Universidade de São Paulo Faculdade de Educação

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

SÉRGIO APARECIDO NAVARRO

EMEF Presidente Campos Salles: o impacto da afetividade no ambiente escolar em


decorrência do Projeto Político-Pedagógico

São Paulo
2018
SÉRGIO APARECIDO NAVARRO

EMEF Presidente Campos Salles: o impacto da afetividade no ambiente escolar em


decorrência do Projeto Político-Pedagógico

Versão Original

Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade


de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Educação.

Área de concentração: Educação, Linguagem e Psicologia

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Leny Magalhães Mrech

São Paulo
2018
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional
ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Nome: NAVARRO, Sérgio Aparecido
Título: EMEF Presidente Campos Salles: o impacto da afetividade no ambiente escolar em decorrência
do Projeto Político-Pedagógico

Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da


Universidade de São Paulo, para obtenção do título de
Mestre em Educação.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof.ª Dr.ª Leny Magalhães Mrech

Instituição: Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo

Julgamento: ____________________________________________

Profª. Drª. Alice Beatriz B. Izique Bastos

Instituição: Universidade Estácio de Sá

Julgamento: ____________________________________________

Profª. Drª. Elisabete Cardieri

Instituição: Universidade Estadual Paulista - aposentada

Julgamento: ____________________________________________
AGRADECIMENTOS

À Professora Dr.ª Leny Magalhães Mrech, pelas orientações transmitidas ao longo de três
anos de pesquisa e pelas aulas de Psicanálise, no grupo de estudos. Pela atenção e carinho
dispensados e por respeitar minha autonomia responsável. É uma grande educadora, profunda
conhecedora do comportamento humano. Uma profissional brilhante na área da Psicanálise, que me
acolheu de braços abertos, iluminou meu caminho e me inspirou nos momentos difíceis.
À Professora Dr.ª Alice Beatriz B. Izique Bastos e à Professora Dr.ª Elisabete Cardieri,
pelas valiosas orientações transmitidas durante o Exame de Qualificação.
Ao ex-diretor Braz, da Diretoria Regional de Ensino – Ipiranga, pela entrevista concedida e
pela autorização para realização da presente pesquisa na EMEF Presidente Campos Salles.
Às duas coordenadoras da escola, pelo carinho e boa vontade que demonstraram, no
sentido de realizar a presente pesquisa.
Às seis professoras entrevistadas, que me atenderam no horário do almoço, sacrificando
momentos de seu sagrado descanso para responder a todas as perguntas constantes do roteiro.
Às três professoras que me acolheram no salão destinado aos alunos dos 5º anos e que me
possibilitaram aprofundar minhas observações sobre o trabalho docente.
A todos os funcionários da escola, que direta ou indiretamente colaboraram com minha
pesquisa.
Aos alunos da escola, por permitirem minha permanência no salão e nas mesas de estudo,
favorecendo minhas observações.
A todos os professores que ministraram aulas no curso de Pós-Graduação, pelas palavras
de incentivo à pesquisa e pelos ensinamentos.
A todos os funcionários da secretaria de Pós-Graduação, que demonstraram enorme
eficiência e atenção nas oportunidades em que necessitei de seus serviços.
A educação e a prática dos educadores continuam produzindo
enigmas: continuam introduzindo perguntas e não respostas.
Perguntas que continuam a nos fascinar. “Como o professor
pode educar o Joãozinho?” e “Como o professor pode ensinar à
Mariazinha”? continuam em aberto. Não há respostas para elas.
Há o retorno do enigma da educação por meio do real da
Educação e dos educadores.
(MRECH, 2005, p. 30)
RESUMO

NAVARRO, S. A. EMEF Presidente Campos Salles: o impacto da afetividade no ambiente


escolar em decorrência do Projeto Político-Pedagógico. 2018. 211 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

Entre os vários problemas crônicos na Educação, destacamos as situações de conflitos, que podem
ser desencadeadas pelo impacto de emoções e sentimentos desagradáveis que se manifestam no
ambiente escolar e atingem as relações. O agravo ocorre se a escola não tem um projeto pedagógico
inovador que envolva o seu entorno, a comunidade local, os pais de alunos, a equipe técnica,
professores, alunos e funcionários. A Escola Municipal de Educação Fundamental “Presidente
Campos Salles” é um exemplo que merece destaque, porque vem atuando na contramão desses
problemas, por ser inspirada na Escola da Ponte, situada em Vila das Aves e São Tomé de Negrelos,
em Santo Tirso, no distrito do Porto, em Portugal. A escola iniciou, em 2005, um projeto
pedagógico democrático e inovador para reverter o ambiente adverso. Seu passado era de violência,
indisciplina e fracasso escolar. A maioria dos alunos, moradores da favela de Heliópolis, não tinha
sua história de vida considerada. O docente e o aluno, respectivamente, eram vistos como: o centro
do universo e um ser fraco. Com a nova prática, baseada na educação na cidadania, esse quadro se
alterou, significativamente, para melhor. A pesquisa de campo traz como metodologia o estudo de
caso investigatório, com análise qualitativa de entrevistas com o ex-diretor, com as coordenadoras
pedagógicas e com seis professoras, além das observações sobre o trabalho de três professoras do
Ensino Fundamental Regular II, responsáveis por um salão, com cerca de cem alunos dos 5º anos.
A base teórica foi desenvolvida à luz de Henri Wallon. Na linha do objetivo geral, o resultado da
pesquisa mostrou que o projeto da escola investigada é afetivo. Ele alterou significativamente a
concepção de educação e introduziu novas práticas pedagógicas, propiciando uma impactante
manifestação de emoções e sentimentos agradáveis no ambiente. O docente também se tornou
afetivo e reinterpretou seu papel, caracterizado pelo compartilhamento solidário. O aluno passou a
ter voz e ser visto como sujeito de direitos, forte, responsável, solidário e autônomo, capaz de
construir o conhecimento próprio e de se organizar individual e coletivamente.

Palavras-chave: Afetividade. Projeto pedagógico. Ambiente escolar.


ABSTRACT

NAVARRO, S. A. EMEF President Campos Salles: the impact of affectivity in the school
environment due to the pedagogical political project. 2018. 211 p. Dissertation (Master degree) –
Faculty of Education, University of São Paulo, São Paulo, 2018.

Among the various chronic problems in Education, we highlight situations of conflict, which can be
triggered by the impact of unpleasant emotions and feelings that manifest in the school environment
and affect relationships. The grievance occurs if the school does not have an innovative pedagogical
project that involves its surroundings, the local community, the parents of students, the technical
staff, teachers, students and employees. The Escola Municipal de Educação Fundamental
"Presidente Campos Salles" is an example that deserves to be highlighted, because it has been
acting against these problems, since it was inspired by the Escola da Ponte, located in Vila das Aves
and São Tomé de Negrelos, in Santo Tirso, district of Porto, in Portugal. In 2005, the school started
a democratic and innovative pedagogical project to reverse the adverse environment. His past was
one of violence, indiscipline and school failure. Most of the students, residents of the favela of
Heliópolis, did not have their life history considered. The teacher and student, respectively, were
seen as: the center of the universe and a weak being. With the new practice, based on citizenship
education, this picture has significantly changed for the better. The field research is a research case
study, with a qualitative analysis of interviews with the former director, the pedagogical
coordinators and six teachers, as well as the observations on the work of three teachers of Regular
Fundamental Education II, responsible for a hall, with about one hundred students from the 5th
grade. The theoretical basis was developed in the light of Henri Wallon. In line with the general
objective, the research results showed that the investigated school project is affective. He has
significantly altered the conception of education and introduced new pedagogical practices,
providing an impressive manifestation of pleasant emotions and feelings in the environment. The
teacher also became affective and reinterpreted his role, characterized by solidarity sharing. The
student came to have a voice and be seen as a subject of rights, strong, responsible, supportive and
autonomous, able to build self-knowledge and to organize individually and collectively.

Keywords: Affectivity. Pedagogical project. School environment.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO............................................................................................................................12

1.1. PRIMEIRA PARTE................................................................................................................12

1.1.1 A primeira aproximação com a emoção........................................................................13

1.1.2 A experiência no exercício da docência.........................................................................14

1.1.3 O estágio na EMEF Presidente Campos Salles............................................................15

1.2. SEGUNDA PARTE...............................................................................................................18

1.2.1 A importância da realização de três cursos de Pós-Graduação latu


sensu..................................................................................................................................................18

1.2.2 A importância do estudo em três disciplinas da Pós-Graduação na FE-


USP....................................................................................................................................................19

1.3. TERCEIRA PARTE...............................................................................................................20

1.3.1 A organização dos capítulos..........................................................................................20

1.4. QUARTA PARTE.................................................................................................................22

1.4.1. Objetivo geral e objetivos específicos..........................................................................22

2. HENRI WALLON.......................................................................................................................23

2.1. A AFETIVIDADE E A ORIGINALIDADE DO CONCEITO DE EMOÇÃO EM


WALLON..........................................................................................................................................23

2.1.1. A manifestação da emoção...........................................................................................25

2.1.2. As emoções básicas e seus mecanismos.......................................................................32

2.2. INTERSECÇÃO ENTRE EMOÇÃO E OUTROS ATRIBUTOS........................................36

2.2.1. A emoção e o movimento..............................................................................................36

2.2.2. A emoção e o cognitivo.................................................................................................37

2.3. EDUCAÇÃO.........................................................................................................................41

2.3.1. Panorama sobre conflitos na escola............................................................................45

3. PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO..................................................................................52

3.1. O QUE SIGNIFICA PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO?.............................................52

3.2. FUNDAMENTAÇÃO LEGAL..............................................................................................54


3.3 HISTÓRICO E TRANSFORMAÇÃO DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS........................56

3.4. A CONSTRUÇÃO PARTICIPATIVA.................................................................................57

4. METODOLOGIA.....................................................................................................................59

5. ANÁLISE DO PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA EMEF PRESIDENTE


CAMPOS SALLES........................................................................................................................62

5.1. IDENTIFICAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO......................................................................65

5.2. HISTÓRICO: ESCOLA E COMUNIDADE.......................................................................65

5.3. OS CINCO PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PROJETO.............................................67

5.4. RECURSOS FÍSICOS.........................................................................................................71

5.5. METODOLOGIA................................................................................................................72

5.6. COMISSÃO MEDIADORA DE ESTUDANTES E TUTORIA.........................................73

5.7. ASSEMBLEIAS DE ESTUDANTES E FORMAÇÃO DE GRUPOS...............................74

5.8. REPÚBLICA DE ESTUDANTES......................................................................................74

5.9. O PROCESSO DE ELEIÇÃO.............................................................................................74

5.10. OBJETIVOS DO PROJETO.............................................................................................75

5.11. AÇÕES DA ESCOLA.......................................................................................................76

5.12. ENSINO FUNDAMENTAL.............................................................................................76

5.13. ENSINO FUNDAMENTAL NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS –


EJA.............................................................................................................................................77

5.14. CICLOS DE APRENDIZAGEM......................................................................................77

5.15. EQUIPE GESTORA.........................................................................................................79

5.16. DOCENTES......................................................................................................................80

5.17. PROPOSTA EDUCACIONAL.........................................................................................81

5.18. OS PROJETOS..................................................................................................................81

6. PESQUISA DE CAMPO..........................................................................................................83

6.1. PERFIL DOS ENTREVISTADOS.....................................................................................83

6.2. ANÁLISE DAS ENTREVISTAS E OBSERVAÇÕES......................................................87


6.2.1. A afetividade e a ambiência.........................................................................................88

6.2.1.1. Conflitos..................................................................................................................89

6.2.1.2. As transformações do ambiente escolar..................................................................92

6.2.1.3. Os obstáculos à mudança........................................................................................94

6.2.1.4. Os efeitos da implementação do Projeto Político-Pedagógico...............................96

6.3. A AFETIVIDADE E O ESPAÇO.......................................................................................97

6.4. A AFETIVIDADE E A DOCÊNCIA...............................................................................101

6.5. A AFETIVIDADE E A DISCÊNCIA..............................................................................109

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................117

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................133

APÊNDICE................................................................................................................................137
12

1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa, a partir de seu objetivo geral, tem por finalidade desenvolver
um estudo de caso a respeito de mudanças – para melhor – ocorridas em uma escola situada
no bairro do Sacomã, em São Paulo, Capital, denominada Escola Municipal de Educação
Fundamental Presidente Campos Salles. Entendemos que tais mudanças ocorreram somente
em virtude da nova visão imprimida por toda a equipe ao ambiente escolar, que se deve
principalmente à sensibilidade de percepção de que o desafeto reinante era o maior
responsável por tudo o que de desagradável acontecia naquela instituição. Teria o Projeto
Político-Pedagógico funcionado como o grande desencadeador das transformações ocorridas,
propiciando a manifestação de emoções e de sentimentos agradáveis no novo ambiente? Esse
diagnóstico e a respectiva mudança serão descritos mais detalhadamente em tópico e ocasião
mais propícios neste trabalho.
Na primeira parte, mostramos nossa história de vida e nossa experiência adquirida ao
longo do tempo, com passagens que marcaram nosso desejo em pesquisar a afetividade, com
ênfase na emoção, à luz de Henri Wallon; na segunda parte, consignamos a nossa formação
acadêmica e as disciplinas cursadas na FE-USP. Nossa formação e aplicação aos estudos
também vão ao encontro de nosso desejo em relação ao tema, na medida em que, em várias
ocasiões, encontramo-nos em situações envolvendo sentimentos e emoções; na terceira parte,
optamos por esclarecer, ainda que de forma sucinta, nossos passos ao longo dos capítulos; por
fim, na quarta parte, apontamos nosso objetivo geral, nossos objetivos específicos, bem como
nossa hipótese em relação à pesquisa.

1.1 PRIMEIRA PARTE

O pano de fundo que nos conduziu ao caminho do desejo de ingressar no programa


de Pós-Graduação, na área de Educação, Linguagem e Psicologia da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo, é formado por três passagens de nossa história de vida.
A primeira aproximação com o tema desta pesquisa está vinculada às emoções do
início de nossa adolescência, em meados da década de 1970, na condição de aluno de uma
escola estadual na cidade de São Paulo. Essa escola gozava de prestígio e era respeitada por
ser dotada de ótima qualidade de ensino; a segunda diz respeito à nossa experiência, de alguns
anos, na década de 1990, atuando no período noturno, como professor de História, em uma
13

escola estadual, localizada na Grande São Paulo; finalmente, a terceira experiência, na


condição de aluno do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo.
Como complemento de minha formação no curso de Pedagogia, em 2013,
cumprimos estágio não remunerado na Escola Municipal de Educação Fundamental
Presidente Campos Salles, localizada em Heliópolis, no distrito de Sacomã, em São Paulo,
Capital. Esse estágio era vinculado à disciplina de Metodologia do Ensino de Psicologia,
ministrada pela Professora Doutora Leny Magalhães Mrech.
Essas três passagens foram muito significativas para o direcionamento ao estudo de
caso dessa escola, com ênfase em seu projeto pedagógico e em decorrência de sua prática, no
tocante, principalmente, ao impacto da emoção, à luz de Henri Wallon, tanto nas interações
nos salões, envolvendo docentes e alunos, como na relação dos gestores com seus professores.
Desejávamos saber como a emoção aparece nessa relação e de que maneira era – e é ainda –
trabalhada nesses salões.

1.1.1 A primeira aproximação com a emoção

De primeiro, reportamos ao início de nossa adolescência, em meados da década de


1970, ocasião em que éramos aluno de uma escola estadual, localizada no bairro do Ipiranga,
em São Paulo. Recordamos de algumas aulas que despertavam nosso desejo de aprender, tais
como as aulas de química, que eram realizadas no laboratório, em um espaço amplo,
organizado, estruturado, marcado por um ambiente muito prazeroso. Nesse espaço, de bem-
estar, participávamos de várias atividades práticas, inclusive com produtos químicos, os quais
nos levaram a várias descobertas.
Outra fonte de emoção e de boas lembranças é concernente às aulas de música,
quando os alunos se deslocavam para uma sala com vários degraus, que era então chamada de
anfiteatro, apesar de não ter um formato oval, nem circular. Esse espaço facilitava a
propagação do som e era o local em que todos os alunos cantavam a música anteriormente
ensinada, olhando nosso maestro-professor, cuja mão esquerda mostrava o sentimento da
canção, enquanto a direita, segurando a batuta, mostrava o compasso e a velocidade da música
que todos entoavam.
Até hoje fazemos coisas aprendidas nas aulas de artes, tais como: carteira de couro,
abajur de palito de sorvete, robô de caixa de fósforos, tapete de sisal etc. Havia fartura de
14

materiais para a elaboração manual desses produtos que nos eram interessantes. Onde estava a
emoção? No bem-estar que as aulas proporcionavam. Nessa época, a organização da escola,
seu espaço e a emoção agradável que circulava em seu ambiente constituíram-se num marco
para nossa aproximação ao tema do presente estudo.

1.1.2 A experiência no exercício da docência

A segunda passagem diz respeito à nossa experiência ao atuar como professor de


História, em uma escola estadual da periferia de uma cidade da Grande São Paulo. A
instituição era estática em termos de propostas pedagógicas; os projetos eram atualizados por
meio da cópia do projeto anterior, com algumas atualizações. Durante cinco anos de docência,
não nos recordamos de quaisquer modificações relevantes nesse sentido, tampouco a
participação da comunidade. Quando entramos pela primeira vez na sala de aula daquela
escola, estávamos com duas grandes preocupações que a maioria dos professores traz consigo,
quais sejam: como os alunos aprendem História e interagem com os conteúdos? Qual a
melhor maneira de ensiná-los? Decidimos, então, aplicar uma avaliação inicial, a fim de sentir
a história de vida deles, o que sabiam sobre História, bem como o que esperavam de seu
professor.
Com o resultado em mãos, percebemos que nossos alunos, das sétimas e oitavas
séries, não tinham pré-requisitos, isto é, não sabiam ler um texto simples de História e
tampouco interpretá-lo. Eles tinham uma grande dificuldade em interagir com o professor,
com os conteúdos e com os demais alunos. Era um ambiente predisposto a agressividades,
brigas, discussões, enfim, crises e conflitos. A interação com o espaço ocorria parcialmente
apenas nas aulas de educação física, realizadas na quadra de esportes.
A presença de pais de alunos na escola era constante por causa do comportamento
dos filhos. Alguns pais se mostravam agressivos e, por vezes, violentos. Como exemplo desse
comportamento, recordamo-nos de que, certa vez, uma mãe de aluno entrou na escola com um
facão de aproximadamente quarenta centímetros de comprimento na mão direita e se postou
na porta da sala de aula, fazendo algumas perguntas à professora que lá se encontrava,
batendo a arma branca constantemente em sua perna direita – tipo de ameaça corriqueira na
escola.
Diante desse quadro adverso de um ambiente de completo desafeto, naquela ocasião,
perguntávamo-nos: por que esse ambiente não se transforma? Por que a emoção agradável
15

não se manifesta? Tenho, atualmente, condições de mostrar as respostas, por meio do estudo
das emoções em Henri Wallon. Qualquer escola conteudista, que apenas privilegie o
cognitivo, pode estagnar em um ambiente adverso para a educação e para a convivência. As
relações não são priorizadas.
O maior valor de nossa experiência como docente dessa escola era ver quais foram as
transformações que a escola sofreu até os dias atuais. E a resposta é: “nenhuma”. Não há tom
de crítica em nossa afirmação, apenas a constatação de uma triste realidade que permeia em
uma parcela considerável da escola contemporânea. A instituição ainda não tem um projeto
pedagógico significativo, que envolva a comunidade local, a escola, os alunos, seus pais, os
professores, os funcionários e a equipe gestora. Ela permanece imobilizada em suas práticas.
O ambiente continua a despertar conflitos, indisciplinas, agressividades e violências,
propiciando a manifestação de sentimentos e moções desagradáveis.
Esse engessamento da escola e a forte emoção desagradável no ambiente,
promoveram uma reação da equipe gestora, no sentido do isolamento. Grades e cadeados
foram colocados, isolando dos demais espaços as salas dos professores, da secretaria e da
equipe técnica. Nos intervalos das aulas, sobretudo, os docentes, com medo de atos de
violências e agressividades, permanecem “encarcerados” em um espaço bem reduzido. Por
sua vez, os alunos têm dificuldades de acesso para conversar com eles.
Na sala de aula, o professor é obrigado a seguir o livro didático e “despejar os
conteúdos” nos educandos. A cópia é uma bandeira a ser seguida rigorosamente. De fato,
alguns docentes conseguem ministrar aulas interessantes e fugir desse estigma negativo, mas é
muito desgastante agir, sozinho, no sentido contrário. Não havia trabalho compartilhado e
cada qual tinha a sua concepção de educação. Com o passar do tempo, esses docentes acabam
entrando na rotina da maioria e perdem o interesse em ensinar. Esse fato nos fez refletir a
respeito do contágio da emoção que reverbera no ambiente, seja de forma agradável ou
desagradável, tal como na situação supraexposta. Senti a indiferença de todos, no tocante à
necessidade de se construir um projeto pedagógico participativo, que mobilizasse a
comunidade, os professores, os gestores e os funcionários.

1.1.3 O estágio na EMEF Presidente Campos Salles

Mais recentemente e por último, dentre os motivos que nos conduzem a colocar em
prática este projeto, foi a realização de estágio não remunerado no primeiro semestre de 2013
16

na EMEF Presidente Campos Salles, na condição de aluno do curso de Pedagogia. Tal estágio
era vinculado à disciplina optativa EDM 0429 – Metodologia do Ensino de Psicologia, da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, ministrada pela Professora Doutora
Leny Magalhães Mrech, e deveria ter o total de sessenta horas, das quais foram cumpridas
quarenta nessa escola.
A professora Leny se referia à escola de tal maneira que instigou nosso interesse em
conhecê-la mais detalhadamente, tendo avivado nossas recordações sobre seu passado,
quando tivemos a oportunidade de estudar e conviver naquele ambiente, pois, àquela época,
residíamos nas proximidades da instituição.
Eram os anos da década de 1970 e a situação nessa escola era a de receber os alunos
de família pobre, que simplesmente não conseguiam matrícula em boas escolas da região ou
porque eram jubilados dessas melhores, após a segunda reprovação na mesma série. E, assim,
essa parte do alunado da região não tinha opções, nas proximidades de sua residência, de
outra escola para nova matrícula, compelindo o aluno rejeitado por qualquer dos dois motivos
a se matricular exatamente nessa escola, denominada à época de Escolas Agrupadas do
Moinho Velho, situada no Largo da Capela, que é atualmente chamada de EMEF Presidente
Campos Salles.
Os adolescentes viam essa escola agrupada como um lugar muito inadequado para se
estudar. Eles a chamavam de “Grupão” e, apesar do bom espaço, o ambiente não era
prazeroso. As aulas não despertavam nos alunos o desejo de aprender e se engajar. Os
recursos materiais eram escassos e muitos professores se recusavam a mudar seu modo
autoritário de lidar com os alunos. As interações em sala de aula tinham a emoção
desagradável como ingrediente principal. A reação dos alunos surgia sob a forma de
agressividade e, eventualmente, era violenta. Havia um estigma de que era a “escola dos
favelados, marginais e baderneiros”.
No início da supracitada década, os alunos das Escolas Agrupadas eram, em sua
maioria, filhos de operários nordestinos que trabalharam na construção do Hospital
Heliópolis, não muito distante da escola. Após a conclusão da obra, essas famílias
permaneceram no entorno, dando início ao surgimento da favela. Famílias de outros bairros
foram removidas pela prefeitura e se instalaram definitivamente naqueles campos de futebol,
local em que iniciaram a construção de barracos de madeira e casas de alvenaria.
Muitos pais de alunos sentiam-se inseguros e pouco confiavam na instituição em que
matriculavam seus filhos. Traziam consigo o desejo de tirar o filho dessa escola e matriculá-lo
17

em outra, na medida do possível. Qualquer escola seria melhor do que a “Campos Salles”.
Presenciamos esse momento, conhecemos adolescentes que estudavam lá e que se sentiam
angustiados, pois queriam uma escola de melhor qualidade, sem o estigma negativo que
sempre carregavam. Constantemente, os alunos da escola eram alvo de piadas maldosas
criadas por adolescentes que estudavam em escolas melhores. Carregamos conosco, durante
décadas, essa imagem de uma escola repulsiva, aliada a um sentimento de completa aversão,
que se desfez apenas recentemente.
Voltando ao período de nosso estágio na escola, que fora outrora chamada de
“Grupão”, ao iniciar essa jornada, o diretor nos propiciou completa liberdade para proceder às
observações que considerássemos úteis ao nosso aprendizado, bem como acesso aos salões
de todos os turnos. O objetivo de nossas observações foi direcionado para as interações nesses
salões, pois sentíamos curiosidade de enxergar a maneira como essas interações dos alunos
ocorriam, sejam entre si, sejam com os professores e com os roteiros integrados. Percebi, de
imediato, que o aluno era o centro da proposta pedagógica e que era visto como um sujeito de
direito, capaz de construir o conhecimento próprio, com autonomia, responsabilidade e
solidariedade, que são os princípios da escola. E o que predominava era a aposta na ideia de
que o projeto pedagógico deveria trazer, como uma de suas decorrências, a emoção agradável
nas relações entre todos os envolvidos, desde a equipe técnica e professores até alunos e
funcionários.
O diretor me relatou sobre o histórico da escola e o novo projeto pedagógico
adotado, tendo em vista que a escola, desde 1995, apresentava problemas de violência que
envolviam alunos com pessoas ligadas ao crime. Ele esclareceu que a escola faz divisa com a
favela de Heliópolis e que a população, de maneira geral, é muito carente de recursos e de
assistência. A violência, em 1999, destacou-se com o assassinato de uma aluna, ao sair da
escola no período noturno. Daí surgiu a proposta de se caminhar pelas ruas de Heliópolis,
envolvendo a comunidade, de modo a externar a não aceitação dessa violência.
O diretor contou ainda que conduziu, auxiliado por alguns professores, uma proposta
pedagógica corajosa, colocada em prática em 2005, e a encaixou nesse contexto de busca pela
paz. Enfatizou que o modelo para a concepção e elaboração do projeto pedagógico foi o da
Escola da Ponte, de Portugal, tendo atingido desde a sala de aula até a comunidade, de modo a
introduzir uma nova maneira de se construir o saber. Houve, então, uma passagem daquelas
antigas concepções, que viam a criança como um ser menor e incompleto, para uma visão em
18

que a criança é um ser integral, portadora de saber e capaz de se organizar, individual e


coletivamente.
O estágio feito na EMEF Campos Salles foi um reencontro com uma escola que nos
causara repulsa no passado e que, atualmente, é uma inspiração acadêmica pela transformação
completa do ambiente, a ponto de nos motivar a investigar seu projeto e suas decorrências em
relação ao impacto da afetividade. Terminamos o estágio com a certeza de que o projeto
pedagógico da escola mobiliza a comunidade, a equipe técnica, seus professores, alunos e
funcionários e a emoção a dinamiza.
A emoção pode ser notada, inclusive, em algumas frases norteadoras do projeto
pedagógico. Na parede lateral do saguão de entrada estão escritas frases de efeito que
demonstram o que pretende a escola como um todo: “Construindo uma cultura de paz”,
“Autonomia, Responsabilidade, Solidariedade” e “Na ausência do outro, o homem não se
constrói homem”; além de frases expostas no interior das próprias salas de aula: “Um minuto
para a paz”, “Nós pertencemos à paz”, “A paz pertence a todos ou a ninguém”, “A paz nasce
das crianças e é apoiada por adultos” e “Nós não aceitamos a violência”. É um ambiente de
estímulo à paz, de democracia e de manifestações agradáveis da emoção.

1.2. SEGUNDA PARTE

1.2.1 A importância da realização de três cursos de Pós-Graduação lato sensu

Nossa aproximação com o tema de pesquisa e nosso desejo de fazer o mestrado se


solidificaram após realizarmos três cursos de Pós-Graduação lato sensu – nível de
Especialização, a saber: Docência no Ensino Superior, em 2011/2012; Educação Especial e
Inclusiva, em 2012/2013; e Psicopedagogia, em 2013/2014. E, como se pode perceber, todos
os cursos estavam fortemente vinculados à área da educação.
De maneira geral, tais formações são voltadas para incutir no profissional,
especificamente no docente, reflexões a respeito de sua conduta em sala de aula. O
direcionamento do olhar do professor foi conduzido para as metodologias empregadas, as
práticas pedagógicas, para os alunos envolvidos em indisciplinas, fato recorrente nas escolas e
para o aluno especial. Apesar de a emoção não ter sido objeto de estudo, dos procedimentos e
da postura docente mais simples até a mais complexa, pudemos perceber a existência, em
várias situações, de fortes emoções, bem como a urgente necessidade de estudá-las. Em nosso
19

estudo, destacamos a indisciplina dos alunos, como reflexo de emoções desagradáveis,


surgidas nos conflitos, e o contraponto verificado por meio da postura docente, com reações
emocionais agradáveis.

1.2.2 A importância do estudo em três disciplinas da Pós-Graduação na FE-USP

Foram quatro as disciplinas cursadas na Pós-Graduação e, destas, aproveitamos para


nossa pesquisa três delas. Apenas uma foi realizada no primeiro semestre de 2015 – “A
Violência contra Alunos e Professores na Escola Contemporânea: um novo sintoma para a
Psicanálise” – EDM5148-1/1, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Leny Magalhães Mrech. Os
objetivos desse curso são: discutir a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de
controle e seus efeitos na Educação; o conceito, para a Psicanálise, de violência nas escolas;
as debilidades da ordem simbólica; a precarização do sujeito no mercado do saber; a violência
e o gozo; e o hedonismo e o cinismo.
Ao mencionarmos esses temas, destacamos Freud, Lacan, Althusser e Foucault como
as principais bases teóricas utilizadas nesse curso, cujo estudo concentra a discussão nas
transformações da escola contemporânea. No passado, a escola era repressiva e a ideia do
professor “sacerdote” se destacava em oposição à escola que reproduz o que acontece na
sociedade, quando é possível identificar o aumento dos casos de violência nas escolas.
A questão levantada pela Psicanálise é saber de que violência se trata: a escola atua
de forma repressiva, tal como no passado, ou é algo novo, que vem se intensificando? Essa
reflexão nos conduz a entender a violência como uma manifestação da emoção desagradável,
além daquilo que foi discutido, para que a escola possa, a partir de um projeto pedagógico
afetivo, afastar-se da repressão e da reprodução de injustiças sociais.
No segundo semestre de 2015, cursamos duas disciplinas: a primeira foi “A
Psicanálise, o Discurso Pedagógico e a Contemporaneidade” – EDF5037-3/1, ministrada pelo
Prof. Dr. Rinaldo Voltolini. Foram várias as considerações sobre a relação entre Psicanálise e
Educação. Destacamos a relação transferencial aluno-professor e professor-aluno, cuja
importância, segundo esse docente, é ainda maior que as disciplinas a serem ensinadas, na
medida em que a simpatia que se estabelece nessa relação pode criar – ainda que de modo
inconsciente – um campo favorável à aprendizagem; a segunda disciplina foi “Vygotsky,
Wallon e Lacan – O processo de Constituição do sujeito” – EDM5155-1/1, ministrada pela
Prof.a Dr.a Leny Magalhães Mrech. A disciplina aborda vários conceitos, a partir de
20

Vygotsky, Wallon e Lacan. Destacamos Henri Wallon em razão da temática de nossa


pesquisa e porque o autor tem o mesmo peso – para a Psicologia e para a Pedagogia francesa
– que Lacan tem para a Psicanálise. Esse psicanalista pensava o lugar da criança a partir do
vínculo entre Pedagogia e Educação. A disciplina aborda também o estágio do espelho, tanto
em Lacan quanto em Wallon. No caso deste último, o espelho é um objeto para traduzir o
aspecto exterior do corpo, de modo que a criança apropriar-se-á da imagem de si diante dele.
Ambos, Wallon e Vygotsky, são estudiosos marxistas preocupados com o vínculo entre a
linguagem e a sociedade.
Por último, as três passagens que relatamos sobre nossa história de vida e nossa
formação acadêmica nos conduziram ao desejo de investigar a afetividade, com ênfase na
emoção, à luz de Henri Wallon, eixo do estudo do Projeto Político-Pedagógico vinculado às
situações em que essa emoção aparece. Essas disciplinas cursadas na FE-USP também
reforçaram nosso desejo e nossa aproximação em relação ao tema, resultado da curiosidade e
do saber da experiência adquirida ao longo de nossa vida.
A presente pesquisa é a materialização de nossos sentimentos e emoções.
Entendemos que as emoções não podem ser preteridas em um ambiente escolar, tampouco em
um Projeto Político-Pedagógico, ainda que a inteligência tenha o seu lugar de destaque,
mesmo porque há uma mútua influência entre ambas, além do próprio movimento, como
ensina Wallon. Nossa pesquisa direciona o olhar, principalmente, para o impacto da
afetividade, no ambiente escolar, nas relações e, especialmente, nos salões, como decorrência
do projeto pedagógico. A visão tem como pano de fundo nossas observações e entrevistas
com professoras do Ensino Fundamental Regular II. Por fim, entendemos que a afetividade
não pode continuar desprezada em boa parcela das escolas porque suas conquistas reverberam
no cognitivo. Valorizar a afetividade no ambiente escolar é valorizar a educação, a partir da
dignidade da pessoa humana. Por essa razão ela precisa da democracia e a valorização das
relações.

1.3. TERCEIRA PARTE

1.3.1 A organização dos capítulos

Procuramos desenvolver nosso estudo e, por conseguinte, organizá-lo em capítulos,


que nos trazem os devidos esclarecimentos em relação ao nosso tema. Iniciamos com o
21

capítulo 2, sobre Henri Wallon. Este intelectual educador e humanista contribuiu – e ainda
contribui – para uma educação melhor, ao nos chamar a atenção para o valor da afetividade no
desenvolvimento da criança e sua ressonância no cognitivo e na motricidade, de forma
integrada, facilitando a aprendizagem. Sua proposta inclui uma postura democrática e humana
para professores e alunos. Tratamos, então, de nos referirmos a um pequeno histórico de sua
vida. Pequeno porque é grande o autor e sua obra, que não caberia nesta singela pesquisa.
Abordamos a questão da afetividade, com ênfase na emoção. Discutimos também a educação,
a partir desse educador, e traçamos um panorama das crises e conflitos na escola
contemporânea.
No capítulo 3, procedemos a um apanhado geral sobre o Projeto Político-Pedagógico.
Tratamos de esclarecer aspectos importantes sobre a EMEF Campos Salles, demonstrando a
sua fundamentação legal, seu histórico, a escola que a inspirou, e suas práticas antes e após a
implementação coletiva do Projeto Político-Pedagógico. No capítulo 4, expusemos nossa
metodologia, para atendermos ao nosso objetivo geral e aos objetivos específicos.
No capítulo 5, analisamos de modo mais detalhado o Projeto Político-Pedagógico da
EMEF Campos Salles. Abraçamos a dimensão pedagógica e suas práticas a fim de
desenvolver a exposição dos apontamentos. Procuramos, primeiramente, apontar o significado
das palavras, a fundamentação legal sobre o projeto, seu histórico e as mudanças que o
originaram. Posteriormente, analisamos o projeto de modo geral. Nessa fase, aparece com
destaque o histórico da escola e seu regimento escolar. Apontar o estabelecido em relação à
educação na cidadania foi nosso propósito principal, haja vista que ela é o grande centro das
modificações operadas no ambiente escolar, para melhor.
Seguimos, no capítulo 6, com nossos apontamentos e reflexões extraídos em nossa
pesquisa de campo na EMEF Campos Salles. São reflexões baseadas nas respostas fornecidas
pelos entrevistados e nos resultados das observações anotadas, a respeito do trabalho de três
professoras de um salão e a sua interação com seus alunos. Optamos por eleger a categoria
afetividade e sua intersecção com subcategorias para análise: ambiência, espaço, docência e
discência. Não há como falarmos de ambiência sem nos referirmos à docência, à discência e
ao espaço. São subcategorias interligadas e todas conectadas com a afetividade.
22

1.4. QUARTA PARTE

1.4.1. Objetivo geral e objetivos específicos

O objetivo geral da presente pesquisa é investigar se o atual Projeto Político-


Pedagógico da EMEF Presidente Campos Salles é afetivo e quais são suas decorrências após a
implementação, em 2005, na EMEF Presidente Campos Salles, de um Projeto Político-
Pedagógico democrático e inovador, a afetividade foi, com efeito, impactante, ao ponto de
sentimentos e emoções agradáveis se manifestarem com intensidade considerável no ambiente
escolar, decorrentes das novas práticas pedagógicas, da reinterpretação do papel do docente e
do protagonismo do aluno, além das alterações significativas do espaço.
A fim de verificar a hipótese levantada, a seguinte pergunta norteará a pesquisa: O
Projeto Político-Pedagógico implementado, em 2005, na EMEF Presidente Campos Salles, é
afetivo? No caso de uma resposta afirmativa, de que maneira a afetividade, com ênfase na
emoção, impactou o ambiente escolar?
Em obediência ao proposto no objetivo geral, foram estabelecidos os seguintes
objetivos específicos: observar, analisar e refletir sobre o impacto da afetividade, no ambiente
escolar, com ênfase na emoção, no trabalho docente de três professoras de um salão, com
alunos dos 5os anos; observar, analisar e refletir sobre o impacto da afetividade, no ambiente
escolar, em decorrência da educação na cidadania, por meio das relações e interações
existentes entre alunos, entre professores, e entre alunos e professores, no salão e na sala de
reuniões da Comissão Mediadora; e ler, analisar e refletir sobre o Projeto Político-Pedagógico
da escola.
23

2. HENRI WALLON

Henri Paul Hyacinthe Wallon nasceu em Paris, em 1879, e morreu em 1962, na


mesma cidade, aos oitenta e três anos de idade. Dantas (1983) alega que ele sofreu forte
influência de seu avô, Henri Alexandre Wallon, uma afeição repassada por meio do respeito
pelo homem de pensamento e ação. Enxergamos sua formação como ampla e eclética, pois
estudou Medicina, Psicologia e Filosofia. Decorre daí sua preocupação com a cura de
patologias, com a necessidade de se compreender o indivíduo, especialmente a criança, e as
questões vinculadas à natureza humana. É certo que não foi apenas sua formação que
embasou seus interesses, mas também a atmosfera social de Paris e sua própria vivência,
sendo notadamente motivado, ao longo da vida, a propor mudanças por meio de seus estudos,
especialmente no tocante à educação. Foi filiado ao Partido Marxista e atuou na área política.
Participou, como médico, da I Grande Guerra e também do movimento de resistência aos
nazistas, durante a II Grande Guerra. Não poderíamos deixar de lado o fato de ter exercido a
docência, pois esta experiência nos mostra que contribuiu para sua percepção sobre os
problemas educativos.
Dantas (1992) afirma que Wallon fez mais de duzentas observações em crianças
doentes, com anomalias psicomotoras. Além de sua preocupação com as funções psíquicas,
investigou a Psicologia na corrente do pensamento ocidental, partindo das origens gregas.
Partimos, portanto, da visão walloniana, que diferenciava a criança normal da criança
patológica, para então compreendermos a justificativa de seus trabalhos, voltados para a
Psicologia, em laboratórios; a meta era a de explorar as origens biológicas da criança.
Mahoney (2012) confirma que, depois da Psicopatologia, Wallon priorizou o estudo
da consciência e de suas origens biológicas, concentrando-se no processo de
desenvolvimento. Sua teoria foi criada graças a uma análise que envolvia comparações de
semelhanças e de diferenças entre o desenvolvimento de crianças normais e de crianças
patológicas, e entre crianças e adultos. Acrescenta Dantas (1983), que Wallon extraiu suas leis
psicológicas de observações clínicas, com o cuidado de evitar a utilização indiscriminada e o
caráter formal dos testes. Dessas observações foram extraídos princípios reguladores e a
identificação de vários estágios. Assim, nascia a teoria do desenvolvimento.
Ainda segundo Dantas (1983), Wallon se notabilizou nas Ciências em razão de suas
reflexões e pelo humanismo cultural, em que sua ampla compreensão é a única posição que
pode preparar o homem para a democracia. O autor atravessa os domínios da psicopatologia e
24

retém apenas “os grãos de verdade”. Esta expressão significa que assimilou, pouco a pouco,
seu método de investigação e o repasse afetivo ao longo de sua trajetória, repleta de artigos,
conferências, sugestões e ensinamentos. A originalidade de seu trabalho advém do fato de que
não se prendeu à pesquisa em laboratório, mas voltou-se ao humano no sentido mais amplo,
transformando o resultado de suas investigações em ações.

[...] no humanismo walloniano há a rejeição de toda e qualquer fixidez ou fatores


imutáveis; sua metodologia recusa a invocação de quaisquer entidades, pois sua
atitude científica consiste em acompanhar com ardor o desenrolar dos eventos
históricos e em discutir o caráter e o conteúdo legítimos de nossa época [...].
(DANTAS, 1983, p. 189).

Para Zazzo (1978), em Wallon existe sempre o contato com o cotidiano, em que há
uma grande preocupação com o indivíduo em sua totalidade, nos traços particulares, nas
relações com os outros e nos significados de seus pensamentos. A ciência do psiquismo não
pode ser encerrada em um sistema, da mesma forma que a psicologia de Wallon não chega a
um sistema. É uma psicologia das diversidades mentais e das contradições. Contradições é um
termo que surge em seus escritos e diz respeito à análise das contradições das teorias entre si
ou às oposições associadas aos hábitos mentais e verbais. A complexidade em Wallon é
essencial porque diz respeito ao que o outro descobre e deseja respeitar. Ao contrário, a obra
de outros autores pode ser simplificada porque as aparentes complexidades são, na verdade,
um ruído de fundo, de um sortilégio verbal.
Segundo Mahoney (2012), para acompanhar a leitura feita por Wallon, é preciso
evitar o raciocínio dicotômico, que fragmenta a pessoa, e adotar um raciocínio que a apreenda
como constituída por diversas dimensões em conjunto e atreladas entre si. Zazzo (1978)
explica que o pensamento de Wallon não é reducionista ao ponto das proposições simples. E,
ao lhe sermos fiéis, para não o trairmos, há uma retomada de suas fórmulas e a multiplicação
das citações, conduzindo-nos a uma queda fácil e ao defeito da paráfrase. E quem pode repetir
Wallon? Ele mesmo. “Só Wallon pode repetir Wallon, comentar-se. E aquilo que pode
parecer redundância é um aprofundamento progressivo, com novas perspectivas, com factos,
exemplos, demonstrações multiplicadas de uma para outra obra” (ZAZZO, 1978, p. 81). E de
que maneira permanecem nossos hábitos mentais dentro dessas novas perspectivas? O autor
assevera que nossos hábitos mentais ficam constrangidos porque Wallon vai contra a corrente
da explicação científica, que suprime as contradições das coisas e reduz a diversidade, pois a
explicação encontra princípios e fatores comuns a todos os níveis do real.
25

E sua obra é atual? Qual a sua importância? Uma grande obra não se perde no tempo.
É o que acontece com a teoria de Wallon. O estudo sobre a afetividade é um grande exemplo
da atenção que dedicou ao aspecto humano e à criança, de forma que, ainda nos dias atuais,
psicólogos e pedagogos podem refletir, aprender e pesquisar a partir de suas teorias, e aplicá-
las em nome da boa educação. Werebe e Nadel-Brulfert (1986) afirmam que a atualidade de
Wallon pode ser percebida por meio das preocupações com o estudo da criança situada no
primeiro plano da Psicologia. A sua teoria ocupa lugar de destaque, juntamente com os
trabalhos anglo-saxões sobre o desenvolvimento social e afetivo da criança. A importância da
obra de Wallon se justifica em virtude da preocupação central de firmar a especificidade da
Psicologia e a oposição ao reducionismo ou ao dualismo.

Os psicólogos e educadores brasileiros poderão, assim, encontrar nos trabalhos de


Wallon não apenas um importante referencial teórico geral, mas também
fundamentos para o desenvolvimento de pesquisas em psicologia da criança, com
implicações pedagógicas importantes. (WEREBE; NADEL-BRULFERT, 1986, p.
8).

2.1. A AFETIVIDADE E A ORIGINALIDADE DO CONCEITO DE EMOÇÃO EM


WALLON

Percebemos, num olhar mais ampliado, que os estudos de Wallon não estão
“desconjuntados”; ao contrário, formam um todo em que um conceito tem completude em
outro, apesar de estarem em posições distintas. Nas palavras de Bastos (2003, p. 21): “A
utilização do termo pessoa total ao longo de sua obra enfatiza a importância de se conceber a
pessoa de forma integrada. [...].”. É o que observamos, por exemplo, nas quatro categorias
interligadas, como o movimento, a afetividade, a inteligência e a pessoa.
De fato, sua obra induz a uma reflexão pedagógica a partir do estudo do
desenvolvimento da pessoa completa. Os estágios de desenvolvimento apresentados por
Wallon demonstram que o autor não se limita ao estudo do cognitivo: há um revezamento no
domínio dos estágios, nos quais a afetividade – e, especialmente a emoção – faz-se presente e
se destaca, com maior ou menor ênfase. Alguns estágios trazem o predomínio da afetividade.
“Wallon vê o desenvolvimento da pessoa como uma construção progressiva em que se
sucedem fases com predominância afetiva e cognitiva” (GALVÃO, 2014, p. 43). Ele faz
inúmeras referências à afetividade, a partir do estágio impulsivo-emocional que a criança
vivencia. Nos estágios sucessivos, a afetividade se manifesta ou permanece mais “encolhida”.
Existe uma influência maior ou menor, dependendo do estágio, do caráter cognitivo ou do
26

caráter afetivo. Para Galvão (2014), Wallon chama de predominância funcional os


predomínios do caráter intelectual e do caráter afetivo. Nessa sucessão de estágios, ocorre a
alternância funcional.
Wallon os divide em etapas, a saber: impulsivo-emocional; sensório-motor e projetivo;
personalismo; categorial; e puberdade e adolescência. Destacamos apenas três, em função da
maior manifestação da afetividade. A emoção flui com intensidade no 1º estágio – impulsivo-
emocional (que vai de 0 a 1 ano). No 3º estágio – personalismo (3 a 6 anos), a criança
descobre que é diferente de outras crianças e dos adultos. Essas diferenças devem ser
reconhecidas e respeitadas. Há o rompimento do sincretismo entre ela e o outro. A afetividade
que facilita tais aprendizagens, comporta a convivência com outras crianças e a aceitação da
negação. O 5º estágio – puberdade e adolescência (dos 11 anos em diante) se caracteriza,
segundo Almeida e Mahoney (2005), na busca pela autonomia, na exploração de si mesmo,
nos questionamentos, nos confrontos e na autoafirmação dos adolescentes. O adolescente
busca responder a estas perguntas: quem sou eu? Quais são meus valores? Quem serei no
futuro? Desse modo, há indícios de que o adolescente precisa ter voz para encontrar as
respostas.
Thong (1981) afirma que no estágio da puberdade e adolescência, há preponderância
das ações e das curiosidades viradas para o mundo exterior, as necessidades do eu e as
preocupações com a pessoa. Na crise da puberdade há um movimento de viragem sobre si
mesmo, rompendo com o equilíbrio anterior. Uma modificação geral que afeta os domínios da
vida psíquica. O resultado é a inquietude e uma ambivalência das atitudes e dos sentimentos,
que convergem para uma nova integração, donde sairá a personalidade adulta. O ponto de
partida dessa transformação é um sentimento de transformação.
As considerações sobre os estágios nos conduzem a várias indagações: o que é
impacto? Qual o conceito de afetividade? Afetividade e emoção são palavras sinônimas? Qual
a diferença entre emoção e sentimento e paixão?
Em alguns estágios percebemos que a afetividade é impactante. Mas o que é
impacto? O Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa (Ferreira, 1994) define o termo
impacto como uma impressão muito forte e profunda, causada por motivos diversos, um
choque emocional. Mas eis que surge, então, uma pergunta inevitável: exatamente, a que tipo
de impacto nos referimos em nosso trabalho? Ao impacto da afetividade nas relações, no
ambiente escolar.
27

Para Almeida e Mahoney (2007), a afetividade é uma capacidade, uma disposição do


ser humano de ser afetado pelo mundo interno e externo, por meio de sensações. As autoras
fazem referências às tonalidades agradáveis e desagradáveis dessas sensações. Optamos por
designar a afetividade de agradável ou desagradável, pois provoca sensações de bem-estar ou
mal-estar. Desse modo, diferenciamos as sensações por ela provocada. Assim, todo ser
humano é afetado, desde seu nascimento, pelas reações de seu corpo e pelo meio em que vive,
de forma agradável ou desagradável, e, por conseguinte, reage. Resultantes de fatores
orgânicos e sociais, a teoria de Wallon apresenta três momentos na evolução da afetividade:
emoção, sentimento e paixão; “Na emoção, há o predomínio da ativação fisiológica, no
sentimento, da ativação representacional, na paixão, da ativação do autocontrole”, como
explicam Almeida e Mahoney (2005, p. 20).
Bastos (2014) afirma que Wallon concebe o sujeito a partir da afetividade, da
inteligência e do ato motor. No que se refere à afetividade, afirmamos que esta é constituída
da emoção, do sentimento e da paixão. Se na emoção temos a reação instantânea, ao contrário,
no sentimento, as reações não são diretas e instantâneas. Localizamos o sentimento no circuito
do cognitivo, enquanto que a emoção a localizamos no circuito do biológico. No primeiro
circuito, o amor é um sentimento; no segundo, ele é uma emoção. A primeira expressão da
afetividade é, portanto, a emoção, que tem uma maior visibilidade que as demais.
Tomamos outro exemplo, como o medo, e a sua origem; segundo Zazzo (1978, p.
117), “O medo, assim como as demais emoções, se origina de reações elementares, cujo ponto
de partida é a sensibilidade orgânica. [...]”. No entanto, observamos que nem sempre essa
sensibilidade orgânica é preponderante e, nesse caso, não podemos falar de emoção, mas de
sentimento. Por exemplo, um professor avisa aos alunos, antecipadamente, de maneira
adequada, que determinada prova será muito difícil. O medo, nesse caso, é um sentimento,
porque uma grande parcela dos alunos pode não reagir diretamente e começa a utilizar o
diálogo para exercer o contraditório. A ativação representacional, isto é, o pensamento
simbólico entre em ação. Eles começam a refletir sobre a prova e usam o raciocínio para
traçar estratégias para superá-la com sucesso. Provavelmente, o ambiente será tomado pela
tristeza e gradativamente, pelo medo. A maneira como o professor explica é decisiva para
evitar o choque emocional. Não podemos afirmar que, nessa ilustração, houve autocontrole
dos alunos porque não houve manifestação de emoção. O que houve foi a instauração de um
sentimento coletivo de medo, no circuito do cognitivo.
28

No entanto, se esse mesmo professor avisa que a prova será muito fácil e, no dia
marcado, descobrem que ela está muito complicada, a tendência é a de que a maioria dos
alunos seja tomada pelo medo e reaja instantaneamente às dificuldades da prova. Os atos
podem ser incontroláveis e, certamente, impensados. Existe, portanto, a possibilidade de o
aluno se levantar imediatamente e entregar a prova ou simplesmente rasgá-la. Nesse caso, o
medo é uma emoção, porque é biológico e visceral, e pode vir acompanhado de uma cólera
projetada contra o material da prova. A reação movida pelo orgânico é preponderante.
Existe uma nova possibilidade, a de que alguns alunos dominem a situação e a
emoção, por meio do autocontrole. Temos, nessas circunstâncias, a paixão. No entanto, o
autocontrole depende muito da idade do aluno e é mais comum em adultos, que podem ter o
hábito de retomar o raciocínio, apesar de, às vezes, sofrer com o impacto de uma emoção.

A representação também pode ter um alvo ou um objeto imposto à afetividade e


sôbre ela imperante. Abole a emoção na medida em que a transforma em paixão. O
apaixonado, habitualmente, se mantém senhor de suas reações afetivas. Diante de
impulsos emotivos, caminha para o raciocínio [...]. (DANTAS, 1971, p. 152).

Almeida e Mahoney (2007) esclarecem que a paixão não aparece antes do estágio do
personalismo e tem por característica a exclusividade, exigências e ciúmes. Outro detalhe é
que alguns adultos têm autocontrole e são mais centrados. Chegamos, assim, a três conclusões
sobre o autocontrole da emoção, quais sejam: a primeira é a de que, adultos e crianças são
diferentes, isto é, a criança não tem autocontrole, via de regra; a segunda é que o poder de
entendimento e verbalização do adulto o ajuda no autocontrole. Na visão de Almeida e
Mahoney (2007), o adulto tem melhores condições para expressar seus sentimentos porque ele
consegue traduzir intelectualmente seus motivos e circunstâncias; e a terceira é de que
nenhum aluno teria uma crise emocional se estivesse sozinho na sala de aula. Nesse caso
específico, não precisa ser adulto para que a emoção perca a sua força. É muito comum
crianças chorarem apenas quando percebem que os pais estão olhando.

Em situação de crise emocional, quando o sujeito mergulha-se completamente nos


efeitos da emoção e perde o controle sobre suas próprias ações, a tendência é que os
efeitos da emoção se desvaneçam caso não haja reações por parte do meio. Ou seja,
na ausência da “plateia” as crises emocionais tendem a perder a força. (GALVÃO,
2014, p. 64-65).

Chegamos a dois entendimentos importantes: primeiro, a de que as palavras medo,


alegria, tristeza, raiva e tantas outras podem ser traduzidas como sentimentos ou emoções. Se
a pessoa parte de uma deliberação, de um pensamento elaborado, da cognição, essas palavras
se referem aos sentimentos; segundo, de outra maneira, se a pessoa parte de um padrão
29

postural, de um reflexo condicionado, de uma reação imediata a uma situação, elas se referem
à emoção. Nesse caso, há a exteriorização da afetividade.

[...] A cada uma, passa a corresponder um padrão postural, que libera ou concentra
energia com maior ou menor intensidade e depende de automatismos específicos
que emergem pela maturação funcional: reação à queda, à falta de apoio, à
estimulação labiríntica, etc. [...] A emoção dá rapidez às respostas, de fugir ou
atacar, em que não há tempo para deliberar. É apta para suscitar reflexos
condicionados. (ALMEIDA; MAHONEY, 2005, p. 20).

Explicadas, de modo geral, as diferenças, caminhamos na direção de como a emoção


aparece e se constitui. A emoção é a exteriorização da afetividade, a sua expressão corporal. É
dotada de plasticidade, expressividade, contagiosidade e liga o mundo orgânico ao social. Os
tônus musculares revelam os sistemas de atitudes, isto é, a emoção. A atitude é a combinação
entre tônus e intenção e está associada a uma ou mais situações. A emoção aparece no recém-
nascido, com seus espasmos, que não são apenas atos musculares ou viscerais, mas sensações
de bem-estar ou de mal-estar, bem como, em sua dissolução, por meio de riso, choro e soluço,
que aliviam as tensões musculares. “A emoção constitui também uma conduta com profundas
raízes na vida orgânica: os componentes vegetativos dos estados emocionais são bem
conhecidos, e Wallon mergulha neles até descobrir sua origem na função tônica”. (DANTAS,
1992, p. 85).
Para Wallon, a dimensão afetiva está presente na construção da pessoa e na
construção do conhecimento e, por analogia, a emoção está presente nessas construções.
Segundo Bastos (2014), a emoção é a mola propulsora em relação ao psiquismo, à
consciência e à vida social. E o que difere as emoções de outras manifestações? A resposta se
encontra no organismo humano e em suas alterações, porque a emoção é uma reação
unicamente orgânica. Galvão (2014) entende que as emoções se diferem de outras
manifestações da afetividade por conta de suas características específicas. As reações
orgânicas sempre acompanham as emoções e podem ser observadas por meio das alterações
da respiração, da aceleração dos batimentos cardíacos, da secura na boca e das dificuldades
digestivas.

2.1.1 A manifestação da emoção

Mrech (2011), ao se referir ao domínio da afetividade, coloca-a juntamente com os


outros domínios funcionais: a motricidade e a inteligência. A construção de todos os domínios
é gradual e há uma vinculação entre si. Wallon ensina que, inicialmente, o bebê está em
30

processo de indiferenciação em relação ao mundo; não faz a separação ele – mundo, ele – as
pessoas, ao contrário, ele se confunde com ele mesmo. No entanto, gradativamente, começa a
identificar o que ocorre consigo e estabelece o chamado processo de diferenciação. É o
momento em que a criança percebe as suas emoções básicas de prazer.
Chamamos a atenção para que não haja uma confusão entre as emoções básicas com
o amor e o carinho. As emoções básicas são provocadas por fatores biológicos. A autora
destaca que são emoções básicas de prazer e desprazer, como alegria e tristeza, por exemplo.
E uma das primeiras tentativas de contato da criança é o grito, que revela as manifestações de
prazer e desprazer. Para Wallon, o grito é o meio pelo qual o bebê aprende a identificar suas
emoções. Wallon (1995) afirma que, após os três meses, o bebê consegue se dirigir àqueles
que lhes são próximos, com gritos e sorrisos, para atender às suas necessidades e esses
movimentos expressam laços afetivos.
Como aparecem as expressões emocionais nos bebês? Segundo Wallon (1975), com
a idade de seis meses, surgem expressões emocionais variadas, de acordo com o que o meio
pode lhe oferecer, ficando a mãe no papel de intermediária. As mímicas também chamam a
atenção do autor no contexto das combinações: “[...] As ulteriores imitações mímicas poderão
utilizar-se destas combinações elementares como dum cadáver (sic) já familiar [...]”. (1975, p.
156, grifo nosso). Nesse momento da vida, entendemos que o bebê passa a interagir mais
intensamente com aqueles que são próximos e, na maioria dos casos, o próximo mais
importante é a mãe dele.
As mímicas podem se manifestar de várias maneiras, inclusive quando o bebê ouve
uma música adequada. Nas “brincadeirinhas” como o “achou” podem ocorrer reações por
meio de mímicas, numa fase marcada pelo desenvolvimento emocional e social. A grande
importância das reações por meio de mímicas é a promoção da interação entre bebês e seus
envolventes. É um período de manifestações diferenciadas. Assim ilustram Werebe e Nadel-
Brulfert (1986, p. 43): “[...] Se, desde o terceiro mês, sob certas condições ainda bem
exclusivas, o grito induz ao grito, o sorriso ao sorriso, o mimetismo afetivo só aparecerá no
segundo semestre, ou seja, na idade em que começam também a se manifestar as emoções
diferenciadas”.
Se a emoção é uma manifestação humana, ela acompanha o ser humano há muito
tempo. No entanto, há indícios de que a maneira como ela se manifestava não sofreu
transformações com a evolução da sociedade. E nos perguntamos: como se manifestava a
emoção no homem primitivo? Sabe-se que a maior preocupação do ser humano primitivo era
31

a sua preservação e a dos outros com quem se envolvia, vivenciando a esfera dos instintos.
Ele agia por instinto durante a caça e nas situações perigosas de enfrentamento de animais e
das próprias agruras peculiares ao meio no qual estava inserido. Sua cultura, ao longo do
tempo, foi construída socialmente nesse contexto de lutas pela manutenção e sobrevivência de
sua espécie.

O viver em grupo, também conseguido graças ao estágio da emoção, foi uma das
conquistas primeiras do homem para assegurar sua sobrevivência. Assim, foi a
poderosa ajuda da emoção com sua capacidade de despertar o espírito de
colaboração, a cumplicidade nos interesses e, consequentemente, na ação comum
que constitui o grupo, a associação dos indivíduos. O único triunfo de que dispunha
o homem contra a sua ignorância, ainda que transitória, diante da natureza.
(ALMEIDA, 2012, p. 73).

No entanto, esse fato mostra que o instinto se distingue do caráter fisiológico da


emoção e que a grande conquista do homem primitivo, derivada da emoção, foi o
fortalecimento de seu grupo. Nesse sentido, Bastos (2014, p. 28) se refere a Wallon: “É
interessante notar que, justamente por frisar o caráter fisiológico das emoções, o autor já
mostra distingui-las da esfera dos instintos”.
A distinção entre instinto e caráter fisiológico conduz a uma inevitável questão, qual
seja: como aparece a atividade mental na criança e a totalidade da emoção? Para Almeida
(2012), o mundo cultural e físico precede ao nascimento da criança, que chega ao mundo com
as premissas de história de vida traçadas, possui nacionalidade, classe social e família; são
fatores que independem de sua vontade. Há o entendimento de que o aparecimento da
atividade mental se deve ao desenvolvimento e à maturação dos centros nervosos, e não
apenas à ação do meio. A totalidade da emoção, em Wallon, é explicada pela conjunção dos
meios externos e das disposições orgânicas. Isto é, Wallon entende que as emoções consistem
em atitude e situação implicadas mutuamente e colocam as disposições psíquicas no mesmo
sentido.
Para Wallon, entender o Homem, a partir de seu nascimento, não é possível apenas
pelo aspecto orgânico. Tudo nele, em termos de comportamento, é explicável se
considerarmos a sociedade em que vive. A sua vida psíquica depende desses aspectos. Em
outras palavras, há a influência do meio, além do orgânico. Segundo Dantas (1983), as etapas
do desenvolvimento infantil se confirmam com o gênero da atividade destinada à criança. É o
ato e seu efeito, em que o gesto representa o efeito do sofrimento ou do bem-estar da criança.
Wallon estuda o jogo, a atividade lúdica ou a aptidão a disciplinar a ação, favorecendo a
adaptação da criança ao meio social. Com esse trabalho, Wallon demonstra que a vida
32

psíquica é a interação do indivíduo como o meio. Ele rejeita a oposição entre o orgânico e o
social porque a criança é um ser social, mas o seu comportamento é determinado
fisiologicamente.
Desse modo, a maturação do sistema nervoso e a ressonância afetiva garantem a
sobrevivência da criança. Ao dispor da emoção com intensidade, ela se distingue dos animais
por receber do adulto, de outras pessoas e, principalmente, da mãe, aquilo de que precisa para
satisfazer suas necessidades e promover o seu bem-estar.
Mrech (2011) vê uma estreita relação entre a identificação das emoções pelo bebê, a
partir de seu desenvolvimento inicial, com a maneira pela qual a criança é acolhida pela
família. Existe um grande equívoco cometido por professores ao entenderem que determinada
ação da criança tem uma característica; no entanto, na verdade, ela ainda não tem
características e não tem a menor ideia do que faz. É muito comum o professor dizer que ela
quer chamar a atenção em determinada situação. O que ocorre é que a criança traz consigo o
que vivencia em seu ambiente familiar. Daí decorre a necessidade de o professor ter uma
percepção apurada no tocante aos domínios funcionais: a afetividade, a motricidade, a
inteligência e a pessoa. Passam da indiferenciação para a diferenciação, isto é, a partir do
pensamento sincrético, em que a criança se mescla com o mundo e as outras pessoas até a
tentativa de se separar delas, a fim de estabelecer a sua própria maneira de pensar, de sentir e
de agir.

2.1.2. As emoções básicas e seus mecanismos

São várias as emoções observáveis em um aluno. As emoções podem ser agradáveis


ou desagradáveis: as primeiras conduzem ao prazer ou bem-estar e, as segundas, as
desagradáveis, ao desprazer ou mal-estar. O docente que observa e percebe as reações do
aluno em sala de aula, por meio de suas reações físicas, precisa ser solidário e conversar com
ele. A sensibilidade para identificar emoções pode evitar eventuais transtornos, como o fato
de o docente confundir emoção com indisciplina. No entanto, a emoção pode levar à
indisciplina e, até mesmo, à agressividade e à violência física.
Almeida (2004) afirma que os efeitos da emoção podem ser percebidos por meio da
aceleração do pulso, da salivação, da umidade da pele até sinais mais transparentes, tais como
a contração do tronco e dos membros, estendido ao sistema postural.
33

As três emoções básicas são: a alegria, a cólera e o medo. Quando pensamos em


emoção agradável, logo surge a ideia de algo muito prazeroso. Quando uma aula é agradável,
ela afeta os alunos, de modo que, ao sentirem prazer com a prática pedagógica que os
envolve, reagem e podem se tornar engajados, ainda que apenas naquela aula.
Ao contrário, quando a aula é desagradável, não sentem prazer, mas sim, desprazer,
de modo que podem reagir por meio da manifestação da tristeza e por uma postura indiferente
em relação à prática pedagógica – e, ainda, com a prática da indisciplina. Uma indisciplina
muito comum é a passiva, que é difícil de ser percebida porque não é disruptiva. O aluno
permanece quieto, mas se encontra totalmente desconectado da aula. A alegria e seu contrário,
a tristeza, podem ser percebidas pelo movimento que se faz, pelas contrações musculares. O
prazer e o desprazer são reflexos de tais evidências.

Os estudos de Wallon demonstram que a alegria tem uma estreita relação com o
movimento. Ela tanto pode ser fruto do movimento, ou melhor, nasce com a
facilidade do movimento, quanto pode revelar o movimento como um dos seus
efeitos. (ALMEIDA, 2004, p. 77).

Para Almeida (2004), a cólera, quanto à pluralidade, varia de indivíduo para


indivíduo e têm excitações de origem diversas. A intensidade pode ser tão forte que acaba
rompendo as relações do indivíduo com o meio. O que pode provocar a cólera? A mesma
autora se refere a incômodos provocados por um objeto, carícias excessivas, excitação
provocada por movimento recreativo e outros fatores associados às incompatibilidades entre a
disposição postural e a atividade profissional do indivíduo.
O espaço da sala de aula, se for inadequado, aliado a carteiras e mesas
desproporcionais ao tamanho dos alunos, pode contribuir para posturas incompatíveis durante
o aprendizado. A tristeza e o mal-estar também podem conduzir o aluno a um acesso de
cólera, pois ele pode se nutrir de certa angústia em decorrência desses vários aspectos e de
circunstâncias que o afetam. Para Rinaldi (2009), a angústia não é uma emoção. É um afeto
especial, segundo Lacan, com uma relação estrutural com o sujeito. É uma perturbação não de
um sentimento. Estabelecida a diferença entre emoção e angústia, concluímos com a
afirmação de Dantas (1983), em que Wallon adianta que o homem encolerizado conhece
apenas seu arrebatamento e não se recorda dos motivos que o conduziram ao estado colérico,
porque ele perde a noção do que o envolve.
Novamente, é Almeida (2004) quem chama a atenção para o fato de que a cólera é,
ao mesmo tempo, eufórica e regressiva, e essa tendência a diferencia do medo. Wallon aponta
dois tipos de cólera: a centrípeta e a projetiva. Na centrípeta, o indivíduo almeja a si mesmo,
34

enquanto que, na projetiva, ele direciona sua cólera para o meio, para o outro e para as coisas.
Alunos que reagem chutando lixeiras também podem ser agressivos e violentos com outros
alunos e com professores. Temos nessa situação a possibilidade da decorrência de uma
manifestação emocional de cólera, via de regra, passageira.

A cólera centrípeta é aquela onde domina a angústia. Mais frequente na criança que
no adulto, na mulher que no homem visto encontrar-se mais próxima de suas origens
orgânicas. A cólera projetiva, constituída de reações contra o meio, faz participar a
ambiência de suas manifestações, exterioriza-se em cenas mais ou menos
expressivas, podendo exercer uma ação de intimidade no ambiente [...]. (DANTAS,
1983, p. 117).

O medo, segundo Almeida (2004), é mais tardio que a tristeza. Como explica
Wallon, por causa de sua sensibilidade labiríntica, o bebê experimenta o medo como sua
primeira emoção e, assim, orienta suas atividades. Há uma relação entre reações de equilíbrio
e medo, em que uma reação do labirinto pode revelar reflexos de imobilização. Nos bebês,
são diversos os efeitos que o medo provoca e que podem se apresentar nos indivíduos sob
diversos graus e formas. Os riscos de determinada situação podem provocar angústia ou
pavor. No primeiro caso, o indivíduo prevê os riscos; no segundo, a surpresa diante de uma
situação provoca pavor.
O medo existe também na sala de aula. A didática do professor, as práticas
pedagógicas propostas e até mesmo as avaliações podem provocar angústia e pavor nos
alunos. Esses desdobramentos do medo atingem a aprendizagem na medida em que tem o
poder de imobilizá-los: “Tanto o pavor quanto a angústia têm o poder de abolir a atividade do
sujeito, pois sua atuação impõe ao corpo uma súbita variação tônica”. (ALMEIDA, 2004, p.
81).
São comuns as situações em que alunos revelam dificuldades para apresentar
seminários, enquanto professores permanecem estáticos, fazendo avaliações de sua conduta
para lhes atribuir nota. Seria interessante o docente refletir sobre como aplicará esse
seminário, a fim de não causar angústias e pavor, de maneira a afastar o medo como reação
emocional. Tal circunstância é apenas um pequeno exemplo porque são várias as atitudes de
um docente que pode resultar em angústias ou tristeza ou medo, e ainda, uma somatória de
sentimentos e emoções.
Certamente, a emoção necessita de estabelecer uma maneira de agir sobre o mundo
social. Somente assim haverá uma influência sobre aqueles que estão próximos e se
emocionam com a criança, em qualquer fase de seu desenvolvimento.
35

Almeida (2012) afirma que Wallon classifica quatro mecanismos para a emoção agir
sobre o mundo social, a saber: a contagiosidade, a plasticidade, a regressividade e a
labilidade. Na contagiosidade, há a capacidade de contagiar o outro na transmissão do prazer
ou do desprazer; a plasticidade ocorre quando o corpo reflete os sinais da emoção, como no
rubor da face ou em uma contração muscular; na regressividade, a emoção faz as atividades
de raciocínio regredir; e na labilidade, ocorre a capacidade de uma emoção se transformar em
outra.
Ao expandir exemplificações desses quatro mecanismos, enxergamos com clareza as
atitudes e as manifestações emocionais, principalmente, em bebês. Dependendo da idade, é
normal que a manifestação emocional tenha suas peculiaridades diferenciadas. Bebês e
crianças são mais contagiantes. Muitas propagandas apelam para a imagem dos pequenos para
vincular a emoção positiva ao produto, mas isso não significa que adolescentes e adultos não
possam ser contagiantes, do ponto de vista emocional. No entanto, um ser humano com uma
doença contagiosa, isolado, não a transmitirá para outrem. Da mesma forma, a emoção não é
contagiante se a pessoa estiver isolada. O contágio ocorre quando há, ao menos, duas pessoas
envolvidas e, preferencialmente, para que seus efeitos se potencializem, é necessário um
grupo de pessoas.

O caráter altamente contagioso da emoção vem do fato de que ela é visível, abre-se
para o exterior através de modificações nas mímicas e na expressão facial. As
manifestações mais ruidosas do início da infância (choro riso, bocejo, movimento
dos braços e das pernas) atenuam-se, sem dúvida, porém a atividade tônica persiste,
permitindo ao observador sensibilizado captá-la. A emoção esculpe o corpo,
imprime-lhe forma e consistência; por isso Wallon a chamou de atividade
‘proprioplástica’ [...]. (DANTAS, 1992, p. 89).

As expressões corporais são visíveis e observáveis em qualquer pessoa, não apenas


em bebês. Este fato indica que a plasticidade tende à generalização etária. A regressividade,
por sua vez, é importante para a aprendizagem da criança, na medida em que abre espaço para
a influência da emoção no cognitivo. Quanto à labilidade, quem nunca observou uma criança
ir da alegria à cólera, em segundos, e vice-versa? Os adultos controlam as emoções, via de
regra, e não estão afeitos à labilidade de forma intensa, tal como ocorre nos pequenos.
36

2.2. INTERSECÇÃO ENTRE EMOÇÃO E OUTROS ATRIBUTOS

2.2.1. A emoção e o movimento

O movimento está relacionado à afetividade, com ênfase na emoção, na motricidade


e na cognição. O movimento aparece no recém-nascido numa etapa puramente biológica, em
que a atividade muscular independe do corpo. Essas atividades musculares podem confundir
os adultos, e nem sempre são muito evidentes. É provável que apenas com a experiência de
lidar com a criança seja possível, com o passar do tempo, entendê-la mais adequadamente e
de maneira correta. Mrech (2011) afirma que há uma relação estreita entre afetividade e
motricidade, porque o comportamento inicial da criança está vinculado ao corpo. Wallon
explica que o bebê inicia seu conhecimento do mundo por meio das repetições contínuas de
movimentos, que ele próprio não percebe.

Para Wallon, o papel da motricidade é de propiciar descargas de tensão. Quando o


sujeito não se encontra em condições de realizar um determinado movimento, a sua
afetividade cresce e as emoções aparecem.
Uma percepção mais estruturada, que abarque tanto a afetividade quanto a
motricidade, só surge a partir do momento em que a criança passa a utilizar a sua
inteligência. Ela é produto de um longo processo de construção. (MRECH, 2011, p.
37).

Galvão (2014) faz referência a duas funções da musculatura, quais sejam: a cinética e
a postural ou tônica. A cinética regula o estiramento e o encurtamento das fibras musculares;
e a tônica regula o grau de tenacidade dos músculos. Wallon vincula o estudo do músculo ao
movimento e dá ênfase na motricidade expressiva, à dimensão afetiva do movimento dentro
do estudo sobre as emoções. “Função essencialmente plástica e de expressão, as emoções
constituem uma formação de origem postural e possuem como substância fundamental o
tônus muscular”. (DANTAS, 1971, p. 150).
Duarte e Gulassa (2012) se referem à fase impulsiva motora, que dura
aproximadamente três meses, como um período em que o ser é quase organismo puro, com
apenas reflexos e movimentos impulsivos. Nas primeiras semanas após o nascimento, a
criança tem desconfortos. Assim ocorre porque suas necessidades fisiológicas primárias não
são mais atendidas como eram durante o período fetal, que constituía um período de intensas
alterações fisiológicas e de desenvolvimento do feto, por meio de importantes fenômenos, que
acontecem de forma prevista, via de regra, numa relação em que as necessidades do feto são
supridas pela gestante até o nascimento, momento do início de intensas agitações. Wallon
37

(1975) se refere a essa relação simbiótica no ventre materno, em que o feto recebe tudo aquilo
de que precisa para o seu desenvolvimento biológico, inclusive um sistema nervoso reativo.
Wallon (1975) afirma que, no lactente, os gritos ocorrem, por vezes, em virtude das
agitações tônicas ou clônicas, isto é, das contrações sustentadas dos músculos seguidas das
contrações musculares com o devido relaxamento. O sono alterna a descontração muscular
quase generalizada com essas agitações. Tais agitações conduzem a indisposições fisiológicas
agregadas às necessidades de alimentação, de colo, ou em busca de embalo, mas também
podem ser provocadas por mal-estar decorrente do frio e da umidade das roupas. A partir da
terceira semana, com a sensibilidade postural, começa a haver sucção e o contato dos lábios
com os seios. Decorrem outras sensibilidades, como a audição e a visão, que formam
associações condicionais.
Para Duarte e Gulassa (2012), uma das principais formas de comunicação da vida
psíquica com o ambiente externo é o movimento, isto é, o gesto da criança para se fazer
entender. O movimento se apresenta sob três formas, segundo Wallon: movimentos de
equilíbrio, movimentos de preensão e de locomoção, além de reações posturais. Quando a
criança passa da posição deitada para a sentada, é um movimento de equilíbrio; quando há
deslocamento do corpo e dos objetos no espaço, temos os movimentos de preensão e de
locomoção; no caso de deslocamentos dos segmentos posturais, os quais permitem as
expressões e as mímicas, temos as reações posturais. Gradativamente, os movimentos
impulsivos cedem espaço à fase emocional, caracterizada pelas transformações das descargas
motoras em meio de expressão e comunicação.

2.2.2. A emoção e o cognitivo

Mrech (2011) esclarece que Wallon, em sua época, constatou a importância que a
afetividade exercia na vida de todos. Identificou que, para uma parcela das pessoas, a
afetividade era percebida como uma perturbação, como uma forma de atuação degradada.
Essa proposição tinha como pano de fundo a influência do pensamento filosófico, que
privilegiava a razão em detrimento dos demais domínios, isto é, dentre eles, a afetividade.
Mrech (2011) alerta para o fato de que os pedagogos e os especialistas em Educação
têm grande dificuldade para definir o que é ensino. A partir dessa dificuldade, apelam para
duas vertentes, quais sejam: a conteudística e a que enfatiza as relações. Na primeira, o
objetivo é ensinar conteúdos – é a chamada teoria cognitivista; e, na segunda, ensinar é
38

instruir o aluno a se relacionar com os outros. Neste caso, ocorre a chamada teoria
construtivista.
Esse processo fragmenta o ato pedagógico em dois – o cognitivo e o afetivo –, sem
se considerar que ambos têm uma estreita vinculação. No tocante à postura docente em sala
de aula, percebemos que a melhor maneira de ensinar é a opção pelo afetivo no âmbito de
uma proposta pedagógica que valorize as relações, mas com a atenção do professor voltada
aos reflexos sobre o cognitivo, na medida em que afetividade e cognição não se separam. O
que ocorre é que, na prática, na fragmentação do ato pedagógico, aquele que opta pela
vertente conteudística ignora completamente a emoção. Da mesma forma errônea, aquele que
opta pelas relações deixa de enxergar os aspectos cognitivos. As conquistas do cognitivo são
melhores quando respaldadas pela afetividade agradável, mais presente nos ambientes
escolares democráticos, com alunos engajados.
A questão da emoção sempre teve destaque nas escolas do Brasil? Parece-nos claro
que o foco principal, por razões históricas, foi a questão do cognitivo. De acordo com Leite
(1991), a questão da afetividade esteve quase que ausente em pesquisas e estudos pedagógicos
até os anos 1990. A partir daí, a presença da afetividade nos estudos aumentou, com destaque
para a área de Psicologia. A concepção secular dualista foi a responsável por essa situação, na
medida em que o pensamento ocidental entendia que razão e emoção são dimensões humanas
independentes, já que o homem ora é um ser pensante, ora é um ser que sente.
Nessa dualidade humana, o pensamento dominante sempre elegeu a razão como a
dimensão superior, porque o homem era entendido como um animal racional. Essa dimensão
teria como uma das principais funções o controle da emoção, considerada uma dimensão
sombria e perigosa. Indagamos: Essa concepção dualista razão/emoção influenciou o sistema
educativo do Brasil? A resposta é afirmativa, pois até os dias atuais, boa parte das escolas
privilegia a inteligência, principalmente em favor de práticas que podem ser observadas,
advindas dos projetos pedagógicos. Este é um dos fatores que podem ser considerados
relevantes para a propagação de crises e conflitos no ambiente escolar, pois a afetividade e,
principalmente, as emoções permanecem despercebidas.
Leite (1991) historia que ocorreu, durante séculos, uma ênfase no racionalismo no
que tange às práticas educacionais. O trabalho educacional foi dirigido para os aspectos
cognitivos, de modo que a afetividade ficou marginalizada nesse processo. Vemos, portanto, o
status de superioridade da inteligência como reflexo de um pensamento predominante, apesar
39

das inúmeras evidências das manifestações emocionais nos ambientes escolares, que
influenciam o comportamento de todos.

No livro Psicologia e Educação na Infância, Wallon critica o interesse exclusivo dos


educadores e dos psicólogos pelo desenvolvimento intelectual e pelo estudo das
capacidades intelectuais. Para ele, o aspecto intelectual não deveria ser desvinculado
do desenvolvimento da personalidade total e de suas condições de existência, nas
quais o meio tem um papel primordial. (BASTOS, 2003, p. 21).

Os estudos da mente e do cérebro sempre se desenvolveram de maneira lenta, ao


longo de milhares de anos. De um lado, o cérebro, como estrutura física cujo desenvolvimento
sempre sofreu influência do meio social; e, de outro, a mente, o lugar do psiquismo, que
engloba as emoções e os sentimentos. No entanto, Bechara (2003) chama a atenção para o
fato de que o estudo científico dos correlatos neurais da emoção e de sua influência no
pensamento e na cognição tem sido ignorado. O estudo da emoção tem progredido ainda mais
lentamente do que as outras pesquisas relativas à mente e ao cérebro.
Notamos a preferência pelo cognitivo, relacionando-a à maneira como as pessoas
resolvem os problemas, predominantemente de forma lógica e racional. Via de regra, decisões
racionais são consideradas mais eficientes do que as emocionais. Muitas pessoas também
enfatizam que a emoção interfere de forma negativa na cognição. E Bechara (2003) se refere
às pessoas que afirmam que a emoção não tem QI e que, portanto, é perturbadora e interfere
na realização de um bom julgamento. Também interfere no julgamento das análises racionais,
com opção inadequada por uma resposta. São recentes os estudos em relação aos progressos
quanto à compreensão do papel da emoção na cognição, todavia, diversas pesquisas foram
realizadas e sustentam que a tomada de decisões é guiada pelas emoções, salvo exceções..
No caminho de um melhor entendimento em relação à oposição emoção versus
inteligência, surge uma questão fundamental: de que forma essa relação se estabelece?
Emoção e inteligência não podem ser separadas dentro da complexidade de entendimento
sobre a condição humana. A emoção tende a impactar o cognitivo, bem como as conquistas
no plano cognitivo tendem a impactar a vida emocional. No caso de a emoção não se
direcionar para essa tendência, fica estabelecida a possibilidade de um impacto ineficaz ou,
por vezes, desastroso.
Para Dantas (1992), a emoção, quase sempre, tem uma tendência a reduzir a eficácia
do funcionamento cognitivo, no entanto, há casos em que a emoção será reduzida,
especialmente, em situações de resultados inteligentes bem-sucedidos, embora fique nítido
que a emoção nunca desaparece.
40

Bastos (2003, p. 19-20) esclarece essa relação entre afetividade e inteligência:

Quando a afetividade prepondera sobre a inteligência, a pessoa passa a se voltar


mais para a edificação do seu eu, de sua personalidade, num movimento centrípeto.
Já quando a função da inteligência é predominante, o movimento volta-se para o
exterior, para a exploração dos objetos e do conhecimento, tendo uma orientação
centrífuga. O mais interessante é que entre as funções sempre existe um conflito, na
medida em que uma precisa ser reduzida para que a outra possa prosperar, ao mesmo
tempo em que há uma verdadeira colaboração, pois uma enriquece a outra, ou seja,
os benefícios alcançados num determinado momento serão integrados na evolução
da pessoa como um todo. (BASTOS, 2003, p. 19-20).

Almeida (2012) não separa emoção e inteligência como propriedades da atividade


humana. Ainda que em estado de serenidade, a emoção está presente na vida do indivíduo e,
em qualquer atividade intelectual, ela encontrar-se-á presente. Uma não suprime outra, por
mais intensidade que haja. Quando uma se sobressai, é porque a outra se encontra eclipsada.
O desenvolvimento da pessoa depende da complementaridade entre emoção e inteligência. É
evidente que, partindo dessa visão de parceria entre emoção e inteligência, não enxergar a
emoção nos ambientes escolares é o mesmo que não enxergar a sua ação sobre a pessoa e não
perceber o momento em que se manifesta, com supremacia, sobre a razão.
Nesse sentido, um professor pode ficar de braços atados diante de eventuais efeitos
nocivos que essa supremacia pode representar. A postura-chave é enxergá-las e trabalhar para
permitir o equilíbrio entre ambas, sobretudo, na sala de aula. Nas palavras de Almeida:

A inteligência costuma ceder aos caprichos da emoção, pois sempre que esta se
exprime, suprime a atividade intelectual e reduz para si todas as disponibilidades do
sujeito. Como já foi dito, Wallon, ao tematizar o antagonismo da emoção com a
atividade de representação, chama a atenção para os efeitos nocivos que a
supremacia da emoção sobre a razão traz para a atividade do indivíduo. Portanto, o
grande desafio é conseguir manter o equilíbrio entre a razão e a emoção sob pena de
comprometer a realização de qualquer atividade do indivíduo. (ALMEIDA, 2012, p.
84).

No âmbito da afetividade, destacamos a emoção no ambiente escolar. Os reflexos da


emoção podem alterar esse ambiente para melhor ou para pior, haja vista que a emoção se
alimenta daquilo que ela causa no outro. Entendemos que a teoria da emoção, de Wallon, não
pode ficar em segundo plano, em virtude de seu alto poder de contágio; tampouco pode
permanecer oculta em relação ao aspecto cognitivo, visto que ambas se completam. Não
podemos afirmar que o aspecto cognitivo é mais importante que o aspecto afetivo no
desenvolvimento da criança. A afirmação contrária também não é adequada porque existe
uma forte ligação entre os dois aspectos. Não encontramos na obra de Wallon qualquer
indício que indique sua predileção ao cognitivo. Uma escola que deseja autonomia aos seus
41

alunos e os respeita como sujeito de direitos procura conciliar de forma sensata aspectos tão
importantes.

2.3. EDUCAÇÃO

A educação não sobrevive sem a Pedagogia e a Psicologia. Werebe e Nadel-Brulfert


(1986) afirmam que Wallon aponta a Psicologia e a Pedagogia como complementares de uma
atitude experimental. Os critérios de escolha de textos e de ideias pedagógicas ficam
condicionadas ao “status” da Psicologia em relação à Educação. A prática educativa conduz a
uma série de questões valorosas para a pesquisa psicológica e pedagógica, em que há um
benefício mútuo entre ambas. Sendo assim, essas práticas se renovam. As análises do
psicólogo e do pedagogo podem se encontrar no caso de ambos adotarem, como ponto de
partida, fatos e não fórmulas incompreendidas.
Segundo Zazzo (1978), Wallon denunciou psicólogos que tinham a tendência de
explicar a Psicologia por si mesma, sem referências às condições orgânicas. Aparecem as
falsas soluções do espiritualismo ou do misticismo e, neste sentido, a Psicologia é negada e
separada de suas raízes A saída mais segura é estudar o homem em sua gênese e como pode
ser transformada a antítese indivíduo-sociedade. Para nós, a renovação de Wallon em relação
à Psicologia está justamente no fato de colocar a Psicologia Genética como o melhor caminho
para entender a criança em seu desenvolvimento, desde seu nascimento, acolhida e moldada
pelo meio ambiente. E o ambiente escolar, por sua vez, tem um espaço adequado para se
analisar a criança.
As implicações de Wallon com a Psicologia Genética e a Pedagogia reverberam, até
os dias atuais, em muitas escolas brasileiras, em que podemos observar os seus reflexos. Suas
ideias encontram-se na maior parte de seus artigos de temas pedagógicos. A atualidade de
seus estudos pode ser explicada por meio de sua dedicação ao mencionado estudo da criança.
Outro aspecto é que a história pode mostrar, a quem deseja, que a educação, apesar de todos
os obstáculos que surgiram durante sua edificação, ao longo do tempo, jamais ignorou as
fundamentações teóricas, inclusive as de Wallon. A educação precisa dessas fundamentações
para oferecer ao educando o que há de melhor em termos de ensino e aprendizagem, com a
contribuição, inclusive, dos aspectos humanitários.

A renovação trazida por Wallon à Psicologia, nós a devemos ao seu não-


conformismo à conjunção de sua cultura humanista, de sua formação biológica, de
42

sua generosa abertura aos problemas sociais de sua época, mas também a uma
espécie de genialidade que só a ele pertence. (ZAZZO, 1978, p. 6).

Alguns destes aspectos surgem quando abordamos a questão sobre o respeito ao


aluno – sob todos os ângulos – e seus direitos, especialmente no ambiente escolar. Sendo
assim, tais fundamentos encontram-se latentes nos meios educativos. Chamamos a atenção,
no momento de visualizarmos com destaque a obra de Henri Wallon dentro deste contexto,
devido à necessidade de ela requerer uma ação em conjunto com as demais obras,
simplesmente porque os problemas da educação são complexos, dinâmicos e exigem uma
grande sinergia para serem contornados. A obra de um único autor, por mais brilhante que
seja, não conseguiria atingir um resultado satisfatório nos meios educativos.
No que tange a esse ponto, podemos perguntar se Wallon demonstrou interesse pela
educação. De maneira geral, a obra do humanista e interacionista Wallon é extensa, mas
destacamos a sua intimidade com a educação e o desejo de transformação. Na França,
presidiu um projeto de reforma do ensino francês visando garantir uma educação melhor para
todos, com base na justiça social; um projeto denominado Langevin-Wallon, que também
carregava seus pensamentos sobre a Pedagogia e a Psicologia.

Esse projeto, cuja versão final foi redigida por Wallon, é a expressão mais concreta
de seu pensamento pedagógico. Portador do espírito reinante na Resistência, o plano
representa as esperanças em uma educação mais justa para uma sociedade mais
justa. A reforma proposta (que não chegou a ser implantada) deveria operar-se no
sentido de adequar o sistema às necessidades de uma sociedade democrática e às
possibilidades e características psicológicas do indivíduo, favorecendo o máximo
desenvolvimento das aptidões individuais e a formação do cidadão. (GALVÃO,
2014, p. 24-25).

Durante toda a sua trajetória, e não apenas em parte dela, o médico demonstrou seu
interesse pela Educação, pois entendia que a Psicologia e a Pedagogia poderiam se aproximar
em benefício da Educação. Apesar disso, não propôs uma teoria pedagógica, tal como
podemos verificar nas palavras de Almeida (2012, p. 71): “Wallon não propõe uma teoria
pedagógica, mas seu interesse pela educação levou-o a elaborar textos específicos sobre
educação [...]”. Para além de sua produção literária, foi crítico do ensino tradicional durante a
época de debates educacionais, inclusive da Educação Nova. Wallon, segundo Werebe e
Nadel-Brulfert (1986), foi um dos pioneiros da “educação nova” e o primeiro a se referir à
ilusão daqueles que faziam obras revolucionárias, a partir de propostas utópicas e experiências
educacionais isoladas, na intenção de se fazer a renovação pedagógica. E, ainda nos dizeres de
Almeida (2012, p. 72), tem-se: “A crítica de Wallon à Educação Nova é principalmente
43

quanto à opção que os sistemas educacionais fazem, ora privilegiando o indivíduo, ora a
sociedade [...]”.
A educação tradicional sempre foi um entrave para a justiça social e à educação para
todos porque reproduzia as injustiças da sociedade. Essas injustiças, à época, não eram
evidentes para as pessoas. A visão do todo sempre foi de homens que estavam muito a frente
de seu tempo. O que se via era o centro de um poder excessivo nas mãos do professor e a
perspectiva de um aluno como um ser que deveria obedecer para conseguir aprender. Galvão
(2014) faz referência aos objetivos da educação tradicional; um deles era o de transmitir aos
alunos os hábitos e costumes dos seus antepassados e assegurar a perpetuação ideológica.
Nesse caso, os alunos apenas se adaptariam à sociedade, sem transformá-la. Por outro lado, a
Escola Nova se movimentou em direção ao desprezo em relação às dimensões sociais da
educação, preconizando o individualismo, na medida em que buscava romper com a opressão
dos indivíduos pela sociedade.
Naquele momento, renovar a educação antiga era fundamental para todos,
principalmente para beneficiar os menos privilegiados da sociedade e, ao mesmo tempo, para
abrir espaço para novas ideias, inclusive depois da Segunda Grande Guerra. Muitas dessas
novas ideias eram de Wallon, que desejava uma atenção maior ao aluno e àquilo que ele tinha
de potencial para desenvolver, evitando-se que fosse um mero cumpridor de determinações,
sem direito a qualquer postura ativa. Afirmam Werebe e Nadel-Brulfert (1986) que Wallon
criticava a educação tradicional principalmente em relação à passividade do aluno, à asfixia
de sua personalidade e ao autoritarismo dos mestres. No entanto, a grande crítica era à
preconização do individualismo e à negligência ao caráter social da educação.

Quando se ignoram as dimensões sociais e políticas da educação faz-se obra


educativa artificial e limitada. Ora, em geral, as tentativas de inovação educacional
negligenciam os aspectos sociais da educação, colocando-se, como bem assinalou
Wallon, “ao abrigo dos problemas espinhosos que a adaptação a um meio social
livre lhes colocaria [...]”. (WEREBE; NADEL-BRULFERT, 1986, p. 22).

Para Dantas (1983), a psicologia de Wallon encontra sua razão de ser, suas raízes e
confirmações na prática educativa, pois à época, inspetores, diretores e professores,
procuravam, nos laboratórios, familiarizarem-se com os métodos apresentados. As escolas
normais receberam esses métodos e essas conquistas oriundos de inúmeros testes, conduzindo
a uma nova concepção da Psicopedagogia. Então, o que mudou no trabalho docente com a
psicologia de Wallon? Houve uma transformação na metodologia, na medida em que o
professor deixou as ações empíricas e os métodos dogmáticos e se transformou em um ser que
44

ensina e em um ser desejante de cultura e de aprendizagem, num só contexto. Temos um


professor que assume todos os riscos decorrentes da realidade que se perpetua. Ele também se
liberta desse realismo e adota uma postura que lhe possibilita trabalhar sem grandes riscos.
Quanto à teoria de Wallon, Galvão (2014) entende que são numerosas suas
contribuições para a educação. A proposta de Wallon é a de que a escola reflita sobre suas
dimensões sociopolíticas e assuma seu papel de transformadora da sociedade. Ademais, que
ela seja uma escola engajada, inserida na sociedade e na cultura, e comprometida com o
desenvolvimento dos indivíduos. É um fato histórico a oposição entre indivíduo e sociedade.
Um fato inerente à educação, repleto de contradições e conflitos. De um lado, o indivíduo não
aceita a pressão que lhe é exercida pelos meios em que vive e, de outro, há uma sociedade em
permanente mudança. A prática educacional se ritma exatamente na confluência desses
conflitos gerados.
Todas as críticas realizadas não tinham o objetivo de minimizar as contribuições à
Pedagogia, embora estas fossem limitadas em seu alcance social e em propostas efetivas de
transformação. Gandin (1999) aponta a escola como reprodutora dos valores da sociedade – e,
se aquela entra em crise, esta perde o seu rumo –, com grupos diferentes buscando resultados
diversos. Todos vão à escola, mas os recursos permanecem idênticos em um ambiente incapaz
de recriar para sua clientela. O que se verifica são professores descontentes e desanimados.
Além disso, grande parte dessas escolas se apega apenas ao desenvolvimento cognitivo, de
modo a deixar em segundo plano aquilo que também deveria ser priorizado, a afetividade.
É por essa razão que entendemos a proposta de Wallon para a educação, a partir do
estudo da pessoa como um todo. A emoção tem seus espaços nesses estudos e mostra que o
professor ocupa lugar de destaque e, por isso, deve ser valorizado na relação com o aluno e,
este, valorizado na relação com o docente e com os demais alunos. Galvão (2014) confirma
que o estudo de Wallon se refere à educação não apenas como um meio de desenvolvimento
intelectual, mas à pessoa como um todo, com destaque para o meio social. A escola, como
meio de desenvolvimento, aponta para a organização do ambiente escolar. Em ambientes em
que há um descuido com essa organização, é possível a manifestação de uma afetividade
desagradável, gerada em consequência de crises e conflitos.
45

2.3.1. Panorama sobre conflitos na escola

Como fica o ambiente escolar em um contexto de afetividade desagradável? No


ambiente escolar aparecem as crises e os conflitos acentuados, que constituem, na realidade, o
reflexo das reações emocionais de alunos e professores a certas exigências inadequadas e
equivocadas da escola, principalmente, se esta instituição funciona de forma autoritária.
Nosso foco são os conflitos nas relações, pois entram facilmente em um ciclo vicioso, que vai
do ambiente desagradável que facilita os conflitos e os conflitos que possibilitam a
perpetuação de um ambiente desagradável. Escolas que funcionam como uma fábrica,
geralmente, possuem um projeto pedagógico, geralmente, engessado, que desconsidera a
cultura na qual o aluno está inserido, bem como as próprias características da escola.
Galvão (2014) se refere a desentendimentos entre alunos e professores, irritação,
raiva, desespero e medo. Propõe um exercício de reflexão a respeito de situações conflituosas
presentes no cotidiano da escola, sem o objetivo de alcançar sua ausência, mas apenas para
distingui-las e para atender às necessidades e possibilidades da criança. Estendemos a ideia
aos adolescentes, porque é uma fase de contestações, de muita energia nas ações e de reações
emocionais mais enérgicas.
Quais situações conflituosas podem se destacar nesse contexto? Partindo da premissa
de que a escola contemporânea passa por um turbilhão de problemas, alguns crônicos e de
difícil resolução, determinados conflitos se destacam. Mrech (1997) afirma que docentes e
alunos vêm tecendo o seu “ser” por meio daquilo que eles nomeiam “ser” professor e “ser”
aluno. Assim, ficam capturados no circuito das próprias representações estabelecidas e
escapam das implicações relativas ao não-saber-fazer. “Ensinar” significa elaborar signos e
conhecimentos, novos ou não. De um lado, professores que se recusam a ensinar e, de outro,
alunos que se recusam a aprender. Esse impasse conduz ao entendimento de que algo precisa
ser elaborado para resgatar o registro do real na educação, para enriquecer o simbólico e abrir
espaço para a manifestação das emoções positivas nas interações na sala de aula e na postura
docente.
Vivemos numa sociedade globalizada, em vários aspectos, e a economia de um país
tem reflexo na economia mundial, além de se saber que a comunicação assume lugar de
destaque, já que as informações são processadas de forma cada vez mais rápida, com melhor
qualidade e em maior quantidade. Trata-se de uma sociedade invadida por tecnologias que
atuam dentro de um mercado de consumo agressivo, que atinge o sujeito diretamente,
46

alterando sua maneira de pensar, de sentir e de agir. Temos uma sociedade que não está
preocupada com o sujeito.
Diante desse quadro, emerge uma questão feita por muitos educadores: como essa
dinâmica atinge os ambientes escolares? E a resposta não se limita a apontar apenas para os
paradigmas mais conhecidos, isto é, a escola tradicional ou a escola moderna.
Gadotti (2012) afirma que há uma crise paradigmática e que, na sociedade atual,
cresce a reivindicação de participação e autonomia. É um discurso forte que envolve questões
relativas à autonomia, à cidadania e à participação no espaço escolar.
Assim se expressa o educador: “A crise paradigmática também atinge a escola e ela
se pergunta sobre si mesma, sobre seu papel como instituição numa sociedade pós-moderna
[...]”. (GADOTTI, 2012, p. 36). E, envolvidas nesses acontecimentos que afetam a sociedade,
surgem questões importantes, tais como: o que está acontecendo na escola contemporânea?
Como a escola pode se situar e direcionar seu trabalho pedagógico, de maneira a se libertar
dos antigos paradigmas? De que maneira seria possível evitar crises e conflitos no ambiente
escolar, numa sociedade globalizada? Para adotar um posicionamento em relação a tais
indagações, a escola não pode servir de mero instrumento ideológico, mas deve usufruir de
autonomia para adotar providências contínuas, buscando estabelecer um ambiente educativo
capaz de enxergar o aluno como sujeito de direitos. Na prática, existem resistências e várias
amarras, de modo que muitas escolas ainda se pautam por uma organização avessa à
democracia e à cidadania em seu ambiente. Deram espaço ao autoritarismo e se esqueceram
de que o sujeito tem reações emocionais.
Como a escola pode chegar a ponto de se perguntar o que acontece com ela, se ainda
preserva o formato de uma linha de montagem de uma fábrica, como anteriormente
afirmamos? Alves (2012) estabelece uma analogia para a maioria das escolas, comparando-as
a uma linha de montagem de uma fábrica, com coordenadas espaciais e temporais. As
espaciais seriam as “salas de aula”, e as temporais seriam os “anos” ou “séries” de estudo.
Nessas unidades espaço-tempo, os professores realizam o processo técnico-científico, que
acrescenta sobre os alunos os “saberes-habilidades”, para compor o objeto final. Depois de
passar por esse processo, o objeto final (criança) perde a visibilidade e se revela como um
simples suporte para os “saberes-habilidades”, isto é, a criança está formada, tal qual o objeto
que sai da linha de produção com o ISO 12000, uma mercadoria espiritual que pode entrar no
mercado de trabalho.
47

Escolas semelhantes a uma linha de produção podem ser consideradas autoritárias?


Tudo indica que sim. La Taille (1999) explica que o tema autoridade é complexo e perigoso.
Complexo porque diz respeito às relações de poder; e perigoso porque trata das relações de
poder. Quando uma escola funda a autoridade sobre bases ilegítimas, leva ao autoritarismo e à
injustiça. É o caso da instituição que nega a capacidade de discernimento e a singularidade do
aluno, que se arvora no direito de regular sua conduta, o que resulta em uma forma de
autoritarismo. Esse tipo de escola nunca assume o fracasso escolar de seu aluno e os
discrimina como indisciplinados, preguiçosos e retardados.
Instituições escolares que se assemelham a uma fábrica, autoritárias, podem produzir
ambientes inadequados à educação, com crises e conflitos? Galvão (2014) esclarece que o
estudo da criança é contextualizado, de modo que o sujeito e seu ambiente estabelecem
determinada interação; cada idade tem um tipo particular de interação. O espaço físico, as
pessoas próximas, a linguagem e a cultura formam esse contexto. Resumimos de forma a
acreditar que, no ambiente escolar, tudo afeta as interações.
O meio, como concepção adaptada à escola, implica também em abordar o papel do
professor, e é uma arma poderosa para administrar crises e conflitos, desde que entendido e
bem aproveitado. Wallon é um autor complexo e, portanto, não é fácil desenvolver um estudo
à luz de sua teoria. Mas algo nos chama a atenção: a importância do ambiente no
desenvolvimento da criança, inclusive no desenvolvimento da linguagem. Por analogia, o
ambiente escolar também traz essa importância para o ensino-aprendizagem do aluno. É na
relação com os outros, seja com professores ou demais alunos, que ele pode construir o
conhecimento próprio. O aprendiz é muito sensível a tudo e tudo o afeta, da atitude de um
professor até o espaço físico. E, por conseguinte, ele a tudo reage.
Nesse contexto, a postura docente é fundamental, tanto no ambiente da sala de aula
como em outros que a circundam. Um simples olhar repressor pode afetar o aluno e
transformá-lo em um desinteressado. O acatamento, a falta de respeito e vários outros
aspectos existentes nos ambientes escolares, principalmente naqueles autoritários, também
poderão desencadear crises e conflitos. A afetividade, com destaque para a emoção, encontra-
se presente em qualquer ambiente escolar e em qualquer espaço. Resta-nos saber se é
agradável ou desagradável e qual o seu impacto e suas decorrências. O certo é que ambiente e
indivíduo caminham juntos; um modifica o outro.

Já se tomou consciência da solidariedade existente entre ambiência e o indivíduo:


este não podendo existir sem aquela, sendo, entretanto, o indivíduo capaz de
também modificar o meio... o porvir da educação se encontra na disposição desses
48

meios. Nada mais eficaz que a ação exercida sobre a criança e igualmente sobre o
Homem, através do ambiente. (DANTAS, 1983, p. 19).

Galvão (2014) afirma que a psicogenética walloniana atribui grande importância ao


meio quando nos referimos ao desenvolvimento infantil: “O meio é o campo sobre o qual a
criança aplica as condutas de que dispõe, ao mesmo tempo, é, dele que retira os recursos para
sua ação [...]”. (GALVÃO, 2014, p. 100). Na medida em que tal reflexão é repassada à escola,
esta deve se preocupar com o espaço e decidir como ele será ocupado, além dos materiais e
dos objetos colocados à disposição das crianças. Ademais, deve organizar os tempos e definir
a duração adequada das atividades. Há uma necessidade constante de se ampliar a reflexão
pedagógica a fim de se planejar a estruturação do ambiente escolar.
Entendemos a sala de aula como o espaço de maior importância de um ambiente
escolar, porque é o local em que ocorrem as principais interações. Esse espaço forma um
contexto de alunos com sua cultura, seguindo uma norma estabelecida por um projeto
pedagógico. Contudo, se a escola se assemelha a uma linha de produção e é autoritária, a sala
de aula deixa de ser um espaço democrático e pode ter os ingredientes necessários para a
manifestação de emoções negativas, que colocam o aluno, de qualquer idade, no centro dessas
manifestações. Portanto, na lógica de funcionamento da escola, reafirmamos duas dimensões
importantes na ambiência escolar: o espaço e o trabalho docente, os quais afetam a vida do
aluno, em seu desejo de aprender e em suas interações com o outro.
Na hipótese de o espaço da sala de aula ser inadequado, o aluno reage e é afetado
pelo mal-estar, haja vista que é desagradável o ambiente. No caso de ser um espaço adequado,
o estudante reage e é afetado pelo bem-estar, porque é agradável o ambiente. Neste caso, a
emoção o auxilia e tem ressonância no cognitivo, favorecendo a aprendizagem. Portanto, o
melhor caminho é um bom planejamento, em que o espaço seja também protagonista, e não
apenas mero coadjuvante, tal como podemos verificar em muitas escolas. Espaço é um meio
necessário.

[...] a escola é justamente a instituição que tem por função principal prover as
atividades dos alunos dos meios que são necessários para realizá-los. E cabe ao
mestre, utilizando os métodos pedagógicos adequados, guiar a criança de maneira
que possa tirar o máximo proveito dos meios que lhe são oferecidos e de seus
recursos próprios. [...] (WEREBE; NADEL-BRULFERT, 1986, p. 26).

Na visão de Gadotti (2012), para muitos alunos a escola é sinônimo de sacrifício e


renúncia. Na prática, como ocorrem o sacrifício e a renúncia? A criança do mundo
contemporâneo está absorvida pela tecnologia; é obrigada a deixar de lado tudo aquilo que lhe
dá prazer para ir à escola e para fazer as atividades em casa. Tanto na escola como nas
49

atividades que realiza em casa, não sente que é compensada pelo prazer, sobretudo, se essa
criança mora na periferia, em uma favela. O educador afirma que as aprendizagens que os
alunos dos meios populares valorizam são as relacionais e afetivas, bem como aquelas
associadas ao desenvolvimento pessoal. A aprendizagem tem sentido apenas na relação com o
outro. A aprendizagem que isola o aluno provoca um empobrecimento afetivo e, em
consequência, sua reação é a da perda do desejo.
Zuin (2012) faz referência à lógica do funcionamento das relações estabelecidas nos
ambientes escolares. Essa lógica se fundamenta na regressão infantil da estereotipia e da
personalização. Muito dificilmente um adulto representará uma figura de autoridade a ponto
de seduzir a atenção de uma criança e motivá-la para adquirir certas características
encontradas no adulto. No caso específico, a capacidade de adiar a realização de um desejo,
isto é, a própria lógica do funcionamento da escola pode afastar o aluno das relações afetivas,
promover seu isolamento e estereotipá-lo. Essa lógica também propicia a substituição do
desejo de saber pelos desejos da sociedade de consumo e, pior, promove a incapacidade do
aluno em adiar esses desejos, via de regra, imediatistas.
Quando não há valorização de professores e alunos em suas relações, quando a
educação não está direcionada para a autonomia dos alunos e para a formação de seres
pensantes e autônomos, é possível que ocorram, de forma acentuada, crises e conflitos.
Almeida (2004) esclarece que só existem conflitos onde há diferenças. O conflito faz parte da
natureza humana porque é capaz de romper estruturas pré-fixadas, inclusive no campo da
constituição da pessoa, na relação do eu e do outro. Portanto, entendemos que os conflitos não
desaparecem do ambiente escolar, visto que estão atrelados à condição humana, mas podem
ser minimizados por meio de ações pedagógicas democráticas e de um bom planejamento.
Para a falta de planejamento das escolas, emerge a importância de um ambiente
estabelecido por um projeto pedagógico democrático, deslocando o docente do centro das
práticas pedagógicas. Nesse ambiente, o ideal é um trabalho em equipe, no qual se pressupõe
a valorização e o respeito ao aluno, na condição de sujeito de direitos. Porém, ter o aluno
como sujeito de direitos, com autonomia, responsabilidade e solidariedade, não significa a
anulação do docente. O que se pede é um educador mais afetivo e solidário, disposto a
caminhar ao lado de seus alunos, com respeito à sua realidade. Isso está relacionado
diretamente à técnica que ele emprega.
Mrech (2011) traz o chamamento de Wallon para que professores fiquem atentos ao
uso dos slogans e chavões porque o que se verifica é um esvaziamento e o pequeno impacto
50

deles nas práticas docentes. Entende a autora como um aviso para os dias atuais, na medida
em que o jargão da Psicologia e da Pedagogia passam por constantes sofisticações e
multiplicações, enquanto há poucos avanços nas práticas da escola.

[...] Multiplicam-se os termos, mas a prática nas escolas tem revelado poucos
avanços. Estamos em um momento em que há uma descrença na capacidade da
escola de ensinar. Existe ainda uma tentativa de se lidar com a Educação de maneira
estandardizada, visando instaurar uma padronização na atuação. Uma crença de que
seria possível controlar o que se revela ser sempre único e singular: o processo de
construção de cada aluno, de cada professor. (MRECH, 2011, p. 42).

Dantas (1983), ao se referir à técnica empregada pelo professor, afirma que a sua
aplicação automática não permite que o professor seja um educador. Para evitar esse risco, a
técnica tem que estar integrada na cultura, assim como a formação do professor não deve se
limitar à aprendizagem. As pesquisas de Wallon suscitaram nos futuros educadores o realismo
científico e, com ele, o momento pedagógico na sua quase totalidade, a sociedade e a criança.
Ele ensina aos professores que, antes de agir, deve-se compreender e considerar a criança
dentro de seu meio, a fim de evitar a esterilização de sua ação. Entendemos que, com essa
compreensão, aumentam as possibilidades de o educador analisar e refletir nas situações
conflituosas, localizando o epicentro da crise e adotando as medidas que o caso requer.

Com o apoio de informações teóricas sobre as características do comportamento


emocional e usando sua capacidade de análise reflexiva, o professor deve buscar
identificar, nos fatores implicados em cada situação, aqueles que agem como
“combustíveis” para o agravamento da crise. Sabemos que em geral não é possível
que essa reflexão seja feita simultaneamente à crise. É somente depois de tê-la
vivida, já fora do calor do momento, que se torna possível a reflexão, a avaliação e
uma possível compreensão da situação. (GALVÃO, 2014, p. 105).

Assim, é provável um impacto da emoção agradável nesse ambiente e,


especificamente, nas interações na sala de aula. “[...] O professor deve basear a sua ação
fundamentada no pressuposto de que, o que o aluno conquista no plano afetivo é um lastro
para o desenvolvimento cognitivo, e vice-versa”. (ALMEIDA, 2004, p. 126). Portanto, o
aspecto mais importante no trabalho docente, no contexto do ambiente escolar, em que a
emoção se manifesta, é a postura afetiva do mestre, especialmente, em sala de aula. Algumas
posturas são indispensáveis e cabe ao docente, segundo Almeida (2012), organizar e mediar
nos grupos.
Além da técnica, o professor tem a opção de assimilar os ensinamentos de Wallon.
Nesse caso, ele passaria a se comportar de modo afetivo e a enxergar seu aluno como uma
pessoa completa, de forma integrada, sempre procurando perceber suas emoções. Para a
contextualização do aluno é necessário um professor com tal postura. Acrescentamos que, o
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docente que busca entender o.humano por completo – a partir de Wallon – e, em especial, a
criança e o adolescente, é um professor que abandona a persuasão e busca a lucidez.

[...] o professor precisa ser arguto, lúcido, constante observador de seu aluno.
Observador da criança como uma pessoa completa, integrada, contextualizada;
observador da criança em cada um de seus domínios funcionais. [...]. (ALMEIDA,
2012, p. 82).
[...] Da observação atenta de seu aluno e de seu contexto – da pessoa e do meio –, o
professor proporá questões que lhe despertem interesse [...]. (ALMEIDA, 2012, p.
83).

Almeida (2012) explica que a criança tende para o adulto, e o apoio do professor é
fundamental para sua travessia de criança a adulto. O docente deve, então, avaliar seu próprio
desempenho e levar em consideração as condições de aprendizagem do aluno, as do seu meio
e respeitar o ritmo de seu desenvolvimento. Respeitar o aluno é, portanto, aceitá-lo, conhecê-
lo, seguir seu ritmo, oferecer meios e grupos para seu desenvolvimento, bem como aceitar que
a Educação é evolutiva e tende para a autonomia do aluno. Não conseguimos manter uma
relação afetiva, uma interação emocional, se não houver respeito mútuo, e o respeito do
professor ao aluno faz parte da teoria walloniana.
É preciso muito cuidado ao estudarmos a obra de Wallon, naquilo que se refere à
Educação, principalmente quanto ao papel da escola e do professor, para não alterarmos a
essência de suas ideias. A crítica que ele fazia às instituições e à postura docente podem nos
induzir à crença de uma posição inflexível contra a educação de sua época. Na realidade, a
leitura correta dessa crítica deixa bem claro que ela era construtiva; em momento algum ele se
colocou exatamente em oposição inflexível, desejando a supressão da escola e a destruição da
imagem do professor. Ao contrário, seus ensinamentos caminham, apenas, em direção a uma
escola melhor e modificada, com mais igualdade e justiça social, ao lado de um professor
mais afetivo, humanista e democrático.
52

3. PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO

3.1. O QUE SIGNIFICA PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO?

O mais importante passo para nos apropriarmos do significado de Projeto Político-


Pedagógico é fragmentar seus termos com o intuito de melhor entender o que representam
isoladamente. Somente após este entendimento poderemos enxergar o significado pleno do
chamado PPP. Recorremos ao Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa (FERREIRA,
1988) e apontamos o que ele reporta sobre as palavras projeto, político e pedagógico.
Primeira: “projeto. S.m. 1. Idéia que se forma de executar ou realizar algo. [...] (p. 532)”.
Falamos aqui do ambiente escolar e, se temos ideias para transformá-lo, temos então um
projeto; a partir do projeto podemos planejar. Gandin (1999) afirma que planejar é
transformar ideias em ação e intervir na realidade. A instituição cresce ao investir no
planejamento, que é diverso, de acordo com o que se deseja alcançar. Porém, há de se ter
cuidado para não confundir projeto e planejamento, com plano. Gadotti (2012) explica que
plano é o plano diretor da escola, com seus objetivos, metas e procedimentos e é parte
integrante do projeto.
Segunda: “político. Adj. 1. Relativo à, ou próprio da política [...]”. (p. 515). Nenhum
Projeto Político-Pedagógico é inocente, porque sempre há um interesse maior a seguir. Há a
legislação como ponto de referência para embasar decisões. Isso não significa perda de
autonomia, mas autonomia dentro dos parâmetros legais. A liberdade educativa tem um
espaço e tem um limite. Outro detalhe é que existe uma polêmica em relação ao uso da
palavra político e sobre isso não há consenso entre os educadores. Provavelmente, a maioria
se pauta pela necessidade da existência da palavra político na expressão Projeto Político-
Pedagógico. Os demais entendem que não há necessidade da presença deste vocábulo porque
seria uma redundância.
Na ótica de Vasconcelos (2006), em relação a esta denominação, a diversidade de
terminologias ocorre por conta da temática recente concernente ao Projeto Político-
Pedagógico. Devido à ausência de circulação das produções dos diferentes autores e
instituições, além das diversas compreensões, alguns educadores entendem que a palavra
“político” constitui uma redundância porque toda ação pedagógica é política e visa formar o
cidadão. O autor se coloca favoravelmente à manutenção do termo “político”, a fim de não
descuidarmos desta dimensão e dos coeficientes de poder presentes nas práticas educativas.
53

Sempre servimos a algum interesse político, não há neutralidade e, se temos um projeto


político, explícito e assumido, estamos seguindo o projeto de alguém.
Acreditamos que não haja projeto pedagógico que não seja político. E não se trata de
algo que não está relacionado ao nome atribuído a ele, Projeto Político-Pedagógico, projeto
pedagógico ou outro nome semelhante. Ele é político porque precisa trilhar um caminho e
chegar a um destino. “Não se constrói um projeto sem uma direção política, um norte, um
rumo. Por isso, todo projeto pedagógico da escola é também político [...]”. (GADOTTI, 2012,
p. 37). Para Lacerda (2004), ao falar de Projeto Político-Pedagógico, devemos ter a clareza
sobre educação, homem e sociedade, conjuntamente com as definições que se pretende
construir, buscando um rumo e uma política para a escola.
Terceira: a palavra pedagógico não demanda explicações detalhadas. A própria
descrição constante no Dicionário é suficiente para entendermos que, de alguma maneira, ela
está encaixada em um projeto, em um plano da escola: “pedagógico. Adj. Da, ou respeitante
à pedagogia” (p. 490). Neves (1985) se refere ao eixo pedagógico como uma ligação estreita
com a identidade da escola, com sua missão social, com os resultados e com a essência do
Projeto Político-Pedagógico. Pautamos esse ponto para um proveitoso esclarecimento. A
partir do projeto, precisamos extrapolar a ideia que a palavra “pedagógico” nos fornece até
alcançarmos o trabalho pedagógico. Isso nos conduz a enxergar o trabalho pedagógico como
sinônimo do envolvimento das pessoas, em todas as práticas.
O que busca o projeto pedagógico? Veiga (1985) entende que o projeto pedagógico
busca uma direção. É também político porque está articulado com a população majoritária. Há
também um compromisso com a formação do cidadão para a sociedade. É um processo
permanente de reflexão sobre os assuntos da escola e uma preocupação com o trabalho
pedagógico, que significa a organização do trabalho e da sala de aula. Podemos afirmar que o
Projeto Político-Pedagógico é, simultaneamente, simples e complexo. É simples naquilo que
se refere à sua construção de maneira geral, no envolvimento e na mobilização de todos. É
complexo na extensão de cada assunto educativo que ele aborda, porque uma decisão tem
seus reflexos no ambiente escolar, que reverbera em forma de sentimentos e emoções.
Como o Projeto Pedagógico é entendido? Um Projeto Político-Pedagógico, segundo
Vasconcelos (2006), é o plano global da instituição e também pode ser entendido como um
planejamento participativo. Durante a caminhada, aperfeiçoa-se e se objetiva, definindo as
ações educativas que se deseja, com base em sua intencionalidade e no estudo da realidade,
servindo como instrumento teórico-metodológico para transformar a realidade. Não é uma
54

receita mágica. Portanto, seus resultados vão depender do compromisso dos envolvidos para a
definição da identidade. Por meio da participação, o envolvido assume a condição de sujeito e
não de objeto, faz parte do trabalho, mas não interfere em seu destino.
Lacerda (2004) também se refere à intencionalidade do projeto pedagógico, que está
sempre em construção, compromissado e vivenciado no coletivo. Entende que essa
construção, pela escola, é a possibilidade da criação de sua identidade, buscando sua direção e
fundamentada pelas relações democráticas. Cabe ao educador refletir sobre o processo
educacional, bem como suas concepções. “[...] O Projeto Político-Pedagógico é, portanto, o
eixo que direciona a ação coletiva na escola, norteando a atuação dos seus atores na
construção permanente da identidade e da autonomia escolar [...]”. (LACERDA, 2004, p. 51).

3.2. FUNDAMENTAÇÃO LEGAL

Quando abordamos o tema políticas públicas, em Educação, há uma tendência para


entendermos que existe uma imposição legal e autoritária, de modo a imobilizar as escolas e
os professores. Se é o que ocorre em algumas escolas, não deveria ocorrer. O objetivo da lei
não é engessar completamente a escola. A lei existe como uma referência e como um limite.
Dentro deste limite está a autonomia da escola. Na prática, a legislação aponta para os
caminhos que a escola pode percorrer. A escola escolhe o seu caminho. Nesse trajeto,
novamente a legislação aparece, desta feita, funcionando tal qual uma defensa que existe nas
estradas para que os veículos não saiam da pista, além de amortecer os impactos, em casos de
choques.
Neste sentido, chamamos a atenção para dois aspectos: primeiro, o fato de que a lei
não deve tratar, especificamente, de assuntos pedagógicos, exclusivos das escolas: “[...] o fato
de uma lei de ensino tratar de questões pedagógicas é profundamente prejudicial ao
desenvolvimento da educação [...]”. (GANDIN, 1999, p. 13); segundo, o de que não existe um
modelo universal para a escola porque cada uma tem a sua identidade, o que significa que ela
pode escolher caminhos educativos variados. Um caminho escolhido por uma escola pode não
ser bom para outra. A validade será somente possível se respeitada as suas características, o
tipo de entorno, a comunidade e o histórico dos seus alunos.
As políticas públicas constituem o parâmetro para o desenvolvimento teórico do
Projeto Político-Pedagógico e suas consequentes práticas. Aqueles que ocupam cargo de
poder não deveriam impor seu desejo pessoal, ignorando o desejo coletivo. Buscam a crítica a
55

partir de sua visão particular e desrespeitam o espírito das leis. É certo que a sociedade reagirá
contra o vírus do autoritarismo nos meios educativos, ainda que disfarçado de decisões
democráticas. Gandin (1999) assevera que não é o caso de pedir ao intelectual para traçar os
rumos da sociedade e das escolas, a partir de seu gabinete. O que não pode é a aceitação do
papel de “juiz”, externo às ações de professores, que, de fato, buscam encontrar alternativas
para a educação.
Há um conjunto de normas estabelecidas para a educação na Constituição de 05 de
outubro de 1988, e, a partir dela, surgiram leis menores. Destacamos a democracia e a
autonomia previstas na legislação, mais especificamente, na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Atentamos também
para a previsão da democracia nas escolas, a partir de sua gestão democrática, considerando
inclusive que escolas particulares possam se inspirar nesse estilo. Reza, o Artigo 14, a
participação coletiva na construção do Projeto Político-Pedagógico:

Artigo 14 - Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do


ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme
os seguintes princípios:
I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico
da escola;
II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou
equivalentes.

Quanto à autonomia, o Art. 15, da mesma Lei, estabelece que: “os sistemas de ensino
assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram
progressivos graus de autonomia pedagógica [...]”. Qual é o melhor caminho para se
estabelecer o exercício da autonomia? Há dois caminhos, a saber: primeiro, conhecer a tarefa
educativa de uma democracia. De acordo com Azanha (2000), se a escola não compreende a
tarefa educativa em uma democracia, ela perde a sua ética e não há que se falar em ética do
professor. Nesse caso, a autonomia deixa de ser condição de liberdade e passa a ser
facilitadora da opressão. Escola e professores são reduzidos a simples executores de ordens;
segundo, para ter autonomia, não pode a escola negar a realidade dos alunos e o seu histórico.
Um projeto deve rever o instituído e ser instituinte, como explica Gadotti (2012, p. 37).

[...] Um projeto político-pedagógico não nega o instituído da escola que é sua


história, que é o conjunto dos seus currículos, dos seus métodos, o conjunto dos seus
atores internos e externos e o seu modo de vida. Um projeto sempre confronta esse
instituído com o instituinte.

A autonomia é visualizada por Wallon (1995) como uma constituição de regras


criadas pelos sujeitos da ação educativa. A liberdade se associa à ideia de autonomia e deve
56

ser considerada como liberdade para aprender, ensinar e pesquisar, inserida em uma
intencionalidade coletiva; tal ideia nos conduz à escola democrática. A construção
democrática da escola e de sua identidade, para Bussmann (1985), aliada ao Projeto Político-
Pedagógico, requer o rompimento com estruturas mentais e organizacionais fragmentadas, a
definição clara de princípios e diretrizes contextualizadas, o envolvimento da comunidade
escolar e o conhecimento da realidade escolar.

3.3. HISTÓRICO E TRANSFORMAÇÃO DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Vasconcelos (2006) argumenta que, nos anos 1970, as instituições de ensino eram
referenciadas com uma forte crítica sociológica. A identidade das escolas estava vinculada ao
aparelho ideológico do Estado: a ditadura militar. Como a escola é o reflexo da sociedade, não
havia espaço para a autonomia e para a liberdade de expressão e de ação. Entendemos que,
nessa época, a própria reflexão de alunos e professores era direcionada, se é que podemos
chamar de reflexão, mesmo porque nos parece contraditório. Como exemplo, disciplinas de
História e Geografia se resumiam em um amontoado de dados e fatos a serem decorados,
desconsiderando-se completamente o exercício e o desenvolvimento de espírito crítico.
Sempre, em nome da dominação. Daí a necessidade de redefinições e transformações
organizadas, por meio de um projeto: “Qualquer projeto de transformação exige que se tenha
clareza sobre o que significa ‘transformar’ e sobre o que se quer construir a partir dessa
transformação [...]”. (GANDIN, 1999, p. 90).
Apontamos para o papel da escola, na redemocratização da década de 1980 e no fim
da ditadura militar, em 1985. Vasconcelos (2006), a respeito desse papel, aponta para uma
nova era de redefinições após o período relativo aos anos 1970. Desenvolvem-se novos
instrumentos de planejamento e as novas concepções começam a ser estudadas visando
transformar as práticas educativas. A “filosofia da escola” e o “regimento escolar” não eram
mais suficientes para gerir o caótico cotidiano. O Projeto Político-Pedagógico vai se
afirmando com o avanço das conquistas de direitos e o desejo de participar; o projeto era uma
necessidade urgente para educadores e escolas. Há um movimento para alterar antigas
concepções, com a teoria tentando capturar o real e intervir. Nesse sentido, o Projeto Político-
Pedagógico é construído e reconstruído pelos atores que desejam a mudança. Nossa posição é
a de que, como hipótese, o modelo repressivo tenha desaparecido da maioria absoluta das
57

escolas na educação contemporânea, o que alicerça as transformações que se fazem


necessárias, principalmente a edificação de um projeto pedagógico.

Ação transformadora é aquela que supre alguma necessidade radical do grupo e/ou
da instituição, daí o esforço para se conhecer bem quais as necessidades da
instituição que planeja. Para saber o que fazer precisamos, então, localizar as
necessidades. (VASCONCELOS, 2006, p. 29).

Perrenoud (1999) reforça a necessidade de transformação, afirmando que a escola


não pode permanecer imóvel, tem que se libertar de seus paradigmas, como o quadro-negro, a
sala de aula e a relação professor-aluno e que a aula seja ampliada em sua concepção. O autor
cita como exemplo um viajante do tempo, se este voltasse à sociedade após um século de
hibernação. Veria a cidade transformada, mas a escola estaria estagnada, sem mudanças
durante esse longo tempo.

[...] Uma vez começada a aula, talvez ele percebesse alguns traços de uma pedagogia
mais interativa e construtivista, de uma relação mais calorosa ou igualitária do que
na sua época. Mas, a seus olhos, não haveria nenhuma dúvida de que encontrava-se
em uma escola. (PERRENOUD, 1999, p. 3).

3.4. A CONSTRUÇÃO PARTICIPATIVA

Muitos educadores fazem referências às necessidades de transformação na escola,


por meio de um Projeto Político-Pedagógico construído coletivamente. Iniciamos o assunto
com uma questão fundamental: quais são os atores responsáveis pela construção de um
projeto pedagógico? Depende, se o projeto não é democrático, provavelmente ficará por conta
de um grupo de professores e da equipe gestora, numa relação hierárquica baseada na chefia.
No caso de um projeto ignorado por todos, sem o desejo de movimentá-lo, provavelmente
algum funcionário da escola será o responsável por fazer algumas alterações periódicas.
Ao contrário, quando o projeto é democrático e desejoso, a participação se amplia
consideravelmente. Há uma grande mobilização da escola como um todo e da comunidade
local, incluindo pais de alunos. Salientamos que, na construção do projeto pedagógico, é
necessária a presença de uma pessoa carismática que, além de exercer a chefia, seja um líder
nato e proeminente: “[...] numa gestão democrática, a direção é escolhida a partir do
reconhecimento da competência e da liderança de alguém capaz de executar um projeto
coletivo [...]”. (GADOTTI, 2012, p. 38).
Há resistências, dos não engajados, no desejo de transformar a realidade da escola?
Na escola cidadã, em uma gestão democrática, além de um líder nato, é fundamental o
58

engajamento dos coordenadores pedagógicos e, ao menos, da maioria dos professores. Esse


grupo estará adiante no processo de transformação, abrindo caminhos e criando as condições
necessárias para a implementação de novas ideias. “Para favorecer a mudança da prática
pedagógica, basicamente, o papel da equipe de direção é criar um clima de confiança, pautado
numa ética libertadora e no autêntico diálogo [...]”. (VASCONCELOS, 2006, p. 57). Os
professores resistentes podem retardar as transformações, devido à falta de desejo e
engajamento. Podem se fechar na própria concepção de educação e em sua especialidade.
Alguns docentes são muito teimosos.

[...] teima em não alterar sua prática; teima em não estudar, teima em se considerar
“pronto”; teima em se portar como dono de sua especialidade; teima em acusar os
alunos (e suas famílias); teima em infernizar os alunos com tanta lição de casa que
ninguém sabe para quê, teima em se sentir vítima; teima em encaminhar aluno para
fora da sala de aula; teima em não valorizar o coletivo, teima em querer o aluno
“num certo ponto”; teima em ficar se queixando o tempo todo [...].
(VASCONCELOS, 2006, p. 65).

Como, então, deve ocorrer a construção coletiva do Projeto Político-Pedagógico? Em


nossa perspectiva, os encontros e os diálogos coletivos devem ser priorizados, de forma
espontânea. Destacamos a força da mobilização dos envolvidos com a construção, movida
pelo desejo de transformar a escola para melhor, a fim de criar um ambiente afetivo e
agradável, bem como atingir o objetivo maior, que é a aprendizagem do aluno. Conclui Medel
(2008) que a construção coletiva do Projeto Político-Pedagógico deve ocorrer objetivando a
instalação de uma autonomia dialogada, evitando-se o mero cumprimento de dispositivos
legais. A autonomia deve ser criada a partir de um projeto educativo para melhorar a
qualidade do ensino e obter sucesso na aprendizagem do aluno. Entende que o Projeto
Político-Pedagógico retrata a identidade da escola e se refere a uma escola cidadã: “Quando a
escola é capaz de construir, implementar e avaliar o seu PPP, ela propicia uma educação de
qualidade e exerce sua autonomia pedagógica”. (MEDEL, 2008, p. 36). Gadotti; Romão
(2012) acrescentam que a gestão democrática exige mudança de mentalidade ao enxergar a
escola como uma conquista da comunidade e não um aparelho do Estado: “[...] só as escolas
que conhecem de perto a comunidade e seus projetos podem dar respostas concretas”
(GADOTTI; ROMÃO, 2012, p. 56).
59

4. METODOLOGIA

Para responder à questão norteadora do presente estudo, quanto ao objeto, a pesquisa


dividir-se-á em pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo. A pesquisa bibliográfica, em
termos de organização, segmentar-se-á em bibliografia relacionada ao campo da Psicologia e
bibliografia relacionada ao Projeto Político-Pedagógico. Quanto à Psicologia, daremos ênfase
na produção de Henri Wallon e de outros autores que desenvolveram seus estudos, a partir de
suas obras. Na teoria de desenvolvimento proposta por Henri Wallon, será priorizado o
conceito de afetividade, com grande ênfase na emoção. A partir da afetividade, abrimos um
leque de intersecções com outros conceitos wallonianos. É de fundamental importância o
conhecimento sobre as manifestações da afetividade no ambiente escolar se desejamos uma
escola humana, democrática e que não reproduza as injustiças sociais. O professor que deseja
entender e perceber a manifestação das emoções do aluno e enxergá-lo de modo integrado
tem, com efeito, de refletir sobre todos esses aspectos que dão forma à Pedagogia, a partir de
um projeto pedagógico democrático e inovador. Perceber a emoção no aluno é o mesmo que
respeitar seu histórico de vida, sem rotulá-lo nos momentos de um comportamento
inadequado, atribuindo-lhe certas características que ele realmente não tem.
Adotamos um critério seletivo em relação à escola analisada, na qual se deu a
pesquisa de campo. De modo geral, a escolha esteve vinculada ao seu Projeto Político-
Pedagógico inovador e democrático. A instituição se encontra aberta para visitações, estágios
e pesquisas acadêmicas. O método de estudo escolhido é o estudo de caso exploratório, com
abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa colheu opiniões, externadas por meio de
mencionados questionários informais e narrativos, bem como por anotações oriundas das
observações realizadas. O foco principal da pesquisa foi o de verificar o impacto da
afetividade, com ênfase na emoção, no ambiente escolar. Esse foco se desenvolveu por meio
da leitura e análise do Projeto Político-Pedagógico da escola e das entrevistas realizadas com
seis professoras. Além disso, especificamente em relação às observações, estas ocorreram a
partir do trabalho desenvolvido por três docentes, responsáveis pela educação em um salão
com quase cem alunos, do Ensino Fundamental Regular, Ciclo II, 5 os anos, com faixa etária
aproximada de doze anos. Acrescentamos as observações desses alunos na prática da
educação na cidadania, no salão e na Comissão Mediadora de Estudantes. Eles se agrupam na
classe por meio da idade, da “competência” e de critérios estabelecidos pelo projeto.
60

O fator que justificou nossa escolha dos entrevistados foi, notadamente, o tempo de
serviço, que pode determinar o grau de compromisso com a escola. Para que a reflexão fosse
baseada em um critério coerente e de completa imparcialidade, uma das coordenadoras e três
professoras apresentam um menor tempo de serviço. O ex-diretor da EMEF Presidente
Campos Salles, durante muitos anos, protagonizou as transformações do ambiente escolar e,
desta forma, não poderia ficar às margens da pesquisa.
Como foram elaborados os roteiros das entrevistas? Especificamente, a elaboração
seguiu o critério de colher informações, nas primeiras sete questões, a respeito da história de
vida dos entrevistados, portanto, respostas de cunho pessoal. As demais perguntas são
específicas sobre os aspectos que desejamos investigar. Diante do exposto, entendemos que
também é necessário um perfil, um resumo da história de vida dos entrevistados, escrito a
partir das respostas iniciais obtidas nas entrevistas. A história de vida pode esclarecer o
motivo pelo qual o professor optou ou não em trabalhar na escola e qual seu grau de afeição e
engajamento, a partir do que pudemos entender sobre seu passado. O passado reflete na
conduta profissional. O ex-diretor da escola faz essa afirmação, como se verifica no início de
sua entrevista: “Acho fundamental essa questão da história pessoal e explica muito das coisas
que eu acabei fazendo depois”. (Braz).
Firmamos o propósito e realizamos as leituras e reflexões do Projeto Político-
Pedagógico, bem como das entrevistas, isto é, dos relatos do diretor, das coordenadoras e dos
professores. Complementando a coleta de dados, foram registradas, por escrito, em caderno
de anotações, as observações realizadas na escola, dentro do salão e em reuniões da Comissão
Mediadora de Estudantes, composta por onze ou dez alunos e coordenada por um professor-
tutor. Tais observações tiveram como alvo de interesse o trabalho docente e a educação na
cidadania. Segundo Bastos (2003), a observação deve partir de uma interrogação e de um
interesse para interpretar o olhar walloniano. Três questões norteadoras devem constar do
objeto de pesquisa: por que observar? Para que observar? E como observar?
Foi realizada a análise das entrevistas e das observações anotadas durante a pesquisa
de campo, as quais, posteriormente, foram encaixadas na categoria afetividade, com suas
subcategorias interseccionadas: ambiência, espaço, docência e discência. Tal divisão visava
nos conduzir a um melhor entendimento do proposto. Nessas subcategorias foi possível, por
meio de nossa discussão, demonstrar se o Projeto Político-Pedagógico é afetivo e se o
professor também o é. A categoria e as subcategorias abraçam o âmago da pesquisa que
levamos a efeito.
61

Na intersecção afetividade e ambiência, optamos por destacar os conflitos, as


emoções e os sentimentos envolvidos nas transformações da escola. Levamos em
consideração o ambiente anterior à implementação do Projeto Político-Pedagógico e também
após esta, bem como as dificuldades em implementá-lo. Na intersecção afetividade e espaço,
procuramos mostrar o significado, inclusive o psicológico, da derrubada dos muros da escola,
das paredes das salas de aula, para convertê-las em salões, bem como a retirada das
maçanetas. Na intersecção afetividade e docência, procuramos demonstrar se as professoras
observadas são afetivas, principalmente nas relações e interações entre elas e com os alunos.
Na intersecção afetividade e discência, o foco estava nos alunos do salão observado, em
relação a algumas práticas oriundas da educação na cidadania, sob a presença e tutoria das
docentes que trabalham no salão dos 5os anos.
Resumindo, na categoria e subcategorias que escolhemos para encaixar nossas
observações, análises e reflexões, enfatizamos as principais passagens da escola antes e após a
transformação do ambiente, a luta de seus principais atores e as mudanças ocorridas no
trabalho docente, que reverberam até os dias atuais. Mostramos as transformações que
alteraram as concepções antigas de se enxergar o aluno. A passagem de um aluno fraco para
um aluno forte.
Em nossa discussão sobre as respectivas mudanças descritas na categoria e
subcategorias, destacamos os sentimentos e emoções manifestados em todos os momentos,
sejam agradáveis ou desagradáveis, que geram prazer e desprazer, especialmente durante a
reinterpretação desse trabalho docente, a nova postura e as práticas educativas
disponibilizadas aos alunos. Ressaltamos ainda que as respostas dos entrevistados não foram
analisadas uma a uma, mas extraídas e inseridas dentro do contexto da categoria e das
subcategorias interseccionadas. As observações realizadas na escola foram igualmente
acomodadas nesses contextos.
62

5. ANÁLISE DO PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA EMEF PRESIDENTE


CAMPOS SALLES

Ao analisarmos o Projeto Político-Pedagógico da escola investigada, conhecido


como PPP, buscamos conhecer detalhadamente a identidade da escola. Neste contexto, é
fundamental que possamos nos envolver com o significado das palavras que o constituem,
visualizar seu histórico e percorrer os passos de sua construção. Destacamos, nesta travessia,
os atores que participaram – e participam – de sua elaboração: a comunidade que a envolve,
alunos, professores, equipe gestora e funcionários. Tal destaque se dá porque há evidências de
que nem todo projeto conta com a participação coletiva, que é peça fundamental em sua
construção. Servem os projetos como um azimute magnético, que indica, por meio da bússola,
as coordenadas horizontais aos navegadores. O eventual descaso com o Projeto Político-
Pedagógico da escola nos conduz à percepção do porquê, durante muito tempo, até os dias
atuais, muitos docentes ficam à deriva das boas práticas pedagógicas e apresentam um
sintoma retratado pelo desinteresse em ensinar.

[...] o projeto político-pedagógico deve retratar, pela identidade, a missão da escola,


sua filosofia de trabalho, seus valores humanos e pedagógicos, sua clientela e os
resultados que se propõe atingir [...]. (NEVES, 1985, p. 117).

Uma questão norteia nossa análise do Projeto Político-Pedagógico da EMEF


Presidente Campos Salles: de que maneira a análise do PPP pode contribuir para mostrar o
impacto da afetividade no ambiente escolar? Exaltamos a importância dos aspectos
administrativo e financeiro para o bom funcionamento da escola. No entanto, nossa ênfase
recai sobre a dimensão pedagógica e suas práticas porque por meio delas podemos observar as
interações existentes no ambiente escolar e a manifestação da afetividade. Acrescentamos
que, em consonância com nossos objetivos específicos, elegemos dois aspectos inseridos na
dimensão pedagógica: educação na cidadania e trabalho docente, em grupo. Em nossa leitura,
a escola investigada deseja formar alunos na cidadania e, para tanto, necessita de professores
engajados e atuantes. Isso pode propiciar um ambiente diferencial, florido de sentimentos e
emoções.

O projeto político-pedagógico, ao mesmo tempo em que exige dos educadores,


funcionários, alunos e pais a definição clara do tipo de escola que intentam, requer a
definição de fins. Assim, todos deverão definir o tipo de sociedade e o tipo de
cidadão que pretendem formar [...] (VEIGA, 1985, p. 17).
63

A presente análise está fundamentada no Projeto Político-Pedagógico da EMEF


Presidente Campos Salles (2015). O projeto pedagógico da Escola da Ponte teve reflexos no
Brasil e inspirou o Projeto Político-Pedagógico da EMEF Presidente Campos Salles. A EMEF
Desembargador Amorin Lima também contribuiu para essa inspiração, visto que já atuava nos
moldes da escola portuguesa. Iniciamos a análise do projeto por meio de seu histórico, que
traz os motivos que fundamentaram as transformações, com a implementação de novas ideias.
Nesse projeto democrático e inovador, destacamos a dimensão pedagógica, os cinco
princípios norteadores da escola e algumas de suas práticas, com o intuito de mostrar o modo
como ocorre a educação na cidadania e de que maneira os professores se organizam, durante o
seu trabalho, para atingir os objetivos propostos.
Ressaltamos assim, aspectos decorrentes da alteração radical da antiga concepção
educativa pelo projeto pedagógico democrático e inovador. Neste contexto, é fundamental
percebermos o perfil de aluno que a escola deseja formar – isto é, um aluno formado por meio
da educação na cidadania –, além do novo papel docente. A construção do projeto se deu de
forma coletiva, encabeçada pelo diretor e por alguns educadores; a aprovação da proposta
para início do processo de seu desenvolvimento foi concretizada em 27 de outubro de 2005,
por meio do Conselho de Escola. O caráter coletivo é a maior estrutura do projeto. A Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, refere-se à
construção do projeto pedagógico a partir da capacidade da escola de se organizar e de
planejar, de forma participativa, sua ação política e pedagógica.

As atividades escolares devem ser objeto de reflexão por parte do coletivo da escola,
incluída a comunidade e os próprios estudantes. Dessa reflexão surgirão os
caminhos a serem trilhados na ação educacional, materializados na forma de
proposta pedagógica, planos de curso anuais, bimestrais, roteiros de estudos mensais
e o plano de gestão escolar, sendo este elaborado para um período de consecução
mais amplo, incluindo todos os dados e informações, diretrizes e normas de trabalho
pedagógico e administrativo (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÒGICO DA EMEF
PRESIDENTE CAMPOS SALLES, 2015, p. 8).

Não há dúvidas de que a principal inspiração para a construção do projeto da EMEF


Presidente Campos Salles tem origem em uma escola portuguesa. Nossa referência é baseada
nessa inspiração, que traz os princípios de responsabilidade, solidariedade e autonomia,
decorrentes do reflexo de um projeto pedagógico significativo e democrático. A Escola da
Ponte situa-se em Vila das Aves e São Tomé de Negrelos, em Santo Tirso, no distrito do
Porto, em Portugal. Pacheco (2013) descreve como era a situação da escola antes do início do
projeto renovador. Em 1976, a escola enfrentava vários isolamentos da comunidade e dos
64

professores; havia exclusão escolar e social de muitos alunos; a indisciplina era generalizada,
bem como as agressões a professores. A escola carecia de um projeto e de uma reflexão
crítica acerca das práticas existentes.

A Escola da Ponte mostrou ser possível a organização do espaço e do tempo escolar


para que o aluno seja recebido como um ser competente que interage como sujeito
com os outros sujeitos que são os seus colegas de escola e os seus professores. Vive-
se na escola assim como se vive na comunidade e ambas se influenciam
reciprocamente e o ato de aprender torna-se prazeroso. (MAZON; NOGUEIRA,
2005, p. 5).

Nessa escola, o professor era o centro do trabalho escolar e os manuais oferecidos


aos alunos eram iguais para todos. As lições eram repetidas, o que conduzia à passividade. As
crianças dotadas de cultura e experiência social diferente eram desfavorecidas, porque não
havia o reconhecimento dessa dotação. Como muitas crianças viviam em bairros pobres, elas
acabavam por transferir seus problemas sociais para a escola. Os pais eram chamados à
instituição para lhes pedir castigo ao filho ou contribuições para reparações urgentes.
Assim relata Pacheco (2013, p. 12, grifo do autor): “[...] não passa de um grave
equívoco a ideia de que se poderá construir uma sociedade de indivíduos personalizados,
participantes e democráticos enquanto a escolaridade for concebida como um mero
adestramento cognitivo”.
Alves (2012) visitou a Escola da Ponte e se impressionou com tudo aquilo que pôde
observar e com os ensinamentos que assimilou. A primeira lição diz respeito à ideia de
“educar na cidadania”, que é diferente de “educar para a cidadania”. A tradução é que os
alunos estão sendo educados em pleno exercício da cidadania, e não apenas preparados para
ela; outra lição da escola é referente à reformulação dos papéis do professor e do aluno, numa
lógica diferente de funcionamento do ambiente escolar, de tal forma que parece não haver
professores nem alunos na escola. A referência do currículo não está no professor, mas sim,
no aluno.
Além disso, as crianças de mais idade ensinam as “miúdas”, e tal prática constitui
uma rotina. Alves acreditou que o diretor da escola seria seu guia durante a visita, mas quem o
recepcionou foi uma menina de dez anos de idade, que explicou detalhadamente o
funcionamento da escola.

Nósh não têmosh [...], salas de aulas. Não temos classes separadas, 1º ano, 2º ano, 3º
ano... Também não temos aulas, em que um professor ensina a matéria. Aprendemos
assim: formamos pequenos grupos com interesse comum por um assunto, reunimo-
nos com uma professora e ela, conosco, estabelece um programa de trabalho de 15
dias, dando-nos orientação sobre o que deveremos pesquisar. Usamos muito o
recurso da Internet. Ao final dos 15 dias nos reunimos de novo e avaliamos o que
65

aprendemos. Se o que aprendemos foi adequado, aquele grupo se dissolve, forma-se


outro para estudar outro assunto. (ALVES, 2012, p. 43).

5. 1. IDENTIFICAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO

De acordo com seu projeto (2015), a EMEF Presidente Campos Salles está inserida
no Centro de Convivência Educativa e Cultural Heliópolis – CCEC, no bairro de São João
Clímaco, no distrito do Ipiranga. Encontra-se sob a jurisdição da Diretoria Regional de
Educação do Ipiranga – DRE/Ipiranga e oferece cursos de Ensino Fundamental (Ciclos I, II e
III) e de Educação de Jovens e Adultos (EJA), ministrados em horários diferenciados em três
períodos: matutino, vespertino e noturno. A equipe gestora conta com a direção, suas duas
assistentes e uma coordenadora pedagógica. Tem como patrono Manuel Ferraz de Campos
Salles, político brasileiro nascido em 1841, na cidade de Campinas, estado de São Paulo, e
falecido em 1913, na cidade de Santos. O surgimento da escola Campos Salles ocorreu em
1956; a inauguração data de 27 de fevereiro de 1957 e, o início de seu funcionamento, de 21
março de 1957:

A EMEF Pres. Campos Salles surgiu antes do início do processo de favelização de


Heliópolis. Foi criada pelo Decreto nº 3206 de 23/08/56, como Escolas Mistas de
São João Clímaco. Em 1957, onde hoje é o Largo de São João Clímaco, foram
construídos dois galpões, um com duas salas e o outro com três. Foi inaugurada em
27/02/57 e começou a funcionar em 21/03/57. Em 1967 foi inaugurado o prédio de
alvenaria, com 12 salas e 1000 alunos, prédio este em que a escola ainda funciona
(MAZON; NOGUEIRA, 2005, p. 12-13).

5.2. HISTÓRICO: ESCOLA E COMUNIDADE

É fundamental visualizarmos a importância que o processo de favelização de


Heliópolis, a maior da capital, exerceu e exerce na escola. Consta no projeto (2015) a
estimativa de uma população atual de aproximadamente 200 mil habitantes, distribuídos numa
extensão de 1.000.000 m², de acordo com a União dos Núcleos, Associações e Sociedades de
Heliópolis e São João Clímaco (UNAS). A renda média das famílias é de até três salários-
mínimos. O ponto de partida para sua identificação com a escola foi o seu processo de
crescimento.
Como é constituída a população de Heliópolis? Com base nos trabalhos de Mazon e
Nogueira (2005), aos fundos, a escola faz limite com a favela de Heliópolis, residência de
mais de 95% dos seus alunos. Crianças e adolescentes somam quase a metade da população.
66

A maioria é de adultos migrantes nordestinos, vítimas do desemprego, da violência e de


vários problemas sociais. A favela tem uma grande concentração de barracos e casas de
alvenaria. Conta com uma localização privilegiada, visto que é servida por uma infraestrutura
viária, por comércio, indústria e diversos locais de prestação de serviços públicos.
Como a favela cresceu rapidamente? Ainda de acordo com Mazon e Nogueira
(2005), em 1971/1972, em decorrência da construção de um viaduto na Vila Prudente, os
moradores da região vizinha foram desalojados e instalados em acomodações provisórias.
Outras famílias se agregaram aos poucos, levantando mais barracos ao lado dos alojamentos,
fator este que determinou o crescimento rápido da favela. A região de Heliópolis, na década
de 80, então classificada como bairro novo, incorporou essas terras à cidade, inicialmente, na
forma de empreendimento imobiliário e, posteriormente, como uma gleba de propriedade do
Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social – IAPAS
(adquirida para a construção do Hospital Heliópolis, em 1969).
Qual a relação entre o histórico de problemas sociais dos alunos e a implementação
do Projeto Político-Pedagógico? Mazon e Nogueira (2005) entendem que os alunos, por
residirem na favela, são muito carentes de recursos. Além disso, desde 1995, a escola
apresentava problemas de violência envolvendo esses alunos e pessoas ligadas ao crime. A
violência, em 1999, teve destaque devido ao assassinato de uma aluna, ao sair da escola no
período noturno. Daí surgiu a proposta de se caminhar pelas ruas de Heliópolis, envolvendo a
comunidade, externando a não aceitação dessa violência. Um novo projeto pedagógico foi
apresentado em 2005, em que se introduziu uma maneira diferente de se construir o saber.
Houve, então, uma passagem daquelas antigas concepções que viam a criança como um ser
menor e ser incompleto para uma visão em que a criança é um ser integral, capaz de se
organizar, individual e coletivamente, e ser portadora de saber.
Segundo Mazon e Nogueira (2005), as práticas decorrentes das metodologias
existentes em boa parte das escolas públicas enxergam o aluno como um ser menor,
incompleto, incapaz de construir o conhecimento próprio; o discente não é visto como um ser
integral, com capacidades, tanto na tomada de decisões como na organização, tampouco
portador de sua cultura. Dessa visão decorre a falência da transmissão na relação professor-
aluno, que era a realidade da EMEF Campos Salles. Essa falência é o resultado de altos
índices de alunos promovidos com rendimento insatisfatório; outros, com evasão escolar; e,
ainda, os retidos por ausência e por rendimento. Dentro dos padrões da escola, o fracasso
escolar era de 32,18% dos seus alunos.
67

Pode-se dizer que a escola está paralisada nas suas práticas e não vê o aluno como
sujeito de sua aprendizagem, impondo-lhe um currículo pré-determinado que não
tem nada a ver com sua vida. O aluno real, concreto não é acessado e ir à escola
passa a ser uma mera obrigação. (MAZON; NOGUEIRA, 2005, p. 6).

5.3. OS CINCO PRINCÍPIOS NORTEADORAS DO PROJETO

O que direciona o projeto pedagógico da EMEF Campos Salles são os seus cinco
princípios norteadores. É necessário expormos uma melhor contextualização da escola para
chegarmos às suas ideias norteadoras. Mazon e Nogueira (2005), a fim de melhor
contextualizar a escola, dividem-na em três períodos: 1957 a 1970, 1971 a 1995 e 1996 a
2005. No primeiro período (1957 a 1970), a escola atendia às séries iniciais do Ensino
Fundamental, e a grande maioria dos alunos, que residia no Jardim Patente e em São João
Clímaco, eram filhos de trabalhadores das chácaras e olarias existentes na região. Havia
também alguns descendentes de portugueses e italianos. No segundo período (1971 a 1995), a
partir de uma ocupação desordenada de moradores, a escola passou a receber crianças de 1ª
ou 2ª séries. À medida que essas crianças aprendiam a ler e escrever, os pais as transferiam
para outras instituições que surgiam, porque tinham vergonha da escola que frequentavam,
que tinha o estigma de “escola dos favelados, dos marginais e dos baderneiros”. Ressaltamos
que esse estigma foi superado apenas no final de 1988, tendo sido substituído pela
denominação “escola da comunidade”.
Complementando, no terceiro período (1996 a 2005), em 21 de novembro de 1995, a
nova direção iniciou a integração Escola-Comunidade, uma parceria estabelecida em nome da
luta pelos direitos da população de Heliópolis. O então novo diretor, Braz Rodrigues
Nogueira, escolheu a escola em virtude da proximidade em relação à sua residência e também
pelo fato de a origem de sua família ser similar a algumas famílias de Heliópolis. Em 1996, a
escola passou a contar com duas coordenadoras pedagógicas. O diretor da escola carregava
uma grande preocupação referente à equipe técnica, pois dela dependia para ter êxito ao
realizar as transformações. Vasconcelos (2006), ao se referir à equipe diretiva, alega que a sua
importância está na influência sobre a criação de um clima organizacional favorável.
Em 2004, alguns educadores próximos ao diretor propuseram uma mudança na
metodologia de ensino reinante, para uma outra, inspirada na Escola da Ponte, em Portugal, e
na EMEF Desembargador Amorim Lima, em São Paulo. Na ocasião da assunção do cargo, o
diretor colocou em prática duas ideias que carregava consigo e que são norteadoras do Projeto
Político-Pedagógico intitulado “EMEF Presidente Campos Salles – Cidadania: uma questão
68

de sobrevivência”. Tais ideias são: a escola como centro de liderança e tudo passa pela
educação. A primeira é a de que a escola não pode atuar isoladamente, pois corre o risco de
reproduzir as injustiças sociais, à medida que se isola de sua comunidade; a segunda é a de
que o educador-cidadão percebe que a escola atua de forma contextualizada com a sociedade,
que esta não educa sozinha e naquilo que lhe cabe, mas educa o aluno na cidadania, pois a
solução dos problemas, inclusive dos sociais, passam pela educação.
Em suma, a escola como centro de liderança, na medida em que pretendeu ser neutra,
terminou por abdicar da liderança junto à comunidade. Isto posto, distanciou-se da realidade
social, de modo que seus alunos aprendiam de forma descontextualizada. Outro sintoma
identificado foi o isolamento da escola, incapaz de reestruturar suas práticas pedagógicas, que
eram baseadas na repetição e na exclusão social. Como o educador tem contato efetivo com a
população e com a criança, nada mais correto do que caminhar na direção do fortalecimento
da relação escola-comunidade. A escola, portanto, como centro de liderança, mas
abandonando a posição neutra, e se comprometendo com o saber ao lado de outras instituições
e da comunidade.
Quando o educador da escola é cidadão tudo passa pela educação. Ele busca mudar a
sociedade e a escola porque entende que ambas caminham juntas, que existe um reflexo
mútuo. Coloca o aluno na condição de contextualizado e interage com ele a partir da própria
visão que tem em relação ao mundo, no que tange à economia, à história e à cultura que
envolve os sujeitos. Assume como sua a luta do povo por seus direitos, ao passo que deseja
educar e ser educado na ação, agindo como educador-cidadão. Sabe que a escola não é a única
responsável no campo educacional, pois necessita de articulações com a comunidade para
desenvolver satisfatoriamente suas práticas.
Consta no Projeto da EMEF Campos Salles (2005) que, em 2005, foram acrescidos
mais três princípios norteadores, oriundos do projeto da Escola da Ponte, intitulado
“Autonomia, Responsabilidade e Solidariedade”. Assim, a EMEF passou a contar com cinco
princípios: 1 – Tudo passa pela educação; 2 – A escola como centro de liderança na
comunidade onde atua; 3 – Autonomia; 4 – Responsabilidade e 5 – Solidariedade.
O conceito de autonomia, sob o ponto de vista filosófico, confunde-se com o
conceito de liberdade. A liberdade ocorre quando o sujeito toma suas próprias decisões, a
partir de sua razão individual; a autonomia traz uma perspectiva que alia essa ação individual
ao componente social. O sujeito autônomo tem certas habilidades, como por exemplo, a
capacidade de tomar decisões e a criatividade. Há o acréscimo de certas necessidades:
69

emocional, sociocultural e política. Necessidade emocional para se comunicar com o Outro;


sociocultural para superar velhas concepções do mundo; e política para entender as
contradições do mundo e, por conseguinte, questioná-las.
A concepção de responsabilidade implica em afirmar que o sujeito é responsável
pelos atos que pratica e, por isso, reflete antes de agir, a fim de não provocar dano ao Outro. É
o que se observa no Projeto Político-Pedagógico da EMEF Presidente Campos Salles (2015):
“[...] o dever do indivíduo assumir as consequências de seus atos e decisões. E o argumento
da ignorância não isenta o indivíduo das consequências de suas decisões”. A responsabilidade
consigo mesmo é idêntica à responsabilidade com os Outros e também com a natureza, por
conta do avanço tecnológico. Além do lado subjetivo – a dimensão íntima da ética das ações,
em que o sujeito assume sentimentos e sensações, de remorso, de angústia e de sofrimento,
em decorrência de sua intervenção –, há o lado objetivo da responsabilidade, que se refere à
ética em relação ao Outro.
A solidariedade se traduz em um vínculo do sujeito com o outro, com o grupo social
e com a própria humanidade. É fundamental para uma construção social justa e para a
resolução de conflitos por meio de consenso. Todos os princípios são fundamentais para o
bom funcionamento da escola. No entanto, não fazem sentido isoladamente. E viver nesse
novo ambiente não é tarefa fácil porque a assimilação é lenta e dolorosa, na medida em que
altera radicalmente uma antiga concepção educativa:

Os princípios descritos acima serão vivenciados nas atividades desenvolvidas no


cotidiano escolar por todos os estudantes, mas também, pelos profissionais que
trabalham na escola. Todos serão aprendizes neste processo. Com o passar do
tempo, estes princípios perpassarão toda a comunidade de Heliópolis através dos
estudantes, dos seus pais, da ação dos profissionais da escola e das lideranças que já
estão envolvidas com o projeto. (PROJETO POLÍTICO- PEDAGÓGICO DA
EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES, 2015, p. 19).

Em 2006 e 2007 ocorreram as derrubadas de paredes. A primeira era imaginária, isto


é, era concernente à “quebra das paredes” entre as disciplinas, com a concepção de um aluno
visto como ser integral e completo, portador de saber, com capacidade para tomar decisões e
se organizar individual e coletivamente, com o objetivo de aprender. A segunda dizia respeito
à derrubada das paredes físicas das salas de aulas convencionais, transformando-se em quatro
salões de estudos (atualmente, cinco), para o agrupamento dos estudantes, na época, da
mesma série. Dentro desta organização, os professores elaboraram roteiros de estudos para os
alunos, no âmbito de um planejamento coletivo, objetivando a integração entre as áreas de
conhecimento. Destacamos que, atualmente, a denominação ficou estabelecida como “roteiros
70

integrados”, assunto que será abordado detalhadamente em nossa discussão final. O professor
que trabalhava individualmente passou a trabalhar em grupo porque, dentro da nova
perspectiva educativa, o planejamento tinha que ser realizado de forma coletiva.
Ainda em 2007, uma nova conquista se agregou com a construção do Centro de
Convivência Educativa e Cultural Heliópolis – CCEC. Foi construído em um espaço público,
no entorno da escola, com o objetivo de propiciar ambientes de convivência, valorizar a
cultura local e priorizar o lazer para a comunidade de Heliópolis. Esse espaço constitui um
instrumento de aproximação entre a escola e a comunidade; é provável que possibilite uma
maior interação e interesse da comunidade pelos assuntos da escola e do próprio Projeto
Político-Pedagógico. É também um ambiente em que predomina uma manifestação de
afetividade agradável.
Em 2009, educadores conduziram a escola a várias mudanças. Reconheceram a
necessidade de desenvolver nos alunos habilidades e competências. A partir deste ponto, foi
introduzida a tecnologia da informação e comunicação, com a utilização do então SkyDrive,
chamado atualmente de OneDrive, que é um serviço de armazenamento em nuvem, cuja
propriedade é da Microsoft. Por meio do Google Docs, os educadores digitavam os roteiros de
estudos (atualmente integrados), provões e as tarjetas. Nesta fase inicial, observamos a ênfase
no sujeito, isto é, tudo pelo aluno. “Tudo pelo aluno” significa colocá-lo em pé, como bem
esclarece Vasconcelos (2006), ao afirmar que é necessário resgatar e colocar em pé o sujeito,
na fase inicial da construção do projeto, desejando, acreditando e buscando.
No final do ano de 2010, surgiu a parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em
Educação, Cultura e Ação Comunitária - CENPEC, com o objetivo de qualificar os roteiros de
estudos. Tal parceria se traduziu em realização de pesquisas envolvendo estudantes, pais,
educadores e a equipe gestora, além de vários estudos visando melhorar a aprendizagem dos
alunos. Em 2011, ocorreu a capacitação do CENPEC, ocasião em que foi possibilitado aos
educadores se aproximarem de sua área de conhecimento. O objetivo geral era o de abandonar
os resquícios da educação tradicional, que marginalizava e excluía os estudantes, em
decorrência de uma metodologia ultrapassada e desvinculada da vida real deles. Entendemos a
ação descrita como uma forma de planejamento participativo, que obteve êxito, porque,
evidentemente, priorizou o coletivo, respeitou a realidade do aluno e apresentou,
objetivamente, uma nova prática. Gandin (1999) compartilha dessa visão e salienta a
importância do planejamento participativo, que desenvolveu modelos, processos,
71

instrumentos e técnicas para realçar o crescimento coletivo, construindo um referencial para


avaliar, propor e realizar uma nova prática.

Cabe a cada estudante, a cada educador, a cada funcionário da escola, a cada pai, a
cada mãe, a cada líder comunitário arregaçar as mangas e pegar o martelo, os
pregos, a colher, o cimento, os tijolos e começar a nova construção no seu tempo e
ritmo. Caso a construção fique com defeito, o problema não será procurado no
indivíduo, pelo contrário, o coletivo será mobilizado para resolver o problema.
(PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS
SALLES, 2015, p. 14-15).

5.4. RECURSOS FÍSICOS

Chegamos a uma boa prática pedagógica também em razão das boas condições dos
recursos físicos. O espaço interfere nas emoções e nos sentimentos dos alunos. Nada mais
degradante, em termos afetivos, do que educandos encurralados em espaços inadequados. A
EMEF Campos Salles conta com espaços amplos e adequados para o desenvolvimento de
suas práticas, adaptados para a nova metodologia implementada. Como fiel exemplo, temos a
derrubada das paredes das salas de aulas convencionais, transformadas, inicialmente, em
quatro salões de estudo, um espaço destinado à prática da nova metodologia de ensino.
Além dos salões, de acordo com seu Projeto (2015), a escola conta com três salas de
orientação de roteiros de estudo – destinadas aos 1os, 2os e 3os anos, com objetivos de
alfabetização em língua portuguesa e aprendizagem na matemática –, uma sala da direção,
uma da coordenação e uma de professores. As outras salas são as de reuniões, de secretaria,
ambiente literário e tecnológico e de educação física. Em 2014, por meio de uma reforma, foi
construído o 5º salão de estudos e do Ambiente de Apoio Literário e Tecnológico. O espaço
possui ainda: almoxarifados, depósito, dispensas, cozinha e sanitários para todos. Amplo pátio
coberto, jardins externos ao prédio, quadra poliesportiva e áreas livres.
A utilização da quadra de esportes acontece a partir da necessidade do próprio roteiro
de estudos de educação física, para atividades físicas e esportivas correspondentes a ele. Os
educadores de educação física e todos os educadores das demais áreas atuam como
orientadores de todos os roteiros. Os estudantes do salão participam das atividades e podem
escolher as que desejam; eles aprendem não somente nesses ambientes da escola, mas em
qualquer espaço de sua comunidade, contribuindo para a construção do bairro educador, em
Heliópolis.
72

5.5. METODOLOGIA

A nossa leitura nos conduz à afirmação de que a metodologia de ensino da EMEF


analisada é um dos grandes destaques do Projeto Político-Pedagógico, principalmente porque
está inserida no contexto da educação na cidadania. Ao desprezar as antigas concepções, as de
alunos fracos, que apenas obedeciam, e introduzir uma nova forma de pensar, de sentir e de
agir, os alunos passaram a ser sujeitos de direitos, forte, autônomo, responsável, solidário e
capaz de construir o conhecimento próprio. Optamos pela expressão “conhecimento próprio”
ao invés de “próprio conhecimento”, porque esta última pode ser interpretada de forma dúbia,
enquanto que a primeira expressão nos parece mais adequada.
Cabe ao professor se libertar da ideia de que é um dono do saber e,
consequentemente, exercer o papel de orientador, principalmente nos salões. Atualmente, os
roteiros de estudo e o núcleo da metodologia são elaborados coletivamente, de modo que
caminham para a interdisciplinaridade e para a socialização. Os roteiros constam no Projeto
Especial de Ação – PEA, 2015: “Construção do Currículo dentro da perspectiva
interdisciplinar e da docência compartilhada – Fase II”.

Cada grupo de estudantes, e não cada indivíduo, tem autonomia para decidir quais
roteiros realizar no dia. No salão de estudos o educador exercerá o papel de
orientador, portanto, não haverá aula expositiva e o professor extrapolará a sua
disciplina. Na dúvida, os estudantes deverão recorrer primeiramente aos colegas de
grupo, não obtendo a ajuda necessária deverá levantar a mão para que o educador
disponível se aproxime para orientá-lo. O grupo também vivencia a responsabilidade
em relação à execução de todos os roteiros de estudos. A solidariedade também é
um exercício constante, uma vez que o estudante, tanto aprende com seus pares,
quanto os ajuda a aprender. (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA EMEF
PRESIDENTE CAMPOS SALLES, 2015, p. 22).

Qual foi o percurso realizado para a implementação da nova metodologia? Em 27


setembro de 2005, o então diretor, após estágio na EMEF Desembargador Amorim Lima,
acompanhado de alguns professores, apresentou uma proposta para as lideranças da
comunidade de Heliópolis, para estudantes e professores da escola e também para estudantes
participantes de projetos. Em 27 de setembro de 2005, essa proposta foi discutida em reunião
do Conselho de Escola, da qual participaram vinte e um dos vinte e oito conselheiros e mais
de quarenta pessoas, que marcaram a forte presença da comunidade. Ao término dos
trabalhos, a proposta foi aprovada pelo voto dos vinte e um professores conselheiros.
Ao contrário do que ocorre em muitas escolas, a proposta ficou longe de ser
autoritária, visto que foi amplamente discutida pela coletividade envolvida com as
transformações que se pretendia. Essa atmosfera democrática criou um clima agradável do
73

ponto de vista emocional. Vasconcelos (2006) entende que a escola deveria ser um espaço de
confronto de ideias, de posições e de decisões coletivas, no entanto, o que se instalou foram
propostas mirabolantes, impostas de cima para baixo, em que os dirigidos não se animam a
discuti-las. Como não há diálogo, a palavra não circula e não há interações, surge uma
atmosfera deprimente, em que o medo às críticas prevalece nos encontros.

5.6. COMISSÃO MEDIADORA DE ESTUDANTES E TUTORIA

Aproximadamente dez estudantes fazem parte da Comissão Mediadora de


Estudantes, constituída em cada salão, por meio de eleição. A Comissão não tem caráter
disciplinador, mas o de ser um instrumento de diálogo permanente com a comunidade, de
servir como “ponte” entre os estudantes, destes com os professores, os pais, a direção e a
coordenação pedagógica. Também apresentam a escola e o Projeto Político-Pedagógico para
os visitantes. Podem resolver conflitos e desrespeitos entre alunos, bem como entre alunos e
professores, ou qualquer pessoa envolvida com a escola. Existem dificuldades
comportamentais em que o diálogo tem espaço para atuar.
Tutor é um educador que lidera, que tutoreia equipes de estudantes e os orienta nos
estudos e na convivência dentro e fora da escola, isto é, extrapola os muros da escola e
acompanha o aluno em seu processo de constituição. A previsão de realização de reuniões da
tutoria é semanal e as atividades terão como objetivo principal o exercício da autonomia, da
responsabilidade e da solidariedade. É uma oportunidade valiosa para educadores e alunos
formarem vínculo, para conhecerem a história de vida do aluno, trocarem conhecimento e
extrapolarem o ambiente escolar para outros espaços na comunidade. Assim, no grupo, há
uma valorização entre seus integrantes, aproximando educação formal com educação
informal. Além disso, facilitará a superação da mentalidade de que a criança é fraca e
incompleta, evoluindo para uma noção de que ela é um ser capaz e completo, o que
fortalecerá o acompanhamento dos estudantes em suas dificuldades e em suas necessidades.
De maneira geral, nossa leitura sobre a Comissão e a Tutoria é a de que o sujeito é
valorizado como um ser humano autônomo, solidário e responsável. Ele caminha e vê seu
horizonte ao fundo; olha para os lados e vê educadores, que caminham juntos. Ao olhar para
trás, vê outros sujeitos, mas que estão no mesmo caminho. Se saírem do caminho, serão
convidados a exercer a reflexão e a retornar ao destino. Segue ao passo que escolheu, pensa e
para se desejar, porque o ritmo é o de sua escolha. O sujeito aluno reflete sua história na
74

escola e na comunidade. Sua autonomia vai ao encontro da identidade da escola, que, de certa
forma, abraça o professor também como sujeito. “[...] Não há como formar sujeitos, se o
professor não é, ele próprio, sujeito [...]”. (GANDIN, 1999, p. 129).

5.7. ASSEMBLEIAS DE ESTUDANTES E FORMAÇÃO DE GRUPOS

Os educadores, além do trabalho das equipes nos salões e na tutoria, socializam


novas descobertas e criam regras por meio de um processo decisório. As assembleias ocorrem
por salões, à medida que surge um problema. Vereadores, prefeitos e estudantes decidem
pelas normas mais votadas por salão para cumprimento e execução. Há a formação de grupos
para elaborar e implementar projetos, bem como a formação de grupos provisórios. No
primeiro caso, estudantes de todos os anos são convidados pelos professores para trabalhar em
projetos, no contraturno; no segundo, há a formação de grupos provisórios, com ações para
evitar que o aluno chegue ao 4º ano sem dominar a escrita e a leitura. Quanto aos estudantes
com necessidades educativas especiais, são propostos vários recursos pedagógicos, como
roteiros de estudos específicos.

5.8. REPÚBLICA DE ESTUDANTES

A República é a prática da democracia no espaço escolar. A Carta Magna da


República é o Projeto Político-Pedagógico. O prefeito, o vice-prefeito e os quatro secretários
constituem o Poder Executivo. Os dez vereadores, o Legislativo, e os sete membros da
Comissão de Ética, o Poder Judiciário. As ações de todos estão assentadas nos princípios
éticos da autonomia, da responsabilidade e da solidariedade. Visualizamos, assim, que esta é
uma maneira de exercer a cidadania, na prática, em uma situação em que a escola reproduz a
sociedade e coloca, em seus espaços, dispositivos semelhantes. Uma resposta à ineficiência do
ensino. Gadotti (2012) aponta duas razões para a implementação da gestão democrática: a
escola deve formar para a cidadania e para a melhoria do ensino. A escola cidadã é uma
resposta à ineficiência do ensino e à burocratização. Ressaltamos que, no caso específico da
EMEF Campos Salles, há a formação na cidadania, e não para a cidadania, como aponta o
autor.
75

No âmbito da gestão democrática, cabe ao prefeito zelar pelo fiel cumprimento do


Projeto Político-Pedagógico, além de sustentar a união e a integridade da escola e o bem-estar
dos estudantes. Ao vice-prefeito resta auxiliar o prefeito e, eventualmente, substituí-lo. Os
secretários adotam medidas para operacionalizar aquilo que foi aprovado pelos vereadores.
São quatro secretarias: a da Comunicação, para tornar públicas as decisões do Legislativo e do
Judiciário; a da Convivência e Diversidade, que prima pela convivência entre os sujeitos da
comunidade escolar; a da Secretaria da Cultura e do Esporte, que visualiza e amplia o
repertório cultural dos sujeitos da comunidade escolar; e a da Saúde e do Ambiente, marcada
pela preservação do ambiente escolar e do entorno, com vistas à sustentabilidade. Os
secretários podem escolher dois assessores.
O vereador debate e aprova regras da escola, com anuência do prefeito. São eleitos
dois vereadores por salão. Somente os membros da Comissão Mediadora podem se candidatar
a prefeito, vice-prefeito, vereador e secretário. A Comissão de Ética analisa e julga, com base
no Projeto Político-Pedagógico e nas regras de convivência, as ações do Executivo e do
Legislativo. A Comissão é composta por três professores, três estudantes e um funcionário da
equipe de gestão. Na prática, a Comissão se reúne extraordinariamente quando os
encaminhamentos para outras instâncias se esgotarem, bem como a destinação de cargos.

5.9. O PROCESSO DE ELEIÇÃO

Somente os membros da Comissão Mediadora podem se candidatar a prefeito, vice-


prefeito, vereador e secretário. A eleição é disponível apenas para candidatos do 4º ao 9º ano,
e todos os estudantes da escola fazem parte do eleitorado, que votam para um mandato válido
por um ano. O voto é livre, direto e secreto, de forma eletrônica, na sala de informática. Para
vereador, o voto é distrital, isto é, cada salão vota em seus vereadores. Não há formação de
chapas e vence quem obtiver maioria simples. O processo eleitoral ocorre em maio e junho. O
período do processo eleitoral é denominado “Mês da Democracia”.

5.10. OBJETIVOS DO PROJETO

A melhor tradução de Bairro Educador de Heliópolis é a educação como condutora e


organizadora da comunidade. Uma escola de céu aberto, em um ambiente predominado pelo
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respeito, independentemente das diferenças. Essa nova cultura transcende a escola, em nome
de uma educação integral de seus alunos. Assim, tece articulações com o empresariado, com
moradores e escolas, visando ao bem comum. Cria novos espaços comunitários em
decorrências das articulações que envolvem todos e, junto com a escola, por meio de novas
ideias e todo um conjunto de ações, promove a cultura da paz. O objetivo geral pode ser
definido como a construção de uma escola pública de qualidade; trabalhar a questão da
cidadania, de forma que os alunos se sintam responsáveis pela solução de problemas, de modo
a valorizar a pessoa humana, criando também situações de aprendizagem para melhorar sua
qualidade. Os objetivos promovem a integração entre escola e a comunidade.

5.11. AÇÕES DA ESCOLA

Percebemos a grande preocupação em manter um currículo ajustado à realidade dos


alunos e à prática da cultura da paz. A Caminhada pela Paz tem reflexos no cotidiano escolar
e na própria comunidade. As ruas de Heliópolis são tomadas todos os anos por milhares de
pessoas, em nome de questões dignas de luta. A violência na escola encontrou seu ápice no
ano de 1999, com a morte de uma estudante de dezesseis anos de idade, matriculada no curso
de suplência. Os conflitos e as violências sempre existiram, mas a comunidade e todos os
integrantes da escola não poderiam ficar de braços cruzados diante de um ato cruel e sem
sentido. A Cultura da Paz contribui para um ambiente escolar mais pacífico e reverbera bons
sentimentos e boas emoções até os dias atuais. Por meio dessa cultura, muitos jovens desejam
a paz e, aparentemente, passam a agir de acordo com o seu desejo.

5.12. ENSINO FUNDAMENTAL

O objetivo do Ensino Fundamental, ao término dos Ciclos I, II e III, está voltado para
a compreensão da cidadania, por meio da vivência, além da posição crítica, responsável,
construtiva e transformadora na sociedade, de modo geral. Engloba as áreas de: Ciências
Naturais (Matemática e Ciências), Linguagens e suas tecnologias (Português, Artes, Educação
Física e Inglês) e Ciências Humanas e Suas Tecnologias (História e Geografia). Do que
apresentamos, selecionamos o desenvolvimento, no aluno, do espírito crítico e responsável, o
qual a escola deseja formar. Como ele foi educado na cidadania, torna-se muito mais simples
77

a compreensão do exercício pleno dessa cidadania e sua inserção na sociedade, na luta por
direitos e pela preservação do meio ambiente. Ao contrário, quando o Ensino Fundamental
forma para a cidadania, o sujeito não carrega a experiência e a vivência.

5.13. ENSINO FUNDAMENTAL NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS - EJA

Quando nos referimos à Educação de Jovens e Adultos, a primeira impressão é a de


que o preconceito é algo que salta aos olhos. De fato, na maioria das escolas brasileiras, o
adulto analfabeto vivencia o preconceito. Galvão e Di Pierro (2012) afirmam que a palavra
analfabeto é carregada de significados negativos, tais como pessoas perdidas, sofredores,
coitadas e alienadas. O aluno da EMEF Campos Salles não é visto como um coitado,
tampouco se sente um. Ele também é sujeito de direitos e este é o grande diferencial. Assim, o
projeto lhe assegura a continuidade dos estudos após a alfabetização. A sua experiência de
vida, seu ritmo e suas necessidades básicas de aprendizagem são respeitados por meio de um
currículo adequado, que atende a essa especificidade e possibilita o desenvolvimento de
habilidades e competências. Engloba as áreas de: Ciências Naturais (Matemática e Ciências),
Linguagens e suas tecnologias (Português, Artes, Educação Física e Inglês) e Ciências
Humanas e Suas Tecnologias (História e Geografia).

O preconceito, disseminado diariamente na mídia e manifesto nas mais diversas


situações de interação, é introjetado por aquele que não sabe ler nem escrever: vê-se
como cego, sente-se como ignorante, aquele a quem falta algo para corresponder às
expectativas sociais [...]. (GALVÃO; DI PIERRO, 2012, p. 98).

5.14. CICLOS DE APRENDIZAGEM

Com base na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 20 de


dezembro de 1996, a escola encontra-se dividida em três ciclos de três anos, perfazendo o
total de nove anos de Ensino Fundamental. São eles: Ciclo de Alfabetização, Ciclo
Interdisciplinar e Ciclo Autoral. Esses ciclos estão relacionados aos direitos e aos objetivos de
aprendizagem previstos no currículo e dispostos no Projeto Político-Pedagógico. Destacamos
a importância do planejamento da equipe gestora para o bom funcionamento dos ciclos e sua
ação transformadora, eficaz, democrática e inovadora, visando à aprendizagem do aluno.
Vasconcelos (2006) alerta para o grande desafio da instituição ou do sujeito, que seria almejar
78

uma ação eficaz por meio de práticas adequadas e formas adequadas, que extrapolam a
atitude, fazendo do processo de planejamento um meio para se chegar à ação transformadora.
Os Ciclos de aprendizagem englobam avaliações, conceitos, recuperação, frequência
e promoção ou retenção. É realizada a avaliação de forma contínua, cumulativa e sistemática,
visando ao processo ensino-aprendizagem. A avaliação serve para orientar os estudantes em
suas dificuldades, além de direcionar o trabalho dos professores e fundamentar suas decisões.
O resultado da avaliação é bimestral. A análise do processo de avaliação é expressa por meio
dos conceitos: no Ciclo I, NS, em que o aluno evidencia, de modo não satisfatório, os avanços
no seu processo educativo; S e P, em que o aluno evidencia, de modo satisfatório, esse
avanço. Nos Ciclos II e III, são atribuídas notas de zero a dez. Para aqueles que ingressam na
recuperação, são propiciados estudos de reforço e recuperação ao longo do ano letivo, com o
uso de roteiros de estudos. A frequência mínima é de 75%, considerando-se o conjunto dos
componentes curriculares. A promoção ou retenção do aluno ocorrerá por conta da avaliação
e da assiduidade, nos últimos anos de cada ciclo do Ensino Fundamental, regular, e da
Educação de Jovens e Adultos.
Ressaltamos dois aspectos em relação a tudo que envolve os Ciclos de aprendizagem,
quais sejam: o primeiro diz respeito à visão da escola, a partir de sua identidade, no sentido de
permitir que os alunos cresçam de acordo com suas possibilidades. Cada um tem um ritmo e
uma maneira própria de aprender, e este fator é respeitado. Gandin (1999, p. 99) afirma que
“[...] O essencial é uma escola que ajude as pessoas a crescer dentro de suas possibilidades
[...]”; o segundo aspecto é que o contexto social também é respeitado, de modo que a
realidade dos alunos é considerada nas diversas análises da equipe gestora e docentes,
envolvendo discussões diversas, tais como, por exemplo, sobre avaliação e conceito. Ao
considerar o contexto social, o sujeito se torna mais desejante de saber, porque seus
pensamentos, sentimentos e ações podem partir da sua realidade. Bussmann (1985), ao se
referir às reivindicações sobre a melhoria do ensino e da formação básica, destaca a
capacidade de cada pessoa para a construção do conhecimento, na condição de agente, de
sujeito que pensa, age e faz.
Contudo, salientamos uma grande contradição no projeto. A atribuição de notas é um
instrumento da escola e deve ser respeitado. Quando a escola é autoritária, a atribuição de
notas de zero a dez se enquadra perfeitamente dentro de um modelo educativo burocrático e
ultrapassado. Ao contrário, na escola cidadã, se realmente é necessário a atribuição de notas,
em cumprimento à legislação, ela deveria ser apenas conceitual, principalmente quando nos
79

referimos à progressão continuada. Portanto, notas de zero a dez, com efeito, não se encaixam
dentro da proposta avaliativa da escola.

5.15. EQUIPE GESTORA

Não podemos afirmar que o Projeto Político-Pedagógico atinge seus objetivos sem o
trabalho de todos, a união de esforços, a sinergia que envolve o desenvolvimento das práticas
pedagógicas e, especialmente, a ação da equipe gestora. Vasconcelos (2006), no tocante à
equipe gestora, relaciona o desenvolvimento de práticas pedagógicas à postura por ela
adotada. E qual seria essa postura? Segundo o autor, a equipe deve discutir a forma do
exercício do poder, evitando-se a polarização equivocada da postura entre a espontaneidade e
o autoritarismo. A equipe não impõe, ao contrário, propõe, provoca e administra tensões;
confia no grupo, respeita o professor e não o enxerga como irresponsável.
O projeto pedagógico da escola se refere à necessária atuação da equipe gestora, que
deve agir como um elo de ligação entre os segmentos da escola, vivenciar o Projeto Político-
Pedagógico e interagir com os membros da comunidade. Portanto, o trabalho da equipe deve
se voltar para a associação com a comunidade, a fim de derrubar o muro simbólico que a
separa da escola, objetivando a educação integral das crianças, jovens, adultos e idosos.
Medel (2008) esclarece que, na medida em que a equipe gestora e a comunidade se propõem a
conhecer a escola, é possível perceber de modo inconsciente o desejo de mudança. Deste
modo, as pessoas relatam como enxergam a escola ideal, relacionando essa visão ao lugar que
ocupam na escola. Por exemplo, os profissionais da limpeza desejariam um ambiente mais
limpo, os da secretaria, uma maior organização, os alunos, um recreio mais prolongado e, os
professores, a ampliação da disciplina.
As obrigações da equipe gestora são extensas e, dentre elas, o projeto traz a
necessária atenção à transparência das atribuições previstas no Regimento, a criação de
condições para um processo ensino-aprendizagem adequado à realidade dos alunos e a
atuação junto ao Conselho de Escola e à Associação de Pais e Mestres. Além disso, a equipe
gestora possui como incumbências: coordenar projetos; atender a pais, estudantes e
professores; promover reuniões e organizar atividades, como a Caminhada pela Paz. “É
fundamental a participação constante da direção nas reuniões pedagógicas semanais, pois
assim tem oportunidade de ouvir e expor argumentos, conhecer por dentro a realidade da
escola, enfim acompanhar o processo [...]”. (VASCONCELOS, 2006, p. 62).
80

5.16. DOCENTES

Os docentes da EMEF Campos Salles têm um grande diferencial em seu trabalho,


que se resume na ação em grupo. O professor trabalha em conjunto, no âmbito da proposta
pedagógica e democrática oriunda do Projeto Político-Pedagógico. Baseado no Plano de
Gestão, no Plano de Curso da Escola e na Proposta Pedagógica, o núcleo docente tem o
objetivo de elaborar os Planos de Ensino. É também sua atribuição: o desenvolvimento de
atividades relacionadas ao processo ensino-aprendizagem; participação nas horas de estudos
dentro da escola (Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo – HTPC); e cumprimento da sua
proposta pedagógica. O trabalho docente se estende à participação em reuniões com as
coordenadoras, privilegiando o mencionado trabalho em grupo, acompanhando e avaliando os
estudantes.
A participação deve ser ativa em tudo o que se faz, principalmente na elaboração de
um projeto. A participação coletiva não é uma regra geral para as escolas e, por esse motivo,
há indícios de que os resultados não são os melhores para a educação. Segundo Vasconcelos
(2006), há casos em que o educador não participa da elaboração de textos do projeto que, via
de regra, são realizados por professores de Português, História e Filosofia, além da equipe
gestora. O texto, por fim, é apresentado ao coletivo, mas é aprovado sem questionamentos. O
sujeito se faz presente na construção, mas não acredita nele apenas porque tomou parte,
porque não questiona e termina cedendo aos caprichos da equipe gestora. Acredita que nada
do que foi escrito será objeto de transformação na escola. Entendemos que, neste caso, a
proposta educacional é mera formalidade, a ser cumprida sem entusiasmo e sem o desejo de
mudanças.
Ao contrário, no Projeto Político-Pedagógico da EMEF Campos Salles, o professor
não é o centro, mas goza de confiança e é valorizado, principalmente porque sua palavra e
opinião não são vazias. É considerado como sujeito histórico e não é tratado de forma
infantilizada. Não é o dono do saber, mas é um professor cidadão. A ele é confiada a
educação dos alunos dentro dos princípios de autonomia, responsabilidade e solidariedade.
Vasconcelos (2006), ao se referir à maioria das escolas, afirma que em várias situações a
equipe gestora se refere aos docentes como seres acomodados, resistentes e incompetentes, ao
invés de analisá-los como sujeitos históricos e, dessa forma, contraditórios como quaisquer
outros. Ao contrário, não se percebe na escola essa linha classificatória.
81

É interessante que se confie aos professores o bem mais precioso do sistema de


ensino (os alunos) e depois trata-se estes mesmos professores de forma infantilizada.
A confiança é um daqueles fenômenos psíquicos que se dá no campo contágio: a
percepção por parte de um sujeito, da confiança do outro encorajá-lo, levá-lo baixar
(ou sequer levantar) as barreiras de proteção e possibilitar um encontro mais
autêntico (VASCONCELOS, 2006, p. 54).

5.17. PROPOSTA EDUCACIONAL

O acompanhamento, o controle e a avaliação da proposta educacional – como o


trabalho pedagógico, a equipe escolar e o Projeto Pedagógico – ocorrem por meio das ações
participativas e coletivas, incluindo-se os responsáveis pelo processo ensino-aprendizagem.
Esse acompanhamento sistemático e contínuo baseia-se em observações diárias, em trocas de
informações, debates e diálogos. É uma permanente reflexão sobre as metas da escola e
evidencia que esta não é o único espaço educativo. Os serviços educacionais efetivos
asseguram o valor da educação na vida humana e a escola tem a possibilidade de promover
transformações sociais, fortalecendo a cidadania e reduzindo as desigualdades. É a constante
busca de alternativas.

Refletir sobre os rumos da escola exige pelo menos dois tipos de raciocínio: pensar o
que será das escolas se as atuais tendências majoritárias prosperarem e o que pode
ser das escolas se os seus agentes puderem discutir essa tendência e buscar
alternativas [...]. (GANDIN, 1999, p. 63).

5.18. OS PROJETOS

A escola conta com o projeto “Heliópolis, Bairro Educador”, que se afirma no papel
da instituição escolar e das lideranças comunitárias. Os pressupostos do Bairro Educador
estão relacionados ao diálogo entre escola e comunidade e respectivas parcerias que possam
surgir, tanto com as famílias, como com o empresariado, o poder público, organizações
sociais e associações de bairro. É uma nova cultura, que transcende a escola e se associa a ela
visando à educação integral de crianças, jovens, adultos e velhos, de modo a criar condições
para o protagonismo. Ressignificação dos espaços e criação de ações coletivas fornecem o
tom do projeto, bem como a criação de expressões da educação, que se resume em música,
teatro, artes plásticas, dança, cinema, poesia, além da prática esportiva, contribuindo para a
constituição do sujeito e o exercício da cidadania.
82

É uma escola a céu aberto, onde todos estão preocupados com todos, onde todos
respeitam a todos, independente das suas diferenças de qualquer ordem (étnicas,
religiosas, de gênero, etc.); [...], onde se constrói uma cultura da paz [...] (PROJETO
POLÍTICO – PEDAGÓGICO DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES, 2015,
p. 48).
83

6. PESQUISA DE CAMPO

Os estudos atuais sobre Wallon nos conduzem a uma reflexão, nos meios educativos,
em relação à importância da afetividade no ambiente escolar, principalmente porque suas
conquistas são captadas pelo cognitivo. Quando um docente acolhe de modo afetivo um
aluno, abre espaço para que esse educando verbalize a respeito de sua vivência,
principalmente no meio familiar. Essa postura docente favorece a boa aprendizagem porque o
discente recebe ajuda para superar seus problemas emocionais, além de se estabelecer uma
relação humana e respeitosa entre ambos. Quando um professor é afetivo com o outro
professor, seu colega de trabalho, ele promove uma aproximação baseada em sentimentos e
emoções. Tal fato conduz a uma união e, por conseguinte, favorece o trabalho compartilhado.
Com o auxílio da coleta de dados, verificar o impacto da afetividade no ambiente escolar, ao
longo da história da EMEF Campos Salles, foi determinante para desenvolvermos nossa
análise e reflexão, com base na categoria afetividade e suas intersecções com as
subcategorias: ambiência, espaço, docência e discência. Antes de iniciarmos nossa análise e
discussão, montamos uma caracterização ou perfil dos entrevistados, extraído das respostas
que obtivemos durante as entrevistas com as seis professoras, com as coordenadoras e o com
o ex-diretor da escola, a fim de balizar nossas considerações.

6.1. PERFIL DOS ENTREVISTADOS

O ex-diretor da EMEF Presidente Campos Salles, que exercia, na ocasião da


entrevista, a função de diretor da Diretoria Regional de Ensino do Ipiranga – DRE/Ipiranga,
professor Braz, nasceu na roça e seu pai um era sem-terra. Estudou em uma escola rural e
precisava percorrer vários quilômetros, a pé, para ir e voltar de sua casa até essa escola. E,
como nesse local só havia turma até o 3º ano, ele teve de ir estudar em Auriflama, cidade no
Noroeste do Estado de São Paulo, localidade em que morava um tio seu e onde completou os
estudos primários e permaneceu até o meio do 3º ano do Ensino Médio.
Nesse período, morou em sete casas diferentes e, de uma delas, foi mandado embora.
Contudo, não voltou para a roça; procurou outra casa para viver, onde pudesse continuar seus
estudos. Sentia-se muito mal porque, àquela época, era difícil uma pessoa das classes mais
pobres estudar. Ali, convivia com filhos de comerciantes, de fazendeiros, de sitiantes e era um
dos mais pobres, precisando ficar na casa dos outros para poder prosseguir com os estudos.
84

Desejou ser oficial aviador e acabou entrando na Academia Militar de Pirassununga.


Desistiu de seu desejo porque se decepcionou com o tratamento recebido no ambiente militar.
Em Auriflama, ajudava o padre a rezar a missa, a fazer as leituras durante a liturgia e até dava
hóstia e comunhão. O padre, então, convidou-o para vir para o município de São Paulo, na
Av. Nazaré, no seminário, segundo ele, de nome “Paulo Paulitano”. Ele aceitou, mas se sentiu
perdido, pois, quando começaram as aulas, tinha dificuldades com a matemática. Aos
sábados, andava cerca de 30 km para ir ver sua família. Estava sentindo muita dificuldade,
pois não compreendia o que os professores e outros alunos falavam durante as aulas de
matemática. Adquiriu segurança aos poucos, sentiu-se quase normal e, assim, começou a
estudar mais e com mais entusiasmo. Com o passar do tempo, não queria mais ser padre, mas
teve dificuldades para se desligar do seminário, porque suas despesas eram pagas pela diocese
de Jales. O padre reitor o mandou embora e ele saiu do seminário com diploma do curso de
Filosofia, licenciatura em Estudos Sociais, Psicologia e com o curso incompleto de Teologia.
Procurar trabalho foi um calvário e, pelo conjunto das dificuldades que a vida lhe fez
experimentar, tentou suicídio, mas desistiu e se tornou professor.
Em 1977, no bairro da Mooca, lecionou Filosofia na escola “C.M.D.C.”, e Estudos
Sociais numa escola da prefeitura, na “Leão Machado”. Posteriormente, deu continuidade ao
seu trabalho na escola “Sílvio Martim Pires”, em que permaneceu por quinze anos. Ele
lecionava por meio de aulas expositivas e explicativas, com o apoio de jornais velhos e textos
que os próprios alunos traziam. Sua intenção não era sair da sala de aula, mas fez Pedagogia e
prestou concurso para diretor. Sua primeira escola como diretor concursado foi a EMEF
Presidente Campos Salles. Ele se lembra de uma pessoa, que estava na fila de escolha das
vagas para os concursados, que lhe disse: “Não escolha essa escola de jeito nenhum, pois ela
atende à favela de Heliópolis. Um bando de marginal, baderneiro. Se você for pra lá, vai
sofrer demais”. Atualmente ainda é diretor lá, mas, no momento, encontra-se afastado, depois
de atuar por vinte anos na escola. Conta também com dezenove anos seguidos de docência, e
faz um ano que está na DRE/Ipiranga. A relação professor-aluno foi ampliada e ainda mantém
vínculos com discentes e articulações com pais e lideranças comunitárias.
Amélia Arrabal Fernandez nasceu em São Paulo, no bairro do Ipiranga.
Profissionalmente, sempre esteve ligada à Secretaria Municipal de São Paulo; é coordenadora
pedagógica da EMEF Campos Salles há dez anos. Apaixonada pelo trabalho, é formada em
Pedagogia, com Especialização em Educação e Gestão Democrática. Foi professora, a partir
de 1977, em escolas da prefeitura de São Paulo, nas quais trabalhou por alguns anos,
85

acumulando a docência e a coordenação em escolas distintas. Anteriormente, trabalhava em


uma escola na zona leste e vivia descontente com o sistema das escolas tradicionais. Começou
a procurar uma escola que tivesse algum projeto diferente e em processo de transformação.
Primeiramente, tomou conhecimento do projeto da EMEF Desembargador Amorim Lima, no
Butantã, no entanto, era muito distante de sua residência. Em seguida, conheceu o projeto da
EMEF Campos Salles por meio da mídia, pelo qual se interessou tanto pela proximidade da
escola como por seu projeto com a comunidade. Esses foram os motivos que a conduziram à
escola, mas, àquela época, ainda não havia a implementação do projeto.
A coordenadora pedagógica Daniela tem quarenta anos e nasceu na capital paulista.
Ela concluiu o magistério em uma instituição particular e, posteriormente, fez o curso de
Física na PUC-SP, época em que já trabalhava com educação infantil. Graduou-se também em
Pedagogia, tem Pós-Graduação em Psicopedagogia e Especialização em Educação Especial.
Passou por várias escolas particulares e ingressou como professora na rede de ensino
municipal em 2008, assumindo uma turma de SAI (Serviço de Apoio e Acompanhamento à
Inclusão), em 2012. Em 2011, foi aprovada no concurso para coordenadora pedagógica e
tomou posse do cargo em 2012, quando assumiu como coordenadora pedagógica na
prefeitura, mas ingressou na EMEF Campos Salles como coordenadora somente em janeiro de
2016. Como docente, sempre valorizou muito a questão das relações e da resolução de
conflitos numa perspectiva de aprendizado. O principal motivo que a fez vir para a EMEF
Campos Salles, mesmo residindo em lugar distante da escola, foi o fato de lidar de uma
maneira diferente com o conhecimento, com as relações, com os espaços de diálogo e por
fazer parte de uma comissão de mediação de conflitos em assembleias, aspectos estes que a
realizam profissionalmente.
A professora Luana tem quarenta e sete anos de idade e nasceu na cidade de Santo
André, São Paulo. É formada em Magistério, Pedagogia e Psicologia. É pós-graduada, em
nível de Especialização, em escola inovadora. Sua trajetória é diferente das professoras
convencionais. Trabalhou durante quinze anos na área de Recursos Humanos, mas há sete
anos resolveu mudar de profissão para atuar em escolas. Optou pela área da educação porque,
na empresa, teve experiência com a formação e a única diferença era o público-alvo. Porém, o
maior motivo da mudança era a possibilidade de permanecer um tempo maior ao lado do
filho. Exerceu a docência, pela Prefeitura, durante cinco anos, em escolas tradicionais.
Trabalha há três anos na EMEF Campos Salles. Escolheu essa escola em virtude da distância
em relação a sua residência. Não conhecia o projeto e não tinha experiência com uma escola
86

inovadora. No entanto, ao começar a trabalhar, adaptou-se rapidamente por causa do ambiente


escolar, muito diferente das escolas tradicionais. Atualmente, não se vê lecionando em outra
escola.
A professora Laura tem trinta e um anos de idade e nasceu no Estado de São Paulo,
no município de Carapicuíba. É formada em Letras, Pedagogia e Musicalização infantil.
Sempre lecionou em São Paulo, tanto na esfera estadual quanto na municipal. Exerce a
docência há doze anos e está há três anos e oito meses na EMEF Campos Salles. Encontrou,
nas outras escolas em que lecionou, um projeto pedagógico engavetado e um ensino
engessado. Escolheu justamente a EMEF Campos Salles porque, ao contrário das demais
escolas que conheceu, o projeto da escola não está apenas no papel, mas na vivência
educativa.
A professora Paula tem trinta e seis anos de idade e nasceu na Capital paulista. Tem
licenciatura plena em Matemática e Pós-Graduação, em nível de Especialização, em
Ludoterapia. Sempre lecionou em São Paulo, tanto no Estado quanto na Prefeitura e, também,
em escola particular. Exerce a docência há dezessete anos e trabalha na EMEF Campos Salles
há seis anos. O principal motivo que a fez escolher essa escola foi a localização, próxima à
sua residência. Poderia pedir remoção, caso não se identificasse com o projeto, mas ela se
identificou. O principal motivo foi o protagonismo do aluno. Ela entende que, na EMEF
Campos Salles, o aluno é protagonista no processo de educação e o professor não é
responsável por sua educação. A relação é diferente com o aluno porque o professor não é
aquele que apenas despeja conteúdos. Os docentes buscam conhecer todos os problemas que o
aluno possui, o que redunda em um elo entre docentes e alunos.
A professora Cristina tem cinquenta e três anos de idade, nasceu em São Brás,
estado de Alagoas, e é formada em Letras. Sempre lecionou no Estado e na Prefeitura de São
Paulo. Atualmente, é concursada na EMEF Presidente Campos Salles, e também leciona no
Ensino Médio, em uma escola estadual. Exerce a docência há vinte e quatro anos, dos quais,
catorze anos na EMEF Campos Salles. O motivo que a levou a exercer a profissão docente
nesta escola foi a aproximação geográfica em relação a outra escola em que leciona.
A professora Cibele tem cinquenta e oito anos de idade e nasceu na capital do Estado
de São Paulo. É formada em Biologia, com habilitação em Ciências e Matemática para o nível
II. Cursou Pedagogia, com todas as habilitações, e lato sensu em Didática, nos três níveis de
ensino. Sempre lecionou na Prefeitura e no Estado, e está aposentada há oito anos. É
concursada na EMEF Presidente Campos Salles há vinte anos. Exerce a docência há trinta e
87

seis anos. A principal razão pela escolha de lecionar nessa escola se deu por conta da
proximidade com o local de sua residência. Quando chegou, em 1996, nada conhecia sobre a
escola.
A professora Gabriela têm quarenta e cinco anos de idade e nasceu no Estado de São
Paulo, no município de São Caetano do Sul. É formada em Ciências, Matemática e
Pedagogia, com Pós-Graduação, em nível de Especialização, em Ludoterapia. Sempre
lecionou em São Paulo, no Estado e na Prefeitura. Com o nascimento do filho, deixou o
Estado e ficou somente na prefeitura. É concursada e leciona há quinze anos somente na
EMEF Campos Salles. Na docência, são vinte e três anos. O principal motivo que a fez optar
em lecionar nessa escola foi a distância em relação à sua residência. Quando ingressou, a
escola era tradicional e ainda não tinha o projeto que existe atualmente.

6.2. ANÁLISE DAS ENTREVISTAS E OBSERVAÇÕES

A análise das entrevistas realizadas e das observações anotadas formou nossa fonte
de dados para desenvolvermos uma reflexão e abrir nossa discussão sobre a categoria
afetividade e as quatro subcategorias interseccionadas, quais sejam: ambiência, espaço,
docência e discência Nossa proposta é a de apresentar a opinião fragmentada dos
entrevistados, relativa às passagens mais significativas, no tocante ao histórico da escola. A
partir das transformações do ambiente, em termos de emoção e sentimentos. Nosso foco se
intensifica no que concerne aos acontecimentos atuais. As observações são específicas em
relação ao trabalho de três docentes do Ensino Fundamental Regular II, em um salão dos 5os
anos, com cerca de cem alunos, e recaem nas interações existentes.
Em relação ao histórico da escola, anteriormente delineado, há algumas passagens
novamente abordadas, no entanto, a ótica é completamente diferente, porque o epicentro da
reflexão, neste momento, passa a ser a afetividade, baseada nas entrevistas e observações
realizadas. Procuramos mostrar se o Projeto Político-Pedagógico da EMEF Campos Salles é
afetivo e qual é o impacto da afetividade no ambiente escolar, em especial, nas relações e
interações existentes entre professores, entre alunos e entre alunos e professores. Nosso
objetivo específico também é verificar, por meio de nossas observações, se as três professoras
que trabalham no salão são afetivas.
Passamos a um breve comentário sobre a intersecção dessas categorias e sua
caracterização. Na categoria afetividade com a subcategoria ambiência, adaptamos a
88

concepção walloniana ao ambiente escolar. Abordamos a questão dos conflitos, antes e após a
implementação do Projeto Político-Pedagógico. Destacamos as transformações ocorridas para
melhor, inclusive no tocante a sentimentos e emoções. Mostramos os obstáculos a serem
superados e as resistências, principalmente de docentes. Terminamos com o reflexo e
reverberações dessas transformações até os dias atuais.
Na categoria afetividade com a subcategoria espaço, colocamos este como uma
dimensão importante, geradora de conflitos, em grau de importância depois dos conflitos
gerados pela postura docente e pela postura do aluno. O espaço afeta qualquer ambiente,
inclusive o escolar. Na EMEF Campos Salles, o espaço tomou uma importância maior porque
as modificações foram consideráveis. A derrubada dos muros da escola, das paredes das salas
de aulas convencionais, para dar lugar ao surgimento dos salões, assim como a retirada das
maçanetas, representaram profundas alterações para o ambiente e na postura docente e do
aluno, inclusive do ponto de vista psicológico.
Na categoria afetividade com a subcategoria docência, nosso objetivo principal foi o
de relatar o que observamos a respeito do atual trabalho docente. São nossas observações no
salão, com foco nesse trabalho e na interação com os alunos do salão. Além dessas
observações, inserimos passagens das declarações dos entrevistados sobre esse trabalho.
Mostramos o modo como funciona o trabalho docente compartilhado e suas implicações com
as emoções e sentimentos. Na categoria afetividade com a subcategoria discência, mostramos
as interações dos alunos no salão e na Comissão Mediadora, a partir do trabalho docente.

6.2.1. A afetividade e a ambiência

Anuncia o Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1988):


“ambiência. S. f. 1. Meio natural ou moral onde se vive; meio ambiente”. Nos ensinamentos
de Wallon, encontramos várias referências à ambiência. Ele atribui grande importância ao
meio, no desenvolvimento da criança. Sempre afirmou que a criança é um ser social, desde
seu nascimento, rejeitando a oposição entre o orgânico e o social. No entanto, Dantas (1983)
nos esclarece que, na época em que Wallon qualificou o recém-nascido de ser social, causou
profunda estranheza no ciclo de alguns grandes educadores. Para fazer tal afirmação seriam
necessárias extensas reflexões, de modo que a visão à colocação de Wallon era a de uma
redução do social ao biológico. Wallon admitiu que poderia ser exagero qualificar a criança
89

como ser social desde o seu nascimento, mas, com certeza, ela é um membro da sociedade,
um ser primitivo orientado para ela.
Adaptamos o conceito de ambiência, em Wallon, para o ambiente escolar. O
ambiente escolar é fundamental para o desenvolvimento da criança, tanto o afetivo como o
cognitivo. Werebe e Nadel-Brulfert (1986) entendem que a criança precisa do meio escolar
para se desenvolver, pois ela não deve receber apenas a ação do meio familiar. O meio
familiar é uma oposição à criança e ela tem dificuldades para se libertar. Na escola, o meio é
mais rico e diversificado, oferecendo à criança a oportunidade de conviver com outras
crianças e com adultos. A ambiência, em Wallon, assume proporções consideráveis e
complexas. Não é nossa intenção tal aprofundamento. O fato de adaptarmos a ambiência para
o contexto escolar, possibilitou-nos uma visão mais ampla, no sentido de que, dentre suas
várias dimensões, poderíamos melhor enxergar os conflitos gerados e a manifestação de
emoções e sentimentos.

6.2.1.1 Conflitos

São muitos os aspectos que impactam o ambiente escolar, deixando-o agradável ou


desagradável, a depender do tipo de afetividade que se estabelece. Destacamos um aspecto
fundamental, que emerge constantemente em um ambiente escolar: os conflitos. Quais os
fatores que desencadeiam conflitos? São muitos, mas destacamos os dois principais, a saber:
primeiramente, a postura docente. O professor que não deseja ensinar, que é centro de tudo e
carrega consigo a sua própria concepção de educação é um grande desencadeador de
conflitos; em segundo, a postura do aluno. Em uma escola, o que há de mais importante é o
aluno ou, ao menos, deveria ser. O aluno que não deseja aprender é, quase sempre, aquele que
não é respeitado e não é sujeito de direitos. Sendo assim, é um outro grande desencadeador de
conflitos.
Os conflitos são presença garantida em qualquer meio ambiente, inclusive o escolar,
em especial nas interações entre alunos, alunos com professores e entre professores. Portanto,
entendemos que a escola precisa de um bom planejamento para contemplar esses aspectos, e
não apenas dar importância exclusiva aos conteúdos, ainda que estes sejam necessários.
Precisamos traduzir esse planejamento em termos práticos, abarcando as dimensões que
afetam o meio ambiente para melhor ou para pior, gerando prazer e desprazer nos alunos e
nos professores. “Em termos práticos, isso significa que o planejamento das atividades
90

escolares não deve se restringir somente à seleção de seus temas, isto é, do conteúdo de
ensino, mas necessita atingir as várias dimensões que compõem o meio”. (GALVÃO, 2014, p.
101).
Podemos considerar os conflitos como uma das principais dimensões que afetam o
ambiente escolar e, consequentemente, a manifestação da afetividade. Galvão (2014) afirma
que existem algumas categorias de conflitos. A primeira é a oposição sistemática ao professor,
individualmente ou em grupo; a segunda diz respeito às dinâmicas dominadas por agitações e
impulsividade motora, em que professores e alunos perdem o controle da situação. Nossa
compreensão é a de que, nessas oposições e dinâmicas, podem ocorrer a manifestações de
emoções desagradáveis porque, de alguma maneira, todos são afetados. “Atividade
eminentemente social, a emoção nutre-se do efeito que causa no outro, isto é, as reações que
as emoções suscitam no ambiente funcionam como uma espécie de combustível para sua
manifestação”. (GALVÃO, 2014, p. 64).
A escola é reprodutora dos valores da sociedade. Geralmente, quando ela reproduz as
injustiças sociais, muito comum em escolas conteudístas, as crises e conflitos podem se
agravar. Dado que os professores são obrigados a despejar conteúdos e, os alunos, a obedecer
e fazer cópias intermináveis, o ambiente se torna muito desagradável e, por vezes,
insustentável. O professor que não quer ensinar, geralmente se fecha em sua disciplina e não
vivencia outro mundo senão o próprio. Gandin (1999, p. 35) afirma, a esse respeito, que: “[...]
cada um deles é um especialista de sua matéria e aos demais não cabe mais do que respeitar e,
por sua vez, ‘dar’ bem a sua matéria”.
Eis o retrato dessa situação na voz da coordenadora: “[...] antes deste projeto,
quando a escola era tradicional, a relação do estudante com o conteúdo era uma relação de
cópia, o estudante fazia cópias da lousa, cópias que nem sempre ele dava conta de fazer e, a
cada quarenta e cinco minutos, entrava outro professor, apagava tudo o que o estudante
estava copiando: ‘Não, agora é a minha aula!’ e tudo era desconectado [...]” (Amélia).
A partir desse contexto, adotamos um termômetro a fim de verificar a intensidade
dos conflitos nas relações e nas interações, bem como o impacto da afetividade, com especial
atenção à emoção e aos sentimentos. Trouxemos o pretérito da EMEF Campos Salles um
pouco mais perto de nós, para mostrarmos as transformações significativas ocorridas no
ambiente, a partir de 2005, data da implementação do novo Projeto Político-Pedagógico.
De modo geral, como era o ambiente escolar da EMEF Presidente Campos Salles
antes de seu Projeto Político-Pedagógico inovador? O ambiente era desagradável, repleto de
91

conflitos mal-administrados e emoções que geravam desprazer e mal-estar. A escola tinha


como metodologia de ensino a aula expositiva, em salas convencionais, num espaço que
causava repulsa. Havia a supervalorização dos conteúdos, em detrimento da afetividade, e o
professor era o centro de quase tudo. Este professor perdia o controle das situações, sentia-se
desestimulado e, via de regra, não tinha vontade de ensinar. Do outro lado, havia o aluno,
cumpridor de ordens, desinteressado em aprender, desengajado e visto como um ser fraco e
incapaz; um ser menor e incompleto.
Assim o ex-diretor descreve o antigo ambiente escolar: “Quando entrei lá, levei um
susto, porque tinha um mundo lá dentro que fora não se via. Diariamente, aconteciam de
cinco a seis brigas, entre alunos e não alunos, de arrancar sangue um do outro. Tinha
verdadeiras redes de intrigas. Quando ocorria uma briga, duas plateias se formavam. Uma
incitava o João a brigar com Pedro e a outra que incitava o Pedro a brigar com o João. Era
época das chacinas em Heliópolis. Quando falavam que iam matar 14, matavam 18. Hoje
ameaçam matar, mas não matam; lá falavam e matavam. Era uma escola muito violenta. A
relação professor-aluno também muito violenta. Algumas pessoas achavam que tinham que
chamar a polícia, outros eram contra isso. Peguei brigas homéricas de uma coordenadora
pedagógica que defendia os alunos em qualquer situação, até sem princípio, e aqueles que
achavam que o aluno tinha que ser tratado como caso de polícia. Diante dessa situação,
ou você se manda ou você fica” (Braz).
Àquela época, a escola não tinha uma identidade. O professor não trazia consigo uma
única concepção de educação; não havia espírito de grupo e cada um procurava fazer aquilo
que achava correto, em termos de prática educativa. A coordenadora vivenciou esse
momento: “mas quando cada professor ia para a sua salinha e fechava sua porta,
instaurava-se a pedagogia da maçaneta e, aí, cada professor, com as suas concepções, tinha
uma concepção de escola na sua cabeça [...]” (Amélia).
O ambiente do professorado era de mal-estar e desprazer, além do individualismo
reinante durante o trabalho docente. Este profissional não sabia para onde ir porque não tinha
um objetivo, não havia um espírito coletivo e a escola não tinha uma identidade com um perfil
democrático. A outra coordenadora assim relata a questão da identidade da escola: “Toda
escola precisa ter uma identidade, precisa ter, precisa ter um norte... que as pessoas saibam
para onde que esse coletivo está querendo chegar. Todas as escolas têm problemas, claro, a
gente lida com ser humano e com a formação do ser humano. Então, vão existir muitos
conflitos [...]” (Daniela).
92

O professor andava em círculos, a educação se encontrava comprometida e as


relações e as interações estavam praticamente destruídas. Temos a declaração de duas
professoras que atestam tal situação. A primeira faz alusão à distância entre alunos e
professores: “[...] vivíamos dando ‘murros em ponta de faca’. A educação em si, estava
degringolando cada vez mais; havia grande divergência entre alunos e professores e
incompatibilidades na questão dos tempos antigos aos tempos contemporâneos. Percebíamos
que havia uma distância muito grande entre alunos e professores e, para resolvermos essa
questão pedagógica, teríamos de trabalhar no sentido de uma aproximação maior entre esses
polos tão importantes na escola, que é o aluno e o professor. Vivíamos em um sistema em que
os alunos estavam na posição de aprender e o professor na posição de ensinar, quando na
verdade, o ser humano aprende sempre com o outro.” (Cristina); a segunda acrescenta algo
mais objetivo em relação à atitude que deveria ser adotada: “‘O ensino está ruim!’, mas não
se fazia nada. Então, resolvemos ‘chutar o pau da barraca’” (Cibele).
Após a superação dos momentos de grande violência, permaneceu na atmosfera
formada a ideia e o desejo de profundas mudanças simplesmente porque o ensino não era bom
e não trazia bem-estar, nem para alunos, tampouco para professores: “A escola, naquela
época, já tinha avançado em relação às questões da violência, já tinha passado, por conta
dessa integração, porém, a verdade é que as coisas na sala de aula não rolavam, os
estudantes não estavam aprendendo segundo aquilo que se considerava o que era aprender.
A questão é que se tentavam novos caminhos, novas concepções, novas práticas pedagógicas
e se discutia, nos horários coletivos [...]” (Amélia).
Em nome dessa Pedagogia mais interativa e construtiva referida pelo autor, os
gestores e alguns professores, diante de um quadro generalizado de conflitos, violência e
afetividade negativa, procuraram uma alternativa a fim de transformar o ambiente escolar,
haja vista que não era mais suportável e desejável a permanência desse estado de coisas.

6.2.1.2. As transformações do ambiente escolar

A escola, realmente, precisava mudar. O modelo da escola tradicional não


funcionava e não respeitava a história de vida de seus alunos. “A escola tradicional vem
formando zumbis alienados e a escola tradicional não vem nem formando as pessoas para o
mercado de trabalho nem para a vida, nem uma coisa nem outra. Porque estamos com
carência, com falta de pessoas que saibam exercer liderança, porque, na escola tradicional,
93

não é permitido sentir, não é permitido sentimentos, emoções, não é permitido divergir, não é
permitido escolher. Onde está o exercício de aprender a decidir? A tomar decisões?”.
(Amélia).
Os motivos que conduziram a EMEF Campos Salles a reestruturar seu Projeto
Político-Pedagógico estão também vinculados à participação da comunidade e da sua vivência
com a escola. O antigo isolamento cedeu lugar a uma união estável. Escola e comunidade
juntas: “[...] foi a própria vivência da comunidade junto à escola. A partir dessa união, surgiu
um PPP efetivamente verdadeiro, que realmente é colocado em prática, aonde a comunidade
e escola caminham juntas, aonde a comunidade vem para a escola falar das coisas que
acontecem lá e a escola vai à comunidade falar que precisa de uma ajuda com algum
estudante; enfim, existe uma ‘liga’[...]” (Luana).
Na visão de outra docente, o modelo de aula tinha que ser mudado, e aponta o
motivo da reestruturação. Ela entende o aluno como ser integral. Um ensino de Wallon: “[...]
se deu pelo fato de não acreditar mais que o modelo de aula dada, inclusive dada ainda em
outras escolas, pudesse sanar todo o processo educacional, ou seja, que é ver um indivíduo
não somente como uma pessoa ‘quadrada’, aonde abre sua caixa de pensamento e insere
conteúdos, mas que observa essa criança/adolescente integralmente” (Laura).
O então diretor pesquisou projetos pedagógicos alternativos e encontrou no projeto
da Escola da Ponte, em Portugal, sua maior inspiração para implementar um novo Projeto
Político-Pedagógico, com caráter democrático e inovador. Romão e Padilha (2012) se referem
à figura do diretor de escola como um educador, por conta de sua função pedagógica e social,
que lhe exige competências. Em sua gestão, deve articular os diferentes segmentos em torno
do Projeto Político-Pedagógico, em nome da organização da escola e de seu aspecto social.
Ele deve sempre ter uma liderança democrática e dividir as decisões com professores, com
alunos, pais de alunos e com todos da comunidade. A integração foi exatamente a busca do
então diretor da EMEF: “Essa integração que busquei desde o início com a comunidade foi
uma integração no sentido de que os problemas da comunidade são problemas da escola e
vice-versa”. (Braz).
Com o espírito de liderança ativado, o diretor, a coordenação e os professores da
época, isto é, de 2005, fizeram o novo projeto nascer: “[...] o diretor Braz e as coordenadoras
da época e professores que aqui estavam foram pesquisar projetos inovadores, pesquisaram
vários, mas aquele que fez sentido, para quem estava aqui, na época, foi a Escola da Ponte. A
Escola da Ponte inspirou esse novo projeto. Porque aquilo que acontecia aqui não era mais
94

significativo nem para educadores nem para estudantes: era um nada, era uma prisão ali,
onde cada grupo fica em uma cela, com aquela porta trancada e cada um que entrava...
Então, toda essa segmentação, toda essa... nada disso fazia sentido mais para todos que aqui
estavam, foi quando começou a nascer um novo projeto inspirado nos princípios da Escola
da Ponte.” (Amélia).
“[...] então a gente vê muitos estudantes, quando saem daqui e vão para o ensino
Médio, dizendo: ‘Ah, eu estou me sentindo em uma prisão, porque agora a gente fica em uma
sala de aula, com tudo fechado, com porta fechada’ [...]” (Amélia). A coordenadora se refere
a uma prisão, esta era a relação do estudante com outra escola. Colocamos a palavra em seu
sentido próprio e no figurado, e procedemos a uma adaptação aproximada dos significados.
No sentido próprio, nada fazia sentido porque, no Ensino Médio, os alunos e professores
viviam confinados nas salas, em uma prisão temporária, com as práticas pedagógicas
paralisadas; no sentido figurado, a prisão remete à ideia de tristeza e angústia provocada pelo
engessamento dessas práticas e pela divisão dos grupos. Primeiramente vem a tristeza,
posteriormente, a angústia. Um campo propício para o desenvolvimento de conflitos.

6.2.1.3. Os obstáculos à mudança

Os obstáculos à mudança passam por questões relacionadas ao espaço, à própria


legislação e às inúmeras resistências, não somente dos professores que foram embora, mas
daqueles que ficaram e tornaram mais difíceis as transformações. A resistência à mudança
ocorreu de forma mais potencializada no início, e é possível que permaneça – ainda que de
forma minimizada – nos dias atuais. Alguns professores se apegavam à própria concepção de
educação para rejeitar o novo projeto. Há vários indícios de que carregavam, inclusive, o
completo desrespeito à história de vida dos alunos, e se mantinham avessos aos aspectos
humanos: “[...] Vou te contar algo reservado. Havia uma professora na escola, que dava aula
na primeira série. Se minha filha fosse estudar com ela, eu a deixaria na rua ou em qualquer
outro lugar, pois minha filha ia ganhar muito mais. Essa professora provocava um mal nos
seus alunos. No ano anterior, os alunos dessa professora estavam com outra professora e as
coisas fluíam normalmente, as coisas caminhavam. Mas, com ela, aconteciam revoluções.
Era pai/aluno reclamando. Essa professora cuidou de uma formatura e, nesse dia, ela
mandou uma aluna embora por causa da roupa que estava vestindo. Eu soube disso no dia
seguinte. Havia uma família inteira chorando na minha sala. Se aquilo fosse divulgado pela
95

mídia, destruiria nosso projeto. A roupa que a menina vestiu era a que ela achou mais bonita
na casa dela.” (Braz).
Em contrapartida, o então diretor não se encontrava sozinho. Mesmo com a grande
coragem demonstrada, não conseguiria transformar a escola sem a ajuda de vários professores
que permaneceram na escola e contribuíram para que tudo ocorresse da melhor maneira
possível: “Há dez anos, os principais obstáculos para implementação do PPP na Campos
Salles, primeiramente se deu pelo fator do espaço físico, pois derrubar uma escola
municipalizada não é fácil. O diretor teve de dar um passo além daquilo que era permitido.
Se ele tivesse medo e não tivesse um amparo da equipe de professores que atuaram naquela
época e da comunidade, isso não seria possível. Outro obstáculo ocorreu com os professores
à época, pois muitos pediram remoção, porque muitos eram acostumados a serem donos de
um específico saber/especialização”. (Laura).
Gandin (1999) esclarece que a participação é uma grande questão do mundo atual e é
uma necessidade com a qual qualquer cidadão concorda, independentemente da tendência
política, da ideologia e das crenças dos envolvidos. Tal ato conduz a um pensamento claro na
direção da transformação da sociedade, menos individualista e mais grupal, com majoramento
da consciência pessoal e coletiva. Tal majoramento, no sentido da transformação do ambiente
escolar, tendo como principal instrumento o novo Projeto Político-Pedagógico implementado,
não ocorreu rapidamente. Tudo aconteceu gradativamente até a conformação atual. Implantar
a nova consciência coletiva requer muita paciência e dedicação: “[...] Não foi apenas pensar
em derrubar as paredes e no outro dia estava feito, foi a longos passos. Você está há anos
acostumado com aquela educação tradicional, com sua salinha de aula, onde o professor
acha que a sala é dele; portanto, foi muito difícil compreender que teríamos essa derrubada
das paredes, não entendíamos como ia ficar toda essa estrutura, assustava-nos [...]”.
(Gabriela).
“[...] Não houve muito obstáculo para a implementação do Projeto. Como a
comunidade faz parte da escola, todos perceberam a necessidade disso, despertou uma
consciência em todos”. (Paula). Não há unanimidade entre os professores entrevistados acerca
deste aspecto. Uma professora afirmou que não houve muitos obstáculos, contrariando as
evidências e o fato de que a simples implementação de um projeto não pode ser traduzida em
transformações imediatas, justamente em decorrência dos obstáculos. Desde o seu
nascimento, o projeto passa por constantes alterações e adaptações, e os entrevistados
apontam para vários tipos de obstáculos: “O principal obstáculo, para a implementação do
96

PPP vigente, foi a burocracia, pois não se podia derrubar as paredes sem a autorização da
Secretaria de Educação”. (Cibele).
Contrário à opinião da minoria dos docentes que afirmam não ter havido muitos
obstáculos, o posicionamento do ex-diretor é categórico ao afirmar que existiam muitos
obstáculos. Ele, inclusive, foi afetado pelo ambiente e por sentimentos desagradáveis, por
conta da situação reinante, mesmo logo após a implementação do projeto. É assim que relata
seu sofrimento: “[...] Depois de dois anos de sofrimento e de não dormir direito, pensava no
que podia fazer para dar certo. Cheguei à conclusão que tínhamos que tirar as paredes
quando o professor se sentisse seguro. Se tivesse tirado as paredes em 2005 poderia ter se
instalado o caos. Depois de dois anos, percebi que tinha que interferir, mas não sabia como.
Em uma noite, decidi chamar aqueles professores que vestiam a camisa, que gostavam de
gente, que tinham paixão, independente se o cara era tradicional, se era progressista.
Cheguei em 15 pessoas e falei que estava muito triste, que achava que a gente não tinha
caminhado em nada e que queria saber se eles bancariam se eu tirasse as paredes. Alguns
ficaram assustados, pois não sabiam o que iam fazer. Mas, depois de muita conversa,
aceitaram. Então, os alunos saíram de férias no final de 2007. Eles (alunos, pais e
professores) estavam cientes que, no retorno das férias, não encontrariam mais duas salas de
aula, mas quatro grandes salões. Aí começou o projeto de verdade [...]”. (Braz).

6.2.1.4. Os efeitos da implementação do Projeto Político-Pedagógico

A implementação do Projeto Político-Pedagógico da EMEF Campos Salles foi um


marco para a transformação do ambiente. Não obstante os obstáculos que surgiram após essa
implementação, a escola sentiu a completa modificação provocada no ambiente. Ocorreram
significativas alterações no espaço, com a derrubada dos muros da escola, a derrubada das
paredes das salas de aulas e a retirada das maçanetas, para o surgimento dos enormes salões.
O trabalho docente sofreu significativas alterações. Werebe e Nadel-Brulfert (1986), Wallon
foram inequívocos ao afirmarem que os métodos pedagógicos não podem ficar dissociados
dos objetivos educativos, tampouco da sociedade; não é possível uma renovação educacional
se o edifício escolar é obsoleto.
O antigo professor autoritário cedeu lugar ao professor humanista e cidadão. Nas
atividades escolares e na sala de aula (posteriormente, salão), o aluno passou a ser respeitado,
a ser visto como um sujeito de direitos, autônomo, capaz de construir o conhecimento próprio.
97

Com essas alterações principais, os conflitos foram minimizados, incorporados e


administrados. “[...] O conflito tem que ser incorporado, tem que trazê-lo para dentro das
relações, para dentro da estrutura, ele não pode ser encarado como uma coisa ruim. Tem que
ser encarado como uma possibilidade que leva ao amadurecimento, que leva a aprofundar, a
avançar, que faz com que o movimento continue. Sinto que a gente está dentro desse
processo. Então, tem essa questão da emoção [...]”. (Braz).
Com base nas entrevistas e observações realizadas, podemos afirmar que o Projeto
Político-Pedagógico da EMEF Campos Salles é afetivo. É afetivo porque, após sua
implementação, alterou profundamente as antigas concepções educativas e transformou o
ambiente escolar. O que era um ambiente adverso, com falta de desejo de professores e alunos
em ensinar e aprender, de completo desafeto, foi substituído por um ambiente desejoso de
lecionar e de aprender, de superação de obstáculos, de humanismo, de engajamento, guiado
pelos princípios da escola. Surgia um novo ambiente, impactado pela afetividade, em
especial, pelas emoções e sentimentos agradáveis, presentes nas relações e interações,
principalmente no salão. O projeto resgatou a dignidade da pessoa humana, colocou o docente
em uma nova postura em seu trabalho, uma postura afetiva, traduzida pela troca do solitário
pelo solidário e pelo resgate do valor da amizade.
Essas mudanças movimentaram sentimentos e emoções que foram a mola propulsora
dos desejos de diversos profissionais. Bastos (2011, p. 49) comenta o que Wallon esclarece
em Psicologia e Educação da Infância:

A elaboração de projetos educacionais, o levantamento de questões para


investigação, a problematização dessas questões, e a análise conjunta, são etapas
fundamentais para uma melhor compreensão dos problemas e para a superação
deles. A participação de diferentes profissionais nos projetos, desde o momento
inicial de sua construção, favorece a diversidade de olhares sobre uma questão,
enriquece a análise e possibilita um maior engajamento deles diante das questões
levantadas para a investigação. (BASTOS, 2011, p. 49).

6.3. A AFETIVIDADE E O ESPAÇO

Até este ponto, abordamos os conflitos com suas dimensões principais, a partir de
nossa leitura. Acrescentamos a dimensão espacial, em um ambiente escolar, que deve ser
considerada em qualquer proposta pedagógica. O espaço, como uma dimensão que compõe o
meio, tem uma determinada importância na geração de alguns conflitos, a partir do momento
em que atinge as relações. Alunos e professores confinados em salas de aula, com a porta
fechada – e, muitas vezes, trancadas – podem ser afetados por emoções e sentimentos
98

desagradáveis. O espaço pode contribuir para transformar um ambiente em que há


predominantemente manifestações de uma afetividade desagradável, em um ambiente de
afetividade agradável. De modo geral, o espaço físico funciona como coadjuvante na
existência de grandes conflitos e, portanto, merece algum destaque. No entanto, em uma
escola em que as transformações do espaço foram radicais, o impacto da afetividade também
foi maximizado.
Percebemos que o espaço pode gerar conflitos e manifestações afetivas, sejam estas
agradáveis ou desagradáveis, mesmo se eventualmente, de forma equivocada, não o
considerarmos como uma dimensão importante no ambiente escolar. Os problemas
provocados pelo espaço nesse ambiente não são exclusivos de projetos democráticos. Eles
atingem qualquer tipo de escola; a depender da intensidade das transformações, os conflitos
podem ser maximizados. Como exemplo, temos a EMEF Campos Salles, que promoveu uma
alteração radical de seu espaço, com a derrubada dos muros da escola, derrubada das paredes
das salas de aula, para convertê-las em salões, e a retirada das maçanetas.
À medida que conhecemos as transformações do espaço da escola, podemos perceber
a alteração da manifestação da afetividade. Para chegarmos a essa percepção, indagamos:
como era o espaço da EMEF Campos Salles antes da implementação do projeto? Notamos
dois detalhes importantes em relação ao espaço físico: primeiramente, a maçaneta. Um
símbolo, que significava alunos confinados em uma sala de aula, sem direito ao movimento,
sem direito a sair da sala, completamente fechados entre quatro paredes; em segundo lugar,
uma escola fechada e cercada por muros: “Quando cheguei lá, ou se fazia alguma coisa ou se
mandava. A escola ficava cercada por um muro de alvenaria que quem passava na (rua)
Cavalheiro Frontini não via a escola, porque ela ficava em um buraco. Tinha um muro de
alvenaria altíssimo e lá no topo havia estacas de ferro e três fileiras de arame farpado.
Quando entrei lá, levei um susto, porque tinha um mundo lá dentro que fora não se via.”
(Braz).
O espaço físico disponibilizado afeta os alunos e também os professores. A vivência
em um espaço adequado pode contribuir significativamente para a diminuição do surgimento
de conflitos, bem como atenuar os já existentes: “Acho que a questão de um espaço leva o
aluno a ter mais perspectivas, a ter mais sonhos. Há 20 anos, quando se perguntava para um
aluno o que ele iria fazer, o que ele pensava, ele dizia que não sabia. Hoje, todo aluno que
você pergunta, ele pensa em algo para o futuro: ou ele quer ser chefe, ou médico, ou
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veterinário. Acho que essa questão do espaço traz uma liberdade muito maior e a quebra de
certos fechamentos. A própria relação muda.” (Braz).
A queda das paredes também pode ser interpretada como a queda do ensino
tradicional. O ambiente escolar foi, com efeito, impactado e as transformações foram
efetivadas nos salões. Os alunos passaram a exercer a autonomia, a solidariedade e a
responsabilidade que lhes foram confiadas: “[...] há uma possibilidade de transformação do
ambiente e isso acontece em vários momentos durante o dia. Então, de repente, eles
empurram todas aquelas mesas e vão fazer ali uma roda de conversa, rodas de conversa
também acontecem diariamente, então eles mudam ali. De repente, eles resolvem fazer
determinada oficina e eles juntam mesas, duas mesas, duas mesas ou juntam cinco mesas com
cinco mesas, eles interferem na mobília conforme o que eles pretendem fazer e isso,
obviamente que as emoções estão todas, o tempo todo [...]” (Amélia).
Os conflitos, tendo como o pano de fundo o espaço, foram sendo gradativamente
superados. No começo da implementação do novo projeto, a configuração das salas foi
mantida, mas, aos poucos, os alunos foram preparados para as novas configurações. Ocorreu,
em dado momento, a derrubada das paredes: “A derrubada das paredes e a retirada das
maçanetas com a alteração de espaço que transformou as salas de aulas convencionais em
salões representou a queda do ensino tradicional. Foi inovador. Trouxe várias mudanças no
ambiente, psicológicas, na relação do aluno com o professor, na afetividade; essas foram as
principais mudanças.” (Paula).
A derrubada representou também o exercício da autonomia, com responsabilidade e
solidariedade. A solidariedade também chegou por meio da participação da comunidade nas
alterações que se fizeram necessárias no espaço: “[...] Tenho uma foto que estou batendo para
derrubar uma parede com a marreta e teve um momento de reflexão em que cada um falou.
Quando essa foto chegou no ‘Edmundo’, ele disse: ‘Autonomia é o seguinte. Vejam o Brás
com aquela marreta. Não é o braço do Brás que está ali. Aqueles braços representam
centenas e centenas de pessoas dessa comunidade, porque na hora de tirar parede, foi
discutido e conversado extenuadamente com muita gente, então, aquilo ali poderia ser meu
braço, ou do Genário, ou de qualquer um. Autonomia é isso’ [...].” (Braz).
Foi necessário romper barreiras psicológicas (paredes). Os professores foram
conduzidos a uma reflexão profunda sobre suas concepções educativas a fim de terem
condições de abraçar as novas práticas pedagógicas. “[...] A derrubada das paredes físicas e
das maçanetas não foi problemática, porque nos aproximou fisicamente, porém, o problema
100

maior foi romper as paredes internas de cada um. Tantos anos dando aula de um jeito; você
entra na sua sala, tranca sua porta e ali é só o seu mundo, seu universo (você e seus alunos)
e, de repente, você se vê no salão com quase 100 alunos e mais dois, três, quatro colegas de
trabalho. E agora? Como trabalhar isso? Prevalece o seu eu? Prevalece a sua metodologia?
Não, não dá pra ser assim, pois aqui não existe eu, e sim, nós; e esse nós é que foi difícil
desconstruir, foi difícil derrubar as paredes internas. Não tem como trabalhar na Campos
Salles pensando só em você, precisa se pensar na equipe. Então, em termos de afetividade, a
relação entre os alunos melhorou muitíssimo. Você aprende a respeitar as diferenças e as
pessoas começam a te enxergar diferente.” (Cristina).
A derrubada das paredes internas representou a transformação do docente enquanto
pessoa. Um professor com personalidade egóica dificilmente se enquadraria na nova
concepção de educação proposta pela escola; teria dificuldades para trabalhar em grupo, a
partir do momento em que o seu “eu” predomina e é revelado por meio de sua palavra e
postura. O Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1988) define o
significado da palavra egocêntrico: Adj. e s.m. Que ou aquele que refere tudo ao próprio eu,
tornado como o centro de todo o interesse; personalista”. Essa definição mostra que um
professor egocêntrico está mais voltado à sua especialidade e habituado a ser o centro do
universo.
Quando o docente percebe que tem que derrubar as paredes internas, ele pode
abraçar o projeto ou resistir e boicotá-lo. Pode também simplesmente pedir remoção: “[...] já
ouvi até professor dizer que precisou fazer terapia por conta do projeto. Porque não tem
como você transformar sua prática pedagógica, transformar suas concepções sobre
educação e tudo o que a envolve sem se transformar internamente [...].” (Amélia). “[...] Com
o passar do tempo você pode solicitar a transferência de escola, mas optei em continuar aqui,
porque com o desaparecimento das paredes, consegui me relacionar muito mais e bem
melhor com meus colegas. Com isso, tive, também, facilidade em ajudar colegas que não
conseguiam penetrar muito no problema do aluno, pois tinham certa reserva; conseguimos
fazer que uma colega de trabalho se aproximasse mais de seus alunos. O que me facilitou foi
isso - a derrubada de pensamento antiquado, que muitos tinham antes de iniciar o Projeto, e
eu já trabalhava de uma maneira mais livre; então, acabei me adaptando legal, de forma bem
fácil.” (Cibele).
E, para os estudantes, a derrubada das paredes internas significou a possibilidade de
terem voz. A voz está no contexto do protagonismo. Anteriormente, o aluno não tinha voz e
101

não era ouvido: “Para os estudantes, o que representou a derrubada das paredes foi a voz.
Antes eles não tinham voz, só eram um número que estava ali para receber conhecimento.
Hoje, além de terem voz, buscam seu próprio caminho [...]”. (Cibele).
Por fim, mostramos, de forma resumida, o impacto da afetividade em relação ao
espaço – a partir da importância da derrubada dos muros da escola e das paredes das salas de
aula, além da retirada das maçanetas – para os docentes e equipe técnica que abraçaram o
projeto. Em relação ao espaço, quando os muros caíram, a escola pôde ser visualizada, sem
barreiras. O significado psicológico foi o convite a todos, principalmente da comunidade, a
participar do projeto da nova escola, a destruir as barreiras que existiam, a fim de que
houvesse uma grande participação coletiva. Quando as paredes das salas de aula foram
destruídas, o espaço aumentou, de modo que foi possível fazer outras configurações do
mobiliário, para possibilitar a implementação da nova metodologia de ensino. Na percepção
psicológica, essa destruição representou, aos professores da escola, o abandono do próprio
“eu” para se engajar em um trabalho compartilhado, coletivo e solidário, liberto das
disciplinas. Os alunos se tornaram protagonistas, e todo protagonista tem voz.

6.4. A AFETIVIDADE E A DOCÊNCIA

Um questionamento que nos envolveu quando do início de nossas observações foi:


quais as respostas de que um docente necessitaria para educar de forma desejosa e afetiva?
Porém, antes de mesmo de voltarmos às nossas observações, recorremos à Psicanálise, a partir
da leitura de Mrech (2005) sobre esse questionamento, de forma ampliada. Segundo a autora,
para a Psicanálise, o saber não é algo que se repete porque ele tem movimento. É um saber
tecido a partir do saber inconsciente, e não a partir do mestre. Veremos uma educação aberta
para o futuro quando a olharmos como um processo em constante transformação. Nesse
contexto, nas discussões inerentes e nos processos de transmissão, não se nota a preocupação
nos gestores, que optam por acreditar que professores e alunos devam aprender em progressão
geométrica. Gestores que também são detentores das respostas de que os docentes necessitam
para exercerem seu trabalho. Decorre o aparecimento de normas, guias de ação, cartilhas e
livretos. Acrescenta Mrech (2005, p. 27):

Na direção inversa dessas propostas, penso que na verdade a transmissão do saber –


o educar – é tudo menos um processo simples e contínuo. Ele implica uma série de
subprocessos não facilmente decodificados e que precisam ser melhor trabalhados
antes de transformados em guias de ação aplicadas a todos os professores.
102

Na EMEF Campos Salles, a relação do aluno com esse professor da então escola
tradicional era de subserviência. Era um saber tecido a partir do mestre; era uma escola
conteudista que não permitia ao aluno uma única reflexão, apenas a reprodução daquilo que
via e ouvia. “ [...] e tudo era desconectado. Então, essa era a relação. Ele tinha que
responder perguntas sobre... era uma relação onde o professor reproduzia informações para
que o estudante reproduzisse conhecimentos.” (Amélia).
O projeto implementado possibilitou à escola agir na contramão desse contexto e, por
conseguinte, alterar radicalmente o que se entende por transmissão de saber. O docente
vivenciou – em sua relação com os demais professores, com os alunos e com o saber –
alterações significativas para melhor, convertidas em afetividade agradável. Esse novo
ambiente apareceu em nossas observações e também pode ser ratificado pelas professoras
entrevistadas: “[...] O sucesso do nosso Projeto é o trabalho em equipe e o insucesso do nosso
Projeto é também o trabalho não em equipe”. (Luana). Não podemos afirmar que o espírito
de grupo esteja presente em todos os docentes, mas no trabalho docente observado, relativo ao
grupo de professoras do salão, existe, com efeito, uma grande afinidade e respeito, que
contribui para um trabalho compartilhado e solidário, portanto, de manifestação de
sentimentos e emoções agradáveis.
Os professores trocaram o trabalho solitário, muito comum nas escolas tradicionais,
pelo trabalho solidário. “[...] Estamos saindo daquela docência solitária, para uma docência
mais solidária e percebemos isso, muitas vezes, nos primeiros anos quando o professor de
alfabetização ajuda os alunos com dificuldade. Outro impacto que se vê é quando você vai às
escolas e observa o desespero por causa da falta de professor. Na Campos Salles, quando o
professor precisa faltar, ele negocia com os colegas. Se o cara começa a faltar demais, passa
ser problema [...].” (Braz).
Em várias ocasiões, as crianças procuravam os docentes para fazer perguntas,
principalmente quando desejavam autorização para realizar algo que não estava vinculado ao
estudo nas mesas. É comum fazerem a mesma pergunta a todos os docentes até encontrarem a
resposta que desejam. No entanto, os docentes observados falam sempre o mesmo idioma.
Antes de responderem a uma pergunta da criança, procuram tomar conhecimento se ela já
havia feito a mesma pergunta a outro professor. Isso acontece porque, quando um deles
verbaliza com um não a uma criança, a resposta é definitiva. Os demais professores respeitam
a decisão e, assim, não fornecem outra resposta; é um bom exemplo de solidariedade.
103

Outro detalhe importante diz respeito ao planejamento que a criança tem que fazer,
em nome do grupo: “[...] Temos um dispositivo pedagógico que se chama agenda. Todos os
dias os estudantes chegam, sentam e fazem a agenda do dia. O estudante escreve que página
irá usar e que material vai precisar. Um professor passa para verificar quais os materiais
que o estudante elegeu, e os providencia. Assim, nesse momento, o estudante precisa ter
responsabilidade; se ele não fizer o planejamento, não poderemos conferir a ele o material.
Se ele não fizer o planejamento solicitando livros, não podemos conferir a ele tais livros. O
estudante tem que ter responsabilidade e ter em mente que possui uma meta para o grupo,
que não é imposta pelo professor, é escolhida pelo grupo [...]” (Laura).
As três docentes do salão se reúnem no horário de almoço para elaborar os roteiros
integrados e os temáticos. Toda elaboração obedece à legislação vigente, à Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) e às orientações da Diretoria Municipal de Educação –
(DRE/Ipiranga). Os roteiros são utilizados pelos alunos no salão e são seguidos diariamente.
“[...] Todos os professores em conjunto, independentemente da sua especialização, sentam,
conversam e elaboram um roteiro totalmente integrado, onde todas as áreas de conhecimento
se conversam e contemplam os direitos de aprendizagens. Desse modo, esse roteiro passa a
ser tão integrado que não há separação de disciplinas por matérias, pois todo o assunto
engloba tudo [...].” (Laura).
Os assuntos dos primeiros roteiros integrados são escolhidos por meio de voto, na
reunião da Assembleia de Estudantes. Eles escolhem os assuntos que desejam estudar, tais
como super-heróis, lendas urbanas, cinema e outros. Os docentes montam os roteiros a partir
dos temas escolhidos e os encaixam na interdisciplinaridade. Nos roteiros temáticos, os
assuntos são oferecidos pelos docentes e são de relevância social, como o tema “furacão”, em
que foram estudados o seu impacto social e econômico.
Os docentes observados utilizam a ferramenta Google Drive para organizar seus
trabalhos. Existe uma pasta socializada para todos que quiserem visualizar esses trabalhos.
Um salão pode usar o trabalho do outro. Como exemplo, houve uma situação em que a escola
recebeu uma certa quantia para aquisição de bens duráveis, sendo que foi realizada uma
compra de uma mesa de tênis e uma de pebolim. A partir da aquisição, alunos do 8º ano
construíram um tema sobre finanças públicas. Posteriormente, esses docentes adaptaram o
tema para os alunos do 5º ano.
Há, portanto, um diário eletrônico fornecido pela Prefeitura Municipal de São Paulo
para acesso mediante senha. Quando o roteiro está pronto, o docente coloca uma sigla “vc”,
104

para que a coordenadora visualize. Ela é quem autoriza os roteiros para as práticas
pedagógicas destinadas. Os roteiros têm imagens para chamar a atenção, bem como questões
para proporcionar reflexões. Os alunos seguem os roteiros nos salões: “[...] Há grupos que já
estão em seu 12º roteiro, e há grupos que estão no 7º, no 8º, no 9º ou no 10º. Às vezes tem
aluno do 7º roteiro, por exemplo, que solicita o 10º roteiro que sane suas dúvidas. Existem os
roteiros temáticos que são temas específicos, onde os alunos saem do salão o tempo todo e se
dividem em pequenos grupos [...]” (Cristina).
Quais foram as observações, no salão, relativas à organização dos grupos de alunos
realizada pelos professores? Do fundo do salão até a sua frente existem três fileiras paralelas.
As fileiras são compostas por cerca de oito mesas de estudo e cada mesa têm quatro cadeiras.
Chamam-nas de “Estação Tecnológica de Trabalho”; há as três mesas extras que ficam ao
fundo, com os respectivos laptops. Cerca de trinta alunos sentam-se nas cadeiras de cada
fileira. São quatro alunos por mesa, sendo estes considerados uma equipe; no total, são
aproximadamente, noventa alunos no salão. Cada fileira de mesas e cadeiras, com os alunos,
tem um nome. A fileira que fica do lado da entrada da sala é denominada “responsabilidade”;
a fileira do centro, “solidariedade”; e a do lado das janelas, “autonomia”.
Inicialmente, os professores permitem que os alunos escolham em qual fileira e mesa
desejam sentar. O critério é pessoal, predominando o da afetividade. Com o passar do tempo
e, de acordo com as observações que os professores fazem sobre o desempenho dos alunos,
algumas alterações nessas disposições são realizadas. Trocam os alunos de lugares, de acordo
com o ritmo, desempenho e a competência de cada um. Desempenho e competência estão
sempre relacionados aos princípios da escola: responsabilidade, solidariedade e autonomia.
Os professores também interferem quando há o rompimento da relação entre os alunos, no
caso de agressividades e de discordâncias. No entanto, existe sempre um enorme cuidado para
não isolar qualquer aluno e para não rotular certos grupos como sendo mais fracos.
Cada professor é responsável por uma fileira. A programação de estudo do dia fica
escrita na lousa. A depender do dia, os alunos estudam os roteiros integrados ou os temáticos.
Os temáticos são aplicados apenas uma vez por semana. Os docentes passam nas mesas e
fazem as mediações e as correções necessárias, contudo, não fornecem as respostas aos
alunos, que são compelidos a refletir constantemente sobre o assunto que estão estudando.
Para que os alunos da mesa progridam de um roteiro para outro, é necessário que os
professores do salão verifiquem se os objetivos foram atingidos. Em caso positivo, deixam um
105

visto no roteiro considerado concluído e fornecem o aval para o início dos estudos do próximo
roteiro.
Assim é o trabalho docente na EMEF Campos Salles, na visão do ex-diretor: “[...] O
bom professor da Campos Salles é aquele que oferece recursos para que o aluno construa
seu próprio caminho de aprendizagem. O aluno está trabalhando Matemática. Tem lá um
exercício que ele não consegue resolver. Os mais espertos que têm celular e internet podem
olhar no Google. Se resolveu entre eles, resolveu. Supondo que não se resolveu, levanta-se a
mão. O exercício é de matemática, mas o professor é de história. Ele não tem que saber
matemática para explicar, mas tem que saber que, na página tal do livro, tem um exercício
modelo e, se o aluno ler e procurar entender, conseguem sozinhos resolver o problema. Se
não resolver, novamente levanta a mão. Aí o professor pergunta: ‘vocês já olharam no
Google?’. Se não fizeram isso, o professor solicita que o aluno anote e vá olhar no Google.
Então, é dar recursos. É o aluno fazer o seu próprio caminho naturalmente [...]” (Braz).
E qual é a meta para que os alunos possam progredir em relação aos roteiros? A
equipe de alunos tem que avançar como um todo. Um ajuda o outro para que todos cheguem
juntos ao mesmo destino. No caso de os alunos extrapolarem os objetivos, especificamente
quando a apropriação dos conceitos ultrapassar os conteúdos dos roteiros, os professores
podem encaminhá-los à “Estação Tecnológica de Trabalho”, para que realizem pesquisas
mais aprofundadas acerca do tema ou de suas ramificações. Existe também um espaço no
roteiro destinado à autoavaliação de desempenho, no qual eles são obrigados a escrever ao
final dos trabalhos. Essa autoavaliação não conta como avaliação, apenas fica registrada no
roteiro. Os alunos podem levar os roteiros integrados para casa, mas os roteiros temáticos são
arquivados no portfólio que cada aluno tem.
Nas oficinas, para armazenagem de textos e atividades produzidas pelos alunos, cada
um tem o seu portfólio. O objetivo das oficinas é aprofundar aquilo que está sendo estudado e
trazer mais confiança em relação aos conteúdos. Há um revezamento da saída dos alunos do
salão para as salas de oficinas. Geralmente, a fileira da responsabilidade sai primeiro, depois
ela volta e quem sai é a fileira da solidariedade e, assim, após o seu retorno, é a saída da fileira
da autonomia. O salão permanece sempre com apenas duas fileiras e os respectivos docentes,
além de estagiários. Tudo acontece na direção do trabalho em equipe, ou compartilhado, entre
os docentes e na relação com os alunos: “[...] estou falando de duas coisas importantes no
projeto que facilitaram as transformações e que minimizaram as reações emocionais, duas
coisas importantíssimas: o trabalho em equipe, essa desconstrução e construção em equipe; e
106

a segunda importantíssima, esse não é um trabalho só dos educadores, é junto com os


estudantes [...]”. (Amélia).
E qual é a dinâmica nas oficinas? Toda oficina tem um tema. Os cerca de trinta
alunos participam das estações de estudo e são divididos em grupos de cinco, formando seis
ou sete grupos. As estações de estudo são divididas em três, a saber: de produção do texto, de
leitura e dos jogos. Na estação de produção textual, o direcionamento é para a produção
escrita sobre o tema proposto. Depois de acabado, os alunos trocam os textos entre si,
corrigem e devolvem para os colegas, que reescrevem o texto; na estação de leitura, o
professor coloca um pano e almofadas no chão e os alunos se acomodam, além de colocar
vários livros. Os alunos escolhem os livros e fazem a leitura prazerosamente; por último, a
estação dos jogos, em que há a troca dos grupos e a passagem por todas as estações.
De que maneira os professores avaliam os alunos? Os docentes percebem os
comportamentos de cada aluno e os transforma em notas. Essa é uma grande incoerência em
relação ao projeto. A atribuição de notas, de zero a dez, é muito discrepante, quando
comparadas às inovações pedagógicas verificadas. Contudo, não há outra maneira de se
proceder senão o cumprimento da legislação. Tudo é anotado em relação ao aluno,
principalmente o seu desempenho em relação à responsabilidade, à solidariedade e à
autonomia. As reprovações são pequenas exceções, geralmente associadas ao excesso de
faltas, principalmente quando não for mais possível a administração desse tipo de problema.
Fizemos pequenas observações sobre o relacionamento dos professores com a
coordenação. Via de regra, as atitudes oriundas das funções de coordenadora pedagógica são
incompreendidas pelo corpo docente. Porém, em uma gestão democrática, as incompreensões
praticamente desaparecem. Há um envolvimento entre o trabalho docente e o da coordenação,
uma relação afetiva, que conduz os docentes a conhecer melhor o funcionamento da escola, a
legislação vigente e o que está estabelecido no Projeto Político-Pedagógico. Ao contrário, na
época em que a escola tinha uma estrutura conservadora, os docentes não tinham esse
conhecimento. Romão e Padilha (2012) esclarecem que o professor desconhece tanto o
funcionamento quanto a estrutura da escola quando está diante de um reflexo de um modelo
de gestão autocrática, vertical e hierarquizada, decorrente de uma rede de ensino ou de um
sistema de ensino burocrático e fechado.
Entendemos a chefia como um elemento impositivo, muito comum nos ambientes
autoritários, enquanto que a liderança é proeminente, mais comum em ambientes
democráticos. Na EMEF Campos Salles, existe o trabalho em grupo, de modo que a liderança
107

dos gestores não enfraquece nem anula a autonomia de professores e alunos. O respeito ao
outro e às relações estabelecidas é parte integrante do processo decisório: “O respeito que a
gente vê, para lidar com a questão das relações... existe um respeito. ” (Daniela).
Decisões emocionais também podem ser encontradas em ambientes democráticos, no
entanto, a coordenadora alega que utiliza a paixão para dominar a emoção: “[...] se você me
perguntar se, no exercício da minha função, eu tomei alguma decisão emocional, no sentido
de que minhas emoções encobriram minha lucidez e os meus sentimentos? Felizmente, não,
não! Porque eu procuro me colocar inteira em todas as situações e tomar consciência da
minha inteireza, da minha dignidade, da minha integridade, de estar inteira. Se estou inteira,
eu me permito um exercício de me perceber nas minhas emoções, que aquilo me gerou, nos
meus sentimentos e na minha lucidez.” (Amélia).
Por derradeiro, o trabalho exercido pelas professoras do salão foi ratificado pelas
declarações dos entrevistados. Todos eles acreditam no protagonismo dos estudantes e se
envolvem profundamente com a força do trabalho em grupo. Verificamos que alguns docentes
mostram essas preocupações em seus relatos: “[...] Para lecionar na Campos Salles não se
pode ser um professor que apenas trabalha na educação, mas que viva-a, que acredite em
uma educação de qualidade; tem que acreditar que, mesmo que a semeadura não tenha sido
fácil, a colheita será [...]” (Laura). “[...] Percebo que o trabalho docente em outras escolas é
isolado. O professor se sente muito sozinho quando ele fecha sua sala de aula e ali começa
somente o trabalho dele, um trabalho solitário. É ele e os alunos e, às vezes, está muito
distante da coordenação [...]” (Laura). “[...] O que se destaca nesse trabalho é o
protagonismo dos estudantes. Também, existe trabalho em grupo com os professores [...]”
(Paula).
Nossas observações mostraram que as três professoras são afetivas. Sendo afetivas, o
trabalho não é solitário, mas compartilhado e marcado pela solidariedade. Trabalham em
conjunto de forma harmônica. A harmonia se estende à relação com os gestores e com
professores de outros salões. É indiscutível a responsabilidade e a autonomia na execução do
trabalho de preparação dos roteiros integrados e os temáticos, bem como na condução de
todas as práticas pedagógicas. Destacamos o exercício da cidadania, o vínculo afetivo com os
alunos nas interações, a capacidade de empatia, a amizade estabelecida e algo fortemente
relacionado a sentimentos e emoções: a valorização da dignidade da pessoa humana.
O professor ensina e aprende com o aluno. Uma professora explica esse tipo de
aprendizagem: “Há um livro que eu gosto muito intitulado ‘O mestre ignorante’ (ele é
108

indicado aos professores que ingressam na EMEF Campos Salles). Nesse livro, o mestre não é
apenas um explicador, mas sim, um mestre libertador, que está a todo o momento ali
esperando, observando, educando, fazendo perguntas que motivam os estudantes a
descobrirem as respostas; então o mestre aqui dentro exerce a cidadania no momento que
você está andando no salão, preocupando-se com os estudantes, fazendo perguntas que os
levam a caminhos que conduzam à resposta [...]” (Laura).
Na prática, como as docentes são afetivas entre si e estendem o comportamento
afetivo aos alunos, a relação aparece baseada, em especial, no respeito ao discente e à sua
história de vida, no acompanhamento de sua caminhada e na tutoria da Comissão Mediadora.
Como as docentes permanecem ao lado do aluno e lhe oferecem sua amizade, são capazes de
ouvi-lo e sentir seus problemas emocionais. Muitos desses problemas emocionais
identificados nos alunos são encaminhados a outros alunos, que compõem a Comissão
Mediadora.
Reverbera no ambiente uma troca afetiva muito forte, no trabalho docente
compartilhado e nas interações com os alunos, principalmente as que se dão no salão. Esse
trabalho compartilhado assim aparece nas entrevistas das professoras: “[...] Essa docência
compartilhada é que faz com que o professor não fique à frente como um pedestal, dono do
saber, mas que ele caminhe pelo salão, sente com o estudante, e deixar, por vezes, um pouco
de lado aquilo que está dito no roteiro para atender as necessidades do aluno, necessidades
estas que nem sempre são cognitivas, mas que permeiam um campo afetivo [...].” (Laura).
“[...] nasceu um sentimento de pertencimento, de equipe; pois ao olhar para o lado você vê o
seu colega/professor, ou seja, essa docência compartilhada. Quando um estudante está tendo
dificuldades, o problema não fica somente para um professor resolver, mas sim, todos os
professores, o pessoal da gestão, da equipe futura, da equipe que passou - todo mundo
abraça a causa [...]”. (Cibele).
As práticas pedagógicas são humanizadas e atreladas ao cotidiano da escola, que é
também o reflexo da vivência dos alunos no seio familiar. Portanto, as docentes observadas
durante o trabalho demonstraram ser, além de humanistas, educadoras-cidadãs, por três
motivos principais, quais sejam: primeiro, não rotulam os alunos, especialmente com
características que eles não têm; segundo, porque buscam educar para que eles consigam
desenvolver a capacidade de refletir e modificar a própria vida; e terceiro, não são egóicas,
porque deixam de lado o próprio “eu” e desenvolvem um trabalho compartilhado, apartado
das disciplinas, de forma responsável, solidária e autônoma. Por conta desse trabalho, os
109

alunos não somente são inseridos no contexto da educação na cidadania, mas podem usufruir
de uma relação afetiva agradável, que propicia a manifestação de emoções e sentimentos
igualmente agradáveis, gerando prazer, no salão, nas reuniões da Comissão Mediadora e em
todo ambiente escolar. A progressão dos alunos, em relação aos roteiros integrados, mostrou-
se significativa no salão, principalmente em razão das interações com as docentes, que fazem
constantes intervenções, nas mesas, ao mesmo tempo em que se preocupam com os aspectos
emocionais e sentimentais. Na medida em que os sentimentos e emoções dos alunos são
considerados, em nossa percepção, temos uma grande conquista afetiva, que pode reverberar
significativamente no cognitivo.
Concluimos nossa discussão sobre a docência, afirmando que, de modo algum essas
docentes se prendem às cartilhas. Não enxergam o trabalho como terminável, pois procuram
implementar constantes inovações e acompanhar as mudanças da sociedade para
contextualizar seus alunos. Uma postura contrária a de vários docentes, que verificamos na
consideração de Mrech (2005, p. 29).
O ofício de educar, ao contrário do que pretendem muitos professores, não
termina nunca e está em constante reformulação. Por esse motivo. Ele não
apresenta diretrizes, regras fixas e “cartilhas” ou guias de ação. A Educação
é um constante processo de vir a ser. Algo da ordem do tosco, do
incompleto.

6.5. A AFETIVIDADE E A DISCÊNCIA

O Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa (FEREIRRA, 1995) traz o


significado de cidadania: “S. f. Qualidade ou estado de cidadão”. E quanto à palavra
cidadão: “S.m. 1. Indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado ou no seu
desempenho de seus deveres para com este. [...]”. Segundo Vasconcelos (2006), a palavra
cidadão indica também algumas contradições. Ser um cidadão, entre os gregos, não era para
todos, mas apenas para um reduzido grupo de pessoas privilegiadas. Não havia pessoas do
sexo feminino, estrangeiros e escravos. Na revolução burguesa, cidadão era o proprietário. Ou
seja, são vários os significados deste vocábulo ao longo do processo histórico. Atualmente, a
ideia de cidadão pode ser associada àquela proposta por Gramsci, ao se referir ao novo
dirigente, capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou controlar aqueles que estão sob sua
direção. Cidadão é um sujeito ativo, participativo, capaz de decidir. Um sujeito engajado na
luta de autodeterminação pessoal e social.
110

O compromisso da EMEF Campos Salles é com a educação na cidadania. Os alunos


vivenciam o que é ser cidadão, por meio de suas práticas pedagógicas, decorrentes do Projeto
Político-Pedagógico. “[...] O que é ser cidadão? É você entender seus direitos e deveres, e os
alunos colocam isso em prática o tempo inteiro. Por exemplo: eles sabem que são autônomos
e que podem ir e vir, mas devem saber em quais momentos eles podem fazer isso. O bacana é
que isso já está tão arraigado neles que você não vê alunos interferindo nas reuniões, pois
mesmo eles estando na escola, estão nos locais onde necessitam estar [...].” (Cristina).
Observamos as movimentações dos alunos no salão dos 5os anos. Na categoria
docência, explicamos o modo como os alunos se organizam no salão e como o espaço é
dimensionado no ambiente. Na medida em que são protagonistas, essas observações tiveram
seu epicentro de atenção, em dois pontos, a saber: primeiro, a maneira como os alunos se
relacionam nas mesas de estudo; e segundo, algumas situações de conflitos resolvidas pela
Comissão Mediadora. Destacamos os princípios da escola no âmbito das interações.
Dos cinco princípios da escola, aqueles que afetam diretamente os alunos são os da:
responsabilidade, solidariedade e autonomia. Esses princípios aparecem a todo tempo, por
meio de seu comportamento, principalmente nas práticas pedagógicas; também formam a
base das avaliações docentes. “Os princípios (autonomia, responsabilidade e solidariedade)
conferidos aos alunos da Campos Salles, aparecem em todo momento [...]” (Luana). São
princípios necessários para uma escola que deseja ver o educando como um protagonista.
Esse protagonismo havia sido implementado na Escola da Ponte, em Portugal, e os seus bons
efeitos educativos atravessaram as fronteiras. De maneira geral, nossas observações no salão e
sobre a Comissão Mediadora mostraram a presença de cada um desses princípios. Nosso foco
geral foi a educação na cidadania e de que maneira ela aparece no salão e na Comissão
Mediadora.
Em determinado momento, ao entrarmos no salão escolhido para a pesquisa, um
menino franzino, de onze anos de idade, olhou-nos e perguntou o que fazíamos ali. Depois de
uma resposta relativamente longa, ele afirmou que poderíamos ficar no salão. Em outras
palavras, qualquer aluno se sente no direito de fazer qualquer questionamento, inclusive o de
autorizar ou não nossa permanência no recinto, mesmo com a devida autorização legal. É um
exemplo de seu protagonismo e de sua autonomia. Além disso, é uma vivência de cidadania,
que contraria os princípios de uma escola tradicional. “[...] Se eu pensar numa escola
tradicional, terei apenas um mestre explicador e as crianças ficarão engessadas, em
111

cadeiras, ao lado umas das outras. Aqui você tem uma parte destinada para assuntos sociais,
assim, você consegue exercer a sua cidadania aqui dentro e lá fora”. (Laura).
Os alunos sentados à mesa iniciam o dia escolar a partir da orientação dos docentes do
salão: “[...] Nós, professores, escrevemos na lousa a rotina do dia para elas se programarem.
Enquanto fazemos isso, eles conversam entre si. Acabando isso, automaticamente, ou seja, a
solidariedade se vê no momento em que um ou mais se mobilizam em ajudar um amigo que
está encontrando dificuldades em resolver um exercício, desse modo, pedem a ajuda do
professor” (Luana). Eles conversam muito e a impressão que alguém pode ter, ao visualizar
essa agitação, é que se trata de uma bagunça generalizada. Não é uma bagunça, apenas as
crianças não precisam ficar quietas como se fossem múmias, para que os professores
despejem conteúdos. Não é assim que acontece. A ideia de imobilidade para poder aprender
não prospera nesse ambiente de autonomia. “[...] Tratando-se da autonomia, por exemplo,
imagina cem crianças entrando no salão. Chegam pela manhã, entram, cada um vai para o
seu lugar sem precisarmos ficar falando; sentam, conversam um pouco, claro! [...]” (Luana).
A autonomia dos alunos não deve operar sozinha. É necessário que a solidariedade e
a responsabilidade sigam juntas. A autonomia exercida isoladamente, ou seja, sem os demais
princípios, pode redundar em conflitos ou no baixo rendimento escolar. As professoras
entrevistadas destacam o aparecimento constante e rotineiro desses princípios: “Na Campos
Salles, a autonomia, a responsabilidade e a solidariedade conferida aos alunos aparecem o
tempo todo. Se o estudante não tem autonomia, como vai responder a um roteiro integrado
que acabei de colocar na pergunta anterior como resposta? Ele precisa de autonomia para
sentar, ler o texto e fazer. Ele precisa ter responsabilidade para trazer o roteiro todos os
dias, pois eles (os roteiros) não ficam na escola, vão embora com os alunos [...].” (Laura).
“[...] autonomamente, elas pegam seus cadernos, montam seus roteiros e programam o que
irão fazer, o que vão estudar, e é aí que entra a questão da responsabilidade: quando elas
decidem o que irão estudar no dia. Às vezes acontece de dois alunos escolherem o livro de
matemática e outros o livro de ciências, por exemplo; mas, geralmente, eles estão fazendo a
mesma coisa [...]” (Luana).
A solidariedade e a responsabilidade se manifestam nas mesas do salão. Contudo, a
ausência de responsabilidade também se manifesta em alguns alunos. Sentamos à mesa, que
se localizava na fileira da solidariedade, com duas alunas e um aluno. Estavam estudando a
gramática da Língua Portuguesa. Em dado momento, uma das meninas expulsou o menino da
mesa. A alegação era de que ele queria apenas brincar e estava tirando a concentração dela e
112

da outra menina. Além disso, ela ajudava a outra garota a entender e a corrigir os exercícios,
numa nítida demonstração de solidariedade. A atitude de retirar o menino da fileira da
solidariedade e mandá-lo para a fileira da autonomia foi também solidária. Ela “protegeu” a
amiga de um comportamento inadequado do menino, do ponto de vista pedagógico, ao
mesmo tempo em que procurou que ele fizesse uma reflexão sobre o próprio desempenho. Ela
também poderia convocar a Comissão Mediadora para ouvir o aluno, caso entendesse
necessário. Assim, ela demonstrou responsabilidade e solidariedade
De fato, qualquer aluno poderia levantar a mão quando estivesse em dificuldades,
fato que realmente aconteceu algumas vezes. Os professores passavam pelas mesas para
acompanhá-los, no entanto, não forneciam as respostas. Estimulavam constantemente a
pesquisa e a reflexão. Todavia, se algum aluno extrapolar no exercício de sua autonomia,
faltar com a responsabilidade e a solidariedade, poderá ser convocado pela Comissão
Mediadora para se justificar. “[...] Há, também, a solidariedade em procurar o professor para
auxiliá-los. Isso acontece a todo momento. Acontece na hora da comissão mediadora, aonde
eles precisam descer para conversar com o estudante que não está tendo um comportamento
legal no salão. Muitos ainda precisam entender tais princípios, mas a grande maioria já os
compreende e isso é fantástico! [...]” (Luana). “[...] quando, por exemplo, há um estudante
que está dando trabalho, a própria comissão, que é formada pelos estudantes, chama esse
aluno com problema para uma conversa, ou seja, a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade partem totalmente deles. Os três princípios estão envolvidos em todo nosso
cotidiano, isto é, a busca pelo protagonismo do estudante [...]” (Paula).
Também contribui para a educação na cidadania o trabalho docente, na medida em
que são levados para o salão os temas que reverberam na sociedade, por meio dos já
explicitados roteiros temáticos. “[...] Aconteceu algo evidente no jornal que está muito
latente, então, nós trazemos para a sala de aula. O mesmo acontece com os estudantes;
quando algo acontece na comunidade, eles trazem para a sala de aula. As práticas
pedagógicas relacionadas com essa educação na cidadania é esse exercer dos princípios;
não é um exercer enquanto se estuda aqui, mas um exercer para a vida. Ouvimos dizer uma
frase muito comum: ‘Para além dos muros da escola’ [...]” (Laura).
Os temas estão relacionados à realidade do aluno, àquilo que ele vivencia. Seu
histórico de vida é respeitado: “As práticas pedagógicas relacionadas com a educação na
cidadania são praticadas por meio da proximidade da realidade dos estudantes. Nós temos o
que chamamos de roteiros temáticos, os quais são específicos e relacionados ao que está
113

acontecendo no mundo; como, por exemplo, dias atrás tivemos um roteiro falando sobre o
consumismo, o exagero de consumo; apesar de serem da periferia, percebemos que eles
preferem ficar sem uma alimentação saudável para ter um tênis da moda ou deixam de pagar
uma conta para comprar um celular de dois ou três mil reais. Um salário que o pai tem para
fazer mil coisas, ele compra um celular porque ‘todo’ mundo tem. Então, trabalhamos muito
isso com eles, diretamente [...]”. (Luana).
Algo de destaque em relação aos alunos, nesse tipo de educação, é o seu
protagonismo. A própria atividade dos alunos no salão é um exemplo. Há também o
cumprimento e o respeito aos princípios da escola durante os estudos dos roteiros integrados:
“Exemplo, um grupo de estudantes pega o roteiro 6, eles conversarão entre si sobre o tema e,
em seguida, chamarão o educador no qual este perguntará se o grupo já decidiu a meta; se
sim, será colocada uma data para a entrega. Portanto, este grupo deverá ter
responsabilidade, porque na data da entrega, o educador perguntará se cumpriram com a
meta, como foi e o que acharam. ‘Então, vamos entregar dia 22’. Nisso se vê como a
solidariedade está muito ligada entre eles. Os três princípios fazem parte da relação entre
eles [...]” (Laura).
Pensar e colocar em prática a educação na cidadania é valorizar uma educação
integral e acreditar em um ser humano transformado e transformador: “[...] Ao final dos
roteiros há perguntas para os estudantes que os levam para a reflexão da sociedade como um
todo. Quando pensamos nessa educação integral, estamos sempre fazendo intervenções com
a prática, com a sociedade. Na minha prática, não consigo falar em educação sem pensar na
cidadania. Assim, essa educação imbricada com a cidadania se refere aos seres humanos que
querem e vão agir para transformar o seu meio, o seu bairro, a cidade, o seu mundo. Então,
nós professores estamos a todo o momento trabalhando para fazer intervenções no meio
social que habitamos. Queremos que os estudantes venham aqui, pratiquem sua cidadania.
Aqui, vemos a cidadania pelo voto consciente nas eleições a vereadores e prefeito,
intermediado pela Comissão Mediadora. Nossa escola é democrática! [...]” (Laura).
Portanto, a educação na cidadania encontra-se presente no ambiente escolar, por
meio de suas práticas pedagógicas. Além dos aspectos que expomos em relação ao que
acontece no salão, temos como complemento a ação da Comissão Mediadora. Além de
constarem em nossas observações, essas práticas foram reveladas pelos entrevistados.
Referimo-nos à Comissão Mediadora. Acrescentamos esse trecho de entrevista para esclarecer
a importância das Comissões no âmbito da educação na cidadania: “[...] Qualquer problema
114

que existe no salão é discutido em uma assembleia com os estudantes. Dentro do salão, tem
uma comissão de estudantes que ajuda a conversar com o aluno que apresenta algum tipo de
problema. É essa comissão mediadora que ajuda e representa o salão. A maior demonstração
desses três princípios é na comissão mediadora e na assembleia. Aqui, o professor não
chama o pai do aluno para reclamar; se está havendo algum problema com o estudante,
quem tem de mudar é o estudante, o pai e a mãe não vão conseguir fazê-lo mudar. Então,
trazemos os casos para essas comissões mediadoras e, pela participação dela, vê-se a
responsabilidade, a autonomia e a solidariedade [...]”. (Cibele).
Como funciona a Comissão Mediadora do salão? Cerca de dez alunos a compõem.
Esses alunos eleitos têm um mandato de um ano para o exercício de suas funções; são
responsáveis em identificar problemas nas relações entre alunos e entre alunos e professores.
Podem convocar qualquer aluno para comparecer diante da Comissão, o que também se dá em
relação ao docente, que pode ser convocado para dar explicações sobre sua conduta,
principalmente quando um aluno é desrespeitado ou desacatado por ele, ou ainda, é alvo de
preconceito. “[...] Em 2008, surgiu uma comissão mediadora de alunos em cada um desses
salões. E qual é a principal função dessa comissão? É cuidar das relações e da convivência
entre o aluno e o professor. Quando um aluno é desacatado por um professor e se sente
ofendido, ele conversa com a comissão sobre o fato. Quando os alunos percebem, por
exemplo, que há um preconceito por parte do professor, o professor é chamado e o caso é
discutido e conversado”. (Braz).
Participamos como observadores de uma convocação da Comissão Mediadora.
Estava presente na sala de reuniões a tutora, que é uma das professoras responsáveis pelo
salão, o aluno acusado, o aluno vítima e os alunos integrantes da Comissão. A acusação era de
agressão física e importunação contra um colega de salão. Este tipo de acusação, que diz
respeito ao comportamento desagradável do aluno é muito comum na escola, mas as
Comissões reagem: “teve uma reação dos alunos da comissão e com consentimentos dos
outros que também queriam uma organização dentro do salão, fizeram uma devassa.
Ficaram uns 3-4 dias explicando aos adolescentes do penúltimo e último ano que queriam
estudar e que o comportamento deles não estava correto, que não era favorável. Disseram
que eles estavam irritando professores. Então, é lógico que isso traz impactos emocionais.
[...]” (Braz).
Nessa reunião, após a verbalização do docente sobre os atos praticados, o aluno
acusado, sentado em uma posição específica, visivelmente constrangido, balbuciou algumas
115

palavras. Os alunos presentes na sala, todos sentados ao redor da grande mesa, iniciaram
aquilo que chamam de “roda da verdade”. A “roda da verdade” é o momento em que cada
aluno, com efeito, faz perguntas ao aluno acusado de agressão, além de emitir a opinião
pessoal sobre o ocorrido; as perguntas não foram respondidas. O aluno começou a chorar
discretamente. A professora também fez perguntas. Logo após, os alunos passaram a
verbalizar a opinião pessoal sobre o assunto. Todos condenaram o ato praticado. Foi decidido
que o aluno acusado tinha duas opções: pedir desculpas imediatamente ao colega agredido ou
a Comissão convocaria os pais dele para expor o acontecido. O aluno vítima compareceu na
sala e foi abraçado pelo aluno agressor, com um pedido de desculpas.
Não é fácil enfrentar a Comissão Mediadora. Os alunos são inflexíveis no
cumprimento dos princípios da escola. “[...] E, hoje, às vezes, o pessoal fica mais preocupado
com uma conversa com o pessoal da comissão de alunos do que uma conversa com um
professor. Quando os pais são chamados por essa comissão de alunos, às vezes, saem mais
intimados do que uma briga com um diretor de escola. Então, hoje o aluno tem um poder
muito grande no sentido de exercer autocontrole lá dentro.” (Braz).
A Comissão também tem outra face, profundamente afetiva. Ela pode se reunir para
conversar com alunos que estão com problemas emocionais. Os alunos da Comissão avaliam
e emitem suas opiniões pessoais, que podem ser consideradas como conselhos. “[...] Há uma
questão de solidariedade tão forte, tão forte, já vi estudantes aqui, em uma comissão
mediadora, chorando de emoção, sensibilizados com a questão de um estudante, quando ele
se abriu e confessou a eles o que ele estava vivendo na casa dele e que ele, sem consciência,
acabava projetando aqui e foi tomando consciência e a comissão ajudando, quando eu passei
por aqui estavam todos chorando: ele e todos que estavam presentes. Aquilo foi um momento
de uma comoção geral e que tornou aquele grupo tão unido em torno de ser solidário e
ajudar aquele estudante, de uma forma que eu nunca tinha visto [...]” (Braz).
A educação na cidadania da EMEF Campos Salles mostrou ser uma conquista em
termos educativos. O objetivo é o de preparar o aluno para a sociedade e educá-lo, por meio
da vivência, para exercer seus direitos de cidadão. Essa vivência cidadã aparece em nossas
observações, nas interações no salão e nas ações da Comissão Mediadora, além de ser,
constantemente, confirmada pelos entrevistados. A vivência nas práticas pedagógicas é
atualmente viável, na medida em que outrora, o ambiente escolar de desafeto, ao ser
impactado por manifestações de emoções e sentimentos agradáveis, decorrentes de um
Projeto Político-Pedagógico, democrático e inovador, cedeu espaço para um ambiente
116

transformado e afetivo. Esse impacto favoreceu a mudança de postura dos alunos, que
passaram a sentir desejo de estudar e aprender. Além disso, suas relações foram marcadas
pelo valor da amizade, do respeito mútuo e pelo humanismo.
Almeida (2011) nos esclarece que a escola pensada por Wallon está preocupada com
a socialização dos alunos, em incutir valores e modelar comportamentos. Ele oferece algumas
pistas ao professor. O clima emocional na sala de aula pode, efetivamente, prejudicar ou
favorecer a aprendizagem. Em um clima conturbado pelas emoções, as energias gastas
deixam de ser aproveitadas para a aprendizagem. O que se ganha com a afetividade repercute
no cognitivo e vice-versa. O ambiente é afetado porque a emoção é contagiosa. Portanto,
entendemos que os sentimentos e emoções dos alunos devem ser considerados, se desejamos
uma escola que acolha afetividade e cognição.
Percebemos um aluno protagonista, um ser forte, capaz de se organizar individual e
coletivamente, e de construir o conhecimento próprio. Um sujeito de direitos, completamente
engajado. Seu protagonismo não se separa da responsabilidade, da solidariedade e da
autonomia, princípios que lhe são confiados. Um aluno que caminha, com voz, com o docente
ao seu lado, a fim de ajudá-lo durante o percurso. Por sua vez, a EMEF Campos Salles,
cidadã, acredita em seu protagonismo e considera suas emoções e sentimentos. O maior
exemplo é a possibilidade de o aluno, com problemas emocionais, gerados na convivência
familiar ou na escola, sentir o desejo de desabafar. Nesse caso, ele pode contar com a
solidariedade da Comissão Mediadora, que o ajudará a superar o momento difícil. Nossa
pesquisa mostrou, a partir do trabalho docente, um perfil de aluno afetivo e encaixado nos
ensinamentos de Wallon, na medida em que é compreendido como uma pessoa completa,
integrada e contextualizada.
117

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa primeira preocupação diz respeito à apresentação de nossos desejos, que nos
impulsionaram até a presente pesquisa. O primeiro, o de ingressar no curso de mestrado, na
linha de pesquisa da Educação, Linguagem e Psicologia, do Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. A fim de estruturar nosso projeto de
pesquisa, buscamos um tema afinado com nossa vivência. Por esse motivo, aproximamo-nos
de um segundo desejo, o de estudar a afetividade, à luz de Henri Wallon. A afetividade, com
ênfase na emoção, ainda é pouco referida nos meios educativos, mas tem uma importância
relevante e, certamente, não pode ser suprimida, na medida em que suas conquistas
reverberam no cognitivo e também na motricidade, mesmo porque Wallon jamais apontou
que uma dessas dimensões era mais importante que outra.
De outro modo, a afetividade sempre nos acompanhou e nos traz recordações. Com
tais lembranças, explicamos e justificamos como surgiu nosso desejo de realizar uma pesquisa
qualitativa, a partir de um estudo de caso exploratório, baseado no impacto proporcionado
pela afetividade no ambiente da EMEF Presidente Campos Salles, em decorrência de seu
Projeto Político-Pedagógico. Para tanto, destacamos três passagens de nossa história de vida,
quais sejam: na condição de aluno do antigo Primeiro Grau; na condição de docente; e,
novamente, na condição de aluno, desta feita, na graduação. Nossa formação acadêmica e
algumas disciplinas cursadas reforçaram nosso desejo por pesquisar tal objeto.
De primeiro, em meados da década de 1970, na condição de aluno em uma escola
estadual localizada no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Recordamos de algumas aulas que
despertavam nosso desejo de aprender. A escola era tradicional, mas podemos afirmar que o
ambiente era agradável e prazeroso. A lição que extraímos é a de que uma escola tradicional
também pode oferecer um ensino em um ambiente prazeroso; não éramos sujeitos de direitos,
mas tínhamos alguma autonomia.
Nossa segunda experiência ocorreu na década de 1990, desta feita, na condição de
professor de História, em uma escola estadual localizada na Grande São Paulo. As práticas
pedagógicas não despertavam o interesse dos alunos. Os professores se fechavam em suas
disciplinas e em sua própria concepção de educação. O ambiente era desagradável porque
tudo decorria de uma estrutura típica de escola tradicional, sem autonomia e engessada em
suas práticas. O Projeto Político-Pedagógico era apenas uma imposição legal. Na prática,
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ninguém participava de sua construção. Era atualizado mediante cópia e pequenas alterações,
via de regra, realizadas pela secretária da escola.
Nossa terceira experiência foi novamente na condição de aluno, desta vez vinculado
ao curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Como
complemento de nossa formação, em 2013, cumprimos estágio não remunerado na EMEF
Campos Salles. Esse estágio era vinculado à disciplina de Metodologia do Ensino de
Psicologia, ministrada pela Professora Doutora Leny Magalhães Mrech. Foi uma
oportunidade para observarmos o modo como se davam as práticas educativas.
Tais experiências supramencionadas fizeram com que nos aproximássemos de nosso
tema. Na condição de aluno do então Primeiro Grau, devido aos sentimentos e emoções do
ambiente escolar que vivenciamos. Pela docência, na medida em que trabalhamos em um
ambiente de completo desafeto; e, novamente como aluno, desta feita, na graduação, pela
oportunidade de realização do estágio, que nos trouxe um enorme desejo de pesquisar o
impacto da afetividade naquele ambiente escolar. Nesse sentido, tivemos um grande incentivo
da Professora Doutora Leny, que nos direcionou para a importância de estagiarmos em uma
escola democrática e inovadora.
Nossa formação em três cursos, em nível de Especialização, possibilitou-nos uma
nova aproximação com o tema, na medida em que assimilamos, na teoria e na prática de
nossas atividades, a importância da afetividade nos espaços educativos, especialmente na
educação especial e inclusiva. Trabalhamos no sentido de desenvolver artigos associados ao
tema de nossa presente pesquisa, fato que nos auxiliou a enxergar melhor os estudos de
Wallon.
Ao iniciarmos a Pós-Graduação, cursamos quatro disciplinas, das quais destacamos a
intitulada “Um novo sintoma para a Psicanálise” – EDM5148-1/1, ministrada pela Prof.ª Dr.ª
Leny Magalhães Mrech. Novamente a professora nos colocou no eixo, desta feita, a partir de
uma visão da Psicanálise. Discutimos: a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade
de controle, bem como seus efeitos na Educação; o conceito, para a Psicanálise, de violência
nas escolas; as debilidades da ordem simbólica; a precarização do sujeito no mercado do
saber; a violência e o gozo; e o hedonismo e o cinismo.
Reforçamos nossos desejos e destacamos principalmente as bases teóricas relativas a
pensadores como Freud, Lacan, Althusser e Foucault, visando a uma discussão sobre as
transformações da escola contemporânea. No passado, a escola era repressiva e a ideia do
professor “sacerdote” se destacava em oposição à escola que reproduz o que acontece na
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sociedade, quando é possível identificar o aumento de casos de violência nas escolas.


Passamos, então, a entender a violência como oriunda de um conflito e como uma
manifestação da emoção em um ambiente desagradável. A nossa reflexão serviu para mostrar
a importância de uma escola afastada da repressão e da reprodução de injustiças sociais, com
a implementação um projeto pedagógico afetivo.
A partir desse ponto, procuramos olhar para o que acontece em uma parcela da
escola contemporânea a fim de embasarmos nossa pesquisa. Nossa percepção apontou para
uma tendência de a escola caminhar numa velocidade aritmética e, por vezes, sem conseguir
acompanhar as mudanças da sociedade da informação e seus desafios. Nesse contexto, o
professor permanece compelido a caminhar no ritmo da escola; o aluno, porém, desconsidera
tal ritmo, contudo, não progride numa velocidade geométrica. Cada aluno tem o seu ritmo de
progressão.
Deste modo, eles precisam de uma escola afetiva, que respeite o instituído, sua
história de vida e o seu ritmo. Ao mesmo tempo, uma escola capaz de acompanhar as
mudanças da sociedade para que possa contextualizá-los. Nesse âmbito, um eventual
descompasso da instituição pode conduzi-la ao isolamento e ao engessamento de suas
práticas, o que dará origem a uma série de conflitos que se manifestam no ambiente escolar e
atingem as relações, principalmente entre alunos e professores. Infelizmente uma parcela
considerável das escolas prioriza o cognitivo. A afetividade, geralmente, flui com intensidade
em escolas que priorizam as relações.
Por essa razão, a escola precisa de autonomia para promover transformações. Sem
autonomia, a instituição funciona de forma a satisfazer aos desejos de intelectuais da
educação e ignora os seus próprios anseios e os da coletividade. Nesse caso, verificamos um
provável círculo vicioso, que afeta indelevelmente as práticas pedagógicas, provocando
desânimo no quadro de professores e a insatisfação de alunos, um desprazer generalizado. Os
afetados podem reagir por meio da manifestação de emoções e sentimentos desagradáveis.
Destarte, sem o desejo de ensinar e sem o desejo de aprender forma-se o caos educativo,
porque a transmissão do saber fica muito comprometida e afetada pelas adversidades.
Com a constatação desse quadro e na intenção de mostrar o real na educação, a partir
de nossa leitura, escolhemos perscrutar a EMEF Campos Salles porque tal instituição escolar
ousou transformar seu ambiente adverso por meio de um Projeto Político-Pedagógico
inovador. Essa escola é um exemplo que merece destaque, tanto porque vem atuando na
contramão desses problemas educativos, como porque tem inspiração na Escola da Ponte,
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situada em Vila das Aves e São Tomé de Negrelos, em Santo Tirso, no distrito do Porto, em
Portugal. Essa inspiração é decorrente de circunstâncias e características adversas similares às
que ocorriam na Escola da Ponte.
Em 1976, a Escola da Ponte vivenciava – em seu ambiente escolar de completo
desafeto, resultado de um triste histórico de violência – indisciplina escolar de alunos e o
descontentamento geral do professorado. Esse descontentamento decorria, principalmente, da
centralização do trabalho escolar na figura do professor e de lições repetidas para um aluno
sem voz. Um quadro de derrota, de tristeza, que se somava aos problemas sociais e faziam
com que, na prática, as crianças não tivessem melhores opções. A resposta ocorreu por meio
de um projeto pedagógico construído de modo coletivo, que se mostrava inovador e
democrático. Como consequência, surgiram mudanças para melhor, pautadas pela “educação
na cidadania”, pela reformulação do papel docente e pela nova maneira de enxergar o aluno,
desta feita, como um protagonista, um sujeito de direitos, um ser forte e capaz de construir o
conhecimento próprio. Tudo baseado nos princípios da escola, a saber: responsabilidade,
solidariedade e autonomia. Crianças de maior idade passaram a colaborar com a educação de
crianças de menor idade.
O quadro apresentado acerca da escola portuguesa muito se assemelha ao da EMEF
Campos Salles antes da implementação de seu projeto; fato que reforça a ideia da necessidade
de transformação de um ambiente escolar adverso. Via de regra, o cumprimento da legislação
não impede as transformações de uma escola; a legislação apenas fornece os limites legais de
atuação. No entanto, nada se transforma sem o desejo do sujeito. A equipe técnica,
professores, alunos, pais de alunos, funcionários e a comunidade do entorno escolar podem –
e devem – unir esforços para criar uma sinergia capaz de movimentar os desejos. A
reestruturação das práticas pedagógicas, a nova postura docente e o protagonismo do aluno
constituem um resultado viável quando existe mobilização coletiva. O provável impacto de
emoções e sentimentos agradáveis nesse novo ambiente possibilita a melhora considerável das
relações, bem como traz a possibilidade de se estabelecer um vínculo afetivo muito forte entre
aluno e professor, com benefícios para o cognitivo, tal qual nos ensina Wallon..
Portanto, o objetivo e o epicentro de nossa investigação foram o Projeto Político-
Pedagógico da EMEF Campos Salles e o impacto da afetividade em seu ambiente, com ênfase
na emoção, à luz de Henri Wallon. O projeto pedagógico, instrumento previsto em lei, é o
único capaz de criar as condições necessárias para as transformações do ambiente escolar.
Assim sendo, apresentamos nossa hipótese para a presente pesquisa: após a implementação,
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em 2005, na EMEF Presidente Campos Salles, de um Projeto Político-Pedagógico


democrático e inovador, a afetividade foi, com efeito, impactante, ao ponto de sentimentos e
emoções agradáveis se manifestarem com intensidade considerável no ambiente escolar,
decorrentes das novas práticas pedagógicas, da reinterpretação do papel do docente e do
protagonismo do aluno, além das alterações significativas do espaço.
Todo o ambiente escolar, por conseguinte, sofreu esse impacto, de maneira que
eliminou o desafeto reinante. As relações e interações entre alunos, entre professores, e entre
alunos e professores foram afetadas, de modo a produzir sensações de bem-estar. Os conflitos
foram minimizados e controlados. A grande referência para todos foi a introdução dos
princípios de responsabilidade, solidariedade e autonomia, os quais foram adotados da Escola
da Ponte.
Para a negação ou comprovação de nossa hipótese, com base em nossos objetivos,
pautamo-nos pelas seguintes indagações: o Projeto Político-Pedagógico implementado em
2005 na EMEF Presidente Campos Salles é afetivo? No caso de uma resposta afirmativa, de
que maneira a afetividade, com ênfase na emoção, impactou o ambiente escolar?
Especificamente, o professor é afetivo? Para embasar nossa discussão, apoiamo-nos em
pesquisa bibliográfica, com destaque para Wallon, bem como em pesquisa de campo.
Analisamos e refletimos sobre o Projeto Político-Pedagógico da escola e sobre o teor das
entrevistas realizadas com o ex-diretor desta instituição, com duas coordenadoras e com seis
professoras.
O ambiente emocional do salão foi priorizado como ponto de observação, a partir do
trabalho docente de três professoras do Ensino Fundamental Regular, Ciclo II, com cerca de
cem alunos dos 5os anos (A, B, C), cuja faixa etária era de doze anos, em média. Destacamos a
maneira como os alunos se comportam nas mesas e na Comissão Mediadora, no âmbito do
contexto da educação na cidadania. Assim organizados e estruturados, mostramos, ao longo
de nossas considerações, o desenrolar de nossa pesquisa e os resultados obtidos. Concluímos
o trabalho propondo uma discussão baseada na categoria afetividade, interseccionada com as
subcategorias ambiência, espaço, docência e discência. Observamos que tal categoria e
subcategorias estão fortemente integradas. Não há como fragmentá-las.
Henri Wallon nasceu em Paris, em 1879, e morreu em 1962, na mesma cidade, aos
oitenta e três anos de idade. Sua formação era ampla e eclética, visto que estudou Medicina,
Psicologia e Filosofia. Entre suas preocupações, marcamos a busca pela cura de patologias, a
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necessidade de compreender o indivíduo, especialmente a criança, e as questões vinculas à


natureza humana, além de ter se preocupado com a educação.
As comparações, de semelhanças e diferenças, que fazia entre o desenvolvimento de
crianças saudáveis e o de crianças patológicas se tornaram a base de sua teoria, acompanhada
de cuidados em relação à utilização indiscriminada de testes. Era também um humanista, que
pensava na preparação do homem para a democracia; rejeitava a invocação de entidades, e sua
postura científica conduzia seu olhar para os fatos históricos. A psicologia walloniana se
voltava às diversidades mentais e às contradições das teorias.
A sua obra é complexa e atual, haja vista que ainda possibilita a psicólogos e
educadores encontrarem um referencial teórico e os fundamentos para pesquisas na área da
Psicologia, com ressonância na Pedagogia. Além da pesquisa, há um campo de reflexão e
aprendizagem com os estudos, que podem ser encaixados em contextos educativos, como o da
pessoa completa, com os estágios de desenvolvimento da criança e o estudo da afetividade. A
afetividade, inclusive, constitui um grande exemplo da atenção que Wallon dedicou ao
aspecto humano, valorizando sentimentos e emoções.
Portanto, de todo o complexo e brilhante trabalho de Wallon, destacamos a sua
preocupação no que concerne à educação e aos estudos sobre a afetividade. Educação, em seu
amplo sentido, não se separa de Pedagogia e Psicologia; as ideias pedagógicas sempre se
encontram associadas ao que representa a Psicologia para a educação. Psicólogos e pedagogos
podem pensar juntos, desde que debruçados sobre fatos. A grande falha de alguns psicólogos
era a de explicar a psicologia de modo desvinculado do orgânico. Wallon, ao contrário,
situava a Psicologia genética como o melhor caminho para poder entender a criança.
Verificamos, por meio de um olhar mais atento e aprofundado, que em alguns de
seus artigos, há sempre uma certa ênfase no aspecto biológico, no meio, na afetividade e, em
todos os artigos, o respeito às fundamentações teóricas; alguns destes são específicos sobre
educação, apesar de Wallon não ter desenvolvido uma teoria educativa. Seu trabalho é
caracterizado pela sua cultura humanista, pela própria formação e pelas preocupações com os
problemas sociais de sua época. No entanto, ressaltamos que nenhuma obra é suficiente para
dar rumo à educação. Há um evidente sentimento de que é necessário conjugar esforços, isto
é, uma ação conjunta com outras obras de porte, a fim de obtermos um resultado educativo
mais eficaz.
O interesse de Wallon pela educação aparece não somente em artigos e livros.
Presidiu um projeto de reforma do ensino francês, denominado Langevin-Wallon, que trazia
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seus pensamentos sobre a Pedagogia e a Psicologia. Esse projeto visava a uma educação mais
justa para todos, adaptando-o ao clima de uma sociedade democrática; era um projeto de
inclusão social, que permitia ao aluno o desenvolvimento de suas aptidões pessoais, bem
como sua formação cidadã, ou seja, uma proposta muito diferente daquela que se
experimentava à época. A sua oposição em relação ao ensino tradicional estava presente nesse
projeto e também nas críticas à Educação Nova. Para ele, a escola tradicional sempre foi um
entrave à justiça social e à educação para todos, visto que reproduzia as injustiças da
sociedade. E, dado que as pessoas não conseguiam enxergar essas injustiças, essa reprodução
era facilitada.
O posicionamento de Wallon, no tocante à educação, pode ser facilmente mal-
interpretado, bastando para esse entendimento a conclusão de que ele era inflexível com as
escolas e com os professores da sua época. Essa é uma visão limitada e incorreta em relação
às suas propostas de mudanças. As críticas eram construtivas, de modo que Wallon apenas
desejava uma escola melhor, democrática e de inclusão social, uma necessidade de justiça
social que somente ele parecia conseguia enxergar. Nessa nova escola proposta, o professor
assumiria uma postura mais cidadã, mais humanitária, enxergando o aluno de forma
integrada, como uma pessoa completa, e o aluno, por sua vez, encontrar-se-ia mais engajado,
com direito a voz e ao protagonismo, para poder desenvolver seus potenciais. Portanto,
reafirmamos que esse desejo de Wallon de transformar a escola, de modo algum, pode ser
interpretado como a sua supressão e a destruição da imagem docente.
Seria contraditório, portanto, um humanista como Wallon desconsiderar em seus
estudos a afetividade. Quando nos referimos à afetividade, estamos apontando para o ser
humano, seus sentimentos e emoções. Deste modo, podemos entender a afetividade como
uma capacidade do ser humano ser afetado por sensações agradáveis ou desagradáveis,
oriundas do mundo externo e interno. Um simples olhar afeta o ser humano.
Nos estudos de Wallon, encontramos a afetividade nos estágios de desenvolvimento,
quais sejam: impulsivo-emocional; sensório-motor e projetivo; personalismo; categorial; e
puberdade e adolescência. Destacamos apenas três deles, em função da maior manifestação da
afetividade. Podemos ver a pessoa completa em cada estágio, com suas conquistas no afetivo
e no cognitivo, além de suas limitações. O autor não se limita ao estudo do cognitivo: há um
revezamento no domínio das etapas, nos quais, a afetividade – e, especialmente a emoção –
faz-se presente e se destaca, com maior ou menor ênfase. Algumas etapas trazem o
predomínio da afetividade (1ª, 3ª e 5ª) e, outras, o predomínio da cognição (2ª e 4ª). Nesse
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sentido, temos o chamado predomínio funcional; quando ocorrem as alterações de


predomínio, ora afetiva, ora cognitiva, temos a chamada alternância funcional.
Wallon apresenta o que compõe a afetividade: a emoção, o sentimento e a paixão.
Com o intuito de estabelecermos as diferenças, colocamos o sentimento no circuito do
cognitivo e, a emoção, no circuito do biológico. Tomemos como exemplo o medo. Isso
significa que, no primeiro circuito, o medo, é um sentimento, é uma expressão
representacional da afetividade, não há arrebatamento. Opera o pensamento simbólico. No
segundo, ele é uma emoção, porque há uma reação física, visceral. É a exteriorização da
afetividade, há o arrebatamento. Portanto, palavras como medo, alegria, tristeza, raiva e tantas
outras podem ser traduzidas como sentimentos ou emoções. Se a pessoa parte de uma
deliberação e de um pensamento elaborado, representacional, essas palavras se referem aos
sentimentos. De outra maneira, se a pessoa parte de um padrão postural, de um reflexo
condicionado, de uma reação imediata a uma situação, essas palavras se referem à emoção. A
análise, portanto, depende do contexto.
Ao darmos ênfase na emoção, que é a exteriorização da afetividade, ou seja, a sua
expressão corporal, tecemos algumas explicações. Os tônus musculares revelam os sistemas
de atitudes, isto é, a emoção. A emoção aparece no recém-nascido, por meio de seus
espasmos, que não são apenas atos musculares ou viscerais, mas sensações de bem-estar ou de
mal-estar, bem como em sua dissolução, por meio de riso, choro e soluço. Ele identifica suas
emoções pelo grito; revela suas emoções básicas de prazer e desprazer – tais como alegria e
tristeza, por exemplo – quando estabelece o processo de diferenciação. E, ao dispor da
emoção com intensidade, ele se distingue dos animais por receber do adulto, de outras pessoas
e, principalmente, da mãe, aquilo que precisa para poder satisfazer suas necessidades e
promover o seu bem-estar.
As três emoções básicas são: a alegria, a cólera e o medo. Precisamos entendê-las
para podermos perceber os seus efeitos no espaço da sala de aula. As aulas podem ser
agradáveis ou não. Os alunos poderão sentir prazer ou desprazer. E, com efeito, eles reagirão
ao ambiente. Conflitos podem surgir e caminhar para situações mais graves se não forem
devidamente contornados. O espaço e o mobiliário, quando inadequados, contribuem para
tornar o ambiente desagradável.
A tristeza e o mal-estar se instalam e, por conseguinte, não é incomum um aluno ter
um acesso de cólera, pois ele carrega angústia em decorrência desses vários aspectos e
circunstâncias que invariavelmente o afetam, inclusive familiares. Temos a cólera centrípeta e
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a projetiva; são as reações desse aluno em resposta ao ambiente que considera inadequado e
ao próprio estado emocional que se encontra. Na cólera centrípeta, há uma introspecção, que
pode gerar tristeza e angústia. A indisciplina passiva, que é disruptiva, pode ser consequência
de uma cólera centrípeta. Não menos inconveniente é quando um docente se depara com
alunos reagindo contra o meio, chutando lixeiras, ou contra os outros alunos. E ainda sobra
espaço para a agressividade ou violência contra o professor. Nesses casos, temos a cólera
projetiva. Geralmente, o medo é mais tardio que a tristeza, a angústia e a cólera. O seu grande
perigo é a imobilização no que se refere à aprendizagem. É nesse sentido que o docente deve
se preocupar com o ambiente emocional da sala de aula.
O ambiente da sala de aula é ideal para a proliferação dos mecanismos da emoção.
Wallon nos aponta quatro mecanismos: a contagiosidade, a plasticidade, a regressividade e a
labilidade. Na contagiosidade, há a capacidade de contagiar o outro na transmissão do prazer
ou do desprazer. A emoção de um aluno pode contaminar os demais, gerando prazer ou
desprazer A plasticidade ocorre quando o corpo reflete os sinais da emoção, como o rubor da
face ou uma contração muscular. Portanto, o professor pode perceber fisicamente algumas
reações emocionais em seus alunos, porque estas são visíveis. Na regressividade, a emoção
faz as atividades de raciocínio regredir; e, na labilidade, ocorre a capacidade de uma emoção
se transformar em outra. Esta última muito comum em crianças, que vão do choro ao riso e
vice-versa, em segundos.
Por último, temos a paixão, que é exatamente o autocontrole da emoção. Quando um
ser humano tem autocontrole, ele domina a emoção e consegue agir racionalmente. No
entanto, apenas os adultos podem usufruir, eventualmente, de autocontrole de uma emoção.
As crianças não conseguem exercer tal domínio, principalmente até o estágio do
personalismo. Mas as crianças têm um comportamento peculiar porque a emoção pode cessar
se não houver plateia. É comum uma criança parar de chorar quando percebe que está
sozinha, assim como pode voltar a chorar quando alguém aparece. Na sala de aula, é difícil o
autocontrole da emoção do aluno. Surge a necessidade de auxiliá-lo para superar o momento e
não provocar conflitos.
Essas emoções podem se manifestar como decorrência de um projeto pedagógico da
escola. Portanto, a depender do projeto, podemos ter – em menor ou maior escala – a
manifestação de emoções no ambiente escolar, agradáveis ou desagradáveis. Mas o que é um
Projeto Político-Pedagógico? Ele tem direção? Como é construído? Todo projeto pedagógico
tem uma direção, uma intenção, portanto, ele é político. A maioria das pessoas faz referência
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a esse documento incluindo a palavra “político”. Na expressão “projeto político-pedagógico”,


esse termo pode ser suprimido porque fica subentendido que qualquer projeto pedagógico é
político. O projeto é a alma, a identidade da escola, de maneira que deve ser o compromisso
com as boas práticas educativas. Sua construção tem que envolver e mobilizar a comunidade
local, pais de alunos, alunos, professores, equipe técnica e funcionários. Um projeto
construído coletivamente é um projeto empoderado. É também um documento porque tem
previsão legal.
Com a redemocratização na década de 1980 e, mais especificamente, com o fim da
ditadura militar, tivemos redefinições na área da educação. A escola ligada à ditadura e aos
interesses do Estado cedeu espaço para o início da democratização. O Projeto Político-
Pedagógico se afirma nesse período, porque era um desejo de todos participar das decisões em
relação à escola e, ao mesmo tempo, porque o antigo regimento não conseguia atender às
novas demandas. Com esse novo instrumento pedagógico, viabilizou-se a possibilidade de
alterar antigas concepções educativas, que reproduziam as injustiças sociais. É por essa razão
que o projeto pedagógico não deve ficar escondido, mas sim, socializado.
Procedemos à leitura e à análise do Projeto Político-Pedagógico da EMEF Campos
Salles, de 2015, com ênfase na dimensão pedagógica. Nossa percepção conclusiva é a de que
esse projeto estabelece certas práticas pedagógicas que podem possibilitar a manifestação de
emoções e sentimentos agradáveis no ambiente escolar, haja vista que é afetivo. Destacamos a
Comissão Mediadora de Estudantes e a tutoria, bem como a República de estudantes, além
dos princípios da escola, a saber: a escola como centro de liderança; tudo passa pela
educação; responsabilidade; solidariedade e autonomia. Antes de nos reportarmos a esses
princípios, introduzimos uma breve história da escola, a fim de fornecer o contexto que deu
causa ao projeto responsável pelas mudanças.
A EMEF Campos Salles surgiu em 1956 e acompanhou o processo de favelização de
seu entorno, em Heliópolis, com uma população, em 2015, aproximada de duzentas mil
pessoas, das quais crianças e adolescentes somam quase a metade. Em relação aos adultos, a
maioria é de migrantes nordestinos, vítimas do desemprego, da violência e de vários outros
problemas sociais. Quase todos os alunos da escola moram na favela e são muito carentes de
recursos. Em 1995, a escola apresentava problemas de violência envolvendo esses alunos e
pessoas ligadas ao crime, quadro que perdurou por muitos anos. O ambiente era de
professores e alunos envolvidos em conflitos, sendo que as práticas pedagógicas não
funcionavam. Em 2005, o Projeto Político-Pedagógico apresentado introduziu uma maneira
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diferente de se construir o saber. Houve uma passagem daquelas antigas concepções que viam
a criança como um ser menor e incompleto para uma concepção em que a criança é um ser
integral, capaz de se organizar, individual e coletivamente, e ser portadora de saber. Deste
modo, o trabalho docente foi reinterpretado e passou a ser compartilhado.
Algumas práticas da educação na cidadania merecem destaque. Consta no Projeto
que aproximadamente dez estudantes fazem parte da Comissão Mediadora de Estudantes,
constituída em cada salão por meio de eleição. A Comissão não tem um caráter disciplinador,
mas convida os alunos envolvidos em conflitos a refletirem sobre seus atos e
comportamentos. Quem os lidera e orienta é o Tutor, que é um dos educadores do salão. O
Projeto Político-Pedagógico é uma espécie de Constituição para a República dos Estudantes,
direcionado para a prática da democracia no espaço escolar. O prefeito, o vice-prefeito e os
quatro secretários constituem o Poder Executivo; vereadores, prefeitos e estudantes decidem
pelas normas mais votadas por salão para cumprimento e execução, além da elaboração e
implementação de projetos.
Especificamente em relação aos princípios, temos algumas ideias: a primeira é a de
que, se a escola deseja não reproduzir injustiças sociais, não pode atuar isoladamente,
desconsiderando a comunidade; a segunda é a de que o educador-cidadão educa o aluno de
forma contextualizada com a sociedade, mas não o educa sozinho, pois tudo passa pela
educação. Busca mudar a sociedade e a escola, que caminham juntas; a terceira nos diz que a
concepção de responsabilidade significa que o aluno é responsável por seus atos decorrentes
da autonomia de que usufrui e não pode prejudicar o outro; a quarta é a de que a autonomia é
a possibilidade de escolher o próprio caminho, principalmente dentro do salão; a quinta se
refere à solidariedade e se traduz em um vínculo do sujeito com o outro, com o grupo social e
com a própria humanidade. Ela aparece muito na relação professor-aluno e é fundamental
para a resolução de conflitos, bem como no acompanhamento dos roteiros estudados pelos
alunos, tanto os integrados quanto os temáticos..
Abrimos nossas discussões envolvendo as entrevistas e as observações realizadas, a
partir da categoria afetividade e das respectivas subcategorias interseccionadas. Para efeito de
estudo, adaptamos a ambiência, em Wallon, ao ambiente escolar. Discutimos os conflitos
existentes na escola antes da implementação do Projeto Político-Pedagógico, com alguns
trechos recontados, desta feita, a partir do imaginário dos entrevistados. Com esse imaginário,
também traçamos um panorama das transformações, dos obstáculos e de como o ambiente se
transformou. Na subcategoria espaço, demos ênfase aos significados da derrubada dos muros
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da escola, das paredes das salas de aula – para transformá-las em salões – e da retirada das
maçanetas. Significados que extrapolam o físico e atingem o psicológico dos docentes. Assim
se desenvolveu a discussão. Dado que os principais atores dos conflitos foram professores e
alunos, abrimos as subcategorias docência e discência visando refletir sobre as novas posturas
dos docentes e dos alunos, que permanecem enquanto a essência do projeto existir.
O ser humano é o ingrediente para a existência de conflitos, que podem surgir em
qualquer lugar. O ambiente escolar não é, portanto, uma exceção, ao contrário, os conflitos
são muito comuns e, se não forem controlados, podem desencadear indisciplinas,
agressividades e até mesmo violências. Antes da implementação do Projeto Político-
Pedagógico na EMEF Campos Salles, tínhamos um ambiente adverso do ponto de vista
afetivo. O desafeto reinante atingia as relações e as interações, principalmente entre alunos e
professores; era uma relação muito violenta. Esse estado de acontecimentos paralisava as boas
práticas pedagógicas e a aprendizagem, por conseguinte, ficavam comprometidas.
Nas entrevistas, identificamos várias expressões e palavras que faziam alusão à
postura docente. Um profissional que praticava a “Pedagogia da maçaneta”, isto é, ficava
trancado na sala de aula e colocava em prática a sua própria concepção de educação, fechado
em sua disciplina. Permanecia na “posição de ensinar”, como “dono do saber que fica em um
pedestal”. Ao aluno, cabia apenas cumprir as ordens e fazer cópias intermináveis, bem ao
estilo da escola tradicional, em uma “prisão”. Ou seja, um aluno sem voz, fraco, imobilizado
na posição de aprender. Para o então diretor e para um determinado grupo de professores, a
escola precisava urgentemente mudar. E a mudança se deu com a implementação do Projeto
Político-Pedagógico, que se tornou viável somente devido à grande mobilidade ao seu redor,
envolvendo a comunidade, pais de alunos, alunos, professores, equipe técnica e funcionários.
Algumas entrevistadas relataram que não existiam muitos obstáculos a essa
mudança, mas, o então diretor, que foi o protagonista na elaboração do projeto, fez referências
ao grande sofrimento a que foi submetido. Essa transformação envolveu fortes emoções e,
mesmo a contar do decreto que legalizou o projeto, desenvolveu-se gradativamente. Todos os
entrevistados concordaram que o ambiente escolar mudou para melhor, porque o professor
reinterpretou seu papel e o aluno passou a ser visto como um protagonista, um ser forte,
sujeito de direitos, responsável, solidário e autônomo, capaz, portanto, de construir o
conhecimento próprio e de se organizar individual e coletivamente. Encerramos com um dos
aspectos mais importantes dessa transição para um contexto democrático e afetivo: a palavra.
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Um professor cuja autoridade da palavra deixou de ser considerada vazia, e um aluno que
passou a ser visível, com direito à voz.
As alterações radicais do espaço contribuíram para o fortalecimento das novas
posturas. Referimo-nos à derrubada dos muros da escola, à derrubada das paredes das salas de
aula e à retirada das maçanetas. Tais alterações podem ser vistas sob o ângulo das novas
configurações físicas e sob o prisma psicológico, que diz respeito ao que elas representaram
para as pessoas.
Do ponto de vista prático, a derrubada dos muros da escola tornou-a visível e mais
acessível. De outra forma, simbolizou a queda das disciplinas, o fim do ensino tradicional e
também a eliminação dos obstáculos que separavam a escola da comunidade. Emergiu uma
nova escola, aberta a todos, de inclusão social, democrática e republicana. A derrubada das
paredes das salas de aula, a fim de transformá-las em grandes salões, e a retirada das portas
(maçanetas) possibilitaram novas configurações físicas, de maneira que o espaço foi moldado
para o funcionamento das práticas pedagógicas implementadas. Um salão que abriga cerca de
cem alunos, divididos por fileiras, denominadas: responsabilidade, que fica ao lado da entrada
e saída; solidariedade, que fica ao meio; e a autonomia, que fica do lado das janelas. Cada
fileira tem várias mesas e, em cada mesa, quatro alunos.
Na vertente psicológica, a demolição das paredes da sala de aula e a retirada das
maçanetas representaram a derrubada das paredes internas, principalmente dos professores.
Há referências nas entrevistas acerca do abandono do “eu” do professor para poder trabalhar
em equipe, de modo solidário e compartilhado. Diante de tais declarações, entendemos que
um professor de natureza egóica não consegue incorporar a concepção educativa estabelecida
pelo projeto. Existe a possibilidade de um professor com tal perfil boicotar as práticas
pedagógicas – apesar de não termos observado tal fato – ou mesmo pedir remoção da escola,
conforme relatos de alguns entrevistados. A ausência de portas representa o fim da “prisão”
dos alunos, de modo que estes podem se movimentar, inclusive para fora do salão, facilitando
o exercício de sua responsabilidade, solidariedade e autonomia.
A movimentação no salão não é uma bagunça, tal como poderia se supor ao se entrar
em contato, pela primeira vez, com os alunos do salão. É um movimento muito pedagógico.
Não podemos deixar de lado que Wallon enxerga a pessoa completa, isto é, integrada. Isso
aparece nos campos funcionais: o movimento, a afetividade e a inteligência. Ele não prioriza
nenhum desses campos. Todos se integram e as conquistas de um campo reverbera no outro.
130

Portanto, o movimento, principalmente para a criança, é muito importante para seu


desenvolvimento afetivo e cognitivo.
Até esse ponto, podemos afirmar que nossa hipótese se confirma, na medida em que,
de fato, o Projeto Político-Pedagógico da EMEF Campos Salles é afetivo. A manifestação da
afetividade no ambiente escolar, em especial a emoção, decorre das alterações que o projeto
promoveu, ao substituir antigas concepções educativas para introduzir uma concepção
inovadora e democrática. Resta-nos, então, afirmar se as professoras são afetivas. Foi por essa
razão que observamos, de modo geral, o trabalho das três professoras do salão. Cada qual
responsável ou tutora de um grupo de alunos de determinada fileira (responsabilidade,
solidariedade e autonomia).
Ao final das observações que realizamos sobre o trabalho dessas professoras,
sentimo-nos na obrigação de afirmar que elas, com efeito, são afetivas. A afirmação baseia-se
em um trabalho compartilhado e solidário, repleto de preocupações. Uma dessas
preocupações é de contextualizar o aluno. Para tanto, elaboram os roteiros integrados para o
estudo ao longo do ano; além disso, também concebem os roteiros temáticos, aplicados uma
vez por semana. Esses roteiros são construídos entre as professoras, de comum acordo, e
submetido ao crivo da coordenadora. Os assuntos dos primeiros roteiros integrados são
escolhidos por meio de voto, na reunião da Assembleia de Estudantes. Assim, surgem temas
atuais da sociedade, contidos em histórias, cinemas e em outros meios. Nos demais roteiros, a
escolha é realizada pelas docentes; nos temáticos, os assuntos são oferecidos por elas e são de
relevância social. Utilizam o Google Drive para organizar seus trabalhos. Nas oficinas,
aprofundam os tópicos que estão sendo estudados. Elas não seguem as chamadas “cartilhas”,
ou qualquer palavra análoga a esta.
A afetividade também aparece no salão. As professoras são muito observadoras e
passam constantemente pelas mesas a fim de acompanhar o estudo dos alunos, ou se deslocam
a pedido, quando algum deles levanta a mão. Primeiramente, eles procuram resolver os
problemas sozinhos, posteriormente, um ajuda o outro e, por último, chamam o professor. O
docente não fornece respostas, mas elabora questões de modo a estimular o interesse discente
em refletir e pesquisar para, assim, obter a resposta. Quando percebem que algum aluno está
com problemas emocionais, podem orientá-lo a convocar a Comissão Mediadora de
Estudantes do salão. A Comissão também convida os alunos envolvidos em conflitos para
comparecerem à reunião. Há casos em que professores podem ser convocados a dar
explicações.
131

Portanto, a Comissão funciona de modo a administrar conflitos e ouvir alunos com


problemas emocionais e não tem caráter disciplinar. O aluno pode convocar uma reunião para
relatar e expressar o que está sentindo, inclusive em relação ao seu ambiente familiar. O ex-
diretor fez relatos de toda a emoção que envolve essas reuniões, fazendo referências a alunos
que choraram copiosamente.
Acompanhamos o trabalho de tutoria de uma das professoras do salão. Na
oportunidade, um aluno foi convidado a se explicar sobre seu comportamento inconveniente,
haja vista que tinha agredido um colega de salão. Na sala de reunião, a tutora verbaliza sobre
o acontecido e todos os alunos que compõem a Comissão emitem a sua opinião a respeito: é a
chamada “roda da verdade”. O objetivo é compelir o aluno a refletir sobre seus atos e, assim,
pedir desculpas ao colega. Isso foi feito e todo o processo ocorre sob fortes emoções. Os pais
podem ser convocados pela Comissão no caso de o aluno não reconhecer seus atos ou se
recusar a refletir sobre eles. Nas entrevistas, há passagens em que fica evidente a dificuldade
dos pais para se colocarem diante de uma Comissão de Estudantes.
Por derradeiro, nossa discussão converge para a nossa visão da escola, em função do
que observamos e analisamos: uma escola democrática, envolvida com a comunidade,
comprometida com a inclusão e com a justiça social; republicana, com uma “Constituição”
arrojada e inovadora, representada por seu Projeto Político-Pedagógico, que possibilitou o
impacto da afetividade agradável em seu ambiente e constituiu o grande instrumento das
transformações.
Sentimos que a transmissão do saber tomou um caminho afetivo, em um ambiente
marcado pelo desejo de ensinar do professor e pelo anseio de aprender do aluno. Desejos e
anseios mesclados de tal maneira, que um aprende com o outro, com base nos princípios da
escola.
Acompanhamos professoras-cidadãs e afetivas, que permanecem ao lado do aluno
para ajudá-lo na sua caminhada educativa interminável, contextualizando-o e enxergando-o
como uma pessoa completa e integral. Um sujeito de direitos, capaz de se organizar individual
e coletivamente; com voz, autônomo, responsável e solidário; e ainda capaz de construir o
conhecimento próprio. Sabedoras de que a criança não vai à escola sozinha, mas
acompanhada de sua circunstância familiar. Portanto, não são rotuladas com características
que elas não têm. Isto é, uma relação marcada pelo entendimento mútuo, pelo diálogo, pela
amizade e por um forte vínculo emocional, base do respeito ao outro, que coloca em destaque
a dignidade da pessoa humana..
132

Ao longo de nossa pesquisa fomos tomados por uma emoção que nos envolveu, no
momento em que percebemos, no salão e em todos os cantos da escola, de forma definitiva,
com toda a isenção de um pesquisador, a forte presença de Wallon.
133

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137

APÊNDICE
138

ROTEIRO DE ENTREVISTA
EX-DIRETOR DA ESCOLA1

P 1. Gostaria de fazer uma breve apresentação pessoal?


P 2. Você pode fazer um breve relato dos aspectos principais de sua história de vida profissional?
P 3. Por que a EMEF “Presidente Campos Salles” precisava de um Projeto Pedagógico
significativo?
Em relação ao Novo Projeto Pedagógico (P 4 a 7)
P 4. Provocou reações emocionais nos docentes? De que maneira poderiam ser percebidas essas
reações?
P 5. Propiciou alterações no trabalho docente? Por favor, discrimine as principais alterações?
P 6. Provocou reações emocionais nos alunos, nas interações na sala de aula? De que maneira
poderia ser percebida essas reações, nas interações abaixo?
a) Interação professor – aluno.
b) Interação aluno – espaço e ambiente.
c) Interação aluno – aluno.
d) Interação aluno – conteúdo.
P 7. É possível notar alguma relação entre essas interações (P – 6) e a autonomia, responsabilidade
e solidariedade? Poderia discriminar?
P 8. Você reagiu emocionalmente à implementação e aos resultados do Novo Projeto Pedagógico?
De que forma ela ocorreu?
P 9. Qual é sua atual função na Delegacia Regional de Educação Ipiranga (DRE) e quais os motivos
que o conduziram a essa nova função? Há quanto tempo você a exerce?
P 10. Quantas escolas a Delegacia possui? Você tem intenção e considera viável implementar
nessas escolas um Projeto Pedagógico semelhante ao da “Campo Salles”?
P 11. Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?

1
O nome do ex-diretor da escola foi mantido, haja vista a sua anuência.
139

ROTEIRO DE ENTREVISTA
COORDENADORAS2

P 1. Poderia responder qual é a sua idade e formação (Instituição/curso/ano)?


P 2. Qual o Estado e cidade de seu nascimento?
P 3. Você sempre lecionou em São Paulo (Estado, prefeitura, município)?
P 4. Você lecionou na EMEF Presidente Campos Salles? Quanto tempo?
P 5 Há quanto tempo você é Coordenadora Pedagógica na Campo Salles?
P 6. Poderia citar os dois principais motivos que a fizeram escolher a EMEF “Presidente Campos
Salles” para exercer a função de Coordenadora Pedagógica?
P 7. Por que a EMEF “Presidente Campos Salles” precisava de um Projeto Pedagógico
significativo?
Em relação ao atual Projeto Pedagógico (P 8 a P 11)
P 8. Provocou reações emocionais nos docentes? De que maneira poderiam ser percebidas essas
reações? Propiciou alterações na postura do professor na sala de aula?
P 9. Propiciou alterações no trabalho docente? Por favor, discrimine as principais alterações?
P 10. Provocou reações emocionais nos alunos, nas interações na sala de aula? De que maneira
poderia ser percebida essas manifestações, nas interações abaixo?
a) Interação professor – aluno.
b) Interação aluno – espaço e ambiente.
c) Interação aluno – aluno.
d) Interação aluno – conteúdo.
P 11. É possível notar alguma relação entre essas interações (P 10) e a autonomia, responsabilidade
e solidariedade? Poderia discriminar?
P 12. Você reagiu emocionalmente à implementação e aos resultados do Novo Projeto Pedagógico?
De que forma ela ocorreu?
P 13. No exercício de sua função, as suas decisões são emocionais? Poderia fazer algum comentário
a esse respeito?
P 14. Gostaria de acrescentar algo de relevante?

2
Os nomes das coordenadoras da escola foram mantidos, haja vista a sua anuência.
140

ROTEIRO DE ENTREVISTA
PROFESSORAS DO ENSINO FUNDAMENTAL REGULAR II 3

P 1 - Poderia responder qual é a sua idade e a sua formação?


Professora -
P 2 - Qual o Estado e cidade de seu nascimento?
Professora -
P 3 - Você sempre lecionou em São Paulo (Estado, prefeitura, município)?
Professora -
P 4 - Você leciona atualmente apenas na EMEF Presidente Campos Salles? É concursada?
Professora -
P 5 - Há quanto tempo você exerce a docência?
Professora -
P 6 - Há quanto tempo você é professora na EMEF Presidente Campos Salles?
Professora -
P 7 - Poderia citar os dois principais motivos que a fizeram escolher a EMEF Presidente
Campos Salles para exercer a profissão docente?
Professora -
P 8 - Quais os motivos que conduziram a EMEF Presidente Campos Salles a reestruturar seu
Projeto Político-Pedagógico?
Professora
P 9 - Você poderia citar os principais atores envolvidos na construção do Projeto Pedagógico
vigente?
Professora -
P 10 - Quais foram os principais obstáculos para a implementação desse projeto?
Professora -
P 11 - Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por quê?
Professora -
P 12 - O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente? O que
se destaca nesse trabalho?
Professora -

3
Os nomes foram alterados, a pedido, a fim de preservar a identidade das docentes.
141

P 13 - O Projeto Pedagógico da Campos Salles contempla a figura do professor-cidadão.


Neste sentido, como você coloca em prática o exercício da docência na Campos Salles?
Professora -
P 14 - Em termos afetivos, para professores e alunos, o que representou a derrubada das
paredes e a retirada das maçanetas, com a alteração do espaço, transformando as salas de aula
normais em salões?
Professora -
P 15 - Na sua perspectiva, como os alunos interagem, no tocante à afetividade, com os
roteiros integrados, com outros alunos e com o professor no salão?
Professora -
P 16 - Na “Campos Salles”, onde aparece a autonomia, a responsabilidade e a solidariedade
conferida aos alunos?
Professora -
P 17 – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a educação
na cidadania?
Professora -
P 18 – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Professora -
142

ENTREVISTA: DIRETOR BRAZ – DRE/IPIRANGA


DATA: 04 DE MAIO DE 2016
LOCAL: SEDE DA DRE/IPIRANGA

Braz – Então, Sérgio...


Sérgio – Boa tarde, hoje é dia 4 de maio, nós estamos na sede da DRE/Ipiranga. Nós podemos
começar a entrevista?
Braz - Podemos e eu, antes de tudo, eu queria agradecer o teu interesse pelo projeto da escola
“Campos Salles”, você já esteve lá durante a sua graduação e eu fico muito feliz que agora,
mestrando, que você está fazendo... então, pra gente é uma honra e eu gostaria de afirmar aqui
para você que você pode utilizar o meu nome nesse trabalho, eu acho isso fundamental, a
gente tem que dar as caras então, prá mim, é uma honra você utilizar meu nome no trabalho
de mestrado.
Sérgio - Você gostaria de fazer uma breve apresentação pessoal?
Braz – Acho fundamental essa questão da história pessoal e explica muito das coisas que eu
acabei fazendo depois. Nasci na roça. Meu pai sempre morou em terras de outros, nunca teve
terra. Ele era um sem-terra, trabalhava na terra dos outros. Na roça onde eu nasci, tinha uma
escola rural que ficava 12 km da minha casa. Sei que são 12 km porque eram 12 léguas e uma
légua dá 6 km, então, 12 km. Entrei nessa escola e andava todo dia 12 km para ir e 12 Km
para voltar. Tínhamos um problema ali, porque essa escola era primário só que terminava o
terceiro ano e não tinha o quarto ano, então, a população dali não tinha o direito de fazer o
primário, tinha direito de fazer três anos do primário. Eu tinha um tio que morava em
Auriflama, que é uma cidade do noroeste do Estado de São Paulo e que ficava 30 km da roça
onde a gente morava. Meu pai e minha mãe fizeram um acordo com esse tio e fui para lá
terminar o quarto ano primário. Acabei ficando por lá até o meio do terceiro ano do ensino
médio. Fiquei lá durante sete anos e meio. Um dia desses, sendo entrevistado sobre a minha
origem, descobri que durante esse período que fiquei em Auriflama para fazer o quarto ano, o
ginásio e dois anos e meio do ensino médio, morei em sete casas diferentes! Em uma dessas
casas que eu estava, mandaram-me embora. Ao invés de voltar para minha terra, para minha
casa, para roça para ser um roceiro, eu acabava procurando outra pessoa para morar na casa
dela. No terceiro ano do ensino médio, no primeiro semestre que fiquei na cidade de
Auriflama, comecei a me sentir muito mal, porque, naquela época, era difícil uma pessoa das
classes mais pobres estudar. Ali, eu estudava com filhos de comerciantes, de fazendeiro, de
143

sitiantes. Eu era um dos mais pobres e ficava na casa dos outros para estudar. Eles começaram
a ter expectativas. Um queria fazer veterinária, o outro queria fazer advocacia, o outro queria
fazer enfermagem... e eu não tinha nada para fazer. Acabei os estudos. A gente tinha um
amigo que servia na aeronáutica aqui em Pirassununga e botei na cabeça que eu ia lá. Eu
queria ser oficial aviador e acabei entrando lá, mas entrando para fazer o serviço militar e o
sonho era ser oficial aviador. Às vezes, ficava deitado vendo os aviões decolando,
aterrissando e esse sonho se desfez em uma tarde... Na academia da força aérea, tinha um
evento que se chamava O Paradão, na sexta feira. Eram 1.500 homens perfilados. Ocorria
uma cerimônia. Havia o oficial do dia, que era responsável por todo o andamento da
academia, oficiais superiores e soldados. O oficial do dia dava o comando para um corneteiro
e, enquanto ele tocava a marcha, o sargento do dia hasteava uma bandeira. Quando o oficial
do dia deu o comando, o sargento não tinha desamarrado a cordinha da bandeira e ele
começou a ficar igual doido. Um oficial superior disse: SEU IRRESPONSÁVEL! Eram 1.500
homens sem microfone, sem nada. Aquilo entrava dentro da gente como se um fosse um
médico operando a sua filha que estivesse pra morrer. Esse sargento tinha uma cara... Tem
pessoa que você olha e sente pena, inspira pena e ele tinha essa fisionomia. Aquilo para mim
foi muito doído porque eles ensinavam a gente que, quando um oficial te desacatasse, te
ofendesse moralmente, você tinha o direito de se apresentar: “Com licença. Fulano de tal se
apresentando e pedindo licença para dar parte.”. E eu acreditava nisso, mas ali desmontou
tudo. Falei: “Não vou mais, não quero mais isso aqui”, mas acabei ficando porque eu não
tinha o diploma. Quando saiu o exame para cadete, acabei fazendo o de especialista. Então,
dei baixa e saí de lá e eu ia para Guaratinguetá. Mas, por que estou falando isso? Estou
falando isso porque eu ajudava o padre em Auriflama a rezar a missa, fazer leitura... também
dava a hóstia, dava a comunhão. Gostava muito daquelas músicas que tocavam à tarde na
igreja. O padre Pedro foi me visitar em Pirassununga uma vez, depois foi uma segunda e
depois uma terceira. Na terceira vez que ele foi, falei: “Não dá pra ficar aqui. Não vou ficar
mais. Não sei o que eu vou fazer”. Ele falou “Por que você não vai para o seminário!?” (ele
sorriu). Eu disse: “Ah, para mim não é possível, eu gosto muito de mulher!” (risos). Ele falou:
“Oh, rapaz! Você é normal! Não tem nada a ver uma coisa dessas. Você vai tentar sublimar.
Nem estou falando que você vai conseguir, mas não é isso que tem que te impedir de ir, muito
pelo contrário!”. Então, aceitei. Vim para cá, para São Paulo, e fiquei ali na Nazaré, no
seminário que o nome era Paulo Paulitano. Teve uma época que era seminário central, onde é
a FAI hoje. Vim para fazer filosofia pura. Quando começaram as aulas, senti-me perdido,
144

totalmente deslocado, quer dizer, estudei na roça, durante o ginasial adquiri um complexo de
ser burro por causa da matemática que me ferrou a vida. Até o quarto ano, matemática para
mim era a coisa mais tranquila possível, depois essa matemática moderna, essas fórmulas etc.
e tal e coisa... aí me ferrou a vida! Na segunda-feira, tinham duas aulas e, às vezes, eu faltava.
Andava 30 km a pé no sábado para ver minha família e às vezes eu ia às aulas de sábado. Saía
meio-dia e, quando chegava em casa, já estava escuro. Eram 30 km para um moleque, então
você imagina! No domingo, às vezes, a saudade era tanta que eu não queria ir embora, então,
acabava ficando. Vinha na segunda e perdia a aula. Isso me atrapalhou muito a vida, porque
adquiri certo complexo. Aí, caí aqui na Filosofia e, depois de um mês, mais ou menos, tomei
coragem, procurei o reitor, o senhor José Maria que dava aula na Teologia de Moral, e falei:
“Professor, estou indo embora, não dá pra mim. Em cada dez palavras que os professores
falam, quatro nunca ouvi falar. Então, nem sei o que eles estão falando. Para piorar minha
situação, os alunos perguntam, discutem. Nem sei o que eles estão falando.”. Ele me disse:
“Vou dizer uma coisa pra você. Você é uma pessoa que tem muito valor! Tem
espontaneidade! É direto nas coisas! Você não vai embora, não! Vai arregaçar as mangas.
Você vai ver que vai passar. Vai ver que isso que os teus amigos falam, eles deveriam ficar
quietos.”. No outro dia, com o único dinheirinho que eu tinha, fui até o Vale do Anhangabaú,
em um lugar que vendia livros/dicionários mais baratos. Comprei um de português, um de
filosofia desse tamanho e, às vezes, passava a noite por OITO HORAS na página de um
filósofo, porque era comum estudar uma língua estrangeira. Olhava no dicionário de filosofia,
o sentido não batia, depois olhava no de português. Fui fazendo esse exercício e aos poucos
fui adquirindo segurança. No final do primeiro semestre, já me sentia quase que normal e, a
partir daí, comecei a estudar. Chegou um momento que comecei a questionar a ideologia
católica/religiosa, essa questão dos dogmas. Eu ia sair do seminário e teria que levar isso para
os outros, como a virgindade de Maria, etc. Tudo era problema para mim. Parei de ir à missa.
Tinha que tomar uma decisão e falar para o meu bispo: “Dom Luiz, estou fora! Não vou mais.
Não quero mais ser padre. Não dá mais pra mim.”. Mas, não é uma decisão fácil, porque,
afinal de contas, a diocese arcou com todas as despesas e eu era diocesano da diocese de Jales.
Não era tão simples chegar e dizer a ele. Então, um dia aqui em São Paulo o reitor me chamou
e me mandou embora do seminário. Fiquei feliz porque eu não ia ter que tomar a decisão. Se
ele havia me mandado, era sinal de que o bispo havia conversado com ele. Fui para Jales de
férias. Cheguei à casa do bispo, a mãe dele me atendeu e falou: “Eu e Dom Luiz estamos
revoltados, porque ele sempre te elogiou, sempre te colocou lá em cima e agora ele toma uma
145

decisão dessas sem falar com ninguém! Ser padre é uma possibilidade tua e só depende de
você!”. Ferrou tudo! Porque, dessa forma, eu teria que assumir. Foi difícil! Tive uma
conversa, depois outras... várias conversas, até que o bispo entendeu que eu não voltaria mais
para o seminário. E essa é a história, ou seja, saí do seminário com o curso de Filosofia,
licenciatura em Estudos Sociais, Psicologia e o curso de Teologia incompleto, no qual cursei
como ouvinte, no último ano, duas ou três matérias... nem lembro direito. Mas, qual é o
problema? Eu teria que sobreviver. O que eu ia fazer? Tinha uns amigos que ficavam em uma
república e fui para lá. Fui sem trabalho, sem nada. Aí que começou o calvário de procurar
trabalho. Tem tantas histórias que não interessa dizer aqui, mas a coisa foi tão difícil que três
vezes já coloquei a gilete na jugular. Dessa forma, resolveria o problema. Mas, não usei a
gilete e virei professor por acaso.
Sérgio – Vou aproveitar o ensejo e já te fazer a segunda pergunta que realmente é a
questão da profissão de professor. Você pode fazer um breve relato dos aspectos
principais de sua história de vida profissional?
Braz – Com os meus cursos, eu podia dar aulas de Filosofia, Estudos Sociais, Psicologia e
ensino religioso. Então, procurei emprego. Vários tipos de empregos, mas não conseguia. Um
dia, cheguei na faculdade onde tinha feito umas matérias como ouvinte e escutei um amigo
que dava aula na PUC, falando: “Tenho um amigo que pega essas aulas”. Quando eu entrei,
ele me viu e falou: “Ah, vem cá! A gente estava falando sobre aula. Lá no São Luís, tem 34
aulas de ensino religioso e eu estava falando que você pode pegar essas aulas.”. Então,
marquei com a freira. Fui até ela e conversamos. Fui contratado. Naquela época, o São Luís
era a escola que mais pagava. Era escola dos ricos. Fui até lá. Quando cheguei, o reitor queria
falar comigo e me disse: “Você tem que fazer esses jovens e adolescentes felizes!”. Eu estava
com essa questão religiosa muito forte, cabeça de revolucionário, aí eu falei: “Sabe, Padre, na
Teologia que eu estudei, Jesus Cristo nasceu para salvar os pobres, os indigentes e os
miseráveis. Minha consciência manda que esses adolescentes tenham problemas de
consciência” (risos). Ele falou: “Assim eu fico com medo de você!”. Eu disse: “O Senhor não
precisa ficar com medo, porque eu não quero as aulas!”. Ele foi muito humano comigo e
disse: “Não, missão você fica e pega.”. Tinha um cargo que era como um auxiliar de período
que cuida do fluxo de aluno, professor etc. Ele me falou: “Esse ano você fica aí. Você vai ver,
vai passar essa revolta. Ano que vem você pega as aulas que você quiser.”. Mas, eu disse que
não. Acabei pegando doze aulas de ensino religioso em outra escola que não pagava nem um
quinto do que o São Luís pagava, mas a questão da sobrevivência falou mais. Cheguei nessa
146

escola – Nossa Senhora das Dores, no bairro da Casa Verde. Deram-me um livro do padre
Zezinho e disseram: “O conteúdo é esse. Você vai dar aula para o terceiro”. Na sala, tinha
freira, mórmons, espiritualistas, tinha de tudo. Eu ia dar aula de religião católica apostólica
romana. Foi muito difícil. Comecei a correr atrás de aulas. Peguei umas aulinhas de filosofia,
em 1977, na Mooca, na escola chamada “C.M.D.C.”. Não foi legal esse primeiro ano. Eu até
gostava da coisa, mas tinha essa questão ideológica do ensino religioso e de filosofia para
reflexão. A gente não tinha hábito de dar aula e ver o que é que tinha na cabeça da meninada.
No ano seguinte, consegui contrato na prefeitura após quatorze dias enfrentando uma fila.
Chegando minha vez, pedi ao cara: “Senhor, dê-me vinte e quatro aulas, não interessa onde.
Não tenho onde morar, então, para onde o senhor me mandar, irei. Alugo um quarto perto.
Não há problema pra mim”. Ele me disse: “É, para você 12 está bom.”. Comecei a dar aula na
prefeitura, no “Leão Machado”, em 21/02/1978. Nessa escola, eu estava dando aula de
estudos sociais e comecei a me sentir em casa. Apesar de ter sido tudo por acaso, descobri que
eu estava ali no meu lugar, era aquilo que eu queria fazer. Fiquei três anos nessa escola.
Depois, a diretora quis fazer uma sacanagem. Como eu tinha direito às aulas e ela não havia
passado em concurso, pediu-me que eu dividisse as minhas aulas, mas para mim, as aulas já
eram poucas, eu precisava de 24 aulas, no mínimo. Eu falei para ela que não havia problema,
que eu podia ir embora. Dei minhas aulas para ela e fui lecionar no “Sílvio Martim Pires”.
Nessa escola, fiquei por 15 anos. Lá, descobri-me mais ainda como professor. A relação com
os alunos era muito forte. Quando aconteciam problemas sérios, eu ia até a casa do aluno para
discutir o problema com o pai desse aluno. Nessa escola, nos últimos cincos anos que fiquei
lá, consegui uma mudança muito grande na minha metodologia, na minha forma de dar aula,
porque fiz um curso de psicodrama e aplicava em minhas aulas. Lecionava através de aulas
expositivas e explicativas, com apoio de jornais velhos e textos que os alunos traziam. Eles
sentavam-se em grupos e eu dividia o tema em subtema. Em cada sala, havia cinco grupos.
Dava um subtema para cada grupo a partir das aulas que eu tinha dado e que eles tinham
participado, também, a partir das pesquisas que eles haviam realizado, que era a primeira
coisa que eles faziam quando iam estudar o iluminismo. Eu dava duas questões sobre esse
tema. Eles tinham que entrevistar uma pessoa dentro de sua casa e uma fora de sua casa e a
resposta poderia ser não sei. Descobri que aquilo que eu queria falar e que eu tinha para falar
aparecia naquilo que eles traziam, gozado isso! Dava trabalho, tinha que ler. Havia momentos
em que eles faziam círculos para uma representação. Eu chamava cada grupo. Eles
levantavam. Eu dava um tempinho para eles combinarem alguma coisa para representar.
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Podia até representar o contrário daquilo. Eles começavam a falar, conversar e perguntar sem
perceber. Após a discussão, eles iam para casa e todo mundo tinha que trazer um texto
referente àquilo. Essas aulas eram muito vivas, o aluno era muito ativo. De vez em quando, eu
pegava a chave da escola e ia para lá aos sábados. Conseguia levar de 500 a 700 alunos que
era mais ou menos a quantidade de alunos que eu tinha. Eu tinha equipe de segurança.
Chegávamos na escola. O único adulto era eu. Os pais passavam lá e alguns ficavam um
pouco e iam embora. No dia, a escola era a cidade de São Paulo, com tudo que ela tem. Tinha
debate político, aparecia deputado, prefeito. Foi uma experiência! Essa relação para mim era
tudo! Um dia, minha esposa falou: “Por que você não faz Pedagogia?”. Eu disse que não ia
fazer de jeito nenhum, pois não queria sair da sala de aula. Naquela época, quem fazia
Pedagogia era para poder sair da sala de aula, para fazer concurso para diretor, para supervisor
ou para coordenador pedagógico. À época, havia, também, outra função chamada orientador
vocacional. Eu não queria sair da sala de aula, mas acabei fazendo Pedagogia. Logo que eu
terminei o curso, teve um concurso de diretor e eu me inscrevi. Fiz o concurso. Quando estava
chegando a época de escolher, comecei a ficar grilado e a minha esposa me ajudou a fazer
uma lista com 14 escolas. A primeira escolha era a “Presidente Campos Salles”. Uma pessoa
que estava na fila de escolha da escola, pediu para olhar a minha lista e viu que a primeira
escolha era a “Campos Salles”. Então, ela me disse: “Não escolha essa escola de jeito
nenhum, pois ela atende a favela de Heliópolis. Um bando de marginal, baderneiro. Se você
for pra lá, vai sofrer demais”. Chegou minha vez. Escolhi essa escola e fui para lá. Sou diretor
até hoje, no momento, afastado, mas atuei por vinte anos nessa escola. Dei aulas durante 19
anos seguidos. Fui diretor por 20 anos e aqui eu estou há um ano (na DRE). Aquela questão
da relação professor-aluno, que dava sentido, foi ampliada, para a minha surpresa. Continuei a
ter vínculos com alunos e também a minha articulação com pai e com lideranças
comunitárias.
Sérgio – Por que a “Campos Salles” precisava de um projeto pedagógico significativo?
Braz – Quando cheguei lá, ou se fazia alguma coisa ou se mandava. A escola ficava cercada
por um muro de alvenaria que quem passava na (rua) Cavalheiro Frontini não via a escola,
porque ela ficava em um buraco. Tinha um muro de alvenaria altíssimo e lá no topo havia
estacas de ferro e três fileiras de arame farpado. Quando entrei lá, levei um susto, porque tinha
um mundo lá dentro que fora não se via. Diariamente, aconteciam de cinco a seis brigas, entre
alunos e não alunos, de arrancar sangue um do outro. Tinha verdadeiras redes de intrigas.
Quando ocorria uma briga, duas plateias se formavam. Uma incitava o João a brigar com
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Pedro e a outra que incitava o Pedro a brigar com o João. Era época das chacinas em
Heliópolis. Quando falavam que iam matar 14, matavam 18. Hoje ameaçam matar, mas não
matam; lá falavam e matavam. Era uma escola muito violenta. A relação professor-aluno
também muito violenta. Algumas pessoas achavam que tinham que chamar a polícia, outros
eram contra isso. Peguei brigas homéricas de uma coordenadora pedagógica que defendia os
alunos em qualquer situação, até sem princípio, e aqueles que achavam que o aluno tinha que
ser tratado como caso de polícia. Diante dessa situação, ou você se manda ou você fica.
Agora, o importante era ficar e ter um motivo para ficar, e eu tinha. Quando fui professor da
escola “Sílvia Martim Pires", eu e mais três professores tínhamos um trabalho com pais
voluntários e conseguimos um grupo de 50 a 55 pais que passaram a atuar quase que
diariamente na escola e aos finais de semana. Fazíamos festas, confraternização,
conversávamos, sonhávamos juntos e, principalmente, nos alimentávamos de esperança de
que era possível mudar a educação, que era possível mudar a escola. Nesse grupo dos 50 pais
e professores, entraram duas ideias na minha cabeça, não sei na cabeça deles o que entrou,
mas na minha entrou. Primeiro, que tudo passa pela educação. A cada dia que passa, me
convenço mais disso. A educação é tarefa de toda sociedade, de toda instituição, da família,
do estado e de toda entidade. Quando toda sociedade for educadora, logicamente, que a escola
vai começar a fazer melhor o seu papel, o seu trabalho. A escola não tem monopólio da
educação e, sozinha, ela não pode nada. Tinha que ter um trabalho na sociedade para libertar o
educador que tem dentro de cada um para que cada instituição assuma esse papel de educar,
de ajudar a construir um cidadão. A escola e os educadores deveriam liderar esse processo,
mas não sei se eles conseguem. Vemos fora da escola que algumas pessoas se constitui muito
mais educador do que dentro da escola. Essa é uma coisa que a gente tem que questionar. A
“Campos Salles” tinha que ser um centro de liderança na comunidade de Heliópolis. Um
centro de liderança articulado com as lideranças propositivas que abraçasse essas duas ideias,
ou seja, que tudo passa pela educação em escolas, centro de liderança e na comunidade onde
está inserida. Foram essas duas ideias que me possibilitou ficar, fazer a diferença e tentar
encontrar um jeito diferente de fazer educação na escola, porque não é só na escola, é para
além da escola. Essa integração que busquei desde o início com a comunidade, foi uma
integração no sentido de que os problemas da comunidade são problemas da escola e vice-
versa. Um dos problemas que desde o início afetavam tanto a escola como a comunidade era a
violência. Eu e duas coordenadoras montamos um curso lá que demos o nome de Educação e
Cidadania. Todos os pais que quiseram tiveram oportunidade de fazer esse curso que eram
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quatro reuniões. Foram 40% dos pais que fizeram o curso, 60% não fizeram. Não vinham
todos. Depois, aconteciam vários encontros. Nessas reuniões, mostrávamos uma escola
pública por dentro com toda a sua beleza e feiura, dizendo que ela é uma conquista da
humanidade e que nós não podíamos perder, de forma nenhuma, e que era responsabilidade
deles ajudar a eliminar essa feiura e fazer da escola um sinal de amor deles para com as
crianças, para com os filhos deles. A gente ia discutindo com as lideranças da comunidade.
Inclusive, nesse curso, todos os grupos tiveram líderes comunitários. Teve dois líderes
comunitários, João Miranda e o Geraldo, que participaram de todos os grupos. No final do
ano, fizemos uma assembleia com todos aqueles que participaram das quatro reuniões. Parte
da escola ficou cheinha. Foi bonito! Nasceram ali várias comissões e elas fizeram muita
diferença na escola. É... no ano de 1999, aconteceu o caso do assassinato da Leonarda. Foi
um acontecimento doloroso, mas que, por outro lado, deu força para que a gente tomasse uma
decisão. Vínhamos pensando em como íamos mostrar para os bandidos que nós não
aceitávamos a banalização da vida, quer dizer, sem nenhum critério, ou seja, decide matar,
mata e fica elas por elas. A gente discutia e não sabia o que fazer. Quando a Leonarda foi
assassinada, aproveitei a situação e propus fazermos uma caminhada pela paz nas ruas e vielas
de Heliópolis e pedi ajuda ao João Miranda, que era o presidente da UNAS, perguntando
“Vocês ajudam a organizar?” e ele me disse: “Meu irmão, meu amigo. Você não precisa mais
fazer uma pergunta dessas pra nós. Se a “Campos Salles” está, nós já estamos, porque, para
nós, não existe a escola lá e nós aqui.”. Nesse dia, percebi que as duas ideias já tinham se
tornado realidade entre a “Campos Salles” e Heliópolis. Tudo passa pela educação, escola
como centro de liderança. Nesse dia, ficou confirmado isso: a escola se propôs a fazer uma
caminhada que nunca tiveram coragem. Achavam que, se fizessem isso, iam ter represália dos
bandidos. De repente topam. A proposta veio da escola, veio do diretor da escola. Então,
fizemos essa primeira caminhada. A partir dessa caminhada, a escola que já estava sendo
referência no quesito escola-comunidade, começou a aparecer em revista e em jornal. Em
2001, foi lançado o projeto Escola Aberta. A “Campos Salles” foi a escolhida pra lançar esse
projeto. Era o governo da Marta. Em 2002, a escola foi visitada por um ministro da educação,
pelo presidente do conselho de educação norte-americano. Ele veio com uma equipe para ver
como é que uma escola de favela mantinha uma relação de respeito mútuo entre a escola e a
comunidade. Então, a escola começou a aparecer. Só que, quanto mais aparecia, mais triste
ficávamos, porque nós, que estávamos dentro da escola, é que sabíamos dos problemas. O
grande problema se referia às práticas pedagógicas que ocorriam dentro da sala de aula. Essas
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práticas ancoravam-se nas concepções de que a criança, o adolescente e o pré-adolescente


eram miniaturas de adulto, como uma tábula rasa, como se somente o adulto soubesse o que
era que bom para a criança, quer dizer, prática pedagógica que não ajuda a criança a se
constituir como sujeito da sua própria história, como sujeito da sua aprendizagem. Interferir
nisso é problema, porque essas práticas são seculares. Se não tiver estratégias, não tem como
interferir. Em 2004, apareceram na minha sala, três professoras que disseram que, no quesito
integração escola-comunidade, a nossa escola era modelo, mas que as coisas não rolavam
dentro da sala de aula. Esse era o meu problema. Eu falei para uma delas, que agora trabalha
no CEU “Parque Bristol”, mas até dois meses atrás estava no “Campos Sales”, se ela não
estava sendo como a maior parte dos brasileiros, que vê problema, mas quem tem que resolver
é o outro. Ela disse que não e que queria fazer uma proposta, dizendo que, em Portugal, na
Escola da Ponte, não tinha ciclo, não tinha seriação nem paredes. Questionei quantos alunos
tinham nessa escola. Ela me disse: “187”. Retruquei dizendo que aqui tínhamos 1.800.
Perguntei quantos períodos havia lá. Ela me disse: “Não, não tem. Eles entram de manhã e
saem à tardezinha.”. Retruquei dizendo que nós tínhamos quatro períodos. Fiz uma série de
pontuações. Elas foram embora. A partir daquele dia, quando eu chegava na escola,
encontrava um monte de bilhetinho embaixo da minha porta. Quando a porta estava aberta eu
encontrava os bilhetes em cima da mesa. Ela me provocava juntamente com aqueles que
defendiam a Escola da Ponte. Ganhei uma bolsa de estudos para fazer uma pós-graduação lato
sensu em Educação Comunitária, pela iniciativa da cidade escola-aprendiz, da Anhembi-
Morumbi. Iniciei essa pós no segundo semestre de 2004, que se estendeu até o final do ano de
2005. Foi um ano e meio rico para minha formação, porque essa proposta permitiu a
elaboração do meu trabalho de conclusão de curso e a implementação de uma metodologia de
ensino com base nos princípios da Escola da Ponte. Essa proposta foi discutida e apresentada
aos jovens de Heliópolis, para um grupo de mulheres, para a diretoria da UNAS e para outras
entidades de Heliópolis. Na pós, levava alguns professores da “Campos Salles” comigo
durante o estágio de observação que fiz no “Amorim Lima”. Fiz um relatório sobre meu
estágio de observação e pedi para as coordenadoras lerem com os professores. Nem assumi
defesa da proposta. Então, percebi que podia levar a proposta de implementação dessa
metodologia (da Escola da Ponte) para o conselho de escola e ela foi aprovada em setembro
de 2005. O que nós queríamos com isso? Queríamos superar as práticas pedagógicas
ancoradas nessas concepções que vê a criança como um ser menor e instituir práticas
pedagógicas ancoradas em concepções que viam a criança como um ser completo, como um
151

ser integral, como um ser competente, que é capaz de se organizar individual e coletivamente
e que é portador de conhecimento. Durante os primeiros dois anos, não conseguimos interferir
porque os professores discutiam no coletivo. Não era todo mundo, eram 50% professores,
porque as outras jornadas não comportavam. Tomavam a decisão e iam para sala. Só tinha os
princípios novos: autonomia, responsabilidade, solidariedade e mais as duas ideias que se
tornaram princípios. Mas a prática continuava a mesma: aluno sentava mais um atrás do
outro, mas era cadeira individual que colocava quatro cadeiras juntas, carteira e as cadeiras
em volta. Os professores tinham que elaborar roteiros de estudo para que, quando o professor
de matemática/história saísse e tivesse aluno que quisesse continuar fazendo a matéria, ele
não parasse de estudar. Foram dois anos de dor e sofrimento, mas teve muita coisa bonita
nesse período, como, por exemplo, o recrutamento de voluntários em que dividimos 15 alunos
para cada grupo. A gente deu o nome de monitor a esses professores e voluntários. Nossa
recomendação era que, de forma alguma, transferissem a relação que ocorria em sala de aula
para essa relação. Os professores tinham que acessar o aluno pelo coração, pelo afeto, pelo
diálogo, pela conversa franca. Isso foi muito bonito, porque não tinha local onde os alunos
podiam ficar. Eles ficavam onde eles decidiam ficar. Teve monitor que, durante um período,
visitou a casa de cada um de seus monitorandos. Teve monitor que vinha fazer macarronada
fora do trabalho, no feriado, no sábado, no domingo. Foi muito bonito isso. Quando a gente
tinha uma reunião por mês para tratar do que cada monitor estava fazendo, era encantador!
Mas, dentro da sala de aula, continuavam as mesmas relações e as mesmas práticas. Depois de
dois anos de sofrimento e de não dormir direito, pensava no que podia fazer para dar certo.
Cheguei à conclusão que tínhamos que tirar as paredes quando o professor se sentisse seguro.
Se tivesse tirado as paredes, em 2005, poderia ter se instalado o caos. Depois de dois anos,
percebi que tinha que interferir, mas não sabia como. Em uma noite, decidi chamar aqueles
professores que vestiam a camisa, que gostavam de gente, que tinham paixão, independente se
o cara era tradicional, se era progressista. Cheguei em 15 pessoas e falei que estava muito
triste, que achava que a gente não tinha caminhado em nada e que queria saber se eles
bancariam se eu tirasse as paredes. Alguns ficaram assustados, pois não sabiam o que iam
fazer. Mas, depois de muita conversa, aceitaram. Então, os alunos saíram de férias no final de
2007. Eles (alunos, pais e professores) estavam cientes que, no retorno das férias, não
encontrariam mais duas salas de aula, mas quatro grandes salões. Aí começou o projeto de
verdade. Isso provocou cisões dentro das pessoas que estavam acostumadas a fazer de um
jeito, que estavam acostumadas a viver isoladas, sozinhas, na solidão, a se virarem sozinhas,
152

mas agora não havia mais essa possibilidade, pois eles teriam que aprender a se virar juntos.
Então, foi colocada a questão do trabalho em equipe, tanto por parte dos professores como por
parte dos alunos. Foi o maior impacto do projeto na construção de uma cultura de trabalho em
equipe e isso é algo que bate bem de frente com o modo de produção capitalista, na questão
do individualismo. Agora, o professor teria que fazer junto com seu par, ele não estaria mais
isolado e as disciplinas, também não. A chave de tudo era o roteiro de estudo. A questão da
especificidade só entra na elaboração do roteiro disso tudo. Especificar Português,
Matemática, História, Geografia, Ciências. Depois do roteiro pronto na mão do aluno, dentro
do salão, não teria mais professor de História, Português, Matemática, Ciências... teria o
professor orientador. Isso não significava que o professor teria que dominar todas as
disciplinas. O ideal era que tivesse certo domínio no nível do aluno. Ele não era obrigado a
explicar nada para o aluno. O bom professor da “Campos Salles” é aquele que oferece
recursos para que o aluno construa seu próprio caminho de aprendizagem. O aluno está
trabalhando Matemática. Tem lá um exercício que ele não consegue resolver. Os mais
espertos que têm celular e internet podem olhar no google. Se resolveu entre eles, resolveu.
Supondo que não se resolveu, levanta-se a mão. O exercício é de matemática, mas o professor
é de história. Ele não tem que saber matemática para explicar, mas tem que saber que, na
página tal do livro, tem um exercício modelo e, se o aluno ler e procurar entender, conseguem
sozinhos resolver o problema. Se não resolver, novamente levanta a mão. Aí o professor
pergunta: “vocês já olharam no google?”. Se não fizeram isso, o professor solicita que o aluno
anote e vá olhar no google. Então, é dar recursos. É o aluno fazer o seu próprio caminho
naturalmente. Se a escola ajudasse o aluno a pesquisar e buscar tudo que ele quer aprender, o
que quer saber, que pode aprender com tudo, com todos e para sempre, nossa senhora! Hoje,
um conteúdo fechado já não significa mais nada. Agora, habilidade é a competência de buscar
e de aprender o que se precisa o que se necessita, isso é fundamental.
Sérgio – Em relação a esse novo projeto pedagógico, uma quarta questão é elencada
para saber se provocou reações emocionais nos docentes e de que maneira poderiam ser
percebidas essas reações?
Braz – Aonde eu mais percebi isso foi em relação à formação, porque é algo novo, é uma
construção, ou seja, as pessoas não têm manual, não sabem nada do que está acontecendo.
Agora, a formação é fundamental, é essencial. E o que nós fizemos enquanto direção?
Corremos atrás e conseguimos um projeto com 100 PEC. Vieram professores das áreas para
dar uma assessoria aos professores da “Campos Salles”. Essa formação foi muito dolorida
153

para todos. Por outro lado, quem passou pelo processo amadureceu demais, pois chegou um
momento em que o professor de lá me falou que não fazia melhor porque não sabia, mas que
teria jeito, se buscasse com o amigo outra forma para fazer o melhor. Às duas horas da
manhã, havia pessoas chorando e passando mensagem para o pessoal da assessoria. Houve um
terremoto! Isso foi tão importante porque abriu espaço para a formação. Se não sei, se não
faço, é porque não sei. Se não sei, tenho que buscar, tenho que ser humilde, tenho que me
articular, tenho que estar solto, quer dizer, abandonar a certeza. Acho que o maior impacto é
assim: a pessoa tem que estar na corda bamba, sempre vigilante, para não ser infiel ao seu
próprio colega, para não matar o que seu próprio colega faz. Vou te contar algo reservado.
Havia uma professora na escola, que dava aula na primeira série. Se minha filha fosse estudar
com ela, eu a deixaria na rua ou em qualquer outro lugar, pois minha filha ia ganhar muito
mais. Essa professora provocava um mal nos seus alunos. No ano anterior, os alunos dessa
professora estavam com outra professora e as coisas fluíam normalmente, as coisas
caminhavam. Mas, com ela, aconteciam revoluções. Era pai/aluno reclamando. Essa
professora cuidou de uma formatura e, nesse dia, ela mandou uma aluna embora por causa da
roupa que estava vestindo. Eu soube disso no dia seguinte. Havia uma família inteira
chorando na minha sala. Se aquilo fosse divulgado pela mídia, destruiria nosso projeto. A
roupa que a menina vestiu era a que ela achou mais bonita na casa dela. A partir do momento
que essa professora tivesse que trabalhar com mais duas pessoas no salão, ela não teria mais a
capacidade de fazer o mal que ela fazia. Você imagina o que custou isso pra ela? Agora, até
que ponto ela mudou, se humanizou, eu não sei, mas ao menos ela não teria mais a capacidade
de fazer mal, porque o freio dela passou a ser os próprios colegas, pois quando você coloca
três/quatro colegas juntos, tem sempre alguém ali que realmente defenderá o aluno. Se alguém
é arbitrário, sempre terá outro que pedirá para pegar leve, para não perder os alunos, mas tê-
los como aliados.
Sérgio – Tá dizendo, então, que houve uma alteração da postura docente?
Braz – Houve uma mudança muito grande da postura.
Sérgio – Dessa professora e dos outros também?
Braz – Sim. Dei como exemplo a postura dessa professora para demonstrar que ela fazia
muito mal na estrutura tradicional e que, com esse novo modelo, ela não conseguiria mais
fazer o mal, pois não teria o espaço todo para ela, para ela imperar e fazer o quiser. Sabe essa
oposição diretor, coordenador pedagógico e assistente de direção de um lado e os professores
do outro, jogando pedra de lá para cá e daqui para lá? Isso na “Campos Salles” é uma
154

sombrinha de nada. Essa foi uma das grandes mudanças, ou seja, do professor desempenhar
seu papel com responsabilidade, com envolvimento. Não é mais tarefa só da equipe técnica.
No máximo, nós mediamos as conversas, porque é cheio... Ela fala olha, tem que fazer uma
conversa lá, porque não estão entendendo o projeto...
Sérgio – Então, você está se referindo ao trabalho, nas alterações do trabalho docente?
Braz – Sim.
Sérgio – Aproveito o ensejo para a quinta questão, para verificar se propiciou alterações
no trabalho docente. Você poderia fazer a gentileza de discriminar as principais
alterações?
Braz – Acho que uma alteração material. No início de 2006 e todo ano de 2007, os
professores tinham que elaborar roteiros disso tudo. Só uma professora elaborava, que era
aquela que deixava os bilhetinhos. A partir do momento que tiram as paredes do mesmo
espaço, todos os professores elaboram o roteiro. Então, assume essa responsabilidade, quer
dizer, o roteiro é a chave de tudo. Outra coisa, uma preocupação maior em acertar, a fazer o
melhor, é levar o outro professor em consideração. Umas das mudanças que eu acho
fundamental é que a interdisciplinaridade passou a ser real. Os caras conversam agora. No
início do projeto, quando os caras não queriam dizer que não sabiam para o aluno, você
chegava lá no horário coletivo, estava todo mundo estudando Matemática. Você chegava no
outro, e estava todo mundo estudando Ciências, porque lá dentro os alunos solicitavam e eles
tinham que fazer. Dessa forma, acredito que houve um impacto e um avanço muito grande
na interdisciplinaridade. Há uma fala mais responsável. Quando o cara fala e sabe que está
dentro de um grupo e que esse grupo tem alguns princípios que integram e unem esse grupo,
as falas passam a ser mais qualificadas. A Heleni falava de fala plena. Acho que a fala passou
a ser mais plena. Tem escola por aí que você vai a uma reunião e há uma fala e um discurso.
Você que conhece, sabe que não é nada daquilo. O que está motivando aquela fala é outra
coisa que não se revela. Então, dentro da “Campos Salles”, a coisa passou a ser muito mais
transparente. Está na cara quem está no projeto e quem não está. Até o aluno percebe quem
não está no projeto. Às vezes, o aluno fala: “Temos que chamar a professora de tal, mas ela
não está no projeto.”. Eles sabem porque ela não está no projeto. Então, eu acho que há uma
transparência muito grande, um discurso muito mais coerente, um desejo muito mais de
acertar, uma certeza de que se a coisa ficar só no nível do indivíduo, não vai para lugar
nenhum, então, tem que se abrir mesmo para o coletivo. No início, falávamos para os alunos:
“Vocês têm que ser solidários. Não podem deixar ninguém para trás.”. Mas tem aluno que
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faltava na escola, então, como é que ele seguiria em frente? O professor não solucionava isso
e o problema era jogado nas costas do aluno. Sentávamos com os professores para
discutirmos e descobrirmos o melhor caminho para resolução desse problema. O aluno que
tinha envolvimento, que estudava e que não faltava podia passar do quarto roteiro para o
quinto. Então, chegamos à conclusão que esse projeto era/é vivo. Se você se envolver com a
escola, hoje, daqui a dez dias é capaz que surjam várias coisas diferentes. Então, acho que
uma das coisas que induz, é o movimento. O professor que está mais no movimento. Não tem
jeito de ele ficar cristalizando... coisa na sua cabeça e só no seu mundinho. Estamos saindo
daquela docência solitária, para uma docência mais solidária e percebemos isso, muitas vezes,
nos primeiros anos quando o professor de alfabetização ajuda os alunos com dificuldade.
Outro impacto que se vê é quando você vai às escolas e observa o desespero por causa da falta
de professor. Na “Campos Salles”, quando o professor precisa faltar, ele negocia com os
colegas. Se o cara começa a faltar demais, passa ser problema.
Sérgio – O projeto pedagógico provocou reações emocionais nos alunos, nas interações
na sala de aula? E de que maneira poderiam ser percebidas essas reações nas interações
que eu vou citar, por exemplo, na interação professor-aluno?
Braz – Quando o salão surgiu, muitos diziam que, se com 30 alunos, não se conseguia
trabalhar, imagina com 100! Isso era um discurso dos desavisados. Não aumentou o número
de alunos para o professor (sorriu), ou seja, a proporção continuou a mesma. Então, isso não
era real, mas, logicamente, que o professor não podia vir para escola brigar com aluno para
que ele tivesse um comportamento que o professor achava que é necessário o aluno ter lá
dentro, isso era tarefa também dos alunos. Em 2008, surgiu uma comissão mediadora de
alunos em cada um desses salões. E qual é a principal função dessa comissão? É cuidar das
relações e da convivência entre o aluno e o professor. Quando um aluno é desacatado por um
professor e se sente ofendido, ele conversa com a comissão sobre o fato. Quando os alunos
percebem, por exemplo, que há um preconceito por parte do professor, o professor é chamado
e o caso é discutido e conversado. Ano passado, eu ainda estava lá, pois saí em abril. Foi
surpreendente ver a diminuição da participação dos alunos que se tornaram adolescentes que
estavam no penúltimo e último ano. Mas teve uma reação dos alunos da comissão e com
consentimentos dos outros que também queriam uma organização dentro do salão, fizeram
uma devassa. Ficaram uns 3-4 dias explicando aos adolescentes do penúltimo e último ano
que queriam estudar e que o comportamento deles não estava correto, que não era favorável.
Disseram que eles estavam irritando professores. Então, é lógico que isso traz impactos
156

emocionais. Vi no seminário que teve da CONANI lá, uma coisa que a Amélia coordenou,
cheio de alunos sentados na mesa, pela amor de Deus! Se uma menina falando do TCC dela
que o tema era obesidade, aí depois que ela começou a ver a questão da obesidade é uma porta
que se abriu, aí... ela viu isso, mais isso, mais isso... Eu disse: eu só vejo isso doutor falando
uma coisa dessa... Então é uma menina falando e com orgulho de estar ali e orgulho de estar
participando, de ajudar na construção, de interferir na relação entre os colegas, é convocar
aluno, pai de aluno convocar professor pra conversa. É lógico que isso traz, agora eu não sei
quais. Mas isso traz uma outra... É uma outra ótica, é lógico que isso traz outro sentimentos.
Sérgio – E no que diz respeito à interação do aluno com espaço e ambiente,
especificamente, espaço da sala de aula?
Braz – Essa coisa eu não saberia te dizer hoje exatamente como é que está isso. Mas, tem
certas discussões e assembleias em que o aluno que chega lá e sai do grupo dele, bate na
cabeça de um, atrapalha o ambiente. Agora, se você vai dentro de uma escola “Campos
Salles”, todo espaço que tem em volta dele propicia possibilidades. É um aluno que foi além
do mundinho da sala de aula. Inclusive, em cada salão, tem um representante deles no
Conselho de Escola com direito a voz e voto e que extrapolam o número de aluno, não é tudo
isso de aluno que tem que ter, mas lá eles têm isso aí. Tem, também, várias atividades, como:
capoeira, caratê, balé, dança, fablab, teatro... Tem um monte de coisa no espaço que vai além
da própria atividade da escola. Temos um aluno que tem mais perspectiva. Acho que a
questão de um espaço leva o aluno a ter mais perspectivas, a ter mais sonhos. Há 20 anos,
quando se perguntava para um aluno o que ele iria fazer, o que ele pensava, ele dizia que não
sabia. Hoje, todo aluno que você pergunta, ele pensa em algo para o futuro: ou ele quer ser
chef, ou médico, ou veterinário. Acho que essa questão do espaço traz uma liberdade muito
maior e a quebra de certos fechamentos. A própria relação muda. Logicamente que isso
reflete nos momentos que eles estão lá dentro no salão, nas atividades e tudo mais.
Sérgio – E no que diz respeito à interação do aluno com o aluno na sala de aula?
Braz – Acho que essa foi uma das maiores mudanças que ocorreu na escola, porque o aluno
foi chamado para participar. Primeiro, apareceram candidatos que desejavam ser da comissão
mediadora. A eleição foi direta e por votação. Depois, foi criada a república de aluno com o
objetivo de empoderar os alunos da comissão. Por que é para empoderar? Porque para ser
candidato a prefeito, vereador, secretário, tem que ter sido eleito diretamente, tem que estar
dentro de alguma comissão. E, hoje, às vezes, o pessoal fica mais preocupado com uma
conversa com o pessoal da comissão de alunos do que uma conversa com um professor.
157

Quando os pais são chamados por essa comissão de alunos, às vezes, saem mais intimados do
que uma briga com um diretor de escola. Então, hoje o aluno tem um poder muito grande no
sentido de exercer autocontrole lá dentro. Agora, é lógico, nós não vamos ter a lei do silêncio.
Uma vez descobri um documento que já tinham uns três anos. Dizia que o aluno deveria
trabalhar em grupos sem falar. Você escutou? (risos). Como é que o aluno vai trabalhar em
grupo sem falar? Lógico, que lá é um aluno que fala mais, que discute mais (na mesa, na sala
de aula). Tem depoimentos deles que a gente nem sonha que está sendo construído, que está
sendo vivido, você ia se surpreender com alguns.
Sérgio – E na interação desse aluno com conteúdo?
Braz – A questão é a seguinte: “Que conteúdo, né? Que conteúdo?”. Quando eu falo ‘que
conteúdo’, penso... é... nas aulas que dei. Tenho muitos amigos no Facebook que foram meus
alunos, que estão com 39, 40, 41, 45 anos de idade. Com a situação do país, hoje, senti-me
frustrado, porque os caras estão sendo instrumentalizados, mas batem no peito como se a
esquerda estivesse errada e eles estivessem certos. Eu falo: “Que conteúdo? O conteúdo
serviu para quê? Já que minha disciplina foi História, Geografia... Serviu pra quê?”. O que
tenho que colocar na questão de conteúdo é que lá na “Campos Salles” tem quatro tipos de
roteiros, que não vou saber te explicar. Tem o roteiro integrado, que seria o normal para
aquele aluno que teve um avanço na faixa etária dele etc. e tal. É esse roteiro integrado que é
o caso da maioria. Agora, tem aluno que tem dificuldade de entender o que lê, aí tem um
roteiro diferenciado para ele. Os professores elaboram um roteiro para trabalhar e refletir
acerca de questões conjunturais, como por exemplo, a questão da mulher. É...agora, volto a
dizer para você se a escola leva o aluno a pesquisar? Essa competência tem mais valor do que
determinados conteúdos que estão postos, que têm que ser passados aos alunos, mas eu fico
muito tranquilo em falar sobre isso. Com esse projeto, o aluno da “Campos Salles” não
perdeu em nada em termos de conteúdo, seja qual for o conteúdo, porque, na avaliação
externa que a escola faz, estamos péssimos, mas nunca caímos depois que começou esse
projeto. E nós só sabemos disso, porque a primeira vez que mediu foi em 2005. O que temos
tido 2007, 2009, 2011, 2013 é maior do que tínhamos lá, então, não houve uma quebra, por
exemplo, no nosso IDEB. Acho que o IDEB de 2015 mostrará que a gente melhorou muito.
Então, pergunto: “Que conteúdo?” Deve ser o conteúdo que estão querendo que dê, né?
Porque melhorou e a prova Brasil mede isso, né? Isso aí é uma previsão minha e da Amélia.
Em 2013, ganhamos uma plaquinha da nossa DRE. Das 36 escolas de ensino fundamental, só
seis estão na média e a “Campos Salles” está dentro dessas seis. Só que é baixíssimo, não
158

chega a 5... 4.7 (mas é maior que o programa anterior). Antigamente, era 3.7. Lembro bem
disso. Houve uma melhora. Não perdeu em nada. A minha teoria e da Amélia é que ninguém
deixe ninguém para trás, você tem que ser solidário. Tem que ter responsabilidade para
caminharem juntos.
Sérgio – Já aproveito que você tocou nesse assunto: é possível notar alguma relação
entre essas interações aí e a autonomia, responsabilidade, solidariedade? Pode
discriminar?
Braz – Hoje, temos professores na “Campos Salles” que vivem essa ética, que exercem essa
autonomia, que assumem as consequências da autonomia. Só que tem o seguinte, quando a
gente fala em uma ética pautada na autonomia, responsabilidade, solidariedade, não estamos
falando em uma ética individual, pois isso tudo tem que ser discutido e pensado dentro do
grupo. Essa autonomia não é estar lá dentro do salão. Esses princípios se inserem dentro de
um coletivo. Não sei se deve estar bem por dentro dessa reflexão. Não sei se tem decisão
individual. Meu conselho de autonomia é o seguinte: quanto mais articulado com o grupo,
seguindo os princípios do grupo, mais autonomia eu tenho. Quanto menos articulado a um
grupo, quanto mais isolado eu estou, menos autonomia tenho. Quando falo isso, estou
pensando naquilo que a gente viveu na “Campos Salles”. Tenho uma foto que estou batendo
para derrubar uma parede com a marreta e teve um momento de reflexão em que cada um
falou. Quando essa foto chegou no “Edmundo”, ele disse: “Autonomia é o seguinte. Vejam o
Brás com aquela marreta. Não é o braço do Brás que está ali. Aqueles braços representam
centenas e centenas de pessoas dessa comunidade, porque na hora de tirar parede, foi
discutido e conversado extenuadamente com muita gente, então, aquilo ali poderia ser meu
braço, ou do Genário, ou de qualquer um. Autonomia é isso”. Tem gente que se equivoca com
autonomia. Esses dias, passei lá e tinha uma professora que lecionava para os alunos do
último ano e eles disseram a ela que queriam doar o uniforme deles. Então, pegaram o saco e
encheram de uniformes. Esses alunos não têm nem 18 anos. Diante dessa situação, os pais
desses alunos podem questionar o motivo de seus filhos não terem recebido o uniforme não
sabendo que eles haviam doado. Eles podem pedir que alguém responda por isso e exigir
novamente o uniforme. Então, quando se fala que o professor de lá é mais autônomo, é
autônomo porque ele pode se colocar, pode se expressar, mas tem que construir isso
coletivamente. Porque o que estamos combatendo lá é exatamente esse individualismo, esse
isolamento. Agora, nesse caso dessa professora que permitiu que os alunos doassem seus
uniformes, ela até pode dizer que assume a responsabilidade, porém, na hora de acionar, quem
159

paga é o diretor da escola. Para o sistema autoritário é o diretor que responde, e não, a
professora. Então, ela não pode tomar uma decisão dessas. Com o avanço que teve lá,
qualquer um pode tomar decisão, mas tem que se responsabilizar pela decisão tomada. E
mais: ao tomar a decisão, deve se responsabilizar sem prejudicar o outro, porque, se a decisão
prejudica o outro, não é legítimo tomar essa decisão. Hoje, acredito que muitos alunos e
professores de lá vivem essa ética e sabem que para que avançar, têm que atuar
articuladamente com o outro. O outro e-xis-te! Nesse sentido, houve um grande avanço,
inclusive de entender que, muitas vezes, quando se fala em autonomia, pode estar falando de
forma equivocada. Hoje, veio aqui um professor denunciando a direção da escola, mas depois
descobrimos que a briga com a diretora, a raiva e a acusação eram porque ela o proibiu de
usar um armário. Ele não foi honesto conosco. Ele tomou uma decisão de vir aqui, só que o
outro não existe para ele. Ele sonegou informação. Se a gente não ouvisse ambos os lados e
acatasse somente a denúncia dele, prejudicaria o outro. Hoje, temos um professor e um aluno
mais autônomo na sala de aula e dentro da escola.
Sérgio – Você reagiu emocionalmente à implementação e aos resultados do novo projeto
pedagógico? De que forma ela ocorre?
Braz – É um processo doloroso... Tem momentos que você fala: “Meu Deus do céu! Será que
não está sendo uma aventura? Será que estamos caminhando para algum lugar mesmo? Que
correção tem que fazer? Será que não tem outra forma mais serena, mais tranquila?” Não tem,
não tem! Então, dentro desse projeto, as amarras da palavra devem ser soltas e esse processo
traz dores, sabe? Não é qualquer coisa que a gente quer ouvir. A gente também tem
consciência de que não é qualquer coisa que deve ser falada, porque pode provocar, mas, se
você quer sair das mesmices, tem que se expor a isso aí, tem que abraçar o conflito. O conflito
tem que ser incorporado, tem que trazê-lo para dentro das relações, para dentro da estrutura,
ele não pode ser encarado como uma coisa ruim. Tem que ser encarado como uma
possibilidade que leva ao amadurecimento, que leva a aprofundar, a avançar, que faz com que
o movimento continue. Sinto que a gente está dentro desse processo. Então, tem essa questão
da emoção. Tem momentos que você fala: “Mas que besteira! O que eu fui inventar? O que
nós inventamos?”, mas há momentos que dizemos: “Valeu, Deus! Que maravilha! Que bom
que a gente teve essa coragem!”.
Sérgio – Então, você toma decisões emocionais ou cognitivas como diretor?
Braz – Acho que a base de toda decisão é emocional. A gente tem o cognitivo para dar uma...
mas acho que a emoção não... Acho que o cognitivo que não passa pela emoção, não é bem
160

uma característica humana, é uma coisa que está para além do humano. Acho essa pergunta
muito importante, porque nunca imaginei ser diretor regional de educação, porque sou de
ponta, sou de amassar barro, sou de estar lá no calor das coisas. São Paulo está dividido em
treze diretorias regionais de educação. A nossa é do Ipiranga. Eu ajudo a secretária a cuidar de
240 escolas e a DRE/Ipiranga pega quatro subprefeituras: a da Vila Mariana, da Sé, do
Ipiranga e da Vila Prudente. É uma área extensa. Há mais de um milhão de habitantes. Há um
ano, recebi um telefonema de uma mulher se dizendo da secretaria, mas não relacionei o
nome com a fisionomia. Ela disse que tinha que ter uma conversa reservada comigo, mas
queria que fosse em um restaurante. Pensei: “Que diabo! Que será que é isso?”. Falei para ela:
“Não posso sair daqui agora, pois estou sozinho.”. Então, ela me disse que viria até a mim.
Quando ela chegou, eu estava na sala juntamente com a assistente de direção e a mulher me
perguntou se eu poderia mostrar o espaço. Ao mostrar o espaço, ela me disse: “Não estou
querendo conhecer espaço. Vim aqui a pedido do secretário. Quero saber se você aceita ser o
diretor geral da DRE/Ipiranga?”. Eu disse que não, mas que iria conversar com minha equipe
da escola e que iria falar com algumas lideranças comunitárias. Ela disse que eu tinha que dar
a resposta naquela noite. Conversei com o pessoal e diziam para mim que não era hora de eu
sair da escola, mas se eu escolhesse isso, eles apoiariam. Até falei com minha filha, que à
época estava com 25 anos, sobre essa minha dúvida. Ela me disse que eu era homem maduro
e pediu para que eu descobrisse meu desejo e o realizasse (sorriu). Então, não ajudou em
nada. Decidi dizer não. Então, uma pessoa de Macaé, ligou para mim e contei sobre o convite
da DRE e falei que havia decidido não aceitar. Essa pessoa me orientou a pedir a opinião do
Oriovaldo (assistente). Então, falei com o Oriovaldo e ele me disse: “ACEITA JÁ! Você já
está há sete anos podendo se aposentar, mas não se aposenta por causa do projeto da escola.
Você vai ter a oportunidade de experimentar por um ano e oito meses e ver como a escola se
comporta na tua ausência”. As argumentações dele foram fortes e fiquei balançado. Então,
liguei naquele dia e perguntei se podia esperar até o outro dia e eles deixaram, acho que
sabiam que eu ia falar sim e, realmente, aceitei.
Sérgio – Quantas escolas a diretoria possui? Você intenciona e considera viável
implementar nessas escolas um projeto pedagógico semelhante ao da “Campos Salles”?
Braz – Temos 240 escolas. Uma boa parte delas é conveniada. Conveniadas significa que a
administração é de ONGs e, principalmente, escolas de creches. Só criança pequena. A
prefeitura não tem como arcar e construir escola para toda essa gente usar espaço. Não é
possível replicar projetos, pois a escola é como uma pessoa. Cada escola é única. É uma
161

combinação do diretor, das coordenadoras, dos professores e dos pais. Os projetos podem ser
fontes de inspiração para outras escolas. Agora, o que toda escola tem que fazer, é respeitar a
criança como um ser integral, como um ser completo, como um ser competente, que é capaz
de se organizar individualmente e coletivamente para aprender e viver e que é portadora de
conhecimento. Todas as escolas têm que trabalhar dentro dessa óptica. Não há mais
cabimento a escola se relacionar com criança como se ela fosse uma tábula rasa, uma
miniatura de adulto. O projeto que a escola escolhe eleger deve ser único. A gente não propõe
a replicação. Sei que o projeto da “Campos Salles” inspirou algumas escolas.
Sérgio – Por último, você gostaria de acrescentar alguma informação que considera
relevante?
Braz – Bom... acho que... os educadores e as escolas tinham que ter mais consciência do bem
que elas podem fazer para ajudar e organizar a sociedade. E... transformar pela Educação.
Essa transformação pela Educação tem que estar embasada na justiça, na democracia, na
autonomia, na responsabilidade e na solidariedade. A escola que não tiver isso, não sei o que
ela está fazendo. O que estou querendo dizer é que a escola não pode ser transformadora, se
ela atua entre as suas paredes e não adianta falar que ela está ajudando o aluno com
conhecimento e que esse aluno é que vai mudar lá fora. Isso é papo furado. A escola tem que
ir e estar aberta à comunidade. É um movimento de mão dupla. Estão surgindo projetos
reacionais que querem impedir o professor de fazer certas reflexões e de emitir seu juízo
político, pois a escola deveria ser o local onde várias opiniões fossem colocadas e que
permitissem que o aluno comparasse essa diversidade de opiniões para construir a sua. Estou
muito preocupado com Alagoas. Tem um deputado propondo um projeto chamado Escola
Livre, no qual o professor não pode de forma alguma expressar suas opiniões políticas. Tenho
uma grande preocupação com isso, pois, se as escolas tivessem cumprido seu papel de ajudar
a construir uma sociedade mais justa, mais humana, mais igualitária, mais responsável e
solidária, não estaríamos passando por esse momento da nossa história. Pergunto: qual é
realmente o papel da escola? Formar engenheiro que está preocupado só com sua profissão?
Formar médico que está aí somente para xingar? Agora, a escola que quer, ainda tem jeito de
construir alguma coisa e, para sobreviver, ela tem que ir se articulando com outras
experiências, pois com o isolamento ela acaba se perdendo também e retrocedendo.
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ENTREVISTA: COORDENADORA PEDAGÓGICA – AMÉLIA


DATA: 11 DE MAIO DE 2016
LOCAL: SEDE DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES

Amélia — Então, meu nome é Amélia.


Sérgio — Bom dia, Amélia. Nós estamos aqui na sede da “Campos Salles” para uma
entrevista e você poderia responder algumas perguntas?
Amélia — Sim, certamente. Eu tenho paixão pelo meu trabalho, tenho paixão pela nossa
escola. Então tenho muito prazer de falar do nosso projeto.
Sérgio — Ótimo. Hoje é dia onze, onze de maio. Então, vamos começar. A primeira
pergunta, você poderia responder qual é a sua idade e formação? A instituição, o curso,
o ano.
Amélia — Então, a minha deformação, eu fiz um curso de deformação, como a maioria faz, o
curso de Pedagogia, onde nós somos deformados professores e depois a gente vem para a
escola para deformar os estudantes. Então eu fiz curso de Pedagogia, fiz especialização em
educação, gestão democrática e nada além disso. E tenho experiência. Meu nome? Amélia
Arrabal Fernandez. Eu iniciei minha carreira na educação na Prefeitura de São Paulo, como
professora, em 1977, trabalhei alguns anos como professora e, depois, muitos anos
acumulando o cargo de professora em uma escola e coordenadora pedagógica na outra. Eu
trabalho como coordenadora pedagógica aqui, na escola “Campos Salles”, há quase dez anos,
praticamente, é uma escola onde eu queria muito vir e estar.
Sérgio — Então, você citou seu nome, você está autorizando a colocar o seu nome real na
dissertação?
Amélia — Sim. Eu autorizo, mas eu gostaria de ver a dissertação antes dela ser publicada.
Sérgio — Está bom, ok.
Amélia — Até para gente conferir algumas ideias. Tá?
Sérgio — A segunda pergunta. Qual o estado e a cidade de seu nascimento?
Amélia — São Paulo. Nasci em São Paulo, no bairro do Ipiranga, não muito distante daqui.
Sérgio — A terceira pergunta. Você sempre lecionou em São Paulo? Estado, prefeitura,
município.
Amélia — Sim. Sempre em São Paulo, na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
Sérgio — Quarta pergunta. Você lecionou na EMEF “Presidente Campos Salles”?
Quanto tempo?
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Amélia — Não, não fui professora da “Campos Salles”. Eu já vim para cá como
coordenadora, há dez anos, estou cursando o décimo ano aqui, como coordenadora
pedagógica.
Sérgio — Seria a quinta questão. Há quanto tempo você é coordenadora pedagógica
aqui, na “Campos Salles”?
Amélia — Então, estou cursando meu décimo ano.
Sérgio — Na sexta questão, você poderia citar os dois principais motivos que a fizeram
escolher a EMEF “Presidente Campos Salles” para exercer a função de coordenadora
pedagógica?
Amélia — Eu, a dez anos atrás, eu trabalhava em uma escola na zona leste e eu vivia
descontente com o sistema e com as escolas tradicionais e passei a procurar alguma escola
que tivesse algum projeto diferente, que estivesse em um processo de transformação. Então,
eu fiquei sabendo do “Amorim Lima”, no Butantã, mas seria uma escola muito distante para
mim. E, assim, eu gostaria que fosse nessa região aqui, que eu tenho muita simpatia por essa
região. Então, eu tomei conhecimento da existência da “Campos Salles” já através da mídia,
porque a escola, na época, já era muito famosa em relação à integração com a comunidade.
Então, esse foi o motivo que me trouxe até aqui, porque, até então, a escola não vivia ainda a
implementação desse projeto, tal qual está hoje aí, mas ela era famosa pela questão da
integração. E como eu acredito, como eu tenho essa concepção de escola, que a escola... ela é
da comunidade, de quem é a escola? Da comunidade. Mas a escola é, ao mesmo tempo, um
espaço onde ela deve, sim, significar uma liderança na comunidade onde atua. Então eu fiquei
sabendo, na mídia, do roubo dos computadores e que, depois, eles foram devolvidos, da
articulação que o diretor e os professores tinham com a comunidade, que comunidade e escola
passavam a ser uma coisa só. Eu disse, “Não, é nessa escola que eu quero estar, é nisso que eu
acredito!”. Isso foi, primeiramente, o que me motivou e, depois... Fala, meu bem. Quando eu
fiquei sabendo dos princípios da escola, que haviam sido votados no conselho de escola, por
lideranças e pessoas da comunidade, eu falei, “Não, é desse projeto que eu quero participar,
ele que vem ao encontro das minhas concepções!”.
Sérgio — A sétima pergunta é: por que a EMEF “Campos Salles” precisava de um
projeto pedagógico significativo?
Amélia — A escola, naquela época, já tinha avançado em relação às questões da violência, já
tinha passado, por conta dessa integração, porém a verdade é que as coisas na sala de aula não
rolavam, os estudantes não estavam aprendendo, segundo aquilo que se considerava o que era
164

aprender. A questão é que se tentavam novos caminhos, novas concepções, novas práticas
pedagógicas e se discutia, nos horários coletivos, mas quando cada professor ia para a sua
salinha e fechava sua porta, instaurava-se a pedagogia da maçaneta e, aí, cada professor, com
as suas concepções, tinha uma concepção de escola na sua cabeça, cada professor, a cada
quarenta e cinco minutos entrava um professor que tinha uma escola na cabeça dele, uma
concepção de avaliação, uma concepção de aprendizagem, uma concepção de estudante, uma
concepção de professor e, a cada quarenta e cinco minutos, entrava outro com outras
concepções e isso é o que é a escola tradicional que, nos últimos cem anos ou muito mais,
vem produzindo... esses que a gente vem chamando de zumbis alienados. Porque a escola é
um espaço de alienação, que vem formando cidadãos, pessoas alienadas da vida, então eu me
peguei, como era a pergunta mesmo? Por quê? Não é a sétima?
Sérgio — É.
Amélia — Por que esse projeto pedagógico? Então, o que nós chegamos à conclusão, que
cidadãos são esses que nós estamos contribuindo para que se constituam sujeitos, cidadãos,
enfim, dentro dessa escola, com essa proposta, com esse projeto? Então, o diretor Braz e as
coordenadoras da época e professores que aqui estavam foram pesquisar projetos inovadores,
pesquisaram vários, mas aquele que fez sentido, para quem estava aqui, na época, foi a Escola
da Ponte, a Escola da Ponte inspirou esse novo projeto. Porque aquilo que acontecia aqui não
era mais significativo nem para educadores nem para estudantes: era um nada, era uma prisão
ali, onde cada grupo fica em uma cela, com aquela porta trancada e cada um que entrava...
Então, toda essa segmentação, toda essa, nada disso fazia sentido mais para todos que aqui
estavam, foi quando começou a nascer um novo projeto inspirado nos princípios da Escola da
Ponte. E eu também tomei conhecimento de que isso tinha acontecido aqui. Claro que essa
implementação desse projeto levou muitos anos e, felizmente, que eu aqui já estava desde o
começo da implementação.
Sérgio — Nas próximas quatro perguntas seria em relação a esse projeto pedagógico
implementado. Na oitava pergunta: ele provocou reações emocionais nos docentes? De
que maneira poderiam ser percebidas essas reações?
Amélia — O projeto em si?
Sérgio — É, a decorrência do projeto, em decorrência da implementação.
Amélia — Todo processo de transformação provoca reações emocionais que, muitas vezes, se
revelam até fisicamente, de forma a somatizar certas emoções, mas vamos falar das emoções.
Todo processo de transformação provoca isso nos seres humanos e isso é curioso, porque a
165

essência da vida é constante transformação. Nossas células todas estão se transformando o


tempo todo. A vida é constante transformação. “Todo cambia, todo cambia”. Então, apesar
disso, apesar da essência de a vida ser constante transformação, nós, seres humanos, temos
uma necessidade de nos sentirmos seguros naquilo que a gente acredita que é uma pseudo-
segurança, naquilo que já conhecemos e temos medo do desconhecido e, aí, vem uma
emoção, emoção do medo, medo do desconhecido, por isso temos medo de nos transformar.
Porque esse sofrimento que eu tenho com o tradicional já é o sofrimento conhecido e os
sofrimentos que eu terei na transformação é desconhecido, causa medo: “Não, é melhor eu
ficar aqui mesmo!”. Esse é o processo, mas toda transformação, certamente, vai ocasionar
reações emocionais, elas são diversas e, como cada um é único, ela é única para cada um.
Alguns professores ficaram motivados com a mudança e, apesar de ser um desafio, porque
toda mudança envolve a desconstrução daquilo que já existia, então, para a gente mudar, a
gente, primeiro, tem que desconstruir para construir alguma coisa e a desconstrução, muitas
vezes, provoca o caos, não é verdade? Tudo isso provoca emoções e sentimentos nas pessoas.
Para alguns, são motivadoras, para outros, é muito sofrido, causa muito medo, muita
insegurança. Só que, assim, a própria proposta pedagógica do projeto, de certa forma,
facilitou, porque, na proposta, está posto toda a questão do trabalho em equipe e, transformar-
se de forma solitária é algo quase impossível na educação. Então, a partir do momento que o
educador começou a perceber que nós estávamos todos juntos nessa transformação e que ele
não era mais sozinho, como é um professor solitário, em uma sala de aula, onde ele tem uma
demanda imensa de trinta e tantas pessoas e ele, ali sozinho, alguns sabem escrever, outros
não; alguns já têm alguma competência para conviver em grupo, outros não; alguns respeitam
regras, outros não; e o professor solitário, sendo ele, no modelo tradicional, o centro de tudo,
ele se colocava responsável por tudo isso e não dividia a responsabilidade com os estudantes.
Então, estou falando de duas coisas importantes no projeto que facilitaram as transformações
e que minimizaram as reações emocionais, duas coisas importantíssimas: o trabalho em
equipe, essa desconstrução e construção em equipe; e a segunda importantíssima, esse não é
um trabalho só dos educadores, é junto com os estudantes. Então, esse protagonismo, essa
relação horizontal, porque toda a diferença de um projeto para o outro está nas relações,
escola é sinônimo de relações que, então, na própria concepção do projeto tem toda essa
horizontalidade das relações. Então, a relação da escola com a comunidade, essa relação de
horizontalidade, estudante -estudante, estudante-professor, professor-equipe gestora... toda
essa relação de horizontalidade nos faz sentirmos todos muito acompanhados e sendo, de fato,
166

uma equipe. E, ainda que alguns não comungassem das transformações e das propostas, a
maioria se sentia muito acompanhada nessa empreitada. Então, as reações foram minimizadas
por conta de tudo isso.
Sérgio — As reações negativas?
Amélia — Sim, porque eu já ouvi até professor dizer que precisou fazer terapia por conta do
projeto. Porque não tem como você transformar sua prática pedagógica, transformar suas
concepções sobre educação e tudo o que a envolve sem se transformar internamente, é uma
transformação simultânea aí, uma depende da outra. Então, no processo de transformação da
educação e da prática, o educador também está se transformando enquanto pessoa, enquanto a
visão de si e do mundo. Obviamente, que todas as questões emocionais estarão aí.
Sérgio — Aí, no caso, a questão nove também tem a ver com esse diálogo, ele propiciou
alterações no trabalho docente? Na postura, também, consequentemente. Você, por
favor, você pode discriminar as principais alterações?
Amélia — Sim, vou dizer algumas, seria uma conversa muito longa, mas vou dizer algumas.
Alterações no trabalho docente? Total. Porque, assim... a proposta pedagógica, o Projeto
Político-Pedagógico, ele tem uma concepção de currículo e de metodologia. Isso, obviamente,
já transforma toda a prática. Se, antes, o educador tinha “minha disciplina, meus alunos,
minha lousa, minha prova”, tudo era dele, ele era o centro de tudo, agora você está em um
projeto onde tudo é nosso, são nossos estudantes, porque, na prática, os professores trabalham
em equipe, todos os estudantes são de todos eles. Eles produzem os roteiros de estudos, que
são roteiros construídos pelos professores em equipe. Como nós temos uma concepção
interdisciplinar, acreditamos que todo conhecimento é de natureza interdisciplinar. Então, não
tem como separar o conhecimento, fragmentar em disciplinas. Aliás, se formos pensar no
significado dessa palavra, disciplina, então, muda tudo. Quando o professor está no projeto e
sabe que ele não vai mais dar aula, que o estudante, se ele precisar de informações que vão
além do projeto que ele está estudando, ele não precisa contar só com o professor, ele pega o
celular dele e ele tem o mundo de informações na internet, sendo que, na verdade, que o
professor pode ajudá-lo é fazer dele, que ele se transforme em um pesquisador,
verdadeiramente, porque a internet traz todas essas informações. Então, o papel do educador,
ele tem uma concepção completamente outra. Quando eu era estudante do fundamental I, do
fundamental II, por exemplo, do ensino fundamental, os meus professores eram a minha única
fonte de informação, era minha única fonte. Então, era centrado no professor. Minha segunda
fonte seria uma biblioteca, mas que não era algo tão fácil assim de se ter acesso, na minha
167

época de estudante do ensino fundamental. Só que hoje, com a internet, com esse mundo
global, a fonte de informação, tudo mudou, só que nem por isso deixou de ser importante o
papel do professor, aliás, muito bem ao contrário, a função do professor... ela é extremamente
importante. Aquele que vem servir de ponte nas relações, então, qual é essa relação do
estudante com o conhecimento? Que relação é essa? Então, esse professor, que toma aí, então,
um papel de mediador dessa ponte entre o objeto de conhecimento e o estudante...
fundamental o papel do professor. Então, dentro de todas essas concepções, a prática do
professor muda completamente, ele não vai dar mais provas, porque a avaliação... ela é um
processo, ele não vai mais preparar aula, os professores vão fazer assembleias com os
estudantes, os estudantes vão votar qual é o tema que eles querem estudar e o tema mais
votado vai, aí, gerar um roteiro de estudos e, aí, os estudantes vão, quer dizer, muda
completamente todas as relações. Obviamente que essa pergunta... eu iniciei dizendo
totalmente, muda totalmente mesmo, porque muda o currículo, muda a metodologia, muda
tudo.
Sérgio — Na décima pergunta. Esse projeto provocou reações emocionais nos alunos?
Nas interações na sala de aula? De que maneira poderiam ser percebidas essas reações,
nas interações abaixo? Começando pela interação professor-aluno.
Amélia — Totalmente, em ambos. Porque muitos educadores têm, foram formados assim nas
universidades e já viveram esse currículo e esse sistema na universidade. Então, eles
acreditam que há um poder neles, há uma autoridade no professor, pelo simples fato de ele ser
professor, que o estudante tem que respeitar. A autoridade... ela, porque a escola, volto a
dizer, são relações e as relações de poder estão o tempo todo presentes. Então, essas relações
de poder, onde o educador acredita que ele tem poder, que ele deve ser respeitado e que nunca
pode ser... que nunca pode haver divergência, o que ele diz é verdade, é o melhor, é o certo. E
em uma proposta onde você, como a da nossa escola, onde se espera que esse estudante se
constitua como um cidadão, que ele se constitua como um agente transformador de si e da
sociedade, ele precisa exercitar a divergência, ele precisa exercitar o poder de argumentação,
que é uma competência bem complexa para desenvolver poder da argumentação. Então, e o
educador que veio de toda essa formação tradicional... ele encara esse exercício do estudante
como uma afronta, como um desrespeito e, aí, entram todas as questões emocionais. Então, eu
me perdi, você perguntava?
Sérgio — Da interação professor-aluno da sala de aula, quais são as relações emocionais.
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Amélia — Da interação professor-aluno. Fundamental! Então, aqui, o estudante tem espaço


para divergir, para se colocar, então, reações... o estudante pode estar, no momento, porque
ele é um ser humano assim como o professor, então as reações, todas são naturais. Ele pode
divergir do professor, ele pode não concordar e, muitas vezes, o estudante, por reações
emocionais, ele faz isso de um jeito torto e algum educador poderá vir a se ofender ou não,
mas isso, cada vez menos, acontece aqui, sabe? Então, como nós olhamos para aquele ser
humano, chamado aqui de estudante, com todas as suas dimensões e o tempo todo estamos
mostrando para o estudante, também, que o educador também é aquele ser humano com todas
as suas dimensões. Então, olhamos para o estudante com a sua dimensão cognitiva, com a sua
dimensão emocional, afetiva, familiar, social. Então, muitas vezes, ele vem de casa com uma
situação tão forte de violência ou de situações, que ele chega aqui, de alguma forma, ele
projeta, ele projeta isso na relação com os outros e com o educador. Então, mas como alguém
poderia dizer, em uma escola tradicional: “Ah, esse estudante é indisciplinado, ele é
agressivo, ele é violento!” ponto! Mas a gente procura ver todo esse leque das dimensões
daquele ser e aí vai se relacionar com aquele ser inteiro, mas só que o professor também é um
ser inteiro, que também vem para a escola com todas essas dimensões e, muitas vezes, ele
pode estar em um dia que ele está muito difícil. Então, tudo isso fica envolvido o tempo todo.
Só que há esse exercício, de que não há, nada está sendo, não há uma situação de hierarquia
entre educador e estudante quando se trata de expressar-se ou de se relacionar. Há, sim, e a
gente está sempre reforçando isso aqui, uma questão de liderança, é uma outra visão, outra
visão, nesta relação aqui, ó. Todo grupo necessita de um líder, democrático, só que assim... os
professores, naquele momento, no salão ou em qualquer outro espaço educativo que temos
aqui, o professor é o líder daquele grupo e, como tal, ele precisa ser respeitado, mas para tal,
também respeito é algo que se conquista, não é dado, tem que conquistar. Se há uma reunião
de estudantes aqui, como estava aqui ontem, um grupo... e eu não podia estar com eles, nem
sempre estou, perguntei: “Quem vai coordenar essa reunião aqui?”. E eles votaram: “É
fulano!”. “Então você conquiste, aqui, a sua autoridade, é você que vai coordenar”. É
diferente de pensar em hierarquia, é uma questão de liderança. Tudo isso é muito forte nessa
questão dessa interação. Às vezes, eu entro no salão, eu acho que eu já te falei, a gente tem
onze salões aqui na escola, mas eu tenho uma interação muito grande, toda gestão tem, com
os estudantes, às vezes eu entro em determinado salão, eu olho para um estudante e vejo, no
semblante dele, e vou até lá e falo: “Você está triste hoje!”. E ele: “Estou, estou, não quero
fazer nada, estou muito triste, estou vivendo um momento muito difícil.”. E, muitas vezes,
169

felizmente, eu vou comentar com algum educador e falo: “Ó, você percebeu? Fulano está
diferente hoje...”. (E o outro diz): “Já percebi, já conversei com ele e, aí, ele já me contou,
está vivendo um momento difícil e tal.”. É esse ser completo que está lá, que não é só a
cabeça dele que está lá, ele está lá com o corpo inteiro, com todo o ser dele, com toda a
história dele, com todo o contexto dele... Então, isso tem a ver com essa relação, também.
Sérgio — Na b, na sala de aula, a interação aluno com o espaço e o ambiente.
Amélia — Aqui a gente modificou, dentro do nosso currículo e a partir das nossas
concepções, tempos e espaços. Então, eles participam de vários espaços de aprendizagem.
Então, há o salão de estudos, onde é um espaço que eles estudam os roteiros de forma
interativa, eles sentam em grupos de quatro, eles conversam o tempo todo. O ser humano se
constitui falando, se constitui na linguagem, se constitui na relação com o outro, então, eles
debatem, eles escolhem o que vão estudar daquele roteiro, eles têm uma meta diária que eles
mesmos criam, qual é a meta diária, para ir desenvolvendo responsabilidade e autonomia. E,
aí, eles discutem, eles debatem, eles conversam sobre os estudos, sobre a vida, eles conversam
sobre tudo, sobre qualquer assunto, durante as horas que ali estão e isto é fundamental. E, aí,
eles têm outros espaços, também, eles têm oficinas em pequenos grupos, então eles vão para
outros espaços, na torre, na área externa, eles têm música, eles têm outros projetos onde eles
estão em outros espaços aprendendo. Eu acredito que a escola, ainda... ela precisa se
transformar muito mais na questão do espaço, para produzir esses ambientes, mas essa foi a
transformação que conseguimos até agora, tirando as paredes e as portas e, nesse espaço, que
chamamos de salão de estudos, onde há um espaço amplo onde o estudante que chama o
educador, o educador vai até a mesa deles conversar com eles. Então a gente vê muitos
estudantes, quando saem daqui e vão para o ensino médio, dizendo: “Ah, eu estou me
sentindo em uma prisão, porque agora a gente fica em uma sala de aula, com tudo fechado,
com porta fechada...”. Então, ao menos isso a gente está proporcionando. Agora, você pode
me esclarecer melhor o que você gostaria de saber sobre essa interação do estudante com o
espaço e o ambiente?
Sérgio — Sim. A questão do ambiente e do espaço, ele está propiciando um ambiente de
bem-estar? Isso está levando a uma reação emocional positiva dos alunos?
Amélia — Sem dúvida. Eles transformam, há uma possibilidade de transformação do
ambiente e isso acontece em vários momentos durante o dia. Então, de repente, eles
empurram todas aquelas mesas e vão fazer ali uma roda de conversa, rodas de conversa
também acontecem diariamente, então eles mudam ali. De repente, eles resolvem fazer
170

determinada oficina e eles juntam mesas, duas mesas, duas mesas ou juntam cinco mesas com
cinco mesas, eles interferem na mobília conforme o que eles pretendem fazer e isso,
obviamente que as emoções estão todas, o tempo todo, ligadas aí.
Sérgio — Na... como, então, ocorre na sala de aula a interação aluno-aluno? Nas mesas,
especificamente.
Amélia — Olha, isso é tão interessante, porque tem a ver com as mesas, eu vou falar primeiro
das mesas. Então, no início do ano, eles escolhem sentar por afinidades, então eles sentam por
afinidades, mas, como tudo se transforma o tempo todo, nós também... nós nos transformamos
o tempo todo, nós não somos mais os mesmos do que éramos hoje, sete horas da manhã,
certamente, nem biologicamente, nem emocionalmente. Nada... tudo se transforma o tempo
todo. Então, eles podem chegar e falar, chamar o educador e falar assim: “Olha, eu não quero
mais sentar com ele, não está dando certo”. “Mas vocês eram amicíssimos!”. “Agora, nós
estamos divergindo demais, está começando a dar briga aqui, eu quero ir para outra mesa.”.
Então, há uma conversa ali, quem sabe, vamos fazer uma mediação desse conflito: “Não, não
tem, não quero, não me sinto mais bem com ele, eu quero uma nova mesa, uma nova equipe,
quero estar com outras pessoas.”. E, aí, só que essas pessoas precisam querer estar com ele
também. Veja a riqueza de todas essas relações, desse exercício todo, tem que ter um
convencimento, um desejo de todas as partes, isso só na questão de afinidades, mas há,
também, uma questão pedagógica. Há aqueles, por exemplo, que são muito amigos, que
gostam de estar juntos, interagem muito bem, porém, para trabalhar juntos, não dá certo. Há
aquilo que eu chamo de temperamento, por exemplo, há pessoas extremamente agitadas e há
pessoas extremamente calmas. Para estudar juntos e aprender ou trabalhar juntos, muitas
vezes, em especial nessa faixa etária e eles mesmos reconhecem isso, se eu puser quatro
estudantes extremamente agitados por temperamento, não vou chamá-los de indisciplinados,
estou falando que é temperamento e isso não se avalia, temperamento não se avalia, é o que
há de único em cada um, então, com aquele temperamento agitado, quatro estudantes...
certamente, vai ser difícil para eles uma coisa chamada foco, concentração, conseguir
mergulhar nos estudos e eles próprios vão acabar... “Não, não dá mesmo! Nós vamos ter que
mudar esse grupo, porque nós chegamos em um ponto de interação, de intimidade, assim, de
amizade, que a gente não consegue mais estudar juntos.”. Aí, conversa com os educadores,
eles podem mudar esses grupos, entendeu? Isto é uma forma de interação estudante-estudante.
Agora, as comissões mediadoras... elas transformaram demais essas relações. Muitos anos
atrás, havia aqui – e há em nossa sociedade – uma prática, uma cultura assim: a cultura do
171

dedo duro, que é delatar o outro, que é “Você está dedurando!”. Então, você tem que encobrir
erros de outras pessoas, porque você está delatando. A cultura do chamado X9, que eles
diziam, “É, você é X9, você me dedurou, quando eu sair daqui eu vou te pegar, você vai ver!”
e brigavam e tal, e tal. E, aí, a gente pensa, como é importante para nós a questão dos valores,
das emoções, dos princípios, a questão ética, será que é ético tudo isso? Então, é uma
construção de muitos anos chegar nessa relação estudante-estudante que hoje, quando
falamos, porque aí entrou o conceito de solidariedade, então a questão do dedo duro foi
substituída por solidariedade. Fulano está fazendo algo muito errado, como é que nós
podemos ajudá-lo? E, para ajudá-lo, nós vamos ter que contar para as pessoas que podem
ajudar. Então isso foi mudando, hoje não existe mais isso, hoje é cultura aqui. Então, se o
estudante estiver fazendo algo que é errado, que está prejudicando a si próprio ou outros, na
relação com os próprios estudantes aqui da comissão, a coisa vem à tona. Há, por exemplo,
um estudante que escreveu na internet, publicou em uma rede social, falando, difamando uma
estudante, um desrespeito à figura da mulher, sempre com um conteúdo sexual e, na hora que
eles descobriram, todos fizeram uma reunião aqui, em uma indignação tamanha: “Não
aceitamos esse desrespeito com a mulher e nem com a nossa amiga!”. Olha as relações entre
eles, que, agora, é uma coisa mais democrática, é uma construção de democracia, é uma
construção de ética, a vivência. Essas relações são fundamentais e, obviamente, que envolvem
muitas emoções. Ontem... eu tenho um exemplo disso, tinha uma estudante aqui, era uma
reunião do quarto ano, de comissão, com estudantes que estavam desrespeitando e não tendo
atitudes de paz, como a gente costuma dizer, para resolver conflitos e a pessoa, a estudante
que estava coordenando a reunião começou a chorar e chorava copiosamente, aí, quando eu
cheguei aqui, foi interessante, eu estava de passagem e ela chorava e dizia para eles o que ela
estava sentindo, que ela não estava sendo respeitada na liderança, na coordenação da reunião
e que todos queriam falar ao mesmo tempo e que era ela que tinha que dar a voz, se era ela a
líder... e aquilo mexeu muito com ela e ela chorava, e isso faz parte, viver essas emoções. Foi
assim que ela conseguiu viver aquilo. Há outros estudantes que, ao invés de chorar, vão ficar
muito bravos e, aí, vem aquela emoção de raiva e de... “Não, vocês vão me respeitar!” e está
nesse exercício de impor a liderança ou de argumentar, de convencimento. Há uma questão de
solidariedade tão forte, tão forte, já vi estudantes aqui, em uma comissão mediadora, chorando
de emoção, sensibilizados com a questão de um estudante, quando ele se abriu e confessou a
eles o que ele estava vivendo na casa dele e que ele, sem consciência, acabava projetando aqui
e foi tomando consciência e a comissão ajudando, quando eu passei por aqui estavam todos
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chorando: ele e todos que estavam presentes. Aquilo foi um momento de uma comoção geral
e que tornou aquele grupo tão unido em torno de ser solidário e ajudar aquele estudante, de
uma forma que eu nunca tinha visto. Olha, eu vi poucos adultos conseguirem se reunir para
ser solidário com alguém e viver emoções, sentimentos e uma determinação, mesmo, de
ajudar o outro, como eu vi, como vejo com crianças e adolescentes. Então essas relações são
todas muito permeadas de emoção, de sentimento, daquela coisa fraterna e, junto com isso,
obviamente, está misturado o conflito. Nós somos seres que temos guerras interiores, todo ser
humano, nós temos conflitos interiores e, quando nós nos relacionamos com o outro, seja
estudante, seja família, seja professor, são os nossos conflitos conflitando. E, aí, estão todas as
emoções. Nós somos seres contraditórios em todas as áreas da nossa vida, a contradição está
sempre presente. Então, quando a gente se relaciona e consegue perceber ou que o grupo nos
mostra nossas contradições e que nós queremos aprender e tomamos consciência das
contradições, isso nós faz crescer muito, mas nada disso acontece sem as emoções, sem os
sentimentos de dor, de alegria, de prazer, de desprazer, de amor, de ódio até. Tudo isso está
presente o tempo todo, porque isso é humano.
Sérgio — No item d, na sala de aula, essa interação, como ela ocorre com o aluno e o
conteúdo?
Amélia — Os estudantes... eles estudam os roteiros de estudos e eles fazem oficinas de
matemática e oficinas de produção de texto, oficinas de inglês com música e oficinas de arte,
entre outras coisas no currículo. Estou falando assim, basicamente. A interação com o
conteúdo... ela é muito interessante, muito interessante isso, porque o que antes, quando a
escola era tradicional, há muitos anos atrás, a interação com o conteúdo. Então a relação com
o conteúdo é interessantíssima, porque, antes deste projeto, quando a escola era tradicional, a
relação do estudante com o conteúdo era uma relação de cópia, o estudante fazia cópias da
lousa, cópias que nem sempre ele dava conta de fazer e, a cada quarenta e cinco minutos,
entrava outro professor, apagava tudo o que o estudante estava copiando: “Não, agora é a
minha aula!” e tudo era desconectado. Então, essa era a relação. Ele tinha que responder
perguntas sobre... era uma relação onde o professor reproduzia informações para que o
estudante reproduzisse conhecimentos. Então a relação atual do estudante com o conteúdo, o
que o projeto espera é que essa relação vá muito além da construção desse conhecimento já
produzido pela humanidade, mas que seja, também, uma relação de produção de
conhecimento. Então, que relação é essa? É uma relação de pesquisa, é uma relação de
questionamento, é uma relação de debate, é uma relação do pensar, porque, quando a escola
173

era tradicional, o que acontecia? O estudante não precisava pensar. O que esperamos é que o
estudante passe a pensar e pensar e discutir o que pensa com outros, porque eles estão em
grupo. Então, que ele seja autor de suas pesquisas, da construção de seus textos, de suas
respostas. Uma relação, uma interação com o conteúdo completamente diferente do que
existia antes. Já começa de que eles podem escolher um tema voltado para o salão, onde todos
eles possam aprofundar. Então nós estamos implementando, este ano, a tutoria e, dentro da
implementação da tutoria, onde cada professor tutor terá aquele pequeno grupo de tutorados,
com o passar dos anos, o objetivo é que também eles possam ter projetos pessoais de estudo,
bem como, esses projetos coletivos, sempre partindo do desejo do que eles querem aprender.
Eles também discutem em assembleia o recorte do que vão estudar, além do tema, que recorte
vai ser esse. Porque a relação que existia antes é a de que eram os educadores que decidiam o
que os estudantes iam aprender, o que eles precisavam aprender. Então, há, então, a
participação dos estudantes naquilo que eles desejam aprender. Então eles têm essa relação
interativa, essa relação na direção da produção de conhecimento.
Sérgio — Na questão número onze. É possível notar alguma relação entre essas
interações e a autonomia, a responsabilidade e solidariedade? Você poderia
discriminar?
Amélia — Total. Toda a metodologia e todo o currículo visam contemplar a vivência e a
construção da autonomia, da responsabilidade e da solidariedade, e todos os valores, hábitos,
que giram em torno da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade, que formam uma
ética. Então cada elemento desse não existe sem o outro, essa tríade. Então, logicamente,
quando os estudantes podem discutir em uma assembleia, “queremos estudar”, por exemplo,
“fundo do mar” e aqueles outros estudantes querem estudar, “Não! Queremos conhecer mais
sobre astronomia” e aqueles temas mais votados serão estudados agora e, depois,
posteriormente e tal. Quando o estudante pode escolher, em grupo eles podem ali decidir que
atividade que eles vão fazer naquele dia, dentro daquele roteiro, estão vivenciando a
autonomia, quando eles sabem que eles têm que fazer um planejamento diário e que têm que
procurar cumprir aquele planejamento, eles estão vivendo responsabilidade. Quando eles
vivem a solidariedade, nesse sentido de que, nos grupos de estudos, há um exercício de aceitar
a ajuda do outro, o exercício de ajudar o outro nessa vivência de solidariedade, tanto nas
questões dos estudos dos roteiros, como nas questões da convivência. Então, há uma vivência
o tempo todo dessa construção nas comissões, em tudo, em tudo, veja. Todo o currículo da
escola, em todo o currículo da escola, todos os presentes aqui estão, o tempo todo,
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construindo autonomia, responsabilidade, solidariedade. Não só os estudantes, todos os


adultos também, se assim não fosse, não seria possível. Se os adultos, educadores,
acreditassem que já são seres autônomos, responsáveis e solidários, jamais poderiam
favorecer essa construção dos estudantes, então, todos nós, na consciência de que somos seres
inacabados, de que estamos em constante transformação e que ninguém é e nunca será
totalmente autônomo, responsável e solidário, isso é uma eterna construção, por quê? Porque
estamos em constante transformação: se é uma eterna construção, mas essa construção só é
possível dentro de todo esse currículo aqui, ela só é possível dentro de todas essas
concepções, de toda essa metodologia aqui. Então, essa pergunta eu te respondo com toda
certeza de que essa relação, todas essas interações, tudo, toda essa questão que nós
colocamos, de todas as dimensões humanas aqui, o tempo todo presentes na consciência,
porque presentes elas estão o tempo todo, mas tem aqueles que não têm consciência disso,
tudo isso favorece o tempo todo essa construção da autonomia, da responsabilidade e da
solidariedade.
Sérgio — Na pergunta doze. Você reagiu emocionalmente à implementação e aos
resultados do novo projeto pedagógico? De que forma ela ocorreu?
Amélia — É... emoções, assim, claro. Essa pergunta, ela sempre vai ter um sim, porque todos
nós reagimos emocionalmente a tudo que nos rodeia, sempre essa pergunta será sim, lógico,
claro. Agora, que reações foram essas? As mais diversas, há muitos momentos de alegria e
eles são muitos. Eu criei até uma expressão, que até o diretor Braz brinca muito comigo sobre
isso e os professores também, vários já estão usando essa expressão, quando eu digo assim,
“Nossa, acabei de ter um orgasmo pedagógico!”, isso é pura emoção e eu criei essa expressão,
porque assim, quando eu vejo alguma situação de aprendizagem, seja para educador ou seja
para família ou para os estudantes, em que você vê aquela coisa tão bonita entre os seres
humanos acontecendo ali, aquela transformação, aquela coisa bonita, nossa! E que é o projeto
que está favorecendo isso, eu fico muito feliz e conto para todo mundo, muito legal, e aí todo
mundo vive essas emoções comigo. De repente, chega um professor, entra, ou em uma
reunião coletiva, fala, “Amélia, preciso te contar o que aconteceu hoje no salão, aconteceu
isso ou na oficina, você vai ter um orgasmo pedagógico” e, aí, todos têm esse orgasmo
pedagógico, são esses momentos que você vive muitas alegrias de ver um monte de coisa
bonita acontecendo. Há momentos em que a gente vive momentos em que você fica tocado,
triste, uma vez que a gente vive em uma sociedade com tantas desigualdades, uma sociedade
que discrimina tantas minorias, então, é uma sociedade violenta, uma sociedade que aliena as
175

pessoas. Então, obviamente que o mundo está dentro da escola e a escola está dentro do
mundo. Então, obviamente, que há muitos momentos de tristeza entre as relações e as
pessoas, entre o projeto, mas aqui tudo é permitido, sentir triste, sentir revoltado, sentir
indignação, sentir alegria, sentir orgasmos pedagógicos, a gente sente todas as emoções e,
mais do que isso, que eu acho muito importante no nosso projeto, a gente sente e pode
expressar, se quiser. Porque sentir emoções, todo ser humano sente o tempo todo e onde quer
que esteja, mas, nesse espaço escolar, que é um espaço de relações, é permitido expressar
emoções? Há espaço para isso? Sim, aqui há espaço. Você viu, por exemplo, as crianças
reunidas aqui, hoje? O Felipe dizia assim, “Eu estou muito triste!”, expressando a emoção; “O
Yuri foi embora, mudou de endereço, saiu da escola, ele era meu melhor amigo, ele não se
despediu de mim!”. E eu sei que ele ficou triste, no dia que ele soube, ele chorou e expressa.
Então, expressar emoções, expressar sentimentos, se a escola é a vida, aqui é espaço para tudo
isso.
Sérgio — A questão treze. No exercício de sua função, você toma decisões emocionais?
Amélia — Essa é uma pergunta complexa. Há situações que provocam em nós o surgimento
de várias emoções. Você sabe que eu, eu costumo, pra responder essa pergunta, eu tenho que
dizer qual é a minha concepção dessa palavra. Porque eu diferencio emoções de sentimentos e
eles acontecem em nós de forma simultânea. Então, por exemplo, eu vou chamar de
sentimento o amor, eu vou chamar de sentimento a compaixão, um bem querer, um medo
muito grande, é algo que se sente em todo o nosso ser, mas que a gente tem uma referência
disso no peito e tem muito a ver com o que se sente e com nós próprios. Porque toda vez que
a gente fala... eu, muitas vezes, a gente pega esse dedo indicador e põe no peito e fala assim,
“eu”. E é como se o peito fosse uma referência daquilo que eu sou e os sentimentos, e por isso
tem tanta gente desenha corações. Sentimentos, algo que vem e que tem uma referência no
peito. E há as emoções, que é algo mais visceral, essa é a definição que eu dou, concepção
que eu tenho. As emoções são mais viscerais, é algo que vem de baixo para cima e, assim, que
tem a ver com raiva, que tem a ver com violência, que tem a ver com, muitas vezes, de
destruição, outras vezes, não. Há emoções que chegam a deixar certas pessoas cegas. Há
emoções que são tão fortes que provocam e que as pessoas se cegam por elas, porque elas vão
encobrir os sentimentos tão fortes que são que a pessoa é capaz de dar um tiro, matar a outra
em segundos, tomado por uma emoção que o domina, por isso eu gosto de diferenciar emoção
de sentimento. Só que elas coexistem em nós, como tudo em nós coexiste. E, aí, se você me
perguntar, no exercício da minha função, eu tomei alguma decisão emocional, no sentido de
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que minhas emoções encobriram minha lucidez e os meus sentimentos? Felizmente, não, não.
Porque eu procuro me colocar inteira em todas as situações e tomar consciência da minha
inteireza, da minha dignidade, da minha integridade, de estar inteira, se estou inteira, eu me
permito um exercício de me perceber nas minhas emoções, que aquilo me gerou, nos meus
sentimentos e na minha lucidez. Se você me perguntasse, se essa pergunta fosse outra, assim,
“No exercício de sua função, você toma decisões considerando suas emoções, seus
sentimentos e sua racionalidade?” Sim, claro. Tomar decisões não é algo muito fácil para o
ser humano, porque sabemos que tomar uma decisão envolve, exatamente, todos esses
campos do ser humano, todas essas dimensões, só que... e agora, eu estou aqui acrescentando
na questão número quatorze, o que eu gostaria de acrescentar algo de relevante. Nossa! Eu
ficaria horas aqui falando de coisas relevantes, mas vou dar sequência nessa questão número,
que fala das emoções, e vou falar da questão de tomar decisões. A escola tradicional vem
formando zumbis alienados e a escola tradicional não vem nem formando as pessoas para o
mercado de trabalho nem para a vida, nem uma coisa nem outra. Porque estamos com
carência, com falta de pessoas que saibam exercer liderança, porque, na escola tradicional,
não é permitido sentir, não é permitido sentimentos, emoções, não é permitido divergir, não é
permitido escolher. Onde está o exercício de aprender a decidir? A tomar decisões? É preciso
exercitar a competência de tomar decisões e isso precisa acontecer desde sempre com o ser
humano. Então, o nosso projeto favorece esse exercício da construção da competência para
tomar decisões, o tempo todo, eles decidem, inclusive, o que é que eles vão estudar naquele
dia e, a partir daí, tantas outras. Tomar decisões é uma competência humana muito, tem a ver
com toda a vida e isso precisa estar, precisa ser currículo da escola, aprender a tomar decisões,
pelo simples fato de que nós, seres humanos, conscientes ou não, nós tomamos decisões e
fazemos escolha a cada segundo. Nós estamos decidindo o tempo todo, com os nossos
sentidos, com o nosso pensamento, com as nossas emoções, com os nossos sentimentos, para
onde eu vou olhar, o que pensar, eu cruzo a perna, não cruzo a perna, levanto, fico de pé, faço
isto, faço aquilo, tomo foco nisso, tomo foco naquilo. Nós estamos tomando decisões e
fazendo escolhas o tempo todo, isso é vida. Apenas precisamos aprender a tomar consciência
disso e nos perceber nisso. Esse também é o caminho de perceber nossas emoções, nossos
sentimentos, nosso discernimento. A gente ouve dizer assim “Mas o projeto de determinada
escola está favorecendo, preparando esses estudantes para a vida?”, como se a vida fosse algo
que vai acontecer no futuro, entendeu, Sérgio, o que eu estou querendo dizer? A vida está
acontecendo agora. “Aí, a escola está preparando esse estudante para a vida”, a vida está
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acontecendo aqui e agora. Nós estamos a vida toda, nos preparando para a vida e é preciso
que isso aconteça dentro da escola agora. A vida só existe no agora. Então, se o estudante
pode viver a vida em todas as suas dimensões dentro da escola, ele está, o tempo todo, se
preparando para a vida. Agora, se esta escola é uma ilha, é apartada da realidade da vida e se
pensa com um sentido em si mesma, essa escola não tem vida, porque ela está matando
aqueles seres humanos que ali estão, chamados estudantes, está matando a vida.
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ENTREVISTA: COORDENADORA PEDAGÓGICA, DANIELA


DATA: 11 DE MAIO DE 2016
LOCAL: SEDE DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES

Sérgio — Boa tarde, Daniela!


Daniela — Boa tarde!
Sérgio — Estamos, hoje, aqui, dia onze de maio.
Daniela — 11 de maio.
Sérgio — Na sede da EMEF “Presidente Campos Salles”, para fazer uma entrevista com
você, que é a coordenadora pedagógica, uma das.
Daniela — Uma das.
Sérgio — Então, eu tenho algumas questões, eu posso começar a minha entrevista?
Daniela — Pode.
Sérgio — Bom, a primeira questão. Você poderia responder qual a sua idade e
formação, instituição, curso, ano?
Daniela — Meu nome é Daniela, eu autorizo você a colocar o meu nome na sua, na sua
dissertação. Eu tenho quarenta anos. Eu sou, inicialmente, eu tenho magistério, eu fiz
magistério em uma instituição particular, depois eu fiz Física na PUC, mas eu já dava, eu já
trabalhava com educação, trabalhava com educação infantil na época e acabei... depois que eu
terminei a faculdade, continuei com a educação infantil. Então, fui fazer Pedagogia, fiz
Pedagogia. A Física eu terminei em 97. Aí, depois, eu fiz pedagogia um pouquinho mais para
frente, eu não lembro exatamente o ano que eu cursei. Eu fiz a complementação pedagógica,
na verdade, eu não lembro exatamente o ano, fiz na UNIBAM. Eu tenho pós-graduação em
Psicopedagogia pela UNINOVE e especialização em Educação Especial pela UNESP de
Bauru. Não, de Marília, na UNESP de Marília. Posso ir respondendo no corrido ou você
pergunta?
Sérgio — Agora temos a segunda pergunta.
Daniela — Tá, aí você vai perguntando. Tá, tá.
Sérgio — Tá. Qual estado e cidade do seu nascimento?
Daniela — Aqui em São Paulo, mesmo.
Sérgio — A pergunta, a terceira pergunta. Você sempre lecionou em São Paulo, estado e
prefeitura, município?
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Daniela — Sempre. Eu iniciei em escola particular, passei por, comecei numa escola
tradicional, com modelo bastante tradicional, quando eu ainda estava no magistério. Depois,
eu passei por várias escolas particulares que eu fui transformando a maneira de enxergar a
educação. Foram, as escolas por onde eu passei que foram, inclusive, me ajudando muito
mais, ajudando muito mais a minha formação do que a própria universidade. Eu levava muito
do que eu aprendia nas escolas. Na prefeitura de São Paulo, eu ingressei como professora em
2008, depois eu assumi uma turma de SAI, que seria sala de apoio e acompanhamento à
inclusão, que é o atendimento educacional especializado e, em 2012, 2011, eu passei no
concurso para coordenadora pedagógica e, 2012, eu acessei como coordenadora pedagógica
na prefeitura. E, aí, quando eu... quando eu passei no concurso para coordenação, que eu
deixei a escola particular e fiquei só na prefeitura, porque, até então, eu tinha a prefeitura e a
escola particular.
Sérgio — Pergunta quatro. Você lecionou na EMEF “Presidente Campos Salles”?
Daniela — Não. Eu vim para cá este ano, na remoção e já vim como coordenadora.
Sérgio — Então, seria a pergunta cinco, agora. Há quanto tempo você é coordenadora
pedagógica na “Campos Salles”?
Daniela — Desde janeiro desse ano, só.
Sérgio — Alguns meses.
Daniela — Alguns meses. Quatro meses.
Daniela — Parece que já faz dez anos.
Sérgio — Pergunta seis, poderia citar os dois principais motivos que a fizeram escolher a
EMEF “Presidente Campos Salles” para exercer a função de coordenadora pedagógica?
Daniela — É, eu conheci a escola através da mídia, no programado Esquenta, esqueci o nome
da... esqueci o nome. Foram, inclusive, professores da escola que eu trabalhava como
coordenadora que me disseram que, neste programa, tinha ido uma escola que parecia muito
com a escola que eu dizia para eles que seria uma escola. É... uma escola bacana, nas
formações, nos momentos com os professores. Eu sempre, eu sempre valorizei muito a
questão das relações, a questão da resolução de conflitos numa perspectiva de aprendizado,
também da questão das relações pessoais e, para alguns professores, isso causa um pouco de
estranhamento, uma coordenadora pedagógica falando isso, porque eles estão focados na
questão do conteúdo conceitual, do conhecimento, como se ele fosse algo separado da vida. E
foram professores, um grupo de professores de uma das escolas que eu trabalhava como
coordenadora, que eu fiquei mais tempo, que me disseram que tinham visto uma escola no
180

programa da Regina Casé, lembrei, no programa da Regina Casé, que parecia muito com isso.
Eu já tinha falado para eles: Amorim, que o Amorim eu já conhecia e aí eu fui ver o programa
e comecei a pesquisar sobre a escola. Assisti vídeos, assisti as reportagens, procurar textos
que falassem, conhecer um pouco mais da proposta pedagógica da escola e fui me
identificando muito com ela. Então, acho que assim, o principal motivo que me fez vir para cá
foi a questão de lidar de uma maneira diferente com o conhecimento e com as relações. Os
espaços de diálogo, a comissão de mediação de conflitos, as assembleias. Eu acredito que não
há outro caminho que não seja esse e foi por isso que eu vim. Eu... o principal motivo é esse.
Eu estou bem longe da minha casa por conta disso, eu estava em uma escola a 4km da minha
casa, agora eu estou em uma escola 20km da minha casa. Mudei, tive que mudar muitas
coisas com relação à minha vida pessoal para estar aqui, mas eu, em nenhum momento, eu me
arrependo. Aqui, eu consigo me... fazer um trabalho que eu acredito, me realizar
profissionalmente. O principal motivo foi a questão da proposta da escola e a questão das
relações, pensar nas relações pessoais e interpessoais aí, como parte, de fato, do currículo.
Sérgio — A pergunta sete. Por que a EMEF “Presidente Campos Salles” precisava de
um projeto pedagógico significativo?
Daniela — Então... eu acredito que toda escola precise de um projeto pedagógico
significativo. Todo... toda escola precisa ter uma identidade, precisa ter, precisa ter um norte...
que as pessoas saibam para onde que esse coletivo está querendo chegar. Todas as escolas têm
problemas, claro, a gente lida com ser humano e com a formação do ser humano. Então, vão
existir muitos conflitos, mas eu acho que o diferencial aqui é que a gente sabe qual é esse
caminho, por onde que, por onde que se tem que ir. Não fica... as pessoas não ficam cada um
tentando encontrar estratégias. Uns, às vezes, até estratégias contraditórias, como se o
estudante que está ali não fosse único. Acho que é essencial você ter um projeto, Projeto
Político-Pedagógico que norteie o trabalho da instituição, o currículo e o trabalho pedagógico.
Sérgio — Nas próximas quatro questões, a gente vai falar sobre esse projeto pedagógico.
A pergunta oito: provocou reações emocionais nos docentes e de que maneira poderiam
ser percebidas essas reações?
Daniela — É... eu estou aqui, como já disse, há pouco tempo, eu comecei este ano. Mas eu
escuto relatos de professores que passaram por essa mudança, de como que isso mexeu
emocionalmente. O que eu escuto muito foi com relação às paredes que, quando caíram as
paredes e os professores começaram a trabalhar, de fato, em equipe, eles começaram, de fato,
a trabalhar juntos, de como... de como foi diferente, eles, como eles, de fato, passaram a se
181

conhecer. Eu já escutei esse relato de vários professores da escola. Que era diferente você
escutar as queixas ou escutar as angústias ali, na sala dos professores e, depois, cada um na
sua sala fazendo, realizando um trabalho individualmente e, quando as paredes caíram, que
eles estavam juntos. Então, eles não só ouviam, eles participavam daquilo, eles passaram a
participar daquilo, eles estavam juntos vivendo aquilo. É, não tem como, num projeto desses,
onde as pessoas trabalham em equipe o tempo todo, professores, estudantes, não têm como
não mexer com a questão das emoções. Às vezes, já vi situações no salão, que tem um grupo
de professores e um professor toma uma atitude que o outro acha que não é mais adequada e
ele não... já ouvi que não podia desautorizar na hora, mas ele viu no meu olhar que eu não
estava aprovando aquilo. Então, eu acho que as pessoas... ficou muito mais exposta,
transparente. Outro dia, uma professora disse pra mim que o Braz sempre dizia que, quando
caíssem as paredes, não iam cair só as paredes, cairiam as máscaras, também, porque as
pessoas iam, de fato, se conhecer. E acho que é muito do que é, de fato, é muito isso que
acontece aqui. Mesmo com quem não passou por essa, por essa transformação da escola,
pela... por este progresso do projeto, pelas paredes sendo derrubadas, pelo trabalho em equipe,
mas quem chega aqui de uma outra escola, a gente percebe falas nesse sentido, da questão do
trabalho coletivo, do trabalho em grupo do professor.
Sérgio — Nessa questão... aí, propiciou alterações no trabalho docente?
Daniela — Com certeza.
Sérgio — É... por favor, discrimine as principais.
Daniela — É... com certeza. O professor... ele não está mais ali na frente da turma, na frente
ali da... entre a lousa e a turma que, geralmente, é onde o professor fica, como detentor do
conhecimento e sozinho. Ele está junto com seus pares, que eles planejaram, elaboraram um
roteiro, pensaram na rotina daquele jeito juntos, mediando o conhecimento. Atuando ali o
tempo... 100% do tempo de trabalho do educador no salão é voltado para os estudantes.
Então, eles estão o tempo todo interagindo com eles. Eu não tenho dúvidas que o trabalho
docente é muito diferente do que era ou do que a gente vê em outros lugares. A minha
referência ainda é bastante... comparar com o que eu vivia até então e que me incomodava
muito nas outras escolas. Eu costumo dizer para as pessoas da escola de onde eu estava o ano
passado, que eu vim para cá, que não foi, por mais que lá tivessem muitos trabalhos, deixar
aquelas pessoas não foi fácil, porque eu criei vínculos ali. Então, é... eu sempre, elas sempre
me procuram para... Quando tem alguma questão, quando elas querem conversar, a gente
criou um vínculo bacana. Talvez, por conta desse olhar que eu tinha para a questão mais do...
182

das questões afetivas, das questões das emoções, das questões das relações. Então, a parte...
foi mais difícil eu deixar aquelas pessoas, por mais que aquele... aquele esquema de escola,
aquele funcionamento de escola estava me incomodando muito, mas foi muito mais difícil
deixar aquelas pessoas do que reorganizar a minha vida pessoal, por exemplo. Quase todos os
dias eu converso com algum professor da escola, com a minha, a outra coordenadora, que era
minha parceira, discutindo essas... a gente continuou com um laço. E eu brinco com elas que
eu não quero mais uma escola que tem um corredor enorme, cheio de portas fechadas, que um
professor solitário lá dentro, sem poder dividir as angústias dele, as dúvidas que ele tem ali no
momento de uma situação, junto com um monte de adolescente com hormônios à flor da pele
e sem as pessoas conseguirem ter clareza de como lidar muito bem com isso. Então, eu falo
que eu não sei se eu vou, eu pretendo permanecer aqui por longos anos, mas até acho que, por
conta da distância, eu tenho um receio muito grande de ter que voltar a este outro modelo de
escola... que o trabalho solitário do professor... eu acho que é a coisa mais difícil de... agora
eu vejo, que é a coisa mais difícil de se lidar. Com certeza a mudança foi muito grande.
Sérgio — A pergunta, a décima pergunta. Provocou reações emocionais nos alunos, nas
interações na sala de aula? De que maneira poderiam ser percebidas essas reações nas
interações abaixo:
a) interação professor-aluno.
Daniela — Com certeza. O professor, ele não está mais como o detentor do saber e como
aquela pessoa que... ele vai falar e eu vou obedecer, ele vai pedir, eu vou fazer... é uma
relação mais próxima. Ele está como mediador do conhecimento. Por mais que a gente, que as
teorias da educação dizem que o aluno é o centro, o conhecimento é o centro do processo
ensino aprendizagem, não está no professor, numa escola tradicional ele está focado no
professor. É ele que decide, é ele que faz, é ele que... Aqui, essa relação é totalmente
diferente. É uma relação, é uma via, de fato, é uma via de mão dupla, do professor com
relação ao aluno. A forma como eles interagem no salão de estudos é uma forma muito mais
próxima. O professor tem um contato muito mais direto com o estudante. Ele vai fazer uma
intervenção ali sobre o roteiro de estudos, ele vai sentar junto com aquele estudante, ele vai
ouvir o que ele tem a dizer sobre aquele tema ou aquele conteúdo que ele está estudando, ele
vai intervir individualmente sobre aquilo. Então, a relação é muito mais próxima, muito mais
afetiva, eu acredito. O professor não está lá como um ser que é inatingível, ele está o tempo
todo ali interagindo, não tem como ser diferente. Ele tem, no momento que ele está com o
estudante no salão, o tempo todo ele faz isso, ele senta perto, ele escuta muito mais, está mais
183

próximo, os estudantes, aqui, eles conversam muito sobre muitos assuntos. E eu ouço os
professores dizerem que eles não são só entre eles que eles conversam muito sobre outros
assuntos, eles conversam sobre outros assuntos também com o professor. Às vezes, eles estão
numa conversa sobre o roteiro e aparece uma questão, algo que aconteceu com ele ou uma
dúvida, uma angústia, que o estudante tem que ele compartilha também com o professor,
então essa relação é muito mais próxima.
b) a interação aluno-espaço e ambiente.
Daniela — É... ele, o estudante, está no salão de estudo com, aproximadamente, entre 90 e
100 estudantes junto com ele, ele senta em grupos de, são quatro, quatro estudantes ali, por
mesa. É uma outra, acho que no salão é uma outra relação e nos espaços daqui da escola e do
CEU também é uma outra relação. Eles podem, eles têm uma liberdade maior de usar esses
espaços. Tem algumas coisas que eu vejo que, talvez, para quem está aqui há algum tempo, já
virou algo que é natural, mas eu vejo uma diferença ainda em coisas muito pequenas como,
por exemplo, o salão não ter porta. Pra mim, isso é uma diferença dessa relação que o
estudante tem com o espaço e com o conhecimento que, comparando com outras escolas,
geralmente, nas outras escolas, além de ter portas, ela fica fechada e ela fica fechada numa
questão de contenção, mesmo, de conter para que o estudante não saia. Ontem, conversando
com uma professora, eu falei pra ela: “Não são... lá... os salões não têm porta, a porta da
escola está aberta e os estudantes estão lá realizando o roteiro e tirando dúvida com o
professor e está todo mundo lá. Não são as portas da sala e as grades da escola que seguram o
estudante pra que ele aprenda. Acho que isso ainda me chama muito a atenção, de como que
eles se apropriam desse espaço como, de fato, um espaço deles. Então, ele não está lá no salão
porque ele é obrigado, porque tem alguém, uma porta fechada e alguém controlando, para que
ele esteja lá: ele está no salão porque o salão de estudos é o lugar que vai propiciar a questão
do conhecimento. A forma como eles utilizam os espaços da escola, eles têm uma liberdade
muito maior do ir e vir, na hora do intervalo eles não precisam ficar aqui dentro da escola,
eles têm os espaços do CEU pra lidar com eles e acho que é uma relação muito respeitosa que
os estudantes têm com relação aos espaços e ao ambiente da escola. Eles, de fato, sentem isso
como deles, eles são parte dessa construção. Então, eles cuidam, eles zelam por isso,
justamente porque é para eles, eles veem como algo que é para eles, não é o adulto que está
pedindo para que ele cuide, porque é do adulto... eles, de fato, entendem que esse espaço é
deles.
Sérgio — Provocou reações emocionais?
184

Daniela — Eu acredito que sim. Essa questão de pertencimento, da responsabilidade, daquilo


ser meu. É uma relação... é uma relação de, não sei se é carinho o nome, de cuidado, mas é
uma relação do espaço como sendo deles também, como sendo algo que eles precisam cuidar
e zelar, que é algo para eles. Eu acho que é uma relação afetiva, sim, com o espaço, com a
escola. Eu escuto, diversas vezes, vêm estudantes, ex-alunos daqui, que vêm visitar a escola,
que vêm conversar com as pessoas e eu vejo sempre no relato deles essa questão da... a
questão afetiva com a escola, com o espaço, com as pessoas. Eu acho que, com certeza, tem...
tem um impacto na questão das emoções, aí.
c) a interação aluno-aluno.
Daniela — Eles interagem o tempo todo. Acontecem... acontecem alguns conflitos, onde tem
ser humano, existirá conflito. Se não tivesse conflito, eles não iam... inclusive avançar com
relação a saber lidar com as relações e com as emoções, mas eu acho que acaba acontecendo
mais porque eles interagem o tempo todo. Eles criam laços com os outros estudantes muito
mais próximos. Nas outras escolas, a gente escuta que não pode ter barulho, não pode
conversar, porque, senão, vai atrapalhar o aprendizado. Aqui é justamente ao contrário,
quanto mais eles conversarem entre eles, quanto mais eles trocarem experiências e saberes,
maior vai ser o aprendizado. Então essa relação é muito intensa.
Sérgio — Nas mesas?
Daniela — Nas mesas, e não só nas mesas. Eles têm outros espaços também de interação, a
começar pelas mesas, que eles sentam o tempo todo juntos, eles sentam em grupos de quatro e
a orientação quando... que eles façam o roteiro em grupo, conversando sobre aquilo o tempo
todo. Se eles têm alguma dúvida, eles vão... primeiro, recorrer ao estudante.
Sérgio — Ah, então você tá. Eu já aproveito o ensejo para falar sobre a d, que seria a
interação aluno-conteúdo.
Daniela — Tá. Aluno-conteúdo, tá. Eles estão o tempo todos ali, juntos, se eles têm alguma
dúvida, primeiro eles vão tirar, vão tentar solucionar a dúvida ali entre eles e, depois, eles vão,
se não conseguirem, eles chamam um educador para ajudá-los a resolver ali aquela questão.
Então é uma relação muito próxima, eles acabam criando, eu vejo que eles criam laços de
amizade muito forte. Eles estão o tempo todo juntos, conversam muito sobre outras coisas que
não do roteiro, então eles vão falar de coisas que aconteceram na escola, em casa, se estão
tristes, se não estão, com o que aconteceu na hora do recreio, quem brigou. Sempre, quando
vem algum estudante aqui com algum problema, porque caiu, porque brigou, porque, enfim,
aconteceu alguma coisa, sempre tem o outro junto com ele, se solidarizando com aquilo, eu
185

acho que é mais próximo. Um dos princípios da escola, que é a questão da solidariedade, eu
vejo muito acontecer, de fato, com eles, eles estão sempre juntos.
Sérgio — Na pergunta onze, é possível notar alguma relação entre essas interações? E
autonomia, a responsabilidade, solidariedade, você poderia discriminar?
Daniela — É, o tempo todo, o tempo todo, a gente... a gente vê os três princípios da escola
acontecendo. Eles... todas... tudo é pensado para que esses três princípios estejam em pauta e
à tona o tempo todo. Então, eles trabalham, eles estão trabalhando juntos, eles têm que ter
autonomia pra, criando autonomia pra lidar com a questão do conteúdo do aprendizado,
porque não é o professor que está ali detendo todo o conhecimento, é ele que está, através do
roteiro, fazendo aquilo, construindo aquilo e aprendendo. Pra isso, ele tem que ter
responsabilidade, não pode, não vai pegar o primeiro roteiro e ficar naquele roteiro o resto do
ano, por exemplo, ele tem que ter responsabilidade que tem outros conteúdos ali pra ele ir,
então ele tem que terminar para passar para o próximo. A solidariedade o tempo todo também,
nas relações aparece isso o tempo todo. Não é, não só do estudante, mas o professor também
precisa seguir esses três princípios. Ele está, se ele está junto, está ali trabalhando em equipe,
ele não está sozinho, fechado dentro de uma sala, ele está trabalhando com outra equipe de
professor. Eles... a questão da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade aparece o
tempo todo. Quando está em alguma situação e o colega percebe que aquele professor não
está mais, chegou no limite, aí, ele assume aquela situação para o outro poder até se distanciar
um pouco. A elaboração junto dos roteiros, planejar as coisas juntos, acho que é, para o
professor, também, isso é um diferencial muito grande.
Sérgio — Na décima segunda pergunta. Você reagiu emocionalmente, à implementação?
Não, porque você não estava aqui à época, mas aos resultados desse novo projeto
pedagógico? De que forma ela ocorreu?
Daniela — Sem dúvida, eu vim para essa escola justamente por conta disso, dessa questão
das relações e eu me sinto, como a Amélia diz, parece que eu já estou aqui há dez anos, é um
lugar que eu me sento muito bem, é um lugar que eu gosto muito de estar. A forma como... a
forma como os problemas que acontecem no dia a dia da escola, porque a gente... a gente tem
problemas como qualquer... qualquer outra escola, a diferença não é que não temos
problemas, a diferença é a forma como a gente lida com eles. Isso, com certeza, me afeta
emocionalmente de uma maneira positiva. A questão do diálogo para solucionar os conflitos,
os diferentes dispositivos que a gente tem que, pra lidar com essas situações de que afloram.
Não sei se é esse o termo, que afloram as emoções. O respeito que a gente vê, para lidar com a
186

questão das relações... existe um respeito. O estudante... ele não é visto como o único viés,
que é o viés do cognitivo, que ele tem que aprender, ele é visto como ser, a gente tem isso,
inclusive, ligado à questão dos três princípios, ele é visto como um ser inteiro, que ele tem
questões psicológicas, emocionais, biológicas, sociais, de aprendizado, ele é visto como um
ser todo. É uma coisa que me afeta muito positivamente, emocionalmente poder lidar com
isso. Eu não vejo, de novo, eu não vejo o que mudou na implementação do projeto, mas eu
consigo fazer esse paralelo de estar num outro espaço, onde isso não era valorizado, e estar
aqui. Acho que, talvez, seja um pouco o que aconteceu com esta, quando teve a
implementação do projeto, quando as coisas começaram a acontecer. Não sei se eu respondi,
se eu consegui responder.
Sérgio — Sim, sim. Na pergunta treze, no exercício de sua função, você toma decisões
emocionais?
Daniela — Acho que também. Eu ainda estou muito vivendo o período da paixão, de estar
muito apaixonada por tudo isso. Mas claro que tem alguns momentos que você tem que ser
racional, tem decisões que você tem que seguir que tem que, tem que usar a questão do
conhecimento, as questões mais pedagógicas, não que a questão do emocional não seja
pedagógica, que eu acredito que é, mas enfim, é algo mais, um pouco mais racional, mas
também entra as questões emocionais aí no... Elas entram o tempo todo, não tem como a
gente separar isso, de todas as decisões... eu acho que a gente toma na vida e,
profissionalmente, não é diferente. E com os estudantes, na hora que eles estão ali numa
situação de aprendizagem no salão, também não é diferente. Acho que, o tempo todo, a gente
toma decisões que levam as questões emocionais em conta, acho que a diferença é que, aqui,
isso é valorizado e não visto como um problema. Essas, a questão das emoções, dos
sentimentos, das relações, elas são valorizadas, e não desprezadas, a gente não precisa fingir
que essas coisas não existem. A minha decisão de vir pra cá, de pedir remoção para essa
escola, ela foi puramente emocional. Se eu tiver, falando de uma particularidade muito minha,
não sei se... nem sei se isso está muito diretamente ligado ao projeto, mas ela foi uma decisão
puramente emocional. Se eu tivesse pensado racionalmente, eu não teria trocado os quinze
minutos que eu demorava pra chegar no trabalho, com um filho de dois anos que eu tenho e
uma de dezoito que estava, não sabia se ia passar na faculdade ou não, não sabia o que ia ser
da vida dela este ano... Eu tenho, eu não iria trocar esses quinze minutos que eu demorava
para chegar, que eu chegava em casa, dava tempo de fazer as coisas, ficar com eles... por essa
distância que, agora, eu levo de uma hora e meia a duas horas para chegar, pela distância, por
187

estar tão longe. Eu acho que, se eu tivesse pensando racionalmente, talvez, eu não teria
indicado essa escola. Foi a única escola que eu indiquei na remoção e eu indiquei por uma
questão, por um, foi afetivo, foi emocional. Eu queria estar num lugar que se fizesse uma
educação... que se tivesse um projeto que ia de encontro com as minhas concepções. Então,
não sei se isso tem a ver com a sua pesquisa, se tem um pouco a ver com a história da escola,
mas eu estar aqui foi uma decisão puramente emocional. Eu nem... quando, depois que eu
indiquei, que não tinha mais volta, eu não sabia se eu viria ou não, mas foi a única, enfim, que
eu indiquei que não teria mais volta, eu falava: “Ah, meu Deus, e agora, o que que eu fiz,
como que eu vou, como que eu vou me organizar, como eu vou lidar com tudo isso?”. E,
quando veio a notícia, eu fiquei muito emocionada e muito feliz e, de novo, acho que foi a
emoção que falou muito mais forte com isso. Não sei se ajuda você aí, se contribui, se essa
parte que é muito mais pessoal contribui para a sua pesquisa.
Sérgio — Na pergunta quatorze, a última pergunta. Você gostaria de acrescentar algo de
relevante?
Daniela — Acho que tem, acho que você abordou vários aspectos, mas tem algo que eu não
sei se está diretamente aqui, que está um pouco na questão do aluno com o conteúdo. Que, às
vezes, as pessoas podem ter no seu imaginário que aqui, na “Campos Salles”, como não tem a
aula, como não tem a aula expositiva, como não tem a prova, como não tem a questão do
conteúdo e a questão do aprendizado, acaba ficando um pouco de lado em detrimento dessas
outras questões, das relações e as questões emocionais e, estando aqui, agora, acho que isso
não é verdade absoluta. A questão do aprendizado, da construção do conhecimento, do aluno
lidar com, adquirir conhecimento, mesmo, ampliar o repertório, aprender, acontece junto com
a questão, com o outro lado, que é o crescimento pessoal, saber lidar com situações problema,
saber tomar decisões, saber trabalhar em grupo, que eles, principalmente os mais velhos, eles
falam bastante. Então, acho que existe algo no imaginário das pessoas, é uma pergunta que eu
escuto muito de pessoas que não estão aqui. Não fica... os estudantes aprendem muito como
um todo. Eles... acho que a gente forma um, forma não, porque nada disso é colocado numa
forma, mas a gente prepara, também não sei se é prepara, enfim, mas a gente lida com todas
essas questões juntas, deles. Eles saem muito mais, daqui, mais preparados para encarar a
vida, questões, o ensino médio ou trabalho. Eu acho que é pensar no ser humano como um
todo, não tão óbvio, que a questão... a escola... ela que é a responsável pela questão do
conhecimento. E a gente não faz algo diferente disso, a gente vai muito além disso e não deixa
isso de lado. Acho que...
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Sérgio — Bom. Daniela.


Daniela — Não sei se eu consegui te ajudar.
Sérgio — Não, está ótimo. Muito obrigado pela entrevista.
Daniela — Imagina.
Sérgio — Podemos encerrar?
Daniela — Acho que pode.
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ENTREVISTA: PROFESSORA LUANA*


DATA: 19 DE OUTUBRO DE 2016
LOCAL: SEDE DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES

Sérgio - Poderia responder qual é a sua idade e a sua formação?


Luana - Tenho 47 anos. Sou formada em magistério, pedagogia, psicologia e pós-graduada
em escola inovadora.
Sérgio - Qual o Estado e cidade de seu nascimento?
Luana - Nasci em São Paulo e sou de Santo André.
Sérgio - Você sempre lecionou em São Paulo (Estado, prefeitura, município)?
Luana - Minha trajetória é bem diferente das professoras convencionais. Trabalhei 15 anos
em empresa na área de recursos humanos com recrutamento, seleção, treinamento, lidando
com executivos; foi, então, há 7 anos que resolvi mudar minha profissão. Deixei esse
ambiente corporativo para atuar em escola e, um dos meus maiores motivadores nessa
transição, foi meu filho. No emprego anterior eu tinha de viajar muito e não sobrava tempo;
como eu tinha toda experiência e toda a formação acadêmica, pois nessa empresa na qual eu
trabalhava, lidava com formação, sendo isso similar à educação, com diferença só público-
alvo, resolvi investir em algo que gosto e lecionar em escolas.

Sérgio - Você leciona atualmente apenas na EMEF Presidente Campos Salles? É


concursada?
Luana - Quando resolvi deixar o ambiente corporativo para vir ao ambiente da educação,
uma da minha meta era trabalhar em um único período e focar apenas em uma escola, para
que tivesse tempo livre e pudesse ajudar na educação do meu filho.
Sérgio - Há quanto tempo você exerce a docência?
Luana - Assim, prestei o concurso e vim lecionar na E.M.E.F. Presidente Campos Salles há
três anos, porém exerço a docência em escola tradicional há 5 anos pela Prefeitura, mais 20
anos somados de ensino em outros ambientes não escolares. Não tenho vivência na educação
do Estado.
Sérgio - Há quanto tempo você é professora na EMEF Presidente Campos Salles?
Luana - Três anos.
Sérgio - Poderia citar os dois principais motivos que a fizeram escolher a EMEF
Presidente Campos Salles para exercer a profissão docente?
190

Luana - Inicialmente, quando passamos em um concurso público, não escolhemos uma


escola efetivamente; fazemos uma relação das que gostaríamos de atuar e, então, o sistema
indica uma escola de acordo com sua pontuação entre outros requerimentos. Quando indiquei
a atual escola que leciono, não sabia do Projeto, até porque eu era nova na Prefeitura, não
tinha muito essa vivência do que era uma escola diferente e inovadora. À vista disso, o
principal motivo de ter escolhido essa escola para atuar como docente foi por ela estar bem
próximo à minha residência. Vim para cá e me apaixonei, pois era completamente diferente
do ambiente tradicional. Como eu já vinha de um ambiente corporativo no qual lidava com
muita gente ao mesmo tempo, aonde auxiliava as pessoas a buscarem caminhos, soluções,
autonomia, responsabilidade dentro da empresa, adaptei-me muito facilmente ao Projeto. No
meu primeiro ano na Campos Salles, a coordenação comentava surpresa dizendo que eu tinha
me adaptado muito fácil. Hoje, talvez eu não consiga mais lecionar em escola tradicional.
Sérgio – Quais os motivos que conduziram a EMEF Presidente Campos Salles a
reestruturar seu Projeto Político-Pedagógico?
Luana - Os motivos que conduziram a Campos Salles a reestruturar seu Projeto Político-
Pedagógico (PPP) foi a própria vivência da comunidade junto à escola. A partir dessa união,
surgiu um PPP efetivamente verdadeiro que realmente é colocado em prática, aonde a
comunidade e escola caminham juntas, aonde a comunidade vem para escola falar das coisas
que acontecem lá e a escola vai à comunidade falar que precisa de uma ajuda com algum
estudante; enfim, existe uma ‘liga’.
Sérgio - Você poderia citar os principais atores envolvidos na construção do Projeto
Pedagógico vigente?
Luana - Os principais atores envolvidos na construção do PPP vigente envolve todo mundo,
isto é, a comunidade, os professores, os educadores que aqui estão, que realmente entenderam
o sentido desse Projeto e que topam e enfrentam esse desafio, pois ele não é tão simples. Os
próprios estudantes que, aos poucos, vão entendendo o objetivo da nossa escola e o objetivo
do nosso Projeto, vão incorporando e percebendo que aqui é uma escola diferente, entretanto,
esse diferencial os ajuda a enfrentar a vida lá fora, pois uma das principais coisas que fazemos
aqui é o trabalho em equipe, sendo isso de fundamental importância, haja vista que quando o
estudante daqui se forma e vai para o mercado, ele percebe que tem de trabalhar em equipe.
Sérgio – Quais foram os principais obstáculos para a implementação desse projeto?
Luana - Em relação aos principais obstáculos para a implementação do Projeto, não saberei
dizer ao certo, porque entrei nessa escola há três anos. O que posso afirmar é que nesses 3
191

anos que estou aqui, muitas coisas se transformaram, melhoram, foram sendo construídas e
modificadas de acordo com a realidade. Nosso Projeto está em constante movimento, em
constante implementação, ele é muito vivo! Todavia, nesse aspecto ((dos obstáculos)), relato
uma frase do Braz: "O sucesso do nosso Projeto é o trabalho em equipe e o insucesso do
nosso Projeto é também o trabalho não em equipe". Isso eu percebo nos salões. Se no salão, o
grupo de educadores trabalha em equipe, conversam, tem aquela ‘liga’, o trabalho flui. Ao
contrário, se o grupo dos professores, incluindo os gestores, não se ‘casam’ bem, não há
aquela ‘liga’, o salão acaba refletindo essa falta do trabalho em equipe.
Sérgio – Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por
quê?
Luana - Acredito que o PPP é muito afetivo. Para nós, o estudante não é simplesmente um
estudante, ele é o Pedro, ele é o Paulo, ele é a Maria. Tentamos entender o que está
acontecendo com ele, em toda sua complexidade. Sou psicóloga, e muitas vezes ajo mais
como psicóloga do que pedagoga, do que uma educadora. Como dentro do nosso Projeto
existe uma equipe no nosso salão, você consegue perceber que o estudante não está legal, que
ele está com algum problema, então, é aí que se tem a oportunidade de tirar esse estudante,
levá-lo para um cantinho e conversar com ele. Fazemos muito isso. Eu, particularmente, faço
isso. Isso é extremamente enriquecedor, faz toda diferença! Não temos apenas o objetivo de
repassar o conteúdo em uma lousa, precisamos ir muito além. Assim, para mim, o PPP é
muito afetivo.
Sérgio – O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente?
O que se destaca nesse trabalho?
Luana - Acredito, também, que o PPP dinamiza o trabalho docente. Estamos em constante
aperfeiçoamento porque no nosso Projeto não trabalhamos com lousa, não trabalhamos com a
sala de aula convencional, mas trabalhamos em cima de roteiros. Esses roteiros partem de um
assunto que os próprios estudantes escolhem e, a partir dali, montamos estes de acordo com o
tema que propuserem. Dentro desse tema, temos de contemplar o currículo para não sair fora,
porém devemos trazer curiosidades para eles, por exemplo: tivemos um roteiro em que
falamos sobre as civilizações antigas; tivemos de contemplar todo o conteúdo e trazer essa
curiosidade que eles tinham. Portanto, esse modelo dinamiza muito o nosso trabalho. Temos
de estar sempre estudando, sempre nos reformulando, buscando coisas diferentes, e não
somente levar o conteúdo puro e cru; deve-se incluir aquele conteúdo dentro de um assunto
que os estudantes queiram saber, que queiram conhecer; é tudo muito dinâmico e desafiador!
192

Sérgio – O Projeto Pedagógico da Campos Salles contempla a figura do professor-


cidadão. Neste sentido, como você coloca em prática o exercício da docência na Campos
Salles?
Luana - O PPP daqui contempla a figura do professor cidadão e esse agente está presente na
prática do exercício da docência na Campos Salles. Temos uma postura, um respeito.
Sabemos que a educação no Brasil está muito difícil, principalmente no que tange às crianças,
pois muitas delas atualmente não têm família, não têm uma estrutura. Elas chegam na escola e
não sabem muito o que são regras e limites e acabam descontando no professor. Aqui, nós
temos todo esse respaldo, somos altamente profissionais e somos respeitados como
profissionais pelo grupo de gestão, por todos que estão aqui e, principalmente, pelos pais. Os
pais que vêm à escola percebem o profissionalismo, percebem que o professor está ali
ajudando, que no momento que o professor chama a atenção de um aluno ele não está faltando
com respeito, mas sim querendo que aquele estudante seja o melhor que possa ser. Aqui não é
como dizem por aí que a escola pública pode fazer tudo de qualquer jeito. A escola pública é
formada de professores, de educadores, de pessoas que estudaram e estão aqui como qualquer
outro profissional, assim como o médico, como o advogado, e isso sim é valorização. Então,
nós nos valorizamos muito e somos valorizados, e isso é fundamental.
Sérgio - Em termos afetivos, para professores e alunos, o que representou a derrubada
das paredes e a retirada das maçanetas, com a alteração do espaço, transformando as
salas de aula normais em salões?
Luana - Em termos afetivos para professores e alunos o que representou a derrubada das
paredes e a retirada das maçanetas com a alteração de espaço transformando as salas de aulas
convencionais em salões foi a oportunidade de poder estar mais próximo de seu estudante, e
isso é muito contraditório, pois me questionam: “Como você vai dar conta? Como você
consegue olhar 100 crianças?”. É uma coisa meio mágica...nós conseguimos (risos). O fato de
você não ter que ficar explicando em lousa, de cada grupo possuir autonomia e desenvolver
um trabalho e um roteiro próprio e o aluno ter que seguir isso, ele estará sempre com coisas
para fazer. Isso possibilita com que tenhamos esse olhar mais aguçado àqueles que realmente
precisam mais, inclusive, àqueles que têm mais dificuldades; não vou dizer que conseguimos
sanar todas as dificuldades, infelizmente não conseguimos, mas conseguimos estar bem
próximo daqueles estudantes que precisam de um pouco mais de atenção, de um olhar um
pouco mais diferenciado.
193

No tocante à afetividade, com os roteiros integrados, com os outros alunos e com o professor
no salão, na minha perspectiva, os alunos interagem em uma dinâmica incrível. Existe uma
harmonia, apesar do caos com muitas crianças e apenas 3, 4 ou no máximo 5 professores no
salão. Muita gente pensa que é bagunça, mas não é. É uma harmonia onde você consegue
realmente fazer com que elas entendam que existe o momento de estudar; lógico que não tem
como fazermos tudo isso se não tivermos limites, mas essas regras e esses limites não são
impostos, são conquistados e trabalhados com elas. Elas sabem que uma das nossas regras de
convivência é não poder ficar levantando toda hora e ficar circulando pelo salão, porque se
você levanta, dá-se o direito ao outro também de levantar; daí imagina os cem estudantes
andando por aqui, que confusão seria! Então, existe essa harmonia, existe essa afetividade.
Muitas vezes ocorre do professor estar sanando dúvidas de um estudante e de um grupo ter
terminado o roteiro, assim, eles esperam pela correção, pois compreendem que o professor
não consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo. Eles têm a paciência de aguardar e vão fazer
outra coisa enquanto isso, ler um livro, brincar; eles arrumam alguma coisa para fazer
enquanto esperam o professor. Em todo o momento, essa afetividade, esse carinho, essa liga,
perpetua demais.
Sérgio - Na “Campos Salles”, onde aparece a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade conferida aos alunos?
Luana - Os princípios (autonomia, responsabilidade e solidariedade) conferida aos alunos da
Campos Salles, aparecem em todo momento. Tratando-se da autonomia, por exemplo,
imagina cem crianças entrando no salão. Chegam pela manhã, entram, cada um vai para o seu
lugar sem precisarmos ficar falando; sentam, conversam um pouco, claro! Nós, professores,
escrevemos na lousa a rotina do dia para elas se programarem. Enquanto fazemos isso, elas
conversam entre si. Acabando isso, automaticamente, ou seja, autonomamente, elas pegam
seus cadernos, montam seus roteiros e programam o que irão fazer, o que vão estudar, e é aí
que entra a questão da responsabilidade: quando elas decidem o que irão estudar no dia. Às
vezes acontece de dois alunos escolherem o livro de matemática e outros o livro de ciências,
por exemplo; mas, geralmente, eles estão fazendo a mesma coisa. A solidariedade se vê no
momento em que um ou mais se mobilizam em ajudar um amigo que está encontrando
dificuldades em resolver um exercício, desse modo, pedem a ajuda do professor. Há, também,
a solidariedade em procurar o professor para auxiliá-los. Isso acontece a todo momento.
Acontece na hora da comissão mediadora, aonde eles precisam descer para conversar com o
194

estudante que não está tendo um comportamento legal no salão. Muitos ainda precisam
entender tais princípios, mas a grande maioria já os compreende e isso é fantástico!
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Luana - As práticas pedagógicas relacionadas com a educação na cidadania são praticadas
por meio da proximidade da realidade dos estudantes. Nós temos o que chamamos de roteiros
temáticos os quais são específicos e relacionados ao que está acontecendo no mundo; como,
por exemplo, dias atrás tivemos um roteiro falando sobre o consumismo, o exagero de
consumo; apesar de serem da periferia, percebemos que eles preferem ficar sem uma
alimentação saudável para ter um tênis da moda ou deixam de pagar uma conta para comprar
um celular de dois ou três mil reais. Um salário que o pai tem para fazer mil coisas, ele
compra um celular porque ‘todo’ mundo tem. Então, trabalhamos muito isso com eles,
diretamente.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Luana - Gostaria de acrescentar que dentro da escola, os estudantes são muito vivos; têm uma
energia participadora, gostam de se envolver. Apesar de serem adolescentes e muitas vezes
serem questionados quando um ou outro não está estudando, você o coloca dentro desse
Projeto permeado pelos roteiros, ele se mostra solidário; isso que é legal dentro da Campos
Salles. Ele se torna totalmente engajado, pois quando ele está em uma escola convencional, às
vezes só aquele ambiente escolar, aquela sala de aula, não reflete o que o estudante é de
verdade, até fora da comunidade; e aqui a gente consegue ver isso, é muito interessante e
muito legal!
195

ENTREVISTA: PROFESSORA LAURA*


DATA: 19 DE OUTUBRO DE 2016
LOCAL: SEDE DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES

Sérgio - Poderia responder qual é a sua idade e a sua formação?


Laura - Tenho 31 anos de idade. Minha formação inicial é letras, posteriormente cursei
pedagogia e musicalização infantil.
Sérgio - Qual o Estado e cidade de seu nascimento?
Laura - Nasci no Estado de São Paulo, em Carapicuíba.
Sérgio - Você sempre lecionou em São Paulo (Estado, prefeitura, município)?
Laura - Sempre lecionei em São Paulo, tanto no Estado, quanto na Prefeitura, no Município
e, também, em escolas particulares.
Sérgio - Você leciona atualmente apenas na EMEF Presidente Campos Salles? É
concursada?
Laura - Atualmente, sou concursada na E.M.E.F. Presidente Campos Salles há 3 anos e 8
meses, mas também leciono no Instituto Aprendiz que é uma escola particular. Entretanto,
exerço a docência há 12 anos.
Sérgio - Há quanto tempo você exerce a docência?
Laura - Exerço a docência há 12 anos.
Sérgio - Há quanto tempo você é professora na EMEF Presidente Campos Salles?
Laura - Há três anos e oito meses.
Sérgio - Poderia citar os dois principais motivos que a fizeram escolher a EMEF
Presidente Campos Salles para exercer a profissão docente?
Laura - Escolhi a Campos Salles, pois é uma escola nova e cumpri seu Projeto Político-
Pedagógico (PPP), pois ele não está somente no papel, está inserido a todo o momento em
nossa vivência educativa, e nas outras escolas eu não encontrei isso, mas encontrei um projeto
engavetado aonde você tem um ensino engessado e aqui eu encontrei a interdisciplinaridade
que eu tanto buscava nas outras escolas.
Sérgio – Quais os motivos que conduziram a EMEF Presidente Campos Salles a
reestruturar seu Projeto Político-Pedagógico?
Laura - O motivo que conduziu a Campos Salles a reestruturar seu PPP se deu pelo fato de
não acreditar mais que o modelo de aula dada, inclusive dada ainda em outras escolas,
pudesse sanar todo o processo educacional, ou seja, que é ver um indivíduo não somente
196

como uma pessoa ‘quadrada’, aonde abre sua caixa de pensamento e insere conteúdos, mas
que observa essa criança/adolescente integralmente. Para dar conta dessa educação integral, o
modelo tradicional não dá conta. Então, essa reestruturação envolve a comunidade, pois tanto
ela ((a comunidade)), quanto a escola são uma coisa só; ambas estão integradas. Assim, a
reestruturação do PPP busca não somente por uma educação ou uma escola de qualidade, mas
por um bairro de qualidade, onde todos estejam envolvidos.
Sérgio - Você poderia citar os principais atores envolvidos na construção do Projeto
Pedagógico vigente?
Laura - Os principais atores envolvidos na construção do PPP vigente são todos os docentes,
os próprios estudantes, equipes gestoras e principalmente a comunidade apoiando, pois sem
ela ((a comunidade)), não tem como ter uma escola que caminhe com esse Projeto. Se os pais
ou a própria comunidade não apoiassem a Campos Salles, não teria como ter a derrubada das
paredes, senão a escola nem teria mais alunos matriculados se a comunidade não acreditasse
no nosso trabalho.
Sérgio – Quais foram os principais obstáculos para a implementação desse projeto?
Laura - Há dez anos, os principais obstáculos para implementação do PPP na Campos Salles,
primeiramente se deu pelo fator do espaço físico, pois derrubar uma escola municipalizada
não é fácil. O diretor teve de dar um passo além daquilo do que era permitido. Se ele tivesse
medo e não tivesse um amparo da equipe de professores que atuaram naquela época e da
comunidade, isso não seria possível. Outro obstáculo ocorreu com os professores à época,
pois muitos pediram remoção, porque muitos eram acostumados a serem donos de um
específico saber/especialização. Os professores do fundamental I e do II ficavam isolados,
pois tinham medo de caminhar em outras áreas. Desse modo, acredito que o principal
obstáculo era pelo fato de que cada professor era fechado na sua matéria/especialização.
Derrubar as paredes era o de menos importante. Derrubar as paredes mentais que era o grande
propósito nisso tudo. Como você construirá uma interdisciplinaridade? Posso estar no mesmo
salão atuando junto a você e não haver interdisciplinaridade. Para tanto, precisamos estar
afinados, por isso o principal obstáculo é esse: a derrubada das paredes internas que estão
dentro da pessoa; de ela mesma olhar para si e pensar: como é essa docência compartilhada?
Quero dizer que esse é o trabalho em equipe, quando caem as paredes não existe a minha sala,
mas a nossa, o nosso salão, nosso espaço de convivência. Se você mostrar para mim as suas
fragilidades pedagógicas e eu mostrar a você as minhas, nos ajudaremos e não nos
197

criticaremos. O professor que entra na Campos Salles tem de estar aberto a essa renovação;
ele terá de se desconstruir, deixar pra trás aquele professor antigo pra atuar como educador.
Sérgio – Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por
quê?
Laura - Para mim, o PPP da Campos Salles é afetivo, porque considera o sujeito como um
todo e não apenas observa sua capacidade de cognição, mas busca compreender e saber como
o aluno vive na sua casa. Assim, aqui na escola consideramos o todo. Essa docência
compartilhada é que faz com que o professor não fique à frente como um pedestal, dono do
saber, mas que ele caminhe pelo salão, sente com o estudante e deixar, por vezes, um pouco
de lado aquilo que está dito no roteiro para atender as necessidades do aluno, necessidades
essas que nem sempre são cognitivas, mas que permeiam um campo afetivo, porque a
solidariedade está muito presente entre nós, inclusive na reunião de alunos ((a Comissão
Mediadora)), que não só serve para mediar os conflitos, mas também, para sanar essas
inquietações tão pertinentes na idade deles.
Sérgio – O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente?
O que se destaca nesse trabalho?
Laura - Percebo que o trabalho docente em outras escolas é isolado. O professor se sente
muito sozinho quando ele fecha sua sala de aula e ali começa somente o trabalho dele, um
trabalho solitário. É ele e os alunos e, às vezes, está muito distante da coordenação. Um
trabalho permeado pelo PPP como o da Campos Salles, aonde você tem, no mínimo, quatro a
cinco educadores trabalhando naquele salão, torna-se dinâmico, pois um professor sozinho
pode pensar de um jeito, porém todos ali reunidos vão complementando a ideia do outro e
juntos com os estudantes vamos proporcionando as assembleias. Assim, quando nos
inserimos em um PPP desse formato do qual prevê assembleias e autonomia, sentimo-nos
muito à vontade para trabalhar; por exemplo, podemos pedir à direção para pegar os alunos a
qualquer hora para experimentarem fantasias e irmos juntos à torre da cidadania (que é um
espaço localizado em um prédio dentro do CEU). Para isso, não precisamos ter medo da
direção porque a gente prevê no PPP essa liberdade de ocupar todos os espaços, a escola deve
ser ocupada no seu todo. Então, a gestão dinamiza nosso trabalho. O PPP dinamiza o nosso
trabalho, potencializando aquilo que em outras escolas não tem, pois, a criatividade fica
guardada e aqui isso não acontece. Aqui você pode apresentar sua criatividade e será sempre
apoiado. O PPP daqui prevê o cumprimento de 70%, se não me falha a memória, da demanda
externa da Prefeitura que são: os direitos e deveres de aprendizagem e o pacto do PENAI (que
198

vai do primeiro ao terceiro ano); os outros 30% são destinados a vivências, à realidade sobre,
por exemplo, a política ou a falta de água. Assim, o professor quando vai à direção não tem
medo de dizer: “Parei o roteiro porque agora vou falar sobre a falta de água ou porque
aconteceu um evento na comunidade que chamou a atenção dos alunos, portanto, iremos
trabalhar isso". Portanto, nós não temos medo e receio, pois temos esses 30% do nosso
Projeto falando que temos liberdade para trabalhar dessa forma. Assim, dinamiza nosso
trabalho, com toda certeza.
Sérgio – O Projeto Pedagógico da Campos Salles contempla a figura do professor-
cidadão. Neste sentido, como você coloca em prática o exercício da docência na Campos
Salles?
Laura - Há um livro que eu gosto muito intitulado “O mestre ignorante” ((ele é indicado aos
professores que ingressam na Campos Salles)). Nesse livro, o mestre não é apenas um
explicador, mas sim, um mestre libertador, que está a todo o momento ali esperando,
observando, educando, fazendo perguntas que motivam os estudantes a descobrirem as
respostas; então o mestre aqui dentro exerce a cidadania no momento que você está andando
no salão, preocupando-se com os estudantes, fazendo perguntas que os levam a caminhos que
conduzam à resposta. Durante as assembleias ((estas se reúnem no salão para discutirem
temas pertinentes que foram trazidos, os questionamentos sobre os futuros roteiros em sala de
aula)), não é somente os estudantes que falam, que têm voz nas assembleias, mas o professor
também fala. Sentimo-nos muito acolhidos nas nossas reuniões de professores, na reunião de
pais e mestres que aqui chamamos de reunião de familiares, pois envolve toda a comunidade,
não importa quem cuida da criança, o importante é que um adulto seja responsável. Assim, é
dessa maneira que vejo que exercemos nossa cidadania o tempo inteiro.
Se eu pensar numa escola tradicional, terei apenas um mestre explicador e as crianças
ficarão engessadas, em cadeiras, ao lado umas das outras. Aqui você tem uma parte destinada
para assuntos sociais, assim, você consegue exercer a sua cidadania aqui dentro e lá fora.
Muitas vezes, um aluno chega em outro aluno de outro grupo para responder suas dúvidas e
eles trocam entre si aprendizagens e experiências; isso é cidadania! Os professores fizeram
um roteiro com os alunos do 6º ano, onde atuo; eles queriam estudar mitologia grega, e havia
uma atividade em forma de cruzadinha contendo diversos deuses; sentei-me ao lado deles e
um me falou: “Professora, o que significa isso?” Respondi: “Não sei”. Chamei outro estudante
para responder à indagação do aluno que havia me questionado; ele sabia a resposta e ainda
disse que aprendeu com outro colega. Nesse instante, esse aluno que nos ensinou, fez o papel
199

do mestre; isso é exercer cidadania! O mestre é aquele que mantém a esperança - cada dia um
mestre diferente, e os alunos entendem isso. Agora, se fosse em outra escola e você dissesse
para o aluno eu não sei, passaria uma imagem vergonhosa e isso seria motivo de te
desrespeitarem pelo resto do ano. Aqui não. Os dois saem satisfeitos: o aluno e o professor
que foi circular em outras mesas e agora também descobriu uma resposta para dar caminhos
aos outros.
Sérgio - Em termos afetivos, para professores e alunos, o que representou a derrubada
das paredes e a retirada das maçanetas, com a alteração do espaço, transformando as
salas de aula normais em salões?
Laura - Em termos afetivos para professores e alunos o que representou a derrubada das
paredes e a retirada das maçanetas com a alteração de espaço transformando as salas de aulas
convencionais em salões foi que para os professores (digo, pelos professores de agora) nasceu
um sentimento de pertencimento, de equipe; pois ao olhar para o lado você vê o seu
colega/professor, ou seja, essa docência compartilhada. Quando um estudante está tendo
dificuldades, o problema não fica somente para um professor resolver, mas sim, todos os
professores, o pessoal da gestão, da equipe futura, da equipe que passou - todo mundo abraça
a causa. Para os estudantes, o que representou a derrubada das paredes foi a voz. Antes eles
não tinham voz, só eram um número que estava ali para receber conhecimento. Hoje, além de
terem voz, buscam seu próprio caminho, para conhecerem os temas que são pertinentes àquilo
que eles mesmos votaram em assembleia. Então, a alteração dos espaços, principalmente a do
salão, se tornou um ótimo espaço. Contudo, pretendemos ocupar cada vez mais espaços lá
fora, na torre da cidadania; lugares estes que todos estarão livres, com regras criadas por eles
mesmos. Essa derrubada deu voz aos estudantes e potencializou o ser do seu próprio saber.
Ele não é alguém que apenas recebe, mas é ativo, e sendo ativo ele tem direitos à participação
das regras, tem direito a saber e exercer, coloca-se numa posição onde necessita ter jogo de
cintura; desse modo, ele aprende, desde cedo, através deu seu próprio saber sobre as regras e
sabe que não pode infringi-las, isso é muito bacana!
Sérgio - Na sua perspectiva, como os alunos interagem, no tocante à afetividade, com os
roteiros integrados, com os outros alunos e com o professor no salão?
Laura - Aqui não usamos mais a palavra disciplina, usamos os roteiros integrados. A palavra
disciplina nos remete à aula (tradicional) da qual não temos mais. Derrubamos as paredes,
retiramos as aulas e demos liberdade de escolha e de voto aos estudantes por meio da
assembleia. Todos os professores em conjunto, independentemente da sua especialização,
200

sentam, conversam, e elaboram um roteiro totalmente integrado, onde todas as áreas de


conhecimento se conversam e contemplam os direitos de aprendizagens. Desse modo, esse
roteiro passa a ser tão integrado que não há separação de disciplinas por matérias, pois todo o
assunto engloba tudo. A interdisciplinaridade não pode ser conceituada; se caso a conceituo,
coloco-a dentro de uma caixinha e, na verdade, o que queremos é liberdade e temas que
permeiam todas as áreas do conhecimento mostrando integralidade.
No tocante à afetividade, os estudantes são afetivos com todos. Podemos ver muitas
diferenças em outras escolas municipais, mas, aqui, o estudante não sabe quem é o professor,
aqui o estudante não tem isso. Em outra escola quando um professor falta, ele é substituído
por outro; os estudantes dali não o reconhecem como professor e se tornam resistentes a ele,
porque não é o seu professor que está ali todos os dias, mas é um módulo que veio com outro
conhecimento, com outra linha de pensamento. Aqui, se um professor falta, o aluno nunca vai
se sentir prejudicado; apenas vai chegar, sentar, tirar seu roteiro e começará a trabalhar; se o
estudante tiver dúvida, levantará a mão e, se não tiver, ficará o dia inteiro sem precisar de
mestre porque aqui não apostamos em mestre explicador; não precisamos explicar aquilo que
está escrito; para isso, nosso roteiro se mostra integrado - aonde todos os professores
conseguem caminhar junto aos estudantes. Nesse sentido, a afetividade, o carinho, essa ‘liga’,
perpetua demais.
Sérgio - Na “Campos Salles”, onde aparece a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade conferida aos alunos?
Laura - Na Campos Salles, a autonomia, a responsabilidade e a solidariedade conferida aos
alunos aparecem o tempo todo. Se o estudante não tem autonomia, como vai responder a um
roteiro integrado que acabei de colocar na pergunta anterior como resposta? Ele precisa de
autonomia para sentar, ler o texto e fazer. Ele precisa ter responsabilidade para trazer o roteiro
todos os dias, pois eles (os roteiros) não ficam na escola, vão embora com os alunos.
Temos um dispositivo pedagógico que se chama agenda. Todos os dias os estudantes
chegam, sentam e fazem a agenda do dia. O estudante escreve que página irá usar e que
material vai precisar. Um professor passa para verificar quais os materiais que o estudante
elegeu, e os providencia. Assim, nesse momento, o estudante precisa ter responsabilidade; se
ele não fizer o planejamento, não poderemos conferir a ele o material. Se ele não fizer o
planejamento solicitando livros, não podemos conferir a ele tais livros. O estudante tem que
ter responsabilidade e ter em mente que possui uma meta para o grupo, que não é imposta
pelo professor, é escolhida pelo grupo. Exemplo, um grupo de estudantes pega o roteiro 6,
201

eles conversarão entre si sobre o tema e, em seguida, chamarão o educador no qual este
perguntará se o grupo já decidiu a meta; se sim, será colocada uma data para a entrega.
Portanto, este grupo deverá ter responsabilidade, porque na data da entrega, o educador
perguntará se cumpriram com a meta, como foi e o que acharam. Tenho um caderno onde
sempre anoto as conversas deles e a próxima visita. Nessa visita percebo que eles
praticamente já estão finalizando o roteiro. Isso é bacana de ver! Assim, eles não precisam de
um mestre explicador, não precisam de mim; eles simplesmente arrumam outros professores
para ajudar na correção e já caminham para o próximo roteiro. Isso é o fantástico da docência
compartilhada! Isso mostra que ele teve responsabilidade. E a solidariedade é ter o auxílio
durante as dificuldades do colega; não dar a resposta, mas mostrar um caminho para ele.
Muitas vezes, em relação à entrega da meta do grupo, eles falam: "Professora, eu consigo
entregar no dia 20, mas meu amigo só vai conseguir terminar dia 23. Então, vamos entregar
dia 22". Nisso se vê como a solidariedade está muito ligada entre eles. Os três princípios
fazem parte da relação entre eles. Se não tiver os três princípios, fica complicado viver nessa
sociedade. Esses princípios não deveriam estar somente na Campos Salles, mas sim nas
cidades, no Brasil, no mundo; não é só para o estudante daqui, pois todas as escolas deveriam
ter tais princípios os quais também deveriam permear o bairro e a comunidade.
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Laura - Acredito que, no âmbito da escola, as práticas Pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania estão naqueles 30% (se refere ao discurso do PPP, no qual 30% são
destinadas às vivências e à realidade), isto é, aquilo que acontece na vida. Aconteceu algo
evidente no jornal que está muito latente, então, nós trazemos para a sala de aula. O mesmo
acontece com os estudantes; quando algo acontece na comunidade, eles trazem para a sala de
aula. As práticas Pedagógicas relacionadas com essa educação na cidadania é esse exercer dos
princípios; não é um exercer enquanto se estuda aqui, mas um exercer para a vida. Ouvimos
dizer uma frase muito comum: "Para além dos muros da escola". Como aqui não temos
muros, é justamente para que não se divida isso: o exercício. São esses princípios que
queremos ver em toda a comunidade.
Ao final dos roteiros há perguntas para os estudantes que os levam para a reflexão da
sociedade como um todo. Quando pensamos nessa educação integral, estamos sempre fazendo
intervenções com a prática, com a sociedade. Na minha prática, não consigo falar em
educação sem pensar na cidadania. Assim, essa educação imbricada com a cidadania se refere
202

aos seres humanos que querem e vão agir para transformar o seu meio, o seu bairro, a cidade,
o seu mundo. Então, nós professores estamos a todo o momento trabalhando para fazer
intervenções no meio social que habitamos. Queremos que os estudantes venham aqui,
pratiquem sua cidadania. Aqui, vemos a cidadania pelo voto consciente nas eleições a
vereadores e prefeito, intermediado pela Comissão Mediadora. Nossa escola é democrática!
Falamos a eles que não é para votar no amigo, mas para que observem as propostas
oferecidas. Dessa maneira, estamos exercendo nossa cidadania nesse ato, para que o estudante
desenvolva o pensamento crítico-reflexivo. Desde cedo eles aprendem a falar porque damos
voz a eles. Eles possuem uma mesa dentro da coordenação; lá se sentam, se apoderam e falam
sobre tudo, conversam com os colegas conflituosos falando sobre suas atitudes, sobre os
pontos negativos e positivos e, no final, faz-se um conselho; logo se vê que estes estudantes
da mesa estão preparados para ouvir e não para brigar; ouvir a versão do estudante com
problemas. Nessas reuniões de Comissões, eles fazem um exercício de reflexão que não
vemos na sociedade. As pessoas de um modo geral têm o pavio extremamente curto.
Acreditamos que o diálogo desvia o furor. Uma palavra que vem na hora certa, abranda
aquele estudante que no momento estava irritado. O exercício da cidadania na Comissão
Mediadora e nas assembleias é efetivo e muito forte. Inclusive, estamos na época de eleição.
As comissões já estão elegendo seus candidatos. É bonito ver essa cidadania aqui dentro que
vai refletir lá fora e que os nossos estudantes serão capazes de escolher prefeitos melhores.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Laura - Gostaria de acrescentar que nós, professores, quando falamos do Projeto que
acreditamos e vivenciamos, falamos das flores (se refere à colheita dos resultados da
implantação do PPP na Campos Salles). A educação te leva a um comprometimento por toda
a vida e em todas as áreas da sua socialização. Para lecionar na Campos Salles, não se pode
ser um professor que apenas trabalha na educação, mas que viva-a, que acredite em uma
educação de qualidade; tem que acreditar que, mesmo que a semeadura não tenha sido fácil, a
colheita será.
203

ENTREVISTA: PROFESSORA PAULA*


DATA: 19 DE OUTUBRO DE 2016
LOCAL: SEDE DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES

Sérgio - Poderia responder qual é a sua idade e a sua formação?


Paula - Tenho 36 anos. Sou formada em licenciatura plena em matemática e tenho pós-
graduação em ludoterapia.
Sérgio - Qual o Estado e cidade de seu nascimento?
Paula - Nasci em São Paulo.
Sérgio - Você sempre lecionou em São Paulo (Estado, prefeitura, município)?
Paula - Sempre lecionei em São Paulo, tanto no Estado quanto na Prefeitura e, também, em
escola particular.
Sérgio - Você leciona atualmente apenas na EMEF Presidente Campos Salles? É
concursada?
Paula - Atualmente sou concursada na E.M.E.F. Presidente Campos Salles há seis anos e,
também, sou concursada na Prefeitura.
Sérgio - Há quanto tempo você exerce a docência?
Paula - Exerço a docência há dezessete anos.
Sérgio - Há quanto tempo você é professora na EMEF Presidente Campos Salles?
Paula – Há seis anos.
Sérgio - Poderia citar os dois principais motivos que a fizeram escolher a EMEF
Presidente Campos Salles para exercer a profissão docente?
Paula - O principal motivo que me fez escolher a Campos Salles para exercer a docência, foi
a localização, pois moro aqui perto. Pude, obviamente, pedir remoção caso não me
identificasse com o Projeto, mas me identifiquei, pois o principal motivo passou a ser o
protagonismo do aluno. Aqui, o aluno é protagonista no processo de educação, não somos
responsáveis pela educação deles, o aluno tem total protagonismo nisso. Temos uma relação
diferente com o aluno, não somos apenas aquele professor que passa matéria. Passamos a
conhecer todos os problemas que o aluno possui e, através disso, cria-se esse elo entre
professor e aluno.
Sérgio – Quais os motivos que conduziram a EMEF Presidente Campos Salles a
reestruturar seu Projeto Político-Pedagógico?
204

Paula - Quando entrei na Campos Salles, o Projeto já estava implantado. O que mantém o
Projeto é a busca do protagonismo do aluno com o intuito de que eles transformem a
sociedade em que vivem. O que eles aprendem, transformam em toda relação com a
comunidade e com a sociedade. Antes era uma escola tradicional, como outra qualquer.
Sérgio - Você poderia citar os principais atores envolvidos na construção do Projeto
Pedagógico vigente?
Paula - O Diretor Braz percebeu que os alunos precisavam buscar esse protagonismo
juntamente aos professores. A comunidade participou bastante, ela faz parte dessa escola.
Quando a gente pensa na escola, já pensa na comunidade. Todas as reuniões que fazemos,
entre pais e professores, a comunidade está presente.
Sérgio – Quais foram os principais obstáculos para a implementação desse projeto?
Paula - Não houve muito obstáculo para a implementação do Projeto. Como a comunidade
faz parte da escola, todos perceberam a necessidade disso, despertou uma consciência em
todos. O Braz foi implantando aos poucos, dia após dia, começando pelos roteiros, depois a
retirada das paredes, e os alunos começaram a sentar em grupos, assim, foi efetivado o Projeto
que funciona até hoje.
Sérgio – Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por
quê?
Paula - O Projeto Político-Pedagógico (PPP) da Campos Salles é totalmente afetivo, pois a
relação que temos com os alunos não é daquele professor superior a eles; é uma relação de
igualdade e, com isso, cria-se a afetividade e um elo maior com o aluno, e isso se torna
natural.
Sérgio – O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente?
O que se destaca nesse trabalho?
Paula - O PPP dinamiza o trabalho docente. Assim, o que se destaca nesse trabalho é
realmente o dinamismo. Buscamos o que os alunos querem aprender, ou seja, isso vem dos
alunos, não trazemos tudo pronto. Antes, no ensino tradicional, o professor já tinha todo
aquele plano de aula pronto; aqui não, aqui a aprendizagem parte deles. Então, a partir do que
eles aprendem, nós buscamos montar o roteiro e, com isso, o ensino se torna dinâmico. O que
se destaca nesse trabalho é o protagonismo dos estudantes. Também, existe trabalho em grupo
com os professores. Sou professora do sexto ano, mas junto comigo tenho mais três
professores no salão, fora o professor de educação física, o de inglês - todos eles.
205

Sérgio – O Projeto Pedagógico da Campos Salles contempla a figura do professor-


cidadão. Neste sentido, como você coloca em prática o exercício da docência na Campos
Salles?
Paula - A figura do professor cidadão da Campos Salles está totalmente ligada à comunidade.
Nosso objetivo é que a aprendizagem deles reflita na vida da comunidade e que se tornem
cada vez um cidadão melhor, ou seja, nosso objetivo é que não fique só na escola, que isso
reflita em toda a vida dele, em toda comunidade, buscando sempre o melhor.
Sérgio - Em termos afetivos, para professores e alunos, o que representou a derrubada
das paredes e a retirada das maçanetas, com a alteração do espaço, transformando as
salas de aula normais em salões?
Paula - A derrubada das paredes e a retirada das maçanetas com a alteração de espaço que
transformou as salas de aulas convencionais em salões representou a queda do ensino
tradicional. Foi inovador. Trouxe várias mudanças no ambiente, psicológicas, na relação do
aluno com o professor, na afetividade; essas foram as principais mudanças.
Sérgio - Na sua perspectiva, como os alunos interagem, no tocante à afetividade, com os
roteiros integrados, com outros alunos e com o professor no salão?
Paula - Aqui não falamos sala de aula, mas sim, salão em sua nomenclatura. Aqui não existe
aula, eles montam o roteiro e fazem tudo no seu tempo, cada um no seu tempo, não existe
aquele processo de 45 minutos de aula. Com relação à afetividade, isso os aproximou mais em
relação aos roteiros, porque como disse, o tema parte deles; não é um tema que nós
professores impomos, nisso eles criam uma relação com aquele roteiro se estendendo a nós
professores, porque eles percebem que não existe aquela hierarquia entre professor ser
superior a eles; temos uma relação que facilita na disciplina. Quando você possui um elo com
o estudante, existe mais o respeito, o aluno te considera melhor quando não existe tal
hierarquia.
Sérgio - Na “Campos Salles”, onde aparece a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade conferida aos alunos?
Paula - Os princípios - autonomia, responsabilidade e solidariedade - aparecem na escola e na
comunidade. Os alunos têm total autonomia. Aqui tem a república de estudantes onde ocorre
a eleição. Nela ((na república)), existe um prefeito que é um estudante elegido, no qual
participa das decisões da escola e participa da reunião do conselho do salão, juntamente aos
outros estudantes. Qualquer coisa que façamos, os estudantes estão presentes participando,
porque existem as comissões mediadoras. Assim, quando, por exemplo, há um estudante que
206

está dando trabalho, a própria comissão, que é formada pelos estudantes, chama esse aluno
com problema para uma conversa, ou seja, a autonomia, a responsabilidade e a solidariedade
partem totalmente deles. Os três princípios estão envolvidos em todo nosso cotidiano, isto é, a
busca pelo protagonismo do estudante.
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Paula - As práticas Pedagógicas acontecem no cotidiano e estão intimamente relacionadas
com a cidadania, porque aqui os estudantes se tornam protagonistas, ou seja, tornam-se
cidadão, no qual ele é crítico e tem consciência do que ocorre na sociedade. A gente realiza as
eleições de Presidente e isso já desperta o interesse deles pelas eleições de Prefeito, as
eleições na sociedade. Então, a busca é essa - do protagonismo cada vez maior.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Paula - Não, eu acredito que comentamos tudo.
207

ENTREVISTA: PROFESSORA CRISTINA*


DATA: 26 DE OUTUBRO DE 2016
LOCAL: SEDE DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES

Sérgio - Poderia responder qual é a sua idade e a sua formação?


Cristina - Tenho 53 anos. Sou formada em Letras.
Sérgio - Qual o Estado e cidade de seu nascimento?
Cristina - Nasci em São Brás, Alagoas.
Sérgio - Você sempre lecionou em São Paulo (Estado, prefeitura, município)?
Cristina – Sempre lecionei no Estado e na Prefeitura de São Paulo.
Sérgio - Você leciona atualmente apenas na EMEF Presidente Campos Salles? É
concursada?
Cristina - Atualmente, sou concursada na E.M.E.F. Presidente Campos Salles, e também
leciono no Ensino Médio em uma escola Estadual.
Sérgio - Há quanto tempo você exerce a docência?
Cristina - Exerço a docência há 24 anos.
Sérgio - Há quanto tempo você é professora na EMEF Presidente Campos Salles?
Cristina - Há 14 anos.
Sérgio - Poderia citar os dois principais motivos que a fizeram escolher a EMEF
Presidente Campos Salles para exercer a profissão docente?
Cristina - O motivo que me levou a exercer a profissão docente aqui ((Campos Salles)) foi
que, à época, havia solicitado remoção para essa escola por conta da aproximação geográfica
da outra escola do Estado que leciono e que se localiza no mesmo bairro que a da Campos
Salles.
Sérgio – Quais os motivos que conduziram a EMEF Presidente Campos Salles a
reestruturar seu Projeto Político-Pedagógico?
Cristina - Os motivos para que houvesse uma reestruturação do Projeto Político-Pedagógico
(PPP) na Campos Salles, se detiveram na percepção de que vivíamos dando ‘murros em ponta
de faca’. A educação em si, estava degringolando cada vez mais; havia grande divergência
entre alunos e professores e incompatibilidades na questão dos tempos antigos aos tempos
contemporâneos. Percebíamos que havia uma distância muito grande entre alunos e
professores e para resolvermos essa questão pedagógica, teríamos de trabalhar no sentido de
uma aproximação maior entre esses polos tão importantes na escola que é o aluno e o
208

professor. Vivíamos em um sistema em que os alunos estavam na posição de aprender e o


professor na posição de ensinar, quando na verdade o ser humano aprende sempre com o
outro. Então, esse Projeto é bacana porque faz com que a criança também seja protagonista da
sua aprendizagem e ao mesmo tempo, nós professores, abrimos a possibilidade de aprender
com eles. Sabemos algumas coisas, mas eles sabem muito também. Não fazemos nada
sozinhos. O aluno é protagonista da própria aprendizagem; isso é inovador e foi um desafio,
inclusive. A nossa formação não nos ensina a ter essa aproximação, essa afetividade; você vai
lá pra ensinar, ponto e acabou; o aluno vem para aprender, ponto e acabou. Aqui, isso não é
desse jeito; é um eterno aprendizado, tanto aos professores quanto aos alunos.
Sérgio - Você poderia citar os principais atores envolvidos na construção do Projeto
Pedagógico vigente?
Cristina - Os principais atores envolvidos na construção do PPP vigente da Campos Salles,
foram os professores, os próprios alunos e a comunidade. Não tem como apenas colocar esse
Projeto funcionando sem a participação de todos; não foi só um determinado grupo para isso.
Foi um consenso geral, porque esse Projeto envolve a comunidade, e não tem como separar
comunidade e escola, é uma coisa só.
Sérgio – Quais foram os principais obstáculos para a implementação desse projeto?
Cristina - Os principais obstáculos para a implementação do Projeto foi justamente a questão
do novo; era uma novidade. Imagina os professores se misturando com os alunos e vice-
versa? Aqui é tudo aberto, só tem uma sala por conta de alguns materiais para aplicação de
provas, mas as demais salas são completamente abertas. O aluno tem acesso a todos os setores
da escola, não existem grades, como se fossem gaiolas. Assim, os maiores obstáculos foram
justamente derrubar essas paredes internas no qual já estávamos acostumados; no fim das
contas, para nós professores, também foi uma forma de sairmos da zona de conforto. Essa
desconstrução ((da zona de conforto)) foi mais sofrida, mas não durou muito, porque
percebemos o quão relaxante e gostoso era trabalhar em um lugar onde você não se sente
preso a nada.
Sérgio – Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por
quê?
Cristina - O PPP da Campos Salles é totalmente afetivo, pois a partir dali começamos de fato
a ter uma interação com o aluno que antes nós não tínhamos; aqui nós somos todos
protagonistas. O Projeto direciona o olhar para a questão da responsabilidade, da
solidariedade e da autonomia no todo. Não tem como dividir aluno e professor.
209

Sérgio – O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente?


O que se destaca nesse trabalho?
Cristina - O Projeto dinamiza o trabalho docente. É tudo mais dinâmico. Nos salões de
estudos, não sou uma professora de uma determinada matéria, pois todos os professores
ensinam todas as disciplinas, assim, o tempo todo você sana dúvidas dos alunos e os corrige.
Nos salões, há determinados grupos que eu acompanho como tutora nos cinco dias da semana.
Há grupos que já estão em seu 12º roteiro, e há grupos que estão no 7º, no 8º, no 9º ou no 10º.
Às vezes tem aluno do 7º roteiro, por exemplo, que solicita ao 10º roteiro que sane suas
dúvidas. Existem os roteiros temáticos que são temas específicos, onde os alunos saem do
salão o tempo todo e se dividem em pequenos grupos. Enfim, é tudo muito bem dinâmico;
dinamismo é o que não falta aqui, eles nunca fazem a mesma coisa muito tempo. Tanto nas
atividades dos alunos quanto nas atividades dos professores, a dinâmica é muito, muito
grande. Dinâmica eu defino como palavra-chave para o que acontece aqui diariamente.
Sérgio – O Projeto Pedagógico da Campos Salles contempla a figura do professor-
cidadão. Neste sentido, como você coloca em prática o exercício da docência na Campos
Salles?
Cristina - Coloco em prática o exercício da docência cidadã na Campos Salles de todas as
formas possíveis e imagináveis: ensinando, aprendendo, reaprendendo e reavaliando. Esse
dinamismo que acontece diariamente faz com que estejamos sempre prontos a reinventar, a
reestruturar, a refazer uma atividade que se julga necessário mudar. Algo que deu certo com
um grupo, não necessariamente dará certo com o outro grupo e você tem que respeitar isso.
Então, a questão da cidadania é muito patente porque há um respeito do aluno com relação ao
professor e vice-versa. Estamos aqui para respeitar o tempo e a dinâmica de cada grupo, e os
alunos sabem disso e, portanto, têm essa consciência de que precisam avançar ou não.
Sérgio - Em termos afetivos, para professores e alunos, o que representou a derrubada
das paredes e a retirada das maçanetas, com a alteração do espaço, transformando as
salas de aula normais em salões?
Cristina - A derrubada das paredes físicas e das maçanetas não foi problemática, porque nos
aproximou fisicamente, porém, o problema maior foi romper as paredes internas de cada um.
Tantos anos dando aula de um jeito; você entra na sua sala, tranca sua porta e ali é só o seu
mundo, seu universo (você e seus alunos) e, de repente, você se vê no salão com quase 100
alunos e mais dois, três, quatro colegas de trabalho. E agora? Como trabalhar isso? Prevalece
o seu eu? Prevalece a sua metodologia? Não, não dá pra ser assim, pois aqui não existe eu, e
210

sim, nós; e esse nós é que foi difícil desconstruir, foi difícil derrubar as paredes internas. Não
tem como trabalhar na Campos Salles pensando só em você, precisa-se pensar na equipe.
Então, em termos de afetividade, a relação entre os alunos melhorou muitíssimo. Você
aprende a respeitar as diferenças e as pessoas começam a te enxergar diferente.
Sérgio - Na sua perspectiva, como os alunos interagem, no tocante à afetividade, com os
roteiros integrados, com outros alunos e com o professor no salão?
Cristina - Na minha perspectiva, em relação à interação entre alunos e com o professor no
salão, no tocante à afetividade, com os roteiros integrados e com os outros alunos, percebo
que são todos muito mais solidários. A questão da solidariedade é muito visível porque eles
têm que trabalhar em grupo. Os roteiros os levam e os fazem interagir o tempo todo, ora
questionando, ora perguntando, ora pedindo ajuda. Eles se tornaram mais acessíveis.
Tínhamos alunos que nem ouvíamos sua voz; hoje temos alunos que conversam, dão sua
opinião, e é muito bacana ver a relação entre eles, inclusive conosco.
Sérgio - Na “Campos Salles”, onde aparece a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade conferida aos alunos?
Cristina - A autonomia, a responsabilidade e a solidariedade conferida aos alunos aparecem
diariamente. Todos os dias esses princípios são colocados em prática, porque eles trabalham
em grupo. Não existe estudar sozinho aqui, não existe um eu; eles sabem que essa autonomia
que permeia todo o espaço, sem responsabilidade, não é autonomia. Todo tempo você vê
alunos do 9º ano ajudando, sendo solidário com alunos de outras séries e vice-versa. Vemos
alunos do 5º, 6º, 9º ano interagindo no ambiente escolar tranquilamente, um respeitando o
espaço do outro e, às vezes, você nem percebe que um está em uma série e outro em outra
série.
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Cristina - As práticas Pedagógicas relacionadas com a educação na cidadania iniciam-se com
o questionamento: O que é ser cidadão? É você entender seus direitos e deveres e os alunos
colocam isso em prática o tempo inteiro. Por exemplo: eles sabem que são autônomos e que
podem ir e vir, mas devem saber em quais momentos eles podem fazer isso. O bacana é que
isso já está tão arraigado neles que você não vê alunos interferindo nas reuniões, pois mesmo
eles estando na escola, estão nos locais onde necessitam estar. Agora mesmo acabamos de
receber um grupo de alunos do outro período na sala da JEIF, na reunião de professores; no
qual vieram apresentar um projeto de musicalização. Não é porque esses alunos são de outro
211

período que não podem interagir com os alunos de outro horário. Então, essa questão da
cidadania, de cumprir os deveres, eles mesmos cobram entre si. Eles têm acesso, mas sabem
qual o tempo de acessar esses ambientes. O que eles mais colocam em prática é a questão do
respeito, as regras que eles mesmos ajudaram a construir, porque não são regras impostas pela
escola, eles mesmos ajudaram a construir em assembleias; como eles ajudaram a construir,
entendem que é responsabilidade deles colocar em prática.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Cristina - Gostaria de acrescentar que esse Projeto me mudou enquanto ser humano. Vejo-me
uma educadora melhor porque tive de quebrar muitas paredes internas pra entender a
importância de fazer com que o aluno realmente fosse/seja protagonista do próprio ensino.
212

ENTREVISTA: PROFESSORA CIBELE*


DATA: 19 DE OUTUBRO DE 2016
LOCAL: SEDE DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES
Sérgio - Poderia responder qual é a sua idade e a sua formação?
Cibele - Tenho 58 anos. Sou formada em biologia, com habilitação em Ciências e Matemática
para o nível II; também cursei Pedagogia, com todas as habilitações e lato sensu em didática
nos três níveis de ensino.
Sérgio - Qual o Estado e cidade de seu nascimento?
Cibele - Nasci em São Paulo, Capital.
Sérgio - Você sempre lecionou em São Paulo (Estado, prefeitura, município)?
Cibele – Sempre lecionei na Prefeitura e no Estado, na qual já estou aposentada há 8 anos.
Sérgio - Você leciona atualmente apenas na EMEF Presidente Campos Salles? É
concursada?
Cibele - Sou concursada na E.M.E.F. Presidente Campos Salles há 20 anos.
Sérgio - Há quanto tempo você exerce a docência?
Cibele - Exerço a docência há 36 anos.
Sérgio - Há quanto tempo você é professora na EMEF Presidente Campos Salles?
Cibele - Há 20 anos.
Sérgio - Poderia citar os dois principais motivos que a fizeram escolher a EMEF
Presidente Campos Salles para exercer a profissão docente?
Cibele - A principal razão pela escolha de lecionar nessa escola se deu por conta da
proximidade do local da minha residência, pois moro na Saúde. Antes ingressei em uma
escola em Sapopemba e eram 22 Km distante do local onde moro. Como eu ainda estava
lecionando no Estado ficava difícil conciliar ambos. Então, fiquei em Sapopemba por três
anos e pedi remoção para a Campos Salles. O principal motivo foi isso - a distância. Eu não
conhecia nada da escola até porque o Braz ((diretor da escola)) chegou no final de 1995 e eu
cheguei no início de 1996.
Sérgio – Quais os motivos que conduziram a EMEF Presidente Campos Salles a
reestruturar seu Projeto Político-Pedagógico?
Cibele - Um dos motivos que conduziu a Campos Salles a reestruturar seu Projeto Político-
Pedagógico (PPP), foi que sempre ouvimos aqui, na escola, uma preocupação de que tinha de
mudar fazendo algo. Ouvia dizer: “O ensino está ruim!”, mas não se fazia nada. Então,
resolvemos ‘chutar o pau da barraca’. Tanto é que, no início da mudança, recebemos algumas
213

críticas porque ouvíamos dizer: "Os alunos ainda não melhoraram no rendimento", mas antes,
também, não havia melhoras, ou seja, não era por causa do Projeto ou por causa da mudança
que eles ainda não tinham melhorado o rendimento, simplesmente tentávamos fazer algo
diferente, porque do jeito que era não estava bom.
Sérgio - Você poderia citar os principais atores envolvidos na construção do Projeto
Pedagógico vigente?
Cibele - Os principais atores envolvidos na construção do PPP dessa escola, primeiramente,
foi o Diretor Braz. Ele representa, para mim, a figura principal e nos vendeu essa ideia e,
consequentemente, fomos incorporando-a, entretanto, muitos professores não aceitaram a
ideia e pediram remoção. A comunidade apoiou. Se não houvesse esse apoio, o Braz não teria
conseguido retirar as paredes. Portanto, os dois personagens principais foram: O Diretor Braz
e a Comunidade.
Sérgio – Quais foram os principais obstáculos para a implementação desse projeto?
Cibele - O principal obstáculo, para a implementação do PPP vigente, foi a burocracia, pois
não se podia derrubar as paredes sem a autorização da Secretaria de Educação. O Braz
comprou essa briga sozinho, e no final do ano foi quebrando as paredes, pois se fosse esperar
pela Secretaria de Educação, as coisas iriam enrolar e, talvez, ainda o Projeto não teria sido
concluído.
Sérgio – Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por
quê?
Cibele - Acredito que o PPP da Campos Salles é afetivo, porque essa escola coloca o
estudante como protagonista e isso aproxima mais os estudantes entre si e os aproximam mais
dos professores e nós deles, há uma troca. Aprendemos muito com eles e eles conosco. Tanto
é que, nós professores, somos fixos no mesmo salão, e isso demonstra que temos uma relação
bem íntima, senão, não teríamos como trabalhar juntos.
Sérgio – O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente?
O que se destaca nesse trabalho?
Cibele - O PPP, também, destaca o trabalho em grupo. A maneira como trabalhamos é: um
depende do outro e o problema é de todos, portanto, nosso trabalho em grupo é contínuo, e
ajuda muito trabalharmos dessa forma.
Sérgio – O Projeto Pedagógico da Campos Salles contempla a figura do professor-
cidadão. Neste sentido, como você coloca em prática o exercício da docência na Campos
Salles?
214

Cibele - Em se tratando da figura do professor cidadão, a prática do exercício da docência na


Campos Salles ocorre pela aproximação. Você passa a entender os problemas do aluno e da
comunidade. Acredito que com o Projeto e com a aproximação dos estudantes, conhecemos
os problemas que nos rodeiam e que nos ajudam a entender determinadas situações e
passamos a ter outro olhar para o problema tais como a falta de moradia e o problema da falta
de segurança. Temos uma vivência bem diferenciada dos bairros que já trabalhamos.
Trabalhei em muita comunidade como Heliópolis, mas não existe muita proximidade com ela.
A escola está dentro da comunidade assim como a comunidade está dentro da escola. Quando
percebemos problemas que eles vivem, vemos sob outra ótica e tentamos ajudar no que
podemos. Percebemos que eles são muito afetivos e carinhosos; muitos não têm isso em casa
e, de certa forma, você passa a aprender como demostrar carinho pelo outro, e isso acho muito
legal.
Sérgio - Em termos afetivos, para professores e alunos, o que representou a derrubada
das paredes e a retirada das maçanetas, com a alteração do espaço, transformando as
salas de aula normais em salões?
Cibele - A derrubada das paredes e a retirada das maçanetas com a alteração de espaço e a
transformação das salas de aulas convencionais em salões, permitiu a aproximação. Acabei
vindo de encontro com a forma como sempre trabalhei em escolas de comunidades carentes,
ou seja, sempre tive muito proximidade com meus alunos, sempre tive uma relação bem
próxima, muito afetiva com eles. Quando vim para cá, comecei a construir isso, pois ia de
encontro com a filosofia do Braz. Isso fez com que eu continuasse aqui. Com o passar do
tempo você pode solicitar a transferência de escola, mas optei em continuar aqui, porque com
o desaparecimento das paredes, consegui me relacionar muito mais e bem melhor com meus
colegas. Com isso, tive, também, facilidade em ajudar colegas que não conseguiam penetrar
muito no problema do aluno, pois tinham certa reserva; conseguimos fazer que uma colega de
trabalho se aproximasse mais de seus alunos. O que me facilitou foi isso - a derrubada de
pensamento antiquado, que muitos tinham antes de iniciar o Projeto, e eu já trabalhava de uma
maneira mais livre; então, acabei me adaptando legal, de forma bem fácil.
Sérgio - Na sua perspectiva, como os alunos interagem, no tocante à afetividade, com os
roteiros integrados, com outros alunos e com o professor no salão?
Cibele - Na minha perspectiva em relação aos roteiros integrados com os outros alunos e com
o professor no salão, os alunos, no tocante à afetividade, interagem bem, porque em todos os
roteiros a gente coloca discussão de assuntos que eles vivenciam na comunidade, no dia a dia;
215

e nisso, eles acabam trocando experiências com os colegas do salão e com outros professores.
Temos professores fixos em cada salão, mas temos aqueles que são rotativos, os quais
chamamos de especialistas: de artes, de inglês, de educação física; e isso faz com eles tenham
um contato muito maior. Em todas as escolas vemos divisão do quinto ano, do sexto, do
sétimo, do oitavo, do nono, então, são os suprassumos da escola, logo, tratam os menores
como se fossem nada, entendedor de nada; aqui não, aqui existe uma integração bem forte,
eles conversam de igual para igual – o aluno do sexto ano com aluno de nono ano; existe bem
essa integração aqui.
Sérgio - Na “Campos Salles”, onde aparece a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade conferida aos alunos?
Cibele - Os princípios da Campos Salles (autonomia, a responsabilidade e a solidariedade),
são percebidos nas assembleias que realizamos com eles. Qualquer problema que existe no
salão é discutido em uma assembleia com os estudantes. Dentro do salão, tem uma comissão
de estudantes que ajuda a conversar com o aluno que apresenta algum tipo de problema. É
essa comissão mediadora que ajuda e representa o salão. A maior demonstração desses três
princípios é na comissão mediadora e na assembleia. Aqui, o professor não chama o pai do
aluno para reclamar; se está havendo algum problema com o estudante, quem tem de mudar é
o estudante, o pai e a mãe não vão conseguir fazê-lo mudar. Então, trazemos os casos para
essas comissões mediadoras e, pela participação dela, vê-se a responsabilidade, a autonomia e
a solidariedade.
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Cibele - No âmbito da escola, as práticas pedagógicas relacionadas com a educação na
cidadania referem-se à Caminhada pela Paz (é o carro chefe), nas amostras culturais e no
cotidiano do salão. No dia dezenove de novembro, dentre às 10h às 17h, faremos nossa
amostra cultural sobre literatura aqui na escola e todo o CEU também estará envolvido nessas
ações.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Cibele - Gostaria de acrescentar que a Campos Salles está na comunidade de Heliópolis assim
como a comunidade de Heliópolis está na Campos Salles. Aqui você vivencia isso - o papel
da comunidade aqui dentro - e o nosso papel também.
216

ENTREVISTA: PROFESSORA GABRIELA*


DATA: 22 DE NOVEMBRO DE 2016
LOCAL: SEDE DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES

Sérgio - Poderia responder qual é a sua idade e a sua formação?


Gabriela - Tenho 45 anos. Sou formada em ciências, matemática e pedagogia com pós-
graduação em ludoterapia.
Sérgio - Qual o Estado e cidade de seu nascimento?
Gabriela - Nasci em São Paulo, na cidade de São Caetano do Sul.
Sérgio - Você sempre lecionou em São Paulo (Estado, prefeitura, município)?
Gabriela - Sempre lecionei em São Paulo. Quando me formei, lecionei no Estado e na
Prefeitura. Assim que meu filho nasceu, deixei o Estado e fiquei somente na prefeitura.
Sérgio - Você leciona atualmente apenas na EMEF Presidente Campos Salles? É
concursada?
Gabriela – Sim, eu sou concursada e leciono há quinze anos somente na E.M.E.F. (Campos
Salles).
Sérgio - Há quanto tempo você exerce a docência?
Gabriela - Há 23 anos.
Sérgio - Há quanto tempo você é professora na EMEF Presidente Campos Salles?
Gabriela – Leciono há quinze anos.
Sérgio - Poderia citar os dois principais motivos que a fizeram escolher a EMEF
Presidente Campos Salles para exercer a profissão docente?
Gabriela - O principal motivo que me fez optar em lecionar na E.M.E.F. Campos Salles, foi
por conta da distância, pois ela era/é mais próxima de São Caetano, aonde resido, e, também,
porque à época, meu filho era pequeno. Quando ingressei aqui, esta era uma escola
tradicional. Ainda não havia o Projeto que hoje existe.
Sérgio – Quais os motivos que conduziram a EMEF Presidente Campos Salles a
reestruturar seu Projeto Político-Pedagógico?
Gabriela - A reestruturação do Projeto Político-Pedagógico (PPP) teve início com o Diretor
Braz; ele sempre teve muito envolvimento com a comunidade, sempre lutou pela educação e
luta até hoje e é ainda muito presente e ele queria inovar. Naquele tempo ele queria inovar,
retirar o sistema de educação que não dava muito resultado.
217

Sérgio - Você poderia citar os principais atores envolvidos na construção do Projeto


Pedagógico vigente?
Gabriela - Muitos participaram da reestruturação do Projeto, pois aqui é uma escola onde
todos somos protagonistas, ou seja, os professores, a equipe técnica, a auxiliar de período, as
antigas inspetoras de alunos, o pessoal da cozinha - todos tiveram e têm um envolvimento
nesse Projeto.
Sérgio – Quais foram os principais obstáculos para a implementação desse projeto?
Gabriela - No início da implantação do PPP foi muito difícil, pois, tanto para nós professores
quanto para o aluno, foi uma mudança muito grande; todavia, não acho que foi traumático.
Qualquer mudança é difícil. As pessoas resistem às mudanças. Entretanto, antes de acontecer
essa mudança, houve uma preparação para os professores por meio de reuniões. Não foi
apenas pensar em derrubar as paredes e no outro dia estava feito, foi a longos passos. Você
está há anos acostumado com aquela educação tradicional, com sua salinha de aula, onde o
professor acha que a sala é dele; portanto, foi muito difícil compreender que teríamos essa
derrubada das paredes, não entendíamos como ia ficar toda essa estrutura, assustava-nos. O
Braz detinha as ideias e ele as passava nas reuniões aos professores, mas mesmo assim, ainda
era difícil porque não imaginávamos como seria esse Projeto.
Sérgio – Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por
quê?
Gabriela – Sim. Totalmente. Acredito que o PPP da Campos Salles é afetivo, pois há mais ou
menos uma média de 90 alunos por salão; em cada mesa, sentam-se 4 alunos. Dessa forma, há
uma proximidade muito maior entre eles. Os alunos possuem os princípios: autonomia,
responsabilidade e solidariedade, e guiam-se por meio dos roteiros de estudos; eles precisam
muito do professor, mas são praticamente autodidatas. Desse modo, há uma maior
aproximação entre o professor e o aluno. Como eles se sentam em grupo e fazem o roteiro
juntos, é muito mais fácil possuírem certo grau de afetividade, de solidariedade. O que sempre
achei interessante nesse Projeto foi isso: de vê-los ajudando uns aos outros. Há essa troca; se
um tem mais facilidade em matemática e o outro tem em história, eles repassam e se ajudam
nas dificuldades.
Sérgio – O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente?
O que se destaca nesse trabalho?
Gabriela - O PPP dinamiza demais o trabalho docente. Todo dia há uma novidade. É um
projeto diferenciado. É um processo que não está acabado, ou seja, desde o início ele está
218

nesse processo de construção. Então, o trabalho do professor é muito dinâmico, porque no


salão de estudo os alunos questionam bastante, por isso, o professor sempre está em busca de
inovar seu trabalho, os roteiros; enfim, é realmente bem dinâmico.
Sérgio – O Projeto Pedagógico da Campos Salles contempla a figura do professor-
cidadão. Neste sentido, como você coloca em prática o exercício da docência na Campos
Salles?
Gabriela – Olha como os princípios do projeto, que eu já falei, que é autonomia, a
responsabilidade e a solidariedade. Eu acho é tudo o que um cidadão tem que ter. Qualquer
cidadão para sua formação ele tem que ser autônomo. O que é autonomia? Não é uma coisa
que ele vai fazer o que ele quer. Não é isso. Ele tem que ter a responsabilidade. Então o
professor está a todo momento através dos roteiros, através das oficinais que tem bastante
aqui, tentando formar esse cidadão para ele ser inserido numa sociedade que está cheia de
regras e tudo o que uma sociedade exige de uma pessoa. Os alunos da Campos Salles
participam de muitas oficinas. Há uma república de alunos, no qual é eleito um prefeito e
vereadores. Os alunos participantes das repúblicas passam, literalmente, por um processo de
eleição, não são elegidos por professores, mas por eles mesmos. Há todo um processo de
discussão, de conscientização, às propostas oferecidas pelo prefeito, isso representa a maior
demonstração de cidadania. A república tem como objetivo resolver os problemas da escola e
do salão; eles atuam ativamente. Nos salões existem as comissões que são formadas pelos
alunos e têm como foco ajudar na participação, junto ao professor responsável, e contribuir na
resolução de problemas; às vezes eles mesmos convocam os pais dos alunos que apresentam
algum problema, mas sempre com a intenção de ajudar. Ali se via/vê claramente a autonomia,
a responsabilidade e a solidariedade neles.
Sérgio - Em termos afetivos, para professores e alunos, o que representou a derrubada
das paredes e a retirada das maçanetas, com a alteração do espaço, transformando as
salas de aula normais em salões?
Gabriela – Como eu respondi anteriormente, no início foi muito difícil tanto para os
professores como para os alunos. Mas eu não acho que foi traumática nem para professor nem
para alunos. O projeto não foi assim derrubaram as paredes. Foi um processo que no início as
salas de aulas os alunos sentavam em grupos, eram quatro alunos na mesa. Foi passo a passo.
Por isso eu acho que não causou muita dor para os professores e para os alunos. Foi uma coisa
bem tranquila.
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Sérgio - Na sua perspectiva, como os alunos interagem, no tocante à afetividade, com os


roteiros integrados, com outros alunos e com o professor no salão?
Gabriela – Em qualquer fase da criança e do adolescente como eles estão sentados no grupo
deles com os colegas, é muito mais fácil para eles ...porque eles já têm a afetividade deles,
linguagem deles. Como eles fazem esses roteiros em grupo, a solidariedade... o que eles têm,
o que eu sempre achei neste projeto porque é o aluno um ajudando o outro. Eles estão muito
próximos um do outro e os professores também.
Sérgio - Na “Campos Salles”, onde aparece a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade conferida aos alunos?
Gabriela - Qualquer cidadão, para sua formação, deve possuir os pilares dos princípios. Ele
tem que ter autonomia e isso não significa que o indivíduo faz o que quer. Ele deve possuir
responsabilidades. O professor está a todo momento, através dos roteiros dos estudos e das
oficinas, tentando formar esse cidadão preparado para ser inserido na sociedade cheia de
regras, isto é, tudo o que a sociedade exige de uma pessoa.
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Gabriela – Tudo respondido na pergunta anterior eu acho que prova bem que você está
formando um cidadão. Essas comissões e essa República, que foi feita pelos alunos, passava
por um processo de eleição. Não eram os professores que escolhiam os alunos eram alunos.
Eram alunos escolhidos por eles mesmos, tinha votação, tinha todo um processo mesmo de
expulsão, de conscientização o que esse aluno, ele vai ser o prefeito da escola. O que é ser o
prefeito, o que ele está fazendo. É a maior demonstração de cidadania.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Gabriela - Gostaria de acrescentar que, por eu estar aqui, por ter passado pelo processo na
formação desse Projeto, percebo que ele (o Projeto) foi feito para o aluno que tem interesse no
estudo. Diferentemente da escola tradicional, na qual o professor fica ali na frente da classe
repassando informação onde muitas vezes o aluno vai embora sem entender e com dúvida.
Aqui não, pois nesse Projeto, o aluno tem a oportunidade de possuir um professor exclusivo
para ele. Aqueles que têm vergonha de perguntar ao professor qualquer dúvida, o colega ao
lado o ajuda fazendo tal pergunta. O forte do Projeto é o trabalho em grupo e o ponto fraco
também é o trabalho em grupo, porque você tem que trabalhar com as diferenças, entretanto,
acredito que dessa forma você é obrigado a lidar bem com seu colega, senão o trabalho não
será desenvolvido. Essa é uma parte muito forte desse Projeto: o trabalho integrado em grupo.

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