Escravidão Moderna
Escravidão Moderna
Escravidão Moderna
03- Nº
2/Jul-Dez 2016
Abstract: Modern slavery in Brazil is a reality. Despite the abolition of slavery, people are
still inserted in situations analogous to slavery, demonstrating that the human being is still
vulnerable to the same barbarism committed to his ancestors. This article will analyze the
violation of the 1988 Constitution, especially the enshrined Principle of the Dignity of the
Human Person. The profile of people who have been rescued in recent years in situations
analogous to slavery will also be studied; the main activities they performed as work; besides
the presentation of concrete cases. It is the work of an exploratory research since it analyzes
concrete cases, exposes observations related to slavery, besides the indispensable historical
analysis. In addition, due to its scope it was indispensable to combine the quantitative and
qualitative method.
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2/Jul-Dez 2016
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo será direcionado para análises do perfil das pessoas escravizadas,
considerando principalmente o seu nível de escolaridade, sexo e as atividades a que mais são
submetidos; casos concretos; as medidas adotadas pelo poder público ao longo dos vinte e
nove anos da Constituição Cidadã, especificamente quanto à ineficiência e carência de
interesse; a postura da sociedade diante desta problemática (escravidão contemporânea); e,
também, breve histórico comparativo entre escravidão moderna e a escravidão clássica.
Ademais, será considerado o estudo sobre o conceito de pessoa para melhor análise de
aplicabilidade do princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Além disso, não serão
desconsiderados os Tratados Internacionais de que o Brasil se tornou signatário e que, por
consequência, se encontra sujeito às pressões externas à sua soberania.
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Com a chegada dos portugueses, as terras brasileiras, ricas em recursos naturais, não
demorariam a ser explorada. Assim, como se visava à obtenção de lucro, não tardou para que
os colonizadores necessitassem de mais mão de obra para explorar a nova terra. Com isso
“entre 1502 e 1860, mais de 9 milhões e meio de africanos foram transportados para as
Américas, e o Brasil figurava como o maior importador de homens pretos”. Portanto, não há
como desvencilhar a escravidão da história brasileira, já que a projeção de colônia a país
independente se deu através dela.
Numa visão superficial, entende-se que os negros foram os únicos escravos da fase
colonial. Mas o indígena brasileiro, não fossem os esforços dos jesuítas – a exemplo do padre
José de Anchieta – em empreender na mente colonizadora o imaginário do “índio inocente”,
do “bom nativo”, estariam os indígenas fadados ao extermínio muito mais cedo que a história
nos conta. De qualquer forma, se não se pode afirmar factualmente a escravidão indígena –
apesar de que em algumas partes do Brasil isso ocorreu –, a liberdade é um valor que, com a
chegada dos colonizadores, definitivamente se furtara dos povos nativos: não obstante a
“proteção” dos jesuítas, a cultura das tribos indígenas sofria forte impacto da tradição
ocidental, em especial a católico-cristã, o que indubitavelmente operava um processo de
subordinação/escravização cultural/religiosa por parte dos indígenas aos valores considerados
superiores dos europeus (cf. CARDOZO, 2016).
O sofrimento começava desde a captura nas suas tribos de origem. A viagem dos
negros às terras brasileiras era extensa e as condições dos navios eram deploráveis. Estima-se
que milhares morreram na travessia da África ao continente americano.
Ademais, é necessário definir que escravo é “o que está sob o poder e dependência
absoluta de um senhor, que vive em estado de absoluta servidão”, ou seja, não era considerado
pessoa, e, sim, coisa.
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Fica evidente que o escravo não era percebido pelos olhares do branco colonizador
como “pessoa”, visto que não gozava de direitos, tampouco de respeito. Foram os africanos
sequestrados de sua terra natal para satisfazer os anseios dos “conquistadores” e submetidos a
uma nova cultura e condições de vida precárias, deixando tudo o que conheciam para trás.
Nesse sentido, expõe Mattoso:
Tal sofrimento propagou-se pelo Brasil por mais de 300 anos. No entanto, ao final do
século XIX, diversos movimentos abolicionistas surgiram, a fim de encerrar a fase de
escravidão. Entre exemplos importantes estão a Lei do Ventre Livre, de 1871, e a Lei dos
Sexagenários, datada de 1885. Por fim, em 1888, a escravidão (daquele período) chegou ao
fim. Através da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, centenas de escravos foram
libertados. Para muitos, a vitória havia sido conquistada, para outros, no entanto, as
dificuldades haviam apenas tomado outro rumo. A vida pós-escravidão seria mais um desafio.
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Foi no ano de 1995 que o governo brasileiro admitiu que a escravidão ainda era
realidade no país. O presidente à época, Fernando Henrique Cardoso, além de reconhecer os
problemas da escravidão existente, criou medidas para a fiscalização e consequente extinção
do grande problema afeto ao povo.
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4. A PESSOA ESCRAVIZADA
Qualquer pessoa, por mais basilar que seja seu conhecimento da história brasileira,
sabe que o país fora construído a partir da exploração da mão de obra escrava. E ainda, que
estes escravos eram submetidos a todo tipo de situação degradante. No entanto, a sociedade
atual, que passou por intensa construção e consequente modificação no tratamento ao ser
humano, à pessoa e à coletividade, desconhece as sucessivas violações de direitos das pessoas
escravizadas na modernidade. Isto porque, aquele que hoje é escravizado, já fora excluído de
alguma forma da sociedade que se encontrava inserido.
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Figura 2 – Tabela
Fonte: https://observatorioescravo.mpt.mp.br
Além disso, lideram a lista de campo de trabalho a que eram submetidos as seguintes
atividades: a criação de bovinos para corte, o cultivo de arroz, a fabricação de álcool e o
cultivo da cana-de-açúcar.
É notório que as pessoas mais vulneráveis são as aliciadas. São aquelas com menor
índice de escolaridade, que se encontram desempregadas, passando por dificuldade financeira
e que muitas vezes já nascidas ou criadas por famílias exploradas.
Olha, escravo não se trata só de ser chicoteado, mas é você não ter o direito
de ir nem de vir, passar fome, não ter dignidade, isso é escravidão. Foi um
trabalho escravo. Eu trabalhava com fome, dormia com fome, levantava com
fome e continuava sempre assim. Então eu fui muito escravizado, não
recebia dinheiro, era só trabalho, trabalho e trabalho”.
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Figura 3
Fonte:https://www.senado.gov.br/NOTICIAS/JORNAL/EMDISC
USSAO/trabalho-escravo/trabalho-escravo-atualmente.aspx1
Além disso, a fim de arrefecer os ânimos por algum tempo, os escravistas informavam
que somente poderiam ir embora aqueles que saldassem suas dívidas. Estas provenientes da
comida ou qualquer outro tratamento que demandasse alguma despesa. Geralmente a comida
é adquirida no próprio comércio do escravista, que cobra o suficiente para que nunca possam
pagar. Assim, haverá sempre dívida e nunca poderá ir embora. Muitos não chegam a receber
dinheiro ou qualquer recompensa pelo trabalho desempenhado. Dormem em qualquer lugar,
sem acesso a banheiro e menos ainda à água potável. Por vezes famílias inteiras são
escravizadas, inclusive as crianças. Todos são submetidos ao trabalho forçado e aquele que
1 Junho de 2010: trabalhadores escravizados em fazenda de cana-de-açúcar em Mato
Grosso do Sul recebem suas refeições. Foto: Joao Roberto Ripper / Imagens Humanas.
Disponível em: < https://www.senado.gov.br/NOTICIAS/JORNAL/EMDISCUSSAO/trabalho-
escravo/trabalho-escravo-atualmente.aspx>. Acesso em 13 de agosto de 2017.
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não pode exercê-lo terá a maior dívida, que deverá ser paga pelos demais membros da família.
Aquele que escraviza somente possui interesse no lucro. Não há sensibilidade pelo ser
humano, menos ainda respeito à sociedade, aos princípios por ela seguidos ou pela construção
da história.
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Quando se alicia uma pessoa, ou uma família inteira, para o trabalho forçado em razão
do seu estado de vulnerabilidade, a liberdade é o primeiro direito a ser arrancado do ser
humano. A sua dignidade é atacada com tamanha intensidade que a vítima perde sua
identidade de cidadão dotado de garantias. O Princípio da Dignidade trazido pela Constituição
ocasionou a ratificação (1992) pelo Brasil das diretrizes expostas na Convenção Americana
sobre Direitos Humanos de 1969, que traz o princípio já mencionado pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, cabendo ressaltar os seguintes artigos:
Artigo 4°
Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o
trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.
Artigo 5°
Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes.
Ademais, não se pode olvidar que o meio social onde cada pessoa se encontra inserida
é de suma importância para o seu significado como sujeito de direitos. É a sociedade que
determinará o mínimo digno e fundamental à vida das pessoas, no Brasil, de forma isonômica,
em razão do Princípio da Igualdade. Desta forma, imprescindível ressaltar o trecho da ilustre
obra O espelho, de Machado de Assis:
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Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para
fora, outra que olha de fora para dentro (...). Está claro que o ofício dessa
segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o
homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das
metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em
que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.
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O caso acima citado demonstra o caminho a ser trilhado por aqueles que lutam contra
a escravidão moderna todos os dias, uma vez que os exploradores de pessoas não se
intimidam com as fiscalizações ou com as possíveis medidas repressivas que possam sofrer.
Ademais, como medida repressiva do trabalho escravo, temos a previsão do Código Penal
Brasileiro, que traz em seu artigo 149 a pena de reclusão de dois a oito anos a quem reduzir
alguém à condição análoga à de escravo. Desde já, acrescenta-se que tal punição não é
compatível com a prática delituosa, necessitando de pena mais severa.
Além disso, qualquer propriedade rural ou urbana em que for encontrada a exploração
do trabalho escravo será expropriada. Trata-se da chamada “desapropriação confisco”, espécie
de punição para quando se perde o direito de propriedade em razão do descumprimento da
função social. É o previsto no artigo 243 da Constituição Federal que, no entanto, somente
teve sua previsão a partir do ano de 2014, através da Emenda Constitucional nº 81/2014.
Apesar de ser considerada uma grande vitória ao combate do trabalho escravo, tal
previsão dependerá de regulamentação legal. Noutra banda, o Projeto de Lei nº 3842/2012
tem o condão de dispor sobre o conceito de trabalho análogo ao de escravo em seu artigo 1º,
senão vejamos:
Para fins desta Lei, a expressão "condição análoga à de escravo, trabalho
forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de
uma pessoa sob ameaça, coação ou violência, restringindo sua locomoção e
para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.
Trata-se tal projeto de retrocesso ao combate do trabalho escravo, uma vez que
limitará a aplicação das sanções em casos onde há evidente exploração, em que pessoas
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estejam em condições degradantes, por exemplo. Observa-se, pois, que apesar de alguns
esforços a política brasileira encontra-se na contramão do combate à exploração do trabalho
escravo no país, seja por falta de interesse ou para beneficiar a chamada “bancada ruralista”,
que tanto lucra com o sofrimento humano. Portanto, é necessária uma atuação mais incisiva
da sociedade frente aos projetos dos governantes. É preciso que o povo brasileiro demonstre
interesse na política para fiscalizar o trabalho daqueles que foram eleitos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde então, muitos direitos e garantias foram conquistadas pelo povo brasileiro, seja
através da assinatura de tratados internacionais ou pelo próprio ordenamento jurídico interno,
permitindo às pessoas reclamar o que lhes pertence.
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reivindicar ações que demonstrem a vontade do povo, da maioria. Somente desta forma
poderá ser transformada a história de um país marcado pela escravidão, mas que, mesmo com
dificuldades, caminha para a efetiva garantia ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
6. REFERÊNCIAS
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003.
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MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2016.
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