O Pensamento Político de Viktor Frankl

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Revista Logos e Existência, 6 (2), 125-136, 2017

O PENSAMENTO POLÍTICO DE VIKTOR E. FRANKL


VIKTOR FRANKL’S POLITICAL THOUGHT
Ivo Studart Pereira

Resumo. Este artigo pretende discutir os aspectos mais relevantes do pensamento político de Viktor Emil
Frankl, cujo trabalho reflete os desafios fundamentais do século XX. Ao longo da investigação, enfatizamos o
esforço de Frankl em preservar a dignidade humana contra o sociologismo, e, também, contra a manipulação
e instrumentalização do poder político, discutindo também os quatro sintomas da neurose coletiva atual:
atitude existencial provisória, atitude fatalista diante da vida, pensamento coletivista e fanatismo. Como
conclusão, chegamos a analisar o compromisso político de Frankl, profundamente influenciado por um forte
imperativo ético, que leva a sua defesa do monantropismo, a ideia da unidade da humanidade.

Palavras chave: Política; Logoterapia; Ética.

Abstract. This paper aims to discuss the most relevant aspects of Viktor Emil Frankl’s political thought, whose
work reflects the fundamental challenges of the 20th Century. Throughout the investigation, we’ve stressed
Frankl’s effort to preserve human dignity against sociologism, and also against manipulation and
instrumentalization by the political power, also discussing the four symptoms of the current collective
neurosis: provisional existential attitude, fatalistic attitude towards life, collectivist thinking, and fanaticism.
As a conclusion, we came to analyze Frankl’s political commitment, deeply influenced by a strong ethical
imperative, which leads to his defense of Monantropism, the idea of the unity of mankind.

Key words: Political; Logotherapy; Ethical

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O presente trabalho tem, como fio sua tese fundamental: a de que a vida humana
condutor de sua reflexão, uma tentativa de análise tem sentido, mesmo sob as piores circunstâncias.
acerca da natureza política do legado de Viktor Ao menos, é isso que se compreende quando se
Emil Frankl. Cabe, de início, o questionamento: constata a existência de 106 organizações de
“existe um pensamento político na obra de Viktor logoterapia espalhadas em 24 países no mundo
Frankl”? Tal pergunta se legitima pelo estigma inteiro, para nos atermos, unicamente, a esses
comum que as escolas de psicoterapia carregam dois dados1.
em seu bojo, no sentido de sobrevalorizar a ênfase Nesse contexto, vislumbramos, ao longo
no indivíduo abstrato, negligenciando os da extensa produção intelectual do pai da
processos históricos que também o constituem logoterapia, sua luta intransigente na proteção do
concretamente. Ora, já nos anos 1980, a grande valor do indivíduo frente à força do Estado
teórica brasileira Silvia Lane nos alertava para o massificador, como um pioneiro da defesa do
fato de que “toda a psicologia é social” (Bock et al, conjunto de princípios e valores que,
2007). Nesse sentido, cremos que a logoterapia posteriormente, se consolidariam na moderna
não é diferente, na medida em que tal escola concepção dos direitos humanos 2 . Assim sendo,
psicológica se ocupa de pensar, criticamente, o sua oposição incansável à tríade reducionista (isto
locus social do indivíduo num contexto amplo de é, o biologismo, o psicologismo e o sociologismo)
análise, além de denunciar tendências e atitudes e a denúncia do niilismo ideológico neles
psíquicas coletivas que podem enfraquecer o arraigado revelam uma contribuição que vai muito
homem como ser político. além dos limites da ciência psicológica. Não foi
De fato, para adentrarmos a dimensão sem razão que Madre Teresa de Calcutá – num
política do pensamento deste psiquiatra e filósofo gesto de grandiosa humildade, mas também de
vienense, é imprescindível que nos debrucemos reconhecimento – escreveu ao Comitê Sueco
sobre seu percurso enquanto testemunha e renunciando seu Prêmio Nobel da Paz de 1979 em
personagem da história de um século cujas lições favor de Viktor Frankl, que também havia sido
ainda se mostram difíceis de assimilar. Frankl indicado na época (Pintos, 2007, p. 139). Ainda na
(1905 – 1997) viveu seus noventa e dois anos esteira de sua postura a favor da paz, cabe citar
inteiramente no século XX e testemunhou, como que a então República Federal da Alemanha
poucos, a miséria, a fome e a violência das duas outorgou a Frankl a comenda da Grande Cruz com
primeiras guerras mundiais. Foi vítima da loucura Estrela de Merecimento, por seus méritos na
racial perpetrada pelo regime de Adolph Hitler. Foi reconciliação teuto-judaica (Karwatzki in Frankl et
um pacifista que temeu a bomba atômica durante al, 1990, p. 11).
a Guerra Fria. E, sobretudo, foi um ser humano Do ponto de vista biográfico, é digna de
que sofreu com o questionamento a respeito da nota a postura política corajosa de Frankl, no pós-
existência de um sentido para a vida. Não é sem guerra. Já em 1946, ele foi um dos pioneiros na
relevância que, ao ser perguntado por Franz luta contra a disseminada “culpa coletiva”
Kreuzer sobre “como descobriu sua teoria”, Frankl (Kollektivschuld), que norteou a política de
responde que elaborara a logoterapia, em “desnazificação” das sociedades alemã e austríaca
primeiro lugar, para si mesmo, como uma espécie por parte dos aliados, buscando incutir nestas uma
de antídoto pessoal contra o niilismo (Frankl, atmosfera de responsabilização coletiva pelos
2000). Assumiu aí, sem qualquer embaraço, a ideia crimes contra a humanidade. Carl Jung é tido
de que, no final das contas, o que cada fundador como o pioneiro na introdução e defesa da
de escolas em psicoterapia faz é recontar a expressão “culpa coletiva” no mundo intelectual
história de seu próprio sofrimento sob a de fala alemã, por meio de seu artigo “Depois da
perspectiva de uma cura. Viu, por fim, prosperar

1Listadas no sítio online do Viktor Frankl Institute de Viena o pensador vienense refletiu que, se é verdade que há um
(http://www.viktorFrankl.org/e/institute_wwE.html), acesso movimento logoterapêutico, este se constitui como um
em 07/07/2015. movimento pelos direitos humanos (Frankl, 2011, p. 207).
2 Foi, provavelmente, em conta do pioneirismo de Frankl na

defesa da dignidade humana no âmbito da saúde mental, que

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Catástrofe”3. As forças de ocupação americanas e Ora, Frankl qualifica, claramente, o
britânicas também se engajaram numa feroz fenômeno do “vácuo existencial” – enquanto
campanha publicitária de culpabilização coletiva, forma privada e pessoal de niilismo – como o
gerando um forte impacto na cultura alemã a grande desafio contemporâneo à psicologia, à
partir dali4 (Olick, 2003). Ora, sabemos que Frankl psiquiatria e à educação. Ainda que o sentimento
cita vários exemplos de indivíduos que, no de falta de sentido, tomado em si mesmo, não
contexto da guerra, agiram de maneira nobre e constitua, necessariamente, um sintoma
altruísta para com os prisioneiros, apesar de, neurótico, mas um ato especificamente humano,
oficialmente, trabalharem para o regime de Hitler, sua cronificação pode levar ao que Frankl chamou
e de judeus que sabotaram os próprios colegas ou de neuroses noogênicas, que são transtornos
agiram violentamente contra estes, apesar de fenopsíquicos – isto é, que possuem
dividirem a condição de vítima: “Quem fala de sintomatologia psicológica (tais como depressão,
culpa coletiva comete uma injustiça consigo abuso de substância, ansiedade etc), mas etiologia
próprio” (Frankl, 2010, p. 121). Nesse sentido, no plano noético ou espiritual, seja enquanto uma
aproximou-se do pensamento de Hannah Arendt, frustração existencial mal administrada ou uma
que defendeu não existirem “(...) coisas como a crise de consciência, um conflito ético. Mas, para
culpa coletiva ou a inocência coletiva. A culpa e a Frankl, é claro que o sentimento generalizado de
inocência só fazem sentido se aplicadas aos que a vida não tem sentido não pode ser
indivíduos” (Arendt, 2004, p. 91). compreendido isoladamente de certas tendências
Logo, cremos ser razoável afirmar que o sócio-políticas que se desenvolveram no último
primeiro passo no sentido de compreender a século, sob um processo ao qual Frankl se referiu
herança política do pensamento de Frankl reside como uma “neurotização da humanidade” (Frankl,
na crítica do psiquiatra vienense à sociedade 2003b). A tese básica desse novo contexto sócio-
contemporânea. Afinal, que sociedade foi – ou é – histórico pode ser descrita como uma tendência
essa para a qual algo como uma logoterapia tem sistemática à negação do sentido da vida, em
tanto a dizer? Ora, certamente, foi esta mesma níveis de massa.
sociedade que transformou o livro “Man’s Search A argumentação inicial de Frankl sobre a
for Meaning” [“Em Busca de Sentido: Um causa – ou, como ele, ocasionalmente, prefere, as
Psicólogo no Campo de Concentração”] num best- “condições de possibilidade” – do vazio existencial
seller de alta influência no mundo todo, com nos remete a uma dupla perda sofrida pelo
quase doze milhões de cópias vendidas, nove homem em seu processo evolutivo, tanto do
milhões das quais, apenas nos Estados Unidos 5 . ponto de vista biológico, quanto cultural (Frankl,
Sobre o significado desse sucesso editorial, vale a 1985). A princípio, no início da história, o homem
pena ouvir o próprio Frankl: foi perdendo alguns dos instintos biológicos
básicos, que regulam, deterministicamente, o
(...) em primeiro lugar, vejo no status de best-seller comportamento do animal, assegurando sua
do meu livro não tanto como uma conquista e sobrevivência. Surgiu aí, no processo de
realização da minha parte, mas uma expressão da humanização, um gap na relação entre instinto,
miséria dos nossos tempos: se centenas de comportamento e ambiente. O Homo sapiens
milhares de pessoas procuram um livro cujo título sapiens conheceu a liberdade, a necessidade de
promete abordar o problema do sentido da vida, tomar decisões, de fazer escolhas. Isto é, ao
deve ser essa uma questão que está incomodando contrário do que ocorre com o mundo animal, os
muito (Frankl, 1985, p. 10). instintos não dizem ao homem o que ele tem de
fazer. Em outras palavras, a realidade instintiva e

3 Ensaio incluído no volume “Aspectos do Drama artigo “Tempos Sombrios: Karl Jaspers e a Culpa Alemã”
Contemporâneo”, das obras completas de Jung, pela Editora (Medeiros, 2012).
Vozes (1988). 5 Segundo dados da própria Editora Beacon Press. Disponível
4 Também é digna de nota a obra de Karl Jaspers sobre o em: http://www.beacon.org/Mans-Search-for-Meaning-
tema. Para um aprofundamento deste tópico, sugere-se o P1048.aspx .Acesso em 10/10/2015.

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pulsional do ser humano não dá conta de impor os dos tempos atuais. Frankl define “neurose”, no
limites finais de seu mundo, de suas possibilidades sentido estrito do termo, como um transtorno de
de ação. Aqui, cabe ter em mente que, para Frankl, origem psíquica. Isto é, sua causa é psicológica. No
“ (...) a verdadeira natureza do homem é sua sentido clínico, concebeu, ainda, neuroses
cultura; enquanto cada animal possui seu meio somatogênicas, noogênicas e sociogênicas. Mas
ambiente adequado, o homem tem acesso a um quando o vienense menciona a “neurose
mundo do sentido” (Frankl, 1991, p. 127). E esse coletiva”, refere-se a tal fenômeno como uma
sentido não é acessado pela via pulsional. espécie de metáfora6, aludindo a ela como uma
A segunda perda é mais recente e diz neurose no sentido “paraclínico” do termo. Não se
respeito à diminuição do papel da tradição em trata de uma pandemia de neuroses no sentido
definir o lugar da ação humana no mundo. Frankl clínico, mas de um conjunto de atitudes doentias
argumenta que, na contemporaneidade, em que demonstraram ganhar alta prevalência e
oposição ao que ocorria nas sociedades dos influência social. Desse modo, um indivíduo pode,
séculos passados, a tradição já não dá a última ao mesmo tempo, estar livre de uma neurose no
palavra ao homem sobre o que ele deve fazer. sentido clínico, mas ver-se possuído por uma
Perdido nesse confuso estado de coisas, o homem neurose coletiva.
de hoje parece, muitas vezes, já nem saber o que A esse respeito, o século vinte assistiu à
quer. Logo, a consequência desse fenômeno ascensão dos mais diversos tipos de mecanismos
parece dividir-se, por um lado, num processo de institucionais, políticos, sociais e culturais para
massificação da sociedade, cuja regra reside no desonerar a ação humana de seu caráter de
mimetismo, na imitação social e conformista de liberdade e de responsabilidade, buscando
contentar-se em “fazer o que os outros fazem” – transformar o homem numa caricatura
e, por outro, na abertura, numa vulnerabilidade a manipulável, dócil e apática. Já na década de
um poder totalitário: o “fazer o que os outros 1950 7 , Frankl denunciara os quatro “sintomas”
querem que eu faça”. Em suma: temos aí adoção fundamentais daquilo que chamou de “patologia
do conformismo como estilo de vida e a abertura de nosso tempo”: 1) atitude provisória diante da
ao totalitarismo como regime político possível. vida, 2) a orientação fatalista perante a existência,
Não é sem razão que Frankl repetiu, 3) o pensamento coletivista e, por fim, 4) o
incansavelmente, que, a princípio, qualquer nação fanatismo. Antes de nos debruçar sobre cada um
é ainda capaz de um novo holocausto (Frankl, de tais sintomas8, cabe lembrar o comentário de
2014, p. 317). James Dubois (in Frankl, 2004, p. xxiv) sobre sua
Exposta a emergência desse duplo quadro tradução ao inglês da obra Theorie und Therapie
de condições de possibilidade para o vazio der Neurosen. No texto introdutório, Dubois
existencial, a fórmula que guia a reflexão de Frankl afirma que, nas 4 décadas posteriores em que
no âmbito da presente discussão é a de que: revisou a obra, Frankl não havia mudado sua
“Existem, decerto, paralelos entre a patologia concepção sobre esses traços fundamentais.
individual e a social” (Frankl, 1978, p. 51). E é com O primeiro dos sintomas – a atitude
esse pensamento em mente, que podemos provisória diante da vida – se enraíza num modo
compreender, em princípio, o que o pai da de vida imediatista cujas origens remontam aos
logoterapia entendeu como a “neurose coletiva” tempos de guerra (Frankl, 1990). Falamos, aqui, de

6 Compreensão derivada da formulação “quasi-neurosis” recurso retórico que Frankl afirma que as câmaras de gás
(Frankl, 2004), na qual o prefixo latino “quasi” tem o sentido nasceram não apenas nos gabinetes ministeriais de Berlim,
comparativo de “como que”, “a modo de”. mas também nos laboratórios e salas de aula de cientistas e
7 A primeira edição de “Theorie und Therapie der Neurosen” pensadores niilistas (Frankl, 2003b, p. 45). Para ele, a neurose
data de 1956. coletiva, ao invés de ser uma consequência da guerra, pode
8 Como veremos, Frankl também denunciou – servindo-se de bem ser uma de suas causas. É por isso e nesse contexto que
uma refinada psicologia política – as relações de cumplicidade o vienense relata a existência de quatro traços psicológicos
entre o vazio existencial (enquanto forma privada de niilismo) disfuncionais que têm relação direta com a forma pela qual a
e o interesse totalitário, anunciando a necessidade de uma ideologia do nacional-socialismo se desenvolveu.
psico-higiene coletiva, contra uma coletiva que, certamente,
teria impactos políticos e sociais. Não é por mero neurose

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um modo de existência marcado pela incerteza irresponsável e sem liberdade” (Frankl, 1978, p.
sobre o “dia seguinte”: não há, do ponto de vista 225). Do slogan “não vale a pena”, da existência
psicológico, absolutamente, nada que garanta a provisória, mudamos, aqui, para um “não
sobrevivência para o amanhã. Deste modo, o depende de mim” fatalista. Em ambos os casos,
indivíduo é tomado por um sentimento de trata-se de uma escusa para a ação: seja pela
provisoriedade existencial, que fixa todos os seus desnecessidade ou pela inviabilidade do agir.
esforços num “hoje” sem perspectiva alguma de Contra isso, Frankl assevera: “Mesmo em se
futuro, sob o peso psíquico da efemeridade. Nesse admitindo que estivesse iminente a hecatombe
modo de ser, abre-se o campo para a dominação planetária de uma terceira guerra mundial, nosso
instintiva: “O homem que vive em função de um esforço desenvolvido todo dia e toda hora
único dia, invariavelmente, vive sujeito à continuaria válido” (Frankl,1990, p. 41).
dominação dos instintos” (Frankl, 1990, p. 40). O pensamento coletivista é o terceiro dos
Desta forma, a insegurança onipresente quanto ao sintomas da patologia do espírito da época e
futuro acaba por gerar uma espécie de lema caracteriza-se pela despersonalização do
pessoal: “não vale a pena” (Frankl, 1978, p. 225). indivíduo livre e responsável, através de sua
Em suma, propaga-se o sentimento de que não diluição na massa indiferenciada, no rebanho
vale mais a pena ser responsável pela própria vida. social. Nesse caso, a orientação das ações
A existência provisória, cuja analogia com a humanas vai sempre no mesmo sentido da
vivência do homem de guerra permanece fecunda desoneração quanto à responsabilidade pessoal.
até hoje, promove, então, uma O indivíduo não se vê mais como alguém que se
unidimensionalização temporal quanto ao move através de escolhas pessoais, nem por
presente, engessando o real e asfixiando o alguém que seja reconhecido por suas realizações
conhecimento das possibilidades de valor: não singulares, pois passa a crer que a imersão na
sabemos o que o amanhã nos reserva, portanto, coletividade, aparentemente, o isenta dessa
para quê agir? Para quê fazer diferente? demanda. Eu já não existo como ser humano
O segundo sintoma – a orientação fatalista único, mas como um membro de uma coletividade
– constitui mais uma das estratégias de negação despersonalizante. Marshall Rosenberg (2006, p.
social da responsabilidade e caracteriza-se pela 43), psicólogo humanista criador da comunicação
convicção a respeito de uma espécie de poder que não-violenta, comenta como Adolf Eichmann,
tenha condições reais de destituir o ser humano tenente-coronel da SS, respondeu à pergunta
de sua condição ontológica de ser livre e sobre se fora difícil mandar milhares de pessoas
responsável. Frankl ilustra essa experiência, não para a morte. Eichmann, em seu famoso
com a imagem do homem de guerra, mas com a julgamento, respondera que não havia sido difícil.
do homem do cativeiro (Frankl, 1978, p. 225). Por quê? Por causa da Amtssprache: a linguagem
Trata-se de uma crença (muitas vezes, promovida burocrática que se usava no âmbito do aparelho
ideologicamente) nas mais diversas formas de de Estado. Tratava-se de uma forma de linguagem
predeterminação do destino. Sim, estamos que negava a responsabilidade pessoal, com
falando aqui de um “destino selado e inexorável”, jargões do tipo “eu tive que fazer”, “é a lei”,
que faz com que o homem acredite em que tudo “estava cumprindo ordens”, “é a ordenação
já está determinado de antemão, não importando política”. Vemos aí – por que não? – uma forma de
o que se venha a fazer. No âmbito desse sintoma, se render ao coletivismo, a fim de sumir na massa:
Frankl reconheceu os três principais tipos de
“destino” relacionados às três formas clássicas de O nacional-socialismo, com seus critérios
reducionismo: o biologismo, o psicologismo e o unicamente coletivos e globais, foi o principal
sociologismo. Isto é, cada uma dessas abordagens educador do homem no rumo do pensamento
faz o homem ver a si mesmo como, coletivista. Bastava ser alemão, quer dizer,
respectivamente, “um autômato movido por pertencer à ‘nação alemã’ para merecer um ponto
reflexos, um aparelho psíquico, ou um produto do positivo; em compensação, bastava ser judeu para
sangue e da terra, da hereditariedade e do meio encher-se de culpa. Infelizmente, mesmo aqueles
ambiente; em qualquer dos casos, uma criatura que deveriam curar essa enfermidade de massa

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também se deixaram contagiar – do contrário não comunidade como uma tarefa essencial na vida
se compreenderiam as alusões à “culpa coletiva”. humana (Frankl, 2014, p.20).
Bastava ser alemão para incorrer em culpa, ou ser O quarto dos sintomas sociais descritos
alvo de zombarias na condição de “prussiano” ou por Frankl é o fanatismo, que ocorre como
“burguês”. Ora, quem se refere globalmente aos correlato radical do pensamento coletivista.
“pequenos-burgueses” pode ser considerado igual Absorvido pela massa, o indivíduo já não entra em
aos que aludiam aos “judeus” num enfoque contato com sua singularidade, que não se mostra
também globalizante. Emitir juízes coletivistas no mundo, ficando desconhecida até para a
serve, afinal, para fugir à responsabilidade de uma própria pessoa. Nesse processo, o indivíduo
opinião pessoal. Ocorre, assim, que a maioria das acaba, também, negando a singularidade do ser
pessoas hoje em dia não tem opiniões, as opiniões pessoal do outro, do diferente, tornando-se aquilo
é que as “têm” (Frankl, 1978, p. 225). que Frankl descreveu como o fanático: o
representante da massa que, possuído pela
Nesse ponto, adiantando tópico que opinião pública, nega a dignidade do ser humano
aprofundaremos adiante, temos que advertir que pensa diferente, colocando acima de qualquer
sobre a distância conceitual que existe entre a consequência, os ideais em que foi imerso. Tudo
noção de “coletivo” que Frankl critica e o sentido para o fanático não passa de um meio para um
mesmo de “comunidade”, que exige, por fim. Frankl fala do fanatismo como “epidemia
definição, a singularidade de seus membros para psíquica”, cujos agentes patogênicos seriam os
que venha a existir. Aqui, cabe o esclarecimento9: slogans, as palavras de ordem, que, uma vez
“lançados no seio das massas provocam uma
O sentido da individualidade só se atinge reação em cadeia psicológica, mais perigosa do
plenamente na comunidade. Nesta medida, o que a reação em cadeia física que serve de base à
valor do indivíduo depende da comunidade. De bomba atômica” (Frankl, 1978, p. 230). Na crítica
modo que, se a comunidade, por si, tiver sentido, do psiquiatra vienense, é impossível compreender
não poderá prescindir da individualidade dos os fenômenos totalitários do século XX sem
indivíduos que a formam; na massa, em recorrer ao fenômeno do fanatismo:
contrapartida, desaparece o sentido da existência
única e individual de cada homem, e não pode O totalitarismo converteu o homem em fanático.
deixar de desaparecer, já que tudo quanto tiver a O que é o totalitarismo fica bem claro na seguinte
peculiaridade de algo único atua nela como fator frase de Hitler: “A política é um jogo que são
de perturbação. (...) o fugir para a massa permitidos todos os truques”. Bem, desde o tempo
representa algo como uma fuga à em que Hitler pronunciou essas palavras até hoje,
responsabilidade individual. (...) Mas essa importa cada vez menos saber que objetivos
tendência para fugir da responsabilidade é o persegue uma política do que os meios de que ela
motivo de todos os coletivismos. Uma verdadeira se serve para alcança-los. Em outras palavras: o
comunidade é essencialmente comunidade de que importa não é a finalidade, é o estilo da
pessoas responsáveis, ao passo que a pura massa política (Frankl, 1978, p. 227).
é apenas uma soma de seres despersonalizados
(Frankl, 2003, pp. 116-118. Grifos originais). Em suma, tais fenômenos – existência
provisória, fatalismo, coletivismo e fanatismo –
Ou seja: a comunidade se enriquece com seriam os quatro traços psíquicos disfuncionais
a singularidade do indivíduo, como num mosaico, que tipificariam nossa era. Em todos eles, vemos
em que cada pequena parte tem seu valor por ser uma raiz comum: o medo da liberdade e a fuga à
única naquele arranjo. Frankl chega a qualificar a responsabilidade. Para cada traço, Frankl propôs,

9 “Se chamarmos de “coletivo” tudo que se opõe ao pensamento coletivista leva a uma valoração coletivista, o
verdadeiro sentido de “comunidade”, torna-se evidente que padrão de medida passa a ser a utilidade social, ficando de
todo sociologismo se baseia, no fundo, num pensamento fora a dignidade pessoal” (Frankl, 1978, p.223).
coletivista. Digamos, de passagem, que nos casos em que o

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ainda, uma analogia clínica (Frankl, 1978). No caso mediados pelas tradições”. E segue, indicando
da existência provisória, teríamos, sob paralelo uma população específica a sofrer mais
com o transtorno psiquiátrico, um quadro de diretamente o problema: ”Compreende-se por si
mania. Aqui, o indivíduo se pergunta: para quê mesmo que, sob tais circunstâncias, sobretudo a
agir, se amanhã mesmo tudo pode estar acabado? nova geração tenha de sofrer do sentimento de
O segundo traço, a atitude fatalista, diz respeito à ausência de sentido, avaliação em favor da qual
crença no poder de um destino selado, contra o falam também os resultados de pesquisas
qual não se pode lutar. Nesse caso, o indivíduo crê empíricas” (Frankl, 2014, p. 283).
na impossibilidade da ação. Tudo já concorre para O vazio existencial, segundo Frankl, tem,
um fim que está fora do alcance individual. A ainda, se manifestado sintomaticamente sob a
analogia clínica aqui se dá com o quadro de forma predominante de tédio, enquanto
melancolia. O terceiro traço, o pensamento incapacidade de interessar-se por algo, e apatia,
coletivista, como vimos, diz respeito à diluição do como incapacidade de tomar iniciativa para algo.
indivíduo na massa. O indivíduo passa a Este binômio – tédio e apatia – se traduz
desconhecer-se como singular e único. Sua estatisticamente em índices crescentes de
analogia clínica, segundo Frankl, se dá com a depressão, agressão, adição e inflação da
esquizofrenia catatônica, com o esgotamento das sexualidade (Frankl, 2003b). Isto é, diante do
iniciativas e interesses próprios. Por fim, temos o vácuo existencial de nossa era, assistimos ao
fanatismo, que se define pela negação do ser aumento dos números de suicídio, criminalidade e
pessoal do outro, pela invalidação apriorística da dependência química, além do estabelecimento
postura e do pensamento que não se acomode à de um tipo volátil de sociabilidade no âmbito
massa. A analogia clínica do fanatismo se dá com afetivo-sexual. O pai da logoterapia propõe, nesse
o quadro de paranoia. Frisamos que todos esses sentido, uma analogia quanto a um órgão físico
traços, contudo, só se desenvolvem na medida em que se atrofia: nos espaços vazios deixados, vão
que cada indivíduo desrespeita sua consciência crescendo e se acumulando células de gordura.
moral, por meio de uma fuga à responsabilidade e Todos esses fenômenos citado seriam, então, a
um medo da liberdade. Nesse contexto, outra tese adiposidade que se prolifera no vazio existencial
da psicologia política de Frankl diz respeito à ideia de nosso tempo, segundo a metáfora proposta:
de que, em todas as épocas, existe uma afinidade
entre certos transtornos mentais, de um lado, e Pois bem, nós, médicos, sabemos, por meio da
determinadas orientações políticas de outro. Para patologia, que há algo assim como um assim
Frankl, os psicopatas têm sempre uma tendência chamado aumento da adiposidade, ou seja,
ao extremismo, ao radicalismo político. sabemos que lá, onde um órgão se atrofia, lá onde,
O pai da logoterapia critica, igualmente, a portanto, digamos no caso de um coração em
sociedade industrial, que objetiva satisfazer, se processo de envelhecimento, as células
possível, todas as necessidades humanas, bem musculares perecem, cresce nos espaços livres que
como o efeito colateral que ela acarreta, que é a surgem daí tecido adiposo. Visto em termos de
sociedade de consumo – esta, que, por sua vez, psicologia das massas, acontece algo análogo:
busca criar novas necessidades, para que a também há neste caso um aumento de
indústria as satisfaça. Além disso, a adiposidade no vácuo existencial, e são
industrialização em massa10 se consolida por meio justamente esses aumentos de adiposidade que
da instrumentalização do indivíduo com fins constituem, então, a “patologia do espírito do
econômicos e de uma urbanização aguerrida, que, tempo” (Frankl, 2014, p. 302).
segundo Frankl, “desenraiza o homem, na medida
em que o aliena das tradições e dos valores

10“Desde Kant o pensamento europeu soube pronunciar-se pessoas que trabalham foram em grande parte
com clareza pela autêntica dignidade do homem: o próprio transformadas em simples meios, degradadas a meios da vida
Kant disse, na segunda formulação do seu imperativo econômica. O trabalho não era mais meio para um fim, para
categórico, que cada coisa tem o seu valor, o homem, porém, a vida – um meio de vida, mas antes o homem e sua vida, sua
tem dignidade – o homem não deve jamais tornar-se meio energia vital, sua força de trabalho eram meios para um fim”
para um fim. Mas já na ordem econômica da última década as (Frankl, 1990, p. 63).

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O último dos condicionantes sócio- também acontecer. Eu prefiro um mundo assim a
políticos do vazio existencial discutidos por Frankl um mundo de conformismo e coletivismo totais, ou
diz respeito à educação. Esta, segundo ele, viria, totalitários, em que o homem seja rebaixado e
muitas vezes, a contribuir para o vácuo existencial, degradado a um mero funcionário de um partido
ao invés de imunizar os estudantes contra ele. ou do Estado (Frankl, 1967, pp. 13-14).
Para o vienense, o modo unilateral e reducionista
por meio do qual as descobertas da ciência são Principalmente, numa época em que se
apresentadas, frequentemente, acaba por se assiste à derrocada dos valores tradicionais, o
transformar numa doutrinação para uma filosofia papel da educação deve ampliar-se para além da
de vida relativista e para uma concepção instrução formal, no sentido da preparação para a
mecanicista do ser humano (Frankl, 2011, p. 108). responsabilidade individual, para aguçar o apelo
A necessidade metafísica do homem é reprimida da consciência no sentido de ouvir – como Frankl
para o que Max Scheler concebeu como “ligeireza costumava escrever – os “dez mil mandamentos
metafísica” ou, conforme Igor Caruso pensou, um relacionados às dez mil situações singulares de
“aborto espiritual” (Frankl, 1978, p. 102). que a vida consiste” (Frankl, 2011, p. 10). Uma
Contrário aos sistemas educacionais consciência vivaz também empodera o ser
doutrinadores dos países comunistas11 durante a humano com a capacidade de resistir tanto ao
Guerra Fria, Frankl defendeu o fim do “ensino para totalitarismo quanto ao conformismo. Para o pai
a obediência”, em favor de um “ensino para a da logoterapia, é só nossa consciência que nos
consciência”: permite dizer “não”. E isso bem se encaixa no
papel de uma psico-higiene coletiva, que Frankl
Durante mais de 70 anos as pessoas mantiveram tanto julgou pertinente, enquanto objeto de uma
no topo na União Soviética a tese de Marx de que psicoterapia social.
a “religião é o ópio do povo”. Entrementes, porém,
o marxismo mesmo se transformou em uma Mas em uma época como a atual, na qual as
religião. No entanto, com a falência da ideologia massas se encontram em um estado de crise
compulsiva marxista, o que passou a importar espiritual sem precedentes, é mais do que nunca
deixou de ser, diante dela, levar a termo um ensino necessário combater essa crise espiritual. Não só
para a obediência. Ao contrário, o que precisaria os circuitos médicos especialistas, mas também os
acontecer seria muito mais – gostaria de dizer – a políticos-culturais e os religiosos têm consciência
eliminação do ensino para a obediência e a sua de sua responsabilidade com respeito a isso; eles
substituição deste por um ensino para a sabem que se trata de salvar a humanidade de
consciência (Frankl 2014, p. 302). hoje da última e definitiva queda em um precipício,
acima de tudo através da educação. Aqui se
Desse modo, o pai da logoterapia delineia algo como a reivindicação por uma
declarava, abertamente, sua preferência por viver psicoterapia social, a necessidade de uma psico-
num mundo em que o homem tenha o direito de higiene coletiva (Frankl,1991, p. 12).
fazer escolhas, mesmo que sejam erradas, a ter
que viver num espaço político negador de Outro tema de particular importância para
qualquer escolha: a análise da natureza política do pensamento de
Frankl consiste na contenda específica do pai da
Em outras palavras, eu prefiro um mundo em que, logoterapia contra o sociologismo, isto é, contra a
por um lado, um fenômeno tal como um Adolf redução da pessoa humana a um subproduto de
Hitler possa ocorrer e que, por outro, fenômenos processos de pandeterminação sócio-política,
tais como os muitos santos que já viveram possam econômica ou estatal.

11Bom conhecedor da teoria marxista, Frankl foi filiado ao sociologismo (Frankl, 1990, p. 116). Na época, suas longas
Partido Socialista em sua juventude e, em 1924, chegou a ser conversas com os colegas, além de discutir a questão Freud e
presidente da união dos estudantes socialistas da Áustria, Adler, também buscavam debater as alternativas entre Marx
confessando que chegara a flertar com a tentação do e Lenin.

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sua utilidade vital e social. A dignidade de um
Mas eu prefiro viver num mundo em que o homem homem – de um homem como pessoa –
tenha o direito de fazer escolhas, mesmo que permanece intacta depois da perda da utilidade
sejam erradas, a viver num mundo em que não ocasionada pela desorganização psicofísica da
haja qualquer escolha disponível. Em outras pessoa espiritual. Assim como a pessoa espiritual
palavras, eu prefiro um mundo em que, por um está “atrás” – atrás do acontecimento mórbido
lado, um fenômeno tal como um Adolf Hitler possa psicofísico – também a sua dignidade está “por
ocorrer e que, por outro, fenômenos tais como os cima” – por cima da perda de valor biossocial, pois
muitos santos que já viveram possam também essa perda refere-se “ao ipso” à simples utilidade.
acontecer. Eu prefiro um mundo assim a um É exatamente isso o que Rudolf Allers tinha em
mundo de conformismo e coletivismo totais, ou mente quando disse que homens diferentes têm
totalitários, em que o homem seja rebaixado e valor diferente, mas dignidade igual. Eles têm
degradado a um mero funcionário de um partido dignidade igual como pessoas espirituais que são,
ou do Estado (Frankl, 1967, pp. 13-14). mas não como organismos psicofísicos nem como
indivíduos vitais-sociais (Frankl, 1978, pp. 119 -
Em contraposição à ideologia sociologista, 120).
Frankl defendeu uma noção de comunidade que
se contrapõe a qualquer coletivismo ou Insistimos: para Frankl, o sentido da
conformismo massificantes. Para o pensador individualidade só se plenifica no interior da
vienense, a comunidade humana se funda no comunidade humana. Uma verdadeira
reconhecimento da dignidade e da singularidade comunidade não pode prescindir da
de cada indivíduo, naquilo que chamou de “nós” individualidade de seus membros, ao passo em
como categoria resultante da relação “eu e tu”, tal que a massa faz desaparecer o sentido da
como Buber e Ebner a descreveram (Frankl, 2011, existência única de cada homem. Tudo que
pp. 17 – 18). A comunidade precisa do valor dissonar da ordem imposta pela figura do
singular de cada personalidade para existir, assim “dirigente” aparece como fator de perturbação.
como cada personalidade necessita da Aqui, Frankl esclarece que essa unicidade do ser
comunidade para se desenvolver. O sociologismo, humano, que é fomentada numa comunidade
portanto, está arraigado num pensamento autêntica, este caráter de singularidade absoluta
coletivista, cujo padrão de valor se refere à não diz respeito ao mero ser-diferente, tal como
utilidade social em contraposição à dignidade constatamos em nossas impressões digitais. A
pessoal. Aqui, Frankl subscreve seu mestre e unicidade que é valiosa é aquela que se orienta
amigo Rudolf Allers, para quem os seres humanos para omunidade12, diante da qual o homem se vê
teriam valor diferente, mas igual dignidade: como insubstituível, na sua necessária restrição de
capacidades e interesses particulares13.
O que se deve entender por “vida sem valor”? Vem Até aqui, pudemos observar como Frankl
à mente a ideia de ser inútil. Quem pensa assim, desenvolveu sua escola psicológica em sintonia
ignora, porém, a diferença entre utilidade e crítica com a história do século XX. A logoterapia
dignidade. A utilidade pode ser medida pela não deixa de reconhecer a influência social na
atividade e pela capacidade vital de um indivíduo, constituição do sujeito, mas nega o

12 Ainda que existam possibilidades de valor que prescindam Com efeito, assim como o caráter único e peculiar só confere
da orientação à comunidade, tal como se depreende dos valor ao pequeno fragmento do mosaico em relação ao todo
valores vivenciais: “Nomeadamente, sempre que se trata do respectivo, assim também o sentido do “caráter de algo
que nós classificamos como valores vivenciais, nenhuma muito único” de qualquer personalidade humana reside
validade pode reclamar o padrão do útil para a comunidade” exclusivamente no que ela significa em ordem a um todo
(Frankl, 2003, p. 136). superior. Desta maneira, o sentido da existência pessoal,
13 “Quando mais um homem é diferenciado, tanto menos enquanto pessoal, o sentido da pessoa humana enquanto
corresponde à norma – quer no sentido de média, quer no de personalidade, está numa referência que lhe ultrapassa os
ideal; mas é pelo preço desta normalidade ou idealidade que limites, apontando para a comunidade; na sua orientação
adquire a sua individualidade. No entanto, o significado desta para a comunidade, transcende-se a si mesmo o sentido do
individualidade é sempre orientado e referido à comunidade. indivíduo” (Frankl, 2003, pp. 114-115, grifos nossos)

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pandeterminismo sociologista, em favor da Mas que posição política Frankl
autonomia da consciência individual em busca de subscreve? É um liberal? Um conservador? Um
sentido. O quadro produzido pela análise política social democrata? Ora, para o pai da logoterapia,
de Frankl é, contudo, preocupante: a “neurose tais denominações não alcançam o que realmente
coletiva” caracterizada por ele persiste em importa. Em seus escritos, Frankl não se mostra
dimensões sem precedentes. Nesse sentido, a partidário de uma posição política, mas de um
logoterapia defende que a finalidade da terapia compromisso político, inscrevendo uma fronteira
para essa neurose coletiva é a mesma da ética que define dois tipos fundamentais de
modalidade individual: o apelo à consciência da política e de políticos: o tipo de política em que os
responsabilidade. O pensador vienense fins justificam os meios, e o tipo de política
reconheceu o pessimismo social do pós-guerra, consciente de que há meios que podem profanar
com a desilusão generalizada para com a fé no o mais santo e justificável dos fins (Frankl, 2014, p.
progresso automático da humanidade, mas – 317). Nessa distinção só a consciência individual
frente a esse estado de coisas – levantou uma voz pode ajudar.
de esperança: o pessimismo pós-holocausto não
implica fatalismo. Pelo contrário! É esse O totalitarismo converteu o homem em fanático.
pessimismo que impulsiona o ativismo, depois que O que é o totalitarismo fica bem claro na seguinte
a humanidade presenciou o que homem é capaz frase de Hitler: ‘A política é um jogo que são
de fazer (Frankl, 1978, p. 228). permitidos todos os truques’. Bem, desde o tempo
A humanidade chegou a um máximo de em que Hitler pronunciou essas palavras até hoje,
saber, de conhecimento técnico e, por conta disso, importa cada vez menos saber que objetivos
a um máximo de responsabilidade no que diz persegue uma política do que os meios de que ela
respeito às possibilidades de uso desse saber. O se serve para alcançá-los. Em outras palavras: o
que ainda nos falta, segundo Frankl, é a que importa não é a finalidade, é o estilo da
consciência dessa responsabilidade, já que, como política. Existem dois estilos em política e dois
ele mesmo insiste em seus escritos, desde tipos de políticos. Para uns, o fim santifica os
Auschwitz, sabemos das atrocidades de que o meios, enquanto outros têm plena consciência de
homem é capaz e, desde Hiroshima, sabemos do que certos meios são capazes de profanar os fins
alcance que essas atrocidades podem ter (Frankl, mais puros. De qualquer maneira, não é verdade
1985, p. 129). Nesse sentido, uma logoterapia que o fim justifique o meio; não pode ser verdade,
social teria, primeiramente, que se focar no nem que seja pelo fato de que para o homem ao
combate ao fatalismo, no sentido de desfazer a qual todos os meios pareçam bons, tampouco o
ideia de que o homem é um autômato. Para fim será sagrado (Frankl, 1978, p. 227).
Frankl, nada, na trajetória humana, vem de um
automatismo, nem em pequena, nem em grande Esse posicionamento do pai da
escala: logoterapia se torna mais compreensível como
uma particularização de sua famosa “distinção
Nesse caminho, o que mais importa é opor-se ao radical” (Frankl, 2011). Contra a loucura racial do
fatalismo. A condição prévia é que o homem deixe programa nacional-socialista, Frankl declara,
de ser considerado um autômato. Na vida humana provocativamente, a existência de apenas duas
não há automatismo, nem em pequena nem em “raças”: a dos homens decentes e a dos homens
grande escala. Não existe progresso automático torpes. Ora, esta tipologia racial atravessa todas as
nem decadência automática do mundo, do nações e todos os partidos, independentemente
Ocidente, etc. A superação do fatalismo baseia-se de ideologia manifesta. Para o pai da logoterapia,
no conhecimento de que ninguém é anônimo e que os homens decentes sempre foram a minoria. O
toda situação é histórica, nem que seja no sentido problema crucial se manifesta, contudo, no
da autobiografia, da história não escrita da momento em que o sistema político é tomado e
própria vida (Frankl, 1978, p. 229). dominado pelo segundo grupo. E, contra isto,
nenhum país está imune. Esta é a razão pela qual
Frankl afirmou, no discurso em memória aos

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cinquenta anos da anexação da Áustria pela E quanto tempo teremos de esperar até que o
Alemanha nazista, que, em princípio, qualquer restante da humanidade também se torne
nação é capaz de um novo holocausto: pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser
utópico esperar que esses dois fatores, a atitude
Precisamos nos haver com o fato de que os cultural e o justificado medo das conseqüências de
homens decentes foram a minoria e também uma guerra futura, venham a resultar, dentro de
permanecerão assim até onde podemos ver. O um tempo previsível, em que se ponha um término
perigo só aparece, contudo, quando um sistema à ameaça de guerra. Por quais caminhos ou por
político leva os homens indecentes, ou seja, a que atalhos isto se realizará, não podemos
seleção negativa de uma nação, para a superfície. adivinhar (Freud, 1974, p. 254).
Em contrapartida, nenhuma ação está imune a
isso, e, neste sentido, toda nação é por princípio Frankl, por sua vez, arrisca, nesse sentido,
capaz de holocausto! (Frankl, 2014, p. 279) um caminho possível, tendo em mente a vontade
de sentido humana, agora, pensada numa escala
Assumindo a segunda versão do global. Diz ele: “É também minha convicção a de
imperativo categórico kantiano, Frankl declara, que a humanidade só terá chance de sobreviver se
ainda, que, no âmbito político, o ser humano encontrar uma tarefa que todos possam
jamais pode ser rebaixado ideologicamente a um desempenhar solidariamente, animados por uma
mero meio ou instrumentalizado para a mesma vontade de encontrar um sentido”
consecução de um fim. Contudo, segundo ele, faz (Frankl,1978, p. 59). Mais do debruçar-se em
parte essencial do fanatismo político atrelar o estudos que nos fazem crer que a violência e a
indivíduo a metas políticas, que não recuam guerra são nosso destino inexorável – tal como as
diante da dignidade humana. Para o pai da pesquisas sobre os potenciais agressivos, a
logoterapia, o fanatismo, sob o pretexto de humanidade deveria buscar um objetivo
politizar o homem, ataca sua dignidade. Ora, mais unificador, a fim de consolidar uma vontade
importante do que politizar o homem – nos diz comum de um sentido comum. Essa foi a diretriz
Frankl – é humanizar a política (Frankl, 1978, p. deixada por Frankl para as pesquisas sobre a paz:
227). a causa do monantropismo.
Se é verdadeiro o argumento de que há A união em torno dessa causa comum se
meios que destituem de sentido qualquer fim, o relaciona profundamente com a maior bandeira
problema da guerra, compreendida enquanto política de Frankl, que é a da luta por um
“política defendida por outros meios” (Frankl, sentimento unificado de humanidade, por um
1978, p. 52), traz à tona uma última reflexão de ideal de humanidade única, que ultrapasse todas
Frankl pertinente ao tema deste capítulo. cores, seja da pele, seja de partidos políticos – que
Sabemos que a política chega ao ápice de sua ultrapasse, por fim, todo o narcisismo de nossas
letalidade e irracionalidade na guerra, e sobre o pequenas diferenças, tendo em vista a força muito
assunto, o encerramento da célebre carta de maior que nos une: nossa natureza humana em
Freud a Albert Einstein diz: busca de um sentido.

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SOBRE O AUTOR
Ivo Studart Pereira: Possui graduação em Psicologia (2007), mestrado (2009) e doutorado (2017) em Filosofia
pela Universidade Federal do Ceará. É tradutor e pesquisador da obra do psiquiatra e filósofo austríaco Viktor
Emil Frankl. Atualmente, trabalha como psicólogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Ceará (IFCE), além de ser membro efetivo do Conselho Científico da Associação Brasileira de Logoterapia e
Análise Existencial (Gestão 2017-2018).

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