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Introdução
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embora Shelby se concentrasse na arquitetura medieval. Bill Addis (2016) e
Dominique Tournès (2003) podem ser citados, assim, como autores contem-
porâneos em relação ao tema, na história da construção e na história da
engenharia, respectivamente. Nessa direção, o cruzamento de informações
sobre os instrumentos disponíveis na Antiguidade, assunto tradicional da
arqueologia, com as pesquisas de autores como Shelby, Addis e Tournès,
entre a história da tecnologia, da construção e da engenharia, conduzem
naturalmente à necessidade paralela de investigar a história da matemática,
como modo complementar de (re)construir nexos e contextos históricos.
Não obstante, para além desses campos, tradicionalmente mais
próximos ao da história da arquitetura, pode-se, ainda, lembrar os estudos
recentes na teoria historiográfica francesa sobre os lieux de savoir (JACOB,
2014). Parafraseando os conhecidos “lugares de memória” do historiador
Pierre Nora, essa área de pesquisa cuida de investigar todos os âmbitos do
fazer/saber, da prancheta de desenho ou da tela do computador, passando
por escritórios e laboratórios, até as instituições e redes de conhecimento
(e poder). É todo um universo de pesquisa que se abre, no entendimento
das relações entre cultura material e fazer ciência, em sentido amplo.
Finalmente, cabe destacar que, não podendo dispor de afastamento
e financiamento para dedicação exclusiva à pesquisa, visando a viagens e
consultas a bibliotecas e museus, a constituição de uma biblioteca própria
de tratados arquitetônicos antigos – o autor se refere, principalmente, a
exemplares originais físicos (ROCHA, 2020) – e de uma coleção particular
de instrumentos matemáticos (com mais de 50 itens) tornou-se algo funda-
mental, posto que apenas a consulta de exemplares digitais de tratados ou
mesmo edições fac-similares, bem como a pesquisa digital sobre instru-
mentos, não são suficientes para um adequado aprofundamento do tema.
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É o caso, por exemplo, da leitura neoplatônica de Os Elementos, que
remonta ao filósofo grego Proclo Lício (412-485). Proclo, antecedido por
Pappus de Alexandria (290-350), são considerados duas das fontes mais
antigas sobre a matemática grega. Dentro dessa tradição de leitura repre-
sentada por Proclo, determinadas figuras geométricas puras, construídas
com esquadro e compasso, assumiriam um papel de expressão da verdade
de uma beleza ideal, que garantiria ao produto arquitetônico dignidade e
significado através de sua perfeição matemática e harmonia (SVENSHON,
2009). A recuperação renascentista da cultura clássica passa, assim, pela
recuperação de parte dessa visão de mundo, com relação às formas perfeitas.
Tome-se como exemplo de permanência de tal leitura, ainda que de
maneira híbrida, dois mil anos depois de Os Elementos, as Advertências aos
modernos que aprendem o ofício de pedreiro e carpinteiro (1739), do mestre-
-pedreiro Valério Martins de Oliveira:
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o quadrado; e tudo o que se fizesse fora dessas duas figuras, seja tido por
falso e não natural” (OLIVEIRA, 1739, p. 16).
Há, portanto, uma naturalização das formas geométricas puras, o
círculo e o quadrado, que não só seriam encontradas na natureza, como
estariam presentes no próprio homem. A última frase, entretanto, parece só
poder ser convenientemente entendida no contexto de uma compreensão
mais ampla da matemática clássica, para além de Euclides. Pappus, por
exemplo, propõe que
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de matemática avançada da Antiguidade que se utiliza de outras ferra-
mentas, como a mecânica, em uma versão especulativa. Do ponto de vista
especulativo, as bases da mecânica clássica foram lançadas por Aristóteles
que, em sua Física, destacava a importância da observação da natureza
(phýsis) e dos estudos sobre o movimento dos corpos. Contudo, será com as
Quaestiones Mechanicae, inicialmente atribuídas ao filósofo, e, para alguns,
elaboradas pelo pensador pitagórico Arquitas de Tarento (WINTER,
2007), que se alcançará um maior desenvolvimento. Deve-se às Questões
Mecânicas a definição mais antiga sobre as máquinas: “Quando é necessário
fazer algo contra a natureza, há perplexidade diante da dificuldade, então
a arte (techne) é requerida. Chama-se a esta solução da perplexidade um
mechane [...]. É assim que […] coisas com pouco impetus movem grandes
pesos” (WINTER, 2007, p. 1; GARCÍA, 2000).
É nesse contexto que, talvez, possa ser entendida a frase: “E tudo o que
se fizesse fora destas duas figuras [redondo e quadrado], seja tido por falso
e não natural.” Fora da tradição euclidiana, as formas são construídas com
mechane, com astúcia, com instrumentos outros que não só com esquadro
e compasso simples.
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A história do compasso, por sua vez, começaria na Grécia. Segundo
uma lenda, ele teria sido inventado pelo mitológico Perdix, sobrinho de
Dédalo (arquiteto do Labirinto do Minotauro). Os gregos usavam três
instrumentos diferentes para traçar círculos: tornos, karkinos e diabetes.
Para Shelby (1965) o primeiro estaria relacionado à maneira mais simples
de desenhar mecanicamente um círculo, utilizando uma corda e um ponto
fixo. Posteriormente, já aparecerão, além dessa maneira mais elementar
de operar com círculos, e dos compassos simples propriamente ditos,
compassos de redução. Essa espécie de compassos continuará em uso até o
século XX. Entre os romanos haveria, ao menos, três espécies de compasso:
o Dividers, termo em inglês para compassos simples de ponta seca; outro
tipo com pernas curvas, para medir pequenos objetos e, também, propor-
tional dividers, ou compassos de redução para ampliar e reduzir desenhos.
Ainda em relação à Grécia, ou à cultura helenística, Nicomedes parece
ter desenvolvido um instrumento matemático para traçar suas curvas
conchoides, utilizadas na resolução de problemas clássicos, antes referidos
– e que, talvez, tenha servido de referência para Filippo Brunelleschi para
a construção da cúpula de Santa Maria del Fiore, em Florença. Heron de
Alexandria (18-85 a. C.), por sua vez, possui um trabalho sobre a dioptra,
espécie de teodolito com nível-d’água, e, no livro sobre mecânica, fala sobre
um pantógrafo, utilizado para copiar figuras (Figura 1). O nome de Heron
assume importância na história da tradição mecânica, pois seus textos
tiveram ampla divulgação. Embora seja de se lamentar o fato de que seu
livro sobre arqueação tenha sido perdido, por outro lado, seus trabalhos
ainda aguardam exame mais atento, dentro da história da arquitetura e da
construção. Tendo identificado em O Método, de Arquimedes, raciocínios
passíveis de serem aplicados na construção de abóbadas, Heron tem seu
tratado comentado por Isidoro de Mileto (séc. VI). Outro comentador
de Arquimedes, Eutócio de Ascalon (c.480-540), pode ter sido aluno de
Isidoro e amigo de Antêmio de Trales (c.474-534). Deve-se lembrar que
Isidoro e Antêmio são os responsáveis pela construção da Igreja de Santa
Sofia, em Istambul.
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Figura 1 – Pantógrafo moderno de fabricação japonesa (Takeda)
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mecânica refere-se tanto ao problema da firmitas (a questão construtiva)
quanto ao uso de máquinas. O Livro X de De Architectura – portanto,
era parte do encyclios disciplina, o conjunto de estudos, geometria, música,
astronomia, etc., necessários à formação de um arquiteto. Esse aspecto
parece importante, pois a necessidade de conhecimentos de mecânica está
presente, de maneira explícita, na formação do arquiteto da Antiguidade
clássica, do mundo bizantino, da Idade Média (consultar, por exemplo, o
Caderno de Villard de Honnecourt), e do Renascimento (Brunelleschi,
Leonardo da Vinci, etc.).
Retomando a pequena história dos instrumentos matemáticos, em
relação à Idade Média, Shelby (1965) aponta que, apesar de registros do uso
de certos tipos de compasso por scholars, como o de três pernas, não haveria
evidência da utilização de outros compassos pelos mestres- pedreiros para
além dos compassos simples – entre os quais o grande compasso. A maior
utilização do pequeno compasso, no final do período, ainda segundo o
autor, apontaria à importância crescente do desenho nos processos de
concepção de obras de arquitetura.
O mesmo Shelby é responsável por um importante estudo dos moldes
planos utilizados pelos mestres medievais para produzir artefatos tridimen-
sionais em pedra, “empregando uma geometria prática que os habilitava
a manipular formas geométricas para produzir resultados que eles não
podiam explicar matematicamente” (SHELBY, 1971, p. 150).
A flor de Brunelleschi
ciências” (apud MACIEL, 2006, I. I. 17). Como exemplos, entre outros citados pelo
arquiteto romano, aparece o nome dos mencionados Arquitas de Tarento, Eratóstenes
de Cirene e Arquimedes de Siracusa.
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na Idade Média, em relação ao Renascimento, um dos trabalhos mais
instigantes sobre os possíveis métodos utilizados por Brunelleschi para a
construção da cúpula de Santa Maria del Fiore (1418-1436), em Florença,
foi desenvolvido pelo pesquisador italiano Massimo Ricci, professor na
universidade da famosa cidade italiana, berço do Renascimento, a partir
do conchoide de Nicomedes.
Invertendo o raciocínio do instrumento criado por Nicomedes, para
descrever curvas conchoides, Ricci desenvolveu um modo de construção
de uma cúpula octogonal a partir das mesmas. Para atestar a exequibilidade
de seu método, o pesquisador italiano, auxiliado por uma equipe, erigiu
uma cúpula com um quinto do tamanho da cúpula de Santa Maria del
Fiore. O instrumento de Nicomedes que descreve um conchoide consiste de
uma régua fixa que serve de guia para um braço duplamente articulado (na
régua-guia e em um suporte ortogonal a ela) que desenha a curva (Figura 2).
Invertendo o raciocínio do mecanismo de Nicomedes, é possível descrever
retas através de curvas conchoides. No caso de Santa Maria del Fiore, um
arco conchoide, oposto a cada lado do domo octogonal, permitiria estabe-
lecer um sistema de referências para sua execução sem apoios centrais – um
dos pontos críticos relacionados aos problemas enfrentados por Brunel-
leschi durante a construção. Ao invés de ter sido erigida como uma cúpula
circular, a hipótese de Ricci é que Brunelleschi utilizou uma metodologia
radial, um sistema de cordas radiais passando por eixos centrais e ligadas a
uma estrutura fixa de referência, baseada em arcos conchoides. Com isso,
uma espécie de flor seria desenhada nos andaimes, daí o título de um dos
trabalhos do pesquisador florentino (RICCI et al., 2010).
Essa engenhosidade de Brunelleschi encaixa-se, com perfeição, na
descrição de Pappus de Alexandria sobre o que definiria a ciência mecânica e
quais seriam as qualificações necessárias a um inventor e mestre-construtor
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em uma parte teórica e outra manual; a primeira é composta
pela geometria, aritmética, astronomia e física; a segunda, pelo
trabalho com metais, construção, carpintaria, pintura. Aquele
que for treinado [...] naquelas ciências e pratique estas artes
[...] será o melhor inventor de mecanismos e mestre-construtor
(SCHIBILLE, 2009).
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O compasso de proporção
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Atualmente, entretanto, costuma-se retroceder aos protótipos de Fabrizio Mordente,
Federico Commandino, Guidobaldo del Monte. Ver: Severino (2009) ou, até mesmo,
de Leonardo da Vinci. Ver: Hénin (2012). Sobre Galileu ver Drake (1976).
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Figura 3 – Compassos de proporção: com escala decimal universal (acima) e
de fabricação inglesa (sécs. XVIII-XIX) com quatro escalas (abaixo)
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O compasso de proporção, com junta na extremidade (pantômetro),
incluiria a maioria das escalas anteriores (com exceção da proporção entre
linhas) e outras mais, variando de modelo para modelo – como as linhas
dos metais, para encontrar o peso de uma esfera em diferentes materiais,
linha das latitudes, etc.
Uma história do uso do compasso de proporção na arquitetura ainda
está para ser escrita.4 Ela, certamente, dará especial atenção ao archisesto
inventado pelo arquiteto italiano Ottavio Revesti Bruti e seu manual de
utilização Archisesto per formare con facilità le cinque ordini d’architet-
tura (c.1627), visando desenhar as ordens de arquitetura respeitando suas
proporções, mas sem o recurso de cálculos aritméticos. A joint rule (sector)
descrita por John Brown(e) em The Mirror of Architecture (1687) também
deverá ser destacada, entre outras obras mais ou menos conhecidas.
Alguns trabalhos, que citam instrumentos como “compassos de
perspectiva”, e que foram dedicados especificamente ao assunto, seriam:
Abregé ou raccourcy de la perspective […] par l’ayde d’un compas de perspective
faict pour cet effect in 1631, de Jean Louis de Vaulezard; o perdido Livret de
perspective adressée aux theoriciens, de Girard Desargues; o tomo segundo
da Manière universelle de M. Desargues pour pratiquer la perspective par
petit-pied comme le géométral (1647), de Abraham Bosse; Kurzgefasste
regeln zu perspectivischen Zeichnungen, (Regras concisas para desenhos em
perspectiva) do matemático Johann Heinrich Lambert.
Passando à tradição da arquitetura militar portuguesa, Luís Serrão
Pimentel não menciona o compasso de proporção no Método lusitânico para
desenhar as fortificações das praças regulares, irregulares, fortes de campanha e
outras obras pertencentes à arquitetura militar (1680), o livro mais importante
dessa tradição até o século XVIII. Contudo, um manuscrito de Manoel
Pinto de Vilalobos – que foi aluno do filho de Serrão Pimentel – o faz,
intitulando-o Tratado do uso do pantômetra de desenhar as fortificações assim
do lado do polígono exterior para fora, como do lado do polígono exterior para
dentro, nas figuras tanto regulares como irregulares pelo método de Luís Serrão
Pimentel (ca.1690). O método de Serrão Pimentel, ao qual se refere Vilalobos,
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não é o uso do pantômetra, mas o desenho desde o polígono exterior para
fora, como do exterior para dentro. O uso do instrumento, na engenharia
militar, contudo, era conhecido em Portugal desde, pelo menos, meio século
antes (GESSNER, 2011). Isso é possível de ser averiguado, consultando a
Aritmética prática geométrica logarítmica ou A arquitetura militar (c. 1638 cf.
GESSNER, 2011) do padre jesuíta Ignácio Stafford (1599-1642), um exilado
católico, professor no Colégio de Santo Antão, escola pioneira no ensino
básico de fortificação na Península Ibérica (OLIVEIRA, 2013).
A descontinuidade no seu emprego, talvez, possa ser atribuída ao fato
de que, tendo lecionado no Colégio de Santo Antão, entre 1630-1636, ele
retorna, a seguir, para Castela – lembrando que estamos no reinado de
Filipe II, durante a União Ibérica – viajando ao Brasil entre 1640 e 1641 e
falecendo em Lisboa, em 1642.
Já o manual que substituirá o método, de Serrão Pimentel, O enge-
nheiro português (1728-1729), de Manoel de Azevedo Fortes, dedica quase
30 páginas a operações com esse compasso, curiosamente dispensando
seu uso na artilharia, ciência na qual os engenheiros deveriam, segundo
ele, ser ao menos “mediocremente instruídos”.
Mais próximo do universo da colônia brasileira, José Fernandes Pinto
Alpoim (1700-1765), apesar de não comentar sobre o compasso de proporção
no seu Exame de artilheiros (1744), tratará do mesmo no mais detalhado
Exame de bombeiros (1748), na parte dedicada à trigonometria, lembrando
que os dois tratados abordam a mesma temática.
Finalmente, para Antônio José Moreira, autor de um dos últimos
manuais da tradição da arquitetura/engenharia militar luso-brasileira sete-
centista, as Regras de desenho para delineação das plantas, perfis e perspectivas
pertencentes à arquitetura militar e civil (1793), “entre todos os instrumentos
que o engenheiro precisa servir-se, nenhum há que tenha tanto uso e facilite
mais a prática de toda a teoria da geometria” (MOREIRA, 1793, p. 17).
Com efeito, ao tratar do instrumento matemático, Moreira explica suas
aplicações em mais de 40 páginas(!).
No contexto da arquitetura, ou engenharia militar luso-brasileira do
setecentos, o compasso de proporção,5 constitui, portanto, o instrumento
5 Gessner (2011) apresenta a imagem de um pantômetra com o nome das escalas em português.
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mais sofisticado para operações geométricas – e sofisticação, aqui, significa
tornar tais operações mais simples. Esse aspecto é significativo na medida
em que, nesse momento, começam a ficar disponíveis outros instrumentos
matemáticos, como as réguas de cálculo, por exemplo, companheiras
absolutas dos engenheiros até a disseminação das calculadores científicas
na segunda metade do século XX.
Considerações finais
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