Escravidão Moderna

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Revista EDUC-Faculdade de Duque de Caxias/Vol.

03- Nº
2/Jul-Dez 2016

A ESCRAVIDÃO MODERNA NO BRASIL: ANÁLISE SOB O


ASPECTO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Thais Barros de Lima Galvão Bueno


Pós-Graduada em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário pela UNESA
Graduada em Direito pela UNESA
E-mail: [email protected]

Guilherme Lima Cardozo


Doutor em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio
Professor Adjunto do Centro Universitário Carioca (UniCarioca)
E-mail: [email protected]

Resumo: A escravidão moderna no Brasil é uma realidade. Apesar da abolição da escravatura,


pessoas ainda são inseridas em situações análogas à escravidão, demonstrando que o ser
humano ainda se encontra vulnerável às mesmas barbáries cometidas aos seus antepassados.
O presente artigo analisará a violação da Carta Magna de 1988, notadamente o consagrado
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Será, ainda, objeto de estudo o perfil das pessoas
que foram resgatadas nos últimos anos em situação análoga à escravidão; as principais
atividades que desempenhavam como trabalho; além da exposição de casos concretos. Trata-
se o trabalho de uma pesquisa exploratória uma vez que analisa casos concretos, expõe
observações relacionadas à escravidão, além da imprescindível análise histórica. Ademais, em
razão de sua abrangência, foi indispensável a combinação do método quantitativo e
qualitativo.

Palavras-chave: Constituição. Dignidade. Escravidão. Humano. Pessoa.

Abstract: Modern slavery in Brazil is a reality. Despite the abolition of slavery, people are
still inserted in situations analogous to slavery, demonstrating that the human being is still
vulnerable to the same barbarism committed to his ancestors. This article will analyze the
violation of the 1988 Constitution, especially the enshrined Principle of the Dignity of the
Human Person. The profile of people who have been rescued in recent years in situations
analogous to slavery will also be studied; the main activities they performed as work; besides
the presentation of concrete cases. It is the work of an exploratory research since it analyzes
concrete cases, exposes observations related to slavery, besides the indispensable historical
analysis. In addition, due to its scope it was indispensable to combine the quantitative and
qualitative method.

Keywords: Constitution. Dignity. Slavery. Human. Person.

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1. INTRODUÇÃO

A escravidão moderna se trata de um problema real no Brasil. Muitos se encontram


submetidos ao trabalho escravo, mesmo sendo sujeitos de direito e protegidos por inúmeras
garantias constitucionais. Dentre os principais preceitos encontrados na Constituição Federal
de 1988, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana encontra-se diretamente vinculado às
condições dos que são escravizados.

O presente trabalho objetiva analisar as condições de pessoas resgatadas de situações


de escravidão, sob a análise do princípio basilar da Constituição Federal: a Dignidade da
Pessoa Humana. Além disso, será objeto de discussão o comportamento da sociedade frente
ao problema da escravidão, com o fim de alcançar respostas quanto à postura que deve ser
adotada pelo poder público, considerando que o governo tem ciência da existência da
escravidão, o que se comprova em medidas aplicadas na esfera social e trabalhista.
Discutiremos, ainda se tais medidas são ou não suficientes para prevenir que novos casos
surjam. Por fim, será observado, ainda, se o Brasil está em consonância ao combate à
exploração do trabalho escravo em geral, ou se ainda há grandes obstáculos para a sua
extinção.

O presente artigo será direcionado para análises do perfil das pessoas escravizadas,
considerando principalmente o seu nível de escolaridade, sexo e as atividades a que mais são
submetidos; casos concretos; as medidas adotadas pelo poder público ao longo dos vinte e
nove anos da Constituição Cidadã, especificamente quanto à ineficiência e carência de
interesse; a postura da sociedade diante desta problemática (escravidão contemporânea); e,
também, breve histórico comparativo entre escravidão moderna e a escravidão clássica.

Ademais, será considerado o estudo sobre o conceito de pessoa para melhor análise de
aplicabilidade do princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Além disso, não serão
desconsiderados os Tratados Internacionais de que o Brasil se tornou signatário e que, por
consequência, se encontra sujeito às pressões externas à sua soberania.

Trata-se de um tema indispensável para a evolução da sociedade brasileira, quanto aos


seus princípios e ações. O respeito ao princípio basilar da Dignidade da Pessoa Humana é
imprescindível para uma sociedade democrática e, portanto, não comporta a violação
caracterizada pela escravidão.

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Foram analisados dados históricos, notícias, além de números atuais correspondentes


às pessoas resgatadas da vida escrava moderna.

2. BREVE HISTÓRICO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Com a chegada dos portugueses, as terras brasileiras, ricas em recursos naturais, não
demorariam a ser explorada. Assim, como se visava à obtenção de lucro, não tardou para que
os colonizadores necessitassem de mais mão de obra para explorar a nova terra. Com isso
“entre 1502 e 1860, mais de 9 milhões e meio de africanos foram transportados para as
Américas, e o Brasil figurava como o maior importador de homens pretos”. Portanto, não há
como desvencilhar a escravidão da história brasileira, já que a projeção de colônia a país
independente se deu através dela.

Numa visão superficial, entende-se que os negros foram os únicos escravos da fase
colonial. Mas o indígena brasileiro, não fossem os esforços dos jesuítas – a exemplo do padre
José de Anchieta – em empreender na mente colonizadora o imaginário do “índio inocente”,
do “bom nativo”, estariam os indígenas fadados ao extermínio muito mais cedo que a história
nos conta. De qualquer forma, se não se pode afirmar factualmente a escravidão indígena –
apesar de que em algumas partes do Brasil isso ocorreu –, a liberdade é um valor que, com a
chegada dos colonizadores, definitivamente se furtara dos povos nativos: não obstante a
“proteção” dos jesuítas, a cultura das tribos indígenas sofria forte impacto da tradição
ocidental, em especial a católico-cristã, o que indubitavelmente operava um processo de
subordinação/escravização cultural/religiosa por parte dos indígenas aos valores considerados
superiores dos europeus (cf. CARDOZO, 2016).

O sofrimento começava desde a captura nas suas tribos de origem. A viagem dos
negros às terras brasileiras era extensa e as condições dos navios eram deploráveis. Estima-se
que milhares morreram na travessia da África ao continente americano.

As condições sub-humanas em que os escravos foram inseridos são conhecidas. Eram


submetidos a todo tipo de exploração, do trabalho doméstico à exploração sexual, sem deixar
de mencionar a crueldade das punições a que eram submetidos aqueles que tentavam a fuga.

Ademais, é necessário definir que escravo é “o que está sob o poder e dependência
absoluta de um senhor, que vive em estado de absoluta servidão”, ou seja, não era considerado
pessoa, e, sim, coisa.

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Fica evidente que o escravo não era percebido pelos olhares do branco colonizador
como “pessoa”, visto que não gozava de direitos, tampouco de respeito. Foram os africanos
sequestrados de sua terra natal para satisfazer os anseios dos “conquistadores” e submetidos a
uma nova cultura e condições de vida precárias, deixando tudo o que conheciam para trás.
Nesse sentido, expõe Mattoso:

(...) o escravo se torna em coisa, objeto, mercadoria. Para ele é um estado,


uma condição que não só lhe toma o que possuía antes, mas lhe rouba
também o ser que ele era em sua sociedade africana de origem e o
transforma num cativo totalmente desarmado.

Assim, sob a perspectiva da sociedade atual, é difícil imaginar que negros


escravizados eram vendidos em mercados abertos e examinados como um produto qualquer
sem ao menos saber seu destino e como seguiriam sua vida, ou ainda, mensurar o sofrimento
daqueles que sobreviviam aos navios negreiros (Figura 1).

Figura 1. Fonte: http://www.infoescola.com/historia-do-brasil/navios-negreiros/

Tal sofrimento propagou-se pelo Brasil por mais de 300 anos. No entanto, ao final do
século XIX, diversos movimentos abolicionistas surgiram, a fim de encerrar a fase de
escravidão. Entre exemplos importantes estão a Lei do Ventre Livre, de 1871, e a Lei dos
Sexagenários, datada de 1885. Por fim, em 1888, a escravidão (daquele período) chegou ao
fim. Através da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, centenas de escravos foram
libertados. Para muitos, a vitória havia sido conquistada, para outros, no entanto, as
dificuldades haviam apenas tomado outro rumo. A vida pós-escravidão seria mais um desafio.

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3. A ESCRAVIDÃO MODERNA NO BRASIL

Reconhecer a Lei Áurea como instrumento na libertação de centenas de escravos é


inevitável. Mas a lei não trouxe consigo medidas para efetividade, assim é preciso reconhecer
a sua insuficiência a partir da análise histórica da sociedade brasileira.

Foi no ano de 1995 que o governo brasileiro admitiu que a escravidão ainda era
realidade no país. O presidente à época, Fernando Henrique Cardoso, além de reconhecer os
problemas da escravidão existente, criou medidas para a fiscalização e consequente extinção
do grande problema afeto ao povo.

Condições análogas à escravidão e escravidão contemporânea são expressões para nos


referirmos à situação dos escravos modernos, aqueles que viveram e aqueles que ainda vivem
no período posterior a “libertação dos escravos” como escravos. A diferença que separa a
escravidão passada da escravidão moderna está no modo de como é executada: na primeira,
era permitida a compra e venda de escravos; já na segunda, as pessoas são escravizadas
através do aliciamento. Além disso, não há preocupação em manter a pessoa escravizada
porque a substituição é facilitada pelo alto índice de desemprego, ou seja, se alguém adoece
ou dificulta o trabalho, é substituído por outra pessoa, e também seduzido por falsas
promessas.

Na escravidão antiga, apesar de o escravo ser considerado “coisa”, era preservado em


razão do seu valor patrimonial. Ao revés disso, hoje, a pessoa escravizada é descartável, é
explorada sem ter qualquer retorno financeiro, vive sem qualquer manutenção às suas
necessidades mais básicas. Inúmeros são os casos divulgados da escravidão moderna. Em
especial, o caso de José Pereira que, aos oito anos de idade, acompanhando o pai a uma
fazenda no estado do Pará, permaneceu até os dezessete anos em condições análogas à
escravidão. Ao fugir, José acabou caindo numa emboscada e atingido por um tiro. Fingindo-se
de morto, ele conseguiu salvar-se e denunciar as condições em que viveu por catorze anos.
Foi este o primeiro caso de indenização a pessoa escravizada, realizada pelo Estado
Brasileiro, ocorrida somente no ano de 2003.

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Em 2002, foi criada a CONAETE (Coordenadoria Nacional para a Erradicação do


Trabalho Escravo), que sucedeu a CONATRAE, que desde então vem desempenhando o papel
na aplicação de medidas de repressão ao trabalho escravo.
Segundo a ferramenta digital elaborada pelo Ministério Público do Trabalho, em
análise também aos dados do COETE (Controle de Erradicação do Trabalho Escravo), cerca
de cinquenta mil pessoas foram resgatadas em condições análogas à escravidão, entre os anos
de 1995 e 2017, considerando, no entanto, os dados colhidos a partir de 2003 (ano de criação
do primeiro plano para erradicação do trabalho escravo). Os dados são alarmantes, mas
somente ilustram a realidade de muitas pessoas que vivem diariamente na condição de
escravo.

4. A PESSOA ESCRAVIZADA

Qualquer pessoa, por mais basilar que seja seu conhecimento da história brasileira,
sabe que o país fora construído a partir da exploração da mão de obra escrava. E ainda, que
estes escravos eram submetidos a todo tipo de situação degradante. No entanto, a sociedade
atual, que passou por intensa construção e consequente modificação no tratamento ao ser
humano, à pessoa e à coletividade, desconhece as sucessivas violações de direitos das pessoas
escravizadas na modernidade. Isto porque, aquele que hoje é escravizado, já fora excluído de
alguma forma da sociedade que se encontrava inserido.

Mesmo que alijadas do meio social, os escravos modernos possuem direitos e


garantias como toda a sociedade, não há distinção entre seres humanos, todos são
considerados “pessoa” para fins de aquisição de direitos e deveres.

Outrossim, no bojo da discussão da existência da escravidão uma questão possui


fundamental esclarecimento, de como se caracteriza o perfil das pessoas escravizadas. Assim,
considerando as pessoas resgatas em situação análoga à escravidão, segundo o Ministério
Público do Trabalho, 94,89% delas correspondem a homens e 5,11% mulheres;
aproximadamente 72% são analfabetos ou possuem o 5º ano incompleto (Figura 2).

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Figura 2 – Tabela

Fonte: https://observatorioescravo.mpt.mp.br

Além disso, lideram a lista de campo de trabalho a que eram submetidos as seguintes
atividades: a criação de bovinos para corte, o cultivo de arroz, a fabricação de álcool e o
cultivo da cana-de-açúcar.

É notório que as pessoas mais vulneráveis são as aliciadas. São aquelas com menor
índice de escolaridade, que se encontram desempregadas, passando por dificuldade financeira
e que muitas vezes já nascidas ou criadas por famílias exploradas.

As condições de vida são variadas, mas desumanas em sua totalidade, e dependem


para a diferenciação, no entanto, da atividade à qual está submetida a pessoa escravizada. A
fim de elucidar a situação daqueles que exercem o cultivo da cana-de-açúcar, cabe mencionar
o relato de um ex-cortador da planta. Ele afirma: “Sou escravo e continuo sendo, porque essa
escravidão me dá aí as condições de sobrevivência”. Ou seja, ele se submete ao trabalho
escravo porque é a única forma de subsistência. Na mesma esteira, outro ex-cortador ressalta:

Olha, escravo não se trata só de ser chicoteado, mas é você não ter o direito
de ir nem de vir, passar fome, não ter dignidade, isso é escravidão. Foi um
trabalho escravo. Eu trabalhava com fome, dormia com fome, levantava com
fome e continuava sempre assim. Então eu fui muito escravizado, não
recebia dinheiro, era só trabalho, trabalho e trabalho”.

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Os escravos de hoje têm consciência de que possuem direitos, mas se submetem a


condições cruéis em razão da sobrevivência. Perguntamo-nos se o problema está na ausência
de emprego/programas sociais efetivos, ou seria a corrupção a raiz do caos?
Há pessoas que, acreditando na oferta de emprego com bom salário, além de moradia,
acabam caindo nas armadilhas daqueles que escravizam, dos que querem lucrar com a mão de
obra escrava no cultivo da cana-de-açúcar, por exemplo (Figura 3). Aquelas são mantidas sob
a ameaça de empregados que são encarregados da fiscalização para que os escravizados não
fujam.

Figura 3

Fonte:https://www.senado.gov.br/NOTICIAS/JORNAL/EMDISC
USSAO/trabalho-escravo/trabalho-escravo-atualmente.aspx1

Além disso, a fim de arrefecer os ânimos por algum tempo, os escravistas informavam
que somente poderiam ir embora aqueles que saldassem suas dívidas. Estas provenientes da
comida ou qualquer outro tratamento que demandasse alguma despesa. Geralmente a comida
é adquirida no próprio comércio do escravista, que cobra o suficiente para que nunca possam
pagar. Assim, haverá sempre dívida e nunca poderá ir embora. Muitos não chegam a receber
dinheiro ou qualquer recompensa pelo trabalho desempenhado. Dormem em qualquer lugar,
sem acesso a banheiro e menos ainda à água potável. Por vezes famílias inteiras são
escravizadas, inclusive as crianças. Todos são submetidos ao trabalho forçado e aquele que
1 Junho de 2010: trabalhadores escravizados em fazenda de cana-de-açúcar em Mato
Grosso do Sul recebem suas refeições. Foto: Joao Roberto Ripper / Imagens Humanas.
Disponível em: < https://www.senado.gov.br/NOTICIAS/JORNAL/EMDISCUSSAO/trabalho-
escravo/trabalho-escravo-atualmente.aspx>. Acesso em 13 de agosto de 2017.

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não pode exercê-lo terá a maior dívida, que deverá ser paga pelos demais membros da família.
Aquele que escraviza somente possui interesse no lucro. Não há sensibilidade pelo ser
humano, menos ainda respeito à sociedade, aos princípios por ela seguidos ou pela construção
da história.

4.1. O princípio da dignidade da pessoa humana

A construção política brasileira trilhou muitos caminhos até a promulgação da


Constituição Federal de 1988. A Carta Magna traz consigo todos aqueles direitos ignorados no
passado. Hoje, no Brasil, todos os seres humanos são considerados iguais, não deixando
qualquer espaço para as distinções.

Trata-se a Constituição Brasileira de um documento dogmático, fruto do conjunto de


valores predominantes em determinado momento histórico. Além desta classificação, é
também considerada principiológica, estando as normas jurídicas pautadas nos valores e
princípios construídos pela sociedade e garantidos no corpo constitucional. Contudo, a todo
momento, um ou outro direito fundamental, intrínseco e essencial, é violado, rejeitado ou
ignorado.

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana encontra-se elencado no rol dos


princípios fundamentais do Artigo 1º da Constituição Federal. Trata-se de, segundo Novelino
(2015):

Núcleo axiológico do constitucionalismo contemporâneo, constitui o valor


constitucional supremo e, enquanto tal, deve servir, não apenas como razão
para a decisão de casos concretos, mas principalmente como diretriz para a
elaboração, interpretação e aplicação das normas que compõem a ordem
jurídica em geral, e o sistema de direitos fundamentais, em particular.

No âmago da Constituição existe a Dignidade como essência, como princípio


norteador da Carta Política. É através dela que se assegura uma vida sem medos e sem
qualquer discriminação, com garantia à liberdade e ao respeito.

O primeiro passo para a efetividade do Princípio em tela é a garantia pelo poder


público do mínimo existencial. Estabelecer o quantum de que o ser humano necessita para
uma sobrevivência digna. Evidente que a liberdade figura com um papel essencial, senão
principal nesta toada. Não é demais ressaltar que “pessoa” é todo aquele ser que é dotado de

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direitos; e toda pessoa é dotada de personalidade jurídica e que, portanto, “é a possibilidade de


ser titular de relações jurídicas e de reclamar o exercício da cidadania, garantida
constitucionalmente”.

Quando se alicia uma pessoa, ou uma família inteira, para o trabalho forçado em razão
do seu estado de vulnerabilidade, a liberdade é o primeiro direito a ser arrancado do ser
humano. A sua dignidade é atacada com tamanha intensidade que a vítima perde sua
identidade de cidadão dotado de garantias. O Princípio da Dignidade trazido pela Constituição
ocasionou a ratificação (1992) pelo Brasil das diretrizes expostas na Convenção Americana
sobre Direitos Humanos de 1969, que traz o princípio já mencionado pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, cabendo ressaltar os seguintes artigos:
Artigo 4°
Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o
trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.
Artigo 5°
Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes.

Além da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, ratificada pelo


Brasil em 1992, há também a Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura de 1926,
ratificada em 1966, garantindo que nenhuma pessoa poderia ser escravizada.

Apesar da ampla responsabilidade constitucional do poder público brasileiro, com a


garantia do mínimo fundamental à vida da pessoa humana, este vem permitindo que perdure a
mancha mais marcante na história do Brasil. Não se pode deixar de ressaltar que, acima da
dignidade, encontra-se o respeito à vida. É uma ordem que não pode ser ignorada: respeita-se
a vida, e atrelada a esta, a dignidade. Evidente que o sistema constitucional brasileiro somente
deve permitir a existência simultânea da vida com a dignidade. Por certo não haveria
dignidade sem vida; e ninguém deve ser submetido a uma vida sem dignidade.

Ademais, não se pode olvidar que o meio social onde cada pessoa se encontra inserida
é de suma importância para o seu significado como sujeito de direitos. É a sociedade que
determinará o mínimo digno e fundamental à vida das pessoas, no Brasil, de forma isonômica,
em razão do Princípio da Igualdade. Desta forma, imprescindível ressaltar o trecho da ilustre
obra O espelho, de Machado de Assis:

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Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para
fora, outra que olha de fora para dentro (...). Está claro que o ofício dessa
segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o
homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das
metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em
que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.

É possível perceber que a violação da liberdade e da dignidade da pessoa é elemento


essencial na descaracterização do ser social, de integrante de uma sociedade e de sujeito de
direitos. A pessoa escravizada já se encontra excluída socialmente quando é inserida na vida
escrava.
Quando se entra numa vida de exploração por meio da dificuldade econômica e da
desigualdade social a pessoa é abandonada pela segunda vez pelo poder público, que não lhe
deu meios necessários para garantir o mínimo de uma vida digna.
Contudo, apesar da sociedade excludente, é necessária uma nova postura face aos
problemas sociais a fim de evitar que pessoas sejam submetidas ao trabalho escravo. Até
porque é a sociedade responsável por toda a omissão ou ação quanto aos crimes cometidos
contra pessoas escravizadas. É dever do povo denunciar quem comete tal atrocidade com o ser
humano.

4.2. Prevenção e repressão

Inúmeras medidas são aplicadas no combate ao trabalho escravo no Brasil. A


Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONAETE) é o principal
órgão criado para aplicar tais medidas. Criada em 2002, a Coordenadoria é vinculada ao
Ministério Público do Trabalho e vem obtendo resultados satisfatórios, coibindo cada vez
mais a escravidão. Dentre os objetivos da Coordenadoria estão os de: “Firmar, com os
exploradores, TAC com o MPT; Condenar pedagogicamente, sancionar e inibir o trabalho
escravo e degradante”.

No Termo de Ajuste de Conduta (TAC) é pactuado com o explorador “cláusulas” a


serem cumpridas sob pena de multa, e que, apesar da previsão da aplicação de multa, trata-se

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de uma medida preventiva. É um meio hábil e eficaz de se prevenir futuras práticas


escravagistas.

Ressalta-se que o Ministério Público do Trabalho opera também através de intensa


fiscalização a propriedades que já foram objeto de denúncia. Ou seja, aqui se observa o
valioso poder de atuação e interação entre o Poder Público e população. No entanto, por
razões de segurança fica cada vez mais difícil a atuação do Poder Público no combate ao
trabalho escravo. Nessa esteira cabe mencionar o caso do município de Unaí, onde dois
auditores foram assassinados, quando fiscalizavam uma propriedade no Estado de Minas
Gerais.

O caso acima citado demonstra o caminho a ser trilhado por aqueles que lutam contra
a escravidão moderna todos os dias, uma vez que os exploradores de pessoas não se
intimidam com as fiscalizações ou com as possíveis medidas repressivas que possam sofrer.
Ademais, como medida repressiva do trabalho escravo, temos a previsão do Código Penal
Brasileiro, que traz em seu artigo 149 a pena de reclusão de dois a oito anos a quem reduzir
alguém à condição análoga à de escravo. Desde já, acrescenta-se que tal punição não é
compatível com a prática delituosa, necessitando de pena mais severa.

Além disso, qualquer propriedade rural ou urbana em que for encontrada a exploração
do trabalho escravo será expropriada. Trata-se da chamada “desapropriação confisco”, espécie
de punição para quando se perde o direito de propriedade em razão do descumprimento da
função social. É o previsto no artigo 243 da Constituição Federal que, no entanto, somente
teve sua previsão a partir do ano de 2014, através da Emenda Constitucional nº 81/2014.

Apesar de ser considerada uma grande vitória ao combate do trabalho escravo, tal
previsão dependerá de regulamentação legal. Noutra banda, o Projeto de Lei nº 3842/2012
tem o condão de dispor sobre o conceito de trabalho análogo ao de escravo em seu artigo 1º,
senão vejamos:
Para fins desta Lei, a expressão "condição análoga à de escravo, trabalho
forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de
uma pessoa sob ameaça, coação ou violência, restringindo sua locomoção e
para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.

Trata-se tal projeto de retrocesso ao combate do trabalho escravo, uma vez que
limitará a aplicação das sanções em casos onde há evidente exploração, em que pessoas

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estejam em condições degradantes, por exemplo. Observa-se, pois, que apesar de alguns
esforços a política brasileira encontra-se na contramão do combate à exploração do trabalho
escravo no país, seja por falta de interesse ou para beneficiar a chamada “bancada ruralista”,
que tanto lucra com o sofrimento humano. Portanto, é necessária uma atuação mais incisiva
da sociedade frente aos projetos dos governantes. É preciso que o povo brasileiro demonstre
interesse na política para fiscalizar o trabalho daqueles que foram eleitos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou realizar uma comparação próxima e alinhada à escravidão


colonial e a chamada escravidão contemporânea. É através dessa análise que se compreende
que a abolição da escravatura foi somente o início de um longo caminho para se alcançar a
igualdade da pessoa humana no Brasil, garantindo-se a liberdade e a vida digna.

Desde então, muitos direitos e garantias foram conquistadas pelo povo brasileiro, seja
através da assinatura de tratados internacionais ou pelo próprio ordenamento jurídico interno,
permitindo às pessoas reclamar o que lhes pertence.

A vida digna é primordial para concretização de um estado democrático de direito,


sendo assim, a busca pela efetividade do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é o meio
de estabelecer de forma plena a democracia brasileira.

Evidenciou-se ainda, que há sim medidas repressivas e preventivas sendo aplicadas


para combater o trabalho escravo. No entanto, conclui-se também que o compromisso com
essa luta vem sendo abalado pela ausência do interesse de políticos, ou mesmo para o
benefício de alguns deles, que apesar de eleitos não podem representar a vontade do povo.

Ademais, não se pode deixar de mencionar a importância do trabalho desempenhado


pelo Ministério Público do Trabalho no combate à exploração do trabalho escravo e no
resgate de dezenas de pessoas nos últimos anos. Note-se que o trabalho deve ser conjunto,
uma vez que muitos resgates acontecem como resultado de denúncias.

Portanto, é necessária uma nova postura da população, frente à raiz do problema da


exploração do trabalho escravo. É preciso cobrar daqueles que possuem instrumentos para a
mudança, começando pelos eleitos pelo povo. A mudança nas decisões dos governantes deve
acontecer através de uma transformação que se inicia no seio da sociedade, devendo esta

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reivindicar ações que demonstrem a vontade do povo, da maioria. Somente desta forma
poderá ser transformada a história de um país marcado pela escravidão, mas que, mesmo com
dificuldades, caminha para a efetiva garantia ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

6. REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. O Espelho. Disponível


em:<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000240.pdf>. Acesso em: 08 de
Agosto de 2017.

AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de


Janeiro: Delta, 1964. P. 1513. Vol. II.

CARDOZO, Guilherme L. A questão onomástica no encontro entre jesuítas e índios no


Brasil do século XVI. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica – PUC-Rio,
2016.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
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2/Jul-Dez 2016

MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Observatório Escravo.


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