O Livro Do Amigo e Do Amado
O Livro Do Amigo e Do Amado
O Livro Do Amigo e Do Amado
Raimundo Llio
Raimundo Llio, ou Ramon Llul, nasceu em 1232 ou 1235 na ilha de Maiorca (Espanha), que havia sido conquistada aos rabes em 1229 pelo Rei Jaime I. O pai de Llio tomou parte nesta conquista, e talvez por isto, aos 14 anos de idade Llio foi escolhido para ser pagem do segundo filho do rei, que viria a ser o tambm rei Jaime II; posteriormente veio a ser o mordomo do mesmo, quando prncipe. Llio tinha ento uma vida frvola, de muitos envolvimentos amorosos, e com 22 anos se casou com Blanca Picany, que lhe deu dois filhos; mas, mesmo casado, ele continuou sua vida de conquistas amorosas, at que, por volta dos 30 anos de idade, se apaixonou por uma genovesa, a Sra. Ambrosia de Castelo. Llio manifestava sua paixo por esta senhora de maneiras extravagantes, at que certo dia ela aceitou encontrar-se com ele, e o convidou para ir ao seu prprio quarto; quando l chegou, foi friamente recebido por Ambrosia que, no entanto, perguntou-lhe se gostaria de ver os seios que ele tantas vezes enaltecera em seus poemas, ao que ele prontamente respondeu que no havia nada que desejasse mais do que isto. A Sra. Ambrosia ento lhe mostrou o peito que estava sendo consumido pelo cncer, enquanto dizia: "V, Rmon, v a fealdade deste corpo que conquistou a tua afeio. No terias feito melhor em dedicares o teu amor a Jesus Cristo, de quem podes receber um prmio eterno?" Este acontecimento foi um grande choque na vida de Raimundo Llio, que se recolheu por alguns dias, enquanto tentava escrever poemas de amor lrico, at que teve uma viso de Cristo na cruz, que, a princpio, rejeitou, mas a viso retornou por quatro vezes. Llio, com vergonha e remorso, procurou um padre para se confessar, a quem jurou que a partir daquele dia dedicaria sua vida glria de Deus e converso dos infiis. E, com efeito, ele passou ento a uma srie interminvel de viagens nas quais buscava, junto ao Papa e a reis e prncipes cristos, apoio para projetos que visavam levar a f catlica aos povos que no a professavam; e viajava tambm para pregar, ele prprio, sua f. Llio defendia a idia de que os divulgadores do cristianismo deveriam aprender as lnguas dos infiis a fim de melhor poderem trabalhar pela sua converso; conseguiu fundar em Miramar, um dos lugares mais bonitos da ilha de Maiorca, um colgio onde, sob sua direo treze frades estudavam lnguas, principalmento o rabe. Durante toda sua vida lutou por estes dois objetivos, fundar escolas de lnguas e divulgar a f catlica. Com quarenta anos de idade Raimundo Llio se retira para o monte Randa, prximo a Maiorca, onde parece encontrar as condies ideais para que sua mente seja iluminada por Deus, e percebe a sntese universal - tanto o sistema quanto o mtodo - que posteriormente ir apresentar em seus escritos. Esta experincia lhe valer depois o ttulo de "Doutor Iluminado" (Doctor illuminatus). A obra por ele escrita imensa e surpreende a quem dela se aproxima; nela se destaca a Ars Magna , que a base de todo o sistema filosfico e teolgico. Com esta obra Llio confundia os infiis e conseguia divulgar a
verdadeira f crist. Alm de muito escrever, ele ainda traduzia suas obras para outras lnguas, sempre buscando atingir outros povos. Faamos um parntese nesta suscinta biografia para tratarmos do seguinte assunto: existem textos sobre Alquimia que levam a assinatura de Raimundo Llio, mas nem todos pesquisadores aceitam que sejam realmente de sua autoria; um dos motivos para isto que, em 1311, Llio publicou uma lista de suas obras e nela no figura nenhum ttulo de Alquimia. Aqueles que acreditam ter sido ele um alquimista contra-argumentam dizendo que, por motivos religiosos, ele no haveria de querer que esta faceta de seu trabalho fosse divulgada enquanto estivesse vivo. Vrios autores sustentam que Raimundo Llio teria efetuado uma transmutao metlica, a pedido do rei Eduardo III, mas isto falso, porque este rei comeou a reinar em 1327 e Llio morreu em 1315 ou no incio de 1316; aqui tambm existe controvrsia, porque esta transmutao poderia ter ocorrido perante os reis Eduardo I ou Eduardo II, que precederam a Eduardo III no trono. Por outro lado, o prprio Llio afirma na obra Testamento que transmutou cinquenta libras de chumbo e mercrio em ouro. Llio teria sido iniciado na Alquimia por volta de 1289 por Arnauld de Villeneuve, em Montpelier. Voltando vida do "Doutor Iluminado", vale a pena destacar que quando Llio resolve se dedicar divulgao da f catlica, ele estava decidido a dar sua vida por esta causa, o que termina ocorrendo; certa vez ele viaja para Bugia, na Arglia, e grita pelas ruas da cidade que a lei maometana falsa e que pode provar isto. O grande mufi da cidade, que detinha autoridade religiosa e judiciria, aceita o desafio e os dois travam uma profunda discusso filosficoteolgica, ao final da qual, sem argumentos, termina por decretar a priso do maiorquino mas probe que se atente contra sua vida. Aps seis meses na cadeia ele expulso do pas. Anos mais tarde Llio retorna a Bugia, e desta vez a multido o apedreja e o deixa meio morto na rua, onde recolhido por genoveses que estavam a caminho da Europa; ele, no entanto, termina por morrer no navio que o levaria de volta a Maiorca, em pleno Mediterrneo. Em 5 de dezembro de 1611 seus restos mortais passaram por exames mdicos necessrios ao processo de sua canonizao, e estes exames constataram a veracidade do apedrejamento.
fundou. Este fato, com certeza, trouxe felicidade para a vida do autor e isto contribui para a qualidade e a beleza do texto. Blanquerna o personagem central da novela, e vem a ser um ermito, que j foi papa e renunciou ao papado, e que escreve o Livro do amigo e do Amado atendendo um pedido, conforme se poder ver na primeira parte do texto. O livro composto por 365 pensamentos - um para cada dia do ano escritos maneira sufi, ou seja, pensamentos breves e densos, sendo que muitos so em linguagem dialogada. Os dilogos ocorrem entre o amigo e o Amado, que so o homem e a Divindade - poder-se-ia, talvez, dizer tambm, entre o homem que busca a realizao e Aquele que j a atingiu. No nos estenderemos em consideraes sobre o texto, conforme a proposta de nosso trabalho, para que cada leitor possa, segundo sua inspirao, retirar dele o melhor ensinamento.
Agradecimento
Este texto foi publicado originalmente pela Edies Loyola, So Paulo, Brasil, em 1989 na Coleo Unisantos, em Textos Medievais, com o apoio da "Instituci de les Lletres Catalanes", do Departamento de Cultura da Generalitat de Catalunya. A traduo do catalo, bem como a introduo e os estudos que acompanham o texto, foram realizados pelo Prof. Esteve Jaulent, catalo como Raimundo Llio, a quem somos profundamente agradecidos pela autorizao verbal que nos deu para disponibilizarmos o Livro do amigo e do Amado nesta home-page. Temos certeza que esta generosidade trar muitos frutos, na forma de inspirao para todos que lerem este belo texto. Informaes complementares que aqui fornecemos foram obtidas no livro O Ouro dos Alquimistas, de Jacques Sadoul (Edies 70 - Coleo Esfinge - Lisboa, Portugal). O Prof. Esteve Jaulent presidente do Instituto Brasileiro de Filosofia e Cincia "Raimundo Llio", cujo site (http://www.pobox.com/~lulio) recomendamos aos interessados em obter mais informaes sobre a vida e a obra do Doutor Iluminado.
que podia, de tal modo que toda a sua alma estivesse mergulhada em Deus e seus olhos em lgrimas e prantos. Blanquerna contemplava Deus e chorava longamente at a madrugada. Depois entrava na igreja, tocava para as matinas, e vinha o dicono que o ajuda a rez-las. Aps a aurora, cantava a missa. Terminada a missa, Blanquerna dirigia algumas palavras sobre Deus ao dicono, para que se enamorasse dEle, e ambos, falando de Deus e de suas obras, choravam juntos por causa da grande devoo que sentiam nas palavras que diziam. Depois disto, o dicono entrava na horta, trabalhava um pouco e Blanquerna saa da igreja e distraa sua alma do trabalho que tinha suportado, e dirigia seu olhar para as montanhas e as plancies para da tirar alguma recreao. Logo que Blanquerna se sentia reconfortado, entrava em orao e contemplao ou lia os livros da Divina Escritura ou o "Livro de Contemplao", e permancia assim at a hora de tera. Depois, rezavam a tera, a sexta e nona; e depois da tera, o dicono retornava e preparava algumas verduras ou legumes para Blanquerna. Na horta, ou em outras coisas, Blanquerna trabalhava para no ficar ocioso e ter melhor sade. Entre o meio-dia e a hora de na, depois de ter comido, voltava sozinho igreja para dar graas a Deus. Terminada a sua orao, costumava passear uma hora pela horta at a fonte, ou por todos aqueles lugares onde melhor pudesse alegrar sua alma. A seguir, dormia para melhor aguentar o trabalho da noite. Terminado o sono, lavava suas mos e o seu rosto e esperava at que tocassem as vsperas, para as quais voltava o dicono. Acabadas as vsperas, diziam as completas, e o dicono ia embora. Blanquerna considerava tudo aquilo que mais lhe agradasse e melhor o preparasse para entrar em orao. Aps o pr-do-sol, Blanquerna costumava subir ao terrao que estava sobre a sua cela e permanecia em orao at o primeiro sono, olhando o cu e as estrelas com os olhos chorosos e o corao devoto, absorvido nas honras de Deus e nas faltas que os homens cometem contra Ele neste mundo. Blanquerna, contemplando do pr-do-sol ao primeiro sono, ficava em to grande recolhimento e fervor, que, j uma vez na cama e dormindo, s vezes lhe parecia que continuava com Deus, to forte era a sua orao. Blanquerna permaneceu nessa vida e nessa felicidade at conseguir que todas as pessoas daquelas redondezas tomassem grande devoo s virtudes do altar da Santa Trindade que havia naquela capela. E, movidos pela devoo, vinham capela muitos homens e mulheres que perturbavam Blanquerna em sua orao e contemplao. E para que as pessoas no perdessem a devoo que tinham quele lugar, hesitava em dizer-lhes que no viessem mais, e por isto Blanquerna mudou sua cela para um monte que distava uma milha da igreja e outro tanto do local onde ficava o dicono. Permaneceu nesse lugar e no queria igreja nas horas em que a houvesse gente, nem queria que algum homem ou alguma mulher viesse para aquela cela para onde se tinha mudado. Assim viveu o ermito Blanquerna, considerando que nunca estivera em to prazerosa vida nem to bem disposto para levantar sua alma a Deus. To santa vida era aquela em que Blanquerna estava que Deus o abenoava e encaminhava para l todos os que tinham devoo pelas virtudes daquele lugar
onde estava a capela; e assim o Papa, os cardeais e seus oficiais cresciam na graa de Deus pela santa vida de Blanquerna. De como Blanquerna, ermito, escreveu o Livro do amigo e do Amado Aconteceu um dia que o ermito, que, como dissemos, se encontrava em Roma (1), foi visitar os ermites e os enclausurados que l estavam e descobriu que, em certas matrias, sofriam muitas tentaes, pois ignoravam o modo de comportar-se que convinha sua vida; e pensou pedir a Blanquerna, o ermito, que lhe escrevesse um livro sobre a vida dos eremitas, mediante o qual os outros ermites pudessem e soubessem manter-se em contemplao e devoo. E estando um dia Blanquerna em orao, veio aquele ermito sua cela e pediulhe o referido livro. Muito pensou Blanquerna de que modo o escreveria, e sobre que matria trataria. Pensando nisso, veio-lhe o desejo de entregar-se fortemente em adorao e contemplao de Deus, a fim de que na orao Deus lhe mostrasse o mtodo e a matria com que fazer o livro. Enquanto Blanquerna chorava e adorava, e quando sua alma para Deus se levantava com a sublime extremidade de suas foras, sentiu-se Blanquerna fora de si, pelo grande fervor e devoo em que estava, e compreendeu que a fora do amor no segue mtodo algum quando o amigo ama fortemente a seu Amado. Da que Blanquerna quis fazer o Livro do amigo e do Amado, entendendo por amigo o fiel e devoto cristo e pelo amado, a Deus. Enquanto Blanquerna estava nesta considerao, lembrou-se de que uma vez, sendo ele Papa (2), um sarraceno contou-lhe que entre eles havia alguamas pessoas religiosas, as quais so muito respeitadas e estimadas, e que se chamam "sufis", e que tm o costume de dizer as palavras de amor com exemplos breves que inspiram aos homens uma grande devoo. So frases que precisam de uma curta explicao mediante a qual o entendimento se levanta mais alto e, por causa dessa elevao, a vontade tambm sobe e multiplica assim sua devoo. Depois de ter considerado tudo isso, resolveu Blanquerna fazer o livro segundo esse mtodo e disse ao emito que voltasse para Roma, pois brevemente enviar-lhe-ia pelo dicono o Livro do amigo e do Amado, com o qual poderia multiplicar o fervor e a devoo dos ermites, que desejava enamorar de Deus. Do prlogo Blanquerna estava em orao e considerava o modo como contemplava a Deus e suas virtudes, e saindo desse exerccio escrevia aquilo que havia contemplado em Deus. Fazia isso todos os dias e renovava na sua orao os argumentos, para compor de muitas de muitas e diversa maneiras o "Livro do amigo e do Amado". Procurava que os raciocnios fossem breves para que a alma pudesse refletir num curto espao de tempo. E com a bno de Deus, Blanquerna comeou o seu livro, que dividiu em tantos verso quanto os dias do ano. Cada verso tem matria suficiente para todo um dia de contemplao de Deus, conforme a "Arte do Livro de contemplao".
1. O amigo perguntou a seu Amado se havia nEle alguma coisa ainda por amar.
O Amado respondeu-lhe que sim: ainda restava por amar aquilo que podia multiplicar o amor do amigo. (3)
2. Os caminhos pelos quais o amigo busca seu Amado so longos, perigosos, povoados de consideraes, de suspiros e de prantos, e iluminados de amores. 3. Juntaram-se muitos para amar a um Amado que a todos cumulava de amores.
Cada um deles tinha plenamente para si o Amado e seus prazerosos pensamentos, que lhes traziam gozosas consolaes.
6. Tentou o Amado, o amigo, para ver se o amava com perfeio; e perguntoulhe que diferena h entre a presena e a ausncia do Amado. O amigo respondeu: - Da ignorncia e do esquecimento, do conhecimento e da lembrana.
7. Perguntou o Amado: - Lembras-te de algo com que Eu te tenha agraciado, e por isso queres amar-Me? - Sim, respondeu, pois no vejo diferena entre os sofrimentos e os consolos que me envias. 8. - Dize, amigo, ters suficiente pacincia se duplico agora as tuas dores? Sim, desde que dupliques meus amores.
10. Perguntaram ao amigo: - Por que no respondes a teu Amado que te chama? Disse: J me exponho a graves perigos a fim de aproximar-me dEle; j Lhe falo desejando suas honras. 11. - Amigo doido, por que destris a tua pessoa, gastas teu dinheiro,
desprezas os deleites deste mundo e andas menosprezado pelas pessoas?
Respondeu o amigo: - Para venerar as honras do meu Amado, que mais desamado e desonrado pelos homens do que amado e respeitado.
12. - Dize-me, louco de amor, o que mais visvel: o Amado no amigo, ou o amigo no Amado? Respondeu que o Amado visto pelos amores, e o amigo, pelos suspiros, prantos, sofrimentos e dores. 13. Procurava o amigo quem contasse ao seu Amado que ele, por amor, passava por graves dificuldades e morria; e achou seu Amado lendo um livro onde estavam escritas todas as dores que o amor infligia ao amigo, e toda a gratido que estas dores lhe despertavam. 14. Nossa Senhora (4) apresentou seu Filho ao amigo para que lhe beijasse os
ps e escrevesse no seu livro suas virtudes.
15. - Dize-me, pssaro canoro, refugias-te no meu Amado para que te livre do desamor e multiplique em ti o amor? A ave: - E quem me faz cantar, seno o senhor do amor, que considera ofensa o desamor? 16. Entre o temor e a esperana fez pousada o amor, que vive de pensamentos e morre de esquecimentos, quando se fundamenta no que est por cima dos deleites deste mundo. (5) 17. Houve uma disputa entre os olhos e a memria, porque os olhos diziam que era melhor ver o Amado que lembr-Lo, e a memria dizia que pela lembrana que sobe a gua aos olhos e o corao se inflama de amor. 18. O amigo perguntou ao entendimento e vontade qual dos dois estava mais perto do Amado; os dois correram, mas o entendimento chegou ao Amado antes do que a vontade. 19. Altercaram o amigo e o Amado; e um outro amigo viu, e chorou por longo
tempo, at que se restabelecessem a paz e a concrdia entre o Amado e o amigo.
20. Os suspiros e as lgrimas vieram ao Tribunal do Amado e perguntaram-Lhe por qual dos dois sentia-se mais fortemente amado. O Amado sentenciou que os suspiros esto mais perto do amor, e as lgrimas, dos olhos. 21. Veio o amigo beber na fonte onde quem no ama, ao beber, se enamora e, depois de ter bebido, v duplicadas as suas dores. Veio o Amado a beber nessa fonte para intensificar alm de toda medida em seu amigo os amores, nos quais as dores se multiplicam.
22. Adoeceu o amigo e o Amado cuidava dele: alimentava-o com mritos, davalhe amor para beber, recostava-o na pacincia, vestia-o com a humildade e medicava-o com a verdade.
23. Perguntaram ao amigo onde estava o seu Amado. Respondeu dizendo: - Vlo-eis numa casa mais nobre que todas as demais nobrezas criadas, e contempl-Lo-eis nos meus amores, desfalecimentos e lgrimas. 24. Disseram ao amigo: De onde vens? - Venho do meu Amado. - Aonde vais? Vou ao meu Amado. - Quando voltars? - Estarei com meu Amado. - Quanto tempo estars com teu Amado? - Tanto quanto nEle permaneam meus pensamentos. (6) 25. Cantavam os pssaros aurora e acordou o amigo, que a aurora, e os pssaros terminaram seu canto, e o amigo morreu pelo Amado, na aurora. (7) 26. Cantava o pssaro no vergel do Amado, e veio o amigo e disse ao pssaro: Se no nos compreendemos pela linguagem, compreendamo-nos pelo amor, pois teu canto revela aos meus olhos meu Amado. 27. Veio o sono ao amigo, pois muito trabalhara buscando seu Amado, e teve medo de esquec-Lo. Chorou, para no dormir e para que no estivesse ausente o seu Amado de sua recordao. 28. O amigo e o Amado se encontraram, e disse o amigo: - No so necessrias as palavras, basta um sinal com teus olhos, que ser palavra para o meu corao, e te darei o que quiseres. 29. Desobedeceu o amigo a seu Amado, e chorou. E o Amado veio morrer nas vestes do seu amigo (8), para que este recuperasse o que perdera, e deu-lhe assim um dom maior do que aquele que havia perdido. 30. O Amado namorava o amigo e no Lhe doam seus desfalecimentos, pois
assim seria por ele mais fortemente amado, e quanto maior o desfalecimento maior prazer e repouso o amigo achava.
31. Disse o amigo: - Quando as minhas obras os deixam transparecer, atormentam-me os segredos do meu Amado, pois minha boca os mantm ocultos e no os revela aos demais. 32. As qualidades do amor so: que o amigo seja sofrido, paciente, humilde, temente, solcito, confiado, e que se arrisque a grandes perigos para honrar seu Amado. E as qualidades do Amado so: que seja verdadeiro, generoso, piedoso e justo para com seu amigo.
34. - Dize-me, pssaro que cantas por amor ao meu Amado, por que Ele me atormenta com amor se me tomou como Seu servidor? Resposta da ave: - Se por amor no padecesses trabalhos, com que amarias teu Amado? 35. Pensativo ia o amigo pelas veredas do Amado; escorregou e caiu entre os espinhos, que lhe pareceram flores e leito de amores. 36. Perguntaram ao amigo se trocaria por outro seu Amado. E respondeu dizendo: - E qual outro melhor ou mais nobre que o soberano Bem eterno, infinito em grandeza, poder, sabedoria, amor e perfeio? 37. Cantava e chorava o amigo as cantigas de seu Amado, e afirmava que mais rpido o amor no nimo de quem ama, do que o relmpago no seu fulgor e o trovo no seu fragor, e mais viva est a gua nas lgrimas do que nas ondas do mar; e mais perto est o suspiro do amor que da neve a brancura. 38. Perguntaram ao amigo por que seu Amado era glorioso? Respondeu: Porque glria. E por que era poderoso? Resposta: - Porque poder. E por que sbio? - Porque sabedoria. E por que amvel? - Porque amor:
39. Levantou-se de manh o amigo e andava buscando o seu Amado; encontrou pessoas que iam pelo caminho e indagou se tinham visto seu Amado. Responderam-lhe dizendo: - Em que hora teu Amado se ausentou dos olhos da tua mente? O amigo respondeu e disse: - Depois de ter visto o meu Amado em meus pensamentos, nunca Ele se ausentou de meus olhos corporais, e todas as coisas visveis me representam meu Amado. 40. Com olhos cheios de pensamentos, desmaios, suspiros e choros, mirava o amigo seu Amado; e com olhos cheios de graa, justia, piedade, misericrdia, generosidade, o Amado fitava o amigo. E um pssaro cantava durante esta gozosa troca de olhares. 41. As chaves do amor so douradas com pensamentos, suspiros e prantos; seu cordo feito de conscincia, contrio, devoo e penitncia; e o porteiro de justia e misericrdia. 42. Batia o amigo porta de seu Amado com golpes de amor e esperana. O Amado ouvia o bater de seu amigo com humildade, piedade, pacincia e caridade. Divindade e humanidade abriam as portas. E entrou o amigo para visitar o Amado.
45. O amigo desejava solido e foi viver sozinho para, assim, ter a companhia do Amado, com o qual se sentia sozinho, mesmo quando estava entre as pessoas. 46. Sozinho estava o amigo sombra de uma bela rvore. Passaram uns
homens por aquele lugar e perguntaram porque estava s. E o amigo esclareceu que sozinho ficou quando os viu e ouviu, pois at ento estivera na companhia do seu Amado. (10)
47. Com sinais de amor falavam-se o amigo e o Amado; e com temor, pensamentos, lgrimas e prantos contava o amigo a seu Amado as fraquezas do seu corao. 48. O amigo duvidou que o Amado lhe falasse nas suas maiores necessidades, e o Amado deixou de am-lo. Mas o amigo teve contrio e arrependimento no corao e o Amado restituiu a esperana e a caridade ao seu corao, e ps-lhe lgrimas e prantos nos olhos, para que voltasse o amor ao amigo. 49. Entre amigo e Amado so coisas iguais a proximidade e o afastamento;
porque, como mistura de gua e vinho, os amores do amigo e do Amado se unem, como o calor e o resplendor entrelaam seus amores; e como essncia e ser se atraem e se aproximam.
50. Disse o amigo a seu Amado: - Em ti tenho a sade e a enfermidade. Quanto mais perfeitamente me saras, mais cresce a minha doena, e quanto mais me adoeces, maior sade me ds. Respondeu o Amado: - O teu amor o selo e a marca com que mostras s pessoas minha honra. 51. O amigo viu-se preso, atado, ferido e morto, por amor de seu Amado. Os
que o atormentavam perguntaram-lhe: - Onde est o teu Amado? Respondeu: Ei-lo aqui, na multiplicao de meus amores e na pacincia que me d em meus tormentos.
52. Disse o amigo a seu Amado: - Nunca fugi nem me afastei de Ti desde que te conheci, pois onde eu estivesse, estava em Ti, por Ti e contigo. Respondeu o Amado: - Desde que tu me conheceste e amaste, tambm Eu no te esqueci, nem jamais te enganei, nem te frustrei.
53. Ia o amigo por uma cidade como louco cantando, e o povo perguntava-lhe se perder o juzo. Respondeu que seu Amado havia-lhe arrebatado a vontade e que ele Lhe entregara a inteligncia; portanto, restava-lhe apenas a memria, com a qual se lembrava do seu Amado. 54. Disse o Amado: - estranho e contra o amor, que o amigo durma
esquecendo o Amado. Respondeu o amigo: - estranho e contra o amor, que o Amado no acorde o amigo, j que tanto o desejou.
55. Elevou-se o corao do amigo at as alturas do Amado, para escapar das dificuldades de amar que se encontram no abismo deste mundo. Quando chegou ao Amado, com doura e prazer contemplou-O, mas o Amado o fez descer de novo a este mundo para que O contemplasse entre penas e tribulaes. 56. Perguntaram ao amigo: - Quais so as tuas riquezas? Respondeu: - As pobrezas que pelo meu Amado padeo. - E qual teu repouso? - O desfalecimento que o amor me d. E quem teu mdico? - A confiana que deposito no Amado. - E quem teu mestre? Respondeu dizendo que eram os sinais que as criaturas lhe do de seu Amado. 57. Cantava um passarinho em um ramo repleto de folhas e flores, e o vento mexia as folhas e espalhava o aroma das flores. E o amigo perguntava ao pssaro que significava o movimento das folhas e o perfume das flores. Respondeu: - As folhas, com seu movimento, significam obedincia; e o perfume, sofrimento e desdita. 58. Ia o amigo desejando o Amado e deparou com dois apaixonados que entre
prantos de amor se saudavam, se abraavam e beijavam. Desmaiou o amigo, to vivamente lhe lembraram o Amado.
59. O amigo pensou na morte, e teve medo, at que se lembrou de seu Amado. E gritou ao povo que tinha diante de si: - Ah! amai muito, a fim de que no temais nem os perigos nem a morte, no servio do meu Amado. 60. Perguntaram ao amigo pelo princpio de seus amores. Respondeu que nas nobrezas do Amado, e que, a partir de ento, comeou a amar a si mesmo e ao prximo e a desprezar as mentiras e os defeitos. 61. - Dize, louco: Se teu Amado deixasse de te amar, que farias? Retrucou dizendo que amaria, para no morrer, pois deixar de amar morte e o amor vida. 62. Interrogaram o amigo sobre o que era perseverana. Respondeu que eram as venturas e desventuras do amigo que persevera no amar, honrar e servir seu Amado com fortaleza, pacincia e esperana.
63. Reclamou o amigo a seu Amado a paga pelo tempo que O servira. O Amado contou os pensamentos, os desejos, os prantos, os perigos, os trabalhos que por seu amor o amigo padecera, acrescentou naquela conta a eterna bemaventurana e deu-se a Si prprio, como paga, ao amigo. 64. Indagaram ao amigo o que era a ventura da vida. Retrucou que eram as desventuras padecidas por amor. 65. - Dize-me, louco: o que desventura? - Lembrana dos desacatos que fazem a meu Amado, digno de toda honra. 66. Remirava o amigo um lugar onde vira seu Amado, e dizia: - Ah! lugar, que me tornas presentes os belos modos do meu Amado, dize a Ele que padeo, por seu amor, trabalho e sofrimento. - Quando em mim estava teu Amado, Ele padecia por teu amor maiores penas e contradies que todas as que o amor possa dar a seus servidores, disse o lugar. 67. O amigo dizia a seu Amado: - Tu s tudo, e ests por toda a parte, e em tudo, e com tudo. Quero-Te totalmente, a fim de que tudo tenha e seja em mim. - No podes ter-me totalmente se no fores meu, respondeu o Amado. - Tomame todo, e que eu tambm te tenha totalmente, retrucou o amigo. O Amado disse-lhe: - E o que restar ento a teu filho, a teu irmo e a teu pai? - Tu s um todo tal, que podes ser tudo para quem se entrega totalmente a Ti, disse o amigo. 68. O amigo demorou-se na considerao da grandeza e da durao de seu Amado, e nela no achou comeo, nem meio, nem fim. - O que medes, louco? Disse o Amado. - Meo o menor com o maior, o falhar com o cumprir, o que tem comeo pelo infinito e eterno, a fim de que a humildade, a pacincia, a caridade e a esperana estejam mais vivas na minha lembrana. 69. Os caminhos do amor so longos e breves, porque o amor claro, puro, limpo, verdadeiro, sutil, simples, forte, solcito, resplandecente e sempre abundante de novos pensamentos e antigas recordaes. 70. Perguntaram ao amigo quais so os frutos do amor. - Prazeres, pensamentos, desejos, suspiros, nsias, trabalhos, perigos, tormentos, desmaios. Sem tais frutos, no se deixa atingir pelos que o servem, retrucou. 71. Havia uma multido de pessoas na presena do amigo e este se queixava a seu Amado por no crescerem seus amores; e ao mesmo tempo queixava-se, de amor, porque lhe aumentava os trabalhos e as dores. Desculpava-se o Amado dizendo que os trabalhos e as dores de que o acusava, multiplicar-lhe-iam os amores.
72. - Dize-me, doido: Por que no falas? Em que ests embebido e pensativo? Nas belezas de meu Amado, disse o amigo, e na semelhana que tem as alegrias e as dores que me causam e do os amores. 73. - Dize-me, doido: Quem foi primeiro, teu corao ou teu amor? Retrucou dizendo-lhe que ambos tiveram um mesmo comeo, pois, no sendo assim, o corao no teria sido criado para amar, nem o amor para pensar. (11) 74. Perguntaram ao insensato onde se originou o seu amor, se nos segredos de seu Amado, ou na confisso dos mesmos s pessoas. Replicou afirmando que, quando o amor perfeito, no v nisso diferena, pois secretamente guarda os segredos de seu Amado, e com segredo os revela, e na mesma revelao os mantm ocultos. 75. Segredo de amor sem ser revelado, traz paixo e dor. Revelar o amor, gera temor pelo fervor. por isso que, de qualquer modo, o amigo sempre desfalece. 76. O Amor chamou os que amam e sugeriu que Lhe pedissem os dons que lhes parecessem mais desejveis e prazenteiros. Exortaram o Amor a que os vestisse e os enfeitasse com as suas feies, a fim de que parecessem mais agradveis ao Amado. 77. O amigo chamou com gritos as pessoas e disse-lhes que o Amor ordenava
que O amassem caminhando e estando sentados, velando e dormindo, falando e calando, comprando e vendendo, chorando e rindo, no gosto e no desgosto, ganhando e perdendo; e em tudo quanto fizessem, em tudo O amassem, pois fora ordenado amar.
78. - Dize, insensato, quando penetrou em ti o Amor? - Naquele tempo, segredou, em que enriqueceu e povoou meu corao de pensamentos, desejos, suspiros e fraquezas, e inundou meus olhos de lgrimas e prantos. - Que ganhaste com o Amor? - Formosas feies, honras, e os valores do Amado, continuou. - Em que vieram a dar? - Em lembrana e entendimento. - Com que os recebeste? - Com caridade e esperana. - Como os guardaste? - Com justia, prudncia, fortaleza e temperana. 79. Cantava o Amado, e dizia que de amor pouco o amigo entendia, se tinha vergonha de louvar seu Amado, ou se temia vener-lo nos lugares onde mais fortemente era desonrado; e declarava que pouco entende de amores quem se cansa com as infelicidades, e quem desespera do Amado; pois no existe concordncia entre amor a desesperana. 80. Mandou o amigo suas cartas ao Amado e nelas Lhe perguntava se existia outro amigo que lhe ajudasse a levar e sofrer as grandes canseiras que por amor padecia. O Amado escreveu-lhe dizendo que no tinha o que temer, pois nada havia nele que o tornasse culpado nem desonrasse o Amado.
81. Indagaram ao amado sobre o amor de seu amigo. Respondeu que o amor de seu amigo era uma mistura de gozo e aflio, de temor e intrepidez. 82. Interrogaram o amigo sobre o amor do Amado. Retrucou que o amor de seu Amado era influxo de poder, eternidade, sabedoria, caridade, perfeio, do Amado no amigo. 83. - Dize-me, insensato: O que espantoso? - Amar mais o ausente do que o presente, e amar mais o visvel corruptvel do que o invisvel incorruptvel, esclareceu o amigo. 84. Procurando o amigo o seu Amado, encontrou um homem que morria sem amor, e disse: Grande pena que os homens, seja qual for a morte com que morram, morram sem amor! Por isso disse o amigo ao moribundo: - Respondeme: Por que morres sem amor? Exclamou: - Porque sem amor vivia. 85. Perguntou o amigo a seu Amado o que era maior, o amor ou o amar. Disse o
Amado que na criatura o amor era a rvore e amar o fruto; que os desgostos e as canseiras so as flores e as folhas. Mas, em Deus, amor e amar so idnticos, sem esforos nem cansaos.
87. Adoeceu de amor o amigo e visitou-o um mdico que lhe aumentou suas dores e seus pensamentos; e naquela mesma hora ficou curado. 88. Afastaram-se o amor e o amigo, e a alegria do Amado estava com eles. O Amado reapareceu diante deles. Chorou o amigo e, no seu quebranto, o amor desapareceu. E o Amado reavivou o amigo mostrando-lhe seu rosto. 89. Dizia o amigo ao Amado que por muitos caminhos o Amado chegava ao seu
corao e se Lhe representava a seus olhos, e que por muitos nomes O designava a sua palavra. Todavia, o amor do Amado com o qual aviva e mortifica apenas um s.
90. Mostrava-se o amado a seu amigo com vestes novas e avermelhadas. Estendeu Seus braos para que pudesse abra-Lo e inclinou sua cabea para que pudesse beij-Lo e se elevou ao alto para que pudesse encontr-Lo. 91. Ausentava-se de vez em quando o Amado de seu amigo. Procurava-O o amigo com seus pensamentos e lembranas, para am-Lo. Encontrando-O, quis saber onde estivera. - Na ausncia de tua memria e na ignorncia de tua inteligncia, respondeu o Amado.
92. - Dize-me, louco: No tens vergonha de que te vejam chorar por teu Amado? Respondeu que a vergonha sem pecado por falta de amor, em quem no sabe amar. 93. Semeou o Amado no corao do amigo desejos, suspiros, virtudes e amores. Regou o amigo as sementes com lgrimas e choros. 94. O Amado semeou, no corpo do amigo, fadigas, tribulaes e penas. O amigo curava seu corpo com a esperana, a devoo, a pacincia e a consolao. 95. Numa pomposa festa apresentou-se ao Amado um enorme cortejo de honrados vares. Preparou-lhes esplndidos banquetes e deu-lhes magnficos dons. Foi o amigo quela corte, e disse-lhe o Amado: - Quem te convidou minha corte? Brandiu o amigo: - A necessidade e o amor me foraram a vir, para ver o Teu rosto e a Tua conduta. 96. Perguntaram ao amigo de quem era. Respondeu que era do amor. - De que s feito? - De amor. - Quem te gerou? - O amor. - Onde nasceste? - No amor. Quem te criou? - O amor. - De que vives? - De amor. - Como te chamas? - Amor. - De onde vens? - Do amor. - Aonde vais? - Ao amor. - Onde ests? - No amor. Tens alguma outra coisa fora do amor? Respondeu: - Tenho culpas e faltas contra meu Amado. - No teu Amado h perdo? Disse o amigo que nos seu Amado havia misericrdia e justia, e por isso tinha sua estalagem entre o temor e a esperana. 97. O Amado ausentou-se do amigo. Procurou-O o amigo nos seus pensamentos e com linguagem de amor perguntava por Ele a todos os homens. 98. Encontrou o amigo seu Amado menosprezado pelas pessoas, e contou-Lhe esta grande injria. Retrucou-lhe o Amado, dizendo que padecia agravos por falta de ardentes e devotos amadores. Chorou o amigo e cresceu a sua dor, e o Amado o consolou com seu carinho. 99. A luz do quarto do Amado iluminou o do amigo, afastando as trevas e ocupando-o com alegrias, fadigas e pensamentos. E o amigo jogou fora tudo quanto havia no quarto, para que coubesse nele seu Amado. 100. Perguntaram ao amigo que emblema tinha seu Amado em seu estandarte.
Respondeu: Um homem morto. Ao ser perguntado pelo porqu, esclareceu que seu Amado fora um homem morto e crucificado, e assim todos os que se gloriam de serem seus amantes podero acompanhar Aquele que se fez seu Escravo.
103. A cada dia, suspiros e choros so mensagens entre o Amado e o amigo, a fim de que entre os dois haja alvio, companhia, amizade e bondade. 104. Sentiu o amigo saudades de seu Amado e fez-Lhe conhecer seus
pensamentos para, assim, receber dEle a bem-aventurana na qual descansara por tanto tempo.
105. Deu o Amado a seu amigo o dom das lgrimas, dos suspiros, das penas, dos pensamentos e das dores, e com este benefcio servia o amigo a seu Amado. 106. O amigo rogava a seu amado que lhe desse liberalidade, paz e respeito
neste mundo; e o Amado revelou seu rosto memria e ao entendimento do amigo e entregou-Se como objeto da sua vontade.
107. Perguntaram ao amigo em que consistia a honra. - Em compreender e amar seu Amado, segredou. - E a desonra? - Em esquecer e deixar de amar o Amado, lamentou. 108. - O amor me atormentava at que lhe disse que Tu estavas presente nos meus tormentos. O amor mitigou, ento, as penas e Tu, como prmio, multiplicaste meu amor, que duplicou meus tormentos. 109. - Achei no caminho do amor um amante que no falava, mas com
lgrimas, feies macilentas e desfalecidas, acusava e repreendia o amor. Este se desculpava com lealdade, esperana, pacincia, devoo, fortaleza, temperana, bem-aventurana. Por isso, corrigiu-se o amante que do amor se queixara, pelos dons to nobres que dEle recebera.
110. Cantava o amigo e dizia: Oh, que grande desventura o amor! Que
felicidade amar um Amado que nos ama com infinito e eterno amor, completo em todas suas dimenses.
111. Ia o amigo por uma terra estranha e procurava seu Amado quando o assaltaram dois lees. Um medo de morte intimidou o amigo, que desejava viver para servir a seu Amado. Dirigia suas lembranas para o Amado a fim de morrer de amor, e com Ele melhor padecer a morte. Enquanto o amigo lembrava o Amado, os lees vieram mansamente lamber as lgrimas dos seus olhos e lhe beijaram as mos e os ps, e o amigo pde ir em paz buscar seu Amado. 112. Andava o amigo pelos montes e plancies e no podia descobrir o portal por onde sair do crcere de amor que, por tanto tempo, acorrentara seu corpo, seus pensamentos e todos os seus desejos e deleites.
114. No existe no Amado nada em que o amigo no encontre ansiedade e tribulaes, nem o amigo tem em si algo do qual o Amado possa obter prazer e segurana. Por isto, o amor do Amado est em ao, e o amor do amigo em dores e paixo. 115. Num ramo cantava um pssaro e dizia que daria um novo pensamento de
amor a quem dois lhe desse. Deu a ave o novo pensamento ao amigo e este, para aliviar seus tormentos, lhe deu os outros dois, e nesse mesmo instante sentiu o amigo multiplicar suas dores.
117. Brigaram entre si amigo e Amado e os seus amores os pacificaram, e a questo era saber qual dos dois amores encerrava maior amizade. 118. O amigo amava todos os que temiam seu amado e temia todos os que no
O temiam. Por isso se perguntava qual seria nele o maior: o amor ou o temor.
119. Esforava-se o amigo por seguir seu Amado e por isso passou inclume
por um caminho onde havia um feroz leo que matava todos que andavam por ali sem devoo e preguiosamente.
120. Dizia o amigo: - Quem no teme meu amado, temer tudo lhe convm.
Quem teme meu Amado, ser audaz e ousado lhe convm.
121. Perguntaram ao amigo que coisa era ocasio; e disse que era achar gozo
na penitncia, entendimento na conscincia, esperana na pacincia, sade na abstinncia, consolo na lembrana, amor na diligncia, lealdade na vergonha, riqueza na pobreza, paz na obedincia e guerra na m vontade.
125. Escrevia o amigo estas palavras: que se alegre meu Amado porque lhe envio meus pensamentos e por Ele choram meus olhos; e sem penas no vivo, nem sinto, nem vejo, nem ouo, nem tenho olfato. 126. - Ah, inteligncia e vontade! Gritai e acordai os grandes ces que dormem,
esquecendo-se do meu Amado! Olhos! Chorai! Corao! Suspira! Memria! Lembra-te da grande desonra que fazem ao meu Amado aqueles aos quais tanto honrou.
127. Aumentou a inimizade que existe entre as pessoas e meu Amado. Todavia, Ele continua prometendo dons e galardes e ameaando com justia e sabedoria. Entretanto, a memria e a vontade desprezam suas ameaas e suas promessas. 128. Aproximava-se o Amado do amigo para confort-lo e consol-lo das penas
que sentia e das lgrimas que chorava; e quanto mais o Amado aproximava-se, o amigo mais fortemente chorava e se compadecia, vendo as desonras que seu Amado sofria.
129. Com pena de amor, tinta de lgrimas e papel de paixo escrevia o amigo
cartas a seu Amado, nas quais Lhe dizia que a devoo se atrasava e o amor falecia, e que seus inimigos multiplicavam pecados e erros.
130. Atavam-se os amores do amigo e do Amado com lembranas, idias e vontades de tal modo que o amigo e Amado no se separavam, e a corda com que estes amores se atavam era de pensamentos, penas, suspiros e prantos. 131. Jazia o amigo no leito do amor. Os lenis era de prazeres, o cobertor de
mgoa, o travesseiro de pranto. E no se sabia se o travesseiro era feito do mesmo tecido que os lenis e o cobertor.
132. Vestia o Amado a seu amigo com mantu, cota e tnica. O capelo era de
amor, a camisa de pensamentos, as calas de adversidades, e de lgrimas a grinalda.
133. Rogava o Amado a seu amigo que no O esquecesse. E o amigo Lhe dizia
que no podia esquec-Lo porque no podia ignor-Lo.
134. Pedia o Amado que naqueles lugares onde mais se teme louv-Lo, O louvasse e O defendesse. Dizia-Lhe o amigo que de amor o dotasse. Respondia o Amado que, por seu amor, tinha-se encarnado e morrido crucificado.
135. Dizia o amigo a seu querido Amado que lhe mostrasse como torn-Lo conhecido, amado e louvado pelos homens. O Amado cumulou o amigo com devoo, pacincia, caridade, aflies, pensamentos, suspiros e lgrimas; e sobrevieram ao corao do amigo atrevimento para louvar o Amado, louvores sua boca, e sua vontade desprezo pela murmurao dos que julgam com falsidade. 136. Dizia o amigo s pessoas estas palavras: - Quem verdadeiramente se
lembra de meu Amado, esquece tudo enquanto dEle se lembra; e quem tudo esquece para lembrar-se de meu Amado, de tudo Ele o defende e tudo compartilha com Ele.
137. Interrogaram o amigo de onde nascia seu amor, de que vivia, e por que
morria. Respondeu que o amor nascia da lembrana, vivia de inteligncia e morria por esquecimento.
138. Esqueceu o amigo tudo quanto est embaixo dos cus, a fim de que a
inteligncia pudesse subir mais alto e conhecer o Amado, que a vontade deseja apregoar e contemplar.
139. O amigo lutava para honrar seu Amado, e fez-se acompanhar pela f,
esperana, caridade, justia, prudncia, fortaleza e temperana com as quais venceria os inimigos do Amado. E teria sido vencido o amigo se o Amado no o ajudasse a confessar as excelncias dEle.
140. Queria o amigo o passamento para o fim ltimo, pelo qual amava seu Amado. Mas os outros fins embargavam o seu trnsito; e por isso dilatados desejos e pensamentos davam-lhe tristeza e pena. 141. O amigo gloriava-se e alegrava-se nas excelncias do Amado. E desfalecia
com o excesso de meditaes e pensamentos, duvidando se sentia mais intensamente os deleites do que os tormentos.
144. Lamentou-se o amigo e queixou-se seu corao pelo ardor de seu amor. Morreu o amigo, chorou o Amado e deu ao amigo um alvio de pacincia, esperana e recompensa.
146. Deus criou a noite para que o amigo a passasse velando e pensando nas
nobrezas do Amado; e o amigo pensava que tivesse sido criada para descansar e adormecer as fadigas do amor.
148. Dizia o amigo: - Vestido estou de vil burel; todavia, o amor veste de agradveis pensamentos o meu corao, e de paixes, lgrimas e penas, o meu corpo. 149. Cantava o Amado e dizia: - Preparam-se os que me louvam para louvar
meus valores, mas meus inimigos os atormentam com seus desprezos. Por isso, fiz que meu amigo lamentasse e chorasse a minha desonra. E sua lgrimas e lamentos nasciam do meu amor.
150. Jurava o amigo ao Amado que era pelo seu amor que amava e suportava
trabalhos e penas, e por isso pedia-Lhe que o amasse e se compadecesse de seus esforos. O Amado jurou-lhe que era prprio de seu amor amar todos os que O amavam e ter compaixo dos que sofrem por seu amor. Alegrou-se o amigo e consolou-se pela natureza e propriedade essencial de seu Amado.
151. O Amado despojou da palavra seu amigo; e este consolava-se fixando a vista no Amado. 152. Tanto clamou e chorou o amigo a seu Amado que Ele desceu das alturas
soberanas do cu e veio terra chorar, lamentar-se e morrer de amor, e ensinar os homens a amar e a conhecer e louvar seus atributos.
penas, os prantos e os desfalecimentos que o amigo suporta para amar e honrar seu Amado.
160. Perguntavam ao louco com que sinal conhecia o Amado. Pela misericrdia
e a piedade, respondeu, que se encontram por essncia na sua vontade, sem nenhuma mudana.
161. Dado o particular amor que o amigo tinha pelo seu Amado, amava o bem universal mais do que o particular, para que assim seu Amado fosse universalmente conhecido, louvado e desejado. 162. Amor e desamor encontravam-se num pomar onde o amigo e o Amado em
segredo choravam. O amor perguntou ao desamor para que viera quele lugar. Para desamar o amigo e desonrar o Amado, respondeu. Muito desgostou isto a ambos e dilataram seu amor para destruir o desamor.
163. - Dize-me, louco, o que desejas com mais fora, amar ou odiar? - Amar,
respondeu, pois odeio para poder amar.
164. - Dize-me, tu que amas, que compreendes melhor, a verdade ou o erro? A verdade - Por qu? - Porque compreendo o erro para poder compreender melhor a verdade.
165. O amigo compreendeu que era amado por seu Amado e perguntou-Lhe se o seu amor e a sua misericrdia eram uma coisa s. Afirmou o Amado que no h diferena essencial entre amor e misericrdia; e por isso perguntou-Lhe o amigo por que o amor o atormentava e por que o Amado, na sua misericrdia, no o curava de suas penas. E o Amado respondeu-lhe que por misericrdia lhe
enviava penas para que assim pudesse com elas satisfazer mais perfeitamente seu amor.
168. Achou o amigo seu Amado; reconheceu o amigo seu Amado e chorou.
Repreendeu-o o Amado, porque antes de reconhec-Lo no chorara e perguntou-lhe como O tinha reconhecido. O amigo Lhe respondeu que O reconhecera na sua memria, na sua inteligncia, e na sua vontade, onde o amor se multiplicou aps t-Lo presente aos olhos corporais.
169. Perguntou o Amado ao amigo que era o amor. Respondeu que era a
presena das feies e das palavras do Amado no corao do amigo que suspira e desfalece de lgrimas e desejos.
171. A devoo e a saudade enviaram pensamentos-mensageiros ao corao do amigo para que as guas subissem aos olhos, que nos entanto queriam acabar com o pranto em que j perseveravam por muito tempo. 172. Dizia o amigo: - Se quereis fogo, vinde ao meu corao e acendei nele as vossas lmpadas; e se quereis gua, vinde s nascentes dos meus olhos cheios de lgrimas; e se quereis pensamentos de amor, vinde a tom-los na minha meditao. 173. Certo dia o amigo pensava no grande amor que tinha pelo seu Amado e
nos grandes trabalhos e perigos em que estivera pelo seu amor durante muito tempo, e considerava que seus prmios tinham sido muito grandes. Enquanto assim pensava, o amigo concluiu que seu Amado j o recompensara, pois ele j O amava e, por amor, recebia sofrimentos.
174. O amigo limpava seu rosto e seus olhos dos prantos que por amor
padecia, para que no descobrissem as dores que seu amado lhe enviava. O
Amado perguntou-lhe por que escondia os sinais de amor aos outros, j que os tinha dado para estimular a honra de seus atributos.
178. - Dize, louco: Quem sabe mais de amor, aquele que do amor recebe contentamento ou aquele que colhe peso e sofrimento? Respondeu que sem um e outro no se pode saber o que amor. 179. Interrogaram o amigo por que motivo no se desculpava das faltas e dos
falsos crimes de que o acusavam. Retrucou que antes devia defender seu Amado que estava sendo injustamente blasfemado e que a criatura humana, que pode cair em erro e engano, quase no digna de ser desculpada.
180. - Dize, louco de amor, por que desculpas o amor que castiga e atormenta
o teu corpo e o teu corao? Segredou: - Porque assim multiplico meus mritos e a minha felicidade.
181. Queixava-se o amigo de seu Amado por permitir ao amor atorment-lo to fortemente. Desculpava-se o Amado, aumentando-lhe os pensamentos, os trabalhos, os perigos, as lgrimas e os prantos. 182. - Dize, louco: Por que desculpas os culpveis? - Para que deste modo no
seja semelhante queles que acusam tanto os inocentes quanto os culpveis.
183. O Amado elevou a inteligncia do amigo a fim de que lhe entendesse as excelncias, inclinando sua memria para que lhe recordasse as faltas e estimulando sua vontade para desprez-las, e assim subisse, at amar as perfeies do Amado. 184. Cantava o amigo seu Amado e declarava que Lhe tinha tanta boa vontade que tudo aquilo que abominava por amor era-lhe mais suave e agradvel do que aquilo que amava sem o amor de seu Amado.
185. Caminhava o amigo por uma grande cidade e indagava se acharia algum
com quem falar, vontade, sobre o Amado, e indicaram-lhe um homem pobre, que chorava de amor e procurava companhia para falar de amor.
186. Perplexo estava o amigo, pensando como podiam suas penas nascer das
grandezas de seu Amado, se estava to repleto de felicidade.
187. O amigo hesitou entre esquecer suas penas e lembrar suas alegrias, pois
os gozos que colhia do amor lhe faziam esquecer suas desventuras, e os sofrimentos que por amor suportava lembravam-lhe a ventura que o amor lhe trazia.
190. Perguntaram ao Amado se alguma vez teve piedade para com o amigo. Respondeu que se no tivesse tido piedade, no teria enamorado o amigo, nem o teria atormentado com suspiros, lgrimas, trabalhos e dores. 191. Em um grande bosque estava o amigo buscando o Amado, encontrou a verdade e o erro discutindo a respeito de seu Amado. A verdade O louvava e o erro O injuriava. Por isso o amigo chamou o amor para que viesse ajudar a verdade. 192. Entrou no amigo a tentao de ausentar-se do Amado e, deste modo,
avivar a memria para recuperar a sua presena - lembrando-se dEle com mais fora que antes -, para elevar o entendimento a uma compreenso mais alta, encaminhando a vontade para uma maior contemplao.
193. Um dia, o amigo esqueceu do seu Amado, e no outro dia lembrou que o
esquecera. E no dia em que o amigo lembrou que tinha esquecido seu amado entraram nele a tristeza e a dor, mas depois voltou a glria e felicidade, pela recordao.
195. O amigo morria de alegria e vivia de penas, e as alegrias e as penas se juntavam at serem uma coisa s na vontade do amigo. E, por isso, morria e vivia ao mesmo tempo. 196. Queria o amigo esquecer e ignorar o Amado apenas por uma hora, para experimentar se colheria algum alvio em suas penas. Mas, como pensou que seria maior o sofrimento pelo esquecimento e a ignorncia, teve pacincia e elevou sua inteligncia e sua memria at a contemplao do Amado. 197. Tanto amava o amigo a seu Amado, que acreditava em tudo quanto Este
lhe dizia, e tanto desejava compreend-Lo que o que dEle ouvia dizer desejava entender por razes necessrias (14). E por isso o amor do amigo agitava-se entre a crena e a inteligncia.
198. Perguntavam ao amigo o que se conservava mais longe de seu corao, e o amigo respondeu: - O desamor. Ao perguntarem-lhe o motivo, esclareceu que era o amor, que contrrio ao desamor, o que ficava mais perto do seu corao. 199. - Dize, doido: Tens inveja? - Sim, lamentou, todas as vezes que esqueo a
abundncia e as riquezas de meu Amado. (15)
200. - Dize-me, tu que amas: Tens riqueza? - Sim, o amor. - Tens pobreza? Sim, o amor. Por qu? - Porque meu amor ainda no to grande a ponto de arrastar muitos a entregaram-se ao meu Amado.
201. - Dize-me, tu que amas, onde est teu poder? - No poder do meu Amado,
respondeu. - Com que lutas contra teus inimigos? - Com a fora do meu Amado. - Com que te reconfortas? - Com os eternos tesouros de meu Amado.
205. Houve um eclipse no cu e trevas na terra, e por isso o amigo lembrou-se de que o pecado tinha afastado, por muito tempo, o Amado de seu querer e, devido a essa ausncia, as trevas desviaram de sua mente a luz na qual o Amado se revela aos que O amam.
207. O amor adoeceu quando o amigo esqueceu seu Amado; e o amigo adoeceu
porque, de tanto querer lembrar o Amado, Este enviou-lhe penas, nsias e fadigas.
208. Encontrou o amigo um homem que morria sem amor, e chorou a desonra do Amado naquela morte sem amor. Perguntou-lhe o amigo por que morria sem amor, e aquele homem respondeu-lhe que ningum lhe ensinara em que consiste o amor nem como se aprende a amar. Por isso o amigo suspirou, chorando, e disse: - Ah, fervor! Quando sereis maior e, assim, a culpa menor! E quando meu Amado ter muitos seguidores, ardentes e fervorosos, que O louvem e O amem, que no duvidem em cantar todas as Suas bondades! 209. O amigo quis experimentar se o amor podia manter-se vivo no seu
corao sem a lembrana do Amado, e seu corao cessou de pensar e seus olhos de chorar; aniquilou-se-lhe o amor e o amigo ficou irresoluto na vida e andava perguntando onde poderia encontrar de novo o amor. (16)
211. - Dize, doido, por que amar tanto? Respondeu: - Porque longa e perigosa a viagem na busca do amado. Convm que eu O procure com grande f e diligentemente. E isto no poder ser feito sem um grande amor. 212. Velava, jejuava, chorava, dava esmolas e por terras estranhas ia o amigo
a fim de mover a vontade de seu Amado a excitar nos Seus sditos a honra de Suas bondades.
214. - Dize, louco, o que te torna mais parecido com teu Amado? - Ouvir e
amar, com todas as minhas foras, as feies do Amado.
215. Perguntaram ao amigo se seu Amado carecia de algo. Respondeu que sim:
De pessoas que O amem, louvem e honrem suas perfeies.
amam. Nessa rvore o Amado sofreu abatimento, desonra e morte, a fim de restaurar o amor nos amantes que perdera.
217. O amigo encontrou seu Amado e viu-O muito nobre e poderoso, digno de
toda honra, e disse-Lhe que muito se admirava de que to poucos O amassem, O conhecessem e O honrassem conforme merecia a Sua dignidade. E o Amado disse-lhe que ficou decepcionado com o homem que criara precisamente para que O amasse, conhecesse e honrasse. Lamentou-se de que entre mil homens apenas cem O temiam ou amavam. Que dos cem, noventa O temiam pelo castigo, e dez O amavam esperando, assim, receber glria. E que ningum O amava por Sua bondade e nobreza. Quando o amigo ouviu estas palavras, chorou fortemente pelo desacato de seu Amado e disse: - Amado, Tu que tanto deste ao homem e tanto o honraste, por que o homem Te esqueceu tanto?
219. Comprou o Amado com suas honras um escravo e o submeteu a muitos pensamentos, cansaos, suspiros e lgrimas; e perguntou-lhe o que comia e bebia. Replicou-lhe que o que Ele quisesse. - E o que vestes? - O que Tu quiseres. - Tens alguma migalha de vontade prpria? - O servo e cativo no quer outra coisa seno obedecer a seu Senhor e Amado. 220. Perguntou o Amado a seu amigo se tinha pacincia. Retrucou que como
tudo lhe agradava no tinha necessidade de ter pacincia, pois no tendo o senhorio de sua vontade no podia ser impaciente.
221. O amor se entregava a quem queria; e como a muitos no se dava a nem apaixonava aqueles que amava, pois era livre, o amigo reclamava do amor e este acusava o Amado. Mas o amor se desculpava dizendo que ele no era contra o livre arbtrio, pois desejava grande mrito e glria aos que o amavam. 222. Deu-se profunda oposio e discrdia entre o amigo e seu amor, pois o
amigo se cansava dos trabalhos que por amor suportava. Discutindo se era falha do amor ou do amigo, foram ao juzo do Amado, que castigou o amigo com mais enfermidades e o premiou, cumulando-o de amor.
225. A vontade do amigo quis subir muito alto para poder amar muito a seu Amado, e mandou a inteligncia subir tambm, com todas as suas foras. A inteligncia mandou que tambm a memria subisse. E as trs faculdades subiram para contemplar as honras do Amado. 226. A vontade deixou o amigo e se deu ao Amado, que aprisionou a vontade
no amigo para ser por ele amado e servido.
227. Dizia o amigo: - No pense meu Amado que eu me tenha desviado, amando outro amado, pois o amor habituou-me a amar apenas um amado. Dizia o Amado: - No pense meu amigo que eu seja apenas por ele amado e servido, pois tenho muitos outros que Me amam, mais fortemente e mais dilatadamente do que ele. 228. Dizia o amigo ao Amado: - Amvel Amado, acostumaste e educaste meus
olhos para ver, e meus ouvidos para ouvir tuas perfeies; e por isso acostumaste meu corao com pensamentos que acostumaram meus olhos a chorar e meu corpo a cansar. O Amado respondia ao amigo, dizendo-lhe que, sem tais hbitos e costumes, no estaria seu nome escrito no livro onde esto escritos os nomes de todos aqueles aos quais est reservada a bno eterna, nem apagando do livro onde esto escritos os nomes de todos os destinados eterna maldio.
229. No corao do amigo se renem os nobres comportamentos do Amado, e assim aumentam os pensamentos e as penas no amigo, que teria se acabado e morrido, se o Amado continuasse multiplicando nos seus pensamentos as nsias de servi-Lo. 230. O Amado veio pousar na casa do amigo, e este Lhe preparou um leito de
pensamentos e serviu-Lhe lgrimas e suspiros; e o Amado pagou a sua estadia com lembranas.
232. Os sinais de amor que o amigo faz ao Amado so, no comeo, choros,
depois tribulaes e, no fim, morte. E por esses sinais o amigo prega queles que ama seu Amado.
234. O amor como um mar alvoroado de ventos e ondas, sem porto nem
margem. Morre o amigo no mar; e no perigo morrem tambm seus tormentos e nasce sua realizao.
236. Perguntaram ao amigo quem era seu Amado. Explicou que era quem o
fazia amar, desejar, cansar, suspirar, chorar, ser desprezado e morrer.
237. Indagaram ao Amado quem era seu amigo. Respondeu que era aquele que, por honrar e louvar Suas perfeies, no hesitava padecer qualquer trabalho, e renunciava a tudo para obedecer todos os Seus mandamentos e conselhos. 238. - Dize, louco, que carga mais estafante e pesada: trabalhos de amor ou
trabalhos de desamor? - Pergunta-o queles que se penitenciam pelos amor de seu Amado e queles que o fazem pelo temor dos tormentos infernais.
239. Adormeceu o amigo e o seu amor morreu, pois no tinha com que viver. O
amigo acordou e reviveu o seu amor, ao pensar no seu Amado.
240. O amigo explicava que a cincia infusa provinha da vontade, da devoo e da orao; e que a cincia adquirida, do estudo e da inteligncia. Por isso se perguntava qual das duas se adquiria com maior rapidez, qual era a mais agradvel e qual, no amigo, a amor. 241. - Dize, louco de amor: De onde provm tuas necessidades? Respondeu: Dos pensamentos, do desejar, adorar, sofrer e da perseverana. - E onde obtns isso tudo? - No amor. - E onde encontrars o amor? - No meu Amado. - E onde encontrars o teu Amado? - Somente em Si mesmo.
242. - Dize, doido de amor: Queres estar livre de tudo? - Sim, menos do meu
Amado. - Queres, ento, ser cativo? - Sim, de suspiros e pensamentos, de penas e perigos, e exlios e prantos, para servir meu Amado que me criou para que O glorificasse.
243. O amor atormentava o amigo, que chorava e se lamentava. Seu Amado gritava-lhe para que se aproximasse dEle, pois o curaria. Quanto mais perto de seu Amado o amigo ficava, mais fortemente o amor o atormentava, pois maior amor sentia. Como, ao amar mais, mais se deleitava, mais fortemente o Amado o curava de suas dores.
244. Doente estava o amor, e o amigo o curava com pacincia, perseverana, obedincia e esperana. Na medida em que o amor curava, o amigo adoecia; curava-o o Amado, lembrando-lhe suas virtudes e seus servios. 245. - Dize, louco de amor: O que a solido? - Consolao e companhia de
amigo e Amado. - E o que consolo e companhia? - Solido, que permanece no corao do amigo que se lembra somente de seu Amado.
246. Argram o amigo: - Onde est o perigo maior, em suportar trabalhos por amor, ou em gozar felicidades? O amigo concordou com o Amado, dizendo que os perigos das adversidades provm da impacincia; e os da felicidades, da ignorncia. 247. Libertou o Amado o amor, e permitiu que todos tomassem dele vontade,
mas dificilmente encontrou quem o colocasse no seu corao. Por isso chorou o amigo e entristeceu-se pela desonra que entre ns sofre o amor, por todos os que amam falsamente e pelos ingratos.
249. Havia no amigo dois pensamentos: por um deles pensava todos os dias na
essncia e nas virtudes de seu Amado e, pelo outro, considerava suas obras. E hesitava em afirmar qual dos dois pensamentos era mais luminoso e mais agradvel ao Amado e a si prprio.
250. Morreu o amigo por causa de um grande amor. Enterrou-o na sua terra o Amado, e depois ressuscitou-o. E se pergunta: De quem - amor ou Amado - o amigo recebeu maior dom? 251. Na priso do Amado havia desgraas, perigos, cansaos, desonras e exlios a fim de que o amigo no tivesse nenhuma dificuldade em louvar Suas perfeies e em enamorar os homens que O desprezavam. 252. Estava um dia o amigo perante muitos que seu Amado havia favorecido
em excesso neste mundo, pois O desprezavam em seus pensamentos. Menosprezavam o Amado e insultavam os que O serviam. O amigo chorou, puxou de seus cabelos, bateu no seu rosto, rasgou suas roupas e gritou em voz alta: Houve jamais to grande falta, quanto esse desdm pelo meu Amado?
253. - Dize, doido, desejas morrer? - Sim, aos deleites deste mundo e aos
pensamentos dos malvados, que esquecem e desonram meu Amado. Desses pensamentos no quero entender nem deles participar, pois neles no se encontra meu Amado.
257. Por cima do amor, o Amado achava-se nas alturas; por baixo do amor,
nfimo sentia-se o amigo. E o amor, que estava no meio, fez descer o Amado ao amigo e subir o amigo at o Amado. E desse subir e descer vive e se origina o amor, que faz desfalecer o amigo e servir o Amado.
258. direita do amor reside o Amado, e esquerda o amigo; por isso, sem passar pelo amor, no se pode alcanar o Amado. 259. O Amado est de permeio entre o amigo e o amor; por isto o amigo no
pode atingir o amor sem atravessar, com pensamentos e desejos, o Amado.
260. O Amado fez para seu amigo outros dois semelhantes a Ele nas perfeies
e nos valores. E o amigo inflamou-se igualmente de amor pelos trs, muito embora o amor fosse nico, para significar a unidade dos trs Amados subsistentes.
261. Vestiu-se o Amado com o mesmo tecido que se vestia seu amigo, para ser
assim seu companheiro na glria eterna. E por isto, o amigo escolhia sempre vestes vermelhas, a fim de que o tecido fosse mais parecido com as vestes que o Amado usava.
262. - Dize, louco: O que fazia teu Amado antes de criar o mundo? - Por
diversas propriedades eternas, pessoais e infinitas - nas quais esto o amigo e o Amado - era-Lhe prprio Ser. (20)
263. Chorava o amigo, e estava muito triste, ao ver os infiis perderem, por ignorncia, o seu Amado; mas alegrava-se ao ver a justia do seu Amado, que afligia os que O conheciam e O desobedeciam. Por isso, perguntaram-lhe qual era a maior, a tristeza ou a alegria, e se era mais feliz vendo honrar seu Amado, ou mais infeliz ao ver que O desprezavam. 264. Mirava o amigo seu Amado, na maior diferena e concordncia de
virtudes, e na maior contrariedade (21) de virtudes e vcios, e no ser e
perfeio, que coincidem mais fortemente sem falta e no-ser, do que com falta e no-ser.
267. Se a falsidade fosse aquilo pelo que o amigo pudesse amar mais seu
Amado, ento a verdade seria aquilo pelo que o amigo poderia amar menos seu Amado. Se assim fosse, seguir-se-ia uma carncia de maioridade e de verdade no Amado e haveria nEle concordncia de falsidade e minoridade.
270. Louvava o amigo o poder, o saber e o querer de seu Amado que criaram
todas as coisas, com exceo do pecado, que no seria sem o poder, a sabedoria e o querer do Amado. Mas, nem seu poder, nem sua sabedoria, nem sua vontade so ocasio do pecado.
271. O amigo louvava e amava seu Amado porque o havia criado e lhe havia
dado tudo quanto tinha; louvava-O e amava-O porque quis assumir sua semelhana e sua natureza; e diante disso convm perguntar: - Quais desses louvores e amores so os mais perfeitos?
272. O amor tentou o amigo no terreno da sabedoria e perguntou-lhe se o Amado o tinha amado mais, ao assumir a sua natureza ou ao recri-lo (23). Ficou perplexo o amigo at responder que a recriao se destina a evitar o mal e a encarnao a conceder a felicidade. Esta resposta produziu outra questo: Qual foi o maior amor? 273. Ia o amigo pedindo esmola de porta em porta, para lembrar a todos o
quanto seu Amado ama os que O servem e, tambm, para exercitar-se na humildade, na pobreza e na pacincia, que so coisas agradveis a seu Amado.
275. Com lgrimas nos olhos o amigo narrava a paixo e a dor que seu Amado suportou pelo seu amor; e com tristeza e pensamentos escrevia as palavras que recitava; e com misericrdia e esperana se confortava. 276. O Amado e o amor vieram ver o amigo enquanto dormia. O Amado gritou
ao amigo e o amor acordou-o; e o amigo obedeceu ao amor e respondeu ao Amado.
278. Interrogava o Amado aos homens se tinham visto o seu amigo, e estes
queriam saber quais eram suas caractersticas. O Amado disse que seu amigo era valente e temeroso, rico e pobre, alegre e triste, pensativo e que adoecia todos os dias por seu amor.
279. Perguntaram ao amigo se queria vender seu desejo, e respondeu que j o havia vendido ao Amado, a um preo tal que bastaria para comprar o mundo inteiro. 280. - Prega, louco, e dize algo a respeito de quem amas! Chora! Jejua! O amigo renunciou ao mundo, e saiu a procurar, cheio de amor, seu Amado, e louvava-O naqueles lugares onde era desprezado. 281. Levantava o amigo uma bela cidade para que seu Amado a habitasse. Com amor, pensamentos, prantos e cansaos a edificava; com alegrias, esperanas e devoo a adornava; e com f, justia, prudncia, fortaleza e temperana a guarnecia. 282. O amigo bebia amor na fonte do Amado, na qual Este lhe lavou os ps,
apesar de que muitas vezes o amigo esquecera e desprezara seus favores. Porque o mundo est em falta com o Amado.
283. - Dize, louco: O que pecado? - Inteno torta e invertida contra a ltima
inteno ou finalidade pela qual meu Amado criou todas as coisas, respondeu. (24)
285. Defendia o amigo a seu Amado diante de todos aqueles que alegam que o mundo eterno, dizendo que no seria a justia perfeita se no devolvesse a cada alma o seu corpo. Ora, se o mundo fosse eterno no haveria suficiente lugar nem matria prima, nem poderia estar ordenado a um nico fim, sem o qual no seria perfeita a vontade e a sabedoria do Amado. 286. - Dize, doido: Como sabes que a f catlica a verdadeira e a crena dos judeus e dos sarracenos falsa e errnea? - Nas dez condies do "Livro do gentio e dos trs sbios". 287. - Dize, louco: Onde comea a sabedoria? - Na f e na devoo, que so
como uma escada por onde o entendimento humano sobre at os segredos do meu Amado. - E a f e a devoo, onde comeam? - No meu Amado, que ilumina a f e aquece a devoo.
290. - Dize, tu que amas: O que o valor? - O contrrio do valor deste mundo,
desejado pelos que amam falsamente ao amar vaidades, desejando valores enquanto na realidade obtm o no-valor por serem inimigos do Valor.
291. - Dize, louco: Viste algum homem demente? Respondeu que conhecera um
bispo que na sua mesa tinha muitos copos, muitos pratos e talheres de prata, e no seu quarto muitas roupas, uma grande cama e muito dinheiro na sua caixa; mas poucos pobres porta de seu palcio.
294. - Louco, dize: O que amor? - O que torna escravos os que so livres, e d
liberdade aos servos. E pergunta-se de qual dos dois o amor est mais prximo, da liberdade ou da escravido?
297. - Alto ests, Amado, nas alturas s quais exaltas a minha vontade,
exaltada na tua exaltao altura que exalta, na minha lembrana, minha inteligncia, exaltada na tua exaltao em conhecer tuas perfeies, para que a vontade tenha um exaltado amor e a memria uma exaltada recordao.
298. - s, meu Amado, glria de minha glria, e com a tua glria e na tua glria, glorificas minha glria, que tem glria da tua glria. Por tua glria parecem-me igual glria os cansaos e as fraquezas que tenho ao honrar a tua glria aos gozos e pensamentos que me vm da tua glria. 299. - amado, no crcere de amor enamoreste-me com teus amores, que me enamoraram de teus amores, por teus amores e nos teus amores. Porque outra coisa no s seno amores, nos quais me fazes estar sozinho e em companhia de teus amores e de tuas perfeies. Porque Tu ests sozinho na minha solido, pois estou solitrio nos meus pensamentos quanto a Tua solido que, sozinha nas suas perfeies, me isolou para louvar e honrar suas perfeies, sem medo dos ingratos que no te possuem sozinho nos seus amores. 300. - s consolao, Amado, de toda consolao; porque meus pensamentos
consolaram-se na tua consolao, que consolo e alvio de meus cansaos e tribulaes, que so atribuladas na tua consolao, de igual maneira que no consolas os ignorantes com teu consolo nem enamoras mais fortemente para honrar tuas riquezas os que j conhecem tua consolao.
301. O amigo queixava-se de seu amado a seu Senhor, e de seu Senhor a seu
Amado. E o Senhor e o Amado diziam: - Quem que nos divide, se somos uma nica realidade? - A piedade do Senhor e a tribulao que sofremos por causa do Amado.
303. Alegrava-se o amigo porque seu Amado era, pois pelo seu Ser os outros
seres chegaram a ser, e nEle se sustentam; e esto obrigados a honrar e a servir o Ser de seu Amado, que por nenhum outro ser pode ser aniquilado, nem acusado, nem diminudo, nem aumentado.
304. - Amado, com tua grandeza tornas grandes meus desejos, meus
pensamentos e meus esforos; pois s to grande, que todas as coisas se engrandecem quando em Ti tm lembrana, pensamento e prazer; e a tua grandeza torna miservel tudo quanto contra teu servio e obedincia.
306. - Meu Amado uno e na sua unidade unem-se numa nica vontade meus pensamentos e meus amores. E a unidade de meu Amado compreende todas as unidades e todas as pluralidades, e a pluralidade que h no meu Amado compreende tambm todas as unidades e pluralidades. 307. - Soberano bem o bem do meu Amado, que o bem de meu bem; pois
meu Amado o bem sem outro bem e, se no o fosse, meu bem estaria em outro bem soberano. E, j que no assim, convm que eu empregue nesta vida todo o meu bem em honrar o soberano Bem.
309. - Teu poder, Amado, pode-me salvar pela sua benignidade, piedade e
perdo; e pode-me condenar pela justia e pelas culpas que mereci com meus pecados. Cumpra teu poder a tua sentena em mim, j que, em ambos os casos ser perfeita, quer me traga a salvao, quer a condenao.
310. - Amado, tua verdade visita a contrio de meu corao e a gua sobe aos
meus olhos quando a minha vontade a deseja; e como a tua verdade suprema, faa subir tambm a minha vontade at a honra de teus mritos, e descer, at o dio das minhas faltas.
311. - Jamais foi verdadeiro o que em meu Amado no foi; e falso o que meu
Amado no , e falso ser o que em meu Amado no ser. Por isto, necessrio que seja verdade tudo o que ser, e foi, e , se meu Amado l se encontra; e falso o que verdadeiro se meu Amado l est ausente; sem que haja nisso contradio.
314. Move-se o amigo para o Ser pela perfeio de Seu Amado; e move-se para
o no-ser, pelo seu nada. Dado isto, pergunta-se qual dos dois movimentos tem no amigo maior fora natural. (28)
315. - Colocaste-me, Amado, entre o meu mal e o teu Bem. Peo-te que do teu
lado encontre piedade, misericrdia, pacincia, humildade, perdo, ajuda e conforto; e do meu, contrio, perseverana, recordao - com suspiros, lgrimas e prantos - de tua santa paixo.
316. - Amado, que geras meu amor! Se no me ajudas, por que me criaste? E
por que sofreste por mim tantas dores e padeceste to grava paixo? J que tanto me exaltaste, ajuda-me agora, Amado, a humilhar-me, a lembrar e a aborrecer minhas culpas e fraquezas, para que meus pensamentos possam com maior facilidade elevar-se desejando, honrando e louvando tuas perfeies.
317. - Criaste livre o meu querer, de modo que possa amar tuas perfeies e
desprezar tuas riquezas, e assim possa, nessa liberdade, multiplicar teu amor.
318. - Ao faz-la livre, Amado, colocaste em perigo minha vontade. Peo-te que nesse perigo te lembres de mim, que de minha livre vontade busco a servido, para louvar tuas honras, e multiplico em meu corpo as dores e os prantos. 319. - Amado, jamais de Ti veio a mim culpa ou defeito, nem pode teu amigo
ser fiel sem tua graa e o teu perdo. Posto que o amigo recebeu de Ti tal patrimnio, no o esqueas nas suas tribulaes e perigos.
320. - Amado, que num nico nome s chamado homem e Deus! Nesse nome,
Jesus Cristo, te deseja a minha vontade como homem e como Deus. Se Tu, Amado, tanto honraste teu amigo, sem mrito de sua parte por nomear e querer teu santo nome, por que no honras a tantos outros que, ignorantes, no foram de propsito to culpveis com teu santo nome, Jesus Cristo, quando o foi teu amigo?
321. Chorava o amigo e dizia a seu Amado estas palavras: - Amado, jamais
foste avaro nem deixaste de ser liberal ao dar o ser ao teu amigo, nem ao refaz-lo pela graa (29), nem ao dar-lhe muitas criaturas para que o servissem. Onde, pois, que Tu, que s a suprema liberdade, fosses avaro em dar ao teu
amigo, lgrimas, pensamentos, cansaos, sabedoria e amores, para honrar tuas virtudes? E por isto, Amado, peo-Te uma longa vida, para poder receber muitos dos dons mencionados.
322. - Amado, se ajudas os justos contra seus mortais inimigos, ajuda tambm
a multiplicar meus pensamentos em desejar tuas riquezas; e se ajudas os injustos a recuperar a justia, ajuda o teu amigo a sacrificar a sua vontade em teu louvor e o seu corpo, no martrio, em testemunho de amor.
324. A humildade humilhou o Amado diante do amigo pela contrio e, tambm, pela devoo. E pergunta-se com qual das duas o Amado se humilhou mais intensamente diante do amigo. 325. Dada sua perfeio, o Amado teve misericrdia do amigo e, assim,
preocupou-se com suas necessidades. E pergunta-se por qual das duas, sua perfeio ou sua misericrdia, perdoou as culpas de seu amigo.
327. O amigo fazia subir suas potncias pela escada da humanidade, e assim
glorificava a natureza divina, e por ela as potncias desciam at glorificar a humana natureza de seu Amado.
328. Quanto mais estreitos so os caminhos por onde o amigo vai at o Amado,
mais largos so os amores; e onde mais estreitos os amores, mais largos os caminhos. Por isso, de qualquer modo o amigo sofre amores, trabalhos, fraquezas, prazeres e consolaes.
331. Com a sua imaginao o amigo pintava e reproduzia as feies de seu Amado nos seres corporais, com seu entendimento as aprimorava nos seres espirituais, e com a vontade as adorava em todas as criaturas. 332. O amigo comprou um dia de prantos com um dia de pensamentos, e
vendeu um dia de amor por outro de sofrimento; e multiplicaram-se seus amores e seus pensamentos.
333. Estava o amigo num pas estranho e esqueceu seu Amado, e teve
saudades de seu senhor, de sua mulher, seus filhos e seus amigos. Mas voltou a lembrar-se de seu Amado para consolar-se, e assim seu afastamento deixou de trazer-lhe saudades e melancolia.
334. O amigo ouvia as palavras de seu Amado, nas quais seu entendimento O
atingia e sua vontade se deleitava. E a memria lembrava-lhe as virtudes e as promessas do Amado.
335. Ouvia como falavam mal de seu Amado e nessa censura sua inteligncia via a justia e a pacincia do Amado, pois a justia castigava os maldizentes e a pacincia esperava sua contrio e arrependimento. Por isso pergunta-se na qual das duas o amigo acreditava mais fortemente. 336. Adoeceu o amigo e, a conselho do Amado, disps seu testamento. Suas
culpas e pecados legou ao arrependimento e penitncia; os deleites temporais, ao desprezo; a seus olhos legou lgrimas e a seu corao suspiros e amores; a seu entendimento deixou as feies de seu Amado; sua memria a paixo que o Amado sofreu por seu amor e a seus negcios deixou a converso dos infiis, que por sua ignorncia caminham para a perdio.
337. Sentiu o amigo o perfume das flores e lembrou os fedores do rico, do avaro, do luxurioso e do ignorante orgulhoso. Degustou douras e entendeu as amarguras que trazem as posses temporais e a entrada e a sada deste mundo. Sentiu o amigo os prazeres da terra e o entendimento compreendeu a brevidade da passagem deste mundo, e os perdurveis tormentos para os quais so ocasio os agradveis deleites deste mundo. 338. Padeceu o amigo fome, sede, calor, frio, pobreza, nudez, enfermidade e tribulao; e teria morrido no fosse a recordao de seu Amado, que o curou com a sua esperana e lembrana, com a renncia deste mundo e o desprezo da censura dos homens. 339. Entre trabalhos e prazeres situam-se o leito do amigo; com prazeres se
deitava e o trabalho o despertava. E pergunta-se, qual dos dois est mais prximo do leito do amigo.
340. O amigo adormeceu irado porque temia a maldio dos homens, e acordou com pacincia lembrando os louvores de seu Amado. E o amigo se perguntava de quem teve maior vergonha, dos homens ou de seu Amado. 341. Pensava na morte e teve medo, at que se lembrou da cidade de seu Amado, da qual o amor e a morte so entrada e portal. 342. Reclamava a seu Amado das tentaes que, todos os dias, vinham
submeter seus pensamentos. E o Amado lhe respondeu dizendo que as tentaes, sabendo utilizar bem a memria, so ocasio de lembrar-se de Deus e amar suas nobres atenes.
343. O amigo perdeu uma jia muito querida e ficou desconsolado at que seu
Amado lhe perguntou o que lhe parecia mais proveitoso, a jia que perdera ou a pacincia que adquiriu graas ajuda do seu Amado.
346. Diante do amigo falavam um dia mal do seu Amado, sem que o amigo
respondesse ou O defendesse. Da nasceu a seguinte pergunta: - Quem mais culpado, os homens que menosprezam o Amado, ou o amigo, que com seu silncio no O defende?
347. Contemplando o amigo seu Amado tornava-se-lhe cada vez mais sutil seu entendimento e mais amorosa a sua vontade. E pergunta-se por qual dos dois se agua melhor a memria para recordar seu Amado. 348. Com fervor e temor ia a amigo de viagem para honrar seu Amado. O
fervor o empurrava, o temor o retinha. Enquanto o amigo assim andava, encontrou os suspiros e as lgrimas que lhe traziam as saudaes do seu Amado. E assim se perguntava por qual dos quatro recebia melhor consolo de seu Amado.
349. Olhava-se o amigo como espelho onde pudesse ver seu Amado, e olhava
seu Amado, espelho do conhecimento prprio. E perguntou-se a qual desses espelhos seu entendimento estava mais prximo.
351. Angustiado e choroso andava o amigo buscando seu Amado pelas vias da sensibilidade e as estradas do intelecto. E pergunta0se por qual dos dois caminhos entrou em primeiro lugar e em qual deles mostrou-se o Amado de um modo mais manifesto. 352. No dia do juzo o Amado dir que se separe a um lado o que neste mundo
se recebeu e a outro se separe o que ao mundo se deu, para que se manifeste com quanta fora foi amado e qual dos dois dons mais nobre e em maior quantidade.
354. - Dize, doido de amor: Qual o maior e mais nobre amor que pode existir numa criatura? - Aquele amor que se identifica com o Criador, pois no h nada, fora o Criador, que possa enriquecer mais a criatura. 355. Estava um dia o amigo em orao e percebeu que seus lhos no
choravam. Para poder chorar pensou no dinheiro, nas mulheres, nos filhos, nos banquetes e nas vanglrias e verificou que h muito mais escravos desses coisas que do seu Amado. E deste modo se encheram de gua seus olhos e a sua alma de tristeza e dor.
356. O amigo andava absorto no seu Amado e encontrou pelo caminho diversas pessoas que lhe pediram notcias. Mas como o amigo sentia-se consolado no Amado, disse que no responderia s suas indagaes para no afastar-se do seu Amado. 357. Por dentro e por fora estava o amigo revestido de amor e ia procura de
seu Amado. O amor lhe disse: - Onde vais, tu que amas? - Ao encontro do Amado, para que tu sejas maior.
360. Indagaram qual era o maior amor, o amor do amigo que por amor vivia ou o do amigo que morria de amor. Disse que era maior o amor do amigo que morria, porque esse amor j no pode ser maior; entretanto, pode ser maior o amor de quem por amor vive. 361. Encontravam-se dois amigos: um deles expunha seu Amado ao outro, que
O entendia. E pergunta-se qual dos dois estava mais perto do Amado. Pela resposta, o amigo percebia a manifestao da Trindade.
362. - Dize, louco de amor: Por que te exprimes com tantas sutilezas? - Para que o entendimento se levante at as nobrezas do Amado e para que mais homens O honrem, O amem e O sirvam. 363. Embriagava-se o amigo com um vinho que lhe trazia a recordao, o
entendimento e o amor do Amado. Aquele vinho empapava o Amado com os choros e as lgrimas do amigo.
365. - Dize, louco de amor: Que coisa este mundo? - Crcere dos que amam,
dos que servem meu Amado. - E quem os pe na priso? - Sua conscincia, seu amor, seu temor, sua renncia, sua contrio e a companhia de gente m. E este mundo trabalho sem galardo, lugar de reparao.
Notas
(1) No captulo 97 do Llibre d'Evast i Blanquerna se alude ao ermito aqui mencionado. Voltar. (2) O protagonista da novela, Blanquerna, fora Papa e renunciara ao papado por motivos pessoais. Voltar. (3) No pensamento de Llio o amor no uma fora cega, nem muito menos um sentimento. O amor tem um norte, segue sempre uma verdade. Ao longo da obra, veremos como o que restava ao amigo, para crescer no amor, era conhecer e amar a cruz de seu Amado. Voltar. (4) A denominao "Nossa Senhora" popularizou-se a partir dos sculos XII e XIII, principalmente devido a influncia de So Bernardo. O ideal de Cavalaria e a poesia dos trovadores medievais conferiram novos matizes devoo a Nossa Senhora. Cf. Pie Rgamey, Les mejores textos sobre la Virgem Mara, Edic. Rialp S. , 1972, pgs. 171 e 207. Voltar.
(5) A traduo de Louis Sala-Molins d a entender que todo amor se alicera nos deleites deste mundo, o que evidentemente falso e no corresponde ao pensamento de Llio, que afirma que o amor que vive de pensamentos e morre de esquecimentos apenas aquele que se fundamenta no que ultrapassa os deleites deste mundo. Voltar. (6) Pensar em Deus estar com Deus. Aproximamo-nos e permanecemos em Deus na medida em que pensamos nEle. Cf. S. Theol. I, q.3, a.1, ad.5. Voltar. (7) A propsito deste ponto diz Iriarte: "No Livro do amigo e do Amado a finura do contedo e da expresso alcanam o limite. Far-nos-ia pensar, se no conhecssemos Llio, num homem numa torre de marfim, que cinzela seu estilo como um ourives, mediante a reflexo e o esforo. A tcnica da poesia moderna pura poderia ver nele um precursor pela sua habilidade em esconder a idia num labirinto de flores de palavras ou de jogos musicais, ou quando faz surgir a plenitude da idia no prprio jogo musical ou labirinto de palavras floridas". Cf. Mauricio de Iriarte, Vida y carcter, Escelicer, S.L., 1955, pg. 76. Voltar. (8) Metfora para designar a Encarnao. Voltar. (9) No original "es mesclaren". Estranhamente, o ponto 44 da edio espanhola de Riquer, Clsicos Univ. Planeta, Barcelona 1985, diz que "se pelearon". Voltar. (10) Trata-se da concepo da poca, que unia a contemplao ao afastamento do mundo. Hoje a Igreja pede a todos os homens que sejam contemplativos. Voltar. (11) Llio entende por corao no apenas a vontade, isto , a faculdade do amor, o espao onde se forja o nosso querer e, portanto, o princpio de nossa autodeterminao, mas tambm a conscincia, a faculdade de julgar, pensar e conhecer. Llio segue, pois, o salmista que no salmo 32,11 menciona os "pensamentos do corao". Voltar. (12) Refere-se Ars Magna, sua mais importante obra de sntese filosfica, onde expe os princpios que estruturam seu pensamento. Como se v neste ponto, tambm essa obra - como quase a totalidade dos escritos de Llio - tinha uma finalidade apologtica. Voltar. (13) Nesta passagem Llio exorta os cristos a imitarem os rabes. No se esquea, tambm, que o prprio Blanquerna disse no prlogo do Livro do Amigo e do Amado que o comps para imitar os msticos rabes. Tudo isso apenas prova o desejo de diminuir as diferenas exteriores que havia entre os cristos e os muulmanos que desejava converter. As imitaes so de forma, no de fundo. Llio combateu os filsofos rabes, sobretudo o averrosmo. Cf. PRO pg. 23 a 25. Voltar. (14) Entender uma verdade por "razes necessrias" - de acordo com Llio verificar que no contraria a razo. Assim mesmo, quando pela f adere-se a uma verdade que no se compreende, possvel demonstrar-se - sem ultrapassar o plano racional, isto , por "razes necessrias" - que no
contraditria. Llio nunca pretendeu demonstrar as verdades reveladas ou da f. Limitou-se a dar suas "razes necessrias", isto , a demonstrar sua congruncia com a razo. Os argumentos que oferece apenas podem ser entendidos como de convenincia. Neste ponto de meditao Llio afirma que a natureza humana tal que, quando ama aquilo que no entende, deseja, ao menos, compreender que no contraria a inteligncia. Voltar. (15) Mas se deixa de amar a Deus surge a preocupao por outros bens e, com ela, a insegurana ntima e a inveja pela prosperidade e alegria dos outros. Voltar. (16) No pensar em Deus e no chorar os prprios erros e as faltas so sinais de que se ama pouco a Deus, mas na maior parte dos casos nos passam despercebidos. O sinal mais gritante de falta de amor a Deus o corao tornarse hesitante a respeito dos bens terrenos. Voltar. (17) So Joo da Cruz dir: "Duas naturezas em um s esprito e amor". Ambos seguem a So Paulo quando afirma que "aquele que est unido ao Senhor um s esprito com Ele" (1Cor 6,17). Voltar. (18) Quando o amigo procura o seu consolo na companhia das pessoas margem do Amado - o que fica logo patente no arrefecimento da fluncia dos pensamentos de sua vida contemplativa e no encolhimento do esprito de contrio e das nsias por servir o Amado -, mesmo no meio da multido, sentese s. Voltar. (19) O amor um fruto que, nascendo no corao do amigo, impregna todas as suas aes. Voltar. (20) Neste ponto da meditao Llio revela sua noo de Deus: um conjunto de perfeies - infinitas, pessoais, eternas e incriadas - identificando-se com a essncia divina. No h a menor diferena entre a essncia divina e a Eternidade e assim com relao s outras perfeies. Llio afirma claramente nesta passagem que prprio da essncia divina Ser. No livro Art de contemplaci Llio esclarecer que em todas as outras realidades distintas de Deus o ser diferente de sua essncia e, por isso, sua natureza os inclina para a corrupo. CFR. PRO 42. Voltar. (21) "Diferena, concordncia, contrariedade." Junto com "comeo, meio e fim" e "maioridade, igualdade e minoridade" constituem as trs trades dos princpios relativos do ser e do conhecer na filosofia luliana. Voltar. (22) No pensamento de Llio - junto com toda a tradio alegrica medieval - o universo criado um sistema de sinais reveladores da realidade trinitria e inefvel de Deus. Voltar. (23) Llio, neste e outros pontos, entende, junto com a tradio crist, a redeno como uma recriao. Voltar.
(24) Deus, segundo Llio, atribuiu uma nica inteno ou finalidade ao universo, porm deu duas intenes ao homem. Este deve pr sua primeira inteno em conhecer, amar e servir a Deus, e a segunda no mundo, a fim de possuir os bens necessrios para o cumprimento da primeira inteno. A segunda inteno, pois, no homem, est subordinada primeira. O pecado consiste em pr a primeira inteno na busca de si e dos bens deste mundo, deixando Deus em segundo lugar. Voltar. (25) Argumento de convenincia contra o erro rabe-averrosta que afirma a eternidade do mundo. Voltar. (26) Sado, saudao, sade e santidade, que em portugus se expressam por palavras diferentes, so em Llio: salutaci. Tal coincidncia procede do latim e persiste ainda em algumas lnguas modernas. Voltar. (27) O termo "refez" tem o sentido de redeno. Cf. a nota 23. Voltar. (28) A teoria dos dois movimentos importantssima na filosofia de Llio. Segundo ela, o homem foi situado por Deus entre dois movimentos - um deles deriva do ser, o outro, do nada -, porque pela sua criao passou do nada ao ser. Tudo o que se faz movido conforme a natureza do primeiro movimento bom. Pelo contrrio, movido conforme o segundo mau. Como o bem esteve no homem antes do mal - pois s caiu em pecado depois de ser criado, e foi criado para fazer o bem -, o bem constitui nele o seu primeiro movimento e, por isso, quando se move para fazer o bem, o faz segundo a sua natureza. Todavia, quando se move para fazer o mal, o faz como coisa privada de ser, e se move para a deteriorao, a destruio e a morte, pois o segundo movimento e o nada, diz Llio, tm naturezas semelhantes. interessante observar que, sculos antes do existencialismo contemporneo, a filosofia crist j apontava no homem uma dimenso de ser-para-o-nada. Voltar. (29) O termo do autor "recriar". Voltar. (30) Entendem-se por "religies" as ordens religiosas nas quais algumas pessoas, por vocao divina, consagram suas vidas. Nelas, a renncia ao mundo um elemento essencial. Voltar.
FIM