Saúde Mental Conceitos Fundamentais

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Saúde Mental -

Conceitos
Fundamentais
1. Saúde Mental e Vulnerabilidade Social 4
Conceito de Saúde Mental 5
A Demanda de Saúde Mental 7
Conceito de Vulnerabilidade 9

2. Profissionais da Saúde 15
Saúde Mental no Brasil 18

3. Agentes Comunitários da Saúde 22


Cuidados em Saúde Mental 26

4. Referências Bibliográficas 33

02
03
SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

1. Saúde Mental e Vulnerabilidade Social

Fonte: Revista Mito1

A relação entre doença mental e


vulnerabilidade social é muito
complicada, requer reflexão e com-
principal do processo de Reforma
Psiquiátrica iniciado na década de
1970, foi reverter a desinstituciona-
preensão contextual de uma série de lização do portador de transtorno
formas, de forma que não reproduza mental, por meio de uma política
a lógica simplista que liga a loucura pública que criticava o modelo ma-
a pobreza, reforçando o estigma e o nicomial e criava opções de trata-
preconceito em relação à população mento no país, através de uma polí-
menos favorecida (GORENSTEIN, tica pública que inverteu e direcio-
WANG, INES e HUNGERBÜHLER, nou os gastos para a implantação
2015). dos equipamentos substitutivos.
Os autores Jorge, Carvalho e Atualmente, diversas ações do Mi-
Silva (2014), apontam que o foco

1 Retirado em http://revistamito.com/

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

nistério da Saúde foram identifica- sas duas lógicas fazem parte do coti-
das para a construção de um modelo diano dos serviços, sem considerar
de Atenção à Saúde Mental na Aten- as contradições desses métodos e as
ção Primária, ampliando a abran- consequências de sua utilização.
gência do acesso por usuários com
problemas menos graves e depen- Conceito de Saúde Mental
dência química. Embora o atendi-
mento ao paciente portador de De acordo com Passos, Costa e
transtornos graves tenha mudado, a Silva (2017), a Organização Mundial
lógica psiquiátrica clássica perma- de Saúde (OMS), define saúde como
nece no discurso da psiquiatria bio- “um estado de completo bem-estar
lógica. Ela se encontra presente no físico, mental e social, e não apenas
diagnóstico, através da construção e a ausência de doenças”. Mas esse
operacionalização de manuais de conceito, vem sendo alvo de inúme-
classificação psiquiátricos, na cons- ras críticas, pois essa definição faz
trução de instrumentos de pesquisa com que a saúde se torne algo ideal,
epidemiológica em pacientes porta- inatingível. Alguns autores insistem
doras de problemas mentais e na que essa definição favoreceu a medi-
forma como os processos médicos calização do ser humano e o abuso
sociais ocorrem. por parte do Estado na promoção de
Em concordância com o autor saúde. Além desse caráter utópico e
Amarante (2007), pode-se dizer que subjetivo, a definição da OMS per-
por um lado, existe um discurso que mite que o conceito seja utilizado
desconstrói os saberes psiquiátricos para legitimar estratégias de contro-
tradicionais, relativiza o conceito de le e exclusão de tudo o que é consi-
doença mental, amplia o olhar sobre derado diferente, indesejado ou pe-
o sofrimento psicológico, aposta na rigoso.
reabilitação psicossocial e toma Para Saraceno, Asioli e Tog-
ações humanitárias para evitar es- noni (2018), o conceito de saúde é
tigma e preconceito, e por outro la- frequentemente confundido com o
do, há um ponto de vista classifica- conceito de frequência. Existe uma
tório, normativo e biológico, que aproximação entre saúde e normali-
acredita que a doença mental é um dade, e através de instrumentos de
fator interno do sujeito, e aposta que avaliação que atribui parâmetros ci-
a eliminação dos sintomas por meio entíficos, é que esses intervalos se-
de drogas é o único tratamento. Es- rão definidos. A maioria dessas fer-

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

ramentas são escalas baseadas em Portanto, o conceito de saúde preci-


questionários, e as respostas mais sa ser redefinido para incluir as mu-
frequentes são consideradas o crité- danças da vida, incluindo a possibi-
rio de normalidade, e o anormal está lidade de adoecimento, fazendo com
na borda da curva de normalidade. que a análise seja mais centrada na
Essa lógica de construção torna capacidade de enfrentamento dos
qualquer expressão diferente ou in- problemas.
consistente da resposta mais co- Segundo Mendonça, Matta,
mum patológica, o que não é neces- Gondim e Giovanella (2018), a defi-
sariamente correto. A medicina in- nição de saúde mental ou saúde psí-
terpreta suas doenças como desvios quica é mais complicada porque,
da média estatística, que indica a além de estar diretamente relacio-
frequência de ocorrência desse fenô- nada às questões normais e patoló-
meno na população em geral, e o tra- gicas, envolve também discussões
tamento é um processo de normali- complexas sobre a loucura e todo o
zação. O conceito de normalidade é estigma a ela associado. Na maioria
duplo, ou seja, por um lado, refere- dos casos, atribuir um diagnóstico
se à média estatística, por outro, é psiquiátrico a uma pessoa significa
um conceito de avaliação vinculado colocá-la em um espaço que pode ser
ao que é considerado desejável em iatrogênico.
uma determinada sociedade em um Ao concordar com os autores
determinado momento histórico. Gorenstein, Wang, Ines e Hunger-
Em consonância com Sutter, bühler (2015), pode-se afirmar que
Pedroso e Bucher-Maluschke as classificações psiquiátricas mo-
(2015), é correto afirmar que a exis- dernas se referem aos comporta-
tência de uma pessoa inclui erros, mentos, sentimentos e condutas de
falhas, privações, escolhas de vida, sujeitos que não possuem uma rede
desejos, angústias existenciais, de- social, sem considerar suas cone-
safios e contradições. Quando se cria xões, relações pessoais, emocionais
um conceito de saúde que não per- e de trabalho na definição do diag-
mite uma ligação com a vida cotidi- nóstico, o que critica a própria con-
ana, que exclui oscilações, possíveis cepção dos manuais de diagnósticos
riscos e escolhas únicas, e associa psiquiátricos como o DSM-IV e o
qualquer violação das regras a um CID-10. Atualmente, a abordagem
determinado castigo, simplesmente hegemônica, movimento que come-
não se produz saúde, mas sim uma çou na década de 1970 por um grupo
normatização do comportamento. de psiquiatras americanos, faz com

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que os sintomas do paciente sejam mais natural de sofrimento espiri-


levados a sério e está relacionado à tual, sem levar em conta os aspectos
tentativa de estabelecer uma solução subjetivos, históricos e culturais.
empírica, operacional e prática para
os problemas mentais. Inicialmente, A Demanda de Saúde Mental
o objetivo era criar uma classificação
das doenças mentais para a comuni- O estudos epidemiológicos da
cação científica. Por essa razão, esse prevalência de doença mental na po-
método deveria ser ateórico e não pulação segue a mesma lógica apon-
deveria ter a pretensão de ser consi- tada na construção do conceito de
derado como uma psicopatologia. saúde mental, são estudos transver-
No entanto, o que observamos é uma sais que usam uma escala de sensi-
mudança do enfoque inicial para bilidade para determinado número
uma perspectiva biológica baseada de variáveis, que são representadas
nos problemas mentais, e o debate pelos sintomas do sujeito. O argu-
sobre a causa da doença se limita à mento é construído inteiramente
resposta de um determinado medi- com base nos números obtidos, não
camento a uma situação específica, o havendo questionamentos sobre as
que faz com que o debate psicopato- ferramentas utilizadas no estudo,
lógico seja excluído em favor do di- que irão definir um padrão de nor-
agnóstico. malidade (MENDONÇA, MATTA,
Conforme Jorge, Carvalho e G. C; GONDIM, GIOVANELLA,
Silva (2014), até a década de 1960, 2018).
todos os efeitos da psicanálise sobre Os autores Gorenstein, Wang,
a psicopatologia foram repentina- Ines e Hungerbühler (2015), apon-
mente substituídos pelos efeitos da tam que existem demandas de Saú-
psicofarmacologia, e uma nova enti- de Mental da Atenção Primária que
dade de doença é criada sem consi- estão baseados nos conceitos de
derar a dinâmica ou estrutura da do- Transtorno Mental Comum, Sofri-
ença. O suposto ateorismo desses mento Difuso ou Transtorno Psiqui-
manuais excluiu do debate cientifi- átrico Menor. Essas denominações
camente autorizado, todas as outras se referem a estruturas clínicas mui-
disciplinas, como fenomenologia, to semelhantes, que estão relaciona-
psicanálise e análise existencial, le- das a queixas físicas inespecíficas,
vando a uma concepção cada vez como dores no corpo, desconforto,

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cefaleia, nervosismo e insônia, que um dos resultados mais consistentes


nem sempre são categorizadas nas dos estudos de epidemiologia da po-
principais síndromes psiquiátricas. pulação e de atenção primária no
Essas queixas são uma das maiores Brasil. A tendência de criar catego-
demandas da Atenção Básica e, ge- rias mais abrangentes como Trans-
ralmente, não recebem tratamento, torno Mental Comum, Morbidade
e pacientes com essas queixas recebe Psiquiátrica Menor ou Sofrimento
classificações como poliqueixosos, Mental Difuso, pode levar a uma
psicossomáticos, funcionais, psico- processo de patologização dos esta-
funcionais, histéricos e pitiáticos. O dos afetivos. Comportamentos, sen-
que comprova a importância da ca- timentos e situações fazem parte da
pacitação dos profissionais da Aten- vida das pessoas, ou seja, certas os-
ção Básica para a compreensão des- cilações nos estados emocionais po-
tes quadros, pois na maioria das ve- dem ser consideradas estados pato-
zes, os pacientes portadores destas lógicos, e a resposta a essas questões
queixas são tratados de maneira costumam ser a prescrição de um
preconceituosa. A compreensão des- medicamento. É necessário dar visi-
se problema está além da problemá- bilidade a essas manifestações e es-
tica da individualização do proble- tabelecer uma conexão entre essas
ma, e o foco precisa ser estendido manifestações e suas raízes psicos-
para a origem social, as condições sociais. Entende-se que essas cone-
socioeconômicas e as relações soci- xões devem ir além dos mecanismos
ais do paciente. existentes na racionalidade cientí-
Em concordância com os auto- fica tradicional e introduzir diversos
res Jorge, Carvalho e Silva (2014), elementos que levarão à singulariza-
pode-se dizer que, essa configuração ção de cada situação.
clínica é subnotificada, pois os usuá- De acordo com a Amarante
rios não procuram tratamento e, (2007), outro ponto importante está
quando procuram, não recebe a relacionado com a correlação entre
atenção que merece e o tratamento problemas mentais e indicadores so-
adequado. A taxa de prevalência foi ciais, que são um problema muito
de 24,95%, sendo o grupo mais vul- complexo, pois a ligação entre “po-
nerável as mulheres, idosos, com breza” e “loucura” costuma ser rapi-
baixa escolaridade e baixa renda per damente incorporada ao imaginário
capita. A relação inversa entre trans- da população em geral, principal-
tornos mentais e classe econômica é mente pelos profissionais de saúde.

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Compreender o alcance dessa corre- risco utilizados nos primeiros estu-


lação e os comportamentos estrutu- dos epidemiológicos, sofreram uma
rais resultantes da saúde mental é mudança discursiva de consequên-
um desafio. A correlação entre pro- cias prática extremamente relevan-
blemas mentais e indicadores soci- tes. De categorias analíticas instru-
ais não deve gerar preconceito, pois toras do raciocínio causal, os fatores
assim as populações das periferias de risco foram transformados em
estariam condenadas a uma situação conceitos operacionais de grupos de
imutável e estática. Ao contrário, es- risco. O conceito de grupo de risco
tudos epidemiológicos têm demons- foi muito difundido, principalmente
trado que certas condições de vida na grande mídia, deixando de ser
podem tornar a população vulnerá- uma categoria de análise abstrata, e
vel até mesmo a doenças não trans- se transformando em uma verda-
missíveis e não infecciosas, mas com deira categoria ontológica, como
grande perda e potencial incapaci- uma identidade concreta.
tante equivalente a manifestações já Em consonância com Sara-
reconhecidas pelo campo da Saúde ceno, Asioli e Tognoni (2018), é cor-
Pública. reto afirmar que, essa situação au-
mentou o preconceito das pessoas
Conceito de Vulnerabilidade contra grupos de risco, principal-
mente os homossexuais, e as estra-
Para autores como Passos, tégias de prevenção foram organiza-
Costa e Silva (2017), o conceito de das em torno do tema da abstinência
vulnerabilidade também se encontra sexual e do isolamento. Sendo as-
em um contexto de lógicas conflitan- sim, devido a planos de prevenção
tes. Na década de 1980, no contexto inadequados e campanhas sociais
da epidemia de aids, o conceito de relacionadas às pessoas afetadas, o
vulnerabilidade no campo da saúde conceito de grupos de risco passou a
foi restaurado na perspectiva de ser criticado. Como uma tentativa de
criar um novo conceito, devido a diminuir o preconceito e a estigma-
tendência de individualização da do- tização com relação aos grupos mais
ença. Nesse caso, a utilização do atingidos no início, e estimular um
conceito de risco epidemiológico ge- envolvimento individual com a pre-
rou uma série de problemas relacio- venção, de grupo de risco a aposta
nados à especificidade da doença. Os passou para estratégias de redução
fatos comprovam que os fatores de de risco e o conceito-chave passa

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

para Comportamento de Risco. Essa conceito de vulnerabilidade é muito


mudança também foi criticada por- diferente do conceito de risco. Ele
que trouxe uma tendência a culpabi- busca identificar os elementos rela-
lização individual pela contamina- cionados ao processo de adoeci-
ção. A partir daí, começou a aparecer mento em circunstâncias mais con-
propostas que defendiam estraté- cretas e específicas, se interessando
gias de prevenção não restritas à re- em entender as relações e os inter-
dução individual de riscos, mas de mediários que tornam essas situa-
alcance mais social e estrutural, e é ções possíveis, num movimento de
neste contexto que o conceito de vul- síntese. A vulnerabilidade não pos-
nerabilidade começou a ganhar visi- sui caráter probabilístico, seu obje-
bilidade. tivo é expressar o potencial de adoe-
Segundo Sutter, Pedroso e Bu- cimento relacionadas a todas as pes-
cher-Maluschke (2015), a compre- soas que vivem sob certas condições.
ensão da diferença entre risco e vul- A vulnerabilidade inclui todos os fe-
nerabilidade envolve a primeira di- nômenos excluídos na análise de
ferença que atribui as características risco por não apresentarem deter-
analíticas entre risco e vulnerabili- minadas características exigidas por
dade. O conceito epidemiológico de parâmetros epidemiológicos e esta-
risco tenta determinar a relação en- tísticos. Dessa forma, fenômenos
tre os eventos para estabelecer a que mostram inconsistências, múlti-
probabilidade de um fenômeno plas causas, interferência, não per-
ocorrer. Seu objetivo é expressar a manência, são os objetos de pes-
chance matemática de qualquer pes- quisa para análise de vulnerabili-
soa adoecer, sendo que possuam dade.
certas características de identidade. Conforme Gorenstein, Wang,
Existe um processo de análise causal Ines e Hungerbühler (2015), as aná-
que isola variáveis dependentes e in- lises de vulnerabilidade abrangem
dependentes, e identifica o mundo a três eixos que estão interligados:
partir de uma certa sequência de ca- Individual: está relacionado à qua-
sos, essa relação causal estimula cer- lidade de informação que os indiví-
tas ações por parte dos profissionais duos dispõem sobre o problema, a
e funcionários dos serviços de saúde. capacidade de elaborar estas infor-
Ao concordar com os autores mações e transformá-las em práticas
Mendonça, Matta, Gondim e Giova- de prevenção e proteção;
nella (2018), pode-se afirmar que o

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Social: está relacionado às possibi- criticar o pensamento científico na


lidades de obter e elaborar informa- sua limitação e reducionismo, pois
ções, acesso aos meios de comunica- estas características são constituti-
ção, escolarização, recursos materi- vas deste modelo de ciência. O pro-
ais, influência nas decisões políticas, blema se encontra em negar o limite
enfrentamento de barreiras sociais; da construção científica, os limites
Programático: refere-se aos re- dos conceitos com relação ao real,
cursos sociais e políticas públicas li- pois no limite, nenhuma ciência
gadas ao problema. consegue dar conta da realidade. As
No enfrentamento de questões singularidades que aparecem em um
relacionadas ao ser humano, como determinado fenômeno são sempre
saúde mental, é preciso ter cuidado mais complexas do que os modelos
para que colaboradores de diferen- explicativos.
tes lógicas pode dar sua própria con- Em concordância com os auto-
tribuição na justa medida e sejam res Gorenstein, Wang, Ines e Hun-
impedidas de atravessarem certos li- gerbühler (2015), pode-se dizer que
mites e interferir de forma intrusiva por outro lado, no sentido de consi-
tratamento. Existe uma diferença derar a dimensão da singularidade,
entre tendências modeladoras e da subjetividade e das experiências
construtivistas (SUTTER, PE- concretas, para fazer com que a
DROSO e BUCHER-MALUSCHKE, composição tenha relações diversas
2015). entre si, a visão construtivista tenta
Os autores Mendonça, Matta, uma aproximação mais complexa
Gondim e Giovanella (2018), apon- relacionados aos fenômenos. Buscar
tam que as tendências modeladoras explicar a singularidade é estabele-
estão vinculadas à tradição de pro- cer uma nova relação entre qualquer
dução de conhecimento, que não re- conhecimento construído através de
conhece reducionismo ou autocrí- conceitos e modelos e o aconteci-
tica que está presente na construção mento singular que visa explicar.
de categorias e conceitos. O processo Isso enfatiza a necessidade de ajus-
de construção teórica da ciência tra- tar os limites da ciência, revalori-
dicional pressupõe reduções neces- zando e expandindo a interação com
sárias para estabelecer alguns con- outras formas legítimas de compre-
ceitos explicativos e gerais. No en- ensão da realidade.
tanto, embora essa construção seja De acordo com Jorge, Carva-
viável, ela não pode expressar total- lho e Silva (2014), na relação entre
mente o fenômeno. Não faz sentido vulnerabilidade e saúde mental, é

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

importante utilizar uma visão que ordem global com racionalidade téc-
possa aproximar o sofrimento men- nica, tende a criar tensão com a or-
tal sem aprisioná-lo em categorias, dem local na comunidade, existe
de forma a ter maior flexibilidade e uma razão global e uma razão local
diversidade na compreensão e su- que se sobrepõem em cada lugar,
gestões de intervenção. A vulnerabi- num movimento dialético, algumas
lidade é multidimensional, o que vezes se associando, outras se con-
significa graduações e mudanças ao tradizendo. Principalmente nas
longo do tempo, que tem caráter re- grandes cidades do terceiro mundo,
lacional. As pessoas não são vulne- a instabilidade de uma parte impor-
ráveis, elas estão vulneráveis a uma tante da população faz com que os
determinada situação, em um ponto participantes sociais realizem diver-
específico no tempo e no espaço, sos tipos de ações no sentido de es-
portanto é importante destacar o ca- tabelecer modelos de adaptação ins-
ráter relacional de qualquer situação táveis, plásticos e criativos baseados
de vulnerabilidade. Para compreen- na solidariedade. Essa condição pro-
der a vulnerabilidade, é necessário porciona um espaço aberto para os
ampliar os horizontes, e passar do pobres viverem, o que facilitará es-
individual ao plano das suscetibili- paços aproximados e criativos. Em
dades socialmente configuradas. O alguns casos, há a necessidade de
pré-requisito para pensar a vulnera- novos debates sobre a realidade diá-
bilidade é manter uma postura aber- ria, novos usos e finalidades de obje-
ta às ações intersetoriais, e formar tos e técnicas, novos hábitos e novas
uma rede de atenção que integre o normas na vida social e afetiva.
campo da saúde com outros campos Em consonância com Passos,
relacionados à saúde dos sujeitos. Costa e Silva (2017), é correto afir-
Para Amarante (2007), outro mar que, é muito importante perce-
aspecto muito importante diz res- ber elementos que possibilitam re-
peito à interface entre os serviços de conhecer os territórios mais vulne-
saúde e a população/comunidade. ráveis com uma visão diferente, não
Existe uma tendência na relação en- apenas com emoções negativas, mas
tre os profissionais de saúde e a po- também com uma determinada
pulação de impor uma racionalidade força baseada em um tipo de exclu-
dita científica, sem uma reflexão são. Quando se sai da macro análise,
mais aprofundada sobre o fenômeno globalizada, para buscar entender a
enfrentado. O surgimento de uma dinâmica única de algumas pessoas,

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

percebe-se que o mundo é muito fra- a saúde mental na atenção básica


gmentado, e não global. Este aspecto pode facilmente se tornar um pro-
é fundamental, pois permite vislum- grama de saúde que controla a vida
brar possibilidades de produções de pessoas de baixa renda.
singulares na relação entre a área da Ao concordar com os autores
saúde e a população que vive em Sutter, Pedroso e Bucher-Maluschke
condições precárias. Ao analisar a (2015), pode-se afirmar que, a rela-
subjetividade contemporânea, há ção aproximada entre vulnerabili-
uma tendência ao empobrecimento dade social e saúde/doença mental
simbólico e a necessidade de recons- deve adotar elementos que vão além
trução de um espaço subjetivo, que do discurso técnico-científico tradi-
permita a criação de sentidos inte- cional, aliados a outros saberes so-
gradores no cotidiano. bre os sujeitos afetados pelo sofri-
Segundo Saraceno, Asioli e To- mento. O papel do profissional téc-
gnoni (2018), a saúde mental estará nico de saúde deve ser repensado,
diretamente relacionada com a ca- saindo de um lugar tradicional que é
pacidade associativa, interpretativa, de imposição, e passa a ser uma es-
de elaboração e simbolização do psi- pécie de mediador entre a comuni-
quismo, que está ligada também à dade e os recursos sociais no proces-
capacidade de fazer laços sociais. Ele so de instauração da saúde. É vista
mostrou que as características da so- mudanças na direção do tratamento
ciedade contemporânea dificultam saindo de práticas centradas na do-
essas ações, fragilizando o psiquis- ença, assistência curativa e nas in-
mo do sujeito. É importante traba- tervenções medicamentosas, para
lhar com um conceito de saúde men- focar em intervenções que enfatizam
tal que possibilite uma certa liberda- a criação de significados para o so-
de ao sujeito de modo que ele possa frimento mental e ampliam as rela-
dialogar com as diversas instâncias ções sociais dos portadores de sofri-
sociais e com seus pares, sem sub- mento mental.
meter-se totalmente a um discurso
normativo, restando um espaço para
sua singularidade, para seu desejo
aparecer. É importante enfatizar a
criação e a recriação das condições a
esse respeito para manter a saúde
mental dos sujeitos. Acredita-se que
essa questão seja fundamental, pois

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

2. Profissionais da Saúde

Fonte: Referencia Incor2

C onforme Mendonça, Matta,


Gondim e Giovanella (2018),
saúde e saúde mental possuem con-
assistência multiprofissional, co-
nhecimentos em diferentes áreas fo-
ram gradativamente incorporados a
ceitos complexos e têm sido influen- esses conceitos.
ciados historicamente pela evolução Seguindo as propostas de re-
dos ambientes sociais e políticos e forma do sistema de saúde do Brasil,
dos hábitos de saúde. Nos últimos o conceito de saúde foi formalmente
dois séculos, o surgimento do dis- revisitado e influenciado pela expe-
curso hegemônico definiu esses ter- riência internacional em políticas de
mos como específicos do campo mé- saúde, conforme descrito na 8a.
dico. Porém, com a consolidação da Conferência Nacional de Saúde, em

2 Retirado em https://referenciaincor.com.br/

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

1986. Na época, foi sugerido que a suas crises ou sintomas fossem con-
saúde deveria incluir fatores como tínuos.
alimentação, educação, trabalho, Em concordância com os auto-
condições de moradia, renda e aces- res Mendonça, Matta, Gondim e Gi-
so aos serviços de saúde. Com isso, ovanella (2018), pode-se dizer que,
considerando a universalidade, inte- na década de 1960, o psiquiatra ita-
gralidade e equidade do cuidado à liano Franco Basaglia propôs uma
saúde, as pessoas passaram a com- reformulação do conceito de lou-
preender o conceito de saúde brasi- cura, que mudou o foco da doença e
leiro de forma mais complexa (SA- ampliou o alcance da doença por
RACENO, ASIOLI e TOGNONI, meio questões de cidadania e inclu-
2018). são social. Essa ideia ganhou adep-
Os autores Sutter, Pedroso e tos e desencadeou um movimento
Bucher-Maluschke (2015), apontam que influenciou o conceito de saúde
que o termo bem-estar, utilizado na mental no Brasil e levou à Reforma
definição da OMS é um componente Psiquiátrica no Brasil. Diante do ex-
tanto do conceito de saúde, quanto posto, é compreensível que existam
parte integrante do conceito de sa- dois paradigmas principais utiliza-
úde mental, devendo ser entendido dos para discutir os conceitos de sa-
como uma estrutura subjetiva forte- úde e saúde mental, a saber, o para-
mente influenciada pela cultura. A digma biomédico e o paradigma de
Organização Mundial de Saúde de- produção social em saúde. No pri-
fine saúde mental como “um estado meiro, o foco é apenas sobre a do-
de bem-estar no qual um indivíduo ença e suas manifestações, a loucura
percebe suas próprias habilidades, é essencialmente o objeto de pesqui-
pode lidar com os estresses cotidia- sas psiquiátricas. No segundo, a sa-
nos, pode trabalhar produtivamente úde é mais complexa do que a do-
e é capaz de contribuir para sua co- ença, incluindo aspectos sociais,
munidade”. A definição de saúde econômicos, culturais e ambientais.
mental é objeto de diversos saberes, Nesse paradigma, a loucura não é
prevalece um discurso psiquiátrico apenas um diagnóstico psiquiátrico,
que a entende como oposta à lou- pois a pessoa com transtorno mental
cura, o que mostra que as pessoas pode desfrutar da qualidade de vida,
com doença mental não podem ter participar de atividades comunitá-
nenhum grau de saúde mental, bem- rias e desenvolver seus potenciais. O
estar ou qualidade de vida, como se Sistema Único de Saúde do Brasil

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

adotou um conceito de saúde expan- o diagnóstico e intervenção no do-


dido, e prioriza os cuidados de saúde mínio psicossocial das perturbações
mental. mentais.
De acordo com Gorenstein, Psicoterapeuta: trata-se de qual-
Wang, Ines e Hungerbühler (2015), quer profissional com formação de
os profissionais que atuam na área base no domínio clínico (medicina,
da saúde mental, são: psicologia, enfermagem e outros),
Psiquiatra: profissional de saúde mas que tem uma formação suple-
com formação em Medicina e espe- mentar e específica na intervenção
cialização em Psiquiatria, ramo que com base nos diferentes modelos de
se dedica ao estudo, diagnóstico, tra- intervenção psicoterapêutica. As
tamento e reabilitação das doenças e psicoterapias são formas de inter-
perturbações mentais. A Psiquiatria, venção que, de acordo com o diag-
cuja prática se estende para além de nóstico médico e psicológico, podem
100 anos, só passou a ser reconhe- ser aplicadas isoladamente ou em
cida como especialidade médica no conjunto com outros tratamentos,
início do século XX. A partir desta nomeadamente, farmacológico.
altura, as perturbações mentais pas- Terapeuta Ocupacional: é um
saram a ter uma análise dentro do técnico que, através da organização
quadro das ciências médicas. A de atividades lúdicas ou não, pro-
forma de atuação do psiquiatra dife- move a integração funcional de um
rencia-se dos restantes profissionais doente e, nesse sentido, contribui
de saúde que atuam na área das do- para o tratamento do doente. Apoi-
enças e perturbações mentais, por- ado num diagnóstico funcional, o te-
que atua no âmbito da prática mé- rapeuta ocupacional é um profissio-
dica, o que significa que elabora di- nal de saúde muito importante para
agnósticos médicos e define planos a recuperação da pessoa com pertur-
de tratamento que se estendem bação mental. Recorre a metodolo-
desde o domínio farmacológico ao gias e técnicas específicas para pro-
domínio psicossocial. mover o restabelecimento e o má-
Psicólogo: a sua atuação centra-se ximo uso das funções alteradas pela
na elaboração de diagnósticos psico- doença ou estimular as funções ain-
lógicos e aplicação de tratamentos da preservadas.
psicológicos, sendo um profissional Enfermeiro: o enfermeiro com a
indispensável numa equipa de saúde especialidade de psiquiatria é um
na área da Psiquiatria. Compete-lhe dos elementos-chave no tratamento

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

do doente com perturbações psiqui- dos trabalhadores da rede básica e


átricas, quer em regime ambulató- os problemas na articulação dos ser-
rio, quer em regime de internamen- viços médicos básicos com sua rede
to. Em regime de internamento, o de apoio, o que causa a valorização
enfermeiro especialista em psiquia- da assistência especializada na per-
tria, baseado no diagnóstico com- petuação do modelo biomédico, hos-
portamental, avalia a evolução do pitalocêntrico e medicalizante.
doente e aplica as medidas definidas Em consonância com Ama-
no plano terapêutico, quer de natu- rante (2007), é correto afirmar que a
reza farmacológica, quer de natu- estrutura e a ideologia do modelo de
reza comportamental, para além de atenção à saúde mental mudaram, e
promover a integração do doente no essas mudanças são baseadas prin-
seu novo meio ecológico - a enfer- cipalmente na reforma psiquiátrica.
maria psiquiátrica. Em regime de Essa mudança na política nacional
ambulatório, o enfermeiro especia- de saúde preconiza a desinstitucio-
lista em psiquiatria tem um papel nalização de pacientes em sofri-
determinante quer na promoção da mento psíquico, e um dos primeiros
Saúde Mental, quer na prevenção marcos brasileiros do movimento foi
das perturbações mentais. a Lei do deputado Paulo Delgado
(PT/MG) de 1989, que propôs a re-
Saúde Mental no Brasil gulamentação dos direitos da pessoa
com transtornos mentais e a extin-
Para autores como Jorge, Car- ção progressiva dos manicômios no
valho e Silva (2014), ainda existem país. No Brasil, os serviços de saúde
muitas lacunas entre o modelo idea- mental são baseados na atenção à
lizado de atenção primária em saúde saúde comunitária e regional, com o
mental do Ministério da Saúde e as objetivo de reduzir as internações e
práticas de saúde pública atuais no os cuidados na atenção terciária, e
Brasil. Portanto, na atenção básica priorizar os serviços de atenção pri-
brasileira, as medidas preconizadas mária à saúde. A desinstitucionali-
pela reforma psiquiátrica não têm zação do tratamento psiquiátrico, a
sido implementadas de forma satis- defesa dos direitos humanos das
fatória. Os principais motivos do pessoas com transtornos mentais, o
descompasso entre a teoria e a prá- combate ao estigma, a utilização de
tica da atenção à saúde mental na equipamentos extra hospitalares
rede básica são a falta de formação para a atenção à saúde mental e sua

18
SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

inclusão na atenção básica são algu- existem grandes dificuldades na for-


mas das diretrizes da política de sa- mulação de ações no campo social,
úde mental do SUS. mas mesmo sendo poucas, as que
Segundo Passos, Costa e Silva existem requerem domínio especí-
(2017), no Brasil, o atendimento ao fico dos profissionais de saúde men-
portador de transtorno mental é re- tal. O novo modelo descentralizado e
alizado principalmente na atenção comunitário substitui o modelo cen-
básica, o que tem levado a uma refle- trado na doença, na exclusão social e
xão sobre a importância desses ser- no hospital intramural, porém ele
viços na saúde pública. Existe uma exige uma adaptação dos profissio-
grande demanda de cuidados de sa- nais, que devem ser instrumentali-
úde mental, cerca de 10 a 12% da po- zados por meio de capacitação, para
pulação necessita de cuidados de sa- permitir a viabilização do novo mo-
úde mental, enquanto cerca de 3% delo assistencial. É preciso se ade-
da população necessita de cuidados quar aos parâmetros de atendi-
continuados nessa área. Trata-se de mento preconizados pela reforma
um serviço prioritário na assistência psiquiátrica, mas para isso é preciso
a esses pacientes, e ainda não se sabe capacitar os profissionais.
se está totalmente desenvolvido pa- Conforme Sutter, Pedroso e
ra o alcançar o atendimento integral Bucher-Maluschke (2015), atual-
e satisfatório dessa população. mente, uma das ferramentas utiliza-
Ao concordar com os autores das para melhorar o nível de atendi-
Saraceno, Asioli e Tognoni (2018), mento desses profissionais é o apoio
pode-se afirmar que o Programa de matricial, que inclui ajudar outros
Saúde da Família (PSF) deve ser profissionais e especialistas a entra-
usado como estratégia para a imple- rem na equipe de referência para
mentação da reforma psiquiátrica, que possam prestar assistência aos
voltadas para a mudança da modali- pacientes sem encaminhamento
dade assistencial por meio da vigi- para o especialista, o que acaba in-
lância, prevenção e promoção da sa- vertendo o sistema de encaminha-
úde. Com o apoio dos familiares, o mento tradicional. A dificuldade de
cuidado deve estar voltado para a implantação do apoio matricial na
pessoa e não para a doença, que jun- atenção básica se deve justamente à
to com esse novo modelo de atenção, falta de segurança dos profissionais
devem ajudar o usuário vulnerável a em lidar com certas necessidades
encontrar recursos saudáveis para que não conhecem. Como resultado,
evitar a hospitalização. No entanto, sentem que não estão preparadas

19
SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

para atender a demanda, o que tem eficaz e reduzir o trabalho de profis-


levado a muitos encaminhamentos sionais especializado e até de com-
para um tratamento especializado. panheiros de equipe (PASSOS,
Assim, o atendimento conjunto com COSTA e SILVA, 2017).
o especialista matricial pode ser
uma ferramenta de treinamento,
pode ser uma forma da equipe vi-
venciar técnicas de intervenção no
campo da saúde mental, para lidar
com a exclusão social, a violência, o
luto e as mais diversas perdas, o que
não devem ser encaminhadas e sim
acolhidas no momento da consulta
clínica.
É evidente que são necessários
incentivos na formação de uma
equipe para que esses profissionais
aprendam sobre o cuidado em saúde
mental e se sintam seguros sobre
essa prática, para que sem insegu-
ranças e preconceitos, tenham todas
as ferramentas necessárias para in-
serir em suas rotinas a assistência a
assistência a pessoas com transtor-
nos mentais. Além disso, acredita-se
que a partir do momento em que a
equipe é treinada para lidar com a
saúde mental e se conscientiza desse
problema, a relação entre a própria
equipe, principalmente entre a equi-
pe e outras redes de apoio, será cada
vez mais aperfeiçoada. Acredita-se
que se um trabalhador perceber a
responsabilidade e o potencial de
enfrentar tal situação, poderá resol-
ver seus problemas de forma mais

20
SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

3. Agentes Comunitários da Saúde

Fonte: Globo3

O s autores Saraceno, Asioli e To-


gnoni (2018), apontam que o
cuidado de base territorial prestado
conhecimento, envolvendo múlti-
plos e diversos campos do “estado
mental” do sujeito e da coletividade.
a indivíduos em sofrimento psíqui- O que implica em um significado
co, criou gradualmente um novo es- mais abrangente, cobrindo saúde e
paço social para a loucura, e mudou doença e suas questões ecológicas, e
os procedimentos psiquiátricos tra- também chama a atenção para o uso
dicionais. Esse tipo de cuidado é ins- e avaliação de instituições, profissi-
pirado nas ideias da Reforma Psi- onais, e envolve pesquisas sobre as
quiátrica, que inclui o conceito atual necessidades e recursos da comuni-
de saúde mental, termo que se refere dade para atender às suas necessida-
a um campo amplo e complexo do des. Hoje, a saúde mental está inti-

3 Retirado em https://g1.globo.com/

22
SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

mamente relacionada às práticas de mental e necessitam de atenção in-


prevenção, promoção e recuperação tegral e contínua. Portanto, no âm-
da saúde, para evitar minimizar ou bito territorial, as EqSF que são uma
mudar a vida das pessoas em sofri- estratégia para a implantação das di-
mento psíquico no seu contexto so- retrizes estabelecidas no Plano de
cial. É entendida como o campo de Saúde da Família (PSF) em 1994,
conhecimento e atuação técnica, en- podem ter um papel fundamental na
gajamento político e compromisso construção de um novo modelo as-
social dos atores envolvidos no âm- sistencial, pois estão inseridas no
bito das políticas públicas de saúde. contexto de permitir uma aproxima-
Em concordância com os auto- ção maior entre usuários, famílias,
res Sutter, Pedroso e Bucher-Malus- comunidades e profissionais.
chke (2015), pode-se dizer que, com De acordo com Mendonça,
base nas concepções atuais e na ne- Matta, Gondim e Giovanella (2018),
cessidade de readequação do mo- nessas equipes, destaca-se a atuação
delo assistencial em saúde mental, do Agente Comunitário de Saúde
há evidências de que esse tipo de (ACS), membro mais próximo da re-
atenção regionalizada requer uma alidade local e que está em contato
atuação intersetorial e a necessidade com os usuários, e funcionam como
de ampliar as conexões entre os dis- elo entre a comunidade e a EqSF. É
positivos da rede de atenção à saúde, um parceiro potencial para as estra-
principalmente da atenção primária, tégias de cuidado, principalmente
pois é provável que esse nível resolva no campo da saúde mental, pois está
os problemas de saúde mental na co- localizado no território, vive situa-
munidade em maior extensão. Além ções semelhantes às vivenciadas pe-
disso, na prática diária desse nível los usuários, apura casos e repassa
de atenção, demandas como sinto- informações à equipe. Atua, tam-
mas e sinais de depressão, transtor- bém, como um tradutor de orienta-
nos mentais graves e persistentes e ções técnicas, ao favorecer uma lin-
transtornos causados pelo uso no- guagem acessível à população. No
civo de álcool ou outras drogas são entanto, é compreensível que inter-
uma realidade. Dados do Ministério ferir em indivíduos em sofrimento
da Saúde com o auxílio da Equipe de psíquico seja um desafio, pois a lou-
Saúde da Família (EqSF), mostram cura faz parte de um imaginário
que em média 22 a 25% dos usuários construído, que se caracteriza por
atendidos sofrem de transtorno forte representações sociais, mitos e

23
SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

princípios negativos fortemente ins- prática da saúde mental foram con-


tituídos. tinuamente desconstruídos e redefi-
Para autores como Gorens- nidos. Sendo assim, o trabalho de
tein, Wang, Ines e Hungerbühler desacoplar conceitos existentes, es-
(2015), tal desafio sugere a impor- pecialmente na atenção primária,
tância de se conhecer as concepções junto aos ACS ainda é discreto, e
dos trabalhadores envolvidos no pouca exploração tem sido feita para
cuidado aos indivíduos em sofri- expandir o eixo norteador da saúde
mento psíquico, como também tem mental. Mesmo que exerçam práti-
suscitado a necessidade das ativida- cas de cuidado de forma mais abran-
des de apoio matricial junto às gente, o conceito de saúde mental,
EqSF, a consolidação de práticas na sua magnitude, parece ser pouco
contínuas de formação e reflexões compreendido pelas ACS, sendo por
cotidianas acerca do processo de tra- eles associado sempre ao quadro de
balho - a educação permanente, vis- adoecimento.
to que tais estratégias podem ajudar Segundo Amarante (2007), é
na desconstrução de mitos popula- muito importante falar, compreen-
res arraigados nos profissionais e a der, cuidar de sujeitos e utilizar, co-
subsidiar práticas diárias em saúde, tidianamente, o termo sofrimento
com delineamento de uma linha de psíquico ou mental, seja pelos pro-
cuidado de qualidade em saúde fissionais e pelas instituições de saú-
mental. Nessa perspectiva, compre- de ou na própria comunidade. A
ender que a atenção à saúde mental ideia de sofrimento remete a uma
só pode ser efetiva fortalecendo e es- pessoa que sofre, sua experiência de
clarecendo a articulação com a aten- vida, seu entorno e o papel social
ção primária à saúde, e o papel do que desempenha. Portanto, a utili-
ACS, que pode ser considerado um zação desse conceito e sua dissemi-
técnico de referência na região. nação na sociedade podem descons-
Em consonância com Jorge, truir mitos enraizados na cultura po-
Carvalho e Silva (2014), é correto pular, e libertar os sujeitos psicolo-
afirmar que, há muito tempo se ouve gicamente angustiados de represen-
os profissionais referirem-se ao tra- tações reducionistas do diagnóstico:
balho em saúde mental como uma saudável ou doente, normal ou anor-
prática, que dentro de um contexto mal e diferente. Um estudo realizado
histórico se reduziu à pesquisa e ao pela Organização Mundial da Saúde
tratamento de doenças. No entanto, (OMS) no Rio de Janeiro constatou
nas últimas décadas, o conceito e a que, a prevalência de transtornos

24
SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

depressivos diagnosticados na aten- Conforme Saraceno, Asioli e


ção primária chega a 29,5%, sem fa- Tognoni (2018), ainda existem difi-
lar no contato diário do ACS a de- culdades em identificar as alterações
mandas caracterizadas por ansie- genéticas e fisiológicas que levam
dade, depressão e sintomas somáti- aos transtornos mentais, pois, ao
cos. Quando os profissionais de sa- contrário das doenças clínicas, que
úde apontam que muitas vezes expe- suas causas e consequências podem
rimentam esse tipo de sofrimento ser facilmente confirmadas, as cau-
em suas ocupações, esses dados aju- sas e consequências dos transtornos
dam a comprovar que seus relatos mentais são incertos, baseados na
estão corretos. chamada etiologia não definida. Fa-
Ao concordar com os autores tores genéticos muitas vezes são es-
Passos, Costa e Silva (2017), pode-se quecidos ou não mencionados, e o
afirmar que, de acordo com a Orga- sofrimento psíquico também está
nização Mundial de Saúde, fatores relacionado à subjetividade do sujei-
sociais e econômicos, dados demo- to e aos fatores ambientais no qual
gráficos (sexo e idade), ameaças gra- está inserido. Deve-se atentar tam-
ves como conflitos e desastres, a pre- bém, para o fato de que os transtor-
sença de doenças físicas graves e o nos mentais, quando entendidos co-
ambiente familiar são fatores deter- mo hereditários, têm a aparência de
minantes do sofrimento psíquico. O serem fatais, que nada podem inter-
sofrimento mental é causado por di- ferir em sua ocorrência, nas lendas
versos excessos, como problemas, populares essa pessoa é estigmati-
preocupações, pressões cotidianas e zada e destinada à dependência do
dificuldades de todos para superar meio ambiente, sem condições de
os problemas encontrados. Eventos cumprir plenamente os papéis pro-
de vida que perturbam o estado fissionais e sociais exigidos pela co-
emocional de uma pessoa, como munidade. Portanto, percebe-se que
perder membros da família, traba- o ACS entende como determinantes
lhar ou não fazer nada, estão relaci- os macro fatores da saúde mental,
onados à ocorrência de transtornos não só intimamente relacionado ao
mentais. Os agentes comunitários setor saúde, mas também relacio-
de saúde enfatizaram que o desem- nado a fatores externos, como traba-
prego e as dificuldades financeiras lho, desempenho de papéis e redes
são determinantes do desequilíbrio de apoio social.
da saúde mental.

25
SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Os agentes comunitários de Cuidados em Saúde Mental


saúde apontam que há falta de pro-
cedimentos de treinamento, ou fra- Em concordância com os auto-
gilidades quando ocorre o treina- res Saraceno, Asioli e Tognoni
mento e, o mais importante, os mé- (2018), pode-se dizer que é funda-
todos utilizados não dialogam na mental discutir as várias concepções
maioria dos casos com a realidade de cuidado que existem nos serviços
vivenciada e para a importância e in- de saúde. Alguns dicionários lin-
teresse em realizá-las. Essas evidên- guísticos relatam que a origem da
cias se deparam com as inúmeras palavra “cuidado” é a palavra latina
mudanças ocorridas no campo das “cura”, que é usada para descrever
políticas públicas, como na Refor- os antecedentes da relação entre
mas Psiquiátrica, que exige a quali- amor e amizade, e se caracteriza pela
ficação de recursos humanos, espe- atenção, cuidado e atitude de des-
cialmente da atenção primária, di- velo para com o objeto ou a pessoa
ante do modelo de cuidado de base querida. Outros estudiosos derivam
territorial proposto (AMARANTE, o termo “cuidado” de cogitare-cogi-
2007). tatus e de suas modificações coye-
Os autores Passos, Costa e Sil- dar, coidar, cuidar, que possui o
va (2017), apontam que desde o ano mesmo significado de cura, que é
de 2002, o Ministério da Saúde de- pensar, focalizar, mostrar interesse,
senvolve o Programa Permanente de desvelo e preocupação.
Formação de Recursos Humanos
para a Reforma Psiquiátrica, que in-
centiva, apoia e financia a implanta-
ção de núcleos de formação em sa-
úde mental para a rede pública, com
alguns cursos somente para ACS.
Esses programas são desenvolvidos
por meio de convênios firmados com
instituições formadoras (principal- Fonte:
mente universidades federais), mu- https://i3.wp.com/www.mundorh.co
m.br
nicípios e estados, e contam com
inúmeros cursos de capacitação para
De acordo com Sutter, Pe-
integrar saúde da família e saúde
droso e Bucher-Maluschke (2015), o
mental em uma única rede de aten-
cuidado inclui dois significados bá-
ção aos usuários do SUS.

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

sicos que estão intimamente ligados, Em consonância com Gorens-


o primeiro é a atitude de desvelo, de tein, Wang, Ines e Hungerbühler
solicitude e de atenção para com o (2015), é correto afirmar que ao
outro, e o segundo de preocupação, longo da história, a assistência à do-
porque as pessoas que cuidam se ença mental tem registrado a impos-
sentem envolvidas e se conectam sibilidade de as famílias consegui-
emocionalmente com o outro. Sendo rem conviver, viver e cuidar do do-
assim, entende-se que a palavra cui- ente mental. Por décadas, tratar pa-
dar possui um duplo significado. cientes com doenças mentais signifi-
Cuidado, no sentido de alerta, perigo cou eliminar a vida social e familiar.
na relação com o outro, no movi- Não é fácil mudar, reconstruir a re-
mento de sair de si mesmo, ir ao en- lação familiar, a relação da socieda-
contro do outro, perder-se. Outro de com o doente mental. Existe uma
significado muda o termo cuidado concepção universalmente aceita, a
para maternidade, para o aconchego missão de cuidar de alguém, que
do colo, relacionamentos amorosos mostra a incapacidade de enfrentar
e emocionais, do acolhimento que a loucura, não podem aceitar novos
normalmente apenas ser humano desafios e seguirem por um caminho
pode dar ao outro. desconhecido.
Para Mendonça, Matta, Gon- Segundo Jorge, Carvalho e
dim e Giovanella (2018), o ato de Silva (2014), para cuidar, não é pre-
cuidar possui características dife- ciso separar o sujeito de sua família
rentes em cada sociedade e é deter- e ambiente social. O ato cuidador vai
minado por fatores sociais, culturais mais além, ele faz emergir a capaci-
e econômicos, que definem os valo- dade criadora existente em cada um,
res e as condições em que se pro- ressalta a disponibilidade em se lan-
cessa o ato cuidador. Pode-se dizer çar, em criar novas maneiras de con-
que cuidar é basicamente um ato cri- viver com o outro em suas diferen-
ativo, atencioso, que vislumbra as ças. Isso não significa que, para lidar
necessidades e a singularidade de com as crises, não necessita de ajuda
quem precisa. O cuidado é único e é especializada e acesso aos serviços
sempre dirigido a alguém, e não de saúde. Não há dúvida de que eles
existe receitas de como cuidar, e sim são um grande apoio para os famili-
a busca de possibilidades várias, ares que necessitam para cuidar.
pois no ato de cuidar avista-se o ou- Ao concordar com o autor
tro. Amarante (2007), pode-se afirmar

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

que o cuidado familiar, a busca por amplitude dos serviços ao local fí-
estratégias e alternativas de sobrevi- sico e seus profissionais, mas a todas
vência, a divisão do trabalho e o as oportunidades e lugares que favo-
cumprimento ou não das normas recem a recuperação dos pacientes.
impostas pela sociedade à família Na troca de serviços, uma das áreas
evidenciam a importância de sua privilegiadas é a comunidade, que
participação no processo de inclusão inclui famílias, associações, sindica-
social do portador de transtorno tos, igrejas e outros. Portanto, a co-
mental. Por outro lado, nos serviços munidade é uma fonte de recursos
de saúde o ato cuidador pode ser de- humanos e materiais, um lugar que
finido como um encontro interces- pode produzir sentido e promover
sor entre um trabalhador de saúde e trocas. As relações estratégicas man-
um usuário, no qual há um jogo de tidas entre o serviço e a comunidade
necessidades e direitos. Nessa rela- podem ser pautadas pela:
ção, o usuário se coloca como uma  Negação - a comunidade não
pessoa em busca de uma interven- existe;
ção que lhe permita recuperar ou ge-  Paranoia - a comunidade são
rar certo grau de autonomia em seu os inimigos que nos assediam;
próprio modo de vida, ele coloca  Sedução e busca de consenso –
a comunidade é tudo aquilo e
neste processo o que tem de mais
somente aquilo que me aceita
importante, a sua vida, para ser tra- da forma como sou e me
balhada como um objeto carente de aprova;
saúde.  Interação/integração - a co-
Conforme Passos, Costa e Sil- munidade é uma realidade
va (2017), a forma como os serviços complexa e exprime interesses
são organizados em resposta às ne- contrastantes.
cessidades dos usuários está direta-
Em concordância com o autor
mente relacionada à qualidade do
Saraceno (2018) pode-se dizer que,
serviço. Um serviço de alta quali-
como a família é parte integrante da
dade pode ser definido como o ato
comunidade, o serviço costuma usar
de cuidar de todos os pacientes que
com a família as mesmas estratégias
o encaminham e fornecer serviços
usadas com a comunidade. Dessa
de reabilitação para todos os pacien-
forma, a família pode não só se tor-
tes que podem se beneficiar dele.
nar protagonista das estratégias de
O autor Amarante (2007),
cuidado e reabilitação propostas pe-
aponta que não se deve reduzir a

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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

lo serviço, mas também protagonis-  Na formulação das políticas de


ta conflituosa dessas estratégias. Pa- saúde mental;
ra diminuir as dificuldades enfren-  Na formulação e no financia-
tadas pela família na convivência mento de programas de saúde
mental;
com o doente mental, o serviço deve
 Na prática cotidiana dos ser-
estar apto a:
viços;
 Reduzir os riscos de recaída do  No status social dos médicos.
usuário;
 Prestar informação clara e Para Sutter, Pedroso e Bucher-
precisa sobre a doença (sinais,
Maluschke (2015), essa mudança
sintomas, tratamento, medi-
cação, etc.); tem como base uma forte resistência
 Ensinar habilidades de ma- cultural, social e econômica, às
nejo e minimização dos sinto- transformações da assistência em
mas; saúde mental. A abordagem psicos-
 Possibilitar que os familiares social enfatiza o reconhecimento do
sejam capazes de exprimir papel dos usuários, famílias, comu-
suas necessidades e sentimen-
nidades e outros profissionais de sa-
tos.
úde como fonte de recursos para o
O modelo de cuidados que tratamento da doença mental e pro-
hoje opera nos serviços de saúde, se moção da saúde mental. A reabilita-
organiza em questões específicas, ção psicossocial deve ser entendida
dentro da ótica hegemônica do mo- como uma exigência moral, ou seja,
delo médico liberal, que subordina o um processo de reconstrução, pleno
âmbito do cuidado a papéis irrele- exercício dos direitos de cidadania e
vantes e complementar. Portanto, plena contratualidade nas três situa-
não há preocupação com o estilo de ções principais: habitat, rede social e
vida do paciente e de sua família. trabalho com valor social. Nesse
Existem intervenções pontuais e processo inclui a valorização das
sem contexto e que podem resolver competências de cada um, os trata-
situações específicas de crise (JOR- mentos voltados ao exercício da ci-
GE, CARVALHO e SILVA, 2014). dadania, a postura dos profissionais,
De acordo com a Saraceno, usuários, familiares e sociedade
Asioli e Tognoni (2018), passar de frente a doença mental, as políticas
uma abordagem biomédica a uma de saúde mental transformadoras
abordagem psicossocial obriga à do modelo hegemônico de assistên-
adoção de mudanças importantes: cia, a indignação frente às diretrizes

29
SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

sociais e técnicas que norteiam a ex- Segundo Gorenstein, Wang,


clusão das minorias, dos diferentes. Ines e Hungerbühler (2015), o pro-
Portanto, esta é uma atitude estraté- cesso de reabilitação está intima-
gica, uma vontade política, uma mente relacionado com a casa, sen-
forma abrangente, complexa e sutil do este um local onde os indivíduos
de cuidar de grupos vulneráveis. são acolhidos para satisfazer as suas
Em consonância com Men- necessidades materiais e emocio-
donça, Matta, Gondim e Giovanella nais. Existe uma diferença funda-
(2018), é correto afirmar que, reabi- mental entre estar e habitar um lu-
litação psicossocial não significa gar. O estar refere-se à impessoali-
substituir uma desabilitação por dade, falta de posse e poder de deci-
uma habilitação, não se trata sim- são, enquanto o habitar representa
plesmente de recuperar habilidades um alto grau de contratualidade re-
perdidas em consequência da ins- lacionado à organização material e
tauração de um processo de adoeci- simbólica do espaço e dos objetos,
mento psíquico grave. É proporcio- um lugar de afeto. Portanto, não
nar ao usuário uma oportunidade basta apenas encontrar um lar para
para que ele possa aumentar a troca o doente mental, mas um lugar de
de recursos materiais e emocionais, trocas e de bem-estar. No entanto,
e nesta troca, determinar a perspec- as trocas ocorrem não apenas dentro
tiva de negociação é decisivo. Não se das casas, mas também nas ruas,
trata de guiá-lo para um determi- mercados e cidades.
nado objetivo estabelecido a priori Ao concordar com os autores
como um marco da normalidade, Jorge, Carvalho e Silva (2014), po-
mas de um convite a exercer plena- de-se afirmar que, a rede social é o
mente suas habilidades, por pouco lugar dessas trocas, e empobreci-
ou muito. Portanto, a reabilitação mento leva ao empobrecimento da
não se reduz mais ou menos a com- rede, tanto em quantidade quanto
pensar a perda, mas se esforça para em qualidade. O empobrecimento
construir possíveis vínculos sociais. ocorre na primeira rede social dispo-
Para alguns pacientes, especial- nível, que é o núcleo familiar. De um
mente aqueles que apresentam alto modo geral, os serviços intervêm nas
risco de exclusão social e autonomia redes sociais através da família, pois
prejudicada, pequenas mudanças define o universo de forma mais cla-
podem significar grandes avanços. ra não só na perspectiva da sua defi-

30
SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

nição social, clara para os doentes,


profissionais e família, mas também
sob a perspectiva das estratégias de
participação familiar. A família é,
portanto, o lugar primeiro de qual-
quer intervenção de reabilitação.
Conforme Amarante (2007),
outro cenário importante no proces-
so de reabilitação é tratar o trabalho
como um valor social. Não é um tra-
balho que apenas diverte os usuá-
rios, mas um trabalho que gera lucro
e integra os indivíduos à sociedade.
Em uma sociedade dominada pelo
capital, pouco permeável às diferen-
ças que existem entre os seres hu-
manos, mudar a relação entre a so-
ciedade e as pessoas com transtor-
nos mentais é um dos principais de-
safios da Reforma Psiquiátrica. As
discussões sobre a reabilitação psi-
cossocial do portador de transtorno
mental precisam não só mudar a
forma de atendimento, mas também
mudar a organização e a ordem jurí-
dica e, o mais importante, na ma-
neira de perceber e conviver com a
loucura. O comportamento de diver-
sos atores sociais, como usuários, fa-
miliares, técnicos e estados, leva à
reprodução de uma determinada
forma de cuidar.

31
32
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SAÚDE MENTAL - CONCEITOS FUNDAMENTAIS

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