Este documento discute um ensaio de Virginia Woolf de 1938 chamado "Os Três Guiñés", no qual ela usa fotografias de vítimas da Guerra Civil Espanhola para argumentar que a guerra deve ser abolida. O documento sugere que as fotografias podem tanto estimular o repúdio da guerra quanto a militância pró-República Espanhola, e que Woolf simplificou demais ao ver nas imagens apenas a confirmação de sua própria opinião anti-guerra.
Este documento discute um ensaio de Virginia Woolf de 1938 chamado "Os Três Guiñés", no qual ela usa fotografias de vítimas da Guerra Civil Espanhola para argumentar que a guerra deve ser abolida. O documento sugere que as fotografias podem tanto estimular o repúdio da guerra quanto a militância pró-República Espanhola, e que Woolf simplificou demais ao ver nas imagens apenas a confirmação de sua própria opinião anti-guerra.
Este documento discute um ensaio de Virginia Woolf de 1938 chamado "Os Três Guiñés", no qual ela usa fotografias de vítimas da Guerra Civil Espanhola para argumentar que a guerra deve ser abolida. O documento sugere que as fotografias podem tanto estimular o repúdio da guerra quanto a militância pró-República Espanhola, e que Woolf simplificou demais ao ver nas imagens apenas a confirmação de sua própria opinião anti-guerra.
Este documento discute um ensaio de Virginia Woolf de 1938 chamado "Os Três Guiñés", no qual ela usa fotografias de vítimas da Guerra Civil Espanhola para argumentar que a guerra deve ser abolida. O documento sugere que as fotografias podem tanto estimular o repúdio da guerra quanto a militância pró-República Espanhola, e que Woolf simplificou demais ao ver nas imagens apenas a confirmação de sua própria opinião anti-guerra.
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Susan Sontag
Olhando o Sofrimento dos Outros
Tradução de José Lima
QUETZAL serpente emplumada | Susan Sontag
… aux vaincus! BAUDELAIRE
e dirty nurse, Experience…
TENNYSON 1
EM JUNHO DE 1938, Virginia Woolf publicou Os Três Gui-
néus, as suas corajosas e incómodas reflexões sobre as raízes da guerra. Escrito durante os dois anos precedentes, quando ela e a maior parte dos seus próximos e amigos escritores observavam assombrados o avanço da insurreição fascista em Espanha, o livro foi concebido como uma resposta bas- tante tardia à carta de um eminente advogado londrino que perguntara: «Na sua opinião, como podemos nós evitar a guerra?» Woolf começa por observar causticamente que não podia haver um verdadeiro diálogo entre eles. Pois que, apesar de pertencerem à mesma classe, «a classe instruída», separava-os um profundo abismo: o advogado é homem e ela é mulher. Os homens fazem a guerra. Os homens (a maior parte) gostam da guerra, uma vez que para os ho- mens há «alguma glória, alguma necessidade, alguma satis- fação no combate» que as mulheres (a maior parte) não sentem nem desfrutam. O que é que uma mulher educada – leia-se privilegiada, abastada – como ela, sabe da guerra? Poderá a repugnância dela pelos atrativos da guerra ser semelhante à dele? Ponhamos à prova este «problema de comunicação», propõe Woolf, vendo juntos imagens de guerra. As imagens 12 SUSAN SONTAG
são algumas das fotografias que o sitiado Governo espanhol
distribuía duas vezes por semana; anota ela em rodapé: «Es- crito no inverno de 1936-1937.» Vamos ver, escreve Woolf, «se quando olhamos para as mesmas fotografias sentimos a mesma coisa». E continua:
«A coleção de fotografias desta manhã inclui uma da-
quilo que pode ser o corpo de um homem, ou de uma mulher; está de tal modo mutilado que, por outro lado, podia ser o corpo de um porco. Mas estas são de certeza crianças mortas, e aquela é indubitavelmente o que resta de uma casa. Uma bomba arrancou-lhe um dos lados; ainda se vê a gaiola do canário pendurada naquilo que provavelmente era a sala de estar…»
O modo mais rápido, mais seco de transmitir as emo-
ções interiores causadas por estas fotografias é fazendo no- tar que nem sempre é possível saber ao certo do que se trata, tão completa é a ruína de carne e pedra que ilustram. E daí Woolf parte para a sua conclusão. As nossas respostas são as mesmas, «por maiores que sejam as diferenças de educa- ção, de tradição que recebemos», diz ela ao advogado. A prova que apresenta: tanto «nós» – e este «nós» são as mulheres – como o senhor podemos perfeitamente respon- der com as mesmas palavras.
«O senhor considera-as um “horror e um nojo”. Tam-
bém nós as consideramos um horror e um nojo… A guer- ra, como diz, é uma abominação; uma barbaridade; deve a todo o custo pôr-se fim à guerra. E nós fazemo-nos eco das suas palavras. A guerra é uma abominação; uma bar- baridade; deve pôr-se fim à guerra.» OLHANDO O SOFRIMENTO DOS OUTROS 13
Quem acredita hoje que a guerra pode ser abolida?
Ninguém, nem sequer os pacifistas. Apenas temos espe- rança (até agora em vão) de pôr fim ao genocídio e de levar perante a justiça aqueles que praticam violações grosseiras das leis da guerra (pois que há leis da guerra, que os belige- rantes devem respeitar), e de podermos evitar certas guer- ras através da imposição de alternativas negociadas ao conflito armado. Pode ser difícil dar crédito à desesperada determinação produzida pelo choque que se seguiu à Pri- meira Guerra Mundial, quando se tornou visível a ruína que a Europa causara a si própria. A condenação da guerra en- quanto tal não parecia tão fútil ou irrelevante na sequência das fantasias do Pacto Kellog-Briand de 1928, pelo qual 15 nações importantes, incluindo os Estados Unidos, a França, a Grã-Bretanha, a Alemanha, a Itália e o Japão, renunciavam solenemente ao recurso à guerra como instru- mento de políticas nacionais; o próprio Freud e Einstein fo- ram chamados ao debate através de uma troca pública de cartas em 1932, sob o título «Porquê a Guerra?». Os Três Guinéus de Virginia Woolf, editado quando chegavam ao fim cerca de duas décadas de plangentes denúncias da guer- ra, oferecia a originalidade (que o transformou no menos bem acolhido de todos os seus livros) de se centrar naqui- lo que era considerado como demasiado óbvio ou pouco oportuno para ser dito, muito menos para que alguém se mortificasse com isso: que a guerra é um jogo de homens – que a máquina de matar tem um género, e que é mas- culino. Apesar de tudo, a temeridade da versão de Woolf de «Porquê a Guerra?» não torna a sua repulsa pela guerra 14 SUSAN SONTAG
menos convencional na sua retórica, no seu libelo, fértil em
repetições de frases. E as fotografias de vítimas de guerra são também elas uma espécie de retórica. Reiteram. Sim- plificam. Agitam. Criam a ilusão de consenso. Invocando esta hipotética partilha de experiências («es- tamos a ver consigo os mesmos corpos mortos, as mesmas ruínas de casas»), Woolf professa a sua crença em que o cho- que causado por tais fotografias não pode deixar de unir as pessoas de boa vontade. Será assim? É certo que Woolf e o destinatário não designado desta carta-livro não são duas pessoas quaisquer. Apesar de separados pelas eternas afini- dades de sentimentos e práticas dos respetivos sexos, como Woolf lho recordou, o advogado dificilmente se poderá considerar o tradicional macho belicoso. As suas opiniões antiguerra são tão indubitáveis como as dela. Afinal, a per- gunta dele não era «Quais são as suas ideias para evitar a guerra?» Era antes: «Na sua opinião, como podemos nós evitar a guerra?» É este «nós» que é posto em causa no início do livro: Woolf recusa-se a aceitar que o seu interlocutor tenha por garantido este «nós». Mas ao chegar a este «nós», depois de várias páginas dedicadas ao argumento feminista, cede terreno. Nenhum «nós» deveria ser considerado como garanti- do quando se trata de olhar para o sofrimento dos outros.
Quem é o «nós» a que se dirigem aquelas imagens de
choque? Aquele «nós» devia incluir não apenas os simpa- tizantes de uma ínfima nação ou de um povo sem Estado lutando pela sua vida, mas sim – um público muitíssimo mais vasto – as pessoas apenas teoricamente interessadas OLHANDO O SOFRIMENTO DOS OUTROS 15
numa qualquer guerra sórdida em curso noutro país. As fo-
tografias são um meio de tornar «real» (ou «mais real») questões que os privilegiados e aqueles que estão simples- mente em segurança possivelmente prefeririam ignorar. «Temos pois aqui à nossa frente algumas fotografias em cima da mesa», escreve Woolf sobre a experiência de reflexão que propõe ao leitor, tal como ao espetral advogado, suficientemente eminente, como refere, para ter um K.C., King’s Councel (Conselheiro Real), depois do nome – e que tanto poderá ser uma pessoa real como não. Imagine-se, pois, um leque de fotografias soltas extraídas de um enve- lope chegado pelo correio da manhã. Imagens de corpos mutilados de adultos e crianças. Mostrando como a guerra despovoa, abala, estilhaça, arrasa o mundo construído. «Uma bomba arrancou-lhe um dos lados», escreve Woolf a pro- pósito da casa que se vê numa das imagens. Evidentemente, uma paisagem urbana não é feita de carne. No entanto, um edifício fendido ao meio é quase tão eloquente como cor- pos na rua. (Cabul, Sarajevo, Mostar Oriental, Grozny, meio hectare da baixa de Manhattan depois do 11 de Setembro de 2001, o campo de refugiados em Jenin…) Vejam, diz a fotografia, isto é assim. É isto que a guerra faz. E aquilo, aquilo é também o que ela faz. A guerra dilacera, rasga. A guerra despedaça, esventra. A guerra calcina. A guerra mutila. A guerra destrói. Ficar indiferente a tais fotografias, não sentir repug- nância diante delas, não se esforçar por abolir as causas de tal devastação, de tal carnificina – eis o que seriam, para Woolf, as reações de um monstro moral. E, diz ela, nós não somos monstros, somos membros da classe culta. A nossa falta foi uma falta de imaginação, de empatia: não conse- guimos manter esta realidade presente no nosso espírito. 16 SUSAN SONTAG
Mas será verdade que estas fotografias, documentando
mais o massacre de não-combatentes do que o confronto de exércitos, podiam apenas estimular o repúdio da guerra? Podiam também certamente incitar uma maior militância a favor da República. Não era isso que se pretendia que fizessem? O acordo entre Woolf e o advogado parece intei- ramente provável, com aquelas fotografias horripilantes a confirmar uma opinião que era já comum. Fosse a pergun- ta «Como poderemos dar uma maior contribuição para a defesa da República Espanhola contra as forças do milita- rismo e do clericalismo fascistas?», e as fotografias haveriam antes de reforçar a crença de ambos na justiça dessa luta. As fotografias invocadas por Woolf de facto não mos- tram o que a guerra, a guerra enquanto tal, faz. Mostram um particular modo de travar a guerra, um modo na época normalmente designado como «bárbaro», em que o alvo são os civis. O general Franco recorria às mesmas táticas de bombardeamento, massacre, tortura, assassínio e mutilação de prisioneiros que tinha aperfeiçoado quando comandante militar em Marrocos na década de 20. Nessa altura, o que era mais aceitável para os poderes governamentais, as víti- mas eram os súbditos coloniais de Espanha, de pele escura e infiéis a espezinhar; agora as vítimas dele eram compa- triotas. Ler nas fotografias, como Woolf faz, apenas aquilo que confirma a repugnância geral pela guerra é um recuo no empenhamento a favor de Espanha como país com uma história. É rejeitar a política. Para Woolf, como para muitos contestatários anti- guerra, a guerra é genérica, e as imagens que ela descreve são de vítimas anónimas, genéricas. As fotografias distri- buídas pelo Governo de Madrid parecem, improvavelmente, OLHANDO O SOFRIMENTO DOS OUTROS 17
não ter sido legendadas. (Ou talvez Woolf considere sim-
plesmente que uma fotografia deve falar por si própria.) Mas os argumentos contra a guerra não assentam em in- formações sobre quem, quando e onde; a arbitrariedade do incessante massacre é prova bastante. Para aqueles que têm a certeza de que a razão está de um dos lados e a opressão e a injustiça do outro lado, e que a luta deve prosseguir, o que conta é precisamente quem é morto e por quem. Para um judeu israelita, a fotografia de uma criança dilacerada no ataque à pizaria Sbarro na baixa de Jerusalém é antes de mais nada a fotografia de uma criança judia morta por um bombista-suicida palestiniano. Para um palestiniano, a fo- tografia de uma criança dilacerada por um tanque na faixa de Gaza é antes de mais nada a fotografia de uma criança palestiniana morta pela artilharia israelita. Para o militante, a identidade é tudo. E todas as fotografias estão à espera de ser explicadas ou falsificadas pelas legendas. Durante os combates entre sérvios e croatas no início das recentes guer- ras dos Balcãs, mostrava-se a mesma fotografia de crianças mortas durante o bombardeamento de uma aldeia tanto nas reuniões de propaganda dos sérvios como dos croatas. Bas- tava alterar a legenda da fotografia e a morte das crianças podia ser utilizada e reutilizada. Imagens de civis mortos e de casas demolidas podem servir para avivar o ódio pelo inimigo, como fizeram as retransmissões de hora a hora pela Al Jazira, a rede de tele- visão por satélite árabe sediada no Qatar, da destruição no campo de refugiados de Jenin em abril de 2002. Por mais incendiária que essa reportagem fosse para os muitos que viram a Al Jazira pelo mundo fora, ela não lhes disse nada sobre o exército israelita que não estivessem já preparados 18 SUSAN SONTAG
para acreditar. Pelo contrário, imagens que forneçam provas
que contradigam aquilo de que se está piamente convicto são sempre desvalorizadas como tendo sido encenadas para as câmaras. A resposta típica face à corroboração fotográfica das atrocidades cometidas pelo lado a que se pertence é que as imagens são forjadas, que tais atrocidades nunca ocorre- ram, que se trata de corpos que os do outro lado trouxeram da morgue da cidade e espalharam pelas ruas, ou que é ver- dade que aconteceu, mas que foi o outro lado que o fez a si próprio. Assim, o chefe de propaganda da rebelião naciona- lista de Franco sustentava que tinham sido os bascos quem destruíra a sua própria cidade antiga e anterior capital, Guer- nica, em 26 de abril de 1937, colocando dinamite nos es- gotos (numa versão posterior, lançando bombas fabricadas em território basco), a fim de inspirar a indignação do estran- geiro e reforçar a resistência republicana. E do mesmo modo a maior parte dos sérvios a viver na Sérvia ou no estrangeiro insistiam até ao fim do cerco sérvio a Sarajevo, e mesmo depois, que tinham sido os próprios bósnios a perpetrar o horrível «massacre das filas do pão» em maio de 1992 e o «massacre do mercado» em fevereiro de 1994, largando bombas de grande calibre no centro da sua capital ou en- terrando minas no intuito de criar algumas cenas horrendas para as câmaras dos jornalistas estrangeiros, suscitando as- sim maior apoio internacional ao lado bósnio. As fotografias de corpos mutilados podem sem dúvi- da ser usadas do mesmo modo que Woolf o faz, para ali- mentar a condenação da guerra, e podem tornar presente, por instantes, uma parte da sua realidade para aqueles que não têm qualquer experiência da guerra. No entanto, aque- les que aceitam que, no mundo tal como hoje se encontra OLHANDO O SOFRIMENTO DOS OUTROS 19
dividido, a guerra se pode tornar inevitável, e mesmo justa,
poderão responder que as fotografias não constituem prova absolutamente nenhuma que leve ao repúdio da guerra – ex- ceto para aqueles para quem as noções de valor e de sacri- fício tenham sido esvaziadas de sentido e de credibilidade. A destrutividade da guerra – salvo a destruição total, que não é guerra, mas suicídio – não é em si mesma um argu- mento contra o recurso à guerra a não ser que se pense (como algumas pessoas realmente pensam) que a violência é sempre injustificável, que a força é sempre e em todas as circunstâncias errada – errada porque, como Simone Weil afirma no seu sublime ensaio sobre a guerra, A Ilíada ou O Poema da Força (1940), a violência torna em coisa quem quer que lhe seja submetido*. Não – replicam aqueles que numa dada situação não veem alternativa ao conflito armado –, a violência pode exaltar como mártires ou heróis aqueles que lhe estão sujeitos. De facto, há muitas utilizações das inumeráveis opor- tunidades que a vida moderna fornece de olharmos – à dis- tância, através da fotografia – o sofrimento dos outros. As fotografias de uma atrocidade podem dar origem a respostas contraditórias. Um apelo à paz. Um grito de vingança. Ou simplesmente a aturdida consciência, continuamente ali- mentada pela informação fotográfica, de haver coisas terríveis que acontecem. Quem poderá esquecer as três fotografias a cores da autoria de Tyler Hicks com que o New York Times * Não obstante a sua condenação da guerra, Weil procurou participar na defesa da República Espanhola e na luta contra Hitler na Alemanha. Em 1936 foi para Espanha como voluntária não-combatente integrada numa brigada in- ternacional; em 1942 e princípios de 1943, refugiada em Londres e já doente, trabalhou na representação da França Livre e esperava ser enviada em missão na França Ocupada. (Morreu num sanatório inglês em agosto de 1943.) 20 SUSAN SONTAG
ocupou a metade superior da primeira página da sua secção
diária dedicada à nova guerra da América, «A Nation Cha- lenged» [«Uma Nação Desafiada»], em 13 de novembro de 2001? O tríptico mostrava o fim de um soldado talibã em uniforme que fora encontrado ferido numa vala por solda- dos da Aliança do Norte avançando sobre Cabul. Primeiro painel: sendo arrastado de costas numa estrada rochosa por dois dos seus captores – um agarrando-o por um braço, o outro por uma perna. Segundo painel (a objetiva muito perto): cercado, olhando para cima aterrorizado enquanto o forçam a levantar-se. Terceiro painel: no momento da mor- te, estendido de costas com os braços abertos e os joelhos dobrados, nu e a sangrar da cintura, sendo acabado pela sol- dadesca que se juntara para o matar. É preciso uma ampla reserva de estoicismo para folhear este grande jornal de refe- rência todas as manhãs, dada a probabilidade de depararmos com fotografias capazes de nos fazer chorar. E a comiseração e o desgosto que imagens como as de Hicks inspiram não deverão distrair-nos de nos perguntarmos quais as foto- grafias, quais as crueldades, quais as mortes que não nos são mostradas.
Durante muito tempo, houve pessoas que pensavam
que se fosse possível dar uma imagem suficientemente ví- vida do horror, a maior parte das pessoas acabaria por to- mar consciência da barbaridade, da insanidade da guerra. Catorze anos antes de Woolf ter publicado Os Três Guinéus – em 1924, no décimo aniversário da mobilização nacional da Alemanha para a Primeira Guerra Mundial – o objetor de consciência Ernst Friedrich publicara o seu Krieg dem Kriege! («Guerra à Guerra!»). É a fotografia como OLHANDO O SOFRIMENTO DOS OUTROS 21
terapia de choque: um álbum de mais de 180 fotografias, na
sua maior parte retiradas de arquivos militares e médicos da Alemanha, muitas das quais consideradas impublicáveis pela censura oficial enquanto a guerra decorria. O livro começa com fotografias de soldadinhos de brinquedo, canhões de brinquedo e outros encantos dos rapazinhos pequenos, e conclui com fotografias tiradas em cemitérios militares. Entre os brinquedos e as campas, o leitor percorre um cir- cuito fotográfico de quatro anos de ruínas, massacres e de- gradação: páginas e páginas de igrejas e castelos destruídos e saqueados, aldeias aniquiladas, florestas devastadas, vapo- res de passageiros torpedeados, veículos esfrangalhados, ob- jetores de consciência enforcados, prostitutas seminuas em bordéis militares, soldados nas agonias da morte depois de um ataque com gases tóxicos, crianças arménias esqueléti- cas. É difícil olhar para quase todas as sequências de Guerra à Guerra!, em especial as fotografias de soldados mortos dos vários exércitos, apodrecendo amontoados nos campos, nas estradas e nas trincheiras da linha da frente. Mas segura- mente as páginas mais insuportáveis neste livro, todo ele concebido para horrorizar e desmoralizar, são as do capítulo intitulado «O Rosto da Guerra», 24 grandes planos de sol- dados com enormes ferimentos faciais. E Friedrich não comete o erro de supor que aquelas fotografias dilacerantes, capazes de dar volta ao estômago, falariam por si próprias simplesmente. Cada fotografia é acompanhada por uma veemente legenda em quatro línguas (alemão, francês, neer- landês e inglês), e a perversidade da ideologia militarista é vilipendiada e ridicularizada em cada página. Imedia- tamente denunciada pelo Governo e pelas associações de veteranos e outras organizações patrióticas – em certas ci- dades a polícia fez rusgas em livrarias e foram intentados 22 SUSAN SONTAG
processos contra a exibição pública de fotografias – a de-
claração de guerra à guerra de Friedrich foi aclamada por escritores, artistas e intelectuais de esquerda, assim como pelos simpatizantes de inúmeras ligas antiguerra, que au- guraram que o livro iria exercer uma influência decisiva na opinião pública. Por volta de 1930, Guerra à Guerra! tinha esgotado 10 edições na Alemanha e havia sido traduzido para várias línguas. Em 1938, ano de Os Três Guinéus de Woolf, o grande realizador francês Abel Gance filmou alguns grandes planos de uma população geralmente oculta de ex-combatentes horrorosamente desfigurados – «les gueules cassées» («focinhos partidos») como eram apelidados em França – no clímax do seu novo J’accuse!. (Gance fizera antes uma versão primitiva do seu incomparável filme contra a guerra, com o mesmo título consagrado, em 1918-1919.) Tal como no capítulo final do livro de Friedrich, o filme de Gance termina num cemitério militar recente, não apenas para nos lembrar quan- tos milhões de jovens foram sacrificados ao militarismo e à inépcia entre 1914 e 1918 na guerra aclamada como sendo «a guerra para pôr fim a todas as guerras», mas para anun- ciar a sentença sagrada que estes mortos haveriam segura- mente de pronunciar contra os políticos e generais europeus se pudessem saber, 20 anos mais tarde, que outra guerra es- tava iminente. «Morts de Verdun, levez-vous!» («Levantai- -vos, mortos de Verdun!»), brada o veterano perturbado que é o protagonista do filme, e repete a ordem em alemão e em inglês: «O vosso sacrifício foi em vão!» E a vasta planície funerária cospe a multidão que encerra, um exército de fan- tasmas vacilantes em uniformes apodrecidos com rostos mutilados, que se erguem das suas campas e largam em to- das as direções, provocando pânico geral entre a turba já OLHANDO O SOFRIMENTO DOS OUTROS 23
mobilizada para uma nova guerra pan-europeia. «Encham
os olhos com este horror! É a única coisa que vos pode de- ter!», grita o louco às multidões de vivos em debandada, que o recompensam com uma morte de mártir, depois do que ele se reúne aos seus camaradas mortos: um oceano de fan- tasmas impassíveis que pairam sobre os assustados futuros combatentes e vítimas de la guerre de demain. A guerra der- rotada pelo apocalipse. E no ano seguinte veio a guerra.