Condessa de Ségur o General Dourakine
Condessa de Ségur o General Dourakine
Condessa de Ségur o General Dourakine
Condessa de Ségur.
Editorial Publica, Lisboa, 1984.
Juvenil.
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À MINHA NETA
JEANNE DE PITRAY
Minha querida Joaninha: ofereço-te a minha décima obra porque tu
és a minha décima neta, o que não quer dizer também que tenhas o
décimo lugar no meu coração. Quanto a isso, vocês estão todas em
primeiro lugar, porque são todas umas meninas muito boas e
amáveis.
Os teus irmãos Tiago e Paulo serviram-me de modelo na Pousada do
Anjo da Guarda para Tiago e Paulo Derigny. As circunstâncias da
sua vida são diferentes, mas as qualidades morais que possuem são
as mesmas. Quando fores mais crescida, talvez me sirvas também de
modelo para um novo livro, em que encontrarás uma encantadora
Joaninha.
Tua avó,
CONDESSA DE SÉGUR
(Rosto pchine )
1. De Loumigny a Gromiline
O general Dourakine partira para a Rússia, acompanhado por
Derigny, sua mulher e filhos, como vimos na Pousada do Anjo da
Guarda.
Passados os primeiros momentos, em que o desgosto de se separarem
de Elfy e Moutier lhes causara sincera tristeza, todos se sentiam
en cantados com aquela viagem, até mesmo a Sr.a Derigny, que
viajava com as crianças noutra carruagem.
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Por seu lado, Dourakine, embora levasse saudades dos seus jovens
amigos, a quem tão generosamente protegera, estava contentíssimo
com a ideia de voltar à sua terra.
Já não era um prisioneiro, regressava à Rússia, sua querida
Pátria, levava consigo uma família simpática que lhe devia a
felicidade, que mais poderia desejar?
A sua alegria era tal, que chegava a divertir os pequenos.
Demoraram-se pouco em Paris; na Alemanha nem pararam; tiveram de
ficar uma semana em Sampetersburgo, cujo aspecto majestoso,
regular e severo não agradou a nenhum dos companheiros do velho
general. Estiveram dois dias em Moscovo, que lhes despertou
curiosidade e admiração. Gostariam até de se demorar mais nesta
cidade, mas o general estava impaciente por chegar antes dos
grandes frios a Gromiline, sua terra, que ficava perto de
Smolensko. Como não havia caminho-de-ferro, viajaram todos na
carruagem, cómoda e espaçosa, que Dourakine trouxera de Loumigny.
Derigny tivera o cuidado de encher a carruagem de provisões e
garrafas de vinho de várias qualidades. Desta maneira, estava
assegurado o bom humor do general.
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Logo que o casal Derigny lhe via a testa enrugada, a boca
contraída ou a cara mais vermelha, oferecia-lhe uma pequena
refeição, enquanto não chegavam à estalagem mais próxima.
Esta inocente habilidade dava sempre resultado. Apesar disso, os
acessos de cólera iam-se tornando mais frequentes; o general
começava a aborrecer-se.
Tinham-se posto a caminho às seis horas da manhã; eram cinco da
tarde e deviam jantar e dormir em Gjatsk, que ficava a meia
distância de Gromiline, onde só chegariam no outro dia entre as
sete e as oito horas da noite.
A Sra Derigny bem tentou distraí-lo, mas, desta vez, não o
conseguiu. O marido fez reflexões agradáveis sobre a Rússia, mas
o general continuou de má catadura.
Por fim, fechou os olhos e adormeceu, com grande satisfação de
todos. As horas iam passando lentamente; o general continuava a
dormir. A Sra Derigny, que ia sentada a seu lado, conservava-se
imóvel, para o não acordar. Em frente deles iam Tiago e Paulo,
que continuavam acordados e. muito aborrecidos. Paulo começou a
bocejar ruidosamente; Tiago, por sua vez, tentava abafar os ah ah
prolongados
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que o irmão soltava, pondo-lhe a mão em frente da boca. A Sr.a
Derigny não pôde deixar de sorrir, mas recomendou-lhes, em voz
baixa, que estivessem quietos e calados. Paulo quis falar o irmão
não deixou por fim, as gargalhadas de Tiago e as próprias
recomendações da Sr. a Derigny acabaram por acordar o general.
- Que vem a ser isto? - exclamou ele. Por que motivo não deixam
este pequeno falar e mexer-se à vontade?
SR DERIGNY - O senhor General estava a dormir, tive receio de que
o acordasse.
GENERAL - E se me acordasse, que mal tinha? Julgam que sou algum
tigre, ou algum papão? Ainda que eu me torne mansinho como um
cordeiro, hão-de estar sempre a tremer com medo de mim! Medo de
quê? Sou algum monstro, algum diabo?
A Sra Derigny olhava, a sorrir, para o general, cujos olhos
brilhavam de cólera mal contida.
SR DERIGNY - Meu bom General, é justo que o incomodemos o menos
possível e que respeitemos o seu sono.
GENERAL - Deixemo-nos dessas coisas! Isso não me interessa. Dize-
me tu, Tiago, porque impedias o teu irmão de falar?
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TIAGO - Porque tinha medo de que o senhor General se zangasse.
Paulo é pequeno e assusta-se quando o vê zangado. E como aqui, na
carruagem, não tem onde se esconder nem pode fugir, tive pena
dele.
Ao ouvir isto, o general fez-se vermelho; as veias incharam-lhe;
os olhos pareciam soltar faíscas. A Sra Derigny esperava já uma
explosão terrível, quando Paulo, que o olhava inquieto, lhe
disse, juntando as mãos:
- Senhor General, não se faça assim tão encarnado, nem ponha lume
nos olhos, que me assusta. Um homem colérico é muito perigoso:
grita, bate, pragueja! Lembra-se de quando bateu ao Torchonet?
Depois até teve vergonha. Quer que lhe dêem alguma coisa para o
distrair? Uma fatia de presunto, ou um pastel, ou um cálice de
vinho? O papá trouxe bastantes provisões.
À medida que Paulo falava, o general ia acalmando; acabou por
sorrir e até rir com vontade. Sentou Paulo nos joelhos, beijou-o
e afagou-lhe a cabeça.
- Pobre pequeno! Tens razão. Sim, meu amigo, é tal qual como tu
dizes; não quero tornar a zangar-me dessa maneira!
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- Como estou contente! - exclamou Paulo. - Isso que o senhor
General diz é verdade? Nunca mais me fará ter medo de si?
Poderemos rir, conversar, mexer as pernas?
GENERAL - Podes, sim, meu rapaz, à vontade. Mas quando me maçares
muito, passarás para o banco do cocheiro, ao pé de teu
paI.
PAULO - Obrigado, senhor General. Foi muito bom dizer-me isso.
Nunca mais terei medo.
GENERAL - Ora aqui está! Ficamos todos contentes. Agora, a única
coisa que me aborrece, é irmos tão devagar. Hé! Derigny, faça
andar esses izvochtchiks; vamos a passo de tartaruga.
DERIGNY - Já lhes disse isso mesmo, meu General mas não me
compreendem.
GENERAL - Chame-lhes dourak, skarei ('). Derigny repetiu com toda
a força as palavras russas que o general acabara de pronunciar; o
cocheiro olhou para ele, surpreendido, levou a mão ao chapéu e
chicoteou os cavalos, que partiram a galope.
() Imbecil, animal, mais depressa!
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- Skarei Skarei - repetia Derigny, quando os cavalos abrandavam a
corrida.
O general esfregava as mãos de contentamento. Com a boa
disposição voltou-lhe o apetite, e Derigny passou a Tiago, pela
janela descida, empadas, presunto, pernas de galinha, bolos,
fruta, uma garrafa de vinho, enfim, uma abundante refeição.
- Obrigado, meu amigo - disse o general, recebendo os petiscos. -
Não se esqueceu de nada! Este pequeno aperitivo já nos permite
esperar pelo jantar.
Entretanto, Derigny de tal forma conseguiu animar o cocheiro, que
chegaram a Gjatsk às sete horas. A estalagem era má canapés
estreitos e duros a servir de camas; dois quartos para cinco
pessoas; um jantar ordinário e, por única iluminação, velas de
sebo.
O general andava de um lado para o outro, com as mãos atrás das
costas. Soprava, furioso, e lançava em redor olhares terríveis.
Derigny nem se atrevia a falar com receio de lhe provocar um
ataque de fúria; mas, para ver se o distraía, começou a conversar
com a mulher.
- O general não pode dormir num canapé
- dizia ela. - E se nós juntássemos dois para lhe arranjar um
leito mais largo?
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O general voltou-se, num acesso de cólera. Derigny, então,
apressou-se a responder:
- Que loucura, Helena! O general, que é um valoroso militar, está
habituado a dormir em camas muito mais estreitas e duras. O
general tem idade e coragem para suportar ainda coisas piores.
O general mudou como por encanto. Tornou-se sorridente e bem
disposto, concordando imediatamente.
- Tem razão, meu caro amigo! As mulheres não fazem ideia do que é
a vida de um militar.
DERIGNY - E, principalmente, a sua, meu General. Mas Helena
preocupa-se tanto com o seu conforto porque é muito sua amiga e
tem pena de o ver mal instalado.
GENERAL - Não se atormente por minha causa, querida amiga. Fico
muito bem assim. Optimamente! Derigny dormirá ao pé de mim,
noutro canapé, e a senhora e os pequenos ficarão no quarto ao
lado. Vamos jantar. Comeremos do que houver. Derigny, mande-me o
meu criado.
Efectivamente, Stépane não tardou a aparecer. O general deu-lhe
ordens em russo e recomendou-lhe que servisse Derigny, a mulher e
os
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filhos, o melhor possível, adivinhando-lhes os desejos se
necessário fosse. E acrescentou:
- Se lhes faltar alguma coisa por culpa tua, mandar-te-ei dar
cinquenta chicotadas quando chegarmos a Gromiline.
- Está muito bem, excelência! - respondeu o criado.
Imediatamente, procurou cumprir as ordens que recebera e preparou
de tal maneira a refeição e tudo quanto dizia respeito a Derigny
e à família, que eles ficaram, afinal, mais comodamente
instalados que o próprio general. Este deu-se por satisfeito com
o modesto jantar e com a cama estreita e rija. Deitou-se vestido
e dormiu, de um sono, até às sete da manhã seguinte.
Como sempre, Derigny foi o primeiro a levantar-se, fazendo
pontualmente tudo o que lhe competia.
A primeira coisa que o general Lhe perguntou, logo que acabou de
tomar o pequeno almoço, foi se Helena e os pequenos já estavam
acordados.
DERIGNY - Estão prontos!
GENERAL - Vão todos tomar o pequeno almoço, e partiremos em
seguida.
DERIGNY - Já comemos. Stépane serviu-nos ainda antes de o meu
General acordar.
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GENERAL - Ah ah ah As cinquenta chicotadas deram bom resultado,
pelo que vejo!
DERIGNY - Quais chicotadas, meu General? Ninguém lhe bateu.
GENERAL - Bem sei, mas prometi-lhas eu, se ele não tratasse bem
de vocês.
DERIGNY - Oh, meu General!
GENERAL - Sim, meu amigo; é assim que nós "ensinamos" os criados.
DERIGNY - Dá-me licença que lhe faça uma pergunta, meu General?
São mais bem servidos assim?
GENERAL - Pelo contrário! Somos pessimamente servidos. Só
conseguimos qualquer coisa à força de pancada.
DERIGNY - Se o meu General me permite falar-lhe com franqueza,
vou dizer-lhe o que penso: eles são maus criados porque não se
dedicam aos patrões, e não se dedicam porque são maltratados.
GENERAL - Ora! Ora! São uns brutos! não compreendem nada!
DERIGNY - Pelo menos compreendem as ameaças e os castigos que
recebem.
GENERAL - O que os faz perceber é o medo.
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DERIGNY - Pois eu tenho a certeza de que compreenderiam também as
boas palavras e as boas maneiras, e acabariam por estimar os
patrões como eu o estimo a si, meu General.
GENERAL - Não faça comparações, meu amigo. Há tanta diferença
como entre o dia e a noite!
DERIGNY - Apenas aparentemente, porque no fundo não somos assim
tão diferentes como o meu General imagina.
GENERAL - É possível. Falaremos nisso mais tarde. Agora o que
interessa é partir depressa. Chame a Helena e os pequenos.
Encontrava-se tudo pronto. Estava um tempo esplêndido e a viagem
prosseguiu o mais agradavelmente possível. Stépane foi à frente,
para preparar tudo. O general ia bem disposto, mas adivinhava-se
que qualquer coisa o preocupava.
Como tinha bom coração, apesar do seu génio terrível, as palavras
de Derigny haviam-no impressionado e, por mais que quisesse, não
podia deixar de pensar nelas. Decidiu voltar a falar sobre o
assunto logo que chegassem a Gromiline. Entretanto, para não
perder a boa disposição, comeu uma asa de galinha e bebeu meia
garrafa de Bordéus.
2. A chegada a Gromiline
Depois de um dia fatigante e aborrecido, chegaram a Gromiline,
eram sete horas da noite.
Apareceram logo muitos homens de grandes barbas, que se
precipitaram para a carruagem e ajudaram o general a descer;
beijaram-lhe as mãos, chamando-Lhe Batiouchka (pai); aproximaram-
se também muitas mulheres e crianças, soltando exclamações de
respeito e alegria. O general agradeceu-Lhes, saudando-as com a
mão e sorrindo-lhes.
Helena Derigny e os pequenos seguiram-no de perto. Quando Derigny
quis tirar da carruagem a bagagem do general, não lho permitiram,
e logo se estenderam muitas mãos para fazerem
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esse trabalho. Derigny não os contrariou, e foi juntar-se ao
pequeno grupo que caminhava por entre mulheres e crianças, que
repetiam em voz baixa: - Frantsousse (franceses) - examinando com
curiosidade a família Derigny.
O general disse-lhes algumas palavras, e logo duas mulheres
correram ao longo de um corredor para onde davam os quartos de
dormir; outras duas dirigiram-se para a cozinha e para a copa.
- Meu amigo - disse o general a Derigny -, acompanhe a sua mulher
e os seus filhos aos quartos que lhes mandei preparar; lá lhes
levarão a ceia. Logo que estejam completamente instalados, diga
que o acompanhem aos meus aposentos, para combinarmos o que
devemos fazer amanhã e nos dias seguintes.
- Às suas ordens, meu General - respondeu Derigny.
As crianças que, à chegada, estavam meio adormecidas, despertaram
ao ouvir tanto ruído e ao ver aquelas caras e aqueles trajos, que
nunca tinham visto.
- É esquisito que todos os homens, aqui, sejam porta-machados! -
disse Paulo.
TIAGO - Não são porta-machados, são os criados do general.
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PAULO - Mas porque andam eles de roupão?
TIAGO - É a sua maneira de vestir. Não viste os camponeses que
encontrámos no caminho? Todos usavam roupão azul, com cintos
vermelhos. É bem mais bonito do que as camisas que se usam em
França.
Quando chegaram aos quartos que Vassili, o intendente, lhes
arranjara o melhor que pudera, os pequenos ficaram encantados.
Apenas estranharam que, em vez de leitos, tivessem sofás.
- Onde nos havemos de deitar? - perguntaram eles ao pai.
DERIGNY - Transformaremos os sofás em camas. Devemos habituar-nos
a contentar-nos com o que temos.
Derigny e Helena começaram imediatamente a pôr as coisas em ordem
e, dentro de poucos minutos, estava tudo pronto para se deitarem.
Os pequenos não se fizeram rogados, porque estavam a cair de
sono.
Derigny, antes de se deitar, procurou ainda o general, como ele
lhe recomendara, mas esteve quase a perder-se, tantos eram os
corredores e quartos por onde passou. Por fim, lá conseguiu
chegar aos aposentos do general, que passeava
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de um lado para outro, no seu grande quarto de dormir, com todo o
ar de quem está muito zangado. Quando viu aparecer Derigny,
deteve-se e exclamou, cruzando os braços:
- Estou furioso e arrependido de ter vindo para aqui. Toda a
gente não percebe nada do que eu quero. Precipitam-se, como
loucos ou imbecis, para executar as minhas ordens, mas, afinal,
não compreendem nada do que desejo! Não encontro nada do que me é
preciso. A Pousada do Anjo da Guarda era cem vezes mais
confortável. No entanto, eu tenho seiscentos mil rublos de
rendimento. Para que me serve todo este dinheiro?
DERIGNY - Mas, meu General, quando se regressa, depois de uma
longa ausência, sucede sempre assim. Nós arranjaremos tudo.
Dentro de poucos dias estará instalado como um príncipe.
GENERAL - Só se você e a sua mulher se encarregarem disso,
porque, com esta gentinha, não conseguiremos nada.
DERIGNY - Estão tão contentes por o tornarem a ver, meu general!
Naturalmente só há pouco tempo é que tiveram conhecimento do seu
regresso.
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GENERAL - Pois é claro! Eu não avisei ninguém. Mandei apenas o
Stépane à frente.
DERIGNY - Nesse caso, meu general, eles não são culpados! Não
tiveram tempo de preparar as coisas.
GENERAL - Nem ao menos a minha ceia. Há-de concordar que é forte!
DERIGNY - Se demora um bocado é, com certeza, para que fique mais
bem cozinhada.
GENERAL (sorrindo) - Você tem resposta para tudo. E eu agradeço-
lhe, meu amigo, porque, afinal, fez-me acalmar. E como estão
vocês instalados?
DERIGNY - Muito bem, meu General. Não nos falta coisa alguma.
- Sua Excelência está servida - disse Vassili, abrindo as portas
de par em par.
O general dirigiu-se imediatamente à sala de jantar, acompanhado
por Derigny que o serviu à mesa, com a maior solicitude. Em volta
havia cinco ou seis criados para ajudar no que fosse preciso.
GENERAL - Ah, ah! ah Repare, Derigny, no espanto destes homens,
só porque você me serve o vinho!
DERIGNY - Porquê? É naturalíssimo que eu lhe evite a maçada de
pegar na garrafa e encher o copo.
GENERAL - Eles consideram isso como uma familiaridade chocante, e
admiraram a minha bondade por lhe permitir, a si, que o faça.
A ceia durou bastante tempo, porque o general tinha, como sempre,
bom apetite. Serviram-Lhe uma dúzia de pratos. O general reatava
as suas relações com a cozinha russa e parecia satisfeito.
Enquanto Derigny se conservava junto do general, Helena, depois
de deitar os pequenos, examinou o mobiliário e ficou desolada ao
verificar que lhe faltavam coisas indispensáveis: uma bacia para
lavar as mãos e a cara, um jarro, um copo. Apenas havia, a um
canto, um velho balde. Desolada, sentou-se numa cadeira e teve
saudades da Pousada do Anjo da Guarda, mobilada com tanto
conforto e sempre tão asseada. Pensou em sua irmã Elfy, em
Moutier, no bom pároco, no seu país, enfim. Calculou as privações
que iriam passar ali, e sentiu-se desanimada.
Quando Derigny voltou, depois de o general já estar deitado,
encontrou Helena a chorar. Ao saber a causa do seu desgosto,
consolou-a, encorajou-a; prometeu-lhe que, no dia seguinte, teria
as coisas mais urgentes e, dentro de pouco tempo, não haveria
razão para sentir saudades da Pousada do Anjo da Guarda.
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Além disso, testemunhou-lhe tanta gratidão pelo carinho com que
ela tratava as crianças, mostrou-se tão alegre, tão confiante no
futuro, que ela acabou por ficar bem disposta e cheia de coragem.
Como estavam todos satisfeitos, dormiram até tarde, na manhã
seguinte, excepto Derigny que conservava os seus hábitos
militares e se apresentou à hora costumada junto do general, que
se mostrou satisfeitíssimo com aquela pon tualidade.
- Logo que eu tenha comido o pequeno almoço, vou mostrar-lhe o
palácio, o parque, a aldeia, a floresta, tudo! - disse ele.
DERIGNY - Agradeço-lhe muito, meu General, porque desejo imenso
conhecer Gromiline, que me parece uma esplêndida propriedade.
GENERAL (com ar despreocupado) - Não é má: vinte mil hectares de
floresta, dez mil de terra cultivável, vinte mil de pastagens.
Sim, é uma bela terra; quatro mil camponeses, duzentos cavalos,
trezentas vacas, vinte mil carneiros e uma quantidade de outros
animais. Sim, não émá...
Derigny ouviu-o, sorrindo.
GENERAL - De que se ri você? Julga que minto ou exagero?
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DERIGNY - Oh, meu General! De forma alguma. Eu sorria, ao ouvi-lo
falar das suas riquezas com o ar mais despreocupado deste mundo.
GENERAL - Então como queria que eu falasse? Queria que me pusesse
a rir como um doido, e desse cambalhotas como os seus filhos, ou
então que me fingisse pobre?
DERIGNY - De forma alguma. O meu General fez como devia; eu é que
fui parvo por ter sorrido.
GENERAL - Olhem que ideia! Você não é parvo, e sabe isso muito
bem. Fala assim só para me acalmar os nervos, como se acalma um
louco furioso ou uma criança amimada. Pois saiba que eu não sou
louco nem criança. Tenho sessenta e três anos e não gosto que me
lisonjeiem. Sou um parvo, sou eu que o digo, e proíbo-o, a si, de
me contradizer; mais ainda, ordeno-lhe que me acredite. Você é um
homem de espírito, de coração e dedicação. E continuo a ordenar-
lhe que me acredite e que não me tome por um imbecil que não sabe
julgar os outros e julgar-se a si próprio.
- Meu General - disse Derigny, com voz comovida -, se não lhe
digo todo o reconhecimento e a respeitosa afeição que tenho por
si, é
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porque sei muito bem como o meu General detesta os agradecimentos
e as expansões.
GENERAL - Sim, sim, meu amigo, eu sei. Ordene que me sirvam aqui
mesmo o pequeno almoço, e vá também comer alguma coisa.
Derigny cumpriu as ordens recebidas, e entrando no seu quarto e
encontrando a mulher e os filhos ainda a dormir profundamente,
voltou para junto do general, para que ele não se aborrecesse por
estar só.
5. Primeira disputa
Os pequenos Papofski olhavam, surpreendidos, para Tiago e Paulo.
Nem um nem outro lhes beijavam as mãos, nem lhes faziam as
habituais reverências até ao chão. Conservavam-se direitos e
despreocupados, sorrindo, para eles.
MITINEKA - Quem são estes dois rapazes que não dizem nada, meu
tio?
GENERAL - São dois franceses, duas excelentes crianças. O mais
velho chama-se Tiago e o outro Paulo.
SONUSHKA - Porque é que eles nos não beijam as mãos?
GENERAL - Porque vocês são uns garotos e eles só beijam a mão aos
pais.
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TIAGO - E a sua, senhor General.
- Eles falam francês! Sabem francês! gritaram Sonushka, Mitineka
e mais dois ou três irmãos.
GENERAL - Pois com certeza! E falam melhor do que vocês ou do que
eu próprio.
PAVLOUSKA - Eu posso brincar com eles? GENERAL - À tua vontade.
Mas eu não quero que os atormentem. Vamos, tenham juízo! Aqui
estão as criadas e as malas. Eu, agora, vou-me embora. E preciso
que estejam prontos para o jantar daqui a uma hora.
O general saiu, depois de lhes ter acariciado as faces,
recomendando às criadas que conduzissem as crianças à sala de
jantar, à hora marcada.
- Brinquemos! - disse Mitineka. SONUSHKA - A que havemos de
brincar? MITINEKA - Ao cavalo. Vai-nos buscar uma corda, Tiago.
TIAGO - Para quê? Querem uma corda grande ou pequena? Fina ou
grossa?
MITINEKA - Muito grande e muito grossa. Despacha-te, vai
depressa.
Tiago foi buscar a corda, mas não correu, como a pequena queria.
Desagradava-lhe o tom imperioso de Mitineka, mas, como se tratava
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dos sobrinhos do general, achou que devia obedecer sem protestar.
Enquanto ele procurava a corda, Yégor, que tinha oito anos,
aproximou-se de Paulo e disse-lhe:
- Põe-te de gatas para eu montar. Serás o meu cavalo.
Paulo era condescendente e pôs-se a "quatro pés". Yégor saltou
para cima dele e ordenou-lhe que andasse depressa, cada vez mais
depressa. Paulo fez o que pôde.
- Mais depressa! Mais depressa - gritava Yégor. - E, dirigindo-se
aos irmãos, ordenou:
- Nikalai, Mitineka, Pavlouska, chicoteiem o meu cavalo para ele
andar mais depressa.
Os três pequenos pegaram, cada um, na sua varinha e começaram a
bater em Paulo. O pobre pequeno quis levantar-se, mas lançaram-se
todos sobre ele e obrigaram-no a ficar de gatas. Paulo gritava
por Tiago, para que lhe acudisse, mas, por desgraça, o irmão
estava longe e não podia ouvi-lo.
- A galope! - gritava Yégor, sempre montado nas costas do
pequenito - Ah! Tu és um mau cavalo! não passas de uma pileca!
Dêem-lhe com o chicote! Força!
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Paulo gritou tanto que a Sra Derigny acabou por ouvir os seus
gritos. Correu, aflita, para o quarto das crianças, pôs Yégor no
chão, afastou os outros e tirou-lhes das mãos o pobre Paulo, que
estava verdadeiramente aterrorizado.
- Que crianças terríveis - exclamou ela, indignada. - O Paulo não
tornará a brincar com os meninos!
- A senhora é que é impertinente! - disse Sonushka. - Hei-de
dizer ao tio que a mande chicotear.
A Sra Derigny soltou uma gargalhada, que irritou mais ainda os
pequenos mais velhos, e saiu com Paulo, sem Lhes responder. Nesse
mo mento, chegava Tiago com a corda; admirado de ver o irmão a
chorar, julgou que Helena o levava para o castigar.
- Perdoe-lhe, mamã! - exclamou ele. O Paulo ainda é muito
pequeno, não sabe o que faz! Deixe-o brincar com os sobrinhos do
general.
Quando soube, porém, o motivo pelo qual a Sra Derigny levava
Paulo, indignou-se e quis ir queixar-se a Dourakine. Helena,
porém, não lho permitiu, e disse:
- Não devemos incomodar o nosso bom amigo. Vocês não brincarão
mais com esses endiabrados pequenos e estará tudo acabado.
- Não lhes darei a corda! - disse Tiago, beijando o irmãozinho e
seguindo a mãe adoptiva. - Fizeram- te mal, meu querido Paulo? -
perguntava ele, cheio de carinho.
A Sra Derigny dirigiu-se aos seus aposentos, que estavam em
grande desordem, pois tinham levado os móveis para os quartos da
sobrinha do general e dos filhos. Mandou então os pequenos
procurar o pai.
TIAGO - Vi agora mesmo o papá atravessar o pátio com uns
embrulhos enormes. Vamos ter com ele.
Assim fizeram. Foram os três ao encontro de Derigny. Logo que o
avistaram, Tiago perguntou:
- Que traz aí, papá?
DERIGNY - Almofadas e cobertores. Os nossos foram para a Sra
Papofski e para os filhos.
PAULO - Devemos tirar-lhos; eles são muito maus; bateram-me e
fizeram-me andar a galope! já nem podia respirar! Yégor é tão
pesado que me ia matando.
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DERIGNY - O quê? Já começaram? Não quero que tornem a brincar com
eles.
TIAGO - Foi o que a mamã disse. Se eu lá estivesse não os
deixaria bater no Paulo, porque me atiraria a eles com toda a
força!
DERIGNY (sorrindo) - Estavas servido! Bater nos sobrinhos do
general seria uma coisa grave. O próprio general ficaria
contrariado, e com razão.
TIAGO - Mas eu não posso consentir que maltratem o Paulo.
DERIGNY - Com certeza, meu rapaz! O que tinhas a fazer era vires-
te embora, com ele, antes que lhe fizessem mal. E como és forte e
valente, não terias dificuldade em te desembaraçares deles sem
lhes bater.
TIAGO - Está bem, papá; já sei como hei-de fazer para outra vez.
PAULO - Eu não quero brincar mais com aqueles malcriados!
SR" DERIGNY (beijando-o) - É o melhor que tens a fazer, meu amor!
Mas, com a conversa, esquecemo-nos de que o papá está carregado
de coisas enquanto nós temos as mãos vazias.
DERIGNY - Obrigado! Isto é pesado de mais para vocês.
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Helena fez sinal a Tiago e a Paulo, e os dois pequenos lá
conseguiram, depois de alguns esforços, tirar uns embrulhos ao
pai.
Seguiram depois, conversando alegremente, para os seus quartos,
procurando todos trabalhar o mais possível, para lhes dar
novamente um aspecto bonito e confortável.
Quando tudo já estava quase pronto, entrou o general. Vinha de má
catadura: congestionado, de olhos brilhantes, testa enrugada,
mãos atrás das costas.
- Derigny! - disse ele, com voz rouca.
DERIGNY - Meu General!
GENERAL - A sua mulher, e os seus filhos. Por que demónio
procuras tu esconder-te, Tiago? Deixa-te ficar! Porque tens medo?
TIAGO - Tenho medo porque adivinho o que o senhor General vai
dizer. Vejo que está zangado e não sei como hei-de justificar-me.
GENERAL - E que julgas tu que eu vou dizer?
TIAGO - Vai acusar-me, à mamã e ao Paulo, de ter faltado ao
respeito aos filhos da sua sobrinha.
GENERAL - Ah, Nesse caso é verdade! Por isso adivinhaste logo.
TIAGO - Não, meu General; é falso.
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GENERAL - É falso? Nesse caso sou um mentiroso, um caluniador?
TIAGO - De maneira nenhuma, meu querido e bom General. Mas. Eu
não quero dizer nada. O papá disse-me que não o devíamos
incomodar, contando-lhe as maldades dos seus sobrinhos.
O general voltou-se para Derigny. A sua expressão tornou-se mais
doce e o seu olhar afectuoso.
GENERAL-Obrigado, meu bravo Derigny. E tu, Tiago, obrigado também
pelo que me disseste e pelo que não me disseste. Mas peço-te que
me contes francamente o que se passou, explicando-me, assim, a
razão pela qual a minha sobrinha está tão furiosa.
56
TIAGO (com hesitação) - Perdão, meu General. eu preferia não
dizer nada. Talvez se vá zangar. ou talvez não acredite. Nesse
caso, eu sou capaz de me zangar, e não devo.
GENERAL (sorridente) - Ah! És capaz de te zangar? E que farás tu!
Ralhas-me? Bates-me?
TIAGO - Não, Senhor General. Não faria semelhante coisa; mas, no
meu íntimo, zangar-me-ia consigo e não continuaria tão seu amigo.
Ora, isto é muito mal feito, porque o Sr. General tem sido tão
bom para o papá e a mamã, para o Paulo e para mim, que eu teria
vergonha de me zangar consigo, mesmo que fosse só durante alguns
minutos.
GENERAL (comovido e afagando-Lhe as faces) - Está bem, meu mau
rapazinho. Gostas, então, realmente de mim, apesar do meu génio,
das minhas cóleras e das minhas injustiças?
TIAGO (beijando-lhe a mão) - Oh! Meu General, gosto muito! Todos
nós gostamos muito de si.
GENERAL - Meus bons amigos! E eu também os estimo muito! Vós sois
os meus verdadeiros e únicos amigos, sem lisonjas nem sentido
interesseiro! Acredito em tudo quanto me disserem e quero que
sejam felizes!
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O general, cada vez mais comovido, enxugava as lágrimas com uma
das mãos e continuava a acariciar as faces de Tiago com a outra.
A porta abriu-se, devagar, e apareceu a cabeça de Yégor, que
disse, em tom autoritário:
- Meu tio, a mamã pede-lhe que lhe mande imediatamente o garoto
francês e a mãe, para os mandar chicotear na frente dela.
O general voltou-se; o rosto tomou-lhe uma expressão terrível.
- Entra! - ordenou ele, com voz de trovão. Yégor entrou.
GENERAL - Dize à tua mãe que, se ela se atreve a tocar em
qualquer dos "meus" franceses, que são meus amigos, meus filhos -
ouves bem? meus. filhos - mandá-la-ei chicotear diante de mim,
até lhe arrancarem a pele das costas. Vai, meu patife, mentiroso,
vai ter com os teus irmãos, que são tão bons como tu. E tenham
cuidado! Se eu sei que fizeram mal aos meus amiguinhos Tiago e
Paulo, comigo se hão-de haver.
Yégor retirou-se, trémulo e assustado. Correu para junto da mãe e
dos irmãos, e contou-lhes o que o tio acabara de dizer.
A Sra Papofski chorou de raiva; as crianças estremeceram de
pasmo. Depois de alguns instantes,
58
a Sr á Papofski conseguiu dominar a sua cólera, pensando nos
seiscentos mil rublos de rendimento do general. Reflectiu e
acalmou-se. Depois, dirigindo-se aos filhos, disse-lhes:
-Escutem-me: quero que sejam agradáveis, condescendentes e até
meigos para os pequenos franceses. Se um de vocês lhes disser ou
fizer a mais pequena injúria, ou lhes causar a menor
contrariedade, será castigado sem piedade. E bem sabem como eu
sou capaz de os castigar, quando estou zangada.
As crianças tremeram e prometeram não aborrecer nunca os dois
irmãos franceses.
- E quando os encontrarem, hão-de pedir-lhes desculpa, ouviram?
- Sim, mamã! - responderam as crianças
em coro.
6. As habilidades da Sr á Papofski
Enquanto a Sr á Papofski aconselhava os filhos a serem
dissimulados e aparentemente condescendentes, conselhos que eles
não seguiram, como veremos mais adiante, o general acalmava
Derigny, que estava fora de si, com a ideia dos maus tratos que
sua mulher e seus filhos teriam sofrido, sem a intervenção do bom
general, a quem Tiago contou, por sua vez, tudo quanto se
passara.
GENERAL - Não se aflija, meu amigo. Conheço a minha sobrinha! Sei
muito bem a razão por que ela veio a Gromiline com os filhos. Sei
perfeitamente que não foi por mim, mas sim pelo meu dinheiro. Já
fiz o meu testamento. Não lhes deixo nem um rublo. Não sou tão
parvo como pareço. Conheço os amigos e os inimigos; os bons e os
maus. Até logo, minha boa Srá Derigny. Venha, Derigny; o jantar
deve estar servido; como você é o mordomo, não podemos dispensá-
lo. Virá depois jantar e conversar com a sua mulher e os seus
filhos.
O general saiu, seguido de Derigny, e dirigiu-se ao salão, onde
encontrou a sobrinha com os quatro filhos mais velhos, que o
esperavam. Os outros pequenos, que tinham apenas seis, cinco,
quatro e três anos, ainda comiam nos aposentos.
O general entrou, de testa franzida. Apesar disso, ofereceu o
braço à sobrinha e conduziu-a à sala de jantar. A Sr á Papofski
sentia-se embaraçada; não sabia que atitude devia tomar, e olhava
disfarçadamente para o tio. Depois da sopa, encheu-se de coragem
e começou a falar:
- Oh, meu tio! Achei imensa graça quando o Yégor me contou o que
o tio dissera. Que original que o tio é! Diz coisas tão
engraçadas!
GENERAL - Creio que o que disse era verdadeiro de mais para te
divertir, Maria Pétrovna. Depende de ti que eu faça, ou não, o
que Yégor te comunicou.
- Oh meu tio - continuou a Sr á Papofski, muito risonha, apesar
de estar quase a
61
rebentar de raiva. - Como pôde acreditar o que lhe dissera o
pateta do Yégor! É estúpido e não compreendeu o que eu Lhe
expliquei.
GENERAL - Mas eu compreendi perfeitamente e repito agora o que
lhe disse a ele: desgraçado daquele que tocar num cabelo dos meus
franceses!
SRa PAPOFSKI - Mas, meu tio, o Yégor trocou tudo! Eu tinha-Lhe
dito que me mandasse os seus amigos franceses para verem
chicotear uma das minhas criadas, que foi atrevida. O tio, como é
muito bom, raramente manda castigar os criados. E eu pensei que
este espectáculo devia diverti-los.
O general olhou para ela com surpresa e desprezo. Aquela mentira
era tão grosseira, que ele chegava a sentir-se ferido com o juízo
que a sobrinha fazia da sua inteligência. Fitou-a durante um
instante com os olhos brilhantes de cólera, mas depois, vendo
Derigny com uma
expressão aflita e suplicante, conseguiu acalmar-se.
GENERAL - Falemos de outra coisa. Como está a tua irmã Natália
Pétrovna?
SRa PAPOFSKI - Muito bem, meu tio; sempre bem.
GENERAL - Julguei que estava doente desde a morte do marido.
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SRa PAPOFSKI - Pelo contrário, está alegre, diverte-se, dança!
Não pensa noutra coisa.
GENERAL - Mas o seu vizinho Nassofkine escreveu-me, há dias, e
diz-me que ela chora constantemente e não vai a parte alguma.
SRa PAPOFSKI - Não acredite, meu tio. Esse Nassofkine é um
mentiroso, bem sabe.
GENERAL - E os filhos?
SRa PAPOFSKI - São insuportáveis, detestáveis.
GENERAL - Nassofkine disse- me que Natasha, a filha mais velha,
que tem quinze anos, é encantadora, e os dois rapazes, Alexandre
e Miguel, são também muito simpáticos.
SRa PAPOFSKI - Como esse homem mente! São os três feios e
terríveis!
GENERAL - É singular! Vou escrever a Natália Pétrovna, para que
venha visitar-me com os filhos. Quero vê-los.
SRa PAPOFSKI - Não vale a pena escrever, meu tio. Ela não virá.
GENERAL - Porquê? Quando era nova, gostava muito de mim.
SRa PAPOFSKI - Está convencido disso? Bem digo eu que o tio é
muito bom. Ela não virá, porque sabe que o tio vive muito
isolado, e tem medo de se aborrecer. Além disso, quer
63
casar a filha, e como não tem absolutamente nada, anda a ver se
arranja algum ricaço, velho e feio.
GENERAL - Exactamente. É o meu caso: rico, velho e feio! Natália
Pétrovna far-me-á a corte e eu darei um dote à filha.
A Sra Papofski empalideceu e sentiu um arrepio. Pensou na herança
e não foi capaz de esconder a sua preocupação. O general
observava-a disfarçadamente. Estava radiante com a ideia do susto
que acabava de causar àquela sobrinha, de quem não gostava, e com
o projecto da visita da outra, de quem conservava a melhor
recordação. Por fim, como a Sra Papofski continuasse a querer
dissuadi-lo de convidar a irmã para vir a Gromiline, o general
resolveu mostrar-se convencido, e chegaram à sobremesa na melhor
disposição.
No seu íntimo, o general estava contentíssimo com a "partida" que
preparava à sobrinha, que, por seu lado, procurava, com os seus
exageros, tornar-se agradável a Derigny.
- Como sabe trinchar bem! - dizia ela. É um chefe de mesa
perfeito! Como o Derigny serve bem! É um tesouro que o tio aqui
tem! Vê tudo, atende a todos, sem uma falha! Que feliz eu seria,
se o tivesse ao meu serviço!
GENERAL - É natural que não tenhas nunca essa felicidade.
SRa PAPOFSKI - Porquê, meu tio? Ele é tão novo, tão forte!
GENERAL (com ironia) - E eu sou tão velho! Estou tão acabado.
SRa PAPOFSKI - O tio agora foi mau! Como pôde supor?
GENERAL - Naturalmente, dizes que ainda podes vir a ter Derigny
ao teu serviço, porque ele é novo e forte. Nesse caso é porque
esperas que isso suceda depois da minha morte. Não, não, minha
amiga; o meu bravo Derigny não te servirá a ti, nem a mais
ninguém. Estará ao meu serviço até à minha morte; depois ficará
ao serviço de si próprio e viverá com a sua excelente mulher e os
seus filhos.
A Sra Papofski mordeu os lábios e não falou mais. Depois do
jantar, o general foi passear, e todo o grupo o seguiu. Sonushka,
a um sinal da mãe, colocou-se ao lado do tio, procurando animar a
conversa. Depois de várias tentativas inúteis, lembrou-se de
dizer:
- Ah, meu tio, gosto muito dos franceses! O general continuou
calado.
SONUSHKA - Meu tio, gosto muito dos dois irmãos franceses. Queria
poder brincar com eles.
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GENERAL - Mas eles é que não quererão brincar com vocês, porque
sois implicativos, maus e mentirosos.
SONUSHKA - O Yégor é que foi mau, mas nós não o deixaremos tornar
a ser.
GENERAL - Basta, basta, minha pobre Sonushka. Aprendeste bem a
lição. Falemos noutra coisa. Gostas da tua tia Natália Pétrovna?
SONUSHKA - Nem por isso. meu tio.
GENERAL - Porquê?
SONUSHKA - Porque ela está sempre triste; depois que o tio foi
morto em Sebastopol, ela não faz outra coisa senão chorar; como
não recebe visitas, a casa dela é muito aborrecida.
GENERAL - E os filhos?
SONUSHKA - Também são aborrecidos, porque estão sempre ao pé da
mãe.
GENERAL - Porque estão eles sempre ao pé da mãe? É ela que os
obriga?
SONUSHKA - Oh! não, meu tio, pelo contrário, ela quer que eles
saiam e se divirtam. Mas eles preferem ficar.
GENERAL - São feios?
SONUSHKA - Não. Natasha é muito bonita, mas anda sempre tão mal
vestida! A tia Natália é tão pobre! E os outros também são
bonitos.
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- Ah Ah - exclamou o general. E continuou o seu passeio.
À noite, quando se reuniram, o general perguntou à sobrinha se o
cheiro do tabaco lhe era desagradável.
SRa PAPOFSKI - Absolutamente nada, meu tio! Até gosto imenso!
Lembro-me perfeitamente de que o tio fumava muito, quando eu era
pequenita. E eu, só por sua causa, habituei-me também a gostar.
O general olhou para ela com ar trocista e principiou a fumar até
que, por fim, adormeceu, comodamente recostado na sua poltrona.
As crianças foram-se deitar. A Sr á Papofski foi bater à porta de
Derigny, que estava ainda à mesa, com a mulher e os filhos.
O general ordenara que as refeições lhes fossem servidas nos seus
aposentos.
- Pode entrar! - disse Helena.
Ao ver que era a Sra Papofski, a mulher de Derigny fez-se muito
corada. Derigny teve um momento de surpresa. Tiago e Paulo
exclamaram:
- Oh! - tal foi o espanto. Levantaram-se todos e receberam-na com
a maior cortesia.
67
- Não se incomodem - exclamou a Sra Papofski - Venho apenas para
lhes dizer que os meus filhos estão muito apoquentados por terem
feito chorar, sem quererem, o vosso pequenito. Já ralhei com
eles; o caso não se repetirá. Como os vossos filhos são
encantadores Quero beijá-los.
A Sra Papofski aproximou-se de Tiago e Paulo, que recuaram,
evitando o contacto da sobrinha do general, mas Derigny fez-lhes
sinal para que se deixassem beijar.
- Encantadores! - repetiu ela, ao sair. Depois, voltando-se para
Derigny e Helena, acrescentou: - Até amanhã. Não se esqueçam de
dizer ao meu tio que eu acho os vossos filhos encantadores!
Retirou-se, sorrindo, deixando o casal Derigny espantado e
indignado.
HELENA DERIGNY - Que hipócrita! É incrível!
DERIGNY - Chega a ser estupidez. Como vê que o general é nosso
amigo, resolveu "fazer-nos a corte", em vez de nos maltratar.
PAULO - Eu não gosto desta senhora. Tem cara de má. Quando me
beijou, há bocadinho, julguei que ia morder-me.
Derigny sorriu, olhou para a mulher, que ria com vontade, e
beijou Paulo.
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DERIGNY - Descansa. Não te morderá enquanto o general aqui
estiver.
PAULO - E se ele se fosse embora?
DERIGNY - Nesse caso, far-nos-ia todo o
mal que pudesse. Mas, se o general partir, levar-nos-á também.
TIAGO - E se o general morrer?
DERIGNY - Que Deus nos defenda dessa
desgraça! Nesse caso, vamo-nos embora imediatamente.
HELENA DERIGNY - Esperemos que tal
não aconteça tão cedo. Tenhamos confiança
em Deus!
- Toc toc Podemos entrar? - disseram
várias vozes infantis.
-Eis uma nova invasão do inimigo
- murmurou Derigny, a sorrir. Depois, disse
em voz alta - Podem entrar!
Os oito pequenos Papofski precipitaram-se
no quarto, rodearam Tiago e Paulo, beijando-os com a maior
ternura.
- Vimos pedir-lhes perdão! - gritaram os
quatro mais velhos, ao mesmo tempo.
Os mais novos gritaram também, numa
grande confusão, sem que se percebesse o que
diziam.
Tiago e Paulo, empurrados, meio sufocados
com tantos abraços, e aborrecidos com toda
69
aquela comédia, não responderam. O que eles queriam era
desembaraçar-se daqueles falsos amigos.
- Peço-lhes que nos perdoem, senão a mamã castiga-nos! - insistiu
Sonushka, com voz suplicante.
TIAGO - Por mim, perdoo-lhes de todo o coração. Paulo fará o
mesmo, com certeza.
PAULO - Não! Eu não lhes perdoarei nunca. MITINEKA - Peço-te que
nos perdoes, francesinho.
PAULO - Não, não quero.
TIAGO - Isso é mal feito, Paulo. Devemos perdoar aos nossos
inimigos. Bem vês que eu já perdoei.
PAULO - Está bem; perdoo-lhes o que eles me fizeram a mim. Mas
estes marotos quiseram que a mamã fosse chicoteada, e isso é que
eu não posso perdoar.
TIAGO - Mas como eles estão arrependidos...
PAULO - Estão mas é a fingir.
Ouviu-se, então, um concerto de soluços e gemidos. As oito
crianças choravam e lamentavam-se, exclamando:
- Vão chicotear-nos! Perdoa-nos, francesinho! Dar-te-emos o que
quiseres!
PAULO - Peçam perdão à mamã. Se ela perdoar, eu também perdoarei.
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O grupo voltou-se para Helena Derigny, pedindo perdão de mãos
postas.
HELENA DERIGNY - Que Deus vos perdoe, como eu já vos perdoei! E
tu, Paulo, não sejas rancoroso.
- Visto que a mamã perdoa, eu farei o mesmo - declarou Paulo, em
tom majestoso.
- Obrigado! Obrigado! Seremos muito vossos amigos! Foi a mamã
quem assim ordenou. Adeus, franceses, até amanhã.
Os oito filhos da Sr á Papofski fizeram uma reverência e saíram
tão precipitadamente como tinham entrado.
Derigny, que presenciara tudo sem falar, encolheu os ombros e
suspirou:
- Como estas pobres crianças são educadas! Não é por sua culpa
que são maus, mentirosos, cobardes e hipócritas! É a sua mãe que
os aterroriza.
TIAGO - Devemos brincar com eles quando nos pedirem?
DERIGNY - Não há outro remédio, meu filho, mas façam-no o mais
raramente possível. E tu, Paulo, nunca vás sem o Tiago.
PAULO - Pode estar descansado, papá. Tenho muito medo.
Como já era tarde foram deitar-se.
A conspiração
Uma noite, estava Derigny junto do general. Tinham passado já
vários dias desde a chegada da Sr á Papofski e dos filhos, e tudo
decorria o mais tranquilamente possível.
O general esfregava as mãos de contente, e sorria. Com certeza
pensava em qualquer "partida" que tencionava fazer.
- Derigny, meu bom amigo - disse ele, de repente - preparei-Lhe
um bom trabalho.
DERIGNY - Estou às suas ordens, meu General!
GENERAL - Obrigado É que. espero visitas. Preciso de leitos à
moda francesa, e um mobiliário completo. Só você é capaz de me
arranjar isto.
72
DERIGNY - Farei o que for preciso. Para quantas pessoas?
GENERAL - Uma senhora, uma menina e dois rapazes de doze anos.
DERIGNY - Quantos dias me dá para eu preparar tudo?
GENERAL - Quinze dias e todo o pessoal de que você precisar.
DERIGNY - Está muito bem. Pode contar com o que deseja.
GENERAL - Bravo! Admirável! Não faça economias. Quero que fique
ainda melhor do que os aposentos de Papofski.
DERIGNY - Posso ir à cidade comprar aquilo de que necessitar?
GENERAL - Vá onde quiser e compre o que quiser! Dou-lhe carta-
branca.
DERIGNY - Quais são os quartos que é preciso mobilar?
GENERAL - Os melhores. Aqueles que es tavam arruinados e que
mandei arranjar sob a sua direcção. Não me pergunta para que é
todo este trabalho que lhe vou dar?
DERIGNY - Não seria capaz de tal indiscri ção, meu General.
GENERAL - É para a minha sobrinha.
73
- A Sr á Papofski? - exclamou Derigny, dando um salto para trás.
GENERAL (rindo a bom rir) - Aí está! Era isso mesmo que eu
esperava! Ah ah ah! Admira-se? Não, meu amigo, não o obrigarei a
trabalhar para essa sobrinha má, hipócrita e manhosa. Não vá,
agora, dizer-lhe isso.
DERIGNY (rindo) - Não há perigo, meu General.
GENERAL - Bom! É para outra sobrinha que eu tenho, Natália
Pétrovna, que era boa e carinhosa quando a deixei, e que é, ainda
hoje, o verdadeiro tipo da mulher russa, cada vez mais raro. Tem
três filhos que devem ser adoráveis. Convidei-os para virem todos
passar um tempo comigo. É a maneira de eu estabelecer a
comparação entre as duas irmãs. Papofski vai ficar furiosa! Ela
não sabe deste convite. Arranje-se de maneira que ela não possa
perceber absolutamente nada. Que bela ideia que eu tive! Ah ah
ah! Que boa "partida" eu vou pregar a Papofski!
Derigny e a mulher principiaram a trabalhar logo na manhã
seguinte. Derigny foi a Smolensko comprar tudo o que era preciso,
e contratou marceneiros, serralheiros, enfim, os operários de que
necessitava para realizar a sua
74
tarefa. Trabalhavam na aldeia e só depois de
prontos os móveis seriam transportados para o
palácio. O general aparecia de vez em quando,
distribuindo gratificações e aguardente. Os operários e
camponeses trabalhavam assim com melhor vontade, e abençoavam o
francês que lhes
proporcionava trabalho e dispunha bem o patrão a favor deles. O
próprio Vassili estava reconhecidíssimo a Derigny, por ele ter
conseguido livrá-lo das cem chicotadas a que o general
o tinha condenado, e procurava ajudar o melhor que podia, com a
inteligência que caracteriza o povo russo.
Derigny e a mulher fizeram de decoradores,
encarregando-se dos reposteiros e cortinados.
Antes dos quinze dias tudo estava pronto e posto nos seus
lugares. Quando o general foi ver
os aposentos destinados à Sra Dabrovine, parecia uma criança,
tal a sua alegria e entusiasmo.
Admirou a beleza do conjunto, sentou-se em
cadafauteuil, examinou todos os objectos, deu
mãos-cheias de moedas a Vassili e aos operários. Depois,
voltando-se para Derigny e Helena, disse:
- Quanto a vós, meus amigos, não é com
ouro que eu posso mostrar o meu reconhecimento pelo vosso zelo,
actividade e talento;
75
seria fazer-vos uma injustiça. É com o meu coração que eu vos
recompenso, dando-vos a minha estima e o meu reconhecimento. Mil
vezes obrigado, meus bons amigos (Ao dizer isto o general apertou
as mãos de Derigny e sua mulher. ) Ah! Maria Pétrovna, vais ser
punida pela tua maldade! Quando chegará a minha querida Natália
com a sua Natasha e os seus dois rapazes? Daria dez mil, vinte
mil rublos para que chegassem ainda hoje!
O general saiu, quase a correr, dos aposentos destinados à Sra
Dabrovine, para ir ver se descobria alguém ao longe, no caminho.
Derigny e sua mulher sentiam-se felizes com a alegria do general.
Tiago e Paulo, que haviam presenciado esta cena, riam e pulavam
de contentamento. Tinham conseguido não brincar mais com os
pequenos Papofski, e estavam radiantes com a ideia da surpresa
que o general lhes preparava.
Quando queriam estudar ou ocupar-se em qualquer coisa
tranquilamente, fechavam-se no quarto com Helena, e se, por
acaso, os outros vinham bater-lhes à porta, riam baixinho e não
respondiam.
Por seu lado, a Sra Papofski aproveitava todas as ocasiões para
testemunhar a "sua amizade"
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e admiração aos "excelentes franceses"
que seu tio tanto estimava. Mas, embora Derigny a tratasse com a
mais respeitosa delicadeza, ela sentia-se desmascarada... A
atitude do
tio inquietava-a: evitava-a, nunca a procurava,
dizia-lhe palavras irónicas, meio a brincar,
meio a sério. Duas ou três vezes tentou comovê-lo com lamentações
e choros. Como isso não
desse resultado, resolveu tomar por brincadeira
tudo quanto o tio lhe dizia, mesmo quando ele
a tratava bruscamente.
Entretanto, o general tinha, por vezes, verdadeiros ataques de
alegria, como se tivesse
enlouquecido: lamentava a sobrinha pela vida
aborrecida que lhe proporcionava; prometia-lhe
visitas e distracções, e ria, ria, a "bandeiras
despregadas", passeando de um lado para o
outro, como se tivesse absoluta necessidade de
movimento.
9. O triunfo do General
A carruagem aproximava-se do portão.
Apareceram logo criados, e a Sra Papofski, a
quem os filhos haviam prevenido de que estavam a chegar visitas,
veio também, para dar as
boas-vindas aos convidados do tio.
"Até que enfim, aparece alguém! - pensava
ela. - Ao menos não estarei sozinha com esse
velho detestável, que já não posso suportar. "
Ao ver o general descer da carruagem, a
Sr á Papofski não pôde conter uma exclamação
de surpresa:
- O tio? Também vem na carruagem?
- Sim, Maria Pétrovna, sou eu - respondeu
o general, parando com o pé no estribo e encobrindo com a sua
avantajada figura os outros
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viajantes. E continuou: - Trago-te visitas. Adivinha quem.
SRa PAPOFSKI - Como posso eu adivinhar, meu tio? Não conheço
nenhum dos seus vizinhos.
GENERAL - Não são vizinhos, são amigos,
velhos amigos. Porque tu também já não és
uma rapariga, Maria Pétrovna...
A Sr á Papofski corou violentamente e quis
responder, mas mordeu os lábios, calou-se e esperou.
- Ei-los! - disse o general, depois de olhar
um momento para ela com ar de triunfo. Aqui estão os teus amigos!
Desceu, voltou-se para a portinhola e ajudou a descer Natasha (a
Sr á Papofski abafou
um grito de raiva)... depois Natália Pétrovna...
(a Sr. a Papofsky soltou um longo gemido tornou-se pálida como um
cadáver, cambaleou e
apoiou-se ao ombro do tio).
GENERAL - Como tu estás contente! Eu
tinha razão em dizer velhos amigos! Gosto de
te ver assim comovida com a chegada da tua
irmã. Está muito bem. Era mesmo isto que eu
esperava. O general estava radiante; o seu triunfo era
completo. A Sr á Papofski fazia o possível para
83
não desmaiar; queria falar, mas da boca entreaberta não Lhe saiu
nenhum som; no entanto, percebeu, embora confusamente, que a sua
perturbação podia ser interpretada favoravelmente. Esta esperança
reanimou-a; voltaram-lhe as forças; aproximou-se da irmã, toda
trémula, e disse:
- Perdão, querida, fiquei tão surpreendida! GENERAL (com malícia)
- E tão feliz! SRa PAPOFSKI (com hesitação) - Sim, meu tio, é tal
qual como diz; tão feliz por ver esta pobre Natália!
GENERAL (sempre irónico) - E em minha casa, ainda para mais. Esta
circunstância deve ter aumentado a tua felicidade.
SRa PAPOFSKI (com voz sumida) - Certamente, meu tio. Eu estou. eu
sinto. a alegria.
GENERAL (rindo) - Abracem-se Beija a tua irmã e os teus
sobrinhos, Maria Pétrovna, acalma-te.
A Sr. a Papofski, excitadíssima, beijou a irmã e os sobrinhos.
- Vem, minha filha - disse o general, oferecendo o braço à Sra
Dabrovine. - Vou conduzir-te aos teus aposentos. Vem connosco,
Maria Pétrovna.
84
As palavras afectuosas que o general dirigia a Natália irritaram
ainda mais a Sra Papofski, que afastou Natasha e os irmãos,
deixando-os para trás, seguindo maquinalmente o tio e a irmã. O
general apressou o passo. Ao chegar em frente do quarto destinado
a Natália, a porta abriu-se; Derigny, sua mulher e filhos
esperavam-nos logo à entrada.
GENERAL - Eis-te em tua casa, minha querida filha, e tenho a
certeza de que te sentirás bem aqui, graças ao meu bom Derigny e
à sua excelente mulher, que te apresento, e mesmo aos seus
filhos, os meus amiguinhos Tiago e Paulo, que trabalharam como
dois homens. Recomendo-os todos à tua amizade.
SRa DABROVINE - Depois desta recomendação do meu tio podem estar
certos de que os estimarei muito sinceramente, porque, para ele
falar como falou, é porque tem sobejas provas da vossa dedicação.
A Sra Dabrovine fez um gracioso cumprimento a Derigny e Helena, e
aproximou-se de Tiago e Paulo, a quem beijou na testa, dizendo-
lhes:
- Espero, meus meninos, que sereis bons amigos dos meus filhos,
que têm, pouco mais ou menos, a vossa idade. Ensinar-Lhes-eis o
85
francês e eles ensinar-vos-ão o russo. Será um serviço que
prestarão uns aos outros.
- Entrem, entrem todos - exclamou o general - e vejam o que
Derigny fez em quinze dias, deste aposento sujo e sem móveis.
A Sr á Papofski foi a primeira a entrar no bonito salão, que
podia servir também de sala de estudo. Coisa alguma tinha sido
esquecida; móveis simples mas confortáveis, uma grande mesa de
trabalho, um piano, lindos cortinados floridos davam ao aposento
um aspecto elegante e acolhedor.
A Sr á Papofski ficou imóvel, olhando para tudo, tão pálida como
um cadáver.
A Sra Dabrovine contemplou com olhar triste e doce todas aquelas
coisas tão agradáveis e depois, aproximando-se do tio com os
olhos cheios de lágrimas, beijou-lhe a mão, dizendo:
- Como o tio é bom! E como os meus amigos são gentis!
Natasha corria de um lado para o outro, tocando em tudo,
examinando tudo. Quando acabou a sua inspecção, veio lançar-se ao
pescoço do general, beijando-o e exclamando:
- Que lindo! Nunca vi nada mais bonito! Passarei aqui os dias com
a mamã, e o tio há-de vir ver-nos muitas vezes, sim? Fumará
sentado
86
naquela poltrona junto da janela, que tem uma vista tão bonita.
Eu sei que o tio gosta de fumar! O Alexandre, o Miguel e eu
trabalharemos em volta desta mesa; tocaremos piano, e a mamã
estará ao pé do tio.
SRa PAPOFSKI (com um sorriso forçado)
- E eu, Natasha? Onde é o meu lugar? NATASHA (embaraçada) -
Perdão, minha tia, eu não sabia. se lhe seria agradável.
-. o cheiro do tabaco - exclamou o general, beijando a pequena e
rindo a bom rir.
- Obrigada, meu tio! - murmurou Natasha ao ouvido do general. -
Eu tinha-me esquecido.
GENERAL - Vamos ver os quartos de dormir. Aqui tens o teu, minha
filha.
Nova surpresa, novas exclamações e uma fúria ainda maior da Sra
Papofski, que comparava os seus aposentos com os da irmã, que ela
detestava. Natasha e os irmãos corriam de um quarto para o outro,
admiravam, agradeciam. Quando souberam que tudo aquilo era obra
da família Derigny, Natasha lançou-se ao pescoço de Helena,
enquanto os dois pequenos, doidos de alegria, abraçavam Tiago e
Paulo.
A satisfação do general não pode descrever-se. Ria, passeava de
um lado para outro, esfregava
87
as mãos e olhava, com enternecimento, para a Sra Dabrovine, que
sorria também ao ver os filhos tão contentes.
Natasha, com os olhos brilhantes, beijava a mão do tio e repetia:
- Meu tio! Meu tio! Como eu sou feliz! Como o tio é bom!
GENERAL - Também eu estou feliz por vos ver contentes. Há muito
tempo que não sentia uma satisfação tão grande à minha volta. Só
uma vez, em França, é que tornei, assim, pessoas felizes: os meus
bons Derigny, Elfy e Moutier (').
NATASHA - Oh! meu tio, conte-nos como foi! Eu gostava de saber o
que o tio fez!
- Mais tarde, minha filha - respondeu o general, sorrindo. -
Agora vão descansar um pouco. Derigny vai mandar-lhes a criada.
Jantaremos dentro de uma hora. Ficas com a tua irmã, Maria
Pétrovna?
SRa PAPOFSKI - Sim. Não. Quer dizer. eu gostaria de apresentar os
meus filhos a Natália.
GENERAL - Tens razão. Vai, vai. Eu e Derigny vamos ocupar-nos das
coisas necessárias.
(1) Referência a Pousada do Anjo da Guarda.
A Sra Papofski dirigiu-se para o seu quarto, olhou, com cólera, o
modesto mobiliário e, não podendo conter-se mais, caiu sobre o
leito, a soluçar.
"A herança! - pensava ela. - Seiscentos mil rublos de rendimento.
Não será para mim! Ele vai deixar tudo a Natália, que eu odeio, e
que se finge desolada e pobre, para o comover. E a estúpida da
filha? Pula como se tivesse dez anos, a abraçá- lo, a beijá-lo! E
ele, aquele imbecil, julga que é adorado e acha toda esta comédia
encantadora. Arranjou-lhes aposentos como se fossem uns príncipes
- para eles, que estão na miséria, que comem pão negro e leite
coalhado, que dormem em enxergas e só têm o fato que trazem
vestido! E a mim, que sou rica e estou habituada à elegância,
trata-me como se eu fosse igual a esses antipáticos Derigny! Sei
muito bem, pelas criadas, que me deram a cama e os móveis que
estavam no quarto deles "
Estes pensamentos absorveram- na de tal forma, que ainda não
estava arranjada quando vieram chamá-la para o jantar. Saltou do
leito, lavou o rosto com água fria para não se perceber que tinha
chorado, alisou os cabelos, escovou o vestido e dirigiu-se ao
salão, onde encontrou o general com Natália e os filhos, que
brincavam com os primos.
89
- Esperávamos por ti, Maria Pétrovnadisse o general, avançando
para ela e oferecendo-lhe o braço. Dirigindo-se a Natália, disse-
lhe: - Embora sejas tu a recém-chegada, ofereço o braço a tua
irmã porque é mais velha. Deve ter, pelo menos, mais dez ou doze
anos do que tu.
SRa DABROVINE (embaraÇada) - Oh! Não, meu tio, não fazemos tanta
diferença.
90
SRa PAPOFSKI (irritada) - Deixa falar o tio. Ele acha graça em
envelhecer-me e em rejuvenescer-te.
GENERAL (encantado) - Mesmo que eu me tenha enganado em dois ou
três anos, Natália tem trinta e dois, e tu deves ter quarenta e
dois.
SRa PAPOFSKI - Cinquenta, meu tio Ou sessenta, se prefere!
GENERAL (com malícia) - Lá chegaremos. Ah Ah Lá chegaremos.
Nasceste em mil oitocentos e.
SRa DABROVINE - Estamos na sala de jantar meu tio. Confesso-lhe
que tenho um certo apetite.
GENERAL - E eu também tenho fome e sede de verdade. Mas, ia
dizendo: foi em mil oitocentos.
SRa DABROVINE - A verdade é que o tio continua a ser arreliador,
como era dantes. Gosta de atormentar a pobre Maria. Veja como a
Natasha olha para si, surpreendida.
O general voltou-se, vivamente, deixou o braço da Sr á Papofski e
mandou que se sentassem todos.
- É verdade que estás espantada com a minha brincadeira, Natasha?
- perguntou ele. Achas que sou mau?
91
NATASHA - Meu tio.
Ao dizer isto, a pequena fez-se muito corada e calou-se.
GENERAL (sorridente) - Fala sem receio, minha filha. Já declarei
que tenho fome e sede de verdade.
NATASHA - Parece-me que o tio não está a ser bom para a tia Maria
Pétrovna. É isso que me espanta, porque sempre o conheci bondoso,
e a mamã, quando nos falava de si, afirmava que tinha muito bom
coração.
GENERAL - E agora, que pensas tu? NATASHA - Gosto muito do tio, e
queria que todos gostassem como eu.
GENERAL - Voltaremos, mais tarde, a falar neste assunto. E
enquanto esperamos que me corrija do meu feitio arreliador,
jantemos com alegria. Prometo-te não tornar a irritar a
tia.
NATASHA - Obrigada, meu tio. Perdoa-me o ter sido franca, não é
verdade? GENERAL (rindo) - Não só te perdoo, como te agradeço;
nomeio-te minha conselheira privada.
O general, cada vez mais seduzido pelos seus novos convivas, foi
encantador, durante o jantar, conseguindo distrair Natália que
sorriu,
92
mais de uma vez, dos seus ditos joviais. Ao serão, as crianças
brincaram na grande galeria contígua ao salão. Natasha dirigia os
jogos, fazendo sorrir a mãe e rir francamente o general, que a
achava adorável.
Passaram alguns dias; o general dedicava-se cada vez mais à Sra
Dabrovine, e detestava também cada vez mais os Papofski. Uma
noite, Natasha entrou no salão e disse:
- Meu tio, dá-me licença de ir chamar o Tiago e o Paulo para
virem brincar connosco? Já devem ter acabado de jantar.
GENERAL - Vai, minha filha; faze o que quiseres.
Natasha beijou o tio e saiu, a correr, não tardando a regressar,
seguida por Tiago e Paulo. Tiago aproximou-se do general e disse:
- A menina Natasha informou-nos que o senhor General nos
autorizara a vir brincar com os seus sobrinhos.
GENERAL - Com certeza! Natasha é o meu procurador; façam o que
ela lhes disser.
Os pequenos foram imediatamente com Natasha, para a galeria. No
salão ouviam-se todos rir e brincar. O general estava radiante; a
Sra Dabrovine olhava para ele com afectuosa satisfação; a Sr á
Papofski irritava-se com o barulho
93
que as crianças faziam, achando que tanto ruído devia fazer mal
ao "seu bom tio", como ela dizia.
GENERAL (impaciente) - Deixa-os lá, Maria Pétrovna! Ouvi mais
barulho na Circassia e na Crimeia. Que demónio. Os meus ouvidos
não são tão delicados que me façam ter convulsões lá porque oiço
rir e gritar um bando de crianças!
SRA PAPOFSKI - Mas assim nem sequer podemos conversar!
GENERAL - Olhem a grande desgraça! Não é indispensável conversar
durante todo o serão. Assim, tenho a ilusão de ser chefe de
família, e gozo com a felicidade que proporciono aos pequenos e a
tranquilidade da minha pobre Natália.
A Sr á Papofski mordeu os lábios, pegou no bordado e não disse
nem mais uma palavra, enquanto o general conversava com a Sr á
Dabrovine.
De repente, ouviu-se uma discussão violenta e gritos de furor.
GENERAL - Que aconteceu?
SRa DABROVINE - Eu vou ver, meu tio.
não se incomode.
94
A Sra Dabrovine entrou na galeria e encontrou Alexandre a lutar
com Mitineka e Yégor; Miguel segurava Sonushka com toda a força;
Tiago, com os olhos brilhantes e os punhos fechados, estava em
atitude de boxista. Natasha procurava, em vão, separar os
contendores. Os outros gritavam, cada qual com mais força.
A entrada da Sr á Dabrovine restabeleceu a calma como por
encanto. Ela aproximou-se de Alexandre e disse-lhe, severamente:
- Não tens vergonha de brigar assim com o teu primo? E tu,
Miguel, que quer dizer essa violência para com a tua prima?
As crianças começaram a falar todas ao mesmo tempo; Natasha
conservava-se calada. A Sra Dabrovine, que não conseguia
compreender as explicações das crianças, disse a Natasha que lhe
contasse tudo o que se passara.
A pequena corou e continuou calada.
- Porque não me respondes, Natasha?
- É porque terei de acusar. e eu não
queria.
- Mas eu preciso de saber a verdade, minha filha, e ordeno-te que
me expliques sinceramente o que aconteceu.
95
- Nesse caso, mamã, eu conto: Alexandre e Miguel quiseram
defender o pobre Paulo, tão pequenito, que Mitineka, Sonushka e
Yégor atormentavam já há imenso tempo. Tiago e eu fizemos o que
pudemos para o defender, mas eles juntaram-se todos contra nós e
começaram a bater-nos. Veja como o Miguel está arranhado, e como
o Alexandre tem os cabelos arrancados. Quanto a Tiago, não deu
nem um único soco, apesar de ter recebido bastantes.
- Venham para o salão, Alexandre e Miguel, e tragam Tiago e
Paulo. Deixem os primos questionar uns com os outros.
O general ouvira tudo quanto a Sra Dabrovine e Natasha tinham
dito. Levantou-se, sempre calado, deixou a sobrinha e os pequenos
entrar no salão, foi ele próprio à galeria, puxou, com força, as
orelhas dos três filhos mais velhos da Sr á Papofski, distribuiu
alguns sopapos pelos outros, voltou para o salão e sentou-se
novamente na sua poltrona. Depois chamou Natasha e perguntou-lhe:
- Dize, minha filha, que fizeram eles ao meu amiguinho Paulo?
NATASHA - Estávamos a brincar aos hospitais. Paulo era um doente;
Mitineka, Sonushka e Yégor, que eram os médicos, quiseram
96
obrigá-lo a engolir uma bola de teias de aranha; o pobre pequeno
não quis, e Tiago correu a defendê-lo. Eles, então, bateram no
Tiago, que não lhes deu um único soco. Atiraram com ele ao chão e
iam novamente agarrar o Paulo, apesar das súplicas de Tiago,
quando Alexandre e Miguel, indignados, correram em socorro de
Tiago e Paulo, vendo-se obrigados a lutar com Mitineka, Sonushka
e Yégor, que nem ao menos quiseram ouvir-nos. Foi então que a
mamã entrou e libertou o Paulo.
Enquanto Natasha contava animadamente a cena cujo final a Sra
Dabrovine presenciara, o general dava sinais, cada vez mais
fortes, de cólera. Levantando-se bruscamente e dirigindo-se à Sra
Papofski, disse:
- Minha senhora, os seus filhos são detestavelmente mal educados!
São maus, cruéis e hipócritas. Não quero gente assim em minha
casa, percebe? A senhora e os seus filhos perturbam a paz da
minha casa. Se não mudam de hábitos, teremos que nos separar. A
senhora veio sem que eu a chamasse - sei perfeitamente porquê.
Mas as contas sair-Lhe-ão erradas...
A Sra Papofski estava quase a ter um ataque de fúria, mas
conseguiu dominar-se e respondeu ao general num tom de vítima:
97
- Estou desolada, meu tio! Vou chicotear os meus filhos. Pode,
mesmo, chicoteá-los o tio, se preferir. Eles não voltarão a fazer
o que fizeram agora, prometo-lhe. Não nos afaste de si, meu
querido tio; eu não suportaria essa desgraça...
O general cruzou os braços e olhou para ela fixamente. O seu
rosto exprimia desprezo e cólera. Só disse uma palavra: -
Miserável! Ofereceu o braço a Natália, deu a mão a Natasha, e
chamando Alexandre, Miguel, Tiago e Paulo, dirigiu-se para os
aposentos da Sr á Dabrovine.
Entrou no salão, onde costumava passar uma parte dos dias,
passeou para trás e para diante durante alguns momentos, parou,
pegou nas mãos da sobrinha, contemplou-a em silên- cio e depois
disse:
- És tu, só, quem é e será minha filha! Doce, boa, carinhosa e
sincera, tu educaste os teus filhos à tua semelhança. A outra não
receberá nada, nada!
SRa DABROVINE - Ó meu tio! Peço-lhe!
GENERAL (apertando-lhe as mãos) - Cala-te! Vais fazer-me
enfurecer de novo! Deixa-me esquecer esta cena e a baixeza
revoltante da tua irmã. Junto de ti e dos teus filhos sinto-me
estimado, eu próprio vos estimo muito e sou feliz. Junto da outra
sinto revolta e desprezo. Brinquem, meus filhos - acrescentou
ele, voltando-se para Tiago, Paulo e para os seus dois sobrinhos.
- Eu não tenho medo do barulho. Divirtam-se.
TIAGO - Poderemos brincar às escondidas e correr no corredor?
GENERAL - Às escondidas, às guerras, ao assalto, a tudo quanto
quiserem. A minha única contrariedade é não poder correr com
vocês. Mas, primeiro, vão chamar Derigny. E agora, Natália, vou
instalar-me para o serão, como de costume. Posso fumar?
SRa DABROVINE - Precisa, por acaso, de fazer essa pergunta, meu
tio? Já se esqueceu de como eu gosto do cheiro do tabaco?
GENERAL - Não. mas receava. SR DABROVINE - Fazer-me pensar no meu
pobre Dmitri, que costumava fumar consigo? Eu nunca o esqueço em
circunstância alguma, e gosto de tudo o que me aviva a lembrança
dele.
O general não respondeu; aproximou a sua poltrona daquela em que
a sobrinha estava sentada, pegou-lhe na mão e ficou pensativo.
11. O preceptor
Passaram-se mais alguns dias sem que se desse qualquer
acontecimento notável. A Sr. a Papofski lá ia dominando a sua
cólera conforme podia, sempre que se encontrava na presença do
tio, a quem procurava lisonjear cada vez mais. Evitava a irmã,
assim como os filhos fugiam dos primos, que faziam grupo à parte
com Tiago e Paulo.
Quando soube, por Derigny, que o general rasgara a sua lista de
compras, a Sr. a Papofski perguntou:
- Mostrou essa lista ao meu tio?
DERIGNY - Era o meu dever. Não faço despesa alguma que não seja
autorizada pelo
meu amo.
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SRa PAPOFSKI - Mas não era necessário ele ter conhecimento disso.
O meu tio gasta à toa e o senhor podia, perfeitamente, incluir
essa despesa numa outra conta qualquer.
DERIGNY - Se fizesse isso tornava-me indigno da confiança do
general, e eu sou incapaz de tal desonestidade.
SRa PAPOFSKI - Bem sei que o Derigny é uma pessoa honestíssima.
Fiz isto de propósito para ter a prova de que o senhor é digno da
estima que o meu tio tem por si. Também eu o estimo muito, creia.
Sinto-me desamparada no mundo. Se o senhor soubesse como eu me
preocupo com o futuro dos meus filhos! Somos tão pobres!
Derigny não respondeu; mesmo sem querer, sorriu ironicamente,
cumprimentou a Sr. a Papofski e saiu, pensando, de si para si,
que aquela sobrinha do general era, realmente, uma intrigante,
interesseira e hipócrita.
Por seu lado, a Sr. a Papofski, no seu íntimo, prometeu a si
própria fazer tudo quanto pudesse para comprometer Derigny e
fazer-lhe perder a confiança do general. De tal forma se exaltou
que, sem dar por isso, começou a falar em voz alta:
109
"Eu te arranjarei! Finges-te honesto porque sabes que não gosto
de ti! E como vês o estúpido carinho do meu tio por Natália e os
filhos, procuras agradar-lhe, a ela! Querem expulsar-me daqui,
mas ficarei! Hei- de vigiá-los e inventar seja o que for para os
comprometer. Denunciá- los-ei como conspiradores polacos.
católicos. Farei com que sejam todos presos, condenados. Mas
preciso de tempo. Talvez um ano. Dentro de um ano serei senhora
de Gromiline, e hei-de chicoteá-los, a todos! "
Enquanto ela falava, Tiago passou no corredor. Ouvindo-lhe a voz,
julgou que a Sr. a Papofski estava a falar com o pai, e parou,
esperando vê-lo sair. Espantado com o que ouvia, o pequeno não
pôde dominar-se e, aproximando-se da porta entreaberta, espreitou
para dentro do quarto. Ao ver que a Sr. a Papofski estava só, o
seu pavor aumentou ainda mais e, trémulo, com o coração a querer
saltar-lhe do peito, retirou-se sem fazer ruído e foi ter com os
pais.
TIAGO - Papá! Mamã! É preciso prevenir o general! A Sr. a
Papofski quer tirar-lhe tudo! mandá-lo prender e a nós também.
Temos de fugir com o general e voltar para casa da tia
Elfy.
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DERIGNY - Tu estás doido, Tiago! Quem te meteu isso na cabeça?
Não vês que a Sr. a Papofski, apesar de ser muito má, não pode
fazer mal algum ao general nem mesmo a nós?
TIAGO - Tenho a certeza, papá! Eu ouvi perfeitamente: "Querem
expulsar-me daqui, mas ficarei"
E o pequeno repetiu aos pais tudo quanto ouvira à Sr. a Papofski.
Derigny e Helena já não riam. Sem perder a serenidade, Derigny
pediu à mulher que não tivesse receio e recomendou ao filho que
não repetisse a ninguém uma única palavra do que tinha ouvido,
explicando-lhe:
- Se a Sr. a Papofski descobre que alguém a escutou, vingar-se-á,
e talvez não tivéssemos tempo para nos defendermos.
TIAGO - Está bem, papá; não direi nada a ninguém. Mas onde está
Paulo?
DERIGNY - Anda a brincar lá fora. TIAGO - Vou ter com ele. Tenho
sempre medo de que esteja sozinho com os terríveis Papofski.
Tiago foi encontrar o irmão junto de uma pequena floresta,
imóvel, falando com alguém que ele não via. Correu para ele e
chamou-o. Paulo voltou-se e fez-lhe sinal para que se
111
aproximasse. Tiago assim fez e ouviu o irmãozito dizer: - "Não
tenha medo, é o Tiago. Ele é bom e não dirá nada. "
TIAGO - Com quem falas tu?
PAULO - Com um pobre homem, tão pálido e tão fraco, que nem pode
andar.
Tiago olhou para a floresta e viu, por entre
os troncos, um homem meio deitado, com o
aspecto de quem está quase a morrer.
TIAGO - Quem é o senhor? Porque está
aí? Por onde entrou?
DESCONHECIDO - Perdi-me na floresta.
Morro de fome e de frio. Não comi nem bebi
nada desde anteontem à noite.
TIAGO - Coitado! Vou buscar qualquer
coisa para lhe dar e prevenir o papá.
DESCONHECIDO - Não, não; não lhe diga
que eu estou aqui. Se me denunciar, estou perdido.
TIAGO - O papá não o denunciará. Não tenha medo. Espere um
bocadinho. Vem comigo Paulo; vamos buscar de comer para este
pobre homem.
Antes que o desconhecido tivesse tempo de repetir as suas
súplicas, os dois irmãos desapareceram, correndo.
112
O desgraçado deixou-se cair por terra, fazendo um gesto de
desespero.
"Estou perdido! - murmurou ele. - Meu Deus, tende piedade de mim!
"
Ao dizer isto, apertou contra o peito uma pequena cruz de
madeira, depois levou-a aos lábios, e ficou a orar.
Minutos depois, os dois pequenos voltavam, correndo, acompanhados
pelo pai.
Ainda antes de lhe fazer qualquer pergunta, Derigny fez-lhe tomar
uma chávena de caldo quente, com um bocado de pão e um copo de
vinho. O desgraçado comia e bebia com avidez, mas Derigny
recomendou-lhe:
- Agora não coma mais. Como está muito fraco, pode fazer-Lhe mal.
Daqui a uma hora tornará a comer. Experimente, a ver se é capaz
de se levantar, e vamos para o palácio.
- Que palácio é este? Quem vive aqui? perguntou o desconhecido em
voz sumida.
DERIGNY - O general Conde Dourakine. DESCONHECIDO - Dourakine!
Dourakine! Será possível? E ainda é o mesmo homem valente e bom
que eu conheci?
DERIGNY - É sempre o melhor dos homens. Um pouco arrebatado, por
vezes, mas bondoso como nunca conheci outro.
113
DESCONHECIDO - Previna-o... Vá dizer-lhe... Mas não. vou ver se
posso andar. Sinto-me melhor.
O pobre homem quis levantar-se, mas não o
conseguiu.
- Não posso! - murmurou ele, abatido.
DERIGNY - Quer que eu vá prevenir o
general?
DESCONHECIDO - É preferível. Diga-Lhe
que venha aqui, por amor de Deus e de Romane.
Derigny, embora intrigado com as palavras
enigmáticas do desconhecido, afastou-se sem
fazer qualquer pergunta. Recomendou aos pequenos que voltassem
para o palácio, mas que,
a não ser à mãe, nada dissessem do sucedido.
Em seguida foi contar o estranho caso ao general.
GENERAL - Que demónio quer você que
eu faça? Se ele se perdeu, que se encontre...
DERIGNY - Mas, meu general, ele está
quase morto de fome, frio e fadiga.
GENERAL - Que lhe dêem roupas, que o
aqueçam e lhe dêem de comer. Leve os meus
próprios agasalhos, se quiser. Mas quem é esse
homem? Um camponês? Um negociante?
DERIGNY - Não sei, meu general. Mas esqueci-me de lhe dizer que
ele lhe mandou pedir
114
que fosse até junto dele - "por amor de Deus e de Romane".
GENERAL (dando um salto na poltrona) Romane! Romane! Não é
possível! Ele disse Romane? Tem a certeza disso?
DERIGNY - Absoluta certeza.
GENERAL - Meu pobre Romane! Não posso compreender. Quase morto de
fome e de fadiga! Ele, príncipe, rico! Ele, que eu julgava morto!
O general dirigiu-se imediatamente para o local indicado por
Derigny. Ia tão depressa, que dir-se-ia ter recuperado a
agilidade que os anos e os ferimentos lhe haviam feito perder.
Mal avistou o desconhecido, correu para ele, levantou-o, amparou-
o e contemplou-o com uma profunda piedade em que havia também
tristeza.
- Meu pobre amigo! Que mudança! Que aconteceu? - murmurou ele.
Romane não respondeu e designou Derigny com o olhar.
O general compreendeu e apressou-se a dizer:
- Fala sem receio. Derigny tem a minha inteira confiança e ser-
nos-á muito útil, se precisarmos dele:
115
ROMANE - Venho da Sibéria, onde estava condenado a trabalhos
forçados e donde consegui fugir quase milagrosamente.
A surpresa do general foi tão grande que, por pouco, deixava cair
o pobre Romane e caía ele próprio.
- Tu? Na Sibéria? Tu, forçado? É impossível! Vem descansar um
pouco em minha casa e depois talvez consigas pôr as ideias em
ordem. Deves estar um pouco desvairado com a fome e a fadiga.
ROMANE - Se alguém me vê entrar serei denunciado, preso e
conduzido novamente àquele inferno.
O general viu, pela maneira calma e triste como Romane falava,
que estava perfeitamente lúcido. Reflectiu um instante e,
voltando-se para Derigny, perguntou:
- Que lhe parece, amigo?
Derigny havia compreendido tudo e concebeu imediatamente um
plano, que expôs ao general:
- Eis o que me parece melhor. Vou dar o meu capote a este senhor
e vou buscar calçado e qualquer coisa bem quente para ele tomar.
Entretanto, o meu general volta para o palácio, como se tivesse
vindo dar um passeio. Depois
116
dá ordem para atrelarem um cavalo à carruagem mais pequena,
dizendo que é para eu ir a
Smolensko buscar um preceptor para os seus
sobrinhos. Em vez de ir à cidade, farei algumas
léguas na estrada, para fatigar o cavalo, a fim
de não levantar suspeitas, e virei depois aqui
buscar este senhor.
Os olhos do general brilhavam. Apertou a
mão de Derigny e disse-lhe:
- Você é muito mais inteligente do que eu!
Vês, meu pobre Romane, como fizemos bem
em falar diante dele? Embrulha-te no capote,
depressa, que estás a morrer de frio. Darei um
dos meus casacos a Derigny.
ROMANE - Mas, meu caro conde, o meu
vestuário esfarrapado revela perfeitamente que
eu sou um evadido da Siberia.
GENERAL - Derigny resolverá o problema.
Não te preocupes com coisa alguma.
Puseram imediatamente em prática o plano
de Derigny. No caminho o general e ele combinaram dizer que
Romane era um perceptor inglês, visto falar perfeitamente aquela
língua e
ter um tipo loiro. Chamar-se-ia Mister Jackson.
Preparada a refeição quente e as roupas que
devia levar a Romane, Derigny foi prevenir a
mulher de tudo o que se passava e partiu.
117
O general foi para junto da Sr. a Dabrovine e
de Natasha.
GENERAL - Vais ter uma pessoa para te
ajudar a instruir os teus filhos.
SRa DABROVINE - Não é necessário,
meu tio. Eu e Natasha damos-lhes lição, não
precisamos de mais ninguém.
GENERAL (sorrindo) - Também lhes ensinam latim e grego?
SRA DABROVINE (hesitante) - Não, meu
tio. Sabemos apenas russo e francês.
GENERAL - Mas é preciso que eles aprendam aquelas línguas.
118
NATASHA (rindo) - O tio sabe grego e latim?
GENERAL - Não sei. E é por isso mesmo que eu sou e serei sempre
um burro.
NATASHA - Oh! meu tio, não deve dizer isso. Como é que o
imperador o podia nomear general se o tio fosse um burro? Como é
que lhe daria um exército para comandar?
GENERAL (sorrindo) - Não sabes o que dizes. Um burro de dois pés
pode ser general e ficar burro da mesma maneira. Repito: é
preciso um preceptor para os teus irmãos, e esse preceptor não
tarda a chegar.
SRa DABROVINE - Mas, meu tio. eu não tenho. não posso. Um
preceptor é muito caro. e eu não sei.
GENERAL -. Não sabes onde irás buscar dinheiro para lhe pagar?
Não é isso que queres dizer? À minha algibeira! Para que quero eu
o dinheiro? Toma esta carteira, Natasha, entrega-a à tua mãe. E
quando estiver vazia tornarás a dar-ma, para eu a encher
novamente.
SRa DABROVINE - Não, meu tio. O tio é muito bom mas não quero
abusar da sua generosidade. Natasha, não aceites a carteira.
GENERAL - Ah! Ensinas a tua filha a ser desobediente! Tratas-me
como se eu fosse um
119
avarento? Dizes que és minha amiga e magoas-me, humilhas-me.
Pobre de mim Sentir-me-ei sempre só, sempre repelido! Ninguém me
quer.
O general sentou-se e apoiou tristemente a cabeça nas mãos.
Natasha olhou para a mãe com uma expressão de censura, aproximou-
se do tio, ajoelhou, pegou-lhe nas mãos e beijou-as muitas vezes.
O general sentiu uma lágrima cair-lhe nas mãos, levantou Natasha,
apertou-a nos braços e, sem falar, estendeu-lhe a carteira.
Natasha pegou-lhe e foi levá-la à mãe.
- Aqui tem, mamã - disse ela. - Para que serve encobrirmos ao tio
que somos pobres? Para que havemos de ferir o seu bondoso
coração, que nos oferece uma ternura verdadeiramente paternal? De
um pai aceita-se tudo!
A Sr. a Dabrovine pegou na carteira e foi abraçar o tio,
murmurando:
- Obrigada! Natasha tem razão! Aceitarei tudo o que queira dar-
me. Sou sua filha pelo coração e confesso, sem me envergonhar;
que, sem o seu auxílio, nunca poderia educar convenientemente os
meus filhos.
GENERAL -. Que serão, de hoje em diante, também meus, como tu és
igualmente a minha filha bem-amada!
120
Ao dizer isto, o general apertou as duas nos braços e beijou-as
ternamente.
- A tua boa acção não será inútil, minha querida Natasha! E a ti,
Natália, só te peço uma coisa: que me trates por pai sempre que
estivermos sós.
SRa DABROVINE - Entrego-me inteiramente nas suas mãos, meu pai.
Farei tudo o que desejar.
Demoraram-se ainda os três, a conversar. Algum tempo depois
bateram à porta. Era Derigny. Ao entrar, disse:
- Meu general: Mr. Jackson, o preceptor que me encarregou de ir
buscar, veio comigo. Está no seu gabinete e espera as suas
ordens.
O general sorriu da surpresa de Natália e Natasha e saiu com
Derigny.
Quando chegou a hora de jantar, a Sr. a Dabrovine e a Sr. a
Papofski entraram na sala acompanhadas pelos filhos. O general já
ali se encontrava com Mr. Jackson, que apresentou às sobrinhas.
GENERAL - Sr. a Dabrovine, contratei Mr. Jackson por cinco anos,
para completar a educação de Alexandre e Miguel. Estás de acordo
em confiar-lhe os teus filhos? Respondo por ele como por mim
próprio.
121
- Tudo o que o tio fizer será bem feito respondeu ela, sorrindo
graciosamente; e, pegando na mão dos filhos, apresentou-os a Mr.
Jackson.
A Sr. a Papofski examinava o recém-chegado com ar altivo. As
palavras do general haviam aumentado a sua irritação, mas notando
que Mr. Jackson tinha maneiras distintas, resolveu logo captar-
lhe as simpatias, com o fim de o afastar da Sr. a Dabrovine.
Vendo que o tio não se referia aos filhos dela, dirigiu-se ela
própria ao preceptor e apresentou-lhe Mitineka, Sonushka, Yégor,
Pavlouska e Nicolai, dizendo:
- Aqui estão os meus filhos, que lhe confio, Mr. Jackson. Os
outros são ainda muito novos; conhecê-los-á mais tarde. Estou
muito reconhecida ao meu tio por ter pensado na educação dos seus
"netos", como ele diz.
- Não tens nada que agradecer-me, Maria Pétrovna - respondeu o
general, surpreendido. - Eu não pensei nos teus filhos, que tu
sabes educar tão bem, e que têm pai. Contratei Mr. Jackson para
educar os filhos da tua irmã, e isso bastar-lhe-á, sem ter de
aturar os cinco demónios que o fariam de fel e vinagre de manhã à
noite.
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SRA PAPOFSKI - Espero, Mr. Jackson, que se ocupará também dos
meus filhos, fazendo por gentileza o que meu tio quis impor-lhe
como obrigação.
MR. JACKSON - Farei quanto puder para lhe ser agradável, minha
senhora. A pronúncia inglesa do preceptor não era desagradável e
a Sr. a Papofski sentiu-se lisonjeada, olhando para a irmã com ar
de triunfo.
O general coçava a cabeça; estava embaraçado e descontente. Por
fim, disse:
- É impossível! Jackson não pode disciplinar e educar um bando de
crianças terríveis. Não quero! Proíbo-lhe que o faça, ouviu,
Jackson? E tu, Maria Pétrovna, ouviste bem?
Jackson inclinou-se; a Sr. a Papofski disse, num tom irónico, que
estava habituada a ser tratada como uma estranha, assim como os
filhos, mas que se submetia às ordens do tio.
O jantar decorreu serenamente; ao serão, as crianças brincavam na
galeria, como de costume. Tiago e Paulo também foram convidados.
Natasha e o preceptor tiveram de intervir várias vezes. Mr.
Jackson observava e fazia o seu juízo.
Quando as crianças se retiraram, o general acompanhou a Sr. a
Dabrovine aos seus aposentos; Mr. Jackson pediu licença para ir
repousar,
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como tanto necessitava. A Sr á Papofski recolheu também ao seu
quarto.
Como habitualmente, o general demorou-se no salão da sobrinha, a
conversar.
NATASHA - O pobre Mr. Jackson é muito infeliz.
GENERAL (sobressaltado) - Como podes
saber isso? Ele contou-te alguma coisa? NATASHA - Não, meu tio,
não me contou
nada, mas eu compreendi que era assim, pelo seu ar triste,
pensativo e amargurado. Reparou no abatimento dele?
GENERAL - Foi porque enjoou na viagem de Inglaterra para cá. E
depois, sempre custa separar-se da família e dos amigos.
NATASHA - Farei tudo quanto puder para que ele se sinta feliz
entre nós.
GENERAL (sorrindo) - És um anjo! Conversaram ainda durante algum
tempo. Por fim, Natasha chamou Derigny para acompanhar o tio e
cada um recolheu ao seu quarto. Quando ficou só com Derigny, o
general
contou-lhe que, alguns anos antes, durante uma campanha na
Circassia, tivera como ajudante de campo um jovem polaco, o
príncipe Pajarski, um dos nomes mais ilustres da Polónia, a que
se dedicara muito, prestando um ao outro grandes serviços.
- Estimava-o como se fosse meu filho! exclamou ele, comovido.
E continuou a contar:
- Romane foi passar uma licença à Polónia
e nunca mais ouvi falar nele. Soube apenas que
tinha desaparecido.
Por fim, explicou:
- Antes de jantar, Romane disse-me que
o acusaram de ter conspirado para libertar a
Polónia. Foi por isso que o mandaram para a
Sibéria, onde sofreu horrivelmente. Conseguiu
escapar através de mil perigos. O que o salvou
foi ter encontrado os seus filhos e a si, meu
bravo Derigny.
DERIGNY - Meu general: antes de lhe perguntar qual o destino que
tenciona dar ao príncipe Pajarski, que não pode ficar eternamente
preceptor dos seus sobrinhos, devo dar-lhe conta
de uma descoberta feita pelo Tiago.
Então, Derigny contou tudo o que o pequenito ouvira à Sr. a
Papofski.
O general tornou-se quase roxo. Os olhos
pareciam querer saltar-lhe das órbitas. Só
depois de alguns minutos conseguiu dominar a
sua indignação. Por fim exclamou:
- A miserável! A infame! E o pior é que
podia conseguir o que desejava. E agora, com
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o nosso pobre Romane aqui, ainda pior! Se ela descobre qualquer
coisa, estamos perdidos! Que havemos de fazer? Ajude-me, Derigny!
DERIGNY - Contra semelhante perigo, só vejo um meio: sairmos
daqui.
GENERAL - E como havemos de viver, sem dinheiro, num país
estranho? Somos seis pessoas.
DERIGNY - Porque não vende algumas das suas propriedades?
GENERAL - Sim, senhor! Bela ideia. Venderei a minha casa de
Sampetersburgo, a de Moscovo, as minhas terras da Crimeia, as de
Kiev, as de Orel. Tudo isto vale seis a sete milhões, pelo menos.
Vou tratar disso já amanhã. Mandarei o dinheiro para Londres e
não para França, porque poderia levantar suspeitas. Mas Gromiline
terá de ficar para ela, a malvada! Demónio! Como hei-de fazer
para impedir isto? E como havemos de partir sem que ela dê por
isso?
DERIGNY - Convém que ela saiba. GENERAL - Você está doido! Se ela
sabe,
é capaz de nos denunciar a todos.
DERIGNY - Não, meu general. É preciso, pelo contrário, interessá-
la pela nossa partida. Dirá que necessita de um clima mais suave
e
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que a Sr. a Dabrovine precisa de fazer um tratamento de águas na
Alemanha. O meu general pedirá à Sr. a Papofski para dirigir os
seus negócios durante a sua ausência, que será apenas de alguns
meses.
GENERAL - Mas assim ela ficará senhora de Gromiline, que é
exactamente o que eu não quero. DERIGNY - Não ficará senhora de
coisa
alguma, porque este projecto só será realizado depois de o meu
general ter vendido Gromiline, combinando com o comprador só
tomar posse da propriedade alguns dias depois da nossa partida.
- Muito bem! Muito bem! - exclamou o general, esfregando as mãos.
- Bela vingança! Irei morrer a França como sempre desejei. Levo-o
de novo para a sua Pátria, meu caro
Derigny, asseguro o futuro da minha filha e deixo-os todos
contentes, felizes!
DERIGNY - O meu general esquece o pobre príncipe.
GENERAL - Quem lhe diz que o esqueço? Se até tenho projecto de o
casar! Mas não é ainda. Daqui a um ou dois anos. Você não me
compreende, mas compreendo-me eu.
Derigny não pôde deixar de sorrir. O general ria a bom rir, e
recomendou a Derigny que o
acordasse cedo na manhã seguinte.
18. A revelação
Enquanto estes trágicos acontecimentos se passavam em Gromiline,
o general Dourakine e os seus companheiros continuavam,
tranquilamente, a sua agradável viagem.
O príncipe Romane contou a Natasha tudo quanto sofrera,
descrevendo-lhe os tormentos por que havia passado nas prisões e
nas minas da Sibéria, onde estivera dois anos. Contou-Lhe também
como conseguira fugir daquele inferno, os perigos que passara -
fome, sede, frio e, principalmente, o pavor de ser descoberto,
até ao momento em que a Providência o levou à floresta de
Gromiline.
O seu único crime era desejar a libertação da Polónia, sua Pátria
querida!
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Natasha escutava profundamente comovida, e mais de uma vez os
olhos se lhe encheram de lágrimas. Por fim exclamou:
- Felizmente que tudo isso passou! Mas, agora, certamente, vai
deixar-nos. O príncipe Pajarski não pode continuar a ser
preceptor de meus irmãos.
GENERAL - Certamente! Serias capaz de continuar a tratá-lo como a
um Mr. Jackson qualquer?
PRÍNCIPE - Todo o meu desejo é que ela continue a ver em mim um
amigo dedicado, pronto a servi-la em todas as ocasiões. E espero
que nenhum de vós se esqueça de mim.
GENERAL - Quem fala aqui em esquecer? Agora o mais importante é
irmos comer qualquer coisa, porque estou cheio de fome.
Sorriram todos, contentes, com a despreocupação de quem sabe que
o perigo passou. Romane era quem mais alegre se mostrava.
GENERAL - Bem se vê que passaste a fronteira, meu rapaz. Até que
enfim te vejo rir.
A refeição foi abundante para o general, e agradável para todos.
No fim do jantar resolveram revelar a Alexandre e Miguel a
verdadeira identidade de Mr. Jackson, que apertou afectuosamente
contra o coração os seus discípulos.
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ALEXANDRE - Tenho muita pena. quero dizer, gosto muito que seja o
príncipe Pajarski, meu bom Mr. Jackson. O que me custa é não o
tornar a ver. Gosto tanto de si!
E o pobre Alexandre rompeu em soluços. PRÍNCIPE - Sereis sempre
os meus queridos discípulos, se vossa mãe e vosso tio quiserem
conservar-me junto de vós.
ALEXANDRE - Não se importaria. É verdade?
PRÍNCIPE - E porque havia de importar-me? De que me serve ser
príncipe se não tenho com que viver? Todo o meu desejo é
continuar entre os meus queridos amigos, se mo permitem.
A Sr. a Dabrovine apertou-lhe a mão afectuosamente. O general
abraçou-o a tal ponto, que quase o sufocou. Natasha agradeceu-
lhe, também, a alegria que dava aos irmãos. Quanto a Tiago e
Paulo, conservavam-se afastados, mas o príncipe disse- lhes,
abraçando-os:
- E vocês, meus bons pequenos, continuarão também a ser meus
discípulos e meus amigos. Foste tu, Paulo, quem me descobriu na
floresta.
PAULO - Lembro-me muito bem! O senhor parecia tão infeliz! Fez-me
tanta pena!
TIAGO - Eu pensei logo que tinha fugido de qualquer prisão.
Mostrava tanto receio de que o denunciassem.
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PRÍNCIPE - E tu disseste a alguém? TIAGO - A ninguém! Nunca! Eu
bem sabia que era perigoso para o senhor.
GENERAL - És um belo rapaz! Hei-de recompensar-te.
TIAGO - Só quero a vossa amizade. O general calculou, então, que,
no dia seguinte, era a data marcada para o general príncipe
Négrinski tomar posse do domínio de Gromiline; divertiu-se a
pensar na raiva que a Sr. a Papofski devia sentir ao saber a
verdade.
Natasha, porém, lamentava a tia e achava o castigo muito severo.
GENERAL - Esqueces-te, minha filha, de que ela nos queria
denunciar a todos e fazer com que nos mandassem para a Sibéria? O
seu castigo será, afinal, voltar para as suas propriedades, donde
não devia ter saído, e ficar sem a minha fortuna, que não devia
pertencer-lhe.
NATASHA - É verdade, meu tio, mas nós somos tão felizes, que me
faz pena pensar no desgosto dela.
GENERAL - Desgosto Deves dizer antes raiva, furor! Ela tem a
sorte que merece. Oxalá que Deus não lhe envie um castigo maior
do que aquele que eu lhe preparei.
FIM