Escravidao e Legado Africano MonicaLima
Escravidao e Legado Africano MonicaLima
Escravidao e Legado Africano MonicaLima
Monica Lima
Quando a independência do Brasil foi declarada, este era o maior país escravista
do mundo. Nos portos brasileiros desembarcavam milhares de africanos escravizados a
cada ano, e àquela altura, com especial intensidade. Aqui existia uma das maiores
populações de cativos das Américas e a maior população livre de descendentes diretos de
africanos. Comerciantes brasileiros lideravam o ramo do comércio de cativos e
mantinham estreitas relações comerciais e familiares com habitantes de cidades africanas,
tanto na costa quanto nas rotas internas. Nosso país nasce como nação no século dezenove
anunciando que iria trilhar o caminho de uma monarquia constitucional, mas mantendo a
escravidão e, durante todo o primeiro reinado, o tráfico atlântico de africanos
escravizados como atividade legalizada - apesar dos tratados com os ingleses desde 1810
e dos compromissos do Congresso de Viena em 1815.
As conexões com a África eram tão estreitas e intensas que, logo após a declaração
de independência, houve tentativas de adesão do Brasil, capitaneadas por comerciantes e
lideranças locais nas cidades de Luanda e Benguela, em Angola. A maior parte dos que
se insurgem contra o domínio português, pretendendo se unir ao Brasil, nestas localidades
africanas, é de pessoas negras e mestiças, brasileiros e nativos, e sobre eles desaba uma
forte repressão, sendo presos ou expulsos daquelas área coloniais. O governo brasileiro
não interfere a favor dos rebeldes e termina por assinar um tratado com Portugal para o
reconhecimento da própria independência, em 1825, comprometendo-se a não aceitar
nenhuma incorporação ao país de regiões dominadas pelos portugueses no continente
africano.
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Artigo publicado na revista Cult de setembro de 2022, no dossiê 200 Anos da Independência do Brasil
comerciais do mercado que ali se localizava e quando não resistiam às consequências da
dureza da travessia, ao cemitério destinado a eles, na mesma região. O complexo
escravagista do Valongo, com todas suas cenas e cenários de desumanidade, tal como
narravam os viajantes estrangeiros, funcionava na mesma cidade que era sede do novo
país que pretendia ocupar um espaço entre as nações livres e autônomas do mundo.
Trabalhos relativamente recentes nos campos dos estudos da história dos africanos
no Brasil têm destacado as ações combativas dos mesmos face à dureza das relações
escravistas. A resistência sempre acompanhou a imposição da ordem escravocrata, e as
fontes de época registraram inúmeras manifestações de não-conformismo. Historiadores
e historiadoras têm demonstrado que, durante o tempo da escravidão, os africanos e seus
descendentes encontravam diferentes formas de lutar contra as condições a que eram
submetidos. Algumas vezes este tipo de atitude se traduzia em conquistar espaço para a
manifestação de suas expressões culturais. Certamente estavam cientes da importância da
preservação dessas memórias nos corpos e mentes que haviam sido trazidos para o Brasil
e dos que deles iriam descender. Há exemplos da importância dessa luta para os
escravizados. No final do século XVIII, numa rebelião na área rural na Bahia, os cativos
sublevados reivindicavam além de terras e melhores condições de trabalho, o direito de
poderem “brincar, folgar, e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos
impeça e nem seja preciso licença”