Universidade de São Paulo Faculdade de Educação
Universidade de São Paulo Faculdade de Educação
Universidade de São Paulo Faculdade de Educação
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
São Paulo
2018
SÉRGIO APARECIDO NAVARRO
Versão Original
São Paulo
2018
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional
ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Nome: NAVARRO, Sérgio Aparecido
Título: EMEF Presidente Campos Salles: o impacto da afetividade no ambiente escolar em decorrência
do Projeto Político-Pedagógico
Aprovado em:
Banca Examinadora
Julgamento: ____________________________________________
Julgamento: ____________________________________________
Julgamento: ____________________________________________
AGRADECIMENTOS
À Professora Dr.ª Leny Magalhães Mrech, pelas orientações transmitidas ao longo de três
anos de pesquisa e pelas aulas de Psicanálise, no grupo de estudos. Pela atenção e carinho
dispensados e por respeitar minha autonomia responsável. É uma grande educadora, profunda
conhecedora do comportamento humano. Uma profissional brilhante na área da Psicanálise, que me
acolheu de braços abertos, iluminou meu caminho e me inspirou nos momentos difíceis.
À Professora Dr.ª Alice Beatriz B. Izique Bastos e à Professora Dr.ª Elisabete Cardieri,
pelas valiosas orientações transmitidas durante o Exame de Qualificação.
Ao ex-diretor Braz, da Diretoria Regional de Ensino – Ipiranga, pela entrevista concedida e
pela autorização para realização da presente pesquisa na EMEF Presidente Campos Salles.
Às duas coordenadoras da escola, pelo carinho e boa vontade que demonstraram, no
sentido de realizar a presente pesquisa.
Às seis professoras entrevistadas, que me atenderam no horário do almoço, sacrificando
momentos de seu sagrado descanso para responder a todas as perguntas constantes do roteiro.
Às três professoras que me acolheram no salão destinado aos alunos dos 5º anos e que me
possibilitaram aprofundar minhas observações sobre o trabalho docente.
A todos os funcionários da escola, que direta ou indiretamente colaboraram com minha
pesquisa.
Aos alunos da escola, por permitirem minha permanência no salão e nas mesas de estudo,
favorecendo minhas observações.
A todos os professores que ministraram aulas no curso de Pós-Graduação, pelas palavras
de incentivo à pesquisa e pelos ensinamentos.
A todos os funcionários da secretaria de Pós-Graduação, que demonstraram enorme
eficiência e atenção nas oportunidades em que necessitei de seus serviços.
A educação e a prática dos educadores continuam produzindo
enigmas: continuam introduzindo perguntas e não respostas.
Perguntas que continuam a nos fascinar. “Como o professor
pode educar o Joãozinho?” e “Como o professor pode ensinar à
Mariazinha”? continuam em aberto. Não há respostas para elas.
Há o retorno do enigma da educação por meio do real da
Educação e dos educadores.
(MRECH, 2005, p. 30)
RESUMO
Entre os vários problemas crônicos na Educação, destacamos as situações de conflitos, que podem
ser desencadeadas pelo impacto de emoções e sentimentos desagradáveis que se manifestam no
ambiente escolar e atingem as relações. O agravo ocorre se a escola não tem um projeto pedagógico
inovador que envolva o seu entorno, a comunidade local, os pais de alunos, a equipe técnica,
professores, alunos e funcionários. A Escola Municipal de Educação Fundamental “Presidente
Campos Salles” é um exemplo que merece destaque, porque vem atuando na contramão desses
problemas, por ser inspirada na Escola da Ponte, situada em Vila das Aves e São Tomé de Negrelos,
em Santo Tirso, no distrito do Porto, em Portugal. A escola iniciou, em 2005, um projeto
pedagógico democrático e inovador para reverter o ambiente adverso. Seu passado era de violência,
indisciplina e fracasso escolar. A maioria dos alunos, moradores da favela de Heliópolis, não tinha
sua história de vida considerada. O docente e o aluno, respectivamente, eram vistos como: o centro
do universo e um ser fraco. Com a nova prática, baseada na educação na cidadania, esse quadro se
alterou, significativamente, para melhor. A pesquisa de campo traz como metodologia o estudo de
caso investigatório, com análise qualitativa de entrevistas com o ex-diretor, com as coordenadoras
pedagógicas e com seis professoras, além das observações sobre o trabalho de três professoras do
Ensino Fundamental Regular II, responsáveis por um salão, com cerca de cem alunos dos 5º anos.
A base teórica foi desenvolvida à luz de Henri Wallon. Na linha do objetivo geral, o resultado da
pesquisa mostrou que o projeto da escola investigada é afetivo. Ele alterou significativamente a
concepção de educação e introduziu novas práticas pedagógicas, propiciando uma impactante
manifestação de emoções e sentimentos agradáveis no ambiente. O docente também se tornou
afetivo e reinterpretou seu papel, caracterizado pelo compartilhamento solidário. O aluno passou a
ter voz e ser visto como sujeito de direitos, forte, responsável, solidário e autônomo, capaz de
construir o conhecimento próprio e de se organizar individual e coletivamente.
NAVARRO, S. A. EMEF President Campos Salles: the impact of affectivity in the school
environment due to the pedagogical political project. 2018. 211 p. Dissertation (Master degree) –
Faculty of Education, University of São Paulo, São Paulo, 2018.
Among the various chronic problems in Education, we highlight situations of conflict, which can be
triggered by the impact of unpleasant emotions and feelings that manifest in the school environment
and affect relationships. The grievance occurs if the school does not have an innovative pedagogical
project that involves its surroundings, the local community, the parents of students, the technical
staff, teachers, students and employees. The Escola Municipal de Educação Fundamental
"Presidente Campos Salles" is an example that deserves to be highlighted, because it has been
acting against these problems, since it was inspired by the Escola da Ponte, located in Vila das Aves
and São Tomé de Negrelos, in Santo Tirso, district of Porto, in Portugal. In 2005, the school started
a democratic and innovative pedagogical project to reverse the adverse environment. His past was
one of violence, indiscipline and school failure. Most of the students, residents of the favela of
Heliópolis, did not have their life history considered. The teacher and student, respectively, were
seen as: the center of the universe and a weak being. With the new practice, based on citizenship
education, this picture has significantly changed for the better. The field research is a research case
study, with a qualitative analysis of interviews with the former director, the pedagogical
coordinators and six teachers, as well as the observations on the work of three teachers of Regular
Fundamental Education II, responsible for a hall, with about one hundred students from the 5th
grade. The theoretical basis was developed in the light of Henri Wallon. In line with the general
objective, the research results showed that the investigated school project is affective. He has
significantly altered the conception of education and introduced new pedagogical practices,
providing an impressive manifestation of pleasant emotions and feelings in the environment. The
teacher also became affective and reinterpreted his role, characterized by solidarity sharing. The
student came to have a voice and be seen as a subject of rights, strong, responsible, supportive and
autonomous, able to build self-knowledge and to organize individually and collectively.
1. INTRODUÇÃO............................................................................................................................12
2. HENRI WALLON.......................................................................................................................23
2.3. EDUCAÇÃO.........................................................................................................................41
3. PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO..................................................................................52
4. METODOLOGIA.....................................................................................................................59
5.5. METODOLOGIA................................................................................................................72
5.16. DOCENTES......................................................................................................................80
5.18. OS PROJETOS..................................................................................................................81
6. PESQUISA DE CAMPO..........................................................................................................83
6.2.1.1. Conflitos..................................................................................................................89
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................133
APÊNDICE................................................................................................................................137
12
1. INTRODUÇÃO
A presente pesquisa, a partir de seu objetivo geral, tem por finalidade desenvolver
um estudo de caso a respeito de mudanças – para melhor – ocorridas em uma escola situada
no bairro do Sacomã, em São Paulo, Capital, denominada Escola Municipal de Educação
Fundamental Presidente Campos Salles. Entendemos que tais mudanças ocorreram somente
em virtude da nova visão imprimida por toda a equipe ao ambiente escolar, que se deve
principalmente à sensibilidade de percepção de que o desafeto reinante era o maior
responsável por tudo o que de desagradável acontecia naquela instituição. Teria o Projeto
Político-Pedagógico funcionado como o grande desencadeador das transformações ocorridas,
propiciando a manifestação de emoções e de sentimentos agradáveis no novo ambiente? Esse
diagnóstico e a respectiva mudança serão descritos mais detalhadamente em tópico e ocasião
mais propícios neste trabalho.
Na primeira parte, mostramos nossa história de vida e nossa experiência adquirida ao
longo do tempo, com passagens que marcaram nosso desejo em pesquisar a afetividade, com
ênfase na emoção, à luz de Henri Wallon; na segunda parte, consignamos a nossa formação
acadêmica e as disciplinas cursadas na FE-USP. Nossa formação e aplicação aos estudos
também vão ao encontro de nosso desejo em relação ao tema, na medida em que, em várias
ocasiões, encontramo-nos em situações envolvendo sentimentos e emoções; na terceira parte,
optamos por esclarecer, ainda que de forma sucinta, nossos passos ao longo dos capítulos; por
fim, na quarta parte, apontamos nosso objetivo geral, nossos objetivos específicos, bem como
nossa hipótese em relação à pesquisa.
materiais para a elaboração manual desses produtos que nos eram interessantes. Onde estava a
emoção? No bem-estar que as aulas proporcionavam. Nessa época, a organização da escola,
seu espaço e a emoção agradável que circulava em seu ambiente constituíram-se num marco
para nossa aproximação ao tema do presente estudo.
não se manifesta? Tenho, atualmente, condições de mostrar as respostas, por meio do estudo
das emoções em Henri Wallon. Qualquer escola conteudista, que apenas privilegie o
cognitivo, pode estagnar em um ambiente adverso para a educação e para a convivência. As
relações não são priorizadas.
O maior valor de nossa experiência como docente dessa escola era ver quais foram as
transformações que a escola sofreu até os dias atuais. E a resposta é: “nenhuma”. Não há tom
de crítica em nossa afirmação, apenas a constatação de uma triste realidade que permeia em
uma parcela considerável da escola contemporânea. A instituição ainda não tem um projeto
pedagógico significativo, que envolva a comunidade local, a escola, os alunos, seus pais, os
professores, os funcionários e a equipe gestora. Ela permanece imobilizada em suas práticas.
O ambiente continua a despertar conflitos, indisciplinas, agressividades e violências,
propiciando a manifestação de sentimentos e moções desagradáveis.
Esse engessamento da escola e a forte emoção desagradável no ambiente,
promoveram uma reação da equipe gestora, no sentido do isolamento. Grades e cadeados
foram colocados, isolando dos demais espaços as salas dos professores, da secretaria e da
equipe técnica. Nos intervalos das aulas, sobretudo, os docentes, com medo de atos de
violências e agressividades, permanecem “encarcerados” em um espaço bem reduzido. Por
sua vez, os alunos têm dificuldades de acesso para conversar com eles.
Na sala de aula, o professor é obrigado a seguir o livro didático e “despejar os
conteúdos” nos educandos. A cópia é uma bandeira a ser seguida rigorosamente. De fato,
alguns docentes conseguem ministrar aulas interessantes e fugir desse estigma negativo, mas é
muito desgastante agir, sozinho, no sentido contrário. Não havia trabalho compartilhado e
cada qual tinha a sua concepção de educação. Com o passar do tempo, esses docentes acabam
entrando na rotina da maioria e perdem o interesse em ensinar. Esse fato nos fez refletir a
respeito do contágio da emoção que reverbera no ambiente, seja de forma agradável ou
desagradável, tal como na situação supraexposta. Senti a indiferença de todos, no tocante à
necessidade de se construir um projeto pedagógico participativo, que mobilizasse a
comunidade, os professores, os gestores e os funcionários.
Mais recentemente e por último, dentre os motivos que nos conduzem a colocar em
prática este projeto, foi a realização de estágio não remunerado no primeiro semestre de 2013
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na EMEF Presidente Campos Salles, na condição de aluno do curso de Pedagogia. Tal estágio
era vinculado à disciplina optativa EDM 0429 – Metodologia do Ensino de Psicologia, da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, ministrada pela Professora Doutora
Leny Magalhães Mrech, e deveria ter o total de sessenta horas, das quais foram cumpridas
quarenta nessa escola.
A professora Leny se referia à escola de tal maneira que instigou nosso interesse em
conhecê-la mais detalhadamente, tendo avivado nossas recordações sobre seu passado,
quando tivemos a oportunidade de estudar e conviver naquele ambiente, pois, àquela época,
residíamos nas proximidades da instituição.
Eram os anos da década de 1970 e a situação nessa escola era a de receber os alunos
de família pobre, que simplesmente não conseguiam matrícula em boas escolas da região ou
porque eram jubilados dessas melhores, após a segunda reprovação na mesma série. E, assim,
essa parte do alunado da região não tinha opções, nas proximidades de sua residência, de
outra escola para nova matrícula, compelindo o aluno rejeitado por qualquer dos dois motivos
a se matricular exatamente nessa escola, denominada à época de Escolas Agrupadas do
Moinho Velho, situada no Largo da Capela, que é atualmente chamada de EMEF Presidente
Campos Salles.
Os adolescentes viam essa escola agrupada como um lugar muito inadequado para se
estudar. Eles a chamavam de “Grupão” e, apesar do bom espaço, o ambiente não era
prazeroso. As aulas não despertavam nos alunos o desejo de aprender e se engajar. Os
recursos materiais eram escassos e muitos professores se recusavam a mudar seu modo
autoritário de lidar com os alunos. As interações em sala de aula tinham a emoção
desagradável como ingrediente principal. A reação dos alunos surgia sob a forma de
agressividade e, eventualmente, era violenta. Havia um estigma de que era a “escola dos
favelados, marginais e baderneiros”.
No início da supracitada década, os alunos das Escolas Agrupadas eram, em sua
maioria, filhos de operários nordestinos que trabalharam na construção do Hospital
Heliópolis, não muito distante da escola. Após a conclusão da obra, essas famílias
permaneceram no entorno, dando início ao surgimento da favela. Famílias de outros bairros
foram removidas pela prefeitura e se instalaram definitivamente naqueles campos de futebol,
local em que iniciaram a construção de barracos de madeira e casas de alvenaria.
Muitos pais de alunos sentiam-se inseguros e pouco confiavam na instituição em que
matriculavam seus filhos. Traziam consigo o desejo de tirar o filho dessa escola e matriculá-lo
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em outra, na medida do possível. Qualquer escola seria melhor do que a “Campos Salles”.
Presenciamos esse momento, conhecemos adolescentes que estudavam lá e que se sentiam
angustiados, pois queriam uma escola de melhor qualidade, sem o estigma negativo que
sempre carregavam. Constantemente, os alunos da escola eram alvo de piadas maldosas
criadas por adolescentes que estudavam em escolas melhores. Carregamos conosco, durante
décadas, essa imagem de uma escola repulsiva, aliada a um sentimento de completa aversão,
que se desfez apenas recentemente.
Voltando ao período de nosso estágio na escola, que fora outrora chamada de
“Grupão”, ao iniciar essa jornada, o diretor nos propiciou completa liberdade para proceder às
observações que considerássemos úteis ao nosso aprendizado, bem como acesso aos salões
de todos os turnos. O objetivo de nossas observações foi direcionado para as interações nesses
salões, pois sentíamos curiosidade de enxergar a maneira como essas interações dos alunos
ocorriam, sejam entre si, sejam com os professores e com os roteiros integrados. Percebi, de
imediato, que o aluno era o centro da proposta pedagógica e que era visto como um sujeito de
direito, capaz de construir o conhecimento próprio, com autonomia, responsabilidade e
solidariedade, que são os princípios da escola. E o que predominava era a aposta na ideia de
que o projeto pedagógico deveria trazer, como uma de suas decorrências, a emoção agradável
nas relações entre todos os envolvidos, desde a equipe técnica e professores até alunos e
funcionários.
O diretor me relatou sobre o histórico da escola e o novo projeto pedagógico
adotado, tendo em vista que a escola, desde 1995, apresentava problemas de violência que
envolviam alunos com pessoas ligadas ao crime. Ele esclareceu que a escola faz divisa com a
favela de Heliópolis e que a população, de maneira geral, é muito carente de recursos e de
assistência. A violência, em 1999, destacou-se com o assassinato de uma aluna, ao sair da
escola no período noturno. Daí surgiu a proposta de se caminhar pelas ruas de Heliópolis,
envolvendo a comunidade, de modo a externar a não aceitação dessa violência.
O diretor contou ainda que conduziu, auxiliado por alguns professores, uma proposta
pedagógica corajosa, colocada em prática em 2005, e a encaixou nesse contexto de busca pela
paz. Enfatizou que o modelo para a concepção e elaboração do projeto pedagógico foi o da
Escola da Ponte, de Portugal, tendo atingido desde a sala de aula até a comunidade, de modo a
introduzir uma nova maneira de se construir o saber. Houve, então, uma passagem daquelas
antigas concepções, que viam a criança como um ser menor e incompleto, para uma visão em
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capítulo 2, sobre Henri Wallon. Este intelectual educador e humanista contribuiu – e ainda
contribui – para uma educação melhor, ao nos chamar a atenção para o valor da afetividade no
desenvolvimento da criança e sua ressonância no cognitivo e na motricidade, de forma
integrada, facilitando a aprendizagem. Sua proposta inclui uma postura democrática e humana
para professores e alunos. Tratamos, então, de nos referirmos a um pequeno histórico de sua
vida. Pequeno porque é grande o autor e sua obra, que não caberia nesta singela pesquisa.
Abordamos a questão da afetividade, com ênfase na emoção. Discutimos também a educação,
a partir desse educador, e traçamos um panorama das crises e conflitos na escola
contemporânea.
No capítulo 3, procedemos a um apanhado geral sobre o Projeto Político-Pedagógico.
Tratamos de esclarecer aspectos importantes sobre a EMEF Campos Salles, demonstrando a
sua fundamentação legal, seu histórico, a escola que a inspirou, e suas práticas antes e após a
implementação coletiva do Projeto Político-Pedagógico. No capítulo 4, expusemos nossa
metodologia, para atendermos ao nosso objetivo geral e aos objetivos específicos.
No capítulo 5, analisamos de modo mais detalhado o Projeto Político-Pedagógico da
EMEF Campos Salles. Abraçamos a dimensão pedagógica e suas práticas a fim de
desenvolver a exposição dos apontamentos. Procuramos, primeiramente, apontar o significado
das palavras, a fundamentação legal sobre o projeto, seu histórico e as mudanças que o
originaram. Posteriormente, analisamos o projeto de modo geral. Nessa fase, aparece com
destaque o histórico da escola e seu regimento escolar. Apontar o estabelecido em relação à
educação na cidadania foi nosso propósito principal, haja vista que ela é o grande centro das
modificações operadas no ambiente escolar, para melhor.
Seguimos, no capítulo 6, com nossos apontamentos e reflexões extraídos em nossa
pesquisa de campo na EMEF Campos Salles. São reflexões baseadas nas respostas fornecidas
pelos entrevistados e nos resultados das observações anotadas, a respeito do trabalho de três
professoras de um salão e a sua interação com seus alunos. Optamos por eleger a categoria
afetividade e sua intersecção com subcategorias para análise: ambiência, espaço, docência e
discência. Não há como falarmos de ambiência sem nos referirmos à docência, à discência e
ao espaço. São subcategorias interligadas e todas conectadas com a afetividade.
22
2. HENRI WALLON
retém apenas “os grãos de verdade”. Esta expressão significa que assimilou, pouco a pouco,
seu método de investigação e o repasse afetivo ao longo de sua trajetória, repleta de artigos,
conferências, sugestões e ensinamentos. A originalidade de seu trabalho advém do fato de que
não se prendeu à pesquisa em laboratório, mas voltou-se ao humano no sentido mais amplo,
transformando o resultado de suas investigações em ações.
Para Zazzo (1978), em Wallon existe sempre o contato com o cotidiano, em que há
uma grande preocupação com o indivíduo em sua totalidade, nos traços particulares, nas
relações com os outros e nos significados de seus pensamentos. A ciência do psiquismo não
pode ser encerrada em um sistema, da mesma forma que a psicologia de Wallon não chega a
um sistema. É uma psicologia das diversidades mentais e das contradições. Contradições é um
termo que surge em seus escritos e diz respeito à análise das contradições das teorias entre si
ou às oposições associadas aos hábitos mentais e verbais. A complexidade em Wallon é
essencial porque diz respeito ao que o outro descobre e deseja respeitar. Ao contrário, a obra
de outros autores pode ser simplificada porque as aparentes complexidades são, na verdade,
um ruído de fundo, de um sortilégio verbal.
Segundo Mahoney (2012), para acompanhar a leitura feita por Wallon, é preciso
evitar o raciocínio dicotômico, que fragmenta a pessoa, e adotar um raciocínio que a apreenda
como constituída por diversas dimensões em conjunto e atreladas entre si. Zazzo (1978)
explica que o pensamento de Wallon não é reducionista ao ponto das proposições simples. E,
ao lhe sermos fiéis, para não o trairmos, há uma retomada de suas fórmulas e a multiplicação
das citações, conduzindo-nos a uma queda fácil e ao defeito da paráfrase. E quem pode repetir
Wallon? Ele mesmo. “Só Wallon pode repetir Wallon, comentar-se. E aquilo que pode
parecer redundância é um aprofundamento progressivo, com novas perspectivas, com factos,
exemplos, demonstrações multiplicadas de uma para outra obra” (ZAZZO, 1978, p. 81). E de
que maneira permanecem nossos hábitos mentais dentro dessas novas perspectivas? O autor
assevera que nossos hábitos mentais ficam constrangidos porque Wallon vai contra a corrente
da explicação científica, que suprime as contradições das coisas e reduz a diversidade, pois a
explicação encontra princípios e fatores comuns a todos os níveis do real.
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E sua obra é atual? Qual a sua importância? Uma grande obra não se perde no tempo.
É o que acontece com a teoria de Wallon. O estudo sobre a afetividade é um grande exemplo
da atenção que dedicou ao aspecto humano e à criança, de forma que, ainda nos dias atuais,
psicólogos e pedagogos podem refletir, aprender e pesquisar a partir de suas teorias, e aplicá-
las em nome da boa educação. Werebe e Nadel-Brulfert (1986) afirmam que a atualidade de
Wallon pode ser percebida por meio das preocupações com o estudo da criança situada no
primeiro plano da Psicologia. A sua teoria ocupa lugar de destaque, juntamente com os
trabalhos anglo-saxões sobre o desenvolvimento social e afetivo da criança. A importância da
obra de Wallon se justifica em virtude da preocupação central de firmar a especificidade da
Psicologia e a oposição ao reducionismo ou ao dualismo.
Percebemos, num olhar mais ampliado, que os estudos de Wallon não estão
“desconjuntados”; ao contrário, formam um todo em que um conceito tem completude em
outro, apesar de estarem em posições distintas. Nas palavras de Bastos (2003, p. 21): “A
utilização do termo pessoa total ao longo de sua obra enfatiza a importância de se conceber a
pessoa de forma integrada. [...].”. É o que observamos, por exemplo, nas quatro categorias
interligadas, como o movimento, a afetividade, a inteligência e a pessoa.
De fato, sua obra induz a uma reflexão pedagógica a partir do estudo do
desenvolvimento da pessoa completa. Os estágios de desenvolvimento apresentados por
Wallon demonstram que o autor não se limita ao estudo do cognitivo: há um revezamento no
domínio dos estágios, nos quais a afetividade – e, especialmente a emoção – faz-se presente e
se destaca, com maior ou menor ênfase. Alguns estágios trazem o predomínio da afetividade.
“Wallon vê o desenvolvimento da pessoa como uma construção progressiva em que se
sucedem fases com predominância afetiva e cognitiva” (GALVÃO, 2014, p. 43). Ele faz
inúmeras referências à afetividade, a partir do estágio impulsivo-emocional que a criança
vivencia. Nos estágios sucessivos, a afetividade se manifesta ou permanece mais “encolhida”.
Existe uma influência maior ou menor, dependendo do estágio, do caráter cognitivo ou do
26
No entanto, se esse mesmo professor avisa que a prova será muito fácil e, no dia
marcado, descobrem que ela está muito complicada, a tendência é a de que a maioria dos
alunos seja tomada pelo medo e reaja instantaneamente às dificuldades da prova. Os atos
podem ser incontroláveis e, certamente, impensados. Existe, portanto, a possibilidade de o
aluno se levantar imediatamente e entregar a prova ou simplesmente rasgá-la. Nesse caso, o
medo é uma emoção, porque é biológico e visceral, e pode vir acompanhado de uma cólera
projetada contra o material da prova. A reação movida pelo orgânico é preponderante.
Existe uma nova possibilidade, a de que alguns alunos dominem a situação e a
emoção, por meio do autocontrole. Temos, nessas circunstâncias, a paixão. No entanto, o
autocontrole depende muito da idade do aluno e é mais comum em adultos, que podem ter o
hábito de retomar o raciocínio, apesar de, às vezes, sofrer com o impacto de uma emoção.
Almeida e Mahoney (2007) esclarecem que a paixão não aparece antes do estágio do
personalismo e tem por característica a exclusividade, exigências e ciúmes. Outro detalhe é
que alguns adultos têm autocontrole e são mais centrados. Chegamos, assim, a três conclusões
sobre o autocontrole da emoção, quais sejam: a primeira é a de que, adultos e crianças são
diferentes, isto é, a criança não tem autocontrole, via de regra; a segunda é que o poder de
entendimento e verbalização do adulto o ajuda no autocontrole. Na visão de Almeida e
Mahoney (2007), o adulto tem melhores condições para expressar seus sentimentos porque ele
consegue traduzir intelectualmente seus motivos e circunstâncias; e a terceira é de que
nenhum aluno teria uma crise emocional se estivesse sozinho na sala de aula. Nesse caso
específico, não precisa ser adulto para que a emoção perca a sua força. É muito comum
crianças chorarem apenas quando percebem que os pais estão olhando.
postural, de um reflexo condicionado, de uma reação imediata a uma situação, elas se referem
à emoção. Nesse caso, há a exteriorização da afetividade.
[...] A cada uma, passa a corresponder um padrão postural, que libera ou concentra
energia com maior ou menor intensidade e depende de automatismos específicos
que emergem pela maturação funcional: reação à queda, à falta de apoio, à
estimulação labiríntica, etc. [...] A emoção dá rapidez às respostas, de fugir ou
atacar, em que não há tempo para deliberar. É apta para suscitar reflexos
condicionados. (ALMEIDA; MAHONEY, 2005, p. 20).
processo de indiferenciação em relação ao mundo; não faz a separação ele – mundo, ele – as
pessoas, ao contrário, ele se confunde com ele mesmo. No entanto, gradativamente, começa a
identificar o que ocorre consigo e estabelece o chamado processo de diferenciação. É o
momento em que a criança percebe as suas emoções básicas de prazer.
Chamamos a atenção para que não haja uma confusão entre as emoções básicas com
o amor e o carinho. As emoções básicas são provocadas por fatores biológicos. A autora
destaca que são emoções básicas de prazer e desprazer, como alegria e tristeza, por exemplo.
E uma das primeiras tentativas de contato da criança é o grito, que revela as manifestações de
prazer e desprazer. Para Wallon, o grito é o meio pelo qual o bebê aprende a identificar suas
emoções. Wallon (1995) afirma que, após os três meses, o bebê consegue se dirigir àqueles
que lhes são próximos, com gritos e sorrisos, para atender às suas necessidades e esses
movimentos expressam laços afetivos.
Como aparecem as expressões emocionais nos bebês? Segundo Wallon (1975), com
a idade de seis meses, surgem expressões emocionais variadas, de acordo com o que o meio
pode lhe oferecer, ficando a mãe no papel de intermediária. As mímicas também chamam a
atenção do autor no contexto das combinações: “[...] As ulteriores imitações mímicas poderão
utilizar-se destas combinações elementares como dum cadáver (sic) já familiar [...]”. (1975, p.
156, grifo nosso). Nesse momento da vida, entendemos que o bebê passa a interagir mais
intensamente com aqueles que são próximos e, na maioria dos casos, o próximo mais
importante é a mãe dele.
As mímicas podem se manifestar de várias maneiras, inclusive quando o bebê ouve
uma música adequada. Nas “brincadeirinhas” como o “achou” podem ocorrer reações por
meio de mímicas, numa fase marcada pelo desenvolvimento emocional e social. A grande
importância das reações por meio de mímicas é a promoção da interação entre bebês e seus
envolventes. É um período de manifestações diferenciadas. Assim ilustram Werebe e Nadel-
Brulfert (1986, p. 43): “[...] Se, desde o terceiro mês, sob certas condições ainda bem
exclusivas, o grito induz ao grito, o sorriso ao sorriso, o mimetismo afetivo só aparecerá no
segundo semestre, ou seja, na idade em que começam também a se manifestar as emoções
diferenciadas”.
Se a emoção é uma manifestação humana, ela acompanha o ser humano há muito
tempo. No entanto, há indícios de que a maneira como ela se manifestava não sofreu
transformações com a evolução da sociedade. E nos perguntamos: como se manifestava a
emoção no homem primitivo? Sabe-se que a maior preocupação do ser humano primitivo era
31
a sua preservação e a dos outros com quem se envolvia, vivenciando a esfera dos instintos.
Ele agia por instinto durante a caça e nas situações perigosas de enfrentamento de animais e
das próprias agruras peculiares ao meio no qual estava inserido. Sua cultura, ao longo do
tempo, foi construída socialmente nesse contexto de lutas pela manutenção e sobrevivência de
sua espécie.
O viver em grupo, também conseguido graças ao estágio da emoção, foi uma das
conquistas primeiras do homem para assegurar sua sobrevivência. Assim, foi a
poderosa ajuda da emoção com sua capacidade de despertar o espírito de
colaboração, a cumplicidade nos interesses e, consequentemente, na ação comum
que constitui o grupo, a associação dos indivíduos. O único triunfo de que dispunha
o homem contra a sua ignorância, ainda que transitória, diante da natureza.
(ALMEIDA, 2012, p. 73).
psíquica é a interação do indivíduo como o meio. Ele rejeita a oposição entre o orgânico e o
social porque a criança é um ser social, mas o seu comportamento é determinado
fisiologicamente.
Desse modo, a maturação do sistema nervoso e a ressonância afetiva garantem a
sobrevivência da criança. Ao dispor da emoção com intensidade, ela se distingue dos animais
por receber do adulto, de outras pessoas e, principalmente, da mãe, aquilo de que precisa para
satisfazer suas necessidades e promover o seu bem-estar.
Mrech (2011) vê uma estreita relação entre a identificação das emoções pelo bebê, a
partir de seu desenvolvimento inicial, com a maneira pela qual a criança é acolhida pela
família. Existe um grande equívoco cometido por professores ao entenderem que determinada
ação da criança tem uma característica; no entanto, na verdade, ela ainda não tem
características e não tem a menor ideia do que faz. É muito comum o professor dizer que ela
quer chamar a atenção em determinada situação. O que ocorre é que a criança traz consigo o
que vivencia em seu ambiente familiar. Daí decorre a necessidade de o professor ter uma
percepção apurada no tocante aos domínios funcionais: a afetividade, a motricidade, a
inteligência e a pessoa. Passam da indiferenciação para a diferenciação, isto é, a partir do
pensamento sincrético, em que a criança se mescla com o mundo e as outras pessoas até a
tentativa de se separar delas, a fim de estabelecer a sua própria maneira de pensar, de sentir e
de agir.
Os estudos de Wallon demonstram que a alegria tem uma estreita relação com o
movimento. Ela tanto pode ser fruto do movimento, ou melhor, nasce com a
facilidade do movimento, quanto pode revelar o movimento como um dos seus
efeitos. (ALMEIDA, 2004, p. 77).
enquanto que, na projetiva, ele direciona sua cólera para o meio, para o outro e para as coisas.
Alunos que reagem chutando lixeiras também podem ser agressivos e violentos com outros
alunos e com professores. Temos nessa situação a possibilidade da decorrência de uma
manifestação emocional de cólera, via de regra, passageira.
A cólera centrípeta é aquela onde domina a angústia. Mais frequente na criança que
no adulto, na mulher que no homem visto encontrar-se mais próxima de suas origens
orgânicas. A cólera projetiva, constituída de reações contra o meio, faz participar a
ambiência de suas manifestações, exterioriza-se em cenas mais ou menos
expressivas, podendo exercer uma ação de intimidade no ambiente [...]. (DANTAS,
1983, p. 117).
O medo, segundo Almeida (2004), é mais tardio que a tristeza. Como explica
Wallon, por causa de sua sensibilidade labiríntica, o bebê experimenta o medo como sua
primeira emoção e, assim, orienta suas atividades. Há uma relação entre reações de equilíbrio
e medo, em que uma reação do labirinto pode revelar reflexos de imobilização. Nos bebês,
são diversos os efeitos que o medo provoca e que podem se apresentar nos indivíduos sob
diversos graus e formas. Os riscos de determinada situação podem provocar angústia ou
pavor. No primeiro caso, o indivíduo prevê os riscos; no segundo, a surpresa diante de uma
situação provoca pavor.
O medo existe também na sala de aula. A didática do professor, as práticas
pedagógicas propostas e até mesmo as avaliações podem provocar angústia e pavor nos
alunos. Esses desdobramentos do medo atingem a aprendizagem na medida em que tem o
poder de imobilizá-los: “Tanto o pavor quanto a angústia têm o poder de abolir a atividade do
sujeito, pois sua atuação impõe ao corpo uma súbita variação tônica”. (ALMEIDA, 2004, p.
81).
São comuns as situações em que alunos revelam dificuldades para apresentar
seminários, enquanto professores permanecem estáticos, fazendo avaliações de sua conduta
para lhes atribuir nota. Seria interessante o docente refletir sobre como aplicará esse
seminário, a fim de não causar angústias e pavor, de maneira a afastar o medo como reação
emocional. Tal circunstância é apenas um pequeno exemplo porque são várias as atitudes de
um docente que pode resultar em angústias ou tristeza ou medo, e ainda, uma somatória de
sentimentos e emoções.
Certamente, a emoção necessita de estabelecer uma maneira de agir sobre o mundo
social. Somente assim haverá uma influência sobre aqueles que estão próximos e se
emocionam com a criança, em qualquer fase de seu desenvolvimento.
35
Almeida (2012) afirma que Wallon classifica quatro mecanismos para a emoção agir
sobre o mundo social, a saber: a contagiosidade, a plasticidade, a regressividade e a
labilidade. Na contagiosidade, há a capacidade de contagiar o outro na transmissão do prazer
ou do desprazer; a plasticidade ocorre quando o corpo reflete os sinais da emoção, como no
rubor da face ou em uma contração muscular; na regressividade, a emoção faz as atividades
de raciocínio regredir; e na labilidade, ocorre a capacidade de uma emoção se transformar em
outra.
Ao expandir exemplificações desses quatro mecanismos, enxergamos com clareza as
atitudes e as manifestações emocionais, principalmente, em bebês. Dependendo da idade, é
normal que a manifestação emocional tenha suas peculiaridades diferenciadas. Bebês e
crianças são mais contagiantes. Muitas propagandas apelam para a imagem dos pequenos para
vincular a emoção positiva ao produto, mas isso não significa que adolescentes e adultos não
possam ser contagiantes, do ponto de vista emocional. No entanto, um ser humano com uma
doença contagiosa, isolado, não a transmitirá para outrem. Da mesma forma, a emoção não é
contagiante se a pessoa estiver isolada. O contágio ocorre quando há, ao menos, duas pessoas
envolvidas e, preferencialmente, para que seus efeitos se potencializem, é necessário um
grupo de pessoas.
O caráter altamente contagioso da emoção vem do fato de que ela é visível, abre-se
para o exterior através de modificações nas mímicas e na expressão facial. As
manifestações mais ruidosas do início da infância (choro riso, bocejo, movimento
dos braços e das pernas) atenuam-se, sem dúvida, porém a atividade tônica persiste,
permitindo ao observador sensibilizado captá-la. A emoção esculpe o corpo,
imprime-lhe forma e consistência; por isso Wallon a chamou de atividade
‘proprioplástica’ [...]. (DANTAS, 1992, p. 89).
Galvão (2014) faz referência a duas funções da musculatura, quais sejam: a cinética e
a postural ou tônica. A cinética regula o estiramento e o encurtamento das fibras musculares;
e a tônica regula o grau de tenacidade dos músculos. Wallon vincula o estudo do músculo ao
movimento e dá ênfase na motricidade expressiva, à dimensão afetiva do movimento dentro
do estudo sobre as emoções. “Função essencialmente plástica e de expressão, as emoções
constituem uma formação de origem postural e possuem como substância fundamental o
tônus muscular”. (DANTAS, 1971, p. 150).
Duarte e Gulassa (2012) se referem à fase impulsiva motora, que dura
aproximadamente três meses, como um período em que o ser é quase organismo puro, com
apenas reflexos e movimentos impulsivos. Nas primeiras semanas após o nascimento, a
criança tem desconfortos. Assim ocorre porque suas necessidades fisiológicas primárias não
são mais atendidas como eram durante o período fetal, que constituía um período de intensas
alterações fisiológicas e de desenvolvimento do feto, por meio de importantes fenômenos, que
acontecem de forma prevista, via de regra, numa relação em que as necessidades do feto são
supridas pela gestante até o nascimento, momento do início de intensas agitações. Wallon
37
(1975) se refere a essa relação simbiótica no ventre materno, em que o feto recebe tudo aquilo
de que precisa para o seu desenvolvimento biológico, inclusive um sistema nervoso reativo.
Wallon (1975) afirma que, no lactente, os gritos ocorrem, por vezes, em virtude das
agitações tônicas ou clônicas, isto é, das contrações sustentadas dos músculos seguidas das
contrações musculares com o devido relaxamento. O sono alterna a descontração muscular
quase generalizada com essas agitações. Tais agitações conduzem a indisposições fisiológicas
agregadas às necessidades de alimentação, de colo, ou em busca de embalo, mas também
podem ser provocadas por mal-estar decorrente do frio e da umidade das roupas. A partir da
terceira semana, com a sensibilidade postural, começa a haver sucção e o contato dos lábios
com os seios. Decorrem outras sensibilidades, como a audição e a visão, que formam
associações condicionais.
Para Duarte e Gulassa (2012), uma das principais formas de comunicação da vida
psíquica com o ambiente externo é o movimento, isto é, o gesto da criança para se fazer
entender. O movimento se apresenta sob três formas, segundo Wallon: movimentos de
equilíbrio, movimentos de preensão e de locomoção, além de reações posturais. Quando a
criança passa da posição deitada para a sentada, é um movimento de equilíbrio; quando há
deslocamento do corpo e dos objetos no espaço, temos os movimentos de preensão e de
locomoção; no caso de deslocamentos dos segmentos posturais, os quais permitem as
expressões e as mímicas, temos as reações posturais. Gradativamente, os movimentos
impulsivos cedem espaço à fase emocional, caracterizada pelas transformações das descargas
motoras em meio de expressão e comunicação.
Mrech (2011) esclarece que Wallon, em sua época, constatou a importância que a
afetividade exercia na vida de todos. Identificou que, para uma parcela das pessoas, a
afetividade era percebida como uma perturbação, como uma forma de atuação degradada.
Essa proposição tinha como pano de fundo a influência do pensamento filosófico, que
privilegiava a razão em detrimento dos demais domínios, isto é, dentre eles, a afetividade.
Mrech (2011) alerta para o fato de que os pedagogos e os especialistas em Educação
têm grande dificuldade para definir o que é ensino. A partir dessa dificuldade, apelam para
duas vertentes, quais sejam: a conteudística e a que enfatiza as relações. Na primeira, o
objetivo é ensinar conteúdos – é a chamada teoria cognitivista; e, na segunda, ensinar é
38
instruir o aluno a se relacionar com os outros. Neste caso, ocorre a chamada teoria
construtivista.
Esse processo fragmenta o ato pedagógico em dois – o cognitivo e o afetivo –, sem
se considerar que ambos têm uma estreita vinculação. No tocante à postura docente em sala
de aula, percebemos que a melhor maneira de ensinar é a opção pelo afetivo no âmbito de
uma proposta pedagógica que valorize as relações, mas com a atenção do professor voltada
aos reflexos sobre o cognitivo, na medida em que afetividade e cognição não se separam. O
que ocorre é que, na prática, na fragmentação do ato pedagógico, aquele que opta pela
vertente conteudística ignora completamente a emoção. Da mesma forma errônea, aquele que
opta pelas relações deixa de enxergar os aspectos cognitivos. As conquistas do cognitivo são
melhores quando respaldadas pela afetividade agradável, mais presente nos ambientes
escolares democráticos, com alunos engajados.
A questão da emoção sempre teve destaque nas escolas do Brasil? Parece-nos claro
que o foco principal, por razões históricas, foi a questão do cognitivo. De acordo com Leite
(1991), a questão da afetividade esteve quase que ausente em pesquisas e estudos pedagógicos
até os anos 1990. A partir daí, a presença da afetividade nos estudos aumentou, com destaque
para a área de Psicologia. A concepção secular dualista foi a responsável por essa situação, na
medida em que o pensamento ocidental entendia que razão e emoção são dimensões humanas
independentes, já que o homem ora é um ser pensante, ora é um ser que sente.
Nessa dualidade humana, o pensamento dominante sempre elegeu a razão como a
dimensão superior, porque o homem era entendido como um animal racional. Essa dimensão
teria como uma das principais funções o controle da emoção, considerada uma dimensão
sombria e perigosa. Indagamos: Essa concepção dualista razão/emoção influenciou o sistema
educativo do Brasil? A resposta é afirmativa, pois até os dias atuais, boa parte das escolas
privilegia a inteligência, principalmente em favor de práticas que podem ser observadas,
advindas dos projetos pedagógicos. Este é um dos fatores que podem ser considerados
relevantes para a propagação de crises e conflitos no ambiente escolar, pois a afetividade e,
principalmente, as emoções permanecem despercebidas.
Leite (1991) historia que ocorreu, durante séculos, uma ênfase no racionalismo no
que tange às práticas educacionais. O trabalho educacional foi dirigido para os aspectos
cognitivos, de modo que a afetividade ficou marginalizada nesse processo. Vemos, portanto, o
status de superioridade da inteligência como reflexo de um pensamento predominante, apesar
39
das inúmeras evidências das manifestações emocionais nos ambientes escolares, que
influenciam o comportamento de todos.
A inteligência costuma ceder aos caprichos da emoção, pois sempre que esta se
exprime, suprime a atividade intelectual e reduz para si todas as disponibilidades do
sujeito. Como já foi dito, Wallon, ao tematizar o antagonismo da emoção com a
atividade de representação, chama a atenção para os efeitos nocivos que a
supremacia da emoção sobre a razão traz para a atividade do indivíduo. Portanto, o
grande desafio é conseguir manter o equilíbrio entre a razão e a emoção sob pena de
comprometer a realização de qualquer atividade do indivíduo. (ALMEIDA, 2012, p.
84).
alunos e os respeita como sujeito de direitos procura conciliar de forma sensata aspectos tão
importantes.
2.3. EDUCAÇÃO
sua generosa abertura aos problemas sociais de sua época, mas também a uma
espécie de genialidade que só a ele pertence. (ZAZZO, 1978, p. 6).
Esse projeto, cuja versão final foi redigida por Wallon, é a expressão mais concreta
de seu pensamento pedagógico. Portador do espírito reinante na Resistência, o plano
representa as esperanças em uma educação mais justa para uma sociedade mais
justa. A reforma proposta (que não chegou a ser implantada) deveria operar-se no
sentido de adequar o sistema às necessidades de uma sociedade democrática e às
possibilidades e características psicológicas do indivíduo, favorecendo o máximo
desenvolvimento das aptidões individuais e a formação do cidadão. (GALVÃO,
2014, p. 24-25).
Durante toda a sua trajetória, e não apenas em parte dela, o médico demonstrou seu
interesse pela Educação, pois entendia que a Psicologia e a Pedagogia poderiam se aproximar
em benefício da Educação. Apesar disso, não propôs uma teoria pedagógica, tal como
podemos verificar nas palavras de Almeida (2012, p. 71): “Wallon não propõe uma teoria
pedagógica, mas seu interesse pela educação levou-o a elaborar textos específicos sobre
educação [...]”. Para além de sua produção literária, foi crítico do ensino tradicional durante a
época de debates educacionais, inclusive da Educação Nova. Wallon, segundo Werebe e
Nadel-Brulfert (1986), foi um dos pioneiros da “educação nova” e o primeiro a se referir à
ilusão daqueles que faziam obras revolucionárias, a partir de propostas utópicas e experiências
educacionais isoladas, na intenção de se fazer a renovação pedagógica. E, ainda nos dizeres de
Almeida (2012, p. 72), tem-se: “A crítica de Wallon à Educação Nova é principalmente
43
quanto à opção que os sistemas educacionais fazem, ora privilegiando o indivíduo, ora a
sociedade [...]”.
A educação tradicional sempre foi um entrave para a justiça social e à educação para
todos porque reproduzia as injustiças da sociedade. Essas injustiças, à época, não eram
evidentes para as pessoas. A visão do todo sempre foi de homens que estavam muito a frente
de seu tempo. O que se via era o centro de um poder excessivo nas mãos do professor e a
perspectiva de um aluno como um ser que deveria obedecer para conseguir aprender. Galvão
(2014) faz referência aos objetivos da educação tradicional; um deles era o de transmitir aos
alunos os hábitos e costumes dos seus antepassados e assegurar a perpetuação ideológica.
Nesse caso, os alunos apenas se adaptariam à sociedade, sem transformá-la. Por outro lado, a
Escola Nova se movimentou em direção ao desprezo em relação às dimensões sociais da
educação, preconizando o individualismo, na medida em que buscava romper com a opressão
dos indivíduos pela sociedade.
Naquele momento, renovar a educação antiga era fundamental para todos,
principalmente para beneficiar os menos privilegiados da sociedade e, ao mesmo tempo, para
abrir espaço para novas ideias, inclusive depois da Segunda Grande Guerra. Muitas dessas
novas ideias eram de Wallon, que desejava uma atenção maior ao aluno e àquilo que ele tinha
de potencial para desenvolver, evitando-se que fosse um mero cumpridor de determinações,
sem direito a qualquer postura ativa. Afirmam Werebe e Nadel-Brulfert (1986) que Wallon
criticava a educação tradicional principalmente em relação à passividade do aluno, à asfixia
de sua personalidade e ao autoritarismo dos mestres. No entanto, a grande crítica era à
preconização do individualismo e à negligência ao caráter social da educação.
Para Dantas (1983), a psicologia de Wallon encontra sua razão de ser, suas raízes e
confirmações na prática educativa, pois à época, inspetores, diretores e professores,
procuravam, nos laboratórios, familiarizarem-se com os métodos apresentados. As escolas
normais receberam esses métodos e essas conquistas oriundos de inúmeros testes, conduzindo
a uma nova concepção da Psicopedagogia. Então, o que mudou no trabalho docente com a
psicologia de Wallon? Houve uma transformação na metodologia, na medida em que o
professor deixou as ações empíricas e os métodos dogmáticos e se transformou em um ser que
44
alterando sua maneira de pensar, de sentir e de agir. Temos uma sociedade que não está
preocupada com o sujeito.
Diante desse quadro, emerge uma questão feita por muitos educadores: como essa
dinâmica atinge os ambientes escolares? E a resposta não se limita a apontar apenas para os
paradigmas mais conhecidos, isto é, a escola tradicional ou a escola moderna.
Gadotti (2012) afirma que há uma crise paradigmática e que, na sociedade atual,
cresce a reivindicação de participação e autonomia. É um discurso forte que envolve questões
relativas à autonomia, à cidadania e à participação no espaço escolar.
Assim se expressa o educador: “A crise paradigmática também atinge a escola e ela
se pergunta sobre si mesma, sobre seu papel como instituição numa sociedade pós-moderna
[...]”. (GADOTTI, 2012, p. 36). E, envolvidas nesses acontecimentos que afetam a sociedade,
surgem questões importantes, tais como: o que está acontecendo na escola contemporânea?
Como a escola pode se situar e direcionar seu trabalho pedagógico, de maneira a se libertar
dos antigos paradigmas? De que maneira seria possível evitar crises e conflitos no ambiente
escolar, numa sociedade globalizada? Para adotar um posicionamento em relação a tais
indagações, a escola não pode servir de mero instrumento ideológico, mas deve usufruir de
autonomia para adotar providências contínuas, buscando estabelecer um ambiente educativo
capaz de enxergar o aluno como sujeito de direitos. Na prática, existem resistências e várias
amarras, de modo que muitas escolas ainda se pautam por uma organização avessa à
democracia e à cidadania em seu ambiente. Deram espaço ao autoritarismo e se esqueceram
de que o sujeito tem reações emocionais.
Como a escola pode chegar a ponto de se perguntar o que acontece com ela, se ainda
preserva o formato de uma linha de montagem de uma fábrica, como anteriormente
afirmamos? Alves (2012) estabelece uma analogia para a maioria das escolas, comparando-as
a uma linha de montagem de uma fábrica, com coordenadas espaciais e temporais. As
espaciais seriam as “salas de aula”, e as temporais seriam os “anos” ou “séries” de estudo.
Nessas unidades espaço-tempo, os professores realizam o processo técnico-científico, que
acrescenta sobre os alunos os “saberes-habilidades”, para compor o objeto final. Depois de
passar por esse processo, o objeto final (criança) perde a visibilidade e se revela como um
simples suporte para os “saberes-habilidades”, isto é, a criança está formada, tal qual o objeto
que sai da linha de produção com o ISO 12000, uma mercadoria espiritual que pode entrar no
mercado de trabalho.
47
meios. Nada mais eficaz que a ação exercida sobre a criança e igualmente sobre o
Homem, através do ambiente. (DANTAS, 1983, p. 19).
[...] a escola é justamente a instituição que tem por função principal prover as
atividades dos alunos dos meios que são necessários para realizá-los. E cabe ao
mestre, utilizando os métodos pedagógicos adequados, guiar a criança de maneira
que possa tirar o máximo proveito dos meios que lhe são oferecidos e de seus
recursos próprios. [...] (WEREBE; NADEL-BRULFERT, 1986, p. 26).
atividades que realiza em casa, não sente que é compensada pelo prazer, sobretudo, se essa
criança mora na periferia, em uma favela. O educador afirma que as aprendizagens que os
alunos dos meios populares valorizam são as relacionais e afetivas, bem como aquelas
associadas ao desenvolvimento pessoal. A aprendizagem tem sentido apenas na relação com o
outro. A aprendizagem que isola o aluno provoca um empobrecimento afetivo e, em
consequência, sua reação é a da perda do desejo.
Zuin (2012) faz referência à lógica do funcionamento das relações estabelecidas nos
ambientes escolares. Essa lógica se fundamenta na regressão infantil da estereotipia e da
personalização. Muito dificilmente um adulto representará uma figura de autoridade a ponto
de seduzir a atenção de uma criança e motivá-la para adquirir certas características
encontradas no adulto. No caso específico, a capacidade de adiar a realização de um desejo,
isto é, a própria lógica do funcionamento da escola pode afastar o aluno das relações afetivas,
promover seu isolamento e estereotipá-lo. Essa lógica também propicia a substituição do
desejo de saber pelos desejos da sociedade de consumo e, pior, promove a incapacidade do
aluno em adiar esses desejos, via de regra, imediatistas.
Quando não há valorização de professores e alunos em suas relações, quando a
educação não está direcionada para a autonomia dos alunos e para a formação de seres
pensantes e autônomos, é possível que ocorram, de forma acentuada, crises e conflitos.
Almeida (2004) esclarece que só existem conflitos onde há diferenças. O conflito faz parte da
natureza humana porque é capaz de romper estruturas pré-fixadas, inclusive no campo da
constituição da pessoa, na relação do eu e do outro. Portanto, entendemos que os conflitos não
desaparecem do ambiente escolar, visto que estão atrelados à condição humana, mas podem
ser minimizados por meio de ações pedagógicas democráticas e de um bom planejamento.
Para a falta de planejamento das escolas, emerge a importância de um ambiente
estabelecido por um projeto pedagógico democrático, deslocando o docente do centro das
práticas pedagógicas. Nesse ambiente, o ideal é um trabalho em equipe, no qual se pressupõe
a valorização e o respeito ao aluno, na condição de sujeito de direitos. Porém, ter o aluno
como sujeito de direitos, com autonomia, responsabilidade e solidariedade, não significa a
anulação do docente. O que se pede é um educador mais afetivo e solidário, disposto a
caminhar ao lado de seus alunos, com respeito à sua realidade. Isso está relacionado
diretamente à técnica que ele emprega.
Mrech (2011) traz o chamamento de Wallon para que professores fiquem atentos ao
uso dos slogans e chavões porque o que se verifica é um esvaziamento e o pequeno impacto
50
deles nas práticas docentes. Entende a autora como um aviso para os dias atuais, na medida
em que o jargão da Psicologia e da Pedagogia passam por constantes sofisticações e
multiplicações, enquanto há poucos avanços nas práticas da escola.
[...] Multiplicam-se os termos, mas a prática nas escolas tem revelado poucos
avanços. Estamos em um momento em que há uma descrença na capacidade da
escola de ensinar. Existe ainda uma tentativa de se lidar com a Educação de maneira
estandardizada, visando instaurar uma padronização na atuação. Uma crença de que
seria possível controlar o que se revela ser sempre único e singular: o processo de
construção de cada aluno, de cada professor. (MRECH, 2011, p. 42).
Dantas (1983), ao se referir à técnica empregada pelo professor, afirma que a sua
aplicação automática não permite que o professor seja um educador. Para evitar esse risco, a
técnica tem que estar integrada na cultura, assim como a formação do professor não deve se
limitar à aprendizagem. As pesquisas de Wallon suscitaram nos futuros educadores o realismo
científico e, com ele, o momento pedagógico na sua quase totalidade, a sociedade e a criança.
Ele ensina aos professores que, antes de agir, deve-se compreender e considerar a criança
dentro de seu meio, a fim de evitar a esterilização de sua ação. Entendemos que, com essa
compreensão, aumentam as possibilidades de o educador analisar e refletir nas situações
conflituosas, localizando o epicentro da crise e adotando as medidas que o caso requer.
docente que busca entender o.humano por completo – a partir de Wallon – e, em especial, a
criança e o adolescente, é um professor que abandona a persuasão e busca a lucidez.
[...] o professor precisa ser arguto, lúcido, constante observador de seu aluno.
Observador da criança como uma pessoa completa, integrada, contextualizada;
observador da criança em cada um de seus domínios funcionais. [...]. (ALMEIDA,
2012, p. 82).
[...] Da observação atenta de seu aluno e de seu contexto – da pessoa e do meio –, o
professor proporá questões que lhe despertem interesse [...]. (ALMEIDA, 2012, p.
83).
Almeida (2012) explica que a criança tende para o adulto, e o apoio do professor é
fundamental para sua travessia de criança a adulto. O docente deve, então, avaliar seu próprio
desempenho e levar em consideração as condições de aprendizagem do aluno, as do seu meio
e respeitar o ritmo de seu desenvolvimento. Respeitar o aluno é, portanto, aceitá-lo, conhecê-
lo, seguir seu ritmo, oferecer meios e grupos para seu desenvolvimento, bem como aceitar que
a Educação é evolutiva e tende para a autonomia do aluno. Não conseguimos manter uma
relação afetiva, uma interação emocional, se não houver respeito mútuo, e o respeito do
professor ao aluno faz parte da teoria walloniana.
É preciso muito cuidado ao estudarmos a obra de Wallon, naquilo que se refere à
Educação, principalmente quanto ao papel da escola e do professor, para não alterarmos a
essência de suas ideias. A crítica que ele fazia às instituições e à postura docente podem nos
induzir à crença de uma posição inflexível contra a educação de sua época. Na realidade, a
leitura correta dessa crítica deixa bem claro que ela era construtiva; em momento algum ele se
colocou exatamente em oposição inflexível, desejando a supressão da escola e a destruição da
imagem do professor. Ao contrário, seus ensinamentos caminham, apenas, em direção a uma
escola melhor e modificada, com mais igualdade e justiça social, ao lado de um professor
mais afetivo, humanista e democrático.
52
3. PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO
receita mágica. Portanto, seus resultados vão depender do compromisso dos envolvidos para a
definição da identidade. Por meio da participação, o envolvido assume a condição de sujeito e
não de objeto, faz parte do trabalho, mas não interfere em seu destino.
Lacerda (2004) também se refere à intencionalidade do projeto pedagógico, que está
sempre em construção, compromissado e vivenciado no coletivo. Entende que essa
construção, pela escola, é a possibilidade da criação de sua identidade, buscando sua direção e
fundamentada pelas relações democráticas. Cabe ao educador refletir sobre o processo
educacional, bem como suas concepções. “[...] O Projeto Político-Pedagógico é, portanto, o
eixo que direciona a ação coletiva na escola, norteando a atuação dos seus atores na
construção permanente da identidade e da autonomia escolar [...]”. (LACERDA, 2004, p. 51).
partir de sua visão particular e desrespeitam o espírito das leis. É certo que a sociedade reagirá
contra o vírus do autoritarismo nos meios educativos, ainda que disfarçado de decisões
democráticas. Gandin (1999) assevera que não é o caso de pedir ao intelectual para traçar os
rumos da sociedade e das escolas, a partir de seu gabinete. O que não pode é a aceitação do
papel de “juiz”, externo às ações de professores, que, de fato, buscam encontrar alternativas
para a educação.
Há um conjunto de normas estabelecidas para a educação na Constituição de 05 de
outubro de 1988, e, a partir dela, surgiram leis menores. Destacamos a democracia e a
autonomia previstas na legislação, mais especificamente, na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Atentamos também
para a previsão da democracia nas escolas, a partir de sua gestão democrática, considerando
inclusive que escolas particulares possam se inspirar nesse estilo. Reza, o Artigo 14, a
participação coletiva na construção do Projeto Político-Pedagógico:
Quanto à autonomia, o Art. 15, da mesma Lei, estabelece que: “os sistemas de ensino
assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram
progressivos graus de autonomia pedagógica [...]”. Qual é o melhor caminho para se
estabelecer o exercício da autonomia? Há dois caminhos, a saber: primeiro, conhecer a tarefa
educativa de uma democracia. De acordo com Azanha (2000), se a escola não compreende a
tarefa educativa em uma democracia, ela perde a sua ética e não há que se falar em ética do
professor. Nesse caso, a autonomia deixa de ser condição de liberdade e passa a ser
facilitadora da opressão. Escola e professores são reduzidos a simples executores de ordens;
segundo, para ter autonomia, não pode a escola negar a realidade dos alunos e o seu histórico.
Um projeto deve rever o instituído e ser instituinte, como explica Gadotti (2012, p. 37).
ser considerada como liberdade para aprender, ensinar e pesquisar, inserida em uma
intencionalidade coletiva; tal ideia nos conduz à escola democrática. A construção
democrática da escola e de sua identidade, para Bussmann (1985), aliada ao Projeto Político-
Pedagógico, requer o rompimento com estruturas mentais e organizacionais fragmentadas, a
definição clara de princípios e diretrizes contextualizadas, o envolvimento da comunidade
escolar e o conhecimento da realidade escolar.
Vasconcelos (2006) argumenta que, nos anos 1970, as instituições de ensino eram
referenciadas com uma forte crítica sociológica. A identidade das escolas estava vinculada ao
aparelho ideológico do Estado: a ditadura militar. Como a escola é o reflexo da sociedade, não
havia espaço para a autonomia e para a liberdade de expressão e de ação. Entendemos que,
nessa época, a própria reflexão de alunos e professores era direcionada, se é que podemos
chamar de reflexão, mesmo porque nos parece contraditório. Como exemplo, disciplinas de
História e Geografia se resumiam em um amontoado de dados e fatos a serem decorados,
desconsiderando-se completamente o exercício e o desenvolvimento de espírito crítico.
Sempre, em nome da dominação. Daí a necessidade de redefinições e transformações
organizadas, por meio de um projeto: “Qualquer projeto de transformação exige que se tenha
clareza sobre o que significa ‘transformar’ e sobre o que se quer construir a partir dessa
transformação [...]”. (GANDIN, 1999, p. 90).
Apontamos para o papel da escola, na redemocratização da década de 1980 e no fim
da ditadura militar, em 1985. Vasconcelos (2006), a respeito desse papel, aponta para uma
nova era de redefinições após o período relativo aos anos 1970. Desenvolvem-se novos
instrumentos de planejamento e as novas concepções começam a ser estudadas visando
transformar as práticas educativas. A “filosofia da escola” e o “regimento escolar” não eram
mais suficientes para gerir o caótico cotidiano. O Projeto Político-Pedagógico vai se
afirmando com o avanço das conquistas de direitos e o desejo de participar; o projeto era uma
necessidade urgente para educadores e escolas. Há um movimento para alterar antigas
concepções, com a teoria tentando capturar o real e intervir. Nesse sentido, o Projeto Político-
Pedagógico é construído e reconstruído pelos atores que desejam a mudança. Nossa posição é
a de que, como hipótese, o modelo repressivo tenha desaparecido da maioria absoluta das
57
Ação transformadora é aquela que supre alguma necessidade radical do grupo e/ou
da instituição, daí o esforço para se conhecer bem quais as necessidades da
instituição que planeja. Para saber o que fazer precisamos, então, localizar as
necessidades. (VASCONCELOS, 2006, p. 29).
[...] Uma vez começada a aula, talvez ele percebesse alguns traços de uma pedagogia
mais interativa e construtivista, de uma relação mais calorosa ou igualitária do que
na sua época. Mas, a seus olhos, não haveria nenhuma dúvida de que encontrava-se
em uma escola. (PERRENOUD, 1999, p. 3).
[...] teima em não alterar sua prática; teima em não estudar, teima em se considerar
“pronto”; teima em se portar como dono de sua especialidade; teima em acusar os
alunos (e suas famílias); teima em infernizar os alunos com tanta lição de casa que
ninguém sabe para quê, teima em se sentir vítima; teima em encaminhar aluno para
fora da sala de aula; teima em não valorizar o coletivo, teima em querer o aluno
“num certo ponto”; teima em ficar se queixando o tempo todo [...].
(VASCONCELOS, 2006, p. 65).
4. METODOLOGIA
O fator que justificou nossa escolha dos entrevistados foi, notadamente, o tempo de
serviço, que pode determinar o grau de compromisso com a escola. Para que a reflexão fosse
baseada em um critério coerente e de completa imparcialidade, uma das coordenadoras e três
professoras apresentam um menor tempo de serviço. O ex-diretor da EMEF Presidente
Campos Salles, durante muitos anos, protagonizou as transformações do ambiente escolar e,
desta forma, não poderia ficar às margens da pesquisa.
Como foram elaborados os roteiros das entrevistas? Especificamente, a elaboração
seguiu o critério de colher informações, nas primeiras sete questões, a respeito da história de
vida dos entrevistados, portanto, respostas de cunho pessoal. As demais perguntas são
específicas sobre os aspectos que desejamos investigar. Diante do exposto, entendemos que
também é necessário um perfil, um resumo da história de vida dos entrevistados, escrito a
partir das respostas iniciais obtidas nas entrevistas. A história de vida pode esclarecer o
motivo pelo qual o professor optou ou não em trabalhar na escola e qual seu grau de afeição e
engajamento, a partir do que pudemos entender sobre seu passado. O passado reflete na
conduta profissional. O ex-diretor da escola faz essa afirmação, como se verifica no início de
sua entrevista: “Acho fundamental essa questão da história pessoal e explica muito das coisas
que eu acabei fazendo depois”. (Braz).
Firmamos o propósito e realizamos as leituras e reflexões do Projeto Político-
Pedagógico, bem como das entrevistas, isto é, dos relatos do diretor, das coordenadoras e dos
professores. Complementando a coleta de dados, foram registradas, por escrito, em caderno
de anotações, as observações realizadas na escola, dentro do salão e em reuniões da Comissão
Mediadora de Estudantes, composta por onze ou dez alunos e coordenada por um professor-
tutor. Tais observações tiveram como alvo de interesse o trabalho docente e a educação na
cidadania. Segundo Bastos (2003), a observação deve partir de uma interrogação e de um
interesse para interpretar o olhar walloniano. Três questões norteadoras devem constar do
objeto de pesquisa: por que observar? Para que observar? E como observar?
Foi realizada a análise das entrevistas e das observações anotadas durante a pesquisa
de campo, as quais, posteriormente, foram encaixadas na categoria afetividade, com suas
subcategorias interseccionadas: ambiência, espaço, docência e discência. Tal divisão visava
nos conduzir a um melhor entendimento do proposto. Nessas subcategorias foi possível, por
meio de nossa discussão, demonstrar se o Projeto Político-Pedagógico é afetivo e se o
professor também o é. A categoria e as subcategorias abraçam o âmago da pesquisa que
levamos a efeito.
61
As atividades escolares devem ser objeto de reflexão por parte do coletivo da escola,
incluída a comunidade e os próprios estudantes. Dessa reflexão surgirão os
caminhos a serem trilhados na ação educacional, materializados na forma de
proposta pedagógica, planos de curso anuais, bimestrais, roteiros de estudos mensais
e o plano de gestão escolar, sendo este elaborado para um período de consecução
mais amplo, incluindo todos os dados e informações, diretrizes e normas de trabalho
pedagógico e administrativo (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÒGICO DA EMEF
PRESIDENTE CAMPOS SALLES, 2015, p. 8).
professores; havia exclusão escolar e social de muitos alunos; a indisciplina era generalizada,
bem como as agressões a professores. A escola carecia de um projeto e de uma reflexão
crítica acerca das práticas existentes.
Nósh não têmosh [...], salas de aulas. Não temos classes separadas, 1º ano, 2º ano, 3º
ano... Também não temos aulas, em que um professor ensina a matéria. Aprendemos
assim: formamos pequenos grupos com interesse comum por um assunto, reunimo-
nos com uma professora e ela, conosco, estabelece um programa de trabalho de 15
dias, dando-nos orientação sobre o que deveremos pesquisar. Usamos muito o
recurso da Internet. Ao final dos 15 dias nos reunimos de novo e avaliamos o que
65
5. 1. IDENTIFICAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO
De acordo com seu projeto (2015), a EMEF Presidente Campos Salles está inserida
no Centro de Convivência Educativa e Cultural Heliópolis – CCEC, no bairro de São João
Clímaco, no distrito do Ipiranga. Encontra-se sob a jurisdição da Diretoria Regional de
Educação do Ipiranga – DRE/Ipiranga e oferece cursos de Ensino Fundamental (Ciclos I, II e
III) e de Educação de Jovens e Adultos (EJA), ministrados em horários diferenciados em três
períodos: matutino, vespertino e noturno. A equipe gestora conta com a direção, suas duas
assistentes e uma coordenadora pedagógica. Tem como patrono Manuel Ferraz de Campos
Salles, político brasileiro nascido em 1841, na cidade de Campinas, estado de São Paulo, e
falecido em 1913, na cidade de Santos. O surgimento da escola Campos Salles ocorreu em
1956; a inauguração data de 27 de fevereiro de 1957 e, o início de seu funcionamento, de 21
março de 1957:
Pode-se dizer que a escola está paralisada nas suas práticas e não vê o aluno como
sujeito de sua aprendizagem, impondo-lhe um currículo pré-determinado que não
tem nada a ver com sua vida. O aluno real, concreto não é acessado e ir à escola
passa a ser uma mera obrigação. (MAZON; NOGUEIRA, 2005, p. 6).
O que direciona o projeto pedagógico da EMEF Campos Salles são os seus cinco
princípios norteadores. É necessário expormos uma melhor contextualização da escola para
chegarmos às suas ideias norteadoras. Mazon e Nogueira (2005), a fim de melhor
contextualizar a escola, dividem-na em três períodos: 1957 a 1970, 1971 a 1995 e 1996 a
2005. No primeiro período (1957 a 1970), a escola atendia às séries iniciais do Ensino
Fundamental, e a grande maioria dos alunos, que residia no Jardim Patente e em São João
Clímaco, eram filhos de trabalhadores das chácaras e olarias existentes na região. Havia
também alguns descendentes de portugueses e italianos. No segundo período (1971 a 1995), a
partir de uma ocupação desordenada de moradores, a escola passou a receber crianças de 1ª
ou 2ª séries. À medida que essas crianças aprendiam a ler e escrever, os pais as transferiam
para outras instituições que surgiam, porque tinham vergonha da escola que frequentavam,
que tinha o estigma de “escola dos favelados, dos marginais e dos baderneiros”. Ressaltamos
que esse estigma foi superado apenas no final de 1988, tendo sido substituído pela
denominação “escola da comunidade”.
Complementando, no terceiro período (1996 a 2005), em 21 de novembro de 1995, a
nova direção iniciou a integração Escola-Comunidade, uma parceria estabelecida em nome da
luta pelos direitos da população de Heliópolis. O então novo diretor, Braz Rodrigues
Nogueira, escolheu a escola em virtude da proximidade em relação à sua residência e também
pelo fato de a origem de sua família ser similar a algumas famílias de Heliópolis. Em 1996, a
escola passou a contar com duas coordenadoras pedagógicas. O diretor da escola carregava
uma grande preocupação referente à equipe técnica, pois dela dependia para ter êxito ao
realizar as transformações. Vasconcelos (2006), ao se referir à equipe diretiva, alega que a sua
importância está na influência sobre a criação de um clima organizacional favorável.
Em 2004, alguns educadores próximos ao diretor propuseram uma mudança na
metodologia de ensino reinante, para uma outra, inspirada na Escola da Ponte, em Portugal, e
na EMEF Desembargador Amorim Lima, em São Paulo. Na ocasião da assunção do cargo, o
diretor colocou em prática duas ideias que carregava consigo e que são norteadoras do Projeto
Político-Pedagógico intitulado “EMEF Presidente Campos Salles – Cidadania: uma questão
68
de sobrevivência”. Tais ideias são: a escola como centro de liderança e tudo passa pela
educação. A primeira é a de que a escola não pode atuar isoladamente, pois corre o risco de
reproduzir as injustiças sociais, à medida que se isola de sua comunidade; a segunda é a de
que o educador-cidadão percebe que a escola atua de forma contextualizada com a sociedade,
que esta não educa sozinha e naquilo que lhe cabe, mas educa o aluno na cidadania, pois a
solução dos problemas, inclusive dos sociais, passam pela educação.
Em suma, a escola como centro de liderança, na medida em que pretendeu ser neutra,
terminou por abdicar da liderança junto à comunidade. Isto posto, distanciou-se da realidade
social, de modo que seus alunos aprendiam de forma descontextualizada. Outro sintoma
identificado foi o isolamento da escola, incapaz de reestruturar suas práticas pedagógicas, que
eram baseadas na repetição e na exclusão social. Como o educador tem contato efetivo com a
população e com a criança, nada mais correto do que caminhar na direção do fortalecimento
da relação escola-comunidade. A escola, portanto, como centro de liderança, mas
abandonando a posição neutra, e se comprometendo com o saber ao lado de outras instituições
e da comunidade.
Quando o educador da escola é cidadão tudo passa pela educação. Ele busca mudar a
sociedade e a escola porque entende que ambas caminham juntas, que existe um reflexo
mútuo. Coloca o aluno na condição de contextualizado e interage com ele a partir da própria
visão que tem em relação ao mundo, no que tange à economia, à história e à cultura que
envolve os sujeitos. Assume como sua a luta do povo por seus direitos, ao passo que deseja
educar e ser educado na ação, agindo como educador-cidadão. Sabe que a escola não é a única
responsável no campo educacional, pois necessita de articulações com a comunidade para
desenvolver satisfatoriamente suas práticas.
Consta no Projeto da EMEF Campos Salles (2005) que, em 2005, foram acrescidos
mais três princípios norteadores, oriundos do projeto da Escola da Ponte, intitulado
“Autonomia, Responsabilidade e Solidariedade”. Assim, a EMEF passou a contar com cinco
princípios: 1 – Tudo passa pela educação; 2 – A escola como centro de liderança na
comunidade onde atua; 3 – Autonomia; 4 – Responsabilidade e 5 – Solidariedade.
O conceito de autonomia, sob o ponto de vista filosófico, confunde-se com o
conceito de liberdade. A liberdade ocorre quando o sujeito toma suas próprias decisões, a
partir de sua razão individual; a autonomia traz uma perspectiva que alia essa ação individual
ao componente social. O sujeito autônomo tem certas habilidades, como por exemplo, a
capacidade de tomar decisões e a criatividade. Há o acréscimo de certas necessidades:
69
integrados”, assunto que será abordado detalhadamente em nossa discussão final. O professor
que trabalhava individualmente passou a trabalhar em grupo porque, dentro da nova
perspectiva educativa, o planejamento tinha que ser realizado de forma coletiva.
Ainda em 2007, uma nova conquista se agregou com a construção do Centro de
Convivência Educativa e Cultural Heliópolis – CCEC. Foi construído em um espaço público,
no entorno da escola, com o objetivo de propiciar ambientes de convivência, valorizar a
cultura local e priorizar o lazer para a comunidade de Heliópolis. Esse espaço constitui um
instrumento de aproximação entre a escola e a comunidade; é provável que possibilite uma
maior interação e interesse da comunidade pelos assuntos da escola e do próprio Projeto
Político-Pedagógico. É também um ambiente em que predomina uma manifestação de
afetividade agradável.
Em 2009, educadores conduziram a escola a várias mudanças. Reconheceram a
necessidade de desenvolver nos alunos habilidades e competências. A partir deste ponto, foi
introduzida a tecnologia da informação e comunicação, com a utilização do então SkyDrive,
chamado atualmente de OneDrive, que é um serviço de armazenamento em nuvem, cuja
propriedade é da Microsoft. Por meio do Google Docs, os educadores digitavam os roteiros de
estudos (atualmente integrados), provões e as tarjetas. Nesta fase inicial, observamos a ênfase
no sujeito, isto é, tudo pelo aluno. “Tudo pelo aluno” significa colocá-lo em pé, como bem
esclarece Vasconcelos (2006), ao afirmar que é necessário resgatar e colocar em pé o sujeito,
na fase inicial da construção do projeto, desejando, acreditando e buscando.
No final do ano de 2010, surgiu a parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em
Educação, Cultura e Ação Comunitária - CENPEC, com o objetivo de qualificar os roteiros de
estudos. Tal parceria se traduziu em realização de pesquisas envolvendo estudantes, pais,
educadores e a equipe gestora, além de vários estudos visando melhorar a aprendizagem dos
alunos. Em 2011, ocorreu a capacitação do CENPEC, ocasião em que foi possibilitado aos
educadores se aproximarem de sua área de conhecimento. O objetivo geral era o de abandonar
os resquícios da educação tradicional, que marginalizava e excluía os estudantes, em
decorrência de uma metodologia ultrapassada e desvinculada da vida real deles. Entendemos a
ação descrita como uma forma de planejamento participativo, que obteve êxito, porque,
evidentemente, priorizou o coletivo, respeitou a realidade do aluno e apresentou,
objetivamente, uma nova prática. Gandin (1999) compartilha dessa visão e salienta a
importância do planejamento participativo, que desenvolveu modelos, processos,
71
Cabe a cada estudante, a cada educador, a cada funcionário da escola, a cada pai, a
cada mãe, a cada líder comunitário arregaçar as mangas e pegar o martelo, os
pregos, a colher, o cimento, os tijolos e começar a nova construção no seu tempo e
ritmo. Caso a construção fique com defeito, o problema não será procurado no
indivíduo, pelo contrário, o coletivo será mobilizado para resolver o problema.
(PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS
SALLES, 2015, p. 14-15).
Chegamos a uma boa prática pedagógica também em razão das boas condições dos
recursos físicos. O espaço interfere nas emoções e nos sentimentos dos alunos. Nada mais
degradante, em termos afetivos, do que educandos encurralados em espaços inadequados. A
EMEF Campos Salles conta com espaços amplos e adequados para o desenvolvimento de
suas práticas, adaptados para a nova metodologia implementada. Como fiel exemplo, temos a
derrubada das paredes das salas de aulas convencionais, transformadas, inicialmente, em
quatro salões de estudo, um espaço destinado à prática da nova metodologia de ensino.
Além dos salões, de acordo com seu Projeto (2015), a escola conta com três salas de
orientação de roteiros de estudo – destinadas aos 1os, 2os e 3os anos, com objetivos de
alfabetização em língua portuguesa e aprendizagem na matemática –, uma sala da direção,
uma da coordenação e uma de professores. As outras salas são as de reuniões, de secretaria,
ambiente literário e tecnológico e de educação física. Em 2014, por meio de uma reforma, foi
construído o 5º salão de estudos e do Ambiente de Apoio Literário e Tecnológico. O espaço
possui ainda: almoxarifados, depósito, dispensas, cozinha e sanitários para todos. Amplo pátio
coberto, jardins externos ao prédio, quadra poliesportiva e áreas livres.
A utilização da quadra de esportes acontece a partir da necessidade do próprio roteiro
de estudos de educação física, para atividades físicas e esportivas correspondentes a ele. Os
educadores de educação física e todos os educadores das demais áreas atuam como
orientadores de todos os roteiros. Os estudantes do salão participam das atividades e podem
escolher as que desejam; eles aprendem não somente nesses ambientes da escola, mas em
qualquer espaço de sua comunidade, contribuindo para a construção do bairro educador, em
Heliópolis.
72
5.5. METODOLOGIA
Cada grupo de estudantes, e não cada indivíduo, tem autonomia para decidir quais
roteiros realizar no dia. No salão de estudos o educador exercerá o papel de
orientador, portanto, não haverá aula expositiva e o professor extrapolará a sua
disciplina. Na dúvida, os estudantes deverão recorrer primeiramente aos colegas de
grupo, não obtendo a ajuda necessária deverá levantar a mão para que o educador
disponível se aproxime para orientá-lo. O grupo também vivencia a responsabilidade
em relação à execução de todos os roteiros de estudos. A solidariedade também é
um exercício constante, uma vez que o estudante, tanto aprende com seus pares,
quanto os ajuda a aprender. (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA EMEF
PRESIDENTE CAMPOS SALLES, 2015, p. 22).
ponto de vista emocional. Vasconcelos (2006) entende que a escola deveria ser um espaço de
confronto de ideias, de posições e de decisões coletivas, no entanto, o que se instalou foram
propostas mirabolantes, impostas de cima para baixo, em que os dirigidos não se animam a
discuti-las. Como não há diálogo, a palavra não circula e não há interações, surge uma
atmosfera deprimente, em que o medo às críticas prevalece nos encontros.
escola e na comunidade. Sua autonomia vai ao encontro da identidade da escola, que, de certa
forma, abraça o professor também como sujeito. “[...] Não há como formar sujeitos, se o
professor não é, ele próprio, sujeito [...]”. (GANDIN, 1999, p. 129).
respeito, independentemente das diferenças. Essa nova cultura transcende a escola, em nome
de uma educação integral de seus alunos. Assim, tece articulações com o empresariado, com
moradores e escolas, visando ao bem comum. Cria novos espaços comunitários em
decorrências das articulações que envolvem todos e, junto com a escola, por meio de novas
ideias e todo um conjunto de ações, promove a cultura da paz. O objetivo geral pode ser
definido como a construção de uma escola pública de qualidade; trabalhar a questão da
cidadania, de forma que os alunos se sintam responsáveis pela solução de problemas, de modo
a valorizar a pessoa humana, criando também situações de aprendizagem para melhorar sua
qualidade. Os objetivos promovem a integração entre escola e a comunidade.
O objetivo do Ensino Fundamental, ao término dos Ciclos I, II e III, está voltado para
a compreensão da cidadania, por meio da vivência, além da posição crítica, responsável,
construtiva e transformadora na sociedade, de modo geral. Engloba as áreas de: Ciências
Naturais (Matemática e Ciências), Linguagens e suas tecnologias (Português, Artes, Educação
Física e Inglês) e Ciências Humanas e Suas Tecnologias (História e Geografia). Do que
apresentamos, selecionamos o desenvolvimento, no aluno, do espírito crítico e responsável, o
qual a escola deseja formar. Como ele foi educado na cidadania, torna-se muito mais simples
77
a compreensão do exercício pleno dessa cidadania e sua inserção na sociedade, na luta por
direitos e pela preservação do meio ambiente. Ao contrário, quando o Ensino Fundamental
forma para a cidadania, o sujeito não carrega a experiência e a vivência.
uma ação eficaz por meio de práticas adequadas e formas adequadas, que extrapolam a
atitude, fazendo do processo de planejamento um meio para se chegar à ação transformadora.
Os Ciclos de aprendizagem englobam avaliações, conceitos, recuperação, frequência
e promoção ou retenção. É realizada a avaliação de forma contínua, cumulativa e sistemática,
visando ao processo ensino-aprendizagem. A avaliação serve para orientar os estudantes em
suas dificuldades, além de direcionar o trabalho dos professores e fundamentar suas decisões.
O resultado da avaliação é bimestral. A análise do processo de avaliação é expressa por meio
dos conceitos: no Ciclo I, NS, em que o aluno evidencia, de modo não satisfatório, os avanços
no seu processo educativo; S e P, em que o aluno evidencia, de modo satisfatório, esse
avanço. Nos Ciclos II e III, são atribuídas notas de zero a dez. Para aqueles que ingressam na
recuperação, são propiciados estudos de reforço e recuperação ao longo do ano letivo, com o
uso de roteiros de estudos. A frequência mínima é de 75%, considerando-se o conjunto dos
componentes curriculares. A promoção ou retenção do aluno ocorrerá por conta da avaliação
e da assiduidade, nos últimos anos de cada ciclo do Ensino Fundamental, regular, e da
Educação de Jovens e Adultos.
Ressaltamos dois aspectos em relação a tudo que envolve os Ciclos de aprendizagem,
quais sejam: o primeiro diz respeito à visão da escola, a partir de sua identidade, no sentido de
permitir que os alunos cresçam de acordo com suas possibilidades. Cada um tem um ritmo e
uma maneira própria de aprender, e este fator é respeitado. Gandin (1999, p. 99) afirma que
“[...] O essencial é uma escola que ajude as pessoas a crescer dentro de suas possibilidades
[...]”; o segundo aspecto é que o contexto social também é respeitado, de modo que a
realidade dos alunos é considerada nas diversas análises da equipe gestora e docentes,
envolvendo discussões diversas, tais como, por exemplo, sobre avaliação e conceito. Ao
considerar o contexto social, o sujeito se torna mais desejante de saber, porque seus
pensamentos, sentimentos e ações podem partir da sua realidade. Bussmann (1985), ao se
referir às reivindicações sobre a melhoria do ensino e da formação básica, destaca a
capacidade de cada pessoa para a construção do conhecimento, na condição de agente, de
sujeito que pensa, age e faz.
Contudo, salientamos uma grande contradição no projeto. A atribuição de notas é um
instrumento da escola e deve ser respeitado. Quando a escola é autoritária, a atribuição de
notas de zero a dez se enquadra perfeitamente dentro de um modelo educativo burocrático e
ultrapassado. Ao contrário, na escola cidadã, se realmente é necessário a atribuição de notas,
em cumprimento à legislação, ela deveria ser apenas conceitual, principalmente quando nos
79
referimos à progressão continuada. Portanto, notas de zero a dez, com efeito, não se encaixam
dentro da proposta avaliativa da escola.
Não podemos afirmar que o Projeto Político-Pedagógico atinge seus objetivos sem o
trabalho de todos, a união de esforços, a sinergia que envolve o desenvolvimento das práticas
pedagógicas e, especialmente, a ação da equipe gestora. Vasconcelos (2006), no tocante à
equipe gestora, relaciona o desenvolvimento de práticas pedagógicas à postura por ela
adotada. E qual seria essa postura? Segundo o autor, a equipe deve discutir a forma do
exercício do poder, evitando-se a polarização equivocada da postura entre a espontaneidade e
o autoritarismo. A equipe não impõe, ao contrário, propõe, provoca e administra tensões;
confia no grupo, respeita o professor e não o enxerga como irresponsável.
O projeto pedagógico da escola se refere à necessária atuação da equipe gestora, que
deve agir como um elo de ligação entre os segmentos da escola, vivenciar o Projeto Político-
Pedagógico e interagir com os membros da comunidade. Portanto, o trabalho da equipe deve
se voltar para a associação com a comunidade, a fim de derrubar o muro simbólico que a
separa da escola, objetivando a educação integral das crianças, jovens, adultos e idosos.
Medel (2008) esclarece que, na medida em que a equipe gestora e a comunidade se propõem a
conhecer a escola, é possível perceber de modo inconsciente o desejo de mudança. Deste
modo, as pessoas relatam como enxergam a escola ideal, relacionando essa visão ao lugar que
ocupam na escola. Por exemplo, os profissionais da limpeza desejariam um ambiente mais
limpo, os da secretaria, uma maior organização, os alunos, um recreio mais prolongado e, os
professores, a ampliação da disciplina.
As obrigações da equipe gestora são extensas e, dentre elas, o projeto traz a
necessária atenção à transparência das atribuições previstas no Regimento, a criação de
condições para um processo ensino-aprendizagem adequado à realidade dos alunos e a
atuação junto ao Conselho de Escola e à Associação de Pais e Mestres. Além disso, a equipe
gestora possui como incumbências: coordenar projetos; atender a pais, estudantes e
professores; promover reuniões e organizar atividades, como a Caminhada pela Paz. “É
fundamental a participação constante da direção nas reuniões pedagógicas semanais, pois
assim tem oportunidade de ouvir e expor argumentos, conhecer por dentro a realidade da
escola, enfim acompanhar o processo [...]”. (VASCONCELOS, 2006, p. 62).
80
5.16. DOCENTES
Refletir sobre os rumos da escola exige pelo menos dois tipos de raciocínio: pensar o
que será das escolas se as atuais tendências majoritárias prosperarem e o que pode
ser das escolas se os seus agentes puderem discutir essa tendência e buscar
alternativas [...]. (GANDIN, 1999, p. 63).
5.18. OS PROJETOS
A escola conta com o projeto “Heliópolis, Bairro Educador”, que se afirma no papel
da instituição escolar e das lideranças comunitárias. Os pressupostos do Bairro Educador
estão relacionados ao diálogo entre escola e comunidade e respectivas parcerias que possam
surgir, tanto com as famílias, como com o empresariado, o poder público, organizações
sociais e associações de bairro. É uma nova cultura, que transcende a escola e se associa a ela
visando à educação integral de crianças, jovens, adultos e velhos, de modo a criar condições
para o protagonismo. Ressignificação dos espaços e criação de ações coletivas fornecem o
tom do projeto, bem como a criação de expressões da educação, que se resume em música,
teatro, artes plásticas, dança, cinema, poesia, além da prática esportiva, contribuindo para a
constituição do sujeito e o exercício da cidadania.
82
É uma escola a céu aberto, onde todos estão preocupados com todos, onde todos
respeitam a todos, independente das suas diferenças de qualquer ordem (étnicas,
religiosas, de gênero, etc.); [...], onde se constrói uma cultura da paz [...] (PROJETO
POLÍTICO – PEDAGÓGICO DA EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES, 2015,
p. 48).
83
6. PESQUISA DE CAMPO
Os estudos atuais sobre Wallon nos conduzem a uma reflexão, nos meios educativos,
em relação à importância da afetividade no ambiente escolar, principalmente porque suas
conquistas são captadas pelo cognitivo. Quando um docente acolhe de modo afetivo um
aluno, abre espaço para que esse educando verbalize a respeito de sua vivência,
principalmente no meio familiar. Essa postura docente favorece a boa aprendizagem porque o
discente recebe ajuda para superar seus problemas emocionais, além de se estabelecer uma
relação humana e respeitosa entre ambos. Quando um professor é afetivo com o outro
professor, seu colega de trabalho, ele promove uma aproximação baseada em sentimentos e
emoções. Tal fato conduz a uma união e, por conseguinte, favorece o trabalho compartilhado.
Com o auxílio da coleta de dados, verificar o impacto da afetividade no ambiente escolar, ao
longo da história da EMEF Campos Salles, foi determinante para desenvolvermos nossa
análise e reflexão, com base na categoria afetividade e suas intersecções com as
subcategorias: ambiência, espaço, docência e discência. Antes de iniciarmos nossa análise e
discussão, montamos uma caracterização ou perfil dos entrevistados, extraído das respostas
que obtivemos durante as entrevistas com as seis professoras, com as coordenadoras e o com
o ex-diretor da escola, a fim de balizar nossas considerações.
seis anos. A principal razão pela escolha de lecionar nessa escola se deu por conta da
proximidade com o local de sua residência. Quando chegou, em 1996, nada conhecia sobre a
escola.
A professora Gabriela têm quarenta e cinco anos de idade e nasceu no Estado de São
Paulo, no município de São Caetano do Sul. É formada em Ciências, Matemática e
Pedagogia, com Pós-Graduação, em nível de Especialização, em Ludoterapia. Sempre
lecionou em São Paulo, no Estado e na Prefeitura. Com o nascimento do filho, deixou o
Estado e ficou somente na prefeitura. É concursada e leciona há quinze anos somente na
EMEF Campos Salles. Na docência, são vinte e três anos. O principal motivo que a fez optar
em lecionar nessa escola foi a distância em relação à sua residência. Quando ingressou, a
escola era tradicional e ainda não tinha o projeto que existe atualmente.
A análise das entrevistas realizadas e das observações anotadas formou nossa fonte
de dados para desenvolvermos uma reflexão e abrir nossa discussão sobre a categoria
afetividade e as quatro subcategorias interseccionadas, quais sejam: ambiência, espaço,
docência e discência Nossa proposta é a de apresentar a opinião fragmentada dos
entrevistados, relativa às passagens mais significativas, no tocante ao histórico da escola. A
partir das transformações do ambiente, em termos de emoção e sentimentos. Nosso foco se
intensifica no que concerne aos acontecimentos atuais. As observações são específicas em
relação ao trabalho de três docentes do Ensino Fundamental Regular II, em um salão dos 5os
anos, com cerca de cem alunos, e recaem nas interações existentes.
Em relação ao histórico da escola, anteriormente delineado, há algumas passagens
novamente abordadas, no entanto, a ótica é completamente diferente, porque o epicentro da
reflexão, neste momento, passa a ser a afetividade, baseada nas entrevistas e observações
realizadas. Procuramos mostrar se o Projeto Político-Pedagógico da EMEF Campos Salles é
afetivo e qual é o impacto da afetividade no ambiente escolar, em especial, nas relações e
interações existentes entre professores, entre alunos e entre alunos e professores. Nosso
objetivo específico também é verificar, por meio de nossas observações, se as três professoras
que trabalham no salão são afetivas.
Passamos a um breve comentário sobre a intersecção dessas categorias e sua
caracterização. Na categoria afetividade com a subcategoria ambiência, adaptamos a
88
concepção walloniana ao ambiente escolar. Abordamos a questão dos conflitos, antes e após a
implementação do Projeto Político-Pedagógico. Destacamos as transformações ocorridas para
melhor, inclusive no tocante a sentimentos e emoções. Mostramos os obstáculos a serem
superados e as resistências, principalmente de docentes. Terminamos com o reflexo e
reverberações dessas transformações até os dias atuais.
Na categoria afetividade com a subcategoria espaço, colocamos este como uma
dimensão importante, geradora de conflitos, em grau de importância depois dos conflitos
gerados pela postura docente e pela postura do aluno. O espaço afeta qualquer ambiente,
inclusive o escolar. Na EMEF Campos Salles, o espaço tomou uma importância maior porque
as modificações foram consideráveis. A derrubada dos muros da escola, das paredes das salas
de aulas convencionais, para dar lugar ao surgimento dos salões, assim como a retirada das
maçanetas, representaram profundas alterações para o ambiente e na postura docente e do
aluno, inclusive do ponto de vista psicológico.
Na categoria afetividade com a subcategoria docência, nosso objetivo principal foi o
de relatar o que observamos a respeito do atual trabalho docente. São nossas observações no
salão, com foco nesse trabalho e na interação com os alunos do salão. Além dessas
observações, inserimos passagens das declarações dos entrevistados sobre esse trabalho.
Mostramos o modo como funciona o trabalho docente compartilhado e suas implicações com
as emoções e sentimentos. Na categoria afetividade com a subcategoria discência, mostramos
as interações dos alunos no salão e na Comissão Mediadora, a partir do trabalho docente.
como ser social desde o seu nascimento, mas, com certeza, ela é um membro da sociedade,
um ser primitivo orientado para ela.
Adaptamos o conceito de ambiência, em Wallon, para o ambiente escolar. O
ambiente escolar é fundamental para o desenvolvimento da criança, tanto o afetivo como o
cognitivo. Werebe e Nadel-Brulfert (1986) entendem que a criança precisa do meio escolar
para se desenvolver, pois ela não deve receber apenas a ação do meio familiar. O meio
familiar é uma oposição à criança e ela tem dificuldades para se libertar. Na escola, o meio é
mais rico e diversificado, oferecendo à criança a oportunidade de conviver com outras
crianças e com adultos. A ambiência, em Wallon, assume proporções consideráveis e
complexas. Não é nossa intenção tal aprofundamento. O fato de adaptarmos a ambiência para
o contexto escolar, possibilitou-nos uma visão mais ampla, no sentido de que, dentre suas
várias dimensões, poderíamos melhor enxergar os conflitos gerados e a manifestação de
emoções e sentimentos.
6.2.1.1 Conflitos
escolares não deve se restringir somente à seleção de seus temas, isto é, do conteúdo de
ensino, mas necessita atingir as várias dimensões que compõem o meio”. (GALVÃO, 2014, p.
101).
Podemos considerar os conflitos como uma das principais dimensões que afetam o
ambiente escolar e, consequentemente, a manifestação da afetividade. Galvão (2014) afirma
que existem algumas categorias de conflitos. A primeira é a oposição sistemática ao professor,
individualmente ou em grupo; a segunda diz respeito às dinâmicas dominadas por agitações e
impulsividade motora, em que professores e alunos perdem o controle da situação. Nossa
compreensão é a de que, nessas oposições e dinâmicas, podem ocorrer a manifestações de
emoções desagradáveis porque, de alguma maneira, todos são afetados. “Atividade
eminentemente social, a emoção nutre-se do efeito que causa no outro, isto é, as reações que
as emoções suscitam no ambiente funcionam como uma espécie de combustível para sua
manifestação”. (GALVÃO, 2014, p. 64).
A escola é reprodutora dos valores da sociedade. Geralmente, quando ela reproduz as
injustiças sociais, muito comum em escolas conteudístas, as crises e conflitos podem se
agravar. Dado que os professores são obrigados a despejar conteúdos e, os alunos, a obedecer
e fazer cópias intermináveis, o ambiente se torna muito desagradável e, por vezes,
insustentável. O professor que não quer ensinar, geralmente se fecha em sua disciplina e não
vivencia outro mundo senão o próprio. Gandin (1999, p. 35) afirma, a esse respeito, que: “[...]
cada um deles é um especialista de sua matéria e aos demais não cabe mais do que respeitar e,
por sua vez, ‘dar’ bem a sua matéria”.
Eis o retrato dessa situação na voz da coordenadora: “[...] antes deste projeto,
quando a escola era tradicional, a relação do estudante com o conteúdo era uma relação de
cópia, o estudante fazia cópias da lousa, cópias que nem sempre ele dava conta de fazer e, a
cada quarenta e cinco minutos, entrava outro professor, apagava tudo o que o estudante
estava copiando: ‘Não, agora é a minha aula!’ e tudo era desconectado [...]” (Amélia).
A partir desse contexto, adotamos um termômetro a fim de verificar a intensidade
dos conflitos nas relações e nas interações, bem como o impacto da afetividade, com especial
atenção à emoção e aos sentimentos. Trouxemos o pretérito da EMEF Campos Salles um
pouco mais perto de nós, para mostrarmos as transformações significativas ocorridas no
ambiente, a partir de 2005, data da implementação do novo Projeto Político-Pedagógico.
De modo geral, como era o ambiente escolar da EMEF Presidente Campos Salles
antes de seu Projeto Político-Pedagógico inovador? O ambiente era desagradável, repleto de
91
não é permitido sentir, não é permitido sentimentos, emoções, não é permitido divergir, não é
permitido escolher. Onde está o exercício de aprender a decidir? A tomar decisões?”.
(Amélia).
Os motivos que conduziram a EMEF Campos Salles a reestruturar seu Projeto
Político-Pedagógico estão também vinculados à participação da comunidade e da sua vivência
com a escola. O antigo isolamento cedeu lugar a uma união estável. Escola e comunidade
juntas: “[...] foi a própria vivência da comunidade junto à escola. A partir dessa união, surgiu
um PPP efetivamente verdadeiro, que realmente é colocado em prática, aonde a comunidade
e escola caminham juntas, aonde a comunidade vem para a escola falar das coisas que
acontecem lá e a escola vai à comunidade falar que precisa de uma ajuda com algum
estudante; enfim, existe uma ‘liga’[...]” (Luana).
Na visão de outra docente, o modelo de aula tinha que ser mudado, e aponta o
motivo da reestruturação. Ela entende o aluno como ser integral. Um ensino de Wallon: “[...]
se deu pelo fato de não acreditar mais que o modelo de aula dada, inclusive dada ainda em
outras escolas, pudesse sanar todo o processo educacional, ou seja, que é ver um indivíduo
não somente como uma pessoa ‘quadrada’, aonde abre sua caixa de pensamento e insere
conteúdos, mas que observa essa criança/adolescente integralmente” (Laura).
O então diretor pesquisou projetos pedagógicos alternativos e encontrou no projeto
da Escola da Ponte, em Portugal, sua maior inspiração para implementar um novo Projeto
Político-Pedagógico, com caráter democrático e inovador. Romão e Padilha (2012) se referem
à figura do diretor de escola como um educador, por conta de sua função pedagógica e social,
que lhe exige competências. Em sua gestão, deve articular os diferentes segmentos em torno
do Projeto Político-Pedagógico, em nome da organização da escola e de seu aspecto social.
Ele deve sempre ter uma liderança democrática e dividir as decisões com professores, com
alunos, pais de alunos e com todos da comunidade. A integração foi exatamente a busca do
então diretor da EMEF: “Essa integração que busquei desde o início com a comunidade foi
uma integração no sentido de que os problemas da comunidade são problemas da escola e
vice-versa”. (Braz).
Com o espírito de liderança ativado, o diretor, a coordenação e os professores da
época, isto é, de 2005, fizeram o novo projeto nascer: “[...] o diretor Braz e as coordenadoras
da época e professores que aqui estavam foram pesquisar projetos inovadores, pesquisaram
vários, mas aquele que fez sentido, para quem estava aqui, na época, foi a Escola da Ponte. A
Escola da Ponte inspirou esse novo projeto. Porque aquilo que acontecia aqui não era mais
94
significativo nem para educadores nem para estudantes: era um nada, era uma prisão ali,
onde cada grupo fica em uma cela, com aquela porta trancada e cada um que entrava...
Então, toda essa segmentação, toda essa... nada disso fazia sentido mais para todos que aqui
estavam, foi quando começou a nascer um novo projeto inspirado nos princípios da Escola
da Ponte.” (Amélia).
“[...] então a gente vê muitos estudantes, quando saem daqui e vão para o ensino
Médio, dizendo: ‘Ah, eu estou me sentindo em uma prisão, porque agora a gente fica em uma
sala de aula, com tudo fechado, com porta fechada’ [...]” (Amélia). A coordenadora se refere
a uma prisão, esta era a relação do estudante com outra escola. Colocamos a palavra em seu
sentido próprio e no figurado, e procedemos a uma adaptação aproximada dos significados.
No sentido próprio, nada fazia sentido porque, no Ensino Médio, os alunos e professores
viviam confinados nas salas, em uma prisão temporária, com as práticas pedagógicas
paralisadas; no sentido figurado, a prisão remete à ideia de tristeza e angústia provocada pelo
engessamento dessas práticas e pela divisão dos grupos. Primeiramente vem a tristeza,
posteriormente, a angústia. Um campo propício para o desenvolvimento de conflitos.
mídia, destruiria nosso projeto. A roupa que a menina vestiu era a que ela achou mais bonita
na casa dela.” (Braz).
Em contrapartida, o então diretor não se encontrava sozinho. Mesmo com a grande
coragem demonstrada, não conseguiria transformar a escola sem a ajuda de vários professores
que permaneceram na escola e contribuíram para que tudo ocorresse da melhor maneira
possível: “Há dez anos, os principais obstáculos para implementação do PPP na Campos
Salles, primeiramente se deu pelo fator do espaço físico, pois derrubar uma escola
municipalizada não é fácil. O diretor teve de dar um passo além daquilo que era permitido.
Se ele tivesse medo e não tivesse um amparo da equipe de professores que atuaram naquela
época e da comunidade, isso não seria possível. Outro obstáculo ocorreu com os professores
à época, pois muitos pediram remoção, porque muitos eram acostumados a serem donos de
um específico saber/especialização”. (Laura).
Gandin (1999) esclarece que a participação é uma grande questão do mundo atual e é
uma necessidade com a qual qualquer cidadão concorda, independentemente da tendência
política, da ideologia e das crenças dos envolvidos. Tal ato conduz a um pensamento claro na
direção da transformação da sociedade, menos individualista e mais grupal, com majoramento
da consciência pessoal e coletiva. Tal majoramento, no sentido da transformação do ambiente
escolar, tendo como principal instrumento o novo Projeto Político-Pedagógico implementado,
não ocorreu rapidamente. Tudo aconteceu gradativamente até a conformação atual. Implantar
a nova consciência coletiva requer muita paciência e dedicação: “[...] Não foi apenas pensar
em derrubar as paredes e no outro dia estava feito, foi a longos passos. Você está há anos
acostumado com aquela educação tradicional, com sua salinha de aula, onde o professor
acha que a sala é dele; portanto, foi muito difícil compreender que teríamos essa derrubada
das paredes, não entendíamos como ia ficar toda essa estrutura, assustava-nos [...]”.
(Gabriela).
“[...] Não houve muito obstáculo para a implementação do Projeto. Como a
comunidade faz parte da escola, todos perceberam a necessidade disso, despertou uma
consciência em todos”. (Paula). Não há unanimidade entre os professores entrevistados acerca
deste aspecto. Uma professora afirmou que não houve muitos obstáculos, contrariando as
evidências e o fato de que a simples implementação de um projeto não pode ser traduzida em
transformações imediatas, justamente em decorrência dos obstáculos. Desde o seu
nascimento, o projeto passa por constantes alterações e adaptações, e os entrevistados
apontam para vários tipos de obstáculos: “O principal obstáculo, para a implementação do
96
PPP vigente, foi a burocracia, pois não se podia derrubar as paredes sem a autorização da
Secretaria de Educação”. (Cibele).
Contrário à opinião da minoria dos docentes que afirmam não ter havido muitos
obstáculos, o posicionamento do ex-diretor é categórico ao afirmar que existiam muitos
obstáculos. Ele, inclusive, foi afetado pelo ambiente e por sentimentos desagradáveis, por
conta da situação reinante, mesmo logo após a implementação do projeto. É assim que relata
seu sofrimento: “[...] Depois de dois anos de sofrimento e de não dormir direito, pensava no
que podia fazer para dar certo. Cheguei à conclusão que tínhamos que tirar as paredes
quando o professor se sentisse seguro. Se tivesse tirado as paredes em 2005 poderia ter se
instalado o caos. Depois de dois anos, percebi que tinha que interferir, mas não sabia como.
Em uma noite, decidi chamar aqueles professores que vestiam a camisa, que gostavam de
gente, que tinham paixão, independente se o cara era tradicional, se era progressista.
Cheguei em 15 pessoas e falei que estava muito triste, que achava que a gente não tinha
caminhado em nada e que queria saber se eles bancariam se eu tirasse as paredes. Alguns
ficaram assustados, pois não sabiam o que iam fazer. Mas, depois de muita conversa,
aceitaram. Então, os alunos saíram de férias no final de 2007. Eles (alunos, pais e
professores) estavam cientes que, no retorno das férias, não encontrariam mais duas salas de
aula, mas quatro grandes salões. Aí começou o projeto de verdade [...]”. (Braz).
Até este ponto, abordamos os conflitos com suas dimensões principais, a partir de
nossa leitura. Acrescentamos a dimensão espacial, em um ambiente escolar, que deve ser
considerada em qualquer proposta pedagógica. O espaço, como uma dimensão que compõe o
meio, tem uma determinada importância na geração de alguns conflitos, a partir do momento
em que atinge as relações. Alunos e professores confinados em salas de aula, com a porta
fechada – e, muitas vezes, trancadas – podem ser afetados por emoções e sentimentos
98
veterinário. Acho que essa questão do espaço traz uma liberdade muito maior e a quebra de
certos fechamentos. A própria relação muda.” (Braz).
A queda das paredes também pode ser interpretada como a queda do ensino
tradicional. O ambiente escolar foi, com efeito, impactado e as transformações foram
efetivadas nos salões. Os alunos passaram a exercer a autonomia, a solidariedade e a
responsabilidade que lhes foram confiadas: “[...] há uma possibilidade de transformação do
ambiente e isso acontece em vários momentos durante o dia. Então, de repente, eles
empurram todas aquelas mesas e vão fazer ali uma roda de conversa, rodas de conversa
também acontecem diariamente, então eles mudam ali. De repente, eles resolvem fazer
determinada oficina e eles juntam mesas, duas mesas, duas mesas ou juntam cinco mesas com
cinco mesas, eles interferem na mobília conforme o que eles pretendem fazer e isso,
obviamente que as emoções estão todas, o tempo todo [...]” (Amélia).
Os conflitos, tendo como o pano de fundo o espaço, foram sendo gradativamente
superados. No começo da implementação do novo projeto, a configuração das salas foi
mantida, mas, aos poucos, os alunos foram preparados para as novas configurações. Ocorreu,
em dado momento, a derrubada das paredes: “A derrubada das paredes e a retirada das
maçanetas com a alteração de espaço que transformou as salas de aulas convencionais em
salões representou a queda do ensino tradicional. Foi inovador. Trouxe várias mudanças no
ambiente, psicológicas, na relação do aluno com o professor, na afetividade; essas foram as
principais mudanças.” (Paula).
A derrubada representou também o exercício da autonomia, com responsabilidade e
solidariedade. A solidariedade também chegou por meio da participação da comunidade nas
alterações que se fizeram necessárias no espaço: “[...] Tenho uma foto que estou batendo para
derrubar uma parede com a marreta e teve um momento de reflexão em que cada um falou.
Quando essa foto chegou no ‘Edmundo’, ele disse: ‘Autonomia é o seguinte. Vejam o Brás
com aquela marreta. Não é o braço do Brás que está ali. Aqueles braços representam
centenas e centenas de pessoas dessa comunidade, porque na hora de tirar parede, foi
discutido e conversado extenuadamente com muita gente, então, aquilo ali poderia ser meu
braço, ou do Genário, ou de qualquer um. Autonomia é isso’ [...].” (Braz).
Foi necessário romper barreiras psicológicas (paredes). Os professores foram
conduzidos a uma reflexão profunda sobre suas concepções educativas a fim de terem
condições de abraçar as novas práticas pedagógicas. “[...] A derrubada das paredes físicas e
das maçanetas não foi problemática, porque nos aproximou fisicamente, porém, o problema
100
maior foi romper as paredes internas de cada um. Tantos anos dando aula de um jeito; você
entra na sua sala, tranca sua porta e ali é só o seu mundo, seu universo (você e seus alunos)
e, de repente, você se vê no salão com quase 100 alunos e mais dois, três, quatro colegas de
trabalho. E agora? Como trabalhar isso? Prevalece o seu eu? Prevalece a sua metodologia?
Não, não dá pra ser assim, pois aqui não existe eu, e sim, nós; e esse nós é que foi difícil
desconstruir, foi difícil derrubar as paredes internas. Não tem como trabalhar na Campos
Salles pensando só em você, precisa se pensar na equipe. Então, em termos de afetividade, a
relação entre os alunos melhorou muitíssimo. Você aprende a respeitar as diferenças e as
pessoas começam a te enxergar diferente.” (Cristina).
A derrubada das paredes internas representou a transformação do docente enquanto
pessoa. Um professor com personalidade egóica dificilmente se enquadraria na nova
concepção de educação proposta pela escola; teria dificuldades para trabalhar em grupo, a
partir do momento em que o seu “eu” predomina e é revelado por meio de sua palavra e
postura. O Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1988) define o
significado da palavra egocêntrico: Adj. e s.m. Que ou aquele que refere tudo ao próprio eu,
tornado como o centro de todo o interesse; personalista”. Essa definição mostra que um
professor egocêntrico está mais voltado à sua especialidade e habituado a ser o centro do
universo.
Quando o docente percebe que tem que derrubar as paredes internas, ele pode
abraçar o projeto ou resistir e boicotá-lo. Pode também simplesmente pedir remoção: “[...] já
ouvi até professor dizer que precisou fazer terapia por conta do projeto. Porque não tem
como você transformar sua prática pedagógica, transformar suas concepções sobre
educação e tudo o que a envolve sem se transformar internamente [...].” (Amélia). “[...] Com
o passar do tempo você pode solicitar a transferência de escola, mas optei em continuar aqui,
porque com o desaparecimento das paredes, consegui me relacionar muito mais e bem
melhor com meus colegas. Com isso, tive, também, facilidade em ajudar colegas que não
conseguiam penetrar muito no problema do aluno, pois tinham certa reserva; conseguimos
fazer que uma colega de trabalho se aproximasse mais de seus alunos. O que me facilitou foi
isso - a derrubada de pensamento antiquado, que muitos tinham antes de iniciar o Projeto, e
eu já trabalhava de uma maneira mais livre; então, acabei me adaptando legal, de forma bem
fácil.” (Cibele).
E, para os estudantes, a derrubada das paredes internas significou a possibilidade de
terem voz. A voz está no contexto do protagonismo. Anteriormente, o aluno não tinha voz e
101
não era ouvido: “Para os estudantes, o que representou a derrubada das paredes foi a voz.
Antes eles não tinham voz, só eram um número que estava ali para receber conhecimento.
Hoje, além de terem voz, buscam seu próprio caminho [...]”. (Cibele).
Por fim, mostramos, de forma resumida, o impacto da afetividade em relação ao
espaço – a partir da importância da derrubada dos muros da escola e das paredes das salas de
aula, além da retirada das maçanetas – para os docentes e equipe técnica que abraçaram o
projeto. Em relação ao espaço, quando os muros caíram, a escola pôde ser visualizada, sem
barreiras. O significado psicológico foi o convite a todos, principalmente da comunidade, a
participar do projeto da nova escola, a destruir as barreiras que existiam, a fim de que
houvesse uma grande participação coletiva. Quando as paredes das salas de aula foram
destruídas, o espaço aumentou, de modo que foi possível fazer outras configurações do
mobiliário, para possibilitar a implementação da nova metodologia de ensino. Na percepção
psicológica, essa destruição representou, aos professores da escola, o abandono do próprio
“eu” para se engajar em um trabalho compartilhado, coletivo e solidário, liberto das
disciplinas. Os alunos se tornaram protagonistas, e todo protagonista tem voz.
Na EMEF Campos Salles, a relação do aluno com esse professor da então escola
tradicional era de subserviência. Era um saber tecido a partir do mestre; era uma escola
conteudista que não permitia ao aluno uma única reflexão, apenas a reprodução daquilo que
via e ouvia. “ [...] e tudo era desconectado. Então, essa era a relação. Ele tinha que
responder perguntas sobre... era uma relação onde o professor reproduzia informações para
que o estudante reproduzisse conhecimentos.” (Amélia).
O projeto implementado possibilitou à escola agir na contramão desse contexto e, por
conseguinte, alterar radicalmente o que se entende por transmissão de saber. O docente
vivenciou – em sua relação com os demais professores, com os alunos e com o saber –
alterações significativas para melhor, convertidas em afetividade agradável. Esse novo
ambiente apareceu em nossas observações e também pode ser ratificado pelas professoras
entrevistadas: “[...] O sucesso do nosso Projeto é o trabalho em equipe e o insucesso do nosso
Projeto é também o trabalho não em equipe”. (Luana). Não podemos afirmar que o espírito
de grupo esteja presente em todos os docentes, mas no trabalho docente observado, relativo ao
grupo de professoras do salão, existe, com efeito, uma grande afinidade e respeito, que
contribui para um trabalho compartilhado e solidário, portanto, de manifestação de
sentimentos e emoções agradáveis.
Os professores trocaram o trabalho solitário, muito comum nas escolas tradicionais,
pelo trabalho solidário. “[...] Estamos saindo daquela docência solitária, para uma docência
mais solidária e percebemos isso, muitas vezes, nos primeiros anos quando o professor de
alfabetização ajuda os alunos com dificuldade. Outro impacto que se vê é quando você vai às
escolas e observa o desespero por causa da falta de professor. Na Campos Salles, quando o
professor precisa faltar, ele negocia com os colegas. Se o cara começa a faltar demais, passa
ser problema [...].” (Braz).
Em várias ocasiões, as crianças procuravam os docentes para fazer perguntas,
principalmente quando desejavam autorização para realizar algo que não estava vinculado ao
estudo nas mesas. É comum fazerem a mesma pergunta a todos os docentes até encontrarem a
resposta que desejam. No entanto, os docentes observados falam sempre o mesmo idioma.
Antes de responderem a uma pergunta da criança, procuram tomar conhecimento se ela já
havia feito a mesma pergunta a outro professor. Isso acontece porque, quando um deles
verbaliza com um não a uma criança, a resposta é definitiva. Os demais professores respeitam
a decisão e, assim, não fornecem outra resposta; é um bom exemplo de solidariedade.
103
Outro detalhe importante diz respeito ao planejamento que a criança tem que fazer,
em nome do grupo: “[...] Temos um dispositivo pedagógico que se chama agenda. Todos os
dias os estudantes chegam, sentam e fazem a agenda do dia. O estudante escreve que página
irá usar e que material vai precisar. Um professor passa para verificar quais os materiais
que o estudante elegeu, e os providencia. Assim, nesse momento, o estudante precisa ter
responsabilidade; se ele não fizer o planejamento, não poderemos conferir a ele o material.
Se ele não fizer o planejamento solicitando livros, não podemos conferir a ele tais livros. O
estudante tem que ter responsabilidade e ter em mente que possui uma meta para o grupo,
que não é imposta pelo professor, é escolhida pelo grupo [...]” (Laura).
As três docentes do salão se reúnem no horário de almoço para elaborar os roteiros
integrados e os temáticos. Toda elaboração obedece à legislação vigente, à Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) e às orientações da Diretoria Municipal de Educação –
(DRE/Ipiranga). Os roteiros são utilizados pelos alunos no salão e são seguidos diariamente.
“[...] Todos os professores em conjunto, independentemente da sua especialização, sentam,
conversam e elaboram um roteiro totalmente integrado, onde todas as áreas de conhecimento
se conversam e contemplam os direitos de aprendizagens. Desse modo, esse roteiro passa a
ser tão integrado que não há separação de disciplinas por matérias, pois todo o assunto
engloba tudo [...].” (Laura).
Os assuntos dos primeiros roteiros integrados são escolhidos por meio de voto, na
reunião da Assembleia de Estudantes. Eles escolhem os assuntos que desejam estudar, tais
como super-heróis, lendas urbanas, cinema e outros. Os docentes montam os roteiros a partir
dos temas escolhidos e os encaixam na interdisciplinaridade. Nos roteiros temáticos, os
assuntos são oferecidos pelos docentes e são de relevância social, como o tema “furacão”, em
que foram estudados o seu impacto social e econômico.
Os docentes observados utilizam a ferramenta Google Drive para organizar seus
trabalhos. Existe uma pasta socializada para todos que quiserem visualizar esses trabalhos.
Um salão pode usar o trabalho do outro. Como exemplo, houve uma situação em que a escola
recebeu uma certa quantia para aquisição de bens duráveis, sendo que foi realizada uma
compra de uma mesa de tênis e uma de pebolim. A partir da aquisição, alunos do 8º ano
construíram um tema sobre finanças públicas. Posteriormente, esses docentes adaptaram o
tema para os alunos do 5º ano.
Há, portanto, um diário eletrônico fornecido pela Prefeitura Municipal de São Paulo
para acesso mediante senha. Quando o roteiro está pronto, o docente coloca uma sigla “vc”,
104
para que a coordenadora visualize. Ela é quem autoriza os roteiros para as práticas
pedagógicas destinadas. Os roteiros têm imagens para chamar a atenção, bem como questões
para proporcionar reflexões. Os alunos seguem os roteiros nos salões: “[...] Há grupos que já
estão em seu 12º roteiro, e há grupos que estão no 7º, no 8º, no 9º ou no 10º. Às vezes tem
aluno do 7º roteiro, por exemplo, que solicita o 10º roteiro que sane suas dúvidas. Existem os
roteiros temáticos que são temas específicos, onde os alunos saem do salão o tempo todo e se
dividem em pequenos grupos [...]” (Cristina).
Quais foram as observações, no salão, relativas à organização dos grupos de alunos
realizada pelos professores? Do fundo do salão até a sua frente existem três fileiras paralelas.
As fileiras são compostas por cerca de oito mesas de estudo e cada mesa têm quatro cadeiras.
Chamam-nas de “Estação Tecnológica de Trabalho”; há as três mesas extras que ficam ao
fundo, com os respectivos laptops. Cerca de trinta alunos sentam-se nas cadeiras de cada
fileira. São quatro alunos por mesa, sendo estes considerados uma equipe; no total, são
aproximadamente, noventa alunos no salão. Cada fileira de mesas e cadeiras, com os alunos,
tem um nome. A fileira que fica do lado da entrada da sala é denominada “responsabilidade”;
a fileira do centro, “solidariedade”; e a do lado das janelas, “autonomia”.
Inicialmente, os professores permitem que os alunos escolham em qual fileira e mesa
desejam sentar. O critério é pessoal, predominando o da afetividade. Com o passar do tempo
e, de acordo com as observações que os professores fazem sobre o desempenho dos alunos,
algumas alterações nessas disposições são realizadas. Trocam os alunos de lugares, de acordo
com o ritmo, desempenho e a competência de cada um. Desempenho e competência estão
sempre relacionados aos princípios da escola: responsabilidade, solidariedade e autonomia.
Os professores também interferem quando há o rompimento da relação entre os alunos, no
caso de agressividades e de discordâncias. No entanto, existe sempre um enorme cuidado para
não isolar qualquer aluno e para não rotular certos grupos como sendo mais fracos.
Cada professor é responsável por uma fileira. A programação de estudo do dia fica
escrita na lousa. A depender do dia, os alunos estudam os roteiros integrados ou os temáticos.
Os temáticos são aplicados apenas uma vez por semana. Os docentes passam nas mesas e
fazem as mediações e as correções necessárias, contudo, não fornecem as respostas aos
alunos, que são compelidos a refletir constantemente sobre o assunto que estão estudando.
Para que os alunos da mesa progridam de um roteiro para outro, é necessário que os
professores do salão verifiquem se os objetivos foram atingidos. Em caso positivo, deixam um
105
visto no roteiro considerado concluído e fornecem o aval para o início dos estudos do próximo
roteiro.
Assim é o trabalho docente na EMEF Campos Salles, na visão do ex-diretor: “[...] O
bom professor da Campos Salles é aquele que oferece recursos para que o aluno construa
seu próprio caminho de aprendizagem. O aluno está trabalhando Matemática. Tem lá um
exercício que ele não consegue resolver. Os mais espertos que têm celular e internet podem
olhar no Google. Se resolveu entre eles, resolveu. Supondo que não se resolveu, levanta-se a
mão. O exercício é de matemática, mas o professor é de história. Ele não tem que saber
matemática para explicar, mas tem que saber que, na página tal do livro, tem um exercício
modelo e, se o aluno ler e procurar entender, conseguem sozinhos resolver o problema. Se
não resolver, novamente levanta a mão. Aí o professor pergunta: ‘vocês já olharam no
Google?’. Se não fizeram isso, o professor solicita que o aluno anote e vá olhar no Google.
Então, é dar recursos. É o aluno fazer o seu próprio caminho naturalmente [...]” (Braz).
E qual é a meta para que os alunos possam progredir em relação aos roteiros? A
equipe de alunos tem que avançar como um todo. Um ajuda o outro para que todos cheguem
juntos ao mesmo destino. No caso de os alunos extrapolarem os objetivos, especificamente
quando a apropriação dos conceitos ultrapassar os conteúdos dos roteiros, os professores
podem encaminhá-los à “Estação Tecnológica de Trabalho”, para que realizem pesquisas
mais aprofundadas acerca do tema ou de suas ramificações. Existe também um espaço no
roteiro destinado à autoavaliação de desempenho, no qual eles são obrigados a escrever ao
final dos trabalhos. Essa autoavaliação não conta como avaliação, apenas fica registrada no
roteiro. Os alunos podem levar os roteiros integrados para casa, mas os roteiros temáticos são
arquivados no portfólio que cada aluno tem.
Nas oficinas, para armazenagem de textos e atividades produzidas pelos alunos, cada
um tem o seu portfólio. O objetivo das oficinas é aprofundar aquilo que está sendo estudado e
trazer mais confiança em relação aos conteúdos. Há um revezamento da saída dos alunos do
salão para as salas de oficinas. Geralmente, a fileira da responsabilidade sai primeiro, depois
ela volta e quem sai é a fileira da solidariedade e, assim, após o seu retorno, é a saída da fileira
da autonomia. O salão permanece sempre com apenas duas fileiras e os respectivos docentes,
além de estagiários. Tudo acontece na direção do trabalho em equipe, ou compartilhado, entre
os docentes e na relação com os alunos: “[...] estou falando de duas coisas importantes no
projeto que facilitaram as transformações e que minimizaram as reações emocionais, duas
coisas importantíssimas: o trabalho em equipe, essa desconstrução e construção em equipe; e
106
dos gestores não enfraquece nem anula a autonomia de professores e alunos. O respeito ao
outro e às relações estabelecidas é parte integrante do processo decisório: “O respeito que a
gente vê, para lidar com a questão das relações... existe um respeito. ” (Daniela).
Decisões emocionais também podem ser encontradas em ambientes democráticos, no
entanto, a coordenadora alega que utiliza a paixão para dominar a emoção: “[...] se você me
perguntar se, no exercício da minha função, eu tomei alguma decisão emocional, no sentido
de que minhas emoções encobriram minha lucidez e os meus sentimentos? Felizmente, não,
não! Porque eu procuro me colocar inteira em todas as situações e tomar consciência da
minha inteireza, da minha dignidade, da minha integridade, de estar inteira. Se estou inteira,
eu me permito um exercício de me perceber nas minhas emoções, que aquilo me gerou, nos
meus sentimentos e na minha lucidez.” (Amélia).
Por derradeiro, o trabalho exercido pelas professoras do salão foi ratificado pelas
declarações dos entrevistados. Todos eles acreditam no protagonismo dos estudantes e se
envolvem profundamente com a força do trabalho em grupo. Verificamos que alguns docentes
mostram essas preocupações em seus relatos: “[...] Para lecionar na Campos Salles não se
pode ser um professor que apenas trabalha na educação, mas que viva-a, que acredite em
uma educação de qualidade; tem que acreditar que, mesmo que a semeadura não tenha sido
fácil, a colheita será [...]” (Laura). “[...] Percebo que o trabalho docente em outras escolas é
isolado. O professor se sente muito sozinho quando ele fecha sua sala de aula e ali começa
somente o trabalho dele, um trabalho solitário. É ele e os alunos e, às vezes, está muito
distante da coordenação [...]” (Laura). “[...] O que se destaca nesse trabalho é o
protagonismo dos estudantes. Também, existe trabalho em grupo com os professores [...]”
(Paula).
Nossas observações mostraram que as três professoras são afetivas. Sendo afetivas, o
trabalho não é solitário, mas compartilhado e marcado pela solidariedade. Trabalham em
conjunto de forma harmônica. A harmonia se estende à relação com os gestores e com
professores de outros salões. É indiscutível a responsabilidade e a autonomia na execução do
trabalho de preparação dos roteiros integrados e os temáticos, bem como na condução de
todas as práticas pedagógicas. Destacamos o exercício da cidadania, o vínculo afetivo com os
alunos nas interações, a capacidade de empatia, a amizade estabelecida e algo fortemente
relacionado a sentimentos e emoções: a valorização da dignidade da pessoa humana.
O professor ensina e aprende com o aluno. Uma professora explica esse tipo de
aprendizagem: “Há um livro que eu gosto muito intitulado ‘O mestre ignorante’ (ele é
108
indicado aos professores que ingressam na EMEF Campos Salles). Nesse livro, o mestre não é
apenas um explicador, mas sim, um mestre libertador, que está a todo o momento ali
esperando, observando, educando, fazendo perguntas que motivam os estudantes a
descobrirem as respostas; então o mestre aqui dentro exerce a cidadania no momento que
você está andando no salão, preocupando-se com os estudantes, fazendo perguntas que os
levam a caminhos que conduzam à resposta [...]” (Laura).
Na prática, como as docentes são afetivas entre si e estendem o comportamento
afetivo aos alunos, a relação aparece baseada, em especial, no respeito ao discente e à sua
história de vida, no acompanhamento de sua caminhada e na tutoria da Comissão Mediadora.
Como as docentes permanecem ao lado do aluno e lhe oferecem sua amizade, são capazes de
ouvi-lo e sentir seus problemas emocionais. Muitos desses problemas emocionais
identificados nos alunos são encaminhados a outros alunos, que compõem a Comissão
Mediadora.
Reverbera no ambiente uma troca afetiva muito forte, no trabalho docente
compartilhado e nas interações com os alunos, principalmente as que se dão no salão. Esse
trabalho compartilhado assim aparece nas entrevistas das professoras: “[...] Essa docência
compartilhada é que faz com que o professor não fique à frente como um pedestal, dono do
saber, mas que ele caminhe pelo salão, sente com o estudante, e deixar, por vezes, um pouco
de lado aquilo que está dito no roteiro para atender as necessidades do aluno, necessidades
estas que nem sempre são cognitivas, mas que permeiam um campo afetivo [...].” (Laura).
“[...] nasceu um sentimento de pertencimento, de equipe; pois ao olhar para o lado você vê o
seu colega/professor, ou seja, essa docência compartilhada. Quando um estudante está tendo
dificuldades, o problema não fica somente para um professor resolver, mas sim, todos os
professores, o pessoal da gestão, da equipe futura, da equipe que passou - todo mundo
abraça a causa [...]”. (Cibele).
As práticas pedagógicas são humanizadas e atreladas ao cotidiano da escola, que é
também o reflexo da vivência dos alunos no seio familiar. Portanto, as docentes observadas
durante o trabalho demonstraram ser, além de humanistas, educadoras-cidadãs, por três
motivos principais, quais sejam: primeiro, não rotulam os alunos, especialmente com
características que eles não têm; segundo, porque buscam educar para que eles consigam
desenvolver a capacidade de refletir e modificar a própria vida; e terceiro, não são egóicas,
porque deixam de lado o próprio “eu” e desenvolvem um trabalho compartilhado, apartado
das disciplinas, de forma responsável, solidária e autônoma. Por conta desse trabalho, os
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alunos não somente são inseridos no contexto da educação na cidadania, mas podem usufruir
de uma relação afetiva agradável, que propicia a manifestação de emoções e sentimentos
igualmente agradáveis, gerando prazer, no salão, nas reuniões da Comissão Mediadora e em
todo ambiente escolar. A progressão dos alunos, em relação aos roteiros integrados, mostrou-
se significativa no salão, principalmente em razão das interações com as docentes, que fazem
constantes intervenções, nas mesas, ao mesmo tempo em que se preocupam com os aspectos
emocionais e sentimentais. Na medida em que os sentimentos e emoções dos alunos são
considerados, em nossa percepção, temos uma grande conquista afetiva, que pode reverberar
significativamente no cognitivo.
Concluimos nossa discussão sobre a docência, afirmando que, de modo algum essas
docentes se prendem às cartilhas. Não enxergam o trabalho como terminável, pois procuram
implementar constantes inovações e acompanhar as mudanças da sociedade para
contextualizar seus alunos. Uma postura contrária a de vários docentes, que verificamos na
consideração de Mrech (2005, p. 29).
O ofício de educar, ao contrário do que pretendem muitos professores, não
termina nunca e está em constante reformulação. Por esse motivo. Ele não
apresenta diretrizes, regras fixas e “cartilhas” ou guias de ação. A Educação
é um constante processo de vir a ser. Algo da ordem do tosco, do
incompleto.
cadeiras, ao lado umas das outras. Aqui você tem uma parte destinada para assuntos sociais,
assim, você consegue exercer a sua cidadania aqui dentro e lá fora”. (Laura).
Os alunos sentados à mesa iniciam o dia escolar a partir da orientação dos docentes do
salão: “[...] Nós, professores, escrevemos na lousa a rotina do dia para elas se programarem.
Enquanto fazemos isso, eles conversam entre si. Acabando isso, automaticamente, ou seja, a
solidariedade se vê no momento em que um ou mais se mobilizam em ajudar um amigo que
está encontrando dificuldades em resolver um exercício, desse modo, pedem a ajuda do
professor” (Luana). Eles conversam muito e a impressão que alguém pode ter, ao visualizar
essa agitação, é que se trata de uma bagunça generalizada. Não é uma bagunça, apenas as
crianças não precisam ficar quietas como se fossem múmias, para que os professores
despejem conteúdos. Não é assim que acontece. A ideia de imobilidade para poder aprender
não prospera nesse ambiente de autonomia. “[...] Tratando-se da autonomia, por exemplo,
imagina cem crianças entrando no salão. Chegam pela manhã, entram, cada um vai para o
seu lugar sem precisarmos ficar falando; sentam, conversam um pouco, claro! [...]” (Luana).
A autonomia dos alunos não deve operar sozinha. É necessário que a solidariedade e
a responsabilidade sigam juntas. A autonomia exercida isoladamente, ou seja, sem os demais
princípios, pode redundar em conflitos ou no baixo rendimento escolar. As professoras
entrevistadas destacam o aparecimento constante e rotineiro desses princípios: “Na Campos
Salles, a autonomia, a responsabilidade e a solidariedade conferida aos alunos aparecem o
tempo todo. Se o estudante não tem autonomia, como vai responder a um roteiro integrado
que acabei de colocar na pergunta anterior como resposta? Ele precisa de autonomia para
sentar, ler o texto e fazer. Ele precisa ter responsabilidade para trazer o roteiro todos os
dias, pois eles (os roteiros) não ficam na escola, vão embora com os alunos [...].” (Laura).
“[...] autonomamente, elas pegam seus cadernos, montam seus roteiros e programam o que
irão fazer, o que vão estudar, e é aí que entra a questão da responsabilidade: quando elas
decidem o que irão estudar no dia. Às vezes acontece de dois alunos escolherem o livro de
matemática e outros o livro de ciências, por exemplo; mas, geralmente, eles estão fazendo a
mesma coisa [...]” (Luana).
A solidariedade e a responsabilidade se manifestam nas mesas do salão. Contudo, a
ausência de responsabilidade também se manifesta em alguns alunos. Sentamos à mesa, que
se localizava na fileira da solidariedade, com duas alunas e um aluno. Estavam estudando a
gramática da Língua Portuguesa. Em dado momento, uma das meninas expulsou o menino da
mesa. A alegação era de que ele queria apenas brincar e estava tirando a concentração dela e
112
da outra menina. Além disso, ela ajudava a outra garota a entender e a corrigir os exercícios,
numa nítida demonstração de solidariedade. A atitude de retirar o menino da fileira da
solidariedade e mandá-lo para a fileira da autonomia foi também solidária. Ela “protegeu” a
amiga de um comportamento inadequado do menino, do ponto de vista pedagógico, ao
mesmo tempo em que procurou que ele fizesse uma reflexão sobre o próprio desempenho. Ela
também poderia convocar a Comissão Mediadora para ouvir o aluno, caso entendesse
necessário. Assim, ela demonstrou responsabilidade e solidariedade
De fato, qualquer aluno poderia levantar a mão quando estivesse em dificuldades,
fato que realmente aconteceu algumas vezes. Os professores passavam pelas mesas para
acompanhá-los, no entanto, não forneciam as respostas. Estimulavam constantemente a
pesquisa e a reflexão. Todavia, se algum aluno extrapolar no exercício de sua autonomia,
faltar com a responsabilidade e a solidariedade, poderá ser convocado pela Comissão
Mediadora para se justificar. “[...] Há, também, a solidariedade em procurar o professor para
auxiliá-los. Isso acontece a todo momento. Acontece na hora da comissão mediadora, aonde
eles precisam descer para conversar com o estudante que não está tendo um comportamento
legal no salão. Muitos ainda precisam entender tais princípios, mas a grande maioria já os
compreende e isso é fantástico! [...]” (Luana). “[...] quando, por exemplo, há um estudante
que está dando trabalho, a própria comissão, que é formada pelos estudantes, chama esse
aluno com problema para uma conversa, ou seja, a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade partem totalmente deles. Os três princípios estão envolvidos em todo nosso
cotidiano, isto é, a busca pelo protagonismo do estudante [...]” (Paula).
Também contribui para a educação na cidadania o trabalho docente, na medida em
que são levados para o salão os temas que reverberam na sociedade, por meio dos já
explicitados roteiros temáticos. “[...] Aconteceu algo evidente no jornal que está muito
latente, então, nós trazemos para a sala de aula. O mesmo acontece com os estudantes;
quando algo acontece na comunidade, eles trazem para a sala de aula. As práticas
pedagógicas relacionadas com essa educação na cidadania é esse exercer dos princípios;
não é um exercer enquanto se estuda aqui, mas um exercer para a vida. Ouvimos dizer uma
frase muito comum: ‘Para além dos muros da escola’ [...]” (Laura).
Os temas estão relacionados à realidade do aluno, àquilo que ele vivencia. Seu
histórico de vida é respeitado: “As práticas pedagógicas relacionadas com a educação na
cidadania são praticadas por meio da proximidade da realidade dos estudantes. Nós temos o
que chamamos de roteiros temáticos, os quais são específicos e relacionados ao que está
113
acontecendo no mundo; como, por exemplo, dias atrás tivemos um roteiro falando sobre o
consumismo, o exagero de consumo; apesar de serem da periferia, percebemos que eles
preferem ficar sem uma alimentação saudável para ter um tênis da moda ou deixam de pagar
uma conta para comprar um celular de dois ou três mil reais. Um salário que o pai tem para
fazer mil coisas, ele compra um celular porque ‘todo’ mundo tem. Então, trabalhamos muito
isso com eles, diretamente [...]”. (Luana).
Algo de destaque em relação aos alunos, nesse tipo de educação, é o seu
protagonismo. A própria atividade dos alunos no salão é um exemplo. Há também o
cumprimento e o respeito aos princípios da escola durante os estudos dos roteiros integrados:
“Exemplo, um grupo de estudantes pega o roteiro 6, eles conversarão entre si sobre o tema e,
em seguida, chamarão o educador no qual este perguntará se o grupo já decidiu a meta; se
sim, será colocada uma data para a entrega. Portanto, este grupo deverá ter
responsabilidade, porque na data da entrega, o educador perguntará se cumpriram com a
meta, como foi e o que acharam. ‘Então, vamos entregar dia 22’. Nisso se vê como a
solidariedade está muito ligada entre eles. Os três princípios fazem parte da relação entre
eles [...]” (Laura).
Pensar e colocar em prática a educação na cidadania é valorizar uma educação
integral e acreditar em um ser humano transformado e transformador: “[...] Ao final dos
roteiros há perguntas para os estudantes que os levam para a reflexão da sociedade como um
todo. Quando pensamos nessa educação integral, estamos sempre fazendo intervenções com
a prática, com a sociedade. Na minha prática, não consigo falar em educação sem pensar na
cidadania. Assim, essa educação imbricada com a cidadania se refere aos seres humanos que
querem e vão agir para transformar o seu meio, o seu bairro, a cidade, o seu mundo. Então,
nós professores estamos a todo o momento trabalhando para fazer intervenções no meio
social que habitamos. Queremos que os estudantes venham aqui, pratiquem sua cidadania.
Aqui, vemos a cidadania pelo voto consciente nas eleições a vereadores e prefeito,
intermediado pela Comissão Mediadora. Nossa escola é democrática! [...]” (Laura).
Portanto, a educação na cidadania encontra-se presente no ambiente escolar, por
meio de suas práticas pedagógicas. Além dos aspectos que expomos em relação ao que
acontece no salão, temos como complemento a ação da Comissão Mediadora. Além de
constarem em nossas observações, essas práticas foram reveladas pelos entrevistados.
Referimo-nos à Comissão Mediadora. Acrescentamos esse trecho de entrevista para esclarecer
a importância das Comissões no âmbito da educação na cidadania: “[...] Qualquer problema
114
que existe no salão é discutido em uma assembleia com os estudantes. Dentro do salão, tem
uma comissão de estudantes que ajuda a conversar com o aluno que apresenta algum tipo de
problema. É essa comissão mediadora que ajuda e representa o salão. A maior demonstração
desses três princípios é na comissão mediadora e na assembleia. Aqui, o professor não
chama o pai do aluno para reclamar; se está havendo algum problema com o estudante,
quem tem de mudar é o estudante, o pai e a mãe não vão conseguir fazê-lo mudar. Então,
trazemos os casos para essas comissões mediadoras e, pela participação dela, vê-se a
responsabilidade, a autonomia e a solidariedade [...]”. (Cibele).
Como funciona a Comissão Mediadora do salão? Cerca de dez alunos a compõem.
Esses alunos eleitos têm um mandato de um ano para o exercício de suas funções; são
responsáveis em identificar problemas nas relações entre alunos e entre alunos e professores.
Podem convocar qualquer aluno para comparecer diante da Comissão, o que também se dá em
relação ao docente, que pode ser convocado para dar explicações sobre sua conduta,
principalmente quando um aluno é desrespeitado ou desacatado por ele, ou ainda, é alvo de
preconceito. “[...] Em 2008, surgiu uma comissão mediadora de alunos em cada um desses
salões. E qual é a principal função dessa comissão? É cuidar das relações e da convivência
entre o aluno e o professor. Quando um aluno é desacatado por um professor e se sente
ofendido, ele conversa com a comissão sobre o fato. Quando os alunos percebem, por
exemplo, que há um preconceito por parte do professor, o professor é chamado e o caso é
discutido e conversado”. (Braz).
Participamos como observadores de uma convocação da Comissão Mediadora.
Estava presente na sala de reuniões a tutora, que é uma das professoras responsáveis pelo
salão, o aluno acusado, o aluno vítima e os alunos integrantes da Comissão. A acusação era de
agressão física e importunação contra um colega de salão. Este tipo de acusação, que diz
respeito ao comportamento desagradável do aluno é muito comum na escola, mas as
Comissões reagem: “teve uma reação dos alunos da comissão e com consentimentos dos
outros que também queriam uma organização dentro do salão, fizeram uma devassa.
Ficaram uns 3-4 dias explicando aos adolescentes do penúltimo e último ano que queriam
estudar e que o comportamento deles não estava correto, que não era favorável. Disseram
que eles estavam irritando professores. Então, é lógico que isso traz impactos emocionais.
[...]” (Braz).
Nessa reunião, após a verbalização do docente sobre os atos praticados, o aluno
acusado, sentado em uma posição específica, visivelmente constrangido, balbuciou algumas
115
palavras. Os alunos presentes na sala, todos sentados ao redor da grande mesa, iniciaram
aquilo que chamam de “roda da verdade”. A “roda da verdade” é o momento em que cada
aluno, com efeito, faz perguntas ao aluno acusado de agressão, além de emitir a opinião
pessoal sobre o ocorrido; as perguntas não foram respondidas. O aluno começou a chorar
discretamente. A professora também fez perguntas. Logo após, os alunos passaram a
verbalizar a opinião pessoal sobre o assunto. Todos condenaram o ato praticado. Foi decidido
que o aluno acusado tinha duas opções: pedir desculpas imediatamente ao colega agredido ou
a Comissão convocaria os pais dele para expor o acontecido. O aluno vítima compareceu na
sala e foi abraçado pelo aluno agressor, com um pedido de desculpas.
Não é fácil enfrentar a Comissão Mediadora. Os alunos são inflexíveis no
cumprimento dos princípios da escola. “[...] E, hoje, às vezes, o pessoal fica mais preocupado
com uma conversa com o pessoal da comissão de alunos do que uma conversa com um
professor. Quando os pais são chamados por essa comissão de alunos, às vezes, saem mais
intimados do que uma briga com um diretor de escola. Então, hoje o aluno tem um poder
muito grande no sentido de exercer autocontrole lá dentro.” (Braz).
A Comissão também tem outra face, profundamente afetiva. Ela pode se reunir para
conversar com alunos que estão com problemas emocionais. Os alunos da Comissão avaliam
e emitem suas opiniões pessoais, que podem ser consideradas como conselhos. “[...] Há uma
questão de solidariedade tão forte, tão forte, já vi estudantes aqui, em uma comissão
mediadora, chorando de emoção, sensibilizados com a questão de um estudante, quando ele
se abriu e confessou a eles o que ele estava vivendo na casa dele e que ele, sem consciência,
acabava projetando aqui e foi tomando consciência e a comissão ajudando, quando eu passei
por aqui estavam todos chorando: ele e todos que estavam presentes. Aquilo foi um momento
de uma comoção geral e que tornou aquele grupo tão unido em torno de ser solidário e
ajudar aquele estudante, de uma forma que eu nunca tinha visto [...]” (Braz).
A educação na cidadania da EMEF Campos Salles mostrou ser uma conquista em
termos educativos. O objetivo é o de preparar o aluno para a sociedade e educá-lo, por meio
da vivência, para exercer seus direitos de cidadão. Essa vivência cidadã aparece em nossas
observações, nas interações no salão e nas ações da Comissão Mediadora, além de ser,
constantemente, confirmada pelos entrevistados. A vivência nas práticas pedagógicas é
atualmente viável, na medida em que outrora, o ambiente escolar de desafeto, ao ser
impactado por manifestações de emoções e sentimentos agradáveis, decorrentes de um
Projeto Político-Pedagógico, democrático e inovador, cedeu espaço para um ambiente
116
transformado e afetivo. Esse impacto favoreceu a mudança de postura dos alunos, que
passaram a sentir desejo de estudar e aprender. Além disso, suas relações foram marcadas
pelo valor da amizade, do respeito mútuo e pelo humanismo.
Almeida (2011) nos esclarece que a escola pensada por Wallon está preocupada com
a socialização dos alunos, em incutir valores e modelar comportamentos. Ele oferece algumas
pistas ao professor. O clima emocional na sala de aula pode, efetivamente, prejudicar ou
favorecer a aprendizagem. Em um clima conturbado pelas emoções, as energias gastas
deixam de ser aproveitadas para a aprendizagem. O que se ganha com a afetividade repercute
no cognitivo e vice-versa. O ambiente é afetado porque a emoção é contagiosa. Portanto,
entendemos que os sentimentos e emoções dos alunos devem ser considerados, se desejamos
uma escola que acolha afetividade e cognição.
Percebemos um aluno protagonista, um ser forte, capaz de se organizar individual e
coletivamente, e de construir o conhecimento próprio. Um sujeito de direitos, completamente
engajado. Seu protagonismo não se separa da responsabilidade, da solidariedade e da
autonomia, princípios que lhe são confiados. Um aluno que caminha, com voz, com o docente
ao seu lado, a fim de ajudá-lo durante o percurso. Por sua vez, a EMEF Campos Salles,
cidadã, acredita em seu protagonismo e considera suas emoções e sentimentos. O maior
exemplo é a possibilidade de o aluno, com problemas emocionais, gerados na convivência
familiar ou na escola, sentir o desejo de desabafar. Nesse caso, ele pode contar com a
solidariedade da Comissão Mediadora, que o ajudará a superar o momento difícil. Nossa
pesquisa mostrou, a partir do trabalho docente, um perfil de aluno afetivo e encaixado nos
ensinamentos de Wallon, na medida em que é compreendido como uma pessoa completa,
integrada e contextualizada.
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa primeira preocupação diz respeito à apresentação de nossos desejos, que nos
impulsionaram até a presente pesquisa. O primeiro, o de ingressar no curso de mestrado, na
linha de pesquisa da Educação, Linguagem e Psicologia, do Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. A fim de estruturar nosso projeto de
pesquisa, buscamos um tema afinado com nossa vivência. Por esse motivo, aproximamo-nos
de um segundo desejo, o de estudar a afetividade, à luz de Henri Wallon. A afetividade, com
ênfase na emoção, ainda é pouco referida nos meios educativos, mas tem uma importância
relevante e, certamente, não pode ser suprimida, na medida em que suas conquistas
reverberam no cognitivo e também na motricidade, mesmo porque Wallon jamais apontou
que uma dessas dimensões era mais importante que outra.
De outro modo, a afetividade sempre nos acompanhou e nos traz recordações. Com
tais lembranças, explicamos e justificamos como surgiu nosso desejo de realizar uma pesquisa
qualitativa, a partir de um estudo de caso exploratório, baseado no impacto proporcionado
pela afetividade no ambiente da EMEF Presidente Campos Salles, em decorrência de seu
Projeto Político-Pedagógico. Para tanto, destacamos três passagens de nossa história de vida,
quais sejam: na condição de aluno do antigo Primeiro Grau; na condição de docente; e,
novamente, na condição de aluno, desta feita, na graduação. Nossa formação acadêmica e
algumas disciplinas cursadas reforçaram nosso desejo por pesquisar tal objeto.
De primeiro, em meados da década de 1970, na condição de aluno em uma escola
estadual localizada no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Recordamos de algumas aulas que
despertavam nosso desejo de aprender. A escola era tradicional, mas podemos afirmar que o
ambiente era agradável e prazeroso. A lição que extraímos é a de que uma escola tradicional
também pode oferecer um ensino em um ambiente prazeroso; não éramos sujeitos de direitos,
mas tínhamos alguma autonomia.
Nossa segunda experiência ocorreu na década de 1990, desta feita, na condição de
professor de História, em uma escola estadual localizada na Grande São Paulo. As práticas
pedagógicas não despertavam o interesse dos alunos. Os professores se fechavam em suas
disciplinas e em sua própria concepção de educação. O ambiente era desagradável porque
tudo decorria de uma estrutura típica de escola tradicional, sem autonomia e engessada em
suas práticas. O Projeto Político-Pedagógico era apenas uma imposição legal. Na prática,
118
ninguém participava de sua construção. Era atualizado mediante cópia e pequenas alterações,
via de regra, realizadas pela secretária da escola.
Nossa terceira experiência foi novamente na condição de aluno, desta vez vinculado
ao curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Como
complemento de nossa formação, em 2013, cumprimos estágio não remunerado na EMEF
Campos Salles. Esse estágio era vinculado à disciplina de Metodologia do Ensino de
Psicologia, ministrada pela Professora Doutora Leny Magalhães Mrech. Foi uma
oportunidade para observarmos o modo como se davam as práticas educativas.
Tais experiências supramencionadas fizeram com que nos aproximássemos de nosso
tema. Na condição de aluno do então Primeiro Grau, devido aos sentimentos e emoções do
ambiente escolar que vivenciamos. Pela docência, na medida em que trabalhamos em um
ambiente de completo desafeto; e, novamente como aluno, desta feita, na graduação, pela
oportunidade de realização do estágio, que nos trouxe um enorme desejo de pesquisar o
impacto da afetividade naquele ambiente escolar. Nesse sentido, tivemos um grande incentivo
da Professora Doutora Leny, que nos direcionou para a importância de estagiarmos em uma
escola democrática e inovadora.
Nossa formação em três cursos, em nível de Especialização, possibilitou-nos uma
nova aproximação com o tema, na medida em que assimilamos, na teoria e na prática de
nossas atividades, a importância da afetividade nos espaços educativos, especialmente na
educação especial e inclusiva. Trabalhamos no sentido de desenvolver artigos associados ao
tema de nossa presente pesquisa, fato que nos auxiliou a enxergar melhor os estudos de
Wallon.
Ao iniciarmos a Pós-Graduação, cursamos quatro disciplinas, das quais destacamos a
intitulada “Um novo sintoma para a Psicanálise” – EDM5148-1/1, ministrada pela Prof.ª Dr.ª
Leny Magalhães Mrech. Novamente a professora nos colocou no eixo, desta feita, a partir de
uma visão da Psicanálise. Discutimos: a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade
de controle, bem como seus efeitos na Educação; o conceito, para a Psicanálise, de violência
nas escolas; as debilidades da ordem simbólica; a precarização do sujeito no mercado do
saber; a violência e o gozo; e o hedonismo e o cinismo.
Reforçamos nossos desejos e destacamos principalmente as bases teóricas relativas a
pensadores como Freud, Lacan, Althusser e Foucault, visando a uma discussão sobre as
transformações da escola contemporânea. No passado, a escola era repressiva e a ideia do
professor “sacerdote” se destacava em oposição à escola que reproduz o que acontece na
119
situada em Vila das Aves e São Tomé de Negrelos, em Santo Tirso, no distrito do Porto, em
Portugal. Essa inspiração é decorrente de circunstâncias e características adversas similares às
que ocorriam na Escola da Ponte.
Em 1976, a Escola da Ponte vivenciava – em seu ambiente escolar de completo
desafeto, resultado de um triste histórico de violência – indisciplina escolar de alunos e o
descontentamento geral do professorado. Esse descontentamento decorria, principalmente, da
centralização do trabalho escolar na figura do professor e de lições repetidas para um aluno
sem voz. Um quadro de derrota, de tristeza, que se somava aos problemas sociais e faziam
com que, na prática, as crianças não tivessem melhores opções. A resposta ocorreu por meio
de um projeto pedagógico construído de modo coletivo, que se mostrava inovador e
democrático. Como consequência, surgiram mudanças para melhor, pautadas pela “educação
na cidadania”, pela reformulação do papel docente e pela nova maneira de enxergar o aluno,
desta feita, como um protagonista, um sujeito de direitos, um ser forte e capaz de construir o
conhecimento próprio. Tudo baseado nos princípios da escola, a saber: responsabilidade,
solidariedade e autonomia. Crianças de maior idade passaram a colaborar com a educação de
crianças de menor idade.
O quadro apresentado acerca da escola portuguesa muito se assemelha ao da EMEF
Campos Salles antes da implementação de seu projeto; fato que reforça a ideia da necessidade
de transformação de um ambiente escolar adverso. Via de regra, o cumprimento da legislação
não impede as transformações de uma escola; a legislação apenas fornece os limites legais de
atuação. No entanto, nada se transforma sem o desejo do sujeito. A equipe técnica,
professores, alunos, pais de alunos, funcionários e a comunidade do entorno escolar podem –
e devem – unir esforços para criar uma sinergia capaz de movimentar os desejos. A
reestruturação das práticas pedagógicas, a nova postura docente e o protagonismo do aluno
constituem um resultado viável quando existe mobilização coletiva. O provável impacto de
emoções e sentimentos agradáveis nesse novo ambiente possibilita a melhora considerável das
relações, bem como traz a possibilidade de se estabelecer um vínculo afetivo muito forte entre
aluno e professor, com benefícios para o cognitivo, tal qual nos ensina Wallon..
Portanto, o objetivo e o epicentro de nossa investigação foram o Projeto Político-
Pedagógico da EMEF Campos Salles e o impacto da afetividade em seu ambiente, com ênfase
na emoção, à luz de Henri Wallon. O projeto pedagógico, instrumento previsto em lei, é o
único capaz de criar as condições necessárias para as transformações do ambiente escolar.
Assim sendo, apresentamos nossa hipótese para a presente pesquisa: após a implementação,
121
seus pensamentos sobre a Pedagogia e a Psicologia. Esse projeto visava a uma educação mais
justa para todos, adaptando-o ao clima de uma sociedade democrática; era um projeto de
inclusão social, que permitia ao aluno o desenvolvimento de suas aptidões pessoais, bem
como sua formação cidadã, ou seja, uma proposta muito diferente daquela que se
experimentava à época. A sua oposição em relação ao ensino tradicional estava presente nesse
projeto e também nas críticas à Educação Nova. Para ele, a escola tradicional sempre foi um
entrave à justiça social e à educação para todos, visto que reproduzia as injustiças da
sociedade. E, dado que as pessoas não conseguiam enxergar essas injustiças, essa reprodução
era facilitada.
O posicionamento de Wallon, no tocante à educação, pode ser facilmente mal-
interpretado, bastando para esse entendimento a conclusão de que ele era inflexível com as
escolas e com os professores da sua época. Essa é uma visão limitada e incorreta em relação
às suas propostas de mudanças. As críticas eram construtivas, de modo que Wallon apenas
desejava uma escola melhor, democrática e de inclusão social, uma necessidade de justiça
social que somente ele parecia conseguia enxergar. Nessa nova escola proposta, o professor
assumiria uma postura mais cidadã, mais humanitária, enxergando o aluno de forma
integrada, como uma pessoa completa, e o aluno, por sua vez, encontrar-se-ia mais engajado,
com direito a voz e ao protagonismo, para poder desenvolver seus potenciais. Portanto,
reafirmamos que esse desejo de Wallon de transformar a escola, de modo algum, pode ser
interpretado como a sua supressão e a destruição da imagem docente.
Seria contraditório, portanto, um humanista como Wallon desconsiderar em seus
estudos a afetividade. Quando nos referimos à afetividade, estamos apontando para o ser
humano, seus sentimentos e emoções. Deste modo, podemos entender a afetividade como
uma capacidade do ser humano ser afetado por sensações agradáveis ou desagradáveis,
oriundas do mundo externo e interno. Um simples olhar afeta o ser humano.
Nos estudos de Wallon, encontramos a afetividade nos estágios de desenvolvimento,
quais sejam: impulsivo-emocional; sensório-motor e projetivo; personalismo; categorial; e
puberdade e adolescência. Destacamos apenas três deles, em função da maior manifestação da
afetividade. Podemos ver a pessoa completa em cada estágio, com suas conquistas no afetivo
e no cognitivo, além de suas limitações. O autor não se limita ao estudo do cognitivo: há um
revezamento no domínio das etapas, nos quais, a afetividade – e, especialmente a emoção –
faz-se presente e se destaca, com maior ou menor ênfase. Algumas etapas trazem o
predomínio da afetividade (1ª, 3ª e 5ª) e, outras, o predomínio da cognição (2ª e 4ª). Nesse
124
a projetiva; são as reações desse aluno em resposta ao ambiente que considera inadequado e
ao próprio estado emocional que se encontra. Na cólera centrípeta, há uma introspecção, que
pode gerar tristeza e angústia. A indisciplina passiva, que é disruptiva, pode ser consequência
de uma cólera centrípeta. Não menos inconveniente é quando um docente se depara com
alunos reagindo contra o meio, chutando lixeiras, ou contra os outros alunos. E ainda sobra
espaço para a agressividade ou violência contra o professor. Nesses casos, temos a cólera
projetiva. Geralmente, o medo é mais tardio que a tristeza, a angústia e a cólera. O seu grande
perigo é a imobilização no que se refere à aprendizagem. É nesse sentido que o docente deve
se preocupar com o ambiente emocional da sala de aula.
O ambiente da sala de aula é ideal para a proliferação dos mecanismos da emoção.
Wallon nos aponta quatro mecanismos: a contagiosidade, a plasticidade, a regressividade e a
labilidade. Na contagiosidade, há a capacidade de contagiar o outro na transmissão do prazer
ou do desprazer. A emoção de um aluno pode contaminar os demais, gerando prazer ou
desprazer A plasticidade ocorre quando o corpo reflete os sinais da emoção, como o rubor da
face ou uma contração muscular. Portanto, o professor pode perceber fisicamente algumas
reações emocionais em seus alunos, porque estas são visíveis. Na regressividade, a emoção
faz as atividades de raciocínio regredir; e, na labilidade, ocorre a capacidade de uma emoção
se transformar em outra. Esta última muito comum em crianças, que vão do choro ao riso e
vice-versa, em segundos.
Por último, temos a paixão, que é exatamente o autocontrole da emoção. Quando um
ser humano tem autocontrole, ele domina a emoção e consegue agir racionalmente. No
entanto, apenas os adultos podem usufruir, eventualmente, de autocontrole de uma emoção.
As crianças não conseguem exercer tal domínio, principalmente até o estágio do
personalismo. Mas as crianças têm um comportamento peculiar porque a emoção pode cessar
se não houver plateia. É comum uma criança parar de chorar quando percebe que está
sozinha, assim como pode voltar a chorar quando alguém aparece. Na sala de aula, é difícil o
autocontrole da emoção do aluno. Surge a necessidade de auxiliá-lo para superar o momento e
não provocar conflitos.
Essas emoções podem se manifestar como decorrência de um projeto pedagógico da
escola. Portanto, a depender do projeto, podemos ter – em menor ou maior escala – a
manifestação de emoções no ambiente escolar, agradáveis ou desagradáveis. Mas o que é um
Projeto Político-Pedagógico? Ele tem direção? Como é construído? Todo projeto pedagógico
tem uma direção, uma intenção, portanto, ele é político. A maioria das pessoas faz referência
126
diferente de se construir o saber. Houve uma passagem daquelas antigas concepções que viam
a criança como um ser menor e incompleto para uma concepção em que a criança é um ser
integral, capaz de se organizar, individual e coletivamente, e ser portadora de saber. Deste
modo, o trabalho docente foi reinterpretado e passou a ser compartilhado.
Algumas práticas da educação na cidadania merecem destaque. Consta no Projeto
que aproximadamente dez estudantes fazem parte da Comissão Mediadora de Estudantes,
constituída em cada salão por meio de eleição. A Comissão não tem um caráter disciplinador,
mas convida os alunos envolvidos em conflitos a refletirem sobre seus atos e
comportamentos. Quem os lidera e orienta é o Tutor, que é um dos educadores do salão. O
Projeto Político-Pedagógico é uma espécie de Constituição para a República dos Estudantes,
direcionado para a prática da democracia no espaço escolar. O prefeito, o vice-prefeito e os
quatro secretários constituem o Poder Executivo; vereadores, prefeitos e estudantes decidem
pelas normas mais votadas por salão para cumprimento e execução, além da elaboração e
implementação de projetos.
Especificamente em relação aos princípios, temos algumas ideias: a primeira é a de
que, se a escola deseja não reproduzir injustiças sociais, não pode atuar isoladamente,
desconsiderando a comunidade; a segunda é a de que o educador-cidadão educa o aluno de
forma contextualizada com a sociedade, mas não o educa sozinho, pois tudo passa pela
educação. Busca mudar a sociedade e a escola, que caminham juntas; a terceira nos diz que a
concepção de responsabilidade significa que o aluno é responsável por seus atos decorrentes
da autonomia de que usufrui e não pode prejudicar o outro; a quarta é a de que a autonomia é
a possibilidade de escolher o próprio caminho, principalmente dentro do salão; a quinta se
refere à solidariedade e se traduz em um vínculo do sujeito com o outro, com o grupo social e
com a própria humanidade. Ela aparece muito na relação professor-aluno e é fundamental
para a resolução de conflitos, bem como no acompanhamento dos roteiros estudados pelos
alunos, tanto os integrados quanto os temáticos..
Abrimos nossas discussões envolvendo as entrevistas e as observações realizadas, a
partir da categoria afetividade e das respectivas subcategorias interseccionadas. Para efeito de
estudo, adaptamos a ambiência, em Wallon, ao ambiente escolar. Discutimos os conflitos
existentes na escola antes da implementação do Projeto Político-Pedagógico, com alguns
trechos recontados, desta feita, a partir do imaginário dos entrevistados. Com esse imaginário,
também traçamos um panorama das transformações, dos obstáculos e de como o ambiente se
transformou. Na subcategoria espaço, demos ênfase aos significados da derrubada dos muros
128
da escola, das paredes das salas de aula – para transformá-las em salões – e da retirada das
maçanetas. Significados que extrapolam o físico e atingem o psicológico dos docentes. Assim
se desenvolveu a discussão. Dado que os principais atores dos conflitos foram professores e
alunos, abrimos as subcategorias docência e discência visando refletir sobre as novas posturas
dos docentes e dos alunos, que permanecem enquanto a essência do projeto existir.
O ser humano é o ingrediente para a existência de conflitos, que podem surgir em
qualquer lugar. O ambiente escolar não é, portanto, uma exceção, ao contrário, os conflitos
são muito comuns e, se não forem controlados, podem desencadear indisciplinas,
agressividades e até mesmo violências. Antes da implementação do Projeto Político-
Pedagógico na EMEF Campos Salles, tínhamos um ambiente adverso do ponto de vista
afetivo. O desafeto reinante atingia as relações e as interações, principalmente entre alunos e
professores; era uma relação muito violenta. Esse estado de acontecimentos paralisava as boas
práticas pedagógicas e a aprendizagem, por conseguinte, ficavam comprometidas.
Nas entrevistas, identificamos várias expressões e palavras que faziam alusão à
postura docente. Um profissional que praticava a “Pedagogia da maçaneta”, isto é, ficava
trancado na sala de aula e colocava em prática a sua própria concepção de educação, fechado
em sua disciplina. Permanecia na “posição de ensinar”, como “dono do saber que fica em um
pedestal”. Ao aluno, cabia apenas cumprir as ordens e fazer cópias intermináveis, bem ao
estilo da escola tradicional, em uma “prisão”. Ou seja, um aluno sem voz, fraco, imobilizado
na posição de aprender. Para o então diretor e para um determinado grupo de professores, a
escola precisava urgentemente mudar. E a mudança se deu com a implementação do Projeto
Político-Pedagógico, que se tornou viável somente devido à grande mobilidade ao seu redor,
envolvendo a comunidade, pais de alunos, alunos, professores, equipe técnica e funcionários.
Algumas entrevistadas relataram que não existiam muitos obstáculos a essa
mudança, mas, o então diretor, que foi o protagonista na elaboração do projeto, fez referências
ao grande sofrimento a que foi submetido. Essa transformação envolveu fortes emoções e,
mesmo a contar do decreto que legalizou o projeto, desenvolveu-se gradativamente. Todos os
entrevistados concordaram que o ambiente escolar mudou para melhor, porque o professor
reinterpretou seu papel e o aluno passou a ser visto como um protagonista, um ser forte,
sujeito de direitos, responsável, solidário e autônomo, capaz, portanto, de construir o
conhecimento próprio e de se organizar individual e coletivamente. Encerramos com um dos
aspectos mais importantes dessa transição para um contexto democrático e afetivo: a palavra.
129
Um professor cuja autoridade da palavra deixou de ser considerada vazia, e um aluno que
passou a ser visível, com direito à voz.
As alterações radicais do espaço contribuíram para o fortalecimento das novas
posturas. Referimo-nos à derrubada dos muros da escola, à derrubada das paredes das salas de
aula e à retirada das maçanetas. Tais alterações podem ser vistas sob o ângulo das novas
configurações físicas e sob o prisma psicológico, que diz respeito ao que elas representaram
para as pessoas.
Do ponto de vista prático, a derrubada dos muros da escola tornou-a visível e mais
acessível. De outra forma, simbolizou a queda das disciplinas, o fim do ensino tradicional e
também a eliminação dos obstáculos que separavam a escola da comunidade. Emergiu uma
nova escola, aberta a todos, de inclusão social, democrática e republicana. A derrubada das
paredes das salas de aula, a fim de transformá-las em grandes salões, e a retirada das portas
(maçanetas) possibilitaram novas configurações físicas, de maneira que o espaço foi moldado
para o funcionamento das práticas pedagógicas implementadas. Um salão que abriga cerca de
cem alunos, divididos por fileiras, denominadas: responsabilidade, que fica ao lado da entrada
e saída; solidariedade, que fica ao meio; e a autonomia, que fica do lado das janelas. Cada
fileira tem várias mesas e, em cada mesa, quatro alunos.
Na vertente psicológica, a demolição das paredes da sala de aula e a retirada das
maçanetas representaram a derrubada das paredes internas, principalmente dos professores.
Há referências nas entrevistas acerca do abandono do “eu” do professor para poder trabalhar
em equipe, de modo solidário e compartilhado. Diante de tais declarações, entendemos que
um professor de natureza egóica não consegue incorporar a concepção educativa estabelecida
pelo projeto. Existe a possibilidade de um professor com tal perfil boicotar as práticas
pedagógicas – apesar de não termos observado tal fato – ou mesmo pedir remoção da escola,
conforme relatos de alguns entrevistados. A ausência de portas representa o fim da “prisão”
dos alunos, de modo que estes podem se movimentar, inclusive para fora do salão, facilitando
o exercício de sua responsabilidade, solidariedade e autonomia.
A movimentação no salão não é uma bagunça, tal como poderia se supor ao se entrar
em contato, pela primeira vez, com os alunos do salão. É um movimento muito pedagógico.
Não podemos deixar de lado que Wallon enxerga a pessoa completa, isto é, integrada. Isso
aparece nos campos funcionais: o movimento, a afetividade e a inteligência. Ele não prioriza
nenhum desses campos. Todos se integram e as conquistas de um campo reverbera no outro.
130
Ao longo de nossa pesquisa fomos tomados por uma emoção que nos envolveu, no
momento em que percebemos, no salão e em todos os cantos da escola, de forma definitiva,
com toda a isenção de um pesquisador, a forte presença de Wallon.
133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
______. Ser professor: um diálogo com Henri Wallon. In: MAHONEY, A.; ALMEIDA, L. R.
(Orgs.). A constituição da pessoa na proposta de Henri Wallon. São Paulo: Loyola, 2004.
p. 119-140.
ALVES, R. A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. Campinas:
Papirus, 2012.
______. Wallon e Vygotsky: psicologia e educação. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
______. Para conhecer Wallon: uma psicologia dialética. São Paulo: Editora Brasiliense S.
A., 1983.
______. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994.
GADOTTI, M.; ROMÃO, J. E.. Escola cidadã: a hora da sociedade. In: ________.
Autonomia da escola: princípios e propostas. São Paulo: Cortez, 2012.
PADILHA, P. R.; ROMÃO, J. E.. Diretores escolares e direção democrática da escola. In:
GADOTTI, M; ROMÃO, J. E. (Orgs.). Autonomia da escola: princípios e propostas. São
Paulo: Cortez, 2012, p. 189-206.
APÊNDICE
138
ROTEIRO DE ENTREVISTA
EX-DIRETOR DA ESCOLA1
1
O nome do ex-diretor da escola foi mantido, haja vista a sua anuência.
139
ROTEIRO DE ENTREVISTA
COORDENADORAS2
2
Os nomes das coordenadoras da escola foram mantidos, haja vista a sua anuência.
140
ROTEIRO DE ENTREVISTA
PROFESSORAS DO ENSINO FUNDAMENTAL REGULAR II 3
3
Os nomes foram alterados, a pedido, a fim de preservar a identidade das docentes.
141
sitiantes. Eu era um dos mais pobres e ficava na casa dos outros para estudar. Eles começaram
a ter expectativas. Um queria fazer veterinária, o outro queria fazer advocacia, o outro queria
fazer enfermagem... e eu não tinha nada para fazer. Acabei os estudos. A gente tinha um
amigo que servia na aeronáutica aqui em Pirassununga e botei na cabeça que eu ia lá. Eu
queria ser oficial aviador e acabei entrando lá, mas entrando para fazer o serviço militar e o
sonho era ser oficial aviador. Às vezes, ficava deitado vendo os aviões decolando,
aterrissando e esse sonho se desfez em uma tarde... Na academia da força aérea, tinha um
evento que se chamava O Paradão, na sexta feira. Eram 1.500 homens perfilados. Ocorria
uma cerimônia. Havia o oficial do dia, que era responsável por todo o andamento da
academia, oficiais superiores e soldados. O oficial do dia dava o comando para um corneteiro
e, enquanto ele tocava a marcha, o sargento do dia hasteava uma bandeira. Quando o oficial
do dia deu o comando, o sargento não tinha desamarrado a cordinha da bandeira e ele
começou a ficar igual doido. Um oficial superior disse: SEU IRRESPONSÁVEL! Eram 1.500
homens sem microfone, sem nada. Aquilo entrava dentro da gente como se um fosse um
médico operando a sua filha que estivesse pra morrer. Esse sargento tinha uma cara... Tem
pessoa que você olha e sente pena, inspira pena e ele tinha essa fisionomia. Aquilo para mim
foi muito doído porque eles ensinavam a gente que, quando um oficial te desacatasse, te
ofendesse moralmente, você tinha o direito de se apresentar: “Com licença. Fulano de tal se
apresentando e pedindo licença para dar parte.”. E eu acreditava nisso, mas ali desmontou
tudo. Falei: “Não vou mais, não quero mais isso aqui”, mas acabei ficando porque eu não
tinha o diploma. Quando saiu o exame para cadete, acabei fazendo o de especialista. Então,
dei baixa e saí de lá e eu ia para Guaratinguetá. Mas, por que estou falando isso? Estou
falando isso porque eu ajudava o padre em Auriflama a rezar a missa, fazer leitura... também
dava a hóstia, dava a comunhão. Gostava muito daquelas músicas que tocavam à tarde na
igreja. O padre Pedro foi me visitar em Pirassununga uma vez, depois foi uma segunda e
depois uma terceira. Na terceira vez que ele foi, falei: “Não dá pra ficar aqui. Não vou ficar
mais. Não sei o que eu vou fazer”. Ele falou “Por que você não vai para o seminário!?” (ele
sorriu). Eu disse: “Ah, para mim não é possível, eu gosto muito de mulher!” (risos). Ele falou:
“Oh, rapaz! Você é normal! Não tem nada a ver uma coisa dessas. Você vai tentar sublimar.
Nem estou falando que você vai conseguir, mas não é isso que tem que te impedir de ir, muito
pelo contrário!”. Então, aceitei. Vim para cá, para São Paulo, e fiquei ali na Nazaré, no
seminário que o nome era Paulo Paulitano. Teve uma época que era seminário central, onde é
a FAI hoje. Vim para fazer filosofia pura. Quando começaram as aulas, senti-me perdido,
144
totalmente deslocado, quer dizer, estudei na roça, durante o ginasial adquiri um complexo de
ser burro por causa da matemática que me ferrou a vida. Até o quarto ano, matemática para
mim era a coisa mais tranquila possível, depois essa matemática moderna, essas fórmulas etc.
e tal e coisa... aí me ferrou a vida! Na segunda-feira, tinham duas aulas e, às vezes, eu faltava.
Andava 30 km a pé no sábado para ver minha família e às vezes eu ia às aulas de sábado. Saía
meio-dia e, quando chegava em casa, já estava escuro. Eram 30 km para um moleque, então
você imagina! No domingo, às vezes, a saudade era tanta que eu não queria ir embora, então,
acabava ficando. Vinha na segunda e perdia a aula. Isso me atrapalhou muito a vida, porque
adquiri certo complexo. Aí, caí aqui na Filosofia e, depois de um mês, mais ou menos, tomei
coragem, procurei o reitor, o senhor José Maria que dava aula na Teologia de Moral, e falei:
“Professor, estou indo embora, não dá pra mim. Em cada dez palavras que os professores
falam, quatro nunca ouvi falar. Então, nem sei o que eles estão falando. Para piorar minha
situação, os alunos perguntam, discutem. Nem sei o que eles estão falando.”. Ele me disse:
“Vou dizer uma coisa pra você. Você é uma pessoa que tem muito valor! Tem
espontaneidade! É direto nas coisas! Você não vai embora, não! Vai arregaçar as mangas.
Você vai ver que vai passar. Vai ver que isso que os teus amigos falam, eles deveriam ficar
quietos.”. No outro dia, com o único dinheirinho que eu tinha, fui até o Vale do Anhangabaú,
em um lugar que vendia livros/dicionários mais baratos. Comprei um de português, um de
filosofia desse tamanho e, às vezes, passava a noite por OITO HORAS na página de um
filósofo, porque era comum estudar uma língua estrangeira. Olhava no dicionário de filosofia,
o sentido não batia, depois olhava no de português. Fui fazendo esse exercício e aos poucos
fui adquirindo segurança. No final do primeiro semestre, já me sentia quase que normal e, a
partir daí, comecei a estudar. Chegou um momento que comecei a questionar a ideologia
católica/religiosa, essa questão dos dogmas. Eu ia sair do seminário e teria que levar isso para
os outros, como a virgindade de Maria, etc. Tudo era problema para mim. Parei de ir à missa.
Tinha que tomar uma decisão e falar para o meu bispo: “Dom Luiz, estou fora! Não vou mais.
Não quero mais ser padre. Não dá mais pra mim.”. Mas, não é uma decisão fácil, porque,
afinal de contas, a diocese arcou com todas as despesas e eu era diocesano da diocese de Jales.
Não era tão simples chegar e dizer a ele. Então, um dia aqui em São Paulo o reitor me chamou
e me mandou embora do seminário. Fiquei feliz porque eu não ia ter que tomar a decisão. Se
ele havia me mandado, era sinal de que o bispo havia conversado com ele. Fui para Jales de
férias. Cheguei à casa do bispo, a mãe dele me atendeu e falou: “Eu e Dom Luiz estamos
revoltados, porque ele sempre te elogiou, sempre te colocou lá em cima e agora ele toma uma
145
decisão dessas sem falar com ninguém! Ser padre é uma possibilidade tua e só depende de
você!”. Ferrou tudo! Porque, dessa forma, eu teria que assumir. Foi difícil! Tive uma
conversa, depois outras... várias conversas, até que o bispo entendeu que eu não voltaria mais
para o seminário. E essa é a história, ou seja, saí do seminário com o curso de Filosofia,
licenciatura em Estudos Sociais, Psicologia e o curso de Teologia incompleto, no qual cursei
como ouvinte, no último ano, duas ou três matérias... nem lembro direito. Mas, qual é o
problema? Eu teria que sobreviver. O que eu ia fazer? Tinha uns amigos que ficavam em uma
república e fui para lá. Fui sem trabalho, sem nada. Aí que começou o calvário de procurar
trabalho. Tem tantas histórias que não interessa dizer aqui, mas a coisa foi tão difícil que três
vezes já coloquei a gilete na jugular. Dessa forma, resolveria o problema. Mas, não usei a
gilete e virei professor por acaso.
Sérgio – Vou aproveitar o ensejo e já te fazer a segunda pergunta que realmente é a
questão da profissão de professor. Você pode fazer um breve relato dos aspectos
principais de sua história de vida profissional?
Braz – Com os meus cursos, eu podia dar aulas de Filosofia, Estudos Sociais, Psicologia e
ensino religioso. Então, procurei emprego. Vários tipos de empregos, mas não conseguia. Um
dia, cheguei na faculdade onde tinha feito umas matérias como ouvinte e escutei um amigo
que dava aula na PUC, falando: “Tenho um amigo que pega essas aulas”. Quando eu entrei,
ele me viu e falou: “Ah, vem cá! A gente estava falando sobre aula. Lá no São Luís, tem 34
aulas de ensino religioso e eu estava falando que você pode pegar essas aulas.”. Então,
marquei com a freira. Fui até ela e conversamos. Fui contratado. Naquela época, o São Luís
era a escola que mais pagava. Era escola dos ricos. Fui até lá. Quando cheguei, o reitor queria
falar comigo e me disse: “Você tem que fazer esses jovens e adolescentes felizes!”. Eu estava
com essa questão religiosa muito forte, cabeça de revolucionário, aí eu falei: “Sabe, Padre, na
Teologia que eu estudei, Jesus Cristo nasceu para salvar os pobres, os indigentes e os
miseráveis. Minha consciência manda que esses adolescentes tenham problemas de
consciência” (risos). Ele falou: “Assim eu fico com medo de você!”. Eu disse: “O Senhor não
precisa ficar com medo, porque eu não quero as aulas!”. Ele foi muito humano comigo e
disse: “Não, missão você fica e pega.”. Tinha um cargo que era como um auxiliar de período
que cuida do fluxo de aluno, professor etc. Ele me falou: “Esse ano você fica aí. Você vai ver,
vai passar essa revolta. Ano que vem você pega as aulas que você quiser.”. Mas, eu disse que
não. Acabei pegando doze aulas de ensino religioso em outra escola que não pagava nem um
quinto do que o São Luís pagava, mas a questão da sobrevivência falou mais. Cheguei nessa
146
escola – Nossa Senhora das Dores, no bairro da Casa Verde. Deram-me um livro do padre
Zezinho e disseram: “O conteúdo é esse. Você vai dar aula para o terceiro”. Na sala, tinha
freira, mórmons, espiritualistas, tinha de tudo. Eu ia dar aula de religião católica apostólica
romana. Foi muito difícil. Comecei a correr atrás de aulas. Peguei umas aulinhas de filosofia,
em 1977, na Mooca, na escola chamada “C.M.D.C.”. Não foi legal esse primeiro ano. Eu até
gostava da coisa, mas tinha essa questão ideológica do ensino religioso e de filosofia para
reflexão. A gente não tinha hábito de dar aula e ver o que é que tinha na cabeça da meninada.
No ano seguinte, consegui contrato na prefeitura após quatorze dias enfrentando uma fila.
Chegando minha vez, pedi ao cara: “Senhor, dê-me vinte e quatro aulas, não interessa onde.
Não tenho onde morar, então, para onde o senhor me mandar, irei. Alugo um quarto perto.
Não há problema pra mim”. Ele me disse: “É, para você 12 está bom.”. Comecei a dar aula na
prefeitura, no “Leão Machado”, em 21/02/1978. Nessa escola, eu estava dando aula de
estudos sociais e comecei a me sentir em casa. Apesar de ter sido tudo por acaso, descobri que
eu estava ali no meu lugar, era aquilo que eu queria fazer. Fiquei três anos nessa escola.
Depois, a diretora quis fazer uma sacanagem. Como eu tinha direito às aulas e ela não havia
passado em concurso, pediu-me que eu dividisse as minhas aulas, mas para mim, as aulas já
eram poucas, eu precisava de 24 aulas, no mínimo. Eu falei para ela que não havia problema,
que eu podia ir embora. Dei minhas aulas para ela e fui lecionar no “Sílvio Martim Pires”.
Nessa escola, fiquei por 15 anos. Lá, descobri-me mais ainda como professor. A relação com
os alunos era muito forte. Quando aconteciam problemas sérios, eu ia até a casa do aluno para
discutir o problema com o pai desse aluno. Nessa escola, nos últimos cincos anos que fiquei
lá, consegui uma mudança muito grande na minha metodologia, na minha forma de dar aula,
porque fiz um curso de psicodrama e aplicava em minhas aulas. Lecionava através de aulas
expositivas e explicativas, com apoio de jornais velhos e textos que os alunos traziam. Eles
sentavam-se em grupos e eu dividia o tema em subtema. Em cada sala, havia cinco grupos.
Dava um subtema para cada grupo a partir das aulas que eu tinha dado e que eles tinham
participado, também, a partir das pesquisas que eles haviam realizado, que era a primeira
coisa que eles faziam quando iam estudar o iluminismo. Eu dava duas questões sobre esse
tema. Eles tinham que entrevistar uma pessoa dentro de sua casa e uma fora de sua casa e a
resposta poderia ser não sei. Descobri que aquilo que eu queria falar e que eu tinha para falar
aparecia naquilo que eles traziam, gozado isso! Dava trabalho, tinha que ler. Havia momentos
em que eles faziam círculos para uma representação. Eu chamava cada grupo. Eles
levantavam. Eu dava um tempinho para eles combinarem alguma coisa para representar.
147
Podia até representar o contrário daquilo. Eles começavam a falar, conversar e perguntar sem
perceber. Após a discussão, eles iam para casa e todo mundo tinha que trazer um texto
referente àquilo. Essas aulas eram muito vivas, o aluno era muito ativo. De vez em quando, eu
pegava a chave da escola e ia para lá aos sábados. Conseguia levar de 500 a 700 alunos que
era mais ou menos a quantidade de alunos que eu tinha. Eu tinha equipe de segurança.
Chegávamos na escola. O único adulto era eu. Os pais passavam lá e alguns ficavam um
pouco e iam embora. No dia, a escola era a cidade de São Paulo, com tudo que ela tem. Tinha
debate político, aparecia deputado, prefeito. Foi uma experiência! Essa relação para mim era
tudo! Um dia, minha esposa falou: “Por que você não faz Pedagogia?”. Eu disse que não ia
fazer de jeito nenhum, pois não queria sair da sala de aula. Naquela época, quem fazia
Pedagogia era para poder sair da sala de aula, para fazer concurso para diretor, para supervisor
ou para coordenador pedagógico. À época, havia, também, outra função chamada orientador
vocacional. Eu não queria sair da sala de aula, mas acabei fazendo Pedagogia. Logo que eu
terminei o curso, teve um concurso de diretor e eu me inscrevi. Fiz o concurso. Quando estava
chegando a época de escolher, comecei a ficar grilado e a minha esposa me ajudou a fazer
uma lista com 14 escolas. A primeira escolha era a “Presidente Campos Salles”. Uma pessoa
que estava na fila de escolha da escola, pediu para olhar a minha lista e viu que a primeira
escolha era a “Campos Salles”. Então, ela me disse: “Não escolha essa escola de jeito
nenhum, pois ela atende a favela de Heliópolis. Um bando de marginal, baderneiro. Se você
for pra lá, vai sofrer demais”. Chegou minha vez. Escolhi essa escola e fui para lá. Sou diretor
até hoje, no momento, afastado, mas atuei por vinte anos nessa escola. Dei aulas durante 19
anos seguidos. Fui diretor por 20 anos e aqui eu estou há um ano (na DRE). Aquela questão
da relação professor-aluno, que dava sentido, foi ampliada, para a minha surpresa. Continuei a
ter vínculos com alunos e também a minha articulação com pai e com lideranças
comunitárias.
Sérgio – Por que a “Campos Salles” precisava de um projeto pedagógico significativo?
Braz – Quando cheguei lá, ou se fazia alguma coisa ou se mandava. A escola ficava cercada
por um muro de alvenaria que quem passava na (rua) Cavalheiro Frontini não via a escola,
porque ela ficava em um buraco. Tinha um muro de alvenaria altíssimo e lá no topo havia
estacas de ferro e três fileiras de arame farpado. Quando entrei lá, levei um susto, porque tinha
um mundo lá dentro que fora não se via. Diariamente, aconteciam de cinco a seis brigas, entre
alunos e não alunos, de arrancar sangue um do outro. Tinha verdadeiras redes de intrigas.
Quando ocorria uma briga, duas plateias se formavam. Uma incitava o João a brigar com
148
Pedro e a outra que incitava o Pedro a brigar com o João. Era época das chacinas em
Heliópolis. Quando falavam que iam matar 14, matavam 18. Hoje ameaçam matar, mas não
matam; lá falavam e matavam. Era uma escola muito violenta. A relação professor-aluno
também muito violenta. Algumas pessoas achavam que tinham que chamar a polícia, outros
eram contra isso. Peguei brigas homéricas de uma coordenadora pedagógica que defendia os
alunos em qualquer situação, até sem princípio, e aqueles que achavam que o aluno tinha que
ser tratado como caso de polícia. Diante dessa situação, ou você se manda ou você fica.
Agora, o importante era ficar e ter um motivo para ficar, e eu tinha. Quando fui professor da
escola “Sílvia Martim Pires", eu e mais três professores tínhamos um trabalho com pais
voluntários e conseguimos um grupo de 50 a 55 pais que passaram a atuar quase que
diariamente na escola e aos finais de semana. Fazíamos festas, confraternização,
conversávamos, sonhávamos juntos e, principalmente, nos alimentávamos de esperança de
que era possível mudar a educação, que era possível mudar a escola. Nesse grupo dos 50 pais
e professores, entraram duas ideias na minha cabeça, não sei na cabeça deles o que entrou,
mas na minha entrou. Primeiro, que tudo passa pela educação. A cada dia que passa, me
convenço mais disso. A educação é tarefa de toda sociedade, de toda instituição, da família,
do estado e de toda entidade. Quando toda sociedade for educadora, logicamente, que a escola
vai começar a fazer melhor o seu papel, o seu trabalho. A escola não tem monopólio da
educação e, sozinha, ela não pode nada. Tinha que ter um trabalho na sociedade para libertar o
educador que tem dentro de cada um para que cada instituição assuma esse papel de educar,
de ajudar a construir um cidadão. A escola e os educadores deveriam liderar esse processo,
mas não sei se eles conseguem. Vemos fora da escola que algumas pessoas se constitui muito
mais educador do que dentro da escola. Essa é uma coisa que a gente tem que questionar. A
“Campos Salles” tinha que ser um centro de liderança na comunidade de Heliópolis. Um
centro de liderança articulado com as lideranças propositivas que abraçasse essas duas ideias,
ou seja, que tudo passa pela educação em escolas, centro de liderança e na comunidade onde
está inserida. Foram essas duas ideias que me possibilitou ficar, fazer a diferença e tentar
encontrar um jeito diferente de fazer educação na escola, porque não é só na escola, é para
além da escola. Essa integração que busquei desde o início com a comunidade, foi uma
integração no sentido de que os problemas da comunidade são problemas da escola e vice-
versa. Um dos problemas que desde o início afetavam tanto a escola como a comunidade era a
violência. Eu e duas coordenadoras montamos um curso lá que demos o nome de Educação e
Cidadania. Todos os pais que quiseram tiveram oportunidade de fazer esse curso que eram
149
quatro reuniões. Foram 40% dos pais que fizeram o curso, 60% não fizeram. Não vinham
todos. Depois, aconteciam vários encontros. Nessas reuniões, mostrávamos uma escola
pública por dentro com toda a sua beleza e feiura, dizendo que ela é uma conquista da
humanidade e que nós não podíamos perder, de forma nenhuma, e que era responsabilidade
deles ajudar a eliminar essa feiura e fazer da escola um sinal de amor deles para com as
crianças, para com os filhos deles. A gente ia discutindo com as lideranças da comunidade.
Inclusive, nesse curso, todos os grupos tiveram líderes comunitários. Teve dois líderes
comunitários, João Miranda e o Geraldo, que participaram de todos os grupos. No final do
ano, fizemos uma assembleia com todos aqueles que participaram das quatro reuniões. Parte
da escola ficou cheinha. Foi bonito! Nasceram ali várias comissões e elas fizeram muita
diferença na escola. É... no ano de 1999, aconteceu o caso do assassinato da Leonarda. Foi
um acontecimento doloroso, mas que, por outro lado, deu força para que a gente tomasse uma
decisão. Vínhamos pensando em como íamos mostrar para os bandidos que nós não
aceitávamos a banalização da vida, quer dizer, sem nenhum critério, ou seja, decide matar,
mata e fica elas por elas. A gente discutia e não sabia o que fazer. Quando a Leonarda foi
assassinada, aproveitei a situação e propus fazermos uma caminhada pela paz nas ruas e vielas
de Heliópolis e pedi ajuda ao João Miranda, que era o presidente da UNAS, perguntando
“Vocês ajudam a organizar?” e ele me disse: “Meu irmão, meu amigo. Você não precisa mais
fazer uma pergunta dessas pra nós. Se a “Campos Salles” está, nós já estamos, porque, para
nós, não existe a escola lá e nós aqui.”. Nesse dia, percebi que as duas ideias já tinham se
tornado realidade entre a “Campos Salles” e Heliópolis. Tudo passa pela educação, escola
como centro de liderança. Nesse dia, ficou confirmado isso: a escola se propôs a fazer uma
caminhada que nunca tiveram coragem. Achavam que, se fizessem isso, iam ter represália dos
bandidos. De repente topam. A proposta veio da escola, veio do diretor da escola. Então,
fizemos essa primeira caminhada. A partir dessa caminhada, a escola que já estava sendo
referência no quesito escola-comunidade, começou a aparecer em revista e em jornal. Em
2001, foi lançado o projeto Escola Aberta. A “Campos Salles” foi a escolhida pra lançar esse
projeto. Era o governo da Marta. Em 2002, a escola foi visitada por um ministro da educação,
pelo presidente do conselho de educação norte-americano. Ele veio com uma equipe para ver
como é que uma escola de favela mantinha uma relação de respeito mútuo entre a escola e a
comunidade. Então, a escola começou a aparecer. Só que, quanto mais aparecia, mais triste
ficávamos, porque nós, que estávamos dentro da escola, é que sabíamos dos problemas. O
grande problema se referia às práticas pedagógicas que ocorriam dentro da sala de aula. Essas
150
ser integral, como um ser competente, que é capaz de se organizar individual e coletivamente
e que é portador de conhecimento. Durante os primeiros dois anos, não conseguimos interferir
porque os professores discutiam no coletivo. Não era todo mundo, eram 50% professores,
porque as outras jornadas não comportavam. Tomavam a decisão e iam para sala. Só tinha os
princípios novos: autonomia, responsabilidade, solidariedade e mais as duas ideias que se
tornaram princípios. Mas a prática continuava a mesma: aluno sentava mais um atrás do
outro, mas era cadeira individual que colocava quatro cadeiras juntas, carteira e as cadeiras
em volta. Os professores tinham que elaborar roteiros de estudo para que, quando o professor
de matemática/história saísse e tivesse aluno que quisesse continuar fazendo a matéria, ele
não parasse de estudar. Foram dois anos de dor e sofrimento, mas teve muita coisa bonita
nesse período, como, por exemplo, o recrutamento de voluntários em que dividimos 15 alunos
para cada grupo. A gente deu o nome de monitor a esses professores e voluntários. Nossa
recomendação era que, de forma alguma, transferissem a relação que ocorria em sala de aula
para essa relação. Os professores tinham que acessar o aluno pelo coração, pelo afeto, pelo
diálogo, pela conversa franca. Isso foi muito bonito, porque não tinha local onde os alunos
podiam ficar. Eles ficavam onde eles decidiam ficar. Teve monitor que, durante um período,
visitou a casa de cada um de seus monitorandos. Teve monitor que vinha fazer macarronada
fora do trabalho, no feriado, no sábado, no domingo. Foi muito bonito isso. Quando a gente
tinha uma reunião por mês para tratar do que cada monitor estava fazendo, era encantador!
Mas, dentro da sala de aula, continuavam as mesmas relações e as mesmas práticas. Depois de
dois anos de sofrimento e de não dormir direito, pensava no que podia fazer para dar certo.
Cheguei à conclusão que tínhamos que tirar as paredes quando o professor se sentisse seguro.
Se tivesse tirado as paredes, em 2005, poderia ter se instalado o caos. Depois de dois anos,
percebi que tinha que interferir, mas não sabia como. Em uma noite, decidi chamar aqueles
professores que vestiam a camisa, que gostavam de gente, que tinham paixão, independente se
o cara era tradicional, se era progressista. Cheguei em 15 pessoas e falei que estava muito
triste, que achava que a gente não tinha caminhado em nada e que queria saber se eles
bancariam se eu tirasse as paredes. Alguns ficaram assustados, pois não sabiam o que iam
fazer. Mas, depois de muita conversa, aceitaram. Então, os alunos saíram de férias no final de
2007. Eles (alunos, pais e professores) estavam cientes que, no retorno das férias, não
encontrariam mais duas salas de aula, mas quatro grandes salões. Aí começou o projeto de
verdade. Isso provocou cisões dentro das pessoas que estavam acostumadas a fazer de um
jeito, que estavam acostumadas a viver isoladas, sozinhas, na solidão, a se virarem sozinhas,
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mas agora não havia mais essa possibilidade, pois eles teriam que aprender a se virar juntos.
Então, foi colocada a questão do trabalho em equipe, tanto por parte dos professores como por
parte dos alunos. Foi o maior impacto do projeto na construção de uma cultura de trabalho em
equipe e isso é algo que bate bem de frente com o modo de produção capitalista, na questão
do individualismo. Agora, o professor teria que fazer junto com seu par, ele não estaria mais
isolado e as disciplinas, também não. A chave de tudo era o roteiro de estudo. A questão da
especificidade só entra na elaboração do roteiro disso tudo. Especificar Português,
Matemática, História, Geografia, Ciências. Depois do roteiro pronto na mão do aluno, dentro
do salão, não teria mais professor de História, Português, Matemática, Ciências... teria o
professor orientador. Isso não significava que o professor teria que dominar todas as
disciplinas. O ideal era que tivesse certo domínio no nível do aluno. Ele não era obrigado a
explicar nada para o aluno. O bom professor da “Campos Salles” é aquele que oferece
recursos para que o aluno construa seu próprio caminho de aprendizagem. O aluno está
trabalhando Matemática. Tem lá um exercício que ele não consegue resolver. Os mais
espertos que têm celular e internet podem olhar no google. Se resolveu entre eles, resolveu.
Supondo que não se resolveu, levanta-se a mão. O exercício é de matemática, mas o professor
é de história. Ele não tem que saber matemática para explicar, mas tem que saber que, na
página tal do livro, tem um exercício modelo e, se o aluno ler e procurar entender, conseguem
sozinhos resolver o problema. Se não resolver, novamente levanta a mão. Aí o professor
pergunta: “vocês já olharam no google?”. Se não fizeram isso, o professor solicita que o aluno
anote e vá olhar no google. Então, é dar recursos. É o aluno fazer o seu próprio caminho
naturalmente. Se a escola ajudasse o aluno a pesquisar e buscar tudo que ele quer aprender, o
que quer saber, que pode aprender com tudo, com todos e para sempre, nossa senhora! Hoje,
um conteúdo fechado já não significa mais nada. Agora, habilidade é a competência de buscar
e de aprender o que se precisa o que se necessita, isso é fundamental.
Sérgio – Em relação a esse novo projeto pedagógico, uma quarta questão é elencada
para saber se provocou reações emocionais nos docentes e de que maneira poderiam ser
percebidas essas reações?
Braz – Aonde eu mais percebi isso foi em relação à formação, porque é algo novo, é uma
construção, ou seja, as pessoas não têm manual, não sabem nada do que está acontecendo.
Agora, a formação é fundamental, é essencial. E o que nós fizemos enquanto direção?
Corremos atrás e conseguimos um projeto com 100 PEC. Vieram professores das áreas para
dar uma assessoria aos professores da “Campos Salles”. Essa formação foi muito dolorida
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para todos. Por outro lado, quem passou pelo processo amadureceu demais, pois chegou um
momento em que o professor de lá me falou que não fazia melhor porque não sabia, mas que
teria jeito, se buscasse com o amigo outra forma para fazer o melhor. Às duas horas da
manhã, havia pessoas chorando e passando mensagem para o pessoal da assessoria. Houve um
terremoto! Isso foi tão importante porque abriu espaço para a formação. Se não sei, se não
faço, é porque não sei. Se não sei, tenho que buscar, tenho que ser humilde, tenho que me
articular, tenho que estar solto, quer dizer, abandonar a certeza. Acho que o maior impacto é
assim: a pessoa tem que estar na corda bamba, sempre vigilante, para não ser infiel ao seu
próprio colega, para não matar o que seu próprio colega faz. Vou te contar algo reservado.
Havia uma professora na escola, que dava aula na primeira série. Se minha filha fosse estudar
com ela, eu a deixaria na rua ou em qualquer outro lugar, pois minha filha ia ganhar muito
mais. Essa professora provocava um mal nos seus alunos. No ano anterior, os alunos dessa
professora estavam com outra professora e as coisas fluíam normalmente, as coisas
caminhavam. Mas, com ela, aconteciam revoluções. Era pai/aluno reclamando. Essa
professora cuidou de uma formatura e, nesse dia, ela mandou uma aluna embora por causa da
roupa que estava vestindo. Eu soube disso no dia seguinte. Havia uma família inteira
chorando na minha sala. Se aquilo fosse divulgado pela mídia, destruiria nosso projeto. A
roupa que a menina vestiu era a que ela achou mais bonita na casa dela. A partir do momento
que essa professora tivesse que trabalhar com mais duas pessoas no salão, ela não teria mais a
capacidade de fazer o mal que ela fazia. Você imagina o que custou isso pra ela? Agora, até
que ponto ela mudou, se humanizou, eu não sei, mas ao menos ela não teria mais a capacidade
de fazer mal, porque o freio dela passou a ser os próprios colegas, pois quando você coloca
três/quatro colegas juntos, tem sempre alguém ali que realmente defenderá o aluno. Se alguém
é arbitrário, sempre terá outro que pedirá para pegar leve, para não perder os alunos, mas tê-
los como aliados.
Sérgio – Tá dizendo, então, que houve uma alteração da postura docente?
Braz – Houve uma mudança muito grande da postura.
Sérgio – Dessa professora e dos outros também?
Braz – Sim. Dei como exemplo a postura dessa professora para demonstrar que ela fazia
muito mal na estrutura tradicional e que, com esse novo modelo, ela não conseguiria mais
fazer o mal, pois não teria o espaço todo para ela, para ela imperar e fazer o quiser. Sabe essa
oposição diretor, coordenador pedagógico e assistente de direção de um lado e os professores
do outro, jogando pedra de lá para cá e daqui para lá? Isso na “Campos Salles” é uma
154
sombrinha de nada. Essa foi uma das grandes mudanças, ou seja, do professor desempenhar
seu papel com responsabilidade, com envolvimento. Não é mais tarefa só da equipe técnica.
No máximo, nós mediamos as conversas, porque é cheio... Ela fala olha, tem que fazer uma
conversa lá, porque não estão entendendo o projeto...
Sérgio – Então, você está se referindo ao trabalho, nas alterações do trabalho docente?
Braz – Sim.
Sérgio – Aproveito o ensejo para a quinta questão, para verificar se propiciou alterações
no trabalho docente. Você poderia fazer a gentileza de discriminar as principais
alterações?
Braz – Acho que uma alteração material. No início de 2006 e todo ano de 2007, os
professores tinham que elaborar roteiros disso tudo. Só uma professora elaborava, que era
aquela que deixava os bilhetinhos. A partir do momento que tiram as paredes do mesmo
espaço, todos os professores elaboram o roteiro. Então, assume essa responsabilidade, quer
dizer, o roteiro é a chave de tudo. Outra coisa, uma preocupação maior em acertar, a fazer o
melhor, é levar o outro professor em consideração. Umas das mudanças que eu acho
fundamental é que a interdisciplinaridade passou a ser real. Os caras conversam agora. No
início do projeto, quando os caras não queriam dizer que não sabiam para o aluno, você
chegava lá no horário coletivo, estava todo mundo estudando Matemática. Você chegava no
outro, e estava todo mundo estudando Ciências, porque lá dentro os alunos solicitavam e eles
tinham que fazer. Dessa forma, acredito que houve um impacto e um avanço muito grande
na interdisciplinaridade. Há uma fala mais responsável. Quando o cara fala e sabe que está
dentro de um grupo e que esse grupo tem alguns princípios que integram e unem esse grupo,
as falas passam a ser mais qualificadas. A Heleni falava de fala plena. Acho que a fala passou
a ser mais plena. Tem escola por aí que você vai a uma reunião e há uma fala e um discurso.
Você que conhece, sabe que não é nada daquilo. O que está motivando aquela fala é outra
coisa que não se revela. Então, dentro da “Campos Salles”, a coisa passou a ser muito mais
transparente. Está na cara quem está no projeto e quem não está. Até o aluno percebe quem
não está no projeto. Às vezes, o aluno fala: “Temos que chamar a professora de tal, mas ela
não está no projeto.”. Eles sabem porque ela não está no projeto. Então, eu acho que há uma
transparência muito grande, um discurso muito mais coerente, um desejo muito mais de
acertar, uma certeza de que se a coisa ficar só no nível do indivíduo, não vai para lugar
nenhum, então, tem que se abrir mesmo para o coletivo. No início, falávamos para os alunos:
“Vocês têm que ser solidários. Não podem deixar ninguém para trás.”. Mas tem aluno que
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faltava na escola, então, como é que ele seguiria em frente? O professor não solucionava isso
e o problema era jogado nas costas do aluno. Sentávamos com os professores para
discutirmos e descobrirmos o melhor caminho para resolução desse problema. O aluno que
tinha envolvimento, que estudava e que não faltava podia passar do quarto roteiro para o
quinto. Então, chegamos à conclusão que esse projeto era/é vivo. Se você se envolver com a
escola, hoje, daqui a dez dias é capaz que surjam várias coisas diferentes. Então, acho que
uma das coisas que induz, é o movimento. O professor que está mais no movimento. Não tem
jeito de ele ficar cristalizando... coisa na sua cabeça e só no seu mundinho. Estamos saindo
daquela docência solitária, para uma docência mais solidária e percebemos isso, muitas vezes,
nos primeiros anos quando o professor de alfabetização ajuda os alunos com dificuldade.
Outro impacto que se vê é quando você vai às escolas e observa o desespero por causa da falta
de professor. Na “Campos Salles”, quando o professor precisa faltar, ele negocia com os
colegas. Se o cara começa a faltar demais, passa ser problema.
Sérgio – O projeto pedagógico provocou reações emocionais nos alunos, nas interações
na sala de aula? E de que maneira poderiam ser percebidas essas reações nas interações
que eu vou citar, por exemplo, na interação professor-aluno?
Braz – Quando o salão surgiu, muitos diziam que, se com 30 alunos, não se conseguia
trabalhar, imagina com 100! Isso era um discurso dos desavisados. Não aumentou o número
de alunos para o professor (sorriu), ou seja, a proporção continuou a mesma. Então, isso não
era real, mas, logicamente, que o professor não podia vir para escola brigar com aluno para
que ele tivesse um comportamento que o professor achava que é necessário o aluno ter lá
dentro, isso era tarefa também dos alunos. Em 2008, surgiu uma comissão mediadora de
alunos em cada um desses salões. E qual é a principal função dessa comissão? É cuidar das
relações e da convivência entre o aluno e o professor. Quando um aluno é desacatado por um
professor e se sente ofendido, ele conversa com a comissão sobre o fato. Quando os alunos
percebem, por exemplo, que há um preconceito por parte do professor, o professor é chamado
e o caso é discutido e conversado. Ano passado, eu ainda estava lá, pois saí em abril. Foi
surpreendente ver a diminuição da participação dos alunos que se tornaram adolescentes que
estavam no penúltimo e último ano. Mas teve uma reação dos alunos da comissão e com
consentimentos dos outros que também queriam uma organização dentro do salão, fizeram
uma devassa. Ficaram uns 3-4 dias explicando aos adolescentes do penúltimo e último ano
que queriam estudar e que o comportamento deles não estava correto, que não era favorável.
Disseram que eles estavam irritando professores. Então, é lógico que isso traz impactos
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emocionais. Vi no seminário que teve da CONANI lá, uma coisa que a Amélia coordenou,
cheio de alunos sentados na mesa, pela amor de Deus! Se uma menina falando do TCC dela
que o tema era obesidade, aí depois que ela começou a ver a questão da obesidade é uma porta
que se abriu, aí... ela viu isso, mais isso, mais isso... Eu disse: eu só vejo isso doutor falando
uma coisa dessa... Então é uma menina falando e com orgulho de estar ali e orgulho de estar
participando, de ajudar na construção, de interferir na relação entre os colegas, é convocar
aluno, pai de aluno convocar professor pra conversa. É lógico que isso traz, agora eu não sei
quais. Mas isso traz uma outra... É uma outra ótica, é lógico que isso traz outro sentimentos.
Sérgio – E no que diz respeito à interação do aluno com espaço e ambiente,
especificamente, espaço da sala de aula?
Braz – Essa coisa eu não saberia te dizer hoje exatamente como é que está isso. Mas, tem
certas discussões e assembleias em que o aluno que chega lá e sai do grupo dele, bate na
cabeça de um, atrapalha o ambiente. Agora, se você vai dentro de uma escola “Campos
Salles”, todo espaço que tem em volta dele propicia possibilidades. É um aluno que foi além
do mundinho da sala de aula. Inclusive, em cada salão, tem um representante deles no
Conselho de Escola com direito a voz e voto e que extrapolam o número de aluno, não é tudo
isso de aluno que tem que ter, mas lá eles têm isso aí. Tem, também, várias atividades, como:
capoeira, caratê, balé, dança, fablab, teatro... Tem um monte de coisa no espaço que vai além
da própria atividade da escola. Temos um aluno que tem mais perspectiva. Acho que a
questão de um espaço leva o aluno a ter mais perspectivas, a ter mais sonhos. Há 20 anos,
quando se perguntava para um aluno o que ele iria fazer, o que ele pensava, ele dizia que não
sabia. Hoje, todo aluno que você pergunta, ele pensa em algo para o futuro: ou ele quer ser
chef, ou médico, ou veterinário. Acho que essa questão do espaço traz uma liberdade muito
maior e a quebra de certos fechamentos. A própria relação muda. Logicamente que isso
reflete nos momentos que eles estão lá dentro no salão, nas atividades e tudo mais.
Sérgio – E no que diz respeito à interação do aluno com o aluno na sala de aula?
Braz – Acho que essa foi uma das maiores mudanças que ocorreu na escola, porque o aluno
foi chamado para participar. Primeiro, apareceram candidatos que desejavam ser da comissão
mediadora. A eleição foi direta e por votação. Depois, foi criada a república de aluno com o
objetivo de empoderar os alunos da comissão. Por que é para empoderar? Porque para ser
candidato a prefeito, vereador, secretário, tem que ter sido eleito diretamente, tem que estar
dentro de alguma comissão. E, hoje, às vezes, o pessoal fica mais preocupado com uma
conversa com o pessoal da comissão de alunos do que uma conversa com um professor.
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Quando os pais são chamados por essa comissão de alunos, às vezes, saem mais intimados do
que uma briga com um diretor de escola. Então, hoje o aluno tem um poder muito grande no
sentido de exercer autocontrole lá dentro. Agora, é lógico, nós não vamos ter a lei do silêncio.
Uma vez descobri um documento que já tinham uns três anos. Dizia que o aluno deveria
trabalhar em grupos sem falar. Você escutou? (risos). Como é que o aluno vai trabalhar em
grupo sem falar? Lógico, que lá é um aluno que fala mais, que discute mais (na mesa, na sala
de aula). Tem depoimentos deles que a gente nem sonha que está sendo construído, que está
sendo vivido, você ia se surpreender com alguns.
Sérgio – E na interação desse aluno com conteúdo?
Braz – A questão é a seguinte: “Que conteúdo, né? Que conteúdo?”. Quando eu falo ‘que
conteúdo’, penso... é... nas aulas que dei. Tenho muitos amigos no Facebook que foram meus
alunos, que estão com 39, 40, 41, 45 anos de idade. Com a situação do país, hoje, senti-me
frustrado, porque os caras estão sendo instrumentalizados, mas batem no peito como se a
esquerda estivesse errada e eles estivessem certos. Eu falo: “Que conteúdo? O conteúdo
serviu para quê? Já que minha disciplina foi História, Geografia... Serviu pra quê?”. O que
tenho que colocar na questão de conteúdo é que lá na “Campos Salles” tem quatro tipos de
roteiros, que não vou saber te explicar. Tem o roteiro integrado, que seria o normal para
aquele aluno que teve um avanço na faixa etária dele etc. e tal. É esse roteiro integrado que é
o caso da maioria. Agora, tem aluno que tem dificuldade de entender o que lê, aí tem um
roteiro diferenciado para ele. Os professores elaboram um roteiro para trabalhar e refletir
acerca de questões conjunturais, como por exemplo, a questão da mulher. É...agora, volto a
dizer para você se a escola leva o aluno a pesquisar? Essa competência tem mais valor do que
determinados conteúdos que estão postos, que têm que ser passados aos alunos, mas eu fico
muito tranquilo em falar sobre isso. Com esse projeto, o aluno da “Campos Salles” não
perdeu em nada em termos de conteúdo, seja qual for o conteúdo, porque, na avaliação
externa que a escola faz, estamos péssimos, mas nunca caímos depois que começou esse
projeto. E nós só sabemos disso, porque a primeira vez que mediu foi em 2005. O que temos
tido 2007, 2009, 2011, 2013 é maior do que tínhamos lá, então, não houve uma quebra, por
exemplo, no nosso IDEB. Acho que o IDEB de 2015 mostrará que a gente melhorou muito.
Então, pergunto: “Que conteúdo?” Deve ser o conteúdo que estão querendo que dê, né?
Porque melhorou e a prova Brasil mede isso, né? Isso aí é uma previsão minha e da Amélia.
Em 2013, ganhamos uma plaquinha da nossa DRE. Das 36 escolas de ensino fundamental, só
seis estão na média e a “Campos Salles” está dentro dessas seis. Só que é baixíssimo, não
158
chega a 5... 4.7 (mas é maior que o programa anterior). Antigamente, era 3.7. Lembro bem
disso. Houve uma melhora. Não perdeu em nada. A minha teoria e da Amélia é que ninguém
deixe ninguém para trás, você tem que ser solidário. Tem que ter responsabilidade para
caminharem juntos.
Sérgio – Já aproveito que você tocou nesse assunto: é possível notar alguma relação
entre essas interações aí e a autonomia, responsabilidade, solidariedade? Pode
discriminar?
Braz – Hoje, temos professores na “Campos Salles” que vivem essa ética, que exercem essa
autonomia, que assumem as consequências da autonomia. Só que tem o seguinte, quando a
gente fala em uma ética pautada na autonomia, responsabilidade, solidariedade, não estamos
falando em uma ética individual, pois isso tudo tem que ser discutido e pensado dentro do
grupo. Essa autonomia não é estar lá dentro do salão. Esses princípios se inserem dentro de
um coletivo. Não sei se deve estar bem por dentro dessa reflexão. Não sei se tem decisão
individual. Meu conselho de autonomia é o seguinte: quanto mais articulado com o grupo,
seguindo os princípios do grupo, mais autonomia eu tenho. Quanto menos articulado a um
grupo, quanto mais isolado eu estou, menos autonomia tenho. Quando falo isso, estou
pensando naquilo que a gente viveu na “Campos Salles”. Tenho uma foto que estou batendo
para derrubar uma parede com a marreta e teve um momento de reflexão em que cada um
falou. Quando essa foto chegou no “Edmundo”, ele disse: “Autonomia é o seguinte. Vejam o
Brás com aquela marreta. Não é o braço do Brás que está ali. Aqueles braços representam
centenas e centenas de pessoas dessa comunidade, porque na hora de tirar parede, foi
discutido e conversado extenuadamente com muita gente, então, aquilo ali poderia ser meu
braço, ou do Genário, ou de qualquer um. Autonomia é isso”. Tem gente que se equivoca com
autonomia. Esses dias, passei lá e tinha uma professora que lecionava para os alunos do
último ano e eles disseram a ela que queriam doar o uniforme deles. Então, pegaram o saco e
encheram de uniformes. Esses alunos não têm nem 18 anos. Diante dessa situação, os pais
desses alunos podem questionar o motivo de seus filhos não terem recebido o uniforme não
sabendo que eles haviam doado. Eles podem pedir que alguém responda por isso e exigir
novamente o uniforme. Então, quando se fala que o professor de lá é mais autônomo, é
autônomo porque ele pode se colocar, pode se expressar, mas tem que construir isso
coletivamente. Porque o que estamos combatendo lá é exatamente esse individualismo, esse
isolamento. Agora, nesse caso dessa professora que permitiu que os alunos doassem seus
uniformes, ela até pode dizer que assume a responsabilidade, porém, na hora de acionar, quem
159
paga é o diretor da escola. Para o sistema autoritário é o diretor que responde, e não, a
professora. Então, ela não pode tomar uma decisão dessas. Com o avanço que teve lá,
qualquer um pode tomar decisão, mas tem que se responsabilizar pela decisão tomada. E
mais: ao tomar a decisão, deve se responsabilizar sem prejudicar o outro, porque, se a decisão
prejudica o outro, não é legítimo tomar essa decisão. Hoje, acredito que muitos alunos e
professores de lá vivem essa ética e sabem que para que avançar, têm que atuar
articuladamente com o outro. O outro e-xis-te! Nesse sentido, houve um grande avanço,
inclusive de entender que, muitas vezes, quando se fala em autonomia, pode estar falando de
forma equivocada. Hoje, veio aqui um professor denunciando a direção da escola, mas depois
descobrimos que a briga com a diretora, a raiva e a acusação eram porque ela o proibiu de
usar um armário. Ele não foi honesto conosco. Ele tomou uma decisão de vir aqui, só que o
outro não existe para ele. Ele sonegou informação. Se a gente não ouvisse ambos os lados e
acatasse somente a denúncia dele, prejudicaria o outro. Hoje, temos um professor e um aluno
mais autônomo na sala de aula e dentro da escola.
Sérgio – Você reagiu emocionalmente à implementação e aos resultados do novo projeto
pedagógico? De que forma ela ocorre?
Braz – É um processo doloroso... Tem momentos que você fala: “Meu Deus do céu! Será que
não está sendo uma aventura? Será que estamos caminhando para algum lugar mesmo? Que
correção tem que fazer? Será que não tem outra forma mais serena, mais tranquila?” Não tem,
não tem! Então, dentro desse projeto, as amarras da palavra devem ser soltas e esse processo
traz dores, sabe? Não é qualquer coisa que a gente quer ouvir. A gente também tem
consciência de que não é qualquer coisa que deve ser falada, porque pode provocar, mas, se
você quer sair das mesmices, tem que se expor a isso aí, tem que abraçar o conflito. O conflito
tem que ser incorporado, tem que trazê-lo para dentro das relações, para dentro da estrutura,
ele não pode ser encarado como uma coisa ruim. Tem que ser encarado como uma
possibilidade que leva ao amadurecimento, que leva a aprofundar, a avançar, que faz com que
o movimento continue. Sinto que a gente está dentro desse processo. Então, tem essa questão
da emoção. Tem momentos que você fala: “Mas que besteira! O que eu fui inventar? O que
nós inventamos?”, mas há momentos que dizemos: “Valeu, Deus! Que maravilha! Que bom
que a gente teve essa coragem!”.
Sérgio – Então, você toma decisões emocionais ou cognitivas como diretor?
Braz – Acho que a base de toda decisão é emocional. A gente tem o cognitivo para dar uma...
mas acho que a emoção não... Acho que o cognitivo que não passa pela emoção, não é bem
160
uma característica humana, é uma coisa que está para além do humano. Acho essa pergunta
muito importante, porque nunca imaginei ser diretor regional de educação, porque sou de
ponta, sou de amassar barro, sou de estar lá no calor das coisas. São Paulo está dividido em
treze diretorias regionais de educação. A nossa é do Ipiranga. Eu ajudo a secretária a cuidar de
240 escolas e a DRE/Ipiranga pega quatro subprefeituras: a da Vila Mariana, da Sé, do
Ipiranga e da Vila Prudente. É uma área extensa. Há mais de um milhão de habitantes. Há um
ano, recebi um telefonema de uma mulher se dizendo da secretaria, mas não relacionei o
nome com a fisionomia. Ela disse que tinha que ter uma conversa reservada comigo, mas
queria que fosse em um restaurante. Pensei: “Que diabo! Que será que é isso?”. Falei para ela:
“Não posso sair daqui agora, pois estou sozinho.”. Então, ela me disse que viria até a mim.
Quando ela chegou, eu estava na sala juntamente com a assistente de direção e a mulher me
perguntou se eu poderia mostrar o espaço. Ao mostrar o espaço, ela me disse: “Não estou
querendo conhecer espaço. Vim aqui a pedido do secretário. Quero saber se você aceita ser o
diretor geral da DRE/Ipiranga?”. Eu disse que não, mas que iria conversar com minha equipe
da escola e que iria falar com algumas lideranças comunitárias. Ela disse que eu tinha que dar
a resposta naquela noite. Conversei com o pessoal e diziam para mim que não era hora de eu
sair da escola, mas se eu escolhesse isso, eles apoiariam. Até falei com minha filha, que à
época estava com 25 anos, sobre essa minha dúvida. Ela me disse que eu era homem maduro
e pediu para que eu descobrisse meu desejo e o realizasse (sorriu). Então, não ajudou em
nada. Decidi dizer não. Então, uma pessoa de Macaé, ligou para mim e contei sobre o convite
da DRE e falei que havia decidido não aceitar. Essa pessoa me orientou a pedir a opinião do
Oriovaldo (assistente). Então, falei com o Oriovaldo e ele me disse: “ACEITA JÁ! Você já
está há sete anos podendo se aposentar, mas não se aposenta por causa do projeto da escola.
Você vai ter a oportunidade de experimentar por um ano e oito meses e ver como a escola se
comporta na tua ausência”. As argumentações dele foram fortes e fiquei balançado. Então,
liguei naquele dia e perguntei se podia esperar até o outro dia e eles deixaram, acho que
sabiam que eu ia falar sim e, realmente, aceitei.
Sérgio – Quantas escolas a diretoria possui? Você intenciona e considera viável
implementar nessas escolas um projeto pedagógico semelhante ao da “Campos Salles”?
Braz – Temos 240 escolas. Uma boa parte delas é conveniada. Conveniadas significa que a
administração é de ONGs e, principalmente, escolas de creches. Só criança pequena. A
prefeitura não tem como arcar e construir escola para toda essa gente usar espaço. Não é
possível replicar projetos, pois a escola é como uma pessoa. Cada escola é única. É uma
161
combinação do diretor, das coordenadoras, dos professores e dos pais. Os projetos podem ser
fontes de inspiração para outras escolas. Agora, o que toda escola tem que fazer, é respeitar a
criança como um ser integral, como um ser completo, como um ser competente, que é capaz
de se organizar individualmente e coletivamente para aprender e viver e que é portadora de
conhecimento. Todas as escolas têm que trabalhar dentro dessa óptica. Não há mais
cabimento a escola se relacionar com criança como se ela fosse uma tábula rasa, uma
miniatura de adulto. O projeto que a escola escolhe eleger deve ser único. A gente não propõe
a replicação. Sei que o projeto da “Campos Salles” inspirou algumas escolas.
Sérgio – Por último, você gostaria de acrescentar alguma informação que considera
relevante?
Braz – Bom... acho que... os educadores e as escolas tinham que ter mais consciência do bem
que elas podem fazer para ajudar e organizar a sociedade. E... transformar pela Educação.
Essa transformação pela Educação tem que estar embasada na justiça, na democracia, na
autonomia, na responsabilidade e na solidariedade. A escola que não tiver isso, não sei o que
ela está fazendo. O que estou querendo dizer é que a escola não pode ser transformadora, se
ela atua entre as suas paredes e não adianta falar que ela está ajudando o aluno com
conhecimento e que esse aluno é que vai mudar lá fora. Isso é papo furado. A escola tem que
ir e estar aberta à comunidade. É um movimento de mão dupla. Estão surgindo projetos
reacionais que querem impedir o professor de fazer certas reflexões e de emitir seu juízo
político, pois a escola deveria ser o local onde várias opiniões fossem colocadas e que
permitissem que o aluno comparasse essa diversidade de opiniões para construir a sua. Estou
muito preocupado com Alagoas. Tem um deputado propondo um projeto chamado Escola
Livre, no qual o professor não pode de forma alguma expressar suas opiniões políticas. Tenho
uma grande preocupação com isso, pois, se as escolas tivessem cumprido seu papel de ajudar
a construir uma sociedade mais justa, mais humana, mais igualitária, mais responsável e
solidária, não estaríamos passando por esse momento da nossa história. Pergunto: qual é
realmente o papel da escola? Formar engenheiro que está preocupado só com sua profissão?
Formar médico que está aí somente para xingar? Agora, a escola que quer, ainda tem jeito de
construir alguma coisa e, para sobreviver, ela tem que ir se articulando com outras
experiências, pois com o isolamento ela acaba se perdendo também e retrocedendo.
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Amélia — Não, não fui professora da “Campos Salles”. Eu já vim para cá como
coordenadora, há dez anos, estou cursando o décimo ano aqui, como coordenadora
pedagógica.
Sérgio — Seria a quinta questão. Há quanto tempo você é coordenadora pedagógica
aqui, na “Campos Salles”?
Amélia — Então, estou cursando meu décimo ano.
Sérgio — Na sexta questão, você poderia citar os dois principais motivos que a fizeram
escolher a EMEF “Presidente Campos Salles” para exercer a função de coordenadora
pedagógica?
Amélia — Eu, a dez anos atrás, eu trabalhava em uma escola na zona leste e eu vivia
descontente com o sistema e com as escolas tradicionais e passei a procurar alguma escola
que tivesse algum projeto diferente, que estivesse em um processo de transformação. Então,
eu fiquei sabendo do “Amorim Lima”, no Butantã, mas seria uma escola muito distante para
mim. E, assim, eu gostaria que fosse nessa região aqui, que eu tenho muita simpatia por essa
região. Então, eu tomei conhecimento da existência da “Campos Salles” já através da mídia,
porque a escola, na época, já era muito famosa em relação à integração com a comunidade.
Então, esse foi o motivo que me trouxe até aqui, porque, até então, a escola não vivia ainda a
implementação desse projeto, tal qual está hoje aí, mas ela era famosa pela questão da
integração. E como eu acredito, como eu tenho essa concepção de escola, que a escola... ela é
da comunidade, de quem é a escola? Da comunidade. Mas a escola é, ao mesmo tempo, um
espaço onde ela deve, sim, significar uma liderança na comunidade onde atua. Então eu fiquei
sabendo, na mídia, do roubo dos computadores e que, depois, eles foram devolvidos, da
articulação que o diretor e os professores tinham com a comunidade, que comunidade e escola
passavam a ser uma coisa só. Eu disse, “Não, é nessa escola que eu quero estar, é nisso que eu
acredito!”. Isso foi, primeiramente, o que me motivou e, depois... Fala, meu bem. Quando eu
fiquei sabendo dos princípios da escola, que haviam sido votados no conselho de escola, por
lideranças e pessoas da comunidade, eu falei, “Não, é desse projeto que eu quero participar,
ele que vem ao encontro das minhas concepções!”.
Sérgio — A sétima pergunta é: por que a EMEF “Campos Salles” precisava de um
projeto pedagógico significativo?
Amélia — A escola, naquela época, já tinha avançado em relação às questões da violência, já
tinha passado, por conta dessa integração, porém a verdade é que as coisas na sala de aula não
rolavam, os estudantes não estavam aprendendo, segundo aquilo que se considerava o que era
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aprender. A questão é que se tentavam novos caminhos, novas concepções, novas práticas
pedagógicas e se discutia, nos horários coletivos, mas quando cada professor ia para a sua
salinha e fechava sua porta, instaurava-se a pedagogia da maçaneta e, aí, cada professor, com
as suas concepções, tinha uma concepção de escola na sua cabeça, cada professor, a cada
quarenta e cinco minutos entrava um professor que tinha uma escola na cabeça dele, uma
concepção de avaliação, uma concepção de aprendizagem, uma concepção de estudante, uma
concepção de professor e, a cada quarenta e cinco minutos, entrava outro com outras
concepções e isso é o que é a escola tradicional que, nos últimos cem anos ou muito mais,
vem produzindo... esses que a gente vem chamando de zumbis alienados. Porque a escola é
um espaço de alienação, que vem formando cidadãos, pessoas alienadas da vida, então eu me
peguei, como era a pergunta mesmo? Por quê? Não é a sétima?
Sérgio — É.
Amélia — Por que esse projeto pedagógico? Então, o que nós chegamos à conclusão, que
cidadãos são esses que nós estamos contribuindo para que se constituam sujeitos, cidadãos,
enfim, dentro dessa escola, com essa proposta, com esse projeto? Então, o diretor Braz e as
coordenadoras da época e professores que aqui estavam foram pesquisar projetos inovadores,
pesquisaram vários, mas aquele que fez sentido, para quem estava aqui, na época, foi a Escola
da Ponte, a Escola da Ponte inspirou esse novo projeto. Porque aquilo que acontecia aqui não
era mais significativo nem para educadores nem para estudantes: era um nada, era uma prisão
ali, onde cada grupo fica em uma cela, com aquela porta trancada e cada um que entrava...
Então, toda essa segmentação, toda essa, nada disso fazia sentido mais para todos que aqui
estavam, foi quando começou a nascer um novo projeto inspirado nos princípios da Escola da
Ponte. E eu também tomei conhecimento de que isso tinha acontecido aqui. Claro que essa
implementação desse projeto levou muitos anos e, felizmente, que eu aqui já estava desde o
começo da implementação.
Sérgio — Nas próximas quatro perguntas seria em relação a esse projeto pedagógico
implementado. Na oitava pergunta: ele provocou reações emocionais nos docentes? De
que maneira poderiam ser percebidas essas reações?
Amélia — O projeto em si?
Sérgio — É, a decorrência do projeto, em decorrência da implementação.
Amélia — Todo processo de transformação provoca reações emocionais que, muitas vezes, se
revelam até fisicamente, de forma a somatizar certas emoções, mas vamos falar das emoções.
Todo processo de transformação provoca isso nos seres humanos e isso é curioso, porque a
165
uma equipe. E, ainda que alguns não comungassem das transformações e das propostas, a
maioria se sentia muito acompanhada nessa empreitada. Então, as reações foram minimizadas
por conta de tudo isso.
Sérgio — As reações negativas?
Amélia — Sim, porque eu já ouvi até professor dizer que precisou fazer terapia por conta do
projeto. Porque não tem como você transformar sua prática pedagógica, transformar suas
concepções sobre educação e tudo o que a envolve sem se transformar internamente, é uma
transformação simultânea aí, uma depende da outra. Então, no processo de transformação da
educação e da prática, o educador também está se transformando enquanto pessoa, enquanto a
visão de si e do mundo. Obviamente, que todas as questões emocionais estarão aí.
Sérgio — Aí, no caso, a questão nove também tem a ver com esse diálogo, ele propiciou
alterações no trabalho docente? Na postura, também, consequentemente. Você, por
favor, você pode discriminar as principais alterações?
Amélia — Sim, vou dizer algumas, seria uma conversa muito longa, mas vou dizer algumas.
Alterações no trabalho docente? Total. Porque, assim... a proposta pedagógica, o Projeto
Político-Pedagógico, ele tem uma concepção de currículo e de metodologia. Isso, obviamente,
já transforma toda a prática. Se, antes, o educador tinha “minha disciplina, meus alunos,
minha lousa, minha prova”, tudo era dele, ele era o centro de tudo, agora você está em um
projeto onde tudo é nosso, são nossos estudantes, porque, na prática, os professores trabalham
em equipe, todos os estudantes são de todos eles. Eles produzem os roteiros de estudos, que
são roteiros construídos pelos professores em equipe. Como nós temos uma concepção
interdisciplinar, acreditamos que todo conhecimento é de natureza interdisciplinar. Então, não
tem como separar o conhecimento, fragmentar em disciplinas. Aliás, se formos pensar no
significado dessa palavra, disciplina, então, muda tudo. Quando o professor está no projeto e
sabe que ele não vai mais dar aula, que o estudante, se ele precisar de informações que vão
além do projeto que ele está estudando, ele não precisa contar só com o professor, ele pega o
celular dele e ele tem o mundo de informações na internet, sendo que, na verdade, que o
professor pode ajudá-lo é fazer dele, que ele se transforme em um pesquisador,
verdadeiramente, porque a internet traz todas essas informações. Então, o papel do educador,
ele tem uma concepção completamente outra. Quando eu era estudante do fundamental I, do
fundamental II, por exemplo, do ensino fundamental, os meus professores eram a minha única
fonte de informação, era minha única fonte. Então, era centrado no professor. Minha segunda
fonte seria uma biblioteca, mas que não era algo tão fácil assim de se ter acesso, na minha
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época de estudante do ensino fundamental. Só que hoje, com a internet, com esse mundo
global, a fonte de informação, tudo mudou, só que nem por isso deixou de ser importante o
papel do professor, aliás, muito bem ao contrário, a função do professor... ela é extremamente
importante. Aquele que vem servir de ponte nas relações, então, qual é essa relação do
estudante com o conhecimento? Que relação é essa? Então, esse professor, que toma aí, então,
um papel de mediador dessa ponte entre o objeto de conhecimento e o estudante...
fundamental o papel do professor. Então, dentro de todas essas concepções, a prática do
professor muda completamente, ele não vai dar mais provas, porque a avaliação... ela é um
processo, ele não vai mais preparar aula, os professores vão fazer assembleias com os
estudantes, os estudantes vão votar qual é o tema que eles querem estudar e o tema mais
votado vai, aí, gerar um roteiro de estudos e, aí, os estudantes vão, quer dizer, muda
completamente todas as relações. Obviamente que essa pergunta... eu iniciei dizendo
totalmente, muda totalmente mesmo, porque muda o currículo, muda a metodologia, muda
tudo.
Sérgio — Na décima pergunta. Esse projeto provocou reações emocionais nos alunos?
Nas interações na sala de aula? De que maneira poderiam ser percebidas essas reações,
nas interações abaixo? Começando pela interação professor-aluno.
Amélia — Totalmente, em ambos. Porque muitos educadores têm, foram formados assim nas
universidades e já viveram esse currículo e esse sistema na universidade. Então, eles
acreditam que há um poder neles, há uma autoridade no professor, pelo simples fato de ele ser
professor, que o estudante tem que respeitar. A autoridade... ela, porque a escola, volto a
dizer, são relações e as relações de poder estão o tempo todo presentes. Então, essas relações
de poder, onde o educador acredita que ele tem poder, que ele deve ser respeitado e que nunca
pode ser... que nunca pode haver divergência, o que ele diz é verdade, é o melhor, é o certo. E
em uma proposta onde você, como a da nossa escola, onde se espera que esse estudante se
constitua como um cidadão, que ele se constitua como um agente transformador de si e da
sociedade, ele precisa exercitar a divergência, ele precisa exercitar o poder de argumentação,
que é uma competência bem complexa para desenvolver poder da argumentação. Então, e o
educador que veio de toda essa formação tradicional... ele encara esse exercício do estudante
como uma afronta, como um desrespeito e, aí, entram todas as questões emocionais. Então, eu
me perdi, você perguntava?
Sérgio — Da interação professor-aluno da sala de aula, quais são as relações emocionais.
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felizmente, eu vou comentar com algum educador e falo: “Ó, você percebeu? Fulano está
diferente hoje...”. (E o outro diz): “Já percebi, já conversei com ele e, aí, ele já me contou,
está vivendo um momento difícil e tal.”. É esse ser completo que está lá, que não é só a
cabeça dele que está lá, ele está lá com o corpo inteiro, com todo o ser dele, com toda a
história dele, com todo o contexto dele... Então, isso tem a ver com essa relação, também.
Sérgio — Na b, na sala de aula, a interação aluno com o espaço e o ambiente.
Amélia — Aqui a gente modificou, dentro do nosso currículo e a partir das nossas
concepções, tempos e espaços. Então, eles participam de vários espaços de aprendizagem.
Então, há o salão de estudos, onde é um espaço que eles estudam os roteiros de forma
interativa, eles sentam em grupos de quatro, eles conversam o tempo todo. O ser humano se
constitui falando, se constitui na linguagem, se constitui na relação com o outro, então, eles
debatem, eles escolhem o que vão estudar daquele roteiro, eles têm uma meta diária que eles
mesmos criam, qual é a meta diária, para ir desenvolvendo responsabilidade e autonomia. E,
aí, eles discutem, eles debatem, eles conversam sobre os estudos, sobre a vida, eles conversam
sobre tudo, sobre qualquer assunto, durante as horas que ali estão e isto é fundamental. E, aí,
eles têm outros espaços, também, eles têm oficinas em pequenos grupos, então eles vão para
outros espaços, na torre, na área externa, eles têm música, eles têm outros projetos onde eles
estão em outros espaços aprendendo. Eu acredito que a escola, ainda... ela precisa se
transformar muito mais na questão do espaço, para produzir esses ambientes, mas essa foi a
transformação que conseguimos até agora, tirando as paredes e as portas e, nesse espaço, que
chamamos de salão de estudos, onde há um espaço amplo onde o estudante que chama o
educador, o educador vai até a mesa deles conversar com eles. Então a gente vê muitos
estudantes, quando saem daqui e vão para o ensino médio, dizendo: “Ah, eu estou me
sentindo em uma prisão, porque agora a gente fica em uma sala de aula, com tudo fechado,
com porta fechada...”. Então, ao menos isso a gente está proporcionando. Agora, você pode
me esclarecer melhor o que você gostaria de saber sobre essa interação do estudante com o
espaço e o ambiente?
Sérgio — Sim. A questão do ambiente e do espaço, ele está propiciando um ambiente de
bem-estar? Isso está levando a uma reação emocional positiva dos alunos?
Amélia — Sem dúvida. Eles transformam, há uma possibilidade de transformação do
ambiente e isso acontece em vários momentos durante o dia. Então, de repente, eles
empurram todas aquelas mesas e vão fazer ali uma roda de conversa, rodas de conversa
também acontecem diariamente, então eles mudam ali. De repente, eles resolvem fazer
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determinada oficina e eles juntam mesas, duas mesas, duas mesas ou juntam cinco mesas com
cinco mesas, eles interferem na mobília conforme o que eles pretendem fazer e isso,
obviamente que as emoções estão todas, o tempo todo, ligadas aí.
Sérgio — Na... como, então, ocorre na sala de aula a interação aluno-aluno? Nas mesas,
especificamente.
Amélia — Olha, isso é tão interessante, porque tem a ver com as mesas, eu vou falar primeiro
das mesas. Então, no início do ano, eles escolhem sentar por afinidades, então eles sentam por
afinidades, mas, como tudo se transforma o tempo todo, nós também... nós nos transformamos
o tempo todo, nós não somos mais os mesmos do que éramos hoje, sete horas da manhã,
certamente, nem biologicamente, nem emocionalmente. Nada... tudo se transforma o tempo
todo. Então, eles podem chegar e falar, chamar o educador e falar assim: “Olha, eu não quero
mais sentar com ele, não está dando certo”. “Mas vocês eram amicíssimos!”. “Agora, nós
estamos divergindo demais, está começando a dar briga aqui, eu quero ir para outra mesa.”.
Então, há uma conversa ali, quem sabe, vamos fazer uma mediação desse conflito: “Não, não
tem, não quero, não me sinto mais bem com ele, eu quero uma nova mesa, uma nova equipe,
quero estar com outras pessoas.”. E, aí, só que essas pessoas precisam querer estar com ele
também. Veja a riqueza de todas essas relações, desse exercício todo, tem que ter um
convencimento, um desejo de todas as partes, isso só na questão de afinidades, mas há,
também, uma questão pedagógica. Há aqueles, por exemplo, que são muito amigos, que
gostam de estar juntos, interagem muito bem, porém, para trabalhar juntos, não dá certo. Há
aquilo que eu chamo de temperamento, por exemplo, há pessoas extremamente agitadas e há
pessoas extremamente calmas. Para estudar juntos e aprender ou trabalhar juntos, muitas
vezes, em especial nessa faixa etária e eles mesmos reconhecem isso, se eu puser quatro
estudantes extremamente agitados por temperamento, não vou chamá-los de indisciplinados,
estou falando que é temperamento e isso não se avalia, temperamento não se avalia, é o que
há de único em cada um, então, com aquele temperamento agitado, quatro estudantes...
certamente, vai ser difícil para eles uma coisa chamada foco, concentração, conseguir
mergulhar nos estudos e eles próprios vão acabar... “Não, não dá mesmo! Nós vamos ter que
mudar esse grupo, porque nós chegamos em um ponto de interação, de intimidade, assim, de
amizade, que a gente não consegue mais estudar juntos.”. Aí, conversa com os educadores,
eles podem mudar esses grupos, entendeu? Isto é uma forma de interação estudante-estudante.
Agora, as comissões mediadoras... elas transformaram demais essas relações. Muitos anos
atrás, havia aqui – e há em nossa sociedade – uma prática, uma cultura assim: a cultura do
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dedo duro, que é delatar o outro, que é “Você está dedurando!”. Então, você tem que encobrir
erros de outras pessoas, porque você está delatando. A cultura do chamado X9, que eles
diziam, “É, você é X9, você me dedurou, quando eu sair daqui eu vou te pegar, você vai ver!”
e brigavam e tal, e tal. E, aí, a gente pensa, como é importante para nós a questão dos valores,
das emoções, dos princípios, a questão ética, será que é ético tudo isso? Então, é uma
construção de muitos anos chegar nessa relação estudante-estudante que hoje, quando
falamos, porque aí entrou o conceito de solidariedade, então a questão do dedo duro foi
substituída por solidariedade. Fulano está fazendo algo muito errado, como é que nós
podemos ajudá-lo? E, para ajudá-lo, nós vamos ter que contar para as pessoas que podem
ajudar. Então isso foi mudando, hoje não existe mais isso, hoje é cultura aqui. Então, se o
estudante estiver fazendo algo que é errado, que está prejudicando a si próprio ou outros, na
relação com os próprios estudantes aqui da comissão, a coisa vem à tona. Há, por exemplo,
um estudante que escreveu na internet, publicou em uma rede social, falando, difamando uma
estudante, um desrespeito à figura da mulher, sempre com um conteúdo sexual e, na hora que
eles descobriram, todos fizeram uma reunião aqui, em uma indignação tamanha: “Não
aceitamos esse desrespeito com a mulher e nem com a nossa amiga!”. Olha as relações entre
eles, que, agora, é uma coisa mais democrática, é uma construção de democracia, é uma
construção de ética, a vivência. Essas relações são fundamentais e, obviamente, que envolvem
muitas emoções. Ontem... eu tenho um exemplo disso, tinha uma estudante aqui, era uma
reunião do quarto ano, de comissão, com estudantes que estavam desrespeitando e não tendo
atitudes de paz, como a gente costuma dizer, para resolver conflitos e a pessoa, a estudante
que estava coordenando a reunião começou a chorar e chorava copiosamente, aí, quando eu
cheguei aqui, foi interessante, eu estava de passagem e ela chorava e dizia para eles o que ela
estava sentindo, que ela não estava sendo respeitada na liderança, na coordenação da reunião
e que todos queriam falar ao mesmo tempo e que era ela que tinha que dar a voz, se era ela a
líder... e aquilo mexeu muito com ela e ela chorava, e isso faz parte, viver essas emoções. Foi
assim que ela conseguiu viver aquilo. Há outros estudantes que, ao invés de chorar, vão ficar
muito bravos e, aí, vem aquela emoção de raiva e de... “Não, vocês vão me respeitar!” e está
nesse exercício de impor a liderança ou de argumentar, de convencimento. Há uma questão de
solidariedade tão forte, tão forte, já vi estudantes aqui, em uma comissão mediadora, chorando
de emoção, sensibilizados com a questão de um estudante, quando ele se abriu e confessou a
eles o que ele estava vivendo na casa dele e que ele, sem consciência, acabava projetando aqui
e foi tomando consciência e a comissão ajudando, quando eu passei por aqui estavam todos
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chorando: ele e todos que estavam presentes. Aquilo foi um momento de uma comoção geral
e que tornou aquele grupo tão unido em torno de ser solidário e ajudar aquele estudante, de
uma forma que eu nunca tinha visto. Olha, eu vi poucos adultos conseguirem se reunir para
ser solidário com alguém e viver emoções, sentimentos e uma determinação, mesmo, de
ajudar o outro, como eu vi, como vejo com crianças e adolescentes. Então essas relações são
todas muito permeadas de emoção, de sentimento, daquela coisa fraterna e, junto com isso,
obviamente, está misturado o conflito. Nós somos seres que temos guerras interiores, todo ser
humano, nós temos conflitos interiores e, quando nós nos relacionamos com o outro, seja
estudante, seja família, seja professor, são os nossos conflitos conflitando. E, aí, estão todas as
emoções. Nós somos seres contraditórios em todas as áreas da nossa vida, a contradição está
sempre presente. Então, quando a gente se relaciona e consegue perceber ou que o grupo nos
mostra nossas contradições e que nós queremos aprender e tomamos consciência das
contradições, isso nós faz crescer muito, mas nada disso acontece sem as emoções, sem os
sentimentos de dor, de alegria, de prazer, de desprazer, de amor, de ódio até. Tudo isso está
presente o tempo todo, porque isso é humano.
Sérgio — No item d, na sala de aula, essa interação, como ela ocorre com o aluno e o
conteúdo?
Amélia — Os estudantes... eles estudam os roteiros de estudos e eles fazem oficinas de
matemática e oficinas de produção de texto, oficinas de inglês com música e oficinas de arte,
entre outras coisas no currículo. Estou falando assim, basicamente. A interação com o
conteúdo... ela é muito interessante, muito interessante isso, porque o que antes, quando a
escola era tradicional, há muitos anos atrás, a interação com o conteúdo. Então a relação com
o conteúdo é interessantíssima, porque, antes deste projeto, quando a escola era tradicional, a
relação do estudante com o conteúdo era uma relação de cópia, o estudante fazia cópias da
lousa, cópias que nem sempre ele dava conta de fazer e, a cada quarenta e cinco minutos,
entrava outro professor, apagava tudo o que o estudante estava copiando: “Não, agora é a
minha aula!” e tudo era desconectado. Então, essa era a relação. Ele tinha que responder
perguntas sobre... era uma relação onde o professor reproduzia informações para que o
estudante reproduzisse conhecimentos. Então a relação atual do estudante com o conteúdo, o
que o projeto espera é que essa relação vá muito além da construção desse conhecimento já
produzido pela humanidade, mas que seja, também, uma relação de produção de
conhecimento. Então, que relação é essa? É uma relação de pesquisa, é uma relação de
questionamento, é uma relação de debate, é uma relação do pensar, porque, quando a escola
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era tradicional, o que acontecia? O estudante não precisava pensar. O que esperamos é que o
estudante passe a pensar e pensar e discutir o que pensa com outros, porque eles estão em
grupo. Então, que ele seja autor de suas pesquisas, da construção de seus textos, de suas
respostas. Uma relação, uma interação com o conteúdo completamente diferente do que
existia antes. Já começa de que eles podem escolher um tema voltado para o salão, onde todos
eles possam aprofundar. Então nós estamos implementando, este ano, a tutoria e, dentro da
implementação da tutoria, onde cada professor tutor terá aquele pequeno grupo de tutorados,
com o passar dos anos, o objetivo é que também eles possam ter projetos pessoais de estudo,
bem como, esses projetos coletivos, sempre partindo do desejo do que eles querem aprender.
Eles também discutem em assembleia o recorte do que vão estudar, além do tema, que recorte
vai ser esse. Porque a relação que existia antes é a de que eram os educadores que decidiam o
que os estudantes iam aprender, o que eles precisavam aprender. Então, há, então, a
participação dos estudantes naquilo que eles desejam aprender. Então eles têm essa relação
interativa, essa relação na direção da produção de conhecimento.
Sérgio — Na questão número onze. É possível notar alguma relação entre essas
interações e a autonomia, a responsabilidade e solidariedade? Você poderia
discriminar?
Amélia — Total. Toda a metodologia e todo o currículo visam contemplar a vivência e a
construção da autonomia, da responsabilidade e da solidariedade, e todos os valores, hábitos,
que giram em torno da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade, que formam uma
ética. Então cada elemento desse não existe sem o outro, essa tríade. Então, logicamente,
quando os estudantes podem discutir em uma assembleia, “queremos estudar”, por exemplo,
“fundo do mar” e aqueles outros estudantes querem estudar, “Não! Queremos conhecer mais
sobre astronomia” e aqueles temas mais votados serão estudados agora e, depois,
posteriormente e tal. Quando o estudante pode escolher, em grupo eles podem ali decidir que
atividade que eles vão fazer naquele dia, dentro daquele roteiro, estão vivenciando a
autonomia, quando eles sabem que eles têm que fazer um planejamento diário e que têm que
procurar cumprir aquele planejamento, eles estão vivendo responsabilidade. Quando eles
vivem a solidariedade, nesse sentido de que, nos grupos de estudos, há um exercício de aceitar
a ajuda do outro, o exercício de ajudar o outro nessa vivência de solidariedade, tanto nas
questões dos estudos dos roteiros, como nas questões da convivência. Então, há uma vivência
o tempo todo dessa construção nas comissões, em tudo, em tudo, veja. Todo o currículo da
escola, em todo o currículo da escola, todos os presentes aqui estão, o tempo todo,
174
pessoas. Então, obviamente que o mundo está dentro da escola e a escola está dentro do
mundo. Então, obviamente, que há muitos momentos de tristeza entre as relações e as
pessoas, entre o projeto, mas aqui tudo é permitido, sentir triste, sentir revoltado, sentir
indignação, sentir alegria, sentir orgasmos pedagógicos, a gente sente todas as emoções e,
mais do que isso, que eu acho muito importante no nosso projeto, a gente sente e pode
expressar, se quiser. Porque sentir emoções, todo ser humano sente o tempo todo e onde quer
que esteja, mas, nesse espaço escolar, que é um espaço de relações, é permitido expressar
emoções? Há espaço para isso? Sim, aqui há espaço. Você viu, por exemplo, as crianças
reunidas aqui, hoje? O Felipe dizia assim, “Eu estou muito triste!”, expressando a emoção; “O
Yuri foi embora, mudou de endereço, saiu da escola, ele era meu melhor amigo, ele não se
despediu de mim!”. E eu sei que ele ficou triste, no dia que ele soube, ele chorou e expressa.
Então, expressar emoções, expressar sentimentos, se a escola é a vida, aqui é espaço para tudo
isso.
Sérgio — A questão treze. No exercício de sua função, você toma decisões emocionais?
Amélia — Essa é uma pergunta complexa. Há situações que provocam em nós o surgimento
de várias emoções. Você sabe que eu, eu costumo, pra responder essa pergunta, eu tenho que
dizer qual é a minha concepção dessa palavra. Porque eu diferencio emoções de sentimentos e
eles acontecem em nós de forma simultânea. Então, por exemplo, eu vou chamar de
sentimento o amor, eu vou chamar de sentimento a compaixão, um bem querer, um medo
muito grande, é algo que se sente em todo o nosso ser, mas que a gente tem uma referência
disso no peito e tem muito a ver com o que se sente e com nós próprios. Porque toda vez que
a gente fala... eu, muitas vezes, a gente pega esse dedo indicador e põe no peito e fala assim,
“eu”. E é como se o peito fosse uma referência daquilo que eu sou e os sentimentos, e por isso
tem tanta gente desenha corações. Sentimentos, algo que vem e que tem uma referência no
peito. E há as emoções, que é algo mais visceral, essa é a definição que eu dou, concepção
que eu tenho. As emoções são mais viscerais, é algo que vem de baixo para cima e, assim, que
tem a ver com raiva, que tem a ver com violência, que tem a ver com, muitas vezes, de
destruição, outras vezes, não. Há emoções que chegam a deixar certas pessoas cegas. Há
emoções que são tão fortes que provocam e que as pessoas se cegam por elas, porque elas vão
encobrir os sentimentos tão fortes que são que a pessoa é capaz de dar um tiro, matar a outra
em segundos, tomado por uma emoção que o domina, por isso eu gosto de diferenciar emoção
de sentimento. Só que elas coexistem em nós, como tudo em nós coexiste. E, aí, se você me
perguntar, no exercício da minha função, eu tomei alguma decisão emocional, no sentido de
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que minhas emoções encobriram minha lucidez e os meus sentimentos? Felizmente, não, não.
Porque eu procuro me colocar inteira em todas as situações e tomar consciência da minha
inteireza, da minha dignidade, da minha integridade, de estar inteira, se estou inteira, eu me
permito um exercício de me perceber nas minhas emoções, que aquilo me gerou, nos meus
sentimentos e na minha lucidez. Se você me perguntasse, se essa pergunta fosse outra, assim,
“No exercício de sua função, você toma decisões considerando suas emoções, seus
sentimentos e sua racionalidade?” Sim, claro. Tomar decisões não é algo muito fácil para o
ser humano, porque sabemos que tomar uma decisão envolve, exatamente, todos esses
campos do ser humano, todas essas dimensões, só que... e agora, eu estou aqui acrescentando
na questão número quatorze, o que eu gostaria de acrescentar algo de relevante. Nossa! Eu
ficaria horas aqui falando de coisas relevantes, mas vou dar sequência nessa questão número,
que fala das emoções, e vou falar da questão de tomar decisões. A escola tradicional vem
formando zumbis alienados e a escola tradicional não vem nem formando as pessoas para o
mercado de trabalho nem para a vida, nem uma coisa nem outra. Porque estamos com
carência, com falta de pessoas que saibam exercer liderança, porque, na escola tradicional,
não é permitido sentir, não é permitido sentimentos, emoções, não é permitido divergir, não é
permitido escolher. Onde está o exercício de aprender a decidir? A tomar decisões? É preciso
exercitar a competência de tomar decisões e isso precisa acontecer desde sempre com o ser
humano. Então, o nosso projeto favorece esse exercício da construção da competência para
tomar decisões, o tempo todo, eles decidem, inclusive, o que é que eles vão estudar naquele
dia e, a partir daí, tantas outras. Tomar decisões é uma competência humana muito, tem a ver
com toda a vida e isso precisa estar, precisa ser currículo da escola, aprender a tomar decisões,
pelo simples fato de que nós, seres humanos, conscientes ou não, nós tomamos decisões e
fazemos escolha a cada segundo. Nós estamos decidindo o tempo todo, com os nossos
sentidos, com o nosso pensamento, com as nossas emoções, com os nossos sentimentos, para
onde eu vou olhar, o que pensar, eu cruzo a perna, não cruzo a perna, levanto, fico de pé, faço
isto, faço aquilo, tomo foco nisso, tomo foco naquilo. Nós estamos tomando decisões e
fazendo escolhas o tempo todo, isso é vida. Apenas precisamos aprender a tomar consciência
disso e nos perceber nisso. Esse também é o caminho de perceber nossas emoções, nossos
sentimentos, nosso discernimento. A gente ouve dizer assim “Mas o projeto de determinada
escola está favorecendo, preparando esses estudantes para a vida?”, como se a vida fosse algo
que vai acontecer no futuro, entendeu, Sérgio, o que eu estou querendo dizer? A vida está
acontecendo agora. “Aí, a escola está preparando esse estudante para a vida”, a vida está
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acontecendo aqui e agora. Nós estamos a vida toda, nos preparando para a vida e é preciso
que isso aconteça dentro da escola agora. A vida só existe no agora. Então, se o estudante
pode viver a vida em todas as suas dimensões dentro da escola, ele está, o tempo todo, se
preparando para a vida. Agora, se esta escola é uma ilha, é apartada da realidade da vida e se
pensa com um sentido em si mesma, essa escola não tem vida, porque ela está matando
aqueles seres humanos que ali estão, chamados estudantes, está matando a vida.
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Daniela — Sempre. Eu iniciei em escola particular, passei por, comecei numa escola
tradicional, com modelo bastante tradicional, quando eu ainda estava no magistério. Depois,
eu passei por várias escolas particulares que eu fui transformando a maneira de enxergar a
educação. Foram, as escolas por onde eu passei que foram, inclusive, me ajudando muito
mais, ajudando muito mais a minha formação do que a própria universidade. Eu levava muito
do que eu aprendia nas escolas. Na prefeitura de São Paulo, eu ingressei como professora em
2008, depois eu assumi uma turma de SAI, que seria sala de apoio e acompanhamento à
inclusão, que é o atendimento educacional especializado e, em 2012, 2011, eu passei no
concurso para coordenadora pedagógica e, 2012, eu acessei como coordenadora pedagógica
na prefeitura. E, aí, quando eu... quando eu passei no concurso para coordenação, que eu
deixei a escola particular e fiquei só na prefeitura, porque, até então, eu tinha a prefeitura e a
escola particular.
Sérgio — Pergunta quatro. Você lecionou na EMEF “Presidente Campos Salles”?
Daniela — Não. Eu vim para cá este ano, na remoção e já vim como coordenadora.
Sérgio — Então, seria a pergunta cinco, agora. Há quanto tempo você é coordenadora
pedagógica na “Campos Salles”?
Daniela — Desde janeiro desse ano, só.
Sérgio — Alguns meses.
Daniela — Alguns meses. Quatro meses.
Daniela — Parece que já faz dez anos.
Sérgio — Pergunta seis, poderia citar os dois principais motivos que a fizeram escolher a
EMEF “Presidente Campos Salles” para exercer a função de coordenadora pedagógica?
Daniela — É, eu conheci a escola através da mídia, no programado Esquenta, esqueci o nome
da... esqueci o nome. Foram, inclusive, professores da escola que eu trabalhava como
coordenadora que me disseram que, neste programa, tinha ido uma escola que parecia muito
com a escola que eu dizia para eles que seria uma escola. É... uma escola bacana, nas
formações, nos momentos com os professores. Eu sempre, eu sempre valorizei muito a
questão das relações, a questão da resolução de conflitos numa perspectiva de aprendizado,
também da questão das relações pessoais e, para alguns professores, isso causa um pouco de
estranhamento, uma coordenadora pedagógica falando isso, porque eles estão focados na
questão do conteúdo conceitual, do conhecimento, como se ele fosse algo separado da vida. E
foram professores, um grupo de professores de uma das escolas que eu trabalhava como
coordenadora, que eu fiquei mais tempo, que me disseram que tinham visto uma escola no
180
programa da Regina Casé, lembrei, no programa da Regina Casé, que parecia muito com isso.
Eu já tinha falado para eles: Amorim, que o Amorim eu já conhecia e aí eu fui ver o programa
e comecei a pesquisar sobre a escola. Assisti vídeos, assisti as reportagens, procurar textos
que falassem, conhecer um pouco mais da proposta pedagógica da escola e fui me
identificando muito com ela. Então, acho que assim, o principal motivo que me fez vir para cá
foi a questão de lidar de uma maneira diferente com o conhecimento e com as relações. Os
espaços de diálogo, a comissão de mediação de conflitos, as assembleias. Eu acredito que não
há outro caminho que não seja esse e foi por isso que eu vim. Eu... o principal motivo é esse.
Eu estou bem longe da minha casa por conta disso, eu estava em uma escola a 4km da minha
casa, agora eu estou em uma escola 20km da minha casa. Mudei, tive que mudar muitas
coisas com relação à minha vida pessoal para estar aqui, mas eu, em nenhum momento, eu me
arrependo. Aqui, eu consigo me... fazer um trabalho que eu acredito, me realizar
profissionalmente. O principal motivo foi a questão da proposta da escola e a questão das
relações, pensar nas relações pessoais e interpessoais aí, como parte, de fato, do currículo.
Sérgio — A pergunta sete. Por que a EMEF “Presidente Campos Salles” precisava de
um projeto pedagógico significativo?
Daniela — Então... eu acredito que toda escola precise de um projeto pedagógico
significativo. Todo... toda escola precisa ter uma identidade, precisa ter, precisa ter um norte...
que as pessoas saibam para onde que esse coletivo está querendo chegar. Todas as escolas têm
problemas, claro, a gente lida com ser humano e com a formação do ser humano. Então, vão
existir muitos conflitos, mas eu acho que o diferencial aqui é que a gente sabe qual é esse
caminho, por onde que, por onde que se tem que ir. Não fica... as pessoas não ficam cada um
tentando encontrar estratégias. Uns, às vezes, até estratégias contraditórias, como se o
estudante que está ali não fosse único. Acho que é essencial você ter um projeto, Projeto
Político-Pedagógico que norteie o trabalho da instituição, o currículo e o trabalho pedagógico.
Sérgio — Nas próximas quatro questões, a gente vai falar sobre esse projeto pedagógico.
A pergunta oito: provocou reações emocionais nos docentes e de que maneira poderiam
ser percebidas essas reações?
Daniela — É... eu estou aqui, como já disse, há pouco tempo, eu comecei este ano. Mas eu
escuto relatos de professores que passaram por essa mudança, de como que isso mexeu
emocionalmente. O que eu escuto muito foi com relação às paredes que, quando caíram as
paredes e os professores começaram a trabalhar, de fato, em equipe, eles começaram, de fato,
a trabalhar juntos, de como... de como foi diferente, eles, como eles, de fato, passaram a se
181
conhecer. Eu já escutei esse relato de vários professores da escola. Que era diferente você
escutar as queixas ou escutar as angústias ali, na sala dos professores e, depois, cada um na
sua sala fazendo, realizando um trabalho individualmente e, quando as paredes caíram, que
eles estavam juntos. Então, eles não só ouviam, eles participavam daquilo, eles passaram a
participar daquilo, eles estavam juntos vivendo aquilo. É, não tem como, num projeto desses,
onde as pessoas trabalham em equipe o tempo todo, professores, estudantes, não têm como
não mexer com a questão das emoções. Às vezes, já vi situações no salão, que tem um grupo
de professores e um professor toma uma atitude que o outro acha que não é mais adequada e
ele não... já ouvi que não podia desautorizar na hora, mas ele viu no meu olhar que eu não
estava aprovando aquilo. Então, eu acho que as pessoas... ficou muito mais exposta,
transparente. Outro dia, uma professora disse pra mim que o Braz sempre dizia que, quando
caíssem as paredes, não iam cair só as paredes, cairiam as máscaras, também, porque as
pessoas iam, de fato, se conhecer. E acho que é muito do que é, de fato, é muito isso que
acontece aqui. Mesmo com quem não passou por essa, por essa transformação da escola,
pela... por este progresso do projeto, pelas paredes sendo derrubadas, pelo trabalho em equipe,
mas quem chega aqui de uma outra escola, a gente percebe falas nesse sentido, da questão do
trabalho coletivo, do trabalho em grupo do professor.
Sérgio — Nessa questão... aí, propiciou alterações no trabalho docente?
Daniela — Com certeza.
Sérgio — É... por favor, discrimine as principais.
Daniela — É... com certeza. O professor... ele não está mais ali na frente da turma, na frente
ali da... entre a lousa e a turma que, geralmente, é onde o professor fica, como detentor do
conhecimento e sozinho. Ele está junto com seus pares, que eles planejaram, elaboraram um
roteiro, pensaram na rotina daquele jeito juntos, mediando o conhecimento. Atuando ali o
tempo... 100% do tempo de trabalho do educador no salão é voltado para os estudantes.
Então, eles estão o tempo todo interagindo com eles. Eu não tenho dúvidas que o trabalho
docente é muito diferente do que era ou do que a gente vê em outros lugares. A minha
referência ainda é bastante... comparar com o que eu vivia até então e que me incomodava
muito nas outras escolas. Eu costumo dizer para as pessoas da escola de onde eu estava o ano
passado, que eu vim para cá, que não foi, por mais que lá tivessem muitos trabalhos, deixar
aquelas pessoas não foi fácil, porque eu criei vínculos ali. Então, é... eu sempre, elas sempre
me procuram para... Quando tem alguma questão, quando elas querem conversar, a gente
criou um vínculo bacana. Talvez, por conta desse olhar que eu tinha para a questão mais do...
182
das questões afetivas, das questões das emoções, das questões das relações. Então, a parte...
foi mais difícil eu deixar aquelas pessoas, por mais que aquele... aquele esquema de escola,
aquele funcionamento de escola estava me incomodando muito, mas foi muito mais difícil
deixar aquelas pessoas do que reorganizar a minha vida pessoal, por exemplo. Quase todos os
dias eu converso com algum professor da escola, com a minha, a outra coordenadora, que era
minha parceira, discutindo essas... a gente continuou com um laço. E eu brinco com elas que
eu não quero mais uma escola que tem um corredor enorme, cheio de portas fechadas, que um
professor solitário lá dentro, sem poder dividir as angústias dele, as dúvidas que ele tem ali no
momento de uma situação, junto com um monte de adolescente com hormônios à flor da pele
e sem as pessoas conseguirem ter clareza de como lidar muito bem com isso. Então, eu falo
que eu não sei se eu vou, eu pretendo permanecer aqui por longos anos, mas até acho que, por
conta da distância, eu tenho um receio muito grande de ter que voltar a este outro modelo de
escola... que o trabalho solitário do professor... eu acho que é a coisa mais difícil de... agora
eu vejo, que é a coisa mais difícil de se lidar. Com certeza a mudança foi muito grande.
Sérgio — A pergunta, a décima pergunta. Provocou reações emocionais nos alunos, nas
interações na sala de aula? De que maneira poderiam ser percebidas essas reações nas
interações abaixo:
a) interação professor-aluno.
Daniela — Com certeza. O professor, ele não está mais como o detentor do saber e como
aquela pessoa que... ele vai falar e eu vou obedecer, ele vai pedir, eu vou fazer... é uma
relação mais próxima. Ele está como mediador do conhecimento. Por mais que a gente, que as
teorias da educação dizem que o aluno é o centro, o conhecimento é o centro do processo
ensino aprendizagem, não está no professor, numa escola tradicional ele está focado no
professor. É ele que decide, é ele que faz, é ele que... Aqui, essa relação é totalmente
diferente. É uma relação, é uma via, de fato, é uma via de mão dupla, do professor com
relação ao aluno. A forma como eles interagem no salão de estudos é uma forma muito mais
próxima. O professor tem um contato muito mais direto com o estudante. Ele vai fazer uma
intervenção ali sobre o roteiro de estudos, ele vai sentar junto com aquele estudante, ele vai
ouvir o que ele tem a dizer sobre aquele tema ou aquele conteúdo que ele está estudando, ele
vai intervir individualmente sobre aquilo. Então, a relação é muito mais próxima, muito mais
afetiva, eu acredito. O professor não está lá como um ser que é inatingível, ele está o tempo
todo ali interagindo, não tem como ser diferente. Ele tem, no momento que ele está com o
estudante no salão, o tempo todo ele faz isso, ele senta perto, ele escuta muito mais, está mais
183
próximo, os estudantes, aqui, eles conversam muito sobre muitos assuntos. E eu ouço os
professores dizerem que eles não são só entre eles que eles conversam muito sobre outros
assuntos, eles conversam sobre outros assuntos também com o professor. Às vezes, eles estão
numa conversa sobre o roteiro e aparece uma questão, algo que aconteceu com ele ou uma
dúvida, uma angústia, que o estudante tem que ele compartilha também com o professor,
então essa relação é muito mais próxima.
b) a interação aluno-espaço e ambiente.
Daniela — É... ele, o estudante, está no salão de estudo com, aproximadamente, entre 90 e
100 estudantes junto com ele, ele senta em grupos de, são quatro, quatro estudantes ali, por
mesa. É uma outra, acho que no salão é uma outra relação e nos espaços daqui da escola e do
CEU também é uma outra relação. Eles podem, eles têm uma liberdade maior de usar esses
espaços. Tem algumas coisas que eu vejo que, talvez, para quem está aqui há algum tempo, já
virou algo que é natural, mas eu vejo uma diferença ainda em coisas muito pequenas como,
por exemplo, o salão não ter porta. Pra mim, isso é uma diferença dessa relação que o
estudante tem com o espaço e com o conhecimento que, comparando com outras escolas,
geralmente, nas outras escolas, além de ter portas, ela fica fechada e ela fica fechada numa
questão de contenção, mesmo, de conter para que o estudante não saia. Ontem, conversando
com uma professora, eu falei pra ela: “Não são... lá... os salões não têm porta, a porta da
escola está aberta e os estudantes estão lá realizando o roteiro e tirando dúvida com o
professor e está todo mundo lá. Não são as portas da sala e as grades da escola que seguram o
estudante pra que ele aprenda. Acho que isso ainda me chama muito a atenção, de como que
eles se apropriam desse espaço como, de fato, um espaço deles. Então, ele não está lá no salão
porque ele é obrigado, porque tem alguém, uma porta fechada e alguém controlando, para que
ele esteja lá: ele está no salão porque o salão de estudos é o lugar que vai propiciar a questão
do conhecimento. A forma como eles utilizam os espaços da escola, eles têm uma liberdade
muito maior do ir e vir, na hora do intervalo eles não precisam ficar aqui dentro da escola,
eles têm os espaços do CEU pra lidar com eles e acho que é uma relação muito respeitosa que
os estudantes têm com relação aos espaços e ao ambiente da escola. Eles, de fato, sentem isso
como deles, eles são parte dessa construção. Então, eles cuidam, eles zelam por isso,
justamente porque é para eles, eles veem como algo que é para eles, não é o adulto que está
pedindo para que ele cuide, porque é do adulto... eles, de fato, entendem que esse espaço é
deles.
Sérgio — Provocou reações emocionais?
184
acho que é mais próximo. Um dos princípios da escola, que é a questão da solidariedade, eu
vejo muito acontecer, de fato, com eles, eles estão sempre juntos.
Sérgio — Na pergunta onze, é possível notar alguma relação entre essas interações? E
autonomia, a responsabilidade, solidariedade, você poderia discriminar?
Daniela — É, o tempo todo, o tempo todo, a gente... a gente vê os três princípios da escola
acontecendo. Eles... todas... tudo é pensado para que esses três princípios estejam em pauta e
à tona o tempo todo. Então, eles trabalham, eles estão trabalhando juntos, eles têm que ter
autonomia pra, criando autonomia pra lidar com a questão do conteúdo do aprendizado,
porque não é o professor que está ali detendo todo o conhecimento, é ele que está, através do
roteiro, fazendo aquilo, construindo aquilo e aprendendo. Pra isso, ele tem que ter
responsabilidade, não pode, não vai pegar o primeiro roteiro e ficar naquele roteiro o resto do
ano, por exemplo, ele tem que ter responsabilidade que tem outros conteúdos ali pra ele ir,
então ele tem que terminar para passar para o próximo. A solidariedade o tempo todo também,
nas relações aparece isso o tempo todo. Não é, não só do estudante, mas o professor também
precisa seguir esses três princípios. Ele está, se ele está junto, está ali trabalhando em equipe,
ele não está sozinho, fechado dentro de uma sala, ele está trabalhando com outra equipe de
professor. Eles... a questão da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade aparece o
tempo todo. Quando está em alguma situação e o colega percebe que aquele professor não
está mais, chegou no limite, aí, ele assume aquela situação para o outro poder até se distanciar
um pouco. A elaboração junto dos roteiros, planejar as coisas juntos, acho que é, para o
professor, também, isso é um diferencial muito grande.
Sérgio — Na décima segunda pergunta. Você reagiu emocionalmente, à implementação?
Não, porque você não estava aqui à época, mas aos resultados desse novo projeto
pedagógico? De que forma ela ocorreu?
Daniela — Sem dúvida, eu vim para essa escola justamente por conta disso, dessa questão
das relações e eu me sinto, como a Amélia diz, parece que eu já estou aqui há dez anos, é um
lugar que eu me sento muito bem, é um lugar que eu gosto muito de estar. A forma como... a
forma como os problemas que acontecem no dia a dia da escola, porque a gente... a gente tem
problemas como qualquer... qualquer outra escola, a diferença não é que não temos
problemas, a diferença é a forma como a gente lida com eles. Isso, com certeza, me afeta
emocionalmente de uma maneira positiva. A questão do diálogo para solucionar os conflitos,
os diferentes dispositivos que a gente tem que, pra lidar com essas situações de que afloram.
Não sei se é esse o termo, que afloram as emoções. O respeito que a gente vê, para lidar com a
186
questão das relações... existe um respeito. O estudante... ele não é visto como o único viés,
que é o viés do cognitivo, que ele tem que aprender, ele é visto como ser, a gente tem isso,
inclusive, ligado à questão dos três princípios, ele é visto como um ser inteiro, que ele tem
questões psicológicas, emocionais, biológicas, sociais, de aprendizado, ele é visto como um
ser todo. É uma coisa que me afeta muito positivamente, emocionalmente poder lidar com
isso. Eu não vejo, de novo, eu não vejo o que mudou na implementação do projeto, mas eu
consigo fazer esse paralelo de estar num outro espaço, onde isso não era valorizado, e estar
aqui. Acho que, talvez, seja um pouco o que aconteceu com esta, quando teve a
implementação do projeto, quando as coisas começaram a acontecer. Não sei se eu respondi,
se eu consegui responder.
Sérgio — Sim, sim. Na pergunta treze, no exercício de sua função, você toma decisões
emocionais?
Daniela — Acho que também. Eu ainda estou muito vivendo o período da paixão, de estar
muito apaixonada por tudo isso. Mas claro que tem alguns momentos que você tem que ser
racional, tem decisões que você tem que seguir que tem que, tem que usar a questão do
conhecimento, as questões mais pedagógicas, não que a questão do emocional não seja
pedagógica, que eu acredito que é, mas enfim, é algo mais, um pouco mais racional, mas
também entra as questões emocionais aí no... Elas entram o tempo todo, não tem como a
gente separar isso, de todas as decisões... eu acho que a gente toma na vida e,
profissionalmente, não é diferente. E com os estudantes, na hora que eles estão ali numa
situação de aprendizagem no salão, também não é diferente. Acho que, o tempo todo, a gente
toma decisões que levam as questões emocionais em conta, acho que a diferença é que, aqui,
isso é valorizado e não visto como um problema. Essas, a questão das emoções, dos
sentimentos, das relações, elas são valorizadas, e não desprezadas, a gente não precisa fingir
que essas coisas não existem. A minha decisão de vir pra cá, de pedir remoção para essa
escola, ela foi puramente emocional. Se eu tiver, falando de uma particularidade muito minha,
não sei se... nem sei se isso está muito diretamente ligado ao projeto, mas ela foi uma decisão
puramente emocional. Se eu tivesse pensado racionalmente, eu não teria trocado os quinze
minutos que eu demorava pra chegar no trabalho, com um filho de dois anos que eu tenho e
uma de dezoito que estava, não sabia se ia passar na faculdade ou não, não sabia o que ia ser
da vida dela este ano... Eu tenho, eu não iria trocar esses quinze minutos que eu demorava
para chegar, que eu chegava em casa, dava tempo de fazer as coisas, ficar com eles... por essa
distância que, agora, eu levo de uma hora e meia a duas horas para chegar, pela distância, por
187
estar tão longe. Eu acho que, se eu tivesse pensando racionalmente, talvez, eu não teria
indicado essa escola. Foi a única escola que eu indiquei na remoção e eu indiquei por uma
questão, por um, foi afetivo, foi emocional. Eu queria estar num lugar que se fizesse uma
educação... que se tivesse um projeto que ia de encontro com as minhas concepções. Então,
não sei se isso tem a ver com a sua pesquisa, se tem um pouco a ver com a história da escola,
mas eu estar aqui foi uma decisão puramente emocional. Eu nem... quando, depois que eu
indiquei, que não tinha mais volta, eu não sabia se eu viria ou não, mas foi a única, enfim, que
eu indiquei que não teria mais volta, eu falava: “Ah, meu Deus, e agora, o que que eu fiz,
como que eu vou, como que eu vou me organizar, como eu vou lidar com tudo isso?”. E,
quando veio a notícia, eu fiquei muito emocionada e muito feliz e, de novo, acho que foi a
emoção que falou muito mais forte com isso. Não sei se ajuda você aí, se contribui, se essa
parte que é muito mais pessoal contribui para a sua pesquisa.
Sérgio — Na pergunta quatorze, a última pergunta. Você gostaria de acrescentar algo de
relevante?
Daniela — Acho que tem, acho que você abordou vários aspectos, mas tem algo que eu não
sei se está diretamente aqui, que está um pouco na questão do aluno com o conteúdo. Que, às
vezes, as pessoas podem ter no seu imaginário que aqui, na “Campos Salles”, como não tem a
aula, como não tem a aula expositiva, como não tem a prova, como não tem a questão do
conteúdo e a questão do aprendizado, acaba ficando um pouco de lado em detrimento dessas
outras questões, das relações e as questões emocionais e, estando aqui, agora, acho que isso
não é verdade absoluta. A questão do aprendizado, da construção do conhecimento, do aluno
lidar com, adquirir conhecimento, mesmo, ampliar o repertório, aprender, acontece junto com
a questão, com o outro lado, que é o crescimento pessoal, saber lidar com situações problema,
saber tomar decisões, saber trabalhar em grupo, que eles, principalmente os mais velhos, eles
falam bastante. Então, acho que existe algo no imaginário das pessoas, é uma pergunta que eu
escuto muito de pessoas que não estão aqui. Não fica... os estudantes aprendem muito como
um todo. Eles... acho que a gente forma um, forma não, porque nada disso é colocado numa
forma, mas a gente prepara, também não sei se é prepara, enfim, mas a gente lida com todas
essas questões juntas, deles. Eles saem muito mais, daqui, mais preparados para encarar a
vida, questões, o ensino médio ou trabalho. Eu acho que é pensar no ser humano como um
todo, não tão óbvio, que a questão... a escola... ela que é a responsável pela questão do
conhecimento. E a gente não faz algo diferente disso, a gente vai muito além disso e não deixa
isso de lado. Acho que...
188
anos que estou aqui, muitas coisas se transformaram, melhoram, foram sendo construídas e
modificadas de acordo com a realidade. Nosso Projeto está em constante movimento, em
constante implementação, ele é muito vivo! Todavia, nesse aspecto ((dos obstáculos)), relato
uma frase do Braz: "O sucesso do nosso Projeto é o trabalho em equipe e o insucesso do
nosso Projeto é também o trabalho não em equipe". Isso eu percebo nos salões. Se no salão, o
grupo de educadores trabalha em equipe, conversam, tem aquela ‘liga’, o trabalho flui. Ao
contrário, se o grupo dos professores, incluindo os gestores, não se ‘casam’ bem, não há
aquela ‘liga’, o salão acaba refletindo essa falta do trabalho em equipe.
Sérgio – Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por
quê?
Luana - Acredito que o PPP é muito afetivo. Para nós, o estudante não é simplesmente um
estudante, ele é o Pedro, ele é o Paulo, ele é a Maria. Tentamos entender o que está
acontecendo com ele, em toda sua complexidade. Sou psicóloga, e muitas vezes ajo mais
como psicóloga do que pedagoga, do que uma educadora. Como dentro do nosso Projeto
existe uma equipe no nosso salão, você consegue perceber que o estudante não está legal, que
ele está com algum problema, então, é aí que se tem a oportunidade de tirar esse estudante,
levá-lo para um cantinho e conversar com ele. Fazemos muito isso. Eu, particularmente, faço
isso. Isso é extremamente enriquecedor, faz toda diferença! Não temos apenas o objetivo de
repassar o conteúdo em uma lousa, precisamos ir muito além. Assim, para mim, o PPP é
muito afetivo.
Sérgio – O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente?
O que se destaca nesse trabalho?
Luana - Acredito, também, que o PPP dinamiza o trabalho docente. Estamos em constante
aperfeiçoamento porque no nosso Projeto não trabalhamos com lousa, não trabalhamos com a
sala de aula convencional, mas trabalhamos em cima de roteiros. Esses roteiros partem de um
assunto que os próprios estudantes escolhem e, a partir dali, montamos estes de acordo com o
tema que propuserem. Dentro desse tema, temos de contemplar o currículo para não sair fora,
porém devemos trazer curiosidades para eles, por exemplo: tivemos um roteiro em que
falamos sobre as civilizações antigas; tivemos de contemplar todo o conteúdo e trazer essa
curiosidade que eles tinham. Portanto, esse modelo dinamiza muito o nosso trabalho. Temos
de estar sempre estudando, sempre nos reformulando, buscando coisas diferentes, e não
somente levar o conteúdo puro e cru; deve-se incluir aquele conteúdo dentro de um assunto
que os estudantes queiram saber, que queiram conhecer; é tudo muito dinâmico e desafiador!
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No tocante à afetividade, com os roteiros integrados, com os outros alunos e com o professor
no salão, na minha perspectiva, os alunos interagem em uma dinâmica incrível. Existe uma
harmonia, apesar do caos com muitas crianças e apenas 3, 4 ou no máximo 5 professores no
salão. Muita gente pensa que é bagunça, mas não é. É uma harmonia onde você consegue
realmente fazer com que elas entendam que existe o momento de estudar; lógico que não tem
como fazermos tudo isso se não tivermos limites, mas essas regras e esses limites não são
impostos, são conquistados e trabalhados com elas. Elas sabem que uma das nossas regras de
convivência é não poder ficar levantando toda hora e ficar circulando pelo salão, porque se
você levanta, dá-se o direito ao outro também de levantar; daí imagina os cem estudantes
andando por aqui, que confusão seria! Então, existe essa harmonia, existe essa afetividade.
Muitas vezes ocorre do professor estar sanando dúvidas de um estudante e de um grupo ter
terminado o roteiro, assim, eles esperam pela correção, pois compreendem que o professor
não consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo. Eles têm a paciência de aguardar e vão fazer
outra coisa enquanto isso, ler um livro, brincar; eles arrumam alguma coisa para fazer
enquanto esperam o professor. Em todo o momento, essa afetividade, esse carinho, essa liga,
perpetua demais.
Sérgio - Na “Campos Salles”, onde aparece a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade conferida aos alunos?
Luana - Os princípios (autonomia, responsabilidade e solidariedade) conferida aos alunos da
Campos Salles, aparecem em todo momento. Tratando-se da autonomia, por exemplo,
imagina cem crianças entrando no salão. Chegam pela manhã, entram, cada um vai para o seu
lugar sem precisarmos ficar falando; sentam, conversam um pouco, claro! Nós, professores,
escrevemos na lousa a rotina do dia para elas se programarem. Enquanto fazemos isso, elas
conversam entre si. Acabando isso, automaticamente, ou seja, autonomamente, elas pegam
seus cadernos, montam seus roteiros e programam o que irão fazer, o que vão estudar, e é aí
que entra a questão da responsabilidade: quando elas decidem o que irão estudar no dia. Às
vezes acontece de dois alunos escolherem o livro de matemática e outros o livro de ciências,
por exemplo; mas, geralmente, eles estão fazendo a mesma coisa. A solidariedade se vê no
momento em que um ou mais se mobilizam em ajudar um amigo que está encontrando
dificuldades em resolver um exercício, desse modo, pedem a ajuda do professor. Há, também,
a solidariedade em procurar o professor para auxiliá-los. Isso acontece a todo momento.
Acontece na hora da comissão mediadora, aonde eles precisam descer para conversar com o
194
estudante que não está tendo um comportamento legal no salão. Muitos ainda precisam
entender tais princípios, mas a grande maioria já os compreende e isso é fantástico!
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Luana - As práticas pedagógicas relacionadas com a educação na cidadania são praticadas
por meio da proximidade da realidade dos estudantes. Nós temos o que chamamos de roteiros
temáticos os quais são específicos e relacionados ao que está acontecendo no mundo; como,
por exemplo, dias atrás tivemos um roteiro falando sobre o consumismo, o exagero de
consumo; apesar de serem da periferia, percebemos que eles preferem ficar sem uma
alimentação saudável para ter um tênis da moda ou deixam de pagar uma conta para comprar
um celular de dois ou três mil reais. Um salário que o pai tem para fazer mil coisas, ele
compra um celular porque ‘todo’ mundo tem. Então, trabalhamos muito isso com eles,
diretamente.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Luana - Gostaria de acrescentar que dentro da escola, os estudantes são muito vivos; têm uma
energia participadora, gostam de se envolver. Apesar de serem adolescentes e muitas vezes
serem questionados quando um ou outro não está estudando, você o coloca dentro desse
Projeto permeado pelos roteiros, ele se mostra solidário; isso que é legal dentro da Campos
Salles. Ele se torna totalmente engajado, pois quando ele está em uma escola convencional, às
vezes só aquele ambiente escolar, aquela sala de aula, não reflete o que o estudante é de
verdade, até fora da comunidade; e aqui a gente consegue ver isso, é muito interessante e
muito legal!
195
como uma pessoa ‘quadrada’, aonde abre sua caixa de pensamento e insere conteúdos, mas
que observa essa criança/adolescente integralmente. Para dar conta dessa educação integral, o
modelo tradicional não dá conta. Então, essa reestruturação envolve a comunidade, pois tanto
ela ((a comunidade)), quanto a escola são uma coisa só; ambas estão integradas. Assim, a
reestruturação do PPP busca não somente por uma educação ou uma escola de qualidade, mas
por um bairro de qualidade, onde todos estejam envolvidos.
Sérgio - Você poderia citar os principais atores envolvidos na construção do Projeto
Pedagógico vigente?
Laura - Os principais atores envolvidos na construção do PPP vigente são todos os docentes,
os próprios estudantes, equipes gestoras e principalmente a comunidade apoiando, pois sem
ela ((a comunidade)), não tem como ter uma escola que caminhe com esse Projeto. Se os pais
ou a própria comunidade não apoiassem a Campos Salles, não teria como ter a derrubada das
paredes, senão a escola nem teria mais alunos matriculados se a comunidade não acreditasse
no nosso trabalho.
Sérgio – Quais foram os principais obstáculos para a implementação desse projeto?
Laura - Há dez anos, os principais obstáculos para implementação do PPP na Campos Salles,
primeiramente se deu pelo fator do espaço físico, pois derrubar uma escola municipalizada
não é fácil. O diretor teve de dar um passo além daquilo do que era permitido. Se ele tivesse
medo e não tivesse um amparo da equipe de professores que atuaram naquela época e da
comunidade, isso não seria possível. Outro obstáculo ocorreu com os professores à época,
pois muitos pediram remoção, porque muitos eram acostumados a serem donos de um
específico saber/especialização. Os professores do fundamental I e do II ficavam isolados,
pois tinham medo de caminhar em outras áreas. Desse modo, acredito que o principal
obstáculo era pelo fato de que cada professor era fechado na sua matéria/especialização.
Derrubar as paredes era o de menos importante. Derrubar as paredes mentais que era o grande
propósito nisso tudo. Como você construirá uma interdisciplinaridade? Posso estar no mesmo
salão atuando junto a você e não haver interdisciplinaridade. Para tanto, precisamos estar
afinados, por isso o principal obstáculo é esse: a derrubada das paredes internas que estão
dentro da pessoa; de ela mesma olhar para si e pensar: como é essa docência compartilhada?
Quero dizer que esse é o trabalho em equipe, quando caem as paredes não existe a minha sala,
mas a nossa, o nosso salão, nosso espaço de convivência. Se você mostrar para mim as suas
fragilidades pedagógicas e eu mostrar a você as minhas, nos ajudaremos e não nos
197
criticaremos. O professor que entra na Campos Salles tem de estar aberto a essa renovação;
ele terá de se desconstruir, deixar pra trás aquele professor antigo pra atuar como educador.
Sérgio – Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por
quê?
Laura - Para mim, o PPP da Campos Salles é afetivo, porque considera o sujeito como um
todo e não apenas observa sua capacidade de cognição, mas busca compreender e saber como
o aluno vive na sua casa. Assim, aqui na escola consideramos o todo. Essa docência
compartilhada é que faz com que o professor não fique à frente como um pedestal, dono do
saber, mas que ele caminhe pelo salão, sente com o estudante e deixar, por vezes, um pouco
de lado aquilo que está dito no roteiro para atender as necessidades do aluno, necessidades
essas que nem sempre são cognitivas, mas que permeiam um campo afetivo, porque a
solidariedade está muito presente entre nós, inclusive na reunião de alunos ((a Comissão
Mediadora)), que não só serve para mediar os conflitos, mas também, para sanar essas
inquietações tão pertinentes na idade deles.
Sérgio – O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente?
O que se destaca nesse trabalho?
Laura - Percebo que o trabalho docente em outras escolas é isolado. O professor se sente
muito sozinho quando ele fecha sua sala de aula e ali começa somente o trabalho dele, um
trabalho solitário. É ele e os alunos e, às vezes, está muito distante da coordenação. Um
trabalho permeado pelo PPP como o da Campos Salles, aonde você tem, no mínimo, quatro a
cinco educadores trabalhando naquele salão, torna-se dinâmico, pois um professor sozinho
pode pensar de um jeito, porém todos ali reunidos vão complementando a ideia do outro e
juntos com os estudantes vamos proporcionando as assembleias. Assim, quando nos
inserimos em um PPP desse formato do qual prevê assembleias e autonomia, sentimo-nos
muito à vontade para trabalhar; por exemplo, podemos pedir à direção para pegar os alunos a
qualquer hora para experimentarem fantasias e irmos juntos à torre da cidadania (que é um
espaço localizado em um prédio dentro do CEU). Para isso, não precisamos ter medo da
direção porque a gente prevê no PPP essa liberdade de ocupar todos os espaços, a escola deve
ser ocupada no seu todo. Então, a gestão dinamiza nosso trabalho. O PPP dinamiza o nosso
trabalho, potencializando aquilo que em outras escolas não tem, pois, a criatividade fica
guardada e aqui isso não acontece. Aqui você pode apresentar sua criatividade e será sempre
apoiado. O PPP daqui prevê o cumprimento de 70%, se não me falha a memória, da demanda
externa da Prefeitura que são: os direitos e deveres de aprendizagem e o pacto do PENAI (que
198
vai do primeiro ao terceiro ano); os outros 30% são destinados a vivências, à realidade sobre,
por exemplo, a política ou a falta de água. Assim, o professor quando vai à direção não tem
medo de dizer: “Parei o roteiro porque agora vou falar sobre a falta de água ou porque
aconteceu um evento na comunidade que chamou a atenção dos alunos, portanto, iremos
trabalhar isso". Portanto, nós não temos medo e receio, pois temos esses 30% do nosso
Projeto falando que temos liberdade para trabalhar dessa forma. Assim, dinamiza nosso
trabalho, com toda certeza.
Sérgio – O Projeto Pedagógico da Campos Salles contempla a figura do professor-
cidadão. Neste sentido, como você coloca em prática o exercício da docência na Campos
Salles?
Laura - Há um livro que eu gosto muito intitulado “O mestre ignorante” ((ele é indicado aos
professores que ingressam na Campos Salles)). Nesse livro, o mestre não é apenas um
explicador, mas sim, um mestre libertador, que está a todo o momento ali esperando,
observando, educando, fazendo perguntas que motivam os estudantes a descobrirem as
respostas; então o mestre aqui dentro exerce a cidadania no momento que você está andando
no salão, preocupando-se com os estudantes, fazendo perguntas que os levam a caminhos que
conduzam à resposta. Durante as assembleias ((estas se reúnem no salão para discutirem
temas pertinentes que foram trazidos, os questionamentos sobre os futuros roteiros em sala de
aula)), não é somente os estudantes que falam, que têm voz nas assembleias, mas o professor
também fala. Sentimo-nos muito acolhidos nas nossas reuniões de professores, na reunião de
pais e mestres que aqui chamamos de reunião de familiares, pois envolve toda a comunidade,
não importa quem cuida da criança, o importante é que um adulto seja responsável. Assim, é
dessa maneira que vejo que exercemos nossa cidadania o tempo inteiro.
Se eu pensar numa escola tradicional, terei apenas um mestre explicador e as crianças
ficarão engessadas, em cadeiras, ao lado umas das outras. Aqui você tem uma parte destinada
para assuntos sociais, assim, você consegue exercer a sua cidadania aqui dentro e lá fora.
Muitas vezes, um aluno chega em outro aluno de outro grupo para responder suas dúvidas e
eles trocam entre si aprendizagens e experiências; isso é cidadania! Os professores fizeram
um roteiro com os alunos do 6º ano, onde atuo; eles queriam estudar mitologia grega, e havia
uma atividade em forma de cruzadinha contendo diversos deuses; sentei-me ao lado deles e
um me falou: “Professora, o que significa isso?” Respondi: “Não sei”. Chamei outro estudante
para responder à indagação do aluno que havia me questionado; ele sabia a resposta e ainda
disse que aprendeu com outro colega. Nesse instante, esse aluno que nos ensinou, fez o papel
199
do mestre; isso é exercer cidadania! O mestre é aquele que mantém a esperança - cada dia um
mestre diferente, e os alunos entendem isso. Agora, se fosse em outra escola e você dissesse
para o aluno eu não sei, passaria uma imagem vergonhosa e isso seria motivo de te
desrespeitarem pelo resto do ano. Aqui não. Os dois saem satisfeitos: o aluno e o professor
que foi circular em outras mesas e agora também descobriu uma resposta para dar caminhos
aos outros.
Sérgio - Em termos afetivos, para professores e alunos, o que representou a derrubada
das paredes e a retirada das maçanetas, com a alteração do espaço, transformando as
salas de aula normais em salões?
Laura - Em termos afetivos para professores e alunos o que representou a derrubada das
paredes e a retirada das maçanetas com a alteração de espaço transformando as salas de aulas
convencionais em salões foi que para os professores (digo, pelos professores de agora) nasceu
um sentimento de pertencimento, de equipe; pois ao olhar para o lado você vê o seu
colega/professor, ou seja, essa docência compartilhada. Quando um estudante está tendo
dificuldades, o problema não fica somente para um professor resolver, mas sim, todos os
professores, o pessoal da gestão, da equipe futura, da equipe que passou - todo mundo abraça
a causa. Para os estudantes, o que representou a derrubada das paredes foi a voz. Antes eles
não tinham voz, só eram um número que estava ali para receber conhecimento. Hoje, além de
terem voz, buscam seu próprio caminho, para conhecerem os temas que são pertinentes àquilo
que eles mesmos votaram em assembleia. Então, a alteração dos espaços, principalmente a do
salão, se tornou um ótimo espaço. Contudo, pretendemos ocupar cada vez mais espaços lá
fora, na torre da cidadania; lugares estes que todos estarão livres, com regras criadas por eles
mesmos. Essa derrubada deu voz aos estudantes e potencializou o ser do seu próprio saber.
Ele não é alguém que apenas recebe, mas é ativo, e sendo ativo ele tem direitos à participação
das regras, tem direito a saber e exercer, coloca-se numa posição onde necessita ter jogo de
cintura; desse modo, ele aprende, desde cedo, através deu seu próprio saber sobre as regras e
sabe que não pode infringi-las, isso é muito bacana!
Sérgio - Na sua perspectiva, como os alunos interagem, no tocante à afetividade, com os
roteiros integrados, com os outros alunos e com o professor no salão?
Laura - Aqui não usamos mais a palavra disciplina, usamos os roteiros integrados. A palavra
disciplina nos remete à aula (tradicional) da qual não temos mais. Derrubamos as paredes,
retiramos as aulas e demos liberdade de escolha e de voto aos estudantes por meio da
assembleia. Todos os professores em conjunto, independentemente da sua especialização,
200
eles conversarão entre si sobre o tema e, em seguida, chamarão o educador no qual este
perguntará se o grupo já decidiu a meta; se sim, será colocada uma data para a entrega.
Portanto, este grupo deverá ter responsabilidade, porque na data da entrega, o educador
perguntará se cumpriram com a meta, como foi e o que acharam. Tenho um caderno onde
sempre anoto as conversas deles e a próxima visita. Nessa visita percebo que eles
praticamente já estão finalizando o roteiro. Isso é bacana de ver! Assim, eles não precisam de
um mestre explicador, não precisam de mim; eles simplesmente arrumam outros professores
para ajudar na correção e já caminham para o próximo roteiro. Isso é o fantástico da docência
compartilhada! Isso mostra que ele teve responsabilidade. E a solidariedade é ter o auxílio
durante as dificuldades do colega; não dar a resposta, mas mostrar um caminho para ele.
Muitas vezes, em relação à entrega da meta do grupo, eles falam: "Professora, eu consigo
entregar no dia 20, mas meu amigo só vai conseguir terminar dia 23. Então, vamos entregar
dia 22". Nisso se vê como a solidariedade está muito ligada entre eles. Os três princípios
fazem parte da relação entre eles. Se não tiver os três princípios, fica complicado viver nessa
sociedade. Esses princípios não deveriam estar somente na Campos Salles, mas sim nas
cidades, no Brasil, no mundo; não é só para o estudante daqui, pois todas as escolas deveriam
ter tais princípios os quais também deveriam permear o bairro e a comunidade.
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Laura - Acredito que, no âmbito da escola, as práticas Pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania estão naqueles 30% (se refere ao discurso do PPP, no qual 30% são
destinadas às vivências e à realidade), isto é, aquilo que acontece na vida. Aconteceu algo
evidente no jornal que está muito latente, então, nós trazemos para a sala de aula. O mesmo
acontece com os estudantes; quando algo acontece na comunidade, eles trazem para a sala de
aula. As práticas Pedagógicas relacionadas com essa educação na cidadania é esse exercer dos
princípios; não é um exercer enquanto se estuda aqui, mas um exercer para a vida. Ouvimos
dizer uma frase muito comum: "Para além dos muros da escola". Como aqui não temos
muros, é justamente para que não se divida isso: o exercício. São esses princípios que
queremos ver em toda a comunidade.
Ao final dos roteiros há perguntas para os estudantes que os levam para a reflexão da
sociedade como um todo. Quando pensamos nessa educação integral, estamos sempre fazendo
intervenções com a prática, com a sociedade. Na minha prática, não consigo falar em
educação sem pensar na cidadania. Assim, essa educação imbricada com a cidadania se refere
202
aos seres humanos que querem e vão agir para transformar o seu meio, o seu bairro, a cidade,
o seu mundo. Então, nós professores estamos a todo o momento trabalhando para fazer
intervenções no meio social que habitamos. Queremos que os estudantes venham aqui,
pratiquem sua cidadania. Aqui, vemos a cidadania pelo voto consciente nas eleições a
vereadores e prefeito, intermediado pela Comissão Mediadora. Nossa escola é democrática!
Falamos a eles que não é para votar no amigo, mas para que observem as propostas
oferecidas. Dessa maneira, estamos exercendo nossa cidadania nesse ato, para que o estudante
desenvolva o pensamento crítico-reflexivo. Desde cedo eles aprendem a falar porque damos
voz a eles. Eles possuem uma mesa dentro da coordenação; lá se sentam, se apoderam e falam
sobre tudo, conversam com os colegas conflituosos falando sobre suas atitudes, sobre os
pontos negativos e positivos e, no final, faz-se um conselho; logo se vê que estes estudantes
da mesa estão preparados para ouvir e não para brigar; ouvir a versão do estudante com
problemas. Nessas reuniões de Comissões, eles fazem um exercício de reflexão que não
vemos na sociedade. As pessoas de um modo geral têm o pavio extremamente curto.
Acreditamos que o diálogo desvia o furor. Uma palavra que vem na hora certa, abranda
aquele estudante que no momento estava irritado. O exercício da cidadania na Comissão
Mediadora e nas assembleias é efetivo e muito forte. Inclusive, estamos na época de eleição.
As comissões já estão elegendo seus candidatos. É bonito ver essa cidadania aqui dentro que
vai refletir lá fora e que os nossos estudantes serão capazes de escolher prefeitos melhores.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Laura - Gostaria de acrescentar que nós, professores, quando falamos do Projeto que
acreditamos e vivenciamos, falamos das flores (se refere à colheita dos resultados da
implantação do PPP na Campos Salles). A educação te leva a um comprometimento por toda
a vida e em todas as áreas da sua socialização. Para lecionar na Campos Salles, não se pode
ser um professor que apenas trabalha na educação, mas que viva-a, que acredite em uma
educação de qualidade; tem que acreditar que, mesmo que a semeadura não tenha sido fácil, a
colheita será.
203
Paula - Quando entrei na Campos Salles, o Projeto já estava implantado. O que mantém o
Projeto é a busca do protagonismo do aluno com o intuito de que eles transformem a
sociedade em que vivem. O que eles aprendem, transformam em toda relação com a
comunidade e com a sociedade. Antes era uma escola tradicional, como outra qualquer.
Sérgio - Você poderia citar os principais atores envolvidos na construção do Projeto
Pedagógico vigente?
Paula - O Diretor Braz percebeu que os alunos precisavam buscar esse protagonismo
juntamente aos professores. A comunidade participou bastante, ela faz parte dessa escola.
Quando a gente pensa na escola, já pensa na comunidade. Todas as reuniões que fazemos,
entre pais e professores, a comunidade está presente.
Sérgio – Quais foram os principais obstáculos para a implementação desse projeto?
Paula - Não houve muito obstáculo para a implementação do Projeto. Como a comunidade
faz parte da escola, todos perceberam a necessidade disso, despertou uma consciência em
todos. O Braz foi implantando aos poucos, dia após dia, começando pelos roteiros, depois a
retirada das paredes, e os alunos começaram a sentar em grupos, assim, foi efetivado o Projeto
que funciona até hoje.
Sérgio – Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por
quê?
Paula - O Projeto Político-Pedagógico (PPP) da Campos Salles é totalmente afetivo, pois a
relação que temos com os alunos não é daquele professor superior a eles; é uma relação de
igualdade e, com isso, cria-se a afetividade e um elo maior com o aluno, e isso se torna
natural.
Sérgio – O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente?
O que se destaca nesse trabalho?
Paula - O PPP dinamiza o trabalho docente. Assim, o que se destaca nesse trabalho é
realmente o dinamismo. Buscamos o que os alunos querem aprender, ou seja, isso vem dos
alunos, não trazemos tudo pronto. Antes, no ensino tradicional, o professor já tinha todo
aquele plano de aula pronto; aqui não, aqui a aprendizagem parte deles. Então, a partir do que
eles aprendem, nós buscamos montar o roteiro e, com isso, o ensino se torna dinâmico. O que
se destaca nesse trabalho é o protagonismo dos estudantes. Também, existe trabalho em grupo
com os professores. Sou professora do sexto ano, mas junto comigo tenho mais três
professores no salão, fora o professor de educação física, o de inglês - todos eles.
205
está dando trabalho, a própria comissão, que é formada pelos estudantes, chama esse aluno
com problema para uma conversa, ou seja, a autonomia, a responsabilidade e a solidariedade
partem totalmente deles. Os três princípios estão envolvidos em todo nosso cotidiano, isto é, a
busca pelo protagonismo do estudante.
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Paula - As práticas Pedagógicas acontecem no cotidiano e estão intimamente relacionadas
com a cidadania, porque aqui os estudantes se tornam protagonistas, ou seja, tornam-se
cidadão, no qual ele é crítico e tem consciência do que ocorre na sociedade. A gente realiza as
eleições de Presidente e isso já desperta o interesse deles pelas eleições de Prefeito, as
eleições na sociedade. Então, a busca é essa - do protagonismo cada vez maior.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Paula - Não, eu acredito que comentamos tudo.
207
sim, nós; e esse nós é que foi difícil desconstruir, foi difícil derrubar as paredes internas. Não
tem como trabalhar na Campos Salles pensando só em você, precisa-se pensar na equipe.
Então, em termos de afetividade, a relação entre os alunos melhorou muitíssimo. Você
aprende a respeitar as diferenças e as pessoas começam a te enxergar diferente.
Sérgio - Na sua perspectiva, como os alunos interagem, no tocante à afetividade, com os
roteiros integrados, com outros alunos e com o professor no salão?
Cristina - Na minha perspectiva, em relação à interação entre alunos e com o professor no
salão, no tocante à afetividade, com os roteiros integrados e com os outros alunos, percebo
que são todos muito mais solidários. A questão da solidariedade é muito visível porque eles
têm que trabalhar em grupo. Os roteiros os levam e os fazem interagir o tempo todo, ora
questionando, ora perguntando, ora pedindo ajuda. Eles se tornaram mais acessíveis.
Tínhamos alunos que nem ouvíamos sua voz; hoje temos alunos que conversam, dão sua
opinião, e é muito bacana ver a relação entre eles, inclusive conosco.
Sérgio - Na “Campos Salles”, onde aparece a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade conferida aos alunos?
Cristina - A autonomia, a responsabilidade e a solidariedade conferida aos alunos aparecem
diariamente. Todos os dias esses princípios são colocados em prática, porque eles trabalham
em grupo. Não existe estudar sozinho aqui, não existe um eu; eles sabem que essa autonomia
que permeia todo o espaço, sem responsabilidade, não é autonomia. Todo tempo você vê
alunos do 9º ano ajudando, sendo solidário com alunos de outras séries e vice-versa. Vemos
alunos do 5º, 6º, 9º ano interagindo no ambiente escolar tranquilamente, um respeitando o
espaço do outro e, às vezes, você nem percebe que um está em uma série e outro em outra
série.
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Cristina - As práticas Pedagógicas relacionadas com a educação na cidadania iniciam-se com
o questionamento: O que é ser cidadão? É você entender seus direitos e deveres e os alunos
colocam isso em prática o tempo inteiro. Por exemplo: eles sabem que são autônomos e que
podem ir e vir, mas devem saber em quais momentos eles podem fazer isso. O bacana é que
isso já está tão arraigado neles que você não vê alunos interferindo nas reuniões, pois mesmo
eles estando na escola, estão nos locais onde necessitam estar. Agora mesmo acabamos de
receber um grupo de alunos do outro período na sala da JEIF, na reunião de professores; no
qual vieram apresentar um projeto de musicalização. Não é porque esses alunos são de outro
211
período que não podem interagir com os alunos de outro horário. Então, essa questão da
cidadania, de cumprir os deveres, eles mesmos cobram entre si. Eles têm acesso, mas sabem
qual o tempo de acessar esses ambientes. O que eles mais colocam em prática é a questão do
respeito, as regras que eles mesmos ajudaram a construir, porque não são regras impostas pela
escola, eles mesmos ajudaram a construir em assembleias; como eles ajudaram a construir,
entendem que é responsabilidade deles colocar em prática.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Cristina - Gostaria de acrescentar que esse Projeto me mudou enquanto ser humano. Vejo-me
uma educadora melhor porque tive de quebrar muitas paredes internas pra entender a
importância de fazer com que o aluno realmente fosse/seja protagonista do próprio ensino.
212
críticas porque ouvíamos dizer: "Os alunos ainda não melhoraram no rendimento", mas antes,
também, não havia melhoras, ou seja, não era por causa do Projeto ou por causa da mudança
que eles ainda não tinham melhorado o rendimento, simplesmente tentávamos fazer algo
diferente, porque do jeito que era não estava bom.
Sérgio - Você poderia citar os principais atores envolvidos na construção do Projeto
Pedagógico vigente?
Cibele - Os principais atores envolvidos na construção do PPP dessa escola, primeiramente,
foi o Diretor Braz. Ele representa, para mim, a figura principal e nos vendeu essa ideia e,
consequentemente, fomos incorporando-a, entretanto, muitos professores não aceitaram a
ideia e pediram remoção. A comunidade apoiou. Se não houvesse esse apoio, o Braz não teria
conseguido retirar as paredes. Portanto, os dois personagens principais foram: O Diretor Braz
e a Comunidade.
Sérgio – Quais foram os principais obstáculos para a implementação desse projeto?
Cibele - O principal obstáculo, para a implementação do PPP vigente, foi a burocracia, pois
não se podia derrubar as paredes sem a autorização da Secretaria de Educação. O Braz
comprou essa briga sozinho, e no final do ano foi quebrando as paredes, pois se fosse esperar
pela Secretaria de Educação, as coisas iriam enrolar e, talvez, ainda o Projeto não teria sido
concluído.
Sérgio – Na sua opinião, o Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles é afetivo? Por
quê?
Cibele - Acredito que o PPP da Campos Salles é afetivo, porque essa escola coloca o
estudante como protagonista e isso aproxima mais os estudantes entre si e os aproximam mais
dos professores e nós deles, há uma troca. Aprendemos muito com eles e eles conosco. Tanto
é que, nós professores, somos fixos no mesmo salão, e isso demonstra que temos uma relação
bem íntima, senão, não teríamos como trabalhar juntos.
Sérgio – O Projeto Político-Pedagógico da Campos Salles dinamiza o trabalho docente?
O que se destaca nesse trabalho?
Cibele - O PPP, também, destaca o trabalho em grupo. A maneira como trabalhamos é: um
depende do outro e o problema é de todos, portanto, nosso trabalho em grupo é contínuo, e
ajuda muito trabalharmos dessa forma.
Sérgio – O Projeto Pedagógico da Campos Salles contempla a figura do professor-
cidadão. Neste sentido, como você coloca em prática o exercício da docência na Campos
Salles?
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e nisso, eles acabam trocando experiências com os colegas do salão e com outros professores.
Temos professores fixos em cada salão, mas temos aqueles que são rotativos, os quais
chamamos de especialistas: de artes, de inglês, de educação física; e isso faz com eles tenham
um contato muito maior. Em todas as escolas vemos divisão do quinto ano, do sexto, do
sétimo, do oitavo, do nono, então, são os suprassumos da escola, logo, tratam os menores
como se fossem nada, entendedor de nada; aqui não, aqui existe uma integração bem forte,
eles conversam de igual para igual – o aluno do sexto ano com aluno de nono ano; existe bem
essa integração aqui.
Sérgio - Na “Campos Salles”, onde aparece a autonomia, a responsabilidade e a
solidariedade conferida aos alunos?
Cibele - Os princípios da Campos Salles (autonomia, a responsabilidade e a solidariedade),
são percebidos nas assembleias que realizamos com eles. Qualquer problema que existe no
salão é discutido em uma assembleia com os estudantes. Dentro do salão, tem uma comissão
de estudantes que ajuda a conversar com o aluno que apresenta algum tipo de problema. É
essa comissão mediadora que ajuda e representa o salão. A maior demonstração desses três
princípios é na comissão mediadora e na assembleia. Aqui, o professor não chama o pai do
aluno para reclamar; se está havendo algum problema com o estudante, quem tem de mudar é
o estudante, o pai e a mãe não vão conseguir fazê-lo mudar. Então, trazemos os casos para
essas comissões mediadoras e, pela participação dela, vê-se a responsabilidade, a autonomia e
a solidariedade.
Sérgio – No âmbito da escola, quais são as práticas pedagógicas relacionadas com a
educação na cidadania?
Cibele - No âmbito da escola, as práticas pedagógicas relacionadas com a educação na
cidadania referem-se à Caminhada pela Paz (é o carro chefe), nas amostras culturais e no
cotidiano do salão. No dia dezenove de novembro, dentre às 10h às 17h, faremos nossa
amostra cultural sobre literatura aqui na escola e todo o CEU também estará envolvido nessas
ações.
Sérgio – Você gostaria de acrescentar alguma informação que considera relevante?
Cibele - Gostaria de acrescentar que a Campos Salles está na comunidade de Heliópolis assim
como a comunidade de Heliópolis está na Campos Salles. Aqui você vivencia isso - o papel
da comunidade aqui dentro - e o nosso papel também.
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