor os
antecedentes que convergiram para a formulação do plano da Escola Politécnica. O projeto da
Politécnica foi construído em consonância com as ideias e propostas de Condorcet, que
valorizavam a igualdade, a possibilidade de desenvolvimento dos talentos de cada um.
Refletia e operacionalizou um modo de formação e um modo de inserção social para os
engenheiros modernos. É curioso que, dentro desse projeto, o desenho técnico, uma disciplina
vinculada ao surgimento dos engenheiros renascentistas, tenha se tornado uma disciplina
importante nos currículos.
No Brasil, a Escola Politécnica era uma escola de nível superior, que abriu espaço para
a formação de quadros técnicos e científicos. No final do século XIX, o conflito entre
currículo humanista e currículo científico fez-se sentir no Brasil, assim como em outros países
da América. Por aqui, predominou no século XIX um currículo enciclopédico com ênfase nos
estudos clássicos, com pouco espaço para as ciências.
O Colégio Pedro II, que era a instituição de referência com relação ao ensino
secundário nacional, manteve um currículo enciclopédico mesmo com o advento da
República, apesar de transformações eventuais que, em alguns momentos, recuperavam
antigas formas, absorvendo pequenas novidades. O ensino de ciências ganhou espaço
inicialmente sob influxo das concepções positivistas oriundas de Auguste Comte, mas o
currículo estritamente inspirado nessas concepções também não durou muito. De modo geral,
no Brasil, o ensino secundário permaneceu, até 1961, como um curso de cultura geral e de
cultura humanística. (NUNES, 2000, p. 44)
A institucionalização da filosofia no sistema educacional francês se deu no início do
44
século XIX. Naquele momento se constitui a ideia de uma filosofia reservada a quem tem o
tempo livre e a capacidade de aceder à verdade, enquanto que por incapacidade constitutiva
ou por falta de tempo, a maioria seria destinada à crença: “faz falta uma religião para o povo”.
(VERMEREN, 2009, p. 25). Pesquisando a vida e obra de Victor Cousin, Vermeren descobre
que “o espiritualismo universitário francês participava diretamente do paradigma do Estado
liberal moderno nascente”. (VERMEREN, 2009, p. 26). Essa filosofia, reservada ao ensino de
poucos, assim como um ensino secundário que não era capaz de atender aos grandes
conjuntos da população, se vão ser questionados na França, no Brasil vão permanecer nesse
padrão até a segunda metade do século XX.
A escola iluminista e seus projetos chegou ao Brasil, mal e mal, no final do século
XIX, quando a escola tradicional começou a sofrer críticas em função do fortalecimento das
propostas positivistas e cientificistas elaboradas não só para a escola, mas para todas as
instituições estatais. O episódio da crítica de Silvio Romero ao currículo de filosofia do
colégio Pedro II é um exemplo (que será analisada adiante), ou um momento, dessa crítica e
dessa tentativa de implementar uma primeira versão de uma escola moderna no Brasil, ainda
que essa escola permanecesse voltada para a elite, para uma parcela muito pequena da
população.
A “Paidéia Iluminista”, portanto, exerceu-se mais através da criação da escola
politécnica do que através do ensino secundário. Não obstante, aos poucos impôs-se um
currículo positivista, que teve sua concepção, estrutura e conteúdo afetados por outros
movimentos curriculares, como a discussão com o currículo humanista, que incluía desde uma
formação política republicana quanto o cultivo das letras e dos valores literários e religiosos.
(SOUSA, 2009, p. 72-90).
A partir da década de 1990, o currículo por competências torna-se o discurso oficial,
através da elaboração de diretrizes, parâmetros e outros documentos relativos ao currículo.
Dentro de um contexto de desvalorização da profissão de professor na cultura, coloca-se um
desafio paradoxal para o país: trata-se de “uma reforma curricular complexa junto com a
desvalorização do trabalho intelectual da escola como instituição cultural”, como diz
Krawczyk (2003, p. 200).
Falando brevemente da presença da filosofia nas escolas brasileiras, podemos marcar
alguns grandes momentos dessa presença: uma “filosofia” catequética entre os jesuítas;
envolvia a primeira e segunda escolástica e os ensinamentos dos jesuítas; mas era voltada
principalmente para a cristianização do gentio americano, um grande movimento de conquista
e de encobrimento do outro.
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No século XIX, nas poucas escolas que atendiam a uma parcela pequena da
população, a influência francesa torna oficial uma filosofia eclética, de caráter metafísico, que
depois é rejeitada pelo positivismo, e às vezes admitida como uma espécie de cultura clássica
humanista, ou afirmada como necessária por seu caráter de educação política, republicana e
democrática, ou mesmo socialista. Mas mesmo o socialismo guarda em algumas perspectivas
uma certa reserva com relação à filosofia, por considerar que ela também faz parte do poder,
da ideologia, ela é um instrumento de defesa da desigualdade oculta do capital.
Uma filosofia cientificista obtém predominância por algum tempo, ligada talvez aos
ideais da cultura politécnica, da paidéia dos engenheiros, que ocuparam outras instituições de
ensino, especialmente as de formação científica e técnica. Mas uma filosofia que não despreza
a ciência, e, no entanto não se resume a ser uma filosofia a serviço da ciência, também lutou e
conquistou algum espaço na histórica da prática curricular, do currículo em ação, nas salas de
aula das escolas brasileiras.
A filosofia esteve presente como parte da formação clássica do ginásio, do científico e
do clássico, na áurea escola pública de qualidade dos anos 1940 e 1950, mas que também era
uma escola de elite, restrita a uma pequena parcela da população brasileira. Nos anos 1960,
com a repressão política e os imperativos do desenvolvimento econômico autoritário, a escola
brasileira experimentou um momento de expansão, atingindo maior parcela da população. A
filosofia, porém, foi gradualmente expulsa do currículo do ensino secundário, e se teve
presença intermitente em algumas poucas escolas particulares, no ensino público a ausência
foi a marca. Movimentos pelo retorno da filosofia para o currículo do ensino médio existem
desde os anos 1970, com a atuação da SEAF por exemplo.
O retorno progressivo nos estados resultou num quadro que foi assim descrito no ano
de 2004: A filosofia retornou ao ensino médio depois do final da ditadura brasileira. Esse
retorno se deu, inicialmente por iniciativa dos Estados da Federação, que incluíram em seus
currículos a disciplina, de formas variadas, mas de modo geral com apenas, no máximo, dois
tempos de aula semanais e em apenas uma série do ensino médio. Em 2004, a pretexto de uma
pesquisa encomendada pela UNESCO, foi feita uma avaliação da situação da filosofia nas
escolas brasileiras:
Naquela época, se notava, como uma realidade que se pode supor presente entre as
décadas de 1980 e 1990, adentrando o novo século, a seguinte situação: como consequências
da ausência da disciplina no currículo, não se realizam concursos, portanto não há contratação
de professores; temas da disciplina são tratados por profissionais de outras áreas; daí que não
se efetive qualquer ensino filosófico; a disciplina é desvalorizada diante das outras, mesmo
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que isso vá contra a letra da legislação; o vestibular costuma contribuir para essa
desvalorização, por não incluir exames sobre filosofia; ela vira, quando existe, uma disciplina
de caráter “ornamental”. (FÁVERO, et alii, 2004, p. 268-269). Em suma, a presença da
filosofia nas escolas, desde o início do século XX, é uma história de presenças e ausências
intermitentes. (ALVES, 2002).
Tendo como pano de fundo esse longo processo, examinaremos um caso de conflito
entre um currículo humanista e um currículo científico, de modo a destacar em que termos
esse conflito se deu numa escola brasileira no final do século XIX e no início do século XX.
O trabalho pretende analisar um texto elaborado por Silvio Romero em 1885, no qual
defendia a mudança do programa de filosofia no Imperial Colégio de Pedro II. Ele apresentou
um programa de lógica em substituição ao programa anterior da disciplina já no ano de 1880,
ano em que foi aprovado em concurso para professor de filosofia. A primeira apresentação
feita à Congregação não foi aprovada, o que levou à redação de uma apresentação e
justificativa formais da mudança de programa no ano de 1885. Esse texto será objeto de
análise neste trabalho.
O período em que se dá essa proposta já é a última década do Império
Brasileiro, quando movimentos de contestação política e social já se manifestavam desde o
início da década anterior. Entre os pontos para os quais se clamava por mudança, estavam o
estabelecimento de um Estado laico e a democratização das instituições políticas, a abolição
da escravidão e a instauração da república. Esse período inicia uma crise do status quo
imperial, que tinha sido estabelecido em meados do século, em movimento de centralização
do poder que vigorou hegemonicamente e ficou conhecido como Tempo Saquarema, a partir
da designação de Mattos (1987).
Os princípios desse status quo eram a monarquia, a escravidão, a religião do Estado.
(ALONSO, 2009, p. 90). Configuravam um ambiente hierárquico política, social e ideológica
ou culturalmente, dada a predominância respectiva do poder moderador, da oligarquia e sua
boa sociedade e do domínio da doutrina católica sobre as instituições imperiais. Para um
único exemplo desse domínio ideológico, cite-se o juramento constitucionalmente
estabelecido, obrigatório para o próprio Imperador, assim como para os Deputados e para os
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Alfredo Bosi cita o próprio Silvio Romero: “Até 1868 o catolicismo reinante não tinha
sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista, católica e eclética, a mais
insignificante oposição; a autoridade das instituições monárquicas o menor ataque sério por
qualquer classe do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do feudalismo prático
dos grandes proprietários a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces,
enganosos e encantadores cismares, a mais apagada desavença reatora”. (BOSI, 1994, p. 165).
Correto: Alfredo Bosi cita o próprio Silvio Romero:
Até 1868 o catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a
filosofia espiritualista, católica e eclética, a mais insignificante oposição; a
autoridade das instituições monárquicas o menor ataque sério por qualquer classe do
povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do feudalismo prático dos grandes
proprietários a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, enganosos e
encantadores cismares, a mais apagada desavença reatora. (BOSI, 1994, p. 165).
Conhecido como "ecletismo espiritualista", seu sistema foi adotado como filosofia
oficial no Colégio Pedro II. Em consequência, tornou-se obrigatório nas demais
51
Silvio Romero fez recensões críticas das obras dos três primeiros autores, recensões
publicadas em A filosofia no Brasil (1878). Nessas recensões, manifesta-se seu espírito
renovador do pensamento brasileiro, lutando por superar um estado pré-científico,
bacharelesco, retórico, religioso e metafísico, em suma, o ecletismo de Cousin temperado com
o arcaísmo das elites brasileiras.
As críticas apresentadas ao programa da disciplina no nível secundário relacionam-se
com uma crítica mais ampla a diversos aspectos da cultura brasileira. Essa crítica, de caráter
científico e evolucionista, por vezes positivista e cientificista, vinha sendo feita a partir da
chamada “Escola do Recife”, da qual os principais representantes foram Tobias Barreto e
Silvio Romero.
Assim, a própria concepção de filosofia presente no programa de 1882 é questionada,
por expressar uma concepção inadequada da disciplina, desatualizada em termos científicos e
envolvendo tópicos que não poderiam ser considerados científicos. Outros argumentos, de
caráter mais pedagógico, também aparecem, como: a inadequação do estudo de Filosofia no
ensino secundário, por se tratar da disciplina que colocaria mais exigências ao conhecimento e
à inteligência dos alunos; uma versão resumida de seus pontos contribuiria para realizar uma
deformação da inteligência. Daí a proposta de limitar o programa a tópicos de Lógica, que
seria um elemento preparatório para estudos futuros.
Curiosamente, no decorrer da argumentação, Silvio Romero vê-se obrigado a abrir
espaço para tópicos que não seriam próprios do estudo de Lógica, tal como ele propunha.
Inclui dois pontos (“restritíssimos”), um de Psicologia e um de Moral, que ali estariam apenas
para atender a críticas que lhe tinham sido feitas por defensores do programa anterior, mas
que, segundo o próprio Romero, não eram coerentes com a proposta que ele apresentava.
No ponto sobre “o exemplo dos países mais cultos da atualidade”, Romero chega a
admitir que um programa semelhante ao criticado é realizado na França. Porém, argumenta
que a França do século XIX seria um exemplo de produção insignificante em Filosofia, ao
contrário de outras disciplinas. Chega a sugerir que a pobreza da produção filosófica francesa
daquele século poderia se dever aos defeitos do programa da escola secundária. Assim, toma
como exemplo principal, digno de ser seguido, a Alemanha, onde a Filosofia faz parte
somente dos estudos de nível superior, reservando-se ao nível secundário o estudo da Lógica.
52
1
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm. Acesso em 21 de fev. 2013.
54
Além dos pontos citados, os católicos ultramontanos tendiam a ver com maus olhos a
abolição da escravidão, pois esta implicaria no aumento da imigração para preencher os
postos de trabalho, com o provável aumento do número de estrangeiros não-católicos no
Brasil; também se posicionavam contra a liberdade do voto (por incluir tanto o voto quanto a
elegibilidade dos não-católicos) e contra medidas que visassem a igualdade ou a liberdade das
mulheres, que eram consideradas como tendo papel fundamental na manutenção da família
mas que deveriam ser subservientes aos homens. (BARROS, 1959, p. 54-57).
O movimento ultramontano e documentos como a encíclica e o Syllabus tiveram
reflexos na educação no Brasil, como a tentativa de introdução de uma perspectiva católica
nas faculdades de Direito e de Medicina (rejeitando as visões cientificistas e liberais,
predominantes ao menos por alguns períodos), e também na discussão sobre a liberdade de
ensino.
De modo geral, os católicos defendiam que “o ensino da religião católica e de sua
moral” deveria ser o núcleo do ensino, opondo-se à abertura aos temas científicos ou liberais
ou a qualquer forma de instrução que pudesse ser considerada “anti-católica”. Chegaram a
criticar a obrigatoriedade do ensino, por considerá-la um abuso da função do Estado. (Idem, p.
57-59).
Sobre o tema da liberdade de ensino, encontram-se posições {de quem são essas
posições?} que defendem que o Estado não deve promover o ensino, dado que ele não teria
uma doutrina – o que favoreceria que instituições já organizadas, como a igreja católica,
teriam condições de organizar escolas e faculdades para difundir a sua doutrina; mas também
encontram-se posições que defende que o Estado deve promover instituições que garantam a
liberdade de ensino – justamente por não ter uma doutrina, o Estado teria condições de criar
instituições livres. Neste caso, a disputa sobre a presença das doutrinas católicas se faz dentro
das instituições. (Idem, p. 60-63)
É de se supor que a proposta de programa de filosofia feita por Silvio Romero se
enquadra no contexto de uma disputa como esta (interna às instituições de ensino). O
programa criticado por Romero tem um caráter tradicional, com ênfase em pontos
metafísicos, como a imortalidade da alma, a existência de Deus e a moral, e parece refletir a
influência católica predominante até então nesse campo do conhecimento. O fato de o
programa proposto por Romero não ter sido imediatamente aceito, e ele ter sido levado a
escrever um texto relativamente extenso de fundamentação de sua proposta mostra que havia
resistências a essa mudança.
O próprio comentário de Romero em seu texto de defesa do programa de que foi
55
Enquanto o mundo vivia uma expansão das ideias cientificistas, positivistas, inclusive
para a educação, construindo escolas técnicas, politécnicas, científicas, eliminando a
metafísica e os estudos inúteis, nos quais não se via efeito econômico; tanto na Alemanha
quanto no Brasil se verifica essa política de implementação de escolas técnicas e científicas
associada ao despertar pelo interesse econômico da educação. A educação agora faz parte da
produção, uma formação básica para o trabalho se torna necessidade da vida nas sociedades
capitalistas emergentes no final do século XIX.
No Brasil, pode-se verificar o ascenso dessas políticos nas discussões de final de
século sobre a educação, na emergência da chamada “escola de Recife”, nos documentos
produzidos por Rui Barbosa, Silvio Romero e outros relativos à educação e à filosofia. Na
Alemanha, Friedrich Nietzsche (1844-1900), proveniente de uma formação clássica ampla e
rigorosa, modulada pela cientificidade da filologia, ingressava na carreira universitária e
também se deparava com o caráter que as instituições educativas, de nível secundário e
superior, assumiam cada vez mais.
Em todos os seus textos, Nietzsche revela sua face de crítico da cultura. Desde jovem,
em suas primeiras publicações, já trata desse tema, seja ao abordar o nascimento da tragédia
entre os gregos, seja ao discutir as condições da cultura alemã de seu tempo. A discussão
sobre a cultura está ligada a várias outras, em particular às questões relativas à educação ou à
formação. Os textos que abordaremos aqui são as Considerações Extemporâneas, em
particular da segunda, Da utilidade e desvantagem da história para a vida (NIETZSCHE
2003b); da terceira, Schopenhauer como educador (NIETZSCHE 2003a); e do texto das
Conferências sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino (NIETZSCHE 2003a).
Nesses textos, um dos temas centrais de Nietzsche é a questão da educação, pensada
em termos da Bildung, palavra alemã de significado complexo, que, como mostra Suarez
(2005, p. 191-198), indica de forma geral o processo da cultura ou a formação cultural, e que
é comumente traduzida como cultura ou formação. Trata-se da formação entendida no sentido
mais amplo na cultura alemã, e que recebeu vários significados e grande importância para
diversos autores desde o século XVIII. Ao lado de outras palavras, como a grega paidéia, a
latina eruditio e a também alemã Aufklärung, ela indica os elementos centrais daquilo que
ainda entendemos como cultura.
58
Nos textos de Nietzsche que analisaremos aqui, serão apresentados brevemente seu
contexto e investigaremos as ideias relativas à cultura, à formação, à educação, à arte, à
ciência e à filosofia. O centro de nossas preocupações será investigar como esses conceitos
estão relacionados com a ideia de educação e o papel da filosofia que aí se elabora. Faremos
primeiro uma exposição geral de algumas das primeiras obras de Nietzsche e depois nos
deteremos naquelas que dizem respeito mais diretamente ao nosso tema.
Como mostra Rosa Dias (1991, p. 40), no final do ano de 1872 Nietzsche prepara
cursos para a universidade e redige A filosofia na época trágica dos gregos, um estudo sobre
os filósofos pré-platônicos (Tales, Anaximandro, Heráclito, Parmênides e Anaxágoras),
estudando esses autores não como um filólogo, mas como um “filósofo médico” que se
preocupa com a cultura. Em suas anotações de 1874, Nietzsche concebe o filósofo como “o
médico da civilização”. Desse modo, “filosofar significa interpretar e diagnosticar os “males
da civilização”, encontrar remédios para curá-la ou então envenenar aquilo que a destrói”.
(DIAS, 1991, p. 40, nota).
Nesses estudos sobre os primeiros filósofos gregos, Nietzsche aprende o quão pouco
vale e o quanto é inútil à vida a compulsão ao saber a qualquer preço, tão frequente nos meios
universitários. O saber deveria servir a uma melhor forma de vida, como o era entre os gregos.
Não chega, porém, a publicar esse livro. Acompanhando as dificuldades do projeto de
Wagner, de criar um teatro em Bayreuth, “decide por em prática uma máxima de Stendhal,
que ‘aconselha a fazer a entrada na sociedade com um duelo’. Escreve de 1873 a 1875 quatro
textos polêmicos, denominados Considerações extemporâneas.” (ROSA DIAS, 1991, p. 40).
As Extemporâneas foram concebidas com um caráter nitidamente educativo e deviam
servir de “grito de alerta e de advertência à juventude”. (ROSA DIAS, 1991, p. 43). David
Strauss, o devoto e o escritor (publicado em 1873) é o título da primeira, e trata de um autor
muito apreciado pela burguesia alemã. Ao atacar as ideias e a forma da obra A antiga e a
nova fé, de Strauss, Nietzsche elabora uma crítica à cultura alemã de seu tempo. Esta, apesar
das vitórias militares e da unificação política da Alemanha sob Bismarck, não era capaz de
desenvolver sua própria força, permanecendo submissa e imitadora da cultura francesa.
Mesmo derrotada militarmente, a França mantinha seu prestígio cultural. Os alemães
imitavam os franceses, no que diz respeito ao comportamento em sociedade, na composição
de peças teatrais e concertos, e na escrita de seus livros. (DIAS, 1991, p. 40).
A cultura alemã sofria com a atuação dos “filisteus da cultura”, que seriam aqueles que
pensam ser os portadores da cultura, mas na verdade não fazem mais que falseá-la e perdê-la
ao ficarem presos aos seus signos exteriores, acumulando referências e informações mal
59
filósofo, uma existência julgada capaz de fornecer um exemplo e servir como modelo para
quem pretende se educar. São criticados aí os filósofos universitários, suas deformações
profissionais que afetam a própria erudição. Ao contrário, Nietzsche enfatiza o papel crítico e
o poder de transformação que a filosofia deveria ter, com relação à ordem estabelecida.
(DIAS, 1991, p. 43).
Em julho de 1876, publica a quarta Extemporânea: Richard Wagner em Bayreuth. A
arte tornada mercadoria, a avidez do público por prazer e diversão, a ganância dos
empresários e a mediocridade dos artistas são criticadas e contrapostas à criação de Wagner,
que conferia dignidade à vida e à arte. (DIAS, 1991, p. 43). Por ocasião do Primeiro Festival
de Bayreuth, porém, Nietzsche reformula seu juízo sobre Wagner, rompendo com ele e com
seus projetos para a cultura alemã. A ruptura com Wagner se dá sob a justificativa que o
drama musical criado por ele não era capaz de converter a arte em potência educadora da
nação, caindo sob as mesmas críticas que tinham sido dirigidas aos filisteus das cultura.
(DIAS, 1991, p. 46)
Fazia parte do projeto de Nietzsche escrever ainda outras Extemporâneas, mas não
realiza esse trabalho, dedicando-se às aulas. Ofereceu cursos sobre a literatura e a retórica
grega no inverno de 1874-1875. (DIAS, 1991, p. 43-44) Sua convivência universitária, porém,
não era pacífica. Em carta de 13 de dezembro de 1875, a seu amigo Gersdorff, enuncia um
ideal de vida que tem relação com suas convicções sobre a relação entre vida e conhecimento:
diante da ausência de honras ou mesmo de qualquer vida social. Nesse momento, Nietzsche
talvez pense que a rotina institucional que deverá seguir combinará bem com seu processo
criativo.
A partir de 1876, porém, tem crises de saúde que lhe obrigam a se afastar das
atividades acadêmicas. Após algumas idas e vindas, as crises se agravam, de modo que, a
partir de 1879, Nietzsche se afasta definitivamente da universidade, passando a levar uma
vida de pensador solitário, intercalando contatos eventuais com amigos e crises de saúde que
terminariam por desembocar na perda das faculdades mentais que o deixou incomunicável na
sua última década de vida, entre 1890 e 1900.
Rosa Dias (1991, p. 60) sintetiza o sentido da reflexão de Nietzsche sobre a educação
que aparece nos textos desse período, em particular nas obras que estamos analisando:
impossibilidade de criar novos sentidos. Acabam servindo a uma ordem estabelecida, mas o
que não se vê é que acabam por criar uma ordem fraca, em vez de consolidá-la. Cria-se uma
espécie de ordem da fraqueza, da destruição cotidiana da vida, que se reproduz e impede a
emergência de individualidades potentes. Essas questões serão articuladas, em primeiro lugar,
por meio da discussão sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida, na 2ª
Extemporânea, texto do qual analisaremos alguns pontos a seguir.
Convém mencionar logo que as ideias de Nietzsche na 2ª extemporânea e nas
conferências sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino são largamente
influenciadas pelas ideias de Jakob Burckhardt, historiador suíço que já trabalhava na
Universidade da Basiléia, quando Nietzsche vai para lá. Entre as ideias comuns, ou as zonas
de influência, vindas de Burckhardt, Chaves (2000, p. 44) aponta três:
São notáveis os pontos de contato entre os dois pensamentos, e para nós sobressai o
terceiro dos pontos indicados, no qual a discussão sobre a cultura e a educação implica um
clamor pela superação das formas do presente, que são formas consagradas da Modernidade.
Para isso, será preciso chegar à ideia de cultura como unidade de estilo das criações de um
povo, o que será visto mais adiante.
Na 2ª Extemporânea, Nietzsche aborda a história confrontando-a com a vida. A
epígrafe de Goethe anteposta ao texto é bastante explícito sobre o tema que Nietzsche
desenvolve: “De resto, me é odioso tudo o que simplesmente me instrui, sem aumentar ou
imediatamente vivificar a minha atividade” (NIETZSCHE, 2003b, p. 5).
Há um conflito entre a instrução e a vida, e esse conflito deve ser melhor examinado.
A conclusão a que ele vai chegar, também é clara, como indica Rosa Dias (1991, p. 60):
“deve-se abominar o ensino que não vivifica e o saber que esmorece a atividade. O homem
deve aprender a viver, e só se utilizar da história quando ela estiver a serviço da vida”. O
ponto inicial de sua investigação será, portanto a relação da história com a vida.
Há um excesso de sentido histórico que degrada e destrói a vida de um homem, de um
povo ou de uma cultura. Mas o sentido “a-histórico” e o sentido histórico são ambos
necessários à vida, não se deve negar um em favor do outro, mas é preciso encontrar uma
medida de equilíbrio entre os dois. A criação depende de uma certa injustiça com a história, e
63
o excesso de justiça histórica impede toda criação. (NIETZSCHE, 2003b, §1, p. 10-11). Essa
relação entre história e vida (e sobre a criação de novas formas de vida) é analisada sob três
aspectos: a história monumental, que concerne ao vivente conforme “ele age e respira”; a
história antiquária, que lhe diz respeito conforme ele “preserva e venera”; e a história crítica,
que lhe afeta conforme ele “sofre e carece de libertação”. (NIETZSCHE, 2003b, §2, p. 17-
18).
Ele exprime uma aversão à cultura e à educação de sua época, e mesmo correndo o
risco de ser mal interpretado diante de um século que cultiva o sentido histórico com esforço
intenso, ele enuncia suas formulações desafiadoras, seu desafio à cultura e às convicções de
sua época. Nesse sentido, Nietzsche escreve contra o seu tempo, em vista de um tempo por
vir.
Ao falar de história, Nietzsche está falando de ciência, pois cumpre analisar o que sua
época considera como uma história científica (no sentido de uma história minuciosa,
documental, com procedimentos rigorosos), como era praticada a filologia, sua especialidade
profissional. Como pano de fundo, como vimos, está o pensamento de Hegel que indica um
sentido de ciência como saber de sistema, a completude do sistema que concebe a história do
desenvolvimento da consciência em direção à liberdade. A filosofia da história como um tal
sistema era a concepção predominante sobre o modo de fazer filosofia naquele final de século
XIX.
Ao tratar do sentido histórico e ao se referir ao movimento histórico do século XIX,
Nietzsche pensa no hegelianismo prevalecente na universidade alemã em sua época. A história
tinha se tornado uma espécie de “sucedâneo da religião” (DIAS, 1991, p. 60) ao ser pensada
como um processo, um processo histórico, no fim do qual se realizava a consumação do
sentido de todas as existências. Entregar-se ao processo tinha se tornado quase um lema de
época, e contra essa disposição bastante difundida é que Nietzsche preocupa-se em escrever
contra o seu tempo. Seguindo um conselho de Stendhal, Nietzsche decide entrar na sociedade
desafiando-a para um duelo e, coerente com sua noção de heroísmo (intelectual, cultural),
constrói sua própria biografia como a de “um guerreiro contra seu tempo”. (NIETZSCHE,
2003b, §6, p. 58). Essa existência combativa, polêmica, é a que cultiva e manifesta a vida,
sem deixá-la subjugar à vontade de saber ou outras formas de negação.
Sobre o modo como Nietzsche discute as ideias de Hegel, Chaves (2000, p. 62),
ressalta que a crítica de Nietzsche ao hegelianismo não se baseia numa leitura cuidadosa dos
textos daquele autor, mas muito mais na contestação de autores influenciados por ele. No
texto da 2ª Extemporânea, isso fica claro quando Nietzsche elege a obra A filosofia do
64
inconsciente (de 1867), de Eduard von Hartmann (1842-1906), para analisar e criticar. É uma
obra que teve grande ressonância em sua época, e que consiste em uma elaboração feita a
partir das filosofias de Schelling, Hegel e Schopenhauer. (FERRATER MORA, 2004, p.
1561).
A síntese que faz do pensamento de Hegel (considerando as ressalvas anteriores)
mostra como essa história, ao mesmo tempo científica e filosófica, conduz a uma
interpretação da meta de todas as existências e do sentido de entrega ao processo histórico:
artificial porque tolera a contradição entre vida e cultura. A cultura era um adorno, um enfeite,
uma “flor de papel decalcada sobre a vida”. Para Nietzsche, ao contrário, a cultura só pode
nascer, crescer e se desenvolver a partir da vida e de suas necessidades. (DIAS, 1991, p. 60).
A erudição voltada para si mesma não passava de uma cultura artificial e em desacordo com a
vida, provindo do excesso de história, do saber a qualquer preço, da ruminação excessiva do
passado, da cultura da memória que impede o esquecimento. “Quando a história se põe a
serviço da vida passada,... torna-se coveira do presente”. (DIAS, 1991, p. 61). O sentido
histórico empobrece e provoca a degradação da vida; não sabe fazê-la nascer. Ele é necessário
à vida, em alguma medida, mas seu excesso e seu predomínio a envenenam. O saber buscado
por si mesmo torna-se contrário à vida. O saber serve à vida, mas a vida não deve ser serva do
saber. O estado da cultura histórica é uma inversão de valores que acaba por aniquilar todo
valor e portanto toda atividade de avaliação e de criação.
Nietzsche não opõe a história à ausência de sentido histórico. Ele discute em que
medida a história pode ser útil à vida. O problema do sentido histórico de seu tempo é que ele
gera, ao mesmo tempo, a expansão do saber e o enfraquecimento da cultura. Trata-se não
apenas de lembrar, mas também de esquecer. A fixação na lembrança, na memória, acaba por
destruir a vida; é preciso, portanto, saber esquecer também. O esquecimento é necessário à
criação. A capacidade de esquecer e de reelaborar o passado é a medida da força plástica do
homem.
Para determinar em que medida o passado deve ser esquecido, sob pena de se tornar
coveiro do presente, é necessário conhecer a medida exata da força plástica de um
homem, de uma nação, de uma civilização, quer dizer, a capacidade de crescer por si
mesmo, de transformar e de assimilar o passado e o heterogêneo, de cicatrizar suas
feridas, de reparar suas perdas, de reconstruir as formas destruídas. (NIETZSCHE
apud DIAS, 1991, p.61).
Como esclarece Rosa Dias (1991, p. 61, nota), “Nietzsche dá o nome de força plástica
de um homem, de uma nação, de uma civilização à capacidade que têm de assimilar o passado
e encontrar em si a energia necessária para crescer, agir e criar”. Daí que “o artista, homem
ativo por excelência, não deixa que a massa do saber histórico o submerja, porque sabe que
ela retiraria de si o único poder que lhe cabe na terra: o da criação”. (DIAS, 1991, p. 61).
Os criadores são uns poucos gigantes que estabelecem pontes por sobre o deserto do vir-a-ser.
São indivíduos que não se entregam ao processo histórico, mas que vivem, simultaneamente,
fora do tempo. A “república do gênio” foi descrita por Schopenhauer: “um gigante conclama o
outro através de intervalos desérticos entre os tempos, e, imperturbado pela algazarra de
pérfidos anões que se arrastam aos seus pés, prossegue o elevado diálogo espiritual”.
66
[...] confio no poder inspirador que, na ausência do gênio, dirige a embarcação por
mim, confio na juventude, ela me conduziu aqui corretamente, quando impulsionou
a um protesto contra a educação histórica da juventude, conduzida pelo homem
moderno, e quando exigiu daquele que protesta que o homem, sobretudo, aprenda a
viver e só utilize a história a serviço da vida aprendida. (NIETZSCHE, 2003b, § 10,
p. 89-90).
Note-se que Nietzsche diz “na ausência do gênio… confio na juventude”. Por isso a
questão da educação é tão importante, porque ela diz respeito ao porvir, ao destino da
humanidade – não como atingir a meta do desenvolvimento, mas como realização da
grandeza. Porém, a educação alemã caminha justamente no sentido contrário. Nietzsche
constata que o programa educativo alemão é um programa de formação do “homem
erudito”, caracterizado de forma crítica "o erudito, o homem de ciência,… o mais
rapidamente útil, que se separa da vida a fim de reconhecê-la clara e distintamente”. O
resultado dessa educação
como fica a filosofia? “Ela permanece um monólogo erudito do passeante solitário, uma presa
casual do indivíduo, um segredo oculto de alcova ou uma tagarelice inofensiva entre velhos
acadêmicos e crianças”. (NIETZSCHE, 2003, § 5, p. 43). Para superar esse mundo, portanto,
é preciso educar uma nova geração, “uma centena de primogênitos”, que irão constituir uma
cultura autêntica, como teria acontecido no Renascimento.
Concluiu-se que a cultura alemã é superficial, e não a expressão direta da vida; um
suplemento, um excedente. Devemos desfazermo-nos dela, e isso não acarretará nenhum
prejuízo para a vida, embora não seja fácil livrar-se dela, que se tornou em nós uma natureza.
A cultura autêntica, mais natural, no sentido de mais de acordo com os instintos, deve
substituir essa cultura superficial, mas até que ela se torne uma natureza nossa é preciso agir
contra si mesmo e desfazer a natureza que foi construída em nós. Essa geração deverá educar-
se a si mesma e contra si mesma – isto é, terá de formar novos hábitos e uma nova natureza,
desfazer-se de sua primeira natureza, abandonar seus primeiros hábitos, de tal modo que diga:
“Que Deus me defenda de mim, da natureza que me foi inculcada”. (NIETZSCHE, 2003b, §
10, p. 93).
Para deixar de cultivar as virtudes do rebanho é necessário que os homens assumam
uma outra virtude como primeira, que é a virtude de ousar ser si mesmo. Triunfar sobre si
mesmo quer dizer deixar de lado aquela natureza que lhe foi imposta e que impede a sua
própria vida crescer e se manifestar. Ousar ser si mesmo quer dizer viver como singularidade,
viver segundo sua própria lei e sua própria medida. Como consequência, “só deve respeitar
uma única instituição: sua própria alma”. (DIAS, 1991, p. 67).
No primeiro parágrafo da Terceira Consideração Extemporânea: Schopenhauer
como Educador, Nietzsche (2003a) apresenta a preguiça como característica mais
disseminada entre os homens; para homens assim, a maior virtude é estar conforme às
opiniões de todos; no entanto, o texto deve mostrar que tornar-se si mesmo é sair dessa
condição, sendo capaz de viver a própria vida como uma singularidade.
natureza aristocrática do espírito seria cultivada e valorizada para que viesse a produzir o
surgimento do gênio, aquele que deveria criar as obras capazes de conduzir toda a grande
massa, ansiosa por servi-lo e segui-lo.
Ao contrário, nas instituições de ensino de seu tempo, o que se nota é o objetivo
inverso: a tentativa de “emancipar as massas da soberania dos grandes indivíduos”
(NIETZSCHE, 2003a, p. 89). Contra a cultura dos indivíduos selecionados, a cultura da
massa; não se visa o julgamento da cultura de um povo pelas grandes obras e pelos grandes
heróis de uma época, pelo modo como esses são tratados, reconhecidos e favorecidos, ou
ignorados, rejeitados e destruídos.
O modo como se dá o ensino da língua alemã é sintomático dessa desvalorização da
cultura. O ensino da língua deveria se orientar pelo bom gosto e por um severidade digna, por
uma autoridade capaz de distinguir com clareza entre erros e acertos no uso da língua (ao
modo das línguas clássicas, o grego e o latim). Dever-se-ia buscar chegar a um “sentimento de
um dever sagrado” para com a língua, uma ligação com a arte que se traduziria em “um
desgosto físico por certas palavras e jargões, aos quais os jornalistas nos habituaram”, e este
seria o embrião de qualquer cultura superior, marcada por uma “grande dificuldade” e por
uma “imensa tarefa” na formação do homem culto.
O professor da língua materna deveria tornar seus alunos atentos a mil detalhes,
deveria analisar os clássicos linha por linha, mostrando o cuidado e o rigor necessários em
cada exame, tendo sempre “no coração um verdadeiro sentimento artístico” e a “compreensão
total do que se escreve”; deveria obrigar os alunos a exprimir o mesmo pensamento inúmeras
vezes, buscando a melhor forma de fazê-lo. Toda essa minúcia e esse rigor deveriam fazer os
menos dotados chegarem a um “terror sagrado” diante da língua e “os mais dotados a um
nobre entusiasmo para com ela” (NIETZSCHE, 2003a, p. 69-70).
Ao contrário desse ideal, porém, o ginásio alemão tinha passado a cultuar a erudição e,
nos tempos de Nietzsche, o jornalismo. A erudição é acusada de tratar a língua como morta,
sem atentar para a obrigação que se deveria ter com “o presente e o futuro da língua”; porém:
[...] a cultura começa justamente quando se começa a tratar o vivo como vivo, e a
tarefa do mestre da cultura começa justamente pela repressão de um 'interesse
histórico' que em todo lugar procura penetrar, lá onde é preciso antes de mais nada
agir adequadamente, e não conhecer. (NIETZSCHE, 2003a, p. 70).
é o mais fácil e o mais cômodo que se esconde sob o manto de pretensões soberbas e
de títulos pomposos: o que é verdadeiramente da ordem do prático, a atividade que é
a essência da formação, porque no fundo é a mais difícil, só recolhe os olhares do
descrédito e da depreciação (NIETZSCHE, 2003a, p. 70-71).
tempo a uma mesma regra”, ele só pode continuar a existir, a ser dominante, se os outros
instintos não forem eliminados e se continuarem trabalhando sob seu comando”. (DIAS,
1991, p.70)
Nietzsche considera, portanto, que os instintos devem ser regulados em conjunto, sem
que a predominância de um signifique a eliminação dos demais. Para educar-se, Nietzsche
buscou um modelo, um filósofo educador, que representou inicialmente por meio da figura de
Schopenhauer. Mas encontrar o educador de si mesmo envolve um paradoxo, pois esses
mestres não podem mais que criar condições para que aquele que se educa torne-se seu
próprio educador. (DIAS, 1991, p. 71). Nietzsche enuncia essa condição, com o brilho da
linguagem que lhe é peculiar:
Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar
o rio da vida, ninguém exceto tu, somente tu. Existem, por certo, inúmeras veredas,
e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te do outro lado do rio; mas isso
te custaria a tua própria pessoa: tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo
um único caminho, por onde só tu podes passar. Para onde leva? Não perguntes,
segue-o. (NIETZSCHE, Schopenhauer como Educador, § 1 apud DIAS, 1991, p.
71).
Desse modo, o filósofo educador que aparece como modelo não deve ser apenas
imitado. Mesmo que a imitação seja uma primeira forma de elogio, somente ela não é
suficiente para caracterizar o modo de se aprender com um modelo, sem tornar-se um filisteu
da cultura, um mero espectador e repetidor do pensamento alheio. A aprendizagem se dá pela
imitação criadora, quando não se deixa de buscar ser autor e criador de sua própria vida e de
seus pensamentos. (DIAS, 1991, p. 75). Completa a explicação Rosa Dias (1991, p. 76-77):
“Não se trata de repetir passivamente o modelo, mas de encontrar o que tornou possível sua
criação”. Uma imitação que visa superar o modelo, como na história monumental, quando ela
é benéfica à vida. “Imitar o modelo quer dizer mimetizar sua força criadora e transformadora.
O exemplo é um estímulo para a ação e para uma nova configuração”.
Com essa concepção de imitação criadora – “imitar não o pensamento contido no
sistema, mas a atividade criadora que produziu o pensamento” – Nietzsche prefigura sua
própria relação com Schopenhauer, como ele a descreverá na sua autobiografia, Ecce Homo
(publicado em 1888): “Não se tratava de Schopenhauer educador, mas de Nietzsche
educador”. O aprendizado com o modelo do filósofo significou cultivar-se e tornar-se si
mesmo. (DIAS, 1991, p. 76-77).
Esse modo de compreender a si mesmo e à necessidade da educação converge com a
ideia do homem como “uma espécie cujas qualidades ainda não estão fixadas” (“o animal
77
ainda não determinado”, na tradução de Paulo César de Souza), como Nietzsche afirmará no §
62 de Além do bem e do mal (publicado em 1886). O homem voltado para a cultura em seu
sentido superior, ao perguntar a si mesmo para que vive, não responde como os homens
comuns, que querem ser bons cidadãos, eruditos ou comerciantes. Ele busca “elevar-se e
produzir os grandes homens” (DIAS, 1991, p. 77).
Essa meta será atingida pela correta compreensão da educação como adestramento
seletivo e formação de si. O adestramento não deve ser entendido como domesticação. Essa
distinção é encontrada em escritos posteriores de Nietzsche, mas é ressaltada por Dias (1991,
p. 86) como um complemento adequado de suas ideias expressas na 3ª Extemporânea. A
domesticação está associada à educação moderna, cujos caracteres já vimos. O adestramento,
que tem um sentido positivo, significa “um meio enorme de acumulação de forças da
humanidade, de tal modo que as gerações possam continuar a construir a partir do trabalho
das que as precederam, desenvolver-se e tornar-se mais fortes, não somente exteriormente,
mas interiormente, organicamente”. (DIAS, 1991, p. 86).
O adestramento tem um sentido artístico, pois a arte, como a “atividade criadora de
belas possibilidades de vida” (DIAS, 1991, p, 87) é o parâmetro para Nietzsche pensar os
povos, a cultura, a civilização. Por meio da arte, deve-se disciplinar o instinto do
conhecimento que coloca a vida em risco ao dominar os outros instintos. Na universidade, o
adestramento artístico poderia contrabalançar essa compulsão de saber e a própria ciência. A
arte tem o papel de afirmar a vida em seu conjunto, especialmente se esta última está separada
da cultura. A arte não é justa com o sentido histórico, pois omite muitos traços do passado
para poder criar. Mas, em favor da vida, quem deve se moderar é a vontade de saber.
Transfigurando o real, a arte nos liberta, para que não sejamos submetidos pela realidade.
(DIAS, 1991, p. 102).
A filosofia também se encontra presa aos ditames do Estado, centrada sobre as
minúcias da história do pensamento, como se fosse um ramo da filologia. Os professores
universitários impedem o pensamento de se exercer, em vez de propiciar o nascimento dos
pensamentos. Para a filosofia poder desvincular-se do Estado, seria preciso que existissem as
instituições promotoras da cultura, em seu sentido mais verdadeiro e autêntico. (DIAS, 1991,
p. 109).
Weber (2009) sintetiza as teses do texto da 3ª Extemporânea de modo concordante,
em linhas gerais, com a interpretação de Rosa Dias. Mas é interessante reproduzir sua síntese
aqui, pois ela nos permite levantar o tema das tipologias pedagógicas, além de abordar o
caráter metafísico das relações entre natureza e cultura que Nietzsche formula nesse texto. A
78
deve buscar atingir. As “ofensivas dispersas e descontínuas” das pesquisas mencionadas por
Foucault teriam revelado em seu tempo (cerca de 1960-1975) “aquilo que se poderia chamar
de efeito inibidor próprio às teorias totalitárias, globais”. Essas teorias fornecem instrumentos
localizáveis localmente, como Foucault reconhece ao citar o marxismo e a psicanálise. Mas só
fornecem esses instrumentos na condição de que “a unidade teórica do discurso fosse como
que suspensa, ou... recortada, despedaçada, deslocada, invertida, caricaturada, teatralizada”. A
totalidade conduz a um “efeito de refreamento”. (FOUCAULT, 1998, p. 169).
A crítica realizada naquelas pesquisas teria um caráter local e se efetuou através de um
“retorno de saber” (FOUCAULT, 1998, p. 169), que ele enxerga como uma “insurreição dos
saberes dominados” (FOUCAULT, 1998, p. 170). Esses são os conteúdos históricos “que
foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais”, cujo
ressurgimento através da crítica erudita permitiu encontrar “a clivagem dos confrontos, das
lutas que as organizações funcionais ou sistemáticas têm por objetivo mascarar”
(FOUCAULT, 1998, p. 170). E são também o saber das pessoas, saberes que tinham sido
“desqualificados como não competentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos,
hierarquicamente inferiores, abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade”
(FOUCAULT, 1998, p. 170). Não um saber comum ou bom senso, mas “um saber particular,
regional, local, um saber diferencial incapaz de unanimidade” (FOUCAULT, 1998, p. 170).
Esse saber incluiu psiquiatrizados, doentes, enfermeiros, médicos paralelos e marginais ao
saber médico, delinquentes etc.
O acoplamento entre erudição e saber desqualificado pelas hierarquias dos
conhecimentos e das ciências teria dado à crítica naquelas pesquisas sua força, sua capacidade
de produzir diversos efeitos. Nessas pesquisas delinearam-se “pesquisas genealógicas
múltiplas”, que eram “redescoberta exata das lutas e memória bruta dos combates”
(FOUCAULT, 1998, p. 171). Essa genealogia só pôde surgir sob a condição de que “fosse
eliminada a tirania dos discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilégios da
vanguarda teórica”. (FOUCAULT, 1998, p. 171).
Assim, é a genealogia que oferece uma alternativa para as ciências englobantes e
totalitárias. A produção de saberes através da prática da genealogia, ou a possibilidade de que
outros saberes emirjam através da genealogia, parece ser a forma de escapar das redes de
poder que estão entrelaçadas à constituição das ciências. Foucault apresenta uma das vertentes
críticas aos projetos iluministas que resultaram, como já visto por exemplo em Vigiar e punir
(FOUCAULT, 1987) na emergência de formas de poder que contrariavam os ideais de
liberdade que eram apregoados por aqueles projetos. Na atividade genealógica,
81
[...] não se trata... de opor a unidade abstrata da teoria à multiplicidade concreta dos
fatos e de desclassificar o especulativo para lhe opor, em forma de cientificismo, o
rigor de um conhecimento sistemático. Não é um empirismo nem um positivismo,
no sentido habitual do termo [...]. Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos,
desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia
depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro,
em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns. (FOUCAULT, 1998, p.
171).
Foucault alertou, através de sua obra, para os diversos efeitos de poder produzidos
pela prática da ciência. Assim, ativou e discutiu as genealogias como práticas de saber:
As genealogias não são portanto retornos positivistas a uma forma de ciência mais
atenta ou mais exata, mas anti-ciências. Não que reivindiquem o direito lírico à
ignorância ou ao não-saber; não que se trate da recusa de saber ou de ativar ou
ressaltar os prestígios de uma experiência imediata ainda não captada pelo saber.
Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os
conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo
contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao
funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma
sociedade como a nossa. Pouco importa que esta institucionalização do discurso
científico se realize em uma universidade ou, de modo mais geral, em um
aparelho político com todas as suas aferências, como no caso do marxismo; são
os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico que a
genealogia deve combater. (FOUCAULT, 1998, p. 171, grifo nosso).
Essa crítica aos efeitos de poder do discurso científico é direcionado por Foucault, no
momento de apresentação do texto Genealogia e poder, principalmente ao marxismo, e em
segundo lugar à psicanálise. Essas referências talvez pareçam datadas, típicas de um combate
travado nos anos 60 e 70 do século XX, e hoje poderiam não fazer muito sentido.
Porém, os anos de governo Lula no Brasil trouxeram à tona diversas posições de
esquerda em educação que tem as concepções marxistas como referência principal. Parece,
portanto, que esse debate tem que ser travado em nossos dias. Foucault apresenta notas
valiosas para pensar o possível equívoco da ênfase em se considerar o marxismo como
ciência:
[...] há alguns anos, provavelmente há mais de um século, têm sido numerosos os
que se perguntam se o marxismo é ou não uma ciência. Mesma questão que tem sido
colocada á psicanálise ou à semiologia dos textos literários. A esta questão – é ou
não uma ciência? – as genealogias ou os genealogistas responderiam: o que lhe
reprovamos é fazer do marxismo, da psicanálise ou e qualquer outra coisa uma
ciência. Se temos uma objeção a fazer ao marxismo é dele poder efetivamente ser
uma ciência. Antes mesmo de saber em que medida algo como o marxismo ou a
psicanálise é análogo a uma prática científica em seu funcionamento cotidiano, nas
regras de construção, nos conceitos utilizados, antes mesmo de colocar a questão da
analogia formal e estrutural de um discurso marxista ou psicanalítico com o discurso
científico, não se deve antes interrogar sobre a ambição de poder que a
pretensão de ser uma ciência traz consigo? As questões a colocar são: que tipo de
saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem ‘é uma
ciência’? Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês
82
querem ‘menorizar’ quando dizem: ‘Eu que formulo este discurso, enuncio um
discurso científico e sou um cientista’? Qual vanguarda teórico-política vocês
querem entronizar para separá-la de todas as numerosas, circulantes e descontínuas
formas de saber? Quando vejo seus esforços para estabelecer que o marxismo é
uma ciência, não os vejo na verdade demonstrando que o marxismo tem uma
estrutura racional e que portanto suas proposições relevam de procedimentos
de verificação. Vejo-os atribuindo ao discurso marxista e àqueles que o detêm
efeitos de poder que o Ocidente, a partir da Idade Média, atribuiu à ciência e
reservou àqueles que formulam um discurso científico. (FOUCAULT, 1998, p.
171-172, grifo nosso).
A genealogia seria, portanto, com relação ao projeto de uma inscrição dos saberes na
hierarquia de poderes próprios à ciência, um empreendimento para libertar da
sujeição os saberes históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a
coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico. A reativação dos
saberes locais – menores, diria talvez Deleuze – contra a hierarquização científica do
conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o projeto destas genealogias
desordenadas e fragmentárias. Enquanto a arqueologia é o método próprio à análise
da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local
assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta
discursividade. Isto para situar o projeto geral. (FOUCAULT, 1998, p. 172).
O resultado desse conflito teórico e prático será “a batalha dos saberes contra os
efeitos de poder do discurso científico” (FOUCAULT, 1998, p. 173).
Não pretendo, aqui, esgotar as questões, mas levantar elementos que possam colaborar
com seu desenvolvimento a partir da leitura de trechos da obra A hermenêutica do sujeito de
Michel Foucault (2004).
Para começar, é preciso reconhecer que o título dessa seção contém um erro, ou, pelo
menos, um desvio de interpretação. Explico-me: é que a noção de espiritualidade, como usada
por Foucault, não deveria permitir, a princípio, falar de “espiritualidade da ciência moderna”.
O conhecimento, em sentido moderno, é caracterizado em contraste com o saber de
espiritualidade. O saber de conhecimento seria uma forma de saber cuja obtenção exclui a
transformação do sujeito, e justamente por isso não seria um saber de espiritualidade. Como
assume Foucault, ao menos como ponto de partida, no princípio de sua obra A hermenêutica
do sujeito:
[...] é verdade, como dizem todos os cientistas, que podemos reconhecer uma falsa
ciência pelo fato de que, para ser acessível, ela demanda uma conversão do sujeito e
promete, ao termo de seu desenvolvimento, uma iluminação do sujeito; (...)
podemos reconhecer uma falsa ciência pela sua estrutura de espiritualidade (isto é
evidente, todos os cientistas o sabem). (FOUCAULT, 2004, p. 39).
(FOUCAULT, 2004, p. 14). [2] O cuidado de si é também uma certa forma de atenção, de
olhar. Converte-se o olhar, antes direcionado para o exterior, para o mundo, para os outros, e
agora deve ser direcionado para si mesmo. (Foucault distingue entre olhar para si mesmo e
olhar para o seu interior – a noção de “interioridade”, sabe-se, é uma noção mais propriamente
moderna, com a qual não se deve confundir a noção de si mesmo).
Deve-se também ter atenção ao que se pensa e ao que se passa no pensamento. [3]
Além da atitude e da atenção, o cuidado de si designa também ações “pelas quais nos
assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos”.
(FOUCAULT, 2004, p. 14-15). Essas ações são uma série de práticas e exercícios entre as
quais são citadas as técnicas de meditação, de memorização do passado, de exame de
consciência e de verificação das representações na medida em que elas se apresentam ao
espírito.
O cuidado de si constitui assim um fenômeno importante na história das práticas de
subjetividade, sendo um de seus fios condutores nos mil anos de duração da antiguidade
helenística e romana. Não obstante essa importância, Foucault nota que essa noção tem sido
desconsiderada no modo como a filosofia ocidental conta a sua própria história. Ao contrário,
a noção do conhecimento de si, celebrizado na frase “conhece-te a ti mesmo” é que ganhou
preeminência, mesmo quando se pode notar nos documentos antigos que foi o princípio do
cuidado de si que o enquadrava e constituía o “suporte de um conjunto rico e denso de
noções, práticas, maneiras de ser e formas de existência”. (FOUCAULT, 2004, p. 16).
A principal razão que Foucault aponta para o esquecimento e o apagamento da
importância que o princípio do cuidado de si teve na antiguidade está relacionado à história da
verdade. Mais especificamente, ao que ele chama de “momento cartesiano” (assinalando que
considera a expressão ruim e que a usa de modo puramente convencional). (FOUCAULT,
2004, p. 18).
Em todo caso, é na obra de Descartes, particularmente nas Meditações
(DESCARTES, 1979), que se dá uma requalificação do gnôthi seautón, do conhece-te a ti
mesmo: a evidência, tal como aparece, tal como se dá à consciência, é instaurada na origem
do procedimento filosófico. Este se refere, portanto, ao conhecimento de si, como forma de
consciência. Sendo a evidência da existência do sujeito (isto é, o cogito, ou o “penso, logo
existo”) o princípio do acesso ao ser, o conhecimento de si mesmo torna-se assim o modo
fundamental de acesso à verdade. Seria, portanto, a partir de Descartes que o princípio do
“conhece-te a ti mesmo” tornou-se aceito como o fundador do procedimento filosófico.
85
Podemos ver que Foucault apresenta a noção de espiritualidade como sendo um série
de práticas envolvidas na transformação do sujeito. Lembremos que Foucault trata a noção de
sujeito, a partir da análise do diálogo Alcibíades, de Platão, como aquela parte ou atividade de
si que cuida de si. O sujeito é compreendido como uma agência, e não como uma substância.
A alma, aqui equivalente ao sujeito, é portanto também agência, ação, e não substância.
Espiritualidade, portanto, não tem qualquer sentido místico ou sobrenatural, mas indica
formas de agir sobre si mesmo, formas de cuidado de si. Está ligada especialmente à terceira
daquelas dimensões do cuidado de si que foram inicialmente apontadas por Foucault.
Também a espiritualidade é apresentada como tendo três caracteres:
[1] A primeira pode ser indicada pela “fórmula mais simples e mais fundamental para
definir a espiritualidade”, que é a de que o sujeito, “tal como ele é, não é capaz de verdade”.
(FOUCAULT, 2004, p. 20). Essa primeira característica é a necessidade de que o sujeito se
modifique para ter direito ao acesso à verdade. O preço a pagar pelo acesso à verdade é a
transformação ou conversão do próprio ser do sujeito.
[2] A segunda característica é que essa conversão pode ocorrer de diferentes formas.
Resumidamente, pode se dar através de um movimento que arranca o sujeito de sua condição
atual, movimento pelo qual a verdade vem até ele e o ilumina – essa forma é Eros; ou pode se
dar através de um “trabalho de si para consigo”, uma transformação progressiva de si para
consigo em que se é o próprio responsável por um longo labor que é o da ascese (áskesis).
(FOUCAULT, 2004, p. 20). São essas as duas formas pelas quais o sujeito deve ser
transformado para tornar-se capaz de verdade.
[3] A terceira característica é que o acesso à verdade produz efeitos que vão além do
conhecimento – “a verdade é o que ilumina o sujeito, [...] o que lhe dá beatitude,... o que lhe
86
transformação (embora não deixe de ter um papel especial), Foucault caracteriza o início da
idade moderna na história da verdade das seguintes formas (FOUCAULT, 2004, p. 22-24):
[1] Quando admitimos que o que dá acesso à verdade é o conhecimento e tão-somente
o conhecimento. Isso não significa que não existam condições para ter acesso à verdade, mas
que essas condições não dizem mais respeito à espiritualidade, isto é, à transformação do ser
mesmo do sujeito. Há condições intrínsecas ao conhecimento e condições extrínsecas que
dizem respeito ao indivíduo concreto, e não ao sujeito.
[2] Quando postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a
verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito. Sendo o sujeito capaz de verdade sem
ter que transformar-se em seu próprio ser, o conhecimento, que propicia o acesso à verdade,
não pode lhe oferecer mais do que a própria busca indefinida do conhecimento. O “retorno da
verdade sobre o sujeito” não se realiza mais. Ou, nos termos de Foucault:
Porém, Foucault adverte que essa transformação não se deu de uma só vez. Muito
antes de Descartes, ele identifica um conflito entre a espiritualidade e a teologia que teria
preparado essa transformação consumada na idade moderna.
A teologia teria fundado o princípio de um sujeito cognoscente em geral ao mesmo
tempo em que adotava como reflexão racional fundante, uma fé de vocação universal. Esse
sujeito cognoscente encontrava em Deus seu modelo, seu ponto de realização absoluto e seu
grau mais alto de perfeição. A correspondência entre o Deus omnisciente, conhecedor de
tudo, e os sujeitos capazes de conhecer (desde que tenham fé) foi um dos elementos que estão
na raiz da separação do pensamento filosófico das condições de espiritualidade que lhe eram
essenciais na antiguidade. O conflito entre teologia e espiritualidade durou cerca de doze
séculos, do século V ao XVII. Isso mostra que entre a ciência e a espiritualidade, a oposição
não é constitutiva nem estrutural. (FOUCAULT, 2004, p. 36-37).
Além disso, a separação também não se consuma definitivamente no século
XVII. Foucault chega a considerar que a filosofia do século XIX (com vários autores, sendo
Hegel uma espécie de ápice) tentou repensar as estruturas da espiritualidade no interior de
uma filosofia que buscava se desvincular dessas estruturas. (FOUCAULT, 2004, p. 38).
88
Nada temo do diabo, nem do inferno; mas também toda alegria me foi tirada [por
este saber, MF]. Doravante só me resta lançar-me na magia [dobra do saber de
conhecimento sobre o saber de espiritualidade, MF]. Oh, se a força do espírito e da
palavra me desvelasse os segredos que ignoro, e se eu não fosse mais obrigado a
dizer penosamente o que não sei; se, enfim, eu pudesse conhecer tudo o que o
mundo esconde nele mesmo, e, sem me apegar por demais a palavras inúteis, ver o
que contém a natureza de secreta energia e sementes eternas! Astro de luz prateada,
lua silenciosa, digna-te pela última vez lançar um olhar sobre minha dor! (...) Tão
frequentemente velei a noite junto desta mesa! É então que tu me aparecias sobre
tantos livros e papéis, melancólica amiga! Ah! Não pude, sob tua doce claridade,
escalar as altas montanhas, errar nas cavernas com os espíritos, dançar sobre a relva
pálida das pradarias, esquecer todas as misérias da ciência, e banhar-me
rejuvenescido no frescor de teu orvalho! (GOETHE apud FOUCAULT, 2004, p.
375).
modo genérico, o capital – que é uma relação social – como uma forma de espiritualidade,
parece ser divergir extremamente do texto de Foucault.
No entanto, talvez seja razoável perguntar se não podemos supor alguma forma de
espiritualidade oculta no saber de conhecimento. Em primeiro lugar, há uma coincidência
histórica entre a emergência desse conhecimento moderno e a emergência do capitalismo.
Essa coincidência não é suficiente para se falar numa relação necessária entre os dois, mas
talvez não deva ser descartada como meramente casual.
Ao afirmar que a transformação do ser do sujeito não é uma exigência desse saber,
reconhece-se que este saber pressupõe uma acessibilidade universal. É possível pensar que
tanto a ciência moderna quanto a relação de capital sustentam, cada uma a seu modo, uma
pretensão de universalidade. No caso do capital, essa pretensão é mais contestada do que no
caso da ciência, por representar uma tendência irrefreável à expansão e à conquista de novos
mercados, que gerou o que hoje chamamos de globalização. De novo, de algum modo nota-se
uma coincidência entre a expansão mundial do capital e a expansão também de procedimentos
modernos de conhecimento.
Será que essas duas coincidências não nos devem levar a pensar que a produção de
subjetividade envolvida na relação de capital, no sentido da produção de sujeitos
empreendedores, por um lado (para dizer de modo eufemístico o que pode ser chamado de um
sujeito conquistador), e uma sujeição universal ao trabalho, por outro? A ciência, desde seus
princípios, em particular com Descartes, coloca-se como a busca de um controle sobre a
natureza que a trata como um instrumento posto à nossa disposição. Pouco a pouco a
natureza, o mundo, e os homens foram sendo colocados à disposição de um sistema de
produção que se ampliou até alcançar praticamente todo o planeta. Uma certa racionalidade
universal, que ultrapassa e exclui diversas outras formas de saber e de existência, acompanha
tanto a expansão da ciência quanto a expansão do capital.
Sabe-se que essas proposições são sugestivas, e não chegam a constituir uma prova
daquela afirmação inicial. Há diferenças entre a ciência e o capital que não devem ser
deixadas de lado. Além do caráter de prática social, de relação social, diferente daquela
prática sobre si indicada pela espiritualidade abordada por Foucault, a exigência de
racionalidade presente na ciência parece confrontar-se com a irracionalidade intrínseca ao
capital. Se a primeira tem como princípio a necessidade de passar tudo pelo crivo da razão,
par o segundo os fins mesmos de sua atividade parecem não poder ser questionados o que
transforma a possibilidade do progresso decorrente da ciência em um progresso avassalador
com consequências destrutivas e até catastróficas, decorrentes do capital.
90
Desse modo, busca-se considerar a questão do poder situando-a na questão mais geral
da governamentalidade. Esta é entendida “como um campo estratégico de relações de poder,
no sentido mais amplo do termo, e não meramente político, entendida pois como um campo
estratégico de relações de poder no que elas têm de móvel, transformável, reversível”.
(FOUCAULT, 2004, p. 306).
Este âmbito está ligado às relações consigo mesmo de um modo atualmente negativo:
noções como retornar a si, liberar-se, ser autêntico, ser si mesmo padecem de uma quase total
ausência de significação. Assim, não haveria muito que orgulhar-se das tentativas
contemporâneas de reconstituir uma ética do eu, que não conseguem oferecer-lhe nenhum
conteúdo. Permite-se assim, levantar a suspeita da impossibilidade de reconstituir uma ética
do eu, “quando talvez seja esta uma tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável,
se for verdade que, afinal, não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder
político senão na relação de si para consigo”. (FOUCAULT, 2004, p. 306). A relação de si
para consigo aparece aqui como o ponto de resistência ao poder, o único ponto, primeiro e
último. É por isso, pela possibilidade dessa hipótese, que a análise da noção de
governamentalidade “não pode deixar de passar, teórica e praticamente, pelo âmbito de um
sujeito que seria definido pela relação de si para consigo”. (FOUCAULT 2004, p. 306).
Podemos sugerir aqui que, desse ponto de vista, a ética do eu e o cuidado de si ganham
um sentido político imanente e que não se pode pensá-los sem avaliar suas relações com as
artes de governar e o caráter reversível das relações de poder. Em outros termos, despolitizar a
investigação do cuidado de si e da ética do eu é uma incompreensão ou uma limitação
injustificada. Pensar esses temas atualmente significa pensá-los num contexto em que a gestão
tecno-empresarial e o marketing se colocam como virtuais substitutos do exercício do
pensamento e da política.
92
[...] ter acesso à verdade é ter acesso ao próprio ser, acesso este em que o ser ao qual
se tem acesso será, ao mesmo tempo e em contraponto, o agente de transformação
daquele que a ele tem acesso. É este o círculo platônico ou ... o círculo neoplatônico:
conhecendo a mim mesmo, acedo a um ser que é a verdade, e cuja verdade
transforma o ser que eu sou, assimilando-me a Deus. A homoíosis tô theô
[assimilação ao divino] aí está presente. (FOUCAULT, 2004, p. 235-236).
uma impossibilidade, uma zona incógnita, mas cujo caráter negativo é o que o determina e
não pode ser superado: essa zona escura constitutiva do sujeito é o incognoscível X, a coisa
em si.
Convém lembrar neste momento, para maior clareza da exposição, alguns parâmetros
mais gerais da investigação em curso. Sabe-se que Foucault, desde pelo menos o início da
década de 1970, já apresenta sua pesquisa como uma história da verdade e do sujeito de
conhecimento. No texto A verdade e as formas jurídicas, essa formulação foi feita como
crítica a um certo marxismo acadêmico que, ao procurar as condições econômicas de
existência como reflexo e expressão na consciência dos homens, apresentaria o grave defeito:
[...] como as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não
somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas
também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de
conhecimento. O próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do
sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história.
(FOUCAULT, 1999, p. 8).
transformar o sujeito para torná-lo capaz de verdade, mas é de certa forma limpar o que está
obstruindo o caminho do sujeito até a verdade. Trata-se de permitir que o sujeito conheça a si
mesmo claramente, como uma fonte espontânea de pensamento capaz de conhecer a si mesmo
e ao mundo. Trata-se de deixar o sujeito racional agir livremente, e não de transformá-lo.
Trata-se, na verdade, de tornar-se o sujeito que já se é, de não deixar que desvios e
distrações, enganos e ilusões, de caráter contingente, obstruam o caminho do sujeito a si
mesmo e à verdade – no sentido de conhecimento de um domínio de objetos. Descartes parece
propor, assim como de modo geral a filosofia epistemológica da modernidade, uma ascese do
senso comum à razão, não para se tornar algo outro do que se é inicialmente, mas para tornar-
se aquilo que já se é fundamentalmente. Nota-se que os dois percursos envolvem um
movimento, entre algo que se é e algo que se vem a ser. O que ocorre é que há uma distinção
de níveis. No senso comum, somos de modo irrefletido, sujeito a enganos e ilusões.
Quando adquirimos uma consciência racional (não pela adesão a algo diferente de nós,
mas pela desvinculação daquilo que nos impede de chegar a nós mesmos), nos damos conta
de que somos sujeitos capazes de conhecimento. Somos capazes de fundamentar o
conhecimento numa clara e distinta apreensão de nossa própria condição de sujeito, como
sujeito racional, pensante. Esse sujeito é puro pensar, e nesse sentido se aproxima da ideia de
um Deus onisciente, que tudo sabe através de seu pensamento. Esse sujeito é uma abstração
colocada fora do mundo, supostamente capaz de conhecer todos os objetos, exteriores a si.
Esse sujeito situa-se em um não-lugar a partir do qual apreende toda a realidade e
torna-se dela senhor e dominador. A ascese do senso comum ao conhecimento se faz pela
limitação da vontade, para que ela não caia no erro ao ir além do que o intelecto pode
considerar de modo claro e distinto. Alcançar o conhecimento é uma espécie de retorno a si,
entendido o si como experiência absoluta do sujeito. O sujeito aqui é aquela ação do
pensamento que encontra na sua própria autoevidência o fundamento primeiro de todo e
qualquer conhecimento.
O momento cartesiano na história da verdade, então, seria o momento em que emerge
mais nitidamente esse sujeito que foi dado como definitivo, como princípio inamovível do
conhecimento. Para a mesma mudança indicava Gerd Bornheim ao dizer que com a
modernidade passamos de uma experiência do absoluto para uma experiência absoluta. O
sujeito, experienciado como fundamento absoluto, distinto e superior a todos os objetos,
capaz de conhecê-los e dominá-los. O homem moderno, misto de cientista e empreiteiro, está
surgindo.
96
Esse trecho mostra que se realiza um trabalho sobre a vida dos indivíduos de modo
bastante amplo, de modo que suas atitudes não sejam simplesmente impostas de fora, mas
97
sejam assumidas por eles mesmos como as mais desejáveis para si e para os outros. O centro
dessa arte de governar não é o consumo ou a troca, mas a concorrência. Com as palavras de
Foucault:
mestre será um operador nessa reforma ou nessa formação. Esse será um momento importante
na história da prática de si e na história da subjetividade no mundo ocidental.
Se, antes, passar da ignorância ao saber exigia um mestre, pois a ignorância por si só
não podia ser operadora de saber, agora trata-se de uma outra relação. Agora deve-se passar
de um status “a corrigir” para um status “corrigido”. (FOUCAULT, 2004, p. 161). A
necessidade do mestre está em que o sujeito não pode ser operador de sua própria
transformação. O status de sujeito que ele deve atingir jamais foi conhecido por ele, e,
portanto, é necessário um outro que realize essa transformação sobre ele – ou que permita, ou
propicie, de algum modo, que essa transformação ocorra.
Em suma, o ato essencial do mestre era explicar, destacar os elementos simples dos
conhecimentos e harmonizar sua simplicidade de princípio com a simplicidade de
fato, que caracteriza os espíritos jovens e ignorantes. Ensinar era, em um mesmo
movimento, transmitir conhecimentos e formar os espíritos, levando-os, segundo
uma progressão ordenada, do simples ao complexo. Assim progredia o aluno, na
apropriação racional do saber e na formação do julgamento e do gosto, até onde sua
destinação social o requeria, preparando-se para dar à sua educação uso compatível
com essa destinação (...). (RANCIÈRE, 2002, p. 19).
aquele que instaura a distância, aquele que exercita a arte da distância. Ao perceber que todas
as crianças realizam o aprendizado da linguagem, talvez o aprendizado mais difícil, sem
nenhum mestre explicador, Jacotot percebeu a necessidade de inverter a lógica do sistema. A
explicação se mostrava não como “necessária para socorrer uma incapacidade de
compreender”, mas essa incapacidade é que se revelava como uma “ficção estruturante da
concepção explicadora do mundo”. (FOUCAULT, 2004, p. 23). O princípio da explicação se
revelava, portanto, como o princípio do embrutecimento. Contra este, foi preciso erguer o
princípio da emancipação, que se exerce através da atuação do mestre ignorante.
Jacotot percebeu e ousou afirmar que se pode ensinar o que se ignora, desde que se
emancipe o aluno. Emancipar significará: forçar o aluno a usar sua própria inteligência. O
mestre será compreendido como “aquele que encerra uma inteligência em um círculo
arbitrário do qual não poderá sair se não se tornar útil a si mesma”. (FOUCAULT, 2004, p.
34). O mestre capaz de emancipar um ignorante deverá ser, ele mesmo, emancipado. E isso
também significa: que o mestre seja consciente do verdadeiro poder do espírito humano. É
essa consciência, que se realiza na atuação da vontade sobre a inteligência, partindo do
princípio da igualdade das inteligências, que permitirá que o mestre ignorante tenha sucesso
onde o mestre sábio, ou o mestre explicador, sempre falhará por princípio. Enquanto um
emancipa e liberta as inteligências, o outro embrutece e mantém as inteligências submetidas à
perpétua necessidade do outro que lhes explique e lhes indique o caminho.
Rancière estabelece, com a história de Jacotot, dois círculos – um necessário, ou ao
menos histórico e compulsivo – o círculo da impotência – e outro sempre, a cada momento,
meramente possível – o círculo da potência. Ao primeiro corresponde a explicação, ao
segundo a emancipação.
Emancipar é forçar o aluno a usar sua própria inteligência. Parece um paradoxo, se
não o for, estritamente. Pois como se pode forçar alguém a fazer uso de algo que corresponde
a um ato de vontade? Supondo-se que usar a própria inteligência dependa apenas disso, de um
ato de vontade; essa vontade só pode ser a do próprio agente, ou poderá ser a vontade de outro
a obrigar um agente, um sujeito, um indivíduo, uma vontade – a usar sua inteligência?
Ou será que supor que nada externo possa impor-se a uma vontade, será manter uma
idealização, uma imagem idealizada, da vontade livre, a vontade como último e único reduto
da liberdade, como reduto propriamente da liberdade?
Não será o caso que todos ou grande parte dos alunos tenha que descobrir que
“possui” inteligência, e que pode usá-la para aprender seja o que for? A inteligência é a
103
[...] Não digas que não podes. Tu sabes ver, tu saber falar, tu sabes mostrar, tu podes
te lembrar. O que mais é preciso? Uma atenção absoluta, para ver e rever, dizer e
redizer. Não procures me enganar e te enganar. Foi bem isso que viste? O que
pensas disso? Não és um ser pensante? Ou acreditas ser apenas corpo?
(RANCIÈRE, 2002, p. 43-44, grifo do autor).
104
[...] o mestre não terá o direito de se manter longe, mas à sua porta. O aluno deve ver
tudo por ele mesmo, comparar incessantemente e sempre responder à tríplice
questão: o que vês? O que pensas disso? O que fazes com isso? E, assim, até o
infinito. Mas esse infinito não é mais um segredo do mestre, é a marcha do aluno.
(RANCIÈRE, 2002, p. 44).
As questões lançadas pelo mestre se apresentam aqui com clareza: “o que vês? O que
pensas disso? O que fazes com isso?” Ao convocar a inteligência do aluno a responder , essas
perguntas indicam o princípio que está em jogo: a igualdade das inteligências. O fundamental
não é o procedimento, um outro método que estaria em jogo, mas o princípio que rege as
ações do mestre. Se o mestre explicador se embrutece junto com seus discípulos, para
emancipar é preciso que o outro mestre seja também emancipador. E isso significa partir do
princípio da igualdade das inteligências, para verificá-la e prová-la a cada vez.
Ao assumir essa outra atitude, estabelece-se uma outra relação, em que os homens são
considerados e tratados como homens, capazes de agir e pensar por si mesmos, capazes de
105
falar com as palavras de outros, e não apenas como animais que são examinados, amestrados,
domesticados.
Talvez não por mera coincidência, essas questões próprias do mestre ignorante se
assemelham a outras questões, formuladas por um outro mestre. Voltamos aqui a um texto de
Foucault, para investigar o modo como uma outra concepção de filosofia passa a atuar em um
momento decisivo da modernidade. Esse autor, em uma de suas abordagens do texto de
Immanuel Kant sobre o esclarecimento, apresenta algumas questões que são características de
um outro modo de fazer filosofia. Vejamos como Foucault resume este ponto, para depois
analisarmos o tópico que nos interessa:
Digamos que, em sua grande obra crítica, ... Kant colocou, fundou essa tradição da
filosofia crítica que coloca a questão das condições em que um conhecimento
verdadeiro é possível. E, a partir daí, pode-se dizer que toda uma seção da filosofia
moderna, desde o século XIX, se apresentou, se desenvolveu como a analítica da
verdade. É essa forma da filosofia que vamos encontrar agora na forma da filosofia,
digamos, analítica anglo-saxã. Mas existe, no interior da filosofia moderna e
contemporânea, outro tipo de questão, outro modo de interrogação categórica: a que
vemos nascer justamente na questão da Aufklärung ou no texto sobre a Revolução.
Essa outra tradição crítica não coloca a questão das condições em que um
conhecimento verdadeiro é possível, é uma tradição que coloca a questão de: o que é
a atualidade? Qual é o campo das nossas experiências? Qual é o campo atual das
experiências possíveis? Não se trata, nesse caso, de uma analítica da verdade. Tratar-
se-ia do que poderíamos chamar de uma ontologia do presente, uma ontologia da
atualidade, uma ontologia da modernidade, uma ontologia de nós mesmos.
(FOUCAULT, 2010, p. 21).
possíveis? Vejamos o percurso que leva Foucault a essas conclusões, para depois voltarmos à
análise dessas perguntas.
A questão sobre o que é o esclarecimento [Aufklärung] é entendida por Foucault como
uma questão nova. Ela não coloca nem a questão da origem do esclarecimento, nem a da
aparência dele, nem a de seu acabamento ou ponto de consumação.
[...] a questão que, parece-me, surge pela primeira vez nos textos de Kant (...) é a
questão do presente, é a questão da atualidade, é a questão de: o que acontece hoje?
O que acontece agora? O que é esse ‘agora’ dentro do qual estamos todos, e que é o
lugar, o ponto do qual escrevo? (FOUCAULT, 2010, p. 120).
Esse modo de conceber e praticar a filosofia é identificado por Foucault como sendo
uma novidade que aparece em alguns textos de Kant. Uma nova maneira de fazer filosofia
que aparece ali, e se contrapõe a outra que tem sido marca dessa disciplina ao menos durante
a modernidade.
Diferentemente do debate típico do início desse período, no qual se questionava a
diferença entre antigos e modernos e se tentava alguma hierarquização entre as produções de
uns e de outros, um novo discurso estabelece uma outra relação com sua atualidade. Essa
relação, ligada à questão sobre o pertencimento ao presente e o pertencimento àquilo que deve
se tornar o objeto de reflexão para o filósofo: um certo “nós” que se refere a um conjunto
cultural característico de sua própria atualidade. (FOUCAULT, 2010, p. 14). Essa novidade
desdobra-se em três questões que surgem dessa perspectiva:
107
[...] eu creio que, com Kant... aparece, aflora uma nova maneira de colocar a questão
da modernidade, não numa relação longitudinal com os antigos, mas no que
poderíamos chamar de uma relação sagital, ou uma relação, vamos dizer, vertical, do
discurso com sua própria atualidade. O discurso tem de levar em conta sua
atualidade para, [primeiro], encontrar nela seu lugar próprio; segundo, dizer o
sentido dela; terceiro, designar e especificar o modo de ação, o modo de efetuação
que ele realiza no interior dessa atualidade. Qual é a minha atualidade? Qual é o
sentido dessa atualidade? E o que faz que eu fale dessa atualidade? É nisso, parece-
me, que consiste essa nova interrogação sobre a modernidade. (FOUCAULT, 2010,
p. 14-15).
atitude semelhante àquela do mestre ignorante, quer dizer: ela busca a emancipação. Ela busca
emancipar-se e, simultaneamente, promover a emancipação de seus interlocutores.
Inspirados nessas perguntas e nessa atitude, reteremos essa consequência: a percepção
de uma proximidade de princípio entre a postura do mestre ignorante e a postura da filosofia
como ontologia de nós mesmos. Passaremos a uma tentativa de exercer essa postura, essa
atitude, diante das questões que se colocam ao professor de filosofia nas escolas. Para isso,
nos voltaremos para o contexto da escola brasileira e o da formação dos professores de
filosofia neste início de século.
109
Após esses dois percursos, relativamente longos, feitos pela história das escolas e
pelos pensamentos de três autores desafiadores, temos que parar e reavaliar o sentido desses
itinerários.
A história dos colégios nos fez pensar na formação, na educação e na instrução dos
homens. Seja com o objetivo de alcançar a salvação, seja para conhecer os tesouros da cultura
clássica e se tornar um homem de letras, um homem culto, capaz de cultivar-se e de elevar-se;
seja para aprender com as coisas, as experiências, as ciências físicas e matemáticas, e tornar-
se capaz de conhecer e dominar o mundo, e de transformá-lo para produzir a felicidade
humana.
Para alcançar esses objetivos, ou alguma variação deles, quantos caminhos, quantas
fórmulas, quantos modelos. E como é surpreendente que quase todos os caminhos caibam
dentro de uma instituição fechada, disciplinar, controladora de corpos e produtora de almas –
a alma, prisão do corpo, na célebre inversão de Platão que Foucault descobre na constituição
do poder disciplinar.
Apesar desses paradoxos, apesar de muitas perplexidades e de muitas dúvidas,
seguimos insistindo. Por bem ou por mal, fazemos da vida escolar grande parte de nossas
vidas, seja porque percorremos o itinerário de todo estudante das sociedades modernas, seja
porque, não satisfeitos com isso, ainda resolvemos voltar para as escolas na condição de
professores.
Mas, quando voltamos para as escolas para atuar como professores, será que sabemos
o que vamos encontrar lá? Será que sabemos a que recursos devemos recorrer para trabalhar e
atuar de modo satisfatório e gratificante, e de modo a que possamos justificar nosso trabalho
segundo um projeto, segundo uma meta, segundo um plano qualquer? Aparentemente,
devemos saber o conteúdo das disciplinas nas quais nos especializamos, ter alguma (ou
nenhuma!) noção de didática, dispor algo de modo intuitivo ou espontâneo de algum
“controle de classe” e pronto! Estamos em condições de ser professores, de transmitir o saber
que os alunos devem aprender e podemos voltar para casa com a consciência do dever
cumprido.
Porém... a realidade escolar é sempre um pouco mais complicada do que isso. Os
saberes disciplinares que estudamos por tantos anos parecem se encaixar mal nas demandas
110
que encontramos, vindas dos alunos ou dos programas das disciplinas que nos são oferecidos
ou que somos forçados a construir. A didática, que sabemos ou que não sabemos, muitas
vezes parece ser insuficiente diante de turmas interessadas em tantas coisas, mas não no que
temos a lhes transmitir. O controle de classe se torna tirano ou se torna um náufrago incapaz
de fazer ouvir mesmo os seus gritos mais desesperados. E assim a rotina da escola, o
cotidiano e o “chão” da escola ficam mais rugosos, mais ásperos, mais difíceis de se encarar e
de se enfrentar, e mais desgastantes à medida que insistimos.
Talvez nesse momento, já fartos da história das escolas e dos programas de formação e
de instrução diferenciados que se produziram em diversas épocas e lugares, resolvamos nos
voltar para críticos dos sistemas estabelecidos, de modo a procurar algum ar para respirar
nesse deserto sufocante que se tornou o nosso dia-a-dia. E se por acaso topamos com os
autores que escolhemos aqui, autores como Nietzsche, Foucault e Rancière, não temos certeza
se nossa situação ficará melhor ou pior. Nossas certezas serão questionadas, nossas imagens
do mundo serão quebradas com um martelo ou desconstruídas com palavras sutis, e a nossa
própria noção de quem somos será atacada e contestada.
O que fazer? Será que encontraremos um caminho que nos seja mais gratificante, ou
no qual consigamos crescer e realizar de algum modo as nossas vidas pessoais e
profissionais? Será que não encontraremos caminhos, mas conseguiremos descobrir modos de
caminhar que nos permitam atravessar as realidades, espaços e tempos em que atuamos de
modo mais rico e recompensador? Ou será que nenhuma dessas opções estará disponível, e
não nos restará mais do que desistir dessa empreitada insana e sem sentido que se tornou a
educação?
Acredito que foi por sentimentos e pensamentos tumultuados que enveredei por essa
pesquisa, onde não sabia bem o que procurar, mas acreditando encontrar algo de importante
que me ajudaria a viver e entender melhor a prática do magistério numa escola pública
brasileira. Após alguns anos lecionando em uma escola, numa rotina cujo teor mais comum é
o da exaustão, a busca do saber universitário deveria significar uma tomada de ar, um
momento de respirar e de enxergar as realidades mais próximas com outros olhos. Mas
nenhuma certeza é dada, nenhuma garantia é concedida. Os dias passam, e com eles, os
enigmas, os mistérios, os problemas insondáveis se recriam e se repetem, e nunca sabemos
bem do que se trata: se de uma repetição ou se de uma situação nova, imponderável.
Dentro dessa condição, não obstante a permanência da perplexidade, somos obrigados,
convidados, levados a apresentar nossos resultados. E neste capítulo o objetivo é proporcionar
alguns resultados que façam sentido no tempo presente, e que sejam originados nos percursos
111
que fizemos nos capítulos anteriores. Tentaremos, portanto, nessa condição semelhante ao
caminhar numa neblina e por vezes perder o chão, traçar algumas linhas que nos permitam
tirar algum proveito dos caminhos já percorridos.
Em primeiro lugar, tentaremos retomar a discussão relativa ao conhecimento e à
cultura. O que vimos foi uma sucessão de modelos escolares que buscavam transmitir
conhecimento e formar para a cultura segundo pressupostos diferentes. Alguns com
características religiosas, pensando na necessidade da salvação; outros com confiança na
capacidade humana de se afirmar e se expressar através da linguagem e do conhecimento das
obras clássicas; e, por fim, aqueles que encontraram na ciência e no conhecimento do mundo
a sua resposta para as questões humanas. Como se tornar-se homem significasse cada vez
mais controlar e explorar a natureza, incluindo nela os próprios homens.
No entanto, essas concepções foram também questionadas. A escola que ensina a
satisfazer as necessidades é uma escola que cria um rebanho, e não indivíduos criadores. A
cultura moderna, que pretende libertar o homem e abrir-lhe a possibilidade de buscar sua
felicidade auxiliado pela ciência e pela tecnologia, não faz mais do que produzir seres fracos,
impotentes, e que, no entanto, nutrem uma grandiosa e luminosa imagem de si mesmos. Mal
sabem os modernos que sequer a espiritualidade, a capacidade de agir sobre si mesmo, de
transformar a si mesmo e, quem sabe, de tornar-se quem se é, todas essas possibilidades lhes
são vedadas no momento mesmo em que acreditamos ser sujeitos conhecedores do mundo e
de nós mesmos.
Que caminho nos resta então? Que modo de caminhar podemos empreender? Como
saber se pisamos em um chão ou se vagamos pelas nuvens?
No campo do conhecimento, aprendemos que os saberes dos professores são bem mais
complexos do que pareciam à primeira vista. Dizem respeito às disciplinas, sem dúvida, mas
também envolvem experiências pessoais, experiências educacionais, experiências de
formação profissional, modo de relação com programas e materiais didáticos, saberes das
experiências variadas que temos no decorrer de uma carreira. (TARDIF, 2012, p. 63). Esse
quadro parece deixar nosso campo de atuação um tanto mais incerto, porém, por outro lado,
também um tanto mais aberto. Até parece que, na vida de um professor, não é possível ser
feliz, mas é possível agir heroicamente...
Vimos que, nos modelos de escolas que pudemos examinar, o conhecimento nunca é
buscado apenas por si mesmo. De modo geral, é buscado um conhecimento em vista de uma
noção de homem que se quer formar, ou uma noção de cultura que cabe ao homem realizar.
Em todos os casos, a noção de cultura parece oferecer um quadro mais amplo onde o
112
conhecimento se insere. Nesse quadro está presente a vida do indivíduo e sua relação com os
outros, com as instituições, com a sociedade. O conhecimento, a instrução e a formação são
buscados e são promovidos dentro desse quadro mais amplo, que no fundo – ou na superfície
– nos oferece um conjunto de valores que hierarquizam e orientam a prática de nossas vidas e
de nossa educação.
Temos então a complexidade dos saberes que os professores mobilizam e o
enquadramento do conhecimento numa concepção de cultura que estrutura as escolas e que
elas buscam realizar. Identificamos como predominantes em nossa tradição uma disputa entre
escola humanista e escola científica, e também uma tensão entre escola política e escola
profissionalizante, entre a liberdade de criticar e reorganizar a sociedade e a necessidade de
prover as necessidades da sobrevivência.
Situados nesse espaço incerto e aberto, tentaremos traçar algumas linhas que nos
indiquem possíveis caminhos de atuação. Em torno de uma discussão sobre cultura,
conhecimento e formação. Os estudos anteriores permitem questionar que tipo de formação se
realiza nos ambientes escolares, em função de compreensões determinadas do conhecimento e
da cultura. Uma concepção mais estreita de conhecimento promove uma formação de tipo
disciplinar mais estrito, e que se vê vinculada a objetivos econômicos, sejam comerciais,
industriais ou mercadológicos; sejam de desenvolvimento do país e de seus “índices”.
Espera-se que uma concepção mais ampla de conhecimento, que envolva o trabalho
sobre si mesmo, seja capaz de questionar a própria idéia de formação, não como um modelo a
ser realizado, mas como uma experiência a ser proposta, aberta às novidades e às
contribuições dos sujeitos envolvidos, - e, melhor que dos sujeitos, dos agentes envolvidos – o
que deve permitir o questionamento da própria noção de sujeito, e dos modos de ser
associados a pré-concepções diversas que se apresentam na escola ou nos processos
educativos. Para concluir, ou ao menos alinhavar alguns dos fios dessa discussão, propõe-se a
seguir esses possíveis caminhos de conclusão.
A situação do conhecimento na escola é bastante conhecida, mas vale a pena fazer
uma breve descrição daqueles pontos que nos parecem mais importantes aqui.
A discussão sobre cultura e conhecimento na escola mostra-se relevante ao
percebermos os efeitos da formação escolar sobre a juventude. Tomemos como exemplo
aquele que é evento mais conhecido de finalização da formação secundária: o vestibular,
como forma de acesso à educação superior. São mais do que conhecidas as queixas dos alunos
com relação a esta forma de exame, pela quantidade de pontos que são cobrados, em diversas
disciplinas, que incluem desde a matemática, como uma ciência formal; a física, química e
113
biologia, como ciências naturais, também chamadas de ciências exatas; história, geografia,
sociologia e filosofia, classificadas como ciências humanas (embora a filosofia possa
questionar a adequação dessa classificação com relação a ela mesma); língua portuguesa e
pelo menos uma língua estrangeira (predominantemente o inglês e o espanhol); literatura
portuguesa e brasileira, e a redação.
Essa variedade de conteúdos que são cobradas nos exames vestibulares (embora
filosofia e sociologia sejam presenças recentes aí) aparece no mais das vezes como
conhecimentos que terão a função única de realizar essa prova, para depois serem em sua
grande maioria esquecidos, quando não negados e revistos nos cursos universitários. Pouco ou
quase nada desses conhecimentos escolares é utilizado na vida diária, o que se mostra na
dificuldade que têm os pais de alunos para auxiliarem seus filhos nas tarefas escolares. Alguns
professores chegam a reconhecer a inutilidade dos conteúdos que devem ministrar, mas
justificam sua necessidade pelo fato de que serão cobrados nos vestibulares (ou, mais
recentemente, no ENEM, um tipo de exame que pretende modificar essa situação, mas até
agora não parece ter sido capaz disso).
Por outro lado, ainda que muitos alunos se engajem no desafio de enfrentar os exames
de acesso para o ensino superior, isso não é suficiente para que os programas curriculares ou
as práticas dos professores façam sentido.
Propostas recentes de mudança nos currículos escolares do ensino médio tentaram
transformar essa situação. A primeira propôs uma pedagogia de competências; a segunda
propõe, talvez ainda timidamente, o trabalho como princípio educativo, relacionado à
formação dos trabalhadores não desvinculada da formação geral, com a pretensão de capacitar
toda a população para a direção da sociedade e da produção.
A pedagogia das competências mostrou-se claramente associada a interesses de
mercado; relativos à desregulamentação de diversos pontos da educação de modo a que eles
pudessem ser mais facilmente manejáveis por forças de mercado. As disciplinas tiveram seus
conteúdos transversalizados ou colocados em segundo plano em relação às competências.
Curiosamente, a defesa das disciplinas científicas e escolares tornou-se o bastião de
uma defesa da escola contra a novidade da invasão do mercado. É duvidoso que essa
descrição seja exata. Sabe-se que as disciplinas escolares não são formadas segundo a lógica
estrita de formação das disciplinas científicas, e que envolvem diversos outros interesses, em
particular, o de uma comunidade profissional que tende a tentar manter suas posições.
Já a proposta do trabalho como princípio educativo, e a crítica à dualidade do ensino
médio brasileiro, que rejeita a separação entre formação geral e formação para o trabalho,
114
estão ambas associadas a uma ideia de emancipação que se dá, entre outras formas, através da
educação. Podemos ver isso, por exemplo, num texto de Gramsci citado por Farias:
[...] a tendência democrática […] não pode consistir apenas em que um operário
manual se torne qualificado, mas em que cada cidadão possa se tornar governante
[…] assegurando a cada governado a aprendizagem gratuita das capacidades e da
preparação técnica geral necessária ao fim de governar. (GRAMSCI apud
FARIAS,1995, p. 150).
O que esse Fausto deseja para si mesmo é um processo dinâmico que incluiria toda
sorte de experiências humanas, alegria e desgraça juntas, assimilando-as todas ao
seu interminável crescimento interior; até mesmo a destruição do próprio eu seria
parte integrante do seu desenvolvimento. Uma das ideias mais originais e frutíferas
do Fausto de Goethe diz respeito à afinidade entre o ideal cultural do
autodesenvolvimento e o efetivo movimento social na direção do desenvolvimento
econômico. Goethe acredita que essas duas formas de desenvolvimento devem
caminhar juntas, devem fundir-se em uma só, antes que qualquer uma dessas
modernas promessas arquetípicas venha a ser cumprida. (BERMAN, 1986, p. 41,
grifo do autor).
A atividade de Fausto, a atividade heróica de Fausto faz com que enormes energias
humanas que estavam contidas, reprimidas, sejam liberadas em sua nova atitude. Essas
energias vêm não só dele, mas do mundo à sua volta, que é continuamente transformado. A
ciência moderna, aliada à técnica, torna-se senhora e dominadora do mundo, e o transforma
continuamente. Mas a que custos?
A história de Fausto mostra que ele precisou se envolver com poderes ocultos para
desenvolver suas forças, e ele não percebe, a princípio, que esses poderes ocultos podem se
voltar contra ele. A história de Fausto torna-se assim, não apenas uma história de
desenvolvimento, mas uma tragédia do desenvolvimento. As forças que ele libera estão além
de seu controle, e logo começam a se voltar contra ele. (BERMAN, 1986, p. 42).
Essa apropriação da história de Fausto nos parece significativa porque parece poder
refletir-se muito bem nos dilemas que vivemos na escola. A escola que acolheu a ciência e as
técnicas encaminhou-se para uma formação que põe a perder a própria ideia de formação, a
própria ideia de cultura como entidade viva, como afirma a crítica de Nietzsche.
O conhecimento voltado para o progresso produz, no campo da formação, um grande
movimento de rebanho, de instrumentalização dos homens, que só ganham sentido ao se
tornarem peças de uma máquina que funciona sozinha, que realiza seus próprios fins
produtivos, e que não permite que a criação se exerça em seus próprios termos – tudo tem que
fazer sentido em função das necessidades do Estado ou do mercado. A escola submetida por
essas forças perde seu sentido cultural, de formação e transformação das individualidades em
singularidades, de libertação do reino das necessidades.
Assim, parece-nos que Nietzsche aponta para uma superação dessa escola, que
poderíamos chamar de escola de Fausto, para uma escola de promoção da cultura, que poderia
ser entendida em primeiro lugar como uma escola baseada no ideal de educação encontrado
em Schopenhauer, e que depois será desenvolvido nas figuras dos espíritos livres e de
Zaratustra.
Assim, se um primeiro professor, adaptado às injunções de mercado e do poder que
pendem sobre a escola, seria o professor Fausto, um segundo professor, que busca se livrar
desses constrangimentos do rebanho por meio da arte, da auto-formação e da cultura, poderia
117
ser o professor Zaratustra. Voltado para a espiritualidade, ou o trabalho sobre si mesmo, que
lhe é possibilitado pelo cultivo de um outro ideal de cultura, esse professor luta pela
superação de si mesmo e pela possibilidade de fazer vir à luz indivíduos soberanos, nos
sentidos indicados pela análise dos textos de Nietzsche.
Seria conveniente se recusar a dar especificações práticas do que seriam a escola de
Fausto e a escola de Zaratustra, assim como dos procedimentos dos professores Fausto e
Zaratustra, pois não se trata de criar receitas ou estabelecer padrões de modo rígido e
prescritivo. Essas figuras são propostas como referências para a análise e a avaliação da
escola como um todo, em seus aspectos teórico-propositivos e em seus aspectos prático-
discursivos. Essa abordagem literário-conceitual da escola se justifica internamente à escola,
pela possível fecundidade das aproximações interdisciplinares; pelo seu potencial imaginativo
e explicativo, por assim dizer, pela aproximação das imagens e dos conceitos.
Entre Fausto e Zaratustra, será que a escola saberá escolher seus caminhos? Pensamos
que pelo menos mais um elemento deve ser considerado aí. Pois não se trata de uma escola
alemã, estamos investigando as condições de atuação numa escola brasileira, no século XXI.
Nesse sentido, um outro personagem que estará presente, seja na figura do professor, seja na
figura dos estudantes, é aquele que poderemos retirar da tradição literária brasileira:
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. (ANDRADE, 1998).
A figura de Macunaíma é significativa para nós por vários motivos. O professor de
ensino médio, na medida em que vive nas fronteiras de saberes sem reconhecimento social,
sem explicitação formal, é, de certo modo, um professor sem nenhum caráter, sem nenhum
traço definidor, ou pelo menos sem um traço definidor único, que lhe garanta um perfil claro.
Ele tem que se adaptar e exercer suas tarefas em circunstâncias inóspitas, precárias,
desfavoráveis de modo geral, sempre cercado pelas ameaças de colonização do que é seu, até
da linguagem, que se torna estranha como uma carta enviada às Icamiabas. (FONSECA,
1988).
E Macunaíma vive uma enorme preguiça, uma dúvida mesmo sobre o sentido daquela
atividade, sobre se há mesmo alguma finalidade em lutar por uma escola em condições que
118
3.2 Sobre a relação entre a filosofia no ensino médio e a filosofia no ensino superior
Não pretendo negar que haja experiências de ensino da disciplina filosofia onde os
métodos e os resultados estejam longe de promover seja uma experiência de atividade
filosófica, seja a transmissão de conteúdos filosóficos. Mas é bom lembrar que tais
experiências podem ocorrer tanto nas escolas de nível médio, quanto nas instituições de
ensino superior. A baixa qualidade do ensino de filosofia, portanto, não é monopólio do nível
médio de ensino.
A própria impressão de que os estudantes de filosofia que se dirigem para o magistério
seriam os que querem “estudar menos”, ao contrário daqueles que se dirigem para a pesquisa,
deve também ser questionada. As posturas com relação à presença da filosofia no nível médio
variam bastante: desde a negação da possibilidade de fazer filosofia verdadeiramente nesse
nível de ensino até a afirmação da imperatividade política da presença da filosofia como
disciplina, passando pela sugestão da necessidade de abrir mais campo de trabalho para os
graduados em filosofia.
Tentarei partir de alguns pontos não necessariamente consensuais, mas que permitam
uma organização do pensamento a respeito do assunto. Partirei portanto, de que: é possível
fazer filosofia com jovens no ensino médio; a filosofia tem um valor na formação média do
jovem brasileiro, e portanto deve constar como disciplina obrigatória; deve-se procurar as
melhores maneiras de fazer filosofia no nível médio de ensino.
Convém considerar o significado de “médio”. Além do ensino médio ter caráter
propedêutico, isto é, de preparar o aluno para o prosseguimento de estudos em nível superior,
podemos notar outros objetivos indicados para esse nível de ensino: a preparação para o
trabalho e para a cidadania, a formação geral do educando, incluindo sua dimensão intelectual
e moral. Todas essas finalidades atribuídas ao ensino médio nos permitem pensar que esse
nível de ensino, por ser chamado “médio”, é não apenas um nível elementar – intermediário –
no que tange aos conteúdos, mas é um nível onde deve ocorrer diversos tipos de mediação
educativa.
Essa mediação se dá entre os conteúdos e prática, tanto relativa ao trabalho e à
produção quanto à cidadania (que poderíamos chamar práxis). Pode-se argumentar que em
todos os níveis da educação formal supõe-se que ocorra alguma forma de mediação, e isto é
certo. Porém, para não ficarmos restritos aos sentidos de “ensino médio” como elementar ou
mesmo medíocre, proponho que examinemos as mediações pertinentes a esse nível de ensino.
Examinarei algumas dessas mediações possíveis, e elas dizem respeito à relação entre
a filosofia no ensino médio e da universidade; à relação entre a filosofia e as outras
disciplinas presentes no currículo do ensino médio. Essas mediações serão afetadas pelas
122
2
EDITORIAL. “O fim do vestibular”. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A-2, 18 de jul. 2004.
124
determinar se deve estar presente nesse tipo de exame – e de que modo – pelo critério da
quantidade de conteúdos ou dos requisitos mínimos da boa formação filosófica?
Espero com essa fala ser capaz de sugerir caminhos para a prática da “filosofia média”
que ajudem a valorizá-la a tornarem-na mais digna da consideração tanto dos “filósofos
superiores”, quanto dos próprios “filósofos médios”. E que possamos escolher este campo de
atuação não como uma falta de opções melhores, ou como um espaço para práticas de menor
qualidade, mas como um campo a ser desenvolvido em toda a sua potencialidade, boa parte da
qual ainda está por ser descoberta, e talvez com o sentido de uma tarefa essencial para o
aprimoramento da educação brasileira e da relação da nossa sociedade com os jovens.
Têm os jovens o direito à formação filosófica? Ou ela deve ser restrita àqueles que
percorrerem os vários níveis de ensino para encontrar a filosofia apenas na pós-graduação?
Mas então a reflexão humana sobre o autoconhecimento, sobre a ética e a sociedade, sobre as
relações de poder, sobre o conhecimento e a ciência, sobre a beleza e a arte, sobre as diversas
dimensões do conhecimento e da existência humana devem ser guardadas por um zeloso
grupo de especialistas, transformados em sacerdotes do pensamento, que se comunicam
apenas com seus pares, de preferência estrangeiros?
Ainda que se possa criticar a estruturação do ensino médio em um grupo cada vez
maior de “disciplinas obrigatórias”, isso não equivale a criticar a presença da filosofia no
currículo do ensino médio. Seria bom que o ensino médio encontrasse outra forma de se
organizar, para tornar sua formação mais valiosa e menos mecânica, mas não se segue que um
currículo melhor organizado deva excluir necessariamente a filosofia (assim como as artes, as
ciências, as letras etc).
A profissionalização da filosofia tornou uma parte dos nossos professores
universitários não apenas insensíveis às demandas do ensino médio, como até opositores
ferrenhos a envolver-se com alunos que não estejam plenamente capacitados a entendê-los.
Não querem dedicar-se à formação de novos filósofos, querem que eles já cheguem prontos.
Como atingir a maturidade intelectual sem filosofia?
Em que consiste a pesquisa da filosofia média? Como se pode definir, ao menos
provisoriamente, a pesquisa? “Indagação ou busca minuciosa para averiguação da realidade;
investigação, inquirição. Investigação e estudo, minudentes e sistemáticos, com o fim de
descobrir ou estabelecer fatos ou princípios relativos a um campo qualquer do conhecimento.”
O caráter minucioso e sistemático é que torna uma pesquisa algo além da mera
observação aleatória e “impressionista”. Além de apenas exigir que o professor de ensino
médio já seja um pesquisador, é preciso perguntar-se: como formar o professor pesquisador?
125
Os professores que já estão no ensino médio e que exercem o magistério com maior ou menor
“competência”, ou com maior ou menor capacidade, podem ser motivados a tornarem-se
também pesquisadores de sua própria prática? O que significa pesquisar o magistério de
ensino médio de filosofia?
Pode-se pensar em alguns eixos:
1º Constituir um corpus de temas para serem ensinados no ensino médio, e que
constituam um programa de filosofia para este nível de ensino; - o programa de filosofia,
constituído de “competências” ou de conteúdos, é uma tese sobre as qualidades básicas que
um jovem deve adquirir, através do contato com a filosofia (e com todas as outras disciplinas,
ou o currículo escolar), para tornar-se um cidadão. Em algum sentido, a filosofia média
envolve uma reflexão sobre algo como uma “filosofia nacional”, ou, talvez melhor, sobre
como uma nacionalidade pode se constituir filosoficamente.
Se atentarmos ao parentesco entre as palavras nação e natureza, poderíamos dizer:
como constituir uma natureza filosófica – através deste segundo nascimento, que é a
construção do cidadão – sua vinculação a uma nação, ou, se pensarmos mais amplamente na
contribuição que a filosofia pode oferecer à escola – sua construção como cosmopolita, um
cidadão do mundo.
2º Constituir um corpus de textos filosóficos referência para este programa, para serem
utilizados em sala de aula e como referência teórica (pesquisa em “filosofia da educação”);
3º Dentro do quadro de referência teórica, pode-se pensar nos seguintes sub-temas: a
educação no mundo contemporâneo; a relação professor-jovem-escola-pública, onde se
enquadram temas como: cultura e educação contemporâneos; relação adulto-jovem; o
conceito de educação pública; entre outros.
Ora, esses temas, além dos pontos específicos do programa, são temas comuns à
pesquisa filosófica entendida independentemente do ensino médio desta disciplina. Então, a
pesquisa necessária à prática da filosofia média é em parte congruente à pesquisa filosófica
geral, enquanto tem também seus pontos específicos, que a tornam estritamente “média”.
Dois aspectos da mediação estão presentes na filosofia média, o que pode nos ajudar a
revalorizar, ressignificar ou reconstruir este termo, por outro lado associado à mediocridade
(outra associação pejorativa para o ensino médio é o atributo de “secundário”), que, embora
designe o segundo nível cronológico de ensino (quando o primário não é o superior, não custa
lembrar), soa como “de segunda importância”, quando visto do ponto de vista do ensino
superior. A associação entre “terceiro grau” e escape para mundos imaginários talvez não soe
126
tão forte em sentido contrário, como um possível olhar adolescente para o mundo das
discussões universitárias, quer com ele tenha contatos mediatos ou imediatos.
O professor médio exerce a mediação entre o mundo da cultura superior (ou auto-
intitulada superior) e o mundo da cultura comum, da cultura jovem, da cultura hegemônica.
Pensar a cultura própria ao ensino médio, e de que modo se pode pensar e realizar essa
transmissão ou formação cultural, é uma necessidade para os professores de filosofia e é
frequentemente um pressuposto mal explicitado das práticas escolares.
Para explorar esse tema da pesquisa do professor de ensino médio, portanto,
apresentamos as considerações a seguir, que pretendem oferecer uma organização e uma
articulação das questões envolvidas.
3
Os projetos da Secretaria Estadual de Educação do Paraná, relativos ao ensino de filosofia, podem ser
consultados no sítio: http://www.diaadia.pr.gov.br/. Acesso em 21 de jul. 2012.
128
[3] Como compreender o ensino médio? Por longo período o ensino médio
(anteriormente chamado de ensino secundário ou de segundo grau) mereceu menos atenção
das autoridades educacionais do que outros níveis de ensino. As atenções voltavam-se quer
para o ensino fundamental, considerada a etapa mais básica da educação, ou para o ensino
superior, onde se realizam as pesquisas e a produção de novos conhecimentos. O ensino
médio parecia fadado a ser uma mera etapa intermediária, onde se completavam os estudos
que permitiriam o acesso às universidades, ou, em alguns casos, onde se promovia uma
formação profissional de caráter técnico. Com a expansão das matrículas no ensino médio, a
partir de década de 1990, esse nível de ensino vem paulatinamente ganhando espaço nas
políticas educacionais. Entre as questões levantadas recentemente, estão a relação com o
vestibular e a composição do currículo.
Parece então necessário determo-nos sobre o caráter próprio do ensino médio. Este
não é o espaço de um conhecimento mediano ou medíocre, mas é principalmente um espaço
de mediação. Podemos pensar no ensino médio como um nível de ensino onde devem ocorrer
diversos tipos de mediação educativa. Essa mediação se dá entre os conteúdos e prática, tanto
relativa ao trabalho e à produção quanto à cidadania. Os conteúdos da disciplina devem sofrer
uma mediação entre o que se aprende no nível superior e o que se procura transmitir no nível
médio.
Há procedimentos de seleção de textos e conteúdos, de delimitação de questões, de
determinação do nível de aprofundamento e de modos de exposição, entre outros, que devem
ser realizados para a preparação das aulas. Esses procedimentos implicam em abordar a
filosofia com outros fins em vista, que não aqueles voltados para produzir uma pesquisa
129
especializada como se faz nas pós-graduações. Entre esses fins em vista próprios ao ensino
médio, podemos citar a formulação de questões filosóficas, a apresentação de sínteses e
panoramas do pensamento de autores ou de períodos históricos, o estabelecimento de relações
entre a filosofia e outros conhecimentos ou outros saberes.
Há assim as demandas de interdisciplinaridade e de contextualização, através das quais
os conteúdos e procedimentos das diversas disciplinas devem ser relacionados entre si e com
os contextos relevantes, sejam aqueles próprios às suas questões, sejam os contextos da
cultura local, dos estudantes e da comunidade escolar. E ainda a demanda por autonomia do
pensamento do professor: muitas vezes perguntado pelos estudantes “mas o que você pensa,
professor?”, este é constantemente demandado a expor o seu próprio ponto de vista sobre os
assuntos tratados.
Isso significa falar em seu nome e estabelecer uma relação (de seu pensamento e de
sua pessoa) com o espaço público. O ensino médio é um espaço para a filosofia atuar na
formação de jovens, sem preocupar-se em formar especialistas, mas em oferecer experiências
significativas de pensamento, de formação, de aprendizagem, de espírito crítico e mesmo de
um “sentimento de ignorância”4 que seja relevante para qualquer cidadão, em particular para
os estudantes.
É preciso tomar cuidado e ter atenção com a questão do rigor do conhecimento no
ensino médio. Porém, o rigor e o aprofundamento das questões próprias à escola não são os
mesmos do nível superior ou da pós-graduação. Nesse sentido, os materiais didáticos
preparados pelo professor, ou os livros didáticos que ele use, devem ser capaz de enfrentar
esse desafio: como apresentar temas, conceitos e problemas de forma significativa,
compreensível, sem simplificá-los exageradamente a ponto de perderem seu valor como
conhecimento ou como pensamento?
A filosofia no ensino médio deve lidar com um rigor próprio ao seu contexto – não se
trata de formar especialistas, mas de contribuir para a discussão pública de questões
relevantes socialmente; de contribuir para o desenvolvimento integral dos estudantes, como
pessoas e como cidadãos críticos, morais/éticos e autônomos. Trata-se de realizar os objetivos
gerais da educação básica, e não de prover uma profissionalização prematura.
Aparece aqui a necessidade de uma formação geral, ampla, panorâmica; da capacidade
de realizar sínteses de questões, de períodos históricos, do pensamento de autores; essas
sínteses e essas visões amplas devem ser elaboradas sem falsear ou simplificar
4
Como afirma Jacques Rancière, cabe à filosofia nas escolas a transmissão de um sentimento de ignorância
(RANCIÈRE, apud GALLO, 2012b, p. 69).
130
exageradamente as questões. Como encontrar a medida desse rigor, essa capacidade de síntese
e a amplitude da visão? E como relacionar essa abordagem da tradição filosófica com a
autonomia do pensamento, ou seja, como promover experiências autênticas de pensamento
em sala de aula, de modo que estudantes e professores não se restrinjam a repetir conteúdos já
estabelecidos em livros didáticos ou na história da filosofia? São questões colocadas para a
formação dos professores e para sua pesquisa – afinal, produzir um conhecimento com essa
medida e com essas características é um dos desafios colocados para nós nas escolas.
[4] O professor de ensino médio faz pesquisa? Menga Lüdke, professora da PUC/RJ,
que realiza pesquisa sobre a pesquisa do professor, mostra (LÜDKE 2001) que os próprios
professores de ensino médio, mesmo aqueles que trabalham em escolas reconhecidas pela
qualidade de seu ensino, não reconhecem a pesquisa entre as atividades que realizam e que
são importantes para a prática de sua profissão. Embora a escola seja vista como “o lugar que
deveria ser pesquisado”, o conhecimento e as condições para realizar tal pesquisa são vistos
como atributos dos professores do ensino superior. Estes últimos, por sua vez, são vistos
como distanciados da realidade das escolas.
Não obstante essa visão negativa acerca de si mesmos e da ausência de interesse por
parte da universidade, Lüdke mostra que o tema da pesquisa do professor (junto a outros
temas, como o do professor reflexivo, da pesquisa ação, etc.) tem mostrado uma
potencialidade para aproximar a pesquisa universitária e a atividade escolar de forma
significativa. Estimular os professores das escolas a pesquisarem, ajudar a ver o que já fazem
como pesquisa, ajudar a organizar e estruturar suas atividades na forma de uma pesquisa
capaz de apresentar resultados, pensar o que significam pesquisa, estudo e formação em seu
contexto, são algumas das formas pelas quais a interação entre os dois níveis de ensino pode
se dar de modo produtivo.
Ao assumir-se progressivamente como pesquisador, o professor trabalha para
constituir sua própria profissão como uma atividade autônoma, isto é, capaz de estabelecer e
justificar seus próprios princípios de atuação.
[5] Que tipo de pesquisa faz um professor de filosofia no ensino médio? A pesquisa de
professor a que me refiro aqui é aquela que se pode chamar de pesquisa didática, isto é, a
pesquisa necessária para preparar as aulas e cursos de filosofia na escola. Isso que chamo de
pesquisa didática faz parte, na escola, do planejamento de aulas. Mas pretendo mostrar que o
planejamento não é feito apenas por meio de conhecimentos já estabelecidos e assimilados
pelo professor, que apenas os reorganizaria na forma de um curso. Ao contrário, é válido
considerar que a atividade do professor, na qual ele elabora, planeja e realiza seus cursos,
131
de não ser uma disciplina meramente ‘conteudista’, informativa, mas ser uma atividade de
emancipação do pensamento e da ação, de realizar a difícil e paradoxal tarefa de ensinar outro
a pensar por si mesmo.
A questão colocada, portanto, é: como o professor deve mobilizar os elementos de sua
formação para responder às demandas de interdisciplinaridade, contextualização e autonomia
colocadas pelo desafio de ensinar filosofia nas escolas? A resposta a essa questão será: a
formação do professor deve abranger a capacidade de se relacionar com outras disciplinas e
com as experiências dos estudantes; e também a capacidade de pensar por si mesmo, o que
leva à filosofia como experiência.
[6] Como se dá a formação nas licenciaturas em filosofia? Nossos cursos de
licenciatura em filosofia nos formam para enfrentar esses desafios? O que nós, como
professores do ensino médio, podemos apresentar como demandas aos cursos superiores de
filosofia? Essas demandas podem ser apresentadas tanto para a formação do professor,
realizada nos cursos de graduação, nas disciplinas da licenciatura e nos programas de apoio à
docência, como o PIBID. Podem também ser apresentadas como necessidade de formação
continuada, a se realizar em cursos de pós-graduação, lato sensu e stricto sensu, ou em
oficinas específicas e laboratórios de ensino. Se chegaremos a constituir uma linha de
pesquisa em pós-graduação, ou se vamos estabelecer parâmetros para formação básica, isso
vai depender do contexto. Mas é importante expressar as demandas de formação do professor
e integrar os programas de formação com a prática dos professores que já atuam nas escolas.
A formação dos profissionais de filosofia nos cursos de graduação das universidades
brasileiras tem se direcionado mais para a formação de profissionais capacitados para a
pesquisa especializada, segundo certos parâmetros, do que para a formação de professores de
ensino médio. De alguns anos para cá, especialmente a partir de 2008, com o retorno da
obrigatoriedade da disciplina em âmbito nacional, alguns cursos, ou alguns professores dentro
de alguns departamentos, têm se dedicado a pensar a formação de professores. Esse é ainda
um movimento incipiente, que deve ser desenvolvido.
[7] A tradição de pesquisa em filosofia no brasil e seus dilemas: o professor Paulo
Margutti apresentou na 39ª Semana de Filosofia da UnB, em 2011, conferência na qual trata
dos modos de se fazer e ensinar filosofia no Brasil, historicamente. 5 Ele identifica, já no
período colonial, dois padrões de pesquisa e produção filosóficos, que, em alguma medida,
permanecem existentes hoje. O primeiro, característico do que ele chama de “grupo da
5
Um resumo da conferência de Paulo Margutti, elaborado por Rafael Alves, pode ser consultado no sítio:
http://fibral.blogspot.com.br/2011/09/arturo-roig-y-la-decolonialidad.html. Acesso 02 de jul. 2012.
133
ANPOF”, ligado aos órgãos financiadores do CNPq e da CAPES, pode também ser
denominada ‘neofonsequismo’ (em referência a Pedro da Fonseca, exegeta português de
Aristóteles no século XVI), ou ‘nova escolástica brasileira’ (ele evita o termo ‘uspianismo’,
por considerá-lo muito agressivo), caracterizado por uma autoimagem negativa do brasileiro
como incapaz de fazer filosofia (não temos cabeça filosófica, autodidatas, imaturos, temos
fascínio pela novidade, nosso pensamento não tem seriação) e uma técnica estruturalista de
leitura e interpretação de textos históricos (método que veio disciplinar e tornar maduro
aquele ser que é visto negativamente desde o início; como consequência, porém, refreia-se o
pensamento autônomo, mantendo-se apenas como produção de comentários de texto).
Essa fase teria durado desde a fundação de departamento de filosofia da USP, em 1934
até 1998, quando Oswaldo Porchat, um dos principais defensores desse programa de pesquisa,
produziu um discurso em que realiza uma autocrítica, reconhecendo insuficiências na
exigência estrita e exclusiva do estudo da história da filosofia, segundo os métodos de leitura
de, em especial, Victor Goldschmidt, para a formação de filósofos (GOLDSCHMIDT, 1970).
Essa exigência teria resultado no impedimento da formação de filósofos autônomos, capazes
de discutir questões filosóficas relevantes para a atualidade a partir de seus próprios pontos de
vista. Formaram-se historiadores da filosofia, especialistas extremamente competentes na
análise e interpretação de textos de filósofos clássicos, em particular da antiguidade e da
modernidade, com menos ênfase sobre a filosofia contemporânea.
Um outro padrão de formação, de ensino e de prática da filosofia seria o ‘sanchismo’
(referência a Francisco Sanches – ceticismo mitigado), que se caracteriza por ser mais crítico,
professar maior liberdade de pensamento, maior originalidade filosófica, e encontrar melhor
expressão nas obras de arte, expressando intuições de seus autores. Inquieto e indisciplinado,
tendeu a ser marginalizado pelas universidades. Foi típico dos estrangeirados, intelectuais
portugueses que estudaram no exterior e que voltavam a Portugal com ideias de mudança da
sociedade e da cultura. No Brasil, teria prevalecido em função da ausência das universidades
até o século XX, e se manifestado na obra de vários literatos, como Machado de Assis, no
século XIX. Marginalizados pela academia, a obra desses autores não foi considerada como
de valor filosófico, não sendo, portanto, digna de estudo. Margutti vê aqui também relação
com a desvalorização da história da filosofia brasileira nos cursos universitários.
A formação ‘neo fonsequista’ ou da ‘nova escolástica brasileira’, atualizada segundo a
exigência exclusiva do método estrutural de leitura e interpretação de obras clássicas, envolve
uma concepção de pesquisa: a pesquisa em filosofia é a pesquisa em história da filosofia, mas
não uma história ampla, panorâmica, e sim a interpretação de um autor de modo interno e
134
quais a filosofia já se expressou, mas também abordando outras produções culturais – canções
populares, filmes, etc. – e traçando relações entre elas e conceitos e problemas filosóficos.
As discussões realizadas sobre o ensino de filosofia no âmbito acadêmico afirmam, de
modo geral, como primeira preocupação, aquela relativa à qualidade da formação filosófica
do professor. Se o professor não tiver uma boa formação filosófica, não poderá dar boas aulas
de filosofia. Não se pretende negar esta que parece ser uma verdade trivial, mas espera-se ter
levantado elementos para poder ir além dessa preocupação. Pois, se a formação filosófica do
professor é necessária, tentou-se mostrar que é preciso pensar que tipo de formação filosófica
é oferecida nas universidades e se essa formação atende, ou não, às necessidades levantadas
pela presença da filosofia como disciplina no ensino médio. Levar a sério essas necessidades é
um ponto de partida incontornável para que o professor possa exercer sua atividade de modo
relevante.
[9] A contribuição do modernismo e da antropofagia para a pesquisa didática em
filosofia: no texto “O movimento modernista”, de 1942, Mário de Andrade (1974, p. 231-255)
caracteriza o movimento modernista pela fusão de três princípios: “O direito permanente à
pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma
consciência criadora nacional”. (ANDRADE, 1974, p. 242). Os princípios, isolados, não eram
originais. A novidade estava na fusão dos três princípios “num todo orgânico da consciência
coletiva”. (ANDRADE, 1974, p. 242). O direito à pesquisa estética e a atualização da
inteligência artística sempre tinham ocorrido dentro de um espírito academicista, “repetindo e
afeiçoando estéticas já consagradas, se eliminava assim o direito de pesquisa, e
consequentemente de atualidade”. (ANDRADE, 1974, p. 243).
A consciência criadora nacional tinha encontrado sua estabilização em nomes como
Gregório de Matos e Castro Alves, porém sempre havia uma marca individualista. Esse
individualismo se cristalizou no lema “Não há escolas!”, impedindo de ver o que os criadores
teriam em comum. (ANDRADE, 1974, p. 243). O que havia em comum era a “organicidade
de um espírito atualizado, que pesquisava já irrestritamente radicado à sua entidade coletiva
nacional. Não apenas acomodado à terra, mas gostosamente radicado em sua realidade. O que
não se deu sem alguma patriotice e muita mistificação”. (ANDRADE, 1974, p. 243).
A questão da radicação à terra se manifestou no problema da “língua brasileira”, que
ficou irresolvido. (ANDRADE, 1974, p. 244). A “conquista do direito permanente de
pesquisa estética” foi a grande vitória do movimento modernista. Fixou-se na lei “estético-
técnica” do fazer melhor, e não como um simples instinto de revolta, destruidor. Foi o
primeiro movimento de independência da inteligência brasileira (como consciência coletiva).
137
O Brasil não tinha pesquisado nos campos de criação artística, mas apenas importado técnicas
e estéticas, depois de certa estabilização e até mesmo academicização. “Era um fenômeno de
colônia”. (ANDRADE, 1974, p. 249).
Inspirados pela leitura do texto de Mário de Andrade, o que fazemos aqui é propor
uma analogia. Tentaremos transportar alguns dos termos da reflexão de Andrade sobre a
Semana de Arte Moderna para o campo da didática de filosofia, ou do ensino de filosofia.
Assim, os três princípios de um movimento modernista na didática de filosofia deveriam ser
os seguintes:
não deve permanecer intocado, mas deve se abrir ao cruzamento com os diversos saberes
presentes na escola. E vimos que eles são muitos, e que os saberes mobilizados do professor
são também de vários tipos.
Mesmo as questões que envolvem o currículo são questões de cruzamento de saberes,
de comunidades, de questões políticas que se travam no cotidiano e nos documentos
escolares, como vimos no caso da discussão curricular realizada por Silvio Romero e que
tomamos como um de nossos pontos de referência. As diversas Cataguases do professor de
ensino médio devem envolver também todas as situações onde elementos culturais
sobressaem e podem ser considerados como contribuições para suas aulas, portanto tanto os
acontecimentos extra-classe quanto as aulas e escolas do Brasil e de países próximos, como da
América Latina, são, num horizonte mais largo, importantes de serem conhecidas. Essa
postura também deve ter consequências para o primeiro ponto, no sentido de que não
podemos simplesmente ficar presos a uma história canônica da filosofia, mas devemos ser
capazes, ou ter a possibilidade de conhecer outras tradições, outros textos, outra história da
filosofia, mais ampla do aquela que se faz apenas sob uma perspectiva eurocêntrica.
Finalmente, o terceiro ponto nos leva a pensar que a aproximação entre culturas
distintas, entre a cultura acadêmica, universitária, a cultura dos professores de ensino médio, a
cultura escolar, os diversos saberes envolvidos nos saberes docentes, e a cultura dos
estudantes, com toda sua imensa variedade, podem se aproximar, podem se imitar
criativamente, como diria Nietzsche inspirado em Schopenhauer, e podem dar lugar a novos
nascimentos, a uma cultura viva que se abre para o novo, para o desconhecido, para novas
criações e propõe a experiência escolar como uma experiência criativa, e não apenas
reprodutiva.
Para concluir, mencionamos o texto do Manifesto Antropófago II, “psicografado” por
Sergio Paulo Rouanet, uma recriação do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade que
foi publicado em estudo recente sobre a antropofagia: “contra a antropofagia caeté, pela
antropofagia tupinambá”. (ROUANET, 2011, p. 49). A antropofagia caeté é provinciana,
porque se alimentam do outro apenas para reforçar a identidade já constituída, para serem
mais quem eles já são. A antropofagia tupinambá é cosmopolita, porque se alimentam do
outro para transformar a si mesmos, para serem outros. É esse tipo de abertura que pensamos
ser necessário para o professor de filosofia nas escolas: é preciso estar aberto às
transformações, e particularmente à sua própria transformação. Pesquisar e lecionar não é
apenas uma atividade produtiva, mas deve ser considerada e vivida como uma atividade
139
espiritual – uma atividade em que o próprio si mesmo se coloca em questão e, quem sabe,
onde se torna quem se é.
140
CONCLUSÃO
A conclusão deste trabalho reúne alguns resultados parciais que, espera-se, podem
contribuir com a abordagem e a discussão da tarefa de ensinar filosofia nas escolas brasileiras.
Após percorrer alguns momentos da história secundária, percebe-se uma multiplicidade de
projetos para as escolas que envolvem perspectivas humanistas, científicas, políticas e
profissionais. Desses projetos resultaram diferentes tipos de escolas que se estabeleceram em
vários países e também as escolas brasileiras. Estas passaram por diferentes formulações e
diretrizes oficiais, e no início do século XXI nos encontramos em meio a diversos debates que
tratam de questões curriculares, em particular sobre a presença da filosofia, quer como
disciplina, quer como componente curricular de outra espécie.
A história da disciplina filosofia nas escolas brasileiras caracteriza-se por ausências e
presenças que variaram em função de posturas políticas e econômicas de diferentes governos.
Após 1984 a filosofia volta a aparecer como disciplina em diversos estados da federação, mas
de modo geral com um caráter optativo. Em 2008 estabelece-se como disciplina obrigatória
nos três anos do ensino médio, junto com a sociologia. Com a obrigatoriedade definida na
própria Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional, cabe perguntar sobre o sentido da
presença da disciplina nas escolas de ensino médio.
Ao nos perguntarmos sobre o sentido da presença da filosofia nas escolas, surgem
questões sobre como a própria filosofia, por meio de alguns de seus autores, considerou essa
presença. Elegemos aqui as perspectivas de Friedrich Nietzsche, Michel Foucault e Jacques
Rancière como aquelas que poderiam nos oferecer alguns caminhos para avaliar o sentido da
filosofia em meio ao contexto escolar e com relação aos modos de conceber o conhecimento e
a cultura. Encontramos aí uma concepção predominante de conhecimento que se desenvolve
principalmente durante a modernidade (entendida como um largo período histórico que se
desdobra desde o século XVI).
Essa concepção de conhecimento difere de noções antigas de sabedoria ao desvincular
a busca da verdade da transformação de si. A percepção dessa dissociação, que se dá de
modos diferentes em Nietzsche e Foucault, nos leva a perguntar sobre o sentido da escola
como um todo. Deveria a escola abdicar do trabalho sobre si, da espiritualidade presente na
busca da verdade, em favor de um conhecimento não espiritual, de caráter científico e
técnico? A multiplicidade de projetos de escola talvez nos leve a pensar que a resposta a esta
questão deve ser negativa. Afinal, ao menos alguns aspectos dos projetos humanista e político
141
buscar pensar a si própria em outros termos do que aqueles definidos por um padrão de
formação predominante nas universidades. Para isso, deve voltar-se para diversos aspectos
relacionados ao magistério nas escolas.
Tentou-se indicar algumas semelhanças entre as demandas da pesquisa estética
modernista, formuladas por Mário de Andrade em sua avaliação do movimento, e as
demandas de uma pesquisa didática em filosofia. Com a análise dessas demandas próprias da
pesquisa do professor de filosofia nas escolas, espera-se ter atingido neste trabalho um
resultado que possa ser de proveito para outros professores pensarem suas experiências.
144
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