O Acaso de Delilah - Silvana Barbosa
O Acaso de Delilah - Silvana Barbosa
O Acaso de Delilah - Silvana Barbosa
Silvana Barbosa
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Londres,
17 de setembro de 1790
18:30 horas
***
***
Zamir era ciente que sua esposa estava apavorada. Era uma moça
muito jovem, totalmente inexperiente, e o pai só contara para ela que teria
que se casar quando o noivo já estava à porta. Ele compreendia que tudo
podia parecer muito assustador para uma jovem inocente. E ela era muito
inocente.
Essa havia sido uma das razões para que comparecesse àquele
estranho leilão, do qual ouvira por acaso, entre conversas na mesa do lado
quando jantava num restaurante. Um leilão de virgens, adequadas ao
casamento! Atento à troca de informações entre os outros homens, sobre
endereço e local, dirigiu-se a local e fez um lance.
A praticidade do leilão o atraiu. Não precisaria perder tempo
procurando uma jovem solteira que lhe aceitasse a corte, muito menos se
preocupar com pais que tivessem preconceito contra estrangeiros, e tampouco
dar satisfação de porque desejava uma esposa tão apressadamente.
E ele tinha pressa!
Depois de ver a noiva que comprara, ficou ainda mais satisfeito com a
decisão que tomara. Delilah possuía formosura discreta, e mesmo em seu
estado bruto transmitia meiguice e sobriedade. Foi esse jeito meigo, seu
semblante tristonho, que o levou a propor um acordo para ela, algo que a
ajudaria a ter confiança nele, e a sentir-se mais à vontade em sua presença. A
intimidade entre eles viria com o convívio, mas era preciso começar com
alguma coisa, e ele acreditava que o caminho tomado era o certo. Até a
inauguração teriam se ajustado adequadamente, e os ingleses o aceitariam
bem, sem que desse a impressão de um intruso numa terra estrangeira.
Tomando o braço de Delilah, ao deixarem a igreja, subiram na
carruagem.
Sentados diante um do outro, fitaram-se em silêncio, enquanto o
veículo tomava embalo, ziguezagueando pelas ruas irregulares.
— Senhor Maddala.
Ele inclinou-se levemente entre os bancos, e alcançou a mão de
Delilah. Um leve frisson correu-lhe quando Zamir virou sua palma, e passeou
com os dedos sobre ela, espalmando-as até que as juntas abrissem, dando
espaço para um encaixe e ajuste perfeito. Então ele finalizou o movimento
estreitando dedos contra dedos, num entrelaçar quente.
Delilah não sabia muito sobre como eram as coisas entre um homem e
uma mulher, mas aquilo... Aquilo lhe pareceu tão... Íntimo e tão cheio de
promessas...
— Zamir. Vamos, fale Zamir. Não é um nome complicado.
Delilah sorriu:
— Zamir. Eu gostaria de saber...
A pergunta foi interrompida por um grito do cocheiro, um sacolejar
violento da carruagem, e uma derrapada estranha, que fez o veículo
subitamente pular, tirando os ocupantes do assento, e fazendo-os voar um
sobre o outro, emaranhados entre tecidos, braços, e pernas, e uma bengala,
que aterrissou com força na cabeça de Delilah, quando todo o mundo pareceu
girar.
***
A última coisa de que Zamir lembrava-se era de ver Delilah sorrindo.
Era o primeiro sorriso que ela dava para ele, e tocou-lhe de forma estranha,
mais agradável do que poderia imaginar ser receber um mero sorriso da sua
mulher. Ela ia dizer-lhe algo... Perguntar alguma coisa... Mas então...
Zamir olhou em volta, aturdido. A carruagem virara e estava de
cabeça para baixo! Procurou mexer-se, devagar, cuidando de testar se o
veículo estava em falso, e se poderia rolar, provocando outro acidente.
— Delilah?
Sem obter resposta, tateou com a mão entre as almofadas dos bancos,
que haviam saído do lugar. A esposa estava abaixo delas, meio encoberta
pelas saias do vestido, que haviam ficado como tudo ali, de pernas para o ar.
Desesperado Zamir puxou-a, trazendo-a para seus braços. Entre seus cabelos
escuros um corte sangrava.
O sangue dele gelou.
O cocheiro abriu a porta, desgrenhado como seus patrões deviam
estar.
— Estão bem? Mil perdões, meu senhor! Um cachorro surgiu à nossa
frente, e meteu-se entre as rodas, não pude parar...
— Ajude-me aqui!
Zamir passou seu corpo pela porta, e içou Delilah com cuidado para
fora, sendo ajudado pelo cocheiro.
Sentando-se no chão, com a esposa desmaiada em seus braços, Zamir
verificou que respirava. Balançou-a levemente.
— Delilah... Vamos, Delilah, acorde...
Ela abriu os olhos, piscando algumas vezes.
O cocheiro soltou um ofego alegre, levando a mão ao peito.
A visão dos olhos castanhos fitando-o foram um alívio, e Zamir fez
uma prece silenciosa. Que tremendo susto!
Um gemido estranho elevou-se, e os três viraram os rostos,
procurando ver de onde provinha.
— Um cachorro... — Delilah murmurou.
— Oh, o maldito! — O cocheiro estalou o chicote no chão,
caminhando na direção do som.
— Zamir! Não deixe que ele...
Delilah tentou se mexer, mas Zamir a manteve parada. No entanto,
entendeu o que ela pedia.
— Oscar, não bata no cachorro!
O cocheiro parou, súbito. Fitou o patrão. Ele ia dizer algo, mas, como
um bom empregado, não estava habituado a discutir com seus superiores. E o
senhor Maddala o pagava muito bem para que arriscasse uma discussão tola
tendo um cachorro vadio como tema.
— Apenas traga o animal aqui, Oscar.
O cocheiro assentiu, e seguiu até onde estava o cachorro. Ao ver o
animal, constatou que estava machucado.
— Ele está ferido, senhor. Talvez seja melhor sacrificá-lo.
— Não! — Delilah deu um grito, e voltando o rosto para Zamir, falou
com ele — Disse que me daria um animalzinho.
— Sim, eu disse.
— Quero esse cachorro.
Zamir soltou um bufo.
— Delilah! Um cachorro de rua, ferido ainda por cima?
— Por favor, você disse...
Mas que coisa! Ele tinha uma esposa ferida, com a cabeça
sangrando, e ao invés de preocupar-se com ela mesma, estava pedindo por
um cachorro!
Esperava não ter casado com uma pessoa emotiva demais.
Ou destrambelhada.
— Está bem, minha esposa. O cachorro vira-lata, vadio, ferido e
certamente muito sujo, será seu.
Ela teve fôlego para rir.
Não sorrir, mas dar uma risada.
Tão musical e delicada que o corpo de Zamir não resistiu.
E junto com ela, soltou uma gargalhada.
Mas assim que o riso cessou, Delilah fez algo que surpreendeu a
Zamir ainda mais que o pedido de ficar com um cachorro de rua. Ela tocou
seu rosto, e seu olhar o esquadrinhou.
— Você machucou-se?
— Não. Não, minha esposa. Eu estou bem. Obrigado.
Ficou olhando para ela mais um pouco, com o rosto tão próximo ao
seu, percebendo a delicadeza de seus traços, e como seu nariz arrebitava
levemente na ponta.
O cocheiro gritou:
— O que faço, patrão?
Zamir desviou seu olhar para o cocheiro.
— Espere um instante.
Delilah começou a erguer-se, com o apoio do marido, e esperou
enquanto Zamir pegava sua capa dentro da carruagem e a envolvia nela. Em
seguida puxou um cobertor de dentro do veículo, uma peça de boa qualidade
que deveria estar lá para cobrir as pernas e protegê-las em dias frios.
— Oscar, enrole o cachorro no cobertor para que não o morda. Depois
vamos virar a carruagem e ver se ela consegue andar.
O cocheiro o obedeceu sem questionar.
A tarefa de virar a carruagem não foi simples e nem muito fácil, mas
felizmente alguns homens que passavam dispuseram-se a ajudar, e depois de
algum empurra daqui e puxa de lá, o veículo voltou a ter suas rodas no chão.
Mas dois aros estavam quebrados, e seu eixo talvez não estivesse também
muito confiável
Zamir soltou uma imprecação. Começava a escurecer e ele estava na
rua com uma carruagem quebrada e uma mulher precisando de cuidados
médicos. Por sorte ela estava consciente, mas uma pancada na cabeça não era
algo que devesse ser tratado com leviandade.
Durante todo o tempo em que estava lutando com a carruagem, com
as mangas arregaçadas e derrapando no chão de terra, seus olhos voltavam-se
para a esposa, preocupados.
E ela estava abraçada ao cachorro. E conversando com ele! Do que se
tratava a tal conversa ele não imaginava, mas via seus movimentos labiais.
Então, pelo jeito aparentemente doce com que ela movia o rosto, ele
entendeu.
Ela devia estar consolando o cachorro! O mesmo cachorro que quase
a havia matado. E a ele e ao cocheiro juntos! Vá tentar se entender as
mulheres! Zamir ergueu as mãos para os céus. Elas eram um mistério fossem
de qualquer nacionalidade.
O sorriso que dás volta a si mesmo.
Provérbio indiano
Capítulo 3
***
***
Zamir estranhou um pouco ao entrar em casa e ser avisado que a
esposa estava na sala de estar da frente. Andando pelos corredores percebeu
algo diferente no ambiente, e não pode precisar o que realmente era, mas ao
botar o rosto na entrada da principal sala de visitas de seu lar, e deparar-se
com Delilah, confortavelmente sentada em um dos elegantes sofás, esqueceu-
se de tudo o mais. Inclusive do cansaço do dia, e da expectativa da noite. Ela
estava tão bonita trajando um vestido cor de pêssego, perfeitamente adequada
ao local! Sua esposa. E, mais tarde, ainda hoje, sua esposa de modo completo
e total.
— Boa noite.
Ela ergueu o rosto do livro que tinha em mãos. Ela sempre parecia ter
um livro em mãos, constatou o esposo.
— Boa noite, Zamir! Como foi seu dia?
— Bom, e o seu? Agradável e tranquilo, espero.
Ele beijou o rosto da esposa, mesmo desejando um pouco a mais. O
fato dela estar num cômodo aberto, acessível demais aos criados, inibiu-o.
— Sim, bastante agradável e tranquilo — não, não, e não mesmo.
— Alguma dor na cabeça?
— Não. — Até esquecera-se da dor.
— Muito bem — ele pareceu genuinamente satisfeito. — Vou tomar
banho e trocar de roupa.
Enquanto Zamir afastava-se, Delilah avisou:
— Pedirei que o jantar seja servido em uma hora.
— Ótimo. — Zamir parou à porta.
— Na sala de jantar.
Zamir franziu as sobrancelhas. Na noite anterior haviam jantado no
quarto da esposa, e todas as outras vezes ele jantara em seu próprio quarto,
comendo rápido e voltando a seus planejamentos, contas e livros. Na ocasião
em que fora morar naquela casa experimentara fazer a refeição na sala de
jantar, mas comer sozinho num espaço tão amplo pareceu-lhe opressor e
solitário demais. Bem, agora tinha companhia, e devia começar novos
hábitos. Assentiu.
— Em uma hora.
***
***
***
Capítulo 7
— Terei que pagar uma libra a mais para cada criado no próximo
pagamento, porque colocaram flores coloridas dentro de vasos? — Os olhos
de Zamir estavam arregalados, e havia parado o processo de vestir-se,
estando ainda com as calças na mão.
— Não! — Homens! Não entendiam nada que as mulheres diziam!
— Ah, ainda bem! — Zamir começou a vestir as calças.
— Vai pagar uma libra a mais para cada um porque eles
transformaram uma casa fria num lar aconchegante!
Zamir ergueu a cabeça para encarar sua mulher e perdeu o equilíbrio
ao esticar uma das pernas dentro da calça, quase caindo. Soltou um
resmungo.
— Está falando mesmo sério?
Delilah desanimou, e seus ombros caíram:
— Não reparou na casa ontem?
Percebendo que a esposa murchara, Zamir contemporizou:
— A única coisa em que reparei ontem, minha formosa esposa, foi em
você.
Delilah manteve uma expressão modesta, mas sentiu-se regozijar.
— Antes de sair para o trabalho, por favor, olhe para sua casa.
— Nossa casa.
— Nossa casa — ela repetiu, com uma ponta de orgulho.
— Bem, talvez a casa fique ainda mais aconchegante com a chegada
de alguns quadros que adquiri semana passada.
— É mesmo? — Delilah uniu as mãos, feliz.
— Sim, espero que se agrade deles.
Uma sombra abateu-se sobre a face de Delilah:
— Eu... Não entendo nada de quadros.
— Não teremos nenhum Botticelli ou Caravaggio, apenas algumas
aquarelas de novos artistas. — Zamir deu um sorriso.
Delilah continuava com a mesma expressão.
— Eu... Realmente não entendo nada sobre esse assunto. Nunca fui
sequer a uma exposição.
— Nunca? — Zamir surpreendeu-se. Embora tivesse nascido rico,
passado pelo melhor ensino e viajado pelo mundo para adquirir tanto
conhecimento como vivência, não esquecia que a maioria das pessoas não
tinha o mesmo acesso à erudição. No entanto Londres sempre lhe pareceu
uma capital rica culturalmente, e ampla o bastante para aceitar que todas as
classes se beneficiassem dela. Engano seu. Tal qual acontecia na Índia, ali
também poderiam haver contrastes gritantes.
Delilah fez um sinal negativo.
— Nunquinha.
Zamir terminou de colocar sua roupa e depositou um beijo nos lábios
da esposa.
— Preciso me apressar para cumprir meus compromissos, mas
voltarei logo após o almoço. Esteja pronta, me esperando, pois vamos
passear.
— Passear? — Delilah franziu as sobrancelhas.
— Sim. Acredito que deve haver alguma exposição interessante no
Museu britânico ou na Royal Academy.
Delilah soltou uma exclamação alegre e bateu palmas.
O marido sorriu.
— Tomara que continue feliz após a visita, e não entediada.
— Certamente não ficarei entediada!
Zamir já estava abrindo a porta de ligação dos quartos quando a
esposa o chamou. Voltou-se para olhá-la.
— Sim?
— Quanto às libras prometidas aos criados... Pensarei em algo para
compensá-lo, está bem? Um acordo satisfatório.
Zamir abriu um sorriso malicioso, e Delilah ergueu um dedo.
— E inocente.
O marido riu:
— Se continuar fazendo acordos até para cobrir despesas, cara esposa,
ficará melhor em negociações do que eu. E se conseguir de algum modo que
compense libras e xelins, a levarei comigo em minha próxima visita ao
alfaiate, para que trate com ele a conta dos meus trajes novos.
Acenando e deixando o quarto, Zamir partiu. Voltou tão rapidamente
que a esposa assustou-se:
— Não perguntei-lhe... Está dolorida ainda?
— Oh... Não, não.
— Não... Arde mais?
Zamir pareceu por um instante um pouco constrangido, e a expressão
enterneceu Delilah.
— Não arde mais.
— Isso é muito bom.
Ele parecia genuinamente satisfeito e Delilah logo adivinhou o
porquê. O marido desejava voltar ao seu quarto àquela noite. E ela também já
ansiava muito por isso.
***
***
***
***
No meio da noite Delilah voltou a despertar e admirar o esposo
deitado ao seu lado. Estava se tornando um hábito fazer isso. Acordar e ficar
olhando Zamir, sem que ele pudesse imaginar o teor da avaliação a qual
estava sendo submetido.
Havia uma pergunta que voejava sobre ela, como uma mariposa em
torno da luz, batendo e voltando, insistindo mesmo que aquilo lhe
incomodasse a até ferisse: Apaixonara-se pelo marido?
Ela desejava muito que não, mas dentro do seu coração já sabia que
não adiantava nada desejar que o amor não chegasse, sendo o sentimento
intrometido e fortuito que era.
A árvore não nega sua sombra nem ao lenhador.
Provérbio hindu.
Capítulo 8
Zamir estava curioso para saber qual a reação de sua esposa diante da
surpresa que ele havia preparado. Outra semana se iniciava, e ele havia
descoberto uma forma de responder a uma das várias perguntas que Delilah
andara lhe fazendo sobre a Índia nos últimos dias.
Agradar à esposa havia se tornado para ele um grande prazer. Achava
isso engraçado agora. Mas se lhe perguntassem alguns dias antes, quando
descobrira a força do seu desejo por ela, perceberiam que ele não estava
achando a situação nada divertida. Pensar em Delilah o tempo todo o
atrapalhava. Desejar correr para casa e ficar com ela, ao invés de cuidando de
seus negócios, era um tormento. Planejar formas novas de fazer amor
enquanto deveria estar concentrado no que seus clientes diziam tornava seus
dias de trabalho bastante complicados. E lutar contra todas essas sensações e
vontades, mais ainda.
Até que desistiu.
Foi a melhor coisa que fez. Já não se incomodava se era o rosto
delicado de Delilah que via ao lidar com as costureiras que lhe
encomendavam sedas lisas ou brocados, e nem se aborrecia se enquanto um
operário fazia-lhe queixas sobre a obra em andamento seu pensamento
viajava para os momentos agradáveis ao lado da esposa.
A atração que sentia era nada mais que uma coisa que qualquer
homem saudável, recém-casado, sentiria. E durante muito tempo havia
colocado de lado suas necessidades sexuais. Estivera sem uma mulher por
meses!
Era claro que ao ter uma acessível, sob o mesmo teto, e ávida para
retribuir suas atenções, ele reagiria daquele modo!
Que tolo fora preocupando-se com suas reações.
***
Quando Zamir conduziu a esposa até a sala de jantar àquela noite, não
se decepcionou com a expressão dela diante da mesa farta, cheia de pratos
típicos da Índia.
— Zamir! — Delilah gritou, com um sorriso enorme na face.
As porções nas travessas não eram muito grandes, e a visão de tantas
opções coloridas era um regalo para os olhos. Com calma e cuidado
experimentou um pouco de tudo que havia na mesa.
Cada bocado era uma experiência surpreendente. E, à medida que
escolhia uma das iguarias, o marido dizia-lhe o nome, e apenas quando ela
mordia o alimento Zamir detalhava seu conteúdo.
Escolheu antes de tudo um pequeno triângulo de massa dourada, frita
e convidativa. Chamava-se Samosa. O gosto de ervas, vegetais e grãos bateu
no céu de sua boca, numa mistura inigualável.
Em seguida ela experimentou um pedaço de frango na manteiga.
Levava pimenta e condimentos dos quais nunca ouvira falar. Sua língua
ardeu e ela deu uma risada.
Zamir ofereceu-lhe um copo de limonada.
Após agradecer-lhe e tomar um gole, Delilah esticou-se, escolhendo
um pouco de arroz colorido e colocando-o em seu prato. Ao levá-lo aos
lábios, fechou os olhos. O Pullao era um arroz feito de forma exótica, com
temperos mistos e um resultado que combinava de modo primoroso o
adocicado e o picante.
E assim seguiu, degustando um pouco de tudo que compunha o jantar,
deliciando-se a cada nova mordida, arregalando os olhos, fazendo pequenas
caretas, ou murmurando elogios.
Sorrindo perante as reações da esposa, Zamir quase esqueceu-se de
comer.
Após a refeição ele pediu que um criado trouxesse Gulab Jamun.
— Se o que esta pedindo é de comer, Zamir, saiba que não
conseguirei comer mais nada! — Ela tocou o estômago, para enfatizar o que
dizia.
Mas ele sabia o quanto Delilah gostava de doces, e estava ansioso
para saber o que ela acharia daquele. Sem pensar duas vezes levou uma das
bolinhas de cor alaranjada à boca de sua esposa.
Delilah não podia recusar a oferta. Não quando servida daquele modo.
Entreabriu os lábios, sentindo a doçura tocar em seus dentes, e
escorrer pela língua.
O doce em calda era servido quente, moldado em pequenas esferas. O
sabor do cardamomo se destacava num primeiro momento e depois se fundia
aos outros ingredientes, desfazendo na boca.
Ela gemeu de prazer.
Zamir remexeu-se ao seu lado, sentindo-se inquieto.
Ele estava muito atento aos movimentos de Delilah. Cada gesto e
cada resposta ao que estava provando acabava causando uma reação nele. Os
sentidos dela pareciam ter aguçado os dele, como se estivessem ambos tendo
o primeiro contato com a culinária indiana. Pelos olhos da esposa tudo
parecia novo, divertido e saboroso. E excitante. Ah, como o leilão do qual
participara havia sido benéfico para ele!
Se tivesse escolhido uma esposa de verdade, jamais teria acertado
tanto quanto a sorte que tivera ao receber Delilah! Havia sido a casualidade
mais maravilhosa, desde o início.
— E então?
— Estou encantada!
Zamir sorriu.
— Iremos para a Índia quando a loja de Londres não precisar tanto de
minha atenção.
— Eu vou adorar conhecer.
— E morar.
Delilah sentiu congelar.
— Morar?
Zamir sorriu para a esposa.
— Sim, morar. Não esperava que ficássemos aqui para sempre, não é?
Meus negócios principais estão na Índia. Claro, viremos aqui de vez em
quando ao longo dos anos, e pretendo expandir ainda mais meus domínios.
Tenho pensando em futuramente viajar para Paris, onde tenho também
clientes e verificar se vale a pena colocar uma loja Maddala por lá.
Delilah tentava manter um sorriso no rosto, mas sentia que o rosto
doía. Ir para a Índia!
Por Deus... Já estava sendo difícil conquistar o amor de Zamir ali em
Londres, imagine na Índia!
Desde que descobrira-se apaixonada pelo marido ela lutava para seu
amor ser retribuído. Alguns dias parecia que estava tendo resultado, em
outros parecia ter falhado de forma miserável. Acreditava que acabaria
ganhando a batalha pelo coração do esposo, pois tinha muito a seu favor. Ali,
onde estavam.
Ela não se iludia. O marido a havia escolhido, sim, mas só se decidira
a procurar uma esposa porque queria uma esposa inglesa. Não fora o que ele
dissera? Portanto uma coisa era brigar pelo amor do marido dentro do seu
território, onde podia mostrar seu valor, onde ser inglesa era útil. Outra coisa
era seguir com ele para um lugar onde não conhecia nada, e onde ser
estrangeira era não somente inútil como uma desvantagem.
Zamir levantou-se e puxou a cadeira para a esposa, dando-lhe o braço
para, como de costume, seguirem para a sala de estar.
Delilah parecia fora do seu corpo enquanto andava. A coisa que mais
queria era voltar-se para Zamir e expor-lhe seus temores, e contar para ele, de
uma vez por todas, que o amava. Mas a língua travou, como há muito não
acontecia.
Então ao invés de falar ao esposo o que sentia, Delilah apenas calou-
se.
Aceitou-lhe a companhia, aceitou fazer amor, e fez tudo com a mesma
paixão de sempre, acrescida de uma porçãozinha de desespero. Se fossem
embora para a Índia sem que conseguisse alcançar o afeto do marido, sabia
que nunca mais teria uma oportunidade igual de consegui-lo.
***
Todos os vestidos novos de Delilah haviam chegado. Ela tinha um
armário cheio, e como se não bastasse Zamir decidira que ela também devia
receber joias. Era tudo lindo. Tudo maravilhoso.
Mas faltava uma coisa. Um pedaço.
Não deveria reclamar, nem tinha de quê. Jamais em sua vida ganhara
tanto em bens materiais e em atenção masculina. Zamir enchia-lhe de agrados
durante o dia, enchia-lhe de paixão de noite. E em algumas madrugadas, e até
em alguns finais de tarde. Ele estava sempre bem-disposto, chamando-a de
preciosa e dizendo palavras desconhecidas e melodiosas que ela já estava
começando a reconhecer. As semanas se passavam, alegres e harmoniosas, e
ela não se dava por satisfeita. Era uma gulosa! Um bom marido não lhe
bastava? Um casamento baseado em honestidade e respeito não lhe era
suficiente?
Por que era tão importante que tivesse mais?
Por quê?
Porque amava Zamir.
E mesmo que o tempo para a partida da Índia estivesse distante, a
assustava.
Ela mudara.
Primeiro por ele, depois por si própria.
Delilah voltou a olhar para seu armário, sabendo que o que faltava
não estava ali, nem era palpável.
Será que o que Zamir via não o encantava a ponto de fazê-lo amá-la
só um pouquinho?
Ela desejava ser daquelas pessoas boas e generosas que se dão por
completo e tem tanto amor que não fazem questão de ser amadas, tão
magnânimas que só o amor pelos outros já as faz feliz. Mas não era.
E só de pensar na vida solitária de uma pessoa que não era amada, ela
sentia calafrios.
Lembrou-se da mãe, tão abnegada, e teve vontade de chorar.
Para complicar havia a ansiedade para que chegasse logo a data da
inauguração da loja, pois só após sua abertura, e quando estivesse
funcionando com sucesso, poderia dedicar-se à busca de suas irmãs. Ela
acreditava que Sarah e Barbarah estavam bem, protegidas por Deus, e por
seus respectivos maridos. Precisava acreditar nisso para manter-se firme.
Mantivera-se até agora, não?
Deixou de olhar aos vestidos, e deixou de pensar numa viagem para a
Índia que estava longe de acontecer. Iria se concentrar no agora.
Era uma mulher adulta!
Forte!
O tempo de ter medo, de ser choramingas, havia passado.
Tomando da pena, pôs-se a escrever.
Se você remover pedra por pedra até mesmo
uma montanha será demolida.
Provérbio indiano.
Capítulo 9
***
***
***
Mais tarde, à hora do jantar, Zamir foi notificado por um criado que a
senhora Maddala havia se recolhido mais cedo.
Pois bem. Se Delilah precisava de mais tempo para lamber suas
feridas, ele lhe daria a noite toda. Esperava que a mágoa diminuísse pela
manhã, e ela pudesse voltar a ser a esposa amorosa de sempre.
Jantou sozinho, pela primeira vez em muito tempo, e a comida
pareceu-lhe sem nenhum sabor. O vinho travou na garganta, e a água tinha
gosto ruim.
Sem ter com quem conversar, apenas a companhia de Estrela,
seguindo-o pela casa como se dessa forma pudesse dar-lhe apoio, Zamir
também acabou recolhendo-se mais cedo. Faltava aproximadamente uma
semana para a inauguração da loja e ele deveria concentrar toda sua atenção
no novo empreendimento, mas ao invés disso todos os seus pensamentos
estavam numa jovem de sorriso suave que roubara-lhe o coração bem de
mansinho, e que agora preferia sofrer sozinha do que deixá-lo aproximar-se
para consolá-la.
***
***
***
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***
***
Três anos depois
Delilah circulou pela casa onde vivera nos últimos anos, procurando
apreender na memória seus pontos principais. Ela não voltaria para lá. A
construção em breve seria alugada para outra pessoa, já que Arun e Margret
tinham montado sua própria residência, há apenas alguns metros daquela,
levando vários dos criados que antes serviam a Zamir, inclusive a querida
Lydia.
Delilah passou os dedos por uma das paredes. Naquele local havia
sido muito feliz.
Por aqueles corredores Estrela, que havia se tornado uma estrelinha
no céu na primavera anterior, corria para fazer-lhe festa quando chegava da
rua, acompanhada por seus filhotes, que cresceram muito mais que o
esperado por todos.
Ela sorriu ao recordar-se de Zamir sendo derrubado por eles uma vez,
e suas gargalhadas diante da enxurrada de lambidas alegres que recebera.
Os animais ficariam todos com Arun, que era proprietário também de
uma casa de campo, e ficou satisfeito de levar os cachorros para um lugar
onde poderiam usufruir de bastante liberdade ao ar livre.
E também Arun se tornaria responsável por dirigir a bem-sucedida
loja Maddala da Bond Street. Se um dia Zamir assim desejasse, ele
devolveria à direção às mãos do irmão mais velho.
Ali, naquelas salas, ela e o marido receberam vários amigos que
surgiram ao longo do tempo, e foi na sala de estar da frente que comemorou
com alegria o noivado da velha amiga Dayse, agora casada, vivendo bem ao
lado do marido.
Sob aquele teto descobriu o amor pelo esposo, conheceu o verdadeiro
significado de doar-se a quem se ama, e percebeu que para amar alguém
deveria amar-se também.
No quarto que dividia com o marido, depois que o quarto dele foi
definitivamente desativado e transformado num quarto de banhos, fortificara
seu casamento e gerara seu primeiro herdeiro.
Cyril havia nascido à noite, após algumas horas de esforço que
valeram muito a pena. Seu menino tinha os olhos e os cabelos de Zamir, era
amoroso, sorridente, e enchia seus pais de orgulho. Com o terço de Sarah
preso em suas mãos, ela agradeceu mais uma vez a maravilhosa dádiva
recebida.
Por causa de Cyril haviam acabado por ficar em Londres mais tempo
que o previsto, mas agora era hora de retornar à Índia e só depois de algum
tempo pensariam quais novos rumos tomar, e quais locais iriam desbravar,
juntos, evidentemente.
O lugar não era tão importante quanto a companhia, e, portanto não
havia muito pesar em seu coração quando deu a mão ao filho, e o braço ao
marido, e deixou Londres para trás.
***
Calcutá era toda cor, luz e som.
Uma profusão de aromas chegou-lhe as narinas, intensificando a
surpresa com a qual se deparava. Especiarias, perfumes, suor, alguma coisa
no próprio ar... Até o cheiro que a poeira exalava divergia do que lhe era
familiar. De muito longe se ouviam cânticos, convites a adorações religiosas
das práticas locais, atraentes como a flauta que fazia uma cobra erguer-se do
cesto diante de um nativo magro, de roupas claras e amarfanhadas,
arrebanhando moedas de curiosos passantes. O conjunto entontecia, inebriava
e fazia sentir a vida pulsando com mais força e rapidez pelas veias.
Delilah piscou, e deu uma volta, impressionada demais com tudo o
que via, aturdida e deslumbrada com toda a diferença que aquele lugar
apresentava, num contraste absurdo com Londres e sua austeridade
acinzentada.
Próximo a eles os mercadores apregoavam seus produtos, pessoas
passavam aceleradas de um lado para outro, numa confusão encantadora de
trajes e estilos, da pompa das damas inglesas e portuguesas até os trajes
exóticos das indianas, das faces pálidas até as bronzeadas, muitas delas
ocultas sob um véu, deixando à mostra olhos escuros, pintados de preto, com
testas ornadas com pequeninas pedras ou apenas um risco de tinta colorida.
Entre os homens as diferenças nas vestimentas eram ainda mais gritantes.
Enquanto muitos usavam os tradicionais paletós e calças justas, boa parte da
população masculina desfilava dhotis e kurtas bordadas, turbantes e cartolas
misturavam-se na mesma profusão, o mesmo se dando com botas elegantes e
chinelos rasteiros.
Delilah sorriu, estava absolutamente encantada.
Permitindo que Delilah se encantasse um pouco mais com a visão que
se abria como um leque mágico, Zamir esperou sua bagagem ser
descarregada pelos marinheiros através da prancha ladeada de cordas. Fez
sinal para um dos muitos homens que trabalhavam como carregadores na área
portuária, e por fim ofereceu o braço livre à esposa. No outro carregava o
filho, que observava a tudo com o mesmo olhar surpreso da mãe.
— Hora de irmos para casa, senhora Maddala.
Assim seguiram até onde estavam as carruagens de aluguel e os
jinriquixás².
***
¹mehndi é a tintura conhecida por nós como henna. Não é definitiva, e sai em
aproximadamente dez dias, ou mais rápido, dependendo também do contato com a água. É
usada principalmente em festas e casamentos, mas as mulheres indianas também usam em
seu dia-a-dia.
²Jinriquixá é um veículo de duas rodas, que pode carregar uma ou duas pessoas, e
é puxado por um homem.
Epílogo
Querida irmã:
Dessa vez escrevo cartas iguais tanto para você como para Barbarah.
É que o amor que sinto pelas duas é igual, e o desejo de lhes dar a mesma
notícia, ao mesmo tempo, também.
Estou esperando mais um filho, e esse nascerá aqui na Índia.
Enquanto percebo meu ventre crescendo, me aperta a saudade de
vocês, fazendo-me viajar pelo passado, quando estávamos juntas, e
dividíamos sonhos e também tristezas, nos consolando uma às outras,
fazendo nossa existência mais fácil, e fortalecendo a semente de esperança
que carregávamos no peito. Gostaria que vissem como estou, e gostaria,
claro, de vê-las também. Me agradaria ter a mão de vocês sobre minha
barriga, e ver sua reação ante as estripulias de seu sobrinho Cyril.
Mas compreendo que cada coisa tem seu tempo, e que a distância
entre nós é aplacada através das cartas que trocamos. Desde que
conseguimos voltar a nos comunicar, tudo ficou mais fácil para mim.
Gostaria de frisar também que diante dessa nova gravidez qualquer
plano de viagem para breve está descartada, e ficaremos por aqui ainda um
bom tempo. Posso, portanto, sonhar com sua visita.
Seria possível?
A mim agradaria muito receber você, Sarah, em meu lar, junto com
seu marido. Evidentemente, se as cartas que escrevi são iguais, estendi meu
convite também à Barbarah e o esposo.
Venham conhecer meu pequeno paraíso, e meu príncipe encantado.
Ele não segue os padrões aos quais estamos habituadas, mas garanto-lhe
que Zamir tem mais nobreza do que se ostentasse uma coroa.
E sinto-me uma princesa ao seu lado.
Mas eu já lhes disse isso antes, e não quero repetir-me.
Assim me despeço, desejando que Deus as abençoe enormemente.
Aguardo notícias. E como já disse antes:
Eu as amo, e sempre amarei, mesmo que a distância nos separe.
Fim
Os outros dois volumes da trilogia As Irmãs Winter, do selo Damas
dos Romances, são:
O destino de Sarah: Sarah Winter sempre quis ser freira. Depois de ver a mãe
apaixonada sofrer na mão do pai indiferente, ela decidiu que jamais seria esposa de alguém.
Cega em seu objetivo, ela nunca desejou um casamento, mesmo quando seu coração
encontrou o amor. O americano Hayden Hard Castle vai à Inglaterra para tratar de
negócios, quando tem a vida salva pela jovem Sarah por quem ele se sente imensamente
atraído. Quando John Winter decide leiloar as filhas, tudo pode mudar na vida de Sarah e
Hayden e a paixão que se revelou como uma brisa fresca pode se tornar um amor em meio
a mais fria das tempestades.
A aventura de Barbarah: Barbarah é a caçula das três irmãs Winter e a que o pai
esperava casar com mais facilidade por ser a mais graciosa delas, não fosse o fato de se
esconder atrás das grossas lentes de seus óculos. Cresceu protegida pelas mais velhas e
assim se tornou um espírito vivaz e curioso, cuja inteligência a coloca em situações
inusitadas. Não esperava ser dada em casamento a um nobre da Cornualha e viaja para lá
com o coração cheio de dúvidas.
George Hosken, o misterioso Conde de Carrick, precisa se casar o mais rápido possível
para garantir o nascimento do varão capaz de herdar o título e a propriedade e assim evitar
que seu primo e desafeto seja o próximo Conde. Porém, ele não quer qualquer
envolvimento sentimental com a esposa, o que o fez comprar uma. Amargurado e envolto
em um grande segredo de seu passado, não contava ter que lidar com o espírito aventureiro
de Barbarah, que não mede esforços para desvendar os mistérios que rondam a propriedade
e o passado do Conde.
Conheça também a trilogia inaugural do projeto Damas do Romance:
Os Irmãos Gallagher
Burke Gallagher é um irlandês que partiu rumo aos Estados Unidos com apenas dez
dólares no bolso e se tornou o dono da maior cervejaria do país, a Cervejaria Gallagher,
ficando conhecido no mundo todo pelo excelente produto e por sua perspicácia nos
negócios.
Preocupado com o futuro de seus três filhos, decide dar um basta nas suas vidas boas e lhes
dá uma ordem: cada um teria que partir para o Oeste com apenas dez dólares no bolso e
quem conseguisse ser mais bem-sucedido, no prazo de um ano, ficaria com a fábrica de
cerveja. Os irmãos então partem dispostos a vencer o desafio e viverem suas próprias
aventuras.
Silvana Barbosa também é autora das séries
Libertinos e Cavaleiros das Terras Altas, da coleção
Sonhando com Romances, e dos livros Uma noite não é o
bastante e Olhos de mel, lábios de fogo.