Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai

www.etnolinguistica.org
Silvio Coelho dos
Santos nas ceu em Flo-
rian6polis, em 1938. Li-
cenciou-se em Hist6ria,
em 1961. Em 1962 fre-
qlientou curso de espe-
c ializas;ao em Antropo-
logia Cultural e Socio-
logia Comparada no Mu-
seu Nacional. Em 1972,
defendeu tese na Uni-
·A dramcitica experiincia dos Xokleng •
vers idade de Sao Paulo~
obtendo o titulo de Dou-
tor em Ciencias (Antro-
pologia). E professor de
carreira e vocas;ao, exer-
cendo a docencia na
Univers idade Federal de
Santa Catarina e na Uni·
versidade para o Desen -
volvimento do Estado de
Santa Catarina. Exerce
as funs;oes de Diretor do
Museu de Antropologia
da UFSC.
 Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
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INDIOS E BRANCOS
NO SUL DO BRASIL
- a Dramatica Experiencia
dos Xokleng

"Veja Silvio, o branco diz pro

indio se civiliza. Mas como chega
a isto se o indio nao tern direito a
nada; 0 indio nao e nada; nao pode
faze nada em sua terra. Ass im e
melho o indio se docume nta. Deixa
de se indio. Eu nao entendo: a t er-
ra e do .indio, mas 0 indio nao pode
faze nada. Nao pode nem derruba
mato pra faze ro~a. Mas o posto po-
de. Eu ja pensei que e me lho nois
deixa de se indio. Uns cinqiie nta
indio se documenta e depois a gen-
te consegue que o governo de aque -
.INDIOS EBRANCOS
la terra pra gente. A gente fica com
o que e seu. A gente entao ve nde
NO SUL DO BRASIL
uw pau ou outro, faz um cercado, ·A dramatica experiencia dos Xokleng -
um curral, tern pra se desaperta.
Pode vende. E senhor de si. Esse
negocio, de indio ja desacor~oa a
ge nte. As vezes penso que o me lh6
e sair de la. Arruma documento.
Deixa de se .indio. Ganha um sala· '1 SILVIO COELHO DOS SANTOS
rio por roe is . Como ta nao da . Nao
adianta te posto. Nao adianta te
chefe de .indio. Ele nao fais nada .
Nao da nada. So promete. So prome-
te. Eu penso, mais pra que prome- :\~SUI Do~
te? Pra que diz que fais casa? Fais .. ~Cf> ~
ro~a? Ajuda o indio? Se ele nao , Fon•• 4637 ..
tern, nao pode, pra que promete? Eu LU NARDELLI
nao entendo, isso. Melho seria di-
ze que nao da. Que nao tern. Que Rua Victor Melrells1? 28
vende. Ai o indio sabia o que faze. ~ Cxa. Poetal 26S l,.;
Mas, nao. Promete, promete. E na- a ~·
da. 0 indio fica esperando. Espe- ~/~
rando. Nao se sabe mais se va le 'l NOPO\..\C:,
acreditar. Eu ja nao acredito
. ( . . . ) ,, .
ma1s

Vecha Pripra
Em 21 /J J /70
 •

..

Ano de 1973

@ Silvio Coelho dos Santos

. ESTA OBRA FOi EDITADA COM 0 APOIO DAS INSTITUI<;C>ES

Capa - Primeiros momentos do contato: os SEGUINTES:
Xokleng flecham e carneiam um boi.
Foto original de T. Rulland Smithsoniam Institution, Latin American Archeology Found;
Montagem do Autor. Washington -DC - USA;
Universidade Federal de Santa Catarina; ·
Universidade para o Desenvolvimento do Estado de Santa Ca-
tarina;
Secretaria da Educa9ao - SC;
Departamento de Cultura da Secretaria de Governo - SC;
Pedidos: Prefeitura Municipal de Florian6polis - SC;
Lunardelli Representa9oes Ltda Prefeitura Municipal de Criciuma - SC;
Rua Victor Meirelles 28, CP 263, Fone 46-37 • Fpolis ·SC Prefeitura Municipal de Blumenau - SC;
OU Prefeitura Municipal de Itajai - SC;
Ao Autor Grupo Financeiro Banco do Estado de Santa 'Catarina.
Rua Idalina Pereira dos Santos, 9 • Fpolis - SC . Funda9ao Educacional do Sul de Santa Catarina.

..
 Para
Oswaldo Rodrigues Cabral
L. e
J oao David Ferreira Lima
pelas oportunidades que ofere-
ceram permitindo nossa 1n1c1a-
~ao na Antropologia.

P ara
Adolfo e Maria Lydia, pais
e
Alair, Paulo Marcos e Tania Mara) esposa e filhos
pelo muito que estimularam e
pelo carinho, conforto e amor
que proporc1onam.

0 AUTOR
 ,..
IN DICE

AGRADECIMENTOS
I - INTRODU<;AO

1- A
,
pesquisa . . . . . . ... . . . . ... .. . . .. . . . . . . . . . .... .. . . . . . . . . .. . . . .. . .. . . . . . . . . . .. 11
2 - Indio s no sul do Brasil? .. .... ... . . ... . .. ... .. . .. .. .. ... . .. .. . .. .. . . . .. . 15
3- A problematica do indio no Brasil present€' . .. ................... 19
4- Preocupa9ao com uma ciencia utilitaria ..... ... :.. . ... .. .. .. .. .. .. 24
.-
II - A TERRA E SU A OCUP A<;AO

1 - Indica9oes sob re a ocupa9ao indigena .. .. ..... .. .. .. .. .. .. ........ 28

2 - Os Xoklen g como grupo tribal .. . .. .. .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 30
3 - 0 terri torio ocupado .. .. .. .. . . .. .. .. .. .. . . .. . . .. . .. .. . .. .. .. . . .. .. .. . .. . 33
4 - e
Frentes de conquista povoamento do sul . .. . .. .. .. .. .. ... . .... .. 39
5 - A coloniza4):ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

•
, ,
III -A HISTORIA DO EXTERMI NIO

1 -A colonizas:ao do territorio e os indios ............................. 54

2 - Primeiros ataques dos Xokleng as colonias ...................... 60
3 - Companhia de pedestres e tentativas de Catequese .... .... . .. . 65
4 - Batedores de mato e tentativas de aldeamento
"" leigos .... . ....... .............................. .. .. .. ... ..... .............. 69
5 - As tropas de bugreiros . . .. . . . . . . . . .. . . .. . . . . . . . .. . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
6 - Martinho Marcelino de Jesus:
bugreiro de profissao . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
7 - A verdade sobre a selvageria dos Xokleng.... .......... ... .... .. 97
8 -0 indio como o terror do sertao ...................................... 108

IV - A PACIFICA<;AO -
1 - 0 indio como problema nacional e a criw;ao do Ser-
vi90 de Prote;ao aos Cndios .......................................... 116
2 -A Ltga de Defesa Patri6tica e os trabalhos de Frie
em San ta Catarina ................ ....... .... ........... ..... ... . .. .. .. , . 120
3 - 0 SPI em Santa Catarina ............... .... . .... .... ...... .. .......... 126
4 - Eduardo de Lima e Silva Hoerhan: pacifica9ao no
Ita j a.i . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
5 - Fioravante Esperan9a: heroi da prot~ao oficial ...... ......... 154
6 - Sobreviveotes e arredios no presente .............................. 161

V -CONTATO E INTEGRA<;AO

1 - De nomades a sedentarios: a experiencia de Hoerhan ......... 173

2 - Vitim as de bugreiros e seu destino ................................. 185 AGRADECIMENTOS
3 - Terras para os indios sobreviventes ............ . .............. . ... 196
A realiza9ao deste trabalho somente se tornou possivel
4- Aspectos da cultura tradicional ..................................... 208 porque contamos com a colaborac;ao de muitas pessoas. Seria
5 - Discussao sobre a organiza9ao social ............................ 218 dificil a rro lar nominalmente a todas. Mas e grato destacar que
6 - 0 Posto Indigena e a integra9ao .................................... 229 colegas de trabalho docente, alunos, amigos, conhecidos e des-
conhecidos ofereceram contribui9oes valiosas em muitos momen-
tos. Essas incluiram desde a oferta de documentos ineditos ou
VI -INDIOS E BRANCOS NUMA SOCIEDADE COMPE- a re ferencias de artigos ou obras, ate a hospedagem, o t ranspor-
TITIVA te ou o simples cafezinho oferecidos por muitas pessoas em
nossas andan9as pelo intefior. E a maior parte dos medicamen-
1 - Caracteriza9ao economica da sociedade en vol vente ........... 242 tos e dos presentes que levamos para os indigenas aldeados em
2 - A reserva in di gen a ............. ........ .......... ....... ....... ........ 248 Ibirama, tambem res ul tou da colabora9ao espontanea de muitos
anonimos.
3 -0 X.okleng como produtor .............................................. 258 Desejamos, entretanto, destacar algumas cont ribuic;oes que
4 -A9ao de igrejas e escolas na reserva ............................. 270 se tornaram indispensaveis para a realiza9ao da pesquisa de
5 - Competi9 ao e espolia9ao ............... ... .... ... ,; ............. ..... 279 campo, que suporta o presente estudo. A Universidade Federal
de Santa Catarina, ofereceu a maior parte dos recursos finan-
VII - 0 FUTURO ceiros. 0 Smithsonian Institution, atraves dos Profs. Clifford
Evans e Betty Meggers, deu-nos animo e alento ao ofe recer su-
porte financeiro para a execu~ao de uma parte especifica do
1 - Ser indio ou ser pobre: um dilema .. .. ........................ . ..·.... 289 projeto. Os enca rregados do posto indigena Ibirama, Jose Mota
Cabral e Antonio Isaac Bavaresco, juntamente com s uas fami-
VIII - ANEXO I - Contribuic;ao para a sobrevivencia dos lias, acolheram-nos em suas casas, facilitando-nos ao maximo
Xokleng: bases de um programa de ac;ao ..... 295 nossas tare fas. Jose Ferreira da Silva, diretor da Bi blioteca
Fritz Mulle r, de alumenau, brindou-.nos com dezenas de docu-
..................................................... ... 299 mentos. Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, o admiravel pacifica-
IX - BIBLIOGRAFIA
dor dos Xokleng, deu-nos mui tas informac;oes. Os colegas de
t rabalho na Oniversidade Federal de Santa Catarina, Profs.
Marcilio Dias dos Santos, Luiz Carlos Half pap e Alroino Bal ta-
zar Eble, a epoca Licenciandos, colaboraram diretamente em
varios mementos da pesquisa de campo. 0 mesmo aconteceu com
nossa esposa, Alair Schmidt dos Santos, que assim obteve farto
mate rial sobre a crian9a e a mulher Xokleng. E os indios, mes-
•

\
 •

tis;os e civilizados da reserva indigena de Ibirama e do toldo

Sao J oao dos Pobres ofereceram-nos sua hospitalidade e amiza-
de, alem da valiosa contribuic;ao representada pelos dados refe-
rentes a experiencia que estao a viver.
A versao original deste trabalho foi apresentada como tese
ao titulo de Doutor em Ciencias, junto ao Departamento de Cien-
cias Sociais da Universidade de Sao Paulo. A Banca Examina-
dora foi integrada pelos Professores Ors. Egon Schaden, Rober-
to Cardoso de Oliveira, Luiz Pereira, Ruy Coelho e Joao Batis-
ta Borges Pereira, a quern devemos diversas sugestoes, apro-
veitadas para o maior entendimento do texto, agora preparado
I - INTRODU<;AO
para divulga9ao. Ao agradecermos a colabora9ao prestada por 1. A PESOUISA
esses Professores, alem da honra que proporcionaram, ressalta-
mos que as interpretac;oes e as omissoes constantes do presente . . A presente monografia objetiva esclarecer a experiencia
trabalho sao de nossa exclusiva resp·o nsabilidade. Tivemos ain- v1 v1da por um grupo indigena do sul do Brasil, a partir do mo-
da o auxilio de J eanete Jensen Eble, Cecilia Rau, Alair Schmidt mento em que ocorreu o seu contato com os brancos. Ela re- e
dos Santos, Abelardo Souza Helio Lange e Gilberto Gerlach, que sultante de muito trabalho e cheia de amor pelo homem em .e stu-
se encarregaram da prepara9ao dos originais, elaborac;ao de ma- do. Ela pretende oferecer dados concretos para o surgimento de
pas e detalhamento da documentac;ao fotografica. medidas em favor dos integrantes do grupo e tambem fundamentar
o estabelecimento de um in'digenismo mais eficaz e atuante. (1)
Florianopolis, marc;o de 1973. Ha muito tempo pretendiamos escrever este trabalho. O ma-
terial empirico obtido durante os dez meses que passamos entre
os Xokleng era farto. 0 que havia sido obtido durante uma cen-
0 Auter tena de excursoes aos locais onde o grupo vivera e de onde fora
expulso tambem nao era pequeno. Mas nao logravamos utiliza-
los. Nao conseguiamos um esquema 16gico para ordenar a do-
cumentac;ao numa linha que satisfizesse. Ate que resolvemos
utilizar o material para um estudo de caso que mostrasse como
os Xokleng foram levados ao convivio com segmentos da socie-
dade nacional e quais os esfors:os que realizaram para sobrevi-
ver a essa situa9ao.
Essa abordagem, alem disso, permitia mostrar nossa admi-
rac;ao, carinho e respeito para com esses indigenas. Foi junto
a eles que 9ossa espos~ passou grande parte de sua primeira
gravidez. Foi junto a eles que nosso filho mais velho aprendeu
a andar. Foi junto a eles que aprendemos a valorizar a vida sim-
ples e o riso franco. Foi junto a eles que conseguimos entender
a sociedade em que vivemos.

e
(l) - 0 termo indigenismo usado de acordo com a conotas:ao dada por
Alfonso Caso (1964: 339): "uma atitude e uma politic a e a tradus:ao de
ambas em as;oes concretas".

10 11
\
\
 transporte coletivo. Na reserva, para a movimentac;ao de u~ lo-
A pesquisa que suporta o estudo ~esultou de um pr~jeto que cal para outro, era mos obrigados a caminhadas enormes. T1nh:-
formulamos na Divisao de Antropolog1a do Museu Nac1onal, ~a mos tambem grandes limitac;oes orc;amentarias para a realizac;ao
cidade do Rio de Janeiro, e que apresent~mos como concl~sao de excursoes. Os escassos auxilios obtidos mal davam para fa-
do curso de especializac;ao em Antropolog1a Cultural e Soc1olo- zer frente as despesas de alimentac;ao e hospedagem.Com o cor-
gia Comparada; em marc;o de 1"963. lnicialm:nte o projeto de ?os; rer das sucessivas expedi90es, foi possivel a obtenc;ao de me-
sa autoria tomou o nome de Os Grupos J e em Santa Catarina lhores condic;oes para a realizac;ao da pesquisa. A Universidade
e pretendia focalizar as relac;oes m~ntidas entre ,,o~ grupos tri- Federal de Santa Catarina comec;ou a favorecer com prontidao as
bais sobreviventes e os brancos, alem de uma anahse compara- solicitac;oes orc;amentarias e materiais. A Division of Anthropo-
tiva da sua organizac;ao social. logy of the Smithsonian Institution, localizado em Washington,
Os trabalhos de pesquisa de campo se iniciaram em maio de USA, atraves dos professores Clifford Evans e Betty Meggers,
1963. Nesse mes realizamos uma ligeira excursao ao sul do es- ofereceu um auxilio para a realizac;ao especifica de uma parte
tado de Santa Catarina, visitando locais onde se poderia obter do projeto (1). Algumas institui9oes oficiais, e tambem par~icul~­
dados sobre o exterminio praticado por bugreiros; sobre indios res, comec;aram a nos favorecer com toda uma enorme e d1vers1-
que foram capturados e que lograram sobreviver entre os hr.an· ficada ajuda. Particularmente obtivemos um veiculo e isto veio
cos· sobre alguns indios arredios que no ano de 1949 hav1am proporcionar a mobilidade requerida pela pesquisa.
sid~ atraidos por funcionarios do antigo Servic;o de Protec;ao aos Ao mesmo tempo em que as condi9oes de trabalho melhora·
Indios. E, no mes de julho, partimos para visitar a reserva in- vam, tambem se modificavam varies aspectos do sistema de co-
d.igena de Ibirama. Foi nesse momento que a pesquisa propria- municac;oes da regiao. Nas primeiras idas a reserva, partiamos
mente comec;ou. A primeira visao da reserva indigena e de seus de Florianopolis com de$tino a '3lumenau e ai pernoitavamos.
habilantes muito nos impressionou. 0 mesmo aconteceu com todo No dia seguinte, seguiamos para Ibirama. E no terceiro dia e
o vale do Itajai, onde a reserva se situa. A diferenc;a do ambien- que chegavamos a reserva. A distancia entre a capital e a reser-
te e o contraste de culturas que tivemos oportunidade de conhe- va indigena era de aproximadamente 300 quilometros, mas nao
cer nos marcou defini ti vamente. Chegamos a reserva depois de havia conexao entre o sistema de transporte, nem tao pouco tra-
uma estada em Blumenau e Ibirama. Ali realizamos levantamen- fego direto. Dai as baldeas;oes e a demora. As estradas eram
tos bibliograficos e documentais. Um precario onibus, q~e nos precarissimas, sendo pavimentado apenas o trecho entre Blume-
dias de born tempo ligava a localidade de Barra do Prata a sede nau e Itajai. Na zona rural nao havia energia eletrica. Na r~ser­
municipal, passando pelo interior da reserva, serviu pa!a atin- va apenas uma familia indigena e dois funcionarios possufam
girmos a sede do posto indigena. A distancia de 52 quilometros radios, mantidos a pilha. 0 trafego de veiculos atraves da reser-
que separava 0 posto da se~e municipal, devido a precariedade va limitava-se a alguns poucos caminhoes que se dedicavam ao
da estrada e do veiculo, foi vencida durante toda uma tarde. Ao mister de transportar toras de madeira, quando ocorria tempo fa-
final de trinta dias de trabalho exausti vo, por forc;a de com pro· voravel. E tudo isto foi se modificando. Hoje e possivel se
misses didaticos junto a Universidade e porque o mau tempo nao atingir a reserva indigena, partindo-se de Florianopolis, em ape-
permitia o trafego de veiculos motorizados, saimo~ da reserva nas 4 horas. Somente cerca de 50 quilometros de estrada, entre
utilizando carroc;a. Realizamos o trajeto de volta, lbirama - Blu-
menau - Florianopolis, em onibus. Trouxemos varios _artefatos
do grupo indigena e isto se tornou o inicio das .colec;oes. etn~­
graficas hoje existentes no Museu de Antropolog1a da Un1vers1-
dade Federal de Santa Catarina.
Regressamos seguidamente a reserva nos m~ses de ja~eiro
e fevereiro de 1964; em julho de 1965, em janeiro, fever:iro e
(1) - O s re sultados obtidos na execu9ao desse sub- projeto foram pu-
Julho de 1966; em janeiro, fevereiro e julho de 19?7-, E d~1 yar? blic ados c om o titulo "A Integra9ao do indio na Sociedade Regional -
ca temos anualmente realizado pelo menos uma hgeua v1s1ta a a fun9ao dos postos indigenas em Santa Catarina", lmprensa Universi-
re~erva. No inicio faziamos as excursoes de pesquisa utilizando taria, 1970, Florianopolis.

13
12

_....
a sede de Ibirama e a reserva, nao estao asfaltados. Esse tre- quando algum membro do grupo indigena aparecia em Florianopo-
cho, que outrora era praticado somente em temporadas de born lis para ·realizar uma visita de cortesia. ( 1)
tempo, foi inteiramente reconstruido, oferecendo trafego seguro 0 destaque <lesses detallies faz-se importante. Em primeiro
a qualquer momento. A luz eletrica chegou a reserva. E os indi- lugar, porque o estudioso sempre esta obrigado a esclarecer em
genas no ano de 1970 tiveram oportunidade de assistir, com toda que circunstancias obteve os dados que esta a apresentar. Em
a Nac;ao, as transmissoes via sate lite da "copa do mundo". A segundo lugar, a experiencia permite aos iniciandos o aproveita-
televisao chegou tambem aos indios, embora na forma de "cha- mento dos caminhos ja trilhados. Ao esclarecer as dificuldades,
mariz de freguesia", nas bodegas localizadas nas vizinhanc;as limitac;oes e arranjos que foram feitos no correr dos nove anos
da reserva. que estamos a mexer nesse tema, pretendemos tambem dar idela
No entremeio das permanencias na reserva indigena de Ibi- das condic;oes de trabalho dos professores de ensino superior.
rama, aproveitamos todas as oportunidades para visitar os mui- Nesse sentido, a continua prolifera9ao de escolas, a permanente
tos lugares que outrora haviam sido ocupados pelos Xokleng e expansao das matriculas e a vis~o burocratizante que muitos
sobre o que havia possibilidade de se obter informes. A area tern do ensino, tornam-se justificativas para a falta de atenc;ao e
localizada entre o litoral e o planalto, da altura de Paranagua, recursos para a pesquisa. Paradoxalmente se deseja formar mao
no estado do Parana, ate as proximidades de Porto Alegre, Rio de obra de ni vel superior para responder aos anseios de progres-
Grande do Sul, foi assim intensamente percorrida. Realizamos, so da Nac;ao e, ao mesmo tempo, se descura do mais importante
tambem, em julho de 1964, uma excursao ao planalto em busca setor para preparar a mao de obra requerida. 0 resultado disto
de contato com os indigenas aldeados no rio dos Pardos, muni- acaba se man ifestando numa mao de obra que nao sera certamen-
cipio de Matos Costa. No ano de 1968, realizamos uma perma- te do nivel superior desejado. Na elaborac;ao do s dados e reda-
nencia de dois meses entre indios Kaingang aldeados na reserva c;ao deste estudo, sofremos evidenteme nte com essas imposi-
existente no municipio de Xanxere. No caso, pretendiamos a 9oes.
continua9ao do projeto na sua forma inicial. Contudo, acabamos
2. INDIOS NO SUL DO BRASIL?
por reconhecer que nao havia possibilidade de darmos seguimen-
to a parte do projeto no referente a comparac;oes entre a organi- Quando se fala da existencia de indigenas no sul do Bra-
za9ao social dos remanescentes Xokleng e Kaingang. As difi- sil, muitas pessoas ficam surpresas. 0 sul e sempre focalizado
culdades que enfrentavamos para aprender as linguas indigenas, como uma <las areas mais desenvolvidas do pais e onde ocorre
alem da propria precariedade com que estavam em opera9ao os .. um sistema de ocupac;ao da terra de modo mais ou menos homo-
sistemas de nomina9ao e parentesco, levaram-nos a uma reorien-
ta9ao do projeto inicial. Passamos a dar o maximo de atenc;ao
para entender os grupos em estudo em suas rela9oes com os
integrantes da sociedade nacional. E dai o surgimento do pre- (1) - Em todo o correr da pesciuisa de campo, como na e1abora9ao do
sente estudo de caso. Estudo de caso destinado a mostrar todo pres.e nte trabalho, embora tivessemos tido a colabora9ao de muitas pes-
o processo vivido por um grupo indigena ao ter seu territorio ss as, as tare fas sempre foram cumpridas em regime de artesanato -
Wright Mills (1969:211/246) esclarece essa mane ira de trabalhar sob o
tradicional pretendido e conquistado por integrantes da socieda- titulo "Do Artesanato lntelectual", dizendo que "( ... ) os pensadores
de nacional ou a ela incorporados. Estudo de caso revelador de ma is admiraveis dentro da comunidade intelectua 1 <iue escolheram nao
mil e uma facetas pouco conhecidas da penetrac;ao da ci viliza- separam seu trabalho de suas vidas. Encaram ambos demasiado a serio
para permitir tal dissocia9ao, e desejam usar cada uma dessas ·coisas
980 ocidental no sul do continente americano. e
para o en ri<iuecimento da outra ( ... ). A erudi9ao uma escolha de como
Outros aspectos se fizeram presentes e merecem ser ressal- viver e ao mesmo tempo uma escolha de carreira; <iuer saiba ou nao o
tados. 0 regime de trabalho a que estavamos sujeitos, impos- trabalhador intelectual fonna seu proprio eu a medida ciue se aproxima
da perfei9ao, de seu oficio ( ... ) . lss o signifi ca que deve aprender a
sibilitava estender as investiga9oes de campo alem dos periodos usar a experiencia de sua vida no seu trabalho continuamente. Nesse
de ferias escolares. Em poucas ocasioes tivemos recursos para Sentido, 0 a rtesanato e 0 Centro de Si mesmo e O estudante esta pes -
a
manter informantes nossa disposi9ao. E em outras oportunida- soalmente envolvido em todo o produto inte1ectua 1 de <iue se ocu-
pe ( ... )".
des logramos a obten9ao de excepcionais condic;oes de trabalho,

14 15
geneo. Existe uma enorme concentrac;ao demografica. Na area
predomina o elemento branco, (1), originario de correntes migra-
torias que nos ultimos cento e cinqlienta anos ali se instalaram.
0 sul .e lembrado pelo vestuario do gaucho; pela araucaria; pelo
cafe; pelas geadas e, as vezes, pela neve. 0 sul aparece ainda
estereotipado nos "slogans" que sempre lembram trabalho, pros-
peridade, paz e pressa. 0 sul tern a imagem, as vezes, de um
Brasil particular: de um Brasil branco, rico e dominador. E se
assim e, como se vai admitir a existencia ai de indigenas?.
Devemos confessar que somente fomos tomar conhecimento
da existencia de minorias tribais nos estados do sul quando rea-
lizavamos curso de especializac;ao em Antropologia. Sabiamos,
por estorias e cases narrados por saudosos membros da familia,
que OS indios haviam vivido aqui. Mas nao tinhamos conheci-
mento de sua existencia ainda. Talvez, a razao desse desconhe-
cimento fosse nossa precaria vi vencia do interior. Tal vez, fosse
a falta de informac;ao bibliografica, que em particular nos livros
didaticos ainda continua em dias do presente a apresentar o
indigena como um personagem hist6rico e, portanto, desapare-
cido.
Os indigenas conseguiram sobrevi ver no sul do Brasil. E
alguris _grupos, por incri vel que possa parecer, lograram se man-
t er arredios ao con vi vio com os bran cos ate nossos di as. No Pa-
rana, por exemplo, no ano de 1956 foram localizadas duas deze-
ndS de Indios Xeta, que viviam na serra de Dourados. A pene-
trac;ao que entao se fazia na regiao tinha como motivo a expan-
sao <las culturas de cafe e, isto, reduziu as florestas que ser~
viam de abrigo e refugio para aqueles silvicolas em fazendas e
sitios de cultivo da rubiacea. Em Santa Catarina, nas vizinhan-
c;as do litoral proximo a sua capital, rtas florestas que cobrem a
chamada serra do Taboleiro, ' existem indicios reveladores da
presenc;a de um pequeno grupo Xokleng. E ha poucos meses obti-
vemos uma noticia referente a existencia de outro grupo arredio,
do qual nao se conhece detalhes sobre sua filiac;ao tribal, nas
florestas vizinhas as cataratas do Iguac;u, no Parana. A exis-

(1) - Os termos "branco" e "civi1izado" sao empregados como sinoni-

mos e servem para indicar os componentes da sociedade nacional de
um modo generico. 0 termo "braneo", pois, inclue pessoas que even-
tuaJmente podem pertencer a um outro "grupo racial" ou a outro "grupo
etnico" _. Contudo, no correr do traba!ho, ciuando e necessario especifi-
car este ou aquele grupo de civilizados utilizam-se termos como "ale-
- " , " ca b oc_I os " , " 1"t a 1·ianos " ou U·1m1grantes
maes • " , prestan d o-se, ciuand o 0 BRASIL e sua regioo sul.
cabem, os devidos esclarecimentos.

16
tencia desses pequenos e est6icos grupos sil vicolas que reali- vivia em area urbana (1). A populac;ao de Santa Catarina em
zam esfor90 para continua1-" a viver segundo suas tradi9oes, le- 1970 representava 3,143 da populac;ao do pais , calculada em
va-nos a varias medita9oes sobre o homem e seus padroes cul- 92.237.570 habitantes (2). 0 produto interno bruto (PIB) era es-
turais de independencia, submissao, dominio e medo. No caso timado em 900 milhoes de d61ares, em 1970 (3). Perante todo
dos Xokleng, a resistencia que opuseram a penetra9ao dos bran- esse potencial, quase desaparecem os provaveis 1.800 indigenas
cos em seu territ6rio, a capacidade que revelaram ao conseguir que s obrevivem no Estado (4).
desenvol ver tecnicas de guerra que lhes permitia manter ocupa- , ,
dos e amedrontados os brancos numa extensa area territorial, 3. A PROBLEMATICA DO INDIO NO BRASIL PRESENTE
alem da existencia ate aos dias do presente de um grupo que nao Os indigenas que sobrevi vem no Brasil somam no presente
aceitou o convivio, demonstram que esses silvicolas sao homens a um maximo de 99.700 individuos, que formam a populac;ao de
por inteiro. Por isso so podem ter nossa admirac;ao. 143 tribo s (5). A diversidade com que esses indigenas se apre-
Al em <lesses poucos mas. significati vos indigenas arredios, se ntavam perante os integrantes da sociedade nacional, originou
vivejll aldeados em 19 postos mantidos pela Fundac;ao Nacional maneiras especificas para classifica-los. Deve-se levar em con-
do Indio, nos estados do Parana, Santa Catarina e Rio Grande ta a s ituac; ao com que o grupo mantem rela9oes com a sociedade
do Sul, cerca de 7.869 silvicolas (1). E provavel, ainda, que um nae ion al (ni veis de integrac;ao); deve-se considerar a lingua fa-
numero ra~oavel de indigenas viva disperso e acomodado no lada pelo grupo que se deseja referi! (classificac;ao lingi.iistica);
meio rural. Sohre esses possuimos dados muito superficiais e deve-se a pontar em que area cultural 0 grupo se incorpora (areas
que nao nos permitem a formulac;ao de um quadro esclarecedor. culturais) (6).
Todos os indigenas aldeados em postos, como os distribaliza- A par desses esquemas de classificac;ao, os indigenas
dos, podem ser classificados como indios integrados, ou seja estao s ujeitos a uma conjuntura especifica: a de viverem ocu-
indios que "tendo experimentado todas as compulsoes ( •• ) e pando parcelas de um territorio que os brancos pretendem ter
conseguido sobreviver, chegaram ( •.. ) ilhados em meio a popu- e
do minio. O contato e o convivio com o s brancos assim inevita-
~ao !lacional, a cuja vida economica se haviam incorporado como
res~rva de mao de obra ou como produtores de certos artigos de
comercio ( ... )" (2). ( 1) - E s tado de Santa Catarina, Diagn ostico da Situa9ao Educacional,
197 1:2
Esse contingente indigena deixa de ter s ignificac;ao quando (2) - E s tado de Sa n ta Catarina, Economia Catarinense, 1971 :2 1
o relacionamos com a populac;ao dos estados do sul, estimada (3) - Estado de Santa Catarina, Projeto Catarinense de Desenvolvimen -
em 16. 996.000 habitantes em 1969 (3). Da mesma maneira a po- to, 197 1: 19
pulac;ao indigena nao tern representatividade perante ao poten- (4) - Segundo os dados fornecidos pela 4- Delegacia da Funai, em
cial de produ9ao e consumo, da regiao. 0 estado de Santa Cata- Xanxe re, estao aldeados 1.091 indige na s e em Ibirama 624 indivi-
rina, onde se encontram localizados os Xokle ng, possui uma duos. Nao ha referencia aos indios arredios, aos integrantes do
T o ldo d e Sao Joao dos Pobres, em Matos Costa, nem tampouco
area de 95.483 km2. A sua populac;ao em 1970 era de 2.910.847 aos indios dispersos na zona rural. E sses dados, entretanto, a
h a bitan tes , com uma densidade media de 30, 5 habitantes por n osso ve r ainda sao otimistas e no caso partic ular de lbirama nao
km2. No decenio 1960/ 70, a taxa geometrica de incremento me- sao compativeis com o censo que realizamos, em 1964.
dio an ual foi de 3,13, permitindo o aumento real da populac;ao (5) - Ribeiro, D., 1957: 2 e 43.
em 781. 595 pessoas. 433 da popula9ao do Estado, em 1970, (6) - Os niveis de integra9ao sao os seguintes : isolado, contato inter-
mitente , contato permanente e integrado, Ribeiro, 1957 :7/ 14. A c lassi-
fi ca9ao linguistica dos indigenas brasile iros reune a maioria das tribos
nos seguintes troncos ling\.iisticos: Tupi, Aruak ; Karib; Je; Pano e
Xiriana. Alguma s tribos nao se incluem nesses troncos e sobre o utras
( 1) - Dados fomecidos pela 4- Delega cia R egiona l da Funai, sediada as informa9oes disponiveis sao minimas na o permitindo a s ua c lassifi-
em Curitiba, em 197 1. ca9ao, Malcher, 1962: 11. As areas culturais indigenas do Brasil agru-
(2) - Ribeiro, D. , 1957: 13. pam as varias tribos por certas caracteristicas c ultura is. Segundo Gal-
(3) - Funda9ao Getulio Vargas , Cetrhu, 1971 vao, 1960, existem onze areas culturais indigenas no Brasil.

18 19
vel para OS silvicolas. A analise dessa situa9ao particular deu mento, a marcha para oeste, que ha muito v~m se promovendo no
origem a varios estudos, todos tenta_ndo explicar 0 processo de Brasil. esta recebendo novos estimulos. Areas que refugiavam
mudan9a cultural a que os indigenas se submetem. Paralelamen- OS ultimos grupos silvicolas arredios estao sendo definitivamen-
te aos estudos especificos de Antropologia, desenvolveu-se no te conquistadas. Estradas, campos de pouso, projetos de colo-
Brasil uma serie de medidas concretas,. de as:ao, en vol vendo os niza9ao, levam para o interior um numero cada vez maior de
indigenas. O Servic;o de Prote<;:ao aos Indios, instalado no pais civilizados. Meios modernos de detecc;ao, desvendam o poten-
em 1910, realizou dezenas de pacifica<;:oes e abriu milhares d~ cial do solo e do subsolo e planos sao rapidamente formulados
hectares de terras para a ocupa<;:ao pacifica pelos inte5rantes para incorporar territorios virgens a
economia da Nac;ao (1). 0
da sociedade nacional. 0 Servic;o fez desaparecer, paraielamen- pais quer crescer e no avan90 submete as sociedades tribais
te, algumas formas vis pelas quais a socie....dade nasi~nal se que subsistem. Para cuidar das popula~oes integrantes dessas
impunha aos silvicolas. 0 Servi<;:o de Pr~te9ao aos Indios fez sociedades, a Fundac;ao Nacional do Indio pretende estar em
diminuir a intensidade com que os bugreiros eram convocados
para ,.solucionar "o problem~ indigena". 0 Se~vic;o de Protec;ao
-
ac;ao.
A politica · indigenista de um pais deve refletir uma serie
aos Indios salvou muitas tnbos do desaparec1mento total, pela de objetivos e concep9oes que tern a sociedade envolvente sobre
assistencia praticada; pela reservac;ao de terra; pela prot~ao os es toques tribais que so,brevi vem em seu territ6rio. No Brasil,
enfim. Mas o SPI se burocratizou e acabou se en vol vendo na a Funda9ao Nacional do Indio sofre de varies conflitos de con-
pratica de a9oes franc:_amente anti-indigena.s ..Na decada de ses- a
cep9ao, muitos deles discutiveis quanto sua validade, a partir
senta, o SPI havia ca1do tanto em seus obJet1vos que o governo do que se sabe a respeito do processo de mudan9a cultural.
f~deral se viu obrigado a tomar medidas contra boa parte de seus Questoes como "saber se o indio deseja se ci vilizar? "; "se
servidores e a promov~r a sua reorganiza9ao. Surgiu, assim, a compete a sociedade nacional decidir sobre 0 destino de uma
Funda9ao Nacional do Indio. ,. minoria"?; "se convem institucionalizar uma policia indigena"?
Enquanto o Servi90 de Protec;ao aos Indios se burocratizava OU "preparar indios para as profissoes de mecanico, torneiro,
e decaia as ciencias sociais no Brasil, entre elas a Antropolo- eletricista", estao sendo respondidas com ~ma seguran9a teme-
gia, tom~vam alento e fon;a. A cada ano, o numero de . pesqui~a_s raria por parte da FundaS:ao Nacional do Indio. Paralelamente,
aumentava e mais refinados se tornavam os instrumentos teon- declara9oes atribuidas a altos dirigentes d~ Funda9ao Nacional
cos de trabalho do estudioso. A bibliografia em lingua portugue- do I;dio afirmando que "a assistencia ao Indio deve ser a ma is
sa sobre ciencias sociais, embora ainda pobre, cresceu de modo completa possivel, mas nao pode obstruir 0 desenvolvimento
vertiginoso. E milhares de jovens est;ao a freqi.ientar curs~_:; u.ni- nacional ( .. )" (2); ou que a Funai "nao permitira a forma<;:ao de
versitarios que incluem em seus curnculos o estudo de c1enc1as quistos etnicos" (3), ou, ainda, que" nao podemos gastar 5 a 8
sociais. Alem disso, enquanto o servic;o oficial encarregado da
pratica de a9oes destinadas a assistencia e protec;ao ~o silvico-
la ficava submetido a toda uma ordem de fatores 1nternos, a
Antropologia como ciencia crescia tambem a custa do esforc;o
desenvolvido em varios outros paises. A distancia entre OS bu- (1) - Um desses casos seria a exploras:ao de cassiterita no suc;ioeste
da Amazonia no norte do Mato Grosso e em Rondonia, nos termos de
rocratas encarregados de praticar o indigenismo oficial e ?s empreendimento ' promovido pela e~presa Paranapanema q?e ."L.1 d ~ra
estudiosos das ciencias sociais que se preocupam com os s1l- um grupo de sete_ empresas que detem pr?vavelmente as ma1s ncas Ja,;
vicolas passou assim a aumentar continuamente. . , . zidas de cassitenta do mundo ( ... ) numa area de 400.000 hectares ( ... )
A problematica indigena dia a dia se torna "!a.is dram~tica. (Revista Veja n? 161, de 6 / 10/ 71). Outro seria o proj:_to de minera9~0
O Brasil, como Nac;ao, esta colocando em prattca arroJados na serra de Carajas, no Para, onde vivem os Paracanas, em execus:ao
pela Cia Vale do Rio Dace em associa9ao com a United States Steel,
projetos de expansao economica, ~m busca de ~r.?gr~sso. ~s segundo noticia de Visao, vol. 38, n? 8, de 25 / 4/ 71. .
decisoes sao tomadas cada vez ma1s frente a vanave1s econo- (2) - O Estado de Sao Paulo, 22 / 5 / 71, artigo ..Assistir o indio, sem
micas. E o vulto dos investimentos, ao lado das expectativas frear o des en vol vimento".
pelos resultados, fazem desaparecer para muito~ c:dministradores (3) - 0 Estado de Sao Paulo, 28/ 3/ 71, artigo "l~dio: integras:ao e pro-
a importancia human a, social e cultural dos s1l vi colas. No mo- b'ema etnico ?"

20 21
anos de "namoro" com tribos indigenas isoladas, pois isso atra- cias de esclarecimento publico ·c1). 0 governo prornoveu tambem
saria a execuc;ao do Plano de Integrac;ao Nacional ( .. )'' (1); a elaborac;ao de um ante-projeto do "Estatuto do Indio" (2). Es-
vieram aumentar a distancia que separa os responsaveis pela se documento, entretanto, deixou de lado diversos aspectos
politica indigenista e os que tern interesse no indio sob o ponto fundamentais as minorias tribais do pais, provocando criticas
de vista teorico, mas que nao podem, nem devem, deixar de dos especialistas intern<!cionais (3). Estamos informados que
olha-lo tambem como ser humano. a Fundac;ao Nacional do Indio esta promovendo a elaborac;ao de
Essas posic;oes evidentemente nao fundamentam um indige- um documento substitutivo.
nisrno baseado nas ciencias sociais. Tampouco atendem aos Ate certo ponto, a prohlernatica indigena tern sido bastante
compromissos que o Brasil assumiu ao assinar, em· 1966, o Con- debatida. Contudo, raras foram as oportunidades em que cientis-
venio 107, da Conferencia Internacional de Trabalho, referente tas sociais e administradores se reuniram para participar das
a protec;ao e integrac;ao das populac;oes indigenas. Da mesma discussoes. As criticas e as decisoes sao formuladas OU toma-
maneira, ainda, essas posic;oes nao correspondem as ideias que das quase sempre de modo unilateral. Deve-se compreender que
os cientistas e humanistas nacionais preconizam. Os docurnen- o destino dos povos tribais e as condic;oes de vida e trabalho
tos "Os indios e a ocupac;ao da Amazonia" (2) e "Moc;ao da So- a que se acham submetidos sao assuntos que a Antropologia
ciedade Brasileira para o Progresso da Ciencia" (3) testemu- nao pode desprezar. Deve-se entender que qualquer pessoa inte·
nham isto. ressada em ciencias sociais tern a obrigac;ao de se preocupar
A situac;ao do indigena tern sido tambem focalizada em di- com os "primitivos". Deve-se aceitar tambem que o administra·
versas reunioes intemacionais, que incluem em seus temarios + dor esta atuando num quadro em que e necessario agir com rapi-
as ciencias sociais. Nesse sentido o problema e preocupac;ao dez para a deflagrac;ao de ac;oes que visam o alcance de melho-
mundial e especificamente tern se ressaltado as responsabilida- res niveis de bem estar para os integrantes da sociedade nacio·
des dos estados nacionais sobre as minorias tribais que vivem nal. Se isto e certo, necessario se torna a aproxima«;:ao do cien-
em seus territorios. - No 392 Congresso Internacional de America- tista social com o administrador. Acreditamos que somente pela
nistas, realizado em agosto de 1970, em Lima, Peru, por exem- uniao de esforc;os dessas duas figuras sera possivel se encon-
plo, o assunto foi exaustivamente tratado (4), Um outro docu- trar formulas razoaveis de ac;ao indigenista. Sabemos tambem
mento, nessa linha, e a Declarac;ao de Barbados "Por la Libera- que varias contradic;oes emergem do sistema que norteia nossa
cion del Indigena", de 1971 (5). Como nao poderia deixar ·de sociedade. Mas esperamos que uma delas nao seja a minimiza-
acontecer, o tema passou a ser utilizado para a explorac;ao poli- c;ao da importancia e responsabilidade que temos para com os
tica, acompanhado de acusac;oes de que o pais esta a praticar "povos indigenas", pois is to sera negar boa parte do humanismo
etnocidio e genocidio. Isto levou o govemo federal a providen- que nossa propria sociedade pretende possuir. E evidente, tam-
bem, que nao escolhe.!flos conscientemente os papeis que nos
cabem na sociedade. E evidente que nossa gerac;ao nao con- e
quistadora porque assim o deseja. Nos estamos em maioria a
representar papeis nao escolhidos. Contudo, na medida em que
(1) - 0 Estado de Sao Paulo, 1/5/71, artigo "A Funai quer logo o
Indio aculturado".
(2) - Sao Paulo, 19-5-71, divulgado in 0 Globo, Rio de Janeiro, 15-6- e u a visita ~o !3ras il de, jornalistas estrangei-
( 1) - 0 g_o".'erno promov_
71; ros , permitmdo- lhes o l1vre acesso as areas ind1genas. Distribuiu tam-
bem 0 governo, .informac;:oes em Suas embaixadas sobre OS varios proces-
(3) - Curitiba, 8-7-71, XXIII Reuniao de SBPC; sos 11ue foram movidos contra funcionario~ do antigo SPT :

(4) - Veja-se Actas del XXXIX Congresso Internacional de Americanis- (2) - Projeto n? 2.328, de 1970, apresentado a Camara dos Deputados
tas, 2-9 agosto de 1970, LIMA, Peru, in Anuario Indigenista, pela Mensagem n? 351-70, do Poder Executivo a Comissao de Constitui-
vol. XXX, dez, 1970, Mexico; c;:ao e Justic;:a da Camara.

(5) - IN LA SITUACION DEL INDIGENA EN AMERICA DEL SUR, (3) - Veja-se a Resoluc;:ao n!? 8 da AMERICAN ANTHROPOLOGICAL
TIERRA NUEVA, Uruguay, 1972. ASSOCIATION, in news letters_of the AAA, Vol. 12 nQ 1, january 1971.

22 23
temos a nossa disposi<;ao dados e informa9oes; na medida cm permitissem ao grupo estudado melhores condi 9oes de sogrevi-
que reconhecemos a existencia de tod o um processo de domina- venc ia e de relac ionamento com a socie dade envolvente. E ver-
9ao, des tinado a sujeitar minorias, temos a obriga9ao de reco- dade que na maioria das vezes, entretanto, nao conseguiram ver
nhecer que atitudes inteligenjes devam ser tomadas para se tra nsfo rm a r em realidade suas sugestoes. Mas a propria designa-
a lterar o qu adro em questao. E possivel que isto seja utopico. 9ao que costumam fazer os estudiosos aos componentes da tribo
Mas e 0 minimo aceitavel,que em termos honestos Se pode pre- que estudam no s entido possessivo -"os meus Indios" ou "a tribo
tender. de fulano" -,ja seria suficiente para aceita rmos como geral a
am izade e o carinho que os estudiosos dedicam aos indigenas.
4. PREOCUPA<;AO COM UMA CIENCIA UTILIT ARIA Isto, portanto, ja os obrigariam a tom a r posi9ao sempre que se
As ciencias sociais constantemente estao a fornecer res- fizessem necessarias medidas concretas de defesa do grupo, de
postas p a ra se solucionar problemas apresentados pelas socie- seus inte resses e de suas tradi9oes.
dades humanas. Contudo essas resposta s , ate o momento, tern Mas ao abordarmos os "compromis s os " do a ntropologo com
s ido muito insignificantes se comparadas com as soluc;oes ofe- OS grupos que estuda no Brasil, e necessario ac rescenrar que
recidas para uma outra ordem de problemas pelas ciencias exa- no pais praticamente nao existem profiss ionais nesse mister. 0
tas. A grande questao que diferencia O S exitos entre OS dois que temos no Brasil sao professores que e nsinam Antropologia.
tipos de ciencia, a nosso ver, se encontra nas categorias de Estes, por varias motivac;oes, entre outros assuntos, se dedicam
problemas que sao tratados. As primeiras tratam com problemas ao estudo de minorias. E na quase tota lidade dos casos, .esses
cul turais e sociais, especificamente humanos , e por isso bastan- professores estao sujeitos a condi9oes de trabalho que prelimi-
te mutaveis e inadequados eticamente para experimenta9ao. As narmente enfatizam as suas obriga9oes docentes. Dessa manei-
segundas tratam de problemas do mundo natural, aberto a todas ra, existe um numero muito reduzido de pessoas que tern possi-
e xperiencias. bil idades de formular um projeto de pesquisa para des envol ver
No caso particular da Antropologia , e especialmente quando junto a um grupo tribal qualquer ( 1). Devido a isto, mesmo quan-
se t rata da sobrevi vencia de povos tribais na epoca que estamos do no pais inteiro estao a se multiplicar as escolas de nivel
a viver, as limita9oes apresentadas pelos estudiosos aumentam superior e assim ampliando-se as oportunidades de ensino de
de mo do flagrante. Nesse aspecto, em recen te docume nto elabo· Antropologia, e tao reduzido o numero de estudos so bre o indi-
ra do por antropologos que se preocupam com o destino do indi- gena brasileiro e especialmente preocupados com os problemas
gena na America Latina, afirmou-se que "Desde su origen la que ele es ta a vi ve r.
Antropologia ha sido instrumento de la dominacion colonial, ha Ao. mesmo tempo que vimos a falta de concentra9ao de es-
rac ionalizado y justificado en terminos acad.e micos, abierta o forc;os num setor em que as tarefas a c umprir sao urgentes, de-
subrepticiamente, la situacion de dominio de unos pueblos sobre vemos nota r tambem a complexidade com que as sociedades
o~ros, y ha aportado conocimientos y tecnicas de acci6n que indigenas se apresentam ao estudioso. Dificilmente um etnologo
sirven para mantener, reforzar ou disfrazar la relaci6n colonial. admite ter realizado um estudo completo sobre o grupo a que se
America Latina no ha sido excepci6n y con frecuencia creciente dedicou. Ao mesmo tempo, e por que a tarefa foi c umprida em
programas nefastos de accion sobre los grupos indigenas y es- te rm os de ati vidade secundaria, entre a col eta dos dados no
terotipos y distorsiones que deformam y encubren la verdadera campo e a elabora9ao e publicac;ao do t raba lho final, pode ocor-
situacion del indio pretenden tener su fundamento cientifico en
los resultados del trabajo antropol6gico (l)" ( I~ - Na decada de, cinqi.ienta, Ribeiro ja dizia que "( ... ) no Brasil,
Quando se trata de pesquisas realizadas no Brasil sobre o ale recentemente, so museus e universidades inc lu iam em se us quadq;is
u~s pouco~ cargos de etnologos. H?je, o Seryi<;:o de Prote9ao a os In-
indigena, nao se pode deixar de considerar a importancia que dios tambem ocupa alguns. E m conJunto, porem , somos muito poucos ·
nesses estudos tern tornado os aspectos praticos. A maioria dos para tarefas tao vastas e improvavel que este quadro venha a sofrer
estudiosos sempre se preocupou com a soluc;ao de problemas que acrescimos
, consideraveis nos proximos anos. Ass im sendo , se torna
necessario aumentar as oportunidades de financiamento para pesquisas
de especialistas independentes e, sobretudo, es hmular uma colabora-
(1) - Declara9ao de Barbados 1971 : 5/6. <;:ao ainda maior de etnologos de ou tros paises ". (Ribeiro, D ., 1957:58).

24 25

\
rer um espac;o de tempo razoavel, e durante 0 qual varios fatores principal tema. Nenhuma outra ciencia tern para com o "primiti-
novos podem se fazer presentes. Afinal estamos vivendo numa vo" tantos compromissos quanto a Antropologia. E naturalmente
epoca em que sao rapidas as mudanc;as. Tudo isto leva o estu- e a Antropologia que cabe se dedicar a criac;ao de bas es que
dioso a cautela e a limitac;oes. Ele, por ter consciencia ,que sa- permitam o surgimento de medidas concretas de ac;ao, pois alem
be pouco, nao deseja estabelecer generalizac;oes (1). E nessa de todos os compromissos, ainda subsiste o fato de ser a so-
altura, quando aparece o administrador, com sua preocupac;ao e brevivencia indigena um problema humano e nao se podera ja-
necessidade de tomar decisoes imediatas, que a distancia entre mais deixar de considera-lo prioritario.
este e o cientista se torna enorme e o dialogo quase impossivel.
Essas limitac;oes apresentadas pelos especialistas brasi-
leiros, no trato do problema indigena, sao ate certo ponto com-
pensados pela ati vidade de pesquisadores estrangeiros que es-
colhem o Brasil como area de estudo. Mas, assim mesmo, uma
outra ordem de problemas se faz presente, especialmente em
termos de ac;ao indigenista. Esses especialistas, por sua con-
dic;ao de estrangeiros, ficam inibidos muitas vezes de apresen-
tar suas sugestoes, por nao desejarem confundir suas preocupa-
c;oes com possivel interferencia em assuntos -de administrac;ao
interna do pais. E, por outro lado, quando esses mesmos espe-
cialistas sao convidados oficialmente a dar sua contribuic;ao,
eles o fazem em maioria a partir de um quadro de referencias que
nao explica adequadamente a realidade.
De qualquer modo, deve-se ace_itar a ideia de que a Antro-
pologia que se realiza no Brasil integra a ciencia internacional.
Nesse sentido, somos de opiniao que nao ha um estudio-
so brasileiro ou estrangeiro. Ha apenas o cientista, preocupado
em abordar, descobrir e ordenar o mundo que o cerca. Mas e 16-
gico que se pode pensar em localizar nessa ciencia internacio-
nal uma problematica particular, referente por exemplo, a sobre-
vivencia e ao destino dos indigenas que vivem no Brasil. Nesse
sentido, mesmo tendo-se em conta que varies fatores possam
estar dificultando e inibindo o estudioso de Antropologia, fun~ e
damental o embasamento cientifico de qualquer programa indige-
nista. E somente a Antr9pologia podera fornece-lo. A Antropolo-
e
gia uma ciencia nova entre nos. Ela dispoe de um instrumental
teorico que dia a dia esta sendo refinaqo. Ela e uma ciencia que
pretende en tender o homem e o
mundo natural onde ele vive. A
sua preocupa~ao com minorias tribais e apenas um item de toda
uma complexa lista de interesses. Mas, ao nosso ver, e o seu

0) - "( ... ) 0 estudo dos fenomenos acu1turativos em tribos de indios

b_rasi 1 ei~os nao tern sido ainda aprofundado a um ponto tal qut 0 cien-
ttsta se1a realm_:nte capaz. de .converter os conhecimentos do processo
E:JH recomenda~oes Qu SUJestoes de utilidade para o administrador"
Schaden, 1968:77.

27
26

'
 A REGIAO SUL DO BRASIL

II - A !ERRA E SUA OCUPA~AO

1. INDICA(OES SOBRE A OCUPA(AO INDIGENA ,
A area que nos interessa estudar, localizada aproximada- Poro n a
mente entre os 252 e 302 de latitude sul e 492 e 532 a oeste de
Greenwich, a epoca da descoberta, era habita d a por grupos in-
dige nas. No litoral, predominavam Tupi-Guarani, logo denomina- CURITIBA
dos de Carijc5. No interior, nas florestas do s vales e da encosta
e no planalto, viviam os Xoklen,g e os Kaingang, ambos inte-
grantes do grupo lingliistico ]e. E provavel, entretanto, que ou-
•
tros grupos tribais realizassem incursoes nesse territc5rio. Con-
form e dissemos em outro lugar, (Santos, 1970: 159): "Os Carij6
se espalhavam no litoral ( .•. ) ocupando a lagoa dos Patos e a
baia de Paranagua. Os Xokleng tinham campos de ca-;a que se
estendiam ao Rio Grande e as proximidades dos campos de Curi- Catarina
tiba e Guarapuava. Os Kaingang disseminavam-se pelo norte do
Rio Grande, pelos campos de Palmas, sertoes do Tibagi e lvai
e penetravam em Sao Paulo. Nao se pode pensar, assim, que as
tribos tinham um territorio definido, nem muito menos que elas
formassem um unico grupo local".
Mas o territorio em questao ja ha muito vinha sendo ocupa-
do por grupos tribais. Grupos sobre os quai s temos escassas
noticias, s urgidas das poucas investiga9oes que se processam
em locais onde deixaram vestigios de sua presens;a .. Beck
(1970: 151) admite que "os primeiros grupos humanos a penetra- Rio Grande do Sul
rem em territorio de Santa Catarina fossem grupos ca-;adores e
coletores, que teriam atingido a regiao atraves do vale do Rio
Uruguai. lsto por vol ta de 5. 500 AC. Posteriormente, o Litoral, ..
30°'--~~r-~~~~~~~~~~~~
em fa ce dos amplos recursos alimentares de que dispunha, teria
servido como polo de atra-;ao, abrigando popula<;oes diversifica-
das e por um longo periodo de tempo. 0 povoamento do litoral
iniciou-se, provavelmente, cerca de 3.000 AC. estendendo-se
praticamente, ate a chegada dos grupos europeus. Os grupos hu-
manos pescadores e coletores, pre-ceramistas, foram substitui-
dos por grupos ceramistas, talvez agricultores, por volta de
1.000 AD."
Tudo indica que os europeus vieram interromper um fluxo de
povoadores indigenas, de tradi9ao Tupi-.G uarani, que estavam a
demandar as terras do litoral. E, logo apos a chegada, os euro-
Limite internocionol
28 -- -- Li mite interestoduol
\
• Capitol

I
I
2°1
55° 50°
peus trataram de engajar a mao de obra indigena em seus proje- qu.e Xokleng. Finalmente, o termo Kaingang, utilizado por Henry
tos de explora9ao economica. Para tanto, iniciaram a captura de (1941) para designar os Xokleng, significa apenas "homem",
silvicolas nas aldeias do litoral e, depois, no interior, qualquer homem.
A escravidao associada as desumanas razias que os euro- Nenhuma das denomina9oes acima, portanto, realmente de-
peus faziam sobre as indefesas aldeias, rapidamente aniquilou I signa o grupo tribal Xokleng. 0 grupo nao tern termo de auto-de-
a popula9ao "Carij6" do litoral sul. ' s igna9ao. A esta conclusao chegamos depois de investigar junto
No territorio em foco, duas regioes podem ser facilmente
distinguidas: litoral e planalto. Entre este ou aquele, a floresta
+ a varios informantes idosos e junto ao pacificador, Eduardo
Hoerhan. Este confessou-no~ que a preocupa9ao de nominar o
sub-tropical cobria as serranias e os vales, dificultando a pene- grupo e dos civilizados e nao dos indios. Nao ha termo de au-
tra9ao. Este obstaculo natural impossibilitou as empr~itadas to-identifica9ao. Utilizam o termo "anhele", que significa "gen-
escravocratas dos portugueses e permitiu abrigo as popula9oes te" para se referirem a alguma pessoa que se aproxima, como
que logravam pressentir a aproxima9ao dos atacantes. No pri- quern diz: la vem gente ou simplesmente gente. Usam tambem o
meiro seculo da conquista, entretanto, os "Carijo" foram dizima- termo "angoika", com o significado de pessoa, para se referirem
dos ou levados para os mercados de escravos de Sao Vicente. a alguem que desconhecem o nome, como quern diz: quern e aque-
Na regiao de florestas e campos, da encosta e do planalto, per- la pessoa? Os termos, entretanto, nao podem ser tomados como
maneceram dois grupos tribais: os Xokleng e os Kaingang. auto-de$ignac;:ao (1). Parece-nos importante este detalhe, por
que vem demonstrar que OS Xokleng nao tinham necessidade de
2. OS XOKLENG COMO GRUPO TRIBAL termos para se auto-classificarem, pois nao sao eles que fazem
Os indios Xokleng sao conhecidos tambem pelas denomina- 0 individuo indio e muito menoS integrante desta OU daquela tri-

9oes Bugre, Botocudo, Aweikoma, Xokren e Kaingang. 0 termo a

bo. Paralelamente, surge necessidade do nacional em identi-
Bugre e usado no sul do Brasil para designar indistintamente ficar. E essa identifica~ao afirma-se nao na realidade apresenta-
qualquer indio. Sua aplica9ao tern conota9ao pejorativa, pois en- da pelo grupo tribal e sim em qualquer atributo que certos mem-
cerra as no9oes de "selvagem" e "inimigo". Botocudo, outra de- bros do grupo apresentem, como por exemplo o botoque dos Xok-
s igna9ao dos Xokleng, foi termo decorrente da utiliza9ao de en- leng ou o cabelo cortado ao alto da cabe9a, em forma de coroa,
feite labial - tembeta - por parte dos membros adultos do sexo dos Kaingang. Dai as designa9oes botocudo e coroado, tao di-
masculino. Ate certo ponto, o termo tambem encerra conota9oes fundidas no sul do pais para referir a grupos tribais.
negativas, embora os indios costumem aceitar essa identifica- A preferencia pelo termo Xokleng, neste trabalh~, e devida
c;:ao, ao serern interrogados sobre sua aut6-denomina9ao. 0 termo apenas ao fato de evitar o tumultuamento da literatura etnologi-
Aweikoma, surgido na literatura etnol6gica a partir de uma co- ca, pois os autores que ultimamente tern tratado do grupo utili-
munica9ao realizada por Von Ihering, em 1910, .ao Congresso zam este termo.
Internacional de Americanistas realizado em Buenos Aires, e Os Xokleng, lingliisticamente, filiam-se ao grupo Kaingang.
uma corruptela da frase destinada a convidar uma mulher para Essa filia9ao lingiiistica foi demonstrada por varios estudiosos
copula (1). Xokren significa taipa de pedra, dn mesma maneira (Henry, 1941), Guerios (1945), Wiesemann (1959), que destaca-
ram ser o Xokleng um dialeto Kaingang. Os Xokleng, como os
Kaingang, se integram no grande grupo indigena designado por
(1) - A o iniciarmos o trabalha de campo junto aos Xokleng de Ibirama, Je ou Tapuia. Entretanto, ha uma enorme discussao sobre a i-
utilizamos termo Aweikoma num momento em que varios indios se en- dentidade cultural dos grupos Xokleng e Kaingang. Henry (1941),
contravam a espera de um caminhao que deveri a transportar 0 palmito por exemplo, estuda os Xokleng como sendo Kaingang, admitin-
que h aviam tirado da Claresta. Junta aos indios, suas mulheres e filhos.
0 uso do termo provocou imediata rea9aa de alguns indios, num falso
do, entretanto, que as tribos que falam dialetos Kaingang dife-
puritanismo: . "nao se diz is to na frente da femea", seguida de uma au- rem na linguagem e na cultura (1941:XV); Baldus (1937 e 1952)
a
tentica critica tribal base de murmurio e do riso, sucedidos de comen- a firm a que nao ha identidade cultural entre OS do is grupos tri-
tarios sobre tudo que fazia ou dizia o pesquisador. lhe ring (1912:254)
afirma tex tualmente : ... "Propondo de denomina-los"Aweikoma", desig- (1) - Depoimento dos indios Aipan, Kamlem Aipon Pathe e Waenkii
nando-os, assim com o nome que eles proprios se dao". Kopaka, em abril de 1967. ·

•
30 31
 bais· Metraux (1947) compara os sistemas de " metades " K a1n- .
gang com os "clas" Xokleng e opta por sua identidade; rec~nte­ alto Vale do Itajai; o segundo · ocupav~ as cabeceiras, do Rio
mente, e por fim, Hicks (1966) procurou demonstrar, a parhr de Negro, na atual fronteira de Santa Catarina com o ~ara~a; o ter-
urna analise de dados etnograficos, que se tratam de grupos cul- ceiro dominava o sul, com base nos vales do Cap1van e Tuba-
turais distintos (1). rao. Como nomades, entretanto, esses grupos deveriam se subdi-
Ha evidentemente, diferencia9oes entre as culturas Xokleng vidir e simultaneamente explorar largas areas vizinhas a esses
e Kaingang, particularm~nte no referente a organiza9ao social, a locais de maior concentra9ao. Incursoes de ca9a, de coleta ou
rituais de passagem, 'a mitologia, a maneira de enterrar os mor- de reconhecimento deveriam ser feitas em areas relativamente
tos. Entretanto, nao conseguimos obter dados factuais que vies- distantes. Por isso, a presen9a dos Xokleng foi historicamente
sem contribuir para o elucidamento da questao. As investigac;oes registrada num territ6rio bastante ampl.o, fazen.do su~or que a
realizadas nesse aspecto somente demonstraram que os Xokleng, tribo deveria ter um contingente populac1onal mu1to ma1or do que
a partir da penetra9ao dos brancos em seo territorio, sofreram o real.
vicissitudes tais que, ao serem pacificados, sua culttira original A dependencia total da ca9a e da coleta obrigava aos Xo-
apresentava profundas mudan9as (2). Mudan9as que se acentua- kleng a dominar um e.norme territ6rio. 0 acampamento ~uase
ram com a pacifica9ao, de modo que para a Etnologia so ficaram sempre era o local onde a mulher descansa~a a tralha domestica
in terro ga9oes. . e acendia a fogueira. Em tomo desta, os 1ntegrantes do grupo
Alguns autores (Serrano, 1936, Metraux, 1944) admitem que dormiam. A familia se agrupava no lugar onde a mulher sentava
OS Xokleng e Kaingang sao originarios dos antigos Guaiana OU e ai permanecia alguns dias. Nos periodos de chuva, para prote-
Caagua, ·que dominavam as terras do interior no sul do Brasil, a 9ao, um paravento era construido de ramos de arvores (1).
epoca da conquista (3). Na literatura Etnol6gica, entretanto, em Na atualidade os Xokleng sobrevivem como grupo em Ibira-
regra os dois grupos aparecem distintamente. ma (Posto Indigena - Saitta Catarina), em Laranjeiras (Posto
A tribo Xokleng era formada por div~rsos grupos. Esses Indigena - Parana), em Matos Costa (toldo S. ]oao dos Pobres
eram integrados por so a 300 individuos. ~ epoca da col.oniza- - Santa Catarina). IHa ainda indicios de qtie na area da serra
9ao do territorio ocupado pelos Xokleng., ~eculo XIX, hav1a p.e~o do Taboleiro, ao sul de Santa Catarina, um pequeno grupo de
menos tres grupos Xokleng: um deles v1v1a no centro do ternto- Xokleng arredios sobrevive nas pontas de floresta ainda exis-
rio catarinense, tendo como area de as;ao principal 0 medio e 0 tentes. Os Xokleng integram a area cultural Tiete-Uruguai (Gal-
vao, 1960:37) e na classificac;ao de Ribeiro (1957: 15), com ex-
(1) ·- Essa discussao contou com contribui9oes as mais diferen9adas.
Guerios (1945:329), citando Schaden E. (1937), diz sobre a identidade
ce9ao dos arredios, aparecem como integrados.
da lingua dos gruP,OS Xokleng e. Kaingang, <l,..Ue "A ho~da vencedora ado-
tou o idioma dos vencidos (o ca1ngangue), nao por meio destes mesmos, 3. 0 TERRITORIO OCUP ADO
os quais foram mortos, porem, atraves das mulheres e. crian?as _9Ue
foram preservadas como despojos ( ... )". De outra parte, mvestlga9oes No momenta em que os Xokleng come9am a ingressar na
realizadas por Salzano e Sutton (1965) e Salzano e Freire Maia (1~67) Hist6ria, eles ocupavam toda a area existente entre o litoral e
entre os Xokleng e Kaingang, vieram demonstrar_ que .so~ o ponto de vista o planalto desde as proximidades de Porto Alegre, no Rio Gran-
de c aracteriza9ao genetica, os dois grupos sao d1stlntos. Salzano e de do Sul, as proximidades de Paranagua, no Parana. Apare-
e Sutton (1965:285) dizem: "How can this apparent conflict between ge- ciam, aos nacionais,, como tipicos habitantes da floresta e como
netic and linguistic date be resolved? Two hypotheses can be advanc~d
to e xplain it: (a) The two groups were biologic ally distinct and the si-
milarity in language is only apparent or was a secundary phenomenon -
os selvagens mais resistentes a qualquer tentativa de aproxima-
9ao.
which ocurred after contact between them; (b) They have a common an- A abertura da estrada de tropas, ligando Rio Grande a S.
cestry but have di verged in a significant way during the time they were Paulo (1728), o surgimento de Lages (1771) e o aparecimento
separated. ( ... ) _ 1 de fazendas de cria9ao nos campos de Lages, Curitibanos, Cu-
(2) _Henry (1941:84) fala da simplifica.9ao da cultura Xokleng ressa.~
tando que "The history of Kaingangsociety .has bee~ one of long-c_on~,i ritiba e Guarapuava, praticamente vieram impedir que os Xokleng
,,, nued disruption and of gradual reduction in the circle of security · continuassem a fazer suas incursoes de coleta nos ricos pinhais
(3) - Ploetz e Metraux (1930: 111) afirrnam : "( ... ) Wa1na, Guaya~a, que se adensavam ao entremeio dos •campos. Logo a seguir, na
Wayanna Goianaz, etc. ( ... ) Ces inclines sont les ancetres des Kain- (1).- Henry, 1941, passin.
gang, des, Sokleng et des Aweikoma mo d ernes ( .. . )" .

32 33
\

•
 , ,
AREA CULTURAL INDIGENA
-
TIETE-URUGUAI (N~IO)
Ga lvao, E. 1960 primeira metade do seculo passado, intensificou-se a coloniza-
\_ 9ao europeia no Rio Grande ~ em tomo de Curitiba. Foi este mo-
vimento populacional que empurrou os Xoklen g definitivamente
para dentro dos atuais limites do Estado de Santa Catarina. As
incursoes fora desta area tomaram-se cada vez mais raras e
quase impossiveis p~la presen9a definiti va ja do homem branco.
A esse tempo os limites de Santa Catarina nao eram os do
presente. Sohre toda a area situada a oeste dos campos de Curi-
tibanos e, ao norte, nas vizinhan9as do Rio Ne gro, o Parana -
que a epoca se subordinava a Sao Paulo - pretendia ter jurisdi-
9ao. Assim, boa parte do territorio ocupado pelos Xokleng, ate
1916,quando foi solucionada a questao de limites entre o Parana
e Santa Catarina, estava sob a influencia de Sao P a ulo, e, de-
pois, do Parana, que se tornou provincia em 1853.
A presens;a dos Xokleng em torno dos Campos de Curitiba
e na descida da serra em dire9ao ao mar e assinal ada por Zaca-
rias Goes ·e Vasconcelos, primeiro presidente da provincia do
Pa ran a:
• .4
10
"No distrito de Ambrosios, 12 leguas pouco mais ou menos
desta cidade (Curitiba), os indigenas ameas;am a seguran<;a da
gente civilizada" (1).
No Rio Grande do Sul, os Xokleng "ocupavam, a regiao ser-
rana ao noroeste do Rio Taquari ( ••• ). As imensas florestas
virgens desse territorio forneciam-lhes ca~a e frutos em abun-
dancia. 0 seu dominio se extendia tambem pelas terras, sobre-
modo ferteis, que o governo escolhera para a coloniza~ao es-
trangeira por es'tarem situadas a distancia relativamente peque-
na dos mercados urbanos da zona costeira" (2).
No ano de 1828 se iniciou a colonizas;ao europeia em Santa
Catarina, com a chegada a Desterro (Florianopolis) dos primei-
ros imigrantes alemaes, destinados ao nucleo colonial de Sao
Pedro de Alcantara. Este nucleo foi oficialmente instalado em
1829 e situava-se a "cinco leguas da vila de S. Jose, no cami-
nho de Lages" (3).
(1) - Wa ch owicz, Ruy C. - 1969: 471.
(2) - Schaden, F. 1963: 69. Hensel, R. ( 1928 : 67) confirma a presen9a
d os Xokleng no Rio Grande : "no norte da Provin cia, isto e,
na serra
ou regiao montanhosa e no extenso mato virgem que separa a quele do
a
•
14 terreno piano, encontrou-se "Bot ocudos '.' ( .. ) (... ) Devido sua feroci-
~
dade e les e ram muito temidos e bastante molestaram os primeiros colo -
~
nos alemaes do mato virgem ( ... ) Pedro Ribeiro, arqueologo do Rio
'' Grande do Sul, ha pouco tempo nos i nform ou que nessa area encontrou,
' em abrigos sob as rochas , vestigios culturais que evidenciam a presen-
RIO GRANDE DO SUL..__ 9a d os Xokleng.
(3)-Cabra l, 1937 : 117.

35
----- Limite intere1tadual
- - - Area Cu·lturol
• Posto tndioeno
•
 I

·TERRIT6RIO HISTORICO DOS XOKLENG

lniciava-se assim a conquista definitiva da area territorial

que os Xokleng detinham. No Rio Grande, a colonizas;ao iniciada
nas proximidades de Porto Alegre (S-.Leopoldo, Novo Hamburgo)
se expandiu para o norte e para o noroeste, subindo as bordas
do planalto e caminhando em dires;ao ao Rio Uruguai, na frontei~
ra com Santa Catarina. Em torno de Curitiba e colonizas;ao tam-
bem se afirmou e toda a area que se avizinhava do Rio Negro
comes:ou a ser povoada. Nos campos de Guarapuava, Curitibanos
, e Lages, as fazendas de criac;ao estao em franca expansao. A
Parana "estrada de tropas", corta o sertao de Sao Paulo ao Rio Grande,
atravessando OS Campos e ligando fazendas. No litoral, OS nu-
cleos de Paranagua, S. Francisco, Desterro e Laguna, ha mui to
sao bases de apoio para a conquista das terras ~o gentio e po-
voamento dos solos virgens. Os Xokleng, estao, pois, confina-
dos. J a nao ha para onde fugir. Um subgrupo que freqiientava as
cabeceiras do Rio Negro e que devido a pressao dos brancos
comes;ou a deslocar-se para o oeste, em direc;ao aos campos de
P almas, encontrou pela frente os Kaingang. E, pouco tempo de-
pois (1838), os br-ancos chegavam, tambem, a esses campos.
·Santa Catarina \
Em Santa Catarina, entre o litoral e o planalto, os Xokleng
\. comes:am a se sentir apertados. Essa area e extremamente aci-
\
dentada. Em alguns momentos a serra desce abruptamente ate
'\ junto ao mar. Em outros, recuos da montanha permitem que entre
\
Loges
\
\
I • esta e o mar se estendam planicies e vales. 0 territorio em
questao e, portanto, descontinuo e acidentado, sob 0 ponto de
e
vista geografico. Este territ6rio coberto pela floresta sub tro-
pical, que praticamente tern seu extremo a coincidir com os li-
mites s etentrionais da regiao em foco . A montanha e o vale co-
bertos de floresta s ubtropical, eis o ambiente geografico e his-
tc5rico dos Xokleng.
Nern sempre eles foram habitantes da floresta. Outrora,
ocupavam o planalto, onde predominam campos naturais, entre-
Rio Grande do Sul meados de pinheira is. Ali praticavam alguma agricultura e ti-
. POR ' nham no pinhao a base de seu regime alimentar. A memoria tri-
¥ bal recorda desse tempo: Segun do Henry (1941: 3). ftThe forest
was not their original horee, for they were driven into it from
their farms on the savannahs to west by their enemies. They
speak with nostalgi a of the time long ago when lived little fen-
ced villages and planted corn, beans and pumpkins ( ... )".
0 planalto, a serra-acima como e conhecida popularmente
a area em fqco, apresenta caracteristicas bastante di versas dos
vales e da encosta litoraneos. No planalto, no inverno, a geada
e comum e a neve, se ocorre uma temporada de chuvas, tambem
se faz presente. 0 terreno se apresenta mais ou menos ondulado,

~ Limite Litoral/Plonalto 37
.. ; · ..,....
' :, ., •
\

----- Territorio historico dos Xokleng

e Cidade
 ·-- - - - ~ ,.,

,,

descendo lentamente em rumo oeste, para onde correm os rios De outra parte, para a sociedade nacional chegara o momen-.
que desaguam no Parana e dai se encaminham para o estuario
do Prata. Segundo Queiros (1966: 8): " 0 pinheiro do Parana, a
··- _ ..
to de come9ar a explorar as terras incultas do sul, particular-
mente OS vales litoraneos. A imigra9ao e estimulada e rapida-
Araucaria angustifolia, da carater a paisagem. Porem OS campos mente varios nucleos come9am a surgir nas clareiras da flores-
nativos ocupam· duas ter~as partes da area: mais frequentes ao ta. Floresta que o Xokleng imaginara como refugio e onde ele
sul e a oeste, onde se estendem pelas coxilhas atravessadas de tentava sobrevi ver como integrante de uma sociedade.
canhadas bruscas, nao desaparecem totalmente ao norte e a les- A partir desse momento o territorio Xokleng, evidentemente,
te - encontram-se ai vastas clareiras naturais no meio das ma- deixou de ser. Os objetivos de progresso da Na9ao nao poderiam
' nos lugares pianos e menos altos ( .•. ).
tas, ser prejudicados por um grupo de sil vicolas e, muito menos, se
A araucaria ergue-se a mais de trinta metros; porem, a al- poderia reconhecer que os indios para sobreviver necessitavam
tura do pe ito de um adulto, o diametro do tronco q'!ase nun~a senao de um territorio, pelo me nos de_terras.
ultrapassa um metro e meio. Seu fruto, abundante na epo~3: ma1s 4. FR ENT ES DE CONQUIST A E POVOAMENTO DO SUL
fria, alimentava toda uma fauna de aves e macacos, caltltus e 0 sucesso de Cabral, ao atingir o litoral do Brasil, levou a
queixadas, e servia de sustento aos indios Xocren. (: .. )." _ coroa de Portugal a proceder ao reconhecimento da nova terra.
Os Xokleng, somente deixaram de fazer suas incu~so~s a Expedi9oes sucessivas trataram de avaliar a extensao, aciden-
esta area quando ela foi tomada pelas fazendas de cna9ao e tes, popula9ao e especialmente riquezas do novo dominio. Nesse
pelos ro9ados dos colonos. 0 pin?a.o , para e.les, sempre foi a sentido, as embarca9oes cumpriam suas rotas demorando·se nes-
maior dadiva da natureza. Essa dad1va devena, entretanto, ter te ou naquele porto, permitindo assim que as explora9oes de
s ido disputada por varios grupos tribais e nao ha ~uvida qu~ ~s reconhecimento fossem sendo realizadas nas vizinha·n9as. Havia
lutas entre Xokleng e Kaingang ocorreram em fun9ao do dom1n10 como preocupa9ao fundamental a obten9ao de informa9oes que
desse territorio, onde o pinheiro era farto. O ~ Xokleng foram levassem os conquistadores ao encontro de fortunas em ouro,
assim empurrados para a borda do planalto e da1 para a floresta prata e pedrarias, como ocorrera com os espanhois no Mexico e,
que cobria a encosta e vales. . logo em seguida, no Peru. Procurava-se o "el dourado" de Por-
A adapta9ao ergo16gica dos Xokleng ao novo habitat, entre- tugal. 0 litoral sul do Brasil foi assim conhecido.
tanto, nao se deu plenamente. Eles foram incapazes de explorar Os espanhois tambem incursionavam na costa brasileira em
os recursos alimentares existentes nos rios e riachos, que eram busca do estuario do Prata, preocupados em manter uma nova
fartos no novo ambiente. Foram incapazes de criar meios para passagem para o Pacifico e um acesso mais adequado para es-
vencerem as correntes d' agua mais volumosas; foram incapazes coar as fabulosas riquezas que estavam usurpando aos Incas.
de desenvol ver uma agricultura de subsistencia na floresta. Na rota para o sul, a ilha de Santa Catarina foi eleita como oti-
Adaptaram-se, contudo, as novas situa9oes impostas pelo ?m- mo porto e ponto de aguada obrigatorio para os navios de Es-
biente e especialmente pelo clima de inseguran9a que ~e~e~1am panha. A situa9ao geografica da ilha localizada quase a
altura
estar a viver, em virtude das constantes lutas com os 1n1m1gos da passagem do meridiano de Tordesilhas (que ao sul tocava em
Indios que pretendiam disputar os territorios ricos do planalto. Laguna), permitia que ela fosse considerada propriedade de
Tornaram-se nomades e fizeram da ca9a e da coleta a ~ase. d.e
·--
I·
Espanha (1).
seu regime de vida. A tralha domestica foi amplamente s1mphf1-
Cl) - .A. epoca as nac;:oes europeias corriam para o mar, visando sub-
cada e a ceramica subsistiu em algumas poucas pe9as de peque- meter povos longinquose assim enriquece!-.. Portugal e Espanha ~de~pon ­
no tamanho e na memoria tribal (1). As casas, nisticos paraven- tavam ne ss a corrida. Entretanto, ha notic1as de que em referenc1a a
,,,,,, tos, passaram a ser construidas somente quando o t.empo era de costa do sul do Brgsil, lambem navegadores naturais de outros paises
,, chuvas ou no inverno. Fora disso, os Xokleng hab1tuaram-se a ah teriam estado. E o caso de Binot Palmier de Gonneville, navegador
frances, que se admite ter estado na ilha de S. Francisco do Sul em
1:
I
dormir ao relento,. sob as copas das arvores. -- 1504 (Cabral: 1970: 22). Quanto ao dire ito as terras do sul, deve-s e
ressaltar que, em 1541, Cabeza de Vaca tomou posse para Espanha, da
(1) - Henry (1941: 172), Hanke (1947: 45 / 49) e Piazza e Eble (1968: ilha e das terras do litoral, ate Cananeia (Cabral, 1970: 28). T oda essa
1/9) tratam da ceramica entre OS Xokleng, sendo que Piazza e Eble area, entretanto, Portugal havia doado ao irmao de Martim Afonso, Pero
(1968 : 8) concluem pela decadencia da arte oleira. Lopes de Sousa, em 1530.

-
38 39
 Em 1514, sabe-se que D.Nuno Manoel e Cristovao de Haro que ali existiam. As descobertas maritimas que se estavam a
em viagem comercial realizada sob a bandeira lusitana, estive: fazer definitivamente condenavam a mistica e o dominio catoli-
ram na ilha de Santa Catarina, a qual denominaram de ilha dos cos da idade media, embora em nome deles fossem realizados
Patos. Logo em seguida, 1516, Juan Dias Solis a servi90 de esses empreendimentos. Assim, ao mesmo tempo em que a igreja
~spanha realizou uma escala na ilha, antes de se dirigir para o procurava participar das expedi9oes de conquista, ela se sentia
no da Prata, onde morreu em combate com silvicolas. De regres- incapaz de justificar a presen<;:a de homens nao-europeus na
so, os sobreviventes da expedi9ao de Solis perderam uma embar- America que entao descobria. Essa incapacidade, que a bula de
ca<;:ao na entrada sul do porto da Ilha de Santa Catarina. Do Paulo Ill, de 1537, procurou superar, ate certo ponto explica o
naufragio, onze homens se salvaram e um deles, Aleixo Garcia tipo de relacionamento que os europeus em geral mantiveram com
acabou descobrindo o Paraguai, em 1524. Informa Cabral (1970; os indigenas da America (1). E, mais de perto, esclarece boa
23) que "Os naufragos foram acolhidos pelos naturais, estabele- parte do comportamento que os povoadores portugueses da costa
ceram-se entre eles e com as mulheres da tribe casaram mais brasileira ti veram para com os indios.
tarde, fixando-se lia regiao, onde vieram a prestar, posteri~rmen­ Nao e de se estranhar, pois, que logo ap6s a funda9ao de
te, a navegadores e exploradores que ai aportavam, acentuados S. Vicente, os indigenas do litoral sul da colonia come9assem a
trabalhos. Teria servido um deles, Melchior Ramires, de piloto sofrer ataques dos portugueses. Para esses, em termos praticos,
pratico, e interprete, a uma expedi~ao portuguesa ao Rio da interessava apenaS que OS silvicolas representavam mao•de-obra
Prata, chefiada por Cristovao Jaques" ( ... ) que nao poderiam dispensar, para OS empreendimentos economi•
Sucessiyamente, segundo as fontes historicas disponiveis, cos que estavam realizando (2). A igreja, num esfor90 concilia-
estiveram no litoral de Santa Catarina, Sebastiao Caboto, que a dor de doutrina, tentou defender os indios obtendo, entretanto,
servi90 de Espanha, 1526, se dirigia para as Molucas; Diego resultados quase nulos.
Garcia, espanhol, em 1527; Gonzalo de Mendoza, espanhol, em Des de o inicio, portanto, se estabeleceu uma rela9ao colo-
1535; Rui Moschero e Alonso Cabrera, espanhois, em 1536 e nialista entre os europeus e os indigenas. As descidas que os
1537. Em seguida, 1541, chegou D. Alvaro Nunes Cabeza de habitantes de Sao Vicente logo come9aram a fazer sobre os sil-
Vaca, que re-alizou a proeza de atravessar os atuais estados de vicolas do litoral sul tinham um motivo principal, a obtenc;:ao de
Santa Catarina e Parana, atingindo Assuns;ao do Paraguai. escravos. Escravos para atender as necessidades de mao-de-
Em 1530 partiu de Lisboa com destino ao Brasil, Martim obra nos estabelecimentos agricolas que entao surgiam no lito-
Afonso de Souza. Depois de percorrer todo o litoral sul, atin- ral de S.Paulo, nos campos de Piratininga e no nordeste. Ao
gindo o Rio da Prata, Martim Afonso fundou Sao Vicente, em
1532. 0 Brasil fora di vidido em capitanias e o extrema sul, de ( 1) - P e rdigao Malheiros, ( 1944: 205) diz que "Em re la9ao a Espanha
ou antes ao Peru, o Papa Paulo III, por Breve d e 28 de maio de 1537,
Paranagua a Laguna, as chamadas terras de Sant' Ana, foram dirigido ao Cardeal Arcebispo de Toledo, muito c ategoricamente decla-
distribuidas a Pero Lopes de Souza, irmao de Martim Afonso. rou que OS indigenas, entes humanos Como OS demais homens, nao po-
Sao Vicente imediatamente se tornou base para a conquista do diam ser reduzidos ao c;ativeiro; Breve que mais tarde se fez extensivo
sul, por pa rte de Portugal. Como os espanh6is contavam com o ao Bra s il por Bula de Urbano VIII. Esse mesmo Pontific e, interpretando
apoio dos sil v!colas que habitavam a Ilha de Santa Catarina e o a Bula de Alexandre VI (de 1492) sobre a conversao dos indios a fe
c atolic a, fixou a l:iUa verdadeira inteligencia, e proc urou opor barreira
litoral a ela vizinho, os habitantes. de Sao Vicente logo come9a- aos a bus os dos espanhois contrarios as determina 9oe s da Rainha Isa-
ram a hostilizar esses indios, fazendo continues incursoes em be l, qu e ainda no seu testamento havia recome ndado se tntasse hem os
suas aldeias para aprisiona-los e reduzi-los a escravidao. Tau- indios ".
nay (1936: 17) informa-nos de que em 1567 o Pe. Domingos Gar- (2) - Perdigao Malheiros (1944: 206) esclarece: "E s abido que desde
cia, na regiao de Laguna, recebeu do cacique Tatarana reclama- OS primeiros tempos, a titulo de resgate , OS indiOS eram re duzidos a
esc ravidao dos colonos e ate transportado s para Portu gal. lgualmente
<;:oes contra a violencia dos portugueses. os apri s ionados na guerra eram feitos escravos por um alegado direito
· Para a compreensao adequada desses eventos, deve-se re- do venc edor. Mas os colonos, levados pela a videz e c obi9a, em breve
cordar que a Europa estava a entrar numa economia mercantil, tal latitude d eram a esses principios, que havia se c onvertido em regra
responsavel por serias altera9oes no comportamento socio-eco- para semelhante abuso a necessidade que diziam ter bra9os para a la -
voura e outros misteres; ( ... )".
nomico e, tambem, ideologico, dos diversos grupos nacionais

40 41

\
mesmo tempo, entretanto, essas a9oes de guerra adquiriam sen- de Sao Paulo penetraram nos sertoes do sul e encontraram nas
tido politico. Os vicentistas ao eliminar os silvicolas do sul missoes que os jesuitas espanhois haviarQ fundado junto aos
tiravam aos espanh6is a massa de apoio para o dominio dessa Guarani, as novas fontes para o abastecimento do mercado de
area, pois 0 eventual fornecimento de viyeres e de homens, fica- escravos que florescia. Informa Lugon (1968: 45/46): nos padres
va cortado pela raiz. A mentalidade dos homens da metropole Cataldino e Maceta, que nao tinham ilusoes, haviam logo de
era assim de plena utilizac;ao das coisas e dos homens existen- inicio avan~ado para muito longe, rumo a leste, a fim de estabe-
tes na colonia. E essa mentalidade, por paradoxal que pare9a, lecerem suas funda~oes, alem do Igua~u, do Parapane e do Pira-
em pouco era colocada em pratica pelos paulistas, quase todos pe, fora do alcance dos colonos espanh6is. Mas nao tardaram a
mamelucos, descendentes de portugueses com mulheres indias. perceber que, afastando-se de um inimigo, tinham se aproximado
0 litoral sul da colonia foi intensamente explorado por de outro, que ainda na~ era conhecido e cuja vizinhan~a em bre-
Madrid e Lisboa e os sil vicolas logo foram submetidos (1), le'{a- ve se revelou funesta para todas essas novas igrejas. Eram· os
dos para outras plagas como escravos ou mortos. No seculo habitantes de Sao Paulo de Piratininga, pequena cidade da pro·
XVII, quando Dias Velho tentou fundar uma povoa9ao na Ilha de vincia do Brasil".
Santa Catarina, o litoral estava praticamente despovoado de in- No vai e vem das expedi9oes as redus:oes jesuitas, OS pau-
digenas. listas desbravaram os sertoes do Brasil sul, travaram contato
lsto ocorreu apesar do esfor90 da igreja. Segundo Cabral corP outros grupos tribais e motivaram o deslocamento para no-
(1970: 33/ 34), em 1553 o Pe. Leonardo Nunes esteve em Santa vos territ6rios, com implica9oes de disputas inter-tribais, de
Catarina e ja encontrou alguns Carij6 catequizados. 0 fato ani- grupos que procuravam fugir a sua aproxima9ao. Politicamente,
mou a instala9ao de uma missao na regiao dos Patos, por parte os paulistas com a prea9ao de indios expandirarn as fronteiras
dos Jesuitas. Contratempos varios demoraram a iniciativa ate da colonia para a Coroa portuguesa, pois segundo Lugon (1969:
1605, quando OS padres J oao Lobato e Jeronimo Rodrigues se 49) ttPara os portugueses, as expe.di~oes dos paulistas eram
localizaram em Laguna. Este autor afirma que w A impressao dos tambem um modo indireto de desgastar o dominio colonial espa•
dois padres com respeito aos indigenas nao foi das melhores, re- nhol, evitando-se uma declara~ao de guerra impossivel enquanto,
tratando-os como indiferentes, pregui~osos, sujos, incestuosos e na metropole as duas coroas estivessem reunidas na mesma ca-
antrop6fagos. Apesar disso, ficaram os padres dois anos na sua be~a espanhola".
missao de catequese cujo ponto central era Laguna, findos os Avaliararn ainda os paulistas todas as possibilidades de
quais concluiram os superiores nao haver possibilidade de con· ser presente na regiao o "el dourado" (1). E na falta dele pre-
tinuarem os missionarios na regiao. Reuniram os sacerdotes, tenderam facilitar o dominio Jusitano na boca do Prata, via in-
entao uns 150 indigenas de ambos os sexos, levando-os para terior de acesso as riquezas do Peru.
serem catequisados nas aldeias do Rio de Janeiro". 0 territorio que nos interessa foi assim conhecido, palrni-
A saida dos padres acentuou ainda mais a agressi vidade lhado. Mas OS Xokleng e Kaingang praticamente nao interessa-
dos vicentistas. Em 1635 os padres Inacio de Siqueira e Fran- ram aos bandeirantes. Eram semi-nomades; viviam dispersos em
cisco de Moraes, que t~ntavam o estabelecimento de nova mis- pequenos grupos; falavam uma lingua diferente, e nao tinham
sao, encontraram em Laguna 62 embarca9oes dedicadas a ca9a maiores traCli9oes de trabalhos agricolas. Os Xokleng e Kain-
ao indio e ao comercio escravagista (2). gang eram Je, OS celebres Tapuias, que desde logo OS portugue-
Entretanto, OS paulistas nao vinham fazer suas incursoes ses viram maiores dificuldades para submeter.
preadoras de indios somente atraves do litoral, utilizando em- Nesse quadro de competi9ao economica e politica, o litoral
barca9oes ·a vela que facilitavam o acesso as aldeias. No inte- de Santa Catarina vai sendo distribuido a gente de Sao Vicente
rior, seguindo rotas aprendidas com os indigenas, os mamelucos
(1) - Rocha Pombo, 1953: 225 afirma: "Mas antes mesmo que entre os
(1) - Tanuay (1936 : 16) diz que em 1609, Hernandarias Saavedra, apre- exploradores desta parte corressem noticias do espantoso sucesso de
sentou relatorio ao rei da Espanha dizendo que "cem mil indios viviam Pizarro na terra dos Incas, ja os companheiros de Solis, e depois Cabo-
nas provincias de Santa Catarina, Bia~a e Rio. Grande". to, preconizam maravilhas nas regioes do Paraguai ~ de outros grandes
(2) -Veja-se Cabral, ob. cit 38. rios do .interior".

+
42 43
 e Vila de Sao Paulo. Assim Manoel Lourens;o, provavelmente tiva9ao em 1736, levou a coroa a tomar varias providencias,
em 1658, se estabeleceu em Sao Francisco, fundando a primeira destacando-se a passagem da Ilha de Santa Catarina, os territ6-
povoa9ao estavel de Santa Catarina. Depois, segundo Cabral + rios vizinhos e o Rio Grande para a jurisdi9ao do Gaverno do
(1970: 41) "Em 1678, o paulista (Francisco Dias Velho·SCS) Rio de Janeiro (provisao de 11-8-1738). Em seguida, foi nomeado
requereu ao Governador da Capitania duas leguas em quadro de governador o Brigadeiro Silva Paes, que recebeu instru9oes pa-
terras na ilha de Santa Catarina, onde ja tinha a igreja de Nossa ra fortificar a ilha e criar condi9oes para o estabelecimento de
Senhora do Desterro ( ••• ). a9orianos. Esses, por determina9ao real, come9aram a migrar em
E, em 1696, Domingos de Brito Peixoto, deu inicio a cons- 1748. 0 literal de Santa Catarina e do Rio Grande foi assim
tru9ao da igreja na povoa9ao que fundara sob o nome de Santo definitivamente povoado.
Antonio dos Anjos (Laguna). As povoa9oes que se estabeleceram no literal de Santa
Esses povoadores faziam suas empresas com base em seus Catarina e Rio Grande estavam voltadas para a Metropole, onde
recurses particulares, apenas incentivados pelas auloridades da varies fatores decidiam sobre o seu dia a dia. Essas povoa9oes
Colonia e pela Coroa. Essa, entretanto, era bastante cautelosa desenvolveram apenas economias de subsistencia.) Nao havia
ao estimular e patrocinar iniciativas de desbravamento e povoa- vincula9ao maior com a economia europeia, a nao ser pelos su-
mento no sul. Usava, especialmente, a fidelidade de certos su- primentos que se faziam as embarca9oes que por aqui transita-
ditos e tambem seus anseios a titulos de nobreza e outras hon- vam. No caso de existencia de excedentes, atendia-se apenas
rarias, para leva-los as aventuras de conquista. A coroa nao aos centres consumidores da propria colonia. O que importava,
pretendia inverter recurses de seu tesouro na conquista do sul. para a Metropole, era assegurar bases militares, estrategicamen-
Dai porque ao morrerem os fundadores, as povoa9oes de Sao te instaladas, para manter seus planes de dominio no sul. A
Francisco, Desterro e Laguna, ficaram em completo abandono. Ilha de Santa Catarina, sob todos os aspectos, foi eleita como
Alguns miseraveis continuaram a residir nesses locais explo- a principal base militar dos portugueses e por isso· ela se tor-
rando os fartos recurses da natureza. Nao tinham, entretanto, nou, em certo memento, o trampolim da conquista.
maior expressao economica OU politica. Era apenas gente que Ao mesmo tempo que a coroa portuguesa constroi fortalezas
sobrevivia. no li toral para defender seus projetos de expansao, a mudan9a
0 seculo XVIII vai dar a Coroa portuguesa novos motivos do eixo economico da colonia para a regiao de Minas Gerais,
para empre~nder a conquista do sul. Narra Cabral (1970: 45): ~em provocar uma nova it: vestida em nossa area de interesse.
"Foi em 1714, que o Governador D. Francisco Tavora elevou E que o gado tomou novo valor e os paulistas logo trataram de
Laguna a categoria de Vila e, no ano seguinte, conseguiu fazer acorrer as terras do Rio Grande, onde enormes manadas viviam
regressar a ela um de seus co-fundadores; Francisco de Brito + a solta, a espera de quern as aprisionasse. Em 1728, Franeisco
Peixoto, que entao se encontrava retirado em Santos. de Souza Faria abriu um caminho para· o planalto, subindo o rio
0 objetivo destas providencias era a conquista do Rio Gran- Ararangua, vizinho aos Conventos, atingindo Lages e dai Curiti-
de, o continente ja palmilhado pelo bandeirante vicentista e do ba e Sorocaba. Pelo. novo caminho, o gado do Rio Grande deixa-
qual eram grandes entusiastas os lagunenses". va de ser embarcado em Laguna, seguindo diretamente atraves
Desde 1680 a Metropole portuguesa se esfor9ava efetiva- dos campos do planalto. Os campos de Lages, Curitibanos, Cu-
mente para dominar o acesso ao. Prata. A Colonia de Sacramen- ritiba e Guarapuava foram povoados em fun9ao dessa nova ati-
to, apoiada no forte Jesus-Maria-Jose, na saida natural da Lagoa
dos Patos, e nas vilas de Laguna e Desterro, representava o
a
vidade economica e o proprio Rio Grande foi integrado econo-
mia da colonia (1). Os objetivos expansionistas da Metr6pole
esfor90 portugues epi subtrair aos espanhois uma area estrate- e OS interesses economicos ligados a prea9ao de gado no Rio
gica para penetrar no cora9ao da America do Sul; a bacia do Pra- Grande tornam-se coincidentes. Cardoso e Ianni (1960: 3) dizem
ta. E para realmente ativar a economia das povoa9oes litoraneas que "a partir de dado momento, pelo menos ( ••• ) os fortins de-
de suporte, alem de garantir o aumento da escassa popula9ao, a fendem as pradarias que eram o celeiro do gado, e o apresador
coroa come9a a cogitar das possibilidades em trazer a9orianos
para a Ilha de Santa Catarina, o litoral fronteiro e Rio Grande.
A amea9a dos espanhois em conquistar Sacramento, e a sua efe- (1) - Furtado, (1959: 94)

44 45
assegura, com a sua presens:a, a posse da terra disputada". no ramo e assim criaram toda uma rede de interesses, expecta-
0 "caminho do gado" ou "caminho de tropas", pouco a pou- tivas e normas de conduta. Os ervateiros em regra eram recruta-
co, foi sendo habitado. Pontos de descanso, se transformaram dos entre peoes e agregados de fazendas, que tentavam ganhar
em sedes de fazendas e povoados. Os ricos campos do planalto, a vida fora das terras do fazendeiro. Bacila (1946: J 7) assim
a
onde tambem muito gado solta havia, foram sendo ocupados pe- ' descreve: "Avan~ando para o oeste ou para o sul, onde encontra-
los criadores. O Governo de Sao Paulo, numa atitude que vinha vam erva de ser, ali, na densa floresta bruta, acampavam com a
coincidir com a politica expansionista, determinou a funda<;ao familia debaixo das arvores. Depois formavam o rancho e entra-
de tima vila no local mais estrategico dessa nova rota. Correia vam a limpar o mato bruto e barbaro, transformando o erval em
Pinto, encarregado da missao, depois de chegar a regiao em no- ser em erval frondoso e produtivo. Toda a familia trabalhava
vembro de 1766, realizou o ato de fundac;ao da vila de Nossa nos duros meses de inverno na produ~ao do mate".
Senhora dos Prazeres de Lages, em 22 de maio de 1771. Ramos O mate foi assim um escape para os individuos que nao
(1944: 13) informa que: «o povoamento dos Campos de Lages foi tinham condic;oes de se iniciar na criac;ao de gado ou que n'ao
devido a ansia de furar 0 sertao bravio, para atingir l;lS Campinas tinham voca<;ao ou oportunidade para exercer o . mister. A extra-
do Rio Grande do Sul, rica de gados de tod.as as especies, o que <;ao da erva-mate, entretanto, se desenvolveu a sombra da ativi-
despertava nos paulistas e mineiros a ambis:ao de estabelecer dade pastoril e somente quando se verifica a impossibilidade da
intenso Comercio com OS estancieiros gauchos, pelo interior, economia criatoria absorver toda a mao-de-obra disponivel na
encurtando as distancias e aproveitando os campos nativos para regiao, e que OS ervateiros aparecem Como categoria economica.
descanso e invernada das tropas". lsto somente ocorre no seculo XIX, quando os campos do pla-
Em decorrencia da localizac;ao de paulistas ao longo do nalto es tao di vi di dos e ocupados por fazendas de criac;ao e as
"caminho de tropas", aprovei tando os campos naturais para o atividades em rotina ja nao absorvem a mao-de-obra existente.
estabelecimento de fazendas de criac;ao, outras riquezas natu- A criac;ao de gado, indiscutivelmente, foi assim responsavel
rais de area come9aram a ser exploradas, especialmente a er• pelo povoamento dos campos do planalto, na regiao sul.
va-mate. De inicio a explo·rac;ao da erva-mate mal tern significa- Nao se deve imaginar que a presenc;a de criadores e erva-
do economico. Depois, o habito de beber o mate se difundet dan- teiros no planalto, e de portugueses, vicentinos e ac;orianos no
do oportunidade de ganho aos muitos individuos que viviam litoral, seja garantia da ocupac;ao e explorac;ao de todas as ter-
destituidos de cabedais no sertao. Queiroz (1966: 24) comenta ras existentes na regiao. A populac;ao do planalto por todo o
que "Ao se espalharem as fazendas de gado ao longo e para fo- seculo XVIII foi extremamente escassa. 0 litoral, por sua vez,
ra da estrada de Tropas, a erva comes:ou a ser colhida nas matas somente era povoado junto ao mar. Em 1774, o litoral de Santa
vizinhas e preparada mais para atender as necessidades locais Catarina contava com 9.058 habitantes, enquanto Lages, em
do que para a venda. Os fazendeiros permitiam aos agregados e 1777 possuia 662 moradores. Em 1794, a populac;ao de Lages
peoes prover-se com a planta por acaso encontrada dentro da subira para 825 habitantes, enquanto o litoral, dois anos depois
SUa propriedade OU nas vizinhan~aS, a qual nao atribuiam maior contava com 23.856 pessoas (1). Toda a area localizada entre o
valor". litoral e o planalto de Paranagua a Torres estava desabitada. A
0 uso da erva-mate havia sido aprendido aos Guarani. No floresta subtropical tomava lugar aos campos, desinteressando
Paraguai, Argentina e Uruguai OS brancos logo se habituaram a os criadores e os pequenos agricultores do litoral, habituados a
bebida. No Brasil, pouco if pouco o consumo vai se afirmando, complementar a atividade agricola com a pesca.
difundido pelos indios-escravos e pelos paulistas interessados Em tres seculos, atividades economicas e interesses poli-
no comercio de gado. No inicio do seculo XIX, o mate aparecia ticos foram responsaveis pela conquista e povoamento do extre-
como outro ramo de negocio (1). mo sul da colonia. 0 povoamento se deu, essencialmente, se-
Os extratores de erva-mate acabararn por se especializar guindo a linha da costa e o "caminho de tropas" que se abriu,
-ligando as campinas do Rio Grande a Sorocaba. No litoral, Pa-
(1) - Ayres de Casal (1943: 1161), citado por Queiroz (1966: 24) re_fere- ranagua, Sao Francisco, Desterro, Laguna e Rio Grande 'foram
se em 1817, ao sul do Brasil, indicando a possibilidade da extra~ao da
erva-mate c;;e tornar uma nova fonte de riqueza. (1) - Cabral, (1960: 87) .

46 47
 os polos estrategic·o s em que se apoiou a politica expansionista No sul do Brasil, uma enorme regiao se encontrava inteira-
da Metr6pole e, assim, as correntes de povoamento. No interior, mente d~sp.ovoada: a area que ...entre 0 litoral e 0 planalto seguia
seguindo a estrada de tropas, Vacaria, Lages e Curitiba foram das prox1m1dades de Paranagua e se avizinhava de Porto Alegre.
as povoa9oes que logo se formaram em decorrencia da ati vidade E, para oeste, nesta mesma regiao, o que nao era campo se
pastoril. 0 branco, nessa altura, havia conquistado a terra, em- encont!ava pratica~en~e desocupado. Pensava-se em progr~sso
bora di versos bolsoes permanecessem li vres de seu dominio, e por ;sto a colon1za9ao localizada, conforme Prado Jr. (1959:
dando abrigo a grupos indigenas nomades, com expressao nume- 193), looge da a~ao perturbadora e ab~orvente da graode lavou-
rica rel a ti vamente reduzida. ra .<•.. ) encontrara ai o _interess~ e o estimulo dos governos lo-

5. A COLONIZA<;AO - ca1s ( ..• ) que procurarao soluc1onar o problema de seus terri-

t6rios quase desertos ( .•. )".
No primeiro quartel do seculo XIX, o Brasil come9a a viver Ao mesmo tempo que a coloniza9ao come9a a interessar aos
uma seria crise economica. A riqueza das minas estava a es- ~over?os pr?~inciais, a partir dos estimulos dados pelo governo
cassear e o ac;:ucar do nordeste encontrava competidores nos i~penal, vanas companhias europeias procuram obter conces-
maiores centros de consumo europeu. As alterac;:oes politicas soe~ de terras e outros contratos para proceder a coloniza9ao
resultantes da transferencia da Familia Real e a pr6pria inde- de areas em todo o sul. Essas companhias haviam descoberto
pendencia do Pais, pouco vieram alterar o quadro economico. uma nova fonte de renda. Envolvidas em regra em neg6cios de
Alem disso, a revolm;ao industrial que se processava na Europa transporte de ~a.terias prim~s, era-lhes conveniente encontrar
determinou a criac;:ao de mecanismos de compulsao para que os uma forma de ut1hzar a capac1dade de carga ociosa das embarca-
paises produtores de materias primas cessassem a utiliza9ao da 90es nas viagens entre a Europa e a America, ja que os produtos
mao de obra escrava. 0 sistema produtivo do Brasil, pela metade manufaturados e importados pelas· popula9oes americanas eram
do seculo, ficou assim impedido de continuar a utilizar a fonte de volume bastante reduzido perante a cubagem das exporta9oes.
africana de fornecimento de mao de obra. Este fato havia levado para a America do Norte uma continua
Desde o inicio do seculo, o Brasil tentava imitar o exemplo corrente de imigrantes, e, agora, come9ava a se fazer presente
americano de imigrac;:ao, atraindo europeus para desenvolver a ~a. Ame~ica ~o Sul. ]a dissemos, (1970: 22), que: "Na Europa a
1m1gra~ao fo1 est.abelecida e explorada em termos de empresa,
economia agricola estagnada. Na periferia do Rio de ] aneiro, no
por grupos organ1zados que obtinham concessoes territoriais e
nordeste e no Rio Grande do Sul se iniciaram OS primeiros nu-
responsabilizavam-se pelo transporte e fixa~ao dos colonos na
cleos coloniais, com amplo amparo do governo (1). A imigra9ao,
g~e?~· Nacuralmente ess~s empresas criaram mecanismos publi·
entretanto, estava intimamente ligada a,o s destinos da economia
cafeeira que entao come9ava a se afirmar ·e , por isso mesmo, CltaflOS capazes de atra1r OS Contigentes humanOS necessarios
a atender a seus objetivos de lucro e aos compromissos assu·
ela chega ao seu at:.ge no ultimo quarto do seculo. Nesse aspec-
midos nos acordos firmados com o governo brasileiro. A disputa
to, a imigra9ao aparece como soluc;:ao para o problema da escas-
sez de mao de obra na gra'n de lavoura. Mas o Brasil pretendeu entre as varias empresas interessadas ( .•. ) originou diversos
_ tambem, atraves da imi.grac;:ao, resolver problemas de ocupa9ao problemas, os quai~ encontravam maior ou menor repercussao de
; '. de varias regioes desabitadas, que em forma de bolsoes isola- acordo com a participa~ao efetiva ou oao daquelas organiza~oes
vam areas de interesse e importancia para a jovem Na<;ao. Acre- nas cupulas adniinistracivas do pais (1).''
ditava-se ainda, segundo Furtado (1964: 149), "na superioridade Deve-se aduzir ainda que a Europa estava a vi ver amplas
transforma9oes s6cio-economicas em decorrencia da revolu<;ao
inata do trabalhador europett, particularmente daqueles cuja
industrial. As economias europeias se tecnificavam e se mecani-
"ra~a" era distinta da dos europeus que haviam colonizado o
, ,,
pats •

(1) - Furtado, 1959: 150 e Jamunda, 1966: 15. (1) - Veja-se Ficker, 1965; 86/87.

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- 49
zavam, provocando a desagrega9ao do pre-capitalismo. A urba- terras catarinenses situadas a dez quilometros da costa eram
niza9ao se intensificou. Esbo9ou-se uma conscienci a critica do designa das como sertoes incultos e que mesmo nos vales do
sistema que tomava folego. Valorizaram-se as possibilidades ltajai e do Tubarao, poucas eram as concessoes que se ha viam
de migrar para uma no va terra. Vislumbra ram-se ideias de cria- feito(l ) .
9ao de novas sociedades. Tudo isto foi aproveitado pelas empre- Em 1848, Herman n Blumenau apresentou ao governo pro vin-
sas para at ra ir imigrantes para a America . c i a l pedido para colonizar uma area no vale do Itaj ai. A conces-
No s ul do Pais, no Rio Grande, o governo impe ri al iniciou sao demorou, e, ocorrendo outros contratempos, somente em
a primeira colonia, em 1824. Formada com imigrantes al emaes, 1850 Blumenau inicia o empreendimento, com as dificuldades
a colonia de Sao Leopoldo, localizada nas proximidades de decorrentes das criticas que na Alemanha se fazia ao Bras il, de-
P orto Alegre, s e situava no extreme meridional da a rea que es- vi do a falta de amparo aos imigrantes (2). No ano seguinte,
t amos a estudar. Logo em seguida surgem Tres Forquinhas e S. chegavam as terras da colonia D. Francisca (J oinville) OS pri-
P edro de Alcantara das Torres. 0 fluxo de imigrantes torna-se meiros imigrantes. A colonia pretendia explorar as terras doadas
cada vez maior, ocupando todo o noroeste do Rio Grande. Em a D. Fra nc isca Carolina, ao casar com o Principe de Joinville,
Santa Catarina, a chegada inicial de imi grantes ocorreu em e tinha como suporte a Sociedade Hamburguesa de Coloniza9ao
1828. No ano seguinte, sob o patrocinio financeiro do governo (3).-
imperi al, esses colonos se localizaram em Sao P e dro de Alcan- A partir <less es dois nucleos coloniais, su rgiram pelo Itajai
tara, em nucleo formado sobre a estrada que ligava Florianopo- acim a e por todo o rio Cachoeira, em di re9ao as cabeceiras do
lis a L ages. A esta iniciativa, outras se sucederam. 0 governo Negro, novas colonias (4). 0 governo provincial estimulava es-
provincial realizou algumas concessoes de terras e o proprio sas inic iativas di stribuindo novas concessoes e abrindo estra-
govern o imperial COntinUOU a envi ar imigra ntes para OS nucleos das , pois, estava propenso a povoar rapidamente o enorme bol-
instal ados. Imposi9oes legais di versas, inadequada localiza9ao sao, coberto de floresta virgem, existente entre 0 litoral e 0
e , especialmente, falta de sentido economico, levaram quase to- planalto.
dos OS nucleos a estagna9ao. Os colonos, em muitos casos vi- No sul, no vale do Tubarao, o governo provincial diretamen-
ram-se for9ados a abandonar OS nucleos em busca de condi9oes te inicia OS nucleos coloniais, localizando italianos a partir de
de sob revi vencia ma is adequadas. 1877. Ja dissemos (1970 : 23) que: "A coloni zas:ao dos vales
Entre as concessoes feitas a empresas particulares, des- litoraneos de Santa Catarina, ( ... ) sucedeu-se nos cermos de
tacou-se a realizada a firma Demaria e Schutel, nas margens do frente pione ira. Tendo sua fundamenta<;ao economica na pequena
rio Tijucas, em 1836. Ali foram localizados 180 colonos sardos propriedade agricola, ela se constituiu abase de massas huma-
que se viram abandonados pela empresa. Um a outra concessao nas ponderaveis que migraram da Europa, particularmente da
s ituava-se. em Sao Francisco, onde Bento Julio de Mure ·preten- Alemanha e da Italia. ( ... ) essa frente quase que simultanea-
deu, em 1842, localizar colonos francese s em regime socialista mente penetrou no norte do Rio Grande e tambem nos campds de
(1). As du as experiencias frustradas, ate certo ponto, revel am a Curitiba ( ... )".
Europa da epoca em seus interesses e contradi9oes. Na re a lidade, a imigra9ao baseava-se em dois sis temas de
As grand es concessoes de terras e as inic i ati vas mais im- fixa9ao do imigrante. 0 primeiro deles , a dotado nas colonias do
portan tes de coloniza<;:ao somente foram toma das mais tarde. Os
estabelec imentos mais representatives dessas inicia tivas, Blu-
( 1) - Van Lede, 1843: 341.
menau e Joinville, surgiram em 1850 e 1851, respectivamente.
(2) - Em 1859 o governo da Prussia proibiu a imigra9ao para o Brasil
Antes, na decada anterior, se procederam a reconhecimentos, (Furtado, 1964: 150)
medi9oes, estudos e acordos junto aos territorios e as adminis- (3) - Cabral, 1970: 228 .
tra9oes provinciais. Um <lesses levantamentos apontava que as (4 ) - Antes de 1850, haviam se instalado OS seguintes nucleos colo-
niais: Ericeira, em 1818; Sao Pedro de Alcantara , em 1828; Itaj a hy , em
1836; D . Affonso (Nova Italia), em 1836; Varzea Grande, 1837; Sahy,
1842; P iedade, em 1847; Sta. Izabel, 1847; (D' Almeida Coelho, 1877:
( 1) - Cabral , 1970: 209/ 210 e Boiteux , 1944: 47 / 90. 86 e seguintes) .
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sul, baseava-se na pequena propriedade que o colono adquiria e, quic;a, a indtistria. E a partir da fixac;ao dos primeiros imi-
logo ao chegar, atraves da compra de um lote de terra. 0 segun- grantes nas "sedes", vivendo de outras atividades que nao a
do, vinculava-se a grande lavoura. Tinha por base o regime de explorac;ao da terra, as colonias iniciavam uma primeira divisao:
parceria e nele 0 colono, em regra, se via amerce do fazendei- a do mundo urbano e a do mundo rural.
ro, proprietario da t~rra (1). 0 primeiro sistema corria pratica- N as principais colonias ·que en tao se instalaram no sul do
mente por conta dos governos provinciais, pois a grande lavoura Brasil, jun to aos seus "nucleos urbanos", os imigrantes hem
tinha seus interesses diretamente defendidos junta ao governo sucedidos foram se localizando, ao mesmo tempo que ampliavam
imperial. E como a propriedade da terra era um apelo convincen- seus dominios economicos. Uma florescente camada logo se
te, as empresas particulares vao se esforc;ar ao maxima para afirmou, estreitando relac;oes com os paises de origem e defen-
obter concessoes junto aos governos provinciais e assim efeti- dendo seus interesses junta as diversas colonias e perante OS
varem loteamentos destinados a ser vendidos aos imigrantes. governos do Brasil. Em pouco tempo, partindo da identidade
0 acesso a America e a propriedade da terra eram facilita- etnica OU da identidade de interesses, essas lideran9as conta-
dos de todas as maneiras na Europa, pois nada mais conveniente vam inclusive com jornais para validar suas opinioes e reafirmar
as empresas do que obter uma concessao territorial e, com al- seus objetivos.
gumas poucas benfeitorias, dividi-la em lotes. Esses eram ven- Um outro lugar, onde a colonizac;ao tambem se fez presente
didos aos imigrantes que, em regra, recebiam apoio da colonia foi o planalto vizinho aos campos de Curitiba, nas proximidades
no primeiro ano de atividade. 0 sistema que se adotava pratica- do Rio Negro. Em 1829, alguns colonos alemaes, por determina-
mente exigia a presenc;a da familia elementar. Era esta que iria c;ao imperial, foram localizados nas margens do Rio Negro, em
explorar a terra e, por isso mesmo, o sistema adquiria uma di- localidade que tomou este nome. Depois, particularmente polo-
namica de modo a ,continuamente exigir 0 desbravamento de no- neses, foram sendo distribuidos em colonias que se avizinham
vas areas, OU seja, 0 surgimento de OOVOS nucleos Coloniais, da atual rodovia que liga Curitiba a Porto Alegre, atraves dos
para abrigar as familias formadas em cada gerac;ao. Ocorria as- campos de Lages. 0 roteiro dessa estrada e quase o mesmo da
sim, (a) a formac;ao da familia e o desbravamento de um lote; (b) antiga "estrada de tropas". Essas iniciati vas de coloniza9ao,
criac;ao dos filhos e auge economico quando esses atingissem entretanto, estiveram sempre dependentes do Governo de Sao
a idade produtiva; (c) casamento dos filhos e reinicio do ciclo. Paulo, e, depois de 1853, quando foi criada a Provincia do Pa-
As empresas de colonizac;ao, preocupadas com a explorac;ao rana, do Governo de Curitiba. Isto porque toda a regiao do alto
da pequena propriedade, realizavam seus projetos adaptando-os Rio Negro integrava o antigo territ6rio do r,ontestado, sobre o
a topografia e as vias de acesso. Os lotes se distribu1am assim qual o Parana pretendia ter jurisdic;ao.
ao longo de rios e corregos subindo as encostas, de tal modo A simultaneidade dessas varias iniciativas, justificadas
que 0 nucleo "urbano" do empreendimento ficasse situado ao pela necessidade de progresso para as provincias do sul, tinham
centro da area. Esse nucleo era sobremaneira importante. Ai se como significado o exterminio da populac;ao indigena que nessa
localizavam os barracoes da empresa, destinados a abrigar os area estava a viver: OS Xokleng.
colonos que chegavam a armazenar alimentos e a alojar a admi-
nistrac;ao ..
A experiencia logo demonstrou que as empresas nao pode-
riam somente atrair colonos para o amanho 'a terra. Era necessa-
rio que qualquer colonia contasse em seu nucleo com colonos-
operarios, colonos-comerciantes e colonos-artifices para fazer
frente as muitas necessidades praticas. Assim, OS nticleos das
colonias passam a ser projetados como futuros nucleos urbanos,
agregadores das atividades ligadas ao comercio, aos servic;os

(1) - Guimaraes, 1968: 139.

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 Ill - A HISTORIA DO EXTERMfNIO genas logo tomavam o dominio publico e tudo indica que os ha-
bitantes das povoac;oes litoraneas tinham conhecimento da pre-
1. A COLONIZA~AO DO TERRITORIO E OS INDIOS senc;a dos Xokleng, nas florestas que cobriam toda a 'faixa ·de
Desde a abertura da "estrada .de tropas", atraves dos cam- terras existente entre o litoral e o planalto. Os dirigentes das
pos de Lages, no seculo XVIII, a presenc;a dos Xokleng e Kain- povoac;oes e o proprio governo instalado na Ilha de Santa Cata-
gang nos campos, e nas florestas que cobriam as serras era rina vez ou outra eram levados a considerar a presen<;a dos
confi:mada pelos ataques que faziam aos tropeiros. A fund~c;ao silvicolas. Saint-Hilaire (1936: 116), na obra em que narra sua
via gem a Santa Catarina, em 1820, afirma que: "indios selvagens
da Vila de Nossa Senhora dos Prazeres de Lajes, por ordem do
Morgado de Mateus, governador de Sao Paulo, tinha como objeti- constantemente descem do interior e vem praticar desatinos
vo, entre outros, afugentar os indios da regiao. Segundo Ramos ( .•• ). Pouco antes de minha viagem (de S.Francisco para It~­
(1944: 31), Correia Pinto em manifesto, afirma: "Que em obser- pocoroi - SCS), elles haviam estrangulado dois rapazes num
vancia da·s Reaes Ordens de S.Mag~ que D~ G; chegou no anno sitio afastado, e, sendo perseguidos, foi morto um, que tinha o
de 1765 o Exmo? Sr. Gal. D. Luiz Antonio de Souza, arrestabe- labio inferior furado".
leser o governo desta Capitania, e querendo examinar a exten- Entretanto, como somente uma estreita faixa do litoral es-
a
sao dos seus limites mandou vir sua prezens:a OS mais praticos tava sendo ocupada pelos brancos, alem dos campos do planal-
to, as incursoes dos Xokleng sobre as propriedades e seus habi-
homens dos Sertoens e informado da gr?e campanha q.' medea
de Coritiba ate o Continente de Viamao, na distancia de 150 tantes civilizados eram relativamente raras. Havia um territorio
legoas despovoadas, logo rezolveo o d. S!' mandar levantar hiia imenso para percorrer e somente em algumas ocasioes eles se
Povoas:ao no lugar mais conveniente p.a fazer testa as mis:oens atreviam a atacar. ·
expanhoes e afugentar a imensidade de Indios q.' habitao na- Mesmo assim, nos primeiros cinqlienta anos do seculo XIX
quelas campanhas, p~ nao infestarem a extrada geral por onde a presenc;a indigena no bolsao, formado pelas terras localizadas
. -
se tranzitao m. tos
. mi·1h ares d e cavalgaduras e gados cada anno entre o litoral e o planalto, foi minimizada. Os indios vez ou
( ... )~. outra davam sinal de sua presen<;a, mas nao chegavam a preocu-
A presenc;a indigena nos campos de Lages e Guarapuava, par os responsaveis pela seguranc;a das povoac;oes e seus habi-
levou o Governo de D. Joao VI a expedir a Carta Regia de 5/ 11/ tantes. Falava-se em indios-viajantes que vindos do mais lon-
1808, determinando guerra aos indigenas. A Carta entre outros giqiio sertao davam sinal de sua presen<;a e logo retornavam. E
topicos dizia que "ao oeste da estrada real, desde a Villa da para se evitar essas incomodas incursoes, especialmente as que
Faxina ate a Villa de Lages, a maior- parte das fazendas, que colocavam· em inseguranc;a os caminhos do sertao, procurou-se
estao na dita estrada, se vao despovoando, umas por terem os estabelecer povoa<;oes ao longo dessas rotas. Imaginava..se que
indios Bugres morto os seus moradores, e outras com o temor a vista dos aglomerados 0 indigena tratasse de tomar distancia.
que sejam igualmente victimas e que ate a mesma estrada chega Nesse raciocinio, a primeira colonia localizada em Santa Cata-
a nao ser vadeavel, senao para viajores que vao reunidos em rina situou-se na estrada que ligava Desterro a Vila de Lages.
grande numero e bem armados ( •.. ); sendo-me tambem igualmen- A minimiza<;ao da presenc;a indigena, no territorio que a
u: pr.esentes os louvaveis fructos que tern resultado das provi- partir do primeiro quarto do seculo pas sado come9ou a ser cogi-
tado para abrigar imigrantes europeus, foi desenvolvida tambem
denc1as dadas contra os Botocudos, e fazendo-me cada dia mais
evidente que nao ha meio algum de civilizar povos barbaros pelos muitos prepostos de companhias de coloniza9ao, que aqui
senao ligando-os a uma escola severa ( ... ); ( •.. ) desde 0 mo~ estiveram estudando as condic;oes da terra, da gente e do gover-
mento em que receberdes esta minha Carta Regia, deveis consi· no para o estabelecimento de colonias. Segundo Boiteux (1944:
derar como principiada a guerra contra estes barbaros Indios 57), em 1841, o Dr. Mure, frances interessado em instalar uma
( ... )" ( 1). colonia socialista em Sao Francisco do Sul, dirigia-se a um jor-
As noticias referentes as incursoes realizadas pelos indi- nal do Rio de ] aneiro, dizendo: "( .•. ) Uma linha militar de de-
fesa contra os selvagens foi aberta como por encantamento a
( 1) Cf: Araujo , 1836, 20/ 21, vol I. oeste do seu municipio em cumprimento de oito ou nove leguas,

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 e os indios que ainda inspiravam alguns rece1os, apressados, Ao racioc1n10 simplorio dos dirigentes locais vinham se so-
passaram a que lhes era tras;ada". mar interesses politicos e economicos. Entre 1824, quando se
- ~
~O aborigen: desenterro~, os ossos de seus pais e os levou instalou Sao Leopoldo, no Rio Grande, e 1859, quando foi. proibi-
cons1go, para nao voltar mats a essa terra que lhe arrans:a a da pelo governo prussiano a emigra9ao para o Brasil, travou-se
civilizas:ao e a harmonia vai encantar" ( ... ). aqui e na Europa uma luta surda, mas constante, sobre interes-
Em 1844, chegava a Santa Catarina Leonce Aube. Como ses economicos do pais e de companhias de coloniza9ao; sabre
procurador do principe de ] oinville, vinha escolher e tomar pos- tipos de coloniza9ao; sobre formas de tratamento dispensadas
se das 25 leguas quadradas que o principe, ao· casar com a irma aos imigrantes. E todos queriam tirar vantagens da situa9ao. 0
de D. Pedro II, recebera como dote (1). Ao terminar sua missao .pais queria progresso, vencendo a estagna9ao em que se encon-
Aube fundou em Hamburgo a Sociedade Colonizadora Hamburgue: trava a sua economia; as provincias desejavam aumentar sua
sa para dar andamento a explora9ao das terras que escolhera pa- produ9ao de riquezas; fazendeiros queriam mao-de-obra; empre-
ra o Principe, nas vizinhan9as da ilha de Sao Francisco, terri- sarios europeus pretendiam ocupar a capacidade de carga ociosa
torio marginal ao rio Cachoeira. De suas andan9as, Aube elabo- de seus barcos, no torna-viagem Europa-America; companhias de
rou um diario que originou trabalho sobre Santa Catarina (2). colonizac;ao pretendiam obter concess0es territoriais para, em
Nesse trabalho, rico de detalhes sobre todo o territorio e mesmo parcelas, vendE!-las aOS imigrantes; OS imigrantes, por ultimo,
sobre as popula9oes indigenas encontradas a
epoca do desco- procuravam oportunidades para veneer. Nesse quadro de expecta-
brimento, ha apenas a seguinte referencia sobre os Xokleng e tivas ninguem se preocupou com a presen9a indigena. E se al-
Kaingang (1943: 97): Os selvagens de Santa Catarina hoje co-
nhecidos por Indios Bugres, pertencem a ras:a Tupi que outrora
dominava toda a costa brasileira. Esses Indios acham-se loca-
• guem ti vesse tido preocupa9oes mais serias a respeito, nao fal-
taria quern dissesse que estava prejudicando a imagem do pais
na Europa, pois na epoca OS imigrantes eram disputados pelos
lizados principalmente na Serra Geral e e dali que eles descem escrit6rios de dezenas de companhias de coloniza9ao, que
esporadicamente para atacar e saquear as povoas:oes litora- tinham interesses em todo o continente americano. Falar que
neas ". indios estavam presentes em certos territorios era aniquilar com
0 Governo e as autoridades provinciais sabiam da existen- qualquer projeto de coloniza9ao.
cia dos silvicolas no sertao. Sabiam que vez ou outra os indige- Por isto mesmo, Leonce Aube (ob cit: 92/93) pin ta as terras
nas demonstravam sua for9a e astucia, trucidando uma tropa, da colonia que estava a organizar, com a seguinte imagem:
algum viajante ou algum morador da orla da floresta. Mas nao (... r'E a floresta virgem, com a vida exuberante que ela encerra
se preocupavam. Raciocinavam que o Indio se afastaria pacifica- e parece ocultar-se no silencio que a envolve durante o_ dia, e
mente na medida que os brancos estabelecessem vilas, casas e s6 quebrado, noite dentro, pelos gritos e movimentos dos h6spe-
ro9as no sertao. Ao ser emitido parecer pela Comissao de Colo- · des que ali se acolhem; e a floresta magnificente que, as vezes,
niza9ao da Assembleia ao projeto apresentado pelo Doutor Her- oculta 0 ceu e a terra a vista de quern lhe penetra OS umbrais e
mann Blumenau, em 1848, diz-se textualmente, conforme J amun- parece fechar·se sobre si mesma, como um tumulo ( •.• )
da; 1966: 98: "entende a Comissao que alem do augmento da po- ( ... ) A noite, porem, aproxima-se e e demasiadamente tarde
pulas:ao, acquisis:ao esta de bastante interesse vital, pois que a para regressarmos; tratemos, pois de obter um abrigo. E e a flo-
escravatura, que sensivelmente diminue tera hum dia de extin-
guir-se1 e muitas outras vantagens se offerece, taes como a afu- + resta que nos ira foroece-lo ( ..• ) Terminada a casa ( ... ) devere-
mos pensar na ceia que consistira das provisoes de que nos mu-
gentas:ao do gentio ( ... ). nimos, e, talvez, tambem de alguma ca~a apanhada durante o
dia; depois, ajudados pela fadiga, dormiremos ( ... ).
(1) Aube, 1943. Traduc;ao e notas de Carlos da Costa Pereira. E em face dessa natureza que o homem solitario podera re-
(2) Na verdade, Leonce Aube escreveu mais de um trabalho sobre Santa conhecer sua fraqueza e sua inferioridade; mas, ao mesmo tempo,
Catarina. Primeiro ele publicou Notice Sur La Province De Sainte- podera compenetrar-se da fors:a que lhe deu a inteligencia. De
Catherine em Les Annales Maritimes, v. III, ano 1847. Depois, resolveu
ampliar o trabalho inicial, editando no Rio de Janeiro, em 1861, La fato, alguns meses lhe bastarao para doma-la na sua rebeldia e
Province de Sainte-Catherine et La Colonisation Au Bresil. Ao segundo fazer desaparecer todos os obstaculos que se lhe antepuserem;
trabalho e que nos referimos acima. . estradas largas apagarao os tra~os do carreiro quase intransita-

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'
-
vel; campos ferteis e ridentes tomarao lugar da flores~a, e habi- do Brasil, esse quadro e bastante flagran te. Segundo Perdigao
tas:oes elegantes levantar-se·ao onde o viajante numa hora cons- Malheiros (1944: 180/ 181), entre 1850 e 1867, 26 nucleos colo-
tru1ra . "•
. a casa para uma no1te niais foram instalados, sendo 4 no Parana; 8 em Santa Catarina
·Havia preocupa.yao em se convencer ao europeu, imigrante e 14 no Rio Grande do Sul.
em potencial, que este ou aquele lugar era mais conveniente pa- Compreende--se, assim, que somente a partir de 1850 a colo-
ra se escolher. Havia que se criar imagens propicias a decisao niza9ao come9a, em defini ti vo, a conquista do territ6rio ocupado
da escolha. Surgem assim relatos, folhetins de propaganda, arti- pelos Xokleng. As suas andan9as em busca de alimentos ha mui-
gos em jornais e livros, elaborados por agentes interessados de to estavam sendo limitadas. Nao percorriam mais livremente o
um modo ou outro na coloniza9ao. Um <lesses livros, editado em. planalto, porque ali o criador de gado havia dominado os cam-
Leipzig em 1863 (1), tra.ya um perfil de cada nucleo colonial pos. No sul, nas terras baixas que seguiam a borda do pl anal to,
alemao existente no Brasil, alem de detalhar sobre aspectos · o imigrante tambem ja era presente, como tambem ao norte, nas
economicos do Pais e das principais facilidades e dificuldades margens do rio Negro e vizinhanc;as dos campos de Curitiba. Mas
encontradas pelo imigrante. Sohre a existencia de indigenas nos ainda havia muita terra e floresta para percorrer, em todo o terri-
territorios que estavam sendo colonizados, diz Hoermeyer (1966: tc5rio do atual Estado de Santa Catarina, e so em raras oportuni-
33/34), seu autor: "Os indios selvagens, porem, comumente cha- dades o indio se apresentava ao civilizado, atacando-o. De ou-
mados bugres e de que ha muitas tribos, vivem nas matas, onde tra parte, o ci vilizado, ate entao, somente costumava atravessar
em geral se alimentam da cas:a e da pesca, de pinhas e outras o territ6rio indigena, pelos caminhos que seguiam do Rio Grande
frutas. ,Aqui e ali se tornam perigosos para as colonias, porem e Curitiba OU de Desterro a Lages. Fora dessas rapidas traves-
s6 atacam quando um deles foi ofendido ou molestado. Como,
porem, na maioria dos casos s6 estao armados de arco e flecha e
• sias o territorio continuava livre do branco, e, portanto, raros
eram os choques entre este e os sil vicolas.
temem muito a arma cle fogo, o emigrante nao deve arrecear-se A coloniza9ao no sul do Pais tomou carater de frente pio-
mesmo que more sozinho na mata. Bastam alguns caes ensinados neira. Frente baseada na explor89ao da pequena propriedade a-
e uma boa espingarda de dois canos. Entretanto, ninguem neces- gricola,. que de ger89ao em gera9ao deveria seguir adiante, em
sita estabelecer-se sozinho na mata e em cada colonia onde se busca de novas terras. Nesse movimento, a frente tendia a eli-
teme o ataque de indios, o Governo mantem soldados para prote- minar o indigena dos territorios em que tinha interesse, pois, ele
... 1a " .
ge- . era obstaculo a sua expansao (1). Assim, na medida em que a
Na primeira metade do seculo passado, entretanto, a colon1- frente se expande pelas terras virgens, aumentam as noticias so-
za9ao apenas se esbo9ara. 0 Governo, na verdade, estava a~e­ bre os ataques que os indigenas estavam a fazer aos colonos,
nas a fazer algumas experiencias, partindo do exemplo oferec1do tropeiros e moradores, em todo o territorio que estamos a focali-
pelos Est ados Uni dos e das pressoes decorren tes da condena9ao zar.
da mao de obra escrava na Europa. A partir de 1850 a coloniza- E necessario ter presente tambem, que OS Xokleng, embora
9ao toma impulso. A Lei Agraria promulgada nes~e ano e os e~­ arredios ao contato, tinham pleno conhecimento da presen9a dos
timulos dados para que particulares se interessassem nos nego- brancos e a ela haviam se acosturrado. A propria topografia, com
cios de coloniza9ao, alem da cessa9ao do trafico negreiro, ga- as altas serranias proximas as vilas do litoral, facilitou ao indio
rantiram um continuo aumento no afluxo de imigrantes (2). No sul observar o branco, sua vila e sua tralha. Emlx>ra as informa9oes
sobre este aspecto das rela9oes entre indios e bran cos sej am
( 1) - Hoermeyer, j. Was Georg seinen Deutschen Lands leuten. iiber praticamente nulas, e fora de duvida que OS Xokleng varias ve-
Bresilien zu erzaehlen weiss, 1863, Leipzig, lrad. Bertholdo Klinger, zes se aproximaram para observar o que faziam os brancos. 0 fato
Ed. Presen9a , 1966, Rio-GB. · de utilizarem 0 ferro nas pontas de suas lan9as e flechas, a epo-
(2.) - Perdigao Malheiros, 1944: 178/ 179, afirma que " Ate 1850 o movi-
mento da imigra9ao e coloniza9ao era quase insignificante, e frouxo; os
nucleos coloniais do Jmperio, COmpreendidos OS de empresas particula-
res, contavam apenas 18.760 habitantes, 0 numero de colonias foi limi-
tado; de 1850 por diante este numero cresceu e a popula9ao colonial
or9a hoje (1867) por 40.000 almas aproximadamente". (1) - Ribeiro, 1957: 23/24.

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ca da pacifica9ao, corrobora isto. N·a o se imagine, contudo, que quando em guarda a estas ja afamadas thermas.''
o indio observava o branco para ataca-lo. Nao, a observa9ao era Mas e realmente com o inicio da colonizas;ao que as referen-
forma de saciar a curiosidade sobre o novo .habitante, sobre cias a presen9a dos Xokleng comes;am a se tornar co11stantes.
suas roupas, armas, casa, etc. Mas por volta de 1850 as deci- Logo apos a fundas;ao de Itajai, em 1836, os Xokleng realizaram
soes que se haviam tornado na Europa, na capital do lmperio e uma incursao 'as proximidades de Camboriu. Cabral, 1937: 131,
nas capitais das Provincias do ::;ul tiraram aos Xokleng qualquer afirma que: "a falta de uma seguran~a maior, pois os silvicolas
possibilidade de fuga: seu territ6rio estava cercado e pronto pa- tentaram uma incursao, chegando ate Camboriu, o isolamento que
ra ser conquistado. Ao mesmo tempo, essas decisoes aeram ori- se encontravam, fizerare com que os colonos abandonassem as
gem a uma distribui9ao de papeis entre personagens que. nao ti- terras, so a ellas voltando depois que uma for~a de pedestres se
nham possibilidades de livre e conscien temente aceita-los. As- installou em Belchior".
sim, nessa altura, estava armado o cenario e os principais ato- Quase ao mesmo tempo os indigenas aparecem nas proximi-
res, o indio, o. colono e o bugreiro, com€9avam a representar o dades da colonia D. Affonso, tambem chamada Nova Italia. 0
que lhes fora reservado. 0 teatro tragico estava definiti vamente governo provincial, para evitar a debandada dos colonos, envi-
iniciado. ou para ali uma fo~a de pedestres. A crias;ao da fors;a de pedes-
tres, (Lei nQ 28, de 25/4/1836), pelo govemo provincial, com o
' ....
2. PRIMEIROS ATAQUES DOS XOKLENG AS COLONIAS fim de levar seu efeti vo a proteger as colonias das correrias dos
in di gen as e um dado de importancia. 0 governo estava con victo
Ate OS finais do seculo XVIII sao raros OS dados a respeito que o colono deveria ser amparado, protegido. A fo~a de pedes-
de ataques de indios aos civilizados. As escassas noticias sao tres destinava-se a concretizar essa protes;ao.
ainda prejudicadas pela falta de indicas;ao para nos permitir No ano seguinte, o , govemo provincial promulgou a Lei
saber qual o grupo tribal responsavel pelo ataque. Sabe-se que n2 70, de 28 de abril de 1837, que isentava de presta9ao de
na vila de Lages, Correia Pinto, segundo Ramos, (1944:24), servi90 na Guarda Nacional os moradores das localidades situa-
"Para diminuir os perigos das emboscadas dos indigenas nos das no sertao, expostas aos ataq_ues dos Xokleng. No seu artigo
matos do rio Caraa ( ••• ), mandou represar um pequeno c6rrego I, dizia o texto legal: «Ficam isentos do servi~o ordinario da
que ficava nos fundos dos quintais ( .•• ) formando um grande Guarda Nacional, os moradores dos sitios d' Ararangua, Cabe-
tanque para a lavagem de roupa ( ... )". ceiras do Rio da Madre, Tijucas Grandes, ltajai e em quaisquer
Sabe-se, tambem, que em certos trechos do "caminho de outros lugares centrais, onde as habita~oes, por isoladas, sejam
tropas" os tropeiros costumavam contar com a prote9ao de va- expostas a ataques do gentio ou possam servir de centro e de
queanos, conhecedores eximios das veredas e dos habi tos dos apoio ao estabelecimento de colonias" (1).
indigenas, para fazerem a travessia em segurans;a. As noticias, As noticias ainda sao escassas e superfluas, pois na reali-
entretanto, sao bastan te vagas. El as referem-se a ataques ou dade ate 0 inicio da segunda metade do seculo passado OS Xo-
ameas;as de )ndios, mas nao esclarecem sobre o que realmente kleng pouco incomodavam OS brancos. Tambem esses nao tinham
a'conteceu. E provavel, dado a escassa populas;ao e ao tamanho ainda penetrado o territ6rio indigena. Entretanto, ao come9ar a
da area, que vez ou outra o indio dava ares de sua presens;a, fixa9ao de nucleos coloniais nos vales litoraneos, a presens;a
ameas;ando e fazendo tern er o ci vilizado. Contudo, pouco ou na- dos Xokleng nao pode ficar desconhecida. Foi em Blumenau que
da ficou registrado. se registrou esta presens;a com todo o pormenor, esclarecendo-
No inicio do seculo XIX, 1808, aparece uma das primeiras -nos sobrc as cenas tragicas que ocorreram quando um grupo de
noticias concretas. D. Joao VI, por Carta Regia, determinava indios se aproximou da casa do fundador da Colonia, que estava
que se fizesse guerra aos Indios que realizavam incursoes nas ocupada por al guns colonos. 0 registro foi feito no .:lia seguinte
cercanias de Lages. · Depois, uma placa de bronze existente em ao da aproximas;ao dos indios, pelo Prof. Ostermann, em carta ao
Caldas da Imperatriz, municipio de Santo Amaro, em Santa Cata-
rina, da-nos noticia da presens;a dos incligenas, no seguinte
texto-homenagen: "A. memoria dos milicianos D' el Rey de Portu-
gal aqui mortos pelos selvicolas em 30 de outubro de 1814, (1) - Ferreira da Silva, 1967: 168.

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 .........

,·

Dr. Blumenau, que se encontrava em viagem (1): "Velha, 29 de Cinco bugres aproximaram-se apressadamente da casa e en-
dezembro de 1852. Mui prezado senhor Doutor. Um importante
acontecimento ol:>riga-me a escrever-lhe esta carta. Ontem a tar-
de, depois da hora de descanso e de haver tornado cafe, fui ao
jardim para plantar feijao, enquanto os meus companheiros
Schramm e Toepel se ocupavam em limpar as suas espingardas e
• traram na sala, examinaram a mobilia e come<;aram a carregar,
com muita alegria tudo quanto achavam born. Ressoou, nesse
momento, um tiro, partindo do s6tao da casa e um dos bugres foi
ferido no ombro. 0 ferido e os demais assaltantes, com gritos e
lamentos, abandonaram precipitadamente a casa entrando na ro<;a
carrega-las novamente. Enquanto estavam nesse mister, ainda de mandioca. Enquanto fugiam, atiraram muitas flechas visando
brincavam dizendo: "agora estamos preparados para receber bu- aos atacantes da janela da casa, felizmente sem ferir ninguem.
gres caso eles venham nos atacar". Schramm e Toepel atiraram tambem contra os fugitivos, fe-
De repente ouviram gritos saidos da ro<;a de mandioca. rindo dois deles. Um caiu, mas auxiliado por seus companheiros
Schramm foi ao dormi torio, que ficava em cima, para ver o que se pode entrar na ro<;a de mandioca e, <lali, no mato. Como ja fosse
passava e viu tres bugres... n? alto, ao lado d~ rancho de secar ti· noite fechada, deixamos de perseguir os bugres. Os homens que
jolos e telhas. Tomou, rap1damente da esptngarda e correu em comigo tinham vindo do Garcia chegaram pouco depois da fuga
dires:ao aos bugres. Estes recuaram um pouco. Neste momento, dos bugres e pernoitaram conosco na Velha. Perto da casa e nas
aos chamados de Schramm, deixei o jardim e entrei em casa. imedia<;oes da ro<;a encontramos 4 arcos e 8 flechas.
Schramm procurou, entao, falar aos bugres, por mimica, larga.nd•J Ao romper do dia 29, principiamos, com a assistencia de
a espingarda no chao e mostrando-lhes um ramo verde como stnal Schramm, a perseguir os bugres. Entrando no mato, logo atras da
de paz. ..... planta<;ao de mandioca, achamos um bugre ferido, sem sentidos,
Os tres bugres conferenciaram entre si. 0 cacique se acha- em estado gravissimo. Mandei sem demora, chamar o Sr. Frieden-
va dentro da planta<;ao e dali dirigia o assalto, ordenou-lhes e reich para ver o moribundo. Antes, porem dele chegar, o bugre
mais a outros bugres que se achavam escondidos, que atacassem faleceu.
a casa e os moradores. Os bugres avan<;aram e Schramm levan- Era uma figura alias, rol:>usta. Tinha aproximadamente, 20
tou a arma do chao. anos e, no labio inferior, um peda<;o de madeira, caracteristico
N esse interim, Toepel ha via carregado as restantes esp1n- da tribo dos botocudos. Transportamos o cadaver e demos-lhe
gardas existentes. sepultura.
Eu a e criada Lisette, que estava muito assustada, apres- Avisei o comandante do destacamento dos soldados de Bel-
samo-nos· em ir: <:le canoa, ate a embocadura do Garcia para cha- chior para mandar percorrer os vales do "Velha" e do ((Garcia " .
mar os homens ali ocupados. No lugar "Velha", achavam-se, no Comunicando estes fatos, observo que aqui continuamos
momento, so quatro homens. · sempre com coragem e trabalhando para adiantar a Colonia. Es·
Embarcamos na canoa sete homens, entre os quais Fritz perando suas ordens ou s_e u pronto regresso, subscrevo-me com
Deschamps e W. Friedenreich. Os restantes seguiram por terra toda estima (Ass.:) F. Ostermann. "
ate a Velha. Quando chegamos perto do local do assalto, ouvi- Fica claro, pelo documento acima, que os imigrantes locali-
mos alguns tiros. Schfah1,~ e Toepel tinham recuado de prop6sito zados em Blumenau sabiam da existencia de indios nas flores-
ate o s6tao da casa nova para animar os bugres a se aproxima- tas do ltajai. Fi ca claro, tam bem, que o imigrante tinha como
rem. Existia pouca polvora e chumbo e era preciso ganhar tempo segurarn;:a imediata a arma de fogo que sempre estava ao seu
ate que ch.~g~~sem os homens do Garcia. alcance.
Por sua vez os Xokleng tinham uma larga experiencia de
lutas. Tradicional mente eles mantinham guerra com os Kaingang,
ocupantes do planal to. Internamente, numa seqi.iencia que colo-
(1) - Alem desse depoimento, public ado in Blumenau em Cadernos, cava em risco a pr6pria existencia do grupo, estavam vivendo
tomo XI, n? 9, 1970, a partir de publica9ao constant'e do Calendario uma fase de disputas entre OS varios grupos-locais. Sohre este
Blumenauense de 1934, conhecemos sobre o episodio uma narra9ao fei-
ta em 1908 pe lo imigrante Fritz Koegler, Blumenau em Cadernos, tomo
aspecto Henry (1944: 130) diz que "( . .. ) a sociedade Kaingang
XI, n? 9, 1970: 161/ 166; e uma carta do Dr. Fritz Muller ao Dr. Blume· tinha um terrivel defeito - a vendeta. Na sociedade Kaingang
nau, apud Ferrsiz, Paulo Malta , 1948 : 263/ 264. nao havia tranquilidade real, pois pequenos grupos de 50 a 300

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+ •
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 individuos estavam perpetuamente empenhados em lutas aniqui- 1855, o meu amigo Paulo Kellner estava ocupado, juntamente
ladoras que iam, gradualmente, reduzindo a popula~ao ate o de- com um trabalhador belga e outro suic;o, nas suas terras do lta-
saparecimento. Nessas vendetas, parentes eram lan~adas contra jai-mirim, algumas horas para cima do ultimo morador, fazendo
parentes e, as vezes, mesmo irmaos contra irmaos. Os acampa- um ac;ude para o seu engenho de serra.
mentos eram atacados a noite e homens, mulheres e crian~as Depois do meio dia, ele ja havia carregado o primeiro carro
eram impiedosamente trucidados: Nao havia clemencia: um so e estava carregando o segundo, quando o belga, de repente gri-
sobrevivente podia vingar-se dos assassinos de sua gente. Mui- tou: ttOlhaos bugres!"
tas vezes as conspira~oes que preparavam caminho para os as- Kellner voltou-se e viu, a poucos passos diante dele, numa
sassinatos eram ol:>ras - primas de hipocrisia e trai~ao. Pessoas pequena elev~u;ao, uns oito individuos cor-de-cobre, nus, que,
convidadas a festas com toda a demonstra~ao de amizade eram com o maior sangue frio deste .mundo retesavam os seus arcos.
morta_fl depois que ficavam embriagadas" ( ... ) 0 forte e audacioso Kellner avanc;ou para eles ameac;ando· os
E provavel que a razao dessas lutas internas fosse a dispu- com uma pa; um dos bugres pulou para tras, enquanto outro re-
ta pelos territ6rios de ca9a, que ha muito estavam a escassear. batia a pa com o arco, logo depois de ter disparado uma flecha,
Disputando o dominio do planalto aos Kaingang e sendo dai destinada ao peito de Kellner, mas que lhe perfurou o brac;o di-
expulsos, os Xokleng ficaram sempre sujeitos a periodos de reito, pouco abaixo do oml:>ro. Ao mesmo tempo, os seus dois
penuria. Penuria que os levava, as vezes, a voltar aos campos companheiros caiam varados por flechas. E, enquanto Kellner
do planalto em busca de alimentos. A presen9a dos tropeiros e corria para casa, que ficava a uma distancia de uns oite~ta
criadores logo come9ou a dificultar ainda mais essas incursoes. passos, foi atingido, nas costas, por um segundo flecha~o. Ele
E, depois, o colono penetrou nos vales abrindo clareiras, se- gritou pela mulher do sui~o, para que lhe trouxesse uma espin-
meando ro9as e disputando tambem a ca9a 1 o palmito e outros garda. A mul!ter, porem, apavorada, desorientada veio com um
recursos. ti~ao aceso. Ele mesmo foi, entao buscar a espingarda e, com as
Nesse quadro, nao se pode pensar que OS Xokleng resolve- duas flechas, de mais de um metro de cumprimento, cravadas no
ram decretar guerra ao branco-invasor. Nao se pode pensar, tam- corpo, conseguiu ainda dar cinco ou seis tiros nos bugres, que,
bem, que os indigenas se aproximaram do branco e de sua pro- escondendo-se por detras dos troncos do mato, desapareceram.
priedade sempre com o intuito de observar, de ver o que fazia o 0 sui~o tivera o cora~ao varado por uma flecha e morrera
novo habitante, pacificamente. Na realidade os Xokleng eram instantaneamente. 0 belga, que era o mais alto e o mais forte
homens e, como tais, sujeitos a emo9oes e atitudes imediatis- dos tres, fora atingido por duas flechas de pontas de ferro, as
tas, desconectadas de qualquer objetivo futuro. ~ao havia assim quais, entrando pelas costas, cravaram-se na parte interior do
guerra ao branco e sim revide a ataques ou simplesmente agres- peito ( ••• )".
sao, motivadas, as vezes, pelo encontro de indios e brancos em No ano seguinte, 1856, a sorte dos Xokleng foi definitiva-
territ6rios que ambos tinham interesse. E para um povo que vi- mente selada pelo Presidente da Provincia, Dr. J oao Jose
via ja em estado de guerra, a presen9a dos brancos na floresta, Coutinho. Em sua "falla" a Assembleia, o govern ante afirmava:
com suas armas barulhentas, nao poderia significar paz. "que a unica maneira realmente efficaz seria obrigar estes as-
Depois dos eventos ocorridos na casa do Dr. Blumenau, sassinos e filhos de barbaros deixarem a floresta localizando-os
os Xokleng voltaram a aparecer nas proximidades da colonia so- em logares dos quais nao pudessem fugir".
mente em janeiro de 1855, quando foram avistados nas vizinhan- Oficializava-se o dito popular de que "indio somente borne
9as de Itoupava. No final deste ano, nas proximidades de Itajai, morto" .
os Xokleng realizaram um ataque, sobre o qual Fritz Muller ofie-
rece detalhes em carta que escreveu para o Sr. Lamprecht, em 3. COMPANHIA DE PEDESTRES E TENTATIVAS
12 de maio de 1856 (1). Diz o missi vista: «A 9 de novembro de DE CATEQUESE

( 1) - Cf. tradu~ao incluida em '.' Primeiros assaltos de Bugres no Ita-

Preocupado com a coloniza9ao das terras localizadas entre
jai" , in Cadernos de Blumenau, n? 12. tomo 3, 1960, p. 241; o litoral e o planalto e pressionado pelos reclamos dos civiliza-

64 65
 dos que estavam interessados em penetrar no sertao, o govemo OS indios realizavam SUaS incursoes as terras que 0 Ci vilizado
provincial criou em 1836 a Companhia de Pedestres, atraves da estava a penetrar. Por essa deficiencia basica, os pedestres
Le~ n2 }8~ de 25. de abril. _Dizia o texto legal em seu artigo pri- foram dissol vidos em 1879. Pelo Aviso Ministerial de 23 de
me1 ro: F1cam cr1adas se~oes de pedestres que terao por objeto: agosto, o governo alegava que por medida de economia nao pode-
10 - Guamecer presidios ou guardas que se houverem de esta- ria mai s manter a tropa (1).
belecer em ·diferent.es pontos da provincia; 2g - explorar e cor- Mas ao mesmo tempo que o governo criava e mantinha a tro-
rer os matos, nos oito meses que decorrerem de setembro a abril pa de Pedestres para dar seguran9a as povoas;oes e colonias que
inclusivamente; 30 fazer picadas de comunica~ao; os acampa: se instalavam no sertao, surgia a consciencia de que a medida
mentos e quaisquer o':>ras precisas para o desempenho de suas pouco adiantava. Os indios nao fugiriam para centros distantes
obriga~oes; 40 - proteger, auxiliar e defender os moradores de a simples vista do branco. Na verdade, nao havia para onde fu-
qualquer assalto do gentio, malfeitores e fugitives, perseguin- gir, pois os indigenas estavam cercados.
do-os ate seus alojamentos, quilombos ou arranchamentos fa- Nesse quadro pensou-se em submeter os indios pela ca-
zendo todo o possivel por apreende-los e, no caso extrem~ de tequese religiosa (2). Em 1849, no relatorio com que entregava a
resistencia, destru.l-los (: •• )" (I). Presidencia da Provincia, Antonio Pereira Pinto dizia: "0 gentio
As "Ses:oes de Pedestres" foram organizadas e instaladas tern no presente anno com nao commum atrevimento assaltado
inicialmente em Itajai e Sao Francisco. Sua organiza9ao admitia alguns estabelecimentos ruraes ao norte da Provincia. He minha
a presen9a de um sargento, um cabo e quinze soldados. Em ter- opiniao que enquanto nao Se tentarem OS aldeamentos difficil
mos praticos, os pedestres pouco atuaram. No ano de 1849 de- sera recusarem-se seos habitantes a esses ataques. Impellido
pois de algumas correrias de indios no norte da Provincia,' nas por essas ideas, sollicitei do Exmll Snr. Ministro do lmperio a
proximidades do Rio Negro, o Presidente da Provincia, Severo remessa de dous missionaries capuchinhos, para com tao valioso
·Amorim do Vale, resolveu aumentar o efetivo do s pedestres. En- concurso tentar o come~o de huma aldea. Logo, que estes chega-
viou para Sao Francisco um sargento, um furriel e tres soldados. rem, e forem coadjuvados por hum director de Indios, que tome
P~~a ltajai mandou um furriel e tres soldados. E juntou ao insig- interesse n' essa proficua empresa, estou, que se colherao saso-
n1f1cante refor90, a ordem para que se contratasse ate vinte nados fructos ( ..• ) "
voluntarios sempre que fosse necessario (2). Os pedestres em Mas s6 em 1868 os padres capuchinhos Virgilto Amplar e
maioria eram casados e sempre tratavam primeiro de seus labo- Estevam de Vicenza foram comissionados para iniciarem a cate-
res de ro9a e familia, para depois cuidarem da defesa. quese, respectivamente em Lages e ltajai. E nao lograram ne-
No ano de 1856 a tropa de Pedestres ·em Santa Catarina con- nhum s ucesso, pois, segundo Paula (1922: 118), "( .•• ) estes reli-
tava com 70 homens. Entretanto, a ela se referiu o Dr. Blume- giosos jamais se embrenharam nos sertoes, para entabolar rela-
nau dizendo que de cada cinco tiros que <lava, falhavam quatro, ~oes com os indios".
tal o estado de velhice do armamento, alem da ferrugem qu'e o
consumia (3)
A esta epoca o problema indigena comes:ava a preocupar aos (1) - Deeke, 1967: 105. Embora criada pelo Governo Provincial, a tropa
administradores e aos interessados nos negocios da coloniza- de P edestres foi vinculada ao Batalhao do Deposito e assim sujeita ao
9ao. Os pedestres pouco podiam fazer, pois viviam estacionados Ministerio da Guerra. (Veja-se Relatorio do Presidente da Provincia, de
1859). ' •
em locais em que o indio nao aparecia. Quando batiam os matos,
(2) - No Rio Grande do Sul e no Parana ocorreram esfor9os semelhan-
nao encontravam indios. Quando usavam seu armamento, ele se tes. Entretanto, os padres foram levados a t rabalhar com indios Kain-
apresentava em estado precario. Os pedestres nao estavam habi- gang e os resultados que alcan9aram tambem foram mediocres. No Rio
litados, nem equipados, para a fun9ao e oom eles ou sem eles Grande, narra Schaden, F. ( 1963: 74) que "Os resultados de obra .de
pacifica9ao nao parecem ter sido muito sastifatorios, pois ja em 1852 o
governo resolveu subtrair aos jesuitas os privilegios concedidos e na-
turalmente tambem a subven9ao que lhes vinha pagando. Os capuchi-
( 1) - Cf. Ferreira da Silva, 1967; 168.
nhos, que estavam em contacto com os Kaingang do Parana, declinaram
(2) - Deeke, 1967 : 103. do convite de estender a sua atividade tambem aos do Rio Grande do
(3) - Cabral, 1937: 117. Sul( ... )".

66 67
 Os Presidentes da Provlncia de Santa Catarina, na medida de. E, no ano seguinte, o Cel Antonio Pereira da Silva e Olivei-
em que se agravavam as rela96es entre Indios e brancos, com ra, Presidente do Congresso no exercicio do g;:>verno, afirma em
nltidas r:lesvantagens para aqueles, nao deixaram, pelo menos em sua mensagem: "nao sou d'aquelles que tern a utopia da facilida-
relatorios, de deplorar a falta dos servi9os de catequese. Nas de da catechese ( •.. ) 0 problema da catechese e um dos mais se-
"fallas" dos Presidentes a Assembleia, nos anos de 1876, 1880 rios e complexos, e sem uma previa observas:ao, sem o conheci-
e 1885 ha apelos ao Govemo lmper.i al para instalar a catequese mento exato do terreno em que se tera de operar, nenhuma tenta-
jun to aos Xokleng. Segundo relat6rio de Manoel Pinto de Lemos, tiva deve ser iniciada, amenos que se queira sacrificar inutil-
ao passar a administra9ao da Provincia para o Dr. Jose Lustosa mente vidas e capitaes ( ... )".
de Cunha . Paranagua, em 1885, ( ... ) "O Ministerio d' Agricultura Um outro aspecto da questao, entretanto, nao era focalizado
pelo Aviso de 25 de julbo ultimo resolveu encarregar o RevdQ Frei pelos govemantes. Trata-se do referente ao interesse dos reli-
Luiz de Cimitile, antigo missionario dos aldeamentos indlgenas giosos em aceitar o encargo de atrair e pacificar os indigenas.
da provincia do Parana, de estabelecer em Santa Catharina um OU Nesse sentido, a angustia revelada nas interroga9oes de um
autor catarinense, a epoca, esclarece o que se passava (Vieira
mais aldeamentos de Indios. Chegando a ' esta capital (Desterro-
SCS) a 14/10, seguio no dia 28 a ex-colonia Azambuja, onde da Rosa, 1905: 310): "Nada se faz actualmente em favor dos
recomendei que fixasse temporariamente a sua residencia, em pobres indigenas, e o espirito christao que animou os antigos
uma das casas do Estado, envidando todos os esfors:os a fim de jesuitas parece ter desaparecido para sempre ( ... ). Porque nao
esta'Jelecer quanto antes um aldeamento de Indios nas immedia- se dirigem esses apostolos de uma e outra religiao, quer protes-
s:oes do logar, conforme lhe parecesse mais convenience, e para tante, quer catholica romana, as mattas, as tabas indigenas e
onde mais tarde, deveria transferir residencia. chamam seus habitantes a ci vilizas:ao, ao seio da igreja christa
Foram-lhe ainda facultados todos os meios para a acquisi- que e a mais bella e mais pura manifestas:ao d'esta civilizas:ao?
s:ao de auxilios e guias, conhecedores dos habitos dos indios e Nao serao os mesmos homens? Dar-se-ha o caso de haverem
da giria dos selvagens. Mandei por a sua disposis:ao, para as diminuido o ardor, a ponto de pregarem o Evangelho onde ja
despezas, o credito de 1:800$000, concedido pelo Ministerio elle nao precisa ser pregado?
d' Agricultura .. 0 amor das riquezas, o bem estar que uma boa meoza e uma
Nao conseguindo no logar o pessoal preciso, vqltou o mis- boa alcova proporcionam, impedem que 0 padre va ( ... ) pregar
sionario a esta capital, e expoz-se a necessidade de ir a provln-· aos selvicolas? ( •.. )".
cia do Parana, onde contava obter com mais facilidade alguns E somente se voltou a falar de catequese religiosa dos indi-
indios mansos para auxilial-o ( ... )". genas, quando toda a N a9ao brasil eira foi sacudida pela discus-
A catequese religiosa acabou nao dando resultado pratico sao que antecedeu a cria9ao do orgao gov~mamental de prote9ao
algum. Frei Luiz de Cimitile nao chegou a converter nenhum ao silvicola, o Servi90 de Prot~ao aos Indios. A essa altura,
indio, nem tampouco se esfo1'90U mui to para faze.Io. A Republica 1910, muitos se interrogaram se nao seria conveniente entregar
sucedeu ao Imperio, transform an do as provincias em Es tados, aos religiosos a tarefa de atrair e pacificar o gentio, porque o
mas a situa9ao indigena continuou a mesma. 0 seculo tambem Estado nao tinha experiencia no assunto.
mudou. No ano de 1905, ainda se falava em catequese dos silvi-
oolas. A preocupa9ao agora ja era de, pelo menos, se ter a sa- 4. BATEDORES DE MATO E TENTATIVAS DE
tisfa9ao da tentativa. Na sua Mensagem a Assembleia, o Vice- ALDEAMENTOS LEIGOS
Governador Cel Vidal Ramos, exercendo o governo, diz: ~1nsis­
to pela decretas:ao de uma verba para o servis:o de catechese. As ""Xpectativas dos administradores sobre 0 recuo dos indi-
. Nao devemos desanimar ante as dificuldades que a empreza genas para o mais distante sertao come9aram a desaparecer
offeres:a, porque, se nao formos bem succedidos, restar-nos-ha a ~imultan_:amente com ~ incremento da imigra9ao e conseqiiente
satisfas:ao de havermos cumprido um dever de .humanidade, fa- instala9ao de novos nucleos coloniais. A tropa de Pedestres e a
zendo o possivel para salvar a infeliz ras:a indigena que vive isen9ao de engajam:~to na Guarda Nacional, que permitia a pre-
nas nossas mattas". sen9a de homens vahdos em todos os povoados e colonias, ·nao
Mas nao havia aceita9ao coletiva desse clever de humanida- eram suficientes para proteger a propriedade e a vida dos bran-

68 69
cos. Nao erarn suficientes tambem para fazer desaparecer o te- requisitivos para com eficiencia e vantagem funcionar como inter-
mor do s que migravam e se instalavam nos nucleo s coloni:1is, em prete e intermediario nas rela~oes pacificas que se deseja esta-
plena selva. As a dministrac;oes das colonias logo se apercebe- belecer com os mesmos indios.
ram disto e trataram de montar um novo esquema de protec;ao. A tal interprete qualificado se oferecem as vantagens se-
Assim em Blumenau, sob os a uspicios do Governo- Provincial, se guintes:
organizou um grupo, denominado batedores de mato, destinado a 112 - lndeniza~ao das indispensaveis despesas de viagem do
tomar as medidas necessarias a pacifi car os sil vicolas ou, pelo atual domi cilio ate o que escolhera em es ta colonia com a fami-
menos, mante-los afastados do s locais onde os colonos estavam lia se ele a houver;
a se localizar. Trata va-se, na verdade de um grupo vinculado a 2si - Um lote de terra colonial como propriedade, sob as con-
Companhia de Pedestres, mas com organizac;ao mais dinamica. di~oes normais em vigor, mas sem pagamento a vista, a escolher
F oi designado para chefiar esse grupo, Fre derico Deeke, pelo interprete em localidade apropriada por entte os lotes medi-
experimentado conhecedor da regiao. Um autor blumenauense a- dos e disponiveis;
firma que ttSua gente tinha ordem expressa de nao atirar contra 312 - o auxilio gratuito para o primeiro estabelecimento de
os sel vagens, a nao ser em extrema necessidade. Nas profunde- vinte mil reis para 0 chefe da familia e para cada um membro da
zas da selva eram levantadas ca'Janas, onde eram postos presen-
ces para os indios, com o proposito de que estes, voluntariamen-
.
sua familia maior de 10 anos, cujo auxilio sera pago em presta·
~oes sucessivas; ·
te, se aproximassem, e por intermedio de um interprete, trazido 412 - o auxilio de cincoenta mil reis, a reembolsar ao Gover-
do Parana ( ... ) entrassem em contato com .os brancos. ·Nada po- no no futuro, para a primeira derrubada e constru~ao da sua mo·
rem deu resultados (... )". (1) rada;
Outros grupos de batedores de mato foram instalados em 512 - gratifica~ao mensal de cincoenta mil reis, por Ora por
di versas colonias. To dos, entretanto, . agiram sem realizar qual- um ano a contar Jesd ' a entrada nesta colonia do interprete, e
quer tenta tiva de pac ificac;ao dos Indios . Na verdade, esses ba- a pagar como de costume;.
tedores t ratavam de dizimar os grupos indigenas· que encontra- 6S1 - a perspectiva de um engajamento prolongado por uma
vam, form a simples de solucionar o problema. serie de gratifica~oes extraordinarias, estas ultimas porem so no
A experiencia realiza da por Frederico Deeke, parece ter ·caso de que pelos servi~os do interprete os selvagens de ora em
sido dife rente. Em 1877, ele foi autorizado pelo Dr. Blumenau a diante cessem as correrias, roubos, assassinatos e outros male-
procurar um interprete, capaz de atrair o gentio. E o diretor da ficios que costumam praticar contra a sociedade ·civilizada.
Colonia, credenciou a Frederico Deeke com o documento abaixo 0 Diretor
(1) que tambem oferece vantagens a pessoa que aceitasse o Dr. H. Blumenau".
cargo.
"Diretoria da Colonia de Blumenau No ano seguinte, Deeke realizou di versas expedic;oes nas
7 de junho de 1877 florestas do Itajai, em tentativas simultaneas de aproximac;ao
0 Sr. Frederico Deeke, Comandante da Guarda dos Batedo- e afugentamento dos silvicolas. De aproximac;ao, por que sempre
res do Mato, contra as correrias dos sel vagens desta Colonia e s e utilizava do interprete que trouxera do Parana. De afugenta-
portador da presence, esta por ordem superior autori~ado, e J.?Of mento, porque suas andanc;as tomavam ca rater de perseguic;ao
esta dire toria incumbido, para procurar, e sendo poss1vel engaJar aos indigenas que realizavam ataques a ci vilizados. Deeke narra
imediatamente e consigo levar para esta colonia um individuo isto num re latorio ao Dr. Blumenau, que reproduzimos na integra
conhecedor da lingua dos sel vagens que infestam as partes se- (1).
tentrionais da Provincia de Santa Catarina, e dotado dos demais

-
(1) - Cf. Tradu~ao feita por J. Ferreira da Silva, localizada nos arqui-
( 1) - Dee ke, J., 1967 : 105. vos da biblioteca Fritz Muller, Blumenau.

70 71

'
 "Colonia de Blumenau mento calculado para umas 40 pessoas cada. N~stes ranchos
29 de ma~o de 1.878 achamos 9 gamelas de bordas altas e retas e ao lado de urna
A exma. Dires;ao da Colonia de Blumenau. delas um socador de pau e montoes de cascas quehradas de co·
Referente a nossa ultima expedic;:ao em persegu1c;:ao aos quiohos , muitos poucos ossos, parece que comeram pouca caroe
~ugres, os quais no dia 24 de fevereiro do aoo fizeram um assal- o tempo todo, pois a cac;:a e mesmo escassa nesta regiao . .A ve-
to no Camioho dos Tiroloses, permito·me fazer as seguintes getac;:ao ai e faxinal, pinheiros e palmeiras aparecem so nas par-
observac;:oes. tes mais humidas; ha grandes regioes de planaltos, com terra
• Durante a primeira semana o ooss? empreendirneoto n~o fraca, barrenta e turfosa, a 6 e 8 palmos de subsolo ja se eocon-
progrediu satisfatoriamente, em parte dev1do aos fortes aguace~­ tram camadas de ro c ha xistosa. Os paredoes das serras circuo-
ros entao verificados, como pelo fato de terem os bugres conu- vi zinhas sao de p edra lisa, nas regioes montanhosas, nas coli-
nuamente mudado o curso de sua viagem, e aioda por terem di- 1) nas, a terra e melhor, ha muita madeira boa, as vezes canelas de
versos dos meus homens perdido a vootade de participar da ex· grande espessura. Os brugres, ao que parece, durante a sua es-
cursao, simulaodo doeoc;:as, e pondo-me por isso oa emioencia de + tadia no acampameoto se alimentaram quase que exclusi vamente
substitui-los, iodo a procura de outros. Som~nte na segunda se· de cocos, tento derru':>ado quasi todos os coqueiros dos arredo·
mana teve ioicio a excursao propriameote d1ta. Sahendo eu por res.
experieocia que, para ter-se alguma esperanc;:a de alcaoc;:ar os Segundo observei, ao que parece eles nao aproveitam so OS
bugres apos um dos seus assaltos, convem nao segui-los ime- frutos e a parte comestivel dos palmitos, como tambem a seiva.
diatamente, por eles costumarem deixar ~m grupo para tras, a Em quasi todos os coqueiros derrubados havia orificios abaixo
fim de observar os perseguidores e desp1sta·los, entramos no da copa, nos quais se encootravam pauzinhos em forma de ca-
mato somente ap6s a habitac;:ao do ultimo colono do Rio dos lha. Ap6s saborearem a polpa, juotaram os coquinhos em peque-
Cedros, visando avanc;:ar por getras das montanhas que consti· oos montoes, provavelmeote para mais tarde quebrar a casca com
tuem a divisa das aguas do rio Benedito, em direc;:ao norte, para o socador.
depois desviar para oeste, para escapar assim as sentinelas dos Havia brinquedos de criaoc;: as, cestinhos e um pasto com
bugres e as armadilhas de se~s. rumos dissimulado~, pa.ra, _ se uma cerca de bambuzinhos, dentro do qual havia um curral redon-
por acaso tivessem tido a audac1a de acampar nas 1med1ac;:oes do com um animal reproduzido em xaxim, representando uma anta
da colonia, barrar-lhes a fuga. ou vaca.
A excursao· decorreu norrnalmente, embora adoecessem su· Deste acampamento seguia ainda um terceiro caminho em
cessivamente, em parte de maneira grave, tres de meus compo- direc;:ao oeste, pelo qual os bugres, presumivelmente, haviam
nentes de turma, os quais fui obrigado deixar para tras com chegado, e o qual. nos resolvemos seguir. Pouco antes de chegar
acompanhante, ficando eu apenas com um grupo de doz~ homens, ao dito acampamento, vimo-oos o1>rigados a desfazer-nos de nos-
Depois de quatro dias de marcha enco?tra~os uma p1sta :-- um sa bagagem, pela oecessidade de deixar ai outro doente, de pe
lugar onde os . bugres, possivelmente ha tres semanas, mats ou perfurado, o qual nao podiamos transportar para adiante, oem
meoos, abateram uma anta, carregando a carne em direc;:ao norte. levar de volta. Como tivesse esperaoc;a de encontrar indios aio-
Supus que este rastro iria levar·nos ao acampamento geral. da nas proximidades, carregamos someote utensilios mais neces-
Depois de segui·los durance dois dias, chegamos a um. dos sarios, e alimento para tres dias. Mandei preparar pao de farinha
acampamentos de verao, parecido com aquele que des~o.bum~~ de mandioca e assar churrascos, para nao mais fazer fogo. Mar-
ha pouco tempo no ltapocu. Os bugres, segundo vesug1os, ~a chamos com o maior cuidado, sem fazer barulho ou falar, ou dar
haviam abandooado este acampamento antes do ass~lto, depots as costumeiras pancadas de facao, - forc;:amos a passagem cor-
de prolongada permanencia no mesmo, segundo indicios. 0 grup.o tando com cuidado, silenciosamente, galhos caidos, etc. que nos
maior tinha seguido em direc;:ao oeste, um menor, porem, poss1· barravam o caminho, o que, alias tambem ja haviamos feito nos
velmente participara do assalto; devido a direc;:ao sul, atraves a~ dias anteriores. Mesmo assim tivemos um observador nos acom-
montanhas, que enveredou. panhaodo ja durance dias. Nao sei se ele nos descobriu pela fu-
O mencionado acampamento de verao, era con~tituido .de mac;a de oosso acampamento geral, na retaguarda, ou se foi por
dois ranchos arquados, recobertos de folhas de palmeuas, alo1a· acaso. Quando nos, ap6s pequeno rurno errado, voltamos atras,

72 73
 encontramos a picada fechada com folhagens de taquara; outras atingidas pela chuva, mas eram fracas, uma podia resultar de um
vezes sentimos sua presen~a a dianteira. Quando nos, a noite, menino de 12 anos apenas. - De la nos voltamos. Um dos meus
depois de preparado o acampamento para repouso, nos retiramos homens me tinha dito neste dia que eles haviam combinados en-
para a picada, sentiamos volta-lo na mesma dire~ao; ·a noite ele tre si que nao me acompanhariam no caso de eu querer prosse-
rondava o nosso pouso, e na outra manha ja o percebiamos nova- gu~r a excursao ate encontrar o acampamento geral dos indios,
mente, tomando-nos a dianteira. A picada acusava sinais de lon- pois o nosso grupo nao era constituido do numero suficiente de
go USO. Havia pontes sobre pequenos lagos e fontes, e nos tron-
cos de arvores caidas sobre 0 caminho, havia degraus feitos a homens para tal empreendimento. Mesmo que nao fosse esse 0
machado, para evitar quedas. Depois do primeiro dia de marcha motivo que me fez desistir, fl-lo por outros. Os doentes que ti-
nesta picada cruzamos o caminho dos bugres que empreenderam nhamos deixado em pontos diferentes, s6 com um homem cada
o assalto. Partia do sul e seguia ao trilho de picada .principal para ~ua defesa, eu nao podia expo-los a longa ausencia: alem
do ma1s as ~~ssas ~eservas alimeoticias estavam esgotadas; s6
em dire~ao oeste •. Neste caminho encontramos primeiro um acam-
restavam fe11ao, fannha de mandioca e cafe. Assim resolvemos
pamento mais antigo de indios, onde achamos, num rancho mais
voltar no di_a seguint~. Durante a noite ouvimos rumos de passos
afastado, quatro cestos de agua e tres vasilhas de barro. Pelas
e outros ru1dos prov1ndo de varias dire~oes, se aproximando do
aparencias podia-se supor que os habitantes deste rancho tives-
rancho, -, n6s saltamos, com as armas em punho, para fora do
sem abandonado o mesmo em fuga, depois de uma luta com os
rancho. Ai cessaram os ruidos. Logo que conversamos novamen-
moradores dos outros ranchos, pois estes estavam intactos, e s6
havia objetos abandonados, sem valor, ao passo que o primeiro te ~o rancho, tornamos a observar a aproxima~ao de passos, mas
achava-se danificado, e os cestos de agua e vasilhas de barro ass1m que nos quedamos em sileocio, fez-se silencio tambem la
estavam em estado de novo; depois de outro dia de marcha en- fora. Por fim ~les se convenceram da nossa vigilancia e os pas-
contramos outro acampamento, de constru~ao recente, com cinco sos . se afastaram em varias dire~oes. Nao sei si eles quizeram
ranchos, onde se podia avaliar em pessoas, talvez, os que nele observar-nos ou se eram componentes da retaguarda, isolados pe-
estivessem acampados. Como pouco antes tivessemos encontra· lo nosso grupo, os quais pretendiam ultrapassar-nos duraote a
do uma pegada recente, e ouvissemos o som de machadadas e notte.
uma voz humana, supuzemos encontrar os bugres ai. Aproxima· Na nossa volta seguimos ainda oucras picadas, alcan~amos
mo-nos sorrateiramente, mas encontramos o acampamento aban- a outros acampamentos abandonados, que haviam sido ocupados
donado e o fogo apagado. Os bugres deviam ter deixado este durante ? verao. ~od~ a regiao era uma rede de picadas, seguin-
rancho ha uns 4 ou 5 dias, os ruidos que ouviramos teriam sido do quasi todas d1re~ao oeste. 0 que dificultou novamente esta
possivelmente de um bugre sentinela, com intuito de enganar- nossa excursao, foi a falta de barracas, porque a mata faxinal
·nos. Neste rancho achamos a dentadura de um cavalo, perto do nao fomece folhagem para recobfir um rancho. Todas as noites
fogo haviam acumulado uma por~ao de pinhas, e pinhoes assa- tinhamos tido chuvas, e as nossas roupas haviam ficado enxar-
dos, mas estavam quase todos ainda imaturos. cad.as. Em1:>ora tivessemos o proposito de nao fazer fogo, fomos
Mandei cobrir estes ranchos com junco, para neles pernoi- obngados a fazer uma fogueira para enxugar as nossas roupas.
tar. Eu segui ainda, em companhia de 6 homens, durante mais de ~Iem da tenda indispensavel, se tornaria necessaria, para o ul-
duas horas a picada, e cheguei a mais um acampamento, com umo avan~o para perto do acampamento dos indios, uma pequena
4 ranchos bem grandes, os quais eram velhos, mas com vestigios reserva de generos alimenticios que nao precisassem ser cozi-
de terem sido ocupados ha pouco tempo. A picada havia mudado reserva de generos alimeoticios que nao precisassem ser cozi-
o seu curso para noroeste. Neste acampamento encontravam-se dos, como pao de conserva, lingui~a defumada e um pouco de ca-
restos de roupas roubadas no ano passado aos tirolezes, e um cha~a. A fogueira acusaria logo a presen~a de nossas pessoas
isqueiro, de madeira seca, guardado dentro de um bambu, em':>ai- aos. indios. 0 pra..zo de um mes, tambem e pouco para tal empre-
xi das vigas. Neste rancho haviam pemoitado, ha duas noites, e.ndu~ento, e o numero de 16 homens de um contingente para tal
presumivelmente~ uns cinco homens, como demonstravam os lu- finahdade, tambem ~ insuficiente. Deve-se contar sempre com
gares de pouso. Suponho que se tratasse do contingente da re· uns casos de doentes, que por sua vez necessitam de um acom-
taguarda dos assaltantes. As pegadas quasi nao tinham sido panhante. Na ultima etapa, antes de che~ar as proximidades do

74 75
 acampamento geral dos bugres, seria preciso abandonar a baga- tropas"- que seguia quase o mesmo roteiro da atual rodovia que
gem e deixa-la com a devida guarda, para nao cair nas maos dos liga Curitiba a Porto Alegre -, pretendia atrair os Xokleng ar-
bugres. redios e assim evitar os ataques que realizavam a colonos do
Eu proponho o acampamento principal deles localizado entre Rio Negro e a tropeiros que cruzavam o planalto. A epoca essa
as bacias do Benedito, Rio Preto e ltajahy do Norte, pois pica- tegiao estava sob jurisdi9ao do Parana e no ano de 1881, o Pre-
das daqui, como as da regiao serrana, segundo me disse o Jere- sidente daquela Provincia, Joao Jose Pedrosa, em relatorio, pe-
mias Gons:alves, tern tadas a dires:ao para a dita regiao. A conti- dia ao Governo Imperial o restabelecimento desse aldeamento.
nuas:ao da nossa excursao ter-nos-ia levado as proximidades do A falta de recursos, que ja havia obrigado ao sertanista Joaquim
acampamento central dos indios. Como ~les receiassem isto, Francisco Lopes a abandonar a empresa, continuava predominan-
calculo eu, improvisaram um assalto na ltoupava, para despistar- d? no tesouro e o Ministro da Agricultura acabou ordenando a
nos , e afastar-nos da regiao do Senedito. d1spensa de sete assalariados que trabalhavam em outros aldea-
Sou de opiniao que, se e que se resolver tomar medidas efi- mentos localizados no Parana (1).
cientes contra os bugres, sera necessaria a construs:ao de um A segunda tentativa ja foi realizada neste seculo. A Liga
- desfiladeiro para mulas de carga ate 0 alto do divisor das aguas Patriotica que .se criara para defender os indigenas de Santa Ca-
contra o Rio Preto, para possibilitar o transporte de generos para tarina, resol veu colocar em pratica um plano de pacifica9ao dos
a manutens;ao de um maior numero de homens, a qualquer hora, sil vicolas. Para tanto comissionou como "pacificador' a Jose
desfiladeiro este que por sua vez, incurtaria tambem 0 tempo de Bernardino da Silveira, que logo, segundo Paula (1922: 118)
transporte, e com isso o gasto dos generos, pois o transporte "seguiu para o Rio das Pombas, com. o intuito de fundar uma pe:
que nas picadas existentes seria de um mes, num desfiladeiro quena "aldeia de atrac~ao". ( •.. )"
adequado levaria apenas poucos dias. Nenhum indio, entretanto, foi atraldo para viver em Papan-
0 custo de tal vereda que avans;asse ate mil bras;as mata a duva ou em Rio das Pombas.
dentro, incluindo a despesa com pequenos pontilhoes, etc, como
a construs:ao de ranchos seguros, distantes um do outro de uma 5. AS TROPAS DE BUGREIROS
viagem diaria de mula de carga, tal empreendimento eu ors:aria
em tres contos. As expedis:oes de vingans:a ao interior do sertao para revi-
Uma expedis:ao com a duras;ao de 2 me-ses, com 30 homens dar junto aos indigenas ataques por esses cometidos, sempre
inclusive transporte e aquisis;ao de mantimentos, calculo em 5 foram comuns no Brasil passado .. Desde a descoberta, a guerra
contos~ justa aos silvicolas era a vruvula de escape para o branco come-
Ass. Frederico Deeke." ter as maiores atrocidades.
No territorio que estamos a focalizar, a Carta Regia do ano
No ano de 1879, quando o Governo extinguiu a Companhia de 1808 institucionalizou a guerra permanente aos indigenas que
de Pedestres, os batedores de mato tambem deixaram de atuar, infestavam os sertoes do planalto e que ameas:avam a seguran9a
pois que eram apenas um seguimento reorganizado daquela com- da estrada de tropas. Admitia-se prote9ao e seguran9a apenas
panhia. A partir dai, os batedores de mato se transformam em
bugreiros. 0 que havia de valido na experiencia de Frederico
e
Deeke totalmente esquecido e o facao, a pistola, a. espingarda
e o rifle passam a ser os agentes definiti vos da pacificac;ao dos (1) - Wachowicz, 1969: 472. Parana , 1899: 346, afirma: "Duas vezes
tentou a catechese d'estes aborigenes o intrepido e lendario sertanejo
indigenas. joaquim Francisco Lopes, irmao do heroico Guia da Expedi9ao Matto
Mas enquanto os bugreiros come9avam a se responsabilizar Grosso - Jose Francisco Lopes ( ... ). Em 1868 fez Joaquim Francisco
pelas tarefas de" colocar o indio em lugar seguro", du as tentati- Lopes duas dilligencias, na zona contestada, com o fim de trazer a
civiliza9ao os indios botocudos, sendo ambas infrutiferas. Em 1877 foi
vas ocorreram de funda9ao de aldeamentos leigos para os indige- epcarregado pelo ~overno de fundar um aldeiamen~o para reduc9ao
nas. A primeira tentativa ocorreu em Sao Tomaz de Papanduva, d esses selvagens, na estrada de Lages, cerca de 5 leguas distante da
em 1877, e foi realizada pelo sertani sta J oaquim Francisco Lo- Villa do Rio Negro, ao qual deu elle o nome de S. Tomaz de Papanduva
pes. 0 aldeamento, localizado nas proximidades da •entrada de ( ... ). N'esse anno mesmo de 1877 foi extincto o aldeiamento ( ... )".

76 77

\
 +

para os in digen as que aceitassem o poder real, respeitando a em explorar as bordas dessa area.
presen9a do branco e a ele se submetendo. 0 branco, entretanto, Numa ultima experiencia, 0 governo ainda criou OS batedo-
recebia as aproxima9oes do indio com armas nas maos pois, sem- + res de mato, como forma reorganizada da rompanhia de pedestres
pre predominou no sertao 0 ditado de que "indio somente e born, destinada a atender aos reclamos das colonias. Fntretanto, so-
morto". (1). Nao e de se estranhar assim que fosse comum a or- mente em Blumenau os batedores realizaram algumas missoes
ganiza9ao de grupos armados para vingar ataques cometidos pe- objetivando a atrair os indigenas. Nos demais lugares, os bate-
los indigenas. Entretanto, nao temos referencia desses grupos dores eram organizados com essa denomina9ao apenas para fazer
ate 1820, quando Saint Hilaire (1937: 123/124) testemunha que jus aos recursos govemamentais necessarios a manuten9ao dos
"Pouco tempo antes de minha viagem, elles haviam estrangulado homens que se enfiavam no sertao para aniquilar com os indige-
dois rapazes num sitio afastado, e, sendo perseguidos, foi morto nas que encontrassem. Quando se extinguiu a companhia de pe-
um (••• )". destres, e com ·ela os grupos de "batedores", ninguem tratou de
A Companhia de Pedestres, que foi organizada em 1836, ate continuar a camuflar as reais atividades <lesses grupos. As pala-
certo ponto seguia o sistema de embrenhar-se na floresta em per- vras "bugreiros", "ca9adores de Indios", "tropas", "montarias",
segui9ao aos indigenas, logo apos algum ataque. Entretanto, se- imediatamente comes:am a aparecer nos documentos oficiais e
gundo suas instru9oes, deveria afugentar os indigenas para o oficiosos e nas noticias dos jomais de entao. ..
interior do sertao "sem lhes fazer mal" (2). 0 governo admitia No ano de 1874, o Presidente da Provincia Joao Tome da
tambem que a Companhia, quando necessario, engajasse alguns Silva, comunicava em sua "falla" a Assembleia, (1874: 8), medi-
ci vis conhecedores da regiao para cumprir as expedi9oes de das que havia tornado contra as correrias dos indigenas em Join-
afugentamento (3). A patrulha aparecia assim como mecanismo ville. Dizia que alem de ter enviado para os pontos mais amea-
de a9ao governamental e devido a isso suas atitudes para com 9ados pelos indigenas, 20 pra9as de linha, comandados por um
os indigenas sempre ficaram restritas, segundo as noticias exis- oficial, "se organizava, por minha ordem, uma expedi~ao com·
tentes, ao amendrontamento dos silvicolas. 0 sistema, entretan- posta de gente · conhecedora dos mattos, destinada a afugentar
to, de um bando armado penetrar no sertao em seguida a um as- os selvagens para longe dos lugares habitados, ( ... )".
salto dos indigenas, para afugenta-los, estava consagrado. + 0 Govemo tinha conhecimento, tambem, que os moradores
A insuficiencia de milicianos engajados na patrulha de pe- dos locais amea9ados pela presen9a dos indigenas, costumavam
destres, o reduzido numero de contingentes para atender as di- se organizar em grupos para fazer incursoes contra os sil vi co-
versas colonias e a propria ma-vontade com que os individuos las. Na "falla" de 1876, o Presidente da Provincia Joao Capis-
integrantes da patrulha atendiam aos reclamos das companhias trano Bandeira de Mello Filho, informava: "Em alguns pontos da
de coloniza9ao e dos colonos, determinaram que poucas fossem Provincia, como na Barra Velha, Vila de Joinville, Costa da Ser-
as a9oes efeti vamente realizadas contra os in di gen as. Al em dis- ra, Curitibanos e Colonia Militar de Santa Tereza, houve diver-
so, entre 1836 quando a companhia foi criada, e 1879, quando sas correrias dos sel vagens, algumas dellas seguidas de funes-
ocorreu sua extin9ao, havia um territorio relativamente enorme tas consequeencias, sendo elles energicamente repellidos, ja
para os _Xokleng sob~~":iver. A frente pioneira, representada pe- pelos habitantes, a defenderem o lar das violencias que o assal-
los contlngentes que 1m1gravam da Europa, estava ainda ocupada tavao, e ja pelo acerto das medidas empregadas pelas autorida-
des ( •.. )".
Nesta mesma "falla", em anexo, o Chefe de Policia da Pro-
vincia apresenta seu relatorio, ressaltando so bre os indigenas
(1) - Em nossos diarios constam referencias a essa situa~ao, em en- que "Na Barra Velha e Villa de Join ville o aparecimento deles,
trev.tstas que rea!izamos com muitas pessoas que ainda hoje vivem em
areas de floresta e onde 0 indio e presente, pelo menos, nos muitos
em os mezes de Janeiro e Fevereiro, poz em alarma os morado-
casos narrados nas reunioes de parentes e vizinhos. res desses districtos; saindo, porem, d'entre estes alguns ho-
(2) - Paula, 1922: 117. mens mateiros, embrenharao-se nas matas e afugentaram os
sel vagens, restituindo assim a paz as familias ( ... Y'.
(3)- ( ... ) A Companhia nao esta completa de pra~as, e porisso em al-
guns annos pelo verao tern a Presidencia mandado engajar paisanos Mas e o jomal Kolonie Zeitung, de 3 de janeiro de 1874,
conhecedores das mattas ( ... ). Relatorio, ano 1859: 5. que nos traz noticias sobre as as:oes que se desencadeavam a

+ 79
78
 epoca sobre OS indios (1). Diz 0 texto: "Aos 28 de dezembro de das colonias n' esta provincia, se vae fazendo de um modo regu-
1873 ~artiu d'aqui. (S~o Bento - SCS) a procura dos bugres que lar ( ... )".
vague1am entre J 01nvdle e Blumenau a maior e:x;pedi~ao approva- Previa-se assim que a luta en tre indios e nao indio s se
da pelo presidente da provincia. Compunha•se de 31 homens dos acer:tuaria na medida em que mais a fundo se penetrasse no
. '
qu~es. 2.3 _Prov1eram dos campo~ do planalto e 8 deste municipio,
sertao. Previa-se que o indio reagiria a presen9a do branco.
e. e ding1da pelo vaqueano J oao dos Santos Reis do lugar deno- R~ag~ria porqu~ o branco nao pretendia deixar espa90 al gum para
m1nado Campo dos Ambrosios. 0 Sr. Guilherme Engelke acompa· o 1nd10 sobrev1ver. 0 govemo, portanto, tomava consciencia do
nhou a expedi~ao como fiscal ( ... )". problema mas, ao mesmo tempo, apontava a falta de recursos co-
Aos 10 de j aneiro de 1874, o mesmo jorn al noticia: "A res- mo obstaculo a . qualquer tentativa de soluciona-lo. Alem da alega-
peito da expedi~ao partida contra os bugres sabe-se, por enquan- da falta de recursos, o governo fazia tambem uma sutil distri-
to, o seguinte: A expedi~ao dividiu·se em diversos grupos afim bui9ao de res ponsabilidades, de modo que ninguem tomava atitu-
de obter primeiramente certeza sobre o actual pondo de estancia des porque nao estava suficientemente autorizado para tal. Eis o
dos tndios; OS di versos grupos partiram em varias direc~oes. que cons ta na "falla" do ano de 1880: «com relac;ao ao ass unto
0 grupo que foi para o Norte ja voltou depois de alguns dias, nao cabe-me ainda dizer-vos que tern havido alguns ataques de bugres
tendo achado se,nao vestigios vagos. 0 outro, que partiu para o nos lugares por elles mais frequentados, nao sendo felizmente
sul, teve um exito completo. Conseguiu descobrir a linha de reti- nenhum de maior consequencia. ·
rada ate a paragem actual. Foram enconttados 3 vezes em segui- Para afugentar dos mesmos _lugares tomei as medidas de
da 3 ranchos a pequena distancia; os bugres fizeram pois a sua · costume:, recorri aos battedores de matto.
retirada com todo o descanso, depois do assassina;o da familia E pena que ate hoje niio se tenha procurado chamar esses
Lens chow. Mas apezar disto a persegui~ao nao foi facil, pois os infelizes ao seio da, civiliza~iio. Mas confio que olhareis para
bugres andaram em todos os rios ac ima e abaixo afim de apaga· esse interesse, e espero que o mesmo fa~a o Governo geral a
-rem os seus vestigios. Em um dos u.ltimos ranchos os bandeirao- qu e rn ja pedi providencias ( ... )".
tes acharam o machado do assassinato Lenschow, com o qual os E enquanto as providencias solicitadas nao atingiam a uma
bugres cortaram muitos palmitos no caminho.Neste ultimo rancho conjun9ao favoravel, as administrac;oes das colonias, os colonos
encontraram-se tambem restos quasi frescos de carne de anta. e o governo provincial iam resolvendo o problema incligena atra-
Como os perseguidores se certificaram de que o bando de indios, ves das medidas de costume: OS bugreiros. Bugreiros que devido
composto de mais ou menos 120 cabe~as se achava muito perto, as constantes solicitac;oes acabaram por se especializar na
voltaram a se unir aos companheiros, que ja os esperavam de- profissao, de maneira que em cada regiao havia quern fosse en-
pois de uma ausencia de S dias. Na noite de 2 de janeiro tada a t en ti do na tare fa de afugentar indio.
expedi~ao partiu para o ataque dos bugres ( ••• )". Uma testemunha narra a violencia que a epoca ocorria no
A 'fall a" de 1877, apresentada pelo Presidente da Provin· sertao (1): "(. .. ) a maior parce dos muares, Lemos enviou pela
cia Jose Bento de Araujo, deixa claro em definitivo o que estava escrada mais segura, e para verificar o estado da picada esco-
a ocorrer, fazendo previsoes sobre o que logo se sucederia. Diz lheu a mim e ao bugreiro Machado, conhecedor do mato e experi-
o Presidente aos deputados provinciais: "Enquanto nao se esta- mentado matador de bugres, com um faro melhor do que de um
belecer na provincia um systema de cachequese geral, existira a cachorro (os bugreiros afirmam que cheiram de longe a aproxima-
~ao de um indio) ( ... ). Num inesperado momento, pareceu que
luta entre o selvagem e o homem civilizado, que cencar approxi-
mar-se d'aquelle. E e provavel que esses combates individuais todas as arvores gritavam como se fossem corujas, gavioes ou
se revesciam de um cacacter mais grave, quando o espa~o occupa- ma cacos. 0 bugreiro Machado estava na vanguarda da tropa. Pu-
lo~ da mula e ini~ iou o tirot~i.?·. Algumas flechadas atingiram o
pado pelas hordas selvagens foi diminuindo pela conquista dos
animal e este ca1u no prec1p1c10. Eu escondi-me por entre as
sertoes do interior, conquista que, depois do desenvolvimento
pedras e cobri·me com um balaio. Para o bugreiro acabaram-se as
balas. Tirou o facao e pulou para um buraco ao lado. Uin dos

( 1) - Cf. Wa chowicz, 1969: 473.

(1) - Cf. Dolfgang, 1923: 17 e seguintes.

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 bugres apareceu no caminho, porem Lemos, meu patrao, que ain-
da possuia balas, atingiu-o com boa pontaria, porque ele tombou.
Para os nossos faltaram l:>alas e para os indios flechas, porque
lanc;:aram-se com tacapes. Um outro- pulou sobre o bugreiro Ma-
chado. Preparou-se para abate-lo a tacape; este enroscou-se no
barranco e Machado desferiu-lhe com o facao um golpe, abrindo-
·lhe o ventre. 0 infeliz quis com as maos segurar os intestinos,
porem caiu sobre eles no chao. Apareceu um terceiro. Antes
porem que pudesse movimencar o tacape, o bugreiro enfiou-lhe o
facao nas coscelas. Os rescantes ticubearam. Parecia que nao
queriam concinuar a luca, quando o maior deles urrou vinganc;:a e
pulou ferozmence. Antes de acingir, o facao a~riu-lhe o ventre.
Neste momento os outros, gricando horrivelmence, fugiram ( ... )".
As tropas de bugreiros compunham-se, em regra, com 8 a 15
homens. A maioria deles era aparentada entre si. Atuavam sob
a ac;ao constante de um lider, que tinha sobre o grupo pleno po-
der de decisao. As referencias que logramos obter sobre essas
tropas indicam que a quase totalidade era fonnada por caboclos,
conhecedores profundos da vida do sertao. Ao formar um grupo, o
Hder nao tratava apenas de prestar servic;o s as colonias e seus
habitantes . Tambem viajantes , tropeiros e agrimensores utiliza-
vam constantemente essas tropas para sua protec;ao quando ne-
cessitava m atravessar ou permanecer em territorios onde a pre-
senc;a indigena era frequente. Os bugreiros se integravam assim
ao contexto vigente, oferecendo seguranc;a a quern desej ava.
Quando o s bugreiros eram chamados por colonos, pelos
a dministradores das colonias ou pelo governo para realizarem
expedi96es de a fugentamento do selvagem, eles s e preparavam
verdadeiramen te para urn a expedic;ao de guerra. Eduardo Hoer-
!1ha n, em relat6rio apresentado ao Servi90 de Protec;ao aos
Indios, a s sim os descreve (1): «Jnfinicas precaus;oes comam, pois
e preciso surpreender os indios nos seus ranchos quando entre-
gues ao sono. Nao levam caes. Seguem a picada dos indios, des-
cobrem os ranchos e, sem conversarem, sem fumarem, aguardam a
hora propicia. E quando o dia esta para nascer que dao o assal-
co. 0 primeiro cuidado e corcar as cordas dos arcos. Depois
praticam o morti c inio. Compreende-se que os indios, acordados a
tiros e a facao, nem procuram defender-se e ·c oda heroicidade
dos assaltantes consiste em cortar carne inerme de homens aco-
barbados pela surpresa.
Depois das batidas dividem-se OS despojos que sao vendi-

(1) Cf. Ribeiro; 1970: 109/ 110

83

--

Tropa de Bugreiros . Reprodu~ao de Gerlach.

dos a quern mais der, ent.re eles os trofeus de combate e as corrente ( ... ). Em vista do pedido de providencias, propoe esta
crian~as apresadas". chefia a S. Excia se digne autorizar o dispendio de 300$000 rs
No sul do Estado de Santa Catarina, onde se desenvolvia a aproximadamente no pagamento de vaqueiros que batam as matas
coloniza9~l0 italiana, os administradores das colonias impuseram e afugentem os selvicolas".
a cobran9a de taxas ou o compromisso do individuo participar A 24 de fevereiro, ainda o J ornal do Comercio
das razias que se praticavam contra os Indios (1). Pretendia-se "Ao delegado de Lages, respondendo ao s/ oficio de 7 cor·
de uma forma ou outra obter recursos para a continua luta contra rente, a que acompanhou a representa9ao do fazendeiro J os.e
os Xokleng. Hoemhan, no relatorio acima referido, in di ca: "Nos Rodrigues de Souza, e a c6pia do seu oficio em resposta, !Jue ft.
municipios de Ararangua ~e Tubarao existiam ( ... ) os celeberri- ca esta aprovada. Ao delegado de S. Francisco, pelo telegrafo,
mos Verissimo, Maneco Angelo e Natal Coral, os tres grandes comunicando que, para garantir a populas;ao dos assal tos dos
capitaes das batidas. Eram tidos cowo herois e como ta is, res- selvagens no J aragua, fica autorizada a despesa com batedores
pe itados. Visitavam-nos, aplaudiam-nos e citavam seus nomes de matas. No mesmo sentido telegrafou-se ao delegado de Tuba-
como se fossem de prestantes cidadaos". rao, quanto aos assaltos de indigenas na ex-colonia Azambuja".
Aos governos provinciais nao se pode defender pelo pos- A 27 de f evereiro:
sivel desconhecimento do que se passava. Ao contrario, o gover- "Ao delegado do Paraty pelo telegrafo, comunica para ga·
no participava da maioria das ati vidades que se desenvol vi am, rantir a popula~ao do J aragua, que fica aucorizada a despesa
como suporte financeiro ou como entidade capaz de oferecer o com batedores das matas. Ao delegado do Paraty telegrama re-
suporte moral da autoriza9ao oficial. Algumas noticias obtidas comendando que remeta as armas dos Indios ( ..• )".
em jomai s da epoca servem de exemplo. 0 Jornal do Comercio, Em 3 de mar~o, o nociciario prossegue pelo mesmo Jornal:
editado em Florianopol is, sempre incluiu um noticiario telegrafi- "Do Secretario ao Delegado do Paraty, respondendo, de or-
co s obre a correspondencia governamental. No ano de 1883, a dem de S. Excia. o Dr. Chefe de Policia, do seu telegrama de
20 de fevereiro diz: "Reparti~ao de Policia. ontem e esclarecendo como se deve proceder no servi~o de afu-
Ao ExmQ Sr. Coronel Vice-Presidente da Provincia, nQ 20, genca~ao dos selvagens, que assalcaram o Jaragua, especialmen·
transmitindo a comunicas;ao do delegado do termo de Lages, em + te quanto a parte econom1ca n .
' A •

oficio de 7 do Corrente, acerca do oferecimento que fez, em data A 28 de junho: .

de 30 do mes pr6ximo passado, o cidadao Jose Rodrigues de "Ao Exmll Sr. Presidente, nQ 149, para que se digne mandar
Souza, fazendeiro na freguesia de Sao J oaquim da Costa da pagar, pela colecoria geral do Joinville, ao respectivo delegado,
Serra, de reunir gente suficiente para garantir a popula~ao do a quantia dispendida com 4 batedores de matas, encarregados da
lugar de novos assaltos de indigenas e afugental-os, correndo afugentas;ao dos indigenas".
por sua pr6pria conta as respectivas despesas ( .•• )". Simultaneamente, o noticiario jornalistico tambem come9ou
A 22 de fevereiro o mesmo jornal: a se ocupar com o que ocorria no interior da floresta, quando um
"Ao ExmQ Sr. Coronel Vice-Presidente da Provincia, nil 39, grupo de bugreiros se aproximava de um acamp~mento indigena.
solicitando, em vista do oficio do delegado de Tubarao, que A popula9ao das cidades, assim, tomava conhecu~ento do q~e se
S. Excia dignou·se enviar a esta chefia, como unica providencia passava. Uma unica noticia obtida no J~rnal .N?v1dades, ed1tado
que o caso nele exposto reclama, a necessaria autorizas;ao para em ltaj ai, de S de junho de 1904, sera sufic1en te para termos
que seja dispendida ate a quantia de 200$000 rs com o servis;o ideia da realidade:
de afugentar os indigenas daquela paragem ( ... )
A 23 de fevereiro o mesmo jornal: "CARNIFICINA NOS BUGRES"
"Ao ExmQ Sr. Coronel Vice-Presidente da Provincia, nil 41,
comunicou pelo telegrafo o ·delegado de S. Francisco, que os Sob a epigrafe: "como se civiliza no seculo vinte" traz o
indigenas assaltaram os moradores de Jaragua, nos dias 16 e 17 Blumenau Zeicung, folha da vizinha cidade de Blumenau, um ar-
tigo em que comenta e verbera as atrocidades com que execut~m
0 mandado do governo para repressao ~os selv~gens, a turma _in-
(1) Marzano, 1904: 123/ 124. cumbida de afu~entar os bugres. Pe las 1nforma~oes que o refendo

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jornal obteve, conclui-se o seguinte: A turma, composta de 10 Jose Bento era um homem muito valeote, e o melhor dos nossos
homens, entrando no mato, na Vargem Grande, perto de Aquida- ca~adores de bugres e que estava tao bem no mato como na
bam, no dia 24 de abril, ja no dia seguinte encontrou vestigios propria casa. Diversas vezes que teve de lutar com os selva-
dos bugres; seguindo uma picada larga que os bugres tinham fei· gens, sempre saiu vencedor; por isto eles o conheciam e temiam;
to, encontrou diversos ranchos novos. mas o traziam sempre de olho, ate que agora vingaram-se (••• )".
No fim da segunda semana, pelos vestigios, a tunna conven• A apresent89ao do bugreiro como heroi, evidentemente, era
ceu-se que estava perto do acampamento dos selvicolas. Com- fundamentada na ideia que todos faziam sobre a condi9ao anima-
binou-se um assalto para as 8 horas da manha, mas adiou-se lesca do indio. E esse tipo de justifica9ao diversas ocasioes pu-
este para 0 dia seguinte, visto muitos dos bugres estarem fora demos constatar durante a realiza9ao des ta pesquisa. Uma de las,
do acampamento. que elucida hem o que desej amos esclarecer, foi obtida jun to
Os homens avistaram um rancho grande de 35 metros de a um hem sucedido fazendeiro da regiao de Sao Joaquim da
comprimento e 10 metros de largura, e mais alguns ranchos pe- Costa da Serra, em cujas terras, em 1946, alguns Xokleng arre-
quenos. Calcularam que dentro do acampamento deviam viver dios foram trucidados. Falando-me de persegui9oes realizadas
perto de 230 almas, a maior parte mulheres e crian~as. aos i~digenas disse-me o informante, com ares de aprovas;ao do
0 acampamento estava situado num alto, rodeado de ta9ua- suced1do (2): "conheci um individuo chamado Julio Ramos, que
ra, o que serviu aos ca~adores para se ocultarem. Como f1cou part1c1pava dessas tropas. Contou-me que uma vez, durance um
combinado o assalto foi executado no dia seguinte ao romper do ataque, uma menin...ota de mais ou meoos 14 anos tentava fugir
dia. 0 pavor e a consterna~ao produzidas pelo assalto foi tal,
que OS bugres nem pensaram em defender-Se, a unica coisa que - do acampamento. Ele a alcan~ou, agarrando-a pelos cabelos e
desceu-lhe o facao. Este penetrou pelos ombros descendo ate ao
fizeram foi procurar abrigar com o proprio corpo, a vida das mu- estomago, cortando que nem bananeira ( ... )".
lheres e crian~as. Baldados intentos ! ! ! Os inimigos nao poupa· 0 matador de bugres era heroicamente solicitado a <!ontar
ram vida nenhuma; depois de terem iniciado a sua obra com ba- suas fa9anhas. Nas reunioes da parentela, nas rodas que se for-
las, a finalizaram com facas. mavam durante as festas de igreja, nas bodegas, os casos que
N em se comoveram com .os gemidos e gritos das cnan~as en vol vi am indigenas e SEZ_us ca9adores sempre atralam ouvintes
que estavam agarradas ao corpo prostado das maes! durante horas seguidas. As vezes o narrador ampliava as fa9a-
F oi tudo massacrado. nhas, trazendo para 0 cenario dificuldades de toda a ordem para
Alguns bugres que depois chegaram, querendo vingar os veneer a floresta, ressaltando os perigos mortais representados
seus, mas nao tendo armas, foram tambem massacrados, ficando
la prostados.
Depois do massacre houve saque; carregaram tudo o que
- pela existencia de cobras e on9as; e, especialmente, multipli-
cando desmesuradamente 0 numero de indigenas que havia enfren-
tado. E quando alguem, entre os ouvin tes, resol via colocar em
valia a pena levar, como: fazendas que os bugres tinham roubado duvida a veracidade dos fatos ou a valentia do narrador, este
ultimamente, roupas, flechas, colares. E o resto foi um incendio aceitava desafios e prometia pro var sua idonei dade. Schaden
geral ( .•• )". (1940: 15/ 16) narra que "( •.. ) um dos antigos moradores de S.
A crueza das infonna9oes, entretanto, a poucos chocava. A Bonifacio, Heinrich Vandresen, teve frequen tes encontros com
nos;ao de que o indio era uma amea9a aos projetos de progresso os selvagens. Falava muitas vezes a este respeito com seus vi-
do civilizado praticamente anulava qualquer esbo90 de rea9ao. zinhos. Estes o ouviam sempre atentos e com interesse, mas a
Ao mesmo tempo, entre os brancos, criavam-se imagens de he-
rois para os executores do exterminio indigena. Ao ocorrer a
morte de um chefe bugreiro durante uma expedi9ao, um jomal as-
expressao de seus rostos espelhava as duvidas que tinham acer-
ca da verdade dos fatos narrados. Cerca vez, Vandresen, notando
e.ssas desconfian~as, prometeu trazer, ao encontro seguinte que
-
sim se manifesta (1): "( ••• ) 0 Chefe da expedi~ao Jose Bento uvesse, a orelha de um selvicola. Pouco tempo depois, voltando
foi morto pelos bugres. Sua morte deve ser sinceramente sentida.

(1) - Novidades, n~ 3, 1904. (2) - Entrevista em 20/ 7 / 1964.

86 87
precipitadamente da mata, o colono pediu aos viziohos que o nentes de uma sociedade parecem integralmente ter perdido a
acompanhassem, para com ele afugentarem OS indio s. Enquanto razao, atuando mo ti vados por falsas concepc;oes do mundo em
se dirigiam pua a floresta, Vandresen concou-lhes o que aconte- que vivem, alguns individuos dessa mesma sociedade continuam
cera. Escivera crabalhando sozinho numa ro~a a beira da flores- a atuar com base no raciocinio 16gico. No raciocinio que nao
ta, quando, sem que civesse desconfiado de coisa alguma, se acredi ta em verdades fei tas, mas que procura dados para fun da-
sencira abra~ado inopinadamente por um individuo que, vindo de men tar respostas. Um autor catarinense, (1) ao inicio deste se-
tras, lhe apertava o ventre procurando derruba-lo. 0 agressor, culo, parece se preocupar com isto, ao dizer: « E fall am de bar-
que era um indio, chamara logo pelos seus compaoheiros, e den- baridades, das depreda~oes praticadas pelos selvicolas, censu-
tro em pouco haviam saido do mato mais alguns individuos. Lu- ram-n 'os e perseguem-n'os a tiros de fuzil, mas nao se lembram
tando desesperadamente, Vandresen conseguira ter um bra~o li- que assim procedento tornam-se mais ferozes que os pr6prios in·
vre, para desembainhar o facao que levava a c intura. Abaixara- dios, que afinal, se atacam, e em represalias das affrontas re-
·se, em seguida, cravando, por entre as pernas, o facao no ven- cebidas.
tre do adversario, o qual, sol tando horrivel grito caira por terra Oue o colono ou o morador do sertao se defenda va, mas
( ... ) . que ao saber da existencia dos Indios organise montarias como
Sohre o epis6dio ha ainda a seguinte versao: Vandresen, de· aos animais ferozes, que os ataque sem provoca~ao, nao se
pois de matar um indio com uma pistola de dois canos, dispunha- comprehende. E individuos ha que se ufanam de haver morto
·se a cortar-lhe as orelhas, quando foi agarrado no bra~o esquer- muitos d' esses pobres selvagens, nao se lembrando que ell es
do por um selvicola que se aproximara desapercebido e ao qual sao tao homens como qualquer outro.
entao deu a facada ( ..• )". E triste que semelhantes tragedias se reproduzam cada
Atacando os indigenas diretamente em seus acampamentos, anno, que muitos brasileiros, embora selvagens, sejam mortos
em emboscadas que nao davam qualquer alternativa de resisten- por haverem furtado algumas espigas de milho, por haverem
cia aos atacados, os bugreiros especializaram certas taticas de flechado um animal qualquer.
guerra. Aprendendo os habitos dos indigenas; descobrindo os E que nome merecem esses ca~adores' de Indios, que pena
menores indicios que revelassem sua presenc;a; conhecendo os devem soffrer esses assassinos que em virtude de um mal enten-
periodos do ano que os indios deslocavam-se para as zonas on· dido Christianismo, fazem de seus semelhantes objecto de
de havia pinheirais; fazendo continuos reconhecimentos no ter- ca~a? ".
reno, os bugreiros se habili taram a fazer guerra ao indio utili-
zando recursos pr6prios aos indigenas. Era a guerra de guerri- 6. MARTINHO MARCELINO DE JESUS: BUGREIRO
lhas, imprevisivel em suas taticas e que sempre garantira exito DE PROFISSAO -
aos silvicolas quando realizavam al gum ataque aos ci vilizados,
que agora vai sendo amplamente utilizada pelos bugreiros. Na medida em que o territ6rio indigena diminuiu em razao do
As ac;oes desenvolvidas pelos bugreiros, com o tempo, en- avanc;o da frente pioneira e os encontros· entre indios e brancos
tretanto, nao deixaram de causar impacto sobre certos habitan- se tomaram mais constantes, os bugreiros apareceram como so-
tes da provincia, do pais, e, mesmo, do exterior. Os morticinios luc;ao definitiva de afugentamento do gentio. No tempo, isto co-
praticados; a crueldade com que se apresentavam mulheres e mec;ou aproximadamente no inicio do ultimo quarto do seculo
crianc;as indigenas em vilas e cidades como testemunhos do su- passado. No espac;o, atingiu toda a regiao localizada entre o
cesso das expedic;oes; os relatos tragicos aventurescamente litoral e planalto dentro dos atuai s l imites \ie San ta Catarina.
narrados pelos integrantes das tropas e, as vezes, publicados A presenc;a de bugreiros ocorreu assim em todo o Estado.
em jomais, chamaram a razao alguns espiritos lucidos da epoca. Havia os improvisados que resolviam fazer ou acompanhar uma
Protestos com~aram a ser formulados contra o apoio que o go-
vemo e as administrac;oes das colonias davam aos bugreiros, -- expedic;ao de vinganc;a, para revidar algum ataque.. Havia os
profissionais, que atendiam mediante pagamento aos apelos de
destacando que o indio nao poderia ser tratado por esses meios. seguranc;a realizados pelo governo, pelas colonias e pelos colo-
Se nao tiveram resultados imediatos, esses protestos pelo me-
nos vieram servir para demonstrar que mesmo quando os compo- (1) - Vieira da Rosa, 1905: 309.

88 89
nos. Entre esses profissionais, um deles sera aqui focalizado <lades de Ituporanga e Barracao. E no periodo compreendido en-
em particular. Os principais episodios de sua historia de vida, tre 1923 e 1928, Martinho esteve a s ervi90 do agrimensor de
que logramos reconstituir, permitirao ideia sobre como e por que terras, Sr. Carlos Miguel Koerich. Atuava como protetor dos ser-
agiam esses indi vi duos. Trata-se de Martim Ma rcelino de Jes us, vi9os de agrimensura que se efeti varam nas localidades de Bar-
conhecido vulgarmente como Martim bugreiro, cuja fama de mata. racao, Anitapolis, Esteves Junior, Angelina e Brus que. Martinho
dor de bugres lhe garantiu lugar particular em toda essa trama funcionou ainda como homem de confians;a de muitos coroneis-
his t6ri ca. -fazendeiros da regiao dos campos. Segundo s ua filha Matilde,
Segundo dados que logramos obter junto a seus familiares os Albuquerque, os Almeida, os Pires e os Ramos eram gente
(1), Martinho bugreiro nasceu em Born Retiro, Santa Catarina, amiga. Sabe.se ainda que participou da revolus;ao constitucio-
por volta de 1876. Ainda jovem, com~ou a traba lhar em fazen- nalis ta de Sao Paulo, integrando os batalhoes do Governo (1).
das, vivendo primeiro em Taquaras e depois em Born Retiro. Morreu em Born Retiro, de paratifo, em 1936.
Atuava como domador, "numa vida volante, daqui e dalF'. De. Ma rtinho era analfabeto, "mas era homem de corresponden-
pois pas sou a vi ver na fazenda do Maj or Generoso Oliveira, em cia". Em certa epoca trouxe para sua casa um a jo vem que sabia
Born Retiro. Tai vez nessa epoca tenha se iniciado na ca9a aos ler e escrever para lhe servir de secretaria. Depois , foi sua fi.
bugres, mas nao ha certeza. Quando casou ja era "rapaz feito". Iha Matilde Marcelino, informante, que por varios anos exerceu
Ha indica9oes que possu{a m.1 filho natural, Valencio Marcelino, esse mis ter. Ha via sempre cartas a serem en viadas para amigos,
ja rapazote quando do seu casamento. A esposa de Martinho era co nhecidos e autoridades. Martinho era muito rel ac ionado e se.
filh a adotiva de um prospero fazendei ro e comerciante dos ca~ gundo s ua filha "teve a faca e o queijo na mao para ser rico,
pos da se rra da Boa Vista. Martinho conviveu com os sogros ate mas nao cortou fatia alguma". A alusao, natura lmente, referen-e
o nascimento de seu quarto filho. Nessa altura, resolveu residir a
te preca ria situa9ao financeira dos descenden tes de Martinho,
no lugar Caete (municipio de Alfredo Wagner), e, logo depois, pois este ao morrer na o tinha suas proprieda des devidamente
mudou- se para o lugar Figueredo (dis trito de Catuira, Born Reti- legal izadas, o que tern dificultado sobremaneira o desembara90
ro) dedicando- se a cria9ao de gado. Como nao era grande pro- do re s pec ti vo in ven tario.
prietario, recebia a desi gna9ao de criado r (2). Nessa ati vidade A tropa de bu greiros comandada por Ma rtinho era formada
e que Martinho passou a se dedicar a ca9a de bugres. Viajando por pa rentes e am igos seus. Raramente, outros individuos eram
com s ua gente, atendendo chamados daqui e dali, ele estava co nvocados. Todos eram caboclos, como ele. Todo s eximios co-
sempre fora de casa. "la muito a Florian6poli s , prestar contas nhecedores do sertao. Jose Rodrigues Marcelino, apelidado Jose
as autoridades de seu trabalho". E m esmo depoi s que Eduardo Bolantim ; J acinto Jose de Souza, conhecido tam bem como J acin-
Hoerhan pacificou os Xokleng em lbi rama (1914), Martinho conti- to Inacio Ma rcelino; Inacio Castanheiro; Antonio Castanheiro;
nuou a se r solici tado. Ha via muitos Indios ainda em toda a costa J ose Castanheiro; Manoel (Neco) Castanheiro ; Joao Faustino;
da Serra, pr6ximos aos carrtpos de Lages, e no sul do Estado. A Leodora F a ustino e Jose Faustino eram os companheiros mais
Companhia Colonizadora Santa Catarina, cujo diretor era o Coro- constantes de Martinho na atividade de cas:a aos bugres (2).
nel Carlos Poeta, contratou Martinho como gerente, para dar co-
bertura e seguram;a aos colonos que se instalavam nas proximi-
( 1, - Deretti, 1970: 25, i-nforma : " Dura nte a revolucao constituc iona-
lis ta de 1932, estando meu batalhao aquartelado em Itarare (SP)
Pa mesma corpora9ao se acha va um soldado conhecido como Martinho
( 1) - R ealizamos entrevistas com a Sra. Matilde Marcelino, filha de Bugreiro, j a maduro em idade. Contou-me que em Santa Catarina "ti nha
Martinho em 1967 e 1970. Utilizamos ainda informa9oes obtidas junto liquidado muitos bugres". Nao me esclareceu se se trata va de coroados
aos Srs. Carlos M. Koerich (entrevis ta, outubro/70), J ose Mac ie l (e ntre- ou botoc udos. Declarou-me, porem, ciue em grupos armados penetravam
vista, outubro/7 0), Hedeoberto de Oliveira (entrevis ta setembro/ 67). a noite nas c hoc;as dos indi os e matavam todos quantos la estives~m
Ti vemos a inda a nossa disposi9ao uma entrevista realizada pe la estu- dormindo , a fio de Ca c ao, nao poupando mulheres e c rian9a s".
dante T a nia Oliveira com a Sra. Matilde Marce lino, em 1967. (2) - 0 romance Os Ultimos Dias da Gruta Verd e, d e Ernesto Venera
(2) - 0 termo fazendeiro na regiao e reservado para aquele que possui dos Santos, e d . L ivraria Santos - Sao Bento-SC. , utiliza varios desses
enorme extensao territorial; um minimo de oito milhoes de campo. personagens, dramatizando suas vidas. Martinho aparece ai como um
Castro F a ria, 1944: 15. lenda rio desbravador e ci vilizador do sertao.

90 91
•

0 Jornal "Novidades", de Itajai, de 12 de mars:o de 1905, "(1) Marcelino Martim-chefe; (2) Nilo Severino; (3) Durvalino;
apresenta um inteiessante artigo sobre atividades desenvolvidas ( 4) Maximiano; (5) Balduino; (6) Manuel Marcelino; (7) Jose Ma-
por Martim Bugreiro. Vejamo-lo: "Expedi~ao contra os bugres. ria; (8) Wenceslau Schlichting; (9) Antonio Jose Bernardo;
Depois de estarem cinco dias intemados no mato, tendo por (10) Joao Nata da Rosa; (11) Jose Luciano de Souza; (12) Bene-
vezes atravessado caudalosos bra~os de rios que supoem dito Inacio de Souza; (13) Antonio Valente; (14) Jose Antonio;
afluentes do Tijucas, os expedicionarios, c hefiados por Martinho (15) Jacinto Jose de Sousa; (16) Jose Rodrigues; (17) Thomas de
Marcelino, ce lebre batedor de bugres, encontraram um rancho, tal; (18) Ignacio Castanhei ro; (19) Schuetz" (1). Nessa expedi-
pelos sinais, ha pouco abandonado, havendo dencro dele um pi- c;ao foram capturadas duas mulheres e doze crians;as, o que indi-
lao e muitas hervas socadas, como tambem o cadaver de um ca que muitos indios devem ter sido mortos. As notas de Zitlow
bugre envolvido em folhas de caete. Ai a turma fez alto e Mar- apontam diversos objetos que foram recolhidos pelos bugreiros
cinho com tres companheiros procedeu de novo reconhecimento. no acampamento assaltado e indicam o movimento financeiro da
( ..• ) Pressentindo perto, movimento dos sel vagens, Martinho su· expedis:ao. N esse aspecto as not as tomam um valor especial,
biu a uma arvore, de onde descobriu grande ajuntamento ( •.• ). pois testemunham que os habitantes das colonias colaboravam
Martinho, tendo observado que o numero de bugres era hem gran- com recursos financeiros para manter as expedic;oes de cac;a aos
de e que 16 homens eram insuficientes, conseguiu mais 7 com- bugres. Diz Zitlow:
panheiros, no Ribeirao do Ouro, e a turma, deste modo composta "Bugerexpedition. Dezeml:>er 1905.
de 24 homens, encaminhou-se para o ponto onde tinham visto os Sammlung (coleta·SCS) - Jahn 149.000
selvagen s. Mas ai chegando, verificaram haver em el es se au sen· -Gruner 90.000
tado tomando rumo de oeste, naturalmen te por terem pressentido - H. Stahnke 123.000
a aproxima~ao da turma. Dirigindo suas pesquisas nessa dire· - G. Vicente 17 .000
~ao, percorreram, com mil dificuldades, grande extensao de ser· - H. Schroeder 25.000
tao, atravessando rios cheios em jangadas que improvisaram. - B. Engelke 10.000
Neste mesmo dia sentiram indicios dos bugres. 0 assalto feito Zietlow und
aos mesmos foi, em linhas gerais, descrito por alguns membros Liniepersonal 300.000
da turma, da seguinte maneira: Devido a grande escuridao (2 ho· 714.000
ras da madrugada) os 24 homens para nao se perderem uns aos
oucros, seguiam assim: o que marchava atraz levava a mao Eingangene Zahlungen sowie an Martin gemachte Zahlun·
apoiada no que ia a frente, e guiava 0 estranho prestito 0 chefe gen : (dinheiro recebido e entregue a Martim - SCS)
Martinho com uma vela acesa, em dire~ao aos ranchos que ha· Moersch 500.000
viam descoberto de dia. Ai chegando com as maiores cautelas, a Zietlow 500.000
um sinal convencionado, deram o ataque. Estabeleceu·se uma Stuttzer (Kammer) 500.000
Associa~ao (Specht) 200.000
confusao enorme: gritos, pulos, imprecau~oes, um berreiro infer-
Schrader (Kammer) 300.000
nal por parte dos selvagens. Nao contam os expedicionarios,
mas e facil prever terem feito eles uma boa chacina, aponderan- 2.000.000 "(2)
do-se de tudo quanto existia den tro dos ranchos e de um bugri·
nho de 8 a 10 anos de idade ( •.• )".
No ano de 1905, Martinho bugreiro andou realizando uma
Nessa expedi9ao morreu um dos bugreiros, chamado Ignacio
Castanheiro. 0 acontecimento deu margem a que nova coleta
-
expedic;ao pelo vale do Itajai. Num li vro de anotas;oes deixado fo sse real izada na colonia, com o objeti vo de socorrer a viuva
por Algusto Zitlow, obtivemos varios dados sobre essa missao
( 1). Integraram a tropa de bugreiros, os seguintes incli viduos:
( 1) - Deveria ha ver ma is um integrante, poi s Zittlow aponta o m'.imero
20 seguido de um ponto de interroga~ao.
(2) - As quantias a cima devem ser lidas em reis. A quantia final,
(1) - Cf. copia existente na Biblioteca Fritz Muller, Blumenau. 2.000.000, deve-se ler: dois contos de reis .

92 93
do bugreiro falec ido. Como, entretanto, as mulheres e as crians:as caia s8bre os bugres para aniquila-los, como a maioria do povo
indigenas capturadas foram entregues a um convento da colonia, o julga.
Juiz · de direito local resolveu criar um fundo com parte dos re- A ma.i.or parte dos homens do grupo e ocupada no transporte
c ur sos c oletados , a fim de socorrer os indigenas em suas ne- da muni~ao de boca e de guerra e da bagagem e eu mesmo, com
cess idades imediatas. Zittlow em seu cademo anotou o seguin- bem pouc os homens , estamos quase s e mpre bem adiancados
te: "Nos abaixo assinados moradores da cidade de Blumenau, desse grupo, de sorce que me cenho visto obrigado a passar noi·
attestamos e juramos se necessario for que entregamos ao bu- tes inteiras sem comer nem be':>er, acocorado atras de algum
greiro Martim Marcelino de Jesus a quaritia de seiscentos e no- tronco de arvore.
venta e um mil e duzencos reis com o fim especial de entregar Quando ·s into que escou proximo dos indigenas, deixo os
a dita importancia a sua irma, viiiva do bugreiro Ignacio Casta- companheiros para tras, e sorrateiramente, me aproximo sozinho
nheiro sucumbido na expedi~ao que teve lugar em novembro de do acampamento para observar-Ihe bem a situa~ao e avaliar ·o
1905. Este dinheiro foi por nos esmolado em beneficio da referi- m.imero dos seus ocupantes. Depois, volto, furtivamence, para a
da viuva durante o trajeto nos seguinces lugares: minha gente.
Zimber 13 7.000 No outro dia, no amanhecer, volto cuidadosamente acompa·
Diversos Erich 5 .400 nhado de bem pouc<>6 homens, ate proximo ao acampamento; para
Wehmuth 120.600 encontrar o carreiro, basta-me apenas a luz de uma vela de cera.
Stahnke 59.000 Coloco depois, os homens ao redor do pouso, um pouco distan-
Luders 181.500 ciados um do outro e aguardo ate que a claridade seja suficiente
Paupitz 66.500 para se dispensar a luz da vela. Entao, sozinho eu vou ate ao
Teutonia 109.300 rancho e salto para o local em que estao guardadas as armas.
Casa Salinger 10.000 Os bugres cem o costume de colocar, ou pendurar num cavalete,
Di versos 1.900 ou cabide durance a noite, codas. as suas armas, isto se o acam-
691.200 pamento far pequeno; se for maior, havera um outro cavalete ou
0 Dr. Juiz de Direito tirou para a familia ca':>ide para as armas e, neste caso, eu terei que valer•me de
no Convento 200.000 outro homem de confian~a, como por exemplo, o e o meu irmao,
que tera de ocupar encao aquele segundo dep6sito de armas. Eu
491. 200 derrubo, entao, o arsenal, ao mesmo tempo que solto gritos al-
tos e disparo a minha pistola. Nos, nesses assalcos, s> usamos
Transporte 491.200 p i stolas que sao mais manuseaveis que espingardas. :\ esse si-
Do dep6sito 8ugerfond 200.000 nal, a minha gente cambem se poe a gri.tar e a disparar, avan-
Quantia que Martim levou para a viuva 691.200 ~ando para o acampamento.
Sob tao terr.ivel espetaculo, os bugres acordam·se do seu
Blumenau, 10 de dezembro de 1907. prof undo sono, pulam e encontrando o lugar das armas ocupado
Zietlow deixam cudo e fogem tao celeremence quanto possivel, ganhando
Stutz er as profundezas da floresta.
J. Schmidt As mulheres, que tern crian~as pequenas, e as c rian~as que
J. Probst nao puderam fugir, jogam-se ao solo, levancando as maos, pe·
E. Gaertner dindo gra~a.
F. Specht ". Tao lo~o sao levancadas e, com algumas bacidas no ombro,
sao declaradas prisioneiras, comportam-se como tais e obedecem
Martinho Marcelino de Jesus, segundo Deeke(1967:116/ 117), a cada gesto meu, de sorte que nao e difi cil craze-las para fora
narrou-lhe uma ocasiao as tecnicas que utilizava para atacar os do mato. Os ~rupos que ficaram para eras, respondem aos ciros e
s ilvicolas: "Quando eu entro no mato, acompanhado de uns 20 gritos e avan~am cambem. Com isso, a care fa esca acabada.
homens, mais ou menos, nao se pense que eu, com essa · tropa, Quando muico ainda exploramos as redondezas do acampamento,

94 95
por onde eventualmente pode estar escondida alguma crian~a, ladroes, mas porque isso constitu1na um grande perigo para a
atras de tranqueiras por elas mesmas preparadas. minha gente tirotear o acampamento no lusco fusco da manha e
Todos os arcos, flechas, lan~as e outros objetos sao entao justament~ na afoba~ao em que eu e os primeiros a entrarmos
acondicionados e amarrados da melhor fonna a serem transporta- no acampamento sempre estamos. For esse motivo, a minha gen·
dos. 0 que nao se pode levar e queimado e com toda a pressa te sempre tern ordem de so atirar para o ar" (..• ).
porno-nos de regresso para casa. E os que fugiram - pergunto
eu - nao tentam depois, interceptar o grupo para, ao menos re• 7. A VERDADE SOBRE A SEL VAGERIA DOS XOKLENG.
cuperarem as mulheres e as crian~as? .
Eles nao o poderiam fazer, responde·me Marunho, porque A caracterizac;ao dos Xokleng como "selvagens desalma-
e$tao desarmadc.;?S e 0 pavor que tern d~s nossas arm!'ls ,.de ~ogo e . dos", que tudo faziam para matar ao branco, foi com um e neces-
muito grande. Eles contentam-se, pois, de uma d1stanc1a, ra- saria para Se justificar as a<;oes que sobre eles deflagravam OS
zoavel, em insultar-nos em altos gritos e, assim, nos acompa- bugreiros e os colonos. Hist6rias mil sobre a agressividade dos
nham muitas vezes por dias inteiros. indigenas; sobre sua falta de piedade{• sobre sua fat.ta de respei-
E como · e que voce consegue descobrir o acampamento sem to a vida indefesa, circulavam nas colonias e fazendas. 0 indio
sem ser pressentido? . . nao era exatamente humano, concluia-se dessas historias. Entao
Bom isso e a minha especialidade, d1sse-me ele sornndo. ele nao aparecia em todas as narrati vas co mo terror do sertao,
Ou eu m'e aproximo, sorrateiramente, a boca da noite, quand_o atacando sempre de tocaia, trucidando suas vitimas, e nos
todos ja estao reunidos no acampamento, _ou de madrugada, mu~­ locais mais imprevisiveis?
to cedo, quando todos ainda dormem. Eles, geralmente, de1- Assaltos de bugres eram descritos em detalhes, com am-
tam-se tao cansados das suas dan~as noturnas, que dormem ate pliac;ao em regra desmesurada dos prejuizos causados em vidas,
dia claro. Alem disso nao tendo necessidade de me aproximar animais e propriedades. Urna crianc;a foi esmigalhada a golpes
demais do acampamen;o; posso observa-lo de certa distancia. de cacete gurante um ataque (1). 0 colono foi trucidado quando
Uma coisa, porem, me causa especie - co_nti!1uo indagando - ~ corria em busca de abrigo junto a familia (2). 0 brac;o da mulher
sobre 0 comportamento dos caes, que OS 1nd1os possuem. Voce foi cortado e comido (3). Ou mais espec1ficamente, segundo
trouxe, ha tempos, um ~rande numero desses an_!mais e ... el es se- narrativa de uma testemunha (4): "( ..• ) No chao, nus estavam os
riam muito brabos. A gente, naturalmente, supoe que eles pelo corpos de um rapaz e de uma mo~a, brutalmente deformados, cor-
a
menos dariam sinal aproxima~ao de algum inimi~o do acampa- tados de maneira repu~nante. Na cozinha enconcramos a mulher,
mento. sentada perto do fogao, com os olhos esbugalhados. Era a espo·
Desta vez Martinho riu - Ora, la isso nio representa ne· sa do fazendeiro, com a qual brutalmente se comportaram os in·
nhum perigo. Para isso temos a nossa sirnpatia. dios, cortando-lhe os seios, ao que parece ainda com vida. Ao
Que simpatia? perguntei e~pantado . ... seu lado dois corpos de crian'tas tambem completamente · defor·
Nada mais simples do que 1sso, respondeu ele. Naturalmen- mados ( ..• ).
te, quando andamos no mato, devido ao muito andar, pul~r, e s~­ · A narrac;ao desses acontecimentos dava a cada ci vilizado a
bir, nos andamos em geral, sempre suado s e durante a 1ncurs9:.o noc;ao vaga e estereotipada do que era o indio. Dizia-se, segun-
toda, geralmente nao mudamos de roup~. quando chegamos pro- do Va$COncellos (1912:19), que: ('!Os Indios Botocudos que ha·
ximo aos acampamentos de ':>ugres, entao uramos a roupa e ves• bitam as cercanias da Serra do Mar e as do Espigao, sao indo-
timo-la novamente mas pelo avesso. Isso faz-nos soltar um odor mesticaveis, segundo os m eios ordinarios; trai~oeiros, dotado s
tao penetrante, que os cachorros ao se aproximarem, nao fazem
mais que sacudir a cola e nao se movem do lug~r.
E voce somente fez prisioneiros, pergunte1-lhe, e arrecaclou (1) - Marzano, 1904 , in Sachet e Curi , 1970: 12 .
armas sem causar outros danos aos indigenas? (2) - Deeke, 1970: 108.
'
Isso mesmo! confinnou Martinho. Pode acontecer, aqu1. ou (3) - Wettstein, s / d: 113.
ali, que de uma dessas bati~as saia ~lgum bugre ferido, 01.1 mes- (4) - Wachowicz, 1969, citando Kalendarz Polski, que narra um assalto
mo morto. Nao tanto porque eu quena poupar ~sses bandos de ocorrido na s proximidades de Porto Uniao. em 1900.

97
96
de uma ferocidade igual a do tigre, inclinados ao roubo, sendo do em risco a ordem da tropa, os culpados eram os indigenas. Se
seu maior prazer matar os brancos. OS colonos viviam insatisfeitos e a co}onia nao progredia, OS cul-
E tal a indole desses selvagens que empregam dias e noites pados eram os indigenas.
em sondarem os grupos que percorrem as mattas em trabalho; e Os entreveros entre indios e brancos, en tretanto, haviam
se acontece encontrarem a comitiva entregue ao sonno, elles as- sido previstos por algumas pessoas. 0 pr6prio govemo da pro-
saltam os indefezos e uma so pessoa nao escapa; seus craneos vincia, em relatorio, no ano de 1849 admitia: "( .•• ) Sou avesso a
e seus corpos sao esmagados pelas longas mussuranas do gen-
. ( ••• )"
t 10
+' que se uze violencia contra os aborigenes, pois me conven~o,
que esse sisthema tendera a perpetuar reciprocamente os odios
"0 indio nao e pessoa humana". ·o indio nao e gente 1 • ( ... )".
"Por isso ele comete essas barbaridades". Essas as conclusoes
No ano de 1877, novamente o govemo se manifestava visua-
a que muitos chegaram ao ouvir as narra9oes sobre os ataques
li_za~do o problema em sua totalidade. Dizia o presidente da pro-
realizados pelos silvicolas. E se o indio nao era verdadei ramen-
te humano, o melhor rem~io para ele seria chumbo. As colonias v1nc1a: "( .•• ) Enquanto nao se estal:>elecer na provincia um sys-
distribu[am avisos lembrandQ a epoca que OS tndigenas costu- tema de ~a.t~equese ~eral, existira a lucta entre o selvagem e 0
mavam fazer suas correrias e alertavam para q~e todos ti vessem homem c1v1hzado, que tenta~ al?p~oxi?1ar-se d' aquelle. E e pro-
vavel . que esses combates 1nd1v1dua1s se revistam de um ca-
suas armas em condi9oes de imedi ato uso (1). ·As vezes, a colO-
nia emprestava armas para aqueles que estivessem mais adentro racter mais grave, quando o espa~o occupado pelas hordas sel-
da floresta. E todos tratavam de adquirir pistolas, rev6Iveres, vagens for diminuindo pela conquista dos sertoes do interior
espingardas e winchesters. A arma represen tava seguran9 a. A conquista que, depois do desenvolvimento das colonias n' est~
arm a era meio de espan tar o silvicola. A arma era instrumento provincia, se vae fazendo de um modo regular e progressivo( ••• )".
da domina9ao. A diminui9ao paulatina do territorio dominado pelos indige-
Poucos poderiam se perguntar .sobre a verdadeira razao dos nas criava um problema serissimo e para o qual nao havia condi-
ataques dos silvicolas. Poucos poderiam acei tar que o indio ti- 9oes internas em sua cultura que permitissem o encontro de
nha um estomago a prover; tinha mulher e filhos a sustentar. solu9ao. Tratava-se do referente a sobrevi vencia fisica dos
Poucos poderiam l.embrar que preliminarmente a terra era do in- c?ntingentes que integravam 0 grupo tribal, habituados a vida
dio e que dela ele tirava o que necessitava para sobreviver. nomade e tendo na ca9a e na coleta suas fontes de alimentos. A
Poucos poderiam admitir que o indio afinal estava a se defender ~om_e e a inani9ao passaram a ser amea9as constantes para os
dos que usurpavam sua terra, derrubando a floresta e devastando 1nd1genas. Nessa situa9ao, deve-se admitir como 16gica a atitu-
a ca9a. Para a maioria da popula9ao ci vilizada o indio era ape- de indigena de passar a se prover de alimentos em ro9as e pas-
nas um obstaculo ao progresso e a seguran9a. E como ninguem tos dos
, civilizados.
acei tava plenamen te sua humanidade, a sol u9ao ob via seria o E obvio que OS indigenas estavam habituados a periodos de
seu exterminio. Nesse quadro, o indio come9ou a aparecer como penuria, pois nem sempre a natureza lhes fornecia abundante-
responsavel por quase tudo o que ocorria. de mal nas colonias. mente o que necessi tavam em alimentos. Mas el es estavam · acos-
Se al guns colonos resol viam abandonar suas glebas, os culpa- tumados a isto. Entre abril e junho, os pinheirais do planalto
dos eram os indigenas. Se algumas reses desapareciam em certa forneciam alimentos em abundancia e o indio chegou a dominar
fazenda, os culpados eram os indigenas. Se um colono nao co- tecnicas de conserva9ao dessa dadi va da natureza. Abarrotava
lhia o milho que esperava, os culpados eram os indigenas. Se a balaios com pinhoes e afundava-os em c6rrego~ pr6ximos, vol-
mula madrinheira assustava-se numa curva do caminho, colocan- tando meses depois para consumir o guardado. De setembro a
abril ele perambulava na floresta em busca da ca9a, do mel, do
palmito, do cor6 e outros alimentos. Havia relati va facilidade
(1) - 0 J ornal Kolonie Zeitung de 2 de janeiro de 1875, apresenta a em se obter 0 necessario a sobrevivencia, enquanto 0 branco
seguinte noticia : "A diretoria de coloniza~ao recebeu 30 carabinas com efetivamente nao penetrou no territ6rio indigena. Quando isto
muni~ao do Govemo imperial para serem distribuidas entre os morado- • ocorreu, nao s6 o territ6rio sob controle indigena diminuiu con:-
res da colonia ma is expostos aos assaltos dos bugres ( ... )". Cf. Dolf-
g~ng, 1923: 19.
tinuamente, como a competi9ao pelos recursos foi logo estabele-

98 99 ·
cida. Os brancos tambem desejavam tirar da floresta o que po-
diam em alimentos. No relat6rio de Deeke (1877), que transcre-
vemos anteriormente, ha claras referencias a penuria alimentar
em que os indios viviam, conforme vemos: "( ... ) Os bugres, ao
que parece, durante a sua estadia no acampamento se alimenta-
ram quase que exclusivamente de cocos, tendo derrubado quasi
todos os coqueiros dos arredores. Segundo observei, ao que pa-
rece eles nao aproveitam SO OS frutos e a parte comestive} dos
palmitos, como tambem a seiva. Em quasi todos OS coqueiros
derrubados havia orificios abaixo da copa, nos quais se encon-
travam pauzinhos em forma de calha. Apos saborearem a polpa,
juntaram os coquinhos em pequenos montoes, provavelmente para
mais tarde quebrar a casca com o socador. ( .•. )".
Nao ha duvidas de que a fome levou OS Xokleng a depredar
a propriedade do civilizado. A depredac;ao, no caso, foi a solu-
c;ao encontrada para obter alimentos, cada vez mais escassos.
Mas nao somente a fome levou os indigenas aos assaltos. Em
decorrencia do contato que eles comec;aram a ter com os civili-
zados, vieram a conhecer os instrumentos de ferro e a~o. E nao
resistiram a eles. Adaptaram o ferro as suas armas tradicionais,
a lanc;a e a flecha. Substituiriam suas frageis panelas de barro
cozido pelas resistentes panelas de ferro. Aprenderam a usar
facas e machados de ac;o, ein substituic;ao as lascas de taquara
e as laminas de pedra. E para a obtenc;ao dessas especiarias
raras os Xokleng nao viram outra soluc;ao que o roubo. Segundo
Ribeiro (1970: 318/319), Eduardo Hoerhan, pacificador dos
Xokleng, ouviu deles "uma narra~ao meio mistica, meio hist6ri-
ca, referente ao primeiro encontro da tribo com representantes da •
civiliza~ao, a qual ressalta a importancia do instrumental de fer-
ro ( ... )":
Um bando deparou, com enorme espanto, uma. estrada dife-
rente de todas que tinham visto ate entao: uma simples picada;
porem tinha de extraordinario a forma como os arbustos haviam
sido cortados. Ao inves do simples torcimento - ·que era o unico
modo que eles conheciam de afastar os ramos ·que vedavam a
passagem - ali os ramos estavam decepados de uma maneira
nova. J untaram-se para comentar o fato, fizeram conjeturas e
prosseguiram, com cuidado, a procura dos responsaveis por
aquela obra ( •.. ). Ao entardecer foram chegando a ,um lugar muito
marcado de rastros e logo depois divis.a rain uma casa de pano,
vendo de muito longe estranhos bipedes andando em torno dela.
Discutiram longamente quando deveriam atacar, e decidindo pela
madrugada como a hora mais propicja, puseram-se a esperar.

100

I. Reprodu~ao de Gerlac h .

• •
 Mais a noite era longa demais para conter a curiosidade em aos ci vii izados que ha vi am praticado o mal. Is to se depreende
torno daqueles seres e seus instrumentos supercortantes. Avan- de varios depoimentos que obtivemos junto a velhos colonos, e
~aram ant"!s do amanhecer, era ainda noite quando rodearam a que confirmam a narra9ao de um profundo conhecedor de area:
barraca e mataram todos os seus ocupantes. Em seguida puse- "( ... ) deparamos constantemente, com a presen~a de indios , ao
ram- se a procura dos instrumentos supercortantes, tateando toda longo das picadas. Nao nos molestaram, nao se mostraram hostis
a barraca; logo um deles encontrou um machado que, experimen- mas nunca se deixaram ver. Perco d ' ahi, na estrada, na mesma
tado ali mesmo mostrou suas qualidades ; outros encon traram fa-
coes e facas ( ..• ). Experimencaram demoradamente, OS instrumen-
cos em t6da sorte de madeiras, cada vez mais encancados com
- Serrinha, pessoalmence defrontamos inesperadamence com um
indio occulto, atras de um pinheiro. Nao presc~u atten~ao a
marcha vagarosa do cavallo, descendo trecho ingreme e pedrego•
sua efic ienc ia. Pareciam docados de uma for~a extraordinaria e so. Escava actento entanto ao canto de uma inhambu (tinarus
nunca se cansavam de usa-Ios. Todo aquele dia os indios passa- noctivagus) que o cavalleiro ia imitando, desferindo o seu pio
ram cortando, corcando sem cessar. lastimoso; por sua vez tambem respondendo ao que ouviu, na
Dali voltaram a toda pressa para onde es cava o grosso da sua frente. lnteressante, estavam os dois attrahindo enganados.
cribo, levando a grande nocicia e as provas de sua fa~anha. Em Dando de chofre, com a realidade, esbaforido o indio saltou, em
breve todos os bandos desciam ao longo dos rios que demanda- fuga desabalada, rompendo a mactaria ( ... )" ( 1).
vam o mar, para conhecer o local do encontro e, talvez, conquis- Os indigenas nao costumavam atacar qualquer ci vilizado.
tar tambem algumas daquelas maravilhas ( ... )" . Mui tos colonos tinham suas casas rodeadas a noite e nao se
Com o tempo os ataques nao se davam apenas para obter intimidavam, nem tampouco revidavam com tiros ou palavroes.
ali ment os e instrumentos de ferro. Tambem os tecidos utilizados Outros colonos durante suas fainas diarias se s entiam observados,
pelos brancos comes;aram a ser valorizados pel os indigenas. mas nao tomava m atitude beligerante (2). Nesses casos, houve
Eles conheciam rusticos cobertores de urtiga, fiados ponto a oportunidades em que o indio se aproximou de casas para deixar
ponto pelas mulheres. Essas mantas serviam s imultaneamente uma ca<;: a ou uma abelheira, ao que o colono as tu toe sensato logo
para cobrir a mulher da cintura para baixo, como uma especie de tratava de retribuir com um brinde qual quer, deixado ao alcance
saia, e para aquecer a mulher, os filhos e o marido nas noi tes do indigena. Mas est a nao foi a regra. A simples desconfian9a
de frio intenso. de que indios estavam circulando nas matas vizinhas, logo gru-
Por ultimo, os ataques tinham ainda como motivo a vendeta. pos eram organizados para ca9a-los. Outros, ao mais leve e es-
Os Xokleng viviam separados em pequenos bandos, integrados tranho rumor, logo passavam a dar tiros para todos os lados. A
por trinta, quarenta ou cinqtienta individuos. Provavelmente, de- esses os indigenas acabavam revidando.
vido a disputa por territorios de ca9a e coleta esses grupos fo- Mu it as vezes, os ataques acabaram ten do como mo ti va9ao
ram levados 'a disputa entre si, de maneira que a guerra se tor- os fa tores arrolados: a fome, a necessidade de instrumen tos de
nou uma constante para os componentes da tribo. Segundo ferro e tecidos e a ,vendeta. Na verdade, era impossivel separa-
Henry (1944: 130): ttNessas vendecas, parentes eram lan~ados los e e evidente que nem sempre o indigena realizou suas vin-
contra parentes e, as vezes, mesmo irmaos contra ionaos. Os gans;as sobre as pessoas que realmente haviam destruido seu
acamparn encos eram acacados a noite e homens, mulheres e
crian~as eram impiedosamence trucidados. Nao havia cl emencia:
um so sobrevivente podia vingar-se dos assassinios de sua (1) - Mattos, s/data. Inedito
gente ( ..• )". (2) - 0 depoimento do informante, Sr. Andrea s · Hubbe, residente em
Ararangua (abril/ 1963), esclarece essas situa9oes : "seu pai nunca per-
Ao entrarem em contato belicoso com OS ci vilizados, nao e mitiu que alguem da fazenda molestasse os bugres e que estes por sua
de se estranhar que a institui9ao da vendeta passasse a ser uti- vez nun c a tirat;1m nada que lhes pertencia, embora freqi.ientemente en-
lizada para revidar as afrontas recebidas. 0 branco assim nao tras sem na sua propriedade. Uma ocasiao, narrou, s~u pai emprestou
uma mu la de carga para um amigo fazer uma viagem. Este foi atacado,
tiroteava o indigena e ficava totalmente impune. Os indigenas
tratavam de devolver os ferimentos ou a morte de um companhei-
deixando
, no local o animal ferido por urna flecha , Semanas depois
porem a mula apareceu na fazenda completamente cura da, mas tendo
.
ro justi9ando os civilizados que estivessem ao seu alcance. Na ainda sinais do ferimento que havia recebido. Isto o levou a crer que os
maioria das vezes, en tretanto, a vendeta se dirigia diretamente indios haviam reconhecido o animal e o pouparam ( ... )".

102 103

......
acampamen to, morto sua mulher, filhos, parentes enfim. As ve- r~ da barraca, junco a porta. Era um indio que naturalmente es-
zes, o branco apareceu integralmente ao indio como inimigo e p1ava o que se pa.ssav~ no interior da barraca. Na mesma hora,
nessa situac;ao ele nao escolheu a quern ferir ou matar. Marzano a arma de Durvahno d1sparou acertando o indio em cheio que
(1) narra que: tt( ••• ) Quando, porem, perceberam que numa unica emborcou para dentro da barraca, caindo sobre o informante.' Lo-
noite fileiras inteiras de pes de milho. haviam sido arrancadas e go to~os levan,~aram acampamento, pois ninguem ficaria ali mais
pelo chao havia rastro de pes enormes de geote, dissiparam- um m1nuto ( ... ) .
se suas duvidas da presen~a de selvagens. Puseram-se de to- . Numa outra oportunidade, o mesmo informante vi veu os se-
caia ( ... ); durante alguns meses (.:.) continuaram os pequenos gu1ntes fatos: "Em Anitapolis, quando media lotes coloniais
furtos de espigas de milho. Os colonos revidam com um que ou- percebeu um barulho estranho e ao voltar-se para a orla da flo~
tro tiro. F. isto, parece, leVOU OS selvagens a desforra. resta (estav~ n~ma clareira aberta por trabalhadores-SCS) viu
Estamos em 10 de dezembro de 1883 e os quatro irmaos de um grup~ ?e 1nd1os. Temeu por sua vida e correu. Nessa ocasiao
sobrenome 8aldassar, residences em Rio Deserto, tranqiiilos cor- um ?P~rano da tu~ma, que _cortava madeira perto do local em que
tavam arvores. Cantavam felizes ao som das machadadas. Um o~ 1nd1os. foram v1stos, fo1 morto. 0 operario chamava-se Belar-
deles, de nome Giovanni, afastou-se um canto para observar uma mino. Mais tarde soube que Belarmino havia morto um indio
grande arvore e medir-lhe a circunferencia. Mal caminhara 25 a anos antes. Acredita assim que os indios fizeram uma vingans:a ":
40 metros, quando sem ao menos pressentir o perigo, sente·se Um a~tor radicado em Blumenau (Deeke, 1970: 114) tentou
atingido por flecha e tomba ao chao com um grito. Acorrem os dar a r;iz~o dos assalto~~ esc!arecendo-as parcialmente: •( ... )
irmaos, apavorados, e cheios de horror veem seu irmao numa po- ~ este ulumo a_ssa,Ito, ahas, J>~de-se cons ta tar que o principal
~a de sangue com o corpo atravessado, lado a lado, por uma fle- f1to do ~ug~e nao e mat~r. _O o~o ao branco e a vingan~a mortal
cha. Tomam-no nos bras:os e carregam-no a casa mais proxima. contra ele JUrada pelo 1nd10, nao passa de literatura. O que os
0 ferido corajosamente arranca do corpo a fl echa envenena- b_ugres quere~ e apoderar-se dos artigos que lhes sao necessa-
da; con tu do ja era tarde. Ap6s viote e quatro horas de cerri veis uos, como ob1etos de ferro, tecidos, etc. Naturalmente a eles
dores morria. Foi ele a primeira vitima icaliana dos indios brasi- pouco lhes da matar alguem, mas nao e essa a finalidade dos seus
l eiro s". assaltos. Assim, por exemplo eles s6 mataram a menina em Rio
0 indio reagia as afrontas recebidas e os civilizados sa- Krauel, por_que esta saiu a correr em dires:ao a ros:a para avisar
biam disso. Urn informante (2) que foi levado a penetrar na os seus pa~s, o que, naturalmente os indios quizeram impedir. A
floresta para realizar trabalhos de rnedic;ao de terras, narrou que: um pequen1no, que estava deitado no bers:o eles nao fizeram
"Em 1924, no muoicipio de Pouso Redondo, estava fazendo me- nenh_um mal; so queriam o colchao e, por isso,' tomararn a crian<;a
dis:oes. Os indigenas estavam bastante alterados. lsto se notava e deuaram-na ao chao (. .. )"
porque a noite eles rodeavam a barraca e as vezes batiam nas
cordas que prendiam as escacas, fazendo-as estremecer. Tambem Nao se pode saber exatamente o numero de vitimas resul-
ficavam fazendo barulho, assobiando, en fim arreliando os civili- tante dos ataques que os indigenas realizaram aos civilizados.
zados ( ... ). Por prevens:ao, colocou na barraca tres elementos da ~em ,sem~re os fatos ocorridos foram devidamente registrados e,
curma de protes:ao (bugreiros - SCS). Um deles, de nome Durva- tambem, as vezes, ocorrendo o registro, nao se logrou encontra-
lino, localizou-se na barraca, hem defronte a porta, contra o fun- lo. No Vale do ltajai Jose Deeke realizou um exaustivo levanta-
do da mesma. 0 informante deicou-se contra a porta, que perma- men to de informac;oes, .c?nseguindo fazer uma extensa relac;ao
necia fechada. Em tomo, pela madrugada, os indios arreliavam. dos assaltos que se venficaram no territorio do antigo municipio
De vez em quando a barraca estremecia porque um indio batia de Blumenau, entre 1852 - quando ocorreu o primeiro assal to -
nas cordas. Cerca hora, viu uma cabe~a sendo enfitda na abercu- e 1914, ano da_ pa,cificac;ao. Ressalta entretanto o autor que 0
levantamento nao e completo pois faltavam alguns numeros nas
{l) - Marzano ( 1904). 0 texto a qui reproduzido encontra -se Sachet e
col er;oes de jornai s que .~nsultou. Desse 1evan tamento, ap re-
Curi , 1970: 11 , sendo a traduc;ao do original italiano de respons abilida- sentado no quadro a seguir, concl ui-se que ocorreram 61 assal-
de desses au tores . tos, dos quais resultaram 41 bran oos mortos e 22 ferid~s. Um ou-
(2) - Depoiment o Sr. Carlos Miguel Koe ric h , em outubro de 1970. tro autor, ainda em Blumenau, deixou em caderno, 35 registros

104 105
 distribuidos para os brancos desempenhar durante a conquista
sobre ataques real izados por in di genas entre os a nos de 1890 e de mais esta parcela de territ6rio da America do Sul, alguns
1913 (1). Desconhecemos outra$ relac;oes.. No sul do Estado e tiveram como desfecho final, a mo rte.
no territ6rio do Rio Grande nao encontramos referencias que
indiquem 0 possivel numero de vitimas dos ataques efetu.ados
pelos Xokleng. Na area norte do Estado, em territorio que a epo- QUADRO I
ca estava sob o controle do Parana, nas vi zinhanc;as do Rio
Negro, ha indicas;oes de que 40 pessoas morreram, vitimas dos Rela9ao dos assaltos veri ficados no territ6rio do Municipio
in di genas (2). de Blumenau, desde a funda9ao da Colonia, segundo Jose Deeke
Vimos assim que entre os muitos papeis que haviam sido (1):

N2 ANO MES DIA LOCAL BRANCOS

Mortos Feridos
(1) - Z i t tlow, s / da ta . Inedito. Cf. c opia exi s te nte na Bibliote ca Fritz
Mulle r d e Blum e n a u. Sa o a s s e gui ntes as notas de Zittlow, na pagina 1 1852 Dez em bro 28 Barra da Velha
147 : " Vitimas d e indios : 1890-15 / 10 - Campo llheo, Roc c o; 1891 - 1?/ 1- 1855 29 Blumenau 2
Timbe, madri nhe iro Ja c into; 1892- 10/ 6-Morro Trombudo, 5 p e s s oas
2 ] aneiro
fa milia C orrea d e ( i legive l) , mui tas mula s ; 1894- 1?/ l-Se rra das Pedras, 3 1862 Dezembro 1 Blumenau
4 pessoa s e 39 mu la s ; 1895- 25 I 12-Be ira Rio Pombas , Guilherme Klegin 4 1866 Janeiro 6 Garcia
e A. Hahne mann ; 1902-3 / 11-Se rra do Pires, fl echado a (ile gi vel), morto 5 1870 Man;o 16 Alto Rio do Testo 3
a l gu n s bo .i s; 1900-7 / 6-Pou so da Cai xa , mo rto Joao Cardoso, ferido Jos e 6 1872 Fevereiro t9 Rio do Testo 1
e Lino. N as pa gin as 168 a 171 liam -se mai s o s s e gu i ntes : 1890, assal- 1872 23 Garcia 1
to ran ch o C a rl os Sc hroe de r Rio Sul ; 1890- Fritz Holler fl echado Rib .
7 Julho
Tafon a Subida; 189 0-Mano e l. Laurentino fle chado morto Subi da; 1890- 8 1872 Novembro 19 Benedito 1
L on t ra ·2 ita l ia nos mo rtos J ac ome Cyprian o; 1892-flechado morto no 9 1876 Outubro 14 Rio dos Cedros 1
Morro P e lado u ma c ol on a italia na; 1892- 5 mortos no Morro Trombudo . 10 1877 Fevereiro 24 Rio dos Cedros
Tro pa d a f am ilia Corr ea de Campos No vo s, muitos animais mo.rt os; 11 1877 Man;o 2 Tatutiba
1892, n ovembro, morto o ma drinheiro duma t ropa ; 1895 , fle c hado Ri c ar-
d o Ehmke e n t re P ou so Caixa e C e dro; 1895, flechado ( ilegiv e l) s erra 12 1877 Maio 5 Itoupava Alta
llh co; 1895, assa lto se rra m da s P e dra s Tropa F a milia Farra p o (il e give l) 13 1883 Novembro ? Neisse
5 mortos e 3 0 a niinai s todos a larn;:a ; 1896, P as so Rio Pombas, morto 14 1883 Julho 18 Itoupava-Rega
Gefma n o Kle gi n e Carlos Ha hn e ma nn e ma is um bra s ileiro; 1896, Pou s o 15 1884 Abril 21 Tiroler-Strasse
Re d ondo, mo rto J o a o Card oso e ferid o o c amarada Lino; 1900, morta a 14 Guaricanas
mulhe r de C a rlos R e nne rt n o Ri o d o Sul e n t erra da no pa ss o do Od e bre - 16 1885 Man;o
ch t; 19 01 , assalt o c a sa Sc hrat t , Lontra ; 189 0 , morto Roque d e Tal em 17 1885 Setembro ? Lontras 2
C a mpo d o Ilheu; 1904 , fl ee h a do morto Mos riu it inh o J ose Ma g ro e um pre - 18 1885 Dezembro 2 Garcia 1
t o en te rrados n o R io d o Sul : 19 04 , Durval Correa fl e chado Timbe z i nho i9 1889 Janeiro 29 S. Pedrinho
no p escoc;:o; 19 04 , J oa o C as tanhe iro , flee ha do e morto; 1903, assalto ? S. Pedrinho
C asa F e rrari , Ariuida b a n , 2 vac a s mo rt as; 1910, di ve rs os assaitos Rio 20 1889 ?
21 1889 ? ? S. Pedrinho Novo
Sul a c ima; 1905, P asse Trombudo, morto Bento C a n e ca ; 1905, Vargem
P ombinhos fl echados mo rtos Rudo lfo Rec ke e Jo s e Dias ; 1905, fl e cha- 22 1890 Jul ho ? Trombudo
do Jo se Sa lvado r ma rgem P ombinh os ; 19 06 , fl echado Antoni o Lam i n no 23 1894 Fevereiro ? Milanes es
bra<;: o, d o i s animai s mortos, a rre i os , pon c qo , ferrame ntas roubadas ; 5 3
19 07 , mo rt o Ate rrado T o rto , J oa o Ge rma no; 1909, assalt o c asa Carlo s 24 1895 Janeiro 2 Estr. de Curit ibanos
25 1895 Jun ho 5 'I

.
11
Bas ili o Rio Oes te . mulh e r flech a da . casa sariue ada ; 1909, Barra do
S..: rro Ve rde , 7 ciuil ome tros di stante c a sa We star, familia Julio Ribe iro , 26 1895 Dezembro 25 .. , 2
11 p essoa s morta s, c a s a incendia da ; 1913, Alta Se rra Pombas , Paiol
Se ra fim. Anima is mortos. paiol incendi a do " .
(2) - Wa c h o wicz, 196 9: 478, citando Pamie tnik Emig rant6w , Ameryka (1) Deeke, 1967: 133. As observac;:oe s e notas integrante s do original,
Poludni owa , Ins te tut Gos podars twa Spole cznc go, Warszawa , 1939 , Coram eliminadas por nao serem essenciais aos nossos propositos.
p. 296.

107
1 (1)
27 1897 Maio ? Estr. de Curitibanos 1 como crian9a, irresponsavel e indocil. 0 indio era, afinal, visto
28 1902 Fevereiro 13 Subida 1 segundo os padroes de vida e conduta que os brancos possu!am.
29 1902 Julho 1 lpi ranga 3 E quando alguem perguntava como os indigenas viviam, as res-
30 1902 Novembro 3 Nova Bremen 1 1 postas que recebia invariavelmente continham clara ou velada-
31 1902 Julho 12 Ribeirao dos Russos - 1 mente essas manifesta9oes concretas do egocentrismo. E, alem
32 1902 Dez em bro ? Guaricanas 2 disso, fantasia. Muita fantasia: "( ... ) eles teriam, nas grandes
33 1903 Abril ::>
, Estr. de Curitibanos 1 profundezas da mata, ao pe do Morro ltai61, um acampamento per-
34 1903 Setembro ? It
" 1 manence, onde residia o rei de todos os botocudos. Ali haveria
35 1904 Mar90 7 " ti
1 grandes templos, onde existiam enormes idolos de pedra. Mas, o
36 1904 Ma~o 13 Ri beirao Basilio mais precioso tesouro do rei, seria um enorme pomar onde exis-
37 1904 Abril-Pascoa Fundos Wamow tia toda sorte de frutas do Brasil.
38 1905 Julho ? Estr. de Curi ti banos Os bandos nomades, seriam, por assim dizer, soldados do
39 1905 Julho ? Estr. de Curitibanos 1 1 rei, que deveriam impedir o avans;o dos brancos e, ao mesmo tem-
40 1905 ? Estr. de Curitibanos 1 po, conseguir os necessarios objetos de ferro. ~les estariam,
41 1906
Julho
Fevereiro 15 , . "
3
2 por anos seguidos, longe do pa90 real e somente por breve tem-
42 1906 Abril 10 .. II 1 po, poderiam ali aparecer quando tivessem feito presa considera-
43 1906 Ou tu bro 23 Scharlach-Hansa
, 1 vel, e de preferencia, crians:as brancas roubadas ( ... )" (1).
44 1906 Novembro 29 lndios-Hansa 1 Na verdade, ninguem sabia explicar quern era o indi gena; o
45 1908 Ou tu bro 7 Pouso Redondo por que de sua conduta; a razao de seus costumes. E quando
46 1908 Novembro 1 Pinhal sinho 1 alguem ten tava al guma coisa seria, a descren9a da coletividade
47 1908 Novembro 17 Br<l9o do Oest e 2 era o quadro de fundo sobre o qual a experiencia era relatada e
48 1910 Dezembro 14 Rafael-Hansa 1 imediatamente rejeitada. 0 indio ontem, como hoje, era um des-
49 1911 Fevereiro 4 Pinheiros 3 1 conhecido que a maioria da popula9ao nao desejava conhecer.
so 1911 Abril 9 J;:str. de Rio Pre to 1 As a9oes deflagradas pelos brancos em rel<l9ao aos indige-
51 1911 Setembro 9 Indios-Hansa nas, evidentemente, tinham sua justifica9ao ultima no complexo
52 1911 Novembro 3 Rib. cfos Russos de atitudes colonialistas que desde a descoberta havia se im-
53 1911. Novembro 3 lpiranga posto nesta parte da America. Nao· importava que essas a9oes
S4 1912 Junho 1 Pouso Redondo fossem de guerra, de catequiza9ao, de prote9ao. Nao importava
SS 1913 Fevereiro 26 Bra90 do Oeste 1 que essas a95es deflagradas individualmente, por empresas ou
S6 1913 Maio 8 Bra90 do Oeste 1 pelo govemo. Na verdade, as pessoas responsaveis por essas
57 1913 Julho 15 Caminho Reuter 1 a9oes sempre tiveram como limita9ao os papeis que lhes tinham
58 1913 Agosto 10 Kraul-Hansa 1 sido atributdos dentro de urna estrutura de tipo colonialista. Nao
59 1913 Ou tu bro 14 Bra90 do Oeste 1 se pode pensar assim que as visualiza9oes tentadas sobre a
60 1914 Junho 9 Liberdade problernatica indigena, como tambem as solu9oes propostas, es-
(1 1914 Junho 15 Liberdade 1 1 tivessem fo ra desse contexto. Ao contrario, quando se propunha
a contrata9ao de bugreiros para afugentar indios ou se apelava
para a catequese, realrnente os agentes dessas atitudes aparen-
8. 0 INDIO COMO 0 TERROR DO SER TAO temente contrarias estavam manipulando ·rnecanismos de uma
mesrna estru tu ra s6cio-economica, que de um mo do ou ou tro pre-
As atitudes que os brancos tomaram frente aos Xokleng tendia submeter os silvicolas.
sempre ti veram no etnocentrismo uma fonte motivadora basica. 0
•
indio era o selvagem desalmado; o indio era o primitivo cruel; o
indio era o pagao que necessitava receber socorros urgentes da
civiliza9ao para salvar sua alma; o indio era um adulto que agia (1) - Deeke, 1967 : 106.

108 109
 . . A image~ qu~ se fazia dos indios era fundamental para jus- sendo incendiada a dita fazenda, cujo exterminio foi total.
tificar a...s a9oes viol en tas que sobre ...el es se deflagravam e que, Revoltante acontecimento premeditado e executado numa
em seu am ago, eram claram ente rontrarias a muitos val ores basi- hora em que nao existia na casa um s6 homem!
cos da moral e religiao aceitas pelos brancos. Por isso era ne- Selvagem trai~ao, pois que o genro da Senhora Pires que se
cessario imaginar o indio como sel vagem desalmado; como bar- achava acamado, doente, foi liquidado a pao, como foram esmi-
baro pagao; romo animal passivel de ser tiroteado a qualquer galhados os craneos das vitimas e retalhados seus corpos ( ... )".
mom :r1to. Segundo um informante (1): "naquele tempo ha via ne- Em Blumenau, o Pastor Gustav Stuzer assim narra aeon te-
cess1dade de matar os indios, porque eles matavam nossa gen· cimentos ali ocorridos num domingo de feverei ro, do ano de
te". 1886 (1): "Nesta tarde eu havia reunido uma pequena congrega-
_ A impr~nsa teve tam~em amp,la !esponsabilidade na divulga- ~ao de pessoas de mais idade, para com elas discutir os pianos
9ao dessa 1magem negah va do indio. Na area de coloniza9ao de coloniza~ao ( .•. ). De repente vimos um cavaleiro que se apro-
especial~ente, os jomais nao cansaram de pintar o indigena co~ ximava a todo o galope. Meu irmao levantou-se dizendo: ai deve
mo o ma1or dos males que poderia atingi r o colono. O Kolonie + ter acontecido algo! "() cavaleiro o reconheceu e gritou: "t para
Zeitung de 16 de outubro de 1875, por exemplo, dizia (2): "O o Senhor mandar a policia e o Juiz para o salto da Cana! Os bu-
tempo e~ que os bugres costumam fazer seus ataques, esta gres se sublevaram". "Alguem foi morto?" "Sim, dizem que
se aprox1mando. Por isso ~ dado conselho de cautela aos mora- Henrich de tal e coda sua familia fossem (sic) mortos, e a casa
dores dos pontos extremos da colonia. Que cada um delles cuide saqueada" !
em ter uma boa espingarda". Meu irmao pulou num cavalo que havia ficado amarrado e en-
No. Jo,mal Nov~dades de 29 de ma~o de 1908, em artigo so- cilhado perto e disparou com o rnensageiro ate a pra~a para dar
bre os indigenas, le-se entre outras informa9oes sobre as crian- as ordens necessarias. Das lojas e casas vizinhas ja saia cor-
9as Xokleng que logravam sobreviver aos as$altos dos bugreiros rendo gente para saber do que havia, e em breve soava por toda
e eram trazidas para o mundo dos brancos: "( .•. ) E de se esperar a parte o grito de "os bugres estao em guerra" ! "
que ~ada qual concorde que a mistura de sangue indiano devera As administra9qes das colonias, por sua vez, tomavam pro-
reba1xar os teuto-brasileiros. Deve•se tambem ficar entendido a + videncias como as expressas no oocumento abaixo, integrantes
r~speito q~e ~stes filhos de bugre~ . .sao em acrescimo de popula-
de volante distribu1da pela dir~ao da Colonia Blumenau: Diz o
~ao que nao e absolutamente deseJavel e que nao traz vantagem
documento (2): "Dire~ao da Colonia Blumenau, 15 de outubro de
alguma para o Estado ( ... )". 1877.
Em Lages, no Museu Historico "Thiago de Castro", ha uma Chamamos a aten~ao dos habitantes desta Colonia especial-
foto . en:oidurada de um piquete organizado em 1910 para afugen- mente daqueles dos setores mais avans:ados, para o fato de apro·
tar 1~d.1genas, .com a seguinte legenda esclarecedora: "Piquete xima~ao da epoca do ano na qual OS indios natiVOS (bugres) COS-
tul!lam aparecer nesta re~iao, nas suas andans:as costumeiras,
de c1v1s organ1zado para afugentar os indios botocudos da Fa·
zenda Sao Felipe, em Ponte Alta do Sul, Municipio de Curitiba· realizando, entao, onde para tal se oferes:a oportunidade, assal-
tos e saqueamentos. Para evitar tais desastres, o quanto possi·
nos: ~ ra~ao desse atropelamento foi causado pelo massacre da
vel, recomendamos aos colonos proporcionarem o maximo cuida·
fam1lta Pu~s, em 1910, onde foram trucidadas varias pessoas
do as suas armas e ttaze-las sempre consigo.

\1) - Entrevista com o .Sr. joao Pellestrino, Anita polis, 1967. Nessa
area encontramos varios informantes que ao falar expressavam a dico- ( 1) - Cf. Pastor Flos, Unsere Vater (Nossos Pai s), publicado em come-
tomia e~istente entr~ ?S civilizados e OS indios. Aqu~les sao gente; mora~ao ao SO? aniversario do Sinodo Evangelico de Santa Catarina e
~sses sao. bugres . D1z1am , confonne o que anotamos em nosso diario : Parana , n o ano de 1961.
f~lano fo1 ver o que era e viu que nao era gente e sim .bugres, beltrano (2) - Original existente na Biblioteca Fritz Mulle r em Blumenau; copia
fo1 roubado em seu gado e foi investigar os vestigios para ver se era nos arquivos do Autor. Utiliza-se acima a traduc;ao realizada por Victor
de gente ou de bugre" .. Lukas, no manuscrito de sua autoria •otho s Azui s - hist6ria delum rio".
(2)- Dolfgang, 1923: 21. Rio do Sul, 1965.

110 111

•
 1
•

Em caso de assaltos, convem atirar apenas com mira segu·

ramen te calculada. ~ aconselhavel fazer·se denota9oes frequen·
tes na dire9ao do mato, como tambem realizar batidas e patrulha·
mentos por grupos e dar-lhes, aos bugres, a impressao de encon·
trar•se o colono alerta e preparado contra os seus assal tos".
0 horror quando da presen~a de indios nas imediac;oes de
suas propriedades era comum entre os colonos. Ninguem deseja-
va se expor as flechas e bordunas indigenas; ninguem pretendia
admitir a possibilidade de uma aproxima~ao pacifica. Entao o
indio nao era uma fera perigosa, capaz de atacar nos momentos
mais imprevisiveis? Os branc:os, entretanto, estavam presos aos
papeis que lhes haviam sido distribuidos e pouco adiantavam o
horror e o medo causados pelo indigena. Era necessario ocu_par a
..d
.
terra e nesse escopo nao se adnitia recuos. Alem das opinioes
-
u
ro
individuais dos colonos e ou tros interessados na penetra~ao do
sertao, ha via as decisoes e interesses dos admini stradores das '""
OJ
0
colonias e do govemo. Na area do Rio Negro, alguns colonos v
""C)
poloneses deixaram o seguinte relato (1): "Enquanto nao inicia·
0
mos o corte da mata, os bugres nao atrapalhavam, mas quando 1ro
u-
come~amos a derruba-la, passaram a perturbar-nos, assobiando, ::s
"Cl
batendo com paus nas arvores, sem po rem se deixarem av istar 0
(. .. ) Dois dias depois assaltaram uma outra casa e liquidaram '""
0..
v
com toda a familia. As duas crian~as, mataram e jogaram no fO-
go. Aos pais, cortaram o ventre e retiraram o cora~ao, colocan·
do·o em cima dos corpos. As cobertas de pena espalharam pela
casa inteira. Os mantimentos tambem despejaram e espalharam
•
-
~

I /)
0
.
. .....'""
pela casa. Pela ocasiao 30 fam ilias estavam estabel ec idas, o v
que levou quase metade a debandar para Rio Negro. Porem, che· '""
()()
::s
gavam novas familias e o governo fo~ou a volta dos colonos, IJ'.l
para seus ranchos ( ... )"'. v
"Cl
e
Nesse quadro que se pode entender plenamente as afirma- I/)
(IS
9oes do Jomal Der Urwaldbote, de Blumenau (2): 11 0s bugres
atrapalham a coloniza~ao e as comunica~oes en ere planalto e li- ..........8
,....
toral. ~ preciso acabar com essas perturba~oes de modo total e >
o mais depressa possivel. Pontos de vista sentimentais, que I

consideram injustas e imorais as ca~adas movidas aos bugres,

sao inoportunos ( ... ),.,.
Velada ou claramente o senso comum admitia a guerra aos
sil vicolas. A imagem que deles se pintava nao admi tia outra

(1) - Wachowicz , 1969: 478 , referindo-se a depoimento incluso em Pa-

mietnik Emigrantow, Ameryka Poludniowa, ob cit, p.296.
(2) - Cf. Wachowicz, 1969: 482.

112

•
atitude. Quando alguem sugena qualquer tipo de a9ao que nao companheiros de tribo. A maior parte, porem, morreu depois de
tivesse fundamentada no uso da fore,;: a, p raticamente nao encon- pouco tempo, em consequencia do medo, saudade e subita mudan-
trava quern o quisesse ouvi r. 0 indio ja estava caracterizado s:a dos habitos alimentares. Poucos lograram ajustar•se as novas
como indomesticavel; como desalmado; como pagao. E para en- condis:oes de vida ( ... )".
frenta-lo somente havia como recurso a arma de fogo. No ano de 1905, solenemente alguns desses indigenas foram
Pensava-se tanto no indigena como ser destitu!do de huma- tomados cristaos pelo batismo, na Catedral Metropolitana, em
nidade, que o viajante alemao Karl von Den Stein (1940: 18) nar- Florianopolis. No jomal o Pharol, editado em Itajai, de 4 de fe-
ra o seguinte epis6dio vivido ao visi tar Santa Catarina: "No pre- vereiro de 1905, encontramos a seguinte referencia: "Do nosso
dio do Governo, em Desterro, encontrei-me com um velho e hon- colega "0 Dia", transcrevemos a noticia dos cinco silvicolas
rado cidadao da "Serra" que, como eu, tinha qualquer pedido a apreendidos Estado, na ex·Colonia Angelina, e apresentados pe-
fazer la. Aproveitei o ensejo para indagar se ele nao me poderia la Conferencia de Sao Jose, Associas:ao de Sao Vicente de Pau-
arranjar craneos de indios. 0 born velho, creio que julgando·me la, a qual foram ditos indigenas pelo governador do Estado em
alto funcionario, olhou-me desconfiado - o que me consternou - exercicio, o sr. Coronel Antonio Pereira e Oliveira, confiados
e replicou hesitante: "Eu hem lhe poderia arranjar os craneos. para serem educados: 1g Maria lnhataca do Nase imento, de 12
Mas devo primeiro falar com os meus vizinhos para saber se anos presumiveis e da qual foram padrinhos o sr. Cel Antonio
es tao de acordo." Pereira e Oliveira, governador em exercicio e sua esposa, Dona
0 medo aos indigenas chegou tambem a servir para vizinhos Manuela Rosalia de Oliveira. 2Q Pedro Andyro Natal, de 8 anos
resol verem suas contendas. Schaden (1940-: 15) narra o seguin- presumiveis e do qual foi padrinho o sr. Cel Vidal Ramos Junior
te epis6dio: "Na casa do colono Klaumann havia "Musik", como e sua exm• esposa Dona Amancia de Carvalho Costa. 3g Laura
costumavam chamar as domingueiras. Por qualquer motivo nao lndiara do Nascimento, de 5 anos presumiveis, da qual foi padri-
haviam convidado aos filhos do vizinho, que entao conceberam nho o sr. dr. Lauro Muller, Ministro da Vias:ao~ representado pe-
um piano de vingans:a. No mais animado do folguedo, acercaram· lo desembargador Dr. Domingos Pacheco d' Avila e sua exmt
-st do local, escondendo·se na mata pr6xima, de onde desenca- esp()sa Dona Maria Leopoldina d' Avila. 4g Rosa Andyra do Nas-
dearam verdadeira chuva de pedras sobre o telhado da casa. No cimento, de 4 anos presumiveis e da qual foi padrinho o sr. Con·
mesmo momento ouvia-se o grito assustador:"Die huger Kommen! selheiro Francisco de Paula Rodrigues Alves, Presidence da
(Ai vem os '>ugres!), fazendo com que a musica parasse imedia- Republica representado pelo snr. Coronel Antonio Pereira e
taruente ( .. . )".
Mas ao mesmo tempo em que se organizavam, incentivavam
e financiavam expedic,;:oes de bugreiros a floresta para aniquilar
- Oliveira e Dona Francisca de Souza e Helo. 5g Antonio Unda
Natal, de 4 anos presumiveis, do qual foram padrinhos Antonio
Lemos Ramagem e sua exm~ esposa Dona Maria Carolina Rama-
os sil vi colas; em que se declarava ser o indio um barbaro, um gem. Presume-Se que sao irmaos OS batizandos".
desalmado; em que se reclamavam trabalhos de catequese; em No quadro solene que a cerimonia de batismo apresentava,
que se armavam colonos; tomavam-se atitudes ~estina,das a mas- evidentemente nao constava qualquer referencia a nao humanida-
carar toda a violencia que dominava o sertao. As crianc;as e mu- de dos pais dos novos cristaos. Paternahsticamente, protegia-se
lheres trazidas pelos bugreiros como trofeus de guerra, procura- as vitimas que haviam sobrevivido as razias dos bugreiros. Pa-
va-se dar amparo em conventos, colegios e, mesmo, junto as fa- temahsticamente, esperava-se que a oportunidade dada as crian-
milias de importancia na capital ou nas sedes das colonias. Pre- c;as indigenas fosse plenamente aproveitada para sua integra9ao
tendia-se, ate certo ponto, que essas mulheres e crianc;as fome- no mundo dos brancos. Paternahsticamente, ainda, imaginava-se
cessem informac,;:oes sobre o grupo indigena e servissem de inter- que no futuro essas crianc;as seriam importantes para col aborar
pretes quando viessem a dominar a lingua dos brancos. Preten- na submissao final de seus pais.
dia-se tambem demonstrar que os brancos eram hons e incapazes
de fazer mal a quern se comportasse como devia. Pretendia-se,
afinal, ter a consciencia tranqiiila pela salvac;ao de al guns indi-
viduos. Entretanto, segundo Schaden (1946): "Desses pobres al·
~uns poucos conseguiram fugir para o mato, reunindo-se a seus

114 115
 in1c1aram-se grandes plantac;oes de erva mate e continuou a ex-
pansao das fazendas de cafe. Alem disso, nos vales litoraneos
IV. A PACIFICA~AO + de Santa Catarina, e no Rio Grande, e na area do planalto que
,
1. 0 INDIO COMO PROBLEMA NACIONAL atingia esses estados e parte do Parana, prosseguiam celeres
E A CRIA~AO DO SPI OS trabalhos de fixac;ao de imigrantes estrangeiros a pequena e
media propriedade rural. No centro do Pais, ainda, a criac;ao de
As vicissitudes vividas pelos Xokleng no sul do Brasil gado exigia a expansao das fazendas. Terra, cada vez mais ter-
eram semelhantes as que outras tri hos j a haviam vi vi do ou esta- ra, era necessario para atender a esses diversos empreendirr.en-
vam a viver no resto do pais. A regiao sul estava integrada ao tos e a essa sede de expansao e interiorizac;ao. E como os indi-
resto da N~ao e nao se poderia imaginar que somente ah o indi- genas ocupassem largas parcelas dos territorios em questao,
gena era vilipendiado, combatido, exterminado. Na realidade, ha via que se submete-los de qualquer forma. Os agentes mais
desde OS meados do secu}o passado, OS indigenas eram conside- eficazes dessa sujeic;ao eram a arma de fogo e o bugreiro pro-
rados ohstaculos a veneer a fim de que a Nac;ao co~o um todo fissional (1).
ocupasse certos territorios ate entao inexplorados. A natureza No inicio deste seculo, entretanto, varios acontecimentos
colonialista dessa expansao, entretanto, continha as coo\radic;oes vieram permitir 'que as populac;oes urbanas tomassem conheci-
expressas simultaneamente nos atos de agressao ao indigena e mento de como se procedia a
conquista do interior. A imagem
na manutenc;ao dos valores de conduta e moral que respeitavam romantica que se fazia do indigena nos setores urbanos do Pais
a integridade da pessoa humana. Por isso se enfatizava tanto a emergiu vigorosa em oposic;ao a imagem sanguinaria e barbara
selvageria do indigena, a sua ~ndic;ao de barbaro e pagao. Era que aparecia no sertao. Rondon (1946:99), em conferencia na ci-
necessario imagina-lo diferente, com humanidade duvidosa, a dade de Sao Paulo, em 1910, exemplifica como essa visao podia
fim de ser possi vel a harmonizac;ao emocional do ci vilizado. ser utilizada para humanizar o indigena e assim criar um clima
No inicio deste seculo varios projetos de expansao estavam favoravel a sua protec;ao, por parte do Governo: t'Certo serin-
sE>ndo colocados em pratica pelo govemo central da Republica. gueiro ( ... ) tinha tao arraigada prevens:ao contra os indigenas
Ferro vi as e linhas telegraficas eram con sti tuidas, vi sando faci- que punha em pratica, com inexoravel pontualidade, a maxima:
litar as comunicac;oes entre os varios pontos da Na~ao. Terras "indio vis to, indio atirado", apesar de jamais ter recebido de
novas eram assim colocadas ao a lca nce dos civilizados, a brindo suas pobres vitimas o menor insulto . Ca nsados de tantos sofri-
perspectivas para a instalac;ao de novas frentes pioneiras". Simul- mentos, os indios resolveram "catequisar", "amansar", ou, se
taneamente, resolveu-se uma serie de problemas relativos aos li- quizerem, "domesticar" aquele "civilizado" , s3bre o qual, certa-
mites com paises vizinhos e facilitou-se a realizac;ao de expedi- mente, teriam uma opiniao um canto ou quanto parecida com a
c;oes cientificas ao interior do pais (1). 0 territorio 'a di sposic;ao que muitas vezes vemos estender-se a respeito deles mesmos,
dos brancos cresceu, assim, por varias formas. Mas a maior par- isto e, a de ser um barbaro com inst into de fera. Mas ainda
te das terras com vi abilidade de ser in co rporada economicamen- assim nao se resolveram a mata-lo; preferiram os meios brandos
te a N ac;ao era ocupada por grupos indigenas. e eis o que engendraram: o truculento seringueiro atravessava
Nessas condic;oes travou-se em varias partes do Pais uma habitualmente certo rio, sobre uma pinguela. Dois Rama-Rama,
luta rr.esquinha, objetivando a s ubmissao dos indigenas . Na puseram-se a espera-lo, muito hem ocultos, cada qual em uma
Amazonia, a borracha levou para a floresta milhares de trabalha- das cabe~eiras da rustica passagem. Vern o seringueiro, bara-
dores civilizados, os quais se submeteram na maioria das vezes fusta por ali e quando esta todo absorvido com as difilcudades
a condic;oes de trabalho indescritiveis. Na sua luta pela sobrevi- naturais de semelhantes passos, levantam-se os indios, fechando-
vencia, evidentemente, levaram ao indigena parcela do horror a lhe as saidas. Atonito, o homem perde a presen~a de . espirito e
que estavam sujeitos ou, mesmo, vieram a criar situac;oes mais nem mais se lembra da espingarda que traz a tiracolo. Porem
desumanas ainda para impor ao silvicola. No sul e no oeste, mais atonito deveria ter ele ficado, quando viu aqueles "Selva-

(1) - Stauffer, 1960: 435/ 452.

(1) - Veja-se Stauffer, 1959: 77 / 95.

117
116
 gens", que o podiam acabar em um instante e com tooa a segu- eleito socio honorario e prometia falar na sessao seguinte sobre
ranc;:a, estenderem-lhe as maos desarmadas, oferecendo-lhe fru- a situa9ao dos indigenas no sul do Brasil. ~anifestara von
tas: eram os "brindes com que tentavam inic iar o ttabalho de Ihering em outras ocasioes opiniao sobre o indigena como um
" catequese d o c1v1
. ·1·1zad o ,, ( ....
) ,,
frio objeto de investiga9ao cientifica. E nesses primeiros dias
As situas:oes que contribufram para essa humanizas:ao pu- de outubro, circulou em Sao Paulo trabalho de sua autoria con-
blica do indigena evidentemente decorriam da agressividade com tendo referencias negativas ao indigena, o que imediatamente
que se tentava conquistar o sertao. 0 fato de que imigrantes es- provocou o protesto de Silvio de Almeida, publicado a 12 de outubro
trangeiros, especialmente alemaes, estavam desalojando vio- de 1908 no jornal 0 Estado de Sao Paulo. 0 texto de von Ihering
lentamente os indigenas do sul do Pais, em dado instante permi- que mais alarmou Almeida foi integralmente transcrito no jornal,
tiu uma reas:ao nacionalista de certos setores lucidos das areas conforme segue (1). "Os actuais indios do Estado de Sao Paulo
urbanas. E por incrivel que possa parecer, toda a discussao que nao repres entam um elernento de trabalho e de progresso. Como
se travou e que foi responsa~el pela organizas:ao e instalas:ao tambem nos outros Estados do Brasil, nao se pode esperar tra-
do Servi90 de Protes:ao aos Indios, em 1910, teve sua origem balho Serio e continuado dos indios Civilizados e, COmO OS Cain-
numa comunica9ao que Alberto Vojtech Frie (*) realizou no XVI gangs se lvagens, sao um empec ilho para a colonizac;:ao das re-
Congresso Internacional de Americanistas, em Viena, no ano de gi oes do sertao que habitam, parece que nao ha outro meio, de
1908. Frie dem onstrou que no sul do Brasil a colonizas:ao se que se possa lanc;:ar mao, senao 0 seu exterminio".
processava sobre os cadaveres de centenas de indios, mortos O debate estava definitivamente iniciado. Jornais, Acade-
sem compaixao pelos bugreiros, atendendo aos interesses de mias de Ciencia, Institutos de Hist6ria e Geografia simultanea-
. companhias de coloniza9ao, de comerciantes de terras e do gover- mente come9am a discutir sobre a vida e o destino do indigena
no (1). E, finalmente, solicitou que o Congresso: "( ... )protestas- brasileiro. No auge do debate, sempre alimentado pelas posis:oes
se contra e"stes atos de barbarie para que fosse tirada es ta mancha germanicas e anti-indigenas de von Ihering, duas sit ua9oes esta-
da historia da moderna conquista europeia na America do Sule da- vam definidas. A primeira referia-se a participa9ao do governo
do um fim, para sempre, a esta cac;:ada humana". (2). na protes:ao ao silvicola; a segunda, identificava o indigena com
A franqueza dos depoimentos de Frie criou varias contro- o nacionalismo embrionario da Vel ha Republica. ·
versias no Congresso, pois continha implica90es, segundo mui- Para completar esse quadro, Candido Mariano da Silva Ron-
tos, estritamente morais. Talvez devido a essa conotas:ao, ime- don constantemente realizava conferencias nos principais cen-
diatamente houve repercussao na imprensa europeia. Na Alema- tros urbanos do Pais, trazendo informa9oes amp las e ineditas
nha, jornais chegaram a levantar hip6tese de que Frie estava sobre os indigenas do Brasil Central e da Amazonia, com os
interessado em deter o fluxo de !migra9ao que se fazia para o quais travara contato durante as tarefas de estender linhas tele-
sul do Brasil, por motivos politicos (3). No Brasil, houve algu- graficas. Ao lado do exotico, Rondon esclarecia sobre a realida-
mas referencias na imprensa sobre os pronunciamentos de Frie. - de do homem indigena, chamando a atens;ao para o seu drama de
Foi, entretanto, Hermam von Ihering que verdadeiramente abriu sobrevivencia. "Se passarmos da terra para os seus habitadores,
o debate em torno das declara9oes de Frie err. nosso Pais, ao entao so teremos motivos, senhores, para contuplicar muitas
tentar refutar as acusas:oes formuladas aos alemaes no Congres- vezes a necessidade de primeiro tratar com eles, no seu estado
so de Viena. Aos 5 de outubro de 1908, no Instituto Hist6rico nativo, para de pois hem ajuizarmos da sua indole, do seu cara-
e Geografico de Sao Paulo, von Ihering agradecia por ter sido cer, da sua soc iabilidade e de suas aptidoes pracicas.
Ha vinte anos que trabalho no meio deles, e ate hoje os
tenho encontrado por tooa a parce de peito aberto aos nobres
sentimentos da humanidade; de inte ligencia lucida e pronta a
(*) "- Friee grafado corretamente com um pequeno V invertido sobre a aprender tudo quanto se lhes quer ensinar; invenciveis as fadi-
tetra C. Deve-se pronunciar "Fritch ". Cf. Stauffer, 1960: 169.
gas do mais rude labut~r; amigos constantes e fieis dos que os
( 1) - Stauffer, 1960: 169.
(2)-Stauffer, 1960: 171.
(1) - Stauffer, 1960: 177 , citando Silvio de Almeida , in 0 Estado de
(3) - Stauffer, ob cit, 172. Sao Paulo , 12 de outubro de 1908, p.I.

118
119
 tratam com bondade e justi~a. Nao preciso repetir o auxilio que foi decorrente de um longo debate que se travou a respeito do
eles prestaram ( ... ); para compreender-se quanto e injusta a acu- tratamento que se deveria dispensar ao indigena, a partir de sua
sa~ao levantada contra eles de serem indolentes e inuteis, bas- definis;ao com<' ser humano. 0 Servic;o de Protes:ao era a respos-
ta lembrar que na zona percorrida pelos expedicionarios de 1907, ta oficial do governo brasileiro as variadas posis:oes defendidas
1908 e 1909, nao havia um estabelecimento de seringa, de cau- pelos mais diversos interessados ao correr do debate . E essa
cho, depoaia, no qual grande parte, e as vezes todos os traba- resposta significava vitoria para um grupo de intelectuais que,
bal hos' nao fossem fe itos por indios. sob a influencia do Positivismo, defendeu a tese de que o indi-
Desrespeitados em suas pessoas e em suas familias; per- gena deveria ser protegido e assistido em suas necessidades
seguidos, caluniados, eles vivem em situa~ao miserrima: se pelo Estado.
aceitam a sociedade do branco ficam reduzidos 'a pior das es- Em Santa Catarina houve participac;ao efetiva nas discus -
cravidoes - a de, escravos cuja vida nao interessa ao senhor; s0es que se travaram. Devido a colonizac;ao a que se procedia
se se embrenham nas matas, sao acossados e exterminados a fe- no Estado, as violencias cometidas contra os silvicolas sempre
rro e fogo. Onde esta a nossa justi~a de povo culto e civilizado; tiveram seus defensores. As proprias administrac;oes das · Colo-
onde esta o nosso sentimento de equidade e de gente crescida a nias e o Governo admitiam e estimulavam as ac;oes de extermi-
sombra das admiraveis institui~oes romanas ; onde esta a nossa nio, pois nao Se poderia admitir que OS silvicolas impedissem
bondade de homens formados sob os influxos da cavalaria e do OU dificultassem as aspirac;oes de progresso. No inicio do secu-
catolicismo, para assim chegarmos a esta monstruosa iniquidade lo, entretanto, comec;aram a aparecer as primeiras manifestac;oes
de so negarmos 0 direito a
vida e a propriedade, em terras do contrarias a essas ac;;oes vi olentas sobre o indigena. Em obra
Brasil, aos brasileiros de ma is lidima naturalidade? ! (J )" editada em Florian6polis, Vieira da Rosa (1905:309), acusava :
"E fallam das barbaridades, das depreda~oes praticadas pelos
Preocupado em defender os interesses dos imigrantes ale- silvicolas, censuram-n'os e perseguem-n'os e tiros de fuzil, mas
maes no Bras il, rudemente atacados por Frie quanto as suas re- nao Se lembram que assim JIOcedento tornam-se mais ferozes
las;oes com os indigenas, von Ihering prestou uma contribuis;ao que os proprios indios ( ... )".
inestimavel 'a causa indigenista. Foi sua posis;ao anti-indigena; Ate entao as criticas as violencias praticadas contra o in-
foi s ua atitude de apoio irreversivel ao colono - .. a vida do ser- digena, segundo o levantamento bibliografico que realizamos,
tanejo ou do colono nos vale mais do que a do bugre " (2) - ; foi parecem ter sido limitadas a reprovac;ao oral ou a manifestac;;ao
sua preocupas;ao em responder as criticas recebidas, mantendo simpl~s e isolada de piedade. Nao havia protesto publico. Ago-
aceso o debate; que rea lmente permitiu ser a s ituac;ao do indige- ra, ha uma flagrante mudans;a. A partir de Vieira da Rosa logo
na amplamente discutida, analisada, sentida . Em dec orrencia de outros elementos comec;am a aparecer, emitindo suas opinioes
toda essa discussao e pressionado por um grupo de intelectuais a respeito dos indigenas e ressaltando seu direito a
vida (1).
de orientas;ao positivista, o governo brasileiro tomou a delibera- Essa tomada de posic;ao provoca uma reac;ao dos jornais que em
c;ao de criar um organismo oficial destinado a tratar dos assun- lingua alema se editavam no sul do Pais, ocorrendo seria pol~
tos pertinentes aos s ilvicolas . Aos 7 de setembro de 1910 ins - mica. Foi nessa polemica que Frie obteve boa pa rte de seus da-
talava-se oficialmente o "Servic;o de Protes;ao aos Indios e Lo- dos para apresen tar em Vien a, em 1908. Incri velmente, o que
calizac;ao de Trabalhadores Nacionais". ocorria em Santa Catarina era extref!lamente importante e decisi-
vo para o futuro indigena do Pais. A epoca, entretanto, ningu~m
percebia isto.
2. A LIGA DE DEFESA PATRIOTICA
E OS TRABALHOS DE FRIC EM SANTA CATARINA.
(1) - 0 Jornal 0 Pharol, de 24 / 2 de 190~ apresenta noticia s~bre um
, ataqu e realizado pelos bugreiros aos indi os, dizendo que "trucida- los
0 aparecimento do Servis;o de Protec;ao aos Indios em 1910 barbaramente nao e extenuar e nem remediar 0 mat ; e pelo contra rio
agrav~-lo em todas suas circunstancias ( ... ). Se os membros da expedi-
(1) - Rondon, 1946: 101 / 102. r,3:> leva ssem con sigo o sentimento do dever e o amor pelos seus seme-
lhentes e se ao fogo as sassino de s uas annas preferi ssem a pnHica de
(2) - Cf. Stauffer, 1960: 442 . "lobres exemplos, nao se dariam tantos espetcfc ulos horrorosos•.

120 121

+
 . ~ao foi possivel ~esc~brirmos exata"!ente as pessoas que Liga (1). Entretanto em mar90 de 1907 ele partia de Florianopo-
1nflu_1~a_m para a organ1za9ao, em Florianopolis, de uma "Liga lis para Itajai e Blumenau com o objetivo de incentivar a cate-
Patnotica para a Catequese dos Silvicolas ". Ela entretanto sur- qu"ese do gentio. 0 jornal Novidades d.e 17 de mar90 de l907,
giu como beneplacito do governo estadual e logo procurou efeti- apresenta a seguinte noticia: "No Max, sexta-feira vindo de
vamente proceder a atra9ao dos silvicolas. No jornal Novida- :iorianopolis, esceve nesta cidade o Sr. Alberto Frie.' 0 Sr. Frie
des, de 10 de mar90 de 1907, encontramos o seguinte expedien- e representante do Museu Real Etnografico de Berlim e assisten-
te, qu~ esclarece sobre os objetivos e principais responsaveis te ,do ~useu ~tnografico de "Freie und Haustadt", Hamburgo.
pela Liga:
Alem desses tttulos que lemos no seu cartao de visita tern o de
pacificador dos indios de Santa Catarina. Nesse car~ter o dr.
Frie seguiu, no mesmo dia, para Blumena.u. Os nossos votos sao
"Florianopolis, 2 de janeiro de 1907. para que algum ~em, em favor dos infe lizes aborlgenes, re suite
Exm? Sr. Redator do Jornal Novidades. do seu empreend1mento generoso e que se conserve sobranceiro
Temos a honra de levar ao conheci~ento de V. Excia, que as amarguras que ha de encontrar na sua dura missao. Neste
sob os generosos auspicios do Governo deste Estado, instituiu- assunto entendemos que, por mais dificultosos que se antolhe a
se nesta cidade uma associat;ao com o titulo - Liga Patriotica civilizat;ao dos autoctones brasileiros, coda tentativa deve me-
para a Catequese dos Silvicolas - e de que sao presidentes de r~cer _acorot;o~mento e _coda hostilidade a ela so revela um esp.l-
honra os exm~s srs. Governador e Vice-governador do Estado. rtto tao estretto que nao comporta um grande sentimento - o da
solid~riedade humana".
Em ?Orne des ta Liga e mormente em nome dos pr inc ipios de hu-
man1dade, apelamos para os generosos sentimentos de V. Excia E provavel que a essa epoca em Santa Catarina ja estivesse
no sentido de evitar o exterminio dos bugres que habitam as nos- definida uma posi<;ao nacionalista e humanista em favor do indi-
sas selvas. Se e verdade que por vezes o silvicola, impelido gena, contraria a tese defendida pelos contingentes alemaes radi-
pe la necessidade, vem com o furto causar prejuizos ou procura cados nos vales do Itajai e Cachoeira, que sugeria o indigena como
mesmo, pelo assassinio vingar-se da morte de um dos seus, nao ser inferior e como obstaculo ao progresso. 0 fato de que essa
, . . . , . ' tese era especialmente defendida pelos jornais que se editavam
e 1sso mouvo para que JUremos exterm1n10 a sua rat;a, porque,
infelizmente, o furto e o assassinio tambem se cometem nos cen- em lingua alema, ja facilitava uma rea9ao com cores nacionalis-
tas na imprensa genuinamente brasileira. Quando a Liga mencio-
tros c ivilizados sem que por is so se atente contra a sociedade
n~ em seu expediente que seus objetivos devem ser "as aspira-
em peso.
F sta Liga nao desconhece e nem procura negar o direito 9oes de todos os hons brasile iros" e quando o Novidades, ao fa-
que assiste a cada cidadao de defender a sua vida contra quern lar de Frie, des tac a que negar apoio ao esforc;:o de pacifica9ao
quer que seja, selvagem ou civilizado, que a elas possa atentar; seria re.velar "um espirito tao estreito que nao comporta um gran:
o que a Liga aspira e que cessem de vez, em nossas matas, essas de sent1mento - 0 da solidariedade humana "' sera que nao teste-
cat;adas humanas, que nos humilham e envergonham peraote os munham essas posi9oes nacionalistas?
povos civilizados; o que a Li~a ardentemente deseja e que se
esta~el_et;a uma corrente de simp~tia em favor do pobre silvicola +
brastleuo; que, em vez de acossa-lo por t8da parte· e obriga-lo a
pass_a r uma vida de miseria no interior das matas, se lhes pro-
porc 1one me ios de catequese e civilizat;ao. (1) - No relatorio ao governo de Santa Catarina, e m 1907, le-se o s e -
guinte : " No intuito de tratar da catechese d 'ess e s i nfe lizes , cons tituio-
Pa_ra a_ realizas:ao dessas aspirat;oes da Liga, ·que sao alias· se nes ta capital uma " Liga Patrio tica ", da qual e pres id e nte o illus tre
as asp1rat;oes que todos os boos brasileiros pedimos o valioso cidada o pharma c eutico Raulino Horn. E s ta nobiliss ima a ssoc ias;ao pro-
concurso de V. Excia, de quern nos subscrevemos com alta con- moveu dua s conferenc ias public as n ' e s ta c apita l, realiza das , uma pelo
siderat;ao e respeito. 0 presidente efetivo, Raulino Horn. O t~ talentos o sac erdote Padre Manfredo Leite , deputad o a o C ongres s o re-
presentati vo do Estado e outra pelo c idadao Alberto Frie , com o fim de
Secretario, Leon Eugenio Lapagesse". propagar a c atechese, abolindo d'est ' arte o deshumanitario proc ess o de •
Nao ha certeza da participa9ao de Frie na organiza 9 ao da batidas a os bugres".

122 123

t
 A recep9ao que Frie teve em Blumenau ate certo ponto com- e deslumbrante, mas a honrada "Liga" certo ha de concordar que
prova isto. Como ele se apresentava como "pacificador dos indige- semel hance catequese nao sera obra de um dia, nem de um ano,
nas de Santa Catarina", titulo que lhe havia sido outorgado pela e enquanto se nao conseguir trazer a civiliza~ao estes assassi-
Liga Patri6tica de Florian6polis (1), o tratamento que recebeu nos e ladroes vermelhos, nao sera justo que contra eles tambem
foi o menos acolhedor possivel. Ninguem desejava discutir suas se protejam os nos sos colon<;>s que, no cora~ao dos sertoes,
ideias, levando-o a escrever um artigo, publicado no Novidades batem o cam~nho para a nossa fucura riqueza e prosperidade?
de 24 de mar90, sobre a indiferen9a com que a popula9ao de Fato cunoso! Embora a "Lij!a" o nao articule da a entender,
Blumenau tratava o problema indigena. E logo partiu de Blume- entretanto, que estes bandidos das selvas podem matar e roubar
nau, seguindo para Palmas, em busca de indios I< aingang para colonos, sem que estes sequer tenham o dire ito de defender dos
auxilia-lo numa tentati~a pratica de atra9ao dos Xokleng. 0 jor- seus ataques. Esta gente que passa uma vida do mais duro e rude
nal Vanguarda, que se editava emCamposNovos,dizemseumlme- trabalho, que sao verdadeiros pioneiros da cultura, que pa~a im-
postos sobre impostos' telP ainda 0 desgosto de ver que 0 governo,
ro de 14 de abril de 1907: "Esteve entre n6s o Snr. Dr. Alberto + ao envez de protege-los, quase os considera criminosos, e pelo
Frie, explorador conhecido, que seguio para Palmas, como encar-
regado da Liga para a Catechese dos Silvicolas, afim de conse- fato de, na defesa de sua vid·a , e de sua proiriedade, matarem
guir algumas familias de indios mansos para localizal-os na es- um ou mais selvagens que saem das matas para matar e devas-
trada de Curitibanos a Blumenau, para por intermedio do concur- tar os campos de quern tao pacifica e honradamente trabalha para
so d 'eles procurar catequisar os "Botocudos ", que infestam os sustentar sua familia.
sertoes d'aquela escrada". Achava born que, primeiramente, um ou dois membros da
Nao foi possivel a Frie obter resultados concretos e imedia- "Liga" fossem passar um verao em um dos distritos infestados
tos de seus esfor9os. Tampouco a Liga conseguiu que um outro pelos bugres e entao talvez o seu entusiasmo se acalmasse e
pacificador, Bernadino Silveira tivesse exito no aldeamento que poderiam melhor avaliar a tarefa que tomaram sobre si.
tentou fundar em Pombas, no alto vale do Itajai (2). Mas se se propoem a fazer catequese, nao e so falar, va-
0 artigo que Frie escreveu criticando as atitudes frias dos mos' maos a obra, porque padres nao faltam e es tao a mao - em
habitantes de Blumenau para com os indigenas, ja havia sido Blumenau existe uma malta deles, sem ocupa~ao visive!. Eu vou
respondido. Gottlieb Reif, no Novidades de 10 de mar90 de 1907, falar de experiencia propria. Quando morava nos sertoes de Blu-
baseado em sua propria vivencia, respondera a
Liga sobre seus menau aparec iam, em minha fazenda, muitos bugres. Eu sempre
objetivos e anseios, tentando demonstrar que sua opiniao era t:vitava e exortava aos meus companheiros a nao lhes fazerem mal,
apoiada por toda a popula9ao do vale. Eis o que disse: "Acaba deixava muitas vezes comida ao a lea nee de les etc. E qual foi mi-
de ser fundada em Florianopolis a "Liga Patriotica para a Cate- nha recompensa? Um dia, sairam do ma to, assaltaram minha ca-
quese dos Silvicolas", que tern por fim evitar o exterminio dos In- sa, mataram um trabalhador meu e roubaram trinta rezes e todos
dios que habitam as nossas selvas. 0 titulo, na verdade sonoro e os utensilios de casa. Se eu os tivesse tratado com rigor, viveria
mais afastado <lesses perigos, e talvez nao sucedesse aquela
desgra~a.
De modo a lg um sou contra a catequese, mas tenho pouca fe
(1) - 0 titulo "pacificador de indigenas de Santa Catarina" - foi dado nos seus resultados, as experiencias feitas ate agora nao sao
pela Liga tambem a Bernadino Silveira que neste ano de . 1907 tentou um animadoras (haja visto Imbituba). Ate julgo muito duvidoso en-
aldeamento no lugar Pombas, no alto vale do Itajai. Tivemos oportuni- contrar padres que se pre stem a isso. Mas, se ja como for, o
dade de ver um cartao de Frie com esse titulo numa oportunidade em objetivo principal deve ser a prote~ao aos sertanejos, enquanto
que Eduardo Hoerhan, o pacificador real dos Xokleng do Itajai, criticou
severamente Frie "porque ele nunca pacificou um indio".
esta catequese nao estiver terminada. (Se ainda depois disco os
(2_). - Novidad.es de 10/ 3!1997 noticia que "0 Sr. Augusto Grando, de
nos sos sertane jos poss am viver mais tranquilos, eu duvido mui-
T~JU~as segu1u para Flonanopolis, onde se vai apresentar a Liga Pa- to). A honrada "Liga " deve tomar este assunto bem em conside-
tr1otlca ( ... ) para, de acordo com ela, iniciar a catequese dos bugres ra~ao, senao todos OS seus fins fie am inutilizados, porque nao e
•
Clas matas do sul do Estado". Entretanto, nao logramos encontrar qual- de supor que os colonos ass is tam, de bra~os cruzados, a matan-
quer outra referencia que permitisse saber se efetivamente foi realizada
qualquer tentativa de pacificas;ao da Liga no Sul. ~a de suas mulheres e filhos e a destrui<;ao de suas proprieda-

124 125
des adquiridas com tantos anos de labor insanos e sofrimentos brasileiros para salvar os indigenas das razias promovidas pe-
de toda a especie. los que tinham interesses el'l' penetrar no sertao. Era tambem uma
Para nos que conhecemos estas coisas, que mesmo temos resposta humana para a maioria d~s poyul~9~es urbanas do pais,
sido vitimas desses selvagens, parece um sonho ouvir, por tooa que tinha se comovido com a s1tua9ao 1nd1gena retratada nas
a parte, vozes levantadas em defesa deles, comiserando-se de polemicas que se haviam travado na imprensa.
sua sorte, etc. e nenhuma voz publica em defesa do sertanejo Oirigido por Candido Mariano da Silva Rondon e tendo nos
(exc luido o "Der Urwaldsbote ") indicando pianos e medidas, jovens oficiais do Exercito Nacional, influenciados pelo Positi-
para tornar sua existencia mais segura e cranquila. vismo, sua P,rincipal base de apoio e trabalho, o Servi90 de Pro-
Esta e a minha opiniao: protes:ao aos moradores do sertao e te9ao aos Indios logo tomou conota9oes nacionalistas. Para
OS Indios es tao protegidos. } a estavam escritas estas linhas as empresas privadas, a maioria influenciada por capitais es-
quando me chegou as maos o n~ 62 do "l'er Kompass". Trata da trangeiros, o SPI significava uma interferencia do governo fede-
"Liga" e, depois explicando o que aquela Sociedade quer, diz: ral em assuntos internos dos Estados. Para as colonias, e para
que ate agora a Liga nao tern tido grande acontecimento com OS quase todos os imigrantes, o Servi90 promovia a valoriza9ao do
seus protegidos. Na Hansa, eles ·deram sinal de si, e a popula- indigena err. detrimento da popula9ao que realmente trabalhava e
s:ao teme um assalto a todo momento. As bugras fugiram da com- fazia crescer o pais. Para todos esses o indio era problema
panhia de Bernadino Silveira. 0s bugres atacaram a casa de das administra9oes locais e, por isso, a interferencia federal era
~iguel llheo e seus dois genros e deixaram-os completamente indevida.
limpos ". Tendo a situa9ao particular dos Xokleng sido constantemen-
E agora o que diz a isto a "Liga"? A bugra que estava no te referida na imprensa, nos anos que antecederam a instala9ao
convento em Blumenau um ano e tres meses e que ja podia, por- do SPl, e porque constantemente os governos da Alemanha e da
tanto, avaliar a vida civili.zada preferiu a vida selvagem, fugiu e Italia exigiam do Brasil garantias de vida e de propriedade aos
levou em sua companhia uma rapariga apanhada na ultima expe- imigrantes que se instalavam no sul, logo se criou uma Inspeto-
dis:ao. ria do SPI em Santa Catarina. Foi designado para ser Inspetor o
Esta e a gente que a "Liga" pretende fazer crista e domes- Tenente Jose Vieira da Rosa, responsavel pelos levantamentos
ticada. Oxala eu me engane, mas creio que a "Liga" vai perder destinados a elabora9ao da Carta Itineraria do Estado. 0 convite
uma bela ilusao. para assumir a Inspet'IJria partiu de Rondon, a quern Vieira da
Em suma: protes:ao aos habitantes dos sertoes contra os bu- Rosa dedicava admira9ao. As atividades da Inspetoria, entretan-
gres, eis a realidade; a catequese, etc. e pura fantasia. ltajai, to, come9aram de maneira lastimosa, conforme vemos no seguin-
mars:o de 1907. (ass) Gottlieb Peif". te depoimento de Vieira da Rosa (1):
Os objetivos que a Liga pretendia alcan9ar e os quais Frie
tentou colocar em pratica, tiveram realmente de ser suprimidos a "Servi~o de Protec;ao aos Indios
curto prazo e por vias diretas. Aparentemente, a Liga deixou de Convidado pelo nocavel homem de sciencia e distincto sol-
atuar apos esses reveses iniciais e ao regresso de Frie para a dado corone I Candido F ondon para o cargo de Inspector do Servi-
Europa. Mas, na realidade, foi a Liga e as rigidas atitudes assu- c;o de Prote~ao aos Indios e Localizas:ao de Trabalhadores Na-
midas pelos colonos alemaes que motivaram a agressiva tomada cion.:es encrei em exercicio dous dias depois da nomeas:ao,
1
de posi9ao de Frie no XVI Congresso Internacional de America- marchando para o norte do Estado, afim de effectuar o reconhe-
nistas. 0 debate em defesa do indio, tomava um novo canher. Os cimenco da zona habitada pelos indios, conforme ordem expressa
frutos colhidos eram assim de uma outra ordem e tais que, pro- da Directoria Geral. Ao chegar a villa de Tijucas, porem, devido
vavelmente, jamais haviam sido previstos pelos defensores da ao desastre succedido aos muares, dos quaes em 24 horas morre-
Liga ou pelo pr6prio Frie. ram 11, atacados pela epizoocia ainda re1nante se hem que com-

3. 0 SPI EM SANTA CATARINA (1) - Vieira da Rosa (notas do arquivo em poder do Autor). A maior
parte das notas integrantes do Arquivo de Vieira da Rosa foi publicada
Quando foi crjado pelo governo federal em 1910, o Servi90 em jornais de Florianopolis, conforme depoimento de seu filho Gen.
de Prote9ao aos Indios wra a esperan9a de muitos intelectuais Vieira da Rosa.

126 127
batida, tive de parar alguns dias. Nao se conhecia sua lingua; nao se sabia exatamente como .vi-
Essa demora fez com que noticia de um assalto de indios viam no interior da floresta; nao se imaginava como podenam
no Rio Pequeno, no Bra~o do Norte, Municipio de Tubarao, me vir a ser pacif ica dos. A base para a ar~o dos integrant~s das
alcans:asse nao muito longe do ponto de partid~ (Estreito), e me inspetorias do Servic;:o, locali~adas e'c!1 vanas ~artes do pa1s, er,~
fizesse voltar sobre meus passos, com ordem urgente de attender a maxima criada pelo seu diretor: ~or;er Sim, ~~tar nunca ·
ao ponto atacado. Com is to pretendia-se demonstra.r aos 1nd1gena.s s UJeitos a traba-
0 servi~o de reconhec imento ficava assim alterado e, como lhos de atrac;:ao que os brancos hgados ao Serv190 se ~ompo~tavam
se pode ver no correr deste, nunca mais pode ser levado a effei- de modo diferente dos regionais. Embora arm ados, nao rev1davam
to. aos ataques; nao escondiam ou camuflavam sua presenc;:a no ter-
A Villa de Tijucas esta a 50 kilometros ao norte de Floria- ritorio indigena; deixavam em lugares estrategicos instrumentos
nopolis, e para chegar ao logar do assalto, tinha de percorrer de ferro como testemunhos de suas intenc;:oes pacificas. Alem
ma is 1 97, fazendo portanto, uma via~em de 24 7 kilometros, parte disso, so~nte havia a boa vontade, a dedicac;:ao e o born senso
da qual seria ou foi em pessimas estradas ou antes, em verda-
deiras azinhagas ou carreiros, que so serviam para estragar os
pobres animaes que haviam sido sangrados e se achavam, por
is so, muitissimo enfraquec idos.
T dos f unc ionarios.
Em Santa Catarina quase nada de concreto se sabia sobre os
Xokleng. As crianc;:as e mulheres que haviam sido aprisionadas
pelos bugreiros poucas informac;:oes prestaram. Por isso tentava-
A viagem ate Annitapolis foi rapida porque attingiam este se chegar rapidamente aos locais onde os indios realizavam algum
ponto estradas carros:aveis, mas dahi por diante, F io da Prata ataque, pois talvez fosse possivel cbloca-los frente a um grupo
para a jusante, encontrei somente difficuldades. de civilizados que ardentefnente desejava estabelecer a paz. Por
Achava-me acampado no Wagner quando, as 11 horas da noi- isso, Vieira da Rosa nao fez outra coisa senao correr daqui para
te fui alcan~ado por um portador enviado pelo Sr. Fernando Born , ali, atendendo aos locais onde os indios fizeram presenc;:a.
Superintendence da Palhos:a , conduzindo te Iegramas do Sr. Coro- A situac;:ao, entretanto, era grave. A ameac;:a representada
nel Rondon, ordenando-me que attendesse ao Poiso Redondo, no p~los !ndios as atividades dos colonoS, OS interesses de empre-
Municipio de Blumenau, onde segundo informas:oes do illustre sas e do governo estadual, desilusoes e desastres particulares
Dr. Pedro Silva, Juiz de Direito daquella bella e importance co- aos civilizados, haviam criado um clima propicio para o extermi-
marca, haviam sahido das matas muitos · indios que se diziam nio indigena. E ninguem aceitav~ nas areas coloniais os esfor-
botocudos. c;:os do Servi<;o de Protec;:ao aos Indios. Para todos quern merecia
Ve-se, pelo que ahi fica, que o primeiro Servi~o da Inspec- protec;:ao era o colono.
toria foi pre judicado pe lo acontec imento de Rio Pequeno, e que .. Vieira da Rosa, como lnspetor do Servic;:o de Protec;:ao aos
esse, por sua vez, o fora pelo de Poiso Redondo, para onde me Indios em Santa Catarina, enfrentou varias criticas e em alguns
dirigi imediatameote, sem ter descansado um momento e sem ser casos teve de fazer valer a sua qualidade de militar, para obter
possivel proporcionar aos meus soldados os confortos de que ca· acatamento as suas decisoes. A populac;:ao das colonias hosti-
reciam ( ... )." , lizava as atividades realizadas em favor dos indigenas, embora
Criar e instalar o Servi~o de Protec;ao aos Indios fora
prometesse· reco!T'pensas a querr. livrasse a regiao da presenc;:a
dificil, mas coloca-lo em operac;:ao eficaz era tarefa muito mais
dos indesejaveis silvicolas. Segundo Deeke (1967: 120): «o go-
complexa. Nao ha via mode lo a seguir, a nao ser o sistema de co-
verno vendera, entretanto, "o dominio dos silvicolas" e ali es-
mando peculiar as forc;:as armadas. A centralizac;:ao das decisoes,
tabelecera colonos; e, se, entao, o indigena os massacrasse,
entretanto, praticamente anulava esse esquema como hem clara-
incendiando-lhes as posses, aquel~s nao poderiam, nem mesmo,
mente aconteceu com Vieira da Rosa. Era impossivel travar
expulsar a horda de assassinos. E les teriam de suportar tudo ,
contato com os Xokleng partindo-se de ordens e contra-ordens
saldas da sede do Servic;:o, no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo pois OS indtl?enas estavam com a razao ( ... )" .
constatava-se que muito pouco se sabia a respeito dos indigenas, Nessa situac;:ao, ainda em 1910, aparece nos arredores de
especialmente daqueles que urgentemente necessitavam ser Blumenau, no Ribeirao da Liberdade, um grupo de 43 indigenas,
atrai'dos ao convivio pacifico com os brancos, pois, caso contra- liderados por Jose Rodriques, um ex-bugreiro, que se apresenta-
rio, acabariam exterminados. Os Xokleng estavam nesse caso. va como o pacificador do grupo. Os indigenas se diziam Botocudos

128 129
 e pediam protec;ao aos brancos porque eram perseguidos pelos c;o, que nao se preocupava apenas c~m indigenas arredios e em
Kaingang, alem de estarem visivelmente premidos pela fome. cujas terras os civilizados pretend1am entrar. Isto entretanto,
A situac;ao alarmou todo 9 vale do ltajai e logo a Diretoria do jamais foi co.npreendido na area de colonizac;ao. Nas discuss0es
Servic;o de Protec;ao aos Indios determinou que Vieira da Rosa havidas quando desse episodio, circulou em Blumenau a seguinte
se deslocasse para Blumenau, onde na localidade de Pouso Re- volante (1):
dondo, haviam aparecido os indigenas.
A chegada do Inspetor do SPI em Blumenau suscitou os mais "O Perigo Vermelho
variados come ntarios e criticas sobre o Servic;o. Afirma Deeke Esta na verdade se aproximando o perigo vermelho. Se forem
(1967 : 120) que "Detalhados telegramas foram trocados com as verdade iras as ultimas notic ias aqui chegadas' podemos nos
autor·idades superiores em Florianopolis e no Rio, e era grande preparar para ter que hospedar em nossa colonia uma tribo de
a preocupas:ao pelos "conterraneos de pele bronzeada" quanto mais de 300 pessoas. Pois a tropa que saiu no R ibeirao Liberda-
ao acolhimento por parte dos colonos ate que, afinaf, chegou o
tenente Rosa e tomou a si o cuidar dos pobres habitantes das + de, deve ser somente um piquete. Nestes tempos de escases
ainda um acrescimo de populas:ao tao perigosa! Certos circu-
selvas". los, estao trabalhando para prepararem aos irmaos vermelhos um
E as criticas aumentaram quando se descobriu que os indi-
ninho quente e o Blumenauer Zeitung, propoz com coda a serie-
genas saidos da floresta nao eram integrantes do grupo Xokleng, dade a catequese dos indios. Chegaram diversas noticias pelas
como diziaw ser. Ainda e Deeke que informa : «Pela manha bem
quais conhecemos que nao temos que tratar com uma tribo de
cedinho, antes que a bugrada tivesse feito a sua <<toillete mati- + botocudos perseguidos, mais sim, com coroados que vem com
nal " , ele (Vieira da F osa - SCS) penetrou no rancho onde ela tens:ao a um negocio lucrativo, deixando-se conduzir do Parana ,
passara a noite e descobriu que se tratava de botocudos "falsi- pelo bugreiro Fodrigues, ao qual a Liga patriotica , ainda a pouco
ficados " . Verificou-se entao, que se tratava de simples guaranis mandou perseguir. No Blumenauer Zeitung, e designado o Sr.
do Parana os quais, durante o dia, usavam botoques feito de ce- Erwin Scheeffer, como participance des ta especula~ao, o qual
ra colados ao labio inferior, onde faltava de todo 0 celebre orifi- espalhou aqui puras fabulas indianas. Nao creio nem na le~iti­
cio. E tambem descobriu-se logo que o cac ique falava bem o midade dos botocudos perseguidos nem me parece que a fuma
portugues. 0 antigo ca~ador de bugres, Jose Rodrigues, ha via Rodrigues e Scheeffer, possa ser portadora de qualquer coisa
encontrado, em algum lugar do Parana aquela gente e tornara-se boa. Deve-se antes de tudo, verificar qual qualidade de peles
chefe da representas:ao daquela "Comedia do Ribeirao Liberda- verme Iha temos na nossa frente. Pessoas que estiveram no acam-
de" como mais tarde a mistificas:ao ficou sendo conhecida. Os ' A •#

pamento, afirmaram que os botocudos fa lam portugues. e. J~ esta

indios tentavam, por essa forma, passar algum tempo de fartura circunstancia nos da o direito de duvidar de sua leg1um1dade.
e Jose p odriques certamente contava com uma boa gratificas:ao Em todo o caso, devemos ter a maior, sic com todo esse montao
pela pacificas:ao dos botocudos" ( ... )". ,., . de indios. 0 clever de nos sos representantes' e de fazer com que
Embora o SPI nada tivesse com a representac;ao fe1ta por
a catequese dos indios, nao comece em Blumenau. 0 aldeamento
Jose Rodrigues e os Guarani, seus liderados, a p~pulac;ao do
Vale do !tajai aproveitou o acontecimento para criticar o Governo dos indios, deve ser feito longe de outras colonias, pois a prote-
~ao e auxilio, merecem em primeiro lugar, os colonos honrados.
e o Servic;o, pois nao tinha sentido dispensar cuidados com
aqueles pobres e sossegados indigenas. Referiam-se ainda a to- Pode-se imaginar, o que a de ser, se os "originais senhores" do
da a trama como se o SPI fosse o culpado pela presenc;a do gru- Pais, sejam aqui alimentados pela garrafa de leite da Na~ao.
po nas vizinhanc;as de Blumenau. Esqueciam que, na realidade,
Jose Rodrigues deveria ter armado sua trama objetivando obter
recompensas da Colonia e nao do Servic;o de Protec;ao, pois este
mal havia se instalado em Santa Catarina, quando <lesses acon-
tecimentos. A atenc;ao que dispensou Vieira da Rosa ao grupo de
mistificadores, encaminhando-os para postos indigenas do Para- (1) _Conforme original anonimo e s / data existe nte na biblioteca Fritz
na, afinal tinha seu respaldo em toda a fundamentac;ao do Servi- Muller, Blumenau. Tradu~ao J. Ferreira da Silva.

130 131
 +
exigir do governo brasileiro seguran9a de vida, de propriedade e
Pobres dos que tem que ~irigir seus trabalhos nas proximidades de trabalho nas florestas do sul, o que significava praticamente
reservatorio dos indios. Eles nao colherao uma espiga de milho
na ro~a , nem poderao ter uma galinha no pateo, nem um porco no
·+ exigir a liquicla9ao definitiva dos indigenas .
Paralelamente se conseguiu provar que na area muitos
curral. 0 seu direito contra os selvagens, procurarao em vao. assaltos nao foram cometidos realmente por indigenas e sim por
Com tudo isto, vem ainda o perigo de vida a que estarao conti- pessoas civ ilizadas que dissimula vam sua presen9a para garan-
nuamente expostos. Em tudo e por tudo, o perigo vermelho e um tir a impunidade. Seus motivos iam desde o roubo ate a elabora-
assunto serio para nossa colonia e nao queremos tao leviana- dos projetos de desvaloriza9ao de terras. Vieira da Rosa narra
mente deixa-lo adiantar-se. Pri!Deiro cuidem da prote9ao dos co- que: "( ... ) fomos obrigados a voltar para Santa Maria onde, se-
lonos e seus trabalhos uteis. E a seguinte, a exigencia que fa- gundo affirmavam, ouvia-se toques de buzina pe la calada da
zemos: noite . F izemos o acampamento no ponto mais alto e aguardamos
:Em Terreno Blumenauense Nao Queremos Aldeiamento de os re feridos signaes de buzina que na opiniao dos moradores, era
Indios". + o meio de correspondencia entre os indios de serra para serra.
Por essa mesma epoca, os Xokleng realizaram um ataque em Num domingo, as ooze horas da noite ouvimos bem distinc-
Rio dos Pinheiros, matando a mulher e tres filhos de Adao Pa- camente os toques denunc iados. lmmediatamente fiz seguir a
noch, colono polones. E em seguida atacaram na Hansa de Blu- gente necessaria, em diversas dire~oes e nao tardou que Tele-
menau, matando o colono Pletz e saqueando a casa do colono maco troux esse o bugre que andava assustando uma colonia i:-i-
Dusterhoft (1). 0 Diretor da Colonia Hansa, Jose Deeke, imedia- te ira.
tamente pediu autoriza9ao ao governador do Estado para organizar Era um russo de nome Christovam Knecht que, pegado com a
um grupo de batedores para afugentar os silvicolas. 0 governa- bocca na botija, como e costume dizer-se' nao procurou negar a
dor, entretanto, "respondeu-lhe que se pusesse em contato com o s ua fa lta ( ... ) .
Inspetor Rosa, mas que de forma alguma tomasse qualquer medi- No Rio Pinheiros, tambem andavam bugres suspeitos, que
da contra os bugres , pois des ta pxleriam se originar excessos penetravam nas casas durance a... noite e bebia~ o leite_deixado
que 0 governo nao mais toleraria e que a afugenta~ao dos bugres pelos moradores que, com o panico que hav1a, refug1avam-se
poderia prejudicar o nobre e humano proposito com que o governo
federal desejava trazer os silvicolas ao seio da civiliza~ao" (2).
A certeza de que o governo nao estava mais dis posto a per-
l todos numa so casa, abandonando suas propriedades aos ga-
tunos ( ... ).
Numa outra passagem, o mesmo autor indica que: "( ... )Otto
mitir a matan9a indiscriminada de indigenas descontentou a to- declarou nao haver bugres em todas as mattas qu~ vao do Libe~­
dos, na area de coloniza9ao. Simultaneamente a investiga9ao dade ao Ipiranga e desse ponto a Hansa ( ... ). Mais tarde, d~po1s
realizada em torno da morte do colono Pletz concluiu que os que se familiarizaram comigo, nao so Otto como outro_s, disse-
assassinos seriam criminosos comuns e nao indios, desgastando ram que o Luiz Frederico havia inventado ? t~l apparec~m~nto de
ainda mais... as possibilidades de aceita9ao do Servi90 de Prote- bugres porque desejava comprar por pre~o 1nf1mo as colon1as que
9ao aos Indios. A investiga9ao referida teve s ua origem em limitavam com a sua ( ... )" (1 ).
pressoes diplomaticas realizadas pela Alemanha e o governo As criticas e as pressoes exercidas em rela9ao a presen9a
brasileiro, atraves do SPI, procurou provar que os responsaveis + indigena na area de coloniza9ao obrigavam a que Vieira da ·Rosa
pelo crime nao eram indios. A maioria da popula9ao do vale do vivesse num constante vai-e-vem, atendendo aos pontos em que
Itajai, entretanto, dizia que Vieira da Rosa estava apenas inte- os indigenas realizavam seus a~saltos ou que s!mple.:>mente da-
re ssado em camuflar a realidade. Nesse conflito, o que se pode vam sinais de s ua presen9a. Esse ti po de a9ao, nao levava a
reconhecer como verdade eque os dirigentes das colonias pre- Ins petoria a nenhum exito concreto. Vieira da Rosa disso se
tendiam utilizar a diplomacia de seus paises de origem para apercebeu e t ratou de organizar grupos de se ntinelas para prote-

( 1) - Conforme ·Jieira da Rosa, (notas do arquivo) e Deeke, 196? : 121. ( 1) - Vi eira da Rosa (notas do arquivo).
(2)- Deeke, 1967 : 121.

132 133
 ger. os locais mais expostos aos assaltos. Ao mesmo tempo rea- salteador pago antigamente pelo governo do estado e actual-
lizou a abertura de alguns picad0es, objetivando ligar estradas mente ao soldo do servi~o de povoamento do solo, do qual rece-
e assim facilitar as comunica90es em caso da presen9a de in- bera um conto e quinhentos mil reis, se trouxer indios aprisiona-
dios, deixando em locais estrategicos presentes destinados a dos ( ... ) (1 ).
atra1-los ao contato pacifico. Segundo suas proprias declara- Em Anitapolis, nos documentos do Arquivo do Nucleo Colo-
90es (1): "( ...) os jornaes reclamavam contra o nosso servi~o nial, encontramos correspondencia bastante elucidativa desse
porque nao conhecia-o; a Directoria dava ordens para que nao se episodio. 0 Diretor do nucleo colonial, que utilizava Martinho e
podiam cumprir porque desconhecia a topographia do Estado, e seus sequazes em tarefas de seguran9a, a epoca dirigia-se ao
assim entre a ma vontade de uns e a exigenc1a de outros, acha- Ministerio da Agricultura propondo solucionar o problema indige-
vamos, como se diz ( ... ) sem saber o que fazer ( ... )". na em Santa Catarina. Eis a lntegra da correspondencia:
E numa outra oportunidade: "Era nosso intento impedir a
passagem dos indios procurando attrahil-os com presences, mas, "Anitapolis, 15 de novembro de 1911
e preciso que 0 confessemos, sem esperan~a de born resultado, Exm? Am? Snr. Dr. Lebon Regis
attento ao fracas so de outras tentativas".
Hoje recebi noticia de meu irmao Guilherme e penso que
Mesmo assim tudo o que Vieira da Rosa fazia, nao deixava
de merecer reparos e criticas. Deeke (1967: 122) narra que: e
assim o Luz estara, de acordo, pois nao possivel conseguir a
"( ... ) essas sentinelas eram de pouco valor, pois, nao possuiam vinda d'elle antes.
armas com que pudessem se defender em caso de necessidade e Tenho tambem em disponibilidade o meu Salv? Dr. Frederico
ainda por cima nao eram praticos no mato. 0 chefe" era umalfa-
ft
Dalma para principio de Janeiro, como elle me telegrapha. Da
iate de Blumenau, que nao podia viver muito hem do exercicio de minha parte no Ministerio (sic) uma verba de 10.000$000 e eu me
sua profissao; o "sub-chefe" era um sapateiro, tambem de la. Co- obrigo, de captivar sem meios barbaros, a tribu de bugres que
mo guarda, nao se aproveitou nenhum colono de Hansa, pois, nao esta na costa da Serra Geral, trazel-os todos vivos para o nucleo
se confiava rruito no seu amor pelos bugres ( ... ). Alem disso, ao e alojal-os e distribuil-os, de modo convenience e humanitaria-
mente (40 a 50 bugres e familias).
lnspetor Posa nao sobrava muito tempo para tomar providencias
de maior profundidade, pois, mal ele chegava a algum lugar onde
f) A Catechese ja gastou tanto dinh? inutilmente e nada fize-
rao, de modo que a minha proposta nao altera OS dispendios,
os bugres recentemente haviam aparecido, ele ja era challlado a
pois mais se gastara futuramen.te em servi~os para proteger os
outro ( ... ) ".
Nesse contexto, os bugres em a9ao no Estado vem oportu- colonos contra a agressao de indios, que ha de se repetir todos
·+ OS annos ate vi ver 0 ultimo indio.
nidade de novamente pres tar servi<;o as colonias. 0 grupo lide-
rado por Martinho bugreiro se oferece para ir as florestas e de la Como garantia do born sucesso, so posso empenhar minha
trazer aprisionados todos os indigenas existentes. A proposta desinteressada boa vontade, meus conhecimentos estrategicos e
era uma verdadeira afronta ao Servi90 de Prote9ao, mas foi apoi- bellicos ja experimentados e o interesse que tenho em contribuir
ada por um setor do Ministerio da Agricultura. Vieira da Rosa, para a resolu~ao desse problema em beneficio desta terra.
entretanto, nao se conformou com a aceita9ao do oferecimento e Sigo amanha para explorar as terras das quais fallei ao Snr.
pelos jornais de Florianopolis criticou severamente os defenso- ultimamente e quando voltar (10 dias) vos enviarei minucioso
res da proposta de Martinho. Disse Vieira da Rosa que: "( ... ) so relatorio.
Sempre as ordens de V. Sa. vos sauda respeitosamente
ignorances na materia poderao estar de accordo com as propostas
de aprisionar indios que, ja pela antiga persegui~ao movida pelo o affetuoso Am? e Admirador
referido individuo, ja porque de si sejam bravios e desconfiados, C.Krummel".
nao se deixarao pegar e nem tao pouco deixarao de hostilizar 0

(1) - Vieira da Rosa (notas do arquivo). Publica~ao provavel na FoJha

(1) - Vieira da Rosa (notas do arquivo). do Commercio, de Florianopolis.

134 135
 Nos 91eados de 1912, a Diretoria Geral do Servi90 de Prote-
9ao aos Indios reconhec e que a situa9ao no sul do Pais exigia . funcionarios encarregados da penosa tarefa de atra9ao dos indi-
novas medidas. Trata assim de reorganizar o Servi90 e para tan- genas. As criticas, entretanto, continuavam em toda a area de
to reune as inspetorias de Santa Catarina e do Rio Grande do colooiza9ao sobre as tarefas pouco imediatistas que o SPI vinha
Sul, ficando a chefia com o lnspetor desse ultimo estado. Vieira cumprindo. A repercussao dessas criticas junto a Diretoria Ge-
da Rosa, foi promovido a capitao e dispensado de suas fun9oes ral, levou a que o Dr. Manoel i'Y'iranda, seu sub-diretor, se deslo-
junto ao Servi90. Com essa mudan9a, a Diretoria pretendia ini- casse para lbirama, a fim de incentivar os trabalhos. Miranda
ciar um novo plano de pacifica9ao. Com Vieira da Rosa o Servi- contratou mais alguns funcionarios e mandou buscar no Parana
90 se restringiu a correr daqui para ali, atendendo aos locais um grupo de trinta indios Kaingang, habituados ao convivio com
onde os indios apareciam. As medidas princi pa is haviam sido re- os civilizados, para colaborarem nos trabalhos de atra9ao. Se-
a
ferentes proibi9ao das incursoes de bugreiro e de prote9ao aos gundo Deeke (1967: 125): "Em ambas as estac;oes, tanto no
Krauel, como no Plate, foram levantados mirantes, de onde gra-
colonos, atraves dos grupos de vigilancia. Agora o SPI pretendia
fixar suas aten9oes numa area determinada e ai realizar os traba- mofones soltavam, em direc;ao as matas, as mais lindas melodias
lhos de atra9ao. Para tanto o !nspetor do Rio Grande do Sul, Raul enquanto a bandeira nacional tremulava no alto. Ao anoitecer, a
Abbot, deslocou-se para o vale do Itajai e na colonia Hansa, coisa tornava-se de maior cerimonia. Entao o gramofone tocava o
(Ibirama) instalou sua base de opera9oes. Segundo Deeke - hino nacional e a bandeira era arriada solenemente, ocasiao em
(1967: 123): "Primeiramente, Abbot localizou, na foz do Ribeirao que formava todo o pessoal do posto. Na opiniao do Dr. Miranda,
Plate, onde a Sociedade Hanseatica de Colonizac;ao ;a havia tudo isso ha via de fazer, com 0 tempo, impressao sobre OS silvi-
construido uma pequena esta<;ao, um dos chamados "Posto de colas ( ... )".
Atrac;ao", onde os silvicolas seriam aldeiados segundo o siste- Era evidente que o SPI nao tinha modelo a seguir. Imagina-
ma do Chefe da Catequese, Coronel Rondon. Pouco depois, fun- va-se que com tempo e calm a tudo se haveria de resolver. Os
dou outro posto semelhante na regiao do Krauel". indigenas compreenderiam as inten9oes pacificas dos civilizados
Para atender aos reclamos de seguran9a das colonias, quan- e a eles chegariam aceitando a paz. Entretanto, a popula9ao
do da presen9a de indigenas, foi nomeado ajudante da lnspetoria que vivia nas colonias continuava em perrr.anente sobressalto,
o Capitao Euclides de Castro, da Policia Estadual de Santa Ca- especialrr.ente porque as noticias sobre o aparecimento de indios
tarina (1). Enquanto isto, Abbot conseguiu da Sociedade Hansea- eram amplame9te divulgadas. Ao mesmo tempo, o Servi90 de
tica de Coloniza9ao a desistencia de uma area de 30.000 hecta- Protec;ao aos Indios, e especialmente os func'ionarios que atua-
res de sua concessao, para a localizac;ao dos indigenas que iriam vam na area, sofriam uma violenta carr:panha de desmoraliza9ao.
ser pacificados; contratou funcionarios para os postos e iniciou · t- De todos os documentos que vimos a respeito, apresentamos um
o reconhecimento de toda a area. 0 Inspetor do Estado do Para- que ~m volante circulava nas colonias. Ele reproduzia um artigo
na e o Dr. Paulo Aldinger colaboraram intensamente nessa fase publicado em 9 de novembro de 1913 pelo jornal Urwaldsbote,
que se editava em Blumenau, tendo como redator Eugenio Fou-
do plano, empreendendo reconhecimentos na area e animando os
quet (1).
"Os Resultados da Catequese dos indios em Santa Catarina
...... Estao fazendo exatamente tres anos, que se nos oferece o
(1) - Deeke, 1967: 123. Sobre Euclides de Castro, Vieira da Rosa in-
for"!.a que desde 1910 !le vivia tratando de problemas ligados a pacifi-
ca~ao, atuando num posto de atra~ao que havia sido instalado em Rio
Pombas. oroximo a coloni_a de Rio do Sul. Diz Vieira da Rosa. "Eucli- ( 1) - A tradu9ao ·desse documento e de responsabilidade de J. Ferreira
des de Castro - o Canud1nho - ( ... ) colocava todas as noites em uma da Silva, in Cadernos de Blumenau n? 10, tomo IX, pp. 192 e seguintes,
arv?re proxima ao rancho um gramofone, para deleite dos indios que es- out / 1968. Um outro artigo bastante significativo foi publicado em 6/ 5 /
pre1tavam do mato o gratuito concerto. Outra originalidade era uma Ion- 1913 em Blumenau, com o titulo "Terrorismo selvagem" e que assim
ga vara que saia rancho afora, conduto de suas necessidades mictorias i~ciava: "Ve~dadeiro terrorismo se in,stalou em toda a regiao, desde
feita_s assim a coberto de qualquer frechada trai~oeira. Dai the veio ~ Rio do Sul ate a serra Geral, que esta infestada pelo bugre ou peles
a~hdo, mas quern o poz nunca se viu nos apertos de um cerco de in- vermelhos ( ... )". Cf. Lucas, 1965, inedito. Em ltajai, em novembro de
d1os pouco compreensivos" (cf. notas do arquivo). 1913, o jornal 0 Novidades apresenta va editorial com o ti tu lo "O pro-
blema da Catequese em Santa Catarina".

136
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ensejo de observarmos os efeitos da catequese dos indios em querito polic ial, a que em 2 de setembro de 1912 se procedeu no
Santa Catarina. Viamos que, durante esse tempo, se gastava mui- Pouso Redondo, a requerimento do Superintendence de Blumenau,
to dinheiro inultimente. Nem um so indio deixou-se domesticar e tooas as testemunhas - entre elas algumas hem familiarizadas
converter a civiliza\ao. Pelo contrario, parece como se os cate- com OS costumes dos indios - depuzeram unanimes terem sido
quistas cuidadosamente dessem passagem a seus protegidos e coroados os matadores do gado, que la se deiporaram por quatro
evitasse01 tooa e qualquer ocasiao de encontrar-se com eles. As meses, depois contestado pelo lnspetor dos Indios, Abbot, em-
poucas picadas abertas pelos pat:ificadores dos indios, devora- bora este nao tivesse visto Indio algum e se tivesse negado a
vaD' quantias fabulosas, sendo que carece de qualquer valor pra- acompanhar aqueles que o quizeram conduzir para o acampamen•
tico ou cientlfico a expedi\ao dos senhores Abbot e Dr. Aldinger to da horda. Tambem mais tarde reparou-se, em quase todos os
para o Morro Taio, apesar dos itinerarios palavrosos publicados assalcos, que os Indios falavam portugues.
em alemao e portugues. Os catequistas, portanto, procuraram dissimular os fatos,
Ora, nao podendo a catequese exibir resultados possitivos, impedindo o governo que acredita na veracidade de seus relato-
tanto maiores sao os resultados negativos que consistem em que rios' de tomar providencias unicamente aplicaveis' is to e' por
os assaltos dos selvagens apresentam, em compara\ao com tem- em pratica rigorosa fiscaliza~ao dos aldeamentos dos indios no
pos passados, um algarismo elevado de frequencia e que os in- Estado do Parana. Tal procedimento custaria menos e faria des-
dios, cientes da sua imunidade, de dia em dia se tornam mais necessaria qualquer catequese em Santa Catarina. Deste modo,
insolentes. As dadivas que receberam, nao aplacaram seu furor, porem, e claro, OS funcionarios do Servi\O de Prote\aO aos In-
mas sim os incitaram a cometer sempre novos crimes. dios perderiam os seus empregos hem remunerados. HINC ILLAE
Se os Indios, por cada homicidio, por cada roubo, recebem LACRIMAE!
presences, e c laro que nis so veem um convite para continuarem Uma enumera~ao completa dos assaltos realizados pelos
sua atividade criminosa, assim reco!Ppensada. A alega\ao dos bugres na parte setentrional de Sapta Catarina depois da instala-
diretores do Servi~o de Prote~ao aos Indios, de serem igualmente ~ao do Servi~o de Prote\ao aos Indios, sera a me lhor pedra de
protegidos os silvicolas e os lavradores, fie a contestada pelos toque para avaliar os sucessos ou antes os sucessos negativos
e
fatOS. 0 que e verdade que OS colonos, desamparados que sao, da catequese.
nem sequer tern o direito de se defenderem a si mes mos, nao se 1910 - 0 prologo da catequese foi uma velhacaria grossa
lhes dando, por exemplo, licen~a para estarem armados no mato, que primeiro foi descoberta pelo "Der Urwaldsbote". Em 11 de
a fim de repelir os indios que cercam a sua propriedade; pois novembro de 1910, no Ribeirao Liberdade, apareceu uma horda
tal procedimento poderia PROVOCAR os senhores das florestas. de Indios que, dando-se por botocudos, contaram serem perse-
Aos assaltos contra os lavradores acresceram, ultimamente, as guidos pelos coroados. Eis ai que a catequese tinha que fazer o
incomoda\oes do Servi~o da Comissao dos Escudos e pode-se primeiro ensaio pratico. Em 18 de Novembro, chegou a Blumenau,
prever que o prolongamento da linha pe la serra tern que contar para lanej)lr mao do negocio, o representante do Servi\ode Prote-
com bastantes dificuldades' caso que 0 governo nao resolva to- ~ao aos Indios, o tenente Vieira da Rosa. Mas, mostrou-se em bre-
mar providencias energicas que diretamente atravessem OS inten- ve que OS chamados botocudos eram guaranis domesticados do
tos d~ catequese .• Parana que o antigo bugreiro Jose Rodrigues, a espera de uma
E inegavel o fiasco da catequese e torna-se cada vez maior boa remunera\ao, tinha persuadido de apresentarem-se como bo-
a indigna~ao do povo contra os catequistas. Com exce~ao de tocudos apetitosos de civiliza~ao. Depois de descoberta a ve-
poucos individuos que tiram proveito da prote~a9 aos indios ou lhacaria, os comediantes vermelhos foram, a expensas da Uniao,
apresentam sintomas de anormalidade mental, tOda a Blumenau de novo transportados para o Parana, e todo o mundo riu-se do
esta convencida de que a catequese nao so e inutil hem como malogro da catequese.
produz ma us efeitos. Os catequistas obstinam-se em alegar se- Era um inicio prometedor. Seguia-se entao o desenrolamento
rem botocudos selvagens os indios que encenam os assaltos. Mas das cousas porem sob aspectos muito me nos inocentes.
de todos os indicios resulta que sao coroados meio civilizados Em 14 de dezembro, os bugres mataram na Hansa o lavrador
que do Parana vagueiam para Santa Catarina, hem sabendo que Pletz, ao derrubar mato, saquearam, no mesmo dia, a casa do
por aqui ninguem os impede de roubar e matar impunes. No in- lavrador Duesterhoft. 0 tenente procurou, alterando a verdade,

138 139
 desresponsabilizar os seus protegidos desse crime, mas sem quase tOda a cria~ao dos moradores, que requereram instantauea-
resultado. mente a interven~ao
, do governo, mas sem resultado algum. 0
1911 - Em 4 de fevereiro os bugres assaltaram a casa do Inspetor dos lndios, Abbot, sucessor do Tenente Rosa, e que
lavrador Adam Pannoch, Pinheiros, durante a ausencia dele. nos ultimos dias de agosto se dirigiu ao Pouso Redondo, lan~ou
Mataram sua mulher de 26 anos de idade e duas criancinhas pra- na cara daqueles homens a injuria insolente de matarem, por mo-
ticando ferimentos graves em uma terceira crian~a e saqueando civos de inimizade pessoal, um os animais do outro, sendo ino-
a casa. centado os indios. Quando o queriam acompanhar para dentro do
Em 9 de abril foi assaltada uma tropa que, transportando mato, a fim de que pudesse ver OS indios' negou-se ele a ir. Em
erva mate, chegou a Santa Maria, ficando ferido um dos tropeiros um inquerito polical, a que em 2 de setembro se procedeu no
e uma mula. Pouso Redondo, constatou-se que os bugres, em 3 meses, maca-
Fm 15 de abril teve lugar um assalto ao acampamento do ram 28 cavalos, 48 rezes e 45 porcos. Em setembro, ainda mata-
do lnspetor dos Indios, Tenente Rosa, matando os bugres uma ram 7 rezes, 5 ovelhas e alguns porcos, devastando mesmo os
mula e roubando numerosos objetos de valor. Em seu relatorio o milharais.
tenenJe Rosa declarou nao ter mandado, F~1 HONRA A ClVILl- Em 2 de julho, na Subida, os bugres atacaram de noite a ca-
ZA(:AO BRASILEIRA atirar nos ESTIMAVFlS PATRICIOS. sa de Norberto Sabel, obrigando-o a fugir com sua familia.
Em 10 de maio, na Hansa Joinvillense, foi ferido por uma ' Nos primeiros dias de dezembro mataram 70 animais de pro-
flecha o trabalhador Louren~o, que morreu do ferimento. F oi sa- priedade de Francisco Pires e seus vizinhos, municipio de Cam-
queada a casa do lavrador Pietsch. pos Novos, e 5 0 animais _perte ncentes ao fazende iro Sebastiao
Em 14 de maio os bugres apareceram no Garibaldi, em um Alves, residence no Campo Pires, Munic ipio de Curitibanos.
dos fundo do Jaragua, onde mataram todos os animais e aves 1913 - Em 18 de fever.e iro, comunicaram do Pouso Redondo
domesticas do lavrador Burger. que os indios outra vez pegaram em armas: Em 26 de fevereiro,
Em 9 de setembro, na Hansa, assaltaram e feriram o lavra- apareceram no Rio do Oeste e feriram o lavrador Julio Almeida.
dor Dorlicz que estava trabalhando no mato. Em 4 de abril repeliram a turma do Capitao Euclides de
Em 3 de novembro, os bugres saquearam a casa do colono Castro, de Pombas e saquearam o acampamento.
Schuhmann no P.ibeirao dos Russos. No mesmo dia mataram al- Em 20 de abril~ na Serra do Pires, assaltaram uma tropa,
gumas rezes em Ipiranga, fundo separado do F ibeirao dos Russos feriram um homem e mataram alguns animais. Em 27 de abril
por uma pequena divisao de aguas. Nos meados de novembro, Se- assaltaram outra tropa. No Pinhalzinho, por esse tempo, houve
gundo noticia publicada pelo "Volkszeitung", de Sao Bento, al- re petidas matan~as de gado.
g.!1ns fazenderosi perto de Bucia foram visitados pelos bugres que Nos primeiros dias de maio, no Mosquitinho, os bugres
la mataram numerosos animais e inc ineraram alguns ranchos. assaltaram a casa do colono Giacono Finardi. Um dos selvagens-
1912 - Em 4 de janeiro os bugres apareceram nas imedia- procurou roubar uma crian~a, largando-a quando a mae o amea~ou
~oes do ((Spiczkopf", no P.ibeirao Caete, a 3 horas de distancia com a pistola na mao. Fm 8 de maio, assaltaram a casa do lavra-
desta cidade e aciraram cacetes e pedras nos lenhadores que la dor Cenzi que, ferido por uma flechada no antebra~o esquerdo,
estavam trab~lhando. As incomoda~oes duraram algumas sema- atirou num dos bugres em sua defesa.
nas. 0 Superintendence e o Juiz de Direito deram parte ao Go- Em 26 de junho o trabalhador Juvencio do Amaral, Ribeirao
verno. Areia, Municipio de Brusque, recebeu uma flechada no peito e
Nos primeiros dias de maio, conforme relaca o jornal "O Ca- morreu poucos dias depois. Em 14 de julho assassinaram, no
tarinense" de Sao Bento, os bugres mataram, na circunvizinhan- Mosquito, a Jose Moser com uma flechada e mataram 38 bois da
~a de Rio Preto numerosos animais pertencentes aos fazendeiros propr~dade do Sr. Francisco Reuter.
Claudio Ribas, Machado Pereira e a familia Souza, ficando dois Nos meados de julho, os bugres incomodaram os trabalha-
brasileiros feridos por flechadas. dores empregados na constru~ao da Estrada Garcia Alto-Encano.
Em 1 ~ de junho, os bugres sairam do maco no Pouso Redon- Em 10 de a~osto mataram na Hansa o trabalhador Horak, empre-
do, onde se deixaram ficar quatro meses com plecos, e destruiram gado da Comissao dos indios. Pouco depois os bugres incinera-
...
140 141
ram um rancho, em que os catequistas tinham depositado as da- 4. EDUARDO DE LIMA E ~ILVA HOERHAN;
divas. Em 8 de outubro, mataram em Pouso Redondo 11 cavalos PACIFICA<;AO NO ITAJAI
e burros pertencentes ao Sr. Augusto Peters. As dificuldades enfrentadas pelo Servi90 de Prote9ao aos
Em 14 de outubro, os bugres assaltaram no Rio do Oeste a Indios para atrair o convivio pacifico o~ }ntegra~tes do grupo
casa do lavrador Felix Leite, incinerando-a e ferindo um filho Xokleng, que freqiientav:m o vale d? It_a1a1, poden~m ser agru-
do assaltado por uma flechada no pesco~o. Na noite de 21 para padas em duas ordens basicas: a pnmeira engloban~ o~ proble-
22 de outubro, os bugres empreenderam um assalto ao acampa- a
mas que se ligavam necessidade de de~onst~a.r ao 1nd1gena .a.s
mento do chefe seccional Dr. Miranda, da Comissao de Escudos inten~0es pacificas do Servi90; _segunda 1nc:_lu_ina todas as dift-
da E, de F .S. Catarina, mas foram repelidos por vivo fogo de es- culdades criadas pelas popula~oes das colon1a~ que, pr_:o~upa­
pingardas. Desta rela~ao, mais ou menos completa, resulta que ·das c om sua seguran9a e com seus interesses econom1cos ,
OS bugres justamente durante O ultimo ano se punham em viva amea9avam constantemente anular os esfor9os realizados pelo~
atividade. A catequese, portanto, nao estava em condi~oes de encarregados de atra9ao. Essa segun~a ordem de fatores .£01
civilizar os indios nem de diminuir os assaltos, por cujo aumen- t responsavel inclusive pela desarticula~ao quase total do Se;v~90
to numerico ela e a unica responsavel. oficial de proteyao em Santa Catarina. Isto porque nas colon1~s
No prazo de tres anos foram assassinadas 8 pessoas, .entre assim s e falava a respeito dos indios e do Servi90 que pretend1a
as qua is uma mulher e duas crian~as e feridas 9, ao pas so que protege-los : "( ... ) Com desusado atrevimento a..gem nos ass~ltos,
eles apenas perderam um homem. Mataram cerca de 600 a 700 pelo que parece, eles sabem da ordem do governo de poupa-1?!'
animais, em parte por pura sede de sangue. Saquearam 7 casas, podendo e les ass im agir livrement~ .. Mas os moradores da_ reg1~0
das quais algumas incineraram. Duas vezes ate assaltaram o nao estao mais dispostos• a perm1ur que perdure esta sttua~ao
acampamento de seus protetores. Pode-se avaliar o prejuizo to- escandalosa . O povo se levanta em armas : o contra-ataque tern
tal por cem (100) contos. Ainda acresce que os lavradores loca- inicio. A revolta e geral e as leis nao serao mais ~bedec~da~ ·
lizados nas regioes infestadas se viriam, as vezes, durance me- O povo vibra de indigna~ao ( ... ) 0 Servi~o de Prote~ao ao I,nd10
ses , impedidos de cultivar as suas ro~as, nao se fazendo men~ao resulta completamente negativo e inefic~ente. So~ o _utulo
do medo e da inquieta~ao que tinham que sofrer constantemente. altisonante "Pacifica~ao", o Governo permue esta sttua~ao es-
Eis o ajuste de · contas dos tres anos de atividade da cate- candalosa ( ... ) ( 1)
quese em Santa Catarina. No alto vale do Itajai, onde se haviam concentrado os traba-
Todos estao de acordo conosco que disso ninguem se pode lhos do SPI, nos finais de 1913, apenas tres funcionarios ten-
pavonear. Esta palpavel o mais completo fiasco, e o governo hem tavam manter os postos de atra9ao instalados nas margens dos
fara em tomar outro rumo para domesticar e c ivilizar os Indios. rios Plate e Krauel, afluentes do ltajai do Norte . Esses post~s
Esses resultados da catequese apenas podem comprometer a boa eram formados por a lguns ranchos rusticos, in~t~lados ao me10
fama do pais e diminuir a imigra~ao". de uma clareira tendo ao centro uma torre de v1g1a. Em torno da
Essas severas criticas acabaram por abalar o animo dos fun- rancharia, algu~as planta9oes foram feitas para suavizar o dis -
cionarios do Servi90 de Prote9ao aos fndios e ao ocorrer a apro- pendio com a manutenyao dos funcionari~s e. trabalhadores e
xima9ao dos indigenas em um dos postos de atra9ao, sem de- tambem para garantir alimentos frescos. Alem diss o as ro9as po-
monstra9ao de cordialidade pois mataram um trabalhador, o de- deriam ser um incentivo a aproximayaO do indigena. Para faci-
sanimo tolT'ou conta de todos. Primeiro ocorreu a retirada do litar os trabalhos nesses postos, o Servi90 havia colocado algu-
pessoal do posto amea9ado, que logo foi destruldo pelos indige- mas familias de indios Kaingang, originarias do Parana. Alguns
nas. Depois, o Dr. Miranda foi chamado ao Rio de Janeiro, en- caboclos e suas familias foram tambem ali instalados. Os indi-
quanto Abbot e seus principais auxiliares solicitaram demissao. genas e os caboclos deveriam servir nos traba~hos de manuten-
A Inspetoria foi incorporada a do Parana e em Hansa permanece- yao dos postos, abertura de picadas e planta9ao das ro~as . Os
rani apenas tres jovens funcionarios , entre eles Eduardo de Lima
e Silva Hoerhan (1). (1) - Artigo "Terrorismo Selvagem" , 6/ 5 / 1913, na imprensa de Blume-
nau , c onforme tradu9ao de Victor Lukcis, 1965 , o b. cit., inedito.
(1) - Ve jam-se: Sc haden, 1946; Dee ke , 1967; Paula : 1922.

143
142
Kaingang espe.cificamente serv1nam ainda como int~rpretes.
Desde que o Dr. Hugo Gensh obtivera um pequeno vocabulario ram mais e os postos, mantidos com grandes despesas, pareciam
atraves de uma menina Xokleng que adotara, se sabia que o efetivamente ali feitos para recreio os funcionarios, de sorte que
Kaingang tinha certa semelhan9a com a lingua dos indigenas estes ultimos mesmos, tambem acabaram perdendo a confian~a
arredios do Vale do Itajai. que , de principio, os animara. Agora e de repente os bugres
Tudo estava assim preparado para a atra9ao dos indios. surgiram, a 20 deste mes e sem que se tivesse notado qualquer
Esses, entretanto, relutavam em aparecer. A monotonia dos acon- sinal, puzeram a correr todo o pessoal que se encontrava no
+ Posto do Plate e puzeram fogo em toda a rancharia. 0 momento pa-
tecimentos desesperan9ava os funcionarios e , de vez em quando, al-
guns deles resolviam permanecer em Hammonia (lbirama), durante ra o ataque fora hem escolhido, ...pois, o che~e do Post~ acha~a­
alguns dias . Em setembro de 1914, Eduardo Hoerhan se encon-. se justamente, em Hammonia; tres homens ttnham desc1do o no,
trava na sede desta colonia quando recebeu a noticia de que os de canoa , para buscar mantimentos e dois outros haviam subido
indios haviam atacado o posto de atra9ao do Plate. Era domingo, 20 o rio para cas:ar e pe~car. , .
de setembro de 1914. Hoerhan imediatamente se preparou para re- "Desse modo, so quatro homens, entre eles um 1nd10 manso,
gressar ao posto e no dia seguinte, 21, chegou ao Plate com um assim como uma mulher negra, com algumas crian~as, se encon-
grupo de trabalhadores. Jose Deeke, que se encontrava nas pro- travam no Posto onde nao havia munis:ao alguma para as "Win-
ximidades do posto de atra9ao, ao saber do acontecido, para la chesters" existentes e, alem disso, tambem era terminantemente
proibido atirar nos bugres, de sorte que toda essa gente pO's-se
se dirigiu tornando-se testemunha do que se s ucedeu. No Blume-
em fuga, pela picada que margeia o rio abaixo . 0 bugre . manso
nau Zeitung, Deeke assim narrou os fatos que ocorreram no pos- + procurara entender-se com os seus irmaos de ra~a; estes, porem,
to do Pl ate nesses dias de setembro e que culminaram com o
responderam com flechadas as propostas de entendimento, pois
primeiro contato amistoso entre Hoerhan e os Xokleng, no dia
22 (1). nao entendiam patavina do que o outro falava. Assim, o insuces-
so parecia que tambem desta vez fora completo e assim seria
"Um sucesso da Catequese Leiga certamente, se o guarda do Pasto, um homem ainda muito jovem
.. de nome Eduardo Hoerhan, com decisao e coragem, nao tivesse
A Inspetoria de Indios, ou a "Comissao dos Bugres " como salvo a situas:ao .
aqui se costuma chamar, mantem na regiao da Hans a, dois cha- Logo que recebeu a noticia do assalto, Eduardo segu1u,
mados "Postos de 1 tras:ao", um dos qua is no Kraue I e o outro no imediatamente, de canoa rio acima, com um grupo de homens
foz do Rio Plate. Esses postos, que estao cada um deles, ocu- convocados e chegou ao local no dia seguinte ao do aconteci-
pados por um encarregado, alguns trabalhadores e por alguns mento. Depois de esconderem, bem no fundo das canoas, o arma-
bugres mansos com familia, servirao com as suas plantas:oes e mento que traziam, dirigiram-se para o local do P6s~o ainda
presentes colocados nas imedias:oes, de chamariz aos indigenas, fume~ante de onde o bugre manso Bree come~ou a grttar para
com · os quais se enttaria em comunicas:ao atraves dos bugres ja dentro do mato. Os indigenas entao responderam imediata~ente e
mansos. De principio, porem, as coisas nao foram bem sucedi- viu-se que alguns estavam sent ados nos troncos de arvores,
das. Quando os indigenas apareceram, da primeira vez, no Posto havia pouco derrubados para ros:a, e de que fizeram postos de
do rio Krauel, ocasiao em que mataram o trabalhador Horak, nao observa~ao . Eles soharam uma especie de grito de guerra e
foi possivel, de forma alguma, entrar em contato com os mesmos faziam ameas:as com suas setas que eles tinham ajustadas aos
e os proprios funcionarios, que la se encontravam, deram-se por arcos.
felizes de ter livrado o proprio pelo. Depois, pareceu que os Mas, Eduardo, que havia aprendido o idioma Caingang dos
silvicolas haviam abandonado de todo as imedia~oes . Nao apare- indios mansos , exgotou todo o vocabulario que dominava , e
assim tambem os indios, ate que chegaram a trocar palavras co-
nhec id as . Quando notaram a s eme lhans:a das linguas , tambem os
indigenas se esfors:aram por falar bem claro e devagar, de forma
que se chegou a um razoavel entendimento.
( 1) - Confo rme Deeke, 1967: 126 e seguintes . Mas, com isso pouco ainda se havia conseguido, pois os
indigenas tao facilmente nao se convenceriam de que nada de

144 145
 mal lhes aconteceria. Eles acreditavam que o que se queria era
atrai-los para depois aniquila-los e, por isso, continuavam man-
tendo atirude hostil, amea~ando com as suas armas, impedindo
qualquer tenrativa de aproxima~ao.
Entao Eduardo atirou fora as armas que ainda tinha consigo
e de bra~os levantados seguiu em dire~ao aos indios, acompa-
nhado do bugre Bree, na mes ma atitude.
Apesar dos indigenas verificarem que dos dois homens desar-
mados nao poderia vir-lhes perigo algum, continuavam descon-
fiados e amea~avam atirar. Quando os dois ja se achavam hem
proximos, um indio ma is assanhado atirou duas flechas, uma das
quais passou arranhando ao lado do peito do indio Bree. Vendo
esse gesto de seu companheiro, os ourros bugres zangaram-se e
afastaram-no e entao tambem jogaram as suas armas no chao.
Com is so, as primeiras dificuldades foram conrornadas. Os
indios imediatamente apoderaram-se dos presences que lhes foram
oferec idos, embora mosrrando-se sempre muito desconfiados. Os
objetos deviam ser levados a um determinado ponto e quem os
levasse deveria regressar imediatamente. So entao os indios
iriam buscar OS donarivos. De principio, eles preferiam pe~as de
roupa e objetos de ferro . Manrimenros, como a~ucar, farinha, «Trovoada", lid er da horda a epoca da pacifica~ao em lbirama
arroz e feijao eles nao conheciam ainda. Nos seus assaltos o
que eles enconrrassem desses mantimentos, punham fora e so
levavam os sacos. Ao contrario, demonstravam esses silvicolas
um grande amor pelos caes e quando 0 autor destas linhas, pou-
co de pois do prime iro entendimento, chegou ao local, levando Aspecto do escrit6rio de Hoerhan, o pacificador.
Reprodu~ao e monragem: Gerlach.
CODsigo dois cachorros, OS indios ficaram COffiO doidos por eles.
Nao havia necessidade de se compreender o idioma indigena,
para se saber o que eles que1iam, pois os seus gestos e chama-
dos eram bastante claros. Eles, por exemplo, seguraram uma
corda e imitavam 0 latido do cao; um sujeitinho pequeno e gordo
tinha ate em si muito de judeu, pois depois de demostrar o seu
desejo de ter um dos cachorros, segurou um pequeno espelho
que ele certamente ha via furtado antes - gesticulando de modo a
dar a entender que estaria disposto a dar o precioso objeto em
troca do cao . Quando nos u~ es demos um dos animais, a sua
alegria foi enorme . Mas, modesta aquela jlente nao era de modo
algum ; nunca se monstravam eles sastifeitos e nao sossegavam
enquanto se lhes nao dessem codas as pe~as de roupa de que se
poderia dispor . Primeiramente, vinham do mato somente uns cin-
co OU Sete bugres desarmados e eles vestiam, alem da propria
tanga, todos os paletos de que anteriormente se haviam apropria -
do , enquanto permaneciam com as pernas nuas. 0 cacique posta-
a
va-se, imovel, beira do mato e tinha, pelo que se podia notar,

146
atras de si um grupo de indios armados ( ... )".
Apos esse primeiro contato, os Xokleng come~aram a dia-
riamente aparecer no posto de atra~ao em busca de presentes.
Vinham em pequenos grupos e sempre deixavam na orla da flo-
resta alguns guerreiros prontos a revidar qualquer ataque dos
civilizados. As mulheres e crian~as pouco apareciam. Nao havia
duvidas de que os indigenas desconfiavam das inten~Cies dos
brancos e, conhecedores dos efeitos das armas desses, nao per-
mitiam que Hoerhan e seus companheiros deles se aproximassem
a
portando-as. Hoerhan ficou assim merce dos silvicolas. Segun-
do Deeke, observador desses primeiros dias de rela~0es pacifi-
cas, "(. .. ) Eduardo Hoerhan ficou mais do que sastifeito com
esse sucesso. Se ele, entretanto, pensou em realizar uma com-
pleta e pronta pacifica9ao dos indios, errou redondamente. ( ... )
os bugres tornaram-se logo mais confiados e vieram ate o p0sto
com mulheres e crian9as, mas eles patenteavam, debaixo dessa
confian9a, uma forte dose de fantasia e de atrevimento . Fanta-
e
sia por imaginarem que nao eles, mas OS brancos que estavam
sendo "amansados" e julgavam-se acima destes; atrevimento por-
que eles nao admitiam armas nas maos dos brancos do Posto
enquanto eles mesmos, seguidamente, apareciam com as suas
armas ( .. ). (. .. )Mal chegava uma remessa de coisas novas, como
cohertores' fazendas e objetos de ferro e era distribuida, ja e les
estavam exigindo outras novidades e se estas nao chegassem
como eles desejavam, ele tinha que ser castigado; eles 0 pu-
nham a um canto e xingavam-no, cutucando-o com a ponta de
suas lan~as afiadas de sorte que ele via a cada instante a morte
diante dos olhos" (1) .
Eduardo de Lima e Silva Hoerhan era um jovem, com pouco
ma is de 20 anos. No Rio de Janeiro, sua cidade natal, fregilen-
tou o ginasio e se engajou no Servi~o de Prote~ao aos Indios
objetivando aventurar-se no sertao e defender o indigena.
Havia se informado da situa~ao do silvicola nas discuss0es que
se travaram na imprensa antes da cria~ao do SPI. A sua origem -t
urbana e a sua formacao escolar logo lhe oportunizaram situa-
~0es de lideran~a. Quando Abbot se afastou de lbirama e Hoe-

(1) Deeke, 1967 : 128/ 129. Primeiros anos da pac i fica~ao

em Ibirama I.
Reprodu9ao de Gerlach .
148
rhan que assume efetivamente a chefia dos trabalhos de atra9ao. deixaram claro que desejavam o retorno de Hoerhan, chamando-o
(1). Aprende a falar o Kaingang com um dos indios que servia de constantemente pe lo nome que lhe de ram: Katanghara. Esses
interprete e base ado no vocabulario do Dr. Gensh tenta dominar fatos praticamente obrigaram a diretoria da colonia a tomar me-
algumas palavras do idioma Xokleng. Simultaneamente aparece didas de emergencia, garantindo a Hoerhan os recursos mais
como irrequieto e impulsivo, fatores necessarios para quern pre- imediatos e prometendo interceder junto aos governos estadual e
cisava se atirar aos bra9os dos indigenas sem saber se teria federal a fim de obter 0 suporte financeiro necessario a toda a
tempo de abra9a-los. A pacifica9ao dos Xokleng do Itajai foi tarefa que se iniciava. Nessa situa9ao, Hoerhan devolveu
um ato heroico. para os postos do Parana os indigenas Kaingang que haviam
A fas;anha realizada por Eduardo Hoerhan nao foi acompa- Criado varios problemas no posto de atra9ao e providenciou a
nhada pela compreensao do SPI. Este orgao estava preparado vinda de outros, para facilitar as fases iniciais do convivio. E
para conseguir a pacifica9ao de tribos hostis, utilizando o posto regressou ao posto de atra9ao, reiniciando o contato com os pe-
de atras;ao, a proibis;ao de utilizar armas de fogo contra os sel- quenos grupos Xokleng que salam diariamente da floresta para
vagens e a colocas;ao de presentes nos locais onde os indios apanhar presentes, alimentos ou espiar o que faziam os brancos
freqUentavam, a conhecida •ceva" como as principais tecnicas. e os indios "mansos".
Mas nao havia qualquer esquema fixado para orientar as as;oes !Vias a situa9ao nao mudou. Os recursos oferecidos pela
ap6s a pacificas;ao de qualquer grupo. Por isso mesmo, Hoerhan administra9ao da colonia foram consumidos, sem que a diretoria
logo comes:a a enfrentar varias dificuldades. Os indigenas nao do SPI e o governo estadual oferecessem o que era necessario.
aceitavam a maioria dos alimentos que o posto tinha condi90es de As dificuldades enfrentadas por Hoerhan somente aumentavam,
lhes oferecer, pois nao estavam habituados com feijao, farinha, pois alem de tudo parecia. que a diretoria do SPI, como a maior
arroz ou carne-seca. Exigiam carne fresca, cas;adores que eram. 1Brte da popula9ao do vale do Itajai, nao estavam propensas a
0 Posto logo se viu em dificuldades financeiras e sem condi- aceitar que um grupo de indios havia sido atraido no alto vale
9oes para adquirir reses, necessarias a alimenta9ao do grupo. do Itajai. 0 Blumenau Zeitung, de 28 de maio de 1915, apresenta
Ao mesmo tempo, faliam todos OS apelos as autoridades das vigoroso artigo, esclarecendo o que se passava (1): "( ... ) infe-
colonias e do Estado, alem de ocorrer a insubordina9ao quase lizmente para poder aproveitar esta oportunidade favoravel a
total dos indios mansos que haviam sido trazidos do Parana. solu~ao do problema do indio, por meios pacificos, faltam ao
Hoerhan resolveu entao abandonar sua empresa, retirando-se do Posto do Plate todos os recur sos, por incuria do Gov~rno Fede-
posto de atra9ao para Hammonia. Os indigenas, entretanto, rea- ral. Quern dos senhores deputados, superintendentes, juizes e
lizaram um ataque a casa do colono Mais, na localidade de fn- outros homens, a quern es ta afeto o hem publico, auxiliam para
dios, e se aproximaram de Scharlach, nucleo mais avan9ado da que o governo forne~a subven~ao, a fim de resolver a questao da
colonia de Hammonia, colocando em panico seus moradores. pacifica~ao? Ou devera ficar diante <lesses "ultimos moicanos ",
Nessa localidade segundo muitos informant es, os indigenas que tao adorosamente se batem pela liberdade, a seu modo, tudo
nas palavras tao cruelmente proferidas, no sentido de es ta "ca-
nalha parda" deve ficar e ser liquidada a bala? Sera que alguns
(1) Em nossos di8rios constam referencias que apos a retirada de
Abbott quern ficou a liderar o grupo encarregado da pacifica~ao foi um
dos governances se lembrara de que a terra pertencente ao indio,
tal Dr. Straube. Segundo os responsaveis por essas .referencias, regio- a cal terra devoluta, seja vendida, sem que ao menos receba uma
nais e funcionarios do ex-Servi~o de Prote~ao aos Indios e para quern indeniza~ao justa, em forma de prote~ao jumana? Sera que o Sr.
Hoerhan nao era pessoa respeiti vet, foi este que articulou a morte do Hercilio Luz, cuio nome traz aJ?ora o rio do Norte, onde se de-
Dr. Straube, mas o encarregado da missao acabou liquidando sua mu- senrola 0 ultimo capitulo do nosso indio, nao fara alguma
lher. Straube, com o falecimento da esposa, entregou-se ao vicio da
bebida e acabou desaparecendo de lbirama. permitindo que Hoerhan
cousa para que o problema do indio tenha uma solu~ao jus-
assumisse a chefia dos trabalhos. Esse episodic nao esta claro em nos- ta e concetanea? Sera que dos 250 contos de re is, pelos quais
sas anota~ocs e sabre ele apenas encontramos uma ligeira referencia foi vendido o territorio de Hansa, nao sobrara nada para ~stes
em Schaden, 1946: "basta lembrar os casos Straube e "Das Gregorio"
que alias tiveram repercussao na lmprensa". Entretanto, nos nada en- ( 1) - Conforme tradu~ao de Victor Lukas, in Olhos Azuis, ob. cit.,
contramos para melhor elucidar o ocorrido. 1965, inedito.

150 151
 filhos das matas? Sob o ponto de vista moral, seria pouco fidal-
+ go e absolutamente errado, abandonar um homem corajoso e des-
e
preendido como o Sr. Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, o pa-
cificador do nosso indio" .
Se Eduardo Hoerhan imaginou a pacifica9ao de forma roman-
tic a e aventuresca, os fatos que logo se sucederam aos primei-
ros contatos amistosos lhe foram dando consciencia da realida-
de . 0 SPI nao tin ha ideia do que poderia OU deveria acontecer
C') '"O ., qu ando um grupo indigena aceitava o contato pacifico com suas
.., .....
(b '"I
turmas de atra9ao. C' SPI tambem nao era um orgao que comovia
-3
!lo') (b
(') ..... o governo federal, de maneira que este o dotasse com recursos
::r .., financeiros suficientes . 0 SPI, na verdade, preocupava-se muito
• 0
VI ll em estabelecer rela 90es com os indigenas hostis objetivando
abrir os territorios por esses dominados aos brancos. Pouca
preocupa~ao havia com tudo o que ocorria apc5s a pacifica~ao.
Por isso mesmo Hoerhan se viu em enormes dificuldades pois
-~
0..
p.i
ninguem queria saber se os Xokleng aceitavam ou nao os produ-
"'O tos agricol~s cultivados nas ro~as mantidas pelo posto; ninguem
p.i
I
...........
n se preocupava com a mudan~a da dieta alimentar e seus efeitos
....n II
I

negativos para a saude dos indigenas; ninguem se preocupava

p.i
of)
com as ~onseqiiencias do convivio com os brancos para os indi-
l).ll genas. E frente a esse quadro que se pode entender o relatc5rio
0
que o Superintendente de Blumena u, Paulo Zimmermann, enviou
(b
ao Ministro do Interior, em 26 de julho de 1915, solicitando ver-

-
9
r::r
.....
'"I
!lo')
3
l
- ..
bas para Hoerhan ter condi~oes de continuar seus trabalhos.
Para elaborar esse relatorio, o Superintendente designou Augus-
to Zittlow e l\'artin Bichof, respectivamente inspetor do telegrafo
p.i e c hefe de trafego da estrada de ferro Santa Catarina, para reali-
-
......
•
zarem uma visita ao p:>sto de atra~ao do Plate e minuc iosamente
narrarem o que ali ocorria. lsto permitiu o surgimento de um do-
cumento valioso sobre o grupo indigena, seus habitos, caracte-
risticas fisicas e com porta ment o perante aos civilizados. l\4as,
- ~
alem disso, o documento permite-nos saber que "( ... ) o fim da
viagem era constatar de visu que nao se trata de bandoleiros ou
indios coroados mansos do aldeamento de Palmas, como muita
I gente pensa e aos quaes se attribue os assalcos e roubos feitos
I
por diversas vezes em Pouso Redondo etc . .. ( ... )mas de verda-
deiros incolas da selva, corr.pletamente bravios ( ... )". (1).
0 governo federal acabou reconhecendo o feito de Hoerhan e

( 1) - ~sse re lat orio integra o arquivo do SPI, sob n? 127. itte foi tam-
bem publicado. com o titulo "Os indios de Santa Catharina ", sem o
ofic io de encaminhamento ao Mini stro do Interi or, no jornal O Estado
Florianopolis, ano I, n ? 64, na data de 27/7/ 1915. '

153

- ~

I
regularizo~ a remessa de recursos, permitindo assim que os indi-
genas fossem socorridos em alimentos, agasalhos, objetos de
ferro ~. ao mesmo tempo, fossem constru1das casas para abrigar
os f uncionarios, depositos para a guarda de alimentos e ferra-
mentas, ranchos para abrigar os indios, enfim o necessario para
o funcionamento permanente do Posto . Com o tempo foi se tor-
na ndo cada vez mais claro que o Servic;o de Protec;ao nao sabia
exatamente o que fazer, pois os esquemas que trac;ava tinham
como fundamento noc;oes bastante superficiais a respeito de todo
o processo de mudanc;a que iniciava para os indigenas logo apos
o estabelecimento de relac;0es com os civilizados. 0 Dr. Paulo
Aldinger, um dos entusiastas da catequese leiga no vale do Ita-
jai, em 1918 narrou o episodio da pacificac;ao dos Xokleng, di-
zendo sobre "qual seri~ a orienta~ao do governo, atraves do Ser-
vi~o de Prote~ao ao Indio, a respeito do futuro da catequese
lei~a , depois que ele superou a fase mais diflcil, estabelecendo
reJa~oes amistosas com OS selvagens .
Os princ ipais pianos para essa pacifica~ao, sao trazer OS
ainda. selvagens para o convivio dos ja meio civilizedos e dos
empregados do Posto sem for~a-los por qualquer meio, e muito
menos pela violencia e, assim, conquista·los paraaciviliza~aoe ,
paulatiname nte integra-los na comunidade brasileira. Uma tribo
de tao reduzido numero de membros' sera facil de ser inteiramen·
te conquistada (. .. ) (1 )."
Quantos eram os indigenas que Hoerha n conseguiu atrair?
Segundo ele nos primeiros anos nunca hou ve oportunidade para
um leva ntame nto especifico, pois OS indige nas nao estacionavam
permanentemente no posto de atrac;ao. lam e vinham segundo si-
tuac;oes imediatas de cac;a ou busca de presentes. Calcula o paci-
ficador, e ntretanto, que se tratavam de uns 400 individuos. (2).

5. FIORAVA~TE ESPERAN\:A: HEROI

DA PROTE(AO OFICIAL
A pacificac;ao realizada por Hoerhan no Ttaja i nao significou
que todos os Xokleng tivessem sido atraldos. A tribo vi via sepa-
rada e m grupos e Hoerhan conseguiu estabelecer rela<;:oes com
um desses grupos. No norte do estado de Santa Catarina, na re-
giao do rio Negro, a epoca sob jurisdi<:ao do Parana, um outro
(1 ) - Public ado n o Kalender fue r die Deut sche n in Bra s ilie n , c onforme
traduc;a o J. F e rre ira da Si l va. in Cademos de Blume nau , T.X , N? 2,
1969: 36 3 9 .
( ::!) - He nry. 1941 : XV. confirma e s te numcro . Ribe iro, D .. 1957: 20 fa-
J; 1 f' m 800 indi\'tdu os .
Primeiros anos da pacificac;-ao
em Ibirama I \'.
154 Reproduc;ao de Gerlach .
grupo Xokleng ha muito vinha embara~ando a penetrat;:ao dos
civilizados. Com a funda~ao do SPI, em 1910, ao mes mo tempo
em que se iniciaram os trabalhos no Itajai, criou-se um grupo
para realizar a atrat;:ao dos temidos "botocudos de Palmas ".
Liderava esse grupo Fioravante Esperant;:a, funcionario do SPI;
gaucho de origem e experiment ado sertanista.
Os indigenas integrantes desse grupo tinham sofrido toda uma
serie de experiencias resultantes da penetra~ao de contingentes
imigratorios na regiao do. rio Negro e da presen~a de uma frente
de expansao representada pelos operarios construtores da estrada
de ferro Sao Paulo-Rio Grande (1). A todo sinal de sua present;:a, -+-
logo tropas de bugreiros eram organizadas para ca~a-los e o pes-
soal da estrada mantinha grupos permanentes para garantir a
seguran~a dos trabalhos. Os indios, por sua vez, nao perdiam
oportunidade para vingar os reveses sofridos e muitas vezes
conseguiram fazer vitimas entre os brancos. "No primeiro domin-
go de novembro (1908-SCS), caiu sabre a popula~ao (Uniao da +
Vitoria), a ooticia que o trem traria alguns operarios mortos pe-
los indios. Quase toda a popula~io da cidadezinha acorreu a
esta~ao ferroviaria , a espera da chegada estra do trem ( ... ). Por
fim, ouvimos o apito da locomotiva. Num dos vagoes a descober-
to, forrado de galhos verdes, estavam estirados os corpos dos
trabalhadores mortos. Uma senhora, ja de certa idade, alema,
lan~ou-se gritaodo convulsivamente, sobre o corpo do filho. Qua-
tro dos mortos eram polooeses, os quais chegaram a procura de
soldo, das colonias afastadas ( ... ). Neste mesmo dia, foram to-
e
dos enterrados numa vala comum, como costume aqui, sem ne-
nhuma cerimonia" (2).

(1) - A estrada de ferro S. Paulo - Rio Grande se inic i ou em 1906 e

em 1908 chegou as margens do lgua9u, em Uniao da Vitoria. Ate essa
data a concessao pertencia a uma companhia fran cesa, que a transferiu
para a Brasil Railway Company, com sede em Fortland, nos E s tados
Unidos . E ssa companhia tinha varios interesses n o Bra s il, seja na rede
ferroviaria, seja em armazens e frigorif1cos, industrias de papel, etc.
Era tambem conhecida como o si ndicato Farquhar (Veja-se Queiroz,
M.V., 1966: 70). No territorio catarinense a co nst ru~ao dessa estrada
envolveu em alguns momentos mais de 8.000 operarios e as concess0es
realizadas a companhia pelo govemo brasileiro - 8 km de terras para
cada lado da estrada no territorio cata rinense - foram causas imedia-
tas da chamada Guerra do Contestado, entre 1912 e 1916.
(2) - Wachowicz, R.C. (1969 :475), citando o imigrante que trabalhou na
estrada e que narra o episodio Marian Hessel, Na Pionierskin SZlaku.
Pamietniki Emigrantov, nakladem wydawnictwa " Polonia" Warszawa,
1965 : 97 /98 . Primeiros anos da pacifica~ao
e m Ibirama Y.
R eprod u~ao de Gerlach.
156

Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai

www.etnolinguistica.org
 Recebida a missao ainda em 1910, no ano seguinte Fiora- nMorrer se necessario for; matar nunca"! ( ... )"(I).
vante Esperans::a fundou um posto de atra9ao na regiao da Fazen- Somente o cozinheiro escapou ao massacre, pois ao se in-
da Monte Alegre, denominado Rincao do Tigre (I). Os indigenas teirar do que estava ocorrendo tratou de buscar abrigo na flores-
atenderam as demonstras::oes de amizade reveladas pelos funcio- ta, conseguindo chegar a um acampamento de ervateiros, onde
narios do SPJ, submetendo-se especialmente a tecnica da "ceva" narrou o acontecido (2). Os indigenas, por sua vez, logo abando-
que lhes garantia o abastecimento de especiariasda civilizas::ao, naram as imedias;oes do posto de atras;ao, em busca tambem de
e passaram a freqiientar o posto de atra9ao. Um ano passou. Um refugio. Sabiam que os civilizados tratariam de vingar os fazen-
dia o posto foi visitado pelos fazendeiros Candido Mendes e Jo- deiros mortos e nao pretendiam e§tar ao alcance das suas armas.
se Pacheco, que haviam torr.ado parte em batidas contra OS in- 0 Servi90 de Prote9ao aos Indios ficou em diflcil situas::ao.
dios e eram seus inirr.igos figadais. (' que se sucedeu faz parte De um lado necessitava rapidamente atrair os indigenas ao con-
dos epis6dios de maior relevancia da historia da protes::ao ofi- vivio pacifico; de outro, precisava evitar que o alvoro90 da vin -
cial no Brasil e assim esta apresentado por Rondon (1946:342):
"Os visitantes chegaram a hora do almas:o e tomaram parte na
refei<;ao que estava a mesa. Quern come junco e aliado e irmao -
t gans::a levasse para o interior da floresta, bandos armados para
liquidar os silvicolas. Segundo o relatode Rondon (ob. cit: 343)
os dois objetivos foram atingidos: ''( .. . ) os serventuarios fizeram
frence a ambos ; aos civilizados discutindo, ensinando, demons-
Canque - na regra social dos Botocudos. Portanto, os empregados
do Posto deviam ser como aque le fazendeiro (2), inimigos dos trando e, como ultima razao, opondo arma a arma; aos indios,
indios ! E tudo que ate entao tinham esses empregados feitos pa- indo novamente ao seu encontro, afrontando, como se deve ima-
ra agradar aos indios e benefic ia-los, deveria st:: trais:ao!. Num + ginar, os maiores perigos no imo da ma ta; a apos longos meses
momento resolveram liquidar o assunto. Ardilosamente desarma- de arriscadissimas aproximas:oes ( ... ), conseguindo pacifica-los
ram OS visitantes, OS quais pe}o que sabiam sobre a pacificas:ao de novo; was afastando-os daqueles sitios de tao tristes recor-
d~s seus antigos desafetos, estavam inteiramente tranquilos e das:oes e tao perigosos ( ... )".
nao se opuseram ao exame que os indios, com mostras de curio- 0 encarregado dessa dificil missao foi joao Gomes Pereira,
conhecido tambem corr.o joao Serrano. Ele logrou atrairos Indios
sidade, desejavam fazer de suas armas. Em seguida ca.lram so-
bre os visitantes, massacrando-os e tambem aos empregados do
+ para as margens do rio dos Pardos, onde se instalou com sua
Posto. F ioravante, rudemente atacado, defeodia-se das caceta- familia (3). Segundo fontes locais, Joao Serrano conseguiu atrair
das com os bra~os rocustissimos, sempre de frente, procurando
chamar os indios ~ razao. F oi recuando ate o mastro da bandeira
brasileira, que diariamente se hasteava no Posto· e ai seu cada-
ver ioi encontrado mais tarde, tendo no cinto o s~u revolver com
tOda~ as balas intatas. Caiu. fiel a
divisa do Servis:o de Protes:ao
aos Indios:

~l) - Er:nb.or.a a~res~nt~do por Rondon, segundo nota de s ua autoria,

+ este ep1sod10 fo1 primeiramente publicado na R evista do Servic;:o Publi-
co, vol. II, N? 1, abril de 1,.940, integrando artigo com o titulo: "O Pro-
blem~ da Civiliza~~o dos lf!dios ", e depois foi publicado n o Boletim do
Ser~1c;:o de _P rotes:ao aos Indios, _de 31/8/42, ocas iao em que se de-
( 1) - Em n9sso diario a fundas:ao esta registrada duvidosamente, 1911
OU 1?12. E evidente riue este posto se articulava com OS postos de
nommava F1oravant e Es~eranc;:a ha uma lancha constru1da em S. Paulo,
para atender as necess1dades de transporte fluvial da In spetoria do
a~r~s;ao_ do vale do ltajai, integra~d o um piano mais amplo, de total pa-
SPI de Goias.
c 1f1cas:ao dos Xokleng (c f. Relatori o da Dire toria do SPI, referente ao
anode 1914 ). (2) - Tivemos contato com um filho desse personagem em Anitapol·
em ~967, onde atuC:1~a com? funciona.rio do INDA, oportunidade em ;~~
(2) - No texto c m quE>s tao e apenas men cio11c1do o fazendeiro Candido confirmamos a verac 1dade oo acontec1do - SCS.
Mendes. A indicas:ao da presens:a d e Jose Pa c heco foi-nos dada pe lo
Sr. Deocleciano de Souza ( Nene), func i vnario aposentado do ex- SPI, (3)_ - 0 toldo Criado_ nest: locale referido tambem pelos nomes de Sao
Joao dos P obres e Sao Joao de Cima.
em entrevista realizada em Curitiba, em 23 / 2/ 68.

158 159
 SO indigen~s por volta do ano de 1918 (1).
6. SOBREVIVENr ES E ARREDIOS NO PRESENTE
Os grupos Xokleng atrai'dos por Hoerhan, no rio ltajai do
Norte, e Joao Serrano, no rio dos Pardos, nao representavam a
totalidade da tribo. No sul de Santa Catarina pelo menos uma
outra horda continuou a vagar. pelas florestas, sujeitando-se vez
OU outra as razias dos bugreiros . Hoerhan em determinado mo-
mento chegou a ser solicitado pelo governo do Estado para
atrair esses indigenas que estavam freqiientando as imedia~0es
dos nucleos de Anitapolis e Esteves Junior, mas Segundo ele
"Nao adiantava tira-los da floresta para deixa-los morrer pe!as
doent;as que os brancos lhes transmitiam" e "eu nio tinha recur-
sos para atender os daqui, que adiantava ir buscar outros" (2).
A continua penetra~ao de civilizados no territorio que esses
indigenas ocupavam pouco a pouco foi liquidando as suas possi-
+ bilidades de sobrevivencia. A floresta somente perrr.aneceu nos
locais de diflcil acesso, particularmente nas serras isoladas que
se avizinham do litoral e 1na costa da serra Geral. E foram para
esses pontos que recuaram os indigenas, nao somente em busca

+ (1) - 0 indio Seba s tiao Pereira des se toldo, juntamente com seu pai,
Dujavin Kilhita, que viveu esses acontecimentos, nos informaram que
Joao Serrano temia muito os indigenas que pacificou. Por isso, t8da
vez que alguns indios comec;avam a demonstrar sinais de insatisfac;ao,
convidava-os a sua casa , para uma noitada alegre . Na oportunidade
distribuia farta quantidade de bebida aos visitantes e mantinha a casa
toda fechada e aquecida por forte fogo de lareira e pela manha obrigava
aos visitantes sonolentos a tomar um banho na cachoeira que corria 'a
frente da residencia. Em conseqiiencia os silvicolas adquiriam forte
resfriado, que em pouco tempo aniquilava definitivamente as poss ibi ti-
dades de revelarem s ua insatisfa9ao (depoimento 16-7-64). Hoerh a n e
Deoc lec iano Souza, ambos funcionarios do SPI a epoca de Joao Serra-
no, c la ss ificaram como infundada s tais informa9oes . Entretanto, sabe-
+ se qu e os episodios vividos por Fioravante Esperan9a ocorreram por
vo1ta de 1911 OU 1912. Joao Serrano som ente conseguiu se aproximar
dos indigenas por volta de 1918. Segundo o filho d o cozinheiro que es-
capou ao massacre e m Ribeirao do Tigre, ao ocorrer a atra9ao, os fun-
cionarios do SPI vingaram a morte de Fioravante Esperanc;a, liquidando
diversos Indios adultos e providenciando, sob o pretexto de uma epide-
mia de gripe, a trans ferencia de mu'heres e crian9as para postos de Sao
-t Paulo . A duvida reside especialmente no seguinte ponto: o SPI con s i-
derou o feito de Hoerhan no vale do ltajai como a pa ci fica9ao total dos
Xokleng e, no caso particular do trabaJho de joao Serrano, jamais se
preocupou em legalizar as terras que os indigena s ocupavam nas mar-
gens do rio dos Pardos e de ali instalar um posto indigena. Por que?
(2) - Depoimento do pac ificador, em 22/1/64.
p,imeiros anos da pacificat;ao
em Ibirama III.
Reprodu~ao de Gerlach. 161
refugio, como tambem a procura de cac;a, pois a esta tambem o
branco depredava . ,, ~-
A instalac;ao da Tnspetoria do Servic;o de Protec;ao aos In-
dios , em 1910, naturalmente fez diminuir a liberdade de ac;ao dos
bugreiros. Nao lhes diminuiu porerr o animo. Dessa for"'a a pre-
senc;a indigena, particularwente no sul do Estado, continuou a
provocar ac;oes mais ou menos cautelosas, mas seguraJT1ente efi-
cazes, contra os indigenas que vez ou outra davam sinais de sua
presenc;a. Dessa maneira, na decada de vinte, Martim bugreiro
ainda tinha assegurado clientela permanente, a quern vendia pro-
te9ao para incursoes nas areas ainda cobertas de floresta. (1).
Ao mesmo tempo, varias informac;oes comprovam a presenc;a de
bugreiros que, embora menos famosos, nao deixaram de vez ou
outra realizar suas batidas (2). Mas toda essa area apresenta
poucos documentos. Alguns registros foram feitos por Francisco
Schaden (3), deixando claro que nas florestas do s ul do Estado
um grupo Xokleng continuava a sobreviver. As pressoes dos
civilizados, entretanto, se faziam sentir continuamente atraves
da a9ao nefasta dos bugreiros ou, mesmo, pela penetras:ao s iste-
matica na floresta em busca de terras para a agric ultura . Dessa
maneira, OS indigenas dia a dia viam diminuir 0 territorio a s ua
di s posi9ao, sofrendo graves periodos de penuria alimentar. Por
isso, OS ca9adores. na area de Anitapolis, Segundo Francisco
Schaden, vez ou outra encontravam vestigios dos indigenas, re-
presentados por excrementos repletos de sementes e cocos, re-
velando a precariedade do regime a limenta r dos s ilvicolas.
Essas informa9oes em tempos recentes come<;aram a ser en-
riquecidas com investiga9oes realizad as em abrigos e grutas na-
turais, utilizados pelos Xokleng, por parte de estudiosos interes-
sados na ocupa9ao pre-hist6rica da regiao. Os a!que6logos Pe. joao
Alfredo Rohr e Walter Piazza, em pesquisas distintas, encontra-
ram nos l't'unicipios de Urubici e Sao Joaquim vestig1os testeJT1u-
nhos , representados por dezenas de esqueletos mais ou menos

(1) - Depoimento do Sr. Carlos M. Koerich, em 7 / 10/ 70. Martinho foi

capataz de mato para o informante, que era agrimensor, no periodo com-
preendido entre 1923 e 1928.
(2) - Na area da encosta da serra varias pessoas informaram que " na-
que l a epoca a gente tinha de matar OS indios, senao eles matavam a
gente", o que revela ser o indigena apenas mais um obs taculo que a
natureza antepunha a penetrac;ao dos ci vi lizados e que deveria ser
eliminado.
(3) - Schaden, Francisco " Die Schokleng in Si.iden des Staates - von
Santa Catarina", s / d, inedito.

162
..
Prime iros a nos da pacifica~ao em Ibira ma VI. R eprod u ~ao de
Gerlach.
 alguns cestos e sairam as carreiras do acampamento sob uma sa-
completos, das razias reali~adas pelos bugreiros sobre os Xo- raivada de flechas disparadas pelos indigenas . Calc ularam depois
kleng. Na· localidade de Santa Barbara, municipio de Urubici, Pe. que 20 deveria ser 0 nuIT'ero de individuos ali e s tacionados (1).
Rohr encontrou numa so caverna, espalhados no piso da entrada, Outros epis odios dess e tipo, asseguradores da pres enc;a de indige-
os restos de 68 esqueletos. A gruta, segundo o arqueologo, loca- nas, devem ter ocorrido. A literatura , porem , nao os registrou.
lizava-se no fundo de um precipicio de diflcil acesso, indicando Indicios outros, como o desaparecimento de pe9as de ca9a mor-
que os indigenas provavelmente ali procuraram inutilmente um tas por astutos ca9adores; a observac;:ao s ubita de um vulto, logo
refugio seguro (1). desaparecido, nuIJl ponto distante da floresta ; o parar inexplica-
Concretamente, os indios foram desaparecendo. Sumiram, vel do pio de un a ave que estava sendo atra{da pelo assobio ma-
segundo a maioria dos informantes, das vizinhan9as da fazenda, treiro do caboclo; a surpresa causada por subitas cargas de pe-
da localidade e do municipio. Mas, teriam desaparecido totalmen- dras sobre descuidados viajantes na floresta; devem ter ocorrido
te? Sera que foram mortos ate 0 ultimo homem? Ou, Sera que se muitas vezes, pois constantemente nossos inform antes fizeraIT'
refugiaram? Para essas interroga9oes os informantes nao conse- referencias a fatos dessa natureza. Entretanto, nunca ha certeza
guem, em regra, respostas satisfat6rias. "Sumiram daqui". "Tal- absoluta se tais acontecimentos teriam como explica9ao real a
vez, for am para a serra". "Talvez se acabaram". "Nao sei". presenc;a de indios nos locais onde ocorreram. Ao mesmo tempo,
0 professor Egon Schaden teve oportunidade de nos informar tais acontecimentos nao podetr. ser desconsiderados. "Os indige-
recenterrente que, em 1925, a 40 km. de S. Bonifacio, houve um nas sao dificilimos de serem vistos na floresta "; "quando a gen-
ataque de bugreiros aos Xokleng. Algum tempo depois, o infor- te pensa que viu, o danado ja sumiu". Essas observa9oes sao bas-
mante juntarrente com seu pai visitou o local do ataque, ocasiao tante importantes, pois sbmente atraves do aperfei9oamento con-
em que ajudou a enterrar os restos de um indio, vitima dos ata- tinuo de tecnicas de camuflamento vamos poder explicar a sobre-
cantes. Segundo Schaden, ha via no local, ja meio destruido, um vivencia de representantes desse grupo indigena, nas pequenas
paravento, certamente usado para abrigar os indigenas. (2). e bastante freqiientadas pontas de floresta que subsistem nas
Doze anos depois, em 1937, dois ca9adores durante a per- encostas das serranias (2). E eles estao la.
segui9ao de uma vara de porcos se viram dentro de um acampa- No ano de 1949, a presen9a de indios arredios em Santa Ca-
IT'ento de indios. 0 episooio ocorreu no costao da Pedra Branca, tarina foi definitivamente comprovada. Os Xokleng que ocupavam
entre Treviso e Mae Luzia, no sul de Santa Catarina. Os ca9ado- o sul do Estado haviam logrado sobreviver e naquele ano tres
res, Jeronimo Souza e Adorinho Lima, surpresos, apanharam ai individuos integrantes do grupo foraIJl atraidos ao convivio com
os brancos. Os fatos assim ocorreram, segundo narra9ao de
Giocondo Crozetta, residente em Orleaes (3): «o primeiro con-
(1) - Ha evidencias nessa area de outra tradic;:ao cultural, representada tacto cow os Indios deu-se durante uma ca9ada realizada com
por enterramentos realizados em nichos existentes nas paredes internas
das grutas. Nao se pode, entretanto, aceitar que OS restos osseos en- IT'ais tres companhe iros, quando seguindo por uma trilha enc on-
contrados espalhados no piso das grutas sejam dessa tradic;:ao cultural.
Nos nichos, os enterramentos eram cuidadosos, havendo evidencias do
envolvimento do corpo com fibras vegetais. Em cada gruta , pelo que
nos foi dado conhecer pessoalmente, eram pouco numerosos os enterra-
(1) - Conf. artigo de Hely Gomes Moura, in A Imprens a, Tubarao 6/3 /
mentos. Ao c ontrario, no caso referido a quantidade de esqueletos e
s ua dis posic;:ao indicam a morte chegando rapida e traic;:oeiramente num 49 , narrando detalhadamente o episodio. Public ando artigo em 1938,
loc al de pouso. Um recente depoimento do Sr. Walter Kuhns, obtido pe- Schade n confirma e ssa noticia, ao dizer : "So no sul do Estado, nos
la lic enc iada Neusa Maria Sens em Ituporanga, e sc larec e que na loca- c ampos e fa c hinais que se extendem e ntre Anitapo li s e o rio Capivari ,
a c ha-se ainda um pe queno grupo desse s indios e m seu es tado primiti vo,
lidade de Barro Branco, Municipio de Urubic i. foram encontradas deze- grupo que s i muito, conta c om 10 o u 12 individu os" ( 1938: 8 5/ 86).
nas de esque letos de adultos e crianc;:asa entrada de uma gruta locali-
zada ao fundo de um precipicio, testemunhando, segundo o informante, (2) - Em s uas n ota s , Franc isc o Sc had e n a ponta o~ ra pto de um a colona ,
a ac;:ao dos bugreiros. Veja-se ainda, Piazza, Walter, 1966. ocorrido e m 19 43, por 5 Indio s n o luga r rio d os Indios, e m Ani tapo lis .
Mas, o a utor info rma que s e dizia n a are a serem os ind ios oriundos d e
(2) - Nas notas de Francisco Schaden este epi s odio tern como respon- postos d o SPI localizados em Palma s, n o P arana .
saveis OS bugreiros Jose Domingo Goncalves e lreno Goncalves, acres-
c entado do detalhe que os bugreiros arrancaram as orelhas do indio que (3) - Conforme en trevista realizada em 2 d e maio d e 19 6 3.
mataram (inedito, pp. 9 / 10).

165
164
 tramos uma cho~a de bugres, situada numa pequena clareira da
mata, Ao aproximarmos, vimos sair uma india vestida de gorro,
•
saia e blusa . .0 rancho era formado por duas ahas que iam ate ao
cbao, onde hav.la sbmente alguns trapos amontoados a um canto;
e fora vimos amarrados um macaco, um coati e um cao muito fe-
roz. 0 segundo contacto deu-se numa ca~ada seguinte, com mais
cinco companheiros, quando encontrei um casal de indios ve-
lhos. A india quase nao podi~ caminhar e facilmente a segurei
pelo brac;o, depois de largar a arma, tentando com isto mostrar-
me mais amistoso. 0 Indio velho, porem, subindo num barranco
proximo, comec;ou a gritar atirando pedras, nao se atemorizando
quando um companheiro lhe apontou uma arma. E m vista disso e
c omo nao quizesse causar nenhum mal ao casal, de c idi afastar-
me do local, com os demais companheiros.
0 fato foi entao comunicado ao chefe do SPI em Curitiba,
Sr. Deocleciano Sousa, que dois meses depois chegava com um
....... indio 1J1anso , como interprete. Acompanhei o servidor do SP! na
...... busca pela floresta e no segundo dia de bus ca e ntrawos em con-
> tato com um Indio moc;o, apanhado de s urpresa rirando mel no
ti!
E alto de um a arvore.
ro
·-....
..0
,_
Abordado pe lo interprete concordou em trazer se us compa-
nhe iros aque le local para receber prese nces. Voltando no dia se-
guinte, la e ncontramos tres indios sentados em torno de uma fo-
gueira. 0 fato ocorreu 110 lugar Tres Barras e como o acesso ali
0
1ro
era di fie ii o c hefe do SPI dee idiu trazer os indios para a beira da
0- mata , onde foi construida uma choc;a. Sendo porem fr eqi.ientes as
tl!
.....
u vi sitas de civilizados, meses depois morria o casal de velhos,
......
..... vitimados por gripe. 0 indio mais novo foi encaminhado para
u
tlS Calmon, al gum t e mpo de pois". (1 ).
0..
Atraves do interprete, os indigenas contaram que integravarr.
tlS
um grupo maior que ha via sido tiroteado al guns a nos a ntes, re-
" Cl) s ultando na morte de 13 pessoas. Essa informac;:ao explicava as
0
c a~0es cometidas por fazendeiros e policiais de "serra acima",
ti!
no entao municipio de Sao Joaquim, no anode 1946. Sobre o epi-
Cl)
0
.... ..c:
• sodio rea lizamos entrevistas com um fazendeiro (2), proprietario
..... u das terras onde se desenrolaram os acontecimentos, assim regis-
v
e~
......... trados em nosso diario : tta fazenda estava tendo uma perda de
.... Cl)
0.. 0

(1) - Reportagem "os ultimos Botocudos", publicada na "Correio do

Povo", Porto Alegre, em 27 / 2/ 49, confirma os fa tos acima na rrados.
(2) - Senhor Prudente Candido, proprietario da fazenda " 15 di as".
Entrevista e m 20/ 7 / 64.

167
mais ou menos 20 rezes por ano. Seguidamente desapareciam re- sul, para 9 Rio Grande, e outra ficou ali. Como ~les paravam na
zes e o informante determinou que seu capataz invcstigasse, a serra da Veneza, municipio de Nova Veneza, eles ali foram per-
fim de apurar quais as causas do desaparecimento. 0 capataz, seguidos pelos colonos, morrendo cinco ou seis".
descendo a encosta do planalto, localizou o lugar onde as rezes Comprovada a existencia de indios arredios ate alguns anos
eram abatidas. Comunicando o fato ao informante, este solicitou atras, nas pontas de floresta que subsistem nas encostas das
ao delegado de policia de Sao Joaquim providencias. Entretanto, serranias ao sul de Santa Catarina, tentamos verificar sua sobre-
o local de abate das rezes ja pertencia ao munic ipio de Orleaes vivencia ate o presente. A importancia do fato reside especial-
e houve necessidade de se solicitar permissao a delegacia da- mente no testemunho de um grupo que resiste a aproximac;:ao dos
quele municipio para fazer a nece.ssaria investiga~ao. Ninguem brancos de maneira heroica e completa. Sabem evidentemente do
pensava tratar-se de indios e sim de brancos que estavam a rou- dominio do branco; veem a floresta dia a dia ser invadida por
bar gado. Obtida a licen~a para entrar no munic ipio de Orleaes, cac;:adores, madeireiros, extr.atores de palmito; t~m dificuldades
o delegado de Sao Joaquim, tres soldados, alem do informante e diarias e constantes para obter 0 necessario a sobrevivencia.
seu capataz, foram ao local de abate das rezes. Dai seguiram Mas nao desejam se aproximar e, para tanto, chegam mesmo a ca-
por uma picada aberta no cos tao da serra durance quatro horas, muflar sua presenc;:a. E, e provavel, que essa tecnica de camu-
mais ou menos. Nessa altura, o inforlllante estava muito cansado flagem, responsavel pela constante duvida sobre a efetiva pre-
e regressou, juntamente com o capataz. Ao chegar ao campo, senc;:a de indigenas na area em foco, e que tern garantido sua
ouviu o informante uma barulhada infernal. Gritos, berros, pala- sobrevi vencia.
vroes, que 0 colocaram ao par que OS soldados haviam encontra- Em nossos registros ha diversas referencias indicadoras da
do indios. Soube de pois que os soldados seguiram a certa altura presenc;:a ainda hoje de indigenas arredios numa ponta de flores-
por uma picada, que despertava a aten~ao por nao ter sido forma- ta que cobre a chamada Serra do Taboleiro, localizada entre os
da pelo cone de arvores e arbustos e sim pelo afastament<' da municipios de Paulo Lopes, Imarui, Sao Bonifacio e Sto. Amaro.
madeira fina para os lados, e chegaram ao toldo dos indios. E> - A floresta que cobre esta serra se extende, atraves do municipio
tes foram alertados por um macaco que assobiou. Uma cachorra de Anitapolis, e atinge o costao da Serra Geral. A area agres-e
avan~ou para os soldados, mas o delegado deu-lhe uma valente te, acidentada e muito pouco povoada. A presenc;:a do branco no
coronhada na cabe~a. Os indios indignaram-se e fizeram extremo interior dessa floresta tern como motivos a cac;:a e a extrac;:ao de
berreiro. Os soldados os chamaram. Tentavam atrai-los. Como madeiras e palmito. Muito lentamente, atras dessas atividades
nao alcan~assem exito, deram uns tiros para assusta-los. Depois segue a roc;:a cabocla. Todos esses fatores de um modo ou outro
pegaram algumas flecbas e balaios - que foram remetidos para contribuiram para a sobrevivencia de alguns Xokleng nessa area.
F lorianopolis, - e que visavam provar que eram indios os la- Por volta dos anos de 1955 ou 56, dois fatos testemunham a
droes de gado. F voltaram. Os indios vieram acompanhando os presenc;:a de Xokleng arredios. 0 primeiro deles e a carta de
soldados, sempre gritando. No dia seguinte, uma nova rez foi um Prefeito (1) pedindo orientac;:ao ao governador a respeito de
roubada. uma india "que toda nua andava aparecendo em propriedades do
Os polic iais apenas encontraram uma casa e eram apenas interior do municipio". 0 segundo foi o testemunho do hoteleiro
tres indios porque haviam apenas tres camas feitas de taquara. de Anitapolis que nesses mesmos anos, na localidade de Mara-
(l informante solicitou providencias a 7! IP do SPI, em Curitiba cuja, viu diversos vestigios de bugres num sitio que ali possula.
e esca enviou o Sr. Deocieciano Sousa, que esteve realizando Afirma que sua mulher viu um bugre apanhando frutas no pomar.
investiga~oes para saber qual era a cribo e assim providenciar Outros episodios, acontecidos ainda na decada de cinqi.ienta,
. , .
um 1ncerprete que serv1sse. em bora re lat ados ou referidos por terceiros ou por pessoas que
Encrecanco; somence cres anos depois, e apos outras rec la-
ma~oes iunto a 7~ IR, e que o Sr. Deqcleciano Sousa veiopren-
der OS bugre s' que foram tirados por Orleaes e eram em numero de (1) - Infelizmerte nao foi possivel obter essa carta nos arquivos do
tres. Quando foram pegados, disseram os indios que eram 16 pes- Palacio do Govemo. A informa<;ao de sua existencia e do seu conteudo
soas, formando duas familias. Como brigaram, uma foi para o nos foi dada pelo entAo oficial de gabinete do Gove mad or Jorge Lacer-
da, Dr. Norberto Ungaretti.

168 , 169
nao conseguiram detalha-los, foram varias vezes registrados,
testemunha ndo a presenc;a certa de Indios na area.
Baseado nesses dados , realizamos em julho de 1969 uma
excursao aos municipios que inclulam a serra do Taboleiro em
seus limites e ali tratamos de obter dados comprovadores da pre-
senc;a dos Xokleng. Em Imarui, um dos moradores que melhor co-
nhece a regiao e que disp0e de amplas amizades no interior,
contou-nos que "nas terras do Sr. Carlos Eduardo Faust, proprie-
tario de uma serraria, na divisa dos munic ipios de Anitapolis e I
;:l
Sao Bonifacio, no ano de 1968 o gerente Bernardo Faisu viu um '"O
indio. E durance a derrubada do mato, os empregados sao cons- ...
0
0.
tantemente alvejados com pedras" (1). v
p:::
A seqiiencia de entrevistas feit as nessa oportunidade evi-
denc ia a presenc;a de indios na area, pois toda s as pessoas que 0
.
l<IS
vivem na o rl a da floresta e que a freqiientam constantemente nao (.)"
<IS
tern duvidas que ha pelo menos "um bugrinho" ou "um indinho" ..............
u
nas redondezas . Um dos entrevistados, o velho Custodio, cabo- u
clo que passou sua vida cac;ando nas mata s do Taboleiro, disse <IS
0.
que "nunca viu um indio, mas que varias vezes sentiu sinal de sua ell
presenc;a" . E como fato conc reto apontou o velho Ho norato, ou- '"O

tro caboc lo fa milia ri za do com o sertao, residente no a lto rio Du- (/)
0
na, como responsavel , no ano de 1967, pela morte de um indio, 0.
E
que estava tirando cac;a de suas armadilhas. Conversa ndo com o v
.....
velho Hono rato , juntamente com outros vizinhos, no dia seguin- V)

te, sem esperanc;a que ele me contasse seu delito, obtive as se- 0
...
guintes informac;oes (2): "Eu acho que aqui tern um indio, mas v
ele ja tern idade. Nao acho futuro para ter mais, p:>rque se tives- .....E
...
se certamente eles faziam algum mal. Ou roubavam ; oumais cora- 0.
V)
gem eles tinham. Mas esse bugrinho que anda aqui nao faz mal a 0
c
ninguem. Ele parece que tern medo. Desconfio muito que ele tal- (/)
vez teje ai com tensao , quern sabe, ele quer se chegar. Ele corre 0 .
u .c
isso tudo ai ( ... ). Mas, sabe, que eu admiro e e
que le ta muito c: u
ro ~
ano ai, que e impossivel que ele esse ano todo nao tivesse ve- .D v
......
lhice que tivesse morrido. Mas sempre ta. Desconfio que tambem v (j
pode ser mais de um. Desde que me conhe~o, sempre teve vesti- (/) v
0 "'O
gio de le aqui ( ... ). :.0 0
,_C I~
u-

(1) - Entrevista com o Sr. Pedro Bittencourt, em 4 / 7 /69

(2) - Conforme depoimento gravado em 7 / 7 / 69.

170
 Eu tenho um filho ali, que quando veio de Rio do Sul, ele
deixou um feixe de palmito e uma cambona no mato e disparou,
veio s'imbora, e deixou tudo la. Era ele (o indio-SCS) fazendo
baderna. Ano passado, na tira~ao de palmito aqui na Garuva
veio uns negrinhos TIRAR PALMITO E FIZERAM UM RANCHO.
Veio um que trouxe duas meninas. Duas filhas. Duas negrinhas.
Eles nao durmiram de noite. Dizem que eles (os indios-SCS) me-
teram o pau no rancho, foram metendo o pau e arre liaram tanto
que eles no dia seguinte os negros foram s'imbora e nunca mais
quizeram ficar no mato. Agora, no Laureao Pacheco, ano atraza-
do (67-SCS), fomo tirar palmito e fizemos um rancho. Um rapaz
daqui levou duas bociquimas. Um filho meu esqueceunolugarda
tira~ao um feixe de palmito e um chapeu novo. A noite, no rancho,
as bocicas pegaram a bater; corriam e ganiam ate la em cima. Ai
nos ati~amos. Elas fo...ram e logo voltaram ganindo. Eu disse:
meteram o cipo nelas. Eles (os indios-SCS) deram uma tunda ne-
las. Ai paremo, deitado no rancho. Quando me aprecatei ele veio
de la e atirou no fogo o chapeu do rapaz. Queimou o chapeu dele
no nosso fogo. Ai eu gritei, mas nao adiantou. Ninguem viu
ele. (., .. ).
E assim, e invisivel;e muito dificil topa-lo; ele anda por
ai, mas a gente nao ve; a gente nao pode enxergar 0 fil ha da
-
mae " .
Poucos dias antes de nossa visita ao alto rio Duna, uma
vizinha do Sr. Honorato havia colocado sob uma galinha choca
uma dt'.izia de ovos. Dois dias depois, todos os ovos apareceram
fora do ninho. Preocupada em nao perder o choco da galinha, no-
va dt'.izia de ovos foi logo arranjada e colocada sob a ave. No dia
seguinte, ao alimentar a galinha, a mul her percebeu que estavam
no ninho 24 ovos e logo passou a comentar o fato como sendo
"mais uma brincadeira do bugre que frequentava a floresta das
vizinhans:as ".
V - CONT ATO E INTEGRACAO
1. DE NOMADES A SEDENTARIOS: A EXPERIENCIA
DE HOERHAN

Realizada a pacificas:ao dos Xokleng no vale do Itajai do

Norte, era necessaria a crias:ao de condi9oes que permitissem a
sobr~vivencia dos indigenas. Mas a epoca o Servis:o de Prote9ao
aos Indios nao tinha diretrizes seguras sobre o que fazer. O po-
siti vismo e os ideais humanitarios de Rondon e seus companhei-
ros nao eram suficientes para dar resposta imediata ao complexo
problema que se estabelecia sempre que um grupo tribal entrava

172 173

•
 em contato com representantes da sociedade nacional. Simulta-
neamente, os interesses imediatistas da sociedade nacional
eram prontamente atendidos sempre que o SPI lograva atrair ao
contato pacifico qualquer grupo tribal hostil. A pacifica9ao re-
presentava a elimina9ao de um . grave obstaculo a ocupa9~0 de
terras virgens. Nesse sentido, o Servi90 de Prote9ao aos Indios
foi um organismo criado para atender os interesses da sociedade
nacional e nao dos indigenas. Entende-se assim porque Hoerhan
enfrentou enormes dificuldades tao logo realizou a atra9ao dos
Xokleng. Pacificados, os indigenas deixavam de representar
perigo para os civilizados; deixavam de ser motivo para reclama·
9oes de embaixadas estrangeiras ao govemo do Brasil, sobre
as condi9oes de seguran9a dos imigrantes; deixavam de estarre-
cer o mundo civilizado e cristao quando das sanguinarias razias
dos bugreiros. 0 problema, agora, "era esperar que os indios se
habituassem com a civiliza9ao".
Nern Rondon, nem os demais responsaveis pelo SPI, podiam
concordar com tal manipula9ao. Mas a ela tiveram de se ·sujeitar,
embora so muito mais tarde disto vieram - se vieram - a tomar
..::onsciencia. Nao possufam tambem ideia clara do complexo pro-
blema que estavam enfrentando. Sabiam que era dificil realizar
a pacifica9ao de grupos indigenas hoshs, mas tinham um esque-
ma de a9aO. Apos as lides da atra9ao, praticamente nao havia
regras a seguir. Todos os servidores do SPI, entretanto, tiveram
que impor a lei em regioes onde ela nao existia; tiveram de ate-
nuar formas escandalosas de espolia9ao humana; tiveram afinaL
de representar uma face da sociedade nacional que nao estava
t presente no sertao e que por isso nao admitia que 0 indio fosse
simplesmente violentado, exterminado. Mas o governo central
jamais contemplou o SPI · com os recursos necessarios. 0 fun-
damental sempre foi a pacificasao dos grupos indigenas e na
medida em que os recursos permitiam neutralizar as a9oes beli-
cosas desses grupos, o governo estava satisfeito em seu objeti-
vo. Por isso, nao se destinavam quase recursos para os traba-
lhos com as grupos j a pacificados.
Vivendo sob uma constante insuficiencia de verbas, durante
uma visita do governador de Santa Catarina as colonias do Ita-
jai, Hoerhan vislumbrou a possibilidade de sair desse impasse
permanente obtendo um auxilio do governo estadual. Corria o
ano de 1918. Hoerhan chegou a sede da colonia (Ibirama) con·
duzindo aproximadamente duzentos indigenas. Acampando nas
vizinhan9as da cidade, 0 exotico grupo ficou a espera da visita
govemamental. Imediatamente, a curiosidade e a necessidade de

175

Pr ime iros mome ncos da pacifica c;a o .

 -
conhecer de perto os tao mal afamados habitantes da selva leva- os indigenas, nem tampouco nada havia como orienta9ao a res-
ram ao acampamento continuas levas de visitantes. Trens, vin- peito de medidas preventivas que se deveriam tomar pelos gru-
dos de Blumenau, chegaram abarrotados. Era o vale inteiro que pos encarregados dos trabalhos de pacifica9ao. Nessa situa9ao
corria para ver os indigenas. E os que deveriam chegar, o gover- e que pessoalmente decidiu manter 0 grupo em regime de •conta-
nador e sua comitiva, jamais chegaram. Os recursos pleiteados to controlado", evitando a presen9a de estranhos no posto e
tambem (1). Mas os Xokleng pagaram um alto pres:o por essa sua impedindo a saida dos indios. Ao mesmo tempo, tentou evitar
a
primeira visita cidade dos brancos. No acampamento epidemias maiores concentra9oes de indigenas, que especialmente ocor-
de gripe e variola, juntamente com a desinteria, fizeram muitas riam quando se davam os cerimoniais de fura9ao dos labios dos
vitimas. 0 entusiasmo do contato foi definitivamente perdido, meninos, para dota-los de botoques, e a crema9ao dos mortos.
quando um indio disse a Hoerhan: "nos fizeste descer para junto Mas como isto praticamente pouco adiantou, Hoerhan reconhece
de ti, so para nos matar com tantas doenc;as. Antigamente nos que "se pudesse prever que iria ve-los morrer tao ~isera~elme~­
matavam a bala, mas nos tambem matavamos. Agora, tu nos ma· te os teria deixado na mata, onde ao menos morriam ma1s feh-
tas com Kozurro (gripe), sarampo, malaria, coqueluche e outras z~s e defendendo-se de arma~ na mao contra os bugreiros que
doenc;as. Os zug (brancos) sao culpados da desgrac;a em que os assaltavam" (1).
caimos ". (2). a
Hoerhan estava sozinho frente de uma empreitada altamen-
Mas as fontes de contagio nao se limitaram aos habitantes te complexa. 0 SPI nao lhe oferecia orienta9ao e ele tentava, a
e visitantes de Ibirama, por ocasiao da presen9a dos Xokleng base de sucessivas experiencias, resolver os aspectos mais
na sede da colonia. Os proprios funcionarios e trabalhadores do essenciais que tal problematica apresentava. Os indios aos pou-
posto, alem dos indios "mansos", eram continuos agentes de cos tambem iam conhecendo facetas novas da sociedade nacio-
transmissao de doen9as para o grupo recem atraido. A rniscige- nal, na medida em que ampliavam seu circulo de... con.tato inte-
na9ao logo colocou os Xokleng frente a doen9as venereas, sendo retnico. Segundo Deeke (1%7: 130) "( •.. ) eles nao unham no-
flagrante no caso a utiliza9ao da mulher pelos grupos encarre- c;ao alguma do que fosse propriedade, plancac;oes ou criac;ao de
• gados da pacifica9ao . animais domesticos; antes, eles acreditavam que todas as plan·
0 que surpreende, entretanto, e que a agencia oficial de tas bonitas como batatas, aipim, etc, cresciam nos campos, na-
prote9ao nao tin ha ideia do que se passava. Jose Maria de Pau- turalmente, como o mato e que os animais domesticos andavam
la , em 1922, apresentou ao XX Congresso Internacional, de Ame- tambem em grande quaotidade a solta, selvagens, e que se po-
ricanistas, uma memoria sobre OS "botocudos do Parana e Santa deria ca<;a-los como eles faziam com a cac;a do mato. Mas, de·
Catarina", organizada pelo SPI, dizendo no referente as suas pois que no Scharlach eles ~bateram OS p~imeiros leit~e~, ~oi­
'condi9oes de saude: "Nao exiscem molestias peculiares aos in- lhes mostrado de modo plaus1vel que as co1sas eram mult1ss1mo
dios botocudos. Tern sido, porem, muito atacados pela mortifera diferentes da que eles haviam imaginado".
grippe e suas complicac;oes, como bronchite, pneumo~ia, etc. E concluia esse mesmo autor. "Seja como for, eles aprende-
Soffrem tambem de reumatismo articular e muscular. lnte1ramente rao, com o tempo, os preceitos do mundo civilizado e o signifi-
desconhecidas entre elles sao as molestias venereas, de qual- cado exato do meu e do teu, de forma que mais tarde, quando o
quer especie" (3). assunto despertar maior interesse, se podera fixa-los em alguma
Mas e evidentemente Eduardo Hoerhan quern melhor escla-
rece os f atos. Segundo ele ninguem na diretoria aceitava vacinar
-
. ".
reg1ao
Ao mesmo tempo em que os indigenas eram levados a apren-
der formas de conduta particulares ao "mundo dos brancos", eles
se apresentavam cada vez mais dependentes dos civilizados.
( 1) - Al guns anos mais tarde, por Volta de 1923, e que Hoerhan conse-
a
Habi tuados vida nomade e tendo como base de alimenta9ao a
ca9a, el es se vi ram confinados num territOrio rel a ti vamente re-
guiu do governo catarinense a dotas;ao anual de treis Contos de reis -
Depoimento de Hoerhan, em 19-7-65.
(2) - Depoimento de Hoerhan a D. Ribeiro Ribeiro, 1970: 316.
( 3) - 1922: 119. (1) - Depoimento a D. Ribeiro. Ribeiro 1956: 32 ou 1970: 316.

176 177
duzido para mante-los segundo seu sistema adaptativo tradicio- referir ao periodo da atra9ao e pacifica9ao como a "epoca em
nal. 0 posto indigena oferecia alimentos, especialmente oriun- que Eduardo amansou nos".
dos das ro9as, cultivadas na periferia de sua sede, que em nada D3rcy Ribeiro (1970: 313/14) obteve depoimento do pacifi-
se aproximavam dos produtos obtidos diretamente na natureza. cador, referente a mudan9as no comportamento da mulher, espe-
A fome, entretanto, nao oferecia altemativa e os indigenas aca- cialmente no que se refere ao parto e ao numero de filhos. Diz
baram sendo submetidos a uma nova dieta alimentar. Isto deve esse au tor: "Ate mesmo o parto, que constituia ulll ato fisiol6-
ter provocado graves problemas quanto a manuten9ao dos pa- gico normal, ocupando apenas o casal interessado ou alguns
droes de desenvolvimento fisico e de saude, alem de favorecer parentes que cuidavam do nascituro, enquanto a mae se lavava,
enormemente a contamina9ao de doen9as desconhecidas ate en- .c ornou-se um acontecimento dramatico. Ouvimos do pacificador
tao pelo grupo. Paralelamente, a essa mudan9a de regime ali- <lesses indios o relato de partos antigos e atuais; e a distancia
mentar, o grupo se viu frente a facilidades ate entao inimagina- que vai de uns a outros e espantosa. Aqui aparecem dois feno·
das para obter certos sucedaneos civilizados para especiarias menos: um cultural, pois a mulher Xokleng aprendeu a sofrer as
raras tradicionais, como o m~l e uma bebida fermentada, resul- dores do parto e aguarda-lo com prova~ao; outro, fisiologico,
tante da mistura de mel, agua e Xaxim. 0 a9licar e a aguardente constituido pelas complica~oes que sobrevem freqiientemente,
logo passaram a ser apelos irresistiveis para todos. Como a febre puerperal que agora a amea~a, nao obstante varios
a
No ano de 1928, Hoerhan em seu relat6rio anual Diretoria cuidados higienicos antigamente desconhecidos e impossiveis
( .. . )
do SPI denunciava os estimulos que os civilizados das vizinhan-
9as da reserva indigena davam aos sil vicolas para que esses Outra mudan~a da mesma ordem afetou profundamente os
se afogassem no alcool. Dizia o chefe do posto: "Como ja vem Xokleng. As jovens da tribo, embora mantivessem rela~oes se-
sendo notado desde annos anteriores, os indios botocudos deste xuais liYremente, desde muito antes da menarca, prosseguiam,
Posto, sempre que sahem em suas excursoes ou para ca~ar ou depois ate o casamento, sem que resultasse em fecunda~ao
para colher pinhoes nos pinheirais do alto da serra, na regiao ( ... ). :\lguns anos apos a pacifica~ao, essas rela~oes pre-ma-
dos campos, entram em contato com pessimos elementos locali· ritais cornaram-se fecundas e a tribo viu com verdadeiro escan-
zados naquellas zonas coloniaes, quase sempre antigos bugrei- dalo meninas de doze e treze anos engravidarem e terem filhos.
ros e inimigos do Servi~o, que agora, fingindo amizade aos mes- Suas noYas condi~oes de ,·ida afetavam tambem a intermitencia
mos lhes incutem a pratica dos vicios de que se acham corroidos dos parcos. Enquanco Yiviam em bandos nomades pela mata, as
e insinuam que nao devem seguir as prescri~oes e conselhos do mulheres so voltavam a engravidar quando a ultima cria ja tinha
pessq.al do nosso servi~o" (1). tres ou quatro anos; hoje, o intervalo se abreviou para dois e
, ~

E evidente que essas mudan9as ocorriam em todos os as- ate mesmo um ano apenas •
pectos da cultura tradicional. Verdadeiramente, o conjunto de As rela~oes sexuais Ii vres e a agressi vidade sexual da mu-
cren9as, valores e tecnologia dos Xokleng entrara em colapso lher Xokleng, tradicionais ao grupo, ao correr a pacifica9ao,
final. Antes da pacifica9ao, o estado de guerra permanente em facilitaram a miscigena9ao. No caso, os recursos utilizados pe-
que vi vi am esses indigenas ha via pro voe ado serias mudan9as los brancos interessados nos favores da mulher indigena, repre-
na cultura tradicional. Agora, ao enfrentar diretamente o aparato sentados especialmente por presentes, chegaram a permitir a
tecnol6gico e individuos integrantes da "enorme tribo dos bran- forma9ao de um estereotipo entre a popula9ao feminina referente
cos", os Xokleng somente podem se entregar, se render. E a as dimensoes do aparelho sexual dos civilizados. Judite Nunfo-
valoriza9ao do branco como ser "civilizado", ser "normal", foi ro, nossa informante, disse que "andar com o civilizado era mais
de tal ordem que os Xokleng em dias do pre's ente dizem ao se gostoso, porque tudo nele era maior". Em decorrencia o grupo
inteiro praticamente foi prostituido, disseminando-se entre seus
componentes toda a sorte de doen9as venereas. Sohre esse as-
sunto Hoerhan nos afirmou (1): «Houve aventuras entre brancos
(1) - Relatorio Anual referente ao ~xerc1c10 de 1928 do PI Duque de
Caxias, in Relatorio do Servi~o de Prote~ao aos indios, n? 564, Rio de ( 1) - Depoimento de Eduardo Hoerhan, em 29/ 1/ 64.
Janeiro.

178 179
 e indias devido a frouxidio sexual, mas delas foram poucos os
nascimentos. Entretanto, as doen~as venereas ainda hoje sio
responsaveis pelas doen~as que atacam OS ovarios e aparelho
urinario das mulheres".
Uma outra altera~ao de importancia -ocorreu quanto ao con·
tingente demografico do grupo. 0 convivio com os brancos trouxe
para OS Xokleng toda uma serie de molestias infecto-contagio-
sas. Molestias, em regra, corriqueiras entre os brancos, mas
para as quais OS indigenas nao tern qualquer resistencia, visto
que nao as conheciam. 0 organismo indigena nao possuia assim
defesas, representadas por anti-corpos capazes de fazerem fren-
te aos agentes invasores. J a vimos que as. primeiras epidemias,
ocorreram logo apos a permanencia da maior parte do grupo nas
vizinhan~as de lbirama, a epoca apenas sede de uma colonia. E
elas continuaram a freqiientar o territorio tribal. Mas, aos pou·
cos, os Xokleng foram tambem _adquirindo resistencia, fazendo
diminuir a virulencia com que todos os anos certas doen~as,
como a gripe, o sarampo, a coqueluche, se apresentavam no pos-
to. Entre as primeiras epidemias e o desenvolvimento de resis-
tencias, muitos Xokleng perderam a vida. Nao podemos exata-
mente precisar o numero dos que pereceram. Mas e possivel se
fazer ideia. Em 1914, segundo Hoerhan, aproximadamente 400
individuos integravam o grupo atraido no Plate. E, em 1932,
havia no posto apenas 106 individuos. Esse ultimo numero e
exato, pois foi apresentado por Jules Henry, antropologo que
naquele ano iniciou uma permanencia entre os Xokleng que durou
14 meses (1). A morte de tao elevado numero de pessoas, no
curto espa~o de 18 anos, naturalmente marcou definitivamente
o comportamento indigena perante os brancos. Segundo Ribeiro
(1970: 313) os mais importantes cerimoniais do grupo, a fura~ao
dos labios dos meninos e a crema~ao dos mortos, foram abolidos
logo apos a primeira epidemia de gripe. lsto, por dois motivos:
primeiro, devido o abatimento em que todos cairam ficando sem
animo para festan~as; Segundo, porque eram tantos OS mortos
que se tornara impossivel fazer grandes piras funebres. E por

(1) - 1941 : XV. Na obra "25 anos de co loniza~ao de Terras devolutas

no vale do rio Hercilio, Municipio de Blumenau - 1897-1922 - infor-
ma~0es Historicas " , de responsabilidade da Cia Hanseatica de Coloni-
za~io, consta a referenc ia de que em 1~ de setembro de 1920 haviam no
Posto Duque de Caxias 475 indios, s endo 240 do sexo masc ulino e 235
do sexo feminino. Nio ha entretanto referencia a qualquer censo que
tivesse sido procedido. Junto ao pacificador, Eduardo Hoerhan, nlo
obtivemos dados que confinnassem e s se s mimeros. Dai a dUvida em
aceitaS-los como exato s.

PrilJleiros momentos da pacifica ~ao. 181

 ,

Jarte do pacificador, ainda, que preocupado com a propagas:ao "Eu era 'llenino quando se deu a pacifica~o. Muitos indio fi-
das doen9as logo tratou de desestimular ajuntamentos. caram doente e morreram. Minha mae tinha dois maridos. Um
A morte de tanta gente, entre outros problemas, trouxe para morreu de gripe. Nos primeiro ano Eduardo amansava os indios.
0 posto um grupo de 6rfaos que a tribo em si nao tinha condic;oes Aju<lava os indio. Matava gado. Dava comida. Nos primeiro ano
e motiva<;ao para criar. Ainda segundo Ribeiro (1970: 313) "O ninguem trabalhava. Depois, viam os trab~lhador do Eduardo
posto foj obrigado a organizar um orfanato para criar e educar fazer ros:as e queriam imitar. Arreliavam. Eduardo um dia pergun-
essas crians:as, cujo numero alcan~ava duas dezenas. Assim, tou: "voces sao capazes de fazer aquilo?,,, e apontou para uma
ao lado da tribo. em intima associa<;ao com ela, constituiu-se um derrubada que os empregados do posto haviam feito. Os indio
grupo que viria a representar um papel capital em seu destino, disseram que sim e dai come~aram a •trabalha. Mas os Indio
porque teria oportunidade de assimilar mais profundamente os saiam pra cas:ar; pra ir ·apanha pinhao. Nao estranhavam nada.
modos de fazer, de pensar e de sentir da sociedade em que a Nos tudo trabalhava junto. Mas depois alguns indio quizeram
tribo era chamada a in.tegrar-se". fazer ro~a sozinho. Ai correu a noticia que o Eduardo queria ma-
Mas foi no seu sistema adaptativo que o grupo indigena so- tar todos OS indio. Dai a indiada nao quiz mas trabalha pro pos•
freu o impacto mais violento" Hoerhan logo ao efetivar a atra9ao to".
dos Xokleng come<;ou a ter problemas de verbas para manter o Nao era possivel, entretanto, impedir que OS silvicolas en-
posto. Isto quer dizer dificuldaqes para adquirir e oferecer aos tra~sem em cont~t~ com representantes da sociedade regional,
indigenas aquilo que durante toda a fase de "namoro", de "ce- res1dentes nas v1z1nhan9as da reserva. E quando isto ocorria
va", os grupos encarregados da atra9ao dos Xokleng, numa repe- OS Xokleng se viam frente ao Sistema economico peculiar a so=
ti<;ao do que acontecia e acontece no resto do pais, vinham dis- ci~dade nac_ional, que enfatizava, o trabalho individual e a pro-
pondo. E, alem das facas, machados, fazendas - deixados nos pnedade pnvada. Nessa altura e que os indigenas devem ter
pontos de freqi.iencia dos indigenas arredios -, agora Hoerhan sentido de modo concreto as diferen~as que existiam entre 0
necessitava tambem atender aos reclamos do estomago tribal. seu modo de usufruir hens e servi<;os, daquele peculiar aos ci-
Eram necessarios, portanto, alimentos para manter as quatro cen- vilizados. E como nao encontravam nada em sua cultura que
tenas de Xokleng na periferia do posto. E como os recursos eram pudesse fazer frente ao "mundo" que os brancos estavam a lhes
escassos, a solu9ao era oferecer ao indigena produtos oriundos descortinar, acabaram achando que o trabalho coletivo nao era
das ro9as que o posto, desde sua instala<;ao, costumava culti- born, nao era decente, nao era civilizado. E se Eduardo incenti-
var. vava esse tipo de trabalho era porque "ele queria ficar com lU-
a
Inicia lmente, OS Xokleng tinham sua disposi9ao OS produ- do_". A pressao do Sistema economico regional sobre OS Xokleng
tos cultivados nas ro<;as do posto pelos funcionarios, trabalha- !01 de tal ordem que Hoerhan nos disse: "pretendi evitar que
dores e indios Kaingang trazidos do Parana. Depois, eles come- eles se acostumassem com dinheiro ( ... ), mas nao adiantou.
9aram a participar coletivamente das lides agricolas, numa ati- Depois de certa epoca, eles procuravam as escondidas as ven·
vidade quase de recreio, pois ocorria em termos de imitac;ao das ( .•. ) e se submetiam a tudo para obter alguns trocados"
jocosa do que faziam ·os civilizados. De recreio, na verdade (1 ).
aprendizado, essas as;oes se transformaram em meio de sobrevi- Por volta do ano de 1925, o posto comes;ou a mudar de
vencia, na medida em que os indigenas passaram a ser direta- orienta9ao no controle das atividades economicas mantidas pe-
mente responsaveis por extensas ro9as coletivas. Hoerhan, ar- los Xokleng. Passou a disciplinar apenas a com~rcializa9ao dos
guto observador, utilizara em termos praticos todos os conheci- excedentes produzidos pelas diversas familias, em termos indi-
mentos que possu!a sobre o grupo, especialmente o que se re- viduais. Oessa forma, os Xokleng nao comercializavam seus
feria ao trabalho, a propriedade e posse, aos amigos formais de produtos diretamente. Eles entregavam sua produ9ao ao posto,
cas:a e a no<;ao prevalente do grupo sobre 0 individuo. 0 indio que articulava a sua coloca9ao no mercado regional. Com os
Aipom Kamlem assim narrou essa fase vi vida pelo grupo (1):

(1) - Depoimento de Eduardo Hoerhan, em 22/ 01 / 6~.

(1) - Entrevista em 30/ 01 / 64.

182 183

I
recursos assim obtidos, o posto oferecia aos indigenas, quando falta de Terbas ja era um fato. E Rondoa11 ao elaborar mcosagem
necessario, assistencia e auxilios, especialmente representados ao coogresso no aao de 191511 dizia que •apcsar do seni~o TiTer
por medicamentos, alimentos e vestuario. Conforme ja dissemos, ea extrema misCria 11 logrou pacificar os tttriTeis botocudos de
em outro lugar (1970: 55/ 56), ttNo interior do grufo tribal, en· Santa Catarina•. ....
tretanto, essa mudan<;a de orienta<;ao do,.PI significou o colapso Os civilizaclos da ttgiio tuabem fOl'UI responsaTeis. Eles
da organizacrao economica tradicional. E que OS Xokleng, como foraa espcciahacotc bcneficiados com a pacifica~io 11 panicu-
nomades-cacradores, baseavam sua economia no trabalho do gru- lamaente a Cia Hanseatica de coloniza~io11 que· era a ~iet&­
po e nao na atividade do individuo. 0 "~rupo de ca9l" e o "cha· ria de tOda a area. Nenhum desses civilizados ajudou q•wndo cu
mado companheiro de ca<; a" eram instit~icroes que forneciam ao estava so&endo fXoblemas decorrenies da falta de diaheiro. Uaa
individuo maior segurancra e enfatizavam a solidaried. .ade grupal. vez, necessitando ir ao Rio de Janeiro, em busca de recmsos
Assim o produto de uma cacrada nao era do cacrador. Ele o entre· para o PI, tive de pcdir emprestado quinhentos mil reis ao dire-
gava a seu "companheiro de cacra" que dividia primeiro com os tor da Cia. Hanseatica. E tive o pedido oegado.
integrantes de sua familia, e, depois, se houvesse sobra, dis· Por Ultimo, aponco os indios como re&awios a coaselhos
tribuia aos componentes da familia do cacrador. A propriedade boos e te~entes a procurar pessimo ambiente entte os civiliza-
individual era limitada a posse de hens enquanto eles tivessem dos. Por isso11 apontav...-.e coaao mentiroso e ladrio. porque
ucilizacrao. No mais, os hens circulavam no grupo como proprie· BS 'VCZeS Dao tioha l'eCUl'SOS para lbes atender e eJes sempre OU-
dade coletiva (1). Agora, quando o posto passa a controlar a viam mais os civilizados das Tizioh~as da reserva11 eternos
comercializa<;ao dos excedentes produzidos isoladamente pelas fomecedotts de cacha~a aos indios ( ••• )•. (1).
varias familias e a fornecer assistencia segundo as necessida· Ao mesmo tempo em que ocorria a int~io dos Xokleng
des individuais, 0 modelo economico da sociedadAe regional co• na sociedade regional, Hoerhan ia tomando consci&cia de todo
mecra efetivamente a atingir o grupo tribal ( •.. ). Este era o uni· o complexo processo que e essa mudan~a. Os indigenas nao
co que permicia a aquisi<;ao de roupas, instrumentos de ferro, somente o chamaram de mentiroso e ladrio. Chegamm a te..Io oa
sal, armas de fogo. Nao e
de estranhar pois que OS indios te• conta de inimigo. Simultaneamente, os integrantes da sociedade
nham feito sua op<;ao e com ela tenham passado a repudiar as regional que de um modo ou outm tinham interesses sobre a re-
formas coletivas de trabalho que, de certo modo inteligente o serva incligena e seu potencial natural e humano fizeram de
PI desejou manter". Frente aos limites que o posto apresentava Hoerhan o culpado de tudo que ocorria de mal no posto. Dessa
para realmente oferecer aos indigenas oportunidades de sobrevi- maneira, 0 pacificador ficou marginalizado em todos OS dois
vencia e aquisic;ao dos hens que eles desejavam, e ao fato da grupos, a que tanto procurara servir. Entende-se ai a frustra~ao
reserva territorial nao permitir a manutenc;ao dos padroes adap- do pacificador. Frust~ao que o levou no ano de 1954 a ter par-
tati VOS tradicionais, nao poderia haver outra opc;ao. Os indige- ticip~ao na morte de um indio•. Nesse ano, Hoerhan completou
nas agiram segundo um quadro de referencias que somente lhes 40 anos de atividades junto aos Xokleng, afrente da adminis-
poderia levar ao engajamento no Sistema economico praticado t~ao do Posto incligena. Nesse ano e por aquele fato, Hoerhan
pelos civilizados. Nessa situac;ao, e
importante a explicac;ao de foi destituido de suas fun~0es e acabou mjlrginalizado integral-
Hoerhan sobre essas mudanc;as, especialmente aquelas que ca- mente dentm do Servi~ de Prot~ao aos Indios. A essa epoca,
racterizavam, a sua derrota, e que demonstravam a sua impoten- os Xokleng haviam definitivamente se tornado habitantes seden-
cia para controlar todo o processo de interac;ao entre indios e tarios da reserva, no alto vale do ltajai do Norte.
brancos. Disse-nos o pacificador: "o primeiro responsavel por ,
nao ter podido realizar o que eu desejava foi o SPI. 0 orgao es- 2. VITIMAS DE BUGREIROS E SEU DESTINO
tava sempre sem verbas e nao havia organizacrao suficiente para Antes de se dar a pacific~ao dos Xokleng no Itajai, alguns
entender e atender a meus apelos. Ao ocorrer a pacifica<;ao, a incligenas foram trazidos a fo~a da floresta pam testemunhar 0

(1) - Veja-se Henry, J. ob cit., 98. (1) - Depoimento de Eduardo Hoerban. em 19/fT// 1965.

184 185
sucesso das razias dos bugreiros. A maioria desses eram crian-
c;as. Depois de apresentadas pelos bugreiros como curiosidade
as autoridades das colonias e ao povo; essas crianc;as foram
distribuidas entre institui9oes de caridade e, ou, pessoas inte-
ressadas. Poucas conseguiram sobreviver e se acomodar aos
padroes de cultura dos civilizados. Entre as que sobreviveram,
algumas ti veram oportunidade de obter instru9ao e vi ver expe-
riencias particulares no "mundo dos brancos". Outras , passaram
pela vida anonimamente, sendo lembradas apenas pelos morado-
res contemporaneos da fazenda ou vila onde viveram. Sohre os
primeiros; ·existem alguns relatos interessantes e permitidores
de uma visao do problem a da integra9ao individual de indigenas
na sociedade nacional. Nas varias situa9oes podemos verificar
que a marca de origem, a vinculac;ao genetica a um grupo indige-
na, devia constantemente servir para humilhar, submeter e "go-
zar" o individuo. Assim ele passava a esconder sua origem,
renegando os seus ancestrais que continuavam na floresta, ou
se convencia de que sua origem diferente era um estigma que o
fazia ruim, mau, bebado, mentiroso e malandro. Nas duas situa-
c;oes era sempre um marginal.
Um dos casos melhor conhecidos e sobre os quais existe
e
boa documentac;:ao o referente a india .Korikra, que foi entregue
ao Dr. Hugo Gensch, medico de Blumenau. Korikra, recebeu o
nome de Maria Gen sch e seu pai adoti vo publicou monografia (1)
a respeito de sua educac;ao, incluindo alguns vocabulos da lin-
gua Xokleng por eta relatados, que ao ser aprisionada tinha
mais ou menos 12 anos. Em depoimento a Darcy Ribeiro (1970:
398/ 99), Hoerhan contou que Maria Korikra morreu aos 42 anos
de tuberculose. Fal ava alemao e frances e, quando o pacificado r
tentava obter elementos para facilitar a atrac;ao dos Xokleng,
ela negou-se a falar de tudo que se rel ac ionava com os indige-
nas , seus a ncestrais, pais e parentes. No ano de 1918, s urgiu
a oportunidade de Korikra entrar em contato com seus pais: con-
tato desejado por seu pai adotivo. Hoerhan levou parte do grupo
a Ibirama , para um e ncontro com o governador do Estado, e o
Dr. Hugo Gensch des locou-se com sua mulher e filha a dotiva de
Blumenau para a sede daquela colonia. Ribeiro, (1970: 399/ 400),
baseado no depoimento de Hoerhan assim na rra o episod ic: "De-
pois de mui ta espera chegou a manha do e ncontro. Eduardo dis-

( 1) - Gen sch, Hugo, Die Erziehrung eines Ind ianerkindes, Praktischer

Beitrag zur L osung der si.idamerikanischen lndianerfra ge 1908, Berlim.

186

Maria Korikra e a familia Gensch. Reproduc;ao de Gerlach.

487
 •

pOs os iadios, colocaado i &eatc o pai de K:orikr~ o ma.is pres- e passava violentamente a mao pelo pesco~o de Maria, sem-
tigioso lider Xoklcng, .... tia, inai de sua me, e tres irmios, pre enojada.
ttcomcoclaado quc aatassc• be• os •isitaotcs e, sobtttudo, O velho segura a tia de Maria, toma um seio dela nas maos
quc nio os rodeassc• o tempo IOdo. Depois, foi buscar o lk. e diz : - "ve, estes seios te alimentaram, estes bra~OS te SUS•
Gensch, sua ilusttt csp0sa c Maria, uazcodo-os mono acima tentaram". E o odio e o asco sobem tambem no velho; Aproxi·
ao enconao dos iodios. Logo que yiraJa o grtq>O quc subiam, ma-se da filha, empurra·a violentamente e voltando-se para
corttra. a sea cacontto, cstacaram a pcqucna distiocia pergun- Eduardo, diz: - "Ela nao vale mais nada para nos. Mas para
taodo qucm cnua aquclcs. voce ela serve ainda. Toma-a, leve-a para sua Casa branca (a
Eduardo czplicou quc o •clho era o pai adotivo de Maria, sede do Posto) e emprenhe-a muitas vezes. Ela nio presta para
quc a criara coa o cariaho quc ja cootara. E Maria, pergunta- nos' mas para voce ainda pres ta".
ram, cbaaaaodo-a naturalmcntc K:orila:i, scu noaac tribal, pois nio Mesmo que se admita o romantismo relativamente exagerado
a reconheciam naquela figara csguia, •cstida numa blusa ele- do pacificador, o drama vivido por Maria Korikra foi bastante
gaote, saia bcm talhada e com a cabclcira clcgantemeDte arran- · doloroso. Mas nao foi o unico. 0 historiador Jose Ferreira da
jada Dum cbapeu. Eduardo a iodicou. Os iodios observaram-na Silva, responsavel pela organiza<yao e divulga<yao de farta docu-
um instante e avan~aram para cla, apalpaodo-a, incredulos. Lo- menta<rao referente ao vale do Itajai, ha pouco obteve elementos
go alguem se lcmbrou de procurar a .area tribal, cicatriz de a respeito da vida de uma outra india. Elementos de tal maneira
duas incisC>cs fcitas na pema csqucnla das mulhcrcs, logo abai- tragicos que ele preferiu esconder certos detalhes dos documen-
xo da rotula. Lcvantaram a saia da ~a para procuri-la. En- tos que consultou, especialmente os nomes dos personagens
quanto isto, outtos lhc anancavam a blusa, o pai tirava o cha- direta mente envolvidos. ~arra Jose Ferreira da Silva · sobre a
peu e dcsmaocbava o peotcado, tentaodo refazcr a imagem da india "Wat": (1). "O casal FF. adotou uma das bugrinhas que
filha t.io ccclo arraocada de seu coo•ivio, naqucla mocinba es- • foram apanhadas em uma batida, dada por Martinho Bugreiro, em
ttanba e apavorada. 1900 e tantos.
Alguem eDcoottou a marca tribal c todos se agacbaram para Essa menina, que era filha do cacique Kam-Rem, foi tratada
vcr: ko, ko, - aqui, aqui est&. E riscavam OS ootoqucs DOS joe- com todo o carinho. Deram-lhe instru~ao e educa~ao esmeradas.
lhos da ~a ao exa•ioar-lhe mais dctidamcDtc a sigla. Outra Chamavam-na Wat. Isso porque, em casa dos FF. so se falava
cicatriz produzida por fcrimeoto nmu qucda, quaodo criao~a, alemao e a menina tambem foi ensinado esse idioma. Mas, nem
foi eDcoDtrada Do lxa~o, e, eDt.io, ja nio havia duvidas, era ela. sempre, ou quase sempre, nao entendendo bem o que lhe diziam,
0 pai tomou eDttt as maooplas a cabe~a de Maria, para obri· a menina perguntava, pronunciando mal a palavra alemi, por um
ga-la a eocari-lo e perguotou: -Voce nio me reconhece? Eu sou natural defeito de dic~ao. "Was? (que quer dizer: Que?, o que? ).
seu pai•. Maria oio era so pavor, era mais asco que medo. Bei- Wat cresceu como se fora da familia, cercada dos mesmos
~os pregados nio dizia palavra, e o velho implorava e ordenava: cuidados que o casal dispensava aos proprios filhos, que eram
•fala, vocc me eDtende? Fala, (ala sc me recoohece•. Dr. Geo- n1u1tos.
scb, transido de medo, taoto temia pela propria sone como pela Quando ela ja estava moc inha os FF. mandaram ensinar·lhe
da pupila. A mic adotiva esgueira•a-se horrorizada. Ai o velho corte e costura, completando-lhe, assim, o ensino de prendas
cacique larga a ca~a de Maria com um safaoio, afasta-sc, domesticas.
olba a filba coa Odio e diz: Para tanto, arranjaram-lhe uma professora que residia em
- •Eu estou vcndo, vocc te• aojo de mim, tem oojo de tOda Itoupava Seca. Para que ela fosse, nos dias das li~oes, ate.ftou~
a sua gcnte•. pava, distante alguns quilometros da residencia dos FF., esses
Exibc as manoplas cDOtws c diz: mandavam-na de carro de mola.
•estas mios a carrcgaram •uitas vezes; estas mos levao- Tudo foi bem, ate que um dia, em que havia chovido muito,
tanua CSte Corpe>, pinhciro acima, para colhcr piohOcs quc VOCC
comcu. Estas •iDh•s mios w al~anu1 a aiuitas irvotts para
tirar 0 •cl quc voce cc.cu; 0 mcl, YOCC enteodc, mcl, mcl, que
desccu pG£ sua gargaota adcotro, aqui • - (1) - 1970: 231 / 32

188 189
deixando a estrada para ltoupava em mau estado, lamacenta e De princ1p10, os amigos procuraram contornar a situa~ao
escorregadia. Wat nao regressou na hora prevista. Da expecta- + com evasivas e informa~oes dubias, que nao afirmavam nada;
tiva, a familia passou ao sobressalto. Imaginaram-se mil coisas mas tambem nada negavam. Um deles, porem, mais positivo, re-
que poderiam ter sucedido a pupila india. Esperaram ate a ooi- solveu por as coisas em pratos limpos e disse, francamente, ao
a
te, ate 0 dia e OS dias seguiotes. Sairam procura da bugrioha, marujo, que 0 comportamento da india, durante sua ausencia,
mandaram emissarios, fizeram indaga~oes e nada! Passaram-se fora o pior possivel e que ela o enganava sempre que encontrava
semanas e meses e perdurava o misterio. oportunidad e.
Ate que um dia FF. recebem noticias de que a pupila en- Furioso, o amante ludibriado, armado de uma peixeira, par-
contrava-se em Joinville, hospedada em uma casa de prostitui- tiu para a casa da india, disposto a lavar com o sangue da per-
~o entregue a degradante profissao. versa o vexame a que o submetera. Prevendo isso entretanto,
FF. dispuzeram-se a ir busca-la, faze-la retornar a Blume- os amigos conseguiram, a muito custo, tirar da cabe~a do ma-
nau, mas amigos mais experimentados e mais prudentes dissua- rinheiro os seus tragicos designios.
diram-os disso. Prostituida, Wat encheu-se de molestias vene- Mas ele nunca mais voltou a
casa da amasia, abandonan-
reas, reduzida a um estado lamentavel que, os que ali, a explo· do-a.
ravain, viram-se na contingencia de expulsa•la do bordel. E ela voltou para a zona do meretricio. .
Aconteceu que um medico alemao, que se encontrava em Anos depois a familia FF. recebeu uma carta, que alguem
Joinville, apiedou-se dela e assentou de trata-la; no que pos ainda tem em seu poder, cedida que lhe foi pelos destinatarios.
todo empenho e t3da a sua experiencia. Cuidou dela, medicou-a, Nessa carta escrita em alemio, comovente, profundamente
curou-a ·depois de varios meses de tratamento. triste a mo~a india comunica que esta num leito da quarta en-
Depois, entregou•a aos cuidados da familia do Consul In- a
fermaria da Santa Casa de Misericordia espera de que a morte
gles em Sao Francisco do Sul, em casa de quern· ela encontrou, • a livre dos sofrimentos por que as molestias, com que se con-
igualmente, muito afeto e compreensao. taminara, a faziam passar. Agradecia, comovidamente, o bem
Aconteceu, eotretanto, que aportou a Sao Francisco, pouco que FF. lhe fizeram, criaodo·a e educando-a e pedindo-lhes
depois um navio da marioha . de guerra brasileira, com uma equi- perdao pelos desgostos e amarguras que as suas loucuras lhes
pagem de mais de uma centena de marinheiros. Numa de suas haviam . causado.
idas a terra, um sub·oficial, passando pela rua em que morava Wat morreu miseravelmente, naquele nosocomio e foi sepul-
o Consul, viu a india a janela. Voltou uma, duas, tres vezes. tada como indigente".
Impressionou-se com a figura da mo~a. Depois de algumas ten- Uma terceira india teve destino bastante diverso. Essa
tativas fracassadas conseguiu, afinal, falar com ela e concerta- personagem viveu em Blumenau com marido, filhos e netos. Cha-
ram amaziar-se. A belonave seguiria ainda para o sul, mas por mava-se Benedita lnglat. Benedita foi entregue por bugreiros ao
ocasiao do seu regresso, o apaixonado sub-oficial deixaria pas- Dr. Wiegand Engelke, medico residente em Joinville, que mais
sagem para que a india seguisse para o Rio de Janeiro, num dos tarde trans feriu residencia para .B lumenau. Segundo Ferreira da
navios do Loide Brasileiro. Silva (1960: 229/ 30) quando a menina completou 7 anos, o Dr.
Assim aconteceu e, na entao capital da Republica, os dois Engelke e sua esposa deram-lhe um missal, em cujas paginas
passaram a viver juntos. finais escreveram a historia de sua vinda para a sua companhia.
Depois de meses de vida em comum, o sub-oficial foi for- 0 doc'!mento diz o seguinte (1):
~ado, pela propria . condi~ao de marinheiro, a participar da via- "A nossa querida filha Benta.
gem do seu navio ao exterior. Antes que o navio deixasse o Rio, A 18 de agosto de 1883, apareceram muitos indios selva-
o apaixonado marujo encarregou tres amigos de vigiarem o com- gens, da ra~a dos botocudos (tambem denominados "bugres"), a
portamento da amante e partiu cheio de saudades. quinze quilometros a noroeste de Sao Bento, em uma ro~a situa-
Ao ver-se de regresso ao Rio, ansioso por estreitar nos
bra~os a companheira, o marujo procurou, antes saber dos seus
amigos o resultado a que haviam chegado no acompanhar os pas- (1) - Cf. tradu~ao de Ferreira da Silva, do original em alemao.
sos da amante india.

190 191
 besse falar.
da entre os rios Sao Bento e Negrinho, de propriedade do brasi- A 13 de dezembro de 1883, as 8 horas da man_ha, dep~i~ ~a
leiro Manoel dos Santos Siqueira e· comes:aram a apanhar milho santa missa a menina foi batiz ada pelo nosso amigo, o v1gano
verde. 0 dono da ros:a, acompanhado dos seus empregados e vi- Padre Carlo~ Boegershausen, na nossa matriz, em festiva .sole-
zinhos, atacou os selvagens, tendo, ao que consta, matado 28 nidade. Eu e a querida esposa Sofia fomos os seus p_adnnhos
e pegaram tres crian~as botocudas, um menino de, mais ou me- e recebeu, na ocasiao, o nome de "Benedita", ou, abrev1adamen-
nos, 8 anos, uma menina de 6 e uma outra de 2 anos. Foi o pro- te •Benta".
prio Manoel dos Santos Siqueira quern pegou a mais nova, quan- A 18 de dezembro de 1885, Benta foi cris mada pelo reve -
do esta, ao fugir, trope~ou e caiu. Na mesma ocasiao, ele arre• rendo Padre Joao Maria Cybeo, sendo-lhe madrinha de Crisma a
cadara um arco e uma flecha. tia Helena. -
Esses tres pequenos indios, foram entregues ao sub-dele- O que falta para completar esta historia, a querida Benta
gado do distrito, Francisco Antonio Maximiano, que os mandou podera contar pessoalmente.
vestir e dar-lhes agasalho. Para que a nossa queri<;la filha Bene?ita per~ane~a, por
Pouco depois, o presidente da provincia determinou que as toda a sua vida, tao gentil, tao boa, tao apli~ada ,e .tao p~edosa,
tres crian~as fossem mandadas para Desterro. Elas ja haviam como ate aqui, sao os nosso votos no seu an1versano, pois, fes·
sido trazidas em carro~a, ate Joinville, pelo oficial de Justi~a, tejamos, hoje, o seu 72 ano de vida.
quando o juiz de orfaos, Primitivo Gomes de Souza Miranda con- Dos seus sinceros pais
seguiu, em virtude de uma calorosa representas:ao nossa, fosse Dr. Wiegand Engelke e
revogada a decisao do presidente. Sofia Engelke, nata Graf.
0 rapaz, que no batismo, recebera o nome de Antonio, foi
entregue ao sr. Antonio Sinke, (em casa de quern, em Campo Joinville, 31 de mar~o de 1888, no sabado de Pascoa"
Alegre, morreu a 24 de junho de 1887). A menina mais velha, Entre os rapaze s a prisiona dos, doi s deles t iveram re~istro s
Estefania, foi entregue a Von Lasperg e a mais nova foi con- detalha dos s o bre sua educa9ao e encaminhamento na s oc1edade
fiada a nossa guarda. en vol vente. Francisco Cogogn Topp foi tu tel ado do Mo!1senhor
Era o dia 31 de agosto de 1883, antes do meio dia, quando Franc i s co Topp. Recebeu educa9ao dos j_esuitas_ de Sao .1:e~­
0 referido juiz de orfaos, mandou-nos a crians:a por intermedio poldo , Rio Grande do Sul, e des tinava-s e a ca rreir~ ecles1as h-
do ja falecido Frederico Jordan. ca. Na rra Fra ncisco Schaden (1946), entretanto que durance uma
Ela tinha entao, 68 centimetros de altura, magra, com os viagem a Europa, em companhia _do Monsenhor Topp, Cog~gn,
cabelos cortados curto e 19 dentes; estava com uma forte diar- que ja chegara a idade adulta, a~atxonou-se, no vapor, pela_ filha
reia. Calculamos a sua idade em dois anos e cinco meses e fi- dum rico faze ndeiro gaucho. Mais tarde, se casou com a JOvem
xamos, como data do seu nascimento, o dia 31 de mar~o de 1881. e tornou-se escrivao distrital no Rio Grande do Sul <; · · )
~1 ).
Quando mamae (a esposa do medico) tomou a crianfa, pela O outro rapaz chamava-se Pedro Andiro Nucle. Fo1 aluno
primeira vez nos bra~os, esta mostrou·se muito irritada e inquie- do Colegio Ca tarinens e e dele varios informantes se lembram.
ta; gritava e debatia-se terrivelmente. Mamae, porem, entrou
com ela em casa e po•la diante de um grande espelho, o que a
sossegou, quase que repentinamente. Naturalmente a crians:a
nao possuia no~ao do uso de colher, de escova de dentes, de
t
I

I
Oswa ldo Cabra l recorda que Nucle era t emido pela for9a de ~eus
punhos . No Colegio Catarinens e logramos levan~ar a sua. fic? a
escola r, de onde extra imos os seguintes dado s : 1906, primeiro
curso preliminar - media final 5;
pente, de banho; gostava, porem da limpeza e tinha 0 instinto
da ordem.
Nos dias seguintes ela aprendeu a dizer "papa" e "mama"
e nao tinham, ainda decorrido quatro semanas e ela ja conseguia
expressar alguns pensamentos em lingua alema; no idioma dos
l (1) - Schaden esc larece que d eve " est a informa~a o a Dona Di na, a ve-
lha c ozinheira do Monsenhor, que alias, s e mostrava profundamente
botocudos, porem, ela entao e ate agora nao deixou escapar uma revoltada pe lo fato de Cogogn na o ter corre spondido a expe c tativa do
unica silaba, embora, segundo tOdas as probabilidades, ja sou- Mon senhor".

192
1 193

L_~~~~~~~~~~~~~~~~~~----1:_.__~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
 1907, frequencia a curso preliminar, sec~ao superior (nao neceu ali colaborando em servicyos domesticos e rindo bast.ante
ha media na ficha). + quando alguem lhe dirigia algumas palavras, mesmo que essas
1908, frequeocia ao segundo curso preliminar; fossem destinadas a ridiculariza-la.
1909, frequenc ia ao l ll ginasial; No municipio de Ararangua, no sul do Estado, obti vemos
1910, 21l ginasial; informa9oes (1) a respeito da india Anita Brasileira. Ela foi
1911, repete o 21l gioasial; criada na casa do coronel Apolinario Pereira, primeiro chefe po-
1912, frequencia ao 31l ginasial; litico da regiao. Tornou-se professora e atuava numa escola iso-
1913, 4Sl gioasial; lada das vizinhan9as da cidade. Conversava muito hem e todos
1914, 5si ginasial." a tinham na conta de boa professora. Morreu na decada de cin-
Com base em ·r elatos feitos por esse indio, o Pe. Joaquim qtienta.
da Silva Tavares publicou um ligeiro ensaio sob re "Os Botocu- As demais informa9oes atingem em regra indios que viveram
dos de Sta. Catharina" (1). Nele se esclarece que Pedro foi apa- em fazendas e pequenas vilas. Elas, entretanto, sao precarias.
nhado nas imedia9~s de Angelina, com mais ou menos 8 anos Indicam a presen9a de "um bugre no alto da serra (Sao Joa-
de idade. Isto ocorreu no ano de 1905. Pedro foi solenemente quim-SCS) que para la9ar e campear era eximio"; falam de um
batizado na Catedral Metropolitana, em Florianopolis, tendo co- indio no Ararangua '<que morreu mo90, gostava de trabalhar, era
mo padrinhos o Cel. Vidal Ramos Jr. e sua esposa, durante uma forte, mas um tanto abrutalhado, desconfiado e viciado na bebi-
cerimonia em que outras quatro crianc;as Xokleng eram incorpo- da"; referem-se a indios criados por fazendeiros nos campos de
radas ritualmente a civiliza9ao eris.ta. (2). Nao ~ogramos, entre- Lages e por agricultores na regiao do Imarui (2).
tanto, obter indica9oes sobre 0 destino desse indio, a nao ser Como se ve, poucas foram as crian9as Xokleng que lograram
que em determinado instante e ainda sob orientac;ao dos jesuitas chegar 'a idade adulta e deixar alguma referencia
, sobre suas vi-
ele se mudou para o Rio Grande do Sul. ' a
das e acomoda9ao sociedade nacional. E compreensivel isto.
Levantamos dados sobre outros Xokleng. No Colegio Sagra- Alem de todos os problemas decorrentes da falta de resistencia
da Familia, em Blumenau, encontramos em julho de 1963 a india para as doen9as comuns dos brancos; das dificuldades imediatas
Ana Waldheim. Muiher com mais ou menos 65 anos, sempre so- de acei tar os pad roes de alimentas;ao e de vida sedentaria dos
freu de um disturbio psiquico, responsavel por sua identifica9ao civilizados; da supera9ao dos traumas psicologicos causados
entre as alunas do Colegio como a "Ana tola". Segundo relato durante a barbara razia cometida pelos bugreiros e da qual os
constante dos arquivos do estabelecimento, em «oovembro de personagens em questao sobreviveram; ha a considerar todos os
1905 foram recebidos pelo Colegio 14 indios - 12 crian~as e 2 problemas decorrentes da vinculac;ao a um grupo odiado, um
mulheres, apreendidos pelos bugreiros num de seus ataques. Ha- grupo inimigo. lsto fez de muitos desses infelizes personagens
via constantes tentativas de ·fuga por parte dos indios e por sua eternos bodes expiatorios e permanentes al vos de chacota e
vez as irmas providenciaram o imediato batismo das crian~as, "goza9ao" para adultos e crianc;as civilizados.
que mais tarde foram levadas por seus padrinhos. Os jornais da epoca trataram do assunto, emitindo opinioes
Em 29 de dezembro de 1906 chegaram 2 mulheres e 8 crian-
~as, dos quais a unica a ficar no Colegio foi Ana. As mulheres
lograram fugir ( ••• )". (1) - Depoimento de Sr. Andreas Hubbe, Ararangua, 29/4/63.
'
Ana ficou no Colegio porque nenhuma familia a quis rece- (2) - 0 caso de "Das Gregorio", indio que foi aprisionado por bugrei-
ber. Ela ja apresentava um comportamento excepcional. Perma- ros e educado por padres em Blumenau e que morreu em Ibirama, no PI
Duque de Caxias, e bastante referido. Contudo, tanto a bibliografia,
como infonna~oes obtidas diretamente, apontam "Das Gregorio" como
guarani: 0 fato ~ que ao tomar-se adulto, "Das Gregorio" nao se adap-
tou a v1da na C1dade de Blumenau. Hoerhan o abrigoo no PI, mas ele
era viciad? na bebida. Morreu apos ter sido surrado por indios do PI
(1) - In Broteria, serie de Vulgarizarao Scientifica, Vol x F por _hayer insultado ~ m~lher de Hoerhan. Segundo as informa~oes dis-
IV, Braga, 1912: 227 /86. y • ., asc. poruve1s, a morte fo1 ac1dental, uma vez que o indio sofria do cora~ao
(2) - Veja-se o "Pharo!", Itajai, 4/2/1905. (Veja-se, Schaden, Francisco, 1946).

194 195
 e levantando problemas a resreito da aceitas;ao e educas;ao de podiam afastar-se sem autoriza9ao expressa dos funcionarios.
crians;as Xokleng entre os civilizados. 0 Novidades, editado em A tranqiiilidade que os brancos desejavam obter, efetivada
Itajai, de 23/ 6/ 1907, diz "Aquelles que criam filhos de bugres a pacificas:ao no Itajai, obrigava a cessao de um territorio para
0 aldeamento dos indigenas. lsto, entretanto, nao foi facil obter.
como se ~ossem se~s proprios, deve se fazer uma vez a pergunta
se casanam suas ftlhas com os rapazes botocudos ou consenti- Ao tempo ainda dos servi9os de atra9ao, a Companhia Hanseati-
ria~ ligar seus filhos com mo~as de origem de c?roado}· Aqui c.a ha..via cedid~ 3;000 hectares de terras de sua concessao para
dev1a-se em tempo levantar uma barreira insuperavel. E de se f1xa9ao dos s1lv1colas. Essas terras estavam localizadas na
esperar que cada qual concorde que a mistura de sangue indiano regiao do Taio, onde a empresa pretendia instalar uma colonia
devera rebaixar os teuto-brazileiros. Deve-se tambem 'ficar en- integrada por brasileiros. Segundo Deeke (1967: 125) "ela doara
tendido a respeito que estes filhos de bugres sao um acrescimo as terras com o intuito de que nelas fosse fundada uma colonia
de popula~ao que nao e absolutamente desejavel e que nao traz nacional nas partes mais longinquas da concessao para acabar
vantagem alguma para o Estado ( .•• )". com o perigo que o indigena representava. Ela nao tinha o mini-
No ano de 1908, no seu numero 200, o Novidades volta a mo interesse em trazer esses indigenas ma is para perto".
abordar o assunto, dizendo "( ••• ) Nas correrias contra os bu- A pacifica9ao realizada por Hoerhan, entretanto, ocorreu as
gres foram apanhadas muitas crian~as, das quaes o governo deu margens do Plate, quase junto 'a sua confluencia com o Itajai
para crear e educar, parte a congrega~oes religiosas, parte a do Norte. Ali o SPI instalara um posto de atra9ao. E foi ali que
fam.ilias alemaes e brazileiras. A maior parte d' estas familias os indigenas come9aram a ser "amansados". Como esse local
, . ....
porem, parece que nao comprehenderam como e para que os fi-
' situava-se ao fundo do Vale do ltajai, quando este esbarra com
lho~ ~os indios devem ser criados. Evidentemente so para uma as escarpas da serra Geral, que forma a borda do planalto, e por-
pos1~ao de servente a qual corresponde ao carater subalterno da que a frente pioneira estava preocupada em desbravar as terras
ra~a a que elles pertencem ( ••. ) proximas ao nucleo de Ibirama, nao houve interesse imediato de
. ~ao falta occasiao em Blumenau de ver-se como as crian~as liberar essa area. 0 local tinha como acesso apenas o rio Itajai
do Norte. Os indigenas foram dessa forma se habituando ao ter-
apns1onadas de bugres, rapazes e raparigas, sao educadas e
tratadas com mimo. Enfeitam-os como se fossem filhos de se-
nhores, e os deixam ate tomar parte em festas de crian~as.
t ritorio que integrava a concessao da empresa colonizadora.
Com o passar dos anos, o posto de atra9ao transformou-se
Um filho de botocudo ou coroado que ostenta meias e sapa- em posto indigena,. Tornou-se imperiosa a fixa9ao do territorio
tos nao se persuadira que e alguma cousa melhor do que um fi- que deveria garantir condi9oes... de sobrevivencia aos silvicolas.
0 Servi90 de Protes;ao aos Indios, especialmente atraves de
lho de colono que anda descal~o? ( .•• )".
Dess a forma, compreende-se definiti vamente que no "mundo Eduardo Hoerhan, varias vezes fez sentir ao governo estadual a
dos brancos" nao havia lugar para indios. E mesmo o esfor90, necessidade de estabelecer em definitivo tal territ6rio. Entre-
a dedicac;ao e o carinho dados por algumas familias para asse- tanto, somente em 1926 o governo do Estado de Santa Catarina
gurar condi9oes .de sobrevivencia e educas;ao para umas poucas decidiu que os Xokleng ficariam definitivamente aldeados na
crian9as indigenas, foram insuficientes para mudar essa verda- area do Plate/Itajai do Norte. A companhia Hanseatica de Colo-
de. niza9ao teve de abrir mao de parte de sua concessao, quando 0
governo assinou o Decreto nSl 15, de 3 de abril de 1926. Dizia o
3. TERRAS PARA OS INDIOS SOBREVIVENTES documento: "O Coronel Doutor Antonio Vicente Bulcao Vianna
Efetivada a pacificas;ao dos Xokleng no alto vale do Itajai Presidente do. Congresso Representativo no exercicio do carg~
do Norte e no rio dos Pardos, necessaria se tornou a fixas;ao de de Governador do Estado de Santa Catarina, no uso de suas atri-
areas territoriais onde OS indigenas pudessem Se estabelecer. bui~oes e tendo em vista a necessidade de salvaguardar os in·
Essas areas permitiriam simultaneamente o confinamento e o teresses dos indigenas aldeiados no valle do Rio Plate, Distrito
"amansamento" dos sil vicolas, de maneira que os ci vilizados de Hammonia, Municipio de Blumenau,
das vizinhans;as logo se libertavam da inseguran9a em que vi- DECRETA
viam. Os indigenas, depois de atraidos, tinham que se sujeitar
a vi ver limitados ao territorio sob controle do Posto e dele nao Art. 1 - Fica reservado para usofruto dos indigenas aldeia-

196 197
 dos no valle do Rio Plate, Distrito de Hammonia, Municipio de tica e bastante elucidativo:
Blumenau, o territorio comprehendido dentro do perimetro abaixo
descrito: "llamooia, em 24 de julho de 1935.
ttPartindo do marco da medi~ao das terras sob n. 1701, na Exmo. Sr. Governador do Estado de Santa Catarina
linha colonial rio ltajahy Hercilio, collocado no travessao dos ,
lotes do rio Dollmann, pelo mesmo travessao ate o marco de can- A SOCIEDADE COLONIZADORA HANSEATICA L TDA, em
to entre os lotes 1713 e 1714, pelo travessao dos fundos da li- Hamburgo, com sede na vila de Hamonia, no municipio do mesmo
nha colonial acima referida ate o ultimo marco do canto do lote nome, por seu dire tor infra-assinado, vem respeitosamente pe-
n. 1725, dahi, com o mesmo rumo anterior ate encontrar o rio da rante V. Excia, expor e solicitar o seguinte:
Prata e pelo curso deste rio ate sua confluencia com o rio lta- Por decreto de 3 de abril de 1926, sob n~. 15, foi desapro·
jahy Hercilio, por este rio abaixo ate a sua barra com o rio priada a esta Sociedade, por utilidade publica, para usofruto dos
Deneke, deste ponto, com rumo leste verdadeiro, ate encontrar + indigeoas aldeiados no vale do Rio Plate, uma area de terras
a linha do perimetro da medi~ao da Empreza Colonizadora Bona com 4.143 hectares ou sejam 41.430,000 m2, com as confronta-
e Cia. e, pelas divisas das terras medidas para esta Empreza, ~oes indicadas no art. 1$1 do supra mencionado decreto, ficando,
ate encontrar o travessao, dos lotes da linha colonial do rio e
como obvio, o Governo do Estado de entrar oportunamente em
Weigand, e por este travessao ate o marco do lote 1201, coloca- acordo com a Sociedade, quanto a indeniza~ao a que tern direito.
do a margem esquerda do rio ltajahy Hercilio, pela linha lateral Quando pouco depois de publicado o decreto de desapropria~ao,
Norte deste lote ate encontrar novamente o rio ltajahy Hercilio em 23 de junho e 12 de agosto de 1926, se realizaram respecti-
e, por este rio acima, ate 0 marco do lote medido sob numero vamente em Hamonia e ltaiopolis, as audieocias a que presidio
1701, na margem direita do dito rio e dahi, pela linha divisoria o entao Inspetor Geral do Patrimonio do Estado, para entendi-
do mesmo 16te ate o marco ja descripto como ponto de partida. mento sobre a medi~ao da area desapropriada, entrou 0 entao
Art. 2 - 0 Governo do Estado, entrara opportunamente em procurador desta Sociedade com um memorandum em que, expos·
acordo COID OS proprietarios de terras, por Ventura, ficarem en- tos os fatos, pedia uma indeniza~ao justa, que satisfizesse a
cravadas dentro perimetro descripto no artigo anterior.
Art. 3 - Nenhuma medi~ao podera ser efetuada no valle do
T ambas as partes, assegurando-se a Sociedade, que as razoes por
ela apresentadas, seriam tomadas em considera~ao, para uma
Alto ltajahy Hercilio, antes de ser concluida definitivamente a solu~ao equitativa do pedido.
medi~ao das terras a que se refere o presente Decreto. I Durante dois anos, aguardou-se solu~ao que nao veio, nao
Art. 4 - Os processos das medit;oes ja effetuadas, mas obstante haver no relatorio de 10 de fevereiro de 1927, o entao
ainda nao legalizadas e que se refiram a concessoes feitas den- diretor desta Sociedade Sr. Jose Deeke, apelado para o entao
tro da area reservada pelo presente Decreto nao podendo ter Secretario da Fazenda, Via~ao, Obras Publicas e Agricultura,
andamento sem o "Visto" da Inspetoria Geral do Patrimonio do no seotido de se pronunciar a respeito de seu anterior requeri-
Estado. mento.
Palacio do Governo em Florianopolis, 3 de abril de 1926. Assim em 3 de mar~o de 1928, encaminhou o Snr. Jose
Deeke, ao Dr. Henrique Fontes, naquela epoca Secretario da
(a) Antonio Vicente Bulcao Vianna"
Fazenda, noyo pedido refors:ado por um requerimento dirigido ao
Estabelecida a area que OS Xokleng do Itajai deveriam usu- Diretor de Terras e Coloniza~ao, Snr. Caetano Deeke, solicitan-
fruir, eram necessarios procedimentos praticos a fim de estab...e- do providencias no seotido de ser resolvida a preten~ao desta
lecer a sua delimitac;:ao definitiva. 0 Servic;:o de Protec;:ao aos In- Sociedade. Infelismeote ambos os requerimentos tiveram o des-
dios, entretanto, andavn ~empre escasso de recursos financei- tino dos ja anteriormente enviados.
ros. Na area do governo estadual interesses varios tambem des- Sem desanimar, persistente no seu proposito, porque a So-
motivaram qualquer iniciativa. Dessa maneira, a area fixada pelo ciedade que ora vem ante V.Excia, nao reclama um favor, senao
Decreto de 1926 jamais foi delimitada. um direito que lhe e segurado, oficiou 0 signatario da presente,
0 seguinte expediente da sociedade colonizadora Hansea- em 18 de fevereiro de 1931 ao lnterventor Federal neste Estado,

198 199
General Ptolomeu de Assis Brasil, historiando minuciosamente neses e alemaes, houve um movimento de descida para as ca-
os passos ate entao dados e pedindo os seus oficios, para uma beceiras do Itajai do Norte, e portanto em dire~ao da reserva
solu~ao pronta e justa do caso. indigena. A reserva passou a ser assim pressionada por duas
Em 12 de maio de 1932, foi esta Sociedade informada por faces do mesmo movimento pioneiro. A face que subia o rio Ita-
oficio da Diretoria de Terras e Colonizas:ao, que a questao sobre jai do Norte teve pela frente a sede do posto indigena e espe-
que pleiteava, estava em maos do Procurador Geral do Estado, cialmente o dinamismo de Eduardo Hoerhan, d~ maneira que ao
afim de que este imitisse o seu parecer a respeito. Esse oficio, chegar aos limites do posto passou a contoma-lo. A face que
foi a ultima nota oficial a respeito. descia o Itajai ao Norte, atingindo a area indigena pelos fundos,
Como ve v.Excia., nao obstante OS continuos esfor~os des- nao encontrou obstaculo. A regiao era apenas visitada pelos. in-
ta Sociedade, nao lhe foi possivel ate hoje resolver o seu caso. digenas durante excursoes de ca9a. Uma empresa interessada
A boa vontade dos Governos, nao passava das promessas e nes- em negocios de madeira abriu uma estrada ligando Itaiopolis,
tas morna. sede municipal, ao rio da Prata, na altura de sua confluencia
No entanto, nada mais se pede que um direito, assegurado com o Itajai do Norte. Atras da estrada e dos madeireiros, se-
pela Constituis:ao Federal de 16 de julho do ano p. passado, em guiram os colonos faltos de terras da regiao. E foram se insta-
seu art. 133 n~ 17, transplanta~ao da disposi~ao identica da lando. A floresta virgem permitia algumas rendas com a derruba-
Constitui~ao de 91 e regulado pelas leis adjetivas brasileiras. da de madeiras de lei e a ro9a de coivara garantia, juntamente
Mais uma ves pois, torna a Sociedade Colonizadora Hansea- com a ca9a, a refei~ao diaria. Na decada de cinqiienta boa parte
tica Ltda., a presens:a do Governo de Santa Catarina, solicitando da reserva indigena estava intrusada e como havia interesses
a sua aten~ao para o direito que lhe assiste quanto a indeniza- significativos sobre os recursos florestais ai existentes, o go-
~ao da area que lhe foi desapropriada; pronta a enviar a esse verno de Santa Catarina provo<;ou um acordo com a 7~ Inspetoria
Governo a sua proposta quando esta lhe for solicitada, esta cer- do Servi90 de Prote9ao aos Indios, sediada em Curitiba, para
ta, agora de obter do espirito juridico e esclarecido de V .Excia., regularizar em definitivo o territorio indigena.
dentro das normas· da equidade e da justi~a, uma solu~ao defi- Em correspondencia que recebemos do Inspetor, Sr. Dival
nitiva desta questao, que se vem arrastando penosamente atra- Jose de Souza, entre outros constam os seguintes esclarecimen-
vez os anos. mentos (1): "Em 1952, em virtude de entendimentos levados a
Aproveitando o ensejo para reiterar a V.Excia. os meus pro- efeito pelo SPI, representado pelo lnspetor Deocleciano de Sou-
testos de estima e considera~ao, subscreve , za ( •.. ) e a Diretoria de Terras e Coloniza~ao desse Estado,
ficou acordado que revertesse ao Estado a area assinalada
SOCIEDADE COLONIZADORA HANSEATICA"
( ..• ), na aludida planta primitiva, o que foi feito com a finali-
dade de resolver a situa~ao de intrusos nela existences, ficando,
A regiao do Vale do ltajai foi colonizada por uma frente pio- entao, para os indios, a outra restante. Como corolario desses
neira que fundamentava sua atividade economica na explora9ao entendimentos, foi expedido o oficio ng 141, de 5/11/52 pelo
da pequena propriedade agricola. Dessa maneira, a frente avan- Sr. Diretor de Terras e Coloniza~ao, atraves do qual ficaram
9a va lentamente sobre as areas inexploradas na medida em que assentadas as bases definitivas das delimita~oes da area indi-
de uma gera9ao para outra novos lotes fossem requeridos para a
instala9ao das familias que se formavam. 0 movimento da frente
era lento, mas continuo. Nao e de se estranhar, pois, que ao
pass ar do tempo, a frente foi se aproximando da area indigena.
+ gena. ( ••• )
Apos uma serie de dificuldades burocraticas, falta de re·
cursos, entraves outros de elementos que ambicionavam avan~ar
nas terras dos botocudos, conseguiu-se,. enfim, no ano de 1956,
De Ibirama, subindo o rio Itajai do Norte, os lotes coloniais fo- concretizar a medi~ao e demarca~ao da area do PI Duque de
ram se distribuindo, originando alguns povoados e for9ando a Caxias" que acusou o total de 141. 565.866 m2.
abertura de caminhos vicinais. Esses , caminhos na decada de A medi~ao da are~ em apre~o, foi efetuada, tambem, de co-
cinqiienta atingiam a entrada do Posto Indigena. Simultaneamen-
te, da borda do planalto e cabeceiras do rio Negro; onde se es-
tabeleceram principalmente nucleos coloniais formados por polo- (1) - Carta datada de 19/ 10/ 1963. Arquivo do Autor.

+
200 201
mum acordo com a Diretoria de Terras e Coloniza~ao ( ••• ). obrigar a saida dos invasores da area indigena (1).
Vencida esta fase de obstaculos, sbmente, em 1959, houve Todos esses fatos ocorreram porque a reserva indigena nao ·
possibilidade de orgailizar e encaminhar ao Senhor Governador tinha ainda sido legalizada. 0 titulo .definitivo de propriedade
do Estado os processos de medi~ao dos dois Postos Indigenas nao havia sido expedido pelo governo estadual. Por isso, nao
- "Dr. Selistre de Campos" e "Duque de Caxias", - acompa- faltava quern pretendesse avan9ar sobre o territorio que estava
nhados dos respectivos requerimentos de expedi~ao dos titulos apenas "reservado" e ocupado pelos silvicolas. A situa9ao so-
definitivos ( ••• ). mente se resolveu em 1965, quando foi inscrito no Registro de
Nao fossem as artimanhas e as injun~oes sabotadoras dos Im6veis de Ibirama a area em questao, Conforme 0 documento
que nao perdem as esperan~as de espoliarem oossos indios, seguinte: "Luiz Isolani, oficial privativo do Registro de Imoveis
tentando, solerte e sub-repticiamente, subverterem o direito, es- da Comarca de Ibirama, Estado de Santa Catarina, na forma da
tariam aqueles indigenas usufruindo, tranquilamente, daquelas Lei, etc •••
terras dos quais sao OS primarios e naturais donos. Certifico que se acha inscrito no Registro de Imoveis desta
0 SPI, cumpriu os compromissos as_sumidos com o Governo Comarca de lbirama 1 Estado de Santa Catarina, no livro compe-
de Santa Catarina, nao havendo, portanto, qualquer dt'ivida sobre tence nil 3- l, e folhas 159, sob nil 21.150, na data de 26 de ou·
a legitimidade dessas areas" ( •.• )" tubro de 1965, a seguinte transmissao:- uma area de terras com
Essas informa9oes nos foram prestadas quando a reserva cento e quarenta e um milhoes e quinhentos e sessenta e cinco
indigena foi invadida por aproximadamente 300 colonos. Estava- mil e oitocentos e sessenta e seis metros e oito decimetros qua-
mos no ano de 1963. No Brasil inteiro falava-se de reforma agra- drados (141.565.866,08 m2), com o perimetro total de cincoenta e
ria. ·Uma autoridade de lbirama costumava dizer aos colonos quatro mil e oitocentos e cinco metros lineares (54.805,00 me·
faltos de terras: "voces querem trabalhar e nao tern terras; OS tros lineares), · situada no local denominado Posto Indigena Du-
indios nao gos tam de trabalhar e tem terras; agora 0 governo vai que de Caxias, Distrito de Jose Boiteux, Municipio e Comarca de
fazer reforma agraria e quern tern muita terra, da pra quern nao lbirama, confrontando ao norte com o rio Deneke, Wiegando
tem. Portanto, o certo e pegar a terra dos indios que e muita e + Reichart, Pedro Romao de Castilho, Ayr S.E.Santos, Serafim e
que tambem e do governo" (1). Aristides Miranda e terras devolutas; ao sul, com Eduardo Hoe-
Em nome da reforma agraria e pretens amente interessados rhan, Rio ltajai-Hercilio, Sociedade Colonizadora Hanseatica
nos problem as da escassez de terras que muitos colonos vi viam, Ltda; ao Leste, com Irmaos Berri e Sociedade Colonizadora Han-
autoridades e empresarios haviam armado toda uma trama. Por seatica Ltda; e ao oeste, com a lndustria e Comercio de Madei-
ela, eles teriam ass egurado a imediata explora9ao dos recursos ras S.A. e Sociedade Colonizadora Hanseatica Ltda, pelo valor
florestais que existiam nas terras que viessem a ser tomadas de quinhentos cruzeiros (CrS 500). Sendo Adquirinte Servi~o de
pelos invasores da reserva indigena. E tal nao ocorreu porque Prote~ao aos Indios, representando a tribo botocudos, e transmi-
OS Xokleng foram orientados para reagir a
presens:a indevida dos tentes Estados de Sta. Catarina (lnstituto de Reforma Agraria do
ci vilizados na reserva pelos funcionarios da 7!- Inspetoria do Estado de Sta. Catarina), tudo conforme o Titulo Definitivo, ex-
SPI. Entre os mecanismos que utilizaram nessa rea9ao, os indi- pedido aos 2 de outubro de 1965, e assinado pelo Presidente do
genas apelaram para uma greve, paralisando todas as atividades Instituto de Reforma. Agraria do Estado de Sta. Catarina. Regis-
que vinham normalmente desenvolvendo; para uma visita em co- tro anterior nao consta. 0 referido e
verdade e doi fe. lbirama,
mitiva ao govetno do Estado de Santa Catarina; e para a divul- em 26 de outubro de 1965 ( .• )"
ga9ao na imprensa e no radio de sups apreensoes quanto aos E importante se compreender que atraves do titulo definiti-
obj eti vos dos ci vilizados in vasores. A vista de tudo isto, o go- vo expedido pelo Governo de Santa Catarina, as terras eram ou-
verno estadual enviou um esquadrao da Polic ia Militar a fim de
+
(1) - Os detalhes de s se s fatos encontram-se nos s eguintes arti gos do
autor : · 1963, "A situa9ao atual da r eserva indigena Duque de Caxias ",
(1) - Segundo dec lara9oes de um informante. Essa autoridade era e e e 1966 (a). "Sabre mudan9a cultural entre os indios Xokleng do vale
dire tor presidente da maior empresa madeireira da regiAo. do ltaj ai".

202 203
torgadas a tribo. 0 SPI apenas servia como seu representante Sr. Alex Feigel, comerciante residente em Blumenau.
legal. Isto entretanto jamais fundamentou qualquer a9ao pratica. Sob o dominio do novo proprietario a fazenda· tomou o nome
0 SPI, enquanto existiu, usou a reserva como quis. No entender de "Maria~ne". Segundo informa9oes obtidas no local, os indige-
da maioria dos funcionarios do organismo, a terra era do Servi90 nas devenam ocupar a margem esquerda do rio dos Pardos de-
e nao dos indios. E atraves de preceito constitucional fixado fron te a sede da fazenda que se situava na margem direita. 'Mas
na Carta de 1967, as terras ocupadas pelos silvicolas passaram todas essas terras hem como uma parte da margem direita, foram
a incluir os hens da Uniao (1). requeridas ao governo estadual pela Empresa Colonizadora H.
As terras que integram a reserva indigena de Ibirama si· Hacker e Cia., que procedeu a divisao em lotes coloniais e ini-
tuam-se no alto vale do Itajai. 0 rio Itajai do Norte corta a re· ciou a sua venda. Os indios passaram entao a ocupar os Iotes
serva, formando um estreito vale. 0 Plate, afluente do ltajai do numeros 231 e 232, com a area de 268.000 m2, localizados na
Norte, forma no interior da reserva um vale secundario. Nas mar- margem direita do rio dos Pardos e fazendo extrema com a fa-
gens desses rios situam-se as casas dos indios, dos funciona· zenda Marianne. A empresa deixou-os ali, mas nao regularizou a
rios e dos civilizados que por mna razao ou outra vivem na re- propriedade que reconhecia. Os indigenas, liderados por Sebas-
serva. A area e bastante acidentada, com pontos onde as monta- tiao Pereira, tentaram legalizar as terras. Contrataram um agri-
nhas quase estrangulam o curso dos rios. A floresta sub-tropical l mensor para efetuar as medic;::oes, mas nao chegaram a requerer
domina toda a area. 0 clima e quente e umido no verao. No in- I a area pretendida. Foram dissuadidos pela informa9ao de que
verno as temperaturas caem bastante. Entretanto, o frio nao che- "Indio nao pode requerer nada ao govemo".
ga nunca aos extremos comuns na "serra acima", no planalto.
Raramente ocorre uma geada. 0 potencial natural da reserva,
+ A 7~ Inspetoria do SPI em Curitiba foi instada a intervir na
questao, sem nada efetivar. Pessoalmente, quando em 1964 rea-
representado especialmente pela flora, tern enorme valor. As ma- lizamos pesquisa de cam po nesse toldo, ti vemos oportunidade
deiras de lei, o palmito e o sossafras sao alguns itens deste de dirigir 'a lnspetoria expediente solicitando providencias para
potencia} que ha muito OS integrantes da Sociedade regional vem a legaliza9ao dessas terras (1). Nada de positivo, entretanto,
tentando explorar. A area favorece tambem a agricultura. As ter- + ocorreu.
ras do vale do Itajai sao consideradas como as melhores do Es- As terras ocupadas pelos indios nas margens do rio dos
tado para a pratica da agricultura. Pardos tern caracteristicas hem diversas daquelas do vale do
No Rio dos Pardos, no toldo S.Joao dos Pobres, municipio ltajai. Aqui a area e tipica de planalto. 0 terreno e mais OU me-
de Matos Costa, onde Joao Serrano atraiu e aldeou os Xokleng nos ondulado. 0 pinheiro do Parana e a imbuia predominam na
arredios que perambulavam por toda a regiao do rio Negro e Pal- paisagem. No inverno, as geadas sao constantes e, algumas ve-
mas, a situa9ao referente as terras necessarias a
subsistencia zes_, ocorre·m nevascas. Os lotes ocupados pelos indios estavam
dos indigenas foi bastante pior. 0 local onde Joao Serrano ins- cobertos por extenso pinheiral, quando ali estivemos. E ao fa-
talou a sua sede de trabalhos foi por ele reque.rido ao governo larmos sobre os interesses dos regionais sobre os pinheiros e
de Santa Catarina, como terras devolutas. Ali Serrano instalou sobre a terra que ocupavam, um deles nos disse: "eles tern ra-
uma fazenda que, na decada de cinqtienta, foi vendida para o zao; eles tern dinheiro; sao grandes; nos somos pequeninhos".
Os Xokleng que lograram sobreviver nas imedia9oes da ser-
ra do Taboleiro, entre os municipios de Paulo Lopes, Imaru{,
Sao Bonifacio e Sto. Amaro, tamberri necessitam de terras. Para
(1) - Art. 4? IV. No art. 198 da mesma Carta Constitucional se diz: "As
terras habitadas pelos silvicolas stio inalienAveis nos termos 'lUe a lei esses o problema e mais grave ainda. Continuam arredios e por
federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando isso necessitam que se resguarde o seu ambiente natural, para
reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e que possam continuar a viver. Nunca se pensou que nesse caso
de t6das as utilidades nelas existentes. 1? Ficam declaradas a nulida- os indigenas necessitam de largas. extensoes territoriais, pois
de e a. extin~ao ~o~ efeitos juridicos de qualquer natureza que tenham
por ob1eto o domm10, a posse ou a ocupa9io de terras habitadas pelos
silvicolas. 2? A nulidade e extinc;ao de que trata o paragrafo anterior
na~ dfto aos ocupantes direito a ...qualquer a9io ou indeniza9io contra a
Un1ao e a Funda<;Bo Nacional do Indio". (1) - Correspondencia dirigida ao Inspetor da 7~ IR, em 10/8/64.

204 205

+
 • •

s omente assim poderao ter condi9oes de praticar a ca9a e a co- to Florestal;

leta, seus meios tradicionais de subsistencia. No ambito esta- 3. na area em causa sobrevivem alguns indios Xokleng
dual tambem jamais se imaginou que a natureza deve ser preser- (Botocudo) arredios, pertencentes a um grupo que desde 1926
vada e por isso o governo costuma distribuir a quern interessar vem sendo pouco a pouco dizimado, seja pela escassez de ali-
a s terras que, sob o r6tulo de devolutas, formam seu patrimonio mentos, seja mesmo pela a~ao armada de civilizados;
(1). 4. a ideia de se atrair esses indios para uma pequena parte
Quando ob ti vemos os informes relati vos a presen9a ainda da area em questao, deve ser colocada de lado; visto as varias
de Xokleng arredios no Taboleiro, tratamos de solicitar ao go- experiencias feitas no pais terem revelado que os indios atrai-
verno providencias quanto a reserva de toda a area que com- dos e aldeados foram contaminados por doen~as que desconhe-
preende a serra. E procuramos esclarecer a interligayao dos fa- cem (gripe, pneumonia, sarampo, etc ... ) e os que sobreviveram
tores equiHbrio ecolc5gico e resguardo das condi9oes indispen- nao lograram, ate o momento, se integrar na sociedade ucivili-
a
saveis sobrevi vencia do grup6 arredio. Diziamos em nossa ex- zada" en vol vente. ·
posi9ao (2): Ac reditamos, pois, que Vossa Excelencia, representante
legitimo do pensamento humanista que norteia a sociedade bra-
«senhor Governador sileira, nao deixara de tomar as providencia.s cabivei~ ao caso.
Dirijo-me a Vossa Excelencia na qualidade de Professor do Sabemos, tambem, que Vossa Excelencia e originario do muni-
Instituto de Antropologia da Universidade Federal de Santa Ca- cipio que outrora englobava toda a area em questao e nao seria-
tarina e como responsavel pelo desenvolvimento de um projeto mos estranhos se por outras fontes Vossa Excelencia tivesse
de pesquisa sobre ttOs grupos indigenas de Santa Catarina", a ja obtido informa~oes sobre a existencia <lesses silvicolas.
fim de solicitar sua interven~ao em favor da cria~ao de um par- Poe isso mesmo, tomamos a liberdade de adiantar que o
que florestal na area da serra do Taboleiro (municipios de Santo Escritorio de Planejamento da Grande Florianopolis (Esplan),
Amaro, Sao Bonifacio, Imarui, e Paulo Lopes). atraves de seu Dire tor, Dr. Luiz Felipe da Gama D ' E~a, ja in-
As razoes des ta solicita~ao, prendem-se aos seguintes fatos: cluiu a regiao em causa como reserva florestal. Tambem o Ins-
1. na regiao da Grande Florianopolis nao existe outra area + tituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal , associado ao
florestal e faunistica importance com condi~oes de ser preserva- Departamento Estadual de ~a~a e Pesca, ja suspendeu as ativi-
da, frente ao objetivo de manuten~ao do equilibrio ecologico da dades de ca~a na regiao. E necessario contudo, que o Governo
regiao e tambem frente a necessidade paisagistica do centro me- de Santa Catarina, atraves de seus orgaos {Departamento de
e
tropolitano que a capital;
+
Ca~a e Pesca e Instituto de Reforma Agraria) e em associa~ao
2. a destrui~ao que hoje se efetiva na area em foco e
pro- com o Instituto de Desenvolvimento Florestal, proceda a efeti-
movida por ca~adores, agricultores e madeireiros. As atividades va~ao do Parque Florestal da Serra do Taboleiro.
economicas dos ultimos sao de pequena envergadura, 0 que fa- Creia Vossa Excelencia que em assim fazendo estara o
cilita qualquer processo de indeniza~ao, como tambem assegura Governo do Estado de Santa Catarina resguardando os interes-
que as praticas depredativas causam muito mais prejuizos ao ses de um grupo de silvicolas e ao mesmo tempo oferecendo uma
patrimonio estadual do' que lu«ros. Os primeiros, que exercem solu~ao humana e cientifica ao problema indigena em nosso
suas praticas por esporte, ;a tiveram suas atividades suspensas a
Pais. Alem disso, estara o Governo garantindo regiao da Gran-
- por recente Portaria do Instituto Brasileiro de Desenvolvimen- de Florianopolis uma reserva florestal e faunistica de grande
importancia, seja sob o aspecto ecologico, seja sob o paisagis-
( 1) - Na dec ada de cinquenta o Governo Federal pretendeu criar um ti~o ou turistico.
parque na enc osta da Serra Geral, que forma a b orda do Planalto, em Colocando-me ao dispor de Vossa Excelencia para os es-
tod o o Municipio de Sa•) Joaquim (antigo). A notic ia de tal parque logo clarecimentos que se fizerem necessarios, aproveito a oportuni-
o riginou um movimento de madeireiros, de maneira que em pouco toda a
are a f oi explorada em seus recurses floresta1 s . E ate hoje tal parque
+ dade para apresentar protestos de considera~ao e apre~o.
nao s e efetiv ou. Firma-se atenciosamente,
(2) Carta ao Dr. Ivo Silveira, Governador do Estado de Santa Catarina,
em 14-8-1968. Silvio Coelho dos Santos"

207
206
\
 Ate a epoca em que estavamos a e laborar a presente obra,
nenhuma palavra oficial havia sido dada a respeito do problema. dos Pobres, houve continuos desestimulos as praticas tradicio-
+ nais. "Acho que ninguem queria permanecer brabo e por is so
O governo foi substituido e para ~ novo ~overnador prepa~amos
e enviamos toda uma documenta9ao relativa ao assunto, 1nclu- nao ensinaram direito pra gente", diz um informante para se jus-
si ve o expediente acima transcri to. E estamos aguardando. Se tificar da falta de conhecimento dos anti gos costumes. Mas, a
OS indigenas que sobrevivem na area em questao nao chegam a
nosso ver, 0 principal foi a "situa9ao de acuados" que tiveram
comover, e provavel que as discussoes em tori:o de ecologia, de enfrentar OS integrantes dos varios grupos Xokleng. Atraves
poluis;ao e turismo venham provocar alguma as;ao governamen- dela no suceder dos anos, os grupos mantiveram apenas o mini-
tal. E se isto ocorrer rapidamente, garantindo o resguardo das mo i~dispensavel, preocupados apenas com a sobrevivencia.
florestas que cobrem toda a area do Taboleiro, e
possivel se Embora o projeto de pesquisa que desenvolvemos nao des-
tacasse a cultura tradicional, e nesse aspecto demos relati va-
prever que os Xokleng ali existentes continuarao sobrevivendo.
(1) mente pouco tempo ao tema, torna-se conveniente dar uma ideia
de como os Xokleng viviam antes da pacifica9ao. Para tanto
4. ASPECTOS DA CULTURA TRADICIONAL utilizaremos, alem das notas obtidas junto aos informantes, os
dados anotados na bibliografia especialmente em Paula (1922) e
Os Xokleng eram nomades. Vi vi am nas florestas que co- Henry (1941).
briam os vales e as serranias, entre o litoral e o planalto, no Os . Xokleng viviam separados em grupos. Grupos formados
sul do pais. Separados em grupos, dedicavam-se 'a cas;a e a Co- por SO a 300 indi viduos. Segundo Henry (1941: 5~) esses g~upos
leta. Ao serem atraidos ao contato pacifico com os branc~s, os eram cornpostos por familias extensas. Como nomades, v1v1am
Xokleng se apresentavam como integrantes de uma tribo que vi- perambulando continuamente pela floresta, em busca de alimen-
via acuada. Considerando a memoria tribal, OS ultimos duzentos tos. Na maior parte do ano, acampavam ao relento, sob as copas
anos foram vividos sob constantes lutas. Lutas com outros po- das arvores. O lugar onde a mulher arriava a tralha domestic~,
vos tribais, particularmente os Kaingang; com os brancos .ii;t~­ imediatamente transformava-se em local de descanso e de ah-
grantes das frentes pio;iei.ras que avan9avam so?re seu ternton~o + menta9ao. Era o acampamento. Ai os integrantes do grupo po-
tradicional; com os propnos componentes da tnb,o, :iuma p~ova­ diam ficar uma unica noite ou toda a semana. Algumas vezes se
vel disputa fratricida dos campos de ca<;:a dispon1ve1s. Dev1do a faziam ranchos, destinados a abrigar o grupo em dias de ~au
isto e porque a tribo respondeu as varias vicissitudes que te.ve tempo. Paula (1922: 121/22) narra que os Xokleng constru1am
de enfrentar com sucessivos arranjos, as informa<;:oes que dis- "os ranchos com varas finas, um as fincadas ao lado das outras,
pomos sobre sua cultura tradicional sao muito precar~as .. A a pouca distancia, que sao vergadas. em. forma de arco e presas
maioria dos informantes que tivemos durante as permanenc1as s~as pontas em uma pesada vara honzontal, geralmente f~xa em
em Duque de Caxias e S.J?ao dos Pobr:;s costumava .dizer ~ue duas arvores na altura de um homem. A forma do tecto e o de
"ouviu contar que era ass1m ou assado , ao se refenr a qual- abobada, sendo .c oberto com folhas de coqueiro, cahete ou xa-
quer item da cultura tradicional. Isto queria dizer que pessoal- xim ( ... )
mente nao havia vivido tal experiencia. Numa outra situa<;:ao, os Quando ha circunstancias que os obrigam a perm~necer e?1
mes~os informantes tinham dificuldades em detalhar aspectos determinado ponto por maior espa~o de tempo (colhetta de p1-
do fato narrado. Tudo porque em dias do presente somente so- nhoes festas etc) constroem seus ranchos com mais perfei~ao
brevivem algumas pessoas que ainda nasceram na floresta, ma.s e cap~icho, ~m maior tamanho, ligando as coberturas de dois
a
que epoca da atra9ao eram bastante jovens para terem cumpn- ranchos fronteiros, de modo que as ~aras arcadas de c~da rancho
do a maior parte do processo de socializa<;:ao, em termos tradi- nao fiquem ligadas a uma vara honzoncal, mas umas as outras,
cionais. Depois, tanto em Duque de Caxias, como em S. Joao formando entao uma aboboda perfeita ( ... )".
Em duas oportunidades, tivemos ocasiao de obter documen-
ta<;:ao original sobre as tecnicas de constru<;:ao dos Xokleng.
(1) Em abril de 1972, a imprensa nacional baseada em nota da FU~AI
abordou superficialmente a questao da existencia de Xokleng arred1os
Numa, obtivemos documenta<;:ao fotografica de um pc:ravento que
em SC. fora construido pelos indigenas encontrados e atra1dos em Or-
leaes, no ano de 1949. Noutra, conseguimos visitar e documentar

208
209

t
um acampamento utilizado pelos Xokleng, duran te tarefas de ex-
tras;ao de palmitos na floresta. A rusticidade dos ra nc hos era
e xtrema, lembra ndo de modo s ignific ativo o nomadismo tradicio-
na l do grupo (1).
Nas atividades diarias de cas:a e de defesa c ontra inimigos ,
os Xokle ng utilizavam o arco, a flec ha, a lans:a e a borduna. A
flecha apresentava varios tipos de ponta, de stinados a alvos di-
ve rs os . Em epoc a relativamente recente, no periodo da c oloniza-
s:ao, os Xokleng aprenderam a adaptar o ferro em suas pontas de
fle chas e lans:as . Procuravam dar, entretanto, as laminas de fer-
ro e as:o, obtidas nos assaltos que faziam a s casas dos colonos,
a mesma forma dada as tradic ionais pontas de OSSO e madeira.
T a l tarefa era pacientemente feita com o auxilio de pedras e, a s
vezes, de outros pedas:os de a~o ou li mas. A arma de guerra
mais utilizada era a borduna (2).
A cas:a era praticada pelos homens. Ela era a principal ati-
vidade dos Xokleng e era responsavel pela manutens:ao do grupo.
Segundo Henry (1941: 97) nos pequenos grupos de ca~adores sao
feitos com homens que sao parentes, como irmaos, como pais e
filhos, como afins ( •.. )".
Esses grupos viviam percorrendo a floresta em bus ca de
alimentos . Mas quando um homem regressava ao acampamento
sem ter logrado obter alguma cas:a, ele se beneficiava, juntamen-
te com sua familia, do que os demais integrantes do grupo obti-
veram. Nao havia, assim, cons umo individual dos hens produzi-
dos . A produs:ao e o consumo eram baseados em principios de
ampla cooperas:ao, de maneira a ass egurar participa 9ao e benefi-
cios para todos. Segundo um informante "naquela epoca todos
usavam tudo que era de todos ". Henry (1941 : 98) refere-se a o (I)

cos tume de que "quando um homem mata um animal ele raramente ....
0
0
fica com ele ( ... ); ele da para um outro rnembro do bando ( .. . ). ~

e
Sua ca~a propriedade de todos. 0 homem para quern ele da sua u
.
ca~a recebe a parte do leao (. .. ); ele cas:ador contenta-se com (./')
~
uma pequena parte". ;:::>
Mas s e somente existe para dividir um unico animal, este e '-...
<
equitativarrente distribuido entre todo o grupo. Isto porque em :::£
epoca de penuria todo 0 grupo divide 0 pouco alimento que con- 0
ll1!
s egue .

(1) - 0 indio Aipon Pathe, e m 11-7-63 contou-me como os Xokleng

-u
°"
v
0

fizeram uma casa "para Julio (Jules Henry - SCS) aprender c om o era" .
Tinha apenas uma agua e coincidia c om a d escri~o acima. Veja-se
H e nry (1941), PRANCHA I e pp. 164/66.
(2) - Veja-se Henry: 1941 : 166 e s eguintes .

Cl)
0 .
210 .... ...0
mu
...... l1I
.......
cu -
... v
< (.!)
 Alem da ca9a, os Xokleng praticavam a coleta de alimentos.
Frutas, pinhoes, mel e larvas eram a forma de complementar sua
dieta. E nis to todos se dedicavam. Num ligeiro deslocamento que
f izemos com al guns indios na fl ores ta da reserva localizada no
ltajai do Norte, observamos como todo alimento disponivel era
aproveitado. Toda indica9ao era atentamente explorada, de ma-
neira que numa tarde, e durante o trajeto que faziamos, foram en-
contrados cinco abelheiras e alguns troncos apodrecidos que for-
neceram uma quantidade razoavel de "cor6". As mulheres e crian-
9as, particularmente; nunca deixavam de es tar atentas para obter
algum alimento, ou seja de realizar atividades de coleta.
Para os Xokleng a fartura em alimentos somente ocorria en-
tre abril e junho, epoca em que 0 pinhao estava maduro. A Coleta
en tao era farta. Com o auxilio de cipos ou taquaras flexiveis o
Xokleng subia ao alto dos pinheiros, fazendo cair as pinhas.
Como tecnica de armazenagem, costumavam encher balaios com
pinhoes, tendo o cuidado de primeiro forra-los com folhas de xa-
xim e depois amarra-los com cipos. Com pedras servindo de an-
coras, esses balaios eram mergulhados em pequenos corregos.
Os pinh0es, assim guardados, durante dois ou tres meses, con-
•
servavam suas propriedades alimenficias. ..i::

Os Xokleng costumavam fazer uma bebida fermentada, com

base no mel, agua e xaxim. Em troncos previamente escavados,
OS ingredientes eram misturados e sujeitos a varios procedimen- ....II)
. -
0
u
ti!
.....
v
tlS v
tos, dos qua is se destacava o colocar pedras aquecidas no inte- . c:
rior dos cochos para acelerar a fermenta9ao. Segundo Deeke ... .
0 "11.1
.....u .....
(1922: 128) essa bebida somente era preparada por ocasiao da 0
festa de fura9ao dos labios dos meninos. Alguns informantes nos "...........
ti! .....
;:J
1)-o
ti!
disseram, entretanto, que apos o ritual de crema9ao, os indios II)
. o
0
.....
faziam uma festa, d_u rante a qual cortavam o cabelo da viuva. tlS"

Para haver a festa era necessario preparar a bebida . Nao conse-

ti!
........ s II)
v ti! .....
........... 0
guirr.os, entretanto, detalhes a respeito de toda a prepara9ao da ..... . ... 0

bebida, pois nao logramos exito em tentar estimular alguns 1n-

< ;.9 l.t..
formantes para fabrica-la .
Alerr do tronco escavado, usado em forma de cocho, os
Xokleng conheciam outras duas forrr.as de obter vasilhames.
Uma, atraves da cestaria. Outra, pela ceramica. A cestaria era
uma atividade essencialmente masculina. Balaios de varios ta-
manhos eram construldos para variados fin s. Des tacava-se en-
tre eles, o balaio forrado com cera de abelha , de modo a torna-lo
impenreavel. Ainda referente a cestaria havia uma faixa tran9a-
da, destinada a servir de alc;:a para a mulher voltear o balaio e
assim coloca-lo as suas costas, apoiando o outro extremo da al-
9a em s ua testa. Essa mesrPa faixa poderia se rvir, nas mesmas

212
 Jove m casal no presente.

condi~0es, para suportar uma crian~a as costas da mulher.

A ceramica Xokleng era produzida pelas mulheres. Ela era
pobre. De cor preta, os objetos tinham consistencia e tamanho
reduzidos. Seu acabamento era precario (1). Tudo a indicar que o
Constante vai e vem pela floresta nao permitiu 0 desenvolvimen-
to de tecnicas mais refinadas. Ocorrendo o contato com os civi-
lizados, os Xokleng logo descobriam o valor das panelas de fer-
t_o. Com isto, a ceramica praticamente desapareceu do grupo.
A base de estimulos, conseguimos que algumas mulheres fizes-
sem algumas pe~as de ceramica. Isto ocorreu em 1967. Na oca-
siao obti vemos os seguintes esclarecimentos da india loco
Aiu (2). "as panelas sao feitas com barro, misturado com carvao.
e
0 barro hem amassado e limpo. Depois de moldada, a pe~a fica
secando uma semana, mais ou meoos.
A seguir, faz-se a queima ouma fogueira ao ar livre. A pe~a
e envolvida num musgo, chamado barba de pau. Durante a queima
a mulher "reza" pedindo que a paoela nio se quebre".
A mulher Xokleng usava como vestuario uma enorme manta
enrolada na cintura, cobrindo seu corpo desde abaixo dos seios
ate OS joelhos. Essa manta etecida em fio de urtiga brava. A
tecitura e manual, tran~ando-Se um a um OS grOSSOS ·fios da fibra
de urtiga, dispostos em sentido horizontal e vertical. Nas noites
muito frias, essa tanga transformava-se em cobertor, abrigando
filhos e marido. A mulher costumava usar tambem colares, feitos ~ Ce rami ca reavivada para comercio.
de sementes ou dentes de animais. 0 homem, por sua vez, usava lbirama. F ot os de Gerlach e do autor.
apenas um pequeno feixe de fios em torno da cintura. Os fio:
eram cuidadosamente preparados de embira-a~u, e, as vezes
eram enfeitados com pequenas plumas coloridas de aves. Dess;
forma, quando em feixe, o conjunto apresentava tonalidades dife
rentes. Nesse feixe, o portador prendia a glande. Os homem
usavam tambem· um botoque no labio inferior. As mulheres, aind;
quando meninas, recebiam duas incisoes abaixo da rotula, Di
perna esquerda. "Era para ter perna forte para carr.inhar", disse
ram alguns informantes.
0 botoque para os Xokleng era uma especie de emblema tri
bal, usado pelas pessoas do sexo masculino. Quando crian~a

(1) - Ve j a- se Piazz a e Eble, ob, c it.

(2) - Cf. Depoimento gravado. N a ocasiao e numa rnistura de portu gu~
e Xokleng a informante realizo u uma reza apre ndida na lgreja Assen
bleia de Deus pedindo a Deus e a Jesus que as panela s que nos fora:
entregues nao se qu e brassem durante a viagem de re gresso a Flori~
nopoli s .

214
 em cerimonia festiva , o menino tinha seu labio inferior furado,
para permitir a introduc;ao de um pequeno tembeta. Com o passar
dos ano~. o tembeta ia sendo s ubs tituido por outro ma ior, ate o
infante atingit a idade adulta. A festa rea lizada para a perfura-
c;ao dos labios das crianc;as reunia toda a tribo ou pelo menos
algumas das hordas. Segundo as informac;oes obtidas, confirma-
das pe las fontes bibliograficas, tal cerimonial era o t'.inico que
conseguia reunir a maior parte da tribo.
Os Xokleng costumavam cre111ar seus mcrtos. Paula (1922:
126) informa que -"o mesmo fazem com as crean~as de ambos os •
sexos quando puberes; quando pequenas' porei,n, sao enterradas.
Conjuntarnente corn o guerreiro sao queimados todas as suas
arrnas e demais utensilios do seu uso pessoal. Inc inerado o corpo,
recolhern, no sol se.c-uinte, as cinzas, quedepositarn e rnumburaco
redondo , previarnente forrado com cascas e folha s de arvores, sen-
do e ntao tampado com terra e sobre a qual collocam rac hoes de .
madeira, construindo-, por cima de tudo, um ra ncho( ... ).
0 fogo e ra obtido pela fricc;ao de dois pedac;os de madeira.
- (IS
c
.....0
De preferencia, na ida de um acampamento pa ra outro, os indige-
nas trans portavam al guns ti9oes para facilitar o acender as no-
vas fogueiras. No jogo costumavam assar a carne das cac;as a ba -
t idas ou pinhoes . As vezes, preparavam o moque a do. E s te s eguia (IS
....
::s
a tec nica de cavar um buraco e acender uma fo gueira em seu in- .........::s
te ri or . Depois da terra es tar bem aquecida, a lenha que estava a u
arde r e ra retirada do buraco. Em seguida, com folhas, toda a co- (IS
va e ra revestida. Colocava-se a seguir em seu interior a carne a
cobria-se novamente com folhas e terra. A carne moqueava-se " I/)

' 0
.........u
lentamente no ca lor da terra aquecida, s endo somente retirada do
buraco um dia depois . Segundo alguns informantes, o sabor era I/)
.
...c::
otimo e toda carne ficava bem cozida e macia. ·-.... u(IS
v _
· Todos esses fatos sao hoje lembrados como sendo "coisas ........
u Q)
da epoca em que eles viviam no mato". Ou "que era coisa dos ~ l'.)
(IS Q)
velhos, quando eles eram brabo". Isto e justificativa para que a u -0
tota lidade dos indigenas hoje nao saiba esc larecer varios aspec- I/) 0
0 l(IS
. tos da vida na floresta e especialqiente desconhec;a detalhes so- .... u-
bre o pouco que consegue lembrar. 0 aparecimento dos brancos JSQ) -0::s
na floresta e a seqiiencia de guerras a que vivia s ubmetida a tri-
....
.... 0....
< 0..
bo, foram assi m narrados por um informante (1): "Waneki saiu e
foi pe lo ma to. Abriu picadao. Descobriu piano bonito, cheio de
pinheiro. Ai voltou e disse i;ra Chuvai. Convidaram gente e abri-
ram pic adao e foram la. Veio urubu e ele matou . Waneki matou.

,
( 1) - Indi o J uvei Mula , entrevistado em 15 / 7 / 65.

216
 •

que o grupo estava vivendo sob condic;oes excepcionais. E na

Tirou pena de le e trouxe para o pessoal. Acharam bonita. E fo-
luta pela sobreviveocia fisica parece que somente o indispensa-
ram tudo para cima. Chamaram gente e fizeram uma casa para mo-
rar. Gente chegou e ele aprontou festa. Dai come~ou a dar pintu-
ra. Tqcaram fogo na casa e fizeram carvao. Ai pintaram as pintu-
+ vel era mant ido em termos culturais. Por isso mes mo procuramos
abordar a tematica organiza9ao social, justapondo dados referen-
tes ao periodo anterior 'a atrac;ao do grupo tribal e 'a epoca pre-
ras. Eles acharam bonito. Waneki mandou fazer flecha. Fez ou-
sente. E usamos fartamente os elementos disponiveis na biblio-
tro picadao. Fez outra festa. Fizeram festa; churrasco. Veio
grafia, especialmente os apresentados pelo antropologo Jules
civilizado. Tempo em que eram amigo. Dai perguntou de onde
Henry, que conviveu com o grupo durante 14 meses. Pretendemos
ele veio. Ele disse que veio da estrada. Dai dizia que a estrada
dessa forma compensar as limitac;oes apresentadas por nossos
era dele. Born, nos somos amigo, pode viajar pela estrada. Dai
informantes, pois Henry teve 'a sua disposic;ao alguns indios ido-
Waneki mandou a gente dele fazer outra estrada para frente. Dai
sos que tinham largo conhecimento da vida tradicional, na flo-
outros chegando. Cada dia vai chegando gente. Cada dia vai che-
resta.
gando branco. Waneki dizia para gente dele. Eles sao nosso
Ao abordar a organiza<;:ao social dos Xokleng em sua obra,
amigo ·e andava com eles ....Ate que branco deu espingarda, que
ele achou muito pesado. Ele trocou espingarda com as armas Henry deixou. explicitado:
dos indios. Waneki ·primeiro nao tinha roupa. Ai chegou um Indio - que os Xoklen'g dividiam-se em familias extensas, forma-
com roupa. Dai Waneki disse: voce grande amigo, pode via jar das de 50 a 300 individuos (1941: 50);
comigo. Vamos viver junto; ele diss~. Dai o indio viajou com - que eles nao tern nenhum Sistema de clas OU metades que
ele. Os brancos chegou de novo. Dai Waneki dizia para ele Kake: lhes imponham obriga~oes sociais ( .•. ) e sao um povo sem senso
(am~go, ~eu amigo). Dai eles convidaram eara festa dele, ~ deu de forma~ao social (1941: 33/36);
beb1da de le para os brancos. Os brancos nao quizeram beber. Os - que eles possuem um sistema de parentesco que nao a e
brancos foram embora. Waneki foi com a turma e festaram. Ate cristaliza~ao de obriga~oes inevitaveis ... mas um piano para
~cabar de festar, a flecha que ele mandou fazer estava pronta. agrupar pessoas em grandes classes de idade ( ... ) e que a formu-
Ele foi mais adiante. A turma dele foi adiante, fazendo estrada. la~ao desse sistema e puramente teorica (1941: 36 e 177);
E ele foi atras. Fizeram outra festa. Os brancos chegou. E foram - que eles apresentam uma tradi~ao mitica que relaciona
embora. Os indio ficaram festando. Dai Waneki mandou fazer fle- certo heroi cultural com 0 sistema exogamo de matrimonio, ba-a
cha de novo. Ele resolveu guerrear. E os brancos achou que os se do que a tribo estava dividida em cinco grupos, cada um de-
indio nao era amigo dele. Os brancos voltaram. Convidaram ou- les associado a uma serie de nomes pessoais e um desenho que
tros para fazer guerra. Waneki soube que vai haver guerra. Man- seus membros usavam para pintar seus corpos. Mas na pratica a
dou fazer flecha. Preparou tudo. Ai come~ou a guerra. Guerrea- fun~ao das pinturas cor IDrais era exclusivamente magica (1941:
ram. Mataram tudo. 0 resto se partiram tudo e Waneki foi embo- 88);
r~. Ou~ro indio, Koza~ reso}veu g....uerrear de novo, porq~e nao sa- - que eles praticavam casamentos e casos amorosos entre
b1a ma1s quem era am1go dele. Fez fes·ta grande. Conv1dou gente todas as classes de parentes, exceto entre os pais e filhos ocor-
e ~les brigaram. Ai continuaram a brigar sempre". rendo a monogamia, a poliginia, a poliandria e o casamento con·
junco (1941: 19,29 e 33);
5. DISCUSSAO SOBRE A ORGANIZA\:AO SOCIAL - que eles nao tern um sistema fixo por que se de nomes as
Focalizaremos agora aspectos da organizac;ao social dos crian~as, pois em geral os parentes proximos dao os nomes de
Xokl~n~. 0 tema e ~a::-tan!e complexo. Os :C<;>kleng se apresenta-
seus proprios parentes proximos a crian~a recem-nascida (1941:
vam. a epoca da pac1f1ca9ao como um dos un1cos povos referidos 176). .
na literatura etnologica que admitiam praticar todas as formas E evidente que Henry nao logrou formular um modelo da or-
possiveis de matrimonio. Ou seja, praticavam a monogamia, a ganiza9ao social Xokleng. Embora os dados que apresenta sejam
poliginia e a poliandria. E apresentavam dados que tornavam reais, nao ha a considerac;ao explicita de que o grupo sobreviveu
plausivel a ocorrencia de Casamento conjunto. Alem disso, nao gra9as a uma serie de arranjos organizat6rios. Nesse sentido,
tinham regras explicitas quanto a fixa9ao de residencia OU Cla- Murdock (1949: 62/ 63), considerando os dados disponiveis na
ros principios de descendencia. Tudo isto, evidentemente, por- bibliografia, sugere que os Xokleng estao organizados em

219
218
 •

unidades de parentesco do tipo Deme - o que naturalmente subs-

titui a nos;ao de "familia extensa" empregada por Henry (1). 2) mbedn - marido, homens com quern uma mulher teve rela-
De outra parte, evidencia-se que Henry percebeu as incon- c;oes sexuais; homens com marcas diferentes de uma mulher, e
gruencias apresentadas pela atividade social dos Xokleng. Ele com quem, porisso, tais rela~oes sao "permissiveis".
afirma (1941: 59) que «Em sua ociosa teoria social e curioso 3) yu:gn - Pai; avo; todos OS homens mais velhos que Ego;
sistema de pinturas corporais a soc iedade Kaingang (Xokleng- homens que tiveram rela~OeS com a mae de Ego;
SCS) tra~a algo que mostra ter havido um sistema social mais 4) nyo (n) - Mae; avo; codas mulheres mais velhas que Ego;
complexo". mulheres que tiveram rela~oes com o pai de Ego;
Mas nao houve tentativa desse autor em explicar o que ob- 5) nyu:ngnye.n - todos parentes consanguineos, exceto os
servou entre o grupo, frente a um modelo que envolvesse a "oci- pais reais e avos e irmaos dos pais e ~s proprios f ilhos. T odos
osa teoria social" e explicasse o "sistema social mais comple- membros da mesma familia extensa. E frequentemente usado,
xo". Pois no seu interior ainda funcionavam certos mecanismos especificamente para os irmaos de Ego, irmas, e primos primei-
estruturais que eram capazes de operar determinadas esferas da ros, e para alguem da idade identica a de Ego. Neste caso o ter-
sociedade Xokleng. mo torna-se rec iproco; Pode ser tambem us ado para alguem pou-
A terminologia de parentesco apresentada por Henry (1941: co mais velho que Ego. Todos individuos que tem a mesma mar-
177/78), integralmente confirmada por nossos informantes, a e ca de Ego.
seguinte (2). 6) yavi 0 - todas as pessoas muito mais jovens que Ego.
«1) plu: (n) - esposa; mulher com quern um homem teve re- 7) yi 0 - crianc;as; tooas as pessoas muito mais jovens que
la~oes sexuais; mulher com marcas diferentes de um homem, e
Ego e as crian~as de tOdas as pessoas com quern Ego teve rela-
com quern, porisso, tais rela~oes sao «permissiveis,,. c;oes sexuais.
8) Kie (n) - prole. Antas e caes possuem (Kle (n), mas fa-
(l) - A caracteriza9ao de Murdock (1949:62/63) para Deme e a seguin- lar de yi de animais provoca risos
te: this group is most cleary observable in the endogamous local comu- 9) yomble - (plural) ya gnmble, todos parentes consangui-
nity wich is not segmented by unilinear consanguineal groupings of neos de n? 1 e n~ 2. Num sentido mais limitado, codos os n~ 5 de
kinsmen. By virtue of the rule or strong preference for local endogamy,
n~ 2 e n? 1 com exce~ao dos primos segundos e seus descenden-
the inhabitants are necessarily related to one another through intermar-
riage, although they cannot always trace their exact kinship connecti- tes e primos primeiros desde que cenham sido removidos e seus
ons. They are consenquently bound to one another not only by common descendentes;
residence but also by consanguinity, as is, in fact, usually specitically 10) lengle - conjuge; "
recognized. Within such a group the only social structuring is commonly
into families, wich may be of either nuclear, polygamous, or extended
11) Kake: - relac;ao. Este termo nao e
tao rescrico em sua
type. Except for family ties, the strongest sense of identification is aplicac;ao quanto o nc 5, sencido de que seu uso pode extender-
usually with the community as a whole, wich is viewed as a consan- se para fora da familia excensa. E usado regularmence entre pri-
guineal unit in relation to other communities in a manner quite compa- mos d~ codas classes, raramente para tia, nunca para irmao ou
rable to the attitude towards one's own sib in a unilinear society". irma. E um termo de cortesia para pessoas nao consanguine as.
(2) - Gra9as a colabora9ao de Yone Leite, do Museu Nacional, e de {l).''
Paulino Vandresen, do Depto. Letras da UFSC, adotamos na transcri9ao
dos t~rmos de parentesco e referentes aos grupos de pintura os sinais
foneticos sugeridos por Mattoso Camara Junior, em "Manual de Trans- (1) - Baldus (1952:77/ 79) estudando a terminologia de parentesco dos
cri9ao Fonetica", Museu Nacional, serie A, n? 2, 1957. As vogais tern as Kaingang do Rio Grande do Sul afirma que esse grupo difere dos Xo-
seguintes conota9oes: a como no portugues em pato; e como no portu- kleng e estabelece compara9oes entre OS termos por ele obtidos e OS
gues em pe; e: como no portugues em veja; e(n) como no portugues em apresentados por Jules Henry, a fim qe contribuir para o estudo do pro-
pente (com "e" mais aberto); i como no portugues em riso; io e seme- blema da classifica9ao dos Xokleng. Esse autor afirma haver ob ti do dez
lhante ao "u" de tu, sem arredondamento dos labios; o como no portu- termos ::... "ainda que com ligeira varia9ao de pronuncia" - dos onze
gues em pote; o(n) como no portugues em ponta; u: como no portugues enumerados por Henry. Segundo Baldus, faltam na nomenclatura colhida
em luto; u: (n) como no portugues em comum. As consoantes seguem por Henry, alem do termo ve: (irma), os termos by (sogra e sogros po-
aproximadamente os mesmos valores que no portugues. Os nomes pro- tenciais) e Kakre (sogro e sogros potenciais) hem como qualquer termo
prios foram registrados tomando-se por base o portugues e de acordo c?m o signi~i~ado expre_ssamente ir,tdica~o de ~enro e nora - pois "no
com os registros usuais no PI e na escola indigena. s1stema familiar dos Ka1ngang matnloca1s ... ha necessidade absoluta
daqueles termos".

220
221
 anos atras um grande numero de pessoas tinha nomes de pelo
A mem6ria tribal guarda tambem elementos que indicam ter + menos. dois grupos e_ um ~umero consideravel tinha ?o?1e d~ tr?s·
havido pelo menos cinco grupos ex6gamos dentro da sociedade Assim, os grupos nao sao separados. Dentro dos hm1tes obv1os
Xokleng. Esses grupos ate hoje sao .relacionados a uma serie de da investiga~ao historica nao formavam a base para qualquer or-
nomes pessoais e de desenhos corporais. Assim os individuos ganiza~ao sistematica. As marcas nao sao passadas sistema!_i-
se apresentavam nas festas cerimoniais ostentando no rosto, no camente dos pais ou de qualquer outrO' parente para a gera~ao
peito, nas costas e nas coxas pinturas negras, feitas com carvao mais jovem e nao ha UID Sistema fixo por que Se de OS nomes as
moido, indicativas do seu grupo. As denomina9oes dos varios crian~as. Em geral, os parentes proximos dao os nomes de seus
grupos e respectivas pinturas sao as seguintes: (I) a
proprios parentes proximos crian~a recem-nascida ... que pode
Me vi 0 dn (pintura em pontos • • • ter de 1 a 8 anos" .
cheios) • • • Esses dados tam hem confirmamos. Mas parece que Henry
(pintura em tra~os ~ e
nao percebeu que O Sistema de nomina9ao a estrutura basica
Kale:bn
I f da ,sociedade Xokleng, pois atraves dele e que o individuo in-
Ku:i 0 ke .n
verticais)
(pintura em peque-
nos cfrculos)
0
0
'
0
0
0
0
gressa no grupo e obtem u.ma posi9ao social determinada.
Assim, a crianc;a recem nascida ao receber seus nomes de
um parente - ou de q\lalquer membro do grupo - , nomes esses
Me:to:papa (pintura em peque-
nos circulos che-
• • • que ja pertenceram a um individuo falecido, obtem ingresso no
ios)
(Kane 0 m - segundo Hep.ry)
• • • mundo tribal atraves da identificac;ao e da posi9ao social que
lhe e conferida com os nomes. Sua posic;ao e a mesma que a do
individuo falecido e como ele sera tratada. Pertencera ao mesmo
Zo:zi (pintura em tra~os grupo de pintura que o individuo falecido pertencia. Sera desig-
horizontais asso- n ada, atraves da terminologia de parentesco eparticul armente pe-
ciados a tra~os la pessoa que a nominou, da mesma maneira que se designava o
verticais) • sujeito desaparecido - numa evidente quebra de principio de ge-
(Kak:te.ng Ku Kale:bn - segundo Hen- ra9ao.
ry) Essa, por exemplo, e a situa9ao que ocorre na familia da
Na atualidade, pouca coisa da organizac;ao social tradicio- ·m enina Kakzi Kucho, que possui o mesmo nome que a mae da
nal persistiu entre OS Xokleng. A tendencia do grupo e compor- mae de seu pai (mmP). Seu nome foi escolhido pelo irmao da mae
tar-se a maneira dos brasileiros da area e, nesse sentido, 0 Ca- de seu pai (ImP) e todos os componentes da familia tratam-na
samento monogamico, a residencia neolocal, o compadrio e o uso da mesma maneira que tratavam a velha Kakzi Kucho ha muito
da terminologia de parentesco da sociedade regional, sao situa- desaparecida.
9oes comuns e, pode-se dizer, desejadas pelos membros do gru- As rela9oes que mais nos interessam, podem ser assim es-
po. Contudo, poucos sao os Xokleng que possuem nomes em por- quematizadas:
tugues - pois o comum e desejado e nomear as crian9as atraves 0 Kakzi Kucho
dos caminhcs tradicionais. Por que isto ocorre? Por que os com- +
ponentes do grupo tribal tanto se esfor~am para se comportar co-
mo brancos e ao mesmo tempo enfatizam a necessidade de no-
mear as crian~as recem-nascidas com o~ nomes tradicionais?
Henry (1941: 176), considerando os cinco grupos de pintura
6 1-1
u
6 5 2
que a tradi9ao Xokleng guarda, diz que "ate mesmo ha duzentos 3

4 Kakzi Kucho
(1) - Henry. 1941: 175.

223
222
 Ego deu o nome de sua mae para 4 (fFi) e trata-a pelo mes- Brasil Simas - que vive na reserva com sua familia e q~e ~re~te
mo termo que tratava sua mae, OU seja nyo: (n). 0 mesrno aconte- + · a chefia do P .I. e considerado indio e como tal recebe ass1sten-
ce com o irrnao e a irma de ego, n? 6 e n? 2, respectivamente. cia - foi acusado pelos Xokleng de atuar contrariamente aos
0 termo "norne", na lingua Xokleng, corres ponde a "az 'iz' interesses do grupo. "Ele e mestic;o, nao anda conosco, nao vem
ii" e qualquer individuo pode ter de um ate oito "az'iz'ii" (1). a nossa igreja, nao gostamos dele" - disseram -me diversos in-
Assim, ao enunciar seu nome - ou sua serie de nomes - o indi- formantes. Tudo isto por que Adolfo B. Simas nao possui nomes
viduo mostra ao interlocutor que esta identificado com o grupo tradicionais (1).
tribal e fornece, tarnbern, o grupo de pintura a que esta vincula- Considerando a nominac;ao como meio de identificac;ao tri-
do, pois todos os componentes da tripo deveriam conhecer - em- bal, v~rificamos que na reserva existem 204 individuos que pos-
bora isto nao ocorra atualmente - a relac;ao entre os nornes e os suerr nomes tradicionais (Censo realizado em 1964).
grupos de pintura, alem das relac;oes <lesses com o sistema ex6- Paralelamente, observou-se que a distribui9ao <lesses indi-
gamo de matrimonio - que,· segundo a tradi9ao , existia entre os
Xokleng.
+ viduos Segundo OS grupos de pintura e a seguinte:
103 pertencem ao grupo .Me .vi 0 dn (termo que designa a
Embora entre os Xokleng. a formulac;ao dessa organiza9ao pintura em pontos );
seja "puramente teorica" - como enfatizou Henry-, ha uma se- 82 pertencem ao grupo Kale:bn {termo que designa a pintura
rie de situac;oes atuais que esclarecem nosso raciocinio e mos- em tra~os verticais); .. . .
tram que, pelo menos, o mecanismo basico de operac;ao da or- 5 pertencem ao grupo Ku:i1.. ke.n (termo que des1gna a p1ntura
ganizac;ao social tradicional continua sendo utilizado. 0 civili-
zado Lindolfo da Silva, p. ex., e casado com a Xokleng Tele
+ em pequenos circulos).
1

7 pertencem ao grupo .me:To:papa - Kane 0 m, segundo ~enry

Popo. Os cinco filhos do cas~l tern nomes Xokleng, o que permi- (termos que designam a pintura em pequenos circulos che1os);
te sua identifica9ao como membros do grupo tribal. Ao discutir 7 pertencem a mais de um grupo, na seguinte distri~ui~ao:
o problema com a lguns dos meus informantes, obtive a seguinte 2 aos grupos Kale :bn/Me .vic,dn ; 2 aos grupos Kale :bn/ Ku:1 0 ke .n;
in'.ormac;ao : " quern tern nome indio e indio". Paralelamente, o 2 aos grupos Kale:bn/ Me:To:papa; 1 aos grupos Me:To:papa I
chefe do PI informou que a familia de Lindolfo da Silva e consi- Ku:i 0 ke :n (2).
de rada "civilizada" pelos mora dores brancos da reserva. Embo-
ra aqui seja subjacente o problema de auto-identifica9ao frente a
a<;ao do P .I. -que somente deve atuar jun to ao contingente tri-
bal - , acreditamos na significa9ao <lesses dados para explicar
OS mecanismos pelos quais OS Xokleng apontam OS que sao OU
+ (1) - Adolfo B. Simas, na verdade, tern conscienc ia de s1;1a situa9ao ~e
N

nao do seu grupo. mesti90 e esfor9a-se - tal vez para contrabalan9ar a posi9ao de margi-
De outro lado, o individuo Adolfo Simas, filho de Eduardo nal que lhe oferecem os Xokleng - para identificar-se como branco.
Hoerhan (o pacificador) e da india Nandja Kango, sofreu diver- Confessou-me que quando surge algum problema no P.I. sobre rela9oes
entre indios e brancos nao toma partido, porque esta no meio dos dois
sas ameac;as dos Xokleng quando dos acontecimentos que deter- grupos. Com isto pretendia esclarecer-me a respeito do seu problema de
minaram a substitui9ao de Hoerhan na chefia do P .I. (1954) e, lealdade para com o grupo tribal e para com o "mundo dos branc os".
mais tarde, quando ocorreu um movimento de ocupac;ao da reser- Contudo, ao enviar seus filhos a escola fora da reserva, porque "ali
va por parte de civilizados da area. Nas duas ocasioes, Adolfo tem doutrina catolica"' ao desenvolver uma agricultura a base do culti-
vo do fumo, obtendo financiamento de certa empre sa, ao isolar-se de
tudo que ocorre com 0 grupo indi gena, ele revela uma atua9ao muito
(1) - Wiessemann, U, (1960: 177 /184) observou que entre os Kaingang mais proxima das espectativas do "mundo dos brancos" do que do tribal.
do Parana a palavra nome significaYiYi-o nome o que seria correspon- (2) - Dados fornecidos por Eduardo de Lima e Silva H oerhan a Curt de
dente ao termo Xokleng, pois informa essa autora que "a c nil~ born Numuendaju e divulgados por Metraux (1947: 148: 151), mostram que a
into a Kaingang family has to be named the same day, so "he will not "ttibo esta dividida em tres grupos que sao exogamicos, patrilineares e
feel unwanted and go away, that is to say die .. ;, " Some o_ld pe_rson ha.s nao l ocalizados ... e os nomes reais destes clas parece ter sido me-to-
to name him someone who "knows the old ways • The child will recei- paa-pa (mevidn cla) Zoo-zi (Me-calebn cla) e cui-kent (me Kui K e~ c l~)
ve all the y{yi of some ancestor belonging to, his moiety, and with the ... e cada cla tern uma classe especial caracterizada por uma vana9ao
yiyi he also inherits the wiyi the ancestor had". na pintura do corpo".

224 225

'
 +

Ve-se, dessa forma, que ha nomes que "pertencem" a mais de mens informantes utilizaram-no para nomea r seus antepassa-
de um grupo de pintura - conforme, alias, a pontou Henry. Contu- dos, desaparecidos antes ou nos primeiros anos da pacifica9ao.
do, acreditamos que essa vincula9ao a mais de um grupo de pin- A bi!ateralidade da organizac;ao social tradicional, entretan-
tura ocorre em razao de arranjos, que permitiram ao individuo to, encontra meios de \·erifica <;ao quando os Xokleng relacionam
nominar uma crian9a nao com os nomes de um ancestral desapa- suas genea lo gias . E les nomeiam com .i mes ma enfase seus as-
recido, mas com os nomes de dois ou mais ancestrais. cendentes patri e matrilineares e, em regra , chegam a terceira
Embora nossas investiga9oes fossem infrutiferas para obter gerac;ao ascendente. Paralelamente, nao ha enfase em qualquer
dados comprobat6rios dessa hip6tese, verificamos que os Xok- <las linhas de descendencia no processo de socializas;ao <las
leng apelam constantemente para "arranjos" que permitem colocar crians;as - o que, alias, foi explicitado por Henry-, ea biloca-
em opera9ao mecanis,mos totalmente estranhos a sua tradicional e
lidade subjacente na decisao para determinar a residencia dos
e
organiza9ao social. E fato que o sistema de nomina9ao justifi- jovens casais. Finalmente, cabem algumas considera9oes sabre
a operacionalidade da terminologia de parentesco - GUe hoje cede
cado como um meio "de nao esquecer os nomes dos velhos".
Paralelamente, as pinturas relacionad,1s dos nomes perderam to- lugar para os termos comuns 'a sociedade regional. Os termos re-
da a significas;ao, pois somente os homens idosos conhecem a lacionados por Henry sao classificat6rios e descritivos. 0 filho
rela9ao entre elas e os nomes. Contudo, afirmam que as pinturas do cunhado, p. ex.,chama-se yomble yio 0 filho da irma da mae
serviam apenas para afastar os espiritos (Kuple.ng) - e que chama-se nyo (n) nyu:ngye.n yi 0 •
:'eram usadas pelos indios que viviam no mato e jamais por Numa perspectiva descritiva do sistema, tambem comum oe
eles ". Assim, os grupos de pintura, que deveriam ter sido o meio Xokleng usar o nome da pessoa dando sua rela9ao de parentesco
de exteriorizar distins;oes entre o grupo tribal durante certos ce- imediata, quando necessario se faz diferenciar. 0 filho de Wako
rimoniais, ha muito perderam sua funcionalidade (1). (Ffim), p. ex., foi chamado por Ego de Wako.yi->. Alem disto, os
e
Mas, na tentativa de dar sobrenome (2) as crians;as que OS sufixos ti e zi indicam o masculino e o feminino, respectivamen-
Xokleng revelam um arranjo esclarecedor da inoperancia de sua te.
organizas;ao tradicional, que era bilateral - ou seja, o individuo + Ao discutirm_os os seus aspectos ainda operati vos, ressalta-
er_? vinculado tanto aos parentes de seu pai, como os de sua mos que Henry nao logrou formular um modelo explicativo dessa
mae. 0 fato de perceberem que entre os brancos a crian9a rece- organizas;ao social. Esse autor surpreendeu o grupo num momen-
be, via de regra, 0 sobrenome de seu pai, levou-os a dar sobre- to em que suas atividades sociais tundamentavam-se em arran-
nome a seus filhos, anexando a serie de nomes tradicionais da jos. Tambem riao logramos descrever coma operava a sociedade
crianc;a o nome d~ seu .P?i. Hoje, em tres distintas gera9oes, Xokleng em termos das idealizas;oes que ainda hoje sao manti-
o~orre esse arranJo patr1hneal de descendencia explicito atra- das pela tribo. Os dados nesse particular sao vagos, imprecisos
ve~ da constante: o sobrenome de uma crians; a e o nome de seu e, em regra, desconexados com a vida diaria do grupo. Contudo
pal e 0 sobrenome deste e 0 nome do avo da crians;a. E OS o uso do sistema de nomina9ao como meio de identificar os com -
Xokleng seguem com tal conviC9ao o sistema, que mui tos ponen.tes do grupo e a quase indiferen9a com que OS conjuges
recem-casados Se localizam na casa dos pais do esposo OU da
+ esposa, revelam a operatividade de certos mecanismos da orga-
(1) - Henry apontou que OS Xokleng dizem que nao e permitido 0 Casa- nizas;ao tradicional (1). Paralelamente, ao surpreendermos os
mento com pessoas do mesmo grupo de pintura. Contudo, na pratica
isto nao OCOrria e nao havia vergonha conectada com 0 Casamento den-
tro do mesmo grupo de pintura (1941:176). Atualmente, entre 33 casais
Xokleng, encontramos 15 casais em que os conjuges pertencem ao mes- ( 1) - E s tudos recentes desenvolvidos entre os grupqs Je do Brasil
mo grupO de pintura, enquanto nos demais 18 OS conjuges pertencem a Central, .pelos antropologos David Mau bury· Lewis , Terence Turner,
grupos de pintura distintos. Roberto da Matta, Julio Cesar Mellati e outros, integrantes do projeto
(2) - 0 termo "sobrenome" tern aqui conota9ao com o que ocorre em Je que esta sendo realizado sob o patrocinio da Universidade de Har-
nossa sociedade, onde os filhos recebem como sobrenome o sobrenome vard e do Museu Nacional do Rio de Janeiro , estao abrindo novas
do pai, numa tentativa de permanencia. do "nome de familia''. •No caso pers pec tiva s teoric as para o entendimento da organiza9~0 social dos
dos Xokleng o sobrenome e o nome do pai da crian9a que e incorporado je. E provavel que essas novas possibilidades venham a permitir reto-
a serie de nomes tradicionais que a crian9a recebeu. marmos 0 tema para uma analise mais frutifera.

226 227

'
 Xokleng utilizar um mecanismo patrilineal para, em termos de
arranjo, dar sobren.ome as suas crianc;:as, compreendemos como
o grupo logrou encontrar meios para anular os efeitos dos meca-
nismos sociais que, impossibilitados de funcionar, ameac;:avam a
sobrevivencia do grupo como sociedade. Hoje, o grupo se esfor-
c;:a para se comportar como os componentes da sociedade regional
envolvente. Entretanto, o sistema de nomina9ao tradicional tor-
na manifesto a identificac;:ao tribal.E frente a considerac;:ao de
que 0 grupo tribal sofreu, e continuara a sofrer, uma serie .de
compulsoes em seu contato com a sociedade regional, o sistema
de nomina~ao e 0 mecanismo pelo qual 0 grupo fundamenta sua
sobrevivencia e identificac;:ao enquanto sociedade.

6. 0 POSTO INDIGENA E A INTEGRA<;AO

Na realiza9ao da politica indigenista desenvol vida pelos

6rgaos da prot~ao oficial no Brasil, o posto indigena tern papel
de destaque. E ele que teoricamente traduz em a9oes concretas
as idealizac;:oes e determinac;:oes dos corpos dirigentes, localiza-
dos nas areas regionais e no centro administrati vo do pais. Na
pratica , entretanto, sempre houve carencia de orientac;:ao e de
sontrole. As lnspetorias Regionais do Servi90 de Protec;:ao aos
Indios sempre funcionaram precariamente. 0 Servic;:o tambem.
Faltavam cronicamente recursos financeiros e humanos. E a
Fundac;:ao Nacional do Indio, orgao qtJe substituiu 0 SPI, nao
cons~guiu ate o momento modificar essa situac;:ao.
E frente a esse quadro, que se pode entender o papel exer-
a
cido por Eduardo Hoerhan frente do Posto Indigena Duque de
Caxias. Ele sempre atuou limitado por penurias or9amentarias e
dificultado pela falta de orientac;:ao. Resol via seus problemas
sozinho e com o passar dos anos toda a mo ti vac;:ao que o levou
a atrair os Xokleng acabou por desaparecer. No ano de 1939, ao
publicar artigo sobre a rea9ao dos Xokleng ao ver o primeiro
aviao cruzar os ceus da reserva, Hoerhan revela todo o seu de-
sespero de homem (1939: 524): "Tudo passa ... 1938 tambem en-
trou definitivamente para o rol das coisas ... "passadas". Con-
quanco em 0 rapido decorrer dessas doze luas absolutamente ne-
nhuma melhoria se verificasse em 0 cronico lamentabilissimo
escado de penuria e de desamparo em que , ha longo tempo, se
debate o Posco Indigena Duque de Caxias (. .. )"
A essa altura Hoerhan ja estava totalmente des iludido com
sua obra e essa desilusao ele nos traduziu ao ,..,dizer "que e um
crime pacificar indios; tira·los de seu habitat. Esses indios da-

229

E otrevis£a de om v elho i odio c om o a uto r. Ibira ma.

qui eram homens puros; saos. Hoje estao, como o senhor esta mente acei tar tudo aquilo que considerava negati vo entre os
vendo, degradados"(l). civilizados: o uso do alcool e do fumo; a maledicencia· a sub-
0 pesto indigena no que se refere a sua estrutura e maneira missao. Atuando contra os interesses dos civilizados regionais,
de a9ao, nunca deixou de ser um orolonP-amento da sociedade adquiriu a fama de atrabiliario, prepotente, impulsivo. E ainda
nacional. Dessa maneira, era impossi vel => que Hoerhan ti vesse hoje em. todo o val<: do ltajai narram-se episodios que sempre o
po.s sibilidade de efeti v:m:nte realizar o que sonhou. Ou seja, caractenzam negahvamente: "Hoerhan se inti tulava o chefe
ser o ponto de convergenc1a do contato entre indios e brancos absoluto da Na9ao"; "Eduardo entrava nos bares de Ibirama mon-
de maneira que se tomasse possivel apenas dar aos indios ~ tado a cavalo"; "Uma vez ele obrigou o sogro a servir de monta-
q~e ele considerava valido na sociedade nac\onal. 0 posto em ria para ele! durante_ um baile"; •E:te experimentava as armas
s1, com uma estrutura que obrigava a presens:a de um numero ra- novas ~ue adquiria atirando nos Indios", "Era sempre o primeiro
zoavel de funcionarios e trabalhadores, ja liquidava com essa a expenment~r sexualmente as india~"; "Era ele que dava as or-
aspira9ao do pacificador. Alem disso, o posto de um modo ou ou- dens por aqu1, era chefe absoluto". E evidente que a complexida-
tro deveria obter a integras:ao dos indigenas aos objetivos da
s~ciedad~ nacional. Nao e de se estranhar, pois, que muitas a-
s:oes efehvamente deflagradas fossem inteiramente contrarias a
T d.e do processo _de m.udanc,;:a cu.ltural nao foi entendida pelo paci-
f1cador ..E, por 1sso, ele sempre teve atitudes ambiguas e jamais
consegu1u um esquema que o permitisse entender o quadro em
que es tava .a tuando.
socie~ade tri?al. Estariam nesse :aso, por exemplo, as rela9oes
sexuais mantldas entre os funcionarios e as mulheres indigenas. Frente a essa trama de rela9oes, tipica de toda uma estrutu-
Mas, ao mesmo tempo, o posto indigena tinha de desenvol· ra socio-economica de domina9ao, Hoerhan acabou se sentindo
ver as:oes destinadas a proteger o grupo tribal da agressi vida- falido em seus objetivos. E nessa altura vi u que gastara sua
de c.om ~ue .o segmento r:~onal_ da sociedade envolvente pre- vida em vao. Passou entao a solucionar emocionalmente os pro-
tend1a atingir o grupo. Co1 bu as:oes de represalia sobre os in- blemas diaries, ao mesmo tempo em que se dedicava ao estudo
dige?as; impedir a espolias:ao da mao de obra indigena; evitar de ciencias sociais e de linguas. Refugiava-se. A fal ta total de
o av11tamento do valor da produ9ao indigena; resguardar as terras orien ta9ao do Servi90 de Protec,;:ao aos Ifldios ha via deixado o
reservadas para os indigenas e defender seu patrimonio flo- pacificador inteiramente sozinho. E, como agora OS indios nao
restal e faunistico, foram constantes atribuic,;:oes do posto. Pare- ameac,;:avam os proj etos regionais de coloniza9ao, somente havia
criticas a fazer. Nao era o SPI que falia. Era Hoerhan.
ce assim que o posto tinha objetivos contraditorios. Mas nao. O
Ao se en vol ver na morte do indio Lili Pripra (1), Hoerhan
posto apenas atuava representando os interesses da sociedade
nacional como um todo e utilizando mecanismos decorrentes demonstrou nao somente as condi9oes psiquicas e conj eturais
de uma estrutura s6cio-economica que ja nao admi tia formas al- em que vi via e atuava, como revelou aspectos referen tes a as: ao
tamente aviltantes de explora9ao e· espolia9ao humanas. Nesse do posto junto aos silvicolas. Seus depoimentos e alguns do..
cumentos, integrantes do processo crime (2) que se instaurou
sen ti do, e porque a nivel regional a agressividade economica ain-
para apurar a morte de Lili Pripra, sao es<;;larecedores. Os acon-
da se inspirava em modelos ja ultrapassados nos meios urbanos tecimentos que antecederam a morte do indio, foram assim narra-
~a !'f e
ac,;:ao, que Se deve compreender 0 pap el efeti VO do posto
dos pelo pacificador. «por volta das 18 horas, no domingo, dia
1nd1gena nas mais variadas partes do Pais.
22 de agosto de 1954, ele declarante, foi aqui procurado pelo
Esse foi o quadro em que Hoerhan atuou. Pretendendo fazer
agente do Servis:o de Protes:ao aos Indios, neste posto, sr. Jose
do pos~o um i.ns~rumento de selec,;:ao de complexos culturais, para
de Almeida, o qual visivelmente apreensivo, lhe apresentou um
garantir aos 1nd1genas o recebimento apenas dos valores positi-
vos da nossa sociedade, Hoerhan acabou adquirindo varios ini-
migos entre os integrant~s do grupo tribal. E viu o grupo rapida- ( 1) - Lili Pripra era um indio Kain gang, descendente dos Kaingang que
foram trazidos do Parana para colaborar no "amansamento" dos Xo-
kleng. Era casado e tinha tres filhos. Foi assassinado nas imedia\:oes
da casa de Hoerhan, no dia 24 de agosto de 1954.
(2) - Autos da apela~ao criminal n? 8.816 da Comarca de Ibirama, aos
(1) - Entrevista com o pacificador em 10/ 7 / 63. 11/12/1956. '

230 231

f_ ~.-....L,_~--~~~~------------
 bilhete escrito a lapis, assinado pelo auxiliar de ensino deste
Posco sr. Jose de Andrada, no qua! o mesmo, a Jose de Almeida,
comunicava ter falado a larga com Brasilio Pripra, mais conheci-
do por «Lili", individuo de pessima conduta, que, sem permis-
sao, havia induzido o botocudo de nome Cundagn Lescha, a
acompanha-lo em viagem que fez ao Rio de Janeiro e a capital
do Pacana, a fim de fazer queixas e pedinchar auxilios; que, di-
zia o referido bilhete, haver «Lili" declarado a Jose de Andrade
que «trouxeram ordem para tudo, inclusive para matar o decla-
rante"; que, dizia ainda o bilhete, que «Lili" usando so de ma-
ledicencia, revelara coisas inc.riveis, e que, na tarde daqu ele
mesmo domingo, «Lili" reuniria os indios ja previamente avisa-
dos, para, a pau e faca, hostilizarem e eliminarem os brancos
aqui residences; que, diante disso, depois de estudar a situ~c;ao
sob todos os aspectos, sabendo ser «Lili" capaz dos maiores
crimes, e, por outro lado, bem conhecendo o carater dos 1ndios,
sempre refratario a todo e qualquer conselho que se lhes de para
o hem, mas prontissimos para prazeirosamente aceitar coda e
qualquer insinuac;ao para o mal, por mais disparatada e estupida
que seja - ele, declarante, como medida de seguranc;a, mandou
um aviso ao inspetor de quarteirao, Francisco Riscarolli, a fim
de que, em cornpanhia do ex-expedicionario Manoel Silva, para
ca se dirigisse; que a mesma ocasiao, rnandou avizar tambem a
Pedro de Souza para que tarnbem aqui comparecesse; que, todos,
muito pronta e solicitamente, atenderam ao chamado, aqui se
apresentando poucas horas depois; que, alern destes homens,
aqui permaneceram revesando-se na guarda, durance a noite
Jose de Andrade e Gervario Fiamoncini, sem que absolutamente
nada de anormal fosse notado; que no dia seguinte, 23 de agos-
to, pouco antes das 10 horas, aqui apareceu o indio botocudo de
nome C6ovi, vulgo "mata-pombo" e "caga igreja", que logo se
diri.g iu a Jose de Almeida, dizendo-lhe: "Mandado pelos outros
indios eu vim aqui chamar voce, para voce ir la em cirna no Pos-
to, a fim de, com eles, fazer arrumac;ao das roc;as; eles la estao
a tua espera"; ao que Jose de Almeida, respondeu: «Hoje nao
posso ir. Tenho que fazer aqui"; que Coo vi, insistiu dizendo:
"Entao amanha cedo, hem cedo, voce va que nos ficamos a tua
espera. Nao deixe de ir"; ao que Jose de Almeida objetou:""se
puder ir, vou"; que, C6ovi, a rnoda botocuda, insistiu, exigindo:
"nao, voce tern que ir, precisa ir, sem falta! Ficaremos la a tua
espera, nao falte! "; que, ele declarante, sern 0 saber, salvou a
vida de Jose de Almeida, ordenando-lhe que permanecesse nesta
residencia; que, os indios, haviam urdido, hem combinado e pre-
parado enganoso ardil, que executariam da seguinte maneira, as-

233

Acampamento na floresta de «iodios palmiteiros". Foto do a utor.

 sim que, na saida do Posto, Jose de Almeida, defrontasse a ca- com seu pessimo exemplo, com seus maus conselhos e suas par-
'" sa.. ,d;e Carlos pel 'Agnollo, um grupo de indios sairia ao seu en- palatonices, todos OS demais ( .•. ). Mentiroso emerito e grande
contro; falando animadamente, o rodearia, enquanto um deles parlapatac, cada vez que Lili aqui aparece, por todos os meios e
lhe faria entrega de uma carta que diria ser "muito urgente e modos, instiga e incita os indios contra a vida regular estabele-
importante" e, que por isso, deveria ser Iida ali mesmo; assim cida neste Pdsto, e a todo 0 transe, OS procura desencaminhar e
que, distraidamente, o agente do SPI se puzesse a ler, seria ata- corromper com a sua "sabedoria" e "experiencia" ( •.. ) prototipo
cado e morto a pauladas; que o plano dos indios era, uma vez do nulo, do vadiao descarado, Lili aqui nunca trabalhou (... )
morto o agente, atacar, ato continuo, a familia de Carlos Del' Ag- Brasilio Pripra, o inefavel Lili - essa ma, essa pessima vasi-
no.llo, do quaJ ..ha muito, tern ogeriza, por nada lhes vender fiado . lha - agora mais do que nunca, criara, aqui, a~ maiores dificul-
ou seja para ntinca mais receber ( ... )" dades. Nos trara enormes decep~oes, inumeras contrariedades,
No dia seguinte, a ten~ao entre funcionarios do posto e os dissabores, lutas e trabalhos, gra<;:as ao pleno sucesso - que
indigenas chegou ao auge quando ao se avizinhar da residencia obteve com essa· sua aventurosa e descarada "viagem" ao Rio de
de Hoerhan para, segundo uns, entregar uma correspondencia Janeiro( ... )".
enviadp pelo Diretor do SPI; segundo outros,· assassinar o paci- ·o paternalismo e o desespero de Hoerhan esta todo a mos-
ficador; o indio Lili Pripra foi morto. E Hoerhan de uma forma ou tra. 0 pacificador procurou tambem insinuar o quanto era preju-
outra estava envolvido. Por isso ele se manifestou a respeito dicial a chamada (or assistencia de .asfalto". Por ela, burocratas
desse indio de um modo que revelava toda sua impotencia peran- sem maior intimidade com o problema, epiedavam-se dos misercl-
te o processo de integrac;:ao que o grupo, e em particular esse veis indigenas que chegavam aos centros urbanos. Prometiam-
indio, vivia. Lili varias vezes havia abandonado o posto indi'ge- lhes enviar mil e uma utilidades, davam-lhes alguns trocados e
na e tudo indica ter sido um indio· que tentou sair da reserva os devolviam para as reservas. Depois, o chefe do posto que se
para viver entre os brancos e nao conseguiu. Rejeitado no j ustificasse com os indios quando o prometido caia no esqueci-
"mundo dos brancos" regressou a reserva, mas ai tambem nao se mento.
adaptou. Tornou-se, entao, um indio profissional. Um explorador Na verdade, a situac;:ao do posto nao era boa. Ha muito
de sua condic;:ao. Para tanto, vez ou outra saia da re serva e per- Hoerhan desanimara . .Pouco sa!a de sua casa. Controlava o que
corria as repartic;:oes do SPI ·em busca de a uxilios. Contava se passava na reserva atraves de alguns funcionarios. Os indios
historias mil; humilhava-se; implorava. Descobriu a maneira de sobreviviam a custa de pequenas roc;:as e da pratica ainda da
~molecer os brancos e assim vivia. Numa dessas saidas, a che- cac;:a e da colet~. Como nao havia estrada que permitisse chegar
fia da 7'1J Inspetoria Regional do SPI, dirigiu telegrama a Hoerhan ao centro da reserva, o contato com os civilizados ainda era
pedindo ~eferencias de Lili Pripra. Hoerhan entre outras coisas reduzido. Mas, e claro, OS pr6prios indios ansiavam por estreitar
disse: "Posto Indigena Duque de Caxias, em 26 de maio de 1951. os eles com a civilizac;:ao. Queriam casas, como as dos brancos;
Sr. Chefe da 7g IR queriam ferramentas; queriam vestuario; queriam estradas. Que-
A fim de plenamente satisfazer a solicita~ ao contida em vos- riam tudo aquilo que lhes era sugerido pelos regionais e como
so telegrama nll 39 e completar as informa~oes ( .•. ) passo a vos esses somente lhes apresentassem coisas boas, eles logo acei-
referir o seguinte: Brasilio Pripra e aqui, somente conhecido pe- tavam as sugestoes. Entretanto, havia Hoerhan. Era necessario
lo cognome Lili, desvirilizante apelido, que, desde a mais tenra sua anuencia. E.r a necessario seu apoio. Os regionais interessa-
idade, lhe foi posto pela ternura da mae ( .•. ) 0 que e born ja dos em utilizar o potencial de mao de obra e de capacidade de
nasce feito. Lombrosianamente mau, desde seus primeiros anos consumo dos indigenas, alem de toda riqueza representada pelos
de existencia,. Lili para toda e qualquer aprendizagem ou traba- recursos florestais, desejavam abrir a reserva. Para tanto Hoer-
lho, sempre e 1n~areavelmente, mostrou-se super-apatico, desin- han era obstaculo. Ele nunca permitira que a area indigena fosse
teressado, pregu1~osossimo (sic), arquidfs!:>riado, insubmisso e cortada por estradas; nao deixara jamais que os indios exploras-
ult:adesobediente. Tahido, jamais procurou acatar, respeitar e sem recursos florestais; dificultava ao maximo a saida de indios
muao menos se submeter ao regime de ordem, de disciplina e de para servir de mao de obra em iniciativas dos civilizados. Nes-
trabalho desse posto. Lili primou em ser sempre, sempre e sob se instante, o pacificador e rejeitado tanto por Indios, como por
todo e qualquer ponto de vista, elemento negativo, corrompendo brancos . Ele e obstaculo ao alcance de objetivos OU de promes-

234 235
sas. Hoerhan age envol vi do em toda essa tram a e ten do rea9oes consumirem hens. Entraram definitivamente na faixa de produto-
emocionais decorrentes de todas as desilusoes sofridas durante res e consumidores. Integraram-se a economia regional.
sua experiencia. 0 indio Lili morre. 0 SPI muito sabiamente a- Os encarregados que a partir de 1954 sucessivamente foram
bre paralelo ao processo crime, um inquerito administrati vo. des ignados para dirigir o posto indigena Duque de Caxias (1),
Hoerhan e enquadrado em artigos do Estatuto dos Funcionarios modific aram a fisionomia da reserva. Todos esses personagens
Publicos da Uniao e tern sua demissao, a hem do servi90 publi- estavam desvinculados dos compromissos, da fonna9ao e da
co, proposta pelo presidente da Comissao de Inquerito. Esta co- ideologia que haviam norteado as as:oes de Hoerhan. A questao
missao de Inquerito. Esta comissao, entre ?ut:as c:oisas, co~­ para eles resumia-se em assumir um cargo publico. Nao interes-
cluiu que ~a luta entre o chefe do Posto e o 1nd10 Pnpra ha mu1- sava saber de problemas te6ricos ou praticos. E como o Servi90
to empolgava ambos. Dum lado, a luta pelo mando e pelo dom.i- de Prote9ao aos indios continuava mergulhado nos cronicos pro-
nio; de outra parte, pelas reinvidica~oes presum.iveis de um blemas orc;amentarios, os encarregados nao tern em suas ativida-
direito e pelo bem estar geral da cla (sic). Um, certo da impuni- des nenhum apoio financeiro ou tecnico. 0 problema do chefe do
dade, certeza es ta que se v_inha confirmando ha 40 anos! ••• posto resumia-se praticamente em sobreviver. E para tanto era
0 outro, certo de que perderia a vida, mas a causa vi veria. 0 imprescindivel uma alian9a e~treita_ com os detent<;>res do poder
choque inevitavel deu-se a 24 de agosto de 1954". na sociedade regional. Como 1sto fo1 plenamente fe1to, a reserva
Na verdade, Hoerhan e Lili Pripra foram vitimas de um mes- logo foi aberta. Essa abertura atendia, evidentemente, aos inte-
mo processo. Processo pelo qual a sociedade nacional envolve e resses regionais.
domina as sociedades tribais. Tanto um, como o outro, a seu mo- Devido ao continuo desprestigiamento do orgao oficial de
do quiseram efetivamente trazer algum beneficio para os indige- prote9ao, os novos encarregados do posto eram pessoas po~tado­
nas. Nenhum dos <lois teve exito. E no caso de Hoerhan, tudo ras de precaria formas:ao i'ntelectual. Poucas pessoas deseJavam
ficou mais dramatico quando depois de ser inocentado do proces- aceitar encargos e se sujeitar as duras condi9oes de vida do
so crime a que respondeu nao logrou ser readmitido no servi90 sertao, em troca de salarios irris6rios. E que, as vezes, ficavam
publico, nem tampouco obteve qualquer aposentadoria ou pensao meses atrasados. As limita90 es quanto a forma9ao intelectual e
que lhe garantisse condic;oes dignas de sobrevivencia. Fora efe- a falta de apoio financeiro e tecnico por parte do orgao central
tivamente 40 anos chefe do posto indigena. E estava agora mar- de prote9ao , seriam responsaveis pelo nivelamento das as;oes
ginalizado no grupo indig~na; na sociedade regional; e no proprio dos varios encarregados. E isto nao mudou quando o Servic;o de
Servi90 de Prot~ao aos Indios. (1). Prot~ao aos Indios foi substituido pela Fundas:a? Nacional _do
A partir de 1954, o posto indigena com~ou a sofrer muda~- fndio. Ao contrario. Ate entao, pelo menos, o SPI tinha se vahdo
9as. Novos encarregado·s chegaram e partiram. A reserva foi logo de pessoas habituadas a vida do sertao e por isso mesmo conhe-
ra sgada por um a estrada que, seguindo o curso do Itaj ai do Norte, cedores de varias praticas rotineiras, referentes a agricultura,
atingia povoa9oes e serrarias localizadas alem do seu limite.
Aos indigenas foi permitido comec;ar a explora9ao de recursos
a ca9a, a pesca, a saiide, etc. Agora, ao enviar o primeiro chefe
para o posto Duque de Caxias, a Funai. utiliza um cidadao liga,do
naturais , especialmente madeiras e palmito (Euterp edulis Mart). ao ambiente urbano e totalmente alhe10 aos problemas dos 1n-
Terras da reserva foram arrendadas para civilizados explorarem; dios e do sertao. Foi um desastre. A Delegacia da Funai voltou,
contratos foram efetivados entre o 6rgao oficial de protec;ao, depois dessa experiencia, a utilizar um·homem habituado a vida
representado no caso pela 72 Inspetoria, e empresarios regionais
para a explorac;ao de madeiras; ro9as foram fei tas com a mao de
obra indigena. Os ind1os adquiriram, nesse Interim, possibilida-
des nova s de sair da reserva; de comercializar seus produtos; de

(1) - Estiveram na chefia do Pl, desde 1954, os seguintes encarrega-

dos: Antao de Tal (1954); Jose Mota Cabral (1955 / 66); Isaac Antonio
(1) Este trabalho estava ~m seu final quando tivemos_ a no!icia d~ que Bavareso (66/68), Ten. Isidoro Oliveira (68/ 69) e Francisco Tavares
a Funda9ao Nacional do Indio havia regula rizado a s 1tua9ao func1onal (69/ 71). A partir de 1969, o PI Duque de Caxias passou a ser denomi-
do pacificador. nado PI Ibirama.

236 237
 ...

do interior, para dirigir o posto (1). roj ado e muito in teli gente," no di zer do paci ficado r. Depoi s,
As influencias exercidas sobre os indigenas diretamente pe- quando este morreu, na decada de trinta, a chefia passou a ser
lo posto foram muito pequenas a partir de 1954. As rapidas mu- exercida p\?lo indio Kaingang Joao Pripra. Evidentemente, nao
dan9as que ocorreram no interior da reserva foram decorrentes de foram os Xokleng que o escolheram. Hoerhan simplesmente cha-
ac;oes deflagradas pelos integrantes da sociedade regional. 0 mou Pripra e disse que daquele dia em diante ele seria o •capi-
posto apenas roncordou com essas ac;oes. Lastimavelmente, o tao dos Indios". E cada chefe que aparece no posto, alguns dias
posto se rolocou numa posic;ao que pouco podia fazer para con- depois de tomar conhecimento da situac;ao, trata logo de cassar
trolar a mudan9a. E como os chefes de posto eram pessoas de- o mandato do "capitao" que se encontra no poder, nomeando
pendentes e incapazes do exercicio de uma lideranc;a plena, mui- outro de sua confianc;a.
tas vezes os indigenas colocaram em duvida o papel e a autori- Para manter o prestigio do "capitao", e ao mesmo tempo dar
dade que desempenhavam e exerciam. 0 posto flagrantemente forc;a as suas decisoes, o posto costuma manter uma policia in-
aparecia assim como uma unidade de defesa dos interesses da digena. Essa tern o papel de controlar as atividades dos silvico-
sociedade envolvente. las aldeados, no que se refere a manutenc;ao da ordem. Mas essa
Para atuar, o posto indlgena sempre manteve um esquema ordem sempre e uma abstrac;ao, permitindo interpretac;oes con-
organizacional mais ou menos rigido. Alem do encarregado, um venientes. Veja-se, por exemplo, o teor de uma portaria de no-
agente, um motorista, um enfermeiro, um professor e dois ou tres mea9ao .. de um Indio para a policia indigena: "Posto Indigena
trabalhadores bra9ais integravam o quadro permanente do posto "Duque de Caxias", em 15 de mar~o de 1966.
Esse numero, as vezes variava, para mais OU para menos. Em Portaria nl2 22/66
Duque de Caxias, depois que Hoerhan deixou a direc;ao do posto Isaac Antonio Bavaresco, Encarregado do Posto Indigena
o pessoal disponlvel sempre teve seu numero fixado entre um "Duque de Caxias", no uso das atribui~oes que lhe sao conferi-
maximo de 9 e um mlnimo de 5 funcionarios. Cada um desses per- das por lei, Resolve:
sonagens atuava sob as ordens do chefe do posto. Nao havia, Nomear o indio Candagn Pate para exercer as fun~oes de
entretanto, orientac;ao para a integr39ao das ac;oes dos di versos soldado da Policia da Tribo Indigena dos Botocudos, deste Pos- ·
personagens. 0 chefe do posto e que verbalmente distribuia as to Duque .de Caxias, no que devera ser respeitado e acatado por
tarefas. ~inguem, no posto, na inspetoria ou delegacia regional, . codos os indios sediacfos nesta area, no exercicio das fun~oes
na diretoria do SPI ou da Funai, se preocupou em coordenar as · que lhe sao atribuidas • . 0 que se cumpre, comunicando-se ao
a9oes do posto, de maneira a toma-lo efetivamente uma agencia interessado."
harmonica de mudan9a. Tudo dependia da capacidade pessoal e E como .essa distribuis;ao de poder poderia ser contestada
do interesse particular de cada um dos servidores. pelos proprios indigenas, o chefe do posto criou toda uma infra-
Como meio de dominar os indlgenas aldeados, o chefe do estrutura de apoio, criando uma hierarquia polici al e di stribuindo
posto se valia dos funcionarios e dos proprios indios. A tecnica fun9oes da se.g uinte maneira: cinco de soldados; duas de cabos;
e antiga. Atraido 0 grupo tribal, OS responsaveis pela pacifica- duas de sargentos; unia de tenente; uma de major; uma de capi-
tao; uma de coronel. E para supervisionar essa policia, o encar-
9ao tratavam de estimµlar algumas lideranc;as entre os sil vico-
las. Com o tempo, os lideres assim surgidos se tornavam verda- regado ainda instalou um conselho de policia, criando nove fun-
deiras marionetes nas maos habeis dos servidores da protec;ao. c;oes de coronel-conselheiro. Com isto, o encarregado do posto
Em Duque de Caxias, Hoerhan conquistou a amizade e o respei- tinha con~c;·oes de anular qualquer resistencia que se esb09as-
to do chefe do grupo, o velho Trovoada. "Um indio corajoso, ar- se no interior. da reserva e que pretendesse colocar em duvida o
poder de suas decis0es.
Efeti vamente, o destino diario dos indlgenas esta submetido
em grande parte, ao chefe do posto. A sua autoridade e enorme e
( 1) - Recentemente a Funai acabou de realizar a primeira experiencia os indigenas dele dependem para as minimas coisas, como fazer
a
quanto realiza9ao de curso de sele9ao e treinamento para encarregado um a nova '' coivara" ou obter algum medicamento. E quando os
de postos indigenas, em convenio com Universidade de Brasilia. Veja-
se "O Estado de S. Paulo", de l?/ 8/ 71, Artigo "Funai quer pessoal de encarregados nao tern condic;oes intelectuais, nem sensi bilidade,
ni ve 1 adequado". para en tender toda a problematica vivida pelos sil vicolas, o pre-

238 239
JUIZO e eminente para todos. No ano de 1968, 0 chefe do posto
determinou que os indigenas fizessem uma ros;a coletiva nas Compreende-se dessa forma que o posto desempenhou um
terras imediatamente vizinhas a sede. Todos OS funcionarios e papel particular no processo de integras;ao dos Xokleng. 0 grupo
OS proprios indios disseram que ali nao Se colheria nada, pois hoje esta inteiramente dependente da sociedade regional, seja
as terras eram fracas e na muito tempo tinham sido desmatadas. como produtor; seja como consumidor. Nesse sentido, pode-se
0 encarregado, entretanto, teimou. Dizia que ali seria realizada dizer que o grupo esta integrado a economia regional. Oposto,
a ros;a porque "ele poderia fiscalizar os trabalhos". E assim foi portanto, cumpriu suas finalidades. Embora Hoerhan tivesse lu-
feito. Aproximadamente quatorze mil cruzeiros foram gastos, e a · tado para evitar que a submissao dos indigenas aos regionais
colheita nao deu para cobrir tal despesa. Entao, sabiamente, o fosse rapida e direta, e por isso 0 pacificador arrumou inimigos
encarregado resol veu nao entregar a co ta parte dos indios que numa e noutra area, o processo nao deixou de ocorrer. Ao se
haviam entrado com sua for9a de trabalho, para ter condi9oes acelerar esse mesmo processo, com a substitui9ao de Hoerhan
de recuperar maior parte do capital. Numa outra ocasiao e nesse por novos encarregados, deve-se notar que o posto se apresenta-
mesmo ano de 1968, esse mesmo encarregado propos e obteve va deso rgani zado, desorientado e incapaz de um trabalho efeti vo
autoriza9ao da Delegacia da Funai em Curitiba para "transferir" em beneficio dos indios. Isto, entretanto, parece que era condi-
al guns indios que "estavam criando problemas para sua adminis- 9ao para mais facilmente o posto responder aos interesses da
tra9ao ". A "transferencia" foi feita para postos do Pa ran a. En- sociedade en vol vente. E nesse aspecto evidentemente o posto
tretanto, nao sairam de Duque de Caxias apenas OS cinco "inde- realizou uma contribui9~0 efetiva.
sejaveis", - no dizer do chefe do posto. Safram quase 40 pes- +
soas, integrantes das familias de cada um dos indios atingidos.
E quando foi por nos criticado pela pratica de uma puni9ao ab-
surda, o encarregado ainda se justificou dizendo que "os que
sairam nao eram boa coisa, pois foram atras de uns malandros"
(1).
No oferecer ou impor situa9oes, os chefes do posto contri-
a
buiam para facilitar a submissao dos indigenas sociedade en-
volvente. A propria imagem dessa sociedade era colocada como
!!lodelo, como algo a atingir. Na festa comemorativa do "Dia do
Indio" 1 no ano de 1967, o encarregado Isaac Antonio Bavaresco
assim se expressou "( •.. ) ·faz um ano hoje que neste local come-
moramos es ta data; aonde tivemos por assim dizer a prime ira
uniao, o primeiro contato entre o nosso povo humilde com a civi-
liza~ao verdadeira ( .•• ).
Nao quero menosprezar os antepassados, mas deveria esse
contato ter sido mantido ha muitos anos. Contato que eu digo e
comemorarmos a data de hoje juntos, irmanados com a socieda·
de, com aquela sociedade digna, uma sociedade que merece todo
o nosso respeito, a qual nos e meus irmaos indios, a minha tur-
ma, 0 meu caboclo, devemos seguir; embora, nos nao temos cul-
tura, mas devemos copiar OS exemplos desses homens que vem
nos visitar, que vem nos trazer conforto (2)~

(1) - Entrevista com o Ten. Isidoro Oliveira, em 1?/8/69.

(2) - Em 19/4/67. Gravac;ao integral no arquivo do autor.

240
241 \
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+
..

VI INDIOS E BRANCOS NUMA SOCIE DADE COM-

PETITIVA
- A

1. CAR ACTER IZA ~AO ECONOMICA

DA SOCIEDADE ENVOLVENTE.

Na regiao que estamos focalizando predominam condic;oes

s6cio-economicas compati veis com as areas mais desenvol vidas
do Brasil. Uma associac;ao estreita ocorre entre a ati vidade agri-
cola e a industria, de maneira que o nivel de vida da populac;ao 0
e bastante elevado. Entretanto, por fon;a da propria estrutura do .,
c
sistema, uma analise mais detalhada da economia dessa area
logo revel a que exis.tem acentuadas diferen9as quan to a partici- .
pa9ao da populac;:ao na distribui9ao dos hen s e servic;:os.
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Ao ocorrer a colonizac;:ao no sul do Brasil, transplantou-se x
juntamente com OS imigrantes O mo.delo economico que dominava .,, 0
a Europa, particularmente a Alemanha e a Italia, no seculo pas.
sado. Embora o sistema que predominava no Brasi l e na Europa .,,
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fosse o mesmo - o sistema capi talista -, ha via diferenc;:as signi-
ficati vas no que se refere a agressi vidade e a tecnologia com
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que nos dois rontinentes se exploravam recursos naturais e hu-
manos. No Brasil predomin avam formas de combinac;:ao de hens e 0
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servic;os que caracterizavam um modelo voltado para o mercado 0 "O 0
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lho escravo. Dessa form a a empresa que desen vol via ati vidades ~ 0 0
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economicas nesta parte da America se organizava a partir desse co
fato. E como seu mercado de consumo se localizava na Europa, ·--0
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242
u
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 que o privilegiavam frente aos habitantes do pais: terras adequa-
das a produ9ao agricola, ricas em madeiras e entregues sob
nao havia preocupa9oes quanto ao nivel de vida econom1co de
financiamento; frentes de trabalho criadas especialmente para
seus trabalhadores. A mudan9a dessa situa9ao se deu especial-
mente por cltera9oes ocorridas na area de consumo, na Europa. A ocupa-lo e remunera-lo logo ap6s sua chegada e enquanto sua
revolu9ao industrial, que permitiu o aumento da produ9ao e exi- terra nao produzia, ou, na entressafra; apoio na comerciali-
giu a arnplia9ao da faixa do mercado consumidor, levou a Europa za9ao da produ9ao. E como ele saiu da Europa para dentro
a pressionar as areas fomecedoras de produtos in natura e as- do sistema economico vigente melhorar sua situa9ao finan-
ceira particular, tratou de aproveitar a oportunidade. Da agri-
sim dependentes. Surgiram assim condi9oes na America para
cultura, partiu para a explora9ao dos recursos florestais e
esta~elecimento de mudan9as nas formas d~ pro,du9ao, utiliza9ao
da m~o de ~bra e uso de be~s. Essa! a razao basica por exemplo logo chegou a indt.istria. Ou, se ja possuia al gum capital, ingres-
da ahtude inglesa a respe1to do trafico e do trabalho escravos sou diretamente na ati vidade industria l
no Brasil. Dessa maneira surgiram alguns dos nucleos mais importan-
Num contexto mais amplo, o mesmo processo que exigia a tes dessa area, como: Curitiba, Joinville, Blumenaµ, Tubarao,
amplia9ao do mercado de consumidores para os manufaturados Sao Leopoldo, Caxias do Sul. E uma centena de pequenas cida-
europeus foi responsavel pela liberac;ao de uma parcela pondera- des e vilas. A economia se diversificou e hoje concentram-se
ve~ da mao de obr~ disponivel na Europa. E havia que se apro- ai os melhores niveis de produ9ao do sul do pais. Industrias
ve1tar esse potenc1al de um modo ou outro. A imigra9ao, no caso, ligadas a produ9ao de tecidos, auto-p~as, siderurgia, alimentos
foi a resposta que de forma ampla atendia aos interesses econo- c madeiras sao comuns; a agricultura e a pecuaria se fa zem pre-
micos vigentes. A Europa eliminava o perigo representado pela sen tes de maneira acentuada; os servi9os, ligados desde a admi-
existencia de parcelas de sua populac;ao sem atividade produti- nistra9ao publica ate ao ensino das universidades regionais,
va adequada; a Europa obrigava a reorienta9ao dos tradicionais tambem sao explorados. Estradas asfaltadas, energia eletrica,
sistemas de produ9ao nas areas coloniais; a Europa ampliava a esta9oes de radio e televisao, jomais, teatros, jardins zool6gi-
faixa de con sumo de produtos manufaturados. cos e museus estao presentes nas principais areas urbanas da
e
Frente a esse quadro que se pode compreender todo o pro- regiao e em muitos casos atingem as pequenas cidades e mesmo
cesso de coloniza9ao do sul do pais. A regiao era dominada por as zonas rura1s.
formas bastante precarias de explora9ao da natureza. No li toral No Vale do Itajai, em Santa Catarina, a atividade industrial
e no interior, as praticas economicas eram voltadas para o si ste- representou no anode 1968, 503da produ9ao total da regiao , en-
ma intemo da colonia e, depois, do imperio. A capacidade de quanto as atividades ligadas aos setores primario e terciario
con sumo das popula9oes ai instaladas era minima. Vi via-se, co- atingiram 203 e 303, respectivamente. Essa produ9ao, em ter-
mo ~~ t.odo o resto. do ~ais, um modesto modelo capitalista. Ao mos globais em 1950 representava 443 do total do Estado. Nos
se in1c1ar a colon1za9ao, ent!etanto, logo se verifica que as anos de 1960 e 1965, com o incremento de outras regioes, o vale
empresas, ao· ~e envolverem diretamente na questao, organizam ainda continuou a deter respectivamente 383 e 353 da produs:ao
~eus empreen?1~ent~s .nos melhores padroes do sistema capita-
estadual. (1).
hsta., E os propnos im1grantes chegam a esta parte da America Nas proximidades da reserva indigena, localizada no alto
tambem com e&sa mentalidade. A pequena propriedade agricola vale do Itajai do norte, as atividades econo micas basicas se
explorada pelo imigrante e sua familia elementar logo se torno~ fundamentam na exploras:ao da agricultura e de recursos flores-
o modulo adequado para garantir exito das colo~ias. E a partir tais, especialmente as madeiras de lei. A agricultura ainda tern
dessa base, a tecnologia peculiar ao mundo europeu do se·c ulo por modulo a pequena propriedade, enquanto a exploras:ao dos
XIX veio garantir sucesso a varias iniciativas no setor da indus- recurses florestais levou as empresas a adquirir areas de por-
tria. f\essa area, pois, desde 0 inicio, a agricultura e a i~dustria te medio OU grande. Nesse ultimo caso, a maior parte das terras
se tqmaram interdependentes. foram obtidas atraves de concessoes junto ao govemo estadual.
Por tudo isto, o . imigrante europeu chegou a esta parte da
America vinculado a um sistema economico bastante agressi vo.
(1) - Funda~ao Universidade Regional de Blumenau, 1969;
E baseado nele, logo iniciou uma mudan9a seria no modelo eco-
nomico local. De saida o imigrante obteve condi9oes de trabalho
245
244
Em dois momentos essas duas atividades fundamentais se entro- lho, sementes selecionadas e aproveitamento das terras libera-
sam: uma, quando o colono negocia as madeiras existentes no das pelas empresas madeireiras tern garantido pelo menos a
lote de terl'as que adquiriu; outra, quando a empresa madeireira manutenc;:ao do volume de produc;:ao.
se confunde com a propria empresa de coloniza~, de maneira Como 643 da populac;:ao do vale do Itajai se localiza na
e
que retirados OS especimes florestais de valor, a terra comer- zona rural (1), numa apareote contradic;:ao com a sua produ9ao
cializada com os colonos-agricul tores. Tendo em vista que o industrial que esta concentrada em algumas cidades-p6los de a-
empreendimento madeireiro exige capital elevado, nao e de se trac;:ao, os problemas da posse e uso de terra e de explora9ao
estranhar que nas maos dos proprietarios das serrarias concen- dos recursos vegetais sao importantissimos nessa area. Basica-
tra-se 0 poder econo mi co e politico da area. mente, as opinioes dos civilizados sobre os indigenas aldeados
Numa resposta 16gica ao sistema capitalista implantado na em lbirama estao influenciadas pelos interesses na terra. Ela e
area, o poder politico sempre se concentrou jun to a quern detinha necessaria para atender aos projetos de estabelecimento da
a maior parcela de recnrsos economicos. A epoca da instala«;:ao familia de um jovem colono. Ela e imprescindi vel para garantir
+ os planos de implanta~o ou expansao da ati vidade madeireira.
da colonia Hammonia, 1897, era a empresa colonizadora hansea-
tica que praticamente decidia sobre o que fazer. Depois, o pres- E como as necessidades extravasam os apertados limites do
tigio da empresa foi cedendo oportunidades de mando para os vale, a reserva indigena ai localizada e constantemente referida
colonos que logravam sucesso economico. E houve lugar tambem para atender as solicitag')es desses proj etos dos regionais.
para Eduardo Hoerhan, pois este afinal representava o govemo A interdependencia de interesses entre a agricultura ea ati-
federal naquele distante sertao, o que lhe garantia diretamente vidade madeireira, juntamente com a deten9ao de maior ou menor
poder politico. Mas, excetuad<r esse caso, o poder na area que quantidade de terras, fundamentou a estrati ficac;:ao social da
diretamente envolve a reserva indigena se concentrou em maos area. Na base da piramide estao localizados colonos e caboclos
de in di viduos ,que estavam ligados aos neg6cios da explora«;:ao brasileiros, nao pr!?prietarios, que sobrevivem pela venda de sua
de madei ras. E verdade que, na area, ninguem se dedi cava ape- fo 1'9a de trabalho. A pa rte desses, e abaixo, situam-se os indige-
nas a uma atividade econ.omica e os madeireiros tinham tambem nas e os mestis;os que residem na reserva. Acima, em direc;:ao do
interesses na agricultura, e as vezes, na pecuaria. Mas essas vertice, em estratos diferentes, situam-se desde OS pequenos
ati vidades eram secundarias. A explora<;:ao em tomo das terras proprietarios ate os detentores de largas extensoes de terra e
do nucleo colonial de Hammonia foi sendo feitat assim, atraves proprietarios de empresas madeireiras.
das ati vidades das serrarias. Enquanto no vale do Itajai a agricultura associa-se intima-
Em dias do presente, a area vizinha a reserva indigena mente ao empreendimento madeireiro, no planalto, onde se loca-
continua a manter uma estrutura economica baseada na explora- + liza o toldo de Sao Joao dos Pobres, predomina a extrac;:ao de
s:ao da pequena propriedade agricola e na extra<;:ao de produtos madeira associada a crias;ao de gado.
florestais. Nos municipios de lbirama, Presidente Getulio, Wit- Devido as facilidades apresentadas pelo terreno e pela pr6-
marsum, Benedito Novo, Dona Emma e ltaiopolis nao existem pria floresta dominada pelo pinheiro, alem de uma estrutura9ao
estabelecimentos industriais de porte que nao sejam ligados a di versa da propriedade, aqui nao ha destaque na ati vidade agri-
extrac;:ao de produtos florestais OU agricolas. Mas esses ultimos cola. Predominam as grandes propriedades submetidas ao domi-
sao poucos, representados por algumas fecularias. Aqueles que nio de um proprietario, simultaneamente criador de gado e ma-
re~lmente aparecem na balan9a de produ9ao da area Sao OS que deireiro. Apenas, num ponto ou noutro alguma colonia de peque-
se dedicam a extrac;:ao e beneficiamento de madeiras. A pequena no porte, onde duas ou tres familias de imigrantes se localiza-
propriedade agricola esta decadente. Suas dimensoes nao re- ram ha tempos passados e ai labutam na agricultura. E, embora
sistiram as continuas partilhas entre herdeiros e ao empobreci- 0 valor maior da produc;:ao madeireira, a area e marcadamente in-
mento dos solos. Por isso existe preocupa9ao por parte de fluenciada pela atividade pastoril.
diversos tecnicos agricolas quanto ao futuro do vale e ha uma
(1) - Fundas;ao Universidade Regional de Blumenau 1969. A populas;ao
continua evasao da popula9ao rural para os polos urbanos regio- do vale do Itaja.i, em 1969, era estimada em 570.000 habitantes resul-
nais ou, mes mo, para outras areas do pais. A produ9ao agricola: tando numa densidade demografica de 43 habitantes por km2. A taxa de
entretanto, nao chegou a declinar. Melhores tecnicas de traba- e
incremento da populacyao de 3,23 ao ano.

246 247
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2 . A RESERVA IND IGENA z
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0 vale do Itajai do Norte e um estreito e ultimo prolonga-
mento para noro este do va l e do Itaj ai. Serpean do en tre as serra- ~
nias, nas proximidades da enc9sta d_a serra Geral , que forma a ::> .J
~ <l <l
borda do planalto, o rio Italai do Norte corre em busca do Itajai- m z Q.
A9 u e da planicie do litoral. Os dois rios se encontram um pouco
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(.)
abaixo da sede do mun icipio de lbirama, onde verdadeiramente C>
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ocorre uma bifurca9ao, um seguindo o rumo norte e outro, o prin-
cipal, o rumo sul. No rumo norte, aindanoseculo passado, foi que m ~ z 2
a Companhia Hanseatica de Coloniza9ao instalou a sede da Co- -
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lonia Hammonia . Dessa primeira unidade, surgiram varios munici-
pios dos quais se destaca, por suas dimensoes territoriai s e lo- <( 0
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calizasao estrategica em rela9ao aos demais, o de l birama. E
nesse municipio que se l ocaliza a reserva incli gen a.
z - ( .) .. ct .J
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A area do municipio de lbirama atinge a 1082Km2, com uma
popula9ao estimada em 1967 da ordem de 21.452 pessoas. ( 1).
0 municipio divide-se em distritos, com suas respectivas sedes --
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localizadas em povoados que outrora eram nucl eos avan9ados da 0

colonia. As cidades mais importantes do vale do ltajai para a z
popula9ao de lbirama sao Blumenau e Rio do Sul, que se situam
respecti vamen te a 85 e 15 Km da s ede do municipio. Atualmente
uma estrada asfal tad a, denominada BR 470, liga lbirama e essas
- <(
cidades e ao resto do Estado, pois essa rodovia articula a BR
116 - que atravessa o pl analto no rumo sul norte - com a BR J 11
que, pelo lito ral, tambem liga Porto Alegre aos campos de Curi-
tiba. Mas o nucl eo sede do municipio de Ibi rama esta afastado
dois quilometros do curso principal da estrada e por isso so o
viajante que tern interesses especificos realiza visita a ci dade.
Nesse sentido lbirama continua a sofrer do mal de se localizar
no fundo de um vale, como ja ocorria ao ser um a simples colonia. ,, ,,
Antes era o ponto mais avan9ado do sertao, para onde se deslo- ,, ,
cava somente quern necessitava de terras. Agora e o nucleo mais ... ,,
importante do vale do Itajai do Norte, mas sua influencia oomo ,,
p6lo de atrayao se reduz a localiza9ao ali de alguns bancos e
certas reparti9oes oficiais ~ue nao se fazem presentes nos mu- 0
nicipios vizinhos de P resi dente Getulio, Wi tmarsum, Dona Emma, 0
Benedito Novo e Itaiopolis. A produ9ao desses municipios, com
o cessa r das ati vi dades da est rada de ferro Pa ran a-San ta Catari- , I

na, deixou de ser concentrac!a em lbirama, ponto termi nal da es-

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(1) - Fundac;:ao Universidade Regional de Blumenau, 1969, mim . c

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trada no vale do Itajai do Norte. 0 transporte rodoviario pennite epoca da colonizac;ao do vale do Itajai, ou seja as casas se lo-
que a produ9ao sej a colocada diretamente nos locais de consu- calizam em lotes coloniais (25.000 m2) e se di stanciam urn a
mo. As principais compras que fazem os comerciantes e os mora· das outras entre 200 a 500 metros, aproximadamente. Dessa ma-
<lores mais abastados desses municipios, com a implantac;ao de neira, nos doze quilometros por onde segue a estrada que acom-
linhas de transporte coletivo que ligam suas sedes municipais panha o Itajai do Norte, atravessando a reserva, se localiza a
diretamente com Blumenau ou Rio do Sul, deixaram tambem de maior parte das casas dos Xokleng. Mas as casas nao s6 se dis-
ser feitas em lbirama. 0 municipio ficou assim diminuido em tribuem nas duas margens da estrada, como tambem do rio. Isto
suas possibilidades de expansao e in flue ncia. Po r isso, as obriga a que muitos tenham de usar pequenas embarcac;oes para
administra90es locais procur2m explorar as condic;oes climati- cruzar o Itaj ai do Norte e assim atingir a estrada. Para os
cas e os contrastes formados pelo estreito vale e as altas ser- Xokleng, a yida sedentaria trouxe varios problemas. Os habitos
ranias que caracterizam a cidade, chamando-a, em cartazes que de limpeza e asseio da casa e arredores, necessarios para evi-
foram estrategicamente colocados as margens da rodovia BR-470, tar doenc;as, jamais foram plenamente adquiridos. A defecac;ao
de "suic;a brasileira". tambem nao e praticada em. fossas sanitarias 0 que facilita a
Do m.icleo urbano de Ibirama partem varias estradas que contamina9ao de doenc;as, especialmente a verminose.
atravessam o territorio municipal ligando-o a outras sedes muni- A reserva abriga 336 individuos que diretamente dependem
cipais ou, mesmo, servindo as muitas linhas de colonizac;ao. da assistencia do posto indigena (1). Esses in di vi duos se auto-
Uma dessas estradas, acompanha o curso do ltaj ai do Norte e -identificam como se segue: 160 sao Xokleng; 33 sao Guarani;
atravessa a reserva indigena. Ate o ano de 1969, essa estrada 11 sao Kaingang; 82 sao mesti9os; SO sao civilizados. Desses
era precarissima e nos dias chuvosos nao dava condic;oes de ultimos, 38 tern antecedentes indigenas, 0 que OS coloca real-
trafego. Nesse ano o govemo do Estado promoveu a sua retifica- mente ria situa9ao de mesti9os. Os demais 12 individuos, sao
c;ao e britagem de maneira que hoje qualquer veiculo pode facil- civilizados que vivem como conjuges de Indios (2). Consideran-
mente atingir a reserva. Da sede de Ibirama ao posto indigena, do esses dados, e excetuando os Guarani, podemos estabelecer
na reserva, ha uma distancia de cerca de 52 Km. Uma linha regu- o seguinte quadro:
lar de transporte coletivo diariamente cruza a reserva, ligando
povoac;oes que estao alem de seus limites e a pr6pria, com a se-
de do municipio. .
A reserva de Ibirama tern, segundo o titulo definitivo '
que foi expedido pelo governo de Santa Catarina, a area de
141.565.866,08 m2. Essa area ainda esta na sua maior parte co-
berta pela floresta sub-tropical, tipica da regiao. Especies ve-
getais como a canela, 0 cedro, a peroba e 0 sassafras sao co-
muns. O vale apertado do ltajai do Norte contrasta com as aftas
serranias, de onde corre·m varios e pequenos cursos d'agua. Des-
ses, se destaca o Plate, responsavel pela forma9ao de um vale
secundario no interior da re~erva. ( 1) - Realizamos um censo na reserva no ano de 1964. De pois verifica-
A populac;ao residente na reserva, indi gen a ou nao, tern a
mos que outras familias indigenas sairam OU regressaram reserva. Em
relac;ao a uma publica9ao anterior, de nossa autoria, os dados apresen-
suas propriedades localizadas as margens do Itajai do Norte e tados agora mos tram diferen9a. No caso, o fato deveu-se a um erro invo-
do Plate (1). A distribuic;ao das casas segue o modulo fixado a luntario de computa9ao. ~ntretanto, destacamos que os dados acima
nao sao compativeis com.. OS elementos fornecidos pelo Posto OU pela
4- Delegacia da FUNAI. Esse detalhe, a nosso ver, em nada prejudica
a interpreta9ao dada aqui.
(1) - Algumas familias de Guarani, nao consideradas especificamente (2) - Levamos em conta 0 grupo de vizinhan9a para confirmar OU nao a
neste trabalho porque somente ha poucos anos se localizaram na reser- auto-identifica9ao dos informantes. Como mesti90, incluimos os indivi-
va, vindos do oeste de Santa Catarina, residem no interior da reserv~, duos resultantes da uniao Xokleng/Kaingang; Xokleng/civilizado;
a
em meio floresta. Kaingang/civilizado.

250
251
 ..
r

QUA DRO II aos Xokleng e mesti9os de forma global, pois na verdade entre
uns e outros nao exi stem diferen9as acentuadas que justifiquem
Distribuis;ao por sexo e idade dos Xokleng e Mesti9os al- a sua separa9ao. Eles integram o mesmo uni verso. Por isso
deados no P I l birama (1) mesmo e que nas piramides a seguir, destacamos aquela que en-
CLASSES XOK L ENG MESTI <;OS TOTAIS globa as duas popul as:oes.
DE Piramides demograficas referentes aos dados apresentados
IDADE M F M F M F T no quadro anterior:

+ -80 1 1 1
75 -79
70 -74 2 3 1 1 3 4 7
65 - 69 2 3 2 3 5
60 -64 7 2 7 2 9
55 -59 3 4 3 4 7 XOKLENG
so -54 5 7 1 1 6 8 14 ,
45 -49 5 5 5
40
35
-44
-39
3 4 2
3
2
3
5
3
6
3
11
6
H M
30
25
-34
-29
7
6
2
13 3 4
6 7
9
8
17
15
26
c 80-X
!S-19
20 -24 3 6 8 4 11 10 21 10-1q
15 -19 8 4 9 6 17 10 27
10 -14 6 8 15 16 21 24 45 65·69
OS -09 10 11 7 22 17 33 so I 60-6\
0 -04 10 15 10 19 20 34 54 I 55 -5~ I
TOTAIS 78 82 59 84 137 166 303 50·5" I
1$.5- ~~

Os dados acima foram obtidos atraves de entrevistas, ano- I ~0- ~4 I

tando- se informa9oes relativas ao sexo, idade e auto-identifica- 35 -J~
s:ao do informante e seu s familiares. A idade foi anotada po r I 30-34 I
aproxima9ao, uma vez que nao ha via condis;oes para se determinar
com precisao o ano de rtascimento dos informantes,. especialmen-
I 25· Z~ I
te os adul tos. Nota- se facil rnente os graves problemas demogra- I 20·2~ I
ficos vividos pelo grupo. Mas se levarmos em conta os dados I f5- 1q I
referidos por Hoerhan e Henry, sobre o numero de Xokl eng exis- I 10-i It I
tentes a epoca da pacificas:ao e durante a pesquisa realizada 5- q I
.
entre 1932 e 34 pelo antropologo americano, verificamos que se
obteve um reequilibrio populacional . E esse reequilibrio fica · 0- 4 I
melhor compreendi do quando se focalizam os dados referentes 765 432 i 0 0 1 z 3 4 5 6 7 8 9 10

(1) - Os 11 indios identificados como Kaingang e os 12 individuos

ci vilizados foram incorporados nesse quadro ao grupo de mestic;:os....-

252 253
 MESTI COS Os dados a respeito da fertilidade da mulh er indigena, se
revelaram parcialmente prejudicados, po rque nao obti vemos de
H M todos os info rm a ntes femininos, em idade adul ta, indica9oes Je-
lati vas ao m1mero de filhos, vivos e mortos, que tiveram. Facil
e compreender, entretanto, que o grupo conseguiu superar a fase
de depopula9ao. Isto foi resultante nao s6 da obtenc_;::ao de resis-
tencia aos agentes causadores das molestias que o grupo des-
conhecia e que recebeu at raves do con tato com os brancos, como
tambem decorrente de doi s outros impo rtantes fa tores. 0 primei ro

__ ·~-~"
........---t lfO· "" __........_

--
----. 35·~9
30.311
.....___, +
relaciona-se com as medidas medico-sanitarias que vieram a ser
colocadas adisposic_;::ao do grupo e que sao representadas espe-
cialmente pel as campanh as de vaci nac_;::ao periodica, pelo uso de
antibioticos e aten dimento medico-hospitalar, em casos graves.
25·19 ~--.....--'
------'--~
·211~~___,
___ _.__ 0 segundo prende-se aos conceitos ideais referentes ao tamanho
r-----'------~10.111 ~---
15·19

...._-----.----~ 5- q ~---------.....&..-----.
. . . . .-------. da familia que os indios e os integran tes da sociedade nacion a l
en vol vente mantem. ] a vimos que na floresta os Xokl eng man ti-
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r - - - '' - - -- - - i l-_
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.. . . . ----'
nham urn a descende ncia relati vamente reduzida. A mulher somen-
te tinha nova c ri anc_;::a quando a primeira ja estava em condic_;::oes
il lo 9 g 1 6 s If 3 2 1 o 0 1 2 3 If 5 6 1 8 9 IO 1J 12 13 111 15 16
de andar e se alimentar por si. Isto provavelmente era decorrente
das condic;oes de vida a que o grupo estava submetido. Agora,
na reserva, esse padrao mudou. A gravidez se repete com espa-
c;os bem mais curtos. E como o tamanho ideal da £am.ilia para o
colono-agricu ltor era bem maio r do que 0 i deal indigena, e pro-
vavel que a mudanc_;::a tenha si do decorrente do contato interetni-
POPULAyAO TOTAL - co e da modifica9ao do sistema adaptativo dos indigenas. Nessa
perspecti va, nao seria possivel aceitar a hipotese de Ribeiro
(1970:315), referente a provaveis al terac;oes fisiol 6gicas ocorri-
H 80·lC
M das com a mulher Xokleng e que seriam responsaveis pela maior
incidencia da gravidez (1).
1S · 19
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30-3~
( 1) - Barros Lima e Camargo, 1971:8 , lembram Davis e Blake para
25-29 c lassificar as variaveis intermediarias res ponsaveis diretamente pela
20-2'4 fertilidade de uma popula9ao, apontando os seguintes fa tores: " 1. fato-
i5· f9 a
res re la ti VOS forma9ao e a dissolu9ao de unioes ; 2 . fa tores relativos
10·1'l
a rela9ao sexual na uniao; 3. fatores relativos a exposi9ao a concep-
~ao; 4. fa tores re la ti VOS a gesta9ao e ao parto " •
5- g
0- Lf
g 8 7 6 5 ~ 3 2 i 0 0 1 2 3 't 5 6 1 8 9 10 11 12 255
 se apresentava diariamente melhor vestido que os demais indios
Ainda sobre a situa9ao demografica da reserva, sao elucida- de sua faixa de idade. Tinha atitudes para rom os demais que
tivos alguns dados referentes ao problema da miscigenac; ao. Em- tambem reafirmavam seu prestigio: "vamos em casa tomar um
bora na reserva coexistam tambem um grupo Guarani e um grupo cafe"; "minha mulher pode escrever a carta"; •teva a fazenda
de caboclos brasileiros, nao ha caso de relacionamento sexual que ela faz a camisa".
declarado entre esses e os Xokleng. A inci denci a da miscigena- Parece-nos que os Xokleng foram levados a criar uma es-
c;ao ocorre entre os Xokleng e os brancos e entre os Xokleng e pecie de "ideal de branqueamento", como s6e ocorrer entre as
OS Kaingang. Nesse sentido, OS Xokleng idealizaram uma serie popula9oes negras do Brasil (2). Esse branquear teria uma certa
de atri butos para os brancos e, as vezes, os estendem aos conotac;ao com a ideia que os indigenas fixaram a respeito da
Kaingang. Tu do isto em decorrencia da si tua9ao historica em fase da pacificac;ao, como sendo "epoca de amansamento". O
que ocorreu a pacifica9ao. Os Kaingang que auxiliaram nesses branquear poderia assim ser tornado romo "civilizar". 0 mesti90,
trabalhos logo se colocaram numa posi9ao hierarquica interme- resultante da uniao branco com indio, seria dessa forma melhor
diaria entre os Xokleng e os civilizados. Assim a mulher Xokleng
+ que o indio puro porque "era mais ci vilizado". Essa ideia se
prefere um parceiro branco para o relacionamento sexual e, na fal- fundamenta na premissa de que os padroes culturais seriam de-
ta deste, aceita mais facilmente um Kaingang. "O indio - isto e, o correntes de transmissao heredi 1·aria. Essas noc;oes rudimenta-
Xoklen g, SCS - nao sabe fazer carinho", explica um a informante. res e falsas de eugenia sao bastante comuns no interior de Santa
"O indio nao sabe trabalha direito", justifica outra. Essa segun- Catarina e nao e de se estranhar que OS indigenas a elas fossem
da explica9ao tern maior aceitabilidade, pois no fundo esta ha-
vendo um processo de integrac;ao num novo sistema economico e
+ submetidos. E como o branco era melhor em tudo, ter um filho
com ele seria uma boa maneira de passar para o descendente
somente obtem prestigio nessa nova ordem quern ti ver condi9oes qualidades que o indigena nao possuia. Seria uma forma de
para responder objetivamente a realidade. No memento em que "melhorar a rac;:a". E foi por isso que em certos mementos de
uma india casa com um ci vilizado ela es ta pro cu ran do refor9ar as nossa pesquisa registramos o interesse de di versos informantes
possibilidades de sobreviver e competir no novo sistema. E o em des tacar entre seus ascendentes um ci vilizado ou mesmo um
mesmo oco rre com os individuos do sexo masculine. Em regra indio Kaingang.
todos idealizam relac;oes sexuais com mulheres civilizadas. Continuando a prevalecer essas ideias entre os componen-
Muito s chegam a realizar experiencias com tais pa rceiras em tes. da sociedade tribal, ha uma tende ncia ao desaparecimento
b6rdeis das vizinhan9as e outros conseguiram alguma mulher gradativ.o do bi6tipo Xokleng. Mais de uma vez, alias, os encar-
branca para conviver. Um de nossos informantes, Juvei Mula, vi- regado s do posto de Ibirama nos disseram, com ares de critica,
via com uma velha colona que tinha mais de sessenta anos. Ao que OS Xokleng j a nao queriam mais casar entre s i.
perguntar-lhe porque ele nao casava com uma mulher mais mo9a, A populac;:ao da reserva Ibirama se apresenta ao estranho
se havia tantas na reserva, ele respondeu-me: "sim, el as sao de modo mais ou menos homogeneo. Brancos, mestic;:os e Indios
mo9as, mas nao sabem fazer ro9a e comida; nao gostam muito de pouco diferem no modo de dispor hens e servic;:os. Excetuados os
trabalhar. A mulher que, tenho faz tu do. Ela e ci vilizada; ela sa- funcionarios do posto, os bran cos que vi vem na reserva sao po-
be fazer as coisas". Esse mesmo indio, antes de 1932, quando bres caboclos ou colonos que, fal tos de terras e outros recurses,
Henry iniciou sua pesquisa, fora casado com uma india. Mas es- ali lutam precariamente pela sobrevivencia. Mas quando observa-
sa mulher o traiu e ele segredou para o antropologo, numa opor-
tunidade, que as mulheres Xokleng dormiam com outros homens (2) - "A cor age, pois, de duas maneiras, seja como estigma racial se-
sempre que seus maridos estavam ausentes e por isso ele so vol- ja como s imbolo de um estatuto social inferior. Se assim e, qu'anto ·
taria a casar com uma mulher brasileira (l ). Mas., na verdade, mais o negro se aproxima do branco, pela tez, pe los tras;os do rosto
nariz afilado, cabelos lisos, labios finos, maiores as suas possibilida~
Juvei Mula era referido na reserva com certa deferencia. E ele des de ser aceito" (Bastide e Fernandes, 1955 : 140). " A nalisar o ideal
de branqueamento e focalizar um dos padroes fundamentais envolvidos
na constituis;ao das familias de negros e mulatos. " Branquear" euma
aspiras;ao "Universal". Negros, mulatos escuros e mulatos claros - to-
dos querem branquear" (Cardoso e Ianni, 1960 : 183).
(1) - Henry, 1941:25 /26.

257
256
 90es sistematicas com~am a ser feitas pelo investigador, a. dos trabalhos que o posto procurara desenvolver. A tudo isto ja
aparente homogeneidade cede lugar para varios ni vei s de estrati- nos referimos em paginas anteriores. Mas e a partir dessas no-
fica9ao social e de participac;ao na sociedade envol vente. Ha c;oes que podemos entender como o Xokleng se apresenta como
indios que sabern ler e escrever; que prestam o servi90 rnilitar; produtor em dias do presente.
que possuem titulo de eleitor; que tern profissao definida, como Ao ocorrer a saida de Eduardo Hoerhan da dir~ao do posto,
carpinteiro, professor, costureira, etc. Ha outros que tiveram imediatamente os indigenas forarn estimulados a explorar os re-
experiencias de vida particulares, conhecendo o funcionamento curses florestais existentes na reserva. Inicialmente, foi o pal-
de outros postos do sul do pais, cidades .ou prostibulos. Ha In- mito (Euterpe edulis Mart) o recurse mais valorizado pelos regio-
dios rnembros atuantes da lgreja Assembleia de Deus. E ha ainda nais. Na area do vale do Itajai haviam se localizado diversas
OS que pOUCO sabem falar portugues e que vivem submetidos a empresas dedicadas a fabricas;ao de conservas e o palmito esta-
cultura · tradicional, naquilo que ela tern de basico. Ha, portanto, va assim sendo industrializado e comercializado para os grandes
um verdadeiro gradiente que permite a localiza9ao dos varios in- centros urbanos do pais e, mesmo, do exterior (1). Algumas
tegrantes do grupo, conforme suas expectativas e modo de a9ao dessas empresas tinham suas sedes localizadas em Sao Paulo
diarios. Num sentido amplo, pode-se admitir que as gera9oes mais ou Rio de Janeiro e dispunham ate de cinco ou mais fabricas de
jovens estao mais envolvidas pela sociedade nacional do que as conservas instaladas nos mais diferentes lugares do interior do
gera9oes ma is velhas. E enquanto os primeiros se preocupam pa.is, onde predominassem facilidades para a explora9ao do
COm futebol, bailes, festas de igreja OU musica, OS ultimos vez Euterpe edulis. Isto e decorrente do fato de ser razoavelmente
ou outra ainda manifestam participar de parcelas da cultura tra- facil a instalac;:ao da pouca maquinaria que a indtistria requer e,
dicional. ao mesmo tempo, atender ao processamento quase imediato que
a materia prima exige, depois de apanhada na floresta. Nesse
sentido sao esclarecedores alguns dados referentes a uma indiis-
3. 0 XOKLENG COMO PRODUTOR
tria de conservas, localizada em Timb6 (2), fornecidos por seu
Ao saltarem da condic;ao de nomacles-cac;adores para a de gerente em 23 de julho de 1965 e assim registrados em nosso
sedentarios, os Xokleng ti veram de sofrer uma mudan9a funda- diario: A firma cem sede em Sao Paulo e possui cinco filiais no
mental em seu sistema adaptativo, tomando-se agricultores. E sul do Brasil, inclusive esta de Timb6. A fabrica trabalha com
evidente que isto nao ocorreu nos dias imediatos que se segui- 15 operarios e esta em final de produ<;ao por falta de materia
ram a pacificac;ao. 0 processo de mudanc;a, embora brusco, real- prima na area. A produ<;ao quando no auge atingia a media de
mer:ite levou anos para ser aceito pelos indigenas. Schaden (1946) 150.000 quilos mensais. A materia prima e obtida na area. A fir-
destaca que ~o exemplo dos Xokleng mostrou mais uma vez que ma costuma adquirir propriedades para extrair o palmito ou com-
0 abandono dos antigos costumes nao e coisa facil. ·os velhos pra o palmito de terceiros ( ... ) A fabrica tern um funcionario que
se aproximavam do posto somente ate certa distancia, conservan- e encarregado de adquirir a materia prima. Para tanto, tern orde~
do o seu pr6prio acampamento no interior da floresta". nado especifico e usa o caminhao da fabrica para o transporte.
Foi nesse quadro que os indigenas tiveram de aceitar pri- Bruno (norne do funcionario-SCS) tern a obriga<;ao contratual de
me_iramente a mudan9a de seu regime alimentar. 0 posto nao entregar o palmito na fabrica a razao de Cr$ 115,00 (cruzeiros .
podia mante-los a base de carne, devido 'as suas limita9oes or- velhos - SCS) por quilo. Assim, ele tern oportunidade de com-
9amentarias. Os produtos originarios das ra9as cultivadas foram prar por menos e entregar na fabrica pelo pre<;o estabelecido, au-
~ss}m sendo utilizados para dieta indigena. E, logo depois, os
ferindo lucro ( ... ). A fabrica evita dessa forma quaisquer compro-
indigenas de meros consumidores de produtos agricolas, se tor-
naram seus produtores. 0 posto atuava como orientador das no-
vas atividades economicas desenvolvidas pelos silvicolas e na (1) - 0 Estado de Sao Paulo de 15 / 10/ 70 apresenta ampla reportagem
organiz89ao da empreitada agricola, incentivando o trabalho do sob ci titulo "Chegam ao fim as reservas de palmito", tecendo conside-
ra~oes sobre a explora~ao e comercializa~ao dessa especie vegetal.
grupo em termos coletivos. Extensas ro9as foram assim cultiva-
das e os indigenas acabaram por se habituar a esse tipo de ati- (1) "Fabrica de conservas Cai~ara" de propriedade da empresa, Oarde
Correa.
vidade, embora ti vessern deixado de aceitar a orienta9ao coletiva

258 259
missos com a mao de obra necessaria a obten~ao da materia
prima• (1 ).
A competi<;ao existente entre as diversas empresas interes-
sadas no palmito levou para o interior da reserva indigena varios
prepostos, todos interessados em engajar os indigenas na explo-
ra9ao desse recurso natural. Esses prepos tos, no caso, tinham
dois tipos de interesses. Primeiro, utilizar a mao de obra indige-
na para um tipo de tarefa relativamente facil, mas de dificil
aceita9ao entre os civilizados, porque exigia um trabalho arduo
para o transporte das pe9as coletadas e interioriza9ao do indi-
viduo no sertao. Segundo, aproveitar o potencial natural da re-
serva de modo gratuito, pois esses prepostos pagavam aos indi-
genas 0 trabalho para tirar 0 palmito da floresta mas nao OS re-
muneravam com qualquer parcela destinada a compensar a ex-
plorac;:ao de um recurso do qual eles eram os legitimos senhores.
E foi devido a isso que a mao de obra em si nao foi de todo
aviltada. Os prepostos ofereciam por exemplar de Euterpe edulis
colhido, uma remunera9ao razoavelmente compensat6ria, segundo
os salarios a que os indios estavam habituados e frente a relati-
va facilidade, nos primeiros anos de explora<;ao, de se obter
uma quantidade razoavel de especimes durante um dia de traba-
lho.
E s timulados pela anuencia dos encarregados do posto, fa-
cilitados pela estrada que foi aberta no interior da reserva e
sis tematicamente solicitados por prepostos de empresas, os in-
digenas rapidamente se envolveram na nova atividade economica.
Abandonaram suas ro9as e com~aram a se internar na floresta
em bu sca da Euterpe edulis, na medida em que os especimes lo-
calizados nas margens dos rios ltajai do Norte e Plate, e na
orla da floresta que rodeava as ro9as foram sendo colhidos. No
inicio, regressavam para suas casas 'a noite, trazendo as costas.

(1) - Para s er colhido o palmito, faz -se nec essario c ortar a palmeira.
E s t a c res c e nativa em locais ecofogicamente favoraveis, de clima tro-
pic al. No Brasil somente em tempos recentes s e c ome~aram a fazer
e xpe rienc ia s com o cultivo das palmeiras produtora s de palmito, res-
pec tivamente Euterpe edulis Mart e Euterpe Olereacea, havendo o risco
de desaparecimento dessas espec ies devido a devasta~ao praticada
pelos palmiteiros. Citando boletins da Cacex, o J ornal Estado de Sao
Paulo de 15/ 10/ 70 aborda o problems e diz que •o Brasil exportou em
1968, 2. 092 .840 quilos de paJmito, no valor de Cr$ 3.683 .593,00. ja no
ano de 1969, a exporta~ao elevou-se a 3.155.569 quilos, no valor de
Cr$ 7.149.976,00 ( ... )".

260

Confec~ao de tanga em urtiga brava. F oto de Vladimir Kozak.

 0

um feixe formado pelos exemplares colhidos (1). Reunidos em

casa, e depois juntados ao coletado pelos demais vizinhos os
feixes de palmito eram recolhidos pelo caminhao da emp;esa
-- proximidades do acampamento, ou ate o ponto em que as prec&.
rias estradas dessem acesso, com um caminhao para recolher a
produ9ao. A pedido do representante do preposto, o caminhao j~
interessada ao final da semana. Depois, na medida que as dis- trazia alimentos e outros artigos indispensaveis a sobrevi vencia
tancias iam aumentando, os indigenas comeyaram a estabelecer do grupo. Ao chegar o "caminhao palmiteiro" o preposto junta-
a.campamentos na floresta. Primeiro eram acampamentos para mente com seu lugar tenente, ~fetuavam a classifica9ao da pro-
ficar a semana e, depois, se transformaram em ambientes para du9ao que, de acordo com o diametro de cada exemplar de Euter-
se passar meses seguidos, enquanto se explorava totalmente os pe edulis, podia receber o r6tulo de palmito de primeira; de se-
palmitais vizinhos. gunda OU terceira. A partir dessa classifica9ao e a base de pre-
A dedica9ao a explora9ao do palmito levou OS Xokleng a s;os previamente estabelecidos, cada integrante do grupo recebia
uma total dependencia das empresas compradoras. Isto porque as a parcela a que fazia jus. E, logo em seguida, come9ava a ad-
ro9as deixaram de ser cultivadas, bem como foram abandonadas quirir as mercadorias e utilidades de que necess itava.
as escassas atividades criat6rias. 0 grupo, baseado nos rendi- 0 preposto nao assumia ~uas fun9oes apenas para organizar
mentos auferidos com o palmito e correspondendo a estimulos o trabalho indigena. Ele, na verdade, recebia da empresa inte-
dados pelos regionai s, passou a se abastecer de tu do que neces- ressada por toda a produ9ao preyos superiores aos que remune-
sitava para sobreviver nas "bodegas" vizinhas ao posto ou junto rava os integrantes do grupo. E tambem classificava os exempla-
ao proprio comprador de palmitos. res colhidos de tal maneira que a maior parte dos palmitos, ad-
E como os rendimentos auferidos, nos primeiros anos da + quiridos dos integrantes do grupo como sendo de segunda, eram
exploras;ao, eram relativamente altos, logo os indigenas foram entregues a fabrica de conservas como sendo de primeira. E os
levados a dispor de um maximo de hens de consumo. Espingar- de terceira, como de segurida. Em janeiro de 1967, testemunha-
da s , roupa s, bijouterias e mesmo artigos como radio s e bicicle- mos o individuo Arnoldo Mor16, civilizado casado com uma india,
tas foram vendidos largamente pelos comerciantes da area aos tomar-se preposto de uma empresa e diretamen te organizar um
indigenas, ao mesmo tempo que toda a alimenta9ao era tambem grupo par~ extrair palmitos. A essa epoca a produ9ao era escas-
adquirida diretamente aos regionais. sa, devido a depredac;ao intensa. Contudo Arnoldo reuniu 15 in-
Os trabalhos de extra9ao do palmito obedeciam a um esque- teressados e muitas vezes saia da reserva para explorar palmi-
ma razoavelmente rigido. Um civilizado residente na reserva, ca- tais particulares, alguns localizados em municipios distantes. A
sado com uma india, um mesti90 ou mesmo um indio se articula- empresa inter~ssada garantia para Arnoldo Morlo transporte para
va com o preposto da empresa interessada e dele se tornava re- os integrantes do seu grupo, alem de credito em mercadorias pa-
presentante. No interior da reserva esse representante do prepos- ra ele poder fornecer aos indigenas. E pagava por exemplar de
to formava um grupo, com seus parentes, vizinhos e outros indi- palmito entregue ao "caminhao palmiteiro", as seguintes impor-
viduos que pudesse envolver. Em seguida escolhia o local onde tancias, de acordo com a classifica<;:ao: primeira Cr$ 0,28; segun-
se iniciaria a explora9ao do Euterpe edulis e la fixava um n1sti- da Cr$ Q, 12; terceira Cr$ 0,6. Arnoldo Morlo, entretanto, pagava
co acampamento. Os integrantes do grupo se deslocavam com para os integrantes do seu grupo, por exemplar apresentado junto
suas familias. E durante semanas inteiras ficavam a esquadri- ao local onde o caminhao faria o recolhimento, as importancias
nhar a floresta em tomo do acampamento depredando-a de todos respectivas de Cr$ 0,12; Cr$ 0,6; e Cr$ 0,3. Isto garantia ao
os exemplares da palmeira Euterpe edulis. organizador do grupo, lucros que atingiam 1003 , afora o que era
Ao final de cada semana, ou em qualquer outro dia previa- ainda gravado em seu beneficio nas mercadorias que a fabrica
mente escolhido, o preposto da empresa interessada chegava as enviava para ele redistribuir, e assim fomecer, aos indigenas.
Os lucros de Arnoldo Morl6, hem como de outros prepostos,
nao chegavam entretanto a permitir um distanciamento efeti vo
entre ele e os demai::: integrantes do grupo tribal. A atividade
de um grupo de extratores e a sua pr6pria organiza9ao interna
e
(1) - 0 palmito do alto vale do ltajai em regra de tamanho pequeno
eram muito precarias. De maneira que os grupos se faziam e des-
e medio, pes ando entre 500 e 1.200 gramas. Os Xokleng facilmente
transportavam SO a 70 palmitos por feixe. faziam com uma rapidez incrivel, alem de muitos indigenas pre-

262 ) . 263
 Sobr evive nt e e d esce nd e ntes ttmes ti r;os "
em Sao Joao dos Pobres

ferirem executar os trabalhos somente com os integrantes de sua

familia elementar. Isto garantia aos encarregados do fornecimen- .,....
to da materia prima as fabricas de conservas, oportunidades para
aproveitar em beneficio proprio o que deveria tocar ao preposto
no interior da reserva.
A extrac;ao de palmito levou os Xokleng a novas e inespera-
das situac;oes, no contexto do sistema economico regional. Uma
das mai s interessantes dessas si tuac;oes foi o arranj o que os
Xokleng estabeleceram para permi tir que as pessoas que nao
eram reconhecidas como do grupo, tivessem possibilidade de
participar da extrac;ao de palmito. Os Xokleng sempre se consi-
deraram donos da reserva. Por isso, acharam-se com o direito de
"dar concessao" para quern quisesse explorar o palmito e que
nao fosse reconhecido como indio. Alguns civilizados estavam
isentos dessa regra porque eram casados com indigenas. Essa
decisao baseava-se na orientac;ao do pos to indigena de somente
permi tir a explorac;ao dos recursos naturais da reserva pelos in-
dios. E como havia no interior da reserv a um grupo de caboclos,
que vi via em condic;oes precarissimas de vida, os indigenas cria-
ram um modo particular para lhes permitir auferir algum lucro
explorando o palmito. Um caboclo fazia sentir a um indio que
desejava ser "palmiteiro". 0 indio dizia que estava hem e com-
.· binavam ir para a floresta. Ao final da semana, o caboclo entre-
gava sua produc;ao ao indio e este a passava para o "caminhao
palmi teiro", recebendo por seu valor e como se toda produc;ao
fosse sua. Depois, em particular, pagava ao caboclo, valorizan-
do sua produc;ao sempre de modo inferior ao que fora atribuido India atravessando o Itajai do Norte
pelo encarregado de compra, no "caminhao palmiteiro". Essa di-
ferenc;a funcionava como especie de taxa de concessao e todos
os indios dela faziam questao, quando ha vi a oportunidade de en- lnstrumento musical tradicional. F otos do au tor e de Gerlach.
gajar um ca~clo na explorac;ao do palmito.
A reserva indigena tinha limit es para permi tir a explorac;ao
descontrolada e constante de Euterpe edulis. Dessa maneira,
passados 10 anos de continua ati vidade dos "palmi teiros", os
recursos naturais se esgotaram. Os sintomas desse esgotamento
nao foram percebidos pelos indigenas, nem pelos funcionarios do
posto. Nern tampouco as conseqiiencias. Todos sa biam que esta-
va cada vez mais dificil obter um feixe de palmitos; todos co-
mentavam sobre os esfon;os que eram necessarios para chegar a
locai s de dificil acesso e de la trazer, as costa s, uma carga de
Euterpe edulis; todos recordavam saudo sos os enormes palmitos
que eram colhidos quando "os caminhoes palmiteiros com~aram
a aparecer po r aqui". Mas ninguem previa as funestas con seqii en;
cias que o desaparecer do palmito traria pa ra os indigenas. E

264
 que nesses 10 ano s de explorac;ao eles haviam abandon a do s uas sementes de milho hibrido, esperando colher 220 sacos, de 60
roe; as e criac;oes ; haviam se ha bi tuado ao recebimento semanal Kg cada; 10 Kg de feijao, esperando colher 14 sacos, de SO Kg
referente ao pagamento de sua produc;ao; haviam se acostumado cada. Simultaneamente, entre deze mbro de 66 e fevereiro de
'a aquisi9ao semanal de produtos alimentares e outros hen s junto 67, essa familia havia cortado 10 m3 de madeiras de lei, ao
aos regionais. Agora, alem de falta r o palmito, os indigenas nao prec;o de Cr$ 1,50 o m3 e cortou SO m3 de lenha no valor de
tinham reservas, nem estimulos, para regressar aos trabalhos Cr$ 1,00, por m3. Assim a famili a teve a disponivel de Cr$ 65,00,
agcicolas. Dessa maneira a penuria economica ,se inst:llou na re- para enfrentar suas necessidades durante 90 dias.
serva, obrigando ao Servic;o de Prote9ao aos Indios tomar algu- E fato que a pesca, a ca9a, restos de alguma antiga roc;a,
mas providencias. Estas inclufram a su bstituic;ao do enca rregado auxilios esporadicos do posto indigena, frutos sil vestres e cul-
do posto. tivados, a comercializa9ao de algum artefato tradicional, pude-
0 novo chefe do posto indigena teve a imediata sensi bilida- ram oferecer no periodo algum complemento aquela renda. Mas,
de de abrir frentes de trabalho, assalariando indios para fazer se considerarmos que a situac;ao apresentada e a melhor que en-
ro9as para o posto; articulando a explorac;ao de madeiras e pa- con tramos no posto durante o ano de 1967, teremos ideia da pe-
lanques com empresarios regionai s com a utilizac;ao de mao de nuria vi vida pelos demais componentes do grupo.
obra indigena; estimulando a elaborac;ao de roc;as individuais Al em dessa precariedade visi vel do processo de prodU<;:ao,
entre os indigenas, pela distribuic;ao de sementes e pelo favore- outros dois aspectos puderam ser anotados. 0 primeiro deles re-
cimento da execuc;ao de tarefas pelo sistema de ajuda mutua en- fere-se a comercializac;ao dos excedentes produzidos. Os comer-
tre vizinhos, o conhecido mutirao. ciantes localizados na periferia da reserva sabem que o Indio
A volta a agricultura se deu, entretanto, num quadro inteira- tern necessidade de vender sua produc;ao, para imedi atamente
mente novo, e, ate certo ponto, desestimulante. 0 ret a rdo com adquirir outros hens. Por isso, desvalorizam os produtos que
que os resultados da atividade eram alcanc;ados; a relativa dificul- lhes sao oferecido s pelos sil vicolas. Quando os aceitam, em
dade em colocar no mercado regional os excedentes di s poni veis; regra, costumam ado tar o regime de "troca", pelo qual os indi-
e, ate mesmo, o processamento que a maioria dos produtos exige genas recebem por prec;os bas tan te superio res a medi a regional,
antes de estar em condic;oes para ser levado ao mercado, deses- as mercadorias de que necessitam ( 1). 0 segundo liga-se direta-
perou muitos dos indigenas. De maneira que a maior pa rte da mente ao uso da mao de obra indigena por parte do posto, pelo
produ9ao agricola praticamente se reduzi u ao necessario rio pa- seu assalariamento diario. Isto levou muitos indios a pratica-
ra o consume intemo do grupo domestico. E todos trataram de mente nao realizar qualquer ro<;:a, poi s 0 salario diario, a primei-
valorizar as . oportunidades de sai r da reserva para trabalhar ra vista, era al go compensador pelo seu uso imediato. Passado
num palmital particular, atendendo solicitac;:ao de mao-de-obra de o periodo em que o posto realiz ava suas ro<;:as, os indigenas as-
algum preposto das empresas de conserva (1); ou de tirar le- .Sim engajados viam-se sem trabalh o e tambem sem ro9a s .
nha e palanques nos troncos de arvores caidas nas coivaras ou, Na reserv a indi gena, em 1967, vigoravam os seguintes regi-
ainda, tirar madeiras na floresta. . mes de trabalho e respectivos valores: empreitada - quando o
Um exemplo de situac;ao economica a que estao submetidos in di vi duo realizava determinada tarefa (limpeza de uma ro9a, por
OS Xokleng, e da do pela familia de Waenkli Kopaka. Esse indio
+ exemplo) a prec;o previamente combinado; diarista a bas e de
conta com a colabora9ao de sua mulher; de seu filho casado; da Cr$ 1,50, sem ali mentac;ao, e entre Cr$ 0,80 e Cr$ 1,00, com ali-
mulher de seu filho; de um filho e um a filha solteiros e a dultos. menta9ao (almoc;o e jantar) . A jo rnada de trabalho e de sol a sol,
No ano de 1967, a familia de Waenkii Kopaka plantou: 40 Kg de
(1) - A area e essenc i almente monetaria e m suas relavoe s mercantis
que envolvem civilizados . Contudo, os comerciantes costumam "vender
(1) - No vale do ltajai a mao de obra e bastante valorizada , se ndo
0 maximo" para quern tern mercadorias par~ !hes oferecer e as quais
dificil se encontrar civiliz ados disponiveis para os trabalhos de "tira-
9ao de palmitos ", por ser tare fa que exige acampar na flores ta e habi- eles estao interessados. No caso dos indigenas, essas rela<;:oes se tor-
tos frugais. Os indios Sao requisitados para esse trabalho porque rela- nam mais espoliativas porque o comerc iante sabe que difi!cimente o
tivamente exigem pouco das empresas, seja em salarios, seja em res- indio podera ir mais adiante a procura de quern melhor valorize sua pro-
ponsabilidades le gais. du9ao. Dai a troca.

266 267
 6. Ab6bora Fevereiro a maio Junho a setembro
isto e das 6 as 18 horas, com uma hora para o almo90. Os Guara-
ni e os caboclos sao os que mais aceitavam esse tipo de ativi-
dade, atuando j unto aos ci vilizados que sao arrendatarios na II. FRUTAS
reserva ou a seus vizinhos e, as vezes, . aceitando os trabalhos
oferecidos nas ro9as particulares desenvol vidas pelos funciona- a) Plantas ,
rios do posto OU pelos pr6prios Xokleng. Esses ultimos, somen- cultivadas Epoca de colheHa
te aceitavam assalariamento junto ao posto indigena, dedicando 1. Banana Janeiro a dezembro
a maior parte de suas energias a explora9ao de recursos flores- 2. Laranja Abril a junho
tais e, ou, ao cultivo de ro9as. Os Xokleng tambem nao costu-
mavam aceitar empreitadas oferecidas pelos regionais, a nao ser 3. J\t1amao Janeiro a dezembro
aquelas ligadas a explora9ao do palmito, e nao costumavam
sair da reserva para oferecer sua for9i::l de trabalho. b) Plantas
A prodU<;ao e o con sumo entre os Xokleng, hoj e, se apresen- ,,.
ta semelhantemente ao que ocorre na sociedade regional. Cada silvestres Epoca de colheita
familia produz e consome isoladamente. Nao ha intercambio ins- 4. Figo dezembro
titucionalizado entre uma familia e outra, a nao ser o mutirao
que al gum as vezes e praticado para o cumprimento das ati vida- 5. Guaramirim dezembro
des mais pesadas do cultivo. Mesmo parentes prc5ximos nao se 6. Sacupari Janeiro a fevereiro
auxiliam mutualmente, Por isso, os casais velhos, em regra, 7. Mamao abril
adotam crianc;as, pois essas podem vir a ser seus arrimos, quan-
do a velhice se tornar mais acentuada. Em muitos casos, teste- 8. Goiaba Janeiro .a abril
munhamos velhos invadindo as escondidas ro9as alheias para
obter algum alimento, pois nenhum de seus parentes os auxilia-
III. PESCA
va.
Para melhor elucidar a situac;ao dos Xokleng como produto- Especies Tecnica de apanha Periodo de Pesca
res, apresentamos a seguir dados referentes a agricultura, ·a ca-
9a ea pesca. 1. Cascudo tarraia ou covo dezembro e janeiro (*)
'
2. Cara tarrafa ou anzol dezembro e janeiro
QUADRO III 3. Piaba tarrafa ou anzol dezembro e janeiro
Rela9ao de produtos agricolas, frutos, peixes e ca9a explo- 4. Jabicu tarrafa ou anzol dezembro e janeiro
rados pelos integrantes da reserva indigena Ibirama. 5. Traira tarrafa ou anzol dezembro e janeiro
6. Jundia tarrafa ou anzol dezembro e janeiro
I. AGRICULTURA
7. Mandi tarrafa ou anzol dezembro e janeiro
Plantas ,,. ,,. 8. Carpa anzol dezembro e janei~o
cultivadas Epoca de plantio Epoca de colheita 9. Peixe aipim
1. Milho Fevereiro a maio Julho a dezembro
2. Aipim Janeiro a setembro Janeiro a dezembro
3. Batata Janeiro a setembro Janeiro a dezembro
4. Arroz Junho a dezembro Setembro a abril (*) - Este eo periodo de maior produtividade
5. Feijao Agosto a fevereiro Outubro a abril

269
268
 IV. CAc;A ) os primeiros contatos do padre e seus companheiros com Hoe-
rhan e os indigenas forarn bastante frios. 0 padre foi inforrnado
a) Aves Periodo de Ca9a pelo pacificador que, devido ao regul amento do Servic;o de Prote-
l . Macuco Maio e agosto (periodo de ca9a per- 9ao aos Indios, nao podia favorecer a conversao dos indigenas
2. Jacutinga para esta ou aquela religiao. Mas o Kaingang Preie, que acompa-
maio a agosto mitido pela legisla-
nhara Hoerhan nos primeiros anos de contato, foi indicado para
3. Inhambu maio a agosto 9ao brasileira que e colaborar com o padre Komineck. Devido a isto, algum tempo de-
4. Uru maio a agos to impos to aos indios pois o padre organizava um a segunda expedic;ao ao Posto. Duran-
te essa e s tada o padre realizou o batismo de 98 Indios. Segundo
5. Jacu maio a agosto pelo PI-como tecnica tradu9ao de Ruy Wachowicz, o padre Kamineck assim narrou es-
6. Jacupema maio a agosto de apanha utiliza-se se acontecimento (1): "Dirigi-me logo ao "cacique" Eduardo pa-
7. Tucano maio a agosto apenas arma de fogo} ra cumprimenta-lo. Recebeu-me de coras;ao e logo de inicio des-
8. Pavao maio a agosto culpou- se pel a sua falta de hospi talidade por ocas·iao de minha
primeira visita ao posto {... ). Convidou-nos para tomarmos nos-
9 .· Pomba maio a ago.sto sas refeis;oes com e le, durante nossa estadia ali. Apesar de ter-
10. Tucani90 maio a agosto mos trazido conosco muitas provisoes, nao era possivel recusar
o convite (. .. ). Por ocasiao do desjej um, perguntou-me se seri a
b) Animais P e riodo de Ca9a possivel que eu bat izasse a lgumas familias dos botocudos, as
1. bugio Janeiro a dezembro quais haviam solicitado o santo batismo {. .. ). Ap6s a ref.ei<;a..o,
conduziu-me a uJT\a outra habita<;:ao, onde com grande admtra<;ao
2. macaco Janeiro a dezembro encontrei um altar preparado. Como depois cheguei a saber, vie-
3. porco Janeiro a dezembro ra da l ocal idade de Ascurra, um italiano que era sacristao, para
4. tateto Janeiro a dezembro a coloca<;ao do al tar {. .. ) pelas 9 horas, Eduardo mandou ch a-
5.
6.
7.
anta
veado
quati
J aneiro a
Janeiro a
J aneiro a
dezem bro
dezembro
dezembro
1
'
mar todos os traba lhadores do posto, e disse-lhes, que naque l e
dia e no seguinte, seria proibido trabalhar, em mem6ria do fato
de alguns botocu dos receberem o santo batismo. Seria no posto
dia santificado {... ). Pouco ap6s, no caminho que conduzia ao
8. tatu mato, apareceram os indios. Marchavam em fila. Na frente vinha
J aneiro a dezembro
um velho grisalho o qual contava 126 a nos. Andava com passos
9. sararepe J aneiro a dezembro firmes e na mao direica s egurava um arco; o bra<;o esquerdo nao
10. cotia J a nei ro a dezembro possuia (. .. ). Apesar dos a rgumencos e das persuasoes do Eduar-
11. paca J ane i ro a dezembro do, o velho nao aceicava, e m hip6tese alguma vescir-se, nem
quando vinha ao posto. Em seu meio, os botocudos, tanto homen s
4. A<;AO DE IGR EJAS E ESCOLAS NA RESERVA como mulheres a ndam nus, mas vestiam-se quando iam ao posto.
A maioria concordava com es ta determina<;ao ( ... ); atras do ve-
Logo ap6s a attac;ao dos Xokleng as margens do Plate, o Iho vinham os homens guerreiros, regularmence vestidos, cada
posto foi visitado pelo padre Joao Komineck C.M., responsavel um com suas armas: arcos, flec has, Ian<;:as e tacapes. Atras
pela par6quia polonesa de Alto Paraguac;u, que en vol via as co- vinham as mulheres, carregando nas costas os utensilios . Na
lonias localizadas nas proximidades da borda do planalto, numa cabe~a e ra colocado um arco largo, ao qual amarrava-se uma
extensao da colonizac;ao efetuada pelo Parana nas margens do
rio Negro. Ruy Wachowicz ( 1969: 485) indica que o padre organi-
zou a expedic;ao com 12 ou 13 pessoas, partindo da colonia Born
(1) - Wa c h o wicz, 1969:486, apresentando texto tra duzido da Roc zniki
Sucesso em direc;ao ao rio da Prata, afluente do Itajai do Norte. Obydwoc ~ ;Zgromadz em SW. Win~entego a Paulo_. Wydawnictwo naklad
A documenta9ao polonesa utilizada por esse autor demonstra que Kziezy Mis1onary rok XXI, Krakow , 1924, n? 1, pa gs . 70/ 72.

270 271
grande cesta, feita de bambu ou <je saco. Neste rec1p1ente, a
mulher carregava tudo o que possuia, inclusive uma, duas ou t6rio· a dir~ao do Servic;o de Prot~ao aos indios, no ano de
tres crian~as, as quais, para nao cairem, seguravarn-se aos ca- 1928, Hoerhan reclamava' dos habitantes dessas colonias do alto
belos da mae. Apesar de sobrecarregadas com este peso, nao da serra, pelos vicios que haviam incutido nos sil vi colas.
demonstravam qualquer cansa~o. Ao lado dos adultos, estavam A experiencia catolica .dos Xokleng foi praticamente reduzi..
as crian~as nuas ( •.. ). Alguns homens, com o cacique a frente, da a ac;ao do padre Komineck. Os padres cat61icos que vieram
aproximaram-se de mim e cercaram-me em circulo. Depois de atender aos nucleos coloniais instalados nas vizinhan9as do
muito confabularem, abriram-me a batina no peito e olharam-no posto, jamais tiveram tempo suficiente para atender aos silvico-
uma e outra vez; examinaram-me os olhos e rnoviam a cabe~a. las. Por isso entre os anos trinta e 1953, os Xokleng ficaram
Finalrnente baterarn-rne nas costas e notificaram-me de que eu sem assistencia religiosa. N esse ultimo ano alguns indios foram
era "Kaken", is to e, irrnao e amigo. Em seguida examinaram as con vi dado$ a participar de uma festa organizada na periferia da
minhas vestes: batina, cinto, tudo lhes interessava e os adrnira· reserva, por adeptos da lgreja Assembleia de Deus. Como gosta-
va. Reviraram os bolsos. Examinaram-me todas as frentes e la- ram do que viram, foram convidados a participar do culto no do-
dos. Por semelhante revisao passaram todos os meus acompa- mingo seguinte. Num prolongamento desse primeiro convite, nos
nhantes ( ... ) Pelas 15 horas, mandou Eduardo reunir todos os meses imediatos um numero regular de indigenas come9ou a se
bugres e os presentes na sala onde estava o altar. Acenderam as fazer presente ~s atividades da igreja Assembleia de Deus, rea-
velas e foram colocados em circulo aqueles que iriam se batizar; lizadas nas vizinhan9as da reserva. Algum tempo depois, o co-
de um lado, os hornens e rapazes e de outro as mulheres e as lono Joao Hoegen, que exercia o papel de pastor, foi convidado
meninas ( ... ). Pensei que fariarn barulho e confusao, mas apesar por Hoerhan para atuar no interior da reserva. Hoegen fixou ali
de a cerimonia do batismo haver se prolongado por cerca de du- sua residencia e come9ou a realizar cultos semanais junto aos
as horas, o silencio e a comp~netra~ao aparecia em. todas as indigenas.
faces. Ate as criarn;as comportavam-se .como as mais quietas e Conforme ja escrevemos em outro lugar, (1970: 97), «Essa
obedientes. Pessoalmente estava eroocionado quando comecei a igreja condena o uso de bebidas alcoolicas e do fumo e pretende
cerimonia, e profunda emo~ao e alegria apoderou-se dos presen- dar ao crente condi~oes de chegar ao paraiso pela interpreta~ao
tes. Foi o mais belo dia da minha vida sacerdotal. A maioria dos e seguimento dos preceitos biblicos. Como varia~ao do protes-
ne6fitos receberam o santo batismo nos seus nomes anteriores: tantismo, a igreja Assernbleia de Deus iniciou suas atividades
Popo, Vaiciiri, Cavaca, Crendo, Ndiri, Van hecu, Jacfa, Cori· no Brasil e em Santa Catarina tendo por base a pre~ac;ao de pas·
cran, Coingan-co, Cuveinh, Cassii, Culling, TungdU, Laiongda, tores norte-americanos. Na regiao do vale do ltajai, a Assembleia
Scgatagn, Mongconan, Cungconan, Cunhanipau, Caniahee, +
de Deus estabeleceu um nucleo basico na cidade de Rio do Sul
Cusugn etc ( ... ). Ap6s o batismo, Eduardo aproximou-se de mim e dai passou a disseminar locais de culto e templos. Como meio
e com visive! emo~ao curnprimentou-me ( ... ); disse que estes de penetrac;ao popular, costuma estimular aos crentes batizados
eram OS primeiros, mas nao OS ultimos. Somente a sexta parte que em suas casas organizem escolas·biblicas e cultos, inician·
dos botocudos foram hoje batisados, seu exemplo atraira o res- do parentes, amigos e vizinhos «no cumprimento dos ensinamen-
tante dos indios. Foi um grande passo para a frente". tos de Deus".
Depois desse epis6dio os indigenas passaram a freqiientar
Esse tipo de organiza~ao facilitou a afirmac;ao da Assem·
as colonias Moema e Alto Paragua9u, onde o padre Komineck os
bleia de Deus entre a populac;·ao aldeada em Duque de Caxias.
batizava e brindava com presentes, estadia e alimentos. No
Eduardo Hoerhan viu na Igreja um meio de diminuir os yroblemas
inicio essas visitas baseavam-se numa reciprocidade de aten-
decorrentes da utilizac;ao do alc6ol pelos indios. Estes, por
9oes, pois que os colonos tinham curiosidade e, tambem, medo sua vez, encontraram uma organiza~ao religiosa onde o orienta-
dos silvicolas. Para os indigenas o interesse que despertavam dor do culto era um colono conhecido, vizinho ou morador de re·
permitia-lhes obter tudo o que desejavam. Mas ao se repetirem serva. Alem disso, os primeiros indios que se tornaram crentes
as visitas, as aten9oes dos colonos foram diminuindo e os indi- logo se viram prornovidos a pregadores, com prestigio e~tre os
genas come9aram a estacionar nas "bodegas", on de por qualquer civilizados e com condi~oes de envolver seus companheuos de
"gole de cacha9a" se submetiam aos maiores vexames. Em rela-
tribo".

272 273
 A igrej a Assembleia de Deus ergueu um temp lo no interior lizar missas na sala de aulas existente na sede do posto. E,
da re~erva e passou a oferecer cultos as quarta-feiras, Sabados nessas visitas, passou a estimular os presentes ao erguimento
e dom1ngos. Alem do pregador efetivo, dois auxiliares permanen- de uma capela. 0 terreno foi escolhido, preparado e os adeptos
t~m.e~te e.stao em ati~idade. Um <lesses e um mestic;o, Xokleng/ con vocados a colaborar num fundo para a construc;ao.
c1vi11zado, que tambem exerce as func;oes de professor. A afir- Paralelamente, o padre criou um time de futebol na reserva
mac;ao da igreja Assembleia de Deus entre os Xokleng foi simul- e com isso comec;ou a atrair integrantes da Assembleia de Deus.
tanea a explorac;ao do palmito na reserva. E, pode-se dizer, que Normalmente OS indios nao jogavam futebol porque a Assembleia
essa igrej a realmente logrou impedir que seus adeptos conti- de Deus proibira. Mas, agora, no conflito de orientac;ao que co-
nuassem a encontrar no alcool um veiculo de fuga e de deva- mec;ava a se delinear entre as duas igrejas, os indios acorriam
neios. Um rigoroso controle social exortava os faltosos a con- para aquela que melhor atendes!?e a seus objetivos momenta-
fissoes publicas de arrependimento e a promessas de nao volta- neos. E o futebol era uma tentac;ao irresistivel para muitos. Os
rem a fraquejar. adeptos da igreja Catolica tambem podiam danc;ar e o chefe do
Embora nem todos os indigenas residentes na reserva ti ves- posto comec;ou a permitir a realizac;ao de bailes. Novamente se
sem sido convertidos (1), a maioria estava diretamente submeti- estabelecia uma area de conflito e os dirigentes da Assembleia
da aos padroes estabelecidos pela igreja. Esta havia logrado comec;aram a tomar as simpatias do chefe do posto pela igreja
proibir a realizac;ao de bailes, festas e jogos de futebol no in- Cat6lica como provocac;ao.
terior da reserva. Para tanto, a igreja contava entre seus adep- Mesmo ocorrendo nova mudanc;a de encarregado, a si tuac;ao
tos com a maioria dos funcionarios do posto e com a simpatia continuou a se agravar. No ano de 1970, o padre organizou uma
dos encarregados. festa para obtenc;:ao de fupdos para a construc;ao da capela. E
Dessa maneira se estabeleceu na reserva uma dicotomia que em bora a festa nao se efetivasse devido a fortes chuvas que cai-
num lado incluia os indios crentes, ou simpatizantes, os funcio- ram no dia aprazado, as tendencias de mui tos indigenas para
narios do posto indigena e os arrendatarios. E de outro lado aceitar o catolicismo e os ares de dominac;ao des en vol vi dos por
ficavam os mestic;os que se diziam civilizados, os Guarani e o~ alguns individuos filiados a Igreja Cat6lica, provocaram a aber-
caboclos, todos adeptos pelo menos nominalmente da igrej a tura da luta entre OS adeptos mais vinculados a Assembleia de
Catc5lica. Esses ultimos estavam em posi<;ao minoritaria e nada Deus e o Chefe do Posto Indigena.
manifestavam sobre a ac;ao da Assembleia de Ceus. No ano de 1971, novamente a festa foi programada. Na
A partir do ano de 1968, quando assumiu a chefia do posto ocasiao o padre fez circular a seguinte volante:
o encarregado Isidoro Oliveira, a situac;ao da assistencia reli-
ttFESTA
giosa na reserva indigena comec;ou a mudar. 0 novo encarregado
Posco Indigena lbirama
era cat6lico fervoroso e achou absurdo permitir que os indigenas
25-4-71
rotulados como cat6licos, e outros ha bi tantes, ficassem sem as-
sistencia religiosa especifica. Por isso, o encarregado articulou- A festa programada desde o ano passado esca ai. Ibirama e
se com o padre da paroquia de Jose Boiteux e convenceu a este o unico lugar onde se encontram reunidos os indios que ha anos
acras escavam espalhados pelo litoral de Santa Catarina.
prestar assistencia religiosa na reserva. A essa epoca, no sul
Venham conhece-los no dia de sua festa. A primeira festa
do Brasil, as autoridades religiosas se preocupavam entre outras
deste cipo em todo o Estado de Santa Catarina.
coisas com o problema de assistencia aos indigenas (1). De Nao perca.
maneira que o paroco se sentiu estimulado e iniciou suas ativi-
dades. Em dois domingos de cada mes, o padre comec;ou a rea- PROGRAMA
8,30 horas - fun<;:ao religiosa
10,30 horas - corrida de canoas pelos indios
(1) - Os Guarani e os mestiiyos que se identificavam como civilizados 14,00 horas - dan<;:a tipica indigena - pelos botocudos
sempre se disseram catolicos. Os caboclos residentes na reserva tam~ - musica ti pica indigena - pelos Guarani
bem. '
(1) - A CNBB promoveu no Rio Grande do Sul pesquisa sobre os indios -Orat;ao tipica dos Botocudos
Kaingang. Veja-se Schwade, Pe. Egidio e outros, 1969. - Torneio de arco e flecha - pelos Indios ma1s

274 275
 atiradores. dos e mesti9os. A mai_oria, entretanto, descendia de Xokleng.
A escola contava com dois professores. Um deles era um
Alem destes, os indios proporcionarao ainda outros diverti- indio mesti<;o, Xokleng/civilizado. 0 outro era, a. epoca, a es-
mentos para voce no correr do dia. posa do encarregado. A escola funcionara ate 1966 segundo o
Havera completo servis:o de bar e cozinha - Born churrasco modelo brasileiro de escola isolada. Um professor se responsa-
etc.
bilizava pelo ensino para todos os alunos matriculados e inte-
Procure o encarregado da lota~ao em seu lugar. Pelo com-
parecimento agradece. grantes da mesma sala de aulas. 0 professor Lino Nunforo desde
1955 exercia sua atividade. Sua instru<;ao era primaria, obtida
A Comissao". com o professor fundador da escola do posto. Seus metodos e
E realmente ocorreu a sua efetiva9ao, envolvendo-se os tecnicas de ensino eram tradicionais e superados. Mas ele co-
Xokleng de tal modo que em certo sentido a dissensao religiosa nhecia a lingua indigena e era um curioso das tradi<;oes tribais,
desapareceu, ficando apenas o espetaculo circense. Perto de alem de ser membro ati vo da igreja Assembleia de Deus. Esses
5.000 pessoas haviam sido atra!das pelo astuto paroco. E a As- requi s itos permitiram-lhe obter resultados razoaveis na tarefa
sembleia de Deus viu perder seu controle sobre um grande mime- de encaminhar os al unos - indios nos pas sos iniciais de dominio
ro de a deptos e sobre a totalidade dos simpatizantes. Pois todos da leitura, da escrita e de opera9oes aritmeticas fundamentais.
· esses acharam interessante participar da festa que levava um Oeve·se consider9r que o professor atuava sozinho. Nao
r6tulo indireto de festa em beneficio de toda a popula9ao indige- h avia, e nao ha, nos organismos oficiais responsaveis pela pro-
na. te9ao, qualquer orienta9ao para o exercicio do magisterio entre
A Capela Cat6lica ainda nao foi construida, mas a confusao popula9oes tribais (1). T,ampouco houve interesse dos organis-
dos indigenas quanta a sua orienta9ao religiosa ja se efetivou. mos locais e regionais que fazem operar o sistema de ensino
Nao que os indigenas tenham realmente optado pela igreja Cat6- estadual para favorecer essa escola. Por tudo isso, o born sen so
lica. Mas, porque eles se encontram como massa s eguindo esta e que norteava o professor em suas atividades diarias.
ou aquela orienta<;ao, sem conv~c9ao e sem mec anismo de auto- A partir de 1966, a escola foi de.sdobrada. 0 professor Lino
controle (1). Acreditamos, inclusive, que por i sso o uso de bebi- Nunforo passou a lecionar no periodo matutino somente para os
das alco6licas entre a popula<;ao aldeada voltou a se incremen- alunos matric1:1lados nas 2~ e 3~ series, enquanto a esposa do no-
tar. vo encarregado do posto assumia as fun9oes de professora de 1-
Paralelamente a a9ao das igrejas Cat6lica e Assembleia de serie, no periodo vespertino. A partir desse momento, a escola
Deus , temos a considerar o funcionamento de classes escolares come9ou a perder unidade de ensino, pois que a nova professora
na reserva do alto vale do ltajai. Nesse sentido foi instalada nao tinha experiencia com 6 trato de escolares - indios e so-
junto a sede do posto, no ano de 1940, uma escoia denominada mente podiam seguir, devido sua precaria forma<;ao intelectual,
Getiilio Vargas. No ano de 1967, a escola atendia 'a 57 alunos, OS padroes vigentes nas escolas destinadas a atender as crian-
27 de sexo masculino e 30 do feminino. Desses escolares 38 9as do interior do pais. A professora nao tinha ideia das tradi-
'
estavam matriculados na 1~ serie; 12 encontravam-se na 2~ serie; 9oes tribais, nem sensibilidade para entende-las.
e 7 freqiientavam a 3- serie. Alguns <lesses alunos eram civiliza- Mas e a partir de 1968, quando nova mudan<;a de encarrega-
do provoca o inicio de um a dimensao en tre este e a Igrej a As-
sembleia de Deus, que a escola passa a serum simples setor do
( 1) - A obediencia dos indigenas aos padroes fixados pela Assembleia posto, destinado a permitir o assalariamento de alguns persona-
de De us era flagrante. Em 1965, encontrei em Florian6polis dois indios gens estrategicos. 0 novo chefe do posto necessitava oportuni-
que estavam a comercializar artefatos tradicionais. Preocupado em
aloja-los, encaminhei-os para um albergue mantido pela Loja Ma9onica zar emprego para uma de suas filhas. Por isso estimulou a que o
14 de Julho. Dois dias depois reencontrei os indigenas e os interroguei professor Lino Nunforo. criasse uma nova escola, junto a sua
sobre o tratamento que estavam recebendo. Waikukrao, o mais experien-
te, logo respondeu-me que nao estavam no albergue ''porque nos nao
fica em lugar assim de gente inconformada". E continuou, quando eu ( 1) - -'.'10 Rio .Gr~ nde do Sul, a Funa} instalou um curso norma I para pre-
quis explicar como funcionava o albergue, "e que aquilo, a gente incon- parar. Joven_:; 1nd1ge i:ias.. I?ara o,exerc1cio do magisterio. A iniciativa teve
formada, era de Ma9on" e que "crente nao ficava ali". a onentas-ao da 1.1ngu1sta Ursula Wiessemann , do Summer Institut.

276 277
I I
•

casa, distante 6 Km da sede do posto. Justificava-se o chefe do sao estanques e realizadas de modo desconexo. Por isso, che-
posto dizendo que isto facilitaria a freqiiencia a escola das ga-se a tais absurdos.
J
1
;
crianc;as que residiam num dos extremes da area indigena. Mas Imaginamos que uma escola para atender populac;oes tribais
ao aceitar essa decisao, Lino Nunforo perdeu a oportunidade de que vivem em condic;oes semelhantes a que estamos focalizando'
influenciar nao somente na alfabetizac;ao, mas no comportamento deva se considerar uma agencia basica no processo de sociali:
religioso da maior parcela das crianc;as da area. E como a deci- zac;ao das gerac;oes jovens. A partir dai, ela devera pretender
sao do chefe do posto tinha, em ultima analise, que Ser sancio· atuar dentro e fora da sala de aulas, en vol vendo toda a popula-
c;:ao. E para tanto, a leitura e a escrita sao apenas etapas de um •
nada pelos pais das crianc;as, ocorreram varios casos de alunos
que nao quiseram aceitar a transferencia do professor. Muitos processo. Etapas, alias, que devem ser as ultimas a serem al-
desses alunos acabaram abandonando os estudos por que nao canc;adas e nao primeiras, como ate agora se vem pretendendo.
tinham. condic;oes para freqilentar a nova escola instalada pelo ~t~ o mom~nto, entreta~to, nada indica que a escola no posto
professor Nunforo. ind1gena lbirama podera vir a ser a agencia de mudan9a que
estamos delineando.
No presente, o professor-indio Lino Nunforo esta se bene-
ficiando de legislac;ao federal, que lhe permitiu afastar-se do
trabalho . por dois anos. Segundo ele, nao ha condic;oes para 5. COMPETI<;AO E ESPOLIA<;AO
prosseguir Como professor porque nao ha epoio da chefia do pos-
to. Na escola da sede, duas professoras continuaram a lecionar Competindo com indigenas, os brancos acabaram por con-
sendo u~a ?el as - _que substituiu ~ filha do pemiltimo encarrega: quistar todas as terras do sul. Sobraram apenas em alguns refu-
do-uma 1nd1a mest19a. A outra, e a professora que iniciou em gios poucas centenas de indlgenas. Mas a competi9ao nao ter-
1966, quando seu esposo foi designado para ser encarregado do minou e os jntegrantes da sociedade nacional continuam a pre-
posto indigena. tender o pouco que restou aos silvicolas. 0 potencial natural
. Quan do se fal~ de _escola que atua j unto a populac;oes tri- das terras que ocupam, sua forc;a de trabafho e sua capacidade
ba1s, logo se pode 1mag1nar uma escola que tern um regime parti- de consume sao assim vez ou outra pretendidas e utilizadas pe-
cular de trabalho, alem de metodologia especifica. Nada disso o- los brancos.
corre, entretanto. 0 material didatico utilizado pela escola no Na reserva indigena lbirama, a existencia de uma rica co-
po~to in~igena lbirama, no ano de 1970, era obtido especialmen- bertura florestal ha anos vem provocando cobi9a nos regionais.
te JUnto a Secretaria de Educac;ao do Estado do Parana e mais Tentativas de acordos com os 6rgaos oficiais responsaveis pela
recentemente, junto a coordenadoria local do Movimen to Brasi- prote9ao foram efeti vadas para a explorac;ao regular <lesses re-
l~iro de Alfabetizac;ao (MOBRAL)'. 0 objetivo da escola era curses. Tambem ocorreram tentati vas de dominio direto da area
s1mplesmente alfabetizar, desconsiderando toda a problematica ou a sua explorac;ao por expedientes ilicitos, programados em
subjacente a educac;ao de um aluno vinculado a uma minoria parte por funcionarios governamentais. Alguns aspectos desse
etnic~.. Na pratica, nao ha nada 9ue possa .lembrar preocupac;ao processo competitivo, onde o mais forte procura tudo obter do
em utilizar a escola como uma agencia de mudanc;a cultural. Nern mais fraco, e 0 que trataremos agora.
tampouco como uma unidade estrategica para dotar o aluno-indio Quando em 1963, a reserva indigena lbirama foi invadida por
como um instrumental mais eficiente para atender suas relac;oes
+ trezentos colonos, esses obedeciam a estimulos recebidos de
com os integrantes da sociedade envol vente. empresarios locais que pretendiam explorar em seu beneficio
A escola funciona em tennos de setor burocratico do posto, os recurses florestais da reserva indig~na. Foram as discussoes
onde alguns personagens se preocupam, em horas determinadas que se efetuavam no pais sobre a reforma agpiria, que serviram
do dia e durante meses certos do ano, em transmitir rudimentos de pretexto. Mas o Servi90 de Prote<;ao aos Indios compreendeu
d~ leitura, esc~ita e operac;oes aritmeticas para as crianc;as con- a manobra e orientou os indios para reagir a invasao. Todos os
s1?e.radas em ~dade escolar. Tenninado o tempo diario - bu ro- indigenas deixaram de trabalhar; a estrada de acesso ao interior
crat1camente fixado - de trabalho, o professor da por encerrada da reserva foi bloqueada; um grupo de indios deslocou-se para
a sua missao, para recomec;a-la no dia seguinte. Parece-nos que Florianopolis e obteve do governo apoio policial para remover os
essa escola parte do pressuposto que as atividades humanas invasores; a imprensa foi utilizada largamente e os silvicolas

278 279
 obtiveram solidariedade de muitos setores de populac;:ao.
Esse episodio tomo~-se importante, porque os incligenas em
acontecimentos posteriores vieram a tomar atitudes decorrentes
dessa primeira experiencia. Em 1966, a 7!' Inspetoria do SPI,
localizada em Curitiba, realizou um contrato com um empresario
sediado em Ibirama para explorar regularmente madeiras de lei e
•
sassafras na reserva indigena. Por esse contrato, o empresario
nao se obi'igava a utilizar a mao de obra indigena, nem tampouco
a inspetoria programou qualquer beneficio para a reserva. Outros
empresarios regionais, que estavam interessados tambem no
patrimonio tribal, insinuaram para os sil vi colas que o con trato
era prejudicial e que eles tinham direito ·a algumas vantagens.
Os indios, entao, partiram para uma atitude nova e inesperada.
Abandonaram suas atividades rotineiras, reuniram-se em tomo da
sede do posto, bloquearam a estrada de acesso a reserva e en-
viaram emissarios a Ibirama, Blumenau e Curitiba para relatar os
fatos e ressaltar o descontentamento do grupo. Os aeon tecimen-
tos que decorreram dessa atitude, associados a outros fatores
que ,entao se fizeram presentes, provocaram a anulac;:ao do con-
trato e levaram para o posto um novo encarregado. · Alem disso,
os indigenas viram ser reforc;:ados os elos de solidariedade tri-
bal, ao mesmo tempo que descobriram uma formula nova de parti-
cipar das decisoes no interior da reserva. Segundo alguns infor-
mantes, a reac;:ao "era uma greve; ninguem trabalhava, ninguem
ia para casa; tava tudo reunido perto do posto para ver o que
acontecia ( ... )".
E este tipo de reac;:ao ja se fez presente, pelo menos em par-
te, em outras oportunidades, demonstrando que os indigenas tern
de apelar para atitudes pr6prias a sociedade envolvente a fim de
obterem atenc;:ao para seus apelos e reivindicac;:oes. Em 1966,
para obrigar um empresario, que havia acertado com a 7~ Inspe-
toria do SPI a explora~ao de recursos florestais na reserva, a
utilizar a mao de obra indigena, um grupo de indios bloqueou uma
estraaa secundaria no interior da reserva e durante uma semana
manteve seqiiestrado um caminhao e um trator da empresa madei-
reira .. A interferencia, no caso, da 7i Inspetoria do SPI acabou
por anular os esforc;:os dos indios.
Em entrevista, o juiz de direito de lbirama, a epoca, expli-
cou-nos pormenores dessa ac;:ao dos indigenas, assim registrados
em nosso diario (1): "Sabeodo da miseria em que viviam os indios

( l ~ Dr. Erani Ribeiro. Entrevista em 28/01/ 1966.

280

, .
Ind io com vesr1g10 anugo "rembeca" . Sao Joao dos
F oco do a ucor. 2. 1
 o JUlZ foi a Curitiba reclamar junto a 7~ LR. La apresehtou os mente indicam aos indigenas que em futuro pr6ximo tudo havera
~at~s e obteve a promessa de que viria um advogado ao p6sto de melhorar. Procurando deixar os indigenas sem condi96es de
1nd1gena, procurador da lnspetoria, investigar os acontecimen- tomar preocupa9ao com seu fu turo, porque alguem, em qualquer
tos. Tudo isto havia sido motivado, porque os indios do posto parte, esta preocupado com eles e um dia esse a l guem tomara as
indlgena haviam «prendido" um caminhao e um trator e nao que- providen c ias cabiveis.
riam devolve·los, enquanto nao fosse solucionado o problema da P or isso, falar com os indigenas sob re seus problemas e
construs:ao de suas casas. 0 juiz regressou a Ibirama e soube reivindicac;:oes e ter uma serie de respostas que de um lado in-
que o encarregado do posto havia sido chamado a Curitiba. Al- dicam que 0 grupo realmente aspira alguns hens particulates a
guns dias depois, che~ou o tal procurador. Disse o juiz que o nossa sociedade, como, por exemplo, casas decentes para resi-
alertou no sentido de tratar hem os Indios. Contudo, o procurador dir ou a uxilios para elaborar r09as. De outro lado, e s entir que
chegando ao posto chamou os Indios e os mandou de imediato
de~olver o caminhao e o trator. Os Indios, liderados por Ali
Knre, perguntaram se ele nao queria fazer um acordo para resol-
-
I
eles estao cansados de promessas e de atos de espera e que por
isso constantemente revelam dificuldades· em e ntender os ci vi-
liz ados . Um depoimento obtido do indio Kaingan g Ali Krire, que
ver definitivamente o problema de construs;ao das casas. 0 pro- atuava como coronel da pol!cia indigena, qu an do ocorreu a greve
curaclor disse que sim, mas que primeiro devolvessem o caminhao em 1966, indica perfeitamente que a popula9ao da re serva tern
e o trator. Os indios nao obedeceram e acamparam em torno da efeti vamente condi96es para avaliar mui tas da s atitu des tomadas
sede do posto e, em pouco tempo, a mulher do procurador come- pelos civilizados. Disse Ali Krire: tte dificil entender o pessoal
s;ou a dar chiliques. 0 juiz foi avi'sado e enviou soldados para da inspetoria porque eles falam, falam, falam, um do outro, di-
garantir a vida do procurador e sua esposa - embora sabendo que zendo que OS outros nao prestam. Como e que a gente vai acredi-
os Indios nao qu.eriam fazer mal a ninguem e, sim sen sibilizar tar neles? "
as autoridades para seu problema de melhores J'TlOradias". A socieda de regional pretende que os Indios de um modo ou
No caso das atividades das emp resas madeireiras no inte- outro sejam en vol vidos e passem a atuar de aco rdo com suas
rior da reserva,. a re s istencia em utilizar a mao de obra indigena normas. Isto e o que se depreende do discurso com que o prefei-
deve-se as tarefa s semi-especial izadas que a atividade requer e, to muni ci pa l de lbirama, em 1967, homen ageou os indigenas, por
para a qual, alega-se, o indigena nao esta habilitado. Mas, a ocasiao da festa do «Dia do indio". ttSenhor Che fe do Posto
nos so ver, a razao do desinteresse do s madei reiros em utilizar lndig ena Duque de Caxias, demais presentes
os indigenas, pelo menos nas fases de derrub ada e "estaleira- Caros Ind.igenas.
mento" das toras, deve-se ao fato que essas empresas ja tern Na qualidade de Prefeito Municipal quero associar-me as
suas tu rm as de ma to e nao vao dispensa-l as para engaj ar indige- festivida des e trazer. a v6s, caros indigenas, minhas mais efusi-
na s quando os trabalhos vao se desenvol ver na reserva. Trata- vas saudac;oes pela passagem de vosso dia, de vossa maior fes-
se, pois, de ato de deliberada escolha de m~o de obra e os fa- ta. Extendo tambem os votos de congratulac;oes ao vosso digno
tores motivadores da decisao nao se encontram diretamente liga- Chefe, Sr. Isaac, que em tao boa hora foi designado para dirigir
dos as questoes de pro'du9ao OU experiencia na atividade. Isto os destinos deste Posto. E que com sua coragem, inteligencia,
porque 0 empresario madeireiro tern varios interesses que 0 dedicac;ao e despreendimento colocou o posto ind.igena Duque de
orientam para favorecer qualquer ci vilizado como seu empregado, Caxias no seu devido lugar, onde ha muitos anos ja deveria es-
em preferencia ao indigena. Estamos frente a uma si tua9ao de tar. Isto e, integrado as demais zonas de produs:ao agr.icola do
competi9ao, onde a ma ior espoliac;:ao ocorre sobre o grupo que a- nos so munic.ipio. Aparece agora por todos os recantos do posto,
lem de estar hierarquicamente abaixo de todos os demais, ainda plantas;oes de milho e outras culturas que bem demonstram que
recebe 0 r6tulo de minoria etnica. nosso indlgena tendo orientas;ao sadia e elemento altamente va-
E nesse mesmo con texto que se pode entender as atitudes lioso e trabalhador e que muito podera contribuir a transformar
dos comerciantes regionais, que tudo fazem para desvalorizar os o nosso querido Brasil em uma nac;ao lider nas Americas e no
produtos oferecidos pelos silvicolas e a imposic;:ao do 'regime mundo. Termino assegurando ao Sr. Isaac e aos indigenas a ajuda
de troca" no comercio <lesses mesmos produtos. Ou, ainda, as do Executivo Municipal em tudo que se refere com o aumento da
posi9oe s assumi das pelos encarregados do posto que in variavel- produtividade d~ste e do hem estar de seus habitantes".

282 283

.
 Um outro depoimento, que leva a conclusao semelhante, nos
foi da do pelo Indi o Vecha Pripra, ao relatar o s acon tecimentos
ocorridos na res erv a e ligados a toda trama exi s tente a res peito
da explo ra9ao da madeira. (1) ttOs indios tao revoltados com o
chefe do posto, porque estao a tirar madeiras e nada toca aos
indios. Nessa semana, terc;a feira, os indios Mokanan, Ka ml em,
Yukan Co ovi e Kandag Juvei e Aipon Womble foram a presenc;a
do chefe do posto Francisco Tavares para saber a respeito da
explorac; ao de madeiras na reserva e paralelamente saber o que.
os indios ganhariam com a explorac;ao. 0 Chefe do PI alegou que
a explorac;ao de madeiras era autorizada pelo Dr. Brasileiro, da
Inspetoria Regional de Curitiba e que nao adiantava reclamar. 0
dinheiro recebido das madeiras seria depositado no Banco pela
firma exploradora, Marchetti e Cia., diretamente em favor da lns-
petoria de Curitiba".
ttOs Indios retrucaram dizendo que iriam trancar a estrada
de acesso ao mato, para impedir a saida de mad e iras, porque nao
adianta nada a explorac;ao". ttQ indio nao espera mais casa, as· O i ndio e o oratorio c aboc lo
sim e melhor deixar a madeira la, para 0 filho do indio".
ttO Chefe prometeu no ano passado 60 casas para os indios.
Fez projeto e tirou madeira a vontade. Sairam apenas 6 c asas.
Agora fez novo projeto, com 50 casas. Madeira t~ saindo e nada
de casas. No ano passado saiu uns 1800m3".
"Nao deixam o indio derrubar mato para fazer roe; a. Como es-
tao a derrubar madeiras? Devassando todo o mato? La ta cudo
furado de estrada de puxar madeira".
tt C omo o chefe nao re sol veu nada, os indios resolveram cer-
car a estrada. Ninguem passa. Derrubaram uns paus em c1ma, da
estrada do mato, de maneira que ninguem passa".
"Viemos procurar o Sr. como amigo da gente para ver se
orienca a gente. ttO indio hoje esta esclarecido e sabe que tern
de procurar seu direito". 0 que queremos e que seja tirada a
madeira e com sua venda seja feita casas para os indios. Ou en-
tao que se deixe a madeira em pe".
Dentro desse quadro de aprovei tamento do patrimonio indi-
gena, de sua capa cidade de produc;ao e consumo e de si pr6prios
como individuos aparecem situa9oes particulares. No ano de
1968, quando lbirama completou 70 anos de funda9ao, estrategi-
camente colocados as margen s da estrada que liga a cidade de

( 1) - Depoimento obtido em 12/11 / 1970 .

. 284

Des file e m Ibirama. F ocos do a utor.

de Blumenau a Rio do Sul, estavam paineis com os seguintes di- zada, da mesma maneira que o valor do trabalho que os indios
zeres: "Visite Ibirama - 28 de julho tern condic;:ao de realizar.
70 anos de Funda~ao De outra parte, na area da serra do Taboleiro onde a presen-
35 Carros Aleg6ricos e Dezenas de indios Botocudos desfi- c;:a de indios Xokleng arredios ainda e constatada, ocorre uma
larao no dia pela Cidade. Atra~oes curiosas e ineditas". acelerada extinc;:ao da flora e da fauna. A area da serra e fre-
Ao correr da festa programada, um grupo de Xokleng foi ~i.ientada 7special~e.nte por cac;:~dores, oriundos de Florian6po-
le~ado a desfilar na cidade, enfeitados com cocares e tangas,
hs e de c1dades. v1z1nhas que ab exercitam sua vocac;:ao no es-
fe1tas com penas de galinha. 0 vexame sofrido ficou plenamente por:e da cac;:a .. S1multaneamente, pessoas interessadas na explo-
rac;:ao de palm1to recortaram toda a floresta com n'.isticos cami-
estampado na documenta9ao fotografica obtida. Alem de ser hu-
nhos para a extrac;:ao daquele recurso. E empresas madeireiras
milhado, o grupo de indigenas pouco ou nenhum interesse des-
pertou entre os ci vilizados presentes. Mas, assim mesmo, no tambem exercem ali atividades. Dessa forma, ano a ano 1 a area
ano seguinte o municipio de Rio do Sul solici tou outro grupo de de floresta diminui e, com o seu desaparecimento definit ivamen-
te se extingue a fauna. A depreda9ao da naturez~ exercida pelo
indios para animar um desfile comemorativo. E o encarregado do
branco, no caso, e altamente negativa para a sobrevivencia <les-
posto indigena autorizou a participa9ao dos indios, pois dessa
ses her6icos e teimosos sobreviventes indigenas.
forma pretendia manter boas relac;:oes com as autoridades locais.
Ao realizarmos a pesquisa de campo, sempre tivemos em
No corrente ano aparece, como ja vimos, a festa organizada pela conta observar a fisionomia dos informantes indios 1 sua maneira
lgreja Catc5lica na pr6pria reserva, destacando, em volantes pos- de falar, sua tristeza, sua falta de perspectiva de vida revela-
siveis aspectos ineditos e pr6prios para apresentar espet~c.ulos dores em muitos casos dqs dramas que estao a viver e' para os
circ~nses. 0 ~so do indigena em favor de certos objetivos pode,
quais tern dificuldades de entendimento. E isto e plenamente
ass1m, assumu formas as mais variadas e "refinadas". observado nas declarac;:oes do Indio Vecha Pripra. Ele havia nos
Nesse aspecto destacamos um Ultimo caso, ocorrido em procurado em Florian6polis para nos colocar a par dos proble-
1968, em lbirama. Apareceram na reserva dois individuos que se mas que os indios do posto estavam a vi ver, e a partir de certa
propunham a fazer "um corte de cabelo com permanente" nas
altura nos disse ( 1): "Veja Silvio, o branco diz pro indio se ci-
indias, gratuitamente. Diziam que o cabelo comprido usado pelas
viliza. Mas como chega a isto se o indio nao tern direito a nada·
mulheres devido a pregac;:ao da Igreja Assembleia de Deus era o indio nao e nada; nao pode faze nada em sua terra? Assim ~
inadequado e an ti-higienico. E que el es estavam ali para favore-
melhor o indio se documenta. Deixa de se indio. Eu nao entendo:
ce-las. Insinuavam, no caso, ser funcionarios do govemo. 0 a terra e do indio, mas o indio nao pode faze nada. Nao pode nem
chefe do posto, Isaac Bavaresco era, entretanto, um homem vi vi-
derruba mato pra faze ro~a. Mas o posto pode. Eu ja pensei que
do. E tao logo foi avisado, procurou os forasteiros interrogando- e melho nois deixa de se indio. Uns cinquenta indio se docu-
-os e logo mandando-os "ir tosquiar as mulheres de suas fami- menta e depo1s a gente conse~ue que o governo d~ aquela terra
lias". Os espertos pretendiam gratuitamente obter o vistoso e pr:i gente. A gente fica com o que e seu. A gente entao vende um
valorizado cabelo negro das mulheres indias para com eles con- pau ou outro, faz um cercado,_ um curral, tern pra se desaperta.
feccionar perucas. Obteriam, no caso, lucro espoliando os ·indi- Pode vende. E senhor de si. Esse negocio de indio ja desacor-
genas de um hem que ate entao ninguem havia imaginado. ~oa a gente. As vezes penso que 0 melh6 e sair de la. Arruma
No Rio dos Pardos, os poucos indigenas que ali sobrevivem documento. Deixa de se indio. Ganha um salario por meis. Como
estao submetidos a situa9oes semelhantes. Embora algumas di- ~a nao da. Nao adianta te posto. Nao adianta te chefe de indio.
ferenc;:as se fac;:am presentes no sistema economico local e na Ele nao fais nada. Nao da nada. $6 promete. So promete. Eu pen-
forma pela qual se organiza a sociedade dos brancos, em linhas s~, mais pra. que pr~mete! Pra que diz que fais casa? Fais ro~a?
gerais nao se modificam as maneiras de explorac;:ao dos indige- A1uda o 1nd10? Se ele nao tern, nao pode, pra que promete? Eu
nas e do seu patrimonio. Os pinheiros que cresciam nos lotes
coloniais ocupados por esses indigenas foram inteiramente apro-
;:'ei!ados pelos ci vilizados. A pequena produc;:ao agrfcola que os
Indios conseguem levar ao mercado regional tambem e desvalori- (1) Depoimento obtido em 21/11/70.

286 287
nao entendo, isso. Melhor seria dizer que nao da. Que nao tem.
Que vende. Ai o indio sabia o que fazer. Mas, nao. _:romete, :-+-
promete. E nada. 0 indio fica ~spe_rando. ~spera~d~. Nao se sa-
be mais se vale acreditar. Eu 1a nao acred1to ma1s ...

VII - 0 FUTURO
...
1. SER INDIO OU SER POBRE: UM DILEMA

A area em que se encontram localizados os remanescentes

Xokleng no sul do ~rasil apresenta condi9oes medias de vida e
trabalho que a colocam em lugar pri vilegiado no contexto do
pais. Mas, entremeando a popula9ao urbana ou rural que usufrui
condi96es de vida dignas, aparece um setor bastante desconheci-
do, mas razoavelmente amplo, que somente detem como seu a
fo.rs::a de trabalho. E trata-se. de for9a bruta, pois os componentes
desse setor tern suas origens nas camadas que· sempre esti veram
marginalizadas dos beneficios . de nossa sociedade .. Por isso e-
les se apresentam tao precariamente no contexto geral. A exis-
ten cia desse setor marginalizado permite ideia sobre o grau de
competi9ao existente na sociedade nacional. Competi9ao decor-
rente do sistema economico vigente nessa sociedade e altamente
enfatizada em dias do presente pela implanta9ao no pais do cha-
mado "eon sumo de massas". E particularmente na passagem do
homem da area rural para as cidades que a capacidade individual
de cornpetir em~rge em toda sua fragilidade. Isto porque no cam-
po ocorre uma hierarquia social onde as diferen9as en tre os com-
ponentes da camada mais baixa e os integrantes da camada mais
alta nao sao altamente flagrantes, no que se refere aos habitos
e maneiras de ser. Alem disso, institui9oes sociais, como o com-
padrio por exemplo, pennitem, pelo menos, uma aproxima9ao en-
tre os integrantes de uma camada e outra. Por fim, uns e outros
+ se aproximam ao conviver e participar de um mesmo ambiente
ecol6gico. No mundo urbano tudo aparece diferenciado, ficando
despersonalizados os pontos de contato entre os in tegrantes das
di versas camadas da sociedade.
Na area que estamos a focalizar, a quase totalidade dos ha-

- bitantes tern suas origens nos contingentes migratorios que se

fixaram na regiao, no seculo passado. Todas as condi9oes his-
t6ricas que cercaram a imigra9ao permitiram a implanta9ao na
area em foco de um modelo economico capitalista bastante agres-
sivo, em intima decorrencia do que predominava na Europa. Foi
exatamente a partir das perspecti vas etnocentricas do grupo

288 289
imigran~e e do modelo economico dinamizado nas colonias que os indios se consideram superiores aos caboclos, utilizando-os
pequeno s contingentes de brasilei ros, previamente loc alizados inclusive como mao de obra em suas roc;:as ou na explorac;:ao do
no interior das areas que se estavam a colonizar, foram pronta- palmito.
mente marginalizados. Nada ha via, entre esses e os imigrantes, A presenc;:a <lesses segmentos marginais na reserva indige-
para facilitar a integras;ao. Os bras ileiros se apresentavam como na e na sua periferia, e importante para entendermos qual a
pobres caboclos ocupantes do sertao, ai sobrevidendo a base de perspecti va que e ofe recida ao indio junto a sociedade regional.
uma precaria r09a, da cac;:a e da coleta. Suas necessidades eram Verdadeiramente, os integrantes <lesses contingentes marginais,
minimas e por isso pouco pretendiam tirar da natureza e acumu- na sua penuria diaria, lembram ao indio que a sua situac;:ao sera
lar. Tambem nao tinham condic;:oes para tal pretender. Eram ana~­ semelhante se pretender abandon ar s ua vinculayao etnica e sua
fabetos e desconhecedores de quaisquer confortos do mundo ci- tradic;:ao cultural. Is to porque a sociedade regional nao oferece
vilizado. Viviam mal de saude e a alta taxa de natalidade que abertura suficiente para permitir que o indio participe com suces-
suas mulheres apresentavam tinha como contrapartida uma enor- so do processo competiti vo por ela estabelecido. Nao ha assim
me taxa de mortalidade. Entretanto, eram eximios conhecedores explorac;:ao e submissao do indio por preconceito. 0 que realmen-
do sertao e por isso, desde logo, foram colocados a servic;:o das te existe e Um agressi VO Sistema economico que Se fundamenta
companhias de colonizac;:ao. Sob todos os aspectos esses seg- na competic;:ao. Por isso, as atitudes tomadas pelos brancos
mentos da populac;:ao brasileira foram marginalizados das areas em relac;:ao aos indios se repetem entre os pr6prios brancos quan-
coloniais, mas nao deixaram de dar sua parcela de contribuic;:ao
a penetrac;:ao do interior. Se outra coisa nao fizeram, foram des- - do, por exemplo, analisamos as relac;:oes mantidas entre os inte-
grantes da sociedade regional e os componentes dos grupos mar-
bravadores .de extensas areas de sertao. Foram guias. Forarfl ginais que estamos a focalizar .
afugentadores de indios. Foram bugreiros. Ate certo ponto, essa situac;:ao contribui para a manutens;ao
Em dias do presente, na area em foco ainda se encontram do contingente tribal no interior da reserva. Ou, em ou tros ter-
alguns segmentos marginais (1). A situac;:ao de vida e trabalho mos, favorece a sobrevivencia da tribo como tal. Isto porque,
<lesses segmentos e extremamente precaria. Tao precaria que, mais de uma vez, grupos de indigenas sairam da reserva "para
as vezes, as con.dic;:oes usufruidas pelos Xokleng aldeados em tentar a vida como civilizados". E pouco conseguiram, alem da
Ibirama sao muito superiores se comparadas com situac;Oes se- certeza que jamais melhorariam suas condic;:oes de vida. A essa
melhantes a que os integrantes <lesses segmentos marginais es- altura o regre sso a reserva se tornava natural. Ao ocorrer isto,
tao submetidos. Na reserva indigena de Ibirama, por exemplo, a experiencia vivida servia para reforc;:ar e exemplificar o valor
residem vinte e oito individuosquefonnam um <lesses segmentos. da solidariedade tribal.
To dos sao conhecidos na regiao como "us caboclos do Plate". E nesse contexto que se pode entender as atitudes francas
Vivem a favor na reserva indigena. Eles nao podem deixar de re-
ceber a parca assistencia que o posto oferece as>S indios, sob
pena de sofrer conseqiiencias imprevisiveis (2). E por i sso que narraram que Hoerhan mandou um convite para o velho Machado visita-
. '
lo e que ao se efetivar a visita, Hoerhan disse que o Dr. Getulio estava
muito preocupado com Machado e seus apaniguados e que pretendia ter
uma conversa com e le , Machado, quando houvesse oportunidade. Viva-
(1) - Espec ialmente ao termino da c hamada "Guerra Sertaneja do Con- mente impressionado, Machado regressou a seus pagos, a espera do
testado", ocorrida entre 1912 a 1916, muitos caboclos desceram o pla- chamado do Dr. Getulio. Semanas depois, H oerhan mandou um recado
nalto e se localizaram pelas cabeceiras do Itajai. dizendo para o velh o Machado estar em sua casa no domingo seguinte,
(2) - A vinda desse grupo de caboclos para o interior da reserva indi- pela manha, para conversar com o Dr. Getulio. No dia aprazado, o velho
gena e significativa para se entender o que estamos a explicar como Machado chegou e "ouviu o Dr. Getulio dizer que era para sairda serra e
marginaliza9ao. 0 grupo, segundo os informantes idosos, era liderado vir morar perto do Eduardo, junto com os indios ". Hoerhan, segundo os
pelo velho Ma chado e desceu do planalto em busca de refu gio pelo informantes, colocara .um funcionario dentro de uma caixa, sobre a qual
termino da Guerra do Contestado. Por volta da decada de 40, as terras havia um radio. E batendo na caixa, ao chegar o velho Machado, dizia:
que o grupo ocupava na serra do Mirador foram pretendidas poruma com- "fa la Dr. Getulio" . Ao se colocar em duvida a veracidade desse episo-
panhia madeire ira. A resistencia dos integrantes do grupo ao contato dio, deve-se entreta nto, levar em conta que realmente os caboclos mu-
com os agrimen sores da companhia, levo·u es ta a solicitar a Eduardo Hoe- daram para a reserva, ao mesmo tempo em que uma empresa madeireira
rhan que intercedesse e promovesse a remo9ao do grupo. Os informantes obtinha concessao sobre as terras que eles ocupavam.

290 291

+
 giao, nada alcan9aram diretamente. Suas vantagens resumiram-se
e, ate certo ponto, orgulhosas dos Xokleng quando enfatizam sua no usufruir melhores condi9oes de transporte ou a oportunidade
condi9ao d~ indios; quando destacam que a reserva lhes perten- de ver uma programa9ao de televisao numa das "bodegas" da
ce; quando refugam auxilios que tern o carater de donativo; quan- vizinhan9a do posto. E essas mudan9as estao promovendo o dis-
do comentam orgulhosamente atitudes tomadas por alguns indios tanciamento entre o indigena e o branco.
perante os brancos, tratando-os de igual para igual. Sim, os in- Quan do se trata dos problemas vividos por uma minoria etni-
digenas sabem que entre os brancos existem ricos e pobres; ca, tem-se oportunidade de visualizar as contradi9oes pr6prias
hons e maus. Sabem que a maioria dos brancos viverao como do sistema que fundamenta nossa sociedade. A dramatica expe-
pobres a vida toda. Sabem que saindo da reserva somente serao riencia dos Xokleng nos leva claramente a reconhecer que os
mais alguns pobres. E nao desejam isto. Preferem ficar como interesses das sociedades tribal e nacional sao contrarios. En-
indios, esperando, segundo o velho Klendo, . «que o governo olhe tretanto, por incrivel que possa parecer, OS indigenas nao tern
pornos. Que 0 governo lembre que nos morava aqui. Que a terra condi9oes de sobrevivencia em dias do presente sem uma vincu-
era fiOSSa. Que nos era OS primeiro bras.Heiro. Que nos somo la9 ao com a sociedade nacional. Ou seja, os indios nao podem
indio. Que precisamo trabalha e viver. Que precisamos cria fi- voltar, a depender de sua cultura tradicional, pois, essa nao
lhos" (1 ). mais responde as suas necessidades.
Os Xokleng continuarao a existir identificados a uma mino- Mas ao mesmo tempo que tomamos consciencia de interde-
ria etnica no estado de Santa Catarina. 0 processo de mudan9a pendencia existente entre essas sociedades, temos de reconhe-
cultural que estao a viver, em especial os indigenas aldeados, cer que os setores competentes da sociedade nacional para as-
continuara a manter suas caracteristicas particulares, de acordo sistir e proteger 0 sil vi cola sao deficient es para tal fazer"" 0
com as variaveis enfatizadas nesse ou naquele momento hist6ri- posto indigena mostra-se altamente debil para solucionar os pro-
co. Mas os indios continuarao indios, pois nada no processo de blemas. A delegacia regional da Funai, sediada em Curitiba,
mudan9a indica a assimila9ao desse grupo tribal. Esse e um as- tambem carece da agressividade requerida para o equacionamen-
pecto que reafirma uma serie de outros estudos realizados junto to e promo9ao das solu9oes exigidas. A pr6pria Funda9ao Nacio-
•
a popula9oes tribais do Brasil. A assimila9ao, ate o momento, nal do indio parece ainda nao ter se con scienti zado de toda a pro-
foi al go inating.ivel para os grupos tribais. Alias, como ja vi mos, hlematica que esta a tratar, continuando a estimular solu9oes
deixar de ser .indio para ser um pobre e miseravel ci vilizado e etnologicamente duvidosas e humanamente negativas para os
uma troca muito pouco atrativa. silvicolas. Em decorrencia, alias, dessa fragilidade de a9ao e
A distancia que atualmente separa os Xokleng dos civiliza- . simultanea minimizac;ao da problematica a que se dedica, a Fun-
dos, no que se refere as condi9oes de vida vis.iveis, tende a au- da9ao Nacional do Indio provoca a pr6pria diminui9ao de sua
mentar. Os integrantes da sociedade envolvente estao melhor importancia no esquema administrati vo do governo. Concretamen-
preparados para aproveitar as diversas oportunjdades economi- te, isto se torna realidade porque se imagina que a a9ao ci vili-
cas que surgem e por isso tendem sempre a se distanciar dos zat6ria iniciada pelos portugueses no seculo XVI ainda nao ter-
ind.igenas. Isto, alias, pudemos testemunhar durante os arios em minou. Imagina-se', tambem, que 0 progresso e algo que algum
que a pesquisa foi realizada. A melhoria da estrada que da aces- dia havera de atingir a todos e, provavelmente, tambem, aos
so a reserva e a instala9ao de energia eletrica foram pronlamen- Indios.
te aproveitados pelos residentes civilizados. Os agricultores 0 futuro dos Xokleng esta assim condicionado a uma serie
adquiriram pequenas maquinas para beneficiar seus produtos, de decisoes, on de se incl uem des de conceitos e manei ras de
movidas a energia eletrica. Outros adquiriram veiculos para mais ver o mundo, ate atitudes concretas de resguardo das terras que
facilmente atingir o mercado. Outros, ainda, deram-se ao luxo ocupam - caso dos Xokleng do rio dos Pardos; de cria9ao de um
'de adquirir geladeira, televisao ou autom6vel. Os ind.igenas, co- parque florestal e faunistico - caso dos Xokleng da serra do
mo beneficio decorrente dessas medidas governamentais na re- ·-t- Taboleiro; de reorganiza9ao do posto indigena e promo9ao de
sua atua9ao - caso dos Xokleng de Ibirama. Ha que decidir ain-
da se temos o direito de transformar indios em "indios civiliza-
dos"?; OU Se podemos decidir 0 destino de um pOVO etnica e
(1) - Depoimento colhido em 25/7 /66.

293
292
 •

culturalmente distinto do nosso?

No nosso caso, a dramatica experiencia vivida pelos Xo-
kleng somente permite remediar. 0 desfecho final dessa experien-
cia e algo sobre o que pouco podemos interferir. Contudo, acre-
ditamos ser possivel tomar uma serie de medidas que permita VIII - ANEXO I
pelo menos minorar as situa<;oes vi vidas pelos indigenas. Na Contri bui<;ao para a sobrevi vencia dos Xokleng - bases de
verdade, jamais adiantou se dizer que o mal provem das contra- um programa de a<;ao
di<;oes do sistema ou de suas estruturas. Pois o problema para
a Antropologia sempre devera ser o de destacar um quadro exis- As bases do programa que a seguir serao tra<;adas decorrem
tente, para de um modo ou outro se pensar em ac;oes capazes de do caso Xokleng, ora estudado. A sua justifica<;ao acreditamos
minorar o impacto sofrido pelos integrantes das sociedades tri- que foi feita plenamente durante todo o correr do trabalho. Esta-
bais. Dessa maneira, apoiar os Indios inteligentemente, sem es- mos cientes que muitos problemas apresentados pelos indigenas
tere6tipos ou preconceito, sem pretensao de domina<;ao ou acul- somente terao soluc;ao por mudan<;as que ocorram na . sociedade
tura<;ao imposta, ja seriam alguns excelentes pontos de referen- regional e por isso esperamos que pianos regionais de desenvol-
cia para se iniciar a a<;ao (1). vimento sejam formulados e colocad<,>s em pratica (1). Enquanto
0 fato afinal e que OS Xokleng realizaram 0 milagre 'de so- isto nao ocorre, estabelecemos as a<;oes mais urgentes para me-
breviver, resistindo a penetra9ao dos brancos e vencendo as lhorar as condi<;oes de vida dos incligenas. Essas a<;oes apre.
campanhas de bugreiros e as epidemias. Chegaram assim aos sentamos como o minimo que se pode oferecer em concreto para
dias do presente como sociedade diferenciada. E isto deve ser OS indlgenas. Afinal, OS Xokleng sao seres humanos e nao tern
suficiente para que OS integrantes desse grupo etnico tenham 0 condi<;oes de esperar mais. Por isso, sugerimos o seguinte: (2)
direito de continuar a nascer, a viver e a morrer dignamente, co-
mo seres humanos e como Indios. I - Os Objetivos do prograrna
I. 1 Cria~ao de um parque florestal e faunistico na serra do
Taboleiro, para ali oportunizar as condi~oes necessarias a so-
brevivencia de um grupo Xokleng arredio;
I. 2 Legalizas:ao dos lotes coloniais ocupados pelos indi-
genas Xokleng do rio dos Pardos, no municipio de Matos Costa;
I. 3 Designas:ao da area indigena de lbirama como reserva
florestal e faunistica estrategica para o equilibrio ecol6gico e
preservas:ao da natureza na regiao, reconhecendo-se como rele-
vante e retribuindo·se o esfors:o indigena pela pratica de medi-
das nao depredativas;
I. 4 Dinamiza~ao da economia tribal, a partir do reconheci-
-t-

(l) - Em outro trabalho de nossa autoria (1970), e que trata especifica-

mente da funt;ao dos postos indigenas, ja tivemos oportunidade de dis-
cutir em linha s gerais o programa agora apresentado.
(2) - Veja -se Santos, S.C., 1970: 1~0. Bata~la, . G:B. , . 1970: 170: Este
ultimo autor afirma textualmente: La teona ind1gen1sta imphca }a
necessidad de actuar no solo sobre la poblacion indigena , sino tambien
y de manera muy importante sobre la naturaleza de las r~lacion~~ entre
la comunidad indigena y el centro rector, que es la man1festac1on con-
(1) Veja-se o anexo n~ I. creta, a nivel regional, de la sociedad global nacional".

295
294
 •

breviventes em rio dos Pardos e serra do Taboleiro.

mento de que o indigena deve ser auxiliado em suas iniciativas·
. ,,,... ~ '
que 0 patnmon10 natural existente nas terras que ocupa e para II. 2 Organizac;:ao do trabalho indigena
seu uso. e ,beneficio exclusivos; que toda a renda gerada pelo
esfor~o 1nd1gena somente pode ser utilizada em seu favor ou pa- II. 2.1 Orientac;:ao, estimulo e ajuda concreta permanence
ra 0 gr~po a que pertence; que a func;:ao do indigenista e estimu- para os indigenas dinamizarem suas atividades agricolas e arte-
lar, onentar e assessorar os silvicolas em suas decisoes sem sanais, unicas capazes de no momento lhes garantir uma base
jamais dominar; ' economica estavel e auto-suficiente;
I. 5 Valorizac;:ao do indigena, especialPlente nas areas re- II. 2.2 Optar pela dinamiza<;ao do trabalho individual, embo-
ra reconhecendo que em muitas atividades o trabalho coletivo
gionai_s em que esta l~calizado, objetivando a eliminac;:ao de es-
convenha ser praticado;
tere6upos e preconcetto - agentes basicos de dominac;:ao;
II. 2.3 Organizac;:ao de uma cooperativa de produc;:ao e con-
I. .6 S_ensibilizac;:ao do Estado e dos Municipios para o pro- sumo destinada a comercializar a produc;:ao indigena, a garantir
blema 1nd1gena e sua responsabiliza~ao no cumprimento de ativi- o fornecimento dos hens que necessitam e a administrar um fun-
dades de sua competencia, que de uma forma ou outra benefi-
do coletivo de capital e reservas. Esse fundo permitiria o socor-
ciem os silvicolas;
ro dos necessitados e o amparo dos que nao pudessem ter ativi-
I. 7 Utilizac;:ao da escola como instrumento basico de socia-
1.izac;:ao e preparac;:ao das gerac;:oes jovens para o convivio tra- dade produti va;
II. 2.4 Valorizac;:ao da mao de obra indigena na sociedade
balho e competic;:ao, a partir da valorizac;:ao das tradic;:oes trihais;
regional;
r.. 8_ AP~eservac;:ao _d~ _saude indigena e dinamizac;:ao de prati- II. 2.5 Inicia<;ao das gerac;:oe·s jovens no dominio de tecni-
cas h1g1en1cas e sanitanas destinadas a melhoria dos padroes
de saude do grupo; cas de trabalho e conhecimentos basicos necessarios a vida no
I. 9 Utilizac;:ao da experiencia vivida pelos Xokleng para campo;
fundamentar uma politica indigenista compativel com o pais e
seus mais caros valores humanos. II. 3 A organizac;:ao da Escola
II. 3.1 Utilizas:ao . de professores previamente informados
II - As Medidas de ac;:ao sobre as tradic;:oes tribais, sobre a situa<;ao do grupo perante a
II. 1 A organiza<;ao do posto indigena sociedade regional e sobre noc;:oes basicas de Antropologia;
II. 1. 1 Atua<;ao integrada e planificada de todo o corpo de II. 3.2 Ado~ao de um programa especial de ensino, destina-
func ionarios do posto; do inicialmente a habilitar o aluno - indio ao trato com civiliza-
dos a partir do dominio de um portugues sem sotaque e do conhe-
II. 1.2 Conscientiza<;ao das responsabilidades e obtenc;:ao
cimento dos padroes de vida diaria mais rotineiros da sociedade
de condi<;oes favoraveis de trabalho por parte dos integrantes da
regional e, ao mesmo tempo, conscientizador da importancia e
equipe de funcionarios d.o posto;
validade de todos os aspectos do patrimonio cultural indigena;
II. 1.3 Organizac;:ao e manuten~ao dos servic;:os basicos ne-
II. 3.3 Utilizac;:ao da escola como veiculo capaz de habili-
cessarios a dinamiza<;ao da comunidade indigena; tar os alunos-indios em tecnicas de sobrevivencia e de melhoria
II. 1.~ O~ganizac;:a~ de um Conselho Indigena, integrado por de vida pela integra<;ao do trabalho escolar nas demais ativi-
todos os 1nd1genas ma1ores de 18 anos, com a incumbencia de dades desenvolvidas no posto;
decidir sobre objetivos a alcan<;ar e, ou, medidas de a<;ao. Esse II. 3.4 Estruturac;:ao da atividade escolar em regime de tem-
Conselho escolhera anualmente um Conselho Comunitario desti- po integral, de maneira a efetivamente obter dos alunos indios
nado a decidir o que fazer no dia a dia; total participas:ao e aproveitamento em prazo rapido;
II. 1.5 Tomada de decisoes a partir da co-participa<;ao dos
representantes da tribo e sempre na defesa de seus interesses· II. 4 A Assistencia R.eligiosa
.II: 1 .6. Organizac;:~o. e m_anuten<;ao de roda a infra·estrutur~
adm1n1strauva necessana a implementa<;ao do plano de a<;ao· II. 4.1 Ado<;ao de medidas imparciais no trato das tenden-
II. 1. 7 Preocupa<;ao e acompanhamento permanence fo;ne- cias e preferencias religiosas dos indigenas, abrindo-se igualda-
cendo a assistencia requerida, dos pequenos grupos Xokfeng so-

297
296
de de condis:oes para a atuas:ao no interior da reserva de qual-
quer organizas:ao religiosa, observados os objetivos aqui deli-
neados;
II. 4.2 Desestimulo a qualquer esquema de competis:ao reli-
giosa entre os mentores e crentes das igrejas em as:ao na reser- BIBLIOGRAFIA (1)
va;
II. 4.3 Favorecer o estabelecimento de atitudes comuns en- ABREU, Capistrano de. Caminhos Anti gos e Povoamento do
tre os re~po~saveis pelas igrejas e os objetivos do posto, a fim Brasil. Rio de Janeiro, Livraria Briguiet, 1930.
de se ev1tar tncompreensao e descrens:a entre os silvicolas; ALBERSHEIM, Ursula. Uma Comunidade Teuto-Brasileira
II .. 4.4 Aproveitamento da as:ao religiosa para reafirmar a (J arim). Rio de Janeiro, CBPE, 1962.
melhoria de padroes de saude, situas:ao sanitaria e condis:oes ALDINGER, Paulo. "A Pacifica9ao dos lndigenas de Santa
economicas vividas pelos indigenas; Catarina". Blumenau, 1918. (Trad. J. Ferreira da Silva, In:-
Blumenau em Cademos, Torno X, N~ 2, 1969).
II. 5 A Saude AMARAL, Claro Monteiro do. "Mem6ria sobre usos e costu-
II. 5.1 Estabelecimento de medidas educativas alimentares mes de indios Guarany, Arias e Botocudos". In:- Revis ta Tri-
e sanit~rias para garantir a melhoria do padrao de ~aude do gru- mensal do Inst. Hist. Geog. Brasileiro, LXIII, parte II, Rio de
po tribal; Janeiro, 1902.
II. 5. 2 Estabelecimento de um ambulat6rio no interior da re-
serva, destinado ao atendimento, internamento ou encaminhamen- - AMMON, Dolfgang. Chronica do Municipio de Sao Bento (Sta.
Catharina) desde a sua funda9ao 1873 ate 1923 - Tradu9ao por
to, para hospital regional, dos indigenas que apresentarem pro- Elly Herkenhaff.
blemas de saude; ARAUJO, Jose Paulo de Figueiroa Nabuco. Legisla9ao
II. 5.3 Acompanharnento permanente dos padroes de saude Brasileira ou Colleyao Chronologica das leis , Decreto s, Resolu-
mantidos pelo grupo e constante previsao para se evltar a ocor- 9oes de Consulta, Pro visoes, etc. etc., do Imperio do Brazil,
renc ia de epidemias; desde o anno de 1808 ate 1831, inclusive. Rio de Janeiro, Typ.
IMP. e const. de J. Villeneuve e Cia. - 1836.
II. 6 Valorizas:ao do indigena AUBE, Leonce. a A Provincia de Santa Catarina e a Coloni-
II. 6.1 Esclarecimento permanente da populas:ao integrante za9ao do Brasil". Tradu9ao de Carlos da Costa Pereira. In:-
da sociedade regional, especialmente atraves de unidades esco- Revista do Instituto Hist6rico e Geografico de Sta. Catarina,
lares, que_ OS indigenas sao tao important es quanto quaisquer + vol. XII e XIII, Florianopolis, 1943/ 44.
outro conttngente da sociedade brasile ira e, como ta! devem ser BALDUS, Herbert. Eduard Hoerhan. Germania. Wochenbeila-
.
ace1tos; ' ge Zur Deutschen Zeitung, 47. Jahrgang, N2 38, S. Paulo, 18/9/
II. 6.2 Incentivos permanentes para os indigenas reativarem 1925. .
suas tradis:oes, especialmente festas e rituais, valorizando-as BALDUS, ~erbert. Ensaios de Etnologia Brasileira. Cia.
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sociedade nacional, suas caracteristicas e problemas, visando leira. S. Paulo, 1954.
dar-lhes sempre explicas:oes que os habilitem ao relacionamento Baldus, Herbert. "Metodos e resultados da ayao indigeni sta
de igual para igual, ao se defrontarem com o civilizado.

(1) Alem das obras citadas no texto, faz-se a inc lusao daquelas que
diretamente serviram para a elabora9ao do pre sente estudo.

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·"Falla com que o Exmo Sr. Doutor Joao Rodrigues Chaves
abrio a 2!1 sessao da vigesima segunda Legis latura da Assem-
,
RELATORIOS CONSULTADOS (1) blea Provincial de Santa Catharina, em 22-2- 1881". Desterro,
1881.
"Relat6rio com que o Exmo Sr. Dr. Antonio Pereira Pinto "Falla com que o Exmo Sr. Dr. Luiz da Gama Roza abrio
entregou a Presidencia de Santa Catharina ao Exmg Sr. Dr. Se- a primeira sessao da vigesima quinta Legislatura da Assemblea
vero Amorim do Valle, Terceiro Vice-Presidente d'ella, em Legislati va Provincial de S. Catharina, em 5-2-1884". Desterro,
30-11-1849". Desterro, 1849. 1884.
"Relatorio apresentado ao Exmo Sr. Vice-Presidente da "Relat6rio com que o Exmo Sr. Coronel Manoe! Pinto de
Provincia de Santa Catharina o Doutor Speridiao Eloy de Barros Lemos 10 Vice-Presidente passou a administrac; ao da Provincia
Pimentel pelo Presidente o Doutor Joao Jose Coutinho, por de Sta. Catharina ao Dr. Jose Lustosa da Cunha Paranagua, em
ocasiao de passar-lhe a administrac;ao da mesma Provincia, em 22-6-1885". Desterro, 1885.
23-9-1859". Desterro, 1859. "Mensagem apresentada ao Congresso representat i ve do
Estado a 30 de julho de 1905 pelo vice-Govemado r Cel. Vidal
Jose de Oliveira Ramos Junior" Florian6polis, 1905.
(1) Durante 0 periodo monarquico, OS relatorios apresentados pelos Pre- "Mens agem ao Congresso Representati vo do Estado em
sidentes da Provincia a Assembleia eram chamados de "Fallas Presi-
18-9-1906 pelo Coronel Antonio Pereira cla Silva e Oliveira,
denciais".

311
310
 Presidente do Congresso Representati vo, no exercicio das fun- 0 Clarao Florian6polis
9oes de Governador do Estado". Florian6polis, 1906. 0 Tempo "
"Mensagem lida pelo Exmo Sr. Coronel Gustavo Richard Itajahy Itaj ai
Governador do Estado na Sessao de Abertura do Congresso Re- Novidades "
presentativo em 5 de agosto de 1907". Florian6polis, 1907. 0 Pharo!
"Exposi9ao s6bre o Servi90 de Prote9ao aos Indios e Loca- A Patria
"
Sao Francisco do Sul
liza9ao de Trabalhadores N acionais constante do Relat6rio do A Razao "
Sr. Ministro da Agricultura, Industria e Comercio, relative ao 0 Albor Laguna
anno de 1911". Rio de Janeiro. Correio do Sul "
"Relat6rio da Diretoria do Servi90 de Prote;ao aos Indios e 0 Futuro
Localiza9ao de Trabalhadores N acionais referente ao anno tle A Nota
"
1912". Rio de Janeiro. A Tarde
"
"Relat6rio da Diretoria do Servi90 de Protes:;ao aos indios e Vanguarda
"
Campos Novos
Localiza9ao de 1)abalhadores N acionais referente ao anno de Co Ion ie-Zei tung Joinvile ( +)
1914". Museu do Indio, Rio de Janeiro. Blumenauer·Zeitung Blumenau ( +)
"Relat6rio que o Sr. Superintendente Municipal de Blumenau Der Urwaldsbote (+)
rem~te ao ExmQ Sr. Ministro do Interior( ... ) Servi<;o de Prote;ao
aoslndios. Museu do Indio(NQ 127), Rio de Janeiro. t
"Relat6rio do Sr. Promo tor Publico de Guaraouava
, Antonio
~ibeiro de Brito". Servi90 de Prote9ao aos Indios. Museu do '
Indio (nO 551) Rio de] aneiro.
• Relatorio anual referente ao exe rcic~Jo de 1928 do PI Duque
de Caxias". Servi90 de Prote9ao aos Indios. Museu do Indio
(nQ 564). Rio de J an~iro. 1

JORNAIS CONSULTADOS (1)

J omaldo Comercio, Florian6polis

Republic a "
0 Estado "
Sul Americano
0 Dia
Gazeta Catarinense
"
" t
Falha do Comercio
"
"
Epoca "
(1) As cole9oes de jornais editados em lingua portuguesa atingem o
periodo compreendido entre 1880 e 1925, epoca em que todos realizaram
o lan9amento do primeiro nlimero. As cole9oes dos jornais editados em
lingua alema (assinalados com asterisco) foram aproveitadas somente
quando conseguimos obter a tradus;ao dos artigos que interessavam. Os
jornais modernos, embora citados no texto, nao sao arrolados aqui.

312 313

Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai

www.etnolinguistica.org
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ov. ri o bronco, 162 • c.p. 052 - fone 4485
flor ionopol is - SC

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