SEMINÁRIO O Pré Escolar Faz A Diferença...
SEMINÁRIO O Pré Escolar Faz A Diferença...
SEMINÁRIO O Pré Escolar Faz A Diferença...
revista portuguesa de
Manuela Ferreirai
Universidade do Porto, Portugal
Catarina Tomásii
Instituto Politécnico de Lisboa, Portugal
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O Programme for International Student Assessment (PISA) é desenvolvido pela OCDE e tem como objetivo avaliar os/as estudantes
de 15 anos em competências de Leitura, de Matemática ou de Ciências. Cf. http://www.oecd.org/pisa/ e Projeto de investigação
aQeduto: Avaliação, qualidade e equidade em educação. Consultar em: http://www.aqeduto.pt/
insucesso escolar precoce. Esta mesma ideia, discursos neoliberais assentes na apologia da
igualmente replicada em jornais nacionais flexibilidade, da escolha individual, da prestação
de grande tiragem, avoluma um discurso de contas [accountability] e de uma precoce
mediático que parece refratar uma perspetiva promoção e valorização do desenvolvimento
tornada dominante acerca dos propósitos da de determinadas competências (Kjørholt &
Educação, em geral, e da Educação de Infância Seland, 2012). Este último discurso representa
(EI) em particular, contribuindo também, uma forte orientação de mercado, que constrói
deste modo, para a sua difusão, normalização a ideia de criança como consumidora e utente,
e naturalização. e como investimento económico indireto
Nesta lógica, pode dizer-se que um dos a longo prazo, ou seja, como um capital
sentidos possíveis da resposta afirmativa à humano projetado numa futura trabalhadora,
pergunta “O pré-escolar faz a diferença?” remete útil e rentável; cidadã contribuinte para a
para uma conceção da EPE como estratégia prosperidade nacional.
de prevenção socioeducativa, na qual aquela Corresponde a esta ideia uma outra:
diferença se forja pela aposta na transmissão de a de JI como espaço educativo cada vez
um currículo cujos conteúdos são vistos como mais pressionado a orientar-se para uma
úteis no contexto de uma economia global e noção de qualidade concordante com a
de uma ordem pautada pelo individualismo e sua curricularização e práticas pedagógicas
competitividade (Lima, 2017). Investir política escolarizantes, aferíveis mediante a apresentação
e socialmente na EPE do presente, mas por via de resultados da iniciação das crianças nas
de processos de escolificação (Garnier, 2016; aprendizagens académicas ulteriores, reduzindo-
Ferreira & Tomás, 2017a,b), que já têm em se distâncias entre a escola e o/a aluno/a, o/a
mira a performatividade académica, torna-se, professor/a e a instrução, a ponto de alguns
assim, um modo de reabilitar, ressignificar e autores questionarem se o JI não estará está a
rejuvenescer a velha teoria do capital humano transformar-se num 1º CEB (Bassok, Latham,
(Motta, 2012) e de embaciar as desigualdades & Rorem, 2016; Ferreira & Tomás, 2016, 2017;
de uma sociedade que a educação não pode Garnier, 2016).
compensar. Instigado pela interrogação “O pré-escolar
Com efeito, discursos radicados na história e faz a diferença?”, e referenciado à interlocução
na tradição pedagógica da EI e/ou em prol dos entre Sociologia da Infância, Sociologia
direitos da criança aparecem hoje mesclados, da Educação e Ciências da Educação,
pulverizados e/ou reinterpretados num outro este artigo visa compreender o rumo das
discurso, que tem vindo a impor-se na EI recentes mudanças políticas da EI no quadro
em nome das novas exigências colocadas internacional e nacional, sobretudo a partir
pela sociedade neoliberal, como é o caso do dos anos 90 do século XX, e alguns dos seus
discurso sobre a qualidade, a avaliação e o reflexos ao nível das práticas pedagógicas.
sucesso académico. Em termos esquemáticos A reconstituição deste trajeto assenta na
detetam-se, assim, duas orientações com forças análise de documentos oficiais produzidos
de sentido contrário no campo da EI, tanto em pelo Ministério da Educação (ME) – legislação
termos legislativos como das práticas no Jardim e Orientações Curriculares para a Educação
de Infância (JI): por um lado, os discursos Pré-Escolar (OCEPE, 2016 - Despacho n.º
das crianças como sujeitos competentes 9180/2016) – e de observações realizadas em
com direitos de participação e, por outro, os JI, públicos e privados, entre 2015 e 2017,
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A seleção dos seis JI não obedeceu a critérios sociográficos pré-definidos: dependeu da aceitação, pelas educadoras contatadas,
da realização da observação participante nas suas salas. O trabalho de campo realizou-se em 2015, 2016 e 2017 em JI públicos e
um privado, em Lisboa e no Porto, e a sua duração variou, com observações contínuas e sistemáticas, em uns casos, diariamente
durante quatro meses, e, em outros, semanal ou quinzenalmente durante o ano letivo. As educadoras tinham, em média, 17 anos de
experiência de trabalho. Os grupos de crianças caracterizaram-se pela heterogeneidade de idades, podendo coexistir crianças com
idades entre os 3-6 anos – no JIA (2015): 18 crianças de 5 anos, 7 meninas e 11 meninos; no JIB (2016): 20 crianças entre os 3-5 anos,
11 meninos e 9 meninas; no JIC (2017): 20 crianças entre os 4-6 anos, 7 meninos e 13 meninas; no JID (2015): 25 crianças entre os
4-6 anos, 11 meninos e 14 meninas. No respeito ético da pesquisa com crianças, apesar de formalizado o consentimento informado
com os adultos por elas responsáveis e com as próprias, e de este ter sido renegociado com as crianças sempre que foi necessário, tal
como é prática corrente no âmbito da Sociologia da Infância, estas, as/os suas/seus educadoras/es de infância e instituição não são
identificados, tendo-se procurado retirar do texto todas as informações geradoras de pseudoanonimato.
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Consultar https://openknowledge.worldbank.org/discover?query=early%20childhood
4 Consultar https://data.unicef.org/resources/early-childhood-education/
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Vários autores (Moss et al., 2016) têm vindo a assumir uma postura crítica face a este instrumento, defendendo que se as
dimensões “qualidade estrutural” e “resultados” são passíveis de serem mensuráveis, o mesmo já não acontece no que se refere à
qualidade do “processo” (interações dentro dos contextos, relação com famílias, papel do brincar, etc.).
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Consultar http://www.oecd.org/education/school/the-international-early-learning-and-child-well-being-study-the-study.htm
consolidação da EPE numa única rede nacional permanência das funções compensatórias da EI
de JI sob tutela do ME (Lei-Quadro da EPE – para assegurarem o sucesso escolar e educativo,
Lei nº 5/97, de 10 de fevereiro), deixando para embora formuladas diferentemente – em 1977/79
a história a sua escassez e dispersão territorial urgia colmatar as gritantes assimetrias regionais;
(Lei nº 5/77, de 1 de fevereiro, e Lei nº 542/79, agora a preocupação é prevenir atempadamente
de 31 de dezembro). A segunda, de natureza o insucesso e abandono escolares, sendo mais
socioeconómica e política, aponta para a explícita a aposta nas aprendizagens académicas
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A partir deste ponto usaremos a nomenclatura dos documentos oficiais de Educação Pré-Escolar (EPE). Não obstante, sublinha-
se que EI e EPE não são sinónimos. A defesa de uma ou outra aponta para imagens, conceções e posicionamentos socioeducativos
bem distintos.
20); v) maior explicitação e refinamento dos – Artes visuais; Jogo dramático/teatro; Música;
domínios existentes nas Áreas de Conteúdo, pela Dança; vi) a clarificação dos objetivos de
inclusão de dois domínios na Área da Expressão desenvolvimento e das aprendizagens a promover
e Comunicação: o da Educação Física, que se em cada área (2016, p. 32 e cf. Quadro 1).
autonomizou, e o da Educação Artística, que Referenciadas ao contexto sociopolítico e
mudou a nomenclatura dos seus subdomínios ideológico a que se reporta a produção das
Q ua d r o 1
OCEPE 2016 - Conceções de Criança, Educação de Infância, Currículo, Pedagogia, Educador/a de Infância
“Criança como sujeito e agente – Ao ser protagonista do seu processo de desenvolvimento e aprendizagem, a
criança é ouvida e participa nas decisões que têm influência na sua vida e no seu mundo. Este sentimento de
agência faz parte da construção da sua identidade e autoestima.” (p. 106)
Criança(s) “Este papel ativo da criança decorre também dos direitos de cidadania, que lhe são reconhecidos pela Convenção
dos Direitos da Criança (1989), a saber: o direito de ser consultada e ouvida, de ter acesso à informação, à liberdade
de expressão e de opinião, de tomar decisões em seu benefício e do seu ponto de vista ser considerado (p. 9).
“Apesar de a legislação do sistema educativo (LBSE; Lei-Quadro da EPE) incluir apenas a educação pré-escolar
a partir dos 3 anos, não abrangendo a educação em creche, considera-se, de acordo com a Recomendação do
Conselho Nacional de Educação, que esta é um direito da criança (…) são apresentados fundamentos e princípios,
que constituem uma base comum para o desenvolvimento da ação pedagógica em creche e em jardim de infância“
(p. 5)
“Dada a importância das primeiras aprendizagens, é atribuído à EI um papel relevante na promoção de uma
Educação
maior igualdade de oportunidades relativamente às condições de vida e aprendizagens futuras, sobretudo para as
de Infância crianças cuja cultura familiar está mais distante da cultura escolar” (p. 10)
“no caso da EI, não se trata de adotar na creche, com as crianças mais velhas, práticas mais adequadas ao jardim
de infância (tais como, tempos longos em grande grupo), nem de começar a fazer no JI atividades consideradas
como características do 1.º ciclo. Trata-se antes de proporcionar, em cada fase, as experiências e oportunidades de
aprendizagem que permitam à criança desenvolver as suas potencialidades, fortalecer a sua autoestima, resiliência,
autonomia e autocontrolo, criando condições favoráveis para que tenha sucesso na etapa seguinte” (p. 97)
“As OCEPE não constituem um programa a cumprir, mas sim uma referência para construir e gerir o currículo”
(p. 13)
“Em educação de infância, o currículo refere-se ao conjunto das interações, experiências, atividades, rotinas e
acontecimentos planeados e não planeados que ocorrem num ambiente educativo inclusivo, organizado para
Currículo promover o bem-estar, o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças” (p. 106)
Refinam-se as três áreas de Conteúdo: Formação Pessoal e Social; Expressão e Comunicação; Conhecimento
do Mundo, pelo desdobramento da Área da Expressão e Comunicação, nos domínios da Educação Física, da
Educação Artística, da Linguagem Oral e Abordagem à Escrita e da Matemática; sendo que, por sua vez, o domínio
da Educação Artística inclui os subdomínios - Artes Visuais; Jogo Dramático/Teatro; Música; Dança (p.31-96).
“O tratamento das diferentes áreas de conteúdo baseia-se nos fundamentos e princípios comuns a toda a pedagogia
para a educação de infância, pressupondo o desenvolvimento e a aprendizagem como vertentes indissociáveis do
Pedagogia processo educativo e uma construção articulada do saber em que as diferentes áreas serão abordadas de forma
integrada e globalizante” (p. 31)
“As OCEPE baseiam-se nos objetivos globais pedagógicos definidos pela referida Lei e destinam-se a apoiar a
construção e gestão do currículo no JI, da responsabilidade de cada educador/a, em colaboração com a equipa
educativa do estabelecimento educativo/agrupamento de escolas.” (p. 5)
“Intencionalidade educativa – construir e gerir o currículo – A ação profissional do/a educador/a caracteriza-se
por uma intencionalidade, que implica uma reflexão sobre as finalidades e sentidos das suas práticas pedagógicas
Educador/a
e os modos como organiza a sua ação. Esta reflexão assenta num ciclo interativo – observar, planear, agir, avaliar
de infância – apoiado em diferentes formas de registo e de documentação, que permitem ao/à educador/a tomar decisões
sobre a prática e adequá-la às características de cada criança, do grupo e do contexto social em que trabalha. O
desenvolvimento deste processo, com a participação de diferentes intervenientes (crianças, outros profissionais,
pais/famílias), inclui formas de comunicação e estratégias que promovam esse envolvimento e facilitem a
articulação entre os diversos contextos de vida da criança” (p. 5)
OCEPE (1997, 2016), e atentas ao argumento justapõem os discursos acerca das crianças e
do consenso generalizado em torno do desígnio dos seus direitos e os da pedagogia, em que as
orientador das ações e tomadas de decisão crianças assumem centralidade (Vasconcelos,
dos/as educadores/as, consideramos que o seu 2015), com os discursos da intencionalização
conteúdo, especialmente o atual, está longe de educativa segundo a “especificação de objetivos e
traduzir um conjunto de informações, conceções conteúdos com vista a melhorar a quantidade de
e valores socialmente incontroversos ou neutros. conhecimento ‘real’ para tornar a componente
Atente-se à maior explicitação na clarificação, educativa mais eficiente” (Gulløv, 2012, p. 100).
detalhe e exemplos de processos e estratégias das Ora, qualquer esclarecimento das tensões e
aprendizagens (cf. capítulos “Intencionalidade dos sentidos de que se revestirão as OCEPE
Educativa”, “Áreas de Conteúdo” ou localmente implicará a sua interpretação pelos/as
“Continuidade Educativa e Transições”, 2016, educadores/as8, de acordo com as suas próprias
p. 32); a ilustração dos comportamentos que conceções de criança/infância, educativas,
evidenciarão aprendizagens esperadas; e das pedagógicas e curriculares, os modos como as
estratégias tidas como as adequadas e o seu grau projetaram e implementaram junto das crianças
de pormenorização. e as especificidades dos contextos e dos sujeitos.
Assim sendo, em processos de transição Nesta transposição das políticas para as práticas
paradigmática como o que estamos a analisar, pedagógicas, prosseguimos e reiteramos uma vez
refletir se “o pré-escolar faz a diferença” torna-se mais, então, se e até que ponto “o pré-escolar faz
pertinente para informar uma posição crítica do a diferença”.
conteúdo das atuais OCEPE e dos rumos que se
avizinham para a EI. Duas questões se colocam. 4 . Fa c e ta s da e s c o l a r i z a ç ã o n a
A primeira é a de saber se estaremos perante a e d u c a ç ã o d e i n fâ n c i a
valorização de uma conceção de criança-aluno/a
e de EPE crescentemente curricularizada e A institucionalização da infância e crescente
escolarizada visando preparar para a entrada universalização da EPE, a que Portugal também
no 1º CEB, ou de uma conceção de criança cujo não escapou, faz do JI um observatório
brincar é assumido como experiência infantil privilegiado para compreender os modos como
presente e a respeitar, e, portanto, de uma EPE ali se (re)contextualizam os entendimentos que
que reconhece e potencia as culturas infantis os/as educadores/as elaboram acerca das OCEPE
criando condições e oportunidades para o e as formas práticas e simbólicas destinadas às
exercício da participação ativa. A segunda é a crianças. Neste sentido, cientes e conscientes
de saber perante que conceção de educador/a da diversidade que caracteriza as práticas
estaremos: com autonomia concetual, pedagógicas dos/as educadores/as de infância,
coconstrutor/a do currículo, contextualizado, não podemos, no entanto, ignorar muitas outras
flexível e não adultocêntrico? Com uma missão que, não sendo necessariamente recentes e
técnica e executiva? Com uma intencionalidade estando sob influência de enormes pressões
que ultrapassa os próprios objetivos das OCEPE? sociais, têm vindo a trabalhar e trabalham
Estamos, pois, perante uma nova fase da em prol de uma, cada vez mais assumida, pré-
EI, contraditória, ambígua e tensa, em que se escolarização das crianças. Analisamos agora
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Dadas as características do texto das OCEPE a que aludimos, atente-se aos casos em que educadores/as e outros/as profissionais,
indo além do seu espírito, interpretam aquelas orientações como prescrições.
- Bom dia, bom dia! – diz S. à medida que crianças projeto (cf. Vasconcelos, 1998) quer o brincar
e famílias chegam à sala. – a conversão do “brincar ao 1º CEB” numa
- Ele já tem o estojo na mochila. Fomos ontem realidade tão real por parte da educadora e de
comprar. – diz o pai do M. à educadora... algumas famílias parece não ter deixado espaço
- Hoje não vamos para a manta. Vão sentar-se nas às crianças para agirem ‘como se’. Ao mesmo
cadeiras, devagar e sem arrastá-las. Não é para ir tempo, este projeto revela-se aqui ao serviço
para aí [área da biblioteca]. É para ali – diz S., e da fabricação de corpos dóceis, ajustados e
aponta para as cadeiras. produtivos (Foucault, 2009). Esta “arte do
Depois, S. distribui um conjunto de fichas para adestramento” (Foucault, 2009), acompanhada
as crianças fazerem sobre planetas [tema do projeto de estímulos positivos e de prémios – estrela
que terminou na semana anterior]. As crianças no bibe –, e desdramatização do esforço de
estão 1h27 sentadas, ora a pintar estrelas, ora a fazer contenção – “Veem? É giro! Não custa muito!”
conjuntos com os planetas. S. vai circulando entre – atesta, assim, uma visão adultocêntrica e
os grupos e fazendo reforços positivos: - Veem? É adulterada da modalidade de projeto como
giro! Não custa muito! trabalho pedagógico, que supõe um processo
- É bué fixe! - diz M. curiosamente participado com/entre crianças
T., uma criança novata e o mais novo do grupo, e adultos/as, situado e ampliador de múltiplos
pega na mão de S. e pergunta: - Já posso ir brincar? reportórios, abrindo-se à vivência de práticas
S. olha rapidamente para a ficha, vai ao móvel e mais democráticas.
traz uma estrela, que coloca no bibe do T., dizendo- Após avaliação positiva do trabalho realizado,
lhe: - Fizeste quase tudo bem. Podes, vai lá. a educadora condescende ao pedido “- Já posso
De rajada, levanta-se o grupo de crianças que ir brincar?” esclarecendo uma diferença entre
estava sentado na mesa perto da porta. trabalhar e brincar, entre atividades sérias e
- Meninos!!! Sentar, se faz favor! – reage S... [Mais profanas. Sérias porque úteis e propedêuticas
um dia que as crianças não vão ao recreio] (Nota de à aprendizagem dos comportamentos – estar
campo, JIC, 2017, crianças 4 a 6 anos) sentado à mesa, uso das materialidades
escolares (papéis, canetas, fichas) e das
A metodologia de projeto – uma das formas escriturais que configuram uma
recomendações das OCEPE (1997, 2016) – socialização para o modo escolar. Profanas
e a sua dinamização curricular, que podem porque, reportadas ao brincar, mostram-no
ser vistas como expressões visíveis da como atividade remanescente, recompensa
intencionalidade pedagógica educativa no condicionada pelo bom cumprimento do
quotidiano do JI, surgem aqui confinadas trabalho sério, como castigo ou sanção, ou
a uma “semana de brincar ao 1º ciclo” que é ainda como atitude de condescendência
exterior e superiormente definida pela direção seletiva em função das idades infantis. Por
do JI. Porém, a transformação da sala do JI conseguinte, familiarizar as crianças com
numa sala de aula, das crianças em alunos/as as práticas normativas da escola básica
e do grupo numa turma, da educadora numa torna-se sinónimo de alunização (Correia &
professora que dá ordens, prescreve trabalho Matos, 2001; Matos, 2011), ou seja, de uma
(fichas), avalia e recompensa ou sanciona, do socialização precoce para o desempenho do
brincar num trabalho sem escolha e sem que papel de aluno/a (Perrenoud, 1995). Perante
se perceba qualquer participação das crianças esta transformação do JI em escola, urge
desvirtua, quer os propósitos da metodologia de refletir criticamente: em que medida “o pré-
escolar faz a diferença” da escola do 1º CEB? do nível de desempenho que vai sendo atingido
pelas mesmas. Isso significa que as produções
4.4 A p r e s e n ta r r e s u lta d o s das crianças se assumem como ‘prova’ das suas
como evidências de competências aprendizagens e dos seus progressos. Significa,
a d q u i r i da s também, que os cuidados colocados no resultado
final destas produções são, porventura, mais
C. pede às crianças para se sentarem na mesa vigiados e controlados pela educadora, e que
e fazerem o desenho relativamente à visita do as apreciações suscitadas durante o processo da
apicultor à sala, no âmbito do projeto das abelhas. sua concretização e o resultado final se assumem
M. anda pela sala e senta-se no sofá que está na área como facetas da avaliação na EI, entre outras. Tal
da casa. como a situação acima mostra, a explicitação das
- Anda sentar-te e trabalhar, L. Nunca queres regras, preceitos, conceitos e convenções sociais
fazer nada – diz-lhe a auxiliar. tende a ser objeto de forte regulação, o mesmo
M. chama S. para brincar com ele, mas ela não acontecendo com as chamadas de atenção para a
responde... Já na mesa, L. diz a C. que o desenho já conformidade das crianças à ‘completude’ de uma
está pronto e pergunta se pode ir brincar. C. olha dada realidade, decorrente do preenchimento
para o desenho e volta a colocá-lo na mesa. das ‘falhas’ detetadas – “Ainda faltam aqui coisas.
- Mas as abelhas são verdes? – pergunta C. Onde está o apicultor?” –, e para a correção dos
- Sim – responde L. erros – “Mas as abelhas são verdes?”.
Gera-se uma discussão com as crianças que estão A ludicidade, sendo por definição uma
na mesa acerca das cores das abelhas. atividade autotélica, autodeterminada e livre
- Além de estar mal… são amarelas e pretas, (Brougère, 1998), não pressupõe necessariamente
como a ‘abelha Maya’9. Ainda faltam aqui coisas. nem a realização de produtos finais, nem a sua
Onde está o apicultor? O Sr. João, que esteve aqui divulgação, nem a sua avaliação, o que torna
há pouco? – questiona C. invisível, de alguma forma, quer o ‘trabalho
- Não está… foi almoçar! – diz o L., e aponta para das crianças’, se concebermos que o seu oficio
o desenho fazendo um gesto como que indicando a é brincar (Chamboredon & Prévot, 1973),
‘saída da figura’ com o dedo. (Nota de campo, JID, quer, por consequência, a tal intencionalidade
2016, crianças 4-6 anos) que é suposto estar presente na ação das/os
educadoras/es. Lidar com esta invisibilidade
A solicitação de produções gráficas relativas às torna-se mais agudo quando vivemos num
atividades desenvolvidas, podendo ser justificada contexto, como aquele que já referimos, em que
como registo de memórias significativas que as performances das crianças, mesmo as mais
contam histórias do grupo e do indivíduo, pequenas, começam a ser exigidas, ainda que
pelo seu grau de recorrência, vulgarização e implícita e informalmente.
visibilidade dentro e fora da sala, e na instituição,
pode ser igualmente entendida quer como uma
forma de evidenciar e de legitimar o trabalho
pedagógico desenvolvido pelo/a educador/a com
as crianças, quer como uma suposta evidência
9
Série infantil criada por Waldemar Bonsels em 1912. Estreou em Portugal em 1978.
Abstract Resumen
The identification of sociopedagogical La identificación de prácticas socio
practices tendentially reproductive of pedagógicas tendencialmente reproductoras
schooling forms, and the presence of collection de la forma escolar, y de currículos de colección
curricula and formal modes of pedagogical y modos de transmisión pedagógica formales
transmission emphasizing literacy, numeracy que enfatizan la alfabetización, la numeración
and science point to the reconfiguration of y la ciencia apuntan a la reconfiguración de la
Early Childhood Education as a context of Educación Infantil como contexto de creciente
schoolarisation and of early processes of escolarización y alunización precoz de los
children becoming pupils and as a socio- niños y niñas y como estrategia de prevención
educational prevention strategy against school socioeducativa del fracaso escolar. En la
failure. From an interdisciplinary matrix interlocución entre Sociología de la Infancia,
between Sociology of Childhood, Sociology Sociología de la Educación y Ciencias de
of Education and Educational Sciences it la Educación, se analiza el rumbo de los
is analysed the trend of the recent Early recientes cambios políticos de la Educación de
Childhood Education political changes in Infancia en el marco internacional y nacional,
international and national contexts, back to retrocediendo a los años 90, y algunos de sus
the 90s, and some of its effects on pedagogical efectos a nivel de las prácticas pedagógicas.
practices. The reconstitution of this path rests La reconstitución de este trayecto se basa en
on the critical analysis of official documents, el análisis crítico de documentos oficiales, en
namely the new Early Childhood Curriculum particular las nuevas Directrices Curriculares
Guidelines (2016), and observations conducted para la Educación Preescolar (2016), y de
in Portuguese kindergartens, public and observaciones realizadas en Centros de
private, between 2015 and 2017. Educación Infantil, públicos y privados, entre
2015 y 2017, en Portugal.
Keywords: Early childhood education;
Education policies; Pedagogical practices; Early Palabras clave: Educación infantil; Políticas
childhood education curriculum guidelines educativas; Prácticas pedagógicas; Orientaciones
curriculares para la educación preescolar
i
Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação & Centro de Investigação e Intervenção Educativas
(CIIE), Portugal. Orcid: 0000-0003-4512-166
II
Instituto Politécnico de Lisboa, Escola Superior de Educação de Lisboa & CICS.NOVA. FCSH NOVA, Portugal. Orcid:
0000-0002-9220-964X