A Verdade É Revolucionária - Testemunhos de Psicólogos Sobre A Ditadura - CFP
A Verdade É Revolucionária - Testemunhos de Psicólogos Sobre A Ditadura - CFP
A Verdade É Revolucionária - Testemunhos de Psicólogos Sobre A Ditadura - CFP
A verdade é revolucionária:
testemunhos e memórias de psicólogas
e psicólogos sobre a ditadura
civil-militar brasileira (1964-1985)
Organização:
Conselho Federal de Psicologia - CFP
Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP
Apoio:
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo
Projeto Gráfico e Capa – Liberdade de Expressão - Alessandro Santanna
Diagramação – Liberdade de Expressão - Fabrício Martins
Revisão – Liberdade de Expressão - Ana Cristina Paixão
Nesta publicação:
Edição de textos e edição geral - Priscila D. Carvalho
Assistência Editorial - Flávia Inhaê Medeiros de Carvalho Silva e André
Martins de Almeida.
700p.
ISBN: 978-85-89208-60-4
Diretoria
Aluízio Lopes de Brito – Presidente em exercício
Humberto Cota Verona – Presidente licenciado
Monalisa Nascimento dos Santos Barros – Tesoureira
Deise Maria do Nascimento – Secretária
Marilda Castelar
Secretária Região Nordeste
Psicólogas convidadas
Angela Maria Pires Caniato
Márcia Mansur Saadallah
A verdade é revolucionária 13
trabalho, fazem dessas memórias potência de falas,
seguranças, mobilizações e vínculos.
Sumário
25 .............. Maria Julieta Salgado
Amazonas
31 .............. Rosely Muniz
Bahia
41 .............. Dora Teixeira Diamantino
53 .............. José Álvaro Fonseca Gomes
59 .............. Marcus Vinícius Oliveira
79 .............. Rachel Mendes de Carvalho Lima
Distrito Federal
87 .............. Izanilde Menezes Oliveira de Souza
Espírito Santo
91 .............. Fernando Schubert
101 ............ Paula Jenaína Costa
Minas Gerais
113 ............ Ângela Antunes
117 ............ Ângela Fernandes
123 ............ Emely Vieira Salazar
137 ............ Jesus Santiago
149 ............ Márcia de Souza Mezêncio
159 ............ Marcos Goursand de Araújo
167 ............ Marcos Vieira
183 ............ Sandra Athayde Silva
189 ............ Selma Cordeiro de Andrade
Pará
201 ............ Ana Cleide Moreira
209 ............ Jureuda Duarte Guerra
215 ............ Maria Eunice Guedes
Paraíba
227 ............ Genaro Ieno
235 ............ Maria de Nazaré Tavares Zenaide
249 ............ Vanderlei Amado
Pernambuco
263 ............ Maria de Fátima Alencar Diniz
Piauí
275 ............ Cláudia Moita
Rondônia
331 ............ Elisabete Christofoletti
Roraima
341 ............ Denise Socorro Rodrigues Figueiredo
São Paulo
349 ............ Ageu Lisboa , Iane Melotti e Regina Tricoli
375 ............ Ana Perwin Fraiman
397 ............ Angela Caniato
411 ............ Carolina Sombini
419 ............ Elzita Pimenta
435 ............ Hugo Oddone
Sumário
451 ............ Iara Bega
461 ............ Isabel Piragibe
477 ............ João Mousinho
491 ............ José Dalmo Ribeiro Ribas
509 ............ Lúcia Salvia Coelho
533 ............ Luiz Celso Manço
559 ............ Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes
591 ............ Maria Celeste Francisco
597 ............ Maria Luiza Santa Cruz
607 ............ Maria Sueli Correa
627 ............ Marilde Novelli
637 ............ Patrícia Nolasco
653 ............ Rachel Moreno
669 ............ Rosana Gaspar
675 ............ Sérgio Leite
687 ............ Therezinha Campanillo Ferraz
Prólogo
Este livro reúne testemunhos de psicólogas e de
psicólogos que, de diversas maneiras, tiveram suas vidas
atravessadas pela ditadura civil-militar imposta ao Brasil
entre 1964 e 1985.
A construção do livro
O debate sobre os efeitos do período da ditadura civil-
militar brasileira (e suas repercussões na construção da
memória nacional) ganhou força na agenda do país nos
últimos anos, culminando na criação Comissão Nacional
da Verdade (e das respectivas Comissões Regionais).
Prólogo
O Sistema Conselhos de Psicologia, por meio da Comissão
Nacional de Direitos Humanos e das Comissões Regionais
de Direitos Humanos, vinha refletindo e questionando o
papel da Psicologia nesse contexto, seja por meio dos
instrumentos psicológicos utilizados por torturadores
durante o período, seja na resistência de muitos psicólogos,
em prol da reconstrução de um Estado democrático.
A verdade é revolucionária 25
definidos - passeatas de denúncia dos atos da ditadura, especialmente
da restrição à liberdade constitucional; convocação dos estudantes
para debates no centro acadêmico; cursinho do grêmio, com ótimos
professores, alunos politizados, que, ao mesmo tempo, ensinavam
muito bem. Eles instigavam os que pretendiam fazer faculdade a
atentar para sua responsabilidade enquanto cidadãos no sentido de
lutar pela redemocratização do Brasil.
Os estudantes, os mais engajados, os melhores, sentiam
a responsabilidade de assumir uma posição política e lutar por ela.
Participei da luta, porém, assisti aos horrores que se intensificaram a
partir de 66, dois anos após eu ter iniciado o curso de Psicologia. Nesse
período, fiz, com colegas, um trabalho de alfabetização de adultos
pelo método Paulo Freire, em Peruíbe, São Paulo. Também levei filmes
que instigavam o aumento da consciência social e da participação
política para favorecer debates no sindicato de trabalhadores no bairro
paulistano de Perus.
Muitos de meus colegas universitários se inflamaram com
as ideias revolucionárias, partindo não somente para as ações de
denúncia em passeatas, mas também para a organização de grupos
de possível luta armada, a fim de tomar o poder para realizar as
reformas necessárias e construir uma real democracia, de todo o povo.
De um lado, havia estudantes em busca de realizar uma revolução e
uma transformação social, mas com pouca base da grande massa
desprivilegiada. De outro, uma ditadura brutal, violentando, torturando,
matando esses idealistas de uma sociedade mais justa. A violência do
poder estabelecido precipitava posições mais radicais por parte dos
estudantes, as quais eram alicerçadas em programas políticos de uma
esquerda importada. Na época da radicalização das perseguições -
torturas e execuções -, já em 69, aqueles que tinham condições de sair
do país salvaram suas vidas. Porém, a maioria sofreu graves traumas
em brutais situações de torturas que visavam às partes sexuais dos
corpos das mulheres com choques e, para os homens era usado o pau
de arara, que expunha seus órgãos sexuais à ameaça da castração.
26 A verdade é revolucionária
Maria Julieta Salgado
A verdade é revolucionária 27
Amazonas
A verdade é revolucionária:
testemunhos e memórias de psicólogas
e psicólogos sobre a ditadura civil-militar
brasileira (1964-1985)
Equipe Técnica do CRP-20:
• Nivya Kellen de Castro Valente, presidente da Comissão de Direitos
Humanos do CRP-20, entrevistadora
• Ludyane Neves, psicóloga-fiscal do CRP-20
• Vanessa Miranda, técnica pesquisadora do CREPOP/CRP-20
• Clóvis Castro Coelho, estagiário do CREPOP
• Cleison Fernandes de Souza, técnico administrativo do CRP-20
• Ricardo de Castro Costa, colaborador voluntário na transcrição da
entrevista.
Rosely Muniz
Entrevista concedida à Seção Amazonas (AM) do Conselho Regional de Psicologia
da 20ª Região.
A verdade é revolucionária 31
Quando viemos para Manaus, foi como chamam hoje: “roda de
batidas”, “puxando a cachorrinha”. Só fui entender quando eu completei
15 anos, porque eu ia me matricular nos colégios e me aceitavam
porque eu era assim muito, digamos, precisa. Só que me diziam que eu
não poderia fazer o exame final para passar para a outra série porque a
minha transferência não tinha vindo. Então, eu cobrava da minha mãe.
Aqui, as idas e vindas são em barcos, os motores, e toda a comunicação
na época era muito precária. Ela ia no motor, pedia para o comandante
para entregar sua carta, seu pedido, para parentes em Maués. Ela não
podia voltar para lá porque seria, digamos, uma isca do próprio marido,
e não vinha a transferência para comprovar que eu estudei. Isso criou
muito atraso na minha vida, fiz 20 anos e ela não vinha.
O certificado de curso já está velhinho, eu guardo até hoje. É do
Colégio Municipal de Maués, está tudinho nele. A transferência era outro
documento. O certificado de curso diz que eu tinha feito o primário.
Porque, na minha época, tinha o 5º ano e a admissão, que era como um
vestibular para ir para o ginásio, agora chamam de Ensino Fundamental.
Estudei em Maués, no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora e
no Colégio Estadual Santina Felizola, onde fiz o exame de admissão.
Alguma coisa estava acontecendo para a Secretaria de Educação não
mandar a transferência. Não posso dizer se era alguém, mas as pessoas
diziam que davam entrada no pedido. Tudo leva a crer que o documento
não vinha porque havia alguma coisa com meu padrasto.
Depois de morar em uma casa confortável, ter uma vida estável,
minha mãe ora morava no centro ora no bairro, ora em uma instância,
ora em uma vila, uma coisa de louco. Olha, isso mexe com a sua
cabeça. De repente, eu me perguntava “cadê meu quarto, cadê aquele
conforto?”. Nós vivíamos em um quarto com todo mundo junto. Assim
foi passando o tempo e eu ficava muito triste, perguntava se não podia
ir lá pegar a transferência.
Hoje, como psicóloga, eu sei que era uma depressão. As pessoas
me convidavam para sair e eu não ia. Ficava tristinha, ficava quase
jogada na casa da minha tia, na Avenida Getúlio Vargas. Mamãe ia com
32 A verdade é revolucionária
Rosely Muniz
A verdade é revolucionária 33
Eu sempre fui muito atenta. Um chegou a dizer: “Vou te dar um emprego,
mas a coisa é assim e assim”.
O Estado não podia empregar, a não ser se você fosse maior de
idade, mas, em se tratando das amizades do meu avô e da minha avó,
chegou o Dr. Deodato de Miranda Leão, de uma família muito conhecida
no estado. O pai dele era deputado, os dois já são falecidos. Ele era
superintendente da Secretaria de Saúde. Fui lá e ele disse: “Oh, minha
filhinha. Entra! Eu já estou ficando velho e você está muito grande. Está
estudando?”. Eu fiquei paralisada e falei: “Não”. Ele quis saber porquê
e, depois da explicação, disse: “Mas que coisa!”. Ele ficou em um
momento de silêncio, não podia falar muita coisa. Disse para eu voltar no
dia seguinte, que ele providenciaria minha carteira de trabalho. Ele me
empregou, talvez como estagiária, não sei o que ele me arranjou, porque
eu não tinha 18 anos, mas eu fui para a Secretaria de Saúde e depois fui
para vários lugares na secretaria de Saúde e terminei no Departamento
de Trânsito (Detran).Fui uma das primeiras mulheres a ir para o Detran.
Na época em que eu realmente comecei a conversar com a
mamãe, meu padastro apareceu dizendo: “Eu ainda não posso estar
por aqui, os homens continuam perseguindo todo mundo, quem está
mandando é o presidente da República, é um militar.”
Minha mãe queria levar as crianças para onde ele estava, mas
ele dizia que não, que os lugares tinham malária, mosquitos. Eu fui
começando a ter entendimento do que era essa perseguição a partir de
então. Já casada, morando no Rio de Janeiro, lendo, estudando, eu fui
entender o que era essa tal ditadura, o que fizeram com a vida da minha
mãe, o que fizeram com a vida do meu padrasto. Esse homem adoeceu
depois por toda uma pressão somatizada. Ele morreu há três anos, era
um homem triste. Morava no interior e toda vez que alguém chegava ele
se assustava, achando que era alguém que estava atrás dele para fazer
alguma maldade, mesmo sabendo que já tinha acabado.
Ficam as sequelas emocionais. Creio que isso me atrapalhou na
minha vida social. O que eu tive com isso? Problemas psicológicos
e até clínicos. Casei muito jovenzinha, não fui obrigada a casar, mas
34 A verdade é revolucionária
Rosely Muniz
a minha vida foi por outro caminho que eu não estava planejando.
Eu queria estudar, porque eu queria fazer muitas coisas. As colegas,
as professoras e as freiras, para mim, foram umas grandes mestras.
Embora eu não estivesse mais no colégio de freiras, eu estava em
outro colégio que as mestras eram muito boas também. E a minha vida
tomou outro rumo.
Meu olho lacrimava quando eu tinha algum problema, desde muito
jovem. Com 16, 17 anos, eu não podia ler porque o olho doía. Ninguém
sabia o que era e, quando cheguei ao Rio de Janeiro, descobri que era
hipertireoidismo. Não é bem comprovado, mas dizem que a disfunção,
para o hipo ou para o hiper, é de fundo emocional. E foi assim.
Descrever esse momento, falar dele, não chega nem a 40% do que
eu vi minha mãe e meus irmãozinhos passarem. Minha mãe estava toda
deslocada e eu, claro, não tinha noção do que acontecia com ela. Achei
que ela mudou tão rápido! “Arruma tudo, nós vamos para Manaus”. Eu
me lembro do meu irmão, que já morreu de leucemia, subindo a árvore
no quintal para tirar alguma coisa pendurada de passarinho e a mamãe
lá, berrando, com os nervos à flor da pele. Ele caiu de costas em cima
do toro de madeira. Ele teve uma sequela no pulmão, uma fissura.
Então, essa perseguição, tudo isso que ocorreu atrasou a minha
vida mais de 15 anos. Atrasou a conclusão de meu ginásio, do 2º grau,
que era o científico e o ingresso na faculdade, que era o meu sonho. Foi
atraso também para minha mãe, ela ficou longe do marido e ele arranjou
outra. Mamãe depois descobriu, mas fazia de conta que não estava
acontecendo nada disso. Não houve tortura física, mas houve tortura
emocional, que é o atraso da sua vida, não poder morar na sua casa,
ser tirado da sua escola. [Em Maués], eu cantava e representava, no
grêmio do colégio, era muito bom. Depois, tive de ir para outra cidade,
não pude fazer o exame final por anos.
Já no Rio de Janeiro, casada, fui fazer cursos. Tinham passado 20
anos, minha mãe usou o mesmo método de ir em um motor e ligar para
uma parente, pedir ajuda para solicitar o documento. Em uns 20 dias,
entregaram o papel. Isso já faz 18 anos. E fui fazer supletivo.
A verdade é revolucionária 35
Com isso, eu fui estudar de novo, depois de casada e com filhos.
O meu sonho: estudar. Depois de 25 anos, porque eu fui me dedicar aos
filhos. Eu tinha casado com um homem que não era pobre, minha filha
fazia balé, o menino fazia música e eu fui morar em Copacabana, mas
eu queria estudar.
Quando retornei para Manaus, em 1998, vim para ficar. Eu sou
uma pessoa muito crente em Deus. Não importa o tempo que passou.
Importa que eu fui fazer a mesma coisa do ginásio, do 2º grau e ingressei
na faculdade. E não foi fácil para mim, não foi fácil. Não foi. Eu estudava
à tarde. A dificuldade não era da minha leitura, não era da compreensão
didática, eram outras coisas que, agora, aqui, não posso dizer nem
posso falar, mas eu me formei e me sinto vitoriosa. Eu quis estudar
Psicologia, porque eu queria entender esse comportamento da mente
humana, como a mente e comportamento levam a prejudicar pessoas.
Que basta um pensamento ruim, o ego ferido, para destruir várias coisas.
Embora toda profissão tenha suas dificuldades, creia, sou feliz, sinto-
me muito honrada por ter me formado em Psicologia e ser psicóloga.
E não estou parada não, continuo fazendo as especializações. Eu quis
ser psicóloga, por todo esse passado. Medicina não ia me explicar,
Direito até podia ajudar em algumas coisas, mas eu queria entender a
mente humana.
Eu já estava casada, meu marido era um homem de situação
financeira média alta. Meu padrasto teve um atraso de vida. Até então,
ficava mais em Manaus. Quando soube que eu me casei, vinha mais
por ali, por ser marreteiro, sempre com muitos problemas, porque ele
era outra pessoa na cidade dele, teve de dar, praticamente, a casa
para quem comprou, para manter a mamãe aqui. Tudo que era dele
acabou, ele ficou como uma pessoa começando, mas uma pessoa
cheia de traumas. Eu passei a dar mercadoria para ele vender pelas
cidades, eu não cobrava nada dele, eu dava as mercadorias. No caso,
meu marido era um minerador, trabalhava com minério, estilo joias,
tinha aquelas macassitas e outras joias, de 14, 16, 18 e 24 quilates.
Eu entregava aquelas mais baixas, para ele começar uma vida. Em
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Rosely Muniz
Tefé, ele tinha uma lojinha, não sei te falar se era das mesmas coisas
que eu dei para ele. Meu marido, como tinha condições, chegou ainda
a comprar um motor de linha, para ele também viajar para cá para
lá. Ele já pagou. Ele nunca mais voltou para Maués, nem a passeio.
Quem vendeu a casa lá, vendeu do jeito que queria. Ele tinha horror
quando falavam alguma coisa de Maués. Depois disso, já adoentado,
diabético. Minha mãe está viva, está muito bem, tem uma velhice
muito boa, porque minha irmã é que toma conta, é uma moça também
casada, tem uma vida muito boa e estável, é secretária executiva da
Infraero e conseguiu estabilizar as filhas e os filhos.
A mamãe é muito emotiva, não entrava muito em detalhes, dizia
que não queria recordar, lembrar-se das tristezas de largar a vidinha
dela, as coisas dela em Maués. Ela amava a cidade dela, foi lá umas
duas vezes. Tentei muito falar e até argumentei com minha irmã, dizendo
que parece que a mamãe está se escondendo. Fiquei um pouco triste
com isso, porque, na época, ela falava muito pouco, eu queria saber
mais detalhes, se ele tinha falado dos militares, se ele tinha agredido
com palavras, porque ele era considerado uma pessoa muito valente,
mas não era muito valente, não, era uma pessoa de postura, ele era
muito novo. Na época, peixe pequeno, mas ele achava, que também
,esses políticos foram ingratos com ele, de largar, de não o acolher, não
o defender. A única coisa que ele comentava, mas não dizia quem eram
as pessoas, era: “O jeito que tem é você fugir e não tem nada para
fazer com você, lógico, foge, porque eles querem mesmo te pegar e,
se te pegarem, vão te matar”.
Ele, com medo da morte, fugiu. Nunca conseguiram pegá-lo,
mas ele era uma pessoa tímida, tanto é que ainda muito jovem, aos
seus quarenta e poucos, ele começou com essa doença, diabetes, e
ficou uma pessoa quase impotente.
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Bahia
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testemunhos e memórias de psicólogas
e psicólogos sobre a ditadura civil-militar
brasileira (1964-1985)
Equipe técnica do CRP-03:
• Carlos Vinicius Gomes Melo (Coordenador da CDH/CRP-03)
• Mirela Oliveira de Lima (Assessora Jurídica da CDH/CRP-03)
• Renan Vieira de Santana Rocha (Estagiário da CDH/CRP-03)
A verdade é revolucionária 41
se e foi aprovado no concurso público para os Correios e Telégrafos,
no Rio de Janeiro, para onde se mudou. Quando foi tomar posse
no cargo, foi impossibilitado pelos militares de fazê-lo. Havia, na
época, uma unidade chamada Assessoria Especial de Segurança e
Informação (Aesi), que fazia a triagem ideológica dos funcionários
públicos. Retiveram sua carteira de trabalho e o encaminharam-no a
um endereço na Avenida Presidente Vargas para uma entrevista com
um coronel chamado Cosensa, que deve ser um codinome. No local,
encontrou um prédio civil, sem fachada militar. Meu pai foi sabatinado
pelo coronel. Perguntou por que ele estava no Rio, qual seu endereço,
com quem se relacionava, os motivos de ter deixado Salvador e largado
o emprego para ir para o Rio, se gostava do país, se concordava com
a política do país. Um interrogatório interminável.
Meu pai respondia que não concordava, que não tinha problema
algum, que não estava indo fazer política. De fato, ele não foi para o
Rio fazer política. Embora fizesse parte de uma organização, essa não
foi uma determinação da organização. Mudou-se porque tinha vontade
de morar lá. Foi aprovado em concurso público para um cargo em que
receberia um salário superior ao que recebia na Bahia.
O coronel reteve sua carteira de trabalho e disse que ele teria
de permanecer na cidade do Rio de Janeiro e que não poderia sair
da cidade para nada. Toda semana ele deveria apresentar-se naquele
endereço. Assim, meu pai ficou por sete meses impossibilitado de
tomar posse no cargo público para o qual foi aprovado, no Rio de
Janeiro, e inviabilizado de executar qualquer tipo de trabalho, já que
teve sua carteira de trabalho retida. Semanalmente, ao comparecer
diante do coronel, respondia aos mesmos questionamentos.
Ele não tinha um centavo para nada e começou a viver de favor.
Ele tinha amigos no Rio de Janeiro, que pagavam desde o cigarro
até o pão que comia. Além disso, meus avós, na Bahia, passavam
por dificuldades financeiras e meu pai tinha de mandar dinheiro para
ajudá-los. Ele teve medo de contar sobre a real situação que vivia no
Rio, receando deixá-los preocupados e sempre inventava um motivo
42 A verdade é revolucionária
Dora Teixeira Diamantino
A verdade é revolucionária 43
e, assim, soltar as pessoas. Ele dizia que, nos Correios, era revistado
ao entrar e ao sair. Quando ia ao banheiro, um capataz entrava junto
com ele, para ver se deixava alguma mensagem. As mesas dos
funcionários eram abertas e revistadas. Meu pai conseguiu fazer uma
coligação com o funcionário dos serviços gerais, que o avisava as
datas das revistas. Ele recolhia tudo antes da revista. A família, em
Salvador, não sabia de nada.
Meu pai é baiano e minha mãe é paulista. Minha mãe, Yonne
Azevedo Teixeira Diamantino, é um pouco mais nova que meu pai e
teve participações políticas também. Ela estudou Arquitetura, a partir
de 1975, no Mackenzie, que era tido como uma escola privada e
“direitona”. Minha mãe participou do diretório acadêmico de Arquitetura,
foi integrante da tendência estudantil Liberdade e Luta – a Libelu da
organização OSI (Organização Socialista Internacionalista), que era o
único diretório de esquerda. Toda universidade era de direita. Com o
avanço do movimento estudantil e social, o diretório de Engenharia e
de outros cursos também se engajaram. Conseguiram fazer as greves
gerais de estudantes, até a eleição da União Estadual dos Estudantes
(UEE) e da União Nacional dos Estudantes (UNE), sem extravio das
urnas, sob proteção de vários estudantes de outras escolas da cidade.
Havia o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), dentro do
Mackenzie. Eles iam de soqueira para a universidade e, quando minha
mãe ou o grupo do diretório acadêmico passavam, eles socavam com
a mão da soqueira a outra mão e diziam: “Vou pegar comunista, vou
socar o seu útero!” Também arranhavam seus carros estacionados,
invadiam sistematicamente o diretório acadêmico de Arquitetura,
recolhiam e queimavam os materiais que eles faziam.
Existia uma sala com um mimeógrafo, já elétrico, equipamento
sofisticado e raro na época. O diretório pôde comprar porque recebia
receita regular e era uma escola particular. O CCC nunca atinou em
quebrar o mimeógrafo. Então, o grupo de minha mãe refazia tudo o
que era rasgado e queimado. No diretório, eles rodavam documentos
do movimento estudantil e depois ligados a Lula e ao movimento
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Dora Teixeira Diamantino
A verdade é revolucionária 45
Como ela era estudante de Arquitetura, levava consigo umas
plantas baixas que mostrou ao militar e disse que estava trabalhando,
procurando um hotel pela região e que não tinha nada com aquela
passeata. Então, ela foi solta mas já estava no camburão e havia
sido fotografada.
Havia a seguinte orientação na organização: se o militante visse
alguém ser capturado ou algo de errado, ligaria para um número
específico, para avisar, do orelhão. Isso era estratégia de segurança,
que hoje minha mãe avalia que, na verdade, era muito mais para
assegurar os dirigentes que as bases do movimento. Esses telefones
serviam também para redirecionar o local da passeata, quando os
militares chegavam primeiro ao local marcado. Tinha olheiro dos
dois lados. Office-boys espontaneamente ajudavam a divulgar as
informações entre os estudantes.
Houve uma outra passeata que saiu do Largo Paissandu e da Rua
25 de Março, em que ela foi pega por um militar a cacetadas e levada para
o camburão. Apesar de ser reincidente e já ter ficha na polícia, o que a
manteria presa, foi solta. Quando chegou em casa, menstruou e ficou vários
dias sangrando. E não era época de ela menstruar, mas o medo e a tensão
a fizeram sangrar por alguns dias. Houve, depois, a experiência da invasão
da Pontifícia Universidade Católica (PUC), que foi terrível. Os militares, com
forte aparato, invadiram a assembleia dos estudantes com bombas de
gás lacrimogêneo e de efeito moral, cassetetes e lança-chamas. Vários
estudantes foram gravemente feridos e queimados. As salas de aula foram
invadidas e quebradas e a assistência médica não foi imediata. Muitos
foram presos e outros, colocados no estacionamento cercado da PUC,
que se transformou em um perfeito campo de concentração.
Meus pais se conheceram e se casaram no Rio de Janeiro. Como
eu contei, meu pai foi morar no Rio e, depois que começou a trabalhar,
dividiu o apartamento com várias pessoas, inclusive minha tia, irmã da
minha mãe. Em uma das visitas de minha mãe à sua irmã, no Rio, meus
pais se conheceram, namoraram e se casaram logo. Deve ter sido em
1979. Eles se casaram e ficaram indecisos a respeito de morar em
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Dora Teixeira Diamantino
A verdade é revolucionária 47
com campanha política. Para mim, era um jogo, e tínhamos de ganhar
o jogo. Então, em 1989, o jogo era Lula contra Collor, e vestíamos
camisetas escritas “meu pai e minha mãe votam no PT, e os seus?”.
Usávamos button, meus pais me levavam para o PT, onde pegávamos
bandeiras, panfletos e íamos distribuir nas ruas, carregar bandeira,
que tinha haste de madeira e machucava a mão, mas eu gostava de
estender a bandeira, cheia de orgulho, e fazer campanha nas ruas.
Minha mãe, uma vez, presenteou-me com com uma passadeira, feita
por ela, com uma estrela vermelha presa por uma molinha balançando
com a sigla PT, que eu usava na campanha.
Minha mãe promovia diversas festas, feijoadas, festas dançantes,
porque o PT não tinha dinheiro como tem agora. Hoje, é uma máquina
a campanha do PT, mas antes tudo era feito artesanalmente. Eu
sempre tive muito fascínio pelas histórias da ditadura que ouvi desde
pequena dos amigos do meu pai, que foram torturados, e a própria
história dos meus pais. Eu fui construindo em mim o meu herói. Os
heróis das crianças eram She-ra e He-man, e eu também gostava
deles, mas, para mim, os militantes da ditadura também eram heróis.
Meu pai e minha mãe eram meus heróis, claro que os pais podem ser
ou não heróis, mas muitas vezes são a referência, depende do seu
relacionamento com eles. No meu caso, meus pais eram referência
para mim, e são até hoje. Tanto eles quanto seus amigos eram heróis.
Uma vez, na praia, na barraca do Luciano, que ficava próxima ao
circo Picolino e era frequentada por muitos militantes do PT, intelectuais,
artistas, jornalistas, ouvi um deles contando sobre um assalto ao
Banco do Brasil, no Canela, aqui em Salvador, durante o período da
ditadura. Perguntei: “Mas, pai, eles são assaltantes de banco?”. E
ele respondeu: “Não são assaltantes comuns. O assalto foi feito pela
causa, foi um assalto ideológico, para conseguir dinheiro para derrotar
a direita e restaurar a democracia”. No meu mundo, existiam a direita
e a esquerda. O mundo bipolar e maniqueísta, em que a esquerda era
boa e a direita era má e perversa, e tínhamos de combater a direita. Na
adolescência, li livros sobre a ditadura, e até hoje no meu quarto tem
48 A verdade é revolucionária
Dora Teixeira Diamantino
A verdade é revolucionária 49
O tema do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) foi a
eficácia e os efeitos da punição com base em Skinner, no que diz respeito
à tortura e à prisão. Pesquisei quais os efeitos e as consequências da
tortura e da prisão e a eficácia desses procedimentos. Skinner é contra
a punição. Eu queria saber de que forma a tortura funcionava e se
era eficaz. E o que pude observar é que todos os entrevistados, após
a tortura e a prisão, retornaram à militância política com muito mais
ímpeto, demonstrando que esses métodos não são eficazes. Pelo
contrário, têm efeitos deletérios. Essa pesquisa, inclusive, foi premiada
no ano de 2008, com o Prêmio Sílvia Lane, da ABEP.
Então, consegui entrevistar sujeitos com os quais tive contato
tanto pelo Grupo Tortura Nunca Mais como pela rede social dos
meus pais. Como comentei, eles tinham amigos ttorturados e
consegui entrevistá-los. Alguns me eram bem familiares, pois me
conhecem desde criança. Houve uma mulher que entrevistei, que
me chamou muito a atenção. A tortura contra a mulher era diferente
daquela a que os homens eram submetidos. Lembremos de que
quem torturava as vítimas era o exército machista, que utilizava entre
as práticas de tortura, a tortura sexual. Isso ficou muito presente no
discurso dessa mulher.
Ela ficou impossibilitada de ter filhos, de tanto choque elétrico
aplicado na vagina, além dos abusos sexuais que sofreu. Todos os
entrevistados, na hora de falar da tortura, se confundem, porque ficam
emocionalmente abalados. Assim, param, pausam, choram, pulam ou
não contam muitos detalhes. Essa mulher, embora não tenha descrito
muitos detalhes, falou coisas importantes, disse que foi abusada
sexualmente, que tomou tanto choque elétrico na vagina que ficou
estéril. Depois disso, ela adotou um filho e o maior pesar da vida dela
e a maior consequência do que sofreu, foi não poder gerar um filho.
Além das drásticas consequências físicas, muitos ficaram
psicóticos, enlouqueceram, surtaram. Alguns não aguentaram e
morreram, outros se mataram. As pessoas que entrevistei falaram
muito dos delírios, das alucinações e dos recorrentes pesadelos que
50 A verdade é revolucionária
Dora Teixeira Diamantino
A verdade é revolucionária 51
José Álvaro Fonseca Gomes
Depoimento escrito entregue ao Conselho Regional de Psicologia da 3ª Região (Bahia).
A verdade é revolucionária 53
na conquista das liberdades democráticas, ainda vivíamos em
plena ditadura.
A Guerrilha do Araguaia ocorreu entre 1972 e 1975. A chamada
queda da Lapa ocorreu em 1976, quando o Comitê Central do PCdoB
estava reunido e o Exército invadiu, matando ou prendendo todos que
estavam na reunião.
Assim, ainda no final da década de 1970 e início da década de
1980, vivíamos momentos de repressão e, por isso, eram exigidos
cuidados especiais. Nossas reuniões eram clandestinas e ocorriam em
nossas casas ou em locais discretos, para se livrar da repressão. Cada
militante tinha pseudônimo, no meu caso, era Raul.
O partido era organizado em células de base, por local de moradia,
trabalho ou estudo, e as instâncias superiores eram constituídas pelos
comitês distritais, municipais, estaduais e pelo comitê central. Para uma
pessoa ingressar no partido, era necessário ser convidada pela célula
de base, que discutia em cada uma de suas reuniões o recrutamento,
trazendo aquelas pessoas consideradas sérias e comprometidas com a
transformação da sociedade.
O período de recrutamento poderia demorar muitos meses, tendo
em vista que, para ingressar no partido, era preciso verificar se aquela
pessoa não era um inimigo cujo objetivo era se infiltrar para denunciar os
membros do partido. Por isso, nem mesmo os familiares podiam saber
da militância de cada um, a não ser que fossem militantes e atuassem
na mesma instância partidária.
Diretor do sindicato a partir de 1981 e funcionário do Bradesco,
desenvolvemos muitas lutas no local de trabalho. Participamos da
luta geral da categoria, assim como da luta geral da sociedade por
justiça social. O Bradesco era considerado um banco explorador e
opressor, a luta não era fácil. Lá, participamos ativamente dos embates.
Começamos uma mobilização para a implantação do restaurante e
também da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), cuja
eleição podíamos considerar uma fraude.
54 A verdade é revolucionária
José Álvaro Fonseca Gomes
GUILHOTINAR
Bebemos no mesmo copo
Rasgando nossas mentes, nossos corpos
Até que nos devorem e ruminem nossos restos
Devemos marchar sempre
Esperando o dia vinte, um convite
Consentir ver guilhotinados nossos corpos
Ontem eu não falava, hoje choro essas palavras mortas.
A verdade é revolucionária 55
Colocamos no jornal uma observação, informando ao colega que a cópia
da poesia foi extraviada e que não sabíamos se conferia totalmente com
a original, sugerindo que ele procurasse o sindicato.
Esse episódio me rendeu um inquérito na Polícia Federal, que, nos
anos seguintes, juntou-se a inúmeros inquéritos e processos, inclusive
um em que fui condenado a seis meses de prisão por ter denunciado
corrupção no Banco do Estado da Bahia (Baneb).
O jornal Bradejo publicava vários poemas dos colegas, retratando
a realidade e buscando a construção de uma nova sociedade. Outro
poema do Bradejo, de número 13, publicado em 13/4/83 e assinado por
Souza, diz o seguinte:
DELÍRIO
Na tortura
A carne delira
Mas a alma
Permanece intacta...
Se não posso escapar à morte,
Morrerei por um ideal
Digno e solidário.
56 A verdade é revolucionária
José Álvaro Fonseca Gomes
A verdade é revolucionária 57
Nunca nos dobramos. Sempre nos colocamos à frente da luta dos
mais necessitados.
Em 26/6/91, às 4h30 da madrugada, o telefone toca e uma voz
patológica me diz: “Estou na sua mira há muito tempo, vou meter a
metranca em você, hoje vai ser o seu último dia”. Os cuidados foram
tomados para resguardar a minha vida, mas não saí do campo de
batalha. A ditadura tinha terminado, mas a ditadura não tinha terminado.
Seguiram-se os dias, os caminhos foram percorridos cotidiana-
mente. Os resquícios do autoritarismo e da repressão continuaram la-
tentes na sociedade, envelhecidos. Mais presente, o novo buscava se
consolidar e caminhar para frente no campo de batalha com as armas
da solidariedade, da justiça social e da paz.
58 A verdade é revolucionária
Marcus Vinícius Oliveira
Entrevista concedida por Marcus Vinícius de Oliveira Silva ao Conselho Regional de
Psicologia da 3ª Região (Bahia).
A verdade é revolucionária 59
políticas foram muito ingênuas, mas, a partir daí, houve uma atitude
mais consciente na universidade.
A última citação, vejam só, foi em 1989, pós-promulgação da
Constituição de 1988, já no fim do Governo Sarney, preparação para a
eleição do Collor, primeira eleição direta. Em 1989, eu já era funcionário
da Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais, trabalhava no nível
central, na administração do sistema de saúde, que ainda era o Sistema
Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), não era nem o SUS, era
a transição para o SUS, pois a Lei do SUS é de 1990. Eu trabalhava,
portanto, no nível hierárquico, prestava consultoria ao secretário de
Saúde do Estado de Minas Gerais. Ainda naquele ano de 1989, fui
citado em um documento da Polícia Política de Minas Gerais sobre
os subversivos infiltrados no Governo do Estado de Minas Gerais. Só
para perceber como essas atividades seguiam sendo monitoradas,
mesmo após a promulgação da Constituição. Não devem ter seguido
muito mais, porque também não há mais citações, mas eu achei muito
pitoresco ter uma citação da Polícia Política, o que significa que estavam
mantidos os aparatos repressivos do sistema, os sistemas de vigilância,
de monitoramento. Eu havia passado em uma seleção pública, não sei
que infiltração é essa que você entra por seleção pública. Cito isso para
mostrar que o período de efeito do aparato militar transcendeu o período
estrito da ditadura militar.
Minha vida consciente politicamente surge exatamente em 1975,
quando fui aprovado no vestibular e fui estudar em uma universidade
privada de Minas Gerais, o Instituto Newton Paiva, que na época era
chamado de Faculdades Newton Paiva Minas Gerais, instituição muito
conservadora. Talvez eu deva registrar uma coisa útil para compreender
o clima da expansão dos cursos de Psicologia: essa época é chamada
de boom das escolas de Psicologia no Brasil.
Tenho um registro muito presente dos meus primeiro e segundo
períodos. Sendo uma faculdade particular, havia um bom relacionamento
do proprietário da escola com os órgãos de segurança da ditadura
militar. Traduzindo um pouco o clima dessa época, na minha sala de aula,
60 A verdade é revolucionária
Marcus Vinícius Oliveira
A verdade é revolucionária 61
livro “A Erva do Diabo”, do Carlos Castañeda. Era um questionamento,
antropologicamente falando, da realidade das culturas, assunto que
tinha poder de inquietação. Era o máximo de politicidade que conseguia
passar, disfarçadamente: falar que a realidade não é uma só, que se
pode questionar, existem realidades, a depender da cultura. Quer dizer,
o território era de absoluto cerceamento do discurso político, com muitas
limitações nesse sentido.
No segundo semestre de faculdade, consegui um trabalho no
Banco Agrícola de Minas Gerais (Agrimisa) e fui ser bancário, durante
dois anos e meio. Eu tinha dezoito anos. Esse banco foi importante
porque não existia muita movimentação e mobilização estudantil, mas
eu aprendi a ter um sindicato. Fui a assembleias do sindicato, e em
uma delas, da primeira campanha salarial, não sei exatamente por que,
tomei coragem, peguei o microfone e fui defender o dissídio contra o
acordo salarial que os bancos propunham. É muito curioso, pois hoje
percebo que antigamente ninguém falava, porque todo mundo morria de
medo de falar. Possivelmente, falei porque não tinha noção do que isso
significava. Em função disso, fui convidado pela Diretoria do Sindicato
a trabalhar na comissão de mobilização que se forma na assembleia.
Arlindo era o presidente do sindicato. Em resumo, entrei na comissão
de mobilização, que tinha reuniões depois do expediente, e essa foi
a primeira experiência de participação. Na Newton Paiva, não tinha
diretório acadêmico, então três semestres depois eu me desentendi com
o diretor, o mantenedor, o presidente da universidade, o dono daquele
negócio, por um esquema que até hoje eu fico tocado.
Havia um livro que sugeria que você falasse direto com o diretor
e eu falei que queria uma entrevista. Ele me concedeu a entrevista e eu
critiquei o projeto da faculdade que ele tinha, por parecer uma coisa
escolar, um colégio de segundo grau, não tinha ambiente, não tinha
clima de universidade. Ele foi polido, mas disse que os incomodados
que se retirassem, mais ou menos assim, não falou isso, mas era isso.
E eu consegui transferência para a Fundação Mineira de Educação e
Cultura (Fumec).
62 A verdade é revolucionária
Marcus Vinícius Oliveira
A verdade é revolucionária 63
Eu podia participar parcialmente daquilo, porque eu estava no
banco, trabalhava e estudava à noite. Mas, na época, encontrei outra
coisa, esse cruzamento com o campo da esquerda me possibilitou
acesso a uma organização denominada Socialista Internacionalista
(OSI), também chamada no movimento estudantil de Libelu – Liberdade
e Luta, uma tendência estudantil famosa pela sua forma aguerrida e
“principista” de fazer política.
Essa organização fez intervenções e, apesar de seu pequeno
tamanho, conseguia produzir muito barulho, do ponto de vista da
mobilização social, graças à sua política rigorosa, a suas análises,
estava em todos os lugares. Foi o momento de retomada do
movimento estudantil no Brasil, da retomada do Conjunto Residencial
da Universidade de São Paulo, a USP, em 1976. Não é um fato isolado,
de alguma forma as forças atuam ao mesmo tempo. O movimento
estudantil é o primeiro polo de enfrentamento direto da ditadura militar.
O primeiro que vai pôr a cara para bater, o movimento sindical é
pelego, com pelegos, como os que eu tive convivência no sindicato
dos bancários: nada pode, com tudo é preciso tomar cuidado, tudo é
perigoso, há muito medo.
No movimento estudantil, eu encontrei espaço mais ativo e
combativo, acho que talvez o fator mais significativo do movimento
estudantil para a sociedade, para o Brasil inteiro, foi a tentativa de
realização III Encontro Nacional dos Estudantes, que acabou sendo
realizado posteriormente, aqui na Bahia, inclusive com o apoio de
Antônio Carlos Magalhães, o ACM, quando aconteceu o congresso
de refundação da UNE. Mas, antes disso, fizemos uma tentativa, em
4 de julho de 1977, de fazer a retomada da organização estudantil
no Brasil, com um congresso de fundação que está documentado e
resultou em quinhentas pessoas presas, em Belo Horizonte. Uma das
pessoas que estava nesse movimento era a Rita Rapold, que fez um
post que li outro dia, dizendo que o ônibus da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) que estava indo para esse encontro foi preso na estrada
e obrigado a retornar, em comboio. Nós, que morávamos em Belo
64 A verdade é revolucionária
Marcus Vinícius Oliveira
A verdade é revolucionária 65
É como se aquela tentativa de fazer o encontro de estudantes
para reconstruir a UNE, em Minas Gerais, tivesse ajudado a dar
propulsão para o processo de organização política dos estudantes
de Psicologia, que marcaram um encontro nacional deles, como se
dissessem que, já que não se fazia o encontro da UNE, nós fazemos
nosso encontro setorial.
Eu não estive presente no encontro em Ribeirão Preto, em 1977,
mas estive no II Enep, em 1978. Um fato curioso e importante, que fala
da Psicologia, associado a esse Enep é que, durante o ano de 1978, o
Ministério da Educação e Cultura, aos seus moldes ditatoriais, convidou
o professor Samuel Pfromm Netto, do Rio de Janeiro, para elaborar um
novo currículo mínimo para os cursos de Psicologia. Na época, havia
um currículo mínimo, hoje são diretrizes curriculares. Estou falando
de reformulação do currículo de Psicologia em plena ditadura militar,
com repressão, cerceamento, liberdades restringidas, silenciamento
de cátedra, professores silenciosos, muito medo, muito receio do
envolvimento das pessoas com a atividade política, movimento
estudantil efetivamente só para os mais corajosos. Naquele momento, o
Ministério da Educação e Cultura propõe uma reformulação do currículo,
que gera um grande debate, porque o Samuel Pfromm Netto assumia
efetivamente que a função do psicólogo era produzir a adaptação, era
produzir ajustamento, era produzir normalizações. Não que a Psicologia
por causa disso tenha deixado de cumprir essa orientação. É uma
disciplina marcada por muitas contradições, mas era a oficialização de
um projeto autoritário e com uma concepção determinada de Psicologia.
As forças mais conservadoras e reacionárias nadavam à vontade no
laguinho da ditadura militar, além de raramente haver confrontos.
Falando em raros confrontos, tem um nome que preciso citar
como importante, a despeito das nossas divergências posteriores
do ponto de vista político, dos destinos e, epistemologicamente, do
que a Psicologia deveria ser, inclusive com interferência na definição
das diretrizes curriculares. Falo da professora Carolina Bori, que
foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
66 A verdade é revolucionária
Marcus Vinícius Oliveira
A verdade é revolucionária 67
Faço esse depoimento porque, muitas vezes as pessoas acham
que essas aquisições surgiram de alguma cabeça iluminada, de alguém
que pensou em compromisso social, ou que todos esses conceitos
surgiram dessa experiência individual, burocrática das entidades. O
movimento estudantil da Psicologia brasileira, do qual eu participei nesse
período especificamente tão produtivo de 1977, 1978 – portanto, o Enep
brasileiro – foi fundamental para, de alguma forma, forjar elementos
conceituais, porque tínhamos esses professores conosco.
Não foi uma coisa apenas dos estudantes, do movimento
estudantil. Uma comissão paritária, professores participando com
estudantes de uma discussão aberta, fértil, livre, coletiva, companheira,
sem hierarquias, foi um momento muito fecundo para disseminar o que
seria idealmente o projeto de construir uma Psicologia que fosse voltada
para as necessidades da população brasileira. A tentativa de discutir
um currículo nos levou a avançar nessa interrogação: O que é uma
Psicologia a serviço da Sociedade; a serviço do povo brasileiro?
Não poderíamos ter o compromisso social como ideologia tão
bem assentada na Psicologia se não fosse a Constituição de 1988. No
entanto, o movimento de 1978, fundacional, formulou para o movimento
estudantil uma herança de posicionamentos progressistas sobre o
que deve ser a Psicologia. Aquele momento garantiu uma espécie de
ideologia para o movimento estudantil de Psicologia acerca do que
deveria ser a Psicologia como ciência e profissão, das relações da teoria
e da prática, da crítica ao tecnicismo, que era muito bem estabelecida, à
ideia de que estamos só aprendendo técnica, mas temos de conhecer
a teoria, ser criadores de teorias. Foi um momento muito fecundo em
pleno período da ditadura militar, com toda a repressão, mas foi um
momento de redemocratização dentro da ditadura e um momento de
confrontação com a ditadura militar.
Os estudantes vêm primeiro sempre: em 1978, tivemos a primeira
greve dos metalúrgicos, que o Lula comandou e não foi tão bem-
sucedida, mas tivemos a volta disso em 1979, com a segunda greve do
ABC, que foi uma greve mais bem-sucedida e tivemos a greve derrotada
68 A verdade é revolucionária
Marcus Vinícius Oliveira
A verdade é revolucionária 69
considero importante nessa passagem é que obviamente, em 1979,
eu já não tinha o mesmo interesse pela Psicologia, porque eu tinha
descoberto algo muito maior, que era o movimento sindical, eu já tinha
experimentado os bancários reprimidos e agora estava experimentando
as aprendizagens do movimento social.
O relatório dos registros do DOPS aponta que fui sendo monitorado,
me dão conta de que algumas coisas eu achava que eram clandestinas,
mas estavam sendo monitoradas, documentadas. Impressiona que
eles capturavam apelidos pessoais que eu só usava em círculos muito
restritos, o que significa que potencialmente tinha gente infiltrada nos
círculos em que eu tinha confiança.
A colega Marília Cançado, que tinha me precedido na diretoria
do diretório acadêmico, deve ter se formado no ano de 1979. Em 1980,
a Marília Cançado trabalhou nos Correios como psicóloga. Ela militava
na mesma organização política que eu e nós tínhamos uma ação de
promover sindicatos livres em qualquer lugar. Os sindicatos eram
todos tutelados pelo Ministério do Trabalho, nós fazíamos associação
civil sem fins lucrativos, associávamos todo mundo e imprimíamos um
caráter sindical, dávamos um caráter sindical. Foi assim na Associação
Professores de Contagem, que eu fundei, e foi assim também na
Associação Livre dos Funcionários dos Correios, de que a Marília
Cançado foi ser dirigente.
Em 1980, na greve dos Correios, a Marília Cançado foi presa no
DOPS. Eu me lembro de um feito político muito relevante: eu, não sendo
ainda, estudante da Fumec, mas já estando lá como esses alunos
pouco regulares, conversei com o diretório acadêmico, conseguimos
fazer uma sensibilização e a faculdade inteira parou, fez uma greve
porque uma ex-colega estava presa por estar fazendo o que a Psicologia
devia fazer: lutar ao lado do povo brasileiro. Fez greve por uma semana
inteira em defesa de uma colega que, afinal de contas, não era mais
estudante, mas era psicóloga. Os estudantes faziam pedágios para
pagar o advogado, porque ela era uma batalhadora e não tinha dinheiro
para tal. A colega trabalhava nos Correios, era funcionária burocrática,
70 A verdade é revolucionária
Marcus Vinícius Oliveira
mas, no discurso político, nós dizíamos “uma colega psicóloga que está
presa”, o que conseguiu despertar essa solidariedade.
Eu tive um processo na Lei de Segurança Nacional, também em
1980, exatamente por incentivar, promover greve em setores proibidos.
Respondi, em Juiz de Fora, a um processo da Justiça Militar e fui absolvido.
Essa foi a hora em que retornou um pouco o jogo da repressão, eu tive
minha casa duas vezes empastelada, ou seja, eles reviraram tudo. Nessa
época, que eu tive o cuidado de dormir cada noite em uma casa, de não
ficar duas noites no mesmo lugar, foram meses bem tumultuados.
Situações parecidas aconteceram com outros companheiros de
militância da mesma organização, como o Julio Pires e a Isis Magalhães.
O Júlio Pires teve seu carro roubado, quando chegou à delegacia para
dar queixa, tinha uma senhora que estava prestando queixa de que
o carro tinha sido usado em um assalto e reconhecia que ele estava
participando no assalto, o que era, obviamente, uma armação do DOPS
contra a nossa organização.
Em 1980, outro colega, o Davi Maximiliano de Souza, que era
economista e professor como eu, foi acusado da tentativa de promover
um atentado contra o general Figueiredo no dia 21 de abril, quando
ia começar a greve dos professores mineiros. Nesse dia, o general
Figueiredo ia geralmente para Ouro Preto, transferia a capital do Brasil
para lá – uma coisa que existia na época da ditadura, de homenagear
o alferes, o patriotismo, aquela coisa. Colocaram na casa onde ele vivia
com a mulher e uma criancinha umas bananas de dinamite, junto com
umas peças de relógio velho. O Davi foi acusado por isso e foi preso em
Juiz de Fora por causa dessa farsa.
Então, as coisas não eram tão brandas, já não se espancava,
não se matava, mas a repressão ainda tinha poderes de intimidação.
O ano de 1980 foi também o ano em que os elementos da discussão
dentro da Psicologia ganharam esses conteúdos. Com os ares
da redemocratização, é possível circular o debate, a discussão. A
oportunidade de participação, de militância, apesar da época, foi
relevante para o processo formativo dos estudantes de Psicologia.
A verdade é revolucionária 71
Eu me formei, continuei professor de práticas agrícolas no ensino
público, ensino fundamental, para a quinta série, em duas escolas
em Contagem. Continuei militante, presidente da Associação dos
Professores de Contagem e vice-presidente da União dos Trabalhadores
da Educação de Minas Gerais, colaborei com a organização da
Conferência das Classes Trabalhadoras.
Em 1982, já temos uma retomada do movimento sindical, que
finalmente consegue realizar a primeira Conclat e, em 1983, temos o
congresso das classes trabalhadoras que funda a Central Única dos
Trabalhadores (CUT). Figueiredo ainda é o presidente, mas todo o
aparato repressivo está estruturado, ele continua fiscalizando, vigiando,
tomando conta, anotando, denunciando, prendendo e impedindo o
funcionamento das estruturas sindicais.
Em 1983, então, eu sou demitido e não consigo encaixe de
trabalho. Eu já vinha desde 1982 fazendo estágio em Psicologia Clínica
na cidade de Contagem, consultório sublocado de uma colega, à qual
sou muito grato, que me passava os clientes, indicava, clínica liberal, era
a única coisa que podíamos fazer. Na Psicologia, não tinha nada. Eu era
um militante superpolitizado, participava de várias coisas, mas dentro da
Psicologia não existia espaço para você fazer alguma coisa. Assim por
ser superpolitizado, quando me organizei para trabalhar, só pude fazer
Psicologia Clínica. Duas colegas me convidaram para trabalhar com
Psicologia Educacional, mas não me sentia atraído por já trabalhar como
professor, também por motivos ideológicos estava fora de cogitação e
só me restou a clínica. Então, fui ser um psicoterapeuta liberal e assim
o fiz até 1986, quando ingressei na Saúde Pública, com três anos de
experiência de viver exclusivamente de consultório, de dedicação
integral em três consultórios, um em Contagem, outro em Belo Horizonte,
outro na cidade de Santa Luzia, ganhando um pouquinho de cliente
aqui, um pouquinho ali, concentrando horários, porque ser psicólogo
clínico foi o exercício profissional possível, mesmo para um militante
de esquerda com boa experiência, naquela altura, com seis anos de
escola na esquerda.
72 A verdade é revolucionária
Marcus Vinícius Oliveira
Vou encerrar com uma reflexão que fiz quando propus ao Conselho
Federal esse projeto de resgatar as memórias da Psicologia e a ditadura
militar. Falamos muito de temas mais evidentes, podemos falar dos
psicólogos que foram torturados, podemos falar das movimentações
da resistência de psicólogos, do movimento estudantil, mas algo que
fica pouco perceptível é como a ditadura militar foi condicionante para
a configuração da Psicologia nos marcos restritos da prática liberal.
No trabalho institucional com escola ou na prática do trabalho como
psicólogo organizacional ou, como a chamávamos, na época, Psicologia
Industrial ou de consultório. Na minha geração, não havia outra opção
de trabalho como psicólogo para massa, para o grande volume, nós
tínhamos de ser todos psicólogos clínicos, isso não era uma opção, não
era uma escolha, era uma configuração.
Eu falo porque, desde 1978, estávamos formulando as ideias de
que era preciso abrir o espaço para a Psicologia Comunitária. Na minha
turma, em 1977, um professor muito querido, que também é filósofo e
colabora com o Sistema Conselhos, professor Carlos Dravin, mineiro,
intelectual, foi praticamente cerceado. Reduziram sua carga horária de
forma que ele não pudesse aceitar mais ter duas turmas e dar duas
horas de aula por semana, então ele abriu mão, constrangeram-no a
pedir demissão. Isso aconteceu porque ele era muito posicionado. Ele
saiu e, na impossibilidade de encontrar outro professor para substituí-lo
nessa disciplina, a direção da faculdade tentou negociar, oferecendo
um professor de outra matéria e, no próximo semestre, ele seria
recontratado. Isso não aconteceu, mas é interessante para ver como
havia uma mobilização capaz de fazer negociações com a faculdade.
Fizemos uma reivindicação a fim de ter Psicologia Comunitária
no nosso currículo. O professor que se apresentou para dar aula de
Psicologia Comunitária era um norte-americano, que começou a dar
aula dizendo: “Eu sou o professor de Psicologia Comunitária, eu estou
há alguns anos no Brasil, eu trabalhei no Brasil no Corpo da Paz”. O
Corpo da Paz é a fachada que inteligência norte-americana, a CIA, usou
para infiltrar no Brasil agentes “americanófilos”, com a finalidade de
A verdade é revolucionária 73
fazer propaganda pró-Estados Unidos, sobretudo no Nordeste. Iniciou-
se um debate, que o interditou, ele não teve mais como dar aulas. No
movimento estudantil, já havia clareza dessa questão do acordo MEC–
Usaid na ditadura de 1968, de como os Estados Unidos infiltraram vários
agentes de propaganda americanos nos movimentos comunitários e
nós tivemos um exemplo.
Esse exemplo fala do clima que a ditadura militar produzia na
Psicologia. Até quando nós, de maneira progressista, buscávamos uma
saída como, por exemplo, ter a disciplina de Psicologia Comunitária,
e tentavam enfiar um agente da CIA, do Corpo da Paz, como se ele
pudesse falar para nós. Essa época tem essa marca, a marca de uma
inquietação, mas de uma impossibilidade prática e a Psicologia sofreu a
consequência desse efeito da ditadura militar, desse clinicalismo; dessa
“doença da clínica”. Conheci bem esse contexto do qual resultou essa
deformação na minha profissão como um efeito direto do cerceamento
à liberdade de expressão, como censura a todos os aspectos relativos
ao social e à dimensão políticas de vida em sociedade.
A supervalorização das escolas teóricas da Psicologia talvez seja
um dos efeitos da ditadura militar que persistem até hoje na Psicologia,
na forma de ensinar Psicologia, o respeito, a atitude quase que canônica,
quase imexível, imutável de que aprender Psicologia necessariamente
passa por você aprender as teorias e os sistemas psicológicos.
No primeiro período da UFBA, o foco são três teorias e sistemas
psicológicos, como se a Psicologia fosse um somatório de behaviorismo,
Psicanálise e gestalt e como se ensinar Psicologia fosse ensinar as teorias
orientadoras das correntes psicoterápicas. Então, o que as pessoas
perdem de vista ou não alcançam, muitas vezes, é porque temos esse
predomínio na estruturação de nossos currículos, de as teorias e os
sistemas psicológicos terem ainda importância como se elas fossem
as grandes orientadoras da intervenção. O que hoje os fazeres dos
psicólogos têm a ver com as teorias e os sistemas psicológicos? Muito
pouca coisa, mas por que o ensino da Psicologia continua centrado nas
teorias e nos sistemas psicológicos?
74 A verdade é revolucionária
Marcus Vinícius Oliveira
A verdade é revolucionária 75
primeiros vinte anos de institucionalização da Psicologia sob a ditadura
militar. Esse é o tema sobre o qual como instituição, como Psicologia,
precisamos refletir. São vinte anos, os primeiros vinte anos, os mais
preciosos vinte anos, os mais prometedores vinte anos da Psicologia
brasileira ocorreram sob a ditadura militar. Em 1962, é a criação da
profissão, 1964, é o golpe militar, e vai até 1984, com a eleição do
Sarney, começa o fim da ditadura.
Vinte e cinco anos depois da Constituição percebe-se, nos
modos de ser da Psicologia, efeitos oriundos de sua origem na ditadura
militar. É como se nossos cursos de Psicologia, nossos currículos,
nossos conteúdos, nossas concepções tivessem mudado muito com
as diretrizes curriculares, mas o efeito mais permanente talvez seja na
cabeça dos professores, que vão falar de teorias psicológicas e sistemas
psicológicos, a ênfase que vão dar a isso na formação do psicólogo.
Todos vão ser clínicos porque não têm outra coisa para fazer, porque
você não pode pensar sociedade e os temas da sociedade.
Sou psicólogo, sou doutor em Psicologia e pós-doutor em
Sociologia, mas eu me defino como psicólogo. Como psicólogo social,
busco ser um ótimo clínico e como psicólogo clínico, tento compreender
todas as dimensões sociais que envolvem as produções do sofrimento
das pessoas.
Essa dicotomia entre a clínica e o social, resolvi assim: sou um
psicólogo que, como clínico, sou muito social e, como social, sou muito
clínico. Quer dizer, eu quero produzir a possibilidade da articulação
dessas coisas e, por isso me defino assim.
Sou anistiado político e recebi indenização como reconhecimento
dos prejuízos que a ditadura militar produziu na minha vida. Mas relutei
muito. Tive acesso às informações que o Estado brasileiro recolheu de
mim por mais de uma década. Pude constatar, no processo de anistia,
como a nossa vida era bisbilhotada e essa informação era utilizada para
nos prejudicar. Devo ter tido acesso em 2007. O processo de anistia
foi, para mim, uma coisa interessante. Inicialmente, fiquei muito em
76 A verdade é revolucionária
Marcus Vinícius Oliveira
A verdade é revolucionária 77
Rachel Mendes de Carvalho Lima
Depoimento escrito entregue ao Conselho Regional de Psicologia da 3ª Região, Bahia.
A verdade é revolucionária 79
As Vagas Lembranças
Em 1964, meu pai, Ênio Mendes, encontrava-se em plena
atividade laboral e o contato familiar estabelecia-se, geralmente, aos
finais de semana, pois sua chegada diária se dava à noite, quando eu
e meus irmãos já estávamos dormindo. Nos finais de semana, nossa
casa era muito movimentada por familiares, amigos, políticos. Nós,
crianças, nos concentrávamos nas brincadeiras comuns de infância
entre primos presentes e observávamos, a distância, alguma agitação
entre as conversas dos adultos. A inquietação sofrida de minha mãe, a
quem surpreendíamos em alguns momentos chorando ou expressando
temores dos quais não compreendíamos a dimensão.
No entanto, era fato real a presença constante de um carro de
polícia estacionado em nossa porta, que eu conferia da varanda todas
as manhãs e informava aos familiares que “eles estavam lá”.
Lembro, também, que o movimento de pessoas em nossa casa
foi diminuindo quase completamente, com visitas esporádicas de algum
parente ou amigo que sobrou.
Certa tarde, meu pai chegou a casa feliz e nos reuniu para dizer
que vencera o “mandado de segurança” e nos mostrou um isqueiro de
prata presenteado por um colega em comemoração pela vitória obtida.
Morávamos nos Barris, bairro residencial no centro de Salvador,
Bahia, próximo a uma delegacia da Polícia Civil, na qual meu tio Erikson
Lins, cunhado do meu pai, estava preso e passou três meses detido. Ele
havia sido destituído do cargo de prefeito no município de Esplanada,
Bahia, pelo “comando revolucionário”, e que, segundo nos contaram,
havia sido preso na investida do Exército ao município para prender meu
pai. Como não conseguiram encontrá-lo, prenderam meu tio. Passado
o tempo, meu pai contava sorrindo que havia sido informado com
antecedência do ensejo de derrocada, e se escondeu por duas noites no
cemitério municipal.
Por outro lado, meu avô materno era médico do exército com a
patente de coronel. Homem de ilibada seriedade e rigor, ficou surpreso
e indignado com as medidas de coerção estabelecidas pelo comando
militar e interveio. Informou da injustiça que estava sendo cometida
80 A verdade é revolucionária
Rachel Mendes de Carvalho Lima
A verdade é revolucionária 81
anos, impedindo-o de assumir qualquer cargo público ou empresarial,
por conta do seu estigma subversivo. Não podia votar ou manifestar-
se publicamente sobre qualquer questão coletiva. Estava impedido
de solicitar empréstimos ou qualquer crédito em bancos oficiais. Mas
era preciso viver e ganhar algum subsídio para criar quatro filhos e
garantir a sobrevivência familiar. Meu avô paterno possuía uma fazenda
em Esplanada e arrendou (espécie de aluguel de terras) ao meu pai,
pois, dos onze filhos que possuía, era o que se encontrava em situação
precária financeira e sem qualquer chance de encontrar trabalho, ou
desenvolver algum investimento laboral.
Nós, filhos, com essa alternativa providencial, ficamos sem pai
nem mãe, pois nossos pais viajavam todas as semanas para a fazenda,
retornando nos finais de semana ou de quinze em quinze dias, enquanto
estudávamos em Salvador e éramos criados pelas empregadas
domésticas de confiança da família.
Daí surgiu a identidade paterna com a terra que o acolheu
e modificou o seu perfil de homem público para homem “eremita” e
pecuarista, como consta em sua identificação pessoal. Com o falecimento
do meu avô paterno, meu pai comprou com bastante dificuldade a
fazenda arrendada aos irmãos e à sua mãe e viveu praticamente até o
final de seus dias dessa atividade agropecuária.
82 A verdade é revolucionária
Rachel Mendes de Carvalho Lima
A verdade é revolucionária 83
- Para mim, é uma honra ter sido cassado por motivo injusto.
O corpo foi velado na Assembleia, com as honras de quem sempre
honrou a casa.”
Concluídas as apresentações pessoais e referidos os fatos,
documentos e depoimentos comprobatórios, acrescento, aos colegas
conselheiros, que a vivência que tivemos, eu e meus familiares com
tal momento de exceção do país, não desestruturou nossa família,
como observado em pessoas que vivenciam grandes traumas,
situações de adversidade, privações continuadas, torturas físicas ou
perdas irreparáveis. Comparado com outros brasileiros que também
vivenciaram o mesmo momento de terror do país, acredito que a solidez
de princípios e valores do meu pai, apoiado incondicionalmente por
minha mãe, com quem viveu casado e feliz até o último dia da sua
vida, nos deu suporte para viver sob certa normalidade. Provavelmente
despertaríamos curiosidade nos colegas especialistas da clínica. No
entanto, os prejuízos e desvios de carreira ou do destino que a ditadura
militar impôs ao meu pai com a conivência do poder legislativo da época,
de alguma forma, precisa ser reparada dentro da legitimidade de direito.
Ênio Mendes, temendo deixar minha mãe em dificuldades
financeiras, fez um requerimento endereçado à Alba, em 2010,
solicitando reembolso de salários não pagos pela instituição no período
entre as cassações. O que até agora não ocorreu.
Meu entendimento é que, além dos soldos devidos, a Assembleia
Legislativa da Bahia deveria retratar-se oficialmente em relação a essa
cassação indevida, principalmente porque Ênio Mendes ficou na história
baiana como um dos homens mais sérios e dignos daquela casa e, por
conseguinte, da Bahia. A manutenção da cassação do mandato do meu
pai por “falta de decoro parlamentar” em seu registro de vida pessoal e
funcional é humilhante para nós, filhos e netos. Esta retratação precisa
ser feita e divulgada pela imprensa para que a verdade sobre esse
momento seja revelada. Portanto, solicito, em caráter de urgência, que,
a partir da comprovação dos fatos aqui descritos, o CRP-03 junto com
a Comissão da Verdade, viabilize o encaminhamento e manifeste seu
apoio para que a ação se concretize.
Distrito Federal
A verdade é revolucionária:
testemunhos e memórias de psicólogas
e psicólogos sobre a ditadura civil-militar
brasileira (1964-1985)
Equipe Técnica do CRP-01:
• Célia Maldonado Cunha - Presidente da Comissão de Direitos
Humanos
• Izanilde Menezes Oliveira de Souza, membro da Comissão
• Antonio Carlos Amâncio, membro da Comissão
• Edmar Carrusca de Oliveira, psicólogo colaborador
Izanilde Menezes Oliveira de Souza
Depoimento escrito entregue ao Conselho Regional de Psicologia da 1ª Região
(Brasília-DF).
A verdade é revolucionária 87
badernas. Para ir às aulas, pegava o ônibus na L2 Sul direto para a
UNB entre 1967 e 1968, sempre encontrava uma colega, estudante
de Direito, com ideias políticas avançadas e eu a ouvia atentamente.
Em 1968, após as invasões da UnB, soube que ela havia sido presa e
torturada e ficou com sequelas psíquicas graves. Soube nessa época
que alguns colegas do meu curso estavam sendo procurados e alguns
foram presos, como também alguns professores. Eles estão vivos e são
a memória de uma longa história.
Em 1968 cursava Psicologia na UnB durante o dia, à noite lecionava
português no CEMAB – Centro de Ensino Ave Branca – Taguatinga,
habilitada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), tendo sido aprovada no concurso da Fundação
Educacional do Distrito Federal (FEDF), hoje Secretaria de Educação.
Um dia, dando aula, o colégio foi cercado e, depois, invadido pela polícia
e pelo DOPS. Os integrantes do DOPS ameaçavam os professores e
alunos, do lado de fora do colégio, afirmando que jogariam bombas
e ficavam rodando os cassetetes, na caça a professores e alunos
considerados “subversivos”. O pânico foi geral e ficamos presos das
19h às 3h da madrugada, quando eles invadiram o colégio, pegaram
alunos e professores pelos jalecos e os atiraram no carro policial. Assisti,
em pânico, com lágrimas nos olhos os queridos colegas sendo tratados
como marginais. Nunca me esqueço daqueles rostos aflitos, repletos
de medo, os olhares de decepção e o sentimento de abandono deles.
Pensei que iriam me levar também, mas sabia da minha proteção divina.
Não é fácil para mim recordar essa fase triste da minha juventude, mas
história é sempre história através de seus fatos.
Em 1973, já casada, fui convidada e requisitada da FEDF para o
Hospital das Forças Armadas (HFA). O regime no país ainda era militar,
mas fui muito bem tratada e respeitada como psicóloga pelos militares da
época. Posso afirmar que foi a melhor época profissional da minha vida,
mas fiquei sabendo, no ano seguinte, que todos os dias o lixo de papéis
das salas em que trabalhei eram revistados. Passei a ter mais cuidado e
todo esse tempo da ditadura fui protagonista de um período que marcou
e deixou registros mnêmicos insuperáveis. Essa é minha história.
88 A verdade é revolucionária
Espírito Santo
A verdade é revolucionária:
testemunhos e memórias de psicólogas
e psicólogos sobre a ditadura civil-militar
brasileira (1964-1985)
Equipe Técnica do CRP-16:
Integrantes da Comissão de Direitos Humanos do CRP-16
envolvidos diretamente com o projeto:
• Felipe Rafael Kosloski – Conselheiro Presidente
• Vensely Monserrato Masioli Barbosa – Conselheira Suplente
• Juliana Gomes de Figueiredo – Psicóloga Convidada
Fernando Schubert
Entrevista concedida por Fernando Pinheiro Schubert ao Conselho Regional de
Psicologia da 16ª Região (Espírito Santo).
A verdade é revolucionária 91
celebrando missas ecumênicas de denúncia dessa trama estabelecida,
reunindo a comunidade para refletir sobre esse momento histórico a
partir da sua própria realidade.
Meu pai nasceu em Santa Catarina, fez Teologia no Rio Grande
do Sul, complementou os estudos em Pernambuco, com Dom Helder
Câmara e na Alemanha. Da Alemanha veio para o Espírito Santo,
sua primeira atividade pastoral. Atuou durante anos até licenciar-
se da Igreja e ir trabalhar diretamente com os lavradores, como
lavrador, na perspectiva da Pastoral da Convivência. Quando esteve
na região Norte, no movimento de resistência, conheceu minha mãe,
na época, estudante de Filosofia que participava das Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), da Igreja Católica. Um ano depois de se
conhecerem, optaram por vir para o Espírito Santo fazer esse trabalho
com os lavradores daqui do município de Santa Maria de Jetibá. Foi
nesse lugar que nasci, em uma região chamada Rio Posmozer. Eles
compraram uma terra junto com outros dois pastores e um membro
da Igreja da Alemanha, para fazer esse trabalho de base, reunir os
lavradores, trabalhar junto com eles e pensar sua organização popular
e emancipação social.
Ficamos uns três anos em uma terra em que não existia energia
elétrica, foi preciso que eles mesmos, com enxadas, abrissem as
estradas para lá viver. Desse trabalho de organização de cooperativas
e sindicatos de trabalhadores rurais, ele foi convidado a disputar as
primeiras eleições para presidente daCentral de Abastecimento do
Espírito Santo (Ceasa). Ele ganhou essa eleição com uma margem
grande de votos, apesar de todos os mecanismos políticos da
ditadura que beneficiavam seus candidatos. Esse trabalho de base,
muito próximo e vinculado aos trabalhadores, foi fundamental para
esse resultado. Quando ele assume, as resistências a sua pessoa
continuam. Na Assembleia Legislativa, políticos se manifestam na
tribuna, acusando-o de não ser lavrador, o chamando de comunista.
Ele foi investigado pela Assembléia Legislativa durante um mês, a partir
da formação de uma comissão. São muitas histórias que entremeiam
92 A verdade é revolucionária
Fernando Schubert
A verdade é revolucionária 93
Padre Gabriel, em Cariacica, outro na casa de um pomerano, em
Santa Maria de Jetibá, por exemplo. Isso nos colocou em contato com
outras realidades sociais, culturais, econômicas, com que, em geral,
a classe média não tem contato, a não ser a partir do vidro do carro,
da andança esporádica entre um estabelecimento “protegido” e outro;
diversas realidades que a TV mostra com outras conotações, da falta
ou do risco.
Acho que eles nos colocaram em contato com essas realidades
dentro de nossas atividades cotidianas.
Na 1ª série, estudei em uma escola pública do interior. Lembro-
me que eu era o único que tinha sapatos, os outros iam descalços.
Eram filhos de lavradores pobres. Parte da sala não tinha nem teto.
Metade da sala era composta pela 1ª e 2ª séries e a outra metade, pela
3ª e 4ª séries. Eram muito diferentes. Alguns nem português falavam.
Quando meu pai foi eleito pastor regional - algo semelhante ao bispo na
Igreja Católica – passamos a vivenciar outra realidade socioeconômica.
Morávamos em bairro de classe média e eu passei a estudar em escolas
de classe média alta. Foi um choque de realidade difícil de lidar.
Meus pais sempre procuraram me dar o melhor, dentro de suas
possibilidades, mas nunca quiseram esconder essas outras realidades.
Ao contrário, sempre tentaram me aproximar delas. A desigualdade
não acabou com o fim da ditadura. Muito menos com a repressão
ou as perseguições políticas. Ainda hoje, vemos forças importantes
daquele período ocupando lugares de destaque no cenário nacional.
Assim, apesar do fim da ditadura, a atuação política dos meus
pais continuou. No período, em que o crime organizado comandava
escancaradamente o Espírito Santo, essa atuação continuou a render
muitas ameaças. Em certa altura, alguns defensores de direitos
humanos sugeriram nossa inclusão no Programa de Proteção a
Testemunhas Ameaçadas de Morte. Eu lembro que nos reunimos no
Centro de Formação Martim Lutero, um centro de formação da Igreja
Luterana, com o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos
à época, Sr. Isaias Santana e a então deputada federal Iriny Lopes
94 A verdade é revolucionária
Fernando Schubert
(assim como outros que não me recordo o nome) que nos fizeram essa
proposta. Mas meu pai, sempre muito firme em suas posições, falou:
“Não vou deixar de falar ou me esconder por conta dessas ameaças”.
De certa forma, ele sempre viveu nessa linha tênue do risco.
Eu me lembro de uma oficina do Grupo Tortura Nunca Mais, do
Rio de Janeiro, na UFES, em 2004. Foi o primeiro momento em que eu
falei publicamente sobre essa militância dos meus pais e seus efeitos
na minha vida. Antes eu não falava sobre isso, era como se fosse uma
realidade paralela. Eu vivia com meus amigos da classe média e não
conversava com eles sobre isso. Fazia um curso de Psicologia elitizado,
no qual não se via pobres ou estudantes de escola pública (ainda não
havia as cotas). Parecia que não havia espaço para essas questões.
Nessa oficina, a Vera Vital Brasil e o Eduardo Passos, do Grupo Tortura
Nunca Mais, Rio de Janeiro solicitaram aos participantes o relato de uma
experiência qualquer de violação de direitos humanos que tivéssemos
presenciado, testemunhado ou vivido. Eu contei um pouco dos efeitos
dessa história na minha vida: nesse período meus pais contribuíam
na criação do Fórum Reage Espírito Santo, denunciando o crime
organizado instalado nos poderes do Estado (Judiciário, Executivo
e Legislativo), que tinha como braço armado o grupo de extermínio
Escuderia Lecoq. Eu, enquanto estudante de Psicologia da UFES,
passava um pouco ao largo do olho do furacão. Relatei, então, que um
dia ligaram lá em casa e perguntaram: “Você conhece o cemitério tal?”
Apesar de perguntar quem falava, ele simplesmente respondia com
uma nova pergunta: “Você gostaria de conhecer o cemitério tal?” Essa
foi a primeira ameaça que recebi. O curioso é que não compartilhava
isso com ninguém, nem com amigos, minha namorada ou até mesmo
meus pais. Sofria um pouco desse efeito silenciador da violência, era
algo difícil de falar. E não via espaços em que isso pudesse ser dito.
Nessa época, morávamos em um município da Grande Vitória e,
em frente à Igreja, havia um bar que tinha uma movimentação muito
esquisita. Apesar de ser um bar bem simples, era frequentado por
pessoas que andavam em carros importados e que, muitas vezes,
A verdade é revolucionária 95
reuniram-se ali a portas fechadas. Certa vez, meu pai anotou a placa
desses carros e, com alguns aliados, verificaram que suas placas
eram adulteradas.
Nessa reunião, no Centro de Formação Martim Lutero, em que
sugeriram nossa inclusão no programa de proteção, disseram-nos
que aquele bar era onde a Escuderia Lecoq se reunia para decidir
quem iria morrer e quem iria viver.
A Escuderia Lecoq era uma organização legitimada socialmente.
As pessoas andavam com seu símbolo (uma caveira com uma faca)
adesivado nos vidros dos carros. De tão embrenhado na máquina
pública, essa proposta fascista encontrava espaço e ganhava
legitimidade perante a sociedade. A Escuderia Lecoq surgiu na
época da ditadura, se não me engano, o nome foi uma homenagem
a um policial que foi assassinado. A partir desse fato, formou-se um
esquadrão da morte, no qual policiais se unem para vingá-lo ao arrepio
da lei. A partir daí, desenvolvem suas próprias leis e julgamentos,
ações de extermínio que objetivam desde a “higienização” das ruas
até a eliminação de opositores ou dissidentes políticos.
Uma noite, voltando de uma festa na UFES (andava sempre de
ônibus), um rapaz desconhecido se aproximou de mim, com a mão
embaixo da camisa (simulando portar uma arma) e, colocando a mão
(que não estava de baixo da camisa) no meu ombro, olhou-me bem
nos olhos e me perguntou: “Tudo bem com você?”. Eu, um pouco
tinhoso - como meu pai - respondi olhando bem nos olhos dele: “Tudo
bem, por quê?”. O rapaz deu um sorriso e saiu andando sem mais
nada dizer. Na hora eu quase me borrei... Sério! Quase perdi o controle
dos meus esfíncteres. Essa experiência é, então, relatada no grupão e
se torna o mote das discussões.
Falar sobre isso foi uma experiência realmente libertadora. Eu
acho que também não havia falado com meus pais porque é sempre
uma linha muito tênue saber o que é real e o que é paranoia? Sem
essa clareza, por que contar? Para deixá-los amedrontados? Ou mais
indignados? Se eles soubessem, tomariam providências na hora. De
96 A verdade é revolucionária
Fernando Schubert
Os Efeitos
O que percebo claramente, na minha formação de vida, é
que isso foi imprescindível para meu entendimento das enormes
desigualdades desse país, para saber que pobre não é marginal, não
é vagabundo, que a diversidade está colocada, que não existe um
modelo cultural, não existe um modelo de vida, que existem vários
estilos de vida diferentes. E que é necessário que a gente construa
um mundo mais justo, mais equitativo, no qual as riquezas sejam mais
bem distribuídas. As pessoas precisam intervir nessa realidade, acho
que isso é uma mensagem que ficou corporificada.
Mas não eram só flores. A relação muitas vezes ficava difícil,
endurecida. As dificuldades e os obstáculos que se elevam defronte dos
que escolhem remar contra a maré também deixa marcas subjetivas
nos militantes e seus familiares. Eu tive muitos conflitos com meus pais
por conta disso. Teve um período em que eu nem queria saber ou ouvir
falar de política, de direitos humanos, para mim bandido tinha de ser
preso e era pena de morte. Era uma forma de reagir a tudo isso, tentar
me localizar e opor-me ao que não compreendia.
Tudo isso, essa diversidade de mundo e de cultura, de lugares,
de territórios, contribuiu para minha escolha profissional. Na Psicologia,
na vida, essa experiência me ajuda a escolher perspectivas que se
colocam ao lado de projetos críticos e alternativos. Desde a Psicologia
Social à Institucional.
Fui diretor de movimentos sociais do Diretório Central dos
Estudantes da UFES. Na época, atuava em uma organização não
governamental, a Fase. Trabalhava com indígenas e quilombolas
A verdade é revolucionária 97
na luta territorial e participava das ações da Via Campesina, do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento
dos Pequenos Agricultores (MPA).
Nessa época em que me formei, a Via Campesina me ofereceu
uma bolsa de estudos de Medicina em Cuba. Entretanto, logo depois
de formado passei em um processo seletivo do Provita (Programa de
Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas de Morte) e escolhi
iniciar minha carreira profissional ali. Acho que essa escolha e minha
contratação estão fundamentalmente vinculadas à minha história.
Passei a atuar com testemunhas ameaçadas de morte e a entrar
em contato com todas essas pessoas que denunciam a corrupção
policial, do Legislativo, do Executivo, do Judiciário. Por dois anos, eu
atuei aí. Mas não estava satisfeito, era uma atuação que eu considerava
curativa. Eu atuava com as “vítimas” de uma guerra social, em um
trabalho que dificilmente atacava o que produzia essas “vítimas”.
Sentia-me mal por retirar a pessoa do seu local de moradia e, ao final,
a impunidade prevalecer. Enquanto isso, a pessoa deveria reconstruir
toda sua vida, sem poder falar sequer da sua história.
Nós praticamente exilávamos essas pessoas. A maioria dos réus
eram policiais e políticos e nós deveríamos ajudá-los a se esconder,
porque os mecanismos ordinários do Estado não conseguiam garantir
sua segurança. Enquanto isso, muitas vezes, os réus continuavam
impunes, nos mesmos locais. Os que exerciam a “cidadania” eram
retirados do local de origem e viviam escondidos: não podiam fazer
ligações sem monitoramento, escrever cartas etc. Muitos eram
militantes de movimentos sociais e a gente os tirava do seu local de
atuação, onde eles tinham ancorado suas vidas.
Eu pensava no meu pai, o que aconteceria se ele tivesse de fugir?
Eu achava isso muito perverso com essas pessoas. Aí me chamaram
para trabalhar em Vitória, no Centro de Referência em Assistência
Social (Cras). O salário era a metade do que eu recebia no Provita, mas
a vontade de intervir de forma mais efetiva nessa realidade dobrava
minhas expectativas.
98 A verdade é revolucionária
Fernando Schubert
A verdade é revolucionária 99
Paula Jenaína Costa
Depoimento escrito entregue ao Conselho Regional de Psicologia da 16ª Região
(Espírito Santo).
O Silêncio
A percepção que tenho do silêncio do meu pai ao “mundo”
externo era do medo de continuarem apontando sua vida como o eterno
perigoso. Medo de como sua família era vista. Dentro de um recorte,
seria histórico ele se formar em Pedagogia. E só conseguiu emprego
porque passou em concurso público – quem dava emprego a um
transgressor? Hoje, ele é professor universitário e encontra, pelo menos
uma vez ao ano, com seus amigos que foram presos com ele.
Fazer o certo foi importante para hoje viverem a certeza de que
fizeram o seu melhor. Que são homens de bem e que não devem se
envergonhar da sua eterna luta.
Hoje tenho um pai mais falante e sem vergonha de ter sido um
preso político.
Foi percebido na época, e, de fato, claro e falado pelo meu avô,
que estava ao lado do meu pai em qualquer momento. Sendo assim,
passa a usar camisa vermelha (penso eu como seria a tal famosa blusa
vermelha, tão lembrada por minha mãe), para mostrar sua indignação e,
ao mesmo tempo, mostrar-se “moderno como o filho foi”.
Reparação
Hoje reparar o passado é impossível na minha percepção, mas
retratar a verdade e ter a certeza de quem os apontou na época como
os “fora de uma lei” está questionando até onde eles chegaram, para
dizer a todos que eles eram e são jovens brasileiros com identidade e
liberdade para dizer “não somos perigosos, somos vitoriosos”. Isso eu
vejo em minha casa, ao analisar o discurso hoje emocionante de um
homem que diz: “Fui preso político aos 16 anos de idade para te dar
o Brasil que você tem hoje”. Ali, claro, diz ele, sendo pobre e de uma
pequena cidade do interior.
Psicólogos(as):
• Marta Elizabete de Souza
• Maria da Conceição Novaes Caldas
• Milton dos Santos Bicalho
• Anna Christina da Cunha Martins Pinheiro
Nas entrevistas:
Psicólogos(as):
• Marta Elizabete de Souza
• Milton dos Santos Bicalho
• Maria da Conceição Novaes Caldas
• Robson José da Silva Campos
• André Amorim Martins
Na relatoria:
• Luciana Franco de Assis - técnica do CREPOP
• Fernanda de Melo Jardim- Estagiária do CREPOP
• Maria Amélia de Souza- Estagiária do CREPOP
• Leiliana Sousa - Estagiária do CREPOP.
No apoio logístico:
• Wagner Viana da Silva- Assessor de Apoio à Gestão
Ângela Antunes
Entrevista concedida pela psicóloga Ângela Maria Bicalho Antunes ao Conselho
Regional de Psicologia da 4ª Região (MG).
Memórias da prisão
Mas eu saí inteira. Saí inteira! Quando eu fiquei em Linhares, no
presídio lá em Juiz de Fora, eu achava que eu não ia sair mais nunca.
No Presídio Feminino Estevão Pinto, em Belo Horizonte, foram
cerca de quatro meses. Fiquei na galeria das presas perigosas e as
outras ficavam em dormitórios, no pátio. Elas ficavam embaixo e em cima
havia uma galeria de celas onde ficam as presas perigosas. Eu não via
ninguém, não ouvia nada, lá em cima tinha uma janelinha quadrada de
ferro lá no alto aquela porta de ferro, um corredor. Quando a carcereira
vinha, a gente ouvia aquele barulho, vinha abrindo porta, corrente,
chegava, abria aquele negócio, era o prato de comida, e tornava a fechar.
Lembro-me que a minha irmã conseguiu mandar uma dúzia de
ovos pra mim, embrulhada no jornal. Eu decorei as folhas de jornal
(risos). Era uma folha de jornal sobre o Jóquei no Rio, eu decorei o nome
de todos os cavalos, o jóquei de cada cavalo, tudo eu sabia. Porque era
que é besteira, você briga por causa de bobagem e têm outras coisas
tão pequenas que têm valor.
Foi um divisor de águas na minha vida. A minha vida se resume
em antes e depois da cadeia. Hoje, eu computo como positivo, pois me
abriu os olhos, o conhecimento que eu fiz, a minha compreensão da
vida. Não sei se seria a mesma se eu não tivesse tido esse envolvimento,
se eu não tivesse enfrentado, não tivesse passado pelo que eu passei.
É por isso que eu repito: que não aconteça com ninguém, é terrível
demais. A tortura é uma coisa desumana. Mas, quem passar pela
cadeia, pela situação de denúncia, que faça proveito. Que saiba viver
bem esse tempo.
Eu ficava pensando “será que eu vou sair daqui algum dia?”. E eu
pensava assim: “Se eu estou aqui, tenho de viver bem aqui e viver bem
com as pessoas aqui, não vou ficar quieta esperando o dia que eu sair.
Eu tenho que estar inteira, estar com a minha cabeça boa, fazer o que
eu posso aqui dentro, porque eu não sei quando é que eu vou sair”.
Fiz uma greve de fome lá, fiquei com 40 quilos, minha roupa toda caía.
O bispo foi lá, disse que eu não podia fazer isso. Eu falei assim: “Se a
gente é vivo e não vale nada, quem sabe morto vale alguma coisa?”.
A carcereira me levou um copo de leite e queria que eu tomasse, sem
ninguém ver. Mas eu ia ver! Eu disse: “Quem não quer sou eu, eu estou
me vendo beber, eu sou contra isso, estou em greve de fome. Porque
nós partimos do princípio que toda atitude nossa é educativa, todo
mundo deve ter, a gente cria uma postura assim firme”.
Ganhamos uma bola, naquela bola a gente mandava mensagens.
Eu conseguia dar um saque, que ele atravessava e ia parar lá no pátio
dos meninos. Ah... a bola caiu aí! A bola ia cheia de mensagens.
Inventávamos de tudo para fazer.
Após a libertação
Após uns dois anos, eu saí do Presídio de Linhares, fui para casa em
BH, e logo a Justiça entrou com recurso. Então, eu tinha que ficar sempre
não sabia para onde é que eu estava indo e o que era. Lá no Presídio
em Juiz de Fora, vai para uma unidade daquelas do exército, porque
eu nunca vi tanta Polícia do Exército como ali. Eu fui e aí fiquei sabendo
dessa unidade e que eu estava na lista dos presos políticos que eles
pediram para soltar em troca de um embaixador.
Os policiais diziam: “Os seus amigos fizeram isso, fizeram aquilo,
não sei o que”. Eu não quero sair para isso. E o tempo inteiro, eles: “É,
você quer ir?”.
“Se não sei para onde, eu não quero ir, eu não quero sair da minha
pátria, eu quero ficar é aqui”. Fiquei uns dez dias lá, sabe? Eu estava
com o braço engessado. Um tal de tanto tirar impressão digital das
duas mãos, para mandar para todo estado, ficava quase dormindo em
pé. Tirando impressão digital, em uma cela lá sozinha, com um homem
com metralhadora na porta? Igual a essas portas de açougue assim,
sem privacidade nenhuma. “Eles vão trazer suas coisas, porque você
vai não sei para onde.”
Eu disse: “Ai meu Deus do céu! Será que minha família sabe
disso?”. Fiquei sem saber o que ia acontecer. Daí dez dias: “A senhora
não quer ir não?”. Eu disse: “Eu não”. Não queria ir mesmo. Então vieram
me chamar, tiraram as algemas, entraram em uma sala, em um gabinete,
com tapete. “A senhora senta aí”. Fotógrafo. “Ai meu Deus! O que será
isso? Será que é a minha despedida? Que eu já estou indo embora?”.
Disseram: “A senhora assina isso aí”. Colocaram um papel, eu li,
quando eu li o papel, disse assim: “Eu não vou assinar isso, não!”. No
papel, eu estava declarando que era contra aquilo, que eu era a favor
da ditadura e que eu estava arrependida, um negócio horroroso. Eu
falei: “Mas eu não assino isso não!”. “A senhora não falou que quer ir?”.
“Falei que não quero e continuo não querendo, mas eu vou. Uai, se
uma turma sacrificou por isso, e eu, eu vou sim! Eu estou falando que
não quero, não é meu desejo, eu não quero sair da minha pátria! Mas
se é para ir, eu vou”. Então tornaram a botar a algema e me levaram
para dentro. Aí que eu vi que volta e meia, falavam que aparecia na
televisão, alguém que arrependeu. Disse: “Imagina! Eu vou morrer de
A luta política
A luta política não cessa nunca, a luta política não acaba, na minha
casa, no meu trabalho, em todo lugar. Seja na defesa do meio ambiente
– agora pouco vi um moço jogando papel na rua e falei: “Ô meu filho,
você está jogando papel na rua?”. Eu tenho que falar, é dever meu, é
falta de educação, assim como avançar o sinal vermelho. São atitudes
políticas que temos de ter, eu sou assim.
Pergunto-me: será que é isso mesmo? Eu acho que a gente está
fazendo trabalhinho de formiga. Tem que estimular as pessoas, não é só
em termos da Comissão da Verdade, é da vida.
Atualmente, sou professora convidada da UFMG. A Faculdade de
Medicina tem núcleo, que se chama Núcleo de Apoio ao Estudante de
Medicina. Eu sempre atendi aluno lá, criamos uma tutoria. É um espaço
livre, para o aluno manifestar, exercitar os interesses da turma.
Os estudantes não sabem o que é identidade, não sabem quem
são eles. Todo mundo quer ficar rico, ganhar dinheiro e comprar carro.
Converso muito com os meninos. Eles não sabem o que desejam de
verdade. Eles têm de se dar bem na vida, é um consumismo desenfreado
que forma o povo, desse capitalismo horroroso. Fazem medicina,
20 dias e não chegou nenhuma carta dele como era de rotina. Logo, eu
acionei minha família que, com coragem, procurou-o nos quartéis.
À medida que ele foi se vinculando ao movimento de esquerda,
ele foi meio que abandonando a atividade religiosa e assumindo pouco a
pouco a atividade política, mas ele não tinha deixado de ser padre. Para
o Vaticano, legalmente falando, juridicamente falando, ele continuava
padre. Mas nesse momento ele começou a ter uma vida de leigo!
Pouco a pouco a atividade política foi assumindo uma importância
mais significativa. Oficialmente ele era padre, mas, no cotidiano, já não era.
Além do que, pela maneira como ele concebe o cristianismo,
o evangelho, mesmo não sendo mais institucionalmente padre,
subjetivamente falando, eu acho que ele continua padre. Tem uma
presença muito forte, vamos dizer assim, do evangelho, das ideias do
cristianismo em seus pensamentos, muito forte. Tanto é que ele é muito
amigo do Leonardo Boff, do Frei Beto.
Bom, o que aconteceu é que ele foi preso e ficou inteiramente sumido,
não sabíamos onde ele estava. Eu comuniquei minha família e minha mãe
tentou interceder junto ao irmão dela, que era um oficial do exército, no
sentido de tentar, de alguma maneira, resolver a situação, localizá-lo.
Como esse meu tio se recusou a ajudar, nós começamos a mobilizar toda
a família. Eu tinha uma irmã que faleceu junto com o marido. O marido dela
era parente do Aureliano Chaves, uma família influente do Sul de Minas.
Dom Paulo Evaristo Arns, a Arquidiocese e o Vaticano. Tentamos, naquele
momento, certa interferência no nível político para localizá-lo.
Morreram alguns presos políticos – o Vladimir Herzog, Manoel Fiel
Filho e um estudante de Geologia da USP, Alexandre Vannuchi Leme –
quando o Tilden estava no DOI-CODI. Eles ouviram gritos do Alexandre
por dois dias e viram que em uma das celas havia sangue, ele foi muito
torturado, porque foi preso no processo do PCdoB. Isso deixou a família
muito preocupada. Três assassinatos famosos, o que levou o general
Ernesto Geisel a intervir em São Paulo.
O Tilden tem uma filha que se chama Alessandra em homenagem
ao Alexandre, ela ajuda a manter sua lembrança.
não recuei. Realmente foi uma aposta de vida – eu posso dizer hoje com
muita tranquilidade – da qual eu não me arrependo. Passamos pelas
situações, eu penso, comuns a todos os casais. É uma aposta que
se faz na vida, não é fácil mesmo construir uma vida em comum com
qualquer pessoa. Ele estava, nesse momento, numa situação fragilizada
– claro que essas questões eram muito presentes, questões relativas à
prisão, à perseguição – e isso mesmo depois de um tempo muito longo,
podemos pensar que não cura, não cicatriza.
Poderia considerar um outro lado profissional também, mas que
não foi o caso. Eu não atuei profissionalmente nesse caso, por suposto.
Eu ainda era estudante, e estava envolvida pelos laços afetivos.
Mas é claro que ele recorreu a tratamento psicológico em vários
momentos. Esse recurso foi usado para dar conta da dificuldade que era
encarar a vida. Nós não estávamos em um momento de normalidade. Era
a transição, os direitos não eram reconhecidos, não estavam reparados.
A normalidade de um Estado de Direito não tinha sido retomada. Para
retomar a história da anistia, ele só tem o status de anistiado, algo que
se tornou possível depois da Comissão da Anistia, muito recentemente.
Acho que há dois ou três anos é que ele se submeteu ao processo
da Comissão e houve o reconhecimento do Estado das violações que
aconteceram e da condição de anistiado.
Houve consequências na vida civil, na circulação. Ele tinha
realmente uma ficha, uma restrição legal, mas esse registro policial
trazia uma contradição. Em alguns meios, havia um reconhecimento:
a condição de ex-preso político trazia um reconhecimento positivo. Em
outros campos, era uma reiteração da perseguição.
Havia ainda essa violência que a pessoa internaliza. Internaliza em
que sentido? Quando eu digo: “Ah, é muito recente esse reconhecimento
oficial”, não se trata somente dele. Convivemos com outras pessoas
que também foram perseguidas e que não apresentaram a demanda
de reconhecimento da condição de anistiado. As pessoas tinham, e
têm ainda, dificuldade de se apresentar, porque de alguma forma se
sentem culpadas por terem sido perseguidas ou por terem sobrevivido.
Essa culpa é mesmo um dos efeitos dessa quebra psicológica que a
1 Este sistema era muito parecido com os que, mais tarde, foram chamados de ecovilas ou comunidades
autossustentáveis, sendo que a primeira e mais famosa, a de Findhorn, na Escócia, surgiu em 1985.
2 O carnaval brasileiro como fenômeno comportamental de comunicação. Tese para concurso de professor
adjunto, Universidade Federal de Santa Catarina, 1980.
3 - As eleições de 1990: uma abordagem psicossocial. Revista Caminhos, 2:37-41, 1990.
- Comportamento Eleitoral em Belo Horizonte, V Seminário de Pesquisa do Departamento de Psicologia da
UFMG, Belo Horizonte, 1988.
- Comportamento Político de Eleitores da Região da Grande Belo Horizonte nas eleições de 1988, III Simpósio
da ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia, Águas de São Pedro, São
Paulo, 1990.
- Avaliação da Campanha Eleitoral de 1990, VI Encontro Mineiro de Psicologia Social, Belo Horizonte, 1990.
- Cidadania e Comportamento Político-eleitoral, VI Encontro Nacional de Psicologia Social, Rio de
Janeiro, 1991.
- Atitudes, crenças e valores políticos, V Simpósio da ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Psicologia, Caxambu - MG, 1994.
4 O escândalo do Mensalão até hoje se arrasta no STF, sem que os condenados tenham de fato cumprido suas
penas e o seu principal responsável, Lula, apesar das denúncias, ainda continua imune e impune.
5 Tenho também dois outros livros publicados, Métodos, técnicas e recursos em grupoterapia e dinâmica de
grupo (Belo Horizonte: Ed. Comunicação, 2005) e Os sete pilares da qualidade de vida, (Belo Horizonte: Ed.
Leitura, 2006, 2a. ed), este em coautoria com Ramon Dias Moreira.
libertação dos colegas, pois o pessoal que era do DCE ficou preso mais
dias. Acho que eles foram soltos no meio da semana.
Isso foi 1977, um momento em que os movimentos sociais já
estavam fortes na luta contra a ditadura e o movimento estudantil nem
era mais o principal foco, pois o movimento operário começava a ter
muita força. Boa parte dos militantes do movimento estudantil já tinha
começando a se formar, preparar sua integração como profissional
e estava trabalhando mais na luta educacional. Vivemos exatamente
essa mudança. Vivemos também as primeiras manifestações depois da
repressão pesada de 68, 69. Então, foi esse grupo, essa geração, esse
movimento estudantil que tentou fazer, de novo, passeatas, atos públicos.
Eu me lembro de um ato público que foi feito também na Faculdade
de Medicina, foi enorme, levou muita gente. Foi um momento em que o
movimento estudantil conseguiu recuperar as manifestações públicas,
mas nas primeiras houve repressão. Eu me lembro de uma vez ter levado
um golpe de cassetete. Na hora, o que senti foi uma raiva enorme e
eu quis parar para tentar reagir, tentar conversar, mas um colega me
puxou e disse: “Vamos embora! Para com isso!”. Acabamos correndo,
eu fiquei muito indignado, porque eu achei um absurdo ter que correr
para não apanhar. Tive muita raiva disso e a dor do cassetete foi grande,
mas a raiva foi maior. O que mais marcou, no momento, foi a raiva. Eu
achava que tinha de reagir, mostrar para aquele soldado que aquilo era
injusto. A propósito, isso também foi uma estratégia que usamos nas
manifestações, tentar mostrar para as pessoas, para o povo da rua e
até para os soldados que a nossa luta era por eles e era deles também.
E depois vivemos as Diretas Já. Foi o delírio para nós, porque
pudemos fazer passeata tendo a proteção da polícia. Andamos pela
Avenida Afonso Pena, de peito cheio, como é que eu vou dizer?
Cobramos tudo o que tínhamos direito, nos manifestamos como se
tivéssemos recuperando o que não se pôde fazer antes, porque foi
o momento em que pudemos nos manifestar sem ter repressão e,
contrariamente, ter a polícia preocupada em garantir a segurança da
passeata e do movimento. Então, eu vivi esse período. Tentando contar
em São João del-Rei, decidi que era lá que eu iria ficar. Logo comecei
a trabalhar na Federal. Isso já era 1989. E também teve a questão da
qualidade de vida, pois Belo Horizonte, na época, estava se tornando
uma cidade muito grande para o meu gosto e o trânsito insuportável. Eu
simplesmente achei que São João del-Rei tem uma qualidade de vida
muito melhor. Por isso,eu optei por ficar em São João del-Rei. Claro que
eu senti muita falta no início, porque São João era uma universidade muito
pequena na época e a PUC era uma grande universidade em todas as
áreas. Eu senti esse baque no início, mas, aos poucos, a universidade
também foi crescendo e eu fui criando novos espaços. Fui fazer o
doutorado e hoje eu trabalho lá, em uma grande universidade. São João
del-Rei é uma grande universidade e o curso de Psicologia é um curso
reconhecido hoje. Fiz doutorado em São Paulo e fui orientando da Silvia
Lane. Como eu te falei, foi uma formação muito particular. Eu convivi
muitos anos com a Silvia, porque eu fui sócio-fundador da Associação
Brasileira de Psicologia Social, a Abrapso. Ela fez um evento no Rio
e teve uma coincidência muito legal, porque a Abrapso foi fundada
em 1980, quando o Paulo Freire tinha voltado do exílio. Foi a primeira
apresentação do Paulo Freire depois do exílio, no mesmo período em
que a gente estava fundando a Abrapso. Teve também a publicação do
livro Psicoterapia do Oprimido, do Alfredo Mofatt, no Brasil, publicado
pela Editora Cortez. Antes, nós trabalhávamos com uma publicação da
Editora Paidós que era uma versão em espanhol.
Nós fomos tietes desse povo todo, e nos trabalhávamos com
esse pessoal. Logo que comecei a lecionar, adotei o livro da Silvia
Lane e comecei a trabalhar com ela. Para nós, a possibilidade de ter,
finalmente, uma Psicologia Social com autores brasileiros que estavam
produzindo contemporaneamente era muito gratificante. Quando eu fiz o
curso, não tínhamos livros, trabalhávamos com textos de vários autores,
porque não havia um bom manual de Psicologia Social, pelo menos não
para o nosso ponto de vista. Havia manuais americanos, mas esses
não queríamos. Precisávamos de autores que ajudassem a criar essa
Psicologia Social que entendíamos ser adequada. Tanto que, em um
foi a parte mais importante para mim. Essa recuperação das emoções,
essa recuperação do sentimento, da capacidade de amar e, inclusive
ele veio a contrair núpcias, posteriormente. É muito sério esse trabalho
com a memória traumática, porque enquanto você está no processo
de resgate e cicatrização dos traumas, o indivíduo pode passar ao
ato de agressão; e se não houver uma empatia do profissional, uma
aliança terapêutica muito estável, o terapeuta pode ser confundido
com o agressor no momento em que ele revive algo traumático. Há
certo risco trabalhar com pessoas que sofreram agressão, o que me
levou a alicerçar nosso trabalho com muito cuidado, propondo-lhe
que, a cada sessão, ele iria até onde se permitisse.
A minha presença ali era só mesmo como uma testemunha
daquilo que estava acontecendo com ele, daquele resgate. “Em vez
de você ficar pensando lá na sua casa em tudo que lhe aconteceu,
vem pensar aqui na terapia”, dizia-lhe. “O que você não quiser falar,
você silencia”, eu reforçava. Mas, ele podia expressar-se com lápis de
cera, com jornais, ou até mesmo com papéis quilométricos no qual ele
conseguia se extravasar, uma verdadeira catarse emocional, através
da expressão artística, da expressão gráfica, com muitos desenhos
agressivos, com muita força, com muito vigor.
Às vezes, ele se exauria ao final, prostrava-se depois de tanto
riscar, rasgar jornais e colocar toda aquela carga de agressividade
para fora. Às vezes, eu passava momentos muito difíceis com ele,
diante daquela fúria, mas lhe mostrava que eu estaria ali com ele. E,
assim, foram revividas muitas emoções, até que essas emoções foram
ficando mais opacas, menos comoventes, na medida em que elas
foram sendo trabalhadas e reintegradas. Ele teve a restauração de
si mesmo, de seu self, de seu ‘eu interior’, da sua estrutura psíquica,
adquirindo uma coerência interna que antes ele não tinha.
Ele chegou a ter muitos problemas com manias absurdas, com
delírios de querer atuar, matar alguém do poder para “entrar para a
história”, fenômeno comum chamado reatuação do trauma. Eu lhe
mostrava que ele já era parte da história, que não precisava “entrar
para a história” por atos de violência, mas por ter sido violentado.
Integrantes:
• Ana Cleide Guedes Moreira
• Luis Romano da Mota Araujo Neto
• Adriana Elisa de Alencar Macedo
• Danieli de Sousa Lameira
Colaboradores:
• Flávia Cristina Silveira Lemos
• Paulo Fonteles Filho
Ana Cleide Moreira1
Trabalho apresentado por Ana Cleide Guedes Moreira no seminário de abertura dos
trabalhos da Comissão de Direitos Humanos CRP-010, Grupo de Trabalho Direito à
Memória e à Verdade, 21 de novembro de 2012, CRP-10, Belém, Pará.
1
UMA VERDADE PARA A ESPERA
Uma verdade para a espera foi a frase final de um sonho triste.
Aquela que ficou em minha memória ao acordar. O que ela significa?
Convido vocês a encontrar comigo, a resposta para esta enigmática
frase que veio de minha memória inconsciente.
Trata-se de uma frase que contém a palavra que nos traz aqui:
A VERDADE. E digo-lhes que só minha memória pode falar algo sobre
ela enquanto esperamos, nós também, encontrar algum sentido mais
claro para ela.
Estamos aqui para conversar sobre a memória e a verdade, por
isso escolhi – ou fui escolhida por algo em mim – enunciar “uma verdade
para a espera”. O que eu desejo deste trabalho tem a ver com isso:
eu espero que hoje nós possamos entender sobre a necessidade de
recuperar em nossas memórias, verdades que esperam para ser ditas.
Elas esperam longamente, há décadas, pois, desde 1988, temos
uma Constituição permitindo que qualquer cidadão manifeste-se sobre
seu país, mas durante a maior parte de nossa história brasileira são curtos
esses períodos em que a verdade pode ser dita. E agora, que temos este
momento, não vamos perdê-lo! Uma antiga canção de protesto de minha
juventude fazia-nos cantar: “Quem sabe faz a hora não espera acontecer”.
O que psicólogos têm a ver com isso? Talvez seja preciso de
pronto considerar a questão que nos será colocada, mais dia, menos
dia. Pois eu lhes digo que somos especialistas em memória, eis a
primeira razão: ciência é conhecimento público, portanto, estamos
diante de um dever da profissão, de sermos guardiões da memória.
1 Mestre e doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP);
professora do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Psicologia; pesquisadora do Hospital Universitário
João de Barros Barreto; diretora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade
Federal do Pará; pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental;
pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Relações de Gênero;
chercheur associé à l’ Université Paris 7 Denis-Diderot; membro da Comissão de Direitos Humanos CRP-010,
Grupo de Trabalho Direito à Memória e à Verdade.
estudantes, por mais estudiosos que fossem, e era por isso que eles
protestavam pelas ruas: pelo direito de estudar.
Muitos anos passaram-se e ainda tentamos entender por que
não há vagas ou condições de estudar para todas as crianças e os
jovens brasileiros tornarem-se cidadãos letrados, em um mundo
que alcançou altos níveis de pensamento, arte, literatura, ciência e
tecnologia. Mas sabemos que as crianças e os jovens expulsos das
escolas públicas pela intencionalidade corrupta da elite brasileira,
tão burra quanto maquiavélica – salvo, claro, raras exceções – estão
fazendo “carreira” no crime organizado, nas drogas e nas redes de
prostituição e pedofilia, o que constitui, a meu ver, o pior genocídio
perpetrado no Brasil, aquele que condena o futuro do país.
Entre 1980 e 2010, as taxas de homicídio contra jovens cresceram
346%, segundo o Mapa da Violência 2012 – Crianças e Adolescentes
do Brasil, do sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz. A íngreme escalada
de violência inicia-se aos 12 anos de idade e leva os índices a níveis
decididamente inaceitáveis: aos 18 anos de idade, a taxa eleva-se para
58,2 homicídios para cada 100 mil jovens/adolescentes (WAISELFISZ,
2012, p. 79).
A gravidade dessa situação pode ser mais bem dimensionada,
ao verificar que esse íngreme crescimento da taxa de homicídios contra
a adolescência levou o Brasil a ocupar um funesto quarto lugar entre
os 92 países do mundo, segundo dados da Organização Mundial da
Saúde, tanto na faixa de 10 a 14 anos de idade quanto na dos 15 aos
19 anos.
Nesses últimos dias, quando a grande imprensa, as mídias e
os corajosos pequenos jornais e revistas fazem-nos acompanhar, com
medo, a violência que se desenrola em São Paulo e Florianópolis, são
esses jovens, em sua maioria, que estão morrendo, quando se fala em
guerra entre o crime organizado e o Estado.
Um só jornal tem noticiado em nossa cidade a verdade mais
doída destes tempos de barbárie: Belém é a 10ª cidade mais violenta
do mundo. E Lúcio Flávio Pinto, nosso corajoso sociólogo e jornalista,
Referências:
REVISTA RÁDICE. Rio de Janeiro, ano 3, nº 12, mar. 1980.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2012 – crianças e
adolescentes do Brasil. 2012.
PINTO, L. F. Jornal Pessoal, nº 525, p. 2, 2ª quinzena/nov. 2012.
CRP-10 sob o número 01135, tenho 43 anos de vida. Tenho uma militância
na área dos direitos humanos (DHs) e, desde muito cedo, uma atuação
no movimento estudantil (ME). Comecei a organizar-me no ME aos 12
anos de idade, em 1981. Ainda estávamos vivendo o clima de ressaca
e um grande movimento nacional para as eleições “Diretas”, campanha
nacional que contou com a participação de militantes organizados nos
partidos em que era possível atuar na época. O Partido Comunista do
Brasil (PCdoB), por exemplo, “organizava-se”, dentro do PMDB, devido
estar na clandestinidade até 1987, mais ou menos. Atores, músicos,
intelectuais, a sociedade civil no geral, encamparam de norte a sul do
Brasil a campanha pelas eleições diretas.
Nesse clima, minha família, com o meu pai, que sempre foi um
progressista, falava com muita alegria da possibilidade de retomarmos
as “rédeas” do Brasil, como ele dizia. Assim, em 1981, entrei para o
“Centro Cívico do Colégio Moderno” e segui, desde então, na luta pela
organização estudantil, secundarista e, mais tarde, na universidade,
depois na luta sindical e, agora, na organização de classe, por meio dos
Conselhos Federal e Regional de Psicologia.
O que realmente me fez ser uma ativista dos DHs, uma militante
comunista do PCdoB, foi sem dúvida o meu envolvimento afetivo com
Paulo César Fonteles de Lima Filho. Conheci o Paulinho em 1989, nos
apaixonamos à primeira vista. Eu fazia Psicologia e cursava o segundo
ano, ainda em Belém. Era um ano especial para nós, para o Brasil, era
a primeira vez que iríamos votar em um candidato a presidente, pois,
mesmo com as (in)diretas, veio o Tancredo/Sarney, depois mais cinco
anos de Sarney e, por fim, era chegada a hora de exercer o direito ao
1 Psicóloga pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, especialista em Saúde Mental e em Saúde
Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ESNP/Fiocruz), mestranda em Psicologia Social e Clínica na
Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente, é psicóloga da Fundação Santa Casa de Misericórdia do
Pará, vice-presidenta e coordenadora da Comissão Regional de Direitos Humanos e do Grupo de Trabalho
sobre Direito à Memória e à Verdade do Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região e membro do Conselho
da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.
diziam a ela: “Filho dessa raça não deve nascer”, “Filho dessa raça
não deve nascer”. Paulinho carregava consigo esses poemas do Paulo
Fonteles. Eu, já estudante de Psicologia, achava que, ao entrar em
contato com esses sofrimentos, diminuiria o trauma, como se fosse
simples assim. Mas eu só queria ajudá-lo.
Paulinho, quando o conheci, com 17 anos, não tinha um bom
relacionamento com a Hecilda, acusava-a de ser muito distante,
de não ser afetuosa e outras coisas que a adolescência o fazia
acreditar. Suas verdades ressentidas, magoadas, dessa mãe que eu
reconhecia revolucionária, eram perturbadoras para nós. Durante nosso
relacionamento, reelaborou seus afetos, pois Paulinho pôde perceber
que o que fizeram com ela, nos cárceres da ditadura, não tinha tamanho
e, mesmo assim, aquela mulher, frágil, meiga e franzina, o havia colocado
no mundo.
Namoramos, terminamos e retomamos para nos casarmos em
1995, passando a morar juntos no Rio de Janeiro, época em que um
professor, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), indicou-
me que procurasse o Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM), pois, durante
a nossa relação, Paulinho sempre apresentava uma oscilação de humor,
com estágios muito frequentes de depressão.
Assim, começamos o acompanhamento psicológico pelo GTNM.
Mas, em 1996, houve os assassinatos dos trabalhadores rurais sem
terras em Eldorado dos Carajás, deixando Paulinho muito mobilizado.
Em 1997, uma nova caravana partiu para a região do sul do Pará a fim
de retomarem as questões da Guerrilha do Araguaia. Eu, com outros
planos para minha vida profissional, não pude acompanhá-lo. Paulinho,
em companhia de uma grande dirigente do PCdoB e guerrilheira do
Araguaia, Elza Monerat, retomou a ideia de se recontar essa parte
da história do Brasil. Assumiu então uma tarefa do partido nacional e
mudou-se para a região do sul do Pará.
Ficamos afastados por dois longos anos, mas, no final de 1998,
reatamos nossa relação e eu engravidei em maio de 1999. A gravidez
foi recebida com alegria e certa tensão. Paulinho sempre dizia que não
À criança que não sabia o que foi o golpe de 1964 (em Juiz de
1
Membros da CDH-CRP-02
• Socorro Alves da Silva
• Mariana Paz
• Paula Freitas
• Paula Fonseca
O que houve foi um sinal para eles pararem e eles não pararam. Isso
parece que é verdade. “Foram perseguidos por uma viatura da Brigada
e a fuga terminou com a morte de Antônio Figueiredo com um tiro, que
lhe transfixou os pulmões. Cinco anos após o crime os PMs estão
absolvidos por falta de provas.”
A minha mãe sempre disse que a minha avó morreu disso. O
julgamento foi em 1982, cinco anos depois da morte do meu pai.
Logo depois do julgamento, minha avó morreu de ataque cardíaco.
Não aguentou.
Vou ler um pedaço da reportagem sobre o julgamento: “Logo
no início do julgamento, no tempo destinado à acusação, Nasser faz
algumas conjecturas jurídicas. Mas pede a absolvição do tenente
Hamilton Barros, certamente convencido que as provas não eram
suficientes para impor aos réus uma pena pela morte do publicitário
Antônio Figueiredo. Sorte da defesa. Pois no início do mês, esse
julgamento foi adiado quando o advogado da defesa, Osvaldo de Lia
Pires, estava afônico e o promotor Nasser em férias.” Então todas as
artimanhas possíveis para favorecer os policiais foram colocadas na
prática. “Surge então a primeira cena em comum com os julgamentos
desses tipos: o assistente da acusação, o advogado Nereu Lima
contrariou a tese do promotor e durante uma hora e meia analisou
profundamente as provas e depoimentos. Pedindo a condenação dos
PMs.” Olha só: eles colocaram: “revólver, pacotinho de maconha e
outra substância desconhecida. Pó branco. Que foram enxertados
dentro do carro onde morreu o publicitário. Na hora do flagrante,
elaborado às 16h, quando o fato aconteceu às 6h da manhã.” Fizeram
o flagrante às quatro da tarde. “O tenente disse que encontrou a
maconha e o pó branco. Na justiça, ele disse que não viu nada.” Logo
depois: “Baseando-se principalmente no depoimento que o tenente
Hamilton prestou no plantão policial no Hospital de Pronto Socorro,
vinte e cinco minutos depois da morte do publicitário, quando o
homem disse: dei os tiros para intimidar.” “Nereu criticou os vários
depoimentos diferentes prestados pelo tenente.” Nereu era o nosso
1 O livro já foi publicado: “Direito Humano à Comunicação - Pela Democratização da Mídia”. Petrópolis:
Vozes, 2013.
Veja você como isso aqui é real hoje. Por exemplo, o predomínio
dos médicos sobre as outras áreas da Psicologia, o projeto de Lei do
ato médico. Eles trabalham com dados empíricos, constatáveis, como
no caso da neurologia, da genética, essas ciências todas. Então isso
é ciência. Dizem que os psicólogos fazem qualquer outra coisa, mas
não é ciência. Quer dizer, se nega uma dimensão fundamental do ser
humano que é a dimensão psíquica.
Porque no fundo o que está se negando com isso é de que existe
uma dimensão do ser humano que é representacional, simbólica, que é
imaterial, que é psíquica, e, com isso, se está negando o fundamental da
Psicologia. Naquela época, de fato a Psicologia que predominava era essa
dos testes. Porque os testes tinham um valor “científico”. Então quando
alguém se desviava, alguém era preso, alguém se rebelava contra o que
estava aí e era preso, os psicólogos faziam testes para mostrar que de
fato eles eram pessoas desequilibradas, anormais, perigosas.
Diante dessa vigilância, nesse controle em que você não podia
mais fazer nada, eu saí do Brasil em 1971, fiquei fora dois anos. E ao
voltar em 1973 já voltei um pouco mais descansado, mas ainda continuei,
aí já vim bem mais documentado e também com mais garantia de
poder dizer as coisas. E a gente foi se organizando, comecei com meus
trabalhos de psicologia comunitária nas vilas, organizando a população.
Alguns dos que tinham sido alunos meus no fim da década de 60 e
que aderiram à guerrilha foram exterminados. De fato, a guerrilha foi
totalmente exterminada.
Então a década de 1970 marcou uma nova maneira de reagir à
ditadura, que era por meio da organização popular. E foi aí que começou
a se desenvolver uma Psicologia comunitária a partir do povo, a partir
das comunidades, das Associações de Bairro, dos Clubes de Mães,
de tudo que era tipo de organização que se fortificou durante toda a
década, até que em 1980 já estavam articulados e se começou de fato
a luta pelas “diretas já” que culminou em 1985, com o fim da ditadura.
De fato, não foram eleições diretas, mas foi um avanço.
Então se construiu outro período de história. A Igreja, que era
uma espécie de guarda-chuva no fim da década de 1960 e década
porque quase tudo era.Minha mãe prendeu meu cabelo, fez “maria-
chiquinha” para eu ficar com uma cara bem de criança, para eles
não me maltratarem. Coitadinha, ela ficou louca de medo em casa.
E o pai foi comigo. Não o deixaram entrar, meu pai ficou sentado na
escada externa do prédio durante sete horas, sem saber o que estava
acontecendo comigo. Meu pai era um professor universitário. E junto
conosco foi um delegado de polícia (da Delegacia de Entorpecentes)
que era amigo dos meus tios. Nem o delegado pode entrar também.
Levaram-me para uma sala bem grande, quase vazia. Um escrivão,
chamado Carlos Cardoso, ficou me interrogando, perguntando se
eu era subversiva e outras coisas, esse tipo de pergunta “altamente
inteligente”. E mostrando muitas fotos, eu não conhecia ninguém.
Mas era muita gente! Aquilo me fortaleceu por dentro. Porque eram
pessoas de todas as idades, de tudo que era cara, tudo que era jeito.
Uma cara mais bonita que a outra. E eu tinha o prazer de dizer: “Não
conheço, não sei, nunca vi, não conheço”.
Então ele meio que se irritou uma hora. Saiu, voltou com outro,
que eu acho que era o Pedro Seelig, um loiro, que ele chamava de
doutor. E o doutor fez o papel do bonzinho. Disse que eu era uma
pessoa de boa família, que ele queria me ajudar, que ele não queria que
eu pagasse pelo erro dos outros. E que aquelas pessoas – as pessoas
das fotos – já tinham me dedurado. Por que eu estava protegendo essas
pessoas? Por que eu queria ser legal com elas se elas não tinham sido
legais comigo? Esse tipo de jogada. Eu falei a verdade: Não conheço
ninguém nessas fotos. Aí me mostraram mais outro calhamaço de
fotos. Não conhecia ninguém. Havia muitos idosos, pelo menos eu
achava, na época, tinha 17 anos, para mim eram idosos, não sei se
eram tão idosos. Cada foto daquelas me deixava com mais orgulho.
A certa altura, eles saíram me deixaram sozinha um tempão, sem
nada para fazer. Então entrou um homem horroroso, meio “abobadão”.
Meteu a mão dentro das calças, ficava se tocando, me rondando e
dizendo que tomara que eu não falasse mesmo, porque aí eu ia ter
que ficar com ele. Ameaçando uma violência sexual, uma coisa assim.
armados e tu dizias “Sim, sim senhor”. Quando eles saíam, não tinha
entrado nada em ti. Tu continuavas pensando, apesar do medo. E
hoje? Essa propaganda massiva de que tu tens direito a votar aos
16 anos, que maravilha. Votar em quem? Votar pra quê? Em um país
gigantesco desses com um governo central, eu acho que não tem
saída. Eu acho que a gente teria que se desmembrar em comunidades
menores e autogestionáveis. Mas eu não acho que isso vai acontecer
pacificamente. Porque os gananciosos do mundo não vão deixar.
Eu conheci comunidades alternativas, que eram só paz e amor,
mas quando poluíram seu rio ficaram sem água para tomar. Então,
acho que essa saída tão pacífica não dá certo. Eu tentei muito isso. Eu
viajei de carona numa coisa super hippie, sem dinheiro, sem relógio.
Foi muito legal, tu conheces um monte de coisa no contato direto.
Mas, por outro lado, tem que se fortalecer para se defender, pois,
como diriam os religiosos: O mal existe. E eles não vacilam, sabe?
Eles destroem o planeta, mas eles não deixam de lucrar.
Teve um milionário norte-americano que, quando morreu, abriram
o testamento e ele queria ser cremado com todo o dinheiro dele. Todo o
dinheiro em notas de papel, forrando o caixão dele. E ele foi cremado com
todo o dinheiro dele para não deixar para ninguém. Se ninguém roubou
um pouco por fora, isso aconteceu. É isso aí. Não acho que ele seja tão
mais doente do que essa Dilma plastificada falando que os desabamentos
no Rio de Janeiro são culpa das pessoas que vão morar em lugar que
desaba. Companheira, torturada na ditadura. E aí? Virou o quê?
Não sei o que foi feito dos meus amigos que sumiram. Teve
um menino que era do movimento da Reforma Agrária, precursor do
MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra). Era um doce
de pessoa, um alemãozinho da colônia. Ele foi fuzilado ali perto do
Viaduto da Avenida Salgado Filho. Passou um carro e o matou, atiraram
nele, sem mais nem menos. Era um guri. Mas daí tu ficas pensando:
E esses que sobreviveram? Não há como não comparar, como não
lamentar o “sucesso” do José Dirceu e outros, às custas das mortes
de meninas e meninos idealistas.
Rondônia – RO
Nome dos integrantes da equipe técnica envolvida na coleta e
processamento do material:
• Maria Regina Azevêdo dos Santos
• Mercedes Araújo Gurgel do Amaral
Roraima – RR
Integrantes da equipe técnica envolvida na coleta e
processamento do material:
• Ed’Luiz Chaves Briglia
• Danielle dos Santos
• Sigrid Gabiela Duarte Brito
• Rejane Maria Ferreira Andrade
• Larissa Paula Souza Briglia
Equipe/colaboradores:
• Rejane Maria Ferreira Andrade
Denise Socorro Rodrigues Figueiredo
Entrevista concedida à Seção Roraima (RR) do Conselho Regional de
Psicologia da 20ª Região.
Ageu Lisboa – Sou natural de Belo Horizonte, onde vivi até os 30 anos.
Nasci numa família numerosa com avô paterno negro e avó maxakali do
norte de Minas; avó materna alemã e avô espanhol da Zona da Mata.
Meu pai, indicado pelo Juscelino Kubitschek, em 1956, foi para o norte
de Minas, onde criou e dirigiu a Escola Técnica Agrícola Federal de
Salinas. Então, dos quatro aos dez anos, eu estive nesse lugar muito
seco, ruim, pobre, e meu pai era um dos líderes da Igreja Presbiteriana,
visceralmente vinculado aos pobres, às necessidades. E aquilo já foi me
dando consciência das coisas. Quando tinha dez anos, minha família se
mudou para Belo Horizonte, a capital.
Duas a três vezes por semana fazíamos leitura bíblica em casa,
estudávamos os profetas, tal como o Isaías, Amós, Miquéias, e os
evangelhos. Da Bíblia vinha o ensino contra a opressão. Aprendi que
Moisés não foi negociar palha com o faraó, mas foi conscientizar e
libertar o povo escravizado. Eu e meus onze irmãos tínhamos uma
leitura da Bíblia assim que atiçava um sentimento de solidariedade
aos necessitados, pobres, contra a injustiça e pelo reino de Deus. Meu
pai, Abdênago, e a mãe, Iraci, herdeiros da ética puritana protestante
clássica que Max Weber descreve. Trabalhei desde os onze anos assim
como meus irmãos e minhas irmãs. Carregava as sacolas da feira para
Colégio Estadual; bati com os dedos na porta e chamei pelo Wilson. Ele
me reconheceu e ficou surpreso com o fato e ao mesmo tempo muito
receoso. Pedi-lhe que avisasse em minha casa sobre meu paradeiro.
Foi o que ele fez ao sair do quartel. Foi o fim do meu desaparecimento.
Nunca mais o vi. Preciso ainda localizá-lo e agradecer pelo que me fez.
Nessa época aconteceram manifestações de rua pela minha
libertação. Minha mãe abriu a boca, meus irmãos todos, e o Henfil fez
uma charge comigo, publicada no jornal O Sol, do grupo do Jornal dos
Sports. Na charge eu estava dentro de uma jaula e um gorilão de fora,
armado, me guardava, mas tremendo. Esta charge e reportagens em
jornais sobre meu desaparecimento produziram forte impacto, uma
comoção popular, e o coronel Medeiros, que conduzia o Inquérito
Policial Militar, acabou cedendo. No dia das mães me mandou escoltado
para casa. Morávamos numa casa isolada no alto de um morro do Sion,
extremo sul da cidade, sem vizinhos, cercada de mato. Hoje o entorno
da casa é uma pequena reserva, Mata das borboletas. Os militares
cercaram os acessos. Eu me encontrava exausto e muito transtornado
com aquela situação. Quando eu precisei ir ao banheiro, meu irmão,
Apeles, espertamente entrou junto e então conversamos livremente.
Passei-lhe algumas informações inclusive sobre outros presos e o que
estava me acontecendo nas prisões e interrogatórios. Permaneci na
casa por aproximadamente duas horas e fui levado de volta para a cela.
Dias depois me transferiram do quartel na Pampulha para a penitenciária
agrícola de Neves, cidade vizinha a Belo Horizonte.
Nesta penitenciária que recolhia presos comuns fiquei numa cela
solitária, mas com cama. De uma pequena abertura por onde passava um
prato de comida pude observar aberturas de umas três outras celas do
andar superior. Um preso logo me observou e após tentativas frustradas
conseguiu que eu entendesse que tentava me ensinar rudimentos do
alfabeto de sinais. Tentaram me ensinar por batida de parede, mas eu
não consegui aprender, só aprendi essa de sinal. Assim, pude compor
algumas brevíssimas conversas. Falei meu nome, onde e quando fui
preso. E fiquei sabendo algo de outros presos. Todo dia via que saíam
1.Ver:http://andradetalis.wordpress.com/2012/06/21/ditadura-militar-ate-para-julgar-escondiam-o-rosto-foto-
inedita-de-dilma-rousseff-em-juiz-de-fora/
Iane Melotti – Serei bem sucinta. A história que vou contar é do meu
pai. O nome dele era Luís Carlos Ribeiro. De fato, é a minha história
com o meu pai. Porque a história dele eu não sei, na verdade, qual foi.
Fica uma grande dúvida, mas, enfim, vou tentar contar um pouquinho
(emocionada). Eu vivi em São Paulo, nasci em São Paulo, e meu pai
era jornalista. E ele foi muito torturado. Ele contava as torturas. Para nós
crianças eram histórias muito fortes, foi muito terrível conseguir superar
e muitas vezes até mesmo para acreditar.
Até eu entrar na faculdade, basicamente, eu achava que tudo
era culpa da ditadura. Até meus 20 anos de idade, tudo foi culpa
da ditadura. Depois eu achei que não, comecei a acreditar que a
História tem várias faces e perceber, assim, o que era dele e o que
de fato ele sofreu com a política. Ele era jornalista, muito amigo do
Vladimir Herzog e, inclusive, eu estava com ele quando o Herzog
morreu. Essa foi a “pirada” dele, que me marcou demais. Quando viu
a foto do Herzog no jornal, leu as notícias, ele olhava com um olhar
vazio e balançava a cabeça para os lados, longe, longe. E eu tenho
essas lembranças.
Minha casa era um point de intelectuais, por exemplo, a banda
Secos e Molhados, minha irmã tem a letra de uma música que eles
compuseram, creio que a “Gato Preto”. Então, era diferente nesse
sentido, crescemos vendo esse pessoal compondo. Meu pai, na
verdade, começou uma agência de publicidade com o Sérgio Murad,
que foi o Beto Carreiro, e depois largou tudo, porque ele ganhava
super bem, mas não era a sua ideologia. Ele falou: “Não quero ser
publicitário”, ele dizia “publicituto”. “Eu não quero ganhar dinheiro, eu
Até hoje, isso me machuca. Ele também não tinha muita consciência
do horror do pós-guerra, dos impactos que isso tem na formação da
autoconsciência e da autoestima. Anos depois, quando voltei a me tratar
com ele, já havia se tornado um homem muito mais íntegro e profundo.
Sua apreciação sobre tudo isso já estava transformada e ele se mostrava
muito mais respeitoso, honesto, sensível e mais humanizado.
Se existe alguma coisa com que eu quero contribuir, para com
essa questão dos sequelados de guerras, da falta de informação, do
preconceito, do racismo, da repressão, da perseguição, desse conjunto
de violências, é dizer que o não reconhecimento das feridas na alma e
na mente da gente é tão grave e persistente que, até hoje, cada vez que
eu ouço na mídia televisiva que alguém não foi ferido por não ter sido
machucado fisicamente, eu me revolto. Eles dizem: “Foram assaltados,
foram roubados, foram torturados, foram aprisionados, sequestrados,
mas ninguém saiu ferido”. Eu me ar-re-pi-o. A mídia considera que, ou
você é ferida de sangrar ou o ferimento no seu íntimo não é reconhecido
como grave. A própria imprensa, até hoje então, nega que esses
ferimentos existam.
Sim, eu falo isso com muita paixão e muita emoção, porque venho
de famílias muito violadas e violentadas. E porque, sendo casada com
um homem que teve igual formação - continuo casada com o mesmo
marido até hoje - cujas famílias também foram feridas, eu não posso
admitir a negação e o silêncio sobre as feridas íntimas que destroem a
nossa identidade, a nossa integridade, que distorcem tudo, que tiram
a nossa voz. E, com a graça de Deus, a minha voz própria surgiu há
muito tempo atrás e surgiu porque tive pessoas corretas junto a mim,
verdadeiros amigos. E como falei antes, acho que de nascença, tive
alguma coisa a ver com a verdade e a justiça. Por isso, eu vim aqui hoje.
Eu gostaria de fazer o seguinte: identificar três posicionamentos
meus em diferentes tempos. Primeiro, que já ficou claro, a minha posição
de “à margem” da situação política do país e, segundo, o peso do medo
que absorvi e que atuei na forma de “isso não tem nada a ver comigo
(risos), não sou brasileira, sou judia, mas sem ter tido uma educação
se falava dos nossos índios, quero dizer, zero conhecimento das nossas
questões sociais e nos reunirmos em grupos de mais de três pessoas
gerava paranoia.
Era uma loucura, porque nós sabíamos sim, que éramos assistidos
por militares ali presentes e disfarçados de colegas, dedos-duros. Por
vezes, vinha um colega falar conosco e nos embarçávamos: “Ai, meu
Deus, devo responder, não devo responder, o que eu faço, o que eu
não faço”. Quer dizer, ninguém podia ser muito amigo, pelo menos não
podia ser sincero, nem verdadeiro.
Não mantinha ligações de amizades com muitos colegas que
eu admirava, mas que, se chegasse a ter qualquer desconfiança de
que essa pessoa pudesse ter alguma tendência política de direita ou
de esquerda, eu me afastava dela totalmente. Como eu era casada,
mãe de família, meu interesse pela política se fechou e eu mergulhei
totalmente naquilo que considerei meu papel principal: o de mulher dona
de casa, mãe, esposa e filha, bem doméstica, embora eu já tivesse um
trabalho de administração de condomínios, que exercia em casa, como
complemento do salário do meu marido.
Eu casei muito cedo. Casei com 19 anos recém-feitos, com 20
anos eu já tinha filha e achava que era isso mesmo, estava casada para
ser a moldura do quadro do meu marido, mas não para ter vida própria,
não é? Mas, isso mudou. Mudou por esforço meu e dele e voltando
à questão da ditadura, eu sempre estive fascinada por pessoas que
discutiam política.
Quando ouvia falar das pancadarias que aconteciam lá na frente
da Rua Maria Antônia e aquela coisa toda do pessoal do Mackenzie
se eximindo, então acabei pegando birra do Mackenzie, mas não tinha
entendimento profundo do que se passava e o porquê dos estudantes
brigarem tanto entre si. Meus sentimentos oscilavam entre a excitação
de saber que algo importante acontecia, algo grandioso, do qual eu
não fazia parte, mais o desejo de me esconder daquela balbúrdia,
daquela “arruaça” toda, que ameaçava a proteção que sentia por já ter
constituído um lar, ter a minha casa própria e um marido amado que me
política, que lia e discutia Karl Marx; o segundo, entre meus 18 e 25 anos
de idade, aquele amigo que me dispensou no Viaduto do Chá; e houve
esse terceiro amigo, quando já estava nos meus 30 anos, uma amizade
que entre nós começou um pouquinho antes da década de 1980.
Ele estava cursando a faculdade de Sociologia e Política, lá na
General Jardim, e com ele sim, por ser muito amigo de um cunhado
meu, que era diretor administrativo da Secretaria de Obras, confiei que
poderia me abrir e ter conversas mais profundas. Foi ele a pessoa com
quem pude compreender melhor o que se passava, porque ele me dava
verdadeiras aulas de Sociologia e Política e discutia comigo sobre Marx
e os manifestos. Foi ele o meu grande interlocutor - infelizmente morreu
cedo – e foi o meu mentor, minha porta de entrada para me interessar,
efetivamente, pelo que se passava nesse mundo, até que eu me formei
e saí do estágio que fazia lá na Secretaria.
Nessa época, já psicóloga, fui estudar e trabalhar onde se
apresentou a possibilidade de estudar “O envelhecimento” com a
Professora Doutora Raquel Vieira da Cunha. E foi estudando com a
Raquel, já em 1979, que, por meio do estudo do envelhecimento, a minha
mente se abriu definitivamente, porque foi com esses estudos que me
abri para a História, Economia, Política, Antropologia. Saí daquela coisa
da “Psicologia do consultório”, da Psicologia de elite, da Psicologia de
laboratório, de condicionar e controlar ratinho e fui ver o que poderia
fazer enquanto psicóloga neste vasto mundo, que fosse diferente de
trabalhar somente para um grande latifúndio! Não que eu abomine o
consultório, muito pelo contrário.
Sou psicoterapeuta e amo atender aos meus clientes! Abomino é
a estreiteza mental dos manipuladores, daqueles que não pensam por
si próprios e só se preocupam com as técnicas e teorias, sem conseguir
enxergar e se relacionar com as pessoas, encastelados em linguagens
herméticas e autodefensivas. Bem, isso existe em qualquer profissão.
Apaixonei-me perdidamente pela Gerontologia Social e me decidi
por fazer mestrado na pós-graduação da USP. Tão logo terminei o
curso de aperfeiçoamento, coordenado pela Raquel Vieira da Cunha,
assim, não fica assim”. Penso ter reagido por mim e por ela. Puro acting
out. E nos acalmamos. Ela ainda disse: “Nossa, se eu soubesse...”, ao
que logo refutei: “Não, pelo amor de Deus, eu estou bem. Foi bom você
ter dito tudo isso! Já passou”.
Na manhã seguinte, tive vergonha de contar para o meu supervisor
o que tinha acontecido. Pensei comigo: “Acho que eu não dou para ser
psicóloga, estou na profissão errada, isso não é coisa que se faça”.
Porque, também, como psicóloga, fui educada, que não podemos nem
gargalhar, nem chorar e nem ter diarreia por causa de paciente, e essa
é outra história, que se o Conselho quiser discutir um dia, eu discuto
(risos). Mas a minha inteireza só me permitiu aquela reação.
Durante muito tempo, cultivei essa má impressão de mim, que,
aliás, era o que eu mais sabia fazer, me avaliar por baixo, sempre me
vendo com olhos excessivamente críticos. Até que um dia me encorajei
e contei para o meu psicoterapeuta. Ele me sorriu de volta, olhar muito
bondoso e me perguntou: “Você já ouviu ou leu alguma coisa sobre
os xamãs?”. E novas portas de conhecimento se abriram para minha
compreensão sobre o que é a cura e o exercício da nossa profissão.
Fiquei a princípio, pois é, desolada com a minha “suposta”
incompetência para atuar como psicoterapeuta. Não cheguei nem a me
abrir a com a psicóloga, uma mulher muito má que me dava supervisão.
À época eu não sabia quão má ela era. Chegou a ser conselheira do
Conselho Regional de Psicologia e, de início, eu a admirei, estimei.
Confiei muito nela. Mas um dia, lá na frente, muitos anos se passaram
até que eu vim a saber que ela era uma tremenda antissemita. Enquanto
ela se posicionava superior a mim, tudo bem. Mas quando comecei a
crescer na minha profissão e ousei ter visão e ideias próprias, podendo
discordar dela ou seguir por minha própria conta e risco, sem pedir
permissão e me prestar aos rituais de idolatria que ela impunha aos
seus alunos e supervisionados, ah, para quê?! Ela me perseguiu até!
Falava mal de mim publicamente, proibia que seus alunos
fizessem citações sobre meus livros e trabalhos. Um verdadeiro
assédio! Não é à toa que escolhi este tema para o meu doutorado:
era frequente a invasão das casas pela polícia para procurar indícios de
subversão, para até prender supostos militantes.
E eu atendi profissionalmente ex-presos políticos. Então, o terceiro
momento da minha convivência com a violência e a repressão política
da ditadura militar e uma forma de participação no movimento político de
resistência: minha aproximação a ex-presos políticos. Estranhamente,
para mim isso aconteceu depois que a ditadura terminou, quer dizer, foi a
partir de 1985, quando o presidente José Sarney assumira a presidência
da República. Foi a partir daí que fui procurada por alguns ex-presos
políticos. Estranhamente, porque antes disso eu estava lá na cidade
de Maringá, essas pessoas já tinham sido presas e soltas e ninguém
procurou ninguém enquanto estávamos sob a ditadura.
Eu tinha consultório em Maringá, era uma das poucas psicólogas
que atuavam na cidade nessa época e, interessantemente, só depois
que a ditadura terminou essas pessoas foram me procurar. Eu achei
isso muito significativo. Já tinham saído da prisão há muito tempo.
Atendi a quatro ex-presos políticos. Desses quatro, uma
desapareceu, eu não tenho a mínima notícia dela. Não consegui
localizá-la. Fui atrás para saber notícias, mas ela desapareceu sem
deixar marcas.
Todos foram me procurar mais ou menos na mesma época. Foi
interessante, foi um atrás do outro, e não necessariamente pessoas
conhecidas entre si. Quer dizer, eu acho que elas identificaram que eu
era uma pessoa sabidamente de esquerda na cidade. Mantiveram seu
sofrimento em silêncio até aquele momento, possivelmente com receio
de poderem voltar a ser presos se falassem de sua vida de militantes de
esquerda com alguém. Eram pessoas totalmente desvinculadas entre
si. Só dois deles tinham relação.
Nesse depoimento, quero falar sobre as diferentes formas com
que eles foram atingidos pela violência. Uma sumiu, desapareceu de
todo e qualquer vínculo comigo e com a cidade. O outro, um rapaz,
era um professor inteligentíssimo em São Paulo, militou e foi preso aqui
em São Paulo, era de uma cultura fenomenal. Ele partiu para virar um
ela se abriu sobre o que tinha passado, de fato. Ela não chegou a
ser propriamente torturada fisicamente, foi muito mais a questão da
tortura moral, de estar presa em quartel, ser chamada a delatar, em
nível do simbólico e em nível do emocional, do que propriamente a
nível do corpóreo. Lá no quartel ela esteve submetida à inquisição,
esse tipo de coisa. A grande expressão de seu trauma foi se afastar
totalmente do namorado.
Essa separação foi a princípio muito estranha para mim, para a
minha compreensão. Eles vieram trabalhar no mesmo lugar, ligados
ao mesmo espaço profissional e após a prisão eram como dois
desconhecidos. Impressionantemente, dois desconhecidos. Casou
com outro e ele casou com outra. Na evolução do atendimento, nós
chegamos a essa situação afetiva, afetivo-sexual dela, quer dizer, um
vínculo com o parceiro. Ele era o representante externo daquilo que os
dois passaram juntos e ela não queria nem vê-lo e vice-versa: trancou-
lhe em um esconderijo impenetrável e agora não queria saber mais
dele. No decorrer do processo terapêutico, ela conseguiu desfazer
esse silêncio interno.
O atendimento a essa ex-presa política era tranquilo. Transitava
entre nós uma relação de muito respeito, de muita admiração minha por
ela e dela por mim. Transitava esse tipo de vínculo, que era um vínculo
de amor, vamos dizer assim. Então não me fazia mal.
A outra presa politica que atendi me enfrentava dizendo que “você
já quer saber demais” durante muito tempo, me “botou na parede”
muitas vezes, me jogou na condição de torturadora dela e eu não sabia
por que ela estava fazendo aquilo comigo, porque eu não sabia o que
era tortura. Sabia que era pancada. Sabia o que era dar pancada,
prender e dar pancada, mas não sabia, vamos dizer assim, os motivos,
os objetivos da tortura.
Eu não sabia por que, não sabia os motivos da tortura que essa
segunda cliente-presa política repetia comigo transferencialmente e que
me despertou muita angústia. Eu não sabia o que era tortura, não sabia
dos tipos e dos objetivos da tortura.
desintegração muito grande nele. E ele ficou pouco tempo comigo, mas
eu pude acompanhar isso.
Perdi o contato com ele, mas acompanhei a distância suas
transmutações de identidade. Já não estava mais em contato direto
comigo. Eu continuei tendo notícias dele: ele deixou de ser um místico
que fazia milagres postando as mãos.
Sob muita perplexidade, eu acompanhei esse processo de sua
despersonalização, será que posso dizer assim? Eu tinha muita gana
de acompanhar o que fui entendendo como deteriorização de sua
vida: acabar casamento, abandonar filhos, abandonar a profissão de
professor, tornar-se místico, ceramista. Tudo muito rápido, em muito
pouco tempo. Eu valorizava o que ele foi: professor de história, e tentava
mexer com essa força intelectual dele. Eu tentava que ele passasse a
usar essa sua força intelectual para se reafirmar na vida, mas eu acho
que isso o incomodou e ele sumiu logo no início. Acho que ele caminhou
para um quadro também de conotação depressiva.
É outro tipo de reação. As outras duas pessoas, não. A segunda
foi um quadro de mania, vamos dizer assim, uma patologia baseada,
principalmente, no pânico dela. Agora, ele foi mais para um quadro de
cisão psíquica, um processo muito autodestrutivo.
Foi ser ceramista, não vendia essa cerâmica, porque ele não abriu
uma loja para vender, não ia às exposições, feiras de artesanato, fazia
aquelas cerâmicas quase que por fazer escuridão, uma coisa desse tipo,
talvez para se manter em pé, para se manter vivo. Mas você precisa ver
a cor da cerâmica, é preto com cinza, cinza cheio de pontinhos pretos.
Cerâmica comum, não é criativa, não. O formato, não; a pintura, sim.
A pintura dele era criação subjetiva dele. Agora, eram vasos comuns,
moringas, coisas assim.
Eu acho que eu estou pagando uma dívida com esse depoimento.
Dívida, porque por mais que eu tenha trabalhado com violência e tentando
estudar isso, eu talvez devesse estar mais perto, ter me envolvido mais.
Gostei muito de ter sido convidada por vocês para dar esse testemunho.
As pessoas sabem do meu trabalho profissional e científico com ex-
que estava passando, que veio a notícia de que eles tinham sido
absolvidos, e eu me lembro da comemoração da minha família e da
alegria das pessoas.
Eu me recordo de muitas coisas, são muitas cenas, na verdade,
são recortes, acho, retalhos, como esse da minha mãe dizendo para eu
não contar o caminho, para eu nunca dizer o nome de nenhuma pessoa
que eu conhecesse, que se me perguntassem na escola alguma coisa,
eu não poderia falar, porque também pairava essa desconfiança de que,
por meio de um professor ou de alguém que não parecesse que era da
polícia, existiam informantes em todos os lugares. Era um tempo muito
perigoso nesse sentido de relações de confiança, das pessoas não
confiarem umas nas outras e terem muito medo o tempo todo, medo de
qualquer aproximação (pausa). Eu cheguei a visitar junto com a minha
mãe uma pessoa que foi um grande amigo dos meus pais, no presídio
do Barro Branco, que hoje é a Academia da Polícia Militar, esse amigo
deles ficou preso lá, foi julgado e condenado.
Após o julgamento, quando meus pais saíram da prisão, eles
se mudaram para o Paraná, para União da Vitória, divisa do Paraná
com Santa Catarina, depois de um tempo. Foi muito difícil porque eles
não me levaram. Na verdade, eles fugiram, ficaram com muito medo
de serem presos novamente e então foram embora para o Paraná e lá
ficaram por um tempo, que eu também não sei precisar quanto, eu não
tenho muito essa dimensão, eu me lembro de chegar a visitá-los, acho
que uma ou duas vezes, lembro-me da casa.
Eles escreviam para minha avó. Meu tio chegou a ser preso
também, mas o meu tio foi rápido. Na verdade, ele não se envolvia
muito, meu tio era meio que um apoio da minha mãe, a relação dele era
a relação de irmão e de um apoio incondicional a tudo que a minha mãe
fizesse, assim ele não era envolvido com o partido, com o movimento.
Ele ficou pouco tempo, três, quatro noites no DOI para averiguação e
acabou sendo solto. Mas houve amigos da minha mãe que sumiram,
que desapareceram. Um dos amigos tinha uma família que era muito
próxima e, desses irmãos, um deles era de uma liderança que fugiu e
ficou muitos, muitos anos desaparecido.
diz assim: “Quarenta anos...”. E a história, não sei nem como é contada.
É uma dor tão cruel, tão dolorida... Falar disso, para mim, é muito difícil.
Você nem imagina a dor e o sofrimento de todas as famílias, porque não
foram poucos, foram muitos.
Dos que ficaram vivos, mesmo feridos, machucados, com sequelas
− que eu acredito que todo mundo ficou com suas sequelas, com suas
feridas, com as cicatrizes −, poucos ainda continuam lutando. Porque
se você imaginar quarenta anos, o pai de muita gente já foi embora. A
batalha da minha mãe agora já está chegando ao fim e eu não queria
que nenhuma mãe passasse pelo que ela passou. Digo assim, que
nenhuma mãe fosse humilhada. Porque não era fácil. Vocês pensam
que era fácil chegar e falar com alguém? E não dói procurar o filho? Ir a
uma comissão de políticos que nem existia. Era dolorido. Nossa! Você
ia e não sabia se voltava. Minha irmã Rosalina, a mais velha, ficou presa
por um ano; depois foi julgada e solta.
Minha irmã foi presa antes de Fernando desaparecer; foi em 1971,
eu acho. E minha mãe saiu do Recife para o Rio à procura dela também,
mas terminou achando. Localizaram-na, mas minha mãe penou muito
na busca de Rosa. O marido e ela foram presos no Rio. E Fernando foi
preso em 74. Marcelo foi exilado, acho que ele estava no quarto ano do
curso de Direito.
Atualmente ele é vereador e está no sexto mandato em Olinda
(PE). A luta dele foi nesses seis mandatos; trinta anos voltados só para os
Direitos Humanos. Ele trabalhou com Dom Helder Câmara. E a militância
dele, a vida dele todinha foi isso. Quando Fernando desapareceu, Felipe
tinha um ano e dez meses.
Fernando é mais velho do que eu, e éramos muito próximos. Ele
era uma pessoa muito alegre. Tinha muitos amigos. A gente jogava vôlei
e minhas amigas todas o achavam lindo, porque Fernando era uma
pessoa bonita, jovem. E independentemente da política eram amigos,
amigos de futebol, amigos de rua.
Quando eu me casei tinha 21 anos. Fui embora para Porto Alegre.
Eu acho que Fernando casou com 19 anos, se eu não me engano. Ele
tirania o fato de não poder ter cabelo cumprido na época, pois, uma vez,
já com 25 anos, trabalhando como pesquisador sociológico fui parado
por um destacamento do Exército e fui obrigado a cortar o cabelo no
estilo militar, porque eu usava no estilo dos Beatles.
Em 1973, eu trabalhei no Centro Paraguaio de Estudos
Sociológicos, como auxiliar de pesquisador. Fomos para o interior,
entrevistar agricultores que poderiam ter algum relacionamento com
uma revolução silenciosa agrária inspirada e apoiada pelo catolicismo,
pela chamada “Teologia da Libertação”. Instalamo-nos na casa de um
agricultor, que nos atendeu muito bem e com quem fizemos amizade. E
estávamos entrevistando outro agricultor, a um quilômetro de distância,
quando aparece o nosso anfitrião... Então, o agricultor entrevistado
pergunta para este, se nos conhecia e ele confirma, dizendo que
éramos gente boa. Na hora, o agricultor reagiu e disse, “apaga tudo
isso que anotou, vamos começar tudo de novo a nossa conversa”,
demonstrando, assim, o quanto esta gente sabia proteger-se, mimetizar-
se se necessário, e proteger, o que estavam realizando, inclusive usando
a “Pedagogia do Oprimido” para alfabetizar seus filhos, quando aqui
no Brasil ainda não conheciam e nem se aplicavam as teses do ilustre
Paulo Freire. E, em 74, dando uma guinada na minha vida profissional,
eu fui fazer a residência em Psicologia Clínica.
Em 1979, vim para o Brasil. Não sei a sensação de teto baixo lá em
Assunção, penso que queria procurar um espaço maior, alguma coisa,
me especializar mais, interagir mais. Eu trabalhava com Gestalt-terapia e
era muito social, muitos grupos, absolutamente relacional e terrivelmente
libertadora. E grupo, no Paraguai, era palavrão, era proibido e qualquer
agrupação era suspeita, era para alguns um tipo de subversão, de estar
se reunindo com a intenção de fazer algum protesto. E era muito difícil
trabalhar com grupos, só com grupos naturais, família, um grupo de uma
instituição, uma escola, alguma coisa assim, mas grupos livres eram mal
vistos, então fiquei muito isolado, alienado política e ideologicamente
e desviado da minha própria realização profissional, até mesmo das
atividades políticas de esquerda que, não sei, talvez a esquerda também,
muito carente de tudo e se foi para uma visão mais sociológica da coisa,
mais social. Daí à politização da Psicologia foi um passo. A neurose já não
é uma questão só psicológica, a neurose é falta de cidadania mesmo,
é falta de informação, são direitos não atendidos, não correspondidos,
uma humanidade cada vez mais desumanizada, tratada como massa
de gente que o capitalismo de turno manipula e transforma em carne de
consumo. Então, a Psicologia se engaja em uma luta política em Buenos
Aires e outras cidades. Estes ventos chegam também a Assunção.
Quando os militares tomam o poder nesses países, os psicólogos
passam a ser caçados como animais, torturados e o regime some com
eles. Incrivelmente, apesar dos governos militares, o Brasil começa a
receber muitos psicólogos fugidos, perseguidos pelas polícias políticas
dos seus países. Emílio Rodrigué, Alfredo Moffah e muitos outros
optaram por morar neste hospitaleiro país.
Eu acabei ficando por aqui. A sensação era de que eu tinha vindo
para o paraíso, de tanta liberdade. Quando cheguei, ainda estava no
governo o general Figueiredo, ainda era Governo Militar, mas acho que os
ventos de liberdade já estavam soprando bem fortes e eu não senti nada
daquilo que eu sentia no Paraguai. A sensação que eu tinha quando ia
para Assunção é que eu estava dentro de uma gaiolinha, apertado. E falar
com as pessoas dava essa sensação. É como se você retrocedesse no
tempo e no espaço, ficava com aquela sensação de preso, nas palavras,
nas trocas, nas frases, no jeito de as pessoas falarem. Então, toda vez
que eu ia para lá ver meu filho, assim como todos os meus parentes que
lá ficaram, em Assunção, era essa sensação de uma semana que parecia
interminável, sensação de muito peso. E, aqui no Brasil, era diferente,
recuperava a sensação de liberdade, de um direito tranquilo de ir e vir
para qualquer lugar, de montar grupos, de trabalhar com grupos e a
sensação libertadora era muito maior. É meio contraditório, mas essa era
a realidade e eu precisava dessa experiência para me recuperar de 30
anos de vivência ditatorial, de respirar ares diferentes, relações diferentes.
Perdoem-me os militantes das lutas políticas da época daqui, que
viviam outra realidade e estavam lutando para conseguir as Direitas Já e
Sugestão de leitura:
Para refrescar a memória de nomes e fatos dos anos 1970, fui
acessar a internet e achei este site sobre a ação da justiça com os
principais responsáveis da ditadura do Stroessner: http://www.dhnet.
org.br/direitos/sip/tpi/stroeessner.html.
éramos bandidos, que meu pai estava preso porque cometeu um crime,
roubou, assaltou, matou, e não era nada disso que estava acontecendo.
As pessoas não sabiam, nem mesmo as do nosso entorno.
Quando eu vi chamada nos boletins do Conselho, eu não
pestanejei, falei assim: “Eu acho que eu não tenho uma história das
mais bárbaras, mas eu acho que tem de sair”. Se todo mundo trouxer
um pouquinho da sua história, o conjunto vai mostrar o tamanho que foi
tudo isso. E acho que não podemos hoje, silenciar, se já não quisermos
silenciar lá atrás quando minha irmã foi para a avenida protestar contra
a vinda do Rockefeller e o sentido que tinha aquela visita naquela época.
Nós não silenciamos em Ribeirão Preto, quando protestamos sobre a
chegada do presidente Figueiredo, que era um ditador de marca maior.
Isabel Piragibe
Depoimento escrito entregue por Isabel Luiza Piragibe ao Conselho Regional de
Psicologia da 6ª Região (São Paulo).
saindo daqui, procura não encontrar com ninguém daqui, procura não
falar com ninguém que você esteve aqui”. Atualmente, podemos inferir
que aquelas mulheres foram internadas porque eram militantes.
Acredito que, possivelmente, práticas infames aconteciam nas
salas de eletrochoque, não sei explicar exatamente o que era, como
era. Então, essa é uma fase que poucas vezes na minha vida costumo
falar, tinha apenas 16 anos. Pensando melhor, talvez essa estadia no
Hospital tivesse me despertado o desejo, mesmo que inconsciente, de
desvelar o que há de mais profundo no psiquismo humano, para me
conhecer melhor, ou até querer entender o porquê da minha internação e
daquelas mulheres, analisando os porquês de eu ter feito Psicologia. Eu
tive um professor, Lúcio, no Liceu. Nós o chamávamos de psicólogo por
ter cursado a faculdade de Filosofia, que, na década de 1960, era junto
à formação de Psicologia. Esse psicólogo e orientador era apaixonante,
trazia música clássica e falava coisas bonitas e sedutoras. E isso me
fez ficar encantada com a Psicologia, mas eu nem tinha conseguido, na
época, terminar o ginásio. Fui terminar no Fernão Dias, nem sei como
é que ficava a minha documentação, pois a escola foi fechada pelos
golpistas de 1964 que governavam na época. Junto ao companheiro, na
década de 1970, em 1971, eu comecei a entrar em contato com livros
mais específicos de Sociologia, depois, Karl Marx, Lênin.
Passeávamos com esses colegas ativistas, estudantes e todo
tipo de simpatizantes do movimento, era um ir e vir. Às vezes, nos
distanciávamos do movimento no Partido Comunista (PC) que parecia
não ter continuidade. O aparelho, às vezes, tinha que desaparecer,
afinal, muitos estavam sendo presos e mortos pelo Departamento
de Ordem Política e Social (DOPS), Destacamento de Operações de
Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e
Operação Bandeirantes (OBAN). Refletindo sobre isso, vejo que era
necessário as pessoas se desarticularem para poderem sobreviver e
não serem apanhados pelos militares. Nessas estratégias, muitas vezes,
os militares se disfarçavam e tentavam se infiltrar nas organizações do
aparelho. O nosso partido não era um todo formalmente organizado,
sozinho. Ele disse que não iria sair, fugir, pois não tinha feito nada de
errado. Quando tinham esses sinais, os “camaradas” tinham que se
distanciar do partidão. Felizmente nunca vieram buscá-lo. Lembro-me
de terem revistado a marmita dele. Entravam nos ônibus, revistavam
todas as malas, aquelas situações truculentas com os trabalhadores. A
polícia revistava várias vezes a marmita dele, nos pontos de ônibus, mas
nunca encontraram nada. Ele era bastante responsável e cuidadoso, ele
sumia com os papéis, nomes.
Depois, já na década de 1980, quando já estava em transição a
anistia, sentimos que isso não parecia real, era “uma anistia incompleta”,
não existiu um marco onde éramos livres democraticamente falando.
Já era natural falar sobre o Partido Comunista, sobre Karl Marx, sobre
Lenin, mas existia sempre esse perigo, esse medo que ficava na
cabeça das pessoas, na minha cabeça. Afinal, a estrutura política e de
poderes governantes ainda continuava atuando. Os mesmos fascistas
continuavam nas delegacias com os mesmos delegados de polícia.
Apesar desse período tão nefasto da minha história e dos brasileiros,
hoje vejo uma parte positiva porque a curiosidade da leitura era muito
grande, gostava de evoluir. Entrar em contato com o Partido Comunista
Brasileiro me fez ser mais reflexiva, questionar de uma maneira mais
ampla e entender todo o sistema, o que era o comunismo, o capitalismo,
o socialismo e esse exercício mental me fez aprender a questionar tudo
na vida. A parte negativa é mais difícil, com as ideias de que tudo tem
que ser para todos, essa luta por justiça, por igualdade, cultivar em casa
aquela coisa do cuidar da minha filha, de melhorar a casa para ter um
conforto, foi muito falho, e eu não deveria ter passado privações.
Alguns comunistas que ainda vivem, acham que não temos que
lutar por uma casa como propriedade privada, tem que lutar por casas
para todos. E uma prova disso, que a luta começa em casa, foi benéfica
porque meu sogro entrou no sistema de cooperativa chamada Inocop,
em 1963 ou 1964, eram casas para trabalhadores sindicalizados. Só
em 1973 consegui adquirir a minha casa própria. Os trabalhadores
se reuniam, faziam uma poupança específica para isso. O Inocop foi
tenho um dinheiro, entro, com a relação dos livros como autodidata, vou
estudar em casa”. Comecei a cursar à noite, consegui uma bolsa do
crédito educativo na época. Depois consegui uma bolsa da Fundação
Nossa Senhora Auxiliadora, fundação que auxiliava os alunos carentes.
Foi difícil, mas passou.
Eu fiz em seis anos a Psicologia porque tive muitas dificuldades
de acompanhar o pessoal, depois até superei. Ingenuamente, achei
que o amor fosse eterno. Foi dolorido porque nenhuma traição é fácil
de encarar. E consegui terminar a faculdade, consegui colocar minha
filha na Universidade de São Paulo (USP) e entrei, com ajuda de
alguns conhecidos, em um programa do Banco Baneser, projeto da
Alda Marco Antônio que trabalhava com crianças em um projeto bem
avançado da Secretaria da Criança. Orgulho-me de ter feito parte desse
projeto e conseguido terminar a faculdade. Foi um trabalho em que
fiquei durante seis anos. Meus diplomas de psicóloga não consegui
tirar, custava caro, era todo desenhado, e a licenciatura de Psicologia,
consegui retirar só em 1990.
Depois cursei várias licenciaturas de Psicologia, Filosofia e
Sociologia, e fiz várias especializações. De todo esse trabalho e essa
repressão, quando a abertura já estava mais consolidada, em 2003, o
Partido Comunista se reorganizou. E por conta de continuar comunista,
o meu nome ainda constava no partido como filiada. Reorganizamos-
nos, e o pessoal do partido foi se reestruturando. O partido me escolheu
para ser vice-candidata a prefeita. Foi uma tentativa de reerguer o Partido
Comunista Brasileiro e trazer muitos camaradas que estavam esquecidos,
dispersos. A luta foi difícil, mas o ânimo era inquebrantável. Teve um que
falou: “Nossa, Piragibe!” Agora eu sei que o partido ainda existe.”
Das pessoas mais antigas do Partido, que não se envolveram
com o capitalismo, algumas perderam a sanidade. São as sequelas. O
meu sogro, nessa época, em uma reunião do partido muito importante,
recebeu o livro dos 80 Anos do Partido Comunista, mas infelizmente não
conseguiu usufruir. Eu conheci também, no Sindicato dos Bancários,
em 1980, um que foi dirigente comunista e foi difícil falar com ele sobre
você casava “na marra”: ou casava com ela, ou casava com o pai
dela. Aqui eu já sabia, por meio de contato, que já existia intimidade
no namoro, e o namoro acabava, e não se ficava devendo nada para
a menina, nem a menina para nós. Mas não, meu pai falou sobre a
ditadura. Ele falou: “Olha, eu estou te liberando para ir porque já está
abrindo a ditadura. Se fosse na época, por exemplo, do General Emílio
Médici, eu não deixaria, porque foi o período mais duro até agora. E
esse que está sendo cogitado aí, esse tal de João Figueiredo, o pai dele
também foi um democrata. E o general Ernesto Geisel já abriu muito
a nossa ditadura em relação, por exemplo, aos outros presidentes,
principalmente ao Médici. Só que o Geisel abriu gradativamente.
Por isso que ele está indicando um que depois desse vai voltar a
democracia no Brasil. Isso tenha certeza. Esse presidente que está
vindo aí pra dar anistia para todos os presos políticos voltarem e o país
voltar a ser democracia”. Aí eu falei: “Nossa, papai, e de onde diabo o
senhor ficou sabendo disso?”. Ele falou: “Isso eu não posso lhe falar,
filho. Eu tenho amigos há mais de 50 anos, amigo médico, enfermeiro,
farmacêutico, esse pessoal viaja e a gente conversa. Olha, tem um
universitário aqui da região do Cariri que sumiu. A família está louca,
não sabe onde está. Tem dois tipos de militares: os que são a favor que
volte a democracia, e os outros que são contra. E esses outros, eles
têm apoio da CIA e a desculpa de Cuba. Olha, você um dia chegou
em casa com a camisa do Che Guevara e eu quase queimei, só não
queimei porque eu tinha que lhe dar justificativa. A América Latina toda
está se tornando ditadura por causa de Cuba e Che Guevara, mas
essa é a desculpa que a CIA usa, todo mundo pode pender para o
lado de Cuba, menos o Brasil, porque se o Brasil for, a América Latina
toda vai para o lado de Cuba. E não é Cuba por Cuba, filho. Eu não
tenho nada contra ao que o Fidel fez em Cuba, eu até achei que foi
uma coisa muito legal. Agora, eu tenho tudo contra porque ele deu de
mão beijada a revolução dele para os russos. Quem são os russos
em relação aos americanos? Inimigos mortais. Quem são os nossos
aliados, filho? Os americanos. Está na nossa Constituição, está
morto e sumir. Isso não existe, mas, eu tinha 17 anos. Se ele falasse
que fizeram isso com o irmão dele, que ele ia jogar uma bomba no
Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações
de Defesa Interna (DOI-CODI), eu ia com ele. E, se fosse o caso, eu
colocava uma bomba no bolso do cara que fez isso com o irmão dele.
Mas não é por aí que íamos vencer a ditadura. E, graças a Deus,
quando foi no final da universidade, veio a transição. Veio a eleição do
Tancredo, e aquela alegria que estava voltando.
Aí veio a morte do Tancredo Neves. Um dia eu fui fazer algumas
palestras lá em Minas Gerais, e fiz questão de ir ao túmulo do Tancredo
rezar para ele, porque ele fez parte dessa nossa história e do lado
bom. Embora meu pai tenha dito que, quando o Jânio Quadros pisou
na bola, o Tancredo ficou como primeiro ministro para impedir a posse
do Jango. Porque quem ia assumir era o Jango, mas Jango era de
esquerda, e os políticos da época não queriam. Existia até uma operação
chamada Mosquito, que era pra derrubar o avião do Jango quando ele
entrasse no Brasil, quando ele saísse da Argentina. Falei: “Meu Deus
do céu, como pode? Que país louco, cara”. Estavam acontecendo
as maiores loucuras nos porões da ditadura: tortura, morte, violação
de direitos, e fora dos porões da ditadura parecia que estávamos no
paraíso, principalmente a minha geração. Íamos assistir filme, era a
Vera Fischer nua; íamos ao futebol, não tinha uma coisa que falasse:
“Tem alguma coisa errada com o Brasil”. Eu ia à escola, voltava, ia ao
cinema, jogava bola, namorava, bebia. E quando eu cheguei aqui, o
Marquinhos falou, se fosse outro, eu não tinha acreditado tanto, mas
o Marquinhos foi um dos “caras” que me emprestou o livro para eu
poder tirar cópia para estudar para a prova, porque não tinha dinheiro
pra pagar. Sou assim com o Marquinhos, demoramos muito tempo
sem nos ver, mas nós temos um laço muito forte. Ele na dele, eu na
minha, que Deus o abençoe sempre e o proteja. Mas quando nós nos
encontramos, temos história pra contar e história pra reviver.
Depois disso, eu pedi desculpas ao meu pai e falei: “Papai, eu
achava que o senhor tinha acabado com a minha cabeça. Eu acho
resposta de Arruda foi inflexível: “Prisão não foi feita para cachorro, se
tiver que ser preso, que seja preso!” Dei a instrução – não discutíamos
instrução – e seguimos adiante. As consequências todos conhecem.
O processo de Ibiúna foi montado pela justiça da ditadura por
categorias de indiciados, cabendo as acusações maiores contra os que
seriam os quatro principais responsáveis pelo congresso, a saber: José
Dirceu de Oliveira, Luis Gonzaga Travassos, Vladimir Palmeira e o Antonio
Guilherme Ribeiro Ribas, enquanto presidente da UPES. Depois, em uma
segunda categoria de indiciamentos, a promotoria militar denunciou um
grupo dos dezesseis estudantes, baseando-se no critério de que eles já
tinham antecedentes políticos; e, por último vinha o “grupão”, formado
pelos congressistas que foram fichados, reconduzidos aos seus estados
de origem e posteriormente libertados. José Dirceu, Vladimir Palmeira e
Travassos, ainda no período de formação do processo foram trocados
pelo embaixador americano Charles Elbrick. Antônio Guilherme foi
condenado pela Justiça Militar a 18 meses de cadeia.
O único estudante que efetivamente foi preso e condenado pela
realização do congresso universitário da UNE em Ibiúna foi Antonio
Guilherme Ribeiro Ribas, membro do PCdoB e líder secundarista. As
razões para que as coisas tenham se dado dessa forma envolvem
uma larga discussão que remete às diferenças ideológicas e às
idiossincrasias existentes na esquerda durante todo o período de
luta contra a ditadura, as quais, nessa oportunidade, abordá-las me
pareceria algo extemporâneo. Assim foi e ainda é.
Vida clandestina
A partir daí, passei a ser procurado. Chegaram várias intimações à
minha casa e uma equipe do DOPS esteve pessoalmente no endereço
que eles dispunham, à Rua Domingos de Moraes, nº 1293, apartamento
24 e na casa do meu irmão Walter Raphael, na Rua dos Comerciários,
nº101, Cidade Vargas; onde hoje fica localizada a estação Jabaquara
do Metrô. Foi assim que me tornei fugitivo e fui viver em Campinas, onde
residia a Antonieta Gisela Forlenza Ribas, minha primeira namorada
e posteriormente esposa, mas à época estudante de Medicina na
Unicamp, companheira de partido e moradora de uma república de
estudantes na Rua José Paulino, próximo à Praça Carlos Gomes.
Em Campinas, fui encarregado pelo partido de montar um
aparelho, ou seja, uma base operacional, em um bairro chamado Jardim
Chapadão. Quem escolheu o lugar fui eu, mas a aprovação de que ele
era apropriado foi da direção do partido. Esse aparelho estava instalado
praticamente em frente ao quartel onde fica a Escola de Formação
de Cadetes do Exército. A casa pertencia a um sargento e quem a
conseguiu, através de conhecimentos que tinha no meio imobiliário de
Campinas, foi um coronel da Polícia Militar chamado José Maximínio de
Andrade Neto. Esse coronel era um antigo simpatizante das esquerdas
e já fora preso em várias oportunidades sob a acusação de comunismo.
Era infartado e tomava medicação especial, requerendo constantes
cuidados médicos. Infelizmente, preso, morreu em um interrogatório em
São Paulo, sob acusação de ser apoiador de Carlos Marighela.
você fica em uma cela grande, com 20, 22 pessoas, é difícil explicar.
Vocês podem visitar as celas no Museu da Resistência. Havia três
prateleiras longas de cada lado, cada uma dava para dormir duas
pessoas, e tinha algumas que ficavam no chão, quando tinha muita
gente, eu não sei calcular, mas eram muitas pessoas em cada cela.
Então ali, do ponto de vista psicológico, você sente falta de privacidade
porque, por um lado é muito bom você sair daquele horror que era a
OBAN, pelo menos você era registrada, tiravam fotos e digitais suas,
e a família já podia saber onde estávamos presos. Quando fui fazer
o registro no DOPS, eu olhei por uma janelinha com grades, e pude
ver a rua, as pessoas passando, e pensei: “Nossa, que vontade, o
que é a liberdade, eles podem andar, eles não percebem que estão
andando livres e nós estamos presas aqui dentro”. Depois, descemos
de mãos dadas, para as celas por uma escadaria circular. Ruy ficou
na cela masculina mais ao fundo e eu fui para cela 3, a única feminina.
Todas as celas ficavam de um mesmo lado, só podíamos olhar para a
parede em frente, sem ver os companheiros das outras celas. Quando
cheguei à cela, logo fui recebida com carinho pelas meninas que lá
estavam presas. De algum modo, elas já sabiam de nosso caso e
de nossa prisão e procuravam atenuar a tristeza de não termos sido
libertados após a OBAN.
Toda noite, quando o carcereiro permitia, havia uma espécie
de ritual do canto, cantávamos canções de Chico Buarque e todas
aquelas músicas de protesto da época. Lembrando delas, eu até
fiz um trabalho para um congresso da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) sobre o papel da música na prisão. No
final, cantávamos a nossa música de prisão, que era mais ou menos
assim: “Diga ao menos: boa noite, saia apenas à janela para ouvir
o meu cantar, companheiros, confiança no futuro, que um dia nós
teremos uma manhã cheia de sol”, e então nós, da cela 3, dávamos
o boa noite para as demais celas; a gente falava: “Boa noite, fundão”,
que era a cela de isolamento, onde ficavam os casos mais terríveis,
que foram muito torturados e a maioria deles foi morta. Em seguida
eu falei: “Não”, “Mas nós soltamos você no mesmo dia, soltamos seu
marido e você no mesmo dia se você fizer isso”.
Essas são essas coisas que eu digo que arrasam, porque o
sofrimento físico se acaba aguentando, mas esse desprezo que eles
têm, falar dessa maneira... Bom, isso tudo se passa então na OBAN,
no DOPS, tem histórias deste cotidiano que não acabam mais.
Isso foi em 1971 especificamente. Depois de lá, fiquei um mês
no DOPS, ficava esperando ser chamada para fazer o cartório, como
eles chamavam, ou seja, que eles redigissem o processo criminal,
porque não tinha nada escrito, e você podia ser morta sem que nada
fosse registrado. Eu me lembro, inclusive, que tinha um cara que foi
preso e ele estava incomodando o pessoal da cela; ele gritava que não
tinha culpa, que não tinha nada que ver, que não era terrorista, que era
contra os terroristas, contra a esquerda, ele começou a gritar daquele
jeito e dava pontapés na parede que dava para a nossa cela. Então
no passeio de banho de sol, os companheiros me pediram: “Fala lá
com ele, para ver se o acalma, porque ele está insuportável”. Mas o
que eu fiz foi dar uma esculhambada nele: “Você não tem vergonha de
dizer que você não tem nada com isso? Você devia aproveitar, admirar
e aprender com esses meninos que sofreram por causa do teu País,
pela nossa liberdade, você não tem vergonha na cara? Cala boca e fica
quieto”. Pronto, ele ficou quietinho (risos), e os outros falaram: “Nossa,
mas psicóloga falando isso” (risos), eu falei: “Esse é o tratamento,
assim, de raio, direto e acabou”. Os presos que saiam deixavam
alguns livros, e eu comecei a guardar e juntou uma biblioteca, que
íamos organizando. Eu me lembro de que fiquei sentada no chão,
eles me deixaram, abriram a cela, sentei no corredorzinho, tentando
organizar os que tinham, os romances, depois fazia a lista, deve ter
ficado lá na OBAN isso tudo. Então havia um cotidiano de música, de
livro, de conversa, de jogos, de cigarro, que a gente não podia parar
de fumar porque não tinha fósforo, então você tinha que ter sempre
um aceso noite e dia, e quando alguém esquecia e não tinha mesmo,
a gente tinha que pedir para o carcereiro. Eu era encarregada de pedir
Nós saímos antes, porque meu filho era pequenininho, tinha cinco
anos, e perguntou assim: “E meu aniversário, mamãe?”, ele achava
que o aniversário dele tinha que passar na prisão, entendeu, ele já
estava preparando. E havia também o dia das visitas, recebíamos os
amigos que eram revistados, recebia a família e as crianças; mesmo
as crianças, a minha filha conta isso, eram revistadas, quer dizer, tirava
a calça, olhava atrás se tinha alguma coisa escondida, e eu perguntei
para ela: “O que você sentiu quando te revistaram?”, ela falou: “Eu
me senti muito importante porque parecia que eu era perigosa, que
eu podia levar uma arma dentro”. E os dois tentaram me salvar da
prisão, eles iam me empurrando para o canto, no pátio, para ver se eu
conseguia fugir, levando-me para um canto com o objetivo enganar os
carcereiros, depois que eu percebi. Mas eram crianças, crianças tão
marcadas até hoje, ficaram apavoradas, porque, de repente, acordam
no dia seguinte não tem pai e nem mãe; não sabiam onde eles estavam
e viam os adultos todos nervosos. Depois nada é explicado para eles,
quer dizer, acabaram dizendo que os pais estavam em uma escola
para pobres e por isso ficávamos internos lá e não podíamos sair, não
podíamos voltar. Como se fosse um trabalho.
A última vez, quando eu vi que não tinha chance de sair da prisão,
o negócio estava ficando cada vez mais feio, pedi para ver meus filhos.
Fiquei com medo de ficar lá até o Natal, então eu queria vê-los. Eles
foram uma vez ao DOPS e, quando eu desci, realmente foi uma coisa
violenta, que você tem que disfarçar, fingir, assim a minha filha chegou
para mim baixinho e falou: “Mamãe”, ela tinha o quê? Bom, meu filho
tinha quatro, ela tinha cinco, era uma diferença assim pequenininha,
ela falou para mim: “Mãe, os grandes pensam que você está em uma
escola, eles não sabem que você está na prisão, não fala nada, viu?”,
eu falei: “Tá bom, então não falo nada”, uma criança percebeu (risos),
mas como eles ouviam conversas de esquerda em casa, não é uma
coisa tão horrível assim, entende? E eu vi muitas famílias que tinham
vergonha das moças que estavam presas, porque era uma vergonha
ter uma filha presa, havia essa questão também.
os alunos e falei: “Olha, na aula passada eu falei pra vocês que era
importante a liberdade de expressão, e tudo o mais, olha, isso não
vai cair na prova, vocês, por favor, risquem isso porque isso não tem
valor, não vai cair na prova”. Teve gente que abriu o caderno e riscou,
quer dizer, eles não perceberam a ironia, quer dizer: “Isso não vai cair
na prova (risos), isso que ela falou não tem nada a ver com a gente, é
uma teoria”, então isso me deu uma tristeza, eu falei: “É dureza”.
Por isso temos que continuar lutando, falando, eu não sei como,
mas tem essas pessoas como a Sironi que têm interesse em ajudar.
É muito complicado. Nós ficamos muito tempo sem saber nada, a
sociedade tem um lapso, de não saber o que aconteceu. Mesmo
quando eu fui pra França, tinha gente que não sabia que tinha tortura
no Brasil. No nazismo também, havia alemães que não tinham noção
do que acontecia, era uma alienação total porque não saía nos jornais,
ninguém sabia.
Tem pessoas que até achavam que era bom aquela época,
tinham mais dinheiro, mais possibilidade. Atualmente você conversa
com chofer de táxi, que geralmente é reacionário, mas nem sempre,
eles acham que o governo da época da ditadura era melhor. É uma
visão. Por isso que eu queria, queria muito que esse grupo ajudasse
depois a organizar grupos de participação, que fizessem peças de
teatro, ou fossem em programas, que falassem sobre a experiência,
mas eu não sei como é que vai ser, duvido, eu me cansei um pouco
disso tudo porque a gente dá duro, dá duro, e não consegue.
Nesse momento, eu ainda estou mal. Fiquei muito mais tranquila,
evidente, depois que estabeleci esses contatos, houve essa abertura,
mas aí eu me entusiasmei demais, eu fiquei alegre demais, então agora
eu estou mais cautelosa (risos). Agora, é pena ter quer dizer que não
somos reconhecidas. Quando eu voltei para o Hospital das Clínicas,
isso marcou, gosto muito do meu chefe lá da neurologia, daquela época,
mas o que ele me falou foi: “Bem feito, você se mete com comunista,
olha aí o que acontece”, quer dizer, essa era a compreensão dele.
Então, ou eu era imbecil por me metemos com comunistas, uma tonta,
até porque foram, depois, para São Paulo. Estou querendo relativizar,
colocar coisas nos devidos lugares, fui torturado por um tempo bem
menor, embora tenha sido muito intenso. Foram cerca de 18 horas.
Puseram-me, logo em seguida da chegada, pendurado no pau de arara,
me deixaram nu, completamente. É muito constrangedor... São celas
muito grandes, antigas, de metros de altura, são lembranças que ficam
como aquela sombra projetada no teto, aquela coisa tétrica. No pau de
arara você fica com os tornozelos e os pulsos amarrados num cano, em
um travessão, e eu comecei a não passar bem, eu comecei a alegar
(um pouco disso foi falsidade minha): “Olha, eu estou sentindo isso,
já tem muito tempo que eu estou aqui, estou começando a perder a
noção, a consciência, o meu coração está batendo cada vez mais difícil,
e vocês serão responsabilizados pelo que acontecer agora, eu exijo que
chamem um médico da corporação. Vocês chamem imediatamente,
o meu irmão também é médico, se ele puder... mas vocês vão ser
responsabilizados”. Estavam nessa sala dois cidadãos, um deles eu
vi, depois, identificar-se como conhecido da família de minha mulher.
Tinha um da família, parece que era oficial da polícia, inclusive, que
procurava a minha sogra, maravilhosa pessoa, para obter informações,
porque a irmã da minha mulher também estava presa a essa altura, ela
ficou três anos e meio. Havia aquele jogo traidor da família, agentes
que frequentam a casa com aparente solidariedade familiar, mas, na
verdade, covardemente buscando informações.
Isso é um fato histórico, e isso deve se repetir em outros processos
ditatoriais pelo mundo afora, essa reação da sociedade em se distanciar
o máximo possível daqueles que estão envolvidos: “Não anda mais com
a fulana que é prima de não sei quem, de tal, vai sobrar pra você”. (Estou
fazendo uma referência paralela, e tentando me manter mais objetivo).
Essa noite, depois de eu reclamar que estava me sentindo muito mal,
o delegado que comandava a operação, chamado Roberto, foi quem
comandou o meu depoimento na polícia, cercado de um bando de
torturadores brutais, sendo que dois eram da região e os outros eram
todos de São Paulo.
então uma coisa para ficar como ilustração é que em uma dessas idas e
vindas do grupo, teve um momento em que eles chegaram e o Roberto
Guimarães, o delegado, mandou que me descessem do pau de arara.
Então, eu relatava como ilustração sobre esse clima daquela
noite, que, depois desse diálogo com o torturador, eu sabia que estava
sendo ouvido pelo microfone, mas eu fingi que não sabia e conversava
com esse torturador como se fosse em off: “Olha, eu não tenho mais
nada o que dizer, você precisa convencer eles lá fora”, e ele tentando
que eu dissesse alguma coisa, mas eu conseguia manter a lucidez
porque eu sabia que estavam ouvindo, então isso era pra reforçar: “Eu
sei que não tem ninguém nos ouvindo, você tem que conversar com
eles”. Dali a pouco, eles entravam, os demais torturadores, inclusive o
baixinho atarracado, que era o mais terrível, junto com o delegado que
comandava. O delegado entrou repentinamente na sala, assim: “Tirem-
no do pau de arara imediatamente”, o que causou uma grande revolta
nos demais: “Doutor, é um filho da puta, esse merece ir direto pra São
Paulo, que não vai chegar nem lá, não faça isso”. “Eu estou mandando”,
ele disse, e ficaram em uma discussão... o delegado que comandava foi
firme, mandou tirar.
Aí me tiraram de lá, mas disseram: “Você vai ter uma acareação
difícil”. Então me levaram para a sala ao lado onde estava esse
companheiro Paulinho, que, infelizmente, citara nomes, mais nomes,
inclusive o meu, e aí eu entrei na sala e me deparei com uma figura
inesquecivelmente torturada (o rapaz mexia com cinema, ligado em
artes, teatro, cinema, um intelectual sensível), todo ensanguentado, nu,
encostado numa parede da cela, prostrado, e aí:
- Foi ele quem te delatou, reconhece esse cara?
- Sim, sim, nosso amigo, participava de grupo estudantil, de
cultura, frente de cultura, frente de teatro.
- Foi ele quem te delatou: você junto com seu companheiro
Claudinei foram para Catanduva em um carro com milhares de quilos
de papel pra imprimir livros, apostilas de guerrilha.
- Como? Ô, Paulinho, você não está na sua consciência, falei.
pro Peru, pro Chile?”. Respondi: “Não tenho, é complicado”. Ele disse:
“O que eu posso fazer é o seguinte: vai comigo até a escadaria da
rua, você nem olha pra trás, você sai daqui de perto o quanto antes,
onde você puder se esconder... Se puder ir para o exterior, melhor,
isso é o que eu posso fazer, e vamos”. Mandou abrir os portões lá,
desceu uns degraus comigo, eu desci, fechou, e, a partir daí, são outros
episódios. Eu entrei em contato com esse meu irmão José, docente da
faculdade de Medicina da USP, e com todo o sigilo possível naquelas
circunstâncias, fomos para a entrada dos fundos do antigo prédio do
Hospital da Clinicas; meu irmão havia conversado com um colega para
que eu fosse atendido, sob o compromisso de segredo absoluto, sem
qualquer registro, recebi o primeiro atendimento do especialista. Depois,
com os medicamentos apropriados, fui para casa da minha noiva, eu já
tinha marcado casamento.
Durante a tortura, uma das coisas que me pegaram muito... eles
falaram: “Nós sabemos que você está com o casamento marcado com a
outra comunista, a irmã dela já está presa”. O delegado foi excomungado
pela tortura que ela sofreu, a irmã da Regina, da minha mulher. Uma
freira que cedia uma sala para um grupo de jovens também foi torturada,
dizia-se que também foi estuprada, a irmã Maurina, que acabou indo
para o México, ao que parece. A Áurea, minha cunhada, ficou três anos e
meio, foi tão barbaramente torturada que [a notícia] repercutiu, inclusive,
na Igreja Católica, setores progressistas da Igreja Católica agiram e
excomungaram o delegado de polícia Lamano, e esse é um caso que
ficou na história lá da região, ficou por isso tudo que aconteceu, então
eles se referiam ao caso: “Sua cunhada, aquela comunista”. Diziam:
“Nós sabemos que você está com casamento marcado com aquela
comunistazinha, irmã daquela. Só que é o seguinte, você nunca mais
vai ter ereção, você se prepare, vou te amarrar pendurado no pau de
arara, nunca mais você pensa que vai ter ereção, acabou, cara, tu sai
daqui inútil, e você sabe como é que nós vamos começar? Com um pau
de vassoura com uma mecha de tecido embebido em gasolina, vamos
te penetrar e por aí vai começar a sua esterilização, sua impotência.”.
uma contribuição muito importante. Pode ser que não impeça a história
de cometer retrocessos, pois ela é dialética. Acho que a humanidade
não avança em uma linha reta, mas em contradições e, evidentemente,
nós teremos recuos, mas cada passo adiante e cada luta como essas
que vocês estão fazendo é algo que nos faz avançar e dificulta o recuo,
embora possa acontecer. Mas cada pedra que se coloca no caminho
prognostica para algo melhor do que o retrocesso. Isso eu falo.
No dia do meu julgamento referente à anistia em Brasília, eu pedi
a palavra. Os juízes fizeram belos discursos, ofereceram a palavra e
eu pedi. Eram vários ex-funcionários aqui da Cosipa nos mesmos
processos, de anos diferentes. Tinha gente de 1964, tinha o meu caso
de 1969, tinha grevistas de 1982, um pacote. E eu falei isso que eu estou
falando para vocês, está nos anais, lá no Ministério da Justiça, sei que
está gravado, eu já pensei em pedir cópia, mas os anos passaram...
eu falo exatamente isso: a minha convicção é a de que nada garante
que a história não cometa retrocesso, a história humana mostra isso,
mas cada conquista que se faz dificulta esse retrocesso, ou o torna
menos doloroso, ou menos violento. Prospectivamente, eu acho que
essas ações são a construção de futuro melhor - Ministério da Justiça,
Comissão de Anistia, Comissão da Verdade, Comissão de Direitos
Humanos do Conselho de Psicologia, e outras. Eu acho que, em termos
de futuro da humanidade, são contribuições efetivas, sinceramente.
País. Vai sendo construído uma espécie de campo para que estas
questões possam fazer parte, naturalmente, do campo da Psicologia,
e não um tema para ser tratado como uma última possibilidade, caso
tenha sobrado um espaço. Penso que esta temática poderá ser uma
preocupação integrante da vida cidadã de todos os psicólogos do país.
Todas as organizações políticas que foram fundadas entre o final
dos anos de 1950 e na década de 1960, época que antecedeu o Golpe
de Abril ou na mesma época da Ditadura Civil Militar – e chegaram a
ser mais de 60 grupos - todos nós, que fundávamos as organizações
revolucionárias, como a Ação Popular Marxista Leninista e outras, e cada
uma dessas organizações achava que estava absolutamente certa. Para
você fazer a revolução, você tinha que analisar o caráter de classe da
sociedade para deduzir o caráter da transformação a ser proposta. Se
o Brasil já estava na fase capitalista ou pré-capitalista, ou se tinha que
resolver primeiro a questão da posse da terra.
Estou dizendo em uma frase o que ficava escrito e discutido
em inúmeros textos e documentos em organizações como a nossa. A
APML, com a adesão ao maoísmo, propunha a revolução a partir do
campo com o cerco à cidade. As divergências entre os grupos eram
inconciliáveis e levavam a cisões por estas análises ou outras de natureza
diferente, mas todas com o objetivo de resistir à ditadura e de vencer
o inimigo. Análise certa ou equivocada, mas todos tínhamos convicção
de que o que encaminhávamos era o certo. Essa convicção minha
acabou, caiu como um pano de cena em 1977, no dia em que fui visitar
o Aldo que estava preso no presídio do Barro Branco, onde estavam
todos os presos políticos de São Paulo. Então, ali, estavam todos os
presos políticos de São Paulo, vários dirigentes nacionais, o presídio
do Barro Branco era considerado um presídio político. E eles tinham
um costume, que mantiveram; quando ia uma pessoa pela primeira
vez, faziam uma ala, porque você entra na cadeia, é um corredor, uma
ala, e a pessoa que você vai visitar vinha apresentando: “Esse é fulano,
esse é sicrano”, todos já sabiam de antemão, que familiar ou amigo viria
visitar: “Esse aqui é o fulano dirigente do PCB, este do PCdoB, esse, da
Santa Cruz, que era de AP. Depois houve um dia em que a audiência
pública foi sobre o PCB. Os depoimentos que foram concedidos falaram
de coisas que eu não conhecia do Partido Comunista Brasileiro, de todo
o trabalho que eles desenvolveram com o Socorro Vermelho, contado
pela Albertina Duarte, e foi aí que ela perguntou sobre a Psicologia. Onde
estão os psicólogos na atenção às pessoas afetadas pela ditadura?
Ela perguntou publicamente, não a mim, porque ela não me conhece
pessoalmente, mas foi uma pergunta para a qual temos que poder
construir uma proposta. Então, eu passei a ter uma visão, eu diria assim,
compartilhável, de que algumas questões que a sociedade brasileira
deve resolver têm que ser compartilhadas. O inimigo tem muito poder,
e, sobretudo, tem as armas. Eu realmente acabei me formando nessa
escola pela prática. Na prática.
E essa oportunidade que me tem sido oferecida na Psicologia,
é realmente privilegiada. Eu poder estar nas Comissões de Direitos
Humanos, tendo sempre um apoio muito fraterno, de muito incentivo
do CRP-06, de todas vocês que eu conheci aqui nas diferentes gestões.
Agradeço muito a possibilidade dessa entrevista.
Meu nome é Maria Luiza Santa Cruz. Vou começar pela minha
decisão de ter me oferecido para conversar sobre isso, pois é o jeito
de poder contar um processo importante da história que vivemos em
nosso País. E, apesar de não ter sofrido a milésima parte de situações
que muitos sofreram nessa época, inclusive professores nossos, eu
acho que eu posso contar de outro lugar, diferente das torturas, físicas
inclusive, e que eu acho que vale a pena também saber como é que a
ditadura funcionava nesse sentido. E como ficávamos à mercê de um
autoritarismo, de um aprisionamento de expressão e não podíamos,
absolutamente, avançar naquilo que acreditávamos ser importante
para o nosso curso histórico.
Eu estava no primeiro ano da faculdade (1977), foi o ano da invasão
da Pontifícia Universidade Católica (PUC), onde eu fazia Psicologia. Logo
que chegamos, no início do ano, era uma novidade grande aqueles
colegas todos, não só da Psicologia, mas da universidade, perguntando
e apresentando os centros acadêmicos, os trabalhos do Diretório
Central dos Estudantes, o DCE Livre, que era uma proposta da época.
Tudo isso era muita novidade porque vínhamos de outras estruturas
escolares, e fazer parte da universidade já era uma novidade. Com tudo
isso, fomos vivendo esse primeiro semestre de universidade com muita
empolgação dessas possibilidades todas de discussão. Tinha aquelas
assembleias, aquelas coisas bastante importantes, eu diria. Porque,
diferentemente de outras universidades, tinha centro acadêmico, e as
outras faculdades e universidades tinham diretórios acadêmicos que
eram atrelados à diretoria das faculdades, então já achávamos aquilo
o máximo. Existia muita dessa discussão política, e, apesar da minha
inserção na faculdade ser recente e ser muito jovem, eu não tinha uma
militância política, mas tinha sonhos, tinha ideais que iam se conectando
com essas questões. E nessa história de sempre participar ativamente
do DCE Livre, do Centro acadêmico, surgiu a possibilidade de ir para
Belo Horizonte, no Terceiro Encontro Nacional dos Estudantes.
era nem polícia militar, era de quartel mesmo. De lá fomos direto para o
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em Belo Horizonte.
Isso também nos indicava que todo o movimento que acontecia
na universidade estava sendo vigiado, estava sendo mapeado, todo
mundo sabia.
Havia outras pessoas lá, tinha uma moça chamada Maria, de
Ciências Sociais, que conhecíamos de lá do Movimento DCE Livre.
Não era um ônibus só de estudantes, era um ônibus comum de
viagem, nós compramos passagem. Tinha outro rapaz também, acho
que esse rapaz depois morreu. Esqueci o nome dele, mas ele era uma
figura também bem envolvida. Na verdade, não sabíamos qual era o
envolvimento de cada um deles na política, na militância. Mas eles
que eram mais próximos que nós, discutiam as questões estudantis
e nos escutavam muito. Então, acho que tinha essa possibilidade de
encontro, de articulação.
Quando descemos, o outro ônibus já estava bastante cheio,
acho que não foi só o nosso que foi parado. O ônibus do batalhão foi
lotado e com soldados armados, era muito assustador. Para que tudo
isso? Éramos apenas estudantes. Acho que esse foi o primeiro grande
choque, ver como os estudantes daquela época eram tratados. De
forma geral, os estudantes eram tachados, como no meu caso: “Você é
culpada até que prove o contrário” e não o inverso: “Você é inocente até
que prove o contrário”. Éramos tratados iguais a todos os criminosos
possíveis e imagináveis da face da terra. Uma primeira dureza muito
forte, muito grande de ver aquela cena: estudantes entrando em um
ônibus, escoltados por gente com armamento pesado e sem nenhuma
explicação. Não diziam para onde estávamos indo, não diziam o que
ia acontecer conosco. Chegamos a BH, no DOPS, umas nove horas
da manhã, e ficamos sob a posse desse pessoal até umas três, quatro
horas da manhã. Quase 24 horas na mão dos caras.
Fomos levados para o DOPS, ficamos lá e ninguém sabia muito
o que fazer porque era muita gente, muita gente. Eu tinha um primo
que morava em Belo Horizonte nessa época e as notícias estavam
história bonitinha, porque não podia ter defensores, não podia ter
pessoas lutando por ninguém.
Era 1971, 1972. Acho que eu estava no primeiro colegial ou
segundo colegial. Eu tinha de 13 a 14 anos. Essa matéria era para
nos doutrinar. Era tão bonito você dizer: “Nossa, estou participando da
política, não é? Nossa, que matéria maravilhosa, não é?”. Participando
nada. Aí eu percebi que eu não podia falar. Aí comecei a me atentar
ainda mais. Percebi nas músicas, os cantores, que eles falavam por
códigos. Tinha uma música que falava “vida de gado, povo marcado,
mas povo feliz”. E tudo isso começou a me angustiar. Hoje sabemos
através da história, que a nossa riqueza foi sendo sugada, a riqueza
do Brasil, as nossas divisas foram sendo sugadas promovendo perdas
e rombos pelos maiorais, pelos grandões, e o povo brasileiro, o povo
que trabalhava, foi sendo escravizado, não tinha salário, vivia do nada,
sabíamos disso e não podíamos falar nisso. Sabíamos sobre aquele
Ato Institucional Número 5 lá em 1968, que fechou o Congresso, que
permitiu que se prendesse e fizessem o que quisessem com qualquer
pessoa, alunos dos movimentos estudantis, profissionais ligados aos
direitos humanos e inclusive o Juscelino Kubitschek foi preso, o ex-
presidente Lula, a presidente Dilma Rousseff, sabemos de muitas coisas
que aconteceram na época da ditadura.
Em 1968, eu tinha dez anos. Então sabíamos que estávamos
dentro da clausura. Tinha até um colantezinho para se colocar nos
carros, assim escrito: “Brasil! Ame-o ou deixe-o”. Porque se você fosse
falar alguma coisa, você ia ser exilado, com certeza, você ia ser morto,
você ia ser maltratado, ou alguma coisa ia acontecer com sua família.
E, muitas vezes, sumia alguém da família, de algumas famílias. Em
1973, nos mudamos para outro bairro, e nessa época houve algo muito
estranho. Meu pai tinha uma perua Kombi, que ele usava para vender
óleo a granel. A perua foi encontrada em um buraco perto da minha
casa, cheia de sangue, e isso não teve explicação. Daí meu coração
pulou de novo, pensei: “Meu Deus, o que pode ser isso?”. São coisas
que passávamos e morríamos de medo. Como vivíamos em época
esse dinheiro justamente para ser o quintal deles, para eles trazerem as
empresas deles para cá e o povo trabalhar de graça.
Foi o que aconteceu. Existia um jogo de poder e interesses em
que o dinheiro emprestado servia para sustentar a ditadura e o poder
sobre nós e para os Estados Unidos era um meio de nos ter nas mãos
e de ter mão-de-obra escrava, pois mandavam e desmandavam no
nosso país. Havia um boato sobre a amamentação, que o leite em pó
era melhor para o seu filho, era mais forte, que o leite materno era fraco,
as crianças ficavam com fome e a minha mãe deixou de amamentar por
conta disso. Ela comprava lata de leite em pó porque o leite materno
não era bom para o neném. A empresa estrangeira precisava de cliente
e o Brasil ainda era ecológico, natural, eles tinham que vender e se
firmar enquanto empresa aqui, então faziam o que bem queriam com
as pessoas.
Nós fomos abandonando nossos costumes e nossa vida natural
para virar o que somos hoje, consumistas de produtos industrializados,
perigosos, impostos a qualquer preço sobre nossas vidas. Hoje temos
consciência do quanto fomos prejudicados com a vida capitalista
selvagem em que prevaleceram os poderosos e o pequeno agricultor, os
pequenos comércios, foram desaparecendo, primeiro pelo êxodo rural
incentivado pela promessa de vida melhor nos grandes centros, e de
outra forma os pequenos sitiantes foram tendo que vender suas terras
para os latifundiários que compravam a baixo preço ou tomavam mesmo.
As minhas irmãs, elas não eram envolvidas, nenhum dos meus
irmãos. Éramos mesmo somente eu e meu pai. O meu pai sofria porque
ser agricultor não era nada fácil, a lavoura de grãos não tinha preço,
eu prestava muita atenção no que ele falava e sentia. Na verdade, eu
acho que eu era uma pessoa muito obediente às coisas que ele dizia,
sabe? Eu escutava muito. Isso me ajudou muito também, porque como
ele alertava, eu prestava atenção. Não que eu entendesse a “Voz do
Brasil”, não entendia nada. Mas o que eu via e sentia era muito forte
isso bastava para eu tomar partido, ele envolvido na política talvez
procurando um meio de mudança, em sua ingenuidade, porque na
lado, porque como eu vou ajudar se não souber além do meu coração?
Mas eu tive que esperar. Primeiro me casei tive meus filhos, fui prestar
concurso, trabalhei no banco. Eu precisava dar condições de vida a
eles, e mesmo porque eu não tinha como sair daqui para ir à cidade de
Assis fazer o curso de Psicologia. Mas eu já tinha toda essa coisa do ser
humano muito forte.
Eu queria ver mudança. Eu queria ver mudança de alguma forma,
eu precisava. Fui perseguida até agora com a eleição da presidente
Dilma, quando eu fiz uma campanha direta para ela, as pessoas que
trabalhavam comigo não concordavam, você acredita? Lembra aquele
momento muito difícil, quando o candidato opositor tentou desmoralizá-
la com boatos absurdos, alguns grupos se organizaram para tentar
derrubá-la, me deparei mais uma vez com uma grande injustiça e não
podia ficar calada, então parti para luta com a arma que eu tinha, em
uma defesa pessoa por pessoa, como também pela internet, desta vez
eu e meus filhos e genros. E você ali lutando e acreditando na vitória
como aconteceu, graças a Deus.
A nossa história na verdade é uma história maravilhosa, de
uma trajetória de pessoas lutadoras, e vitoriosas, que saíram do nada
somente com uma confiança em Deus e venceram. Quando o ex-
presidente Lula e a presidente Dilma venceram, todo um povo unido
com sua capacidade política, também venceu.
Se você for recapitular desde o começo, a passagem de tudo é uma
história muito coerente. Quando as pessoas partem em defesa das pessoas
menos favorecidas, ou lutam pela maioria, pela classe trabalhadora, que
é a que realmente sofre, é enriquecedor e gratificante, porque nada existe
se não for por meio do trabalhador. Não existem empresas se não for
pelo trabalhador. Não existe uma mega empresa se não for pela força do
trabalhador, fazendo valer o trabalho dia após dia. Então a nossa história
vem vindo assim, sendo construída. Ela foi construída e houve aqueles que
botaram a cara para bater, como o ex-presidente João Goulart, destituído
da presidência à força e exilado, ex-presidente Lula, militante perseguido e
preso por defender o trabalhador, a presidente Dilma, militante perseguida,
aqui tem uma história, e eu vejo esta geração tão calada, tão apática”,
eu olhava e falava assim: “Isso nos foi roubado, isso nos foi tirado”, e
eu acho que é verdade, tem sim uma geração que se criou nos porões
da ditadura militar, trancada lá dentro; e hoje essa oportunidade de vir
à luz, de ver à luz, ela é muito importante.
O meu pai, que é analfabeto, ele só sabe assinar, recentemente
vendo toda essa história, vendo agora a Comissão da Verdade, ele
faz algumas perguntas, e fala: “Mas, então, será que aquilo tinha a
ver?”, e agora que ele começa a ligar os pontos, com 78 anos. Ele está
bem de saúde, de memória, e agora que ele começa a ligar as coisas
e fazer algumas perguntas, então, o que ele vê na televisão, o fez
questionar sobre uma série de coisas que aconteciam naquela época.
Teve um dia que foi muito duro, ele falou assim: “Então será que eu
trabalhei pra essa tal ditadura?”, é doído demais quando a pessoa se
reconhece em um lugar que ela não estaria por opção, mas esteve. E
aí nós conversamos bastante, ele foi perguntando sobre a ditadura,
sobre Presidente Venceslau, sobre esse presídio, tudo isso.
Nem ele nem a minha mãe sabem que estou dando esse
depoimento, eu não contei, mas eu vou contar, e confesso que eu
estava bastante tensa, é um sofrimento, mas eu vou contar sim, e
mostrar, se tiver algum material para escutar e para mostrar, é ótimo,
porque ele não lê. Mas eu vou ler para ele.
Eu encontrei com o Frei Betto uma vez no lançamento do livro
dele, mas conversamos muito pouco, e foi uma emoção tão grande
estar diante dele... E eu descobri quem eram eles por causa de um
livro do Frei Betto que se chama “Cartas da Prisão”, escrito quando
ele estava preso. Quando eu vi aquilo, falei: “Então é isso”. As coisas
foram ficando claras, eu nem sei se ele conhece o Complexo de
Urubupungá lá, as hidrelétricas [risos]. Mas eu gostaria de dizer para
ele e acho que meu pai gostaria de dizer a ele, encontrar com ele e
ir até Venceslau depois; porque tem algumas coisas que é bom nos
reencontrarmos, pra superar, porque é um encontro de outra forma,
um encontro de outro jeito. Eu acho muito importante, então, este
guarda, que seja tão forte. O médico explicou na minha frente que ela
não poderia ficar.
Eu me lembro desse fato, eu me lembro da cor do hospital, um
azul claro e branco, azulejado, eu lembro direitinho até hoje. Isso eu
nunca esqueci, da escadaria, eu subindo a escada com uma tia, que
estava junto. Agora, esse momento de ficar no armário eu não lembro
(risos). Acho que deve ter sido tão angustiante que é melhor não lembrar.
Quando meu pai foi solto, que ele pode ir para Belo Horizonte. Ele
foi solto, na verdade, por conta da Igreja, dos estudantes e da classe
artística, que fazia manifestações em frente ao DOI-CODI, diariamente,
dizendo que sabiam que ele estava lá, mas os militares sempre negaram.
Os estudantes fizeram uma carta aberta para a sociedade relatando a
prisão do meu pai e que eu estava sendo vigiada pela polícia. Então,
ameaçaram ir para a mídia, colocar nos jornais, e foi colocado na época.
Devem ter sido jornais ligados a questões políticas, sindicatos, nenhum
jornal de grande porte.
O DOI-CODI ficou com medo naquela época, porque em 1974 já
estavam amenizando algumas situações da ditadura, então acabaram
soltando. Mas quando soltaram, quando o trouxeram, depois de preso
por quase quatro meses em que sofreu diversas torturas e que até hoje
tem as marcas nas costas, ele foi chicoteado, foi pra pau de arara,
tomou choques elétricos nos órgãos genitais. Com o cabelo molhado
colocavam-no dentro de uma bacia e davam choque. E meus tios
ouviam tudo, e ele gritava e pedia pelo amor de Deus. Ele chegou a
desfalecer duas vezes, e foi reanimado.
Um médico estava presente o tempo todo durante a tortura para
reanimar. E aconteceu de ter que fazer a reanimação duas vezes. Depois
disso tudo, depois de quase quatro meses, o chamaram. O delegado
ou capitão (não sei como nomear) chamou e queriam que ele assinasse
um documento alegando que não tinha sido torturado. Queriam enviá-lo
para a Itália, como se fosse a pedido dele, porque como ele tinha muitos
padres conhecidos era pra ele ir pra Itália, dizendo que era uma iniciativa
dele e não que estava sendo extraditado. Ele se negou a assinar esse
documento e mesmo assim o soltaram porque já não tinha mais jeito,
pois não foi a única. Essa foi a mais torturante, eu diria, mas outros
momentos de, por exemplo, minha mãe ter sido presa no final dos anos
1970, eu dentro de casa com meus irmãos, nisso eu já era mais velha,
já conseguia lembrar alguma coisa. Mas também de momentos bem
angustiantes, de ela estar presa, meu pai no trabalho, e eu sozinha
com os dois. Porque não tínhamos recursos, não tínhamos ninguém,
então o mais velho acabava cuidando do mais novo. Na época, minha
irmã devia ter uns dois anos, eu e meu irmão temos uma diferença de
dois anos. Então, eu tinha uns oito, sete anos, e cuidando dos dois.
Lembro-me dos vizinhos terem que acudir, de chamar tia, correr para
abrir portão. Lembro-me desse outro período, final dos anos 1970, início
dos anos 1980, antes da abertura, da anistia.
Naquela época eu já entendia porque eu fui obrigada a amadurecer
muito cedo, até por conta disso. Nós acompanhávamos nossos pais, eu
e meus irmãos, nas assembleias e reuniões, íamos pra rua com eles
direto. Logo que iniciei minha vida profissional, eu trabalhava no Hospital
do Servidor Público do Estado, e o Jamil Murad entrou em uma reunião,
virou pra mim com um monte de gente em volta e disse: “Essa aqui, eu
peguei no colo quando criança”. Eu queria me enfiar embaixo da mesa,
morrendo de vergonha (risos). Na época ele era deputado estadual e foi
vereador muitos anos em São Paulo, pelo Partido Comunista do Brasil
(PCdoB). Ele é funcionário do hospital, na época ele já estava afastado
porque ele era deputado estadual, mas ele foi até o nosso serviço, não
sei o que ele estava fazendo lá. Mas são coisas que vivemos. Na minha
infância toda a convivência foi com pessoas do partido.
Eu tenho lembranças muito gostosas dessa época. Claro que
ao mesmo tempo você fala: “Poxa, eu ficava sozinha com um monte
de crianças.” Por exemplo, o João Carlos Grabois, o Joca. Uma parte
da minha infância eu passei com ele, com o Joca. Não sei se vocês
sabem de quem estou falando. Às vezes, à noite os pais tinham que
ir para reuniões porque eram todas clandestinas e tinham que ser à
noite, eu ficava na casa do Joca, eu, ele, a prima e o primo dele, os
Teles, juntos. Todos crianças. Fazíamos farra. Eu me lembro de que não
tínhamos condições de ter revistinha em casa, da Mônica, não tinha. E
Nos anos 1980, quando teve a abertura da anistia, meu pai foi para
o Sindicato dos Metalúrgicos. Então eu entendia que o Sindicato era um
meio de trabalho pra ele, e não que era o partido, mas era um trabalho
ligado ao partido. E quando entrei na faculdade eu fui me envolvendo
também, entendendo Marx, entendendo Lênin, porque eu estudei muito
isso na faculdade, e fui entendendo o porquê do envolvimento deles, da
luta deles. Porque meu pai sempre foi uma pessoa que não aceita, ele
luta pela superação da desigualdade social.
Onde eu trabalho hoje, por exemplo, eu encontrei uma pessoa que
era da mesma época e trabalhou com ele no partido. Ela veio me contar
uma história: uma vez encontrou com meu pai, eles estavam fazendo
campanha, uma coisa de trabalho social, e aí tinha que dar lanche para
o pessoal porque era um evento de dia inteiro. E ela era responsável pela
distribuição dos lanches. Meu pai achou que ela estava dando lanches
a mais para os dirigentes ou que tinha alguma hierarquia e deixando
de dar para o povão, para as pessoas que estavam lá voluntariamente
trabalhando, os metalúrgicos. E ele chamou a atenção dela. Ela falou:
“Não Vital, eu não estou fazendo nada disso!”, e explicou a situação.
Então ele sempre foi muito: “Aqui não existe diferenças, temos que
dividir por igual, todo mundo”. E isso eu compreendi depois. Quando
me formei, depois que eu me formei, coincidentemente, fui trabalhar
com pessoas que são ligadas ao partido. Até hoje trabalho com elas.
Você acaba conhecendo as histórias e vê que tem pessoas do PCdoB
em vários locais, inclusive dentro da saúde, que é onde eu trabalho.
E aí acho que fui abrindo um pouco mais a cabeça, entendendo,
compreendendo e aceitando.
Quando eu saí da faculdade, logo que eu saí, meu primeiro
emprego foi em uma ONG chamada Casa da Mulher e da Criança, no
Campo Limpo. A pessoa que me chamou para trabalhar conhecia a
minha história, que é a Neide Martins, muito amiga da minha mãe. Ela
era uma pessoa do partido e eu fui fazer trabalho comunitário, acho que
isso me ajudou mais ainda, a partir daí fui entendendo. Trabalhar com a
questão da violência, que tem a ver com a minha história, uma outra forma
de violência, que é a violência que vivemos hoje, a violência de gênero,
O movimento estudantil
Eu entrei na USP em 1968, e sendo a minha família mais
conservadora, a minha proximidade com a política teve início quando
os últimos que partiram para a luta armada já se iam – lembro de ter
cruzado no corredor da Psicologia com a Iara Iavelberg que, depois
disso, nunca mais vi.
O ano de 1968 ainda era um período fervilhante do movimento
estudantil. Os ventos que vinham da França, com os estudantes fazendo
barricadas e colocando-se do lado dos trabalhadores, bem como a
resistência do movimento hippie nos Estados Unidos, se opondo à guerra
no Vietnã e propondo make love, not war e a contestação da sociedade de
consumo incipiente, estimulavam a nossa imaginação. Aliás, a palavra-de-
ordem mais sedutora remetia justamente a isso – “a imaginação no poder”.
Vivíamos um tempo de transição entre a R. Maria Antonia – que
ainda abrigava alguns de nossos cursos – e a Cidade Universitária que,
em nossa interpretação, visava nos distanciar uns dos outros, no que
A imprensa nanica
Ao sair da universidade, em 75, recomeçava o movimento social,
desta vez encabeçado pelos metalúrgicos do ABC. Paralelamente,
surge e se multiplica a imprensa nanica.
Você fazer um jornal em época em que tinha censura prévia era
uma coisa complicada... Você vai escrever de um jeito que o censor
vai deixar passar a tua matéria, portanto se autocensurar? Ou você vai
escrever do jeito que você acha que tem que ser, depois ele que corte?
Na época, fortalecidas pela demanda que surgiu num Encontro
patrocinado pela ONU/ABI, no Rio de Janeiro, por ocasião do Ano
Internacional da Mulher, terminamos publicando o “Nós Mulheres”, um
jornal feminista, que seguiu por pouco o lançamento do Brasil Mulher, que
no início começou se apresentando como o jornal feminino pela anistia
– que ganhava força e representatividade, encabeçado pela Terezinha
Zerbini. Então, tinham os dois jornais que terminaram tendo muita coisa
semelhante, e que tinham por interesse tentar chegar às trabalhadoras
- às mulheres da classe operária - ou, se não às trabalhadoras, às
mulheres ou esposas dos trabalhadores, às donas de casa da periferia.
Elis Regina bancou o primeiro número e Ruth Escobar, o segundo.
Vendíamos ou distribuíamos de mão em mão, para mulheres que
poderiam multiplicá-lo, nos oferecendo a fazer debates em seu grupo
ou bairro sobre o tema que lhes interessasse.
Depois de um tempo, saí do Nós Mulheres e acabei passando
pelo jornal “Movimento”, depois pelo “Repórter”.
A discussão de pauta era uma discussão política - o que era mais
importante naquela semana, como é que faria, como escreveria, quem
cobriria. A manutenção do jornal era também uma coisa engajada,
nós sustentávamos o jornal, tinha alguns jornalistas profissionalizados,
mas um número mínimo; os outros, não. Tinha os que ajudavam como
jornalistas, tinha os fotógrafos, os ilustradores, os que ajudavam na
distribuição, tinha os que ajudavam na conversa, na discussão, enfim,
cada um fazia o seu pedaço para poder fazer as coisas chegarem lá
na ponta, porque era o jeito de levar a discussão lá ou colher de lá as
Os Congressos de Mulheres
Organizei, com o auxílio de uma militante da categoria e do
sindicato, grupos de operárias, para discutir a situação delas, o cotidiano,
o sindicato, por que elas não iam ao sindicato, por que elas precisavam
ir. Foi assim que descobrimos o sistema de chapinha para controlar o
seu tempo de idas ao banheiro, o salário menor mesmo que fosse o
mesmo trabalho executado por homens, o ambiente no sindicato, que
lhes parecia hostil, porque só tinha homem, e diziam “Bom, tem até
barbeiro lá, mas não tem cabeleireiro no sindicato!”. E não tinha espaço
suficientemente adequado para que elas pudessem falar de seus
problemas. Então acabamos, na discussão com elas, transformando
isso em uma reivindicação por um departamento feminino no sindicato.
Quando a diretoria soube disso [risos], disseram: “Companheira,
muito obrigado, saudações! Nós vamos continuar fazendo sozinhos
essa história”. E fizeram, eles mesmos, o primeiro Congresso da Mulher
Metalúrgica. Fomos cobrir, como imprensa, e, diante da discussão e
A abertura
Tínhamos que ir à luta dentro do que era possível fazer – era
um sentimento interno que nos impulsionava, para além de qualquer
formação política. E eu acho que talvez, por eu ter chegado depois dessa
opção mais radical do pessoal que foi para guerrilha, e inclusive por ter
acabado me alinhando com o pessoal que fazia crítica ao romantismo
dessa ida à guerrilha, eu acabei ficando em uma situação um pouquinho
mais confortável.
Claro que tinha gente que causava desconfiança na sala de
aula porque podia ser olheiro, podia ser infiltrado. Tinha companheiros
que conhecemos por codinome. Havia pessoas que moravam em
determinada casa, “não leva namorada por uma questão de segurança”.
Então como é que fica? Uma série de normas e de regras em torno de
segurança. No meu caso, a opção foi mais no sentido de ”vamos em
frente que não podemos ficar paranóico, não pode ficar noiado”, um
pouco mais por aí.
Eu lembro que levávamos as crianças nas passeatas pela
redemocratização. Tinha minha filha pequenininha, punha ela
no colo ou sobre os ombros do pai, e, eventualmente na hora de
parar, fazíamos uma rodinha em torno e a criançada brincava, mas
estávamos lá, protestando, reivindicando e vigilantes. Primeiro de
Maio, lá em São Bernardo, quem tinha filho levava. Precisamos
aprender, nós vamos defendê-los, estamos todos aqui, e vamos
em frente. Mas esses tempos já sinalizavam a abertura, tempos um
pouco mais amenos.
Assim como tinha gente que se tornava operário. Eu conheci,
entre os metalúrgicos, um que citava Reich! E eu não tinha lido Reich
na faculdade de Psicologia! (risos). Muitos anos depois eu descobri
que ele era formado em Filosofia! Mas enfim, tinha essa coisa, tinha
esses relatos impressionantes, doloridos, sofridos. Assim como tinha
os momentos mais de batalha. Passeatas com os metalúrgicos de São
Paulo, com os bancários, reprimidas pela polícia, onde teve gente que
apanhou, que derrubou portão da fábrica!
mãe sempre ficava no portão, esperando por ele. E ela o viu passar,
no carro da polícia. Viu o carro passar e já ficou aflita. Ele mostrou aos
policiais onde morava e apontou nossa mãe no portão, esperando. Ele
teve a felicidade de ser solto alguns quarteirões à frente. Talvez naquele
dia os policiais não estivessem tão maus. Ele chegou em casa nervoso,
preocupado, falou: “Olha, eu fui preso lá por aquele pessoal, eu não
estava fazendo nada, estava voltando da escola”. Minha mãe ficou
muito aflita, pois ela era militante do grupo da Igreja que eles chamavam,
antigamente, de Comunidades Eclesiais de Base.
Ela também sofria muito, porque participava das atividades da
Igreja sempre clandestinamente, porque eles se reuniam sem avisar,
não podia parecer que estavam reunidos. Tínhamos um primo que
fazia Academia de Polícia na época, era aspirante e sofreu a mesma
pressão que todo mundo sofreu, porque ele sofreu o lado de dentro:
ele era obrigado a fazer. Então ele alertou que o comando da polícia, o
Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de
Defesa Interna (DOI/CODI) disse a ele para avisar a minha mãe para ela
não participar mais daquelas atividades, reuniões clandestinas, porque
ela já estava com o nome dela na lista para ser chamada no comando.
Isso acabou criando um impacto na nossa família , lembro que até
mudamos de cidade, fomos morar em um condomínio fechado na cidade
de Guarulhos, essa alternativa trouxe alguma dificuldade, mas foi uma
tentativa para evitar os riscos que nossa família corria naquele momento.
Foi nesse momento que dei início a minha vida cidadã e religiosa,
comecei coordenando um Grupo de Jovens no meu condomínio,
fazíamos atividades teatrais, canto e jogos, participávamos de todas as
missas e permaneci por uns quatro anos. Quando entrei na faculdade,
eu deixei um pouco de lado essa vivência religiosa de comunidade para
entrar de uma vez no movimento estudantil, era o início da “abertura
politica - anistia, geral e irrestrita”, mas o nosso Grupo de Jovens sofreu
dificuldades para se encontrar, reuníamos às escondidas, os padres
nos escondiam nos cantos quando era para fazer algum movimento
mais amplo, era com muita vigília, com a orientação de falar só de
Igreja, nada além.
Relato
Primeira Situação - 1967
Em 1965, eu tinha 24 anos e trabalhava durante o dia no Banco
Moreira Salles S/A, em Santos. Era, também, participante das reuniões,
assembleias e passeatas organizadas pelo Sindicato dos Bancários de
Santos, que pretendia acabar com o trabalho aos sábados, além de
outras reivindicações.
À noite, trabalhava como secretária no setor de ensino da
Companhia Siderúrgica Paulista (COSIPA), em Cubatão. Naquela época
era, também, Diretora Social do Centro dos Estudantes de Santos,
considerado, pela ditadura militar, um foco de comunistas.
No final de 1965, deixei o banco e assumi o cargo de escriturária,
por concurso, na Prefeitura Municipal de Santos.
Em 1967, pretendendo fazer faculdade, fui impedida pelo reitor,
Dom Manoel Pestana Filho - padre Pestana e pelo vice-reitor Padre
Américo Soares. Esses dirigentes tinham professoras (es) e alunos
(as) fortemente ligados à Igreja e pertencentes ao que chamávamos
de CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e sob a orientação de
uma “psicóloga” prestaram-se a aplicar testes psicológicos de fachada
como instrumento de eliminação de candidatos indesejáveis.
Esse grupo agiu, portanto, como repressor, atendendo às ordens
do então ministro da Justiça, professor Luiz Antônio Gama e Silva, que
determinou às universidades que elas se organizassem no sentido de
mãe abrindo a porta e eles entrando. Nessa hora meu irmão fugiu; pulou
o muro da vizinha e foi embora. Foi para São Paulo; não voltou mais
para Santos.
Quando minha mãe tomou consciência que foi ela quem abriu
a porta para que a polícia prendesse seu filho, desequilibrou-se
emocionalmente. De descendência italiana, com forte apego aos filhos,
não admitia ter facilitado as coisas. Sofreu muito. Ficou traumatizada.
Precisou procurar o auxílio de um psiquiatra, Dr. Aníbal Marques, que
além da medicação a aconselhava a deixar a casa queimar. Dizia ele
calmamente diante de suas queixas/preocupações: “Dona Armília,
deixa queimar!”, uma alusão a que ela não se preocupasse tanto com
as coisas.
Voltando ao relato de minha situação, quero salientar que a
eliminação das lideranças estudantis usando o recurso da aplicação de
testes psicológicos foi de uma brutalidade sem limites.
Os alunos das faculdades comentavam; vários setores da
sociedade discutiam o fato; reportagens nos jornais com nossos nomes
nos afastaram de muitos amigos/conhecidos e... a marca ficou!
Embora saiba, hoje, com clareza, que os motivos foram políticos,
sequelas emocionais ficaram por muito tempo e acredito que ainda
permanecem, evidenciando-se toda vez que me aprofundo na lembrança
daquele período traumático de minha vida.
Lembro ainda que os testes, inclusive o teste de Rorschach, foram
aplicados no Colégio Santista que ficava na rua 7 de Setembro, tendo
em cada sala cerca de 25 ou 30 candidatos e, no momento de sua
aplicação, havia no pátio do colégio uma banda musical ensaiando e a
algazarra de uma partida de futebol.
Encaminhamento
O grupo eliminado recorreu a vários políticos, apelou para o bispo
D. Davi Picão, contratou advogado para nos defender, mas não obteve
resultado. A decisão foi irrevogável. Estávamos eliminados!
Providências
Em 1970, já tendo terminado a Faculdade de ciências procurei em
São Paulo um Instituto de Psicologia credenciado (esqueço o nome) e
me submeti a uma bateria completa de testes, pagando na época uma
fortuna para meu orçamento.
Nada constando nos testes, ainda assim, não me tranquilizei.
Entrei na Faculdade São Marcos para fazer o curso de Psicologia (1971).
Um dia, ouvi falar de um hipnólogo famoso em São Paulo.
Procurei-o e relatei-lhe minha história. Queria submeter-me a hipnose
e acabar com lembranças desses fatos desagradáveis que me traziam
sofrimento. Ele me ouviu com atenção e no final me disse que meu caso
não seria com ele. Deu-me, então, o endereço de um médico psiquiatra
que poderia me ajudar: Doutor Paulo Fraletti!
Quem lê este relato e interessa-se pela história da ditadura militar
no Brasil certamente conhece ou já ouviu falar no Dr. Paulo Fraletti e nos
seus serviços de tortura a presos e perseguidos políticos, no hospital
psiquiátrico do Juquery, onde era diretor. Eu não o conhecia! Seu
consultório ficava perto da praça da República, centro de São Paulo.
Conclusão
Ou este mundo é muito pequeno ou eles são em número bem
maior do que pensamos, pois fui cair justamente no centro do furacão.
Adendo 1
Algum tempo depois solicitei à PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,
GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL, AGÊNCIA BRASILEIRA
DE INTELIGÊNCIA, uma certidão que comprovasse se havia algo contra
mim nessa instituição.
Eles me enviaram uma certidão que aponta situações que estão
sob análise, sobre o meu comportamento:
1) “Foi uma das debatedoras sobre o tema Sexualidade e
Interesses Sexuais na Infância e Adolescência acontecido durante o
Terceiro Congresso Estadual de Educação, realizado em São Paulo, nos
dias 27, 28 e 29 de março de 1985”.
Ora, isso aqui pra mim é motivo de orgulho; não é motivo de punição.
2) “Participou do Oitavo Encontro Nacional Feminista realizado em
Petrópolis, Rio de Janeiro, no período de 7 a 10 de agosto de 1986”.
Nesse Encontro Nacional Feminista eu trabalhava com as mulheres
usando o recurso da música, dança, expressão corporal nas oficinas do
Projeto Sexualidade com Prazer.
3) “Durante o IX Encontro Nacional Feminista, realizado em
Garanhuns, Pernambuco, no período de 3 a 6 de setembro de 1987, foi
Adendo 2
Documento da Câmara Municipal de São Paulo - Cumprimentos
com votos de júbilo e congratulações ao brilhante trabalho realizado
pelo grupo Sexualidade com Prazer.
Comentário
É, estamos sempre querendo acreditar na vida, no ser humano;
tinha um objetivo e aquele objetivo para mim era muito forte, eu acho
que direitos humanos são indiscutíveis; por exemplo, há muita gente
que acha que aqueles 117 presos que foram fuzilados lá no Carandiru
mereceram: “Ah, eles mereciam coisa assim”.
É forma de pensar dessas pessoas; não se colocar no lugar do
outro; é achar que se é pobre, é negro, é favelado, é nordestino tem
que ter um tratamento diferenciado do rico ladrão. E acaba sendo a
vitória do preconceito. Entendemos que, de forma alguma, aquele
massacre na penitenciária do Carandiru poderia ter acontecido, visto
que eles estavam sob a custódia do Estado, então não cabe ao Estado
ser executor provocando uma situação daquelas; eles já estavam
cumprindo pena, não tem porquê, não existe porquê a polícia ter agido
assim. Mas há pessoas que forçam e quando essas pessoas se reúnem
elas formam uma barreira muito forte para as ideias não passarem,
ideias mais humanistas não passam, não passam!
Quando se pensa em dar o mínimo de condições ao miserável
(bolsa família), ao negro (cotas), à mulher (ganhar o mesmo salário que
o homem na mesma função), não tem porquê. Eles não aceitam. Até de
Conclusão
Analisando as duas situações aqui relatadas de perseguição
política, concluo que a pior, a mais pesada, a mais traumatizante foi a
primeira, por causa da aplicação dos testes psicológicos, pois até hoje
encontro pessoas que acompanharam os fatos naquela época e posso
lhes garantir que a sensação é muito desagradável.
Portanto, eu gostaria que o Estado reconhecesse a situação dos
perseguidos políticos e definitivamente assumisse que foi o responsável
por todos os transtornos emocionais, morais e materiais provocados em
minha vida.