Tese - 8778 - Tese. Alessandra André
Tese - 8778 - Tese. Alessandra André
Tese - 8778 - Tese. Alessandra André
ALESSANDRA ANDRÉ
VITÓRIA
2018
ALESSANDRA ANDRÉ
VITÓRIA
2018
ALESSANDRA ANDRÉ
COMISSÃO EXAMINADORA:
___________________________________________
Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva
Universidade Federal do Espírito Santo
Orientador
____________________________________________
Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Examinador Externo
_____________________________________________
Prof. Dr. Henrique Modanez de Sant’Anna
Universidade de Brasília
Examinador Externo
________________________________________________
Profa. Dra. Érica Cristhyane Morais da Silva
Universidade Federal do Espírito Santo
Examinadora Interna
_________________________________________________
Prof. Dr. Sebastião Pimentel Franco
Universidade Federal do Espírito Santo
Examinador Interno
__________________________________________________
Profa. Dra. Sílvia Marcia Alves Siqueira
Universidade Estadual do Ceará
Membro Suplente
___________________________________________________
Prof. Dr. Belchior Monteiro Lima Neto
Universidade Federal do Espírito Santo
Membro Suplente
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
________________________________________________________________
André, Alessandra, 1982-
A553f A fabricação da basileia helenística: um estudo sobre o
governo de Antígono Monoftalmo e Demétrio Poliorcetes (321
301 a.C.) / Alessandra André – 2018.
294 f. : il.
CDU: 93/99
________________________________________________________________
‘In memoriam’ à minha amada mãe, Nelza, meu alicerce e
inspiração, por acreditar em mim e me apoiar de todas as
formas possíveis.
Para Vinícius, pelo amor e apoio nas horas mais difíceis.
AGRADECIMENTOS
Agradecer a todos que me ajudaram nesta empreitada é uma tarefa difícil. Foram
muitas as pessoas que me auxiliaram direta ou indiretamente, mesmo que elas mesmas não se
deem conta disso. Entre amigos, professores e colegas, há uma lista de pessoas às quais sou
bastante grata.
Agradeço, em primeiro lugar, ao Professor Doutor Gilvan Ventura da Silva (Ufes), que
desde a graduação me inspirou, por sua rara sabedoria e conduta profissional, a empreender a
busca constante do conhecimento. Espero que o resultado deste trabalho seja digno de sua
valiosa e dedicada orientação, sem a qual seria impossível encontrar caminhos para chegar a
um bom termo.
Érica Cristhyane Morais d Silva (Ufes), pelas críticas, observações e sugestões recomendadas
da Banca de Defesa.
Sou grata aos Professores Doutores Fábio de Souza Lessa (UFRJ) e Sebastião Pimentel
Franco (Ufes) pela disponibilidade em participar de minha Banca de Defesa de Tese. Acredito
especial, ao Professor Doutor Sebastião Pimentel Franco, que acompanhou a minha trajetória
acadêmica desde a graduação, momento no qual fui sua orientanda de iniciação científica por
bolsa do Programa Jovens Pesquisadores. Sou grata especialmente aos Professores Doutores
Gary Vachicouras e Pierre Ducrey pela supervisão e atenção concedidas; e ao Professor
Doutor John Bennet e a Vicki Tzavara da British School at Athens pelo apoio durante minha
revisora e amiga Kátia Regina Giesen, por examinar o texto da tese com tanta dedicação.
Agradeço, em especial, às mulheres fortes que estiveram ao meu lado ao longo desta
jornada. Amigas que em diversos momentos foram o meu porto seguro, cada uma à sua
forma. Destaco entre estas grandes mulheres: as amigas que fiz ao longo do doutorado e que
levarei para a vida, Carolline da Silva Soares, Karulliny Silverol Siqueira, Hariadne da Penha
Fernanda Coimbra da Costa Pereira, amigas de uma vida toda e companheiras de todas as
horas; e, por último, mas não menos importantes, às amigas Vera Márcia Soares de Toledo e
Andrea Santana Silva e Souza, irmãs das Letras que, junto comigo, sonharam e realizaram
por todo o apoio e amor, e ao meu tio, e pai de coração, Eduardo. Agradeço ao meu
companheiro da vida, meu marido, Vinícius, por ser aquele que esteve, durante esses quatro
anos, todos os momentos ao meu lado. A você, meu amor, meus mais profundos
agradecimentos. Por fim, agradeço aquela que fez de mim o que sou hoje, minha mãe, Nelza,
que infelizmente ao longo desta minha jornada veio a falecer. Saiba que tudo foi por você.
Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os
artefatos ou as máquinas,] por trás dos escritos aparentemente
mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas
daqueles que as criaram, são os homens que a história quer
capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo, um
serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o
ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a
sua caça.
(Marc Bloch, Apologia da história, ou, o ofício do historiador,
1949).
RESUMO
Após a morte de Alexandre, há, no Mediterrâneo Oriental, uma tendência política híbrida.
Primeiramente, os diádocos (sucessores) procuraram manter a unidade da oikoumene. Para
tanto, teriam que resolver a questão sucessória, pois, de acordo com a tradição macedônia, o
governo caberia a um herdeiro varão da dinastia Argéada, da qual Alexandre fazia parte. Este,
ao morrer, não deixara um herdeiro em condições de assumir o trono naquele momento.
Desse impasse, resultou uma segunda tendência. Em princípio, existia um representante da
dinastia Argéada na Macedônia e um no Oriente, mas, na prática, os diádocos buscaram
autonomia política. A primeira tendência preservava a ideia de unidade do Império, mas as
condições inerentes à própria realeza macedônia, como o direito da lança, ou seja, a
doriktetos chora, e as complicações no processo sucessório, levaram à fragmentação da
oikoumene em múltiplos reinos. Tendo em vista essas considerações, o objetivo central desta
tese foi investigar como, após a morte de Alexandre, a realeza helenística foi
construída/consolidada mediante as ações dos diádocos, tendo como foco o período de 321 a
301 a.C., em que Antígono I Monoftalmo, auxiliado por seu filho, Demétrio Poliorcetes,
assumiu a preponderância na condução dos assuntos políticos, tendo como ponto de partida o
legado de Alexandre, mas também toda uma tradição macedônia e oriental referente à
concepção da monarquia e do monarca. Acreditamos que a basileia helenística foi um
elemento novo, fabricada a partir das ações dos diádocos, e que já não mais representava a
monarquia macedônia. Dentre os generais de Alexandre, Antígono foi o primeiro a intitular-se
basileus, juntamente com Demétrio, apresentando-se como o sucessor legítimo do soberano
argéada, por meio de uma série de recursos simbólicos. Ao lado de seu filho, Antígono
desempenhou um papel fundamental rumo ao estabelecimento da monarquia. Quando, em 306
a.C., foi aclamado basileus por seu exército, o primeiro rei helenístico já tinha empregado a
associação com Alexandre nas representações numismáticas; se filiado a deidades; unido
elementos da tradição macedônia, helênica e oriental; seguido como fundador de cidades; e se
proclamado o maior benfeitor das cidades gregas, recebendo em troca cultos e festividades em
honra a sua pessoa e a de Demétrio. Pai e filho detiveram, portanto, a primazia quando nos
referimos à fabricação da basileia helenística.
After Alexander’s death, in the Eastern Mediterranean, there is a hybrid political tendency. At
first, the Diadochi (successors) sought the unity of the oikoumene. Thus, they would have to
manage to solve the succession issue for, according to Macedonian tradition, power should be
inherited by a male heir of the Argead dynasty, of which Alexander was part. Because by
dying he didn't let any male heir in condition to assume control over his throne, a second
tendency emerged. A priori, there was one candidate of the Argead dynasty in Macedon and
one in the East. However, the Diadochi looked for political authonomy. The first tendency
preserved the idea of unity in the empire, but conditions inherent to the Macedonian kingship
itself - like the doriktetos chora and the complications in the succession process - let to the
fragmentation of the oikoumene in multiple kingdoms. Bearing this in mind, the main goal of
this work was to investigate how, after Alexander's death, the Hellenistic kingship was
built/consolidated by means of the Diadochi actions, focusing the 321 a 301 B.C. period,
when Antigonus I Monophthalmus, helped by his son, Demetrius Poliorcetes, assumed control
in conducting the political issues, having as departure point not only Alexander's legacy, but
also East and Macedonian tradition as for monarchy and monarch conception. We believe that
the Hellenistic basileia was a new element, made from the Diadochi actions, and not
representative of the Macedonian monarchy anymore. Among Alexander's generals,
Antigonus was the first one to be intitled basileus, together with Demetrius, hushing himself
as the genuine successor of the Argead sovereign, through a series of simbolic resources. With
his son, Antigonus had a fundamental role in the establishment of monarchy. When his army
claimed him basileus in 306 B.C., the first Hellenistic king had already employed the
association with Alexander in the numismatic representations, affiliated himself with deities,
united elements of Macedonian, Hellenistic and East traditions, followed as founder of cities;
and self proclaimed the greater benefactor of Greek cities, being worshiped in services and
festivities that honored himself and Demetrius. That is why father and son held the primacy in
the fabrication of the Hellenistic basileia.
Figura 2 – Alexandre III. Tetradracma de prata, 14, 5 g., 297-281 a.C. ................................. 62
Alexandre ................................................................................................................................ 70
Figura 7 – Artefatos referentes à Tumba do Guerreiro, necrópole de Vergina, séc. VIII a.C
............................................................................................................................................... 124
Figura 8 – Disco dourado representando o Sol de Vergina, séc. IV a.C ............................... 128
Figura 9 – Filipe II. Estáter de ouro, 8, 58 g., 340-328 a.C. .................................................. 154
Figura 10 – Filipe II. Meio-estáter de ouro, 4, 30 g., 340-328 a.C. ....................................... 155
Figura 11 – Alexandre III. Tetradracma de prata, 17 g., 330-301 a.C. ................................. 157
Figura 12 – Alexandre III. Tetradracma de prata, 17, 1 g., s/d ............................................. 158
Figura 14 – Demétrio Poliorcetes. Tetradracma de prata, 16, 94 g., s/d ............................... 161
Figura 15 – Demétrio Poliorcetes. Tetradracma de prata, 17, 11 g., 301-295 a.C ................ 162
Figura 19 – Ágora ateniense, monumento aos heróis epônimos originais ............................ 199
Figura 22 – Representação da Pompé. Detalhe de vaso grego, 370-360 a.C ........................ 217
Figura 23 – Fragmento de decreto referente à pritania dos Antigônidas. 213/212 a.C ......... 222
Figura 26 – Vestígios das fundações do palácio de Demétria, séc. III a.C ........................... 237
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 16
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
No século IV a.C., o mundo mediterrâneo foi marcado por uma profunda transformação,
sobretudo política. O sistema políade passava por graves problemas sociais, que se tornavam
cada vez mais intensos devido às lutas internas entre as diferentes póleis.1 O poder dos
século V a.C. haviam ocorrido revoltas no interior do Império Aquemênida,2 sustentadas por
despontava no cenário da Península Balcânica uma nova força – a Macedônia de Filipe II.
das Termópilas. No século V a.C., a região era ainda um conglomerado de tribos que viviam
com a Hélade3 e, com o passar do tempo, sua elite foi se helenizando. Porém, enquanto
grande parte da Grécia balcânica e insular passava pela experiência políade, a Macedônia
mantinha-se como uma realeza tribal hereditária ou, de acordo com Neyde Theml (1993), um
1
A Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) marca uma virada decisiva na história da Grécia em todos os seus
aspectos. Tal conflito daria início ao processo de desestruturação da pólis clássica de maneira que, de 431 a 338
a.C., a Hélade se encontraria imersa em um estado de guerra contínua. A emergência da tirania, a redução do
corpo cívico, o mercenariato e a especialização militar são alguns dos problemas pelos quais passava o sistema
políade neste período (ANDRÉ, 2009).
2
No que se refere à dinastia Aquemênida, a tradição aponta Aquêmenes, um possível herói lendário, como o
fundador desta dinastia, que teria surgido por volta primeiro quartel do século VII a.C. (DANDAMAEV, 1989,
p. 1-2). De acordo com Asheri (2006, p. 20-21), os aquemênidas pertenciam à família dos reis-vassalos de
Anshan e o nome Hakhāmanishiyā (Aquemênidas) era conhecido pelo menos desde o século VI a.C., como
confirma Dario na inscrição de Behistun (520/518 a.C.). É com o aquemênida Ciro, o Grande (559-530 a.C.),
que se vê a formação do Império Persa, situado no sudoeste da Ásia. A partir da formação deste império, os
medo-persas passaram a ter contato direto com as populações da Mesopotâmia, do Transeufrates, da Anatólia e
do Egeu (ASHERI, 2006, p. 23).
3
Entendemos por Hélade toda a região grega que se organizou com base no sistema políade. Quando em nosso
texto nos referirmos a Hélade ou cidades gregas, estaremos nos reportando às póleis, da mesma forma que,
quando usarmos o adjetivo gregos, será em referência aos membros pertencentes às cidades gregas, e não a
sujeitos provenientes de territórios onde não houve a organização políade. Por isso, esclarecemos que apesar de
convencionalmente o território conhecido como Grécia abranger territórios que vão além das cidades-Estado,
adjetivos como gregos e helênicos serão sempre referentes ao mundo da pólis.
17
Guerras Greco-Pérsicas (492-479 a.C.). Desta forma, a Macedônia por muito tempo não se
Quando Filipe assumiu o trono, em 359 a.C., encontrou uma Macedônia em vias de
unificação, processo que ele contribuiu para completar. Ele transformou a Macedônia numa
Império Persa. Dando continuidade à obra de Arquelau (413-399 a.C.), Filipe empreendeu
agricultura e abrindo estradas (SILVA, 2009, p. 39-41). Além disso, o monarca realizou
mudanças no sistema político e militar. Assim, de uma realeza tribal baseada em um sistema
de clã, fez surgir um extenso domínio, governado por uma só pessoa e dependendo de um
exército permanente, bem treinado e abastecido. O núcleo dessa força era proporcionado
pelos pequenos proprietários rurais que serviam na infantaria e formavam a falange, que mais
“conselheiros” do rei e supriam o exército com uma força de cavalaria de armas pesadas
Balcânica, a Tessália e a faixa da costa macedônia ocupada pelos gregos (GRIFFITH, 1970,
p. 67-70). Quando entrou em conflito com as cidades gregas, o monarca macedônio envolveu-
se nas conturbações que assolavam a Hélade, o que o levou a formular uma saída para o
problema: a conquista do território persa. Tal empresa, além dos benefícios que poderia trazer
para os macedônios, ajudaria a resolver os graves problemas sociais vividos pelas póleis
4
Para Theml (1993, p. 53-56), existiam diferentes formas de se nomear as unidades sociais no mundo greco-
macedônio. Em Heródoto, encontramos os termos pólis, éthnos, phylé e génos. Já em Aristóteles, em obras como
a Política e a Constituição dos Atenienses, encontram-se, além dos termos citados por Heródoto, outros como
phatría e oikos. A estas unidades sociais estão atreladas relações de linhagem extensas, que passam pelos heróis
homéricos e deuses. O termo ἔθνος é vinculado a grupo, estirpe – seres que possuem a mesma natureza, ou
atribuições. A realeza tribal, ou Estado-Éthnos, se caracteriza pela ausência de um núcleo urbano, marcada por
uma pequena população espalhada por uma grande territorialidade, laços políticos frouxos e o caráter guerreiro
de seu monarca. Tais características tornam este tipo de Estado bem diferente do surgido no território da Hélade.
18
mediante o domínio de novas terras e o emprego maciço de serviço mercenário nas fileiras do
exército macedônio. Esse projeto de conquista do Oriente por Filipe fora apresentado por
25-30). Isócrates (Philippus, 70-80), em 346 a.C., já havia proposto a dominação de territórios
pertencentes ao Império Persa numa carta endereçada ao próprio Filipe II. Devido à situação
crítica na qual se encontravam os gregos e os persas, o contexto parecia favorável para Filipe
Oriental,5 o que realmente provou ser, em 338 a.C., em Queroneia, ao submeter as cidades
gregas ao seu domínio. Filipe seria em seguida nomeado hegemón (generalíssimo) dos gregos.
Em 337 a.C., emissários de todos os Estados continentais, exceto Esparta, formaram junto
com Filipe uma liga grega, denominada Koinon de Corinto. Na primeira reunião do conselho
da Liga, estabeleceu-se uma aliança ofensiva e defensiva perpétua entre as cidades gregas e a
Macedônia. Na ocasião, foi declarada guerra à Pérsia, com o pretexto de vingar a profanação
das tumbas gregas pelos persas em 480 a.C., durante as Guerras Greco-Pérsicas
(HAMMOND, 1992). Mas, em 336 a.C., Filipe foi assassinado num complô em Egas. Caberia
5
Mesmo que alguns autores considerem o termo Mediterrâneo muito abrangente, e que esse possa ser utilizado
de forma mais adequada quando nos referimos ao mundo romano, nós optamos pelo uso do termo Mediterrâneo
Oriental por acreditar que este se harmonize melhor com o espaço onde ocorreram as interações ligadas ao nosso
objeto de pesquisa. Concordamos que o termo mediterrâneo, ou mediterrânico, seja muito indefinido ainda, pois
é um universo onde cabem diversos mundos e fronteiras, todavia consideramos que, ainda que não exista uma
visão que ligue diretamente os gregos ao mediterrâneo, foram construídos espaços de interação. Guarinello
(2014, p. 47-57) busca interpretar o Mediterrâneo a partir de uma ampla análise dos seus processos de
integração, enxergando que a partir da constituição da pólis até o século II a.C., surgem grandes centros de poder
no mediterrâneo cujos embates mudam o ritmo e as formas de integração deste mundo. Ao tratar o mediterrâneo
como um universo, que engloba diversos mundos, Guarinello vai de encontro com a ideia de Horden e Purcell
(2000), que concebem o mediterrâneo como um mundo em si, com sistemas ecológicos diversos (que
ultrapassam a visão do mundo do trigo, vinho e azeite), e sendo um espaço em que há períodos de hiperconexão
e de pequena conexão. Dentro desta perspectiva, o nosso Mediterrâneo Oriental é aquele que parte dos Balcãs
para o Leste e que está inserido dentro de um momento de hiperconexão e interações.
19
Com Alexandre, vemos surgir uma nova configuração política nos territórios
resistência à ingerência macedônia sobre o território grego, que serão sufocados por
Mossé (2004) informa que ele representava primeiramente o rei dos macedônios. A realeza
macedônia era de caráter coletivo, o rei deveria encarnar os anseios de seus súditos ao mesmo
tempo que possuía um conselho formado por seus pares para ajudá-lo nas decisões, tanto que
o rei era intitulado Basileus Makedônon (Rei dos Macedônios), sendo a legitimidade de sua
(ERRINGTON, 1991). Uma segunda imagem era a de hegemón dos gregos, título que herdara
de seu pai e que assinalava a perícia militar de Alexandre através da figura do general
vitorioso. Associada a essa imagem está a de fundador de cidades, já que muitos gregos de
seu exército foram estabelecidos nas novas cidades criadas pelo hegemón. A terceira imagem
demonstrada por Alexandre após a morte de Dario III, último rei da dinastia Aquemênida,
morto em 330 a.C., foi a de sucessor dos Aquemênida. Ele adotou parte da indumentária
a.C., as célebres “Bodas de Susa” (um casamento coletivo entre membros do exército
macedônio e asiáticas), nas quais ele mesmo se casou com uma nobre oriental, Roxana. A
jovem era uma princesa sogdiana da Báctria, filha do nobre bactriano Oxiartes. Além das
imagens acima mencionadas, Alexandre fez-se representar como filho de Zeus por ocasião da
invasão do Egito, em 331 a.C. Em solo egípcio, visitou o oráculo de Amón, no Oásis de Siva,
que teria predito sua filiação divina com Zeus. Esse episódio alimentou o imaginário político
da época, uma vez que a casa real macedônia admitia a ascendência divina dos reis e os cultos
6
A adoção do termo iraniano para se referir aos povos asiáticos dominados por Alexandre, e depois pelos
diádocos, está em consonância com o uso feito pelos especialistas do período helenístico.
20
heroicos, no mundo grego, não eram novidade, principalmente aqueles prestados aos
fundadores de cidades, como era o caso de Alexandre (ANDERSON, 1928, p. 12; 26-29).
fundamentos que mais tarde irão ajudar a compor a basileia helenística. Pouco tempo após a
morte de Alexandre (323 a.C.), o império por ele constituído se desmembrou, principalmente
devido às ações de seus diádocos.7 Contudo, vemos que grande parte da historiografia trata o
período entre 323 e 301 a.C., que compreende o intervalo entre a morte de Alexandre e o
efetivo estabelecimento das realezas helenísticas, como uma conjuntura de turbulência que,
em si, não teria contribuído muito para o advento da nova instituição política – a basileia
helenística. Concordamos que o governo de Alexandre provocou uma ruptura com a práxis
política anterior, mas também que as ações de seus sucessores, o fato de serem macedônios e
a apropriação que realizaram das imagens de Alexandre, por meio de seu capital simbólico,
que na definição de Bourdieu (1998, p. 134-135) se refere ao prestígio, reputação, fama entre
Império Universal. Para isso, teriam que resolver a questão sucessória, uma vez que, de
Argéada, da qual Alexandre fazia parte. Alexandre, ao morrer, não deixara um herdeiro em
condições de assumir o trono, pois a princesa Roxana, uma das esposas do soberano argéada,
estava grávida quando o rei veio a falecer, e o irmão do monarca, Arrideu, de acordo com
autores como Plutarco e Arriano, possuía problemas mentais. Desse impasse, resultou uma
7
Diádocos foi como ficaram conhecidos os generais do Estado Maior de Alexandre, chamados também de
“amigos”, e que atuaram como seus “sucessores” após 323 a.C.. A maioria dos diádocos já compunha o conselho
de Filipe II. Os diádocos que dominaram a cena política nas duas décadas seguintes foram: Antípatro, Cassandro,
Crátero, Perdicas, Eumenes, Antígono, Ptolomeu, Lisímaco e Seleuco. Quando nos referimos, ao longo de nossa
tese, aos diádocos (de forma generalizada), em contraposição as figuras de Antígono e Demétrio, geralmente
estamos apontando para esses principais generais que atuaram ao lado de Alexandre e que foram os principais
concorrentes dos Antigônida.
21
e um no Oriente, mas, na prática, os diádocos buscaram autonomia, vendo uns aos outros com
condições inerentes à própria realeza macedônia, como o direito da lança, ou seja, doriktetos
como, após a morte de Alexandre, a realeza helenística foi construída/consolidada a partir das
ações dos diádocos, tendo como foco o período de 321 a 301 a.C., em que Antígono I
Monoftalmo,8 auxiliado por seu filho, Demétrio Poliorcetes (assediador de cidades), assume a
preponderância na condução dos assuntos políticos tendo como ponto de partida o legado de
Alexandre, mas também toda uma tradição macedônia e oriental referente à concepção da
monarquia e do monarca.
Acreditamos que a basileia helenística foi um elemento novo, que já não mais
representada por Alexandre em vida. As últimas décadas do século IV a.C., sobretudo as duas
como palco a complexa região em torno do Mediterrâneo Oriental, que proporcionou uma
interação rica no que concerne à forma como a monarquia helenística foi se constituindo.
Nesse cenário, foi de suma importância o papel desempenhado pelos generais de Alexandre.
Por meio de suas ações, embates, alianças e da representação que possuíam acerca do poder
político, esses homens foram os grandes responsáveis pelo novo sistema político que estava
por se estabelecer.
8
Sobre a perda do olho que rendeu a Antígono o epíteto ἑτερόφθαλμος (cego de um olho), não sabemos ao certo
como ocorreu. Talvez Antígono tenha perdido o olho no cerco a Perinto, na Trácia, comandado por Filipe II, por
volta de 340 a.C. Essa informação é mencionada em Plutarco (Vitae Parallelae Alexander, LXX, 3-4), contudo,
o autor faz uma confusão entre os nomes Antígono e Antigéne. O que podemos concluir é que Antígono
certamente perdeu o olho em uma das campanhas empreendidas por Filipe.
22
A escolha por analisar a construção desta realeza sob a ótica dos Antigônida se deve ao
fato de Antígono ter sido o primeiro dos diádocos a intitular-se basileus, apresentando-se
como o sucessor legítimo de Alexandre, por meio de uma série de recursos ao capital
basileus por seu exército, ao lado de Demétrio, o primeiro rei helenístico já tinha empregado a
proclamado o maior benfeitor das cidades gregas do referido período, recebendo em troca
devido a todos esses fatores que a basileia dos Antigônida se apresenta para nós um
importância se torna mais evidente quando exploramos uma historiografia que ainda não
concedeu atenção suficiente ao período de formação da realeza helenística e que ainda insiste
No que tange à pessoa de Antígono Monoftalmo, há poucas informações sobre sua vida
no período anterior à morte de Alexandre. Sabemos que nasceu na Macedônia por volta de
382 a.C. e que morreu com mais de 80 anos, em 301 a.C, em uma batalha travada em Ipso, na
Frígia, contra os seus rivais, tendo sido, portanto, contemporâneo de Filipe II. Algumas
fontes, como Plutarco (Vitae Parallelae Demetrius, II, 1-3), apontam para uma origem
camponesa de Antígono, outras, como Diodoro da Sicília (XIX, 10-48), em sua Biblioteca
junto com Alexandre para a campanha na Ásia e tornou-se sátrapa (governador) da Frígia em
333 a.C. O general é apresentado com mais clareza a partir de 323 a.C, logo após a morte de
Alexandre. Sua figura domina as narrativas histórico-literárias que buscam dar conta do
período entre 323 a 301 a.C.: Antígono é o protagonista nas histórias de Diodoro da Sicília e
O realce dado a Antígono nas fontes nos revela que ele, mais do qualquer outro diádoco,
dominou o curso dos eventos nas duas primeiras décadas após a morte de Alexandre. Sua
acordo com Billows (1990), um dos motivos disso é o fato de Antígono ter concluído seu
governo com uma derrota diante dos demais diádocos, sendo suas ações anteriores
ambicioso, visão em parte construída devido à propaganda negativa que seus inimigos fizeram
de sua persona. Especialistas como Édouard Will (1984) e W. Tarn (1930), influenciados por
esses relatos, concebem Antígono como um mero imitador de Alexandre. Antígono decerto
territórios. Como trataremos mais adiante, isso se deve também ao fato de, ao lado de
Demétrio, o general possuir uma força militar extremamente significativa, tendo por diversas
vezes derrotado rivais mais poderosos, o que de início despertou em Antígono o desejo de
dominar o maior número de territórios possíveis, algo que à época parecia possível.9
sustenta visto que não apenas ele, mas todos os demais diádocos buscaram se associar à
9
Mesmo que Antígono tivesse a ambição de controlar a oikoumene, a seção extremo-oriental do Império não era
o foco de sua atenção, pois o diádoco desejava consolidar sua posição no Mediterrâneo Oriental, incluindo a
Hélade e a própria Macedônia.
24
imagem de Alexandre, como podemos constatar por meio de alguns trabalhos sobre as
(2011), referente à criação do mundo helenístico, em especial na seção Rulers and Subjects,
na qual é investigada a filiação dos Lágidas e Selêucidas com Alexandre. Também do livro de
Ogden (2011, p. 79-105), sobre os mitos em torno de Alexandre, no qual o autor aborda as
conexões de cada dinastia com o soberano argéada. E, ainda, da obra de Davis e Kraay (1973)
sobre os retratos dos reis helenísticos reconstituídos por meio das moedas, na qual os autores
modo independente.
Em nossa opinião, Antígono, ao revestir o título de rei (basileus) tendo Demétrio como
seu corregente, inaugurava uma dinastia que rompia com a Argéada, condicionando assim a
construção da imagem régia. A utilização dos símbolos de poder ligados ao monarca argéada
novo tipo de monarquia. Antígono também se valeu de elementos ligados ao helenismo, como
a defesa da autonomia das póleis em assuntos internos, determinando assim o padrão das
conquista da Grécia por Roma, em 146 a.C. (ERSKINE, 2007; MÜLLER, 1973). Uma análise
mais cuidadosa nos mostra que Antígono estabeleceu uma estrutura administrativa eficiente
na Ásia Menor e na Síria/Palestina, que foi aperfeiçoada por Seleuco e seus sucessores,
Quanto ao nosso recorte temporal (321-301 a.C.), este justifica-se pelo fato de, em 321
a.C., em Triparadiso,10 Antígono ter sido nomeado estratego das forças reais e da Ásia por
Antípatro (o então representante da casa real macedônia), o que dava a ele grande destaque,
pois, na condição de estratego, era líder supremo da força militar do Império, além de
controlar a Ásia Menor (WILL; MOSSÉ, GOUKOWSKY, 1998). Desse momento em diante,
Antígono, com o auxílio militar de Demétrio, passa a dominar o cenário político por meio de
Antígono já contava com mais de sessenta anos de idade. A associação com o filho foi
importante para a afirmação militar do diádoco. A base das operações militares antigônidas
era comandada por Demétrio e, em 306 a.C., quando Antígono foi aclamado basileus,
Demétrio tornou-se seu corregente. A data de 301 a.C., por sua vez, assinala o
todavia, apesar das perdas territoriais, continuou a representar a dinastia Antigônida e, em 294
Antígono contribuiu para a criação de um novo tipo de Estado e para isso recorreu não
não obstante a diversidade de temas que carecem de investigação. O objeto que investigamos
10
Após a morte de Pérdicas, que dominou o cenário político do Império após 323 a.C., como quiliarca (que era o
primeiro homem depois do rei), surge a necessidade de um novo acordo entre os diádocos para frear os conflitos
entre eles. Este acordo foi efetivado em Triparadiso, na Síria, em 321 a.C., e redefiniu as áreas de domínio de
cada governante.
26
Monoftalmo e das de seu filho, Demétrio Poliorcetes – é ainda relegado a segundo plano na
maior parte dos estudos sobre o período, mesmo que o papel de Antígono e de Demétrio na
transição da realeza macedônia à helenística tenha sido determinante. Quando nos reportamos
à produção historiográfica nacional, a situação torna-se mais complicada, já que a maioria das
ainda pouco exploradas e que trazem um novo enfoque à problemática, dentre as quais se
Para dar conta do objeto de investigação proposto, buscamos ao longo da tese: analisar
em que medida o modelo de realeza helenística rompe com o modelo de realeza macedônia;
basileus helenístico por meio das imagens literárias e numismáticas referentes a Antígono e
finalidade de reforçar a sua posição como basileus; e investigar como, a partir de uma política
agressiva voltada para a manutenção da unidade do Império deixado por Alexandre, as ações
Com base nos objetivos mencionados, buscamos demonstrar que a política de caráter
híbrido exercida por Alexandre, ora intitulado Basileus dos Macedônios, ora Basileus
realeza macedônia, em que o rei se impõe por meio do “poder da lança”, pois tem como fonte
27
de autoridade a vitória militar, levou os diádocos a conflitos pela legitimação do seu poder.
diretamente na criação da realeza helenística, pois somente após a morte do último Argéada
(Alexandre IV, 310 a.C.) Antígono assume o título de basileus. Desta forma, uma base
importante para a legitimação da monarquia, que antes repousava sobre a dinastia Argéada, é
deslocada para a filiação entre Antígono e Alexandre. Outro fundamento desta monarquia
função guerreira, logo conquistadora, exercida pelo basileus. Por último, mas não menos
Pérsia Aquemênida que influenciaram desde o modo de trajar do soberano, até a sua
titulatura.
***
difícil, visto que a produção literária do período não sobreviveu, de maneira que as fontes
escritas consultadas foram elaboradas a posteriori. Por essa razão, tornou-se indispensável a
consulta aos dados provenientes da cultura material, como moedas e dados epigráficos.
epigráficas e fontes numismáticas. Como dito, no que se refere às fontes textuais, as obras
contemporâneas à nossa pesquisa não foram preservadas. O que possuímos são obras tardias
que devem ser manipuladas com cuidado (MOSSÉ, 2004, p. 10). Dessas obras, devemos
destacar a síntese eleaborada por Didodoro da Sicília, historiador grego do século I a.C., sobre
a história geral do Mundo Antigo. Em sua Biblioteca Histórica (livros XVI-XVIII), o autor
destaca as figuras de Filipe e Alexandre e, nos livros XIX-XX, se concentra nos diádocos.
28
Outro autor importante é Arriano (séc. II d.C.), que, na Anábase de Alexandre e em seus
fragmentos recolhidos na Biblioteca, de Fócio (século IX d.C), narra a história dos sucessores
Alexandre. Já Pausânias (séc. II d.C.), por meio do relato de suas incursões pelo território
grego, contido na Periegesis Hellados, nos forneceu dados relevantes para a pesquisa, como
por exemplo a lista de monumentos erigidos por cidades gregas em homenagem aos
Foram analisados ainda extratos dos tratados da realeza atribuídos pela tradição a
que traz os verbetes de basileia e basileus segundo a concepção dos autores antigos. Também
nos foi útil a obra de Quinto Cúrcio (séc. I), Historiae Alexandri Magni Macedonis e a
coleção Fragmente der griechischen Historiker, organizada por Felix Jacoby. Sobre a forma
da realeza macedônia, utilizamos fontes anteriores ao período de 321-301 a.C., como o livro
As fontes epigráficas e numismáticas, que dão voz ao poder, foram indispensáveis para
resistente. No Mundo Antigo, este suporte, que portava a mensagem, era em geral feito de
pedra. No caso das inscrições epigráficas, parte-se do princípio de que estamos perante uma
11
Pompeu Trogo (séc. I a.C.) produziu uma série de 44 livros sobre a história universal intitulado de Historiae
Philippicae, mas que não foram conservados. Sabemos da existência destes livros por meio da epítome
produzida por Justino.
29
mensagem sintética pensada para alcançar a eternidade, como convinha aos pronunciamentos
period (1934); as inscrições contidas na obra Iscrizioni storiche ellenistiche (1967), recolhidas
vigente no período helenístico. Esse tipo de fonte traz uma visão de como a imagem real era
construída sob a ótica das próprias autoridades. De acordo com Coimbra (1957), as peças
monetárias são verdadeiros monumentos que informam sobre aspectos da vida política e
acompanhada de legenda contendo o nome e o título reais. Do outro lado, o reverso, eram
utilizado advém do catálogo organizado por Head, Historia Nummorum: A Manual of Greek
Numismatics (1963); dos catálogos compilados por Gardner, Catalogue of the Greek Coins in
the British Museum (1887) e Catalogue of the Greek Coins in the British Museum: Thessaly
Greek Coin Hoards (1973); e do material recolhido por Sear nos catálogos Greek Coins and
Their Values: Europe (1978), e Greek Coins and Their Values: Asia and North Africa (1979).
***
No que diz respeito aos aspectos teóricos, nossa pesquisa se situa no domínio da
complexo e dinâmico. Portanto, foi necessário lançar mão de conceitos que dessem conta de
macedônia foi o seu caráter militar – o rei era, sobretudo, rei de uma terra conquistada, ou
seja, um soberano teoricamente exógeno à sociedade que governava. Diversos autores, como
Theml (1993), Perlman (1985) e Momigliano (1992), abordam esta questão. Esses autores
também não deixam de reconhecer, porém, o papel de destaque que o sagrado desempenhou
muito clara, assim como Antígono e Demétrio. Segundo Valeri (1994, p. 415), o que define a
realeza é o fato de, no exercício de suas prerrogativas, o rei encarnar os valores fundamentais
da sociedade sobre a qual reina, sendo considerado como um ser sagrado e às vezes divino,
pois “[...] mesmo quando o rei não é sagrado stricto sensu, tem relações privilegiadas com
quem é sagrado: deus ou sacerdote, que é seu intérprete”. A esse respeito, Silva (2003, p. 100-
101) afirma que em sociedades nas quais as práticas e concepções religiosas encontram-se
Em face dessas reflexões, buscamos analisar a basileia helenística com referência aos
mítico em torno da figura do rei. Nesse sentido, um conceito que se revelou bastante útil foi o
31
de representação, por meio do qual é possível identificar o modo como, em diferentes lugares
vida dos indivíduos, mas que possui grande eficácia. Politicamente falando, o discurso da
representação é poderoso o bastante para influenciar as ações humanas. Para Roger Chartier
(1990), as representações são construções produzidas por distintos grupos sociais que
expressam sua concepção de mundo. O conceito nos permite identificar três operações na
relação com o mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificação por meio do qual
a realidade é construída pelos diferentes grupos sociais; em segundo lugar, as práticas que
visam a fazer reconhecer uma identidade; por fim, as formas institucionalizadas que
Antígono e de Demétrio, optamos pelo que Peter Burke (1994) define como fabricação. Para
ao longo de determinado intervalo temporal. O autor justifica a opção por este conceito
devido aos dois posicionamentos comuns e opostos sobre a imagem do soberano – a visão
ingênua e a visão cínica. Ao historiador caberia seguir um meio termo. Para identificarmos
como uma imagem é fabricada, é necessário descobrir quem falava sobre o monarca, o que
falava,“[...] por meio de quais canais e códigos, em que cenários, com que intenções e com
Burke ainda nos informa que durante o processo de fabricação da imagem régia ocorre
também a gradual “mitificação” de eventos ligados à persona do rei. Sobre as conexões entre
o mito e o imaginário político, Raoul Girardet, em sua obra Mitos e mitologias políticas
(1987), tece algumas reflexões que foram bastante úteis na execução desta pesquisa. Segundo
o autor, o mito consiste em um sistema de crença coerente e complexo. Girardet (1987, p. 13)
propõe que o mito político possui “[...] uma função explicativa, fornecendo certo número de
chaves para a compreensão do presente, constituindo uma criptografia através da qual pode
parecer ordenar-se o caos desconcertante dos fatos e dos acontecimentos. É verdade ainda que
No mito político, existem conjuntos de construções míticas que versam sobre o mesmo
tema e são agrupadas em torno de um núcleo central (GIRARDET, 1987, p. 19-20). Para a
Alexandre, Sólon e Moisés), Girardet afirma que todos aparecem sempre como um lutador,
maior veemência. Através do imaginário que se cria em torno dele a sociedade encontra um
herói, sobretudo devido ao seu discurso que evocava a liberdade e autonomia das póleis. A
figura do basileus representava, para as cidades gregas, uma alternativa de manutenção, ainda
que mínima, da sua autonomia num contexto de profunda indefinição política. Além disso,
apesar da idade avançada, a representação de Antígono como lutador e vencedor foi reforçada
33
Alexandre.
Como dissemos, o contexto de formação da realeza helenística foi marcado por choques
intensos entre os diversos pretendentes ao poder, razão pela qual o conceito de conflito
também mereceu nossa atenção. Gianfranco Pasquino (1998) afirma que o conflito social e o
conflito político constituem uma das modalidades primárias de interação entre os indivíduos,
escassos, sob a forma de poder, riqueza ou prestígio, embora outros motivos possam
desencadeá-lo. No caso da disputa entre os diádocos, o que estava em jogo muitas vezes era o
território ou o monopólio da filiação com Alexandre. Além disso, o próprio corpo do argéada
tornou-se objeto de disputa em determinado momento, pois serviu como base de legitimação
para a dinastia Ptolomaica após ter sido roubado por Ptolomeu, que o levou para o Egito.
***
No que se refere ao tratamento das fontes, optamos, como metodologia, pela Análise de
Conteúdo, de acordo com o modelo formulado por Laurence Bardin (2000). O método
sentido” (BARDIN, 2000, p. 36). Segundo a autora, a Análise de Conteúdo se desdobra nas
interpretação; codificação; recorte dos dados; escolha das regras de interpretação; aplicação
da técnica específica; interpretação dos resultados obtidos; apresentação dos resultados. Como
textos), elaboramos três grades de leitura que nos auxiliaram na coleta e interpretação dos
Antígono
Demétrio
Demais
diadócos12
Demétrio
Basileia
Tipo:
Data:
Local de cunhagem:
Referência:
Anverso
12
Como já destacamos, quando nos referimos aos “demais diádocos”, estamos nos referindo aos principais
protagonistas do nosso contexto ao lado de Antígono e Demétrio – como Antípatro, Cassandro, Seleuco,
Lisímaco e Ptolomeu.
35
Reverso
Suporte:
Material:
Descrição:
Elementos decorativos:
Dimensões:
Local do achado:
Antígono
Demétrio
Demais diádocos
***
Oriental nas últimas décadas do século IV a.C. Abordamos aspectos gerais relativos aos
contatos entre a Macedônia e a Hélade, com ênfase nas relações políticas e culturais. Também
acordos e conflitos entre os diádocos. Assim sendo, não poderíamos ignorar o surgimento de
Demétrio veio a desempenhar ao lado de seu pai como comandante das forças militares deste.
principais concepções vigentes sobre este tipo de governo na Grécia Antiga. Assim,
política não apenas no tempo, mas também no espaço grego, incluindo a Macedônia.
mecanismos utilizados por Antígono e Demétrio para a construção da imagem régia, tais
Antígono e Demétrio para a formação de uma dinastia, bem como os elementos filosóficos e
simbólicos que cercavam a monarquia helenística. Nos detemos ainda na relação entre as
póleis e a dinastia Antigônida, visto que algumas antigas cidades-Estado gregas foram
tratamos da associação entre o basileus helenístico e o sagrado por meio do caso de Antígono
e Demétrio. Para tanto, demos atenção aos cultos e festividades dedicadas aos Antigônida e ao
sentido simbólico que estes eventos possuíam. Buscamos ao mesmo tempo identificar como o
helenística já havia uma preocupação com o aparato simbólico em torno do monarca, não
apenas em eventos públicos dos quais participava, mas também nas suas representações
escultórica e numismática. Nos detivemos também sobre o papel do monarca como fundador
de cidades e as relações entre os basileis e os hetairoi, marcadas por protocolos, que foram
peças importantes na constituição da realeza helenística. Por fim, refletimos sobre o rito de
entronização do basileus.
38
CAPÍTULO I
Podemos dizer que, a partir da segunda metade do século IV a.C., tem início um
grega não possuía grandes diferenças. Contudo, norte e sul passaram ao longo da história por
experiências que levariam a diferentes formas de organização política. Na região mais ao sul,
organizar, a partir do fim do período homérico, no século VIII a.C., o sistema políade que
ocuparia o território conhecido como Hélade. Berço da chamada pólis clássica, tendo Atenas
das sociedades clássicas. O norte do território grego, por sua vez, permaneceu por muito
tempo com uma organização tribal. Por volta do século VIII a.C., começou a se estruturar
uma realeza de caráter tribal hereditária, vinculada à função guerreira. Este seria o cenário
onde se encontrava a Macedônia. Durante muito tempo, pouco se sabia sobre esta região ou
sobre suas personae políticas,13 mas, nas últimas décadas, os especialistas, sobretudo aqueles
Contudo, ainda há muito que avançar nessa seara, não apenas no que se refere à
formação da realeza, mas também à sociedade macedônia dos séculos V-IV a.C. Ainda
existem muitas lacunas quando se trata do século IV a.C., período no qual a Macedônia
desponta na conjuntura política grega como uma potência. A maior parte das informações
documentação se verifica quando nos referimos aos diádocos que se tornaram os fundadores
13
Devemos citar aqui duas exceções: Filipe e seu filho Alexandre. Mas mesmo no que se refere à imagem destes
dois personagens, ainda encontramos trabalhos carregados de um caráter biográfico e cheios de juízos de valores.
39
das dinastias helenísticas, como é o caso de Antígono. Todos eram de origem macedônia,
sendo essa, inclusive, elemento de legitimação do poder daqueles. A realidade é que, após a
segunda metade do século IV a.C., vemos a Hélade perder sua preponderância política e
A origem dos macedônios ainda é um tanto ou quanto obscura para nós. Talvez fossem
gregos como os etólios e os acarnânios, ou pertencessem à família dos clãs ilírios ou trácios,
podendo ser ainda o resultado da mistura dos três ramos indo-europeus mencionados acima
que se fixaram aos poucos na região da Macedônia, miscigenados com a população nativa,
formando assim um povo que, em diversos aspectos, diferia dos gregos pertencentes à Hélade.
Os macedônios estavam entre os povos de língua grega não helenizados e, por isso, os
Península Balcânica a oeste e a norte de Delfos e das Termópilas. Grande parte de sua
população era formada por camponeses, submetidos por uma aristocracia de caráter militar. O
iniciou por volta do século VIII a.C., tendo Vergina como centro político (THEML, 1997).14
Até o início do século IV a.C., a Macedônia permanecia como uma região às margens
Macedônia. Havia muito tempo que os gregos, sob a organização políade, tinham se fixado
nas costas da Macedônia e esta usava tais cidades para exportar sua produção. Nos tempos
Desta forma, a Macedônia nunca se mostrou uma ameaça potencial à Grécia políade. Esse
quadro começou a se modificar a partir das transformações empreendidas por Arquelau, que
governou a Macedônia de 413 a 399 a.C., e foi acelerado durante o governo de Filipe II.
político, que passou a ser mais centralizado na figura do monarca. Com uma política
fortemente marcada por seu caráter expansionista, Filipe introduziu em seu exército todos os
aperfeiçoamentos mais modernos em tática grega que aprendeu durante o período que ficou
em Tebas com Epaminondas, e ainda criou uma frota. Assim, pôde deter as tendências
desagregadoras na Macedônia, proteger suas fronteiras contra o ataque dos vizinhos do Norte,
desmantelar o reino odrísio dos trácios, seu rival mais sério, e até mesmo penetrar norte
adentro e infligir alguns golpes ao reino cita, que, nessa época, estava se expandindo para o
sul e ocupando a Península Balcânica. Ao mesmo tempo, Filipe buscou anexar a Tessália e a
faixa da costa macedônia que estava ocupada pelos gregos. Sem acesso ao mar, uma
influência política mais ampla sobre todo o mundo grego estava fora de cogitação. Após uma
Filipe ainda fundou núcleos urbanos, construiu estradas e criou uma moeda para a Macedônia.
Nesse sentido, a conquista das minas de ouro do Monte Pangeu foi determinante,
14
No segundo capítulo, tratamos mais especificamente sobre a natureza da realeza macedônia.
41
principalmente para formar um poderio militar necessário à sua política baseada na expansão
Ao mesmo tempo que a Macedônia passava por tais transformações, o mundo em volta
dela sofria com uma grave crise. Como sabemos, após a Guerra do Peloponeso (431-404
assim, que a Macedônia teria se beneficiado do contexto para se tornar um poderoso reino
unificado e expansionista sem rivais à altura. A Macedônia tinha deixado de ser inofensiva às
póleis. Momigliano (1992, p. 50) afirma que a política de Filipe possuía um caráter
expansionista e os gregos das cidades não demoraram a perceber a ameaça que a Macedônia
ameaçados com a conversão da Macedônia em um forte império marítimo. Durante a luta pelo
domínio da costa macedônia, Filipe entrou pela primeira vez em choque com Atenas.
cidades gregas depois da anexação das póleis da Calcídia e da destruição de muitas delas, no
decorrer de 349 e 348 a.C. Nesta época, ele derrotou a defesa ateniense da Calcídia e forçou
Atenas a aceitar um tratado de paz. A partir desse momento, Filipe tinha a liberdade de
interferir nos assuntos da Hélade. A convite dos anfictíones, guardiães oficiais do templo de
Delfos, assumiu o comando na luta contra os fócios e os derrotou. Os fócios foram expulsos
da assembleia anfictiônica e seu lugar foi cedido a Filipe. A Macedônia foi reconhecida como
a.C.
Fonte: http://www.ancient.eu
Foi nesse momento que o rei exprimiu pela primeira vez seu desejo de construir um
Império Universal, com a unificação do mundo então conhecido (LONDEY, 1994, p.25-30).
A situação parecia favorável para Filipe concretizar o seu projeto. A Grécia políade, que tinha
como característica a autonomia política, estava imersa em uma profunda crise, e o Império
Persa, mesmo que ainda forte, passava por sérias dificuldades políticas, sofrendo com a
espécie de heleno honorário e no comandante supremo das forças gregas, tendo como
primeira atitude a declaração de guerra à Pérsia aquemênida. Sobre este assunto, parece
15
As satrapias eram territórios, províncias, do Império Aquemênida governados pelos sátrapas (σατράπης).
43
A relação entre a Macedônia e a Pérsia foi praticamente nula antes da campanha militar
arquitetada por Filipe e levada a cabo por seu filho, Alexandre. No que se refere à Hélade, o
Império Persa foi uma personagem constante na história das póleis. Tratado na maioria das
vezes com desprezo nos discursos de muitos escritores da época e aparecendo outras tantas
como ameaça à Hélade, esse Império nos é pouco conhecido do ponto de vista da
documentação escrita.16 O que sabemos é que ele foi cobiçado pelo rei macedônio e por
muitos gregos.
A formação do Império Persa ocorreu sob a tutela do primeiro rei aquemênida, Ciro, o
Grande, no período de 559 a 530 a.C. Seu governo foi marcado por grandes conquistas
Transeufrates, da Anatólia e do Egeu (2006, p. 23). Mais tarde, seu filho, Cambises (530-522
consolidação do Império ocorreu com Dario I (522-486 a.C.), que conquistou algumas ilhas
do Egeu e, na Europa, a Trácia. Por meio de outras campanhas, muito menos conhecidas e
certamente mais difíceis, todo o planalto do Irã foi submetido, até o Turquestão e o Indo. Sob
Xerxes I (486-465 a.C.), o limite de crescimento do império foi alcançado. Mas foi por volta
de 546 a.C., quando o Grande Rei (Ciro) se apoderou de Sardes e, logo após, da região
litorânea ocupada pelos gregos, que houve a súbita revelação de uma nova força cuja
expansão, durante mais de meio século, era capaz de remover de modo fulminante todos os
16
Infelizmente, a história do império Aquemênida é conhecida de forma mais geral através de documentações de
origem grega, ou derivadas destas. Essas fontes tem como foco a parte ocidental do império, principalmente
Egito, Fenícia e Ásia Menor. As fontes de origem orientais não são tão abrangentes, pois estão, muitas vezes,
limitadas a acontecimentos específicos e a determinadas localidades (ASHERI, 2006, p. 30-31).
44
Egito em 513 a.C., e Dario I atravessando o Bósforo e anexando o sudeste da Europa até a
margem sul do Baixo Danúbio, a vida econômica de todo o mundo helênico ficou à mercê dos
persas, já que o Egito e a Ucrânia haviam se tornado o celeiro da Hélade desde o século VI
Essa força era a de um povo ao qual, antes disto, ninguém prestara grande atenção. De
do planalto do Irã. Seus vizinhos meridionais eram os susianos, há tempos associados à vida
da Mesopotâmia, da qual os persas estavam separados pela barreira dos Montes Zagros. Os
textos assírios, entretanto, por vezes mencionam tal povo. Pela leitura desses registros, tem-se
a impressão de que, por muito tempo, eles são apenas de nômades. Pouco a pouco, porém,
Mesopotâmia quando da partilha do Império Assírio. Mas seriam necessários ainda mais de
sessenta anos para que afirmassem seu poder sem a necessidade de aliados (ONCKEN;
JUSTI, 1950).
Como dissemos, foi com Dario I (522-486) que o Império Aquemênida se estabilizou.
Seu longo reinado foi marcado por uma sólida administração. Foi durante seu domínio que o
Persa não sofreram tanta resistência por parte dos povos submetidos como os soberanos
anteriores, pois exerciam uma política mais tolerante em relação aos reis vencidos e aos
costumes religiosos locais, não tendo a tradição de deportar populações, como o fizeram
outrora os assírios. Contudo, ao término do governo de Dario, o Império Persa passava por
um período de crise.
45
Com o tempo, a fronteira entre Oriente e Ocidente pode ter variado nesse ou naquele
ponto. Desta forma, os desastres sofridos na Grécia por ocasião das Guerras Greco-Pérsicas
sucessivas, que apenas com dificuldades puderam ser reprimidas. Como exemplo, temos o
caso do Egito. O Mundo Antigo, no entanto, nunca havia conhecido um Império tão extenso.
O Império Persa, herdeiro dos grandes impérios que o precederam, reunia todos os territórios
aquemênida era absoluto, justificado pela vontade divina. A ideia de um soberano escolhido
pelos deuses não era uma inovação no Oriente. O mesmo processo se verificava a partir da
concepção de que o soberano deveria amar a verdade, aplicar a justiça e proteger o fraco, a
fim de permanecer fiel à vontade divina, ideal subjacente também à doutrina real egípcia. O
rei era hábil em todos os exercícios e modelo do guerreiro, o que constituía, junto com o
caráter divino da realeza persa, outro aspecto fundamental da monarquia do Oriente. No início
da monarquia, todos os nobres de importância tinham acesso fácil ao rei. Mas, depois de
Dario, uma rigorosa etiqueta regulamentou todos os atos da vida do soberano, que se tornava
opuseram os dois povos não impediram seus contatos. Os reis persas permitiram aos gregos,
por exemplo, que viajassem pelo Oriente. Gregas da Ásia ingressaram no harém real ou
gregos foram contratados em grande número, alguns de seus chefes desempenharam um papel
46
importante e o comércio ateniense não sofreu grandes restrições. A partir desses dados,
percebemos que, apesar dos famosos discursos em defesa dos valores e liberdades gregas, nos
quais muitas vezes vemos o persa – nomeado bárbaro –como o modelo oposto a esses valores
e à liberdade, a relação entre gregos e persas, e a própria imagem sobre os persas, foi fluida
Lévy (1984), ao refletir sobre a formulação do conceito de bárbaro, afirma que, desde o
século V a.C., o termo aparece com dois sentidos. O primeiro corresponde a uma noção
objetiva e designa quem não é grego (heleno),17ou seja, aquele que é linguistica, etnica e
grosseria. A configuração dessa imagem teria sido auxiliada justamente pelas Guerras Greco-
Pérsicas (LÉVY, 1984, p. 5-7). Mas Thébert (1985, p. 18-20), analisando a utilização do
interferem nas representações produzidas pelos grupos sociais. Por isso, após as Guerras
Greco-Pérsicas a imagem do persa bárbaro estava mais associada à primeira definição dada
por Lévy, do que a um “antimodelo” cultural. Mas, em meio à crise da Hélade no século IV
a.C., a imagem estigmatizada do persa ganhou nova força, por isso discursos sobre uma nova
agressão por parte dos Aquemênida ecoavam pelas póleis. Neste contexto, a guerra contra os
persas ganhou espaço em alguns setores sociais do mundo políade. Na realidade, o que
podemos constatar é que os partidários antipersas buscavam mais a solução dos conflitos
sociais através da conquista do território persa do que acreditavam em uma real ameaça dos
orientais. Nesse cenário, ascende Filipe II. Com uma vitória iminente sobre a Hélade, alguns
17
Que não é oriundo de uma pólis.
18
O conceito de estrangeiro e bárbaro eram termos similares para os gregos. Dependendo da situação, o emprego
de βάρβαρος, ou βάρβαροι, podia se referir simplesmente ao não Έλλήνιος, no sentido de estrangeiro, ou podia
ter uma conotação mais valorativa, significando alguém brutal, cruel, selvagem. Algumas vezes, o termo era
utilizado para definir estrangeiros específicos, como os medos e os persas. Já o vocábulo ξένος possuía
geralmente uma aplicação para referir-se ao estrangeiro, ao hóspede, sem conotações mais estigmatizantes.
47
Qual a opinião que julgais que terão sobre vós se colocardes em prática estes
projetos? [referente à guerra contra a pérsia] E mais, se promoverdes a aniquilação
daquele reino [Império Persa], ou, se pegardes uma grande parte de seus domínios
[...], onde depois devereis fundar muitas cidades e levar, para estas, os que por sua
miséria se desterram voluntariamente a cada dia e vão saqueando tudo o que
encontram? Estes, se não os impedirdes, se juntarão, e constituirão tão grande
número, que causarão, aos gregos, inquietudes maiores que os bárbaros [...] É, pois,
próprio de um homem esforçado e amigo dos gregos, e que tem capacidade maior
que os demais, valer-se desses homens perdidos contra os bárbaros, pagando-lhes
com terras que mencionei antes; livrar os soldados estrangeiros dos males que
padecem e que fazem os outros padecerem; com eles formar várias cidades que
sirvam de defesa para a Hélade e que sejam para todos nós um resguardo. Porque, se
isso fizerdes, não só os fareis felizes, como proporcionareis a todos nós vivermos
seguros (Isocrates, Philippus, 80-82).19
Devemos observar que a conquista do Império Aquemênida seria uma boa solução
para parte dos problemas que afligiam as póleis, mas era, sobretudo, conveniente a Filipe por
dois motivos: com uma política expansionista, a dominação do Mediterrâneo Oriental era, de
um ponto de vista estratégico, necessária para o macedônio, que teria de entrar em choque
território da Hélade encontrava-se imerso em diversos conflitos e levar parte dos gregos das
póleis despossuídos para territórios do Oriente seria uma solução que facilitaria o controle
sobre as cidades gregas. Desta forma, vemos que o conflito entre macedônios e persas seria
inevitável, dentro da visão política de Filipe. Aclarado este ponto sobre a relação entre a
meio das conquistas macedônias, no século IV a.C., permeou o ideário de diversos estudiosos
refere à difusão da cultura grega no Mundo Antigo a partir das conquistas de Alexandre, é
19
Todas as traduções contidas nessa tese foram efetuadas por nós e tiveram como base as edições apontadas em
nossa lista de referências.
48
vocábulo helénistès, que foi usado pela primeira vez na versão dos Setenta do livro de Atos
dos Apóstolos (6.1), em oposição a hebraioi. Já no século XVIII, foi usado para definir o
modo de pensamento dos judeus falantes do grego (CALDAS; SANT’ANNA, 2008; SALES,
2005). Foi no século XIX, no entanto, que o termo ganhou difusão, com o estudioso alemão
Johann Gustav Droysen, considerado o criador da História Helenística.20 Droysen foi autor de
importantes obras de referência sobre a Civilização Helenística. Em 1833, com uma biografia
de Alexandre, ele dá inicio à sua História do Helenismo.21 Droysen construiu a visão de uma
civilização híbrida, formada por elementos helênicos e orientais – visão na qual a cultura
helênica sempre dominaria. Nessa visão tradicional, não só o papel do Oriente foi minimizado
da dicotomia entre gregos versus asiáticos, segundo a qual o conquistador, helenizado, levaria
repousa o maior problema do termo helenização. Droysen não usa o vocábulo helenização
greco-macedônia, mas, ao lermos a sua biografia sobre Alexandre, fica nítido que o autor se
O início e o fim dessa luta secular [entre Oriente e Ocidente] estão prefigurados nos
limites e na estrutura geográfica do mundo antigo. Europa e Ásia se defrontam no
mar Jônio e se misturam nas estepes do Volga. Os dois séculos da luta encarniçada
que os helenos travaram contra os persas – o primeiro grande conflito entre Oriente
e Ocidente que a história nos legou –, Alexandre os encerrou ao aniquilar o império
dos persas, ao conquistar todo o território situado entre o deserto africano e a Índia,
ao afirmar a supremacia da civilização grega sobre a cultura declinante dos povos
20
Bentivoglio (2007) fala sobre a relevância de Droysen para o alargamento da importância histórica no século
XIX, e argumenta que este colaborou para a construção do método histórico.
21
Essa foi formada pela junção de três obras anteriores: Geschichte Alexanders des Grossen (1883), Gestchichte
der Diadochen (1836) e Geschichteder Epigonen (1842).
49
asiáticos. Enfim, ao gerar o helenismo. Seu nome assinala o fim de uma época e o
começo de uma nova (DROYSEN, 2010, p. 37).
olhos seria natural os asiáticos adotarem os costumes e vestes próprios da cultura helênica,
como destaca na passagem seguinte: “[...] os asiáticos incorporados nas fileiras do grande
político do século XIX europeu, no qual uma “grande civilização” seria responsável pelos
primeiro lugar, uma interpretação que defendia a separação entre gregos e orientais, rejeitando
interações culturais entre os diferentes atores envolvidos neste processo, da qual temos Préaux
(1978) como representante; em segundo lugar está o posicionamento defendido por Will,
lugar, destaca-se a análise de Momigliano (1991), que aponta para os limites dessa
helenização e como ela foi diversa no território da oikoumene, o que leva a refletir sobre
22
Bem antes da conquista do Oriente pelas forças macedônias observamos críticas a uma situação inversa a
proposta por Droysen – gregos assumindo características dos asiáticos, como podemos observar na seguinte
passagem de Pseudo-Xenofonte, ao criticar os antenienses e as desvantagens do império marítimo: “Mais ainda,
por ouvirem todos os dialetos, acabaram por adotar características de uns e de outros. Enquanto que os outros
Gregos, em grande parte, conservam o seu próprio dialeto, modo de vida e maneira de vestir, os Atenienses usam
uma mistura de tudo quanto é grego e bárbaro” (Xenophon, Athenaion Politeia, II, 8). No referido trecho, fica
claro o poder que a interação cultural possui de troca entre dois ou mais grupos diversos, exluindo-se a
tradicional visão de via de mão única entre dominantes e dominados.
50
helenístico.
consideramos que a interpretação elaborada por Momigliano seja a mais refinada e a que
representa um marco nos estudos referentes à temática. Com a obra Alien Wisdom: The Limits
helenização, tão preconizada por muitos autores, teve seus limites e, em alguns territórios,
nunca chegou realmente a se estabelecer, ao mesmo tempo que valorizou o saber e a cultura
dos outros, como as populações do Oriente. Funari e Grillo (2014, p. 207-208) afirmam que a
partir das reflexões suscitadas pela obra de Momigliano, vários modelos de interpretação
sobre o processo de helenização surgiram, destacando-se dois deles pela aceitação que
conceitos também possuam ressalvas, eles ajudam a compreender melhor o que se costuma
nomear de helenização.
cultura grega em outras sociedades por meio da aprovação destas. Para a autora, dentro desta
ótica, helenização pode abranger todos os tipos de comportamento cultural, tais como o uso
passividade por parte de um lugar ou um grupo de pessoas que sofreu influência cultural
helênica (MAIRS, 2011, p. 1-2). Em virtude desse caráter simplista e da passividade atribuída
51
às sociedades que sofrem o processo de helenização, Mairs não aprova o uso do conceito. A
autora ainda tece críticas ao conceito de aculturação. No senso comum, aculturação, assim
Teríamos, portanto, o seguinte cenário: um grupo dominante, vitorioso, impõe sua cultura
sobre as demais populações dominadas e estas, passivas durante o processo, seriam apenas
Mas ao contrário de Mairs, que parece não problematizar a fundo as atuais discussões
sobre helenização, aculturação e interação, acreditamos que, feitas as devidas ressalvas, seja
possível considerar tais noções operacionais. Veyne (1983, p. 105-106) destaca que nem
sempre os valores culturais estrangeiros pertencem somente a uma sociedade vitoriosa e que a
aculturação não se configura a todo o momento como um ato de violência contra outra
Roma, Veyne afirma que determinada sociedade pode se apropriar de um elemento cultural
estrangeiro porque a sociedade que adotou tal valor tem poder para isso. Roma se apropria da
cultura grega não porque considere a cultura romana inferior à dos helenos, mas pelo fato de
considerar a cultura grega seu patrimônio, devido ao direito de conquista que exerce sobre a
Grécia. Além disso, mesmo quando uma sociedade é dominada por outra, há de se relativizar
a questão da aculturação. Podemos citar como exemplo a própria dominação do Oriente por
setores urbanos foram o principal foco deste processo. Inclusive, uma das estratégias de
Alexandre, depois seguida pelos diádocos, foi a fundação de cidades seguindo o padrão
elementos de poder, dentre os quais as cidades eram importantes elementos. O setor rural,
nesse caso, praticamente não sofreu alterações. Além disso, mesmo nos setores urbanos, não
havia uma imposição dos valores helênicos. Na realidade, o que vemos é a constituição de
uma elite local que considerava a adoção de elementos helênicos um meio de ascender às
esferas do poder. Neste ponto, há outra questão a ser destacada quando falamos sobre as
dicotomia Grécia/Oriente.
talvez se deva a uma dificuldade em compreender o papel dos elementos orientais neste
processo e a laços ainda não rompidos por completo com a representação da Grécia/Hélade
Essa discussão sobre helenização e aculturação nos leva a um território fora da Ásia e
novas perspectivas para o Oriente, a situação é mais delicada no que se refere à Macedônia.
melhor, com a crise desta (ANDRÉ, 2009). Um dos aspectos basilares de nossa dissertação foi
o conflito político que ocorreu durante o século IV a.C., relacionado a Filipe II e aos
macedônios. De fato, os macedônios eram vistos pelos helenos como bárbaros e mantinham
com estes apenas relações comerciais até as primeiras décadas do século IV a.C. Os
gregos das póleis. Apenas a elite macedônia buscou a helenização, por meio do consumo da
helenizar-se por motivos internos à sua sociedade – busca de status, de diferenciação social,
por exemplo –, e não como resultado de qualquer dominação estrangeira. Apesar de Filipe ter
sido nomeado heleno, era um grego honorário, como se portasse um título especial, sabendo-
se que o significado de um rótulo pode mudar de acordo com o contexto. Para ilustrar melhor
Em 380 a.C., quando a Macedônia não representava ainda uma grande ameaça à
Hélade, o ateniense escreve um panegírico no qual propõe a união entre Atenas e Esparta
para, numa campanha antipersa, solucionar muitos dos problemas que estavam assolando os
helenos. O Panegírico seria, portanto, uma obra a favor dos valores gregos e contra os
o rei persa. O orador deixa clara a posição de Amintas, pai de Filipe, como bárbaro, e o
associa à tirania. Mas, em 346 a.C., quando a Macedônia já era claramente uma potência e um
acordo de paz entre a Macedônia e Atenas havia sido firmado, ao escrever a Filipe, Isócrates
afirma:
[...] se, quando eu fosse mais moço, houvesse oportunidade de falar [do pai de
Filipe], facilmente haveria demonstrado que vosso progenitor se excedeu mais do
que todos os heróis da antiguidade por sua prudência, por sua filosofia e sua justiça,
do que pela sua firmeza e força de seu corpo [...] (Isoc., Phil., 77).
considerados próprios dos gregos. Isócrates chega ainda a mencionar a ligação da linhagem de
Filipe com os deuses e a educação helenizada que recebera. O orador faz um contraponto
Não acredite que ignoro que muitos têm o exército do grande rei por invencível.
Mas justo será que nos maravilhemos de que, se um homem bárbaro e mal educado
pode fundar este Império, estabelecendo a escravidão, não reconhecem que um
54
políticos, como podemos concluir pelas próprias citações de Isócrates. E nenhuma fronteira
identitária ganhou à época mais atenção do que a entre gregos e bárbaros. E uma evidente
fabricação das identidades, pois apenas através da marcação da diferença, simbólica e social,
é possível forjar-se uma identidade. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de
perceber que, diferentemente de Isócrates, a partir de dado momento uma extensa parcela da
Hélade, sobretudo a ateniense, via a ameaça bárbara encarnada nitidamente mais na figura da
Demóstenes que, a partir de 351 a.C., defendeu em todos os seus discursos a união da Hélade
Pois bem! E nós, atenienses? Enquanto estamos a salvo, temos uma cidade muito
poderosa, recursos numerosíssimos, belíssima reputação, que devemos fazer? Talvez
algum dos meus ouvintes estivesse, há muito, disposto a fazer essa pergunta. Eu,
pessoalmente, por Zeus, responderei e proporei um decreto, de maneira que, se
quiserdes, votareis. Em primeiro lugar, nós mesmos, defendendo-nos e preparando-
nos, quero dizer com trirremes, fundos e soldados – pois, mesmo que todos os
demais consintam em ser escravos, é a nós que cabe o dever de lutar pela liberdade –
, nós mesmos, tudo isso tendo preparado e feito claramente, só então chamemos os
outros [gregos] e enviemos emissários destinados a dar essas instruções a toda parte
(ao Peloponeso, a Rodes, a Quios, digo mesmo ao Grande Rei – pois não está fora
de seus interesses impedir que Filipe submeta tudo ao seu poder), a fim de, se os
persuadirdes, tê-los como sócios de vossos riscos e despesas, em caso de
necessidade; e, se não, pelo menos atrasareis a marcha dos acontecimentos
(Demosthenes, III Philippic., 70-71).24
23
Filipe só vai ser considerado um grego honorário depois da batalha ocorrida em 338 a.C. em Queroneia,
quando a Macedônia for incorporada a Liga de Corinto.
24
A Terceira Filípica de Demóstenes foi elaborada em 341 a.C., somente três anos antes de Queroneia.
55
[...] se um escravo ou filho putativo dissipasse e esbanjasse bens que não lhe
pertencem, por Héracles, todos diriam: “como isso é terrível e merece a nossa
cólera, ainda mais”. A respeito de Filipe, porém, e do que ele faz atualmente, não
têm essa atitude, embora ele não seja grego e nada tenha em comum com os gregos,
mas nem mesmo seja um bárbaro de lugar que valha a pena mencionar, mas sim um
miserável da Macedônia, de onde antes nem um escravo sério era possível comprar,
um só que fosse (Dem., III Phil., 31).
significar uma apropriação feita de forma intencional por um grupo dominante para fortalecer
sua posição de poder perante a sociedade conquistada ou por dado grupo submetido visando a
proveitoso para nossa pesquisa olhar este processo segundo a perspectiva de outras noções
como a de aculturação e, sobretudo, de interação, que acabam por conferir maior fluidez à
análise de nosso objeto. Apesar de Mairs (2011, p. 5) afirmar que o conceito de helenização é
56
demasiado excludente, pois deixa de lado a complexidade das relações culturais ocorridas
após as conquistas de Alexandre, acreditamos que todo conceito deva ser contextualizado, por
período. Devemos, ainda, compreender que Filipe não guerreou em prol dos interesses dos
gregos. Isso era um artifício de seu discurso político na busca de apoio e legitimidade. Ele
lutou e elaborou um projeto de Império Universal em favor dos macedônios. Alexandre levou
tropas de gregos das póleis consigo para a Ásia, mas aquelas iam ficando pelo caminho, nas
cidades fundadas pelo argéada. O exército de Filipe e o de Alexandre tinham como pilares os
proclamar que todas as cidades gregas deveriam ser livres, mantendo sua autonomia, buscava
na verdade reforçar o seu domínio sobre elas. Desta forma, a adoção de componentes culturais
do mundo helênico pelo rei e a elite macedônia, e pelos basileis helenísticos, se torna um
acontecimento complexo.
helenística tiveram como força motriz o elemento macedônio. Quanto aos elementos
helênicos, esses são representados pela escrita, arquitetura, colonização e influência no mito
fundacional da basileia macedônia, assim como por uma visão positivada da realeza no século
IV a.C.25 Por mais que se privilegie o componente helênico, ele se restringiu, no Oriente, aos
25
Detalharemos melhor a influência helênica sobre a concepção da basileia macedônia durante o segundo
capítulo, que versará sobre a realeza no mundo greco-macedônio.
57
características que viriam a reforçar o poder dos monarcas, e pelo fato de estes se
trabalhado, devemos levar em conta que o contato político-cultural entre Ocidente e Oriente
não funcionou como uma via de mão única. Inclusive, a representação do monarca e da
Como nos informa Gralha (2009, p, 19), para a dinastia ptolomaica estabelecer sua
elementos da monarquia divina egípcia: “[...] o basileus não poderia fingir ser o faraó: deveria
cooptação dos segmentos sociais egípcios e helenizados.” Da mesma forma, Antígono adotou
o título de basileus nos territórios que dominava na Ásia bem antes de assumir tal título
O que podemos dizer sobre o território que constituiu o Império Aquemênida é que,
apesar dos contatos com a Hélade, antes da conquista de Alexandre, o helenismo não ganhou
muito espaço entre os persas. No momento da expedição de Alexandre III, os dois povos
ficaram frente a frente. Representavam dois mundos distintos. Entre eles não havia sido
lançada nenhuma ponte duradoura. E uma coisa é certa: se havia uma resistência dos gregos
perante os persas, o inverso também ocorreu. Esclarecidos os dois pontos levantados por nós
– relação com os persas e a questão da helenização – nos voltamos agora para a questão
segundo significado, pois o macedônio teria como propósito governar o mundo conhecido,
construindo um Império Universal. Em 338 a.C., quando Filipe vence a coalizão grega na
batalha de Queroneia, vemos o monarca tomar as medidas para a execução desse projeto. A
intenção original de Filipe era de fato obter o domínio sobre o Mediterrâneo Oriental, e não se
apoderar de todas as regiões habitadas do Império Aquemênida. Seu projeto político era
Mediterrâneo. Contudo, os planos de Filipe foram frustrados por sua morte precoce, em 336
A tarefa de levar adiante o projeto de Filipe ficou a cargo de seu filho, Alexandre, que,
após enfrentar inúmeros contratempos, como revoltas de algumas cidades gregas, a exemplo
oikoumene. Apesar dos diversos trabalhos que buscam dar conta da trajetória de Alexandre,
há até hoje certa dificuldade em lidar com sua figura. De acordo com Mossé (2004), em sua
monarca, que faz com que muitos dos relatos sobre Alexandre tenham uma visão romanceada.
Borza (2007, p. 410-412) nos alerta para o fato de que somente cinco narrativas sobre
Alexandre sobreviveram, e são incompletas ou epítomes. A primeira delas foi produzida por
Diodoro da Sicília quase três séculos depois da morte do macedônio. No que tange à
documentação material, a situação não sofre grandes alterações. De acordo com Dahmen
(2007, p. 2-3), não há dúvida de que uma profusão de representações de Alexandre foi
bustos, relevos, estatuetas, gemas camafeus, pinturas, mosaicos e têxteis. Mas Dahmen (2007,
p. 2) também afirma que, quando os especialistas buscam estabelecer uma série iconográfica
sobre o argéada, acabam por se deparar com a ausência de evidências seguras. Isto ocorre pelo
fato de que, assim como as fontes textuais, a documentação imagética sobre Alexandre é
Enfim, o grande problema em se trabalhar com a imagem de Alexandre é que sempre estamos
tentando decifrar o mito a ela subjacente. Até as últimas décadas do século XX, temos
trabalhos que buscam dar conta do contexto turbulento do século IV a.C. por meio de uma
claramente como Alexandre é alçado a patamares inatingíveis por qualquer outro soberano.
Mesmo em trabalhos mais recentes, como os de Hammond (1992), Goukowsky (1975, 1998)
por Alexandre.26
O objeto de nossa pesquisa, inserido nas duas últimas décadas do século IV a.C., há
muito tem sido obscurecido pela “sombra” de Alexandre. Como já mencionado, o período
26
Voltaremos a falar de forma mais aprofundada da importância da imagem de Alexandre quando tratarmos da
imagem do basileus helenístico.
60
decadência, no qual o Império Universal por ele construído teria desmoronado frente à
imagem de Alexandre, a questão central para nós é que o argéada deu continuidade ao projeto
de seu pai e, na primavera de 334 a.C. iniciou sua campanha da Ásia. Não temos intenção de
narrar aqui as campanhas promovidas por Alexandre no Oriente. Nosso objetivo é mostrar
como ele, ao mesmo tempo que herda o projeto de Filipe, acaba rompendo com a práxis
política vigente. Em resumo, no mesmo ano em que desembarca na Ásia Menor, as forças
Em 332 a.C., Alexandre toma Tiro e Gaza e, em 331 a.C., funda, no Egito, Alexandria,
mesmo ano em que ocorre o confronto em Gaugamela. Em 330 a.C., o exército macedônio
toma as capitais reais, fato seguido pela morte de Dario III Codomano. Em 329 a.C.,
pela morte de Dario, e inicia sua conquista das satrapias orientais (GEUS, 2003, p. 236-
242).27 É justamente a partir desse ponto que o rompimento de Alexandre com a política
Quando tratamos do ideal de oikoumene para Filipe, deixamos claro que o objetivo
Contudo, para Alexandre, podemos perceber por meio de suas ações que a sua ideia de
Império Universal, por motivos que não são totalmente claros, tornou-se cada vez mais ampla
ao longo de sua campanha asiática, consistindo, de certa forma, na conquista de toda a terra
habitada, pelo menos a dominada pelo Império Aquemênida. Essa mudança de perspectiva de
Alexandre pode ser interpretada como algo que ocorreu durante o processo de conquista do
27
Sobre a campanha de Alexandre na Ásia existem diversos trabalhos. Destacamos aqui a obra de Green (1974),
intitulada Alexander of Macedon, as obras já mencionadas de Mossé (2004), Alexandre, O Grande, de Hammond
(1992), Alejandro Magno: rey, general y estadista, e do livro organizado por Erskine (2003), A Companion to the
Hellenistic world.
61
Império Persa, inclusive sua porção extremo-oriental, pode ter ocorrido a Alexandre durante
sua estadia no Egito, quando, assim como Dario, passou a se denominar “senhor de toda a
programa da Koinon de Corinto. Para nós, tanto a morte de Dario quanto a de Besso tornam
mais nítida a concepção de império de Alexandre, pois, como narrado por Diodoro, o monarca
Parecendo a Alexandre que ele já tinha realizado o objetivo de sua empresa, e que a
posse do império não lhe seria mais disputada, ele começou a imitar o luxo persa e a
se exibir da mesma forma extravagante dos reis asiáticos. Primeiro, ele instalou
oficiais de origem asiática em sua corte, ordenando os mais ilustres para atuar como
seus guardas; entre estes estava o irmão de Dario [...]. Então ele passou a usar o
diadema persa, a túnica listrada de branco, o cinturão e tudo mais do vestuário persa,
exceto as calças e a capa de manga comprida. Ele distribuiu para seus companheiros,
mantos bordados de púrpura e cobriu os cavalos com adornos persas. Além de tudo
isso, assim como Dario, acrescentou concubinas em seu séquito, em número não
inferior ao dos dias do ano. Eram de uma notável beleza, já que tinham sido
selecionadas entre todas as mulheres da Ásia. Durante a noite, circulavam em torno
do quarto do rei para que ele pudesse escolher aquela com quem ele iria passar a
noite. Alexandre, por uma questão de senso, empregava esses costumes com
parcimônia e buscava manter sempre que possível sua rotina habitual anterior,
buscando assim não ofender os macedônios (Diodorus Siculus, XVII, 77, 4-7).
helenísticos,29 sobretudo o uso do diadema. Aliás, os diádocos foram responsáveis por uma
profusão de imagens póstumas de Alexandre, nas quais este portava o diadema. Esse tipo de
28
Ao assumir esse título, provavelmente Alexandre buscava sua associação muito mais com o grande Ciro,
fundador do império persa, do que com Dario. Um dos indícios para essa suposição encontra-se no fato de
Alexandre ter visitado a tumba de Ciro e tê-la reparado, pois ela havia sido saqueada (Arrian, Anabasis,V, 29).
29
Devemos lembrar que Alexandre também se apropriou da titulação faraônica em sua visita ao Egito,
decorrente de sua peregrinação ao oráculo de Amon em 331 a.C., que ficava em Siva no deserto da Líbia
(Arrian, Anab., III, 3-4). Este episódio foi um elemento importante no processo de mitificação da imagem de
Alexandre e, mais tarde, influenciou a imagem dos diádocos (OGDEN, 2011, p. 79).
62
Amon e portando o diadema. Por meio dessa representação numismática, fica claro não
Aquemênida, mas também de elementos ligados à cultura régia egípcia. Seus diádocos
seguiram o mesmo caminho, não obstante as controvérsias que tal prática possa ter suscitado
reproduzia os parâmetros das moedas cunhadas por Alexandre, no território de seu Império,
Traçar com precisão os objetivos de Alexandre após sua chegada ao Oriente é uma
tarefa extremante complexa, mas podemos afirmar que ele não obedecia às diretrizes iniciais
da campanha asiática. Alexandre rompeu com o fazer político anterior e, como vimos,
63
política e no modo de se portar de Alexandre suscitou uma série de conflitos entre o rei e seu
despótico, o monarca rompia com a natureza da monarquia macedônia que, como veremos de
principalmente, ao “conselho” formado pelos hetairoi do rei, apesar da força das personae de
Filipe e Alexandre.
As fontes antigas, mesmo que contraditórias, abordam os embates entre o rei e seu
exército em diversos momentos. Um desses embates ficou conhecido por meio da atuação de
Filotas, que era filho de Parmênio, um dos generais de Alexandre e, de acordo com Plutarco
(Vitae Parallelae Alexander, XLVIII, XLIX), defensor da tradição macedônia e uma figura
forte entre os demais generais. Filotas teria sido acusado de conspiração e condenado à morte,
assim como seu pai. Através da obra de Arriano, temos acesso, de forma mais detalhada, a
atribuídos a Alexandre que se voltam para o apaziguamento dos ânimos entre o rei e os
30
Para Diodoro (XVII, 104-118), a sedição reprimida por Alexandre não teria ocorrido em Ópis, mas sim em
Susa devido às famosas Bodas de Susa, em que o rei argéada fez com que seus companheiros, assim como ele, se
casassem com iranianas.
64
imagem de seu pai a fim de mostrar como Filipe transformou os macedônios em homens
capazes de se tornarem senhores sobre os bárbaros (Arr., Anab., VII, 9. 2-9). Crátero ficaria a
cargo de comandar o regresso desses veteranos à Macedônia, onde substituiria Antípatro, que
campanhas futuras. Além dessas querelas em torno da prática política de Alexandre, devemos
As obras da Antiguidade que tratam da vida de Alexandre são todas bem posteriores ao
contemporâneos a Alexandre, podemos afirmar que suas obras falam muito sobre o contexto
político e moral dos próprios autores, como no caso de Quinto Cúrcio que, ao tecer críticas a
Alexandre, na realidade as utiliza como um alerta aos governantes de seu próprio tempo.
Devemos lembrar ainda que, em oposição a essas cenas de desacordo entre o monarca e seu
[...] dispersando os inimigos de suas muralhas com flechas, ele [Alexandre] foi o
primeiro a subir no muro utilizando uma escada. Mas esta se rompeu em pedaços e
ele foi exposto ao ataque de flechas dos bárbaros que estavam ao longo da muralha.
Mesmo praticamente sozinho, ele levantou-se do chão e atirou-se para o meio do
inimigo [...] (Plut., Vit. Alex., LXIII, 3).
Desta forma, devemos ponderar entre as distintas visões em torno de Alexandre. Mesmo
que o soberano tenha sido, por vezes, interpretado como mal governante por seus generais, a
questão é que ele levou seus planos adiante, e seu exército o seguiu até os confins do Oriente.
65
Alexandre, por mais que tenha rompido com a tradição da realeza macedônia, não ousava
ultrapassar certos limites, mesmo exercendo, assim como seu pai, uma monarquia fundada no
poder pessoal. Alexandre, por exemplo, nunca adotou por completo a indumentária persa e
sempre manteve a tradição de ouvir seu conselho. O monarca, na realidade, não orientalizou o
seu poder, pois foi somente para os asiáticos que ele se tornou o sucessor dos Aquemênida.
Como afirma Price (1997, p. 171-176), ao tratar da cunhagem de moedas feita pelo argéada,
enquanto Alexandre foi saudado com títulos aquemênidas em sua entrada na Babilônia, tendo
adotado o título de Basileus da Ásia, foi apenas no final da vida que o vocábulo basileus foi
incluído em sua cunhagem, fato que se deu ao mesmo tempo em diversas oficinas monetárias
volumosa cunhagem que pode ser conectada ao retorno dos veteranos por volta de 324 a.C.
De acordo ainda com Price (1997), não resta dúvida que a mudança na inscrição das
moedas foi uma decisão política consciente. Alexandre foi capaz de alterar radicalmente a
cunhagem macedônia para uma cunhagem de caráter pan-helênico que logo substituiu os
dáricos (moedas de prata persa) e os tetradracmas atenienses por todas as regiões do Império.
Além da praticidade política do novo tipo de cunhagem, que proporcionava uma padronização
por meio da representação imagética contida nas novas moedas de Alexandre, podemos
perceber também o início de uma nova estrutura de poder. De acordo com diferentes autores,
como Mossé (2004), Bosworth (2002) e Ogden (2011), uma das principais habilidades
políticas de Alexandre foi reunir, em torno de si, diversas imagens diferentes – basileus dos
macedônios, hegemón dos gregos, sucessor dos Aquemênida e filho de Zeus. Essas imagens o
por influenciar a nova práxis política do macedônio. Quando Alexandre instituiu uma nova
cunhagem, sua titulatura revela a rompimento político exercido pelo monarca, pois este deixa
de ser somente o basileus Makedônon ou o basileus sem qualificativo, como o rei persa: ele
66
era agora o basileus Alexandros. Apenas o nome já qualificava sua autoridade real (MOSSÉ,
2004, p. 143).
buscarmos um herói idealizado, nosso propósito é mostrar que, apesar dos contratempos aos
estabelecido por Filipe, na Liga de Corinto. Para além disso, o soberano imprimiu sua própria
marca na constituição de sua oikoumene. Filho mais velho de Filipe, herdou não apenas o
talento político do pai como também o militar. Foi principalmente devido à perícia bélica que
conquistar territórios tão longínquos sobre os quais nem mesmo os Aquemênida chegaram a
exercer influência de fato. Nenhuma das imagens em torno do argéada foi tão importante para
pelos antigos ou não, as vitórias de Alexandre constituíram o cerne do seu poder. Acreditamos
própria autoridade.
e persas, de outro. O monarca, durante seu curto governo, produziu uma ruptura nesta
configuração geopolítica. Quando Alexandre morre, em 323 a.C., existe uma oikoumene, um
subsistem giram em torno dos limites deste Império, pois até que ponto podemos separar a
representação da realidade? E como podemos interpretar a nova forma política que viria a
seguir, que teve a contribuição de Alexandre, mas não foi concretizada por suas ações: a
basileia helenística? Defendemos que esta seria construída/consolidada mediante as ações dos
diádocos de Alexandre, sobretudo de Antígono, auxiliado por seu filho Demétrio, que
sucede alguém”, “sucessor”. Comumente, temos uma lista de dezenove diádocos. Contudo, os
protagonistas no processo político deflagrado após a morte de Alexandre foram somente oito:
cavalaria.
de regente do Império até que um membro da dinastia real pudesse assumir o poder. Nesse
caso, o mais provável seria a ascensão do filho póstumo de Alexandre com a princesa Roxana
(OGDEN, 2002). O acordo realizado na Babilônia decidia que Filipe Arrideu, irmão de
Alexandre, e o futuro filho de Alexandre e Roxana, governariam juntos, a fim de evitar uma
disputa sucessória. Porém, Arrideu possuía limitações que o impediam de governar, o que
levou a uma repartição da autoridade régia entre Antípatro,32 que ficaria como regente no
Ocidente, e Pérdicas, o quiliarca, como regente da Ásia. Além disso, foi feita uma nova
31
Que possuíam a função de proteger o monarca.
32
Como sabemos, Antípatro, durante o governo de Alexandre, já possuía a função de regente no Ocidente, na
ausência do monarca. Contudo, havia sido condenado em segredo pelo rei, que enviou Crátero de volta à
Macedônia com os veteranos para substituí-lo e enviá-lo de volta ao rei com novas tropas.
68
Alexandre, explicitados pela formação de três coalizões. A primeira facção era encabeçada
por Pérdicas, e incluía Átalo, Seleuco e Eumenes da Cárdia; a segunda era organizada em
torno de Ptolomeu e Leonato. Essa facção defendia a ideia de o conselho governar o Império
facção era encabeçada por Meleagro, oficial dos pezetairoi (companheiros a pé, infantes), que
se opunha à partilha do poder, sendo favorável a que Arrideu assumisse como basileus
(Photius, Bibliotheca, 92, 1-8; Diod. Sic., XVIII, 2. 1-5). Billows (1990) discute a importância
Embora sob ameaça de guerra civil por uns dias,34 o exército macedônio colaborou para
o consenso entre as três facções, que se viram forçadas a um compromisso. Por meio desse
compromisso, estabeleceu-se que Arrideu reinaria como Filipe III e o filho de Alexandre seria
(BILLOWS, 1990, p. 54). Assim como ocorreu com Alexandre, o sucesso ou o fracasso dos
eles não se esqueceriam disso. Outro elemento importante era a ênfase dos generais na
lealdade para com a dinastia argéada. No final, o grande vencedor da conferência realizada na
Babilônia foi Pérdicas, nomeado quiliarca dos reis,35 o que lhe dava autoridade sobre todo o
33
Talvez Lisímaco tenha se associado a esta facção, pois há informações de que, em 320 a.C., se aliou a
Ptolomeu e a Antípatro contra Pérdicas.
34
Por dias houve contenda entre as fileiras da cavalaria e da infantaria após a morte de Alexandre, e, a príncipio,
os diádocos não podiam contar de forma certeira com o apoio dos soldados descontentes – que não participaram
das deliberações – sem antes convencê-los do melhor caminho a ser tomado por meio de argumentos eloquentes
(Justinus, Epitome, XIII, 2-4). O episódio mostra como a conquista do apoio do exército foi um elemento
fundamental desde a constituição da basileia helenística.
35
Literalmente, quiliarca significa o “o oficial que manda sobre mil”. De origem militar e administrativa do
Império persa, essa função foi incorporada durante o governo de Alexandre. O homem que a ocupava era uma
espécie de vizir, sendo o segundo homem no comando do Império. Heféstion foi o primeiro a ocupar a função de
quiliarca macedônio, após sua morte, Pérdicas assume a função.
69
Por meio dessa autoridade, Pérdicas se valeu da distribuição de satrapias para aumentar
o seu poder (Diod. Sic., XVIII, 3, 1-5). Nesse processo, Eumenes, praticamente o único
simpatizante de Pérdicas, recebeu uma satrapia importante, que abarcava parte da Capadócia e
(Vitae Parallelae Eumenes, III, 2): “[...] e repartindo-se as satrapias e comando, coube a
Eumenes a Capadócia e a Paflagónia [...] que não pertenciam aos macedônios [...] portanto,
era necessário que Leonato e Antígono acompanhassem Eumenes com forças armadas para
fazerem reconhecer a ele como sátrapa desta região”.36 A Antígono, coube o comando da
36
Veremos mais adiante como essa situação criada por Pérdicas colocou Eumenes e Antígono em posição
antagônica.
70
Alexandre.
por ele mesmo, de um vago título de prostátes.37 As decisões de Pérdicas, teoricamente, eram
tomadas em nome dos reis, sendo, portanto, legítimas. Contudo, essa primazia era
Grande parte da bibliografia que trata do período após a morte de Alexandre, seja
aquela alinhada a uma história tradicional ou a de caráter mais recente, identifica nesses
Império legado pelo argéada por parte dos diádocos. Rostovtzeff (1936), por exemplo, afirma
distúrbios na Península Balcânica, como a Guerra Lamíaca.38 Nesse momento, alguns dos
diádocos buscavam manter a unidade do Império, ao passo que outros buscavam conservar
suas satrapias, embora nenhum deles talvez enxergasse que suas ações poderiam levar ao fim
37
A posição de Crátero, neste momento, ainda permanece realmente vaga para nós.
38
A Guerra Lamíaca (323-322 a.C.), ou a Guerra Grega, foi um conflito que se iniciou após a notícia da morte
de Alexandre. Atenas e póleis aliadas se rebelaram contra Antípatro e suas forças militares. Em um primeiro
momento Atenas e seus aliados conseguiram combater Antípatro, e este acabou por se refugiar na Lamia, onde
ficou cercado por meses. Depois de ser socorrido por Leonato, Antípatro regressa para a Macedônia, onde
consegue reunir novas tropas enviadas por Crátero e vence Atenas e seus aliados em uma batalha travada em
Cranon, na Tessália. Esse conflito representou o último grande esforço ateniense pela manutenção de sua
liberdade, porém as consequências para a pólis foram duras. Atenas sofreu com a inserção de um governo
oligárquico e teve de pagar uma alta indenização (WORTHINGTON, 1994). Além disso, perdeu vários líderes
importantes. Um destes líderes foi Demóstenes. Antípatro exigiu que o orador lhe fosse entregue, mas ele fugiu
para a ilha de Caláuria e ali se refugiou no templo de Poseidon. Soldados da Trácia cercaram o edifício, então
Demóstenes envenenou-se, defendendo até o fim de sua vida o ideal de autonomia da pólis.
72
O período após a morte de Alexandre foi, muitas vezes, tratado como o conflito pelo
conflito. Como revela a própria expressão guerras dos diádocos, que encerra em si mesma um
estereótipo, o período teria sido marcado apenas pela crise sucessória e pela dissolução do
Império Universal. Não queremos negar nem minimizar aqui a existência destes conflitos,
pois a guerra já era um antigo instrumento sucessório da própria realeza macedônia. O que
buscamos destacar é que esses conflitos em torno da sucessão eram algo que há muito fazia
parte da práxis política macedônia. A questão é que houve uma série de fatores que fez com
que, após 323 a.C., os conflitos tivessem maior alcance, tais como: a ausência de um herdeiro
vinculado à casa argéada capaz de assumir o poder; a ingente extensão do território a ser
mantê-lo coeso é algo complicado de se afirmar. O fato é que esse Império, conquistado com
a força da lança por Alexandre e seu exército, nunca representou uma unidade consolidada.
Muitos são os qualificativos que poderíamos usar para definir este Império: uma construção
frágil (MOSSÉ, 2004); mais uma fórmula do que um fato (ROSTOVTZEFF, 1936); um
império artificial e instável (WATERFIELD, 2011). Alexandre, em sua jornada, não teve
tempo hábil para estabilizar seu Império. Do ponto de vista do general vitorioso, podemos
falar mais de uma conquista territorial do que da formação de um império administrado por
um poder central, mesmo que a fundação de cidades, no Oriente, tivesse como função o
eficiente, nunca saberemos. Mas essa imagem do Império Universal é tão forte que mesmo o
historiador inclinado a negar a unidade administrativa dos domínios de Alexandre pode ser às
problema:
Alexandre, o Grande, tornou-se uma figura tão grande que ele tende facilmente a
ofuscar tudo e todos ao seu redor. Sua impressionante campanha pela Ásia Menor,
do Irã ao Afeganistão e depois para o subcontinente indiano, levou forçosamente a
cultura helênica além das imaginações mais ousadas dos antes imperialistas gregos.
No clímax do seu sucesso, na Babilônia em 323 a.C., ele morreu, romanticamente
jovem, garantindo o poder de sua lenda, tingida e reforçada com fragilidades
humanas, para os séculos vindouros. No entanto, assim como o espetacular pai de
Alexandre, Filipe II, sofreu em sua grande sombra [...], o rescaldo da aventura
imperialista pode parecer à primeira vista ter sido muito mais um anticlímax.
pois se igualar ao argéada era uma façanha impossível, principalmente por causa da imagem
idealizada contruída em torno de Alexandre. Além disso, fontes antigas reforçam a visão
pejorativa sobre os diádocos. Justino (XIII, 2, 1-5) afirma que em virtude de os generais
serem pares, todos podiam concorrer ao poder e, portanro, a igualdade entre eles foi a grande
responsável pela discórdia que desembocou na disputa armada. Desta forma, nas palavras de
Justino, parece que todos os diádocos eram capazes de disputar o poder, como o fizeram,
acarretando assim a ruína do Império. Com certeza, essa visão é exagerada, pois atribui aos
Não negamos que, de início, a ideia que ocorria a todos era a de manter o Império, mas
não devemos negar que o que viria adiante escapava à previsão de todos. Qualquer processo
histórico não é algo pronto, pois ações, visões de mundo e outros fatores interferem o tempo
todo no curso dos acontecimentos. Seria extremamente difícil definir os rumos de um Império
que o próprio criador não havia consolidado. Para os antigos, Alexandre tinha deixado seu
mundo sem nenhuma diretriz específica, e sua morte não era esperada. O mundo que deixou
para trás tinha sido mudado em termos estruturais, mas que tipo de nova ordem internacional
viria a seguir? Em 323 a.C., ninguém sabia. Nos relatos de autores posteriores à formação da
74
basileia helenística, Alexandre teria previsto a guerra no seu último suspiro (Diod. Sic.,
caracterizava todo o mundo grego. Magnoli (2006), ao refletir sobre o preâmbulo da Carta de
Fundação da ONU, formulada em junho de 1945, expõe como a guerra passou a ser vista
desde então como um flagelo, uma monstruosidade que deve ser abolida de todas as formas
possíveis. O irônico, em nossa época, é que a guerra deve ser eliminada mesmo que para isso
se trave uma guerra. Vivenciamos o paradoxo de viver e experimentar os mais diferentes tipos
de guerra, mas, ao mesmo tempo, negá-la. O tema bélico chegou inclusive a ser estigmatizado
por boa parte da historiografia do século XX, assim como outros temas rejeitados, a exemplo
da História Política. A partir da década de 1980, no entanto, a História Militar retornou com
uma nova roupagem. Soares e Vainfas (2012, p. 126) afirmam que acontecimentos e
essa renovação da História Militar e para a introdução de novas problemáticas na pauta dos
colaborou para a mudança de perspectiva sobre as sociedades antigas, inclusive para um novo
a.C., afirmando que a guerra, pólemos, teria engendrado o mundo e reinaria sobre esse mundo
– a guerra constituiria a própria lei do universo. A guerra, no Mundo Antigo, pode ter mudado
emprego cada vez maior de mercenários nas fileiras do exército hoplítico, mas não perdera
39
Sobre a estruturação e evolução da guerra na Hélade e na Macedônia, é interessante o trabalho de Adcock
(1957), intitulado The Greek and Macedonian: Art of War.
75
segundo plano, por algum tempo, a realidade desta evolução, e a guerra, no mundo helênico,
deixaria de ser um problema das cidades para se tornar um problema dos futuros basileis
Dessa forma, guerras intestinas na bacia do Mediterrâneo não foram atributo exclusivo
do período dos diádocos. Foi, principalmente, por meio desse instrumento que Alexandre
pôde alterar a práxis política então vigente. Foi por meio da guerra e da vitória militar que o
monarca rompeu com o projeto estabelecido por seu pai. Foi ela que lhe possibilitou reunir
em sua pessoa diferentes imagens, que não raramente antagonizavam uma com a outra.
Discordamos de Billows (1990, p. 15) quando este afirma que Alexandre foi mais um
destruidor do que um criador, mas concordamos com o autor quando ele afirma que, mediante
a conquista do Império dos Aquemênida, Alexandre desequilibrou a antiga balança que havia
destruidor, mas o consideramos responsável pela projeção do germe de algo novo. Alexandre
lançou as bases para algo que acabou por ficar a cargo dos seus generais.
A tão evocada herança de Alexandre ultrapassa o território deixado pelo monarca. Suas
diferentes imagens e títulos, suas representações nas moedas, sua forma de organizar o espaço
geográfico das cidades, a participação ao seu lado no campo de batalha, até o seu corpo, todos
esses elementos foram utilizados, interpretados, reapropriados pelos diádocos, para no fim se
criar uma instituição política inteiramente nova – a basileia helenística. Para a emergência
dessa nova instituição, ninguém se destacaria mais do que Antígono Monoftalmo. Valendo-se
sido o primeiro dos diádocos a deixar de ser somente um general, um líder militar, para se
tornar basileus. Ao seu lado, teve a colaboração de outra persona que não integrava o quadro
Como dissemos, nenhuma personagem teve mais projeção política nas duas últimas
décadas do século IV a.C. do que Antígono. Contudo, sua figura ficou por muito tempo na
penumbra, em particular no que se refere aos rumos da oikoumene. Somente em 1973 aparece
diádoco. Mediante uma biografia histórica que constituiu sua tese de doutorado, Pierre Briant
buscou recuperar a trajetória de Antígono entre 334 e 321 a.C. Para Lévêque (1976, p. 604), o
autor se dedicou a esse tema devido a duas constatações: as fontes antigas, ainda que
insuficientes, não tinham sido examinadas com a atenção necessária; e a carreira de Antígono,
no final do século IV a.C., era baseada em dados extraídos destas fontes que, por vezes, foram
buscava investigar os motivos da sua proeminência a partir de 321 a.C., pois até então sua
Apesar de ser rico em vários sentidos, o trabalho de Briant não deixa de apresentar
limites.40 Para nós se torna algo complexo compreender a importância política de Antígono
com base no recorte estabelecido por Briant. De forma diversa do historiador francês,
Antígono desponta no cenário político, momento em que o autor encerra sua análise.
Enquanto Briant investiga os motivos pelos quais o macedônio ascende no cenário político,
nós tivemos como objetivo analisar o seu papel para a construção/consolidação de uma nova
forma de governo.
40
Müller (1973), também fez uma análise sobre Antígono, contudo no período entre 306 a 304 a.C., período um
pouco mais iluminado, em um trabalho com ambições menores. Podemos também destacar as observações de
Ramsay (1920) que, embora em seu artigo também tenha reconhecido a satrapia do velho general como de suma
importância estratégica, o foco do arqueólogo foi mais sobre as operações militares de uma forma geral.
77
De fato, como afirma Briant (1973), existem muitas incertezas quanto ao papel de
Antígono antes de 323 a.C. O pouco que sabemos sobre sua origem é que nasceu na
Macedônia por volta de 382 a.C., provavelmente numa região próxima a Pela, capital do reino
macedônio. O nome de seu pai era Filipe, mas desconhecemos o nome de sua mãe. Antígono
teve dois irmãos: Demétrio e Polemaio. Alguns autores antigos, como Plutarco (Vitae
Parallelae Demetrius, II, III) apontam ora para uma origem humilde, ora para uma ligação
com a casa real macedônia, mas nenhuma destas suposições foi comprovada. Briant (1973, p.
24-25) foi o primeiro autor a afirmar que Antígono talvez fosse originário de uma família
macedônia proeminente. Billows (1990, p. 17) concorda com essa opinião em virtude de três
fatores: origem dos pais, origem da esposa e sua carreira administrativa e militar.
macedônio cresceu dentro da categoria dos hetairoi (companheiros). Como a maioria da elite
macedônia, teria recebido uma educação helênica, pois diversas fontes o apontam como leitor
Macedônia. O rei Arquelau foi assassinado em 399 a.C., portanto os anos seguintes foram
repletos de intervenções e revoltas. Quando, em 393 a.C., Amintas, pai de Filipe II, assumiu o
poder, teve de enfrentar diversas incursões dos ilírios. Ao morrer, por volta de 370 a.C.,
Amintas deixou três filhos: Alexandre, Pérdicas e Filipe. O mais velho assumiu o poder,
tornando-se Alexandre II. Contudo, foi assassinado por volta de 368 a.C., durante um festival.
Pérdicas, depois de vencer a oposição, passou a governar em 365 a.C., mas acabou morrendo
em 359 a.C., numa desastrosa batalha na qual perdeu mais de 4 mil homens.41 Como Pérdicas
havia deixado apenas um filho menor, Filipe o sucedeu no trono (ELLIS, 1977;
ERRINGTON, 1991; HAMMOND, 2001). Filipe promoveu uma série de reformas durante o
41
Billows (1990, p. 24) supõe que o pai de Antígono possa ter morrido nesta batalha, pois sua morte teria
ocorrido provavelmente por volta de 360 a.C.
78
seu governo (359-336 a.C.). Temos indícios para supor que Antígono ocupou algum cargo na
administração do soberano. Em uma passagem, Justino (XVI, 1, 12) reproduz uma declaração
de Demétrio, na qual este afirma que o pai seguiu Filipe e Alexandre em todas as guerras nas
quais estes se envolveram. No momento em que Alexandre parte rumo à conquista da Ásia, o
general é um dos seus comandantes mais fiéis, fato que seria justificado por sua associação
prévia com Filipe. Após a morte do pai, a mãe de Antígono se casa com o nobre Periandro, da
região de Pela, o que talvez tenha favorecido a aproximação de Antígono com a casa real
macedônia. Sobre o epíteto a ele associado, Monoftalmo, o que sabemos é que o macedônio
perdeu um dos olhos numa das campanhas promovidas por Filipe. Sobre sua vida amorosa,
sabemos que Antígono se casou com Estratonice, viúva de seu irmão Demétrio. Com ela, teve
dois filhos: Demétrio,42 que nasceu por volta de 337 a.C., e Filipe.
Filipe II, conforme assinala Briant (1973, p. 7-8), foi o fato de as fontes não terem
modernização da Macedônia deflagrado por Filipe. O primeiro, por ter sido o principal chefe
militar e o segundo, por ter sido o homem de confiança de Filipe na administração e nos
Diodoro (XVIII, 42, 1-5), inclusive, destaca a amizade antiga existente entre Antígono,
Antípatro e Eumenes.43 Billows (1990, p. 35) valoriza o papel de Antígono junto Filipe na
construção de uma Macedônia poderosa, um aprendizado que mais tarde seria útil ao diádoco
42
Apesar de alguns relatos antigos se referirem a Demétrio como filho do irmão de Antígono, pela questão
temporal essa hipótese não seria válida.
43
Um dos pontos frágeis da tese de Briant (1973, p. 229-234), é que, na falta de mais informações sobre o
passado de Antígono, o autor afirma que o seu surgimento como protagonista em Triparadiso não poderia ser
explicado pela sua carreira anterior. Antígono surgiria como elemento fundamental somente por Antípatro o ter
escolhido, e essa escolha teria se dado simplesmente pelos laços de amizade e idade que existiam entre os dois.
Antípatro teria dado uma oportunidade ao amigo, que resolveu aproveitar.
79
Alexandre. Durante o governo deste último a atuação de Antígono também é difícil de ser
Infelizmente, dispomos de uma única menção a Antígono, feita por Arriano, sob o
governo de Alexandre, quando o general foi feito sátrapa da Frígia, em 333 a.C.:
A partir daí, Alexandre foi para a Frígia [...] No quinto dia de sua partida, o basileus
foi para a cidade de Celenas onde havia uma fortaleza construída sobre uma rocha
íngreme [...] Essa cidadela tinha sido guarnecida pelo sátrapa persa da Frígia com
um efetivo de mil cários e cem mercenários gregos. Esses homens enviaram
embaixadores até Alexandre, prometendo ceder o lugar sem nenhuma resistência
[...] Em Celenas, permaneceu por 10 dias, período no qual ele formou uma
guarnição de mil e quinhentos soldados, nomeando como sátrapa da Frígia
Antígono, filho de Filipe, colocando no lugar deste Balacro, filho de Amintas, como
líder das tropas gregas aliadas [...] (Arr., Anab., I, XXIX, 3).
Alexandre para a Ásia, Antígono era responsável pelo comando dos contingentes gregos
aliados, cerca de 7 mil homens, que compunham uma infantaria. Todavia, devido à sua nova
posição como sátrapa da estratégica região da Frígia, Antígono foi sucedido no comando das
tropas gregas por Balacro. Essa nova posição de Antígono foi confirmada após a conferência
ocorrida na Babilônia, em 323 a.C. A passagem de Arriano é muito importante, pois o autor
não negligencia a existência de Antígono, como, por exemplo, faz Diodoro (XVII, 17, 3-4):
44
Diodoro é a única fonte que temos que detalha as tropas de Alexandre, com números e nomes dos
comandantes. Outras fontes, como Justino, Plutarco e Arriano, simplesmente fazem uma divisão entre o número
total da infantaria e da cavalaria e, em alguns casos, os valores são considerados de forma aproximada.
80
As lacunas nas fontes no que diz respeito à pessoa de Antígono, principalmente quando
tratamos da Batalha de Granico (334 a.C.), podem ser explicadas por alguns fatores. De
acontecia ao redor da batalha. Arriano, que menciona o nome de Antígono apenas uma vez, se
apoiou em relatos de Ptolomeu sobre o confronto. Diante disso, podemos inferir que as
menções a Antígono, que no futuro se tornaria o principal opositor de Ptolomeu, decerto não
tenha influenciado Diodoro, pois este nem mesmo cita o nome de um dos principais diádocos
sobre a Batalha de Granico, o autor parece ter se baseado em Arriano, fazendo um breve
Ainda contamos com uma inscrição recolhida pelo epigrafista Hiller von Gaertringen,
único vestígio que temos sobre uma missão de Antígono à cidade de Priene, em 334/333 a.C.,
Nesta inscrição, inserida numa estela de mármore, atestamos uma homenagem prestada
pela cidade de Priene, localizada na Ásia Menor, a Antígono, que registra uma decisão
tomada em assembleia.
45
Quando usamos a sigla SIG, estamos nos referindo às inscrições contidas no Sylloge Inscriptionum
Graecarum.
81
Sobre o papel de Antígono durante o reino de Alexandre, Briant (1973, p. 24) também
nos informa que o general acompanhou monarca numa campanha de inverno à Lídia, Panfília,
Pisídia e Frígia. Mas, devido ao silêncio das fontes, Bosworth (1980) discorda de Briant. Seja
como for, tal fato realmente carece de comprovação. Billows (1990, p. 39) afirma que, nesse
período, Antígono pode ter acompanhado Parmênio a Sárdis, ou ainda ter retornado à
Macedônia com os noivos das Bodas de Susa para passar o inverno e rever sua esposa e
nomeado sátrapa.
Devemos lembrar que Antígono também fez parte do conselho de guerra de Alexandre
durante a campanha de 334/333 a.C., na Ásia Menor. Existe uma tendência das fontes em
criar a impressão de que Alexandre tomava todas as decisões sozinho, contudo, como
conselho dos hetairoi, exercia uma influência considerável sobre as resoluções do monarca.
As mesmas fontes que visam a transmitir a imagem de um monarca que comanda tudo pela
sua própria vontade contêm passagens mostrando como Alexandre consultava o seu conselho
Mesmo os exércitos estando apenas a sete milhas um do outro, eles não podiam se
ver, porque entre as duas forças hostis existiam colinas. Quando o exército de
Alexandre percebeu que estavam apenas a quatro milhas de distância do inimigo, e
que já desciam as colinas, a falange ficou parada observando os adversários.
Alexandre convocou um conselho formado pelos Companheiros, pelos generais,
oficiais de cavalaria e líderes dos aliados e mercenários gregos, e, com eles,
deliberou se a falange deveria ou não ir para a batalha de imediato [...] (Arr., Anab.,
III, IX, 3).
Antígono, no papel de líder das forças gregas aliadas, deveria ser uma presença
constante no conselho régio. Contudo, sua nomeação como sátrapa significou uma grande
mudança em sua relação com Alexandre, diminuindo sua contribuição para o direcionamento
da campanha do Oriente, deixando-o sem contato direto com o rei, algo importante numa
monarquia de caráter personalista como era a Macedônia (BRIANT, 1973, p. 48; ROISMAN,
82
2012, p. 37). Acreditamos que esse afastamento do contato direto com Alexandre tenha sido
mais um fator que contribuiu para a ausência de referências a Antígono nas fontes que tratam
Em termos práticos, devemos considerar que o Oriente era um vasto território que, em
grande parte, foi apenas nominalmente conquistado pelas forças macedônias. Enquanto isso, a
Frígia, governada por Antígono, era uma satrapia que ficava no coração da Ásia Menor
ocidental. Todas as grandes rotas do território oriental passavam por esta satrapia, razão pela
qual, para governá-la, seria necessário um homem que fosse capaz de manter as estradas
batalha, era de grande importância. Além do mais, o general estava instalado às margens do
Macedônia.
83
Fonte: httpps://ianmladjovsresources.com
84
Nossa única informação sobre uma contra-ofensiva persa na Ásia Menor, em 332 a.C.,
Os generais de Dario que haviam sobrevivido a Batalha de Ipso, com todas as tropas
que lhes havia restado após sua fuga [...], tentaram recuperar a Lídia. A frente
desta,46 encontrava-se Antígono, governador nomeado por Alexandre. Mesmo
havendo enviado ao rei a maior parte dos soldados pertencentes a sua guarnição,47
ainda assim, com um desprezo total para com os bárbaros, colocou suas tropas em
combate [...] Em três combates, travados em lugares distintos, os persas foram
abatidos.
Antígono teria liderado forças bem inferiores às dos persas durante esses conflitos. Por
isso, o combate em três frentes foi uma opção estratégica do general, que assim justificava a
confiança que lhe fora dada pelo rei. Enquanto Alexandre avançava em suas conquistas por
Tiro e seguia em direção ao Egito, Antígono, na Ásia Menor, e outros firmavam posição:
“Mas não era somente o rei quem atacava as cidades que não aceitavam se submeter ao seu
domínio, também seus magistrados, notórios generais, haviam promovido uma invasão geral:
Callas havia tomado a Panflagónia, Antígono a Licônia, Balacro [...] retomou Mileto [...]”
(Curt., IV, 5, 13). O domínio sobre a Licônia, região da Ásia Menor que ficava entre a
Panfília, a Capadócia, a Pisídia e a Frígia, era de extrema importância para Alexandre devido
às rotas de comunicação. Antígono teria conseguido abrir uma rota meridional através da qual
seria possível alcançar rapidamente a Ásia Menor. Permitindo o controle total do mar pela
frota macedônia, essa rota veio a ser a mais utilizada na comunicação de Alexandre com a
Macedônia e demais satrapias da Ásia Menor (BOSWORTH, 2002, p. 150; BRIANT, 1973,
p. 54-56). Os sucessos de Antígono foram talvez realçados pelos fracassos de parte dos
46
Quinto Cúrcio refere-se a Antígono como sátrapa da Lídia, diferente de Arriano, segundo o qual o general é
responsável pelo governo da Grande Frígia. Tarn (1948), em seus estudos, chegou à conclusão de que o nome
Lídia realmente foi um erro e que o correto seria Frígia, como apontou Arriano. Contudo, Briant (1973), acha
que as duas menções são corretas, sendo que Cúrcio poderia se referir também ao antigo Império Lídio, que
abarcaria toda a região a oeste do rio Halys. Na teoria de Briant, Antígono ganhou temporariamente o comando
supremo sobre todo o oeste da Ásia Menor devido sua ascendência macedônia e sua posição na Ásia Menor.
47
Billows (1990) e Briant (1973), mencionam uma batalha travada por Antígono em Kelainai, na Frígia, no
início de 333 a.C., na qual foi vitorioso. Após esse conflito, Antígono teria enviado tropas de mercenários a
Alexandre para o confronto em Ipso.
85
Pisídia.
Billows (1990, p. 46) nos informa que, por conta desses sucessos, talvez em 330 a.C.
Antígono tenha tomado sob seus cuidados a Lícia e a Panfília, em adição à Frígia. Tal fato
não pode ser diretamente comprovado, mas como o sucessor de Nearco, um dos oficiais de
Alexandre, que seguiu para o leste, não é mencionado, e Antígono foi confirmado no
Alexandre, essa tese é amiúde aceita. É provável que, no mesmo período, Antígono tenha
obtido o domínio sobre o oeste da Pisídia. Controlando essas possessões, Antígono ofuscava
qualquer outro sátrapa macedônio na Ásia Menor. Sobre a administração de sua satrapia,
quase não temos informação. Ao que tudo indica, Alexandre não fez qualquer reforma na
administração aquemênida. O argéada manteve o sistema vigente, pois não houve tempo para
fim de tornar mais eficiente a arrecadação de fundos (BADIAN, 1965; MOSSÉ, 2004).
Sobre as satrapias, que podiam ser encaradas como distritos ou províncias do Império
a.C.):
[...] [Dario] dividiu o império em vinte estados, que os Persas denominam satrapias,
estabelecendo em cada um deles um governador. Regulamentou o tributo que cada
província deveria pagar-lhe, e, para esse fim, incluía em cada província os povos
limítrofes. Às vezes, porém, passava por cima dos vizinhos, incluindo, num mesmo
departamento, povos afastados um do outro. Eis como distribuiu ele as satrapias e
como regulamentou os tributos, que lhe deveriam ser pagos todos os anos. Ordenou
que os que deviam pagar sua contribuição em prata, a pagassem ao peso do talento
babilônio, e os que tivessem de pagá-la em ouro, o fizessem ao peso do talento da
Eubéia [...] (Herodotus, III, 89, 1-2).
86
central das satrapias estava ligada ao pagamento de tributos aos Aquemênida, como consta na
passagem acima. Tanto que os sátrapas possuíam uma grande autonomia. De acordo com
Asheri (2006, p. 104-105), por tradição e por questões práticas, os soberanos aquemênidas, na
maioria das vezes, deixavam o governo local nas mãos de regentes tradicionais, desde que
estes colaborassem. Mas essa autonomia da satrapia e de seu governante era relativa. De
acordo com Bright (1980, p. 439), os sátrapas eram fiscalizados por militares sob o comando
direto do Grande Rei, fazendo parte de um complexo aparato burocrático que incluía um
contigente de fiscais responsáveis por reportar ao soberano tudo o que ocorria nas esferas
inferiores da administração.
Antígono dirigiu sua satrapia de acordo com o sistema persa e, assim como os sátrapas
lhe rendeu uma grande experiência e com certeza lhe foi útil mais tarde, na gestão do seu
próprio governo. Antígono passou um bom tempo em Kelainai, na Frigía, e talvez tenha
levado sua esposa e filhos para junto de si em tempos de paz. No livro XVIII (23, 4) da sua
Biblioteca Histórica, que trata dos diádocos, Diodoro menciona que Demétrio estava em
(1973), Antígono possuía, à época da morte de Alexandre, uma posição muito consolidada,
concorrendo apenas com Antípatro. Como reporta Plutarco (Vit. Demetr., III), logo após a
morte de Alexandre, Antígono sai da penumbra para se tornar “[...] o maior e mais idoso dos
sucessores de Alexandre”.
onde ficou decidido que Antípatro e Pérdicas seriam os dois representantes dos reis argéadas,
48
Essas incoerências decorrem principalmente quando comparamos o levantamento de satrapias feito por
Heródoto e as listas persas. Mas apesar deste problema, Asheri (2006, p. 104) afirma que as listas persas e a
listagem de Heródoto nos oferecem a melhor visão global sobre as satrapias do império aquemênida.
87
sobre a Ásia. Acrescentamos que Antígono acabou sendo, de certo modo, prejudicado em
favor de Eumenes devido à redivisão feita por Pérdicas do território da oikoumene. A grande
Alguns autores, como Briant (1973, p. 127-132), refletem sobre essa ausência, interpretando-a
incoerência na argumentação de Briant se deve ao fato de ele mesmo afirmar que Antígono
mais plausível que podemos evocar para a ausência de Antígono na Babilônia pode ser a
distância. Ao contrário dos demais diádocos presentes, que estavam ao lado de Alexandre na
Babilônia, e Antípatro, que já estava a caminho com novas tropas, Antígono encontrava-se
geograficamente distante. Devemos recordar que a notícia da morte do monarca deve ter
Após a Conferência da Babilônia, Antípatro e Crátero vão aos poucos afirmando sua
força na Europa e sufocando a rebelião das póleis, ao passo que os casamentos vão se
tornando instrumentos de aliança entre os generais. Crátero se casou com Fila, filha de
Antípatro, e Pérdicas propôs casamento à outra filha de Antípatro, Nikaia. Os autores antigos,
uma espécie de triunvirato entre Antípatro, Pérdicas e Crátero, que emergia como mais um
concorrente na disputa pelo controle do Império Macedônio (Diod. Sic., XVIII, 18, 7; 23, 1-3;
Phot., Bibl., 92, 1, 21; Just., Epit., XIII, 6). Em meio a tudo isso, a posição de Antígono
revelava-se ambígua. Formalmente, ele não possuía motivos para se queixar, pois sua posição
fora confirmada durante a Conferência da Babilônia, que reconheceu seu direito de governar
88
p. 312).
Alexandre estruturou seu Império, ou melhor, pela ausência de uma organização mais eficaz,
não tardariam a surgir conflitos entre os diádocos, em parte como consequência do desejo de
comando, em parte em razão da falta de parâmetros sobre como manter coesa a oikoumene.
Conquistada pela lança, ela foi pintada por Alexandre, mas faltava-lhe a moldura. Sem um
comando legítimo para o Império, prevalecia a suspeita mútua entre os diádocos. Além disso,
havia a desconfiança de que o Império não duraria, o que cedo levou Ptolomeu a se apoderar
A essa altura, havia distúrbios nos dois extremos do Império, na Bactriana e na Grécia.
fim de se aliar a Antípatro e Crátero, dando assim início ao que os autores costumam
denominar Guerras dos Diádocos. De acordo com Adams (2010), teriam sido quatro guerras,
marcadas por diferentes conflitos: a primeira entre 322-320 a.C.; a segunda entre 319 e 315
a.C.; a terceira entre 314 e 311 a.C.; e a última entre 308 e 301 a.C.
Crátero, Ptolomeu, Lisímaco e Antígono contra Pérdicas. Esta coalizão não pretendia a
partilha do Império, mas pôr um freio nas ações do quiliarca. Pérdicas, ao invadir o Egito, foi
vítima de uma revolta de seus próprios soldados. Will (1998, p. 315) afirma que o exército de
Pérdicas ofereceu a Ptolomeu os seus serviços, o que foi recusado pelo general, que possuía
talvez se deva a animosidade que poderia surgir de uma possível aceitação, por Ptolomeu, das
atribuições de Pérdicas. Crátero, por sua vez, teria perecido na Ásia Menor, em um confronto
com Eumenes, partidário de Pérdicas. Quanto a Antígono, nos fragmentos da História dos
Sucessores, reunidos por Fócio e atribuídos a Arriano, o general aparece no comando da frota
que dava apoio à expedição terrestre liderada por Antípatro e Crátero. Após a morte de
Pérdicas, Antípatro logo inicia os preparativos para uma reforma do Império, convocando um
novo encontro dos diádocos, que se reuniram em Triparadiso, no norte da Síria, em 321 a.C.
(ERRINGTON, 1970).
Ele [Antípatro] então fez uma nova divisão da Ásia, em parte confirmando a divisão
anterior e, em parte, fazendo alterações conforme as circunstâncias exigiam. O
Egito, a Líbia e a grande extensão de territórios para além dela, e todo o território
que tinha sido conquistado em direção ao oeste foram dados a Ptolomeu [...] a
Babilônia para Seleuco [...] Mais a Frígia, Licónia, Panfília, e Lícia, ficavam com
Antígono como antes [...] Ele [Antípatro] fez seu próprio filho, Cassandro,
comandante da cavalaria, enquanto Antígono recebeu o comando das forças que
tinham sido anteriormente submetidas a Pérdicas, juntamente com o cuidado e
custódia dos dois reis e, a seu pedido, foi lhe dada a tarefa de terminar a guerra
contra Eumenes. Antípatro, tendo assegurado a aprovação geral de tudo o que havia
sido acordado, voltou para casa [...] (Arrian, FGrH,49 156 F 9, 34-38).50
que o coloca numa posição confortável perante os demais diádocos, tendo sido nomeado
estratego das forças reais e estratego da Ásia com a incumbência de eliminar Eumenes. As
razões que levaram Antígono a galgar essa posição são controversos. Para nós, importa que,
em função dos poderes reunidos nas mãos de Antígono nesse momento, suas ações passam a
ser conjugadas a partir de sua visão política e militar, possibilitando ao general investir na
49
A sigla FGrH, se refere aos Fragmente der griechischen Historiker, uma coleção de fragmentos de
historiadores gregos reunidos pelo filólogo Felix Jacoby entre os anos de 1923 a 1958.
50
Durante essa passagem, selecionamos somente os trechos que envolvem os generais de Alexandre que iriam
protagonizar no processo político do período ao lado de Antígono. Mas, no fragmento atribuído a Arriano, o
autor detalha todas as divisões feitas durante o acordo, e os nomes dos beneficiados. Entre estes, está inclusive
iranianos, como o rei Poro.
90
perenidade do Império. Diante da morte de Antípatro, em 319 a.C., outra tempestade desabou
sobre a pretensa bonança da oikoumene. Antípatro, ignorando seu filho, Cassandro, nomeou
como seu sucessor Poliperconte, general macedônio que serviu tanto a Filipe quanto a
uma nova aliança, desta vez contra Poliperconte, que de início tentou obter o apoio das
póleis,52 mas sem êxito (ADAMS, 2010; BAYNHAM, 2001). A morte de Antípatro
por conquistar satrapias asiáticas, enquanto que o segundo ocupou a Fenícia. Nesse contexto,
pequeno Alexandre IV e a mãe deste, Roxana. Por sua parte, Arrideu se aliou a Cassandro,
de sua esposa, Eurídice. A atitude de Olímpia foi vista com desagrado pela população.
Poliperconte buscou uma aliança com Eumenes, que, em 317 a.C., conseguiu expulsar
Ptolomeu do território da Síria (WILL, 1998, p. 316). Nesse mesmo ano, Antígono entrou em
51
Depois do regresso das tropas de Alexandre para a Babilônia, Poliperconte foi enviado para a Macedônia junto
com Crátero. Enquanto Antípatro estava na Ásia, Poliperconte ficou na Macedônia em seu lugar como
representante da casa real.
52
Provavelmente Poliperconte buscou apoio nas cidades gregas, pois elas, após a morte de Antípatro, passavam
por guerras internas e locais, conflitos que Cassandro, com a ajuda de seus aliados, conseguiu controlar (FOX,
2011, p. 4-6).
91
confronto direto com Eumenes. Invadindo a Síria, ele forçou a fuga do rival para a Babilônia.
região que ficava a nordeste da Média. Conforme nos informa Sant’anna (2011, p. 82-84;
Eumenes, cujos familiares foram feitos cativos, os soldados decidiram entregar Eumenes a
Antígono, na expectativa de integrar as tropas deste. Eumenes, por sua vez, foi executado.
Antígono, após esse episódio, tornou-se enfim o mais poderoso dos diádocos. Apossando-se
das satrapias orientais, ele expulsa Seleuco da Babilônia e se torna, em 315 a.C., governante
de quase todo o território asiático deixado por Alexandre. Em detrimento dos demais
diádocos, fincou pé também na Europa, aliando-se a Poliperconte, que controlava ainda parte
Ao contrário de sua práxis política e militar na Ásia, Antígono empregou uma estratégia
diferente a fim de se impor sobre a porção ocidental do Império. Estabeleceu regras que
trouxe para a cena política, mais uma vez, o antigo discurso sobre a liberdade grega.54 Em 314
a.C., ao voltar do interior da Ásia para a Grécia insular e vendo-se confrontado pelos demais
diádocos, Antígono, fez sua famosa proclamação de Tiro (Diod. Sic., XIX, 61, 1-5), na qual
afirmou que as póleis deveriam ser livres, autônomas e isentas de guarnições. No mesmo
53
A principal fonte sobre esse embate entre Antígono e Eumenes se encontra no livro XIX escrito por Diodoro.
Também é possível encontrar informações em Plutarco na sua obra sobre o próprio Eumenes.
54
O discurso em torno da liberdade das cidades gregas foi um tema bem recorrente desde o período da pólis
clássica. Contudo, esse tema é reinserido de forma diferente neste momento político. O sentido de liberdade do
período da pólis clássica provém principalmente da autonomia da cidade grega perante qualquer interferência
externa. Já no período por nós analisado, essa liberdade estava muito mais ligada ao campo da representação da
legitimidade política do basileus helenístico que estava se delineando. Ser um bom governante, em parte,
significava não tratar os gregos como os súditos asiáticos. Essa temática é tão importante que dedicamos a ela
uma seção completa em nosso terceiro capítulo.
92
Alexandre IV, por isso Antígono autoproclamou-se epimeletes, guardião do príncipe, como
do ponto de vista, pode-se supor que essa declaração representasse apenas uma manobra
retórica, desprovida de força política. Mas é preciso lembrar aqui que, após Cassandro, o
general mais afetado pela proclamação foi o próprio Antígono, uma vez que as suas
possessões na Ásia Menor continham o maior número de póleis fora do território da Grécia.
Cassandro. Além disso, vale a pena lembrar que Antígono continuou fiel à sua política de
liberdade para a Grécia. Dessa forma, concluímos que o tema da liberdade das cidades gregas
foi bastante utilizado, pois respondia a uma questão real: o lugar a ser ocupado pelas póleis
dentro das monarquias em vias de formação (WILL, 1998; BILLOWS, 1990; BOSWORTH,
2002). A essa altura, Antígono já havia construído uma poderosa frota na Fenícia e
formalizado uma aliança com Rodes, dominando assim o Mediterrâneo Oriental. Dentro desse
cenário, no qual Antígono era, de forma inconteste, o protagonista, pois ditava os rumos do
que aconteceria com grande parte do território deixado por Alexandre, os demais diádocos
Desse modo, o período entre 315 a 311 a.C. foi marcado por diversas vitórias de
Antígono sobre seus companheiros, mas o general também sofreu derrotas, como para
Ptolomeu, que invadiu a Síria e derrotou Demétrio, numa batalha travada em Gaza, em 312
a.C. Seleuco, por sua vez, assegurou o controle da Babilônia e dos territórios extremo-
acordo com os rivais, que aceitaram a paz.55 O acordo foi realizado em troca de concessões de
55
Segundo Rostovtzeff (1967), Lisímaco, Cassandro e Ptolomeu traíram Seleuco, único que não foi incluído no
acordo de paz. Para o autor, provavelmente os diádocos ainda não estavam prontos para um confronto derradeiro
93
ambas as partes. Ptolomeu manteria o Egito, Lisímaco a Trácia, enquanto Cassandro seguiria
maioridade deste (WILL, 1984, p, 50). A paz foi uma grande vitória para Antígono, mesmo
que diplomática, pois manteve sua autoridade sobre a Ásia, com exceção dos territórios de
Seleuco. Por meio de cartas a diferentes cidades, Antígono tratou da paz estabelecida e
constatar em uma epístola destinada à cidade de Escépsis,57 na Ásia Menor, datada de 311
a.C.
[...] Nós nos ocupamos e [zelamos pela] liberdade [dos gregos], fazendo [por essa
razão] não pequenas concessões [...] Depois que os tratos com Cassandro e Lisímaco
foram concluídos [...] Ptolomeu enviou embaixadores até nós, pedindo que uma
trégua fosse feita com ele também e que ele fosse incluído no mesmo acordo. Vimos
que não era insignificante desistir de parte de uma ambição para a qual tínhamos
tido uma não pequena dificuldade e incorrido em muito gasto [...] No entanto,
porque pensávamos que, depois de um acordo ter sido alcançado com ele
[Ptolomeu], a questão referente à Poliperconte poderia ser resolvida com mais
rapidez, já que ninguém mais se aliaria a este [...] e, ainda mais, porque nós vimos
que vocês e nossos aliados estavam sobrecarregados com a campanha e as despesas,
consideramos ser o melhor ceder e fazer a trégua com ele [Ptolomeu] também [...]
Saibam então que a trégua foi estabelecida e que a paz foi feita. Escrevemos no
tratado que todos os gregos devem jurar se ajudar mutuamente a preservar sua
liberdade e autonomia [...] (OGIS,58 5, 1-36; WELLES, RC,59 n. 1).60
Essa carta, que foi inscrita em uma estela de mármore por ordem de Antígono, foi
encontrada no século XIX por aldeões que buscavam material de construção no sítio de
Escépsis. Somente em 1899 foi feita a sua leitura. Por meio desta inscrição, podemos ver que,
contra Antígono. Na nossa visão, o confronto derradeiro não era algo visualizado na época pelos generais e, se
ele chegou a ocorrer, as questões foram outras.
56
Diodoro também tratou sobre o acordo estabelecido entre os diádocos: “[...] Cassandro, Ptolomeu e Lisímaco
chegaram a um acordo com Antígono e fizeram um tratado. Assim, foi decidido que Cassandro seria general da
Europa até que Alexandre, o filho de Roxana, tivesse idade; que Lisímaco governaria a Trácia, enquanto
Ptolomeu governaria o Egito e as cidades adjacentes a ele na Líbia e na Arábia; que Antígono teria o primeiro
lugar em toda a Ásia; e que os gregos seriam autônomos” (Diod. Sic., XIX, 105, 1).
57
Escépsis ficava na região de Trôade, no noroeste da Anatólia – atual Turquia.
58
A sigla OGIS se refere à abreviação de Orientis Graeci Inscriptiones Selectae, que porta um conjunto de
inscrições compiladas por Wilhelm Dittenberg.
59
A sigla RC, consiste na abreviação do título da obra de Welles (1934), Royal Correspondece in the Hellenistic
period.
60
No final da carta, Antígono afirma ser importante discutir melhor sobre as vantagens desse tratado para a
cidade de Escépsis e diz que enviou um emissário para falar mais sobre o assunto. Esse emissário teria levado
consigo cópias do tratado de paz estabelecido entre os diádocos e do juramento dos mesmos (OGIS, 5, 68-72).
94
algumas concessões poderiam ser feitas à cidade. Além disso, no trecho citado acima, o
general relata que quando Ptolomeu o procurou para um acordo, ele aceitou, embora o acordo
não fosse vantajoso para ele, pois o conflito gerou muitas despesas para as forças antigônidas.
Antígono, a nosso ver, buscou demonstrar, por meio de artifícios retóricos, que ele somente
aceitou o trato para o bem da maioria, procurando desta forma reforçar sua imagem como
protetor das cidades gregas, ao mesmo tempo que se colocava como o mais forte dos
diádocos, mesmo sendo a paz, naquele momento, almejada por todos os lados envolvidos.
Para Cloché (1948), entre 323 e 301 a.C. Antígono vai redefinindo suas pretensões
sobre a oikoumene. O acordo de 311 a.C. seria um exemplo dessa redefinição, pois ao aceitar
aliados com governos independentes, abria mão de áreas que, na verdade, não lhe
Antígono de fato nunca buscou um domínio total sobre a oikoumene de Alexandre. Ele
possuía ambições, mas sua política se alinhava mais com a proposta da Liga de Corinto,
helenística. Os direitos de Alexandre IV, reafirmados em 311 a.C., não passavam de uma
ficção, pois, quando Cassandro o assassinou, por volta de 310 a.C., não houve protestos.61 Por
Império de Alexandre, que já era em si artificial, perderia em definitivo sua dinastia legítima.
Por sua vez, os diádocos teriam de encontrar um novo tipo de legitimação para o seu poder.
61
Alexandre III também deixou um filho considerado bastardo, com a oriental Barsina. Héracles, nascido em
327 a.C., foi assassinado em 309 a.C., por meio de uma conspiração entre Cassandro e Poliperconte (Diod. Sic.,
XX, 20-28). Esse episódio representou o fim de qualquer possibilidade, mesmo que remota, de um descendente
de Alexandre assumir o trono.
95
Alexandre – a associação com este no campo de batalha. Mas antes mesmo da morte de
Ptolomeu buscava dominar o Mediterrâneo Oriental, Antígono, para estabelecer seu domínio
sobre os territórios europeus, precisava dominar o Egeu. Entre ambos os domínios, porém,
havia uma zona de intercessão. Os últimos anos do século IV a.C. foram confusos, pois a
Grécia serviu como palco de intensas manobras. Um dos episódios mais importantes desse
período ocorreu em 306 a.C.: a derrota de Ptolomeu, em Chipre, para Demétrio, filho de
Antígono. Após essa vitória cipriota, Antígono foi declarado basileus por seu exército e
Demétrio, seu corregente. A basileia helenística assumia efetivamente sua feição. O papel de
Demétrio ao longo desse processo foi fundamental para as pretensões de seu pai. O basileus
buscava surgir como um lutador, um combatente. Dessa forma, a associação com Demétrio
foi de extrema importância para a afirmação da areté de Antígono que, em 321 a.C., já
Como vimos, a partir do acordo firmado em Triparadiso, foi possível a Antígono deter o
Mediterrâneo Oriental. Governando uma extensão territorial como essa e com os exércitos
rivais às portas, uma figura como Demétrio, reputado por sua maestria militar, era
militar, fizeram dele um apoio importante para a afirmação de Antígono. Demétrio era
recorrendo à terminologia de Burke (1994), que a imagem do Demétrio vitorioso foi um dos
componentes da fabricação da imagem régia manipulada por Antígono. Como afirma Burke
(1994, p. 25), fabricação se liga à ideia de construção de uma imagem real, algo que
96
imagem de Antígono foi fabricada, é necessário descobrir quem falava e o que falava sobre o
monarca.
Como dissemos, as fontes escritas trazem, em grande parte, uma visão pejorativa a
respeito de Antígono. Mas, por vezes, os mesmos autores que falam de um Antígono
Demétrio. Este, por seus feitos e, digamos, jovialidade, atraiu a atenção do autor grego. Por
uma proximidade entre pai e filho e, ao mesmo tempo, constatar o destaque dado pelo autor à
[...] Demétrio era mais baixo que seu pai, mas era de uma figura e beleza tão
extraordinárias e admiráveis, que nem escultor e nem pintor poderiam imitar a
semelhança: reunia ao mesmo tempo o festivo e o grave, o feroz e o belo, e com a
juventude e a ousadia se via mesclada uma brandura inimitável e uma régia
majestade heroica [...] (Plut., Vit. Demetr., II, 3).
Plutarco não esconde sua admiração por Demétrio. Sendo o mais jovem dos basileis e
campo de batalha, para auxiliar seu pai, no que contou com o apoio da fortuna. Testemunhos
de natureza epigráfica e numismática podem revelar mais sobre essa relação entre pai e filho
Por meio da compilação realizada por Welles (1934) e das inscrições selecionadas e
editadas por Dittenberger (1903) no Orientis Graeci, temos acesso a parte da correspondência
real referente ao governo de Antígono. Em um dos trechos de uma epístola inscrita pela
62
Sobre o estilo e intenções de Plutarco ao escrever as suas Vidas é interessante o trabalho Maria Aparecida de
Oliveira Silva (2014) intitulado Plutarco e Roma.
97
cidade de Escépsis,63 em 311 a.C., podemos observar o costume de se dedicar estátuas, cultos
[...] A fim de que Antígono possa ser honrado de uma maneira digna pelo o que foi
feito e de que o demos possa ver e dar graças pelas coisas boas que já recebeu, [fica
resolvido][...] fazer para ele [Antígono] um altar e o configurar com uma imagem
tão bem quanto possível; e haverá um sacrifício e um festival a cada ano em sua
honra, assim como foi anteriormente realizado; e coroá-lo com uma coroa de 100
[estáteres] de ouro [...] (OGIS, 6, 3-6).
Uma coroa de 50 estáteres também foi ofertada a Demétrio. Em Plutarco (Vit. Demetr.,
X, 2-3) e Pausânias (VI, 15, 7; IX) também há menções a estátuas e cultos dedicados a
Demétrio e seu pai. A assistência militar de Antígono às cidades gregas, no final do século IV
cultos em nome do general vitorioso, ao mesmo tempo que se submetiam ao seu protetorado
Demétrio, Atenas concedeu honrarias grandiosas a ambos, como nos reporta Diodoro (XX,
46, 1-3): coroas de ouro, altares de sacrifícios, imagens vestidas com os trajes de Atená, duas
tribos com os nomes de Antígono e Demétrio e um conjunto de bigas de ouro.64 Sabemos que
o culto ao general vitorioso, no território da Hélade, não era algo novo.65 Contudo,
concordando mais uma vez com Burke, não podemos nos limitar a uma visão ingênua acerca
da imagem do soberano; não podemos tampouco reproduzir a visão cínica, ignorando, por
alguns segmentos da pólis durante o século IV a.C. – ao historiador cabe adotar o meio termo
63
Essa carta constituiu a resposta à carta de Antígono que falava sobre os termos da paz firmados entre ele
Ptolomeu, Lisímaco e Cassandro em 311 a.C., já citada anteriormente.
64
Honrarias aos antigonidas só foram removidas por volta de 200 a.C. (BROGAN, 2003).
65
Após a Guerra do Peloponeso, concomitante com uma desestruturação do sistema políade, houve uma
proliferação desses tipos de cultos por toda a Hélade (ANDRÉ, 2009). Lembramos, ainda, que o próprio
processo de constituição da pólis teve por símbolo arquitetônico o hérôon.
98
diádocos a imitá-lo. Ptolomeu proclamou-se basileus apenas em 304 a.C.,66 após a tentativa
logo depois. Se a oikoumene ainda existia simbolicamente, agora ela deixara de existir até
mesmo nesse plano. Will (1998, p. 318) faz uma apreciação plausível sobre esse processo ao
dizer que “[...] a monarquia helenística, que de fato se iniciava em Triparadiso, entrava agora
no campo do direito [...]”. Está claro que se tratava de um direito não fixado, pois Antígono
visava ao domínio sobre a Macedônia, por isso pretendia usar a Grécia como uma de suas
bases de operação, já que não podia contar com os demais diádocos. Entre 305 e 304 a.C.,
Demétrio sitiou a cidade de Rodes, o principal empório do comércio egípcio. Esse sítio ficou
famoso devido ao seu significado. Apesar dos esforços de Demétrio e de ter obtido aí o
cidade.67 Esse evento também foi utilizado pelos rivais de Antígono para depreciar sua
imagem. Mas Antígono continuava com seu plano de obter o apoio das cidades gregas. Por
meio de uma inscrição de 302 a.C., encontrada em Epidauro, sabemos que Demétrio
conseguiu fundar uma nova Liga Helênica, que buscava restaurar a Liga de Corinto
estabelecida por Filipe II anos antes. A essa altura, a ameaça sobre a Macedônia era tão forte
que os demais diádocos se unem contra os antigônidas, lançando suas tropas sobre a Ásia
Menor.
66
Acreditamos que, assim como Antígono, Ptolomeu utilizou uma vitória militar para ser proclamado rei.
67
A famosa escultura conhecida como a Vitória de Samotrácia durante muito tempo foi associada como uma
homenagem referente a uma vitória naval de Demétrio. Contudo, apesar de ainda existirem controvérsias entre
os estudiosos sobre a real origem da escultura, o que podemos afirmar é que esta foi erigida em um período bem
posterior ao de Demétrio. Além disso, em parte de sua inscrição, pode ser constatado que ela foi esculpida em
homenagem a uma vitória naval da própria cidade de Rodes (NICI, 2015, p. 61-62).
99
No verão de 301 a.C., na Frígia, Antígono foi derrotado e morto, em Ipso, com mais de
oitenta anos.68 Estigmatizado por seus rivais, que o colocavam como severo, cruel e arrogante,
Antígono, no que se refere a esses atributos, não diferia dos demais generais macedônios. A
questão é que o contexto no qual ele e os outros viviam foi marcado por redefinições
profundas, quando decisões complexas teriam de ser tomadas. Os diversos conflitos que
uma oikoumene imensa, mas com estruturas frágeis. Ao longo do período entre 323 e 301
a.C., houve uma reestruturação do poder, cujo principal fruto foi a construção da basileia
helenística. Mesmo que um dos principais protagonistas desse processo tivesse morrido em
Ipso, suas ações colaboraram de forma ímpar para o surgimento dessa nova instituição
política. Quanto ao seu filho, Demétrio, este continuaria em cena. Ao contrário daqueles que
Mundo Helenístico, já desenhado em suas grandes linhas, podemos observar três grandes
monarquias estabelecidas: a egípcia dos Lágida; a asiática dos Selêucida; e a macedônia, dos
Antigônida.
68
Uma nova repartição foi feita, mas não durou muito. O horizonte da maior parte dos diádocos era a
Macedônia, o que levou a novos conflitos. Assim, em 294 a.C. Demétrio toma a Macedônia e se proclamara rei.
100
CAPÍTULO II
que a arché,69 reunida nas mãos de um único homem, pode assumir formas tão diversas que
seria impossível encontrar denominadores comuns entre elas. Um exame mais detalhado, no
entanto, mostra que, mesmo assumindo formas variadas, a realeza mantém constantes
coercitiva, soberania sobre a população e o território; pode ser auxiliado por uma assembleia
tradição e defender o território; por último, o monarca deve dar e receber presentes, promover
refeições coletivas, e realizar ritos e sacrifícios ligados ao culto comum. Por outro lado, ao
forma de monarquia, desde o início, encontra-se marcada por um hibridismo, fruto da fusão
pela qual estava estreitamente ligada à ideia do poder pessoal do monarca. Embora contivesse
também elementos simbólicos ligados às formas antigas das monarquias gregas, alguns
remontando inclusive à basileia homérica, chamamos a atenção para o fato de que, ao invés
de considerarmos a monarquia helenística como uma realidade helênica, supomos que esta
basileia foi construída na fronteira entre três espaços: a Macedônia, o Oriente e a Hélade.
69
Arché se refere aqui a poder.
101
na fabricação dessa monarquia. Neste capítulo, buscamos analisar, de modo geral, a basileia e
a figura do basileus, assim como as formas de poder exercidas por um só homem no território
grego, mais especificamente a tirania, que teve uma adesão forte ao poder pessoal. Versamos
também sobre as concepções que surgiram em torno da monarquia a partir do século IV a.C.,
desde suas origens até a sua fusão com elementos orientais sob o governo Alexandre, o que
da cultura helênica, foi o principal modelo no qual a basileia helenística se apoiou para sua
um monarca ligado ao sagrado, associado ao poder militar e ordenador do cosmos. Por meio
acreditamos ser possível estabelecer até que ponto a basileia em construção no século IV a.C.
conservou o nexo com os modelos monárquicos que a antecederam e em que medida inovou
respectivamente. Em geral, quando nos referimos à História da Grécia, esses vocábulos são
logo associados ao chamado Período Homérico.70 Entretanto, com base em uma análise mais
70
O período que vai de 1200 a 800 a.C. também pode ser chamado de Idade das Trevas. O termo não deve ser
entendido de forma pejorativa, mas, devido ao desaparecimento da escrita, foi como se a sociedade desse período
se tornasse para nós mais inacessível do que a micênica no que concerne às informações. Optamos por utilizar
período homérico pelo fato da maior parte das informações que temos sobre este contexto provir das obras Ilíada
e Odisseia, atribuídas a Homero.
102
complexos. Apenas para termos uma ideia, mesmo tendo permanecido, no período homérico,
ligado a um novo tipo de monarquia, o vocábulo basileus ainda gera muitas discussões,71
do período micênico e a do período homérico. As opiniões dos historiadores vão desde uma
características do poder do monarca, até uma visão segundo a qual, na realidade, o termo não
se referia somente a pessoas dotadas de poderes régios, mas também a magistrados ou líderes
DICKINSON, 2006, p. 120; DREWS, 1983, p. 129-131). Além disso, nos poemas homéricos,
além do termo ἄναζ observamos outros vocábulos que podem se ligar ao poder régio, como
κοραίνος. Segundo Beekes (2010, p. 203), a palavra basileus é mais recente do que korainos e
ánax, tendo provavelmente uma origem pré-grega, sem ser, no entanto, uma palavra
proveniente de outro idioma, mas um vocábulo labiovelar, bem conhecido na língua grega.
Para além destas questões relacionadas ao poder do basileus homérico e a sua figura,72 o
importante para nós é o uso que os gregos e, em certa medida, os macedônios fizeram da
pelos antigos ao se falar da basileia como forma de governo ideal. A monarquia retratada nas
obras homéricas tornou-se um lugar de memória para os gregos do período clássico e da fase
inicial do período helenístico. De acordo com García (2002, p. 72-77), dois modelos distintos
71
O termo basileus se ligava a antigas chefias locais da sociedade micênica. O termo seria o equivalente ao pa-
si-re-u, um funcionário local ligado à administração que representava o ánax (monarca) micênico
(CRIELAARD, 2007, p. 83).
72
Para uma visão mais abalizada sobre a figura régia no período homérico e discussões sobre as atribuições mais
específicas de cada termo direcionado aos líderes políticos deste período, destacamos o trabalho de Yamagata
(1997, p. 1-14) e o livro organizado por Morris e Powell (1997), que abarcam um amplo debate sobre diversos
aspectos do mundo homérico.
103
incorporado por Zeus; e outro imperfeito e humano, cujo titular seria o basileus.73 Helenos e
macedônios ancoraram a origem de suas monarquias nos mitos descritos nos poemas
homéricos.
tinham por objetivo fixar uma tradição oral que, por sua vez, contribuía para a preservação da
ordem aristocrática.74 Ao mesmo tempo que preservavam determinada ordem social, a Ilíada
helenos. Como a basileia helênica, a partir de dado momento, começou a fazer parte da
memória, do patrimônio simbólico e do imaginário dos macedônios, o que, por sua vez,
De acordo com Theml (1993, p. 32-34), podem ser encontradas, na Ilíada e na Odisseia,
três modelos de monarquias. O primeiro deles é constituído por uma basileia heroica
poética. O segundo se refere a uma realeza heroico/guerreira com aspectos sagrados, cujos
dados foram comprovados pela cultura material. Por último, há uma magistratura real
73
Outros autores que discutem a questão de uma realeza divina e uma realeza mortal presentes nos escritos de
Homero são CARLIER (2006, p. 101-110) e PALAIMA (2006, p. 53-71).
74
Através da narrativa mítica, que seria uma forma de interpretação do mundo, encontramos uma interseção
entre o divino/social/natural. O mito daria conta da origem, possuindo um caráter teleológico. A base dos
escritos míticos era composta pelos grandes feitos que marcavam a vida dos heróis. Por detrás destas narrativas
podemos entrever uma genealogia e uma geografia. A genealogia é um instrumento que dá legitimidade para a
elite governar, pois a família, no sentido de génos, se associa a um herói mítico fundador no mundo da pólis
nascente. Já a geografia fala de onde esse herói parte e aonde ele chega. O tempo dentro da narrativa é respeitado
de forma que esses dois elementos sejam respeitados. A partir da genealogia e da geografia, o poeta tinha a
liberdade para escrever (ANDRÉ, 2012, p. 102).
104
emergência da pólis (séc. VIII a.C.). Nos três tipos de realeza, encontramos as mesmas
transgressão religiosa pode provocar conflitos e suscitar reparações para que a realeza se
perpetue. Nos poemas, são exemplos de basileis que possuem uma conduta piedosa e
comedida Nestor, Menelau e Odisseu, ao passo que outros, em determinados momentos, são
ancestrais (areté) é um elemento de suma importância nos poemas homéricos, sendo uma
característica de diferenciação social pertencente somente aos áristoi. A relação entre areté e
soberano é um aspecto importante na concepção da monarquia helênica, por isso ganha força
mais uma vez no decorrer do século IV a.C., quando pensadores como Aristóteles, Xenofonte
e Platão, por exemplo, refletiram sobre o governante ideal. Quando olhamos para a
De acordo com Carlier (2006, p. 105) e Theml (1995, p. 38), a basileia homérica
apresenta como condição básica para o exercício do poder político que o basileus seja um dos
áristoi. Potencialmente, qualquer um dos nobres estava apto a exercer a realeza e, por esta
razão, era membro inato do conselho e da assembleia. Os requisitos básicos para tornar-se um
75
Áristoi é o plural do termo ἄριστος, que é um superlativo do vocábuloάγαθός, e significa aquele que é
excelente, o mais nobre, o melhor em algo, perfeito. No que se refere às instituições, o conselho, Boulé,
representava, juntamente com o rei, uma instituição soberana. A assembleia, nesse período, mesmo sendo
convocada em momentos decisivos, não possuía poder de decisões de caráter global.
76
Hýbris é um conceito que traduz tudo que passa da medida, podendo significar desafio, crime do excesso e do
ultraje. Se refere ao comportamento de provocação aos deuses e à ordem estabelecida.
105
virilidade, sabedoria, clemência e justiça. Todos estes atributos eram partilhados pelos demais
membros da aristocracia. Muitos destes atributos estiveram associados aos basileis macedônio
e helenístico. Era devido ao status de áristoi, incluindo honra (timé) e distinção (géras), que o
basileus exercia autoridade sobre a sua comunidade. A função real possibilitava o gozo de
questões em aberto.
Na Política (Πολιτικά),77 Aristóteles elabora aquilo que seria considerado mais tarde
como o primeiro tratado sobre a natureza, as funções, as divisões do Estado e as várias formas
sobre outro homem e esta relação poderia se expressar de diversas formas: mediante o
exercício do poder paterno, do poder despótico e do poder político – sendo este último
sobre a pluralidade desta forma de governo. O filósofo busca definir de modo objetivo os
É fácil compreender que a realeza é múltipla e que nem sempre ela apresenta a
mesma forma [...] Eis [...], pois, uma primeira espécie de realeza: um generalato
vitalício. Ela é hereditária ou eletiva. Uma segunda espécie de realeza se encontra
entre alguns povos bárbaros. Ela tem aproximadamente os mesmos poderes que a
tirania, mas é legítima e hereditária [...] Houve antigamente entre os helenos outra
espécie de basileis que se chamavam oesinetas. Era por assim dizer uma tirania
eletiva, diferindo da dos bárbaros, não pelo fato de não ser legal, mas por ser
hereditária [...] Uma quarta espécie de monarquia é aquela que existia nos tempos
heroicos [período homérico], fundada na lei, no consentimento dos súditos, e, além
disso, hereditária. Os primeiros benfeitores dos povos pela invenção das artes, pelo
valor guerreiro ou por terem reunido os cidadãos e lhes terem conquistado terras
foram nomeados basileis pelo livre consentimento dos seus súditos, e transmitiram a
realeza aos seus filhos. Eles tinham o comando supremo durante a guerra, e
77
Termo derivado do adjetivo de pólis (politikós). Significa tudo aquilo que se refere à cidade, logo ao cidadão.
78
Devemos acentuar que o poder político, como colocado por Aristóteles, somente pode ser exercido nas formas
corretas de governo, o que ele chama de bom governo, já que, nas formas corrompidas, o governante age em
interesse próprio.
106
dispunham de tudo o que se referia ao culto, com exceção das funções sacerdotais.
Além disso, julgavam as causas, uns prestando o juramento, outros sendo dele
dispensados. A prestação do juramento se fazia erguendo o cetro (Aristoteles,
Politica, III, IX, §2-6).
No trecho acima, Aristóteles expõe a basileia homérica como uma realeza de caráter
hereditário. Mesmo que encontremos indícios de que esta monarquia fosse hereditária, os
critérios de sucessão não parecem muito claros na Ilíada e na Odisseia. Para Finkelberg
(2006, p. 65), ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, a tradição grega não previa
a sucessão real entre pai e filho. O cargo régio podia ser transmitido a qualquer outro
integrante da dinastia que não o filho primogênito, ou mesmo através do casamento com uma
mulher de estirpe real.79 Foi assim que Belerofonte tornou-se rei ao casar com Anticleia, filha
do cargo régio de pai para filho é aquele envolvendo Odisseu, Telêmaco e os pretendentes.
Com Odisseu afastado por anos de Ítaca, os nobres da região disputavam a mão de Penélope,
esposa de Odisseu, ignorando os direitos do filho deste, Telêmaco. Finkelberg (2006, p. 69-
72) enfatiza a situação obscura da sucessão em Ítaca, destacando que Odisseu tornou-se rei
com o pai, Laertes, ainda em vido e que tanto Telêmaco quanto o próprio Laertes foram
ignorados como possíveis sucessores no comando da ilha. Penélope tornou-se, nesse caso, o
79
O mais importante para sucessão parece ter sido a linhagem, principalmente no texto da Odisseia. Para o
exercício do poder político, era preciso a existência de um elo sagrado com a família real. Os heróis que
exerciam a função real se apresentavam pelo nome, pelo nome de seu pai, pelo nome da terra de seus ancestrais e
pelo nome de sua cidade (Homerus, Odyssea, VIII, 550; XIX, 523).
107
Para Theml (1993, p. 42-44), a questão da sucessão deflagrada pela ausência do rei se
deve ao fato de que Telêmaco não havia realizado ainda os ritos de passagem necessários para
assumir a função régia. Primeiramente, o filho de Odisseu não possuía a idade adequada para
a função. Em segundo lugar, não tendo sido iniciado pelo pai, desconhecia as regras da
tradição. Por meio do debate entre Telêmaco e os pretendentes na assembleia, Theml conclui
que Homero aponta três tendências possíveis sobre a sucessão do poder real: 1) o poder real
qualquer um dos pretendentes estaria apto a ser rei, sendo a disputa de poder entre iguais uma
macedônia não tinha definidos, de modo claro, os seus critérios de sucessão. O elemento
conflitos entre membros desta dinastia, como é o caso do próprio Filipe II. Após a morte de
Alexandre, a questão ressurge uma vez mais, pois, quando o filho de Roxana é morto, pondo
homérica, como dissemos, funcionou para os gregos da época posterior sobretudo como um
80
Sobre a ideia de que o poder real estabelece ligações com o sagrado como forma de legitimação do poder do
génos, torna-se pertinente a imagem do cetro, símbolo de poder associado à figura do basileus homérico. Nos
poemas, os basileis, tanto Agamêmnon como Odisseu, possuem esse artefato simbólico que tem sua própria
explicação mítica (Hom., Il., II, 94-109).
108
memória.
Segundo Le Goff (1996), os lugares de memória são o que resta e o que se perpetua de
um tempo histórico para o outro, transmitindo ritos e práticas a uma sociedade que necessita
desses lugares para reelaborar a sua vida cotidiana, em especial nos momentos de transição,
como na Grécia Arcaica, que se aproveita do retorno da escrita para cristalizar nos poemas
transmissão das origens dessa sociedade, que se apropriou de elementos do período histórico
ao qual as epopeias se reportavam para organizar o seu passado. Como argumenta Nora
(1993, p. 13):
Com base no trecho acima, podemos inferir que o lugar de memória seria o registro e
aquilo que o transcende, o sentido simbólico inscrito no próprio registro. Para Nora (1993, p.
14-15), esses lugares seriam os espaços onde a memória se fixa, servindo como uma nova
forma de apreender a memória que não nos é natural, visto que não vivemos mais o que eles
representam, mas que são apropriados pela história como fonte. São, portanto, locais materiais
enraizou foi possível a criação de uma unidade para as populações gregas desde a época
comunidades políticas que compunham a Hélade, inclusive se mantendo como uma espécie de
governo avesso aos gregos das póleis. Nesse ponto, nos voltamos uma vez mais para os
recente em comparação a outros que podiam denotar a dignidade régia no mundo grego.
Assim, quando pesquisamos sobre os dois termos – basileus e basileia –, em obras escritas do
final do século VI a.C. em diante, verificamos que eles são inicialmente empregados para
definir o governo exercido pelo Grande Rei (ὁ μέγας βασιλεύς), como podemos constatar ao
longo das Histórias, de Heródoto e em Ésquilo (Persae, 25). Na Suda, compilação bizantina
datada do século X d.C. que reúne diversos fragmentos de obras da Antiguidade, temos a
seguinte definição para o termo basileia: “Basileia: [...] a população governada por um
basileus; como [os] persas, indianos, árabes” (Suidae, Beta 146). Beekes (2010, p. 203), na
discussão etimológica que faz do termo basileus, afirma que este se aplica à persona do rei,
mas, em suas palavras: “[...] especialmente o rei persa”. Dessa maneira, vemos que o termo
consideradas bábaras pelos membros das póleis, como foi o caso do reino da Macedônia. Essa
monarca, exerceu uma influência muito maior sobre a constituição da basileia helenística do
concentrava no poder e habilidade próprias do rei, como sua competência militar, política e
administrativa. Além disso, nesse tipo de governo era de suma importância estar em contato
direto com o monarca, como se dele emanasse toda fonte de poder daquele governo. Filipe II
110
foi uma persona que reforçou as características do poder pessoal da basileia macedônia.
Como veremos mais adiante, por meio de instrumentos militares e simbólicos, esse monarca
cada vez mais reuniu em torno de si uma supremacia, que, pela tradição do nomos macedônio,
e consequentemente do monarca helenístico, passou cada vez mais a ter sua fonte no próprio
soberano, que possuía como principal alicerce suas habilidades, principalmente as militares.
Essa ruptura com um território específico foi ainda mais profunda com Alexandre.
aderir a algumas tradições locais para facilitar a identificação dos súditos com sua pessoa.
assim como parte da titulatura faraônica, por isso, já no final de seu reinado, se fazia
representar nas moedas cunhadas no Oriente por meio de uma única inscrição – Basileus
Sant’Anna e Peixoto (2016, p. 270), para que os primeiros basileis helenísticos pudessem
afirmar o seu poder nos territórios sob sua tutela, tiveram de mesclar práticas que seguiam os
padrões da realeza exercida por Alexandre, assim como se apropriar de tradições monárquicas
orientais para poderem legitimar a sua autoridade, ao mesmo tempo que atendiam às
expectativas das elites locais. A monarquia helenística, portanto, vai se situar num espaço
fronteiriço que possui razoável complexidade. Regida por princípios ligados à natureza da
realeza macedônia e das realezas orientais, essa monarquia ainda teve de buscar recursos em
em que esta teve de lidar com as póleis e quando os monarcas precisaram se impor como
conquistadores estrangeiros por meio do princípio da doriktetos chora, isto é, pelo poder da
lança.
111
Feitas estas ponderações iniciais acerca das acepções de basileia e de basileus, importa
agora tratar de outra modalidade de poder pessoal que influenciou as concepções em torno da
basileia: a tirania.
‘Tyrannís’ e ‘basileia’
Examinando os textos que os gregos legaram, constatamos que a basileia homérica foi
positivada como símbolo de uma arché pessoal quase perfeita. Contudo, após a desagregação
da basileia, que deu lugar à pólis arcaica no território da Hélade, constituído doravante pelas
póleis, toda monarquia que não fosse aquela dos tempos heroicos, encravada portanto num
passado longínquo, passou a ser vista com reservas, sobretudo no decorrer do século V a.C.,
processo de estigmatização.
Na obra de Heródoto, são recolhidos pela primeira vez argumentos explícitos contra e a
[...] Sou partidário de que um só homem não chegue a contar com um poder
absoluto sobre nós, pois isso não é agradável nem correto [...] De fato, como a
monarquia poderia ser algo certo, quando, sem ter que prestar contas, se está
permitido [ao monarca] fazer o que se quer?.
[...] como [...] obtivemos a liberdade? Quem a nos deu? Acaso foi um regime
democrático? Talvez, uma oligarquia? Ou foi um monarca? Como nós conseguimos
a liberdade graças a um só homem, sou, em definitivo, da opinião de que
mantenhamos tal regime [monarquia] [...] [e] não anulemos as leis de nossos
antepassados, pois não teríamos nenhum proveito disso. (Herodotus, III, 81-82)
No trecho acima, o autor se vale da imagem dos persas para associar as formas de poder
monarquia e escravidão se assemelhariam, tendo sido as Guerras Greco-Pérsicas uma luta dos
helenos, sobretudo dos atenienses, por sua liberdade. Para Heródoto, o problema residia no
sistema de governo, não no homem, que, por melhor que fosse, poderia ser corrompido, pois
112
esse tipo de regime teria como marcas principais a inveja e a soberba. A visão de Heródoto é
típica do indivíduo pertencente ao mundo políade, que enxergava no poder pessoal uma
ameaça à pólis.
governa a si mesma. Na chamada pólis arcaica (séculos VIII-V a.C.), a figura dos basileis foi
suprimida, não havendo mais súditos e sim cidadãos, que passaram a ser os responsáveis pela
solução dos problemas coletivos – os cidadãos representam, nesse contexto, a própria unidade
política (ANDRÉ, 2009, p. 27). Para autores como Mossé (1997, p. 57), a comunidade
território que chamamos de Hélade, nos escapam. Sabemos, no entanto, que, na época arcaica,
Um dos casos emblemáticos é o de Atenas no século VII a.C., onde temos notícia de uma
tentativa de golpe por parte de Cílon, consequência de um conflito social intenso que, mesmo
diante de um golpe abortado, estava longe de ser resolvido (FINLEY, 1988; MOSSÉ, 1985).
Aqui, nos deparamos mais uma vez com uma experiência de poder pessoal – a tirania
(τυραννίς).
Em seu artigo de 1972, intitulado The First Tyrants in Greece, Robert Drews fornece,
geral sobre esses homens chamados de tiranos, que tanto estimularam o imaginário político na
Grécia antiga. Quando abordamos o tema, uma das principais fontes das quais dispomos é a já
mencionada Política, de Aristóteles, que influenciou em grande medida a visão que hoje se
tem acerca desta forma de governo. E aí reside, mais uma vez, um problema para o estudo da
81
É necessário ter a cautela, todavia, de não nos iludirmos com a imagem da pólis perfeita e harmônica.
Sabemos que não só no período arcaico, mas também durante o chamado período clássico, os conflitos sociais
eram constantes, sobretudo entre ricos e pobres.
113
permaneceu, por muito tempo, camuflada e estigmatizada pelo olhar de autores pertencentes a
contextos políticos posteriores, como Heródoto, Platão e Aristóteles.82 A ela, termos como
ilegalidade, violência, traição e usurpação permaneceram por muito tempo associados, por
isso foi considerada por muitos a pior dentre todas as formas de governo. No trecho abaixo,
extraído da obra de Platão, República (Πολιτέια), fica nítida a imagem da tyrannís como a
Não será difícil saberes. Aquelas a que me refiro têm nome [formas de governo], a
saber: a constituição, tão elogiada por muita gente, de Creta, e da Lacedemônia; a
segunda, é também elogiada em segundo lugar, a chamada oligarquia, que é um
estado repleto de males sem conta; a seguir vem aquela que lhe é oposta, a
democracia; e a altaneira tirania, antagônica a todas estas, que é a última das
enfermidades do Estado [...] (Plato, Respublica, VIII, 544a).83
O historiador, ao explorar os dados contidos nas obras produzidas pelos autores dos
séculos V e IV a.C., deve tomar cuidado para não replicar as representações contidas nesses
escritos da maior parte destes autores visões construídas sob a ótica ateniense de soberania da
que foram concebidos, uma luta contra um grupo aristocrático que busca o poder, uma
que explique a passagem da aristocracia para governos democráticos ou oligárquicos à luz das
fontes existentes. Tendo surgido em função das circunstâncias históricas, as tiranias arcaicas
foram resultado de conflitos civis que levaram à instauração de um governo pessoal, sem
82
A recorrência a estes autores se deve, em parte, ao fato de as documentações referentes a uma reflexão sobre o
poder político, incluindo as formas de poder pessoal, serem provenientes de períodos posteriores ao arcaico.
83
Todas essas formas de governo não seriam ideais para Platão, por isso estavam fadadas ao fracasso. A visão
pessimista de Platão, principalmente sobre a democracia e a tirania, deve-se a situação política da Hélade,
sobretudo de Atenas, no final do século V a.C. Após assistir a Tirania dos Trinta, o filósofo viu um retorno da
democracia que já não tinha grandes correlações com o período anterior a Guerra do Peloponeso.
114
conflitos civis nas póleis, foram desencadeados a partir do fim do século VII a.C.,
principalmente devido à concentração de terras nas mãos da aristocracia, o que gerou uma
crise agrária que acabou por opor as massas camponesas endividadas e reduzidas à mais atroz
miséria contra aqueles que detinham simultaneamente a terra e o poder político. Ao mesmo
tempo, os camponeses, devido aos aperfeiçoamentos técnicos que primeiro atingiram a arte da
guerra,84 são convocados com frequência para combater por uma terra que estava cada vez
mais em risco de lhes escapar. Assim, tudo concorria para abalar o poder da antiga
aristocracia dos génè, de maneira que a segunda metade do século VII a.C. e as primeiras
da Hélade. A crise não se passa da mesma forma em todo o território helênico, mas pode ser
percebida por toda parte, gerando duas consequências da maior importância: a substituição de
um direito consuetudinário do qual apenas os chefes dos génès eram conhecedores por uma
lei escrita; e o alargamento do corpo cívico, com os hoplitas formando a assembleia ao lado
do conselho aristocrático (MOSSÉ, 1985, p. 12). Nesse contexto, surge a figura do týrannos,
governo de Argos no final do século VIII a.C. e que pode ser qualificado indistintamente
como basileus ou como týrannos, situando-se assim entre a tradição homérica e a sociedade
arcaica (SUÁREZ, 2007, p. 133). Para Aristóteles (Pol., VIII, VIII, §3-4), Fídon é o exemplo
de como o poder régio pode favorecer o acesso à tirania.85 A figura de Fídon se relaciona com
84
A antiga cavalaria aristocrática e os carros de guerra do período homérico cedem lugar à infantaria pesada dos
hoplitas.
85
Aristóteles cita outros nomes que se igualavam ao caso de Fídon: Panécio em Leoncium, Cipsele em Corinto,
Pisístrato em Atenas e Dionísio, em Siracusa. O estagirita ainda se utiliza do termo demagogo para definir esses
homens antes de assumirem a tirania, outro conceito anacrônico para o período arcaico.
115
mas a tradição contrária à atuação dos tiranos rotulou as ações de Fídon, assim como as dos
demais tiranos, como violentas. A questão não é definir a tirania como uma instituição que se
fundamenta ou não na violência, mas sim compreender que, ao longo de boa parte da história
violência, mesmo que um dos principais recursos que os áristoi, assim como o basileus,
empregavam fosse a força bélica. Como assinalamos, um dos atributos do monarca era a
primazia militar. Nesse sentido, desde o período micênico até a basileia helenística o basileus
sempre foi o líder militar supremo. Buscar associar a imagem dos tiranos à violência
condição social do tirano no período arcaico – assim como o basileus homérico, ele era um
A passagem da pólis arcaica para a clássica, como o caso ateniense ilustra bem,
consistiu na transferência progressiva do poder político das mãos da aristocracia para o corpo
políticos e culturais que ligavam o tirano e a aristocracia. Além disso, é necessário perceber
que a própria aristocracia era, em si, fragmentada, pois por mais que os tiranos buscassem
apoio no demos, havia uma parte da aristocracia, mesmo que minoritária, a eles ligada. De
acordo com Suárez (2007, p. 133), mesmo que o tirano se opusesse aos privilégios de parte da
86
Dentre as mudanças durante o período arcaico que levaram às condições de aparecimento da pólis temos, por
exemplo: a ágora como centro da vida pública; o retorno de um alfabeto e uma escrita fonética, que permitiu a
escrita das leis; adoção de cerimônias cívicas, com construção de templos comuns para toda a sociedade;
sinecismo, agrupamento de aldeias que permitiram formar as póleis; publicação de leis, para que os cidadãos
tivessem seus direitos resguardados; afirmação da família nuclear, que levou a uma valorização do demos;
surgimento da moeda, com valor mais político do que econômico; incremento da agricultura; e, por último, um
elemento fundamental: a falange hoplítica (FINLEY, s/d; MOSSÉ, 1985; AUSTIN; VIDAL-NAQUET, 1986).
Todo aquele que possuísse a panóplia poderia integrar essa falange e não havia hierarquia em seu interior, fator
que leva ainda mais a um rompimento do poder da aristocracia, pois permitia que indivíduos comuns se
tornassem hoplitas, que eram associados ao furor bélico do combate heroico.
116
intervindo, por exemplo, nos santuários pan-helênicos. Mesmo em conflito com a aristocracia,
o tirano pretendia conservar suas raízes aristocráticas, além de afirmar sua solidariedade para
[...] A realeza tem certa relação com a aristocracia, e a tirania é uma combinação da
oligarquia e da democracia levadas ao último grau. Eis por que ela é para os súditos
o mais funesto dos sistemas, porque se compõe de dois governos, reunindo os vícios
e desvios de ambos.
Causas diametralmente opostas dão origem a cada uma dessas duas monarquias. A
basileia foi estabelecida para preservar a classe abastada dos atentados da multidão,
sendo nesta classe nomeado basileus o homem mais eminente pela sua virtude e pela
nobreza das suas ações, ou o que pertença a uma família reconhecidamente
possuidora desses títulos de glória. O tirano, ao contrário, surge do seio do povo e da
multidão: opõe-se aos homens poderosos para que o povo nada possa sofrer das suas
violências [...] (Pol., VIII, VIII, §1-2).
definir os regimes pessoais segundo sua base social. Martín (2014, p. 72-73) assinala a
importância das relações pessoais na instauração das tiranias arcaicas, tais como as estratégias
Pisístrato, que, de início, se casou com Timonasa a fim de obter o apoio de importantes
famílias argivas. Em seguida, iniciou uma sólida amizade com Lígdamis que se mostrou bem
proveitosa para ambos os lados. Lígdamis era membro da oligarquia de Naxos e, em 546 a.C.,
social em Naxos devido à concentração de riquezas nas mãos da oligarquia e contando com o
tirano.
117
Por meio do exemplo de Pisístrato, percebemos como as relações pessoais poderiam ser
relevantes. Contudo, essas relações acabam por serem menosprezadas em alguns estudos
acerca da tirania, que situam esta forma de governo dentro do campo exclusivo da violência.
aristocráticas para afirmar seu poder em momentos de conflito. Dessa forma, os limites entre
basileus e tirano não são muito claros. A definição de um governante como tirano se
fundamenta mais no apoio do demos do que nas ações que implicavam a ruptura com a
conotações positivas ou negativas, tendo sido sua representação como governo violento e
Arquíloco de Paros teria sido o primeiro a usar a palavra τυραννίς com o sentido de
poder pessoal.88 Segundo Ferreira (1992, p. 133), na segunda metade do século V a.C. os
termos τύραννος e τυραννίς ainda são empregados com o sentido de “monarca”, “soberano”,
conhecida com o título de Édipo Rei, mas cujo título em grego é Οιδίπους Τύραννος.
Contudo, pouco tempo depois o vocábulo tirania parece ter adquirido uma conotação
negativa, como na obra Prometeu Acorrentado, de Ésquilo (vv. 306-329). De qualquer modo,
ambos os vocábulos adquirem uma conotação realmente pejorativa apenas a partir do governo
87
De acordo a historiografia, um dos fatores que definem a tirania arcaica é o protagonismo do demos como
força política ao lado do tirano. Esta visão se dá pelas reformas ousadas feitas durante o exercício do poder
desses governantes. Como exemplo emblemático disso, mais uma vez nos referimos a Psístrato que, em 561
a.C., assume o poder em Atenas. Em meio a uma profunda crise social e econômica, esse governante
empreendeu uma série de reformas: criou um conjunto de juízes itinerantes para que a lei pudesse ser exercida de
forma mais ágil; realizou uma série de construções, empregando um grande contingente de pessoas que não
possuíam condições de sobreviver e, ao mesmo tempo, utilizando tais obras como símbolos de poder para
enaltecer seu nome; por fim, esfacelou o poder do grupo da aristocracia que lhe era rival, confiscando bens e
redistribuindo ao demos, exilando e até mesmo executando. Além disso, os tiranos se utilizavam da força de
membros do demos para constituir exércitos de mercenários. Talvez por esses motivos Aristóteles tenha
argumentado que o tirano é proveniente da multidão e, portanto, que governasse em prol dela. Aristóteles
chamou Pisístrato de δνμοτικώτατος, devido o apoio que recebeu do demos. Mas a questão é que a própria
aristocracia era fragmentada, por isso buscar o apoio da população era apenas uma forma diferente de se
enxergar um caminho para um projeto político que, ao fim, era comandado ainda pela aristocracia. A vitória de
Pisístrato teve lugar no campo de lutas entre as grandes famílias, inclusive a dos alcmeônidas, com a qual
manteve relações de aliança e rivalidade alternadamente.
88
Poeta lírico que viveu no século VII a.C.
118
Martín (2014, p. 72) quando afirma que não é possível sustentar qualificativos tais como
usurpador ou traidor para Cilón nem taxar o governo de Pisístrato como inconstitucional e
violento, por exemplo. Muito menos temos argumentos suficientes para afirmar que as
governo de Cípselo em Corinto. A tirania, no período arcaico, foi uma forma de governo
pessoal, por meio da qual a arché, reunida nas mãos de um único homem, possibilitou ao
governante se utilizar de diversos dispositivos próprios da basileia, tais como legislar, ter o
clássica. Marcada por um acentuado tom ideológico, ao pôr em confronto duas concepções
da Hélade (SOUZA, 1988, p. 63-71). Para Mossé (1997), no decorrer da guerra começavam a
aflorar divergências dentro do próprio demos, sendo o regime democrático ameaçado por duas
vezes, em Atenas, por golpes oligárquicos – em 411 e 404 a.C. Nesse contexto, a imagem
acerca do poder pessoal e da tirania começou a ganhar novos contornos. A partir da crise da
pólis, a discussão política sobre as formas de governo gerou, na Grécia, as suas reflexões mais
foi dissociada da realeza ou, pelo menos, sua associação passava a ser cada vez mais
[...] Tendo-se a Hélade tornado mais poderosa e conseguindo, ainda muito mais do
que no passado, adquirir riquezas, com a abundância começaram a surgir tiranias nas
cidades, quando antes tinham existido regimes de realeza hereditária assente em
prerrogativas. Então a Hélade começou a aparelhar navios e a dar maior preferência
ao mar [...] (Thucydides, I, 8, 1)
verdadeiras feições da natureza humana, que se revelava, de um lado, pela tirania do Império
Ateniense e, por outro, pelo conflito constante entre a democracia e a tendência à tirania dos
oligarcas (SUÁREZ, 1989, p. 156-157). Na visão de Tucídides, a tirania poderia ser exercida
tanto por um homem quanto por uma cidade: “[...] Não conseguis ver [atenienses] que é
tirania o poder que sobre eles [aliados] exerceis e que, sempre intrigando contra vós, são eles
comandados por vós contra sua vontade, e não por serem beneficiados por vós com prejuízo
vosso que vos obedecem, mas mais pelo poder que exerceis do que pela sua vontade [...]” (III,
27, 2).
Para alguns autores, como Guarinello (1987, p. 18-21), um dos principais motivos que
levaram à irrupção da Guerra do Peloponeso foi o imperialismo ateniense,89 que rompia com
o ideal da pólis de autonomia e harmonia.90 Ao buscar reforçar esses ideais em sua própria
pólis, Atenas não os respeitava no que se referia às póleis aliadas. De fato, Atenas unificou os
padrões de pesos e medidas dessas cidades e instituiu clerúquias, que, conforme Guarinello
(1987, p. 17-18):
89
Para o uso do vocábulo imperialismo, concordamos com a definição de Guarinello (1987, p. 11), de que o
imperialismo antigo manifestava-se pelo estabelecimento de um diferencial de poder, militar ou não, que
pudesse proporcionar um fluxo centrípeto de bens para a pólis em expansão.
90
Sobre esse princípio de defesa de uma autonomia por parte das póleis, já existe um significativo grupo de
estudiosos que relativiza a busca de autonomia de forma ortodoxa. Para Mackil (2013, p. 7-10) e Beck e Funke
(2015, p. 4-8), as póleis estavam frequentemente em posição de dependência e subordinação uma com as outras,
sendo inclusive a formação de alianças, por meio de Ligas (κοινόν), uma constante nas relações intra-póleis e até
mesmo uma estratégia vital para a sobrevivência das cidades gregas.
120
[...] consistiam na ocupação de lotes (os kleroi) das melhores terras agrícolas no
território dos Estados da Liga [de Delos] por cidadãos atenienses que não dispunham
de propriedades agrárias na Àtica. Aqueles que eram agraciados com tais lotes
conservavam a cidadania ateniense e não se integravam ao corpo social das cidades
em cujo território se estabeleciam. Constituíam, assim, ao mesmo tempo uma
válvula de escape para as pressões sociais em Atenas e um ônus ofensivo para os
aliados.
Peloponeso e que foi associado por Tucídides à tirania, Buckley (1996) afirma que, em 411
a.C., após cem anos da expulsão dos pisistrátidas, Atenas passou pela sua primeira
experiência oligárquica, ocasião na qual o corpo cívico foi reduzido de uma média de 40 mil
cidadãos para apenas 5 mil. Já em 404 a.C., o golpe dos Trinta Tiranos reduziu o corpo cívico
para 3 mil cidadãos. Buckley não problematiza o conceito de tirania, equiparando a tirania
arcaica à do fim do período clássico. Seja como for, esses golpes causaram profundo impacto
ofensiva oligárquica. O demos estava dividido em pelo menos dois grandes grupos: o das
pessoas do campo, para quem longos anos de guerra tinham sido muito duros, e que
desejavam a paz; e o dos tetes, da marinha ateniense, para quem a guerra era a garantia de um
soldo regular e de vantagens materiais (ANDRÉ, 2009, p. 40-41). Além disso, as hetaireíai,
regime democrático, como podemos ver no final da Guerra do Peloponeso (LIMA, 1998, p.
17-21).
121
século IV a.C., que começam a florescer ideias relacionadas a um novo tipo de monarquia,
dissociada da tirania. Por meio de autores como Xenofonte podemos recuperar as linhas
nesta questão, se faz necessário tratar de outro tipo de realeza cuja contribuição é
determinante para a constituição da basileia helenística e que se faz cada vez mais presente no
A realeza macedônia
realeza macedônia quase três séculos após a sua criação. O mito em torno da criação dessa
91
O termo utilizado originalmente é μισθός, que pode ser traduzido por salário, paga ou soldo (LIDDELL;
SCOTT, 1940).
122
reinado de Pérdicas II (454 a 413 a.C.). Por ocasião da visita de Heródoto, o rei macedônio
buscava reforçar os laços de solidariedade das famílias aristocráticas e manter unida a casa
real dos Argeadae/Temenidae, bem como o próprio reino. Heródoto resgata, em sua obra, o
mito macedônio dos três irmãos pastores, reforçando a autoridade dos reis da Macedônia em
(1995, p. 4-5) sobre a vitalidade de se utilizar fontes textuais de origem não macedônia para
investigar a fundação dessa realeza, isso por dois motivos. Em primeiro lugar, os macedônios,
eles mesmos, não nos deixaram testemunhos sobre o surgimento de sua realeza. Em segundo
lugar, os macedônios dos séculos V e IV a.C. não contestaram a representação construída por
Possivelmente, não houve questionamento dos relatos helênicos por parte dos macedônios
sobre a fundação mítica de sua realeza pelo fato de a explicação não se encontrar em
desacordo com os interesses macedônios ou por não possuírem alternativas próprias, nem
meios de construí-las devido à perda da tradição num contexto de aumento dos contatos
Fonte: mapa organizado por Theml, com desenho de José Carlos Bustamante.
Arqueologia, Theml (1997; 1995; 1993) aponta que, enquanto o hérôon (tumba monumental
dedicada aos heróis) foi um dos signos distintivos da emergência da pólis, no território da
podemos afirmar que a figura do herói (héros), foi um importante instrumento simbólico no
momento da organização do mundo políade ao longo do século VIII a.C. Esse herói aparece
definido como um guerreiro destacado, como vimos nos poemas homéricos. Quando de sua
morte, ele deveria ser cremado e seus restos colocados em uma urna funerária, que deveria ser
depositada em uma sepultura à altura da honra do herói em questão. Chamamos este tipo de
92
Mesmo que possamos apontar algumas semelhanças entre o basileus homérico e o macedônio, como deveres
religiosos, liderança do exército e atuação em julgamentos em determinadas circunstâncias, um olhar mais
próximo revela importantes diferenças. Para mais detalhes, vide Carlier (2005).
124
Figura 7 – Artefatos referentes à Tumba do Guerreiro, necrópole de Vergina, séc. VIII a.C.
Fonte: https://www.aigai.gr
necrópole de Aigai, atual Vergina, nos permitem concluir que os artefatos encontrados nas
sepulturas masculinas, tais como espadas, facas e lanças, traduzem a função militar do
monarca macedônio, arraigada a uma ideologia dos heróis desde o período da fundação da
Esse tipo de governo, exercido por uma elite guerreira, é, segundo a autora, resultado de
um processo de preservação dos usos e costumes macedônios diante das mudanças que
ver, houve uma tendência à valorização dos costumes ancestrais como forma de defesa e
manutenção da identidade social dos macedônios. Além disso, não devemos esquecer que
existiu, por parte da elite, uma reivindicação das suas origens míticas ligadas aos deuses
helênicos. A elite macedônia, por meio do mito de fundação da sua basileia, considerava-se
realeza macedônia citada na abertura desta seção, Gaianes, Aérope e Pérdicas seriam
pertencentes a esta casa, teriam subjugado a Macedônia, instituindo uma dinastia que reinaria
sobre a Macedônia até Alexandre IV.94 Theml (1993, p. 106) expõe o motivo provável pelo
93
A Macedônia era muito mais ligada ao conjunto cultural do norte/oeste/leste balcânico do que com o sul,
território que havia sido o centro da sociedade micênica e mais tarde do mundo das póleis.
94
Chama-se a dinastia macedônia de Argéada/Teménida, pois existe a tradição que associa sua origem também a
Argeas, filho de Makédon, além de Têmenos. Makédon era filho de Zeus e herói epônimo da Macedônia. Sua
genealogia possui pelo menos cinco tradições: autóctone; irmão de Magneto filho de Tia; um dos dez filhos de
126
Outro dado importante sobre a realeza dos macedônios é que, diferentemente do caso
se encontrou entre a Idade de Bronze e o início do VIII século a.C. foram assentamentos
aldeãos, que não apresentavam muralhas (BORZA, 1982; HAMMOND, 2001). Para
buscavam legitimar seu domínio mediante a narrativa mítica, estabelecendo assim uma
ligação com o campo do sagrado. Segundo Theml (1997, p. 317), podemos inferir que entre
900 a 650 a.C. ocorreu a formação e consolidação da realeza dos macedônios. Pelo fato de a
passagem de chefias locais para uma basileia de caráter guerreiro/sagrada ter ocorrido pelas
mãos do grupo étnico dos macedônios,95 Theml, Borza e outros estudiosos chamaram essa
Durante toda a Idade de Bronze, a Macedônia teria conhecido apenas um tipo de realeza, a
trifuncional, que seria regida por três princípios reunidos na pessoa do monarca: a soberania, a
Eole; filho de Lycaon; um dos companheiros de Osíris. Makédon significa cabeça de lobo ou couraça de pele de
lobo.
95
Essa basileia de caráter guerreiro/sagrada foi importante para a definição não só da realeza de Alexandre,
como para a própria definição da monarquia helenística.
127
98), todo poder soberano seria triplo: “[...] sacerdotal e mágico por um lado, jurídico por,
outro e, por fim, militar. O rei é [...] ao mesmo tempo mago inspirado com prerrogativas
destas duas funções os atributos executivos e guerreiros”. Porém, devemos tomar cuidado
com interpretações que atribuem um caráter absoluto à realeza macedônia, pois mesmo que o
papel da elite guerreira fosse menos evidente ao lado do basileus macedônio em comparação
à aristocracia guerreira que seguia o basileus homérico, hoje sabemos que o conselho que
dominado pelo simbólico, pois, de acordo com Balandier (1982, p. 7), o poder requer uma
realeza macedônia, podemos perceber uma série de elementos simbólicos que visam a
Gonçalves e Theml (1996, p. 19-20; 1995, p. 72-73), é possível perceber, por meio da
características do poder real e suas justificativas. Em primeiro lugar, Pérdicas, por ser o mais
novo dos três irmãos, detém maior fecundidade na geração de filhos e, desta forma, ocupa e
Pérdicas, primeiro rei macedônio, descendente de Héracles por parte dos teménidas. A
terceira característica também possui conexão com o sagrado, pois mostra a proteção das
divindades a Pérdicas de forma direta e pública, como quando o rei cede aos irmãos, a título
128
de pagamento, os raios de sol, mas apenas Pérdicas, sendo o escolhido, os recolhe. Outro
exemplo provém da fuga dos irmãos, quando os deuses uma vez mais iriam interferir em prol
dos teménidas:
Logo que deixaram a casa, uma das pessoas que se achavam perto do rei advertiu-o
sobre as intenções que poderia alimentar o mais jovem dos irmãos ao aceitar tão
prontamente o oferecimento que lhe fora feito. O rei, entre receoso e irado, enviou
cavaleiros ao encalço dos três irmãos, com ordem de matar o mais jovem. Existe,
nesse país, um rio ao qual os descendentes de Argos oferecem sacrifícios, como a
um libertador. Logo que os três irmãos o atravessaram, suas águas se avolumaram
de tal forma, que seus perseguidores não puderam passar [...] (Hdt., VIII, 138).
O papel do elemento religioso foi fundamental para garantir a autoridade dos reis dos
identidade helênica (ERRINGTON, 1978, p. 80-83; THEML, 1995, p. 72). O irmão mais
concretos. Em uma espécie de ritual de autossuperação, Pérdicas, de irmão mais novo e frágil,
se torna soberano. Por último, mas de suma importância, está a presença do Sol, materializado
nos raios dourados colhidos por Pérdicas e que, posteriormente, se tornariam o símbolo por
Fonte: https://www.aigai.gr
96
Para Gonçalves (1996, p. 21), todos os três tipos de realezas tradicionais surgidas no território grego eram
apolíneas.
129
O episódio mítico que se refere à recolha dos raios solares por Pérdicas possivelmente
possui vínculos com este emblema (Fig. 8), que é um dos maiores símbolos da disnatia
Argéada. Na figura, temos o chamado Sol de Vergina, Estrela de Vergina ou, como é mais
conhecido, a Estrela Argéada. Trata-se de uma estrela com 16 raios que era usada como
divergências acerca do seu significado. Para Borza (1990, p. 260-261), por exemplo, este
símbolo não teria relação exclusiva com a dinastia dos Argéada, uma vez que é encontrado
emblema próprio da dinastia Argéada,97 pois aparece decorando os túmulos desta linhagem.
Essa segunda hipótese é hoje a mais aceita pelos especialistas, visto que a existência do termo
Estrela Argéada reforça a filiação com a dinastia à qual pertenciam Filipe e Alexandre. Além
de estar presente nos túmulos dos reis macedônios, este emblema era encontrado em escudos
e moedas, nas versões com 8 ou 16 raios solares. Quando da campanha de Alexandre na Ásia,
o emblema se difundiu por diversos territórios, sendo empregado durante todo o período
helenístico. Sobre a importância da associação dos argéadas com um símbolo solar, afirma
97
Andronikos foi o responsável pelas escavações no território de Vergina em 1977, que levaram ao encontro de
uma caixa dourada, artefato comum nas tumbas dos reis macedônios. Na caixa encontrada por Androniko e sua
equipe está gravada essa estrela. A maioria dos especialistas acredita que este artefato tenha pertencido à tumba
de Filipe II, apesar de haver algumas discussões sobre a possibilidade de ela pertencer a Filipe Arrideu, filho de
Filipe II.
130
De acordo com Durand (1986, p. 88), no momento em que Pérdicas recolhe os raios de
sol, enviados pelos próprios deuses, ele faz uma apropriação mágica, um rito, obtendo a
concordância das divindades para assumir o poder. O basileus descrito na narrativa mítica
seria a imagem viva do Sol entre os humanos – aquecendo-os, guiando-os e concedendo vida
a todos ao seu redor. Balandier (1989, p, 17), ao falar sobre os sistemas políticos tradicionais,
como no caso da monarquia macedônia, na qual abundam os símbolos religiosos, afirma que a
transfiguração do soberano provocada pelo poder e hierarquia são evidentes. Tudo o que
ocorre se relaciona com o soberano, é simbolizado e se dramatiza por ele. O soberano deixa
de fazer parte do mundo ordinário para se tornar ordenador do cosmo. Balandier (1969)
evidencia um laço de união entre aqueles que exercem o poder e as coisas sagradas,
relações políticas e sociais são forjadas no âmbito da cultura, local onde se constrói e se
mobiliza o poder simbólico (BOURDIEU, 1998, p. 7-8). O sistema simbólico que cerca a
basileia e seu soberano, no mito recolhido e operado por Heródoto, exerce, no plano da
131
concretude das ações humanas, uma autêntica função política, legitimando a dominação de
determinado grupo sobre outro. Esta ideia vai ao encontro do conceito de representação
formulado por Chartier (1990, p. 5-10), para o quem a representação é entendida como um
recurso cognitivo que nos auxilia a identificar como determinada realidade é concebida pelos
agentes. Admitindo-se que o mundo seja eivado de representações e que estas sejam
construções ligadas a grupos sociais específicos que, por seu intermédio, buscam impor aos
capazes de gerar identidades coletivas. Nesse sentido, os símbolos se tornam, de acordo com
Bourdieu (1998, p. 10), “[...] os instrumentos por excelência da integração social. Enquanto
ordem social”.
Diante da representação acerca das origens da basileia macedônia, devemos nos indagar
sobre a sua importância para aquela sociedade. O crescimento exagerado do pão, o ato de se
oferecer raios de sol como pagamento e a súbita cheia de um rio são todos símbolos que,
segundo Geertz (2013, p. 68), constituem: “[...] formulações tangíveis de noções, abstrações
Outro aspecto que merece destaque é a construção da basileia macedônia como fruto de
uma dinastia conquistadora com filiações helênicas. Desde Alexandre I (498-454 a.C.), os
1989, p. 16-19). Nosso objetivo não é retomar a longa discussão sobre a origem étnica dos
macedônios, se estes eram ou não gregos.98 A questão é que, como elemento constitutivo
98
A associação com a cultura helênica é muito mais um elemento distintivo construído para reforçar a imagem
régia. A realeza macedônia, constituída a partir de VIII a.C., só buscou esta associação no século V a.C., com
132
desta monarquia, a origem mítica helênica, associada com o aspecto conquistador do soberano
Macedônia e que fora submetida pelo éthnos macedônio a partir do VIII e VII séculos a.C.
início um dos fundamentos desta basileia, pois ela era em parte uma realeza de caráter
guerreiro. Sobre o direito de conquista, Aristóteles (Pol., I, III, §8) nos informa que:
[...] a arte da guerra é de algum modo um meio natural de conquista: porque a arte
da caça é apenas uma das suas partes, aquela da qual se serve o homem contra as
feras ou contra outros homens que, destinados por natureza a obedecer, recusam
submeter-se; assim, a própria natureza desculpa a guerra [...].
(1988, p. 389), a doroktetos chora dos Argéada. Com base no direito de conquista, a terra
adquirida pela lança pertencia ao monarca, que seria o encarregado de regular o usufruto dos
bens naturais do território, assim como gerenciar as relações com o exterior e a prática
Alexandre I. Ela foi reforçada através da construção narrativa de Heródoto durante o período do governo de
Pérdicas II. De acordo com Hall (2002) e Laky (2012), essa aproximação acontece em meio a um processo geral
de construção da identidade grega nos séculos VI e V a.C., a partir da difusão do culto a Zeus Olímpio, sendo
somente em 409 a.C., durante o governo de Arquelau, estabelecidas competições atléticas em honra a este deus
em Díon. No entanto, discordamos de Laky (2012, p. 207-208) e Hall (2002, p. 165), quando estes afirmam que
estabelecidas as filiações com elementos da cultura helênica, no fim do século V a.C., os macedônios foram
aceitos como helenos. Em pleno século IV a.C., o mundo da Hélade ainda via os macedônios como estrangeiros
e bárbaros, incluindo seus monarcas, postura que, diante de uma preponderância político-militar da Macedônia
de Filipe II, gerou uma discussão política acirrada sobre o lugar dos macedônios.
133
34). Proveniente deste poder de conquista, o soberano macedônio tinha como um de seus
Como afirma Valeri (1994, p. 415-417), associado aos poderes místicos da realeza, está
sempre o poder militar, sendo que, na maior parte das teorias da realeza, um aspecto deriva do
outro. A partir do momento que um rei conquista determinada sociedade, ele sai da periferia
desta e passa para o seu centro, identificando-se com os valores da sociedade dominada. O
basileus tem, por isso, um caráter duplo, que se exprime na mitologia e no ritual da realeza –
povo, sendo o responsável pela manutenção da ordem (VALERI, 1994, p. 417). A monarquia
caos e devolveu-lhe a harmonia, que só pode ser obtida e mantida mediante a vitória sobre os
inimigos.
Analisando a natureza da realeza macedônia, vemos como esta reivindica para si não
decorre, como diz Bourdieu (2014, p. 260-261), do fato de que, no processo de construção do
Estado, este busca concentrar, em torno da figura do rei, os diferentes capitais. Essas
[...]” (BOURDIEU, p. 2014, p. 266). Dentro dessa ótica, há outro monopólio que o monarca
busca – o da lei. Muito ainda se debate sobre a questão jurídica na Macedônia e os limites do
poder do basileus. O termo monarquia pessoal tem sido amplamente utilizado para definir o
vimos, existiam estruturas, na Macedônia, que podiam restringir o poder do rei, como a
134
assembleia de guerreiros, mas essas estruturas são pouco iluminadas nas fontes, que enfatizam
monarca governava pela lei e não somente pela força – chegando mesmo a encarnar a
Em uma passagem de Arriano, na qual Calístenes fala a Alexandre, vemos o tema ser
abordado:
Alexandre não só parece ser, mas realmente é [...] o mais bravo [...] e o mais
majestoso dos basileis, generais e o mais digno para comandar um exército [...] Ó,
senhor! Você tem a responsabilidade, mais do que qualquer outro homem, para se
tornar o maior defensor desses pontos levantados por mim, e adversário daqueles
que são contra [...] você tem que lembrar que não está associado [...] a Cambises ou
Xerxes, mas sim ao filho de Filipe, que remonta sua origem a Herácles e Éaco, cujos
antepassados vieram para a Macedônia e tem continuado a governar os macedônios
até hoje, não pela força, mas pela lei [...] (Arr., Anab., IV, 11, 6).100
assessorar e orientar o basileus nos casos de pena capital, afirma que essas prerrogativas da
Macedônia tinha muitas das características de uma autocracia. Simplesmente não havia
governo além do basileus. Como vimos, o rei, devido a sua autoridade, determinava os
estrangeiros e declarando a guerra e a paz. Ele era o chefe dos exércitos, controlava as minas e
as florestas, servia como chefe religioso oficial e fundava cidades (ANSON, 2008, p. 135-
137).
o povo, era, entretanto, uma forma de relativizar o absolutismo régio (MOSSÉ, 2004, p. 53).
De fato, a autoridade régia foi limitada pela própria natureza do governo real e as tradições da
99
Podemos ver informações desta natureza nas obras dos antigos como Justino (XXIV, 5-14) e Cúrcio (X, 7-9).
100
Arriano usa o termo ἄρχοντες,para falar sobre os soberanos macedônios. Arcontes seriam aqueles que
detêm o poder – a arché.
135
Macedônia. Sobre a aclamação do rei na Macedônia, não temos muitas informações, mas,
do novo monarca, visto que as disputas sucessórias eram complexas. Após a morte de Filipe
II, por exemplo, é muito provável que Alexandre tenha sido confirmado como basileus
Makedônon pelos guerreiros reunidos em assembleia, com os quais o novo monarca já tinha
uma forte relação desde o governo do pai (MOSSÉ, 2004, p. 54). Quanto à existência de um
poder absoluto exercido pelo monarca, talvez a ideia da autocracia macedônia tenha se
imposto devido ao fato de a maior parte das informações sobre ela advirem do período
posterior ao governo de Filipe II. Este teria sido o responsável pela finalização do processo de
unificação e modernização da Macedônia, além de ter exercido uma política de forte caráter
Mossé (2004), Fenton (2005) e Momigliano (1992), sugerem que a força da personalidade de
Filipe, mais do que uma modificação institucional, foi o que permitiu o fortalecimento da
autoridade régia na Macedônia, embora esta autoridade pudesse ser contestada em algumas
entanto, é a importância do poder pessoal ligada a esta basileia macedônia, sobretudo a partir
de Filipe e Alexandre.
O próprio Filipe buscou fortalecer os laços entre a realeza e os macedônios, pelo menos
era a principal força militar. Suas fileiras eram formadas pela aristocracia macedônia, que
mínima, sendo a maior parte dos cargos de governo ocupados por estes indivíduos. Os
sacrificavam, caçavam, bebiam e lutavam ao lado do rei (STAGAKIS, 1962, p. 53-67). Filipe
II estendeu esse tipo de vínculo pessoal para a recém-formada infantaria macedônia, composta
136
Desta forma, o conceito de realeza pessoal, muito utilizado para a Macedônia, ganha
existência de um basileus que fosse um líder carismático. Na visão de Weber (1999, p. 360), o
líder carismático associa-se aos Estados de burocracia mínima. Ele é soberano porque é acima
de tudo um chefe militar, de modo que sua monarquia é fruto do seu heroísmo carismático.
De fato, o rei deveria ser o primeiro a se envolver na batalha e o último a deixá-la. Anson
capacidade do monarca em lidar com as questões referentes ao poder. Nesse aspecto, Filipe
final do século V a.C. e ao longo do século IV a.C., passou por transformações que
a.C., a basileia de Filipe entrou em contato com o mundo da pólis, num contexto de profunda
Um sistema em construção
[...] os fins do bom pastor e do bom basileus são semelhantes. Dizia [Ciro] que é
necessário que o pastor, tornando felizes os animais [...] tire proveito deles; assim
também o rei tira proveito de homens e cidades, tornando-os felizes [...] (Xenophon,
Cyropaedia, VIII, 2, 14).
137
Os escritos de Xenofonte que tratam da realeza expõem um debate sobre a transição das
formas políticas desde as formas residuais da pólis até a basileia helenística. O regime dos
Trinta Tiranos configurou, em Atenas, um cenário para a definição da oligarquia como tirania.
chefes militares apoiados por mercenários, chefes estes que, por sua vez, podiam ser
associados aos tiranos. Xenofonte, como modo de alertar a Hélade acerca dos males da
tirania, aponta para caminhos que visavam a transformar o poder pessoal em uma basileia
tirano àquele que busca o poder pessoal com apoio do demos (SUÁREZ, 1989, p. 135-140).
Em Hiéron, Xenofonte critica o governo dos tiranos ao mesmo tempo que oferece conselhos
[...] Te digo, Simónides, quais são os outros motivos de sofrimento dos tiranos.
Conhecem [...] aos valorosos, aos sábios e aos justos, mas no lugar de desfrutarem
os temem, aos valentes por se atreverem a atuar em favor da sua liberdade, aos
sábios por maquinarem algo, e aos justos por a multidão sentir o desejo de alinhar-se
sob suas ordens. Quando suprimem, por medo, os que são assim, quais restam para
lhe servir que não os injustos, os indisciplinados e os servis? Os injustos são dignos
de confiança porque temem, como os tiranos, que as cidades quando livres, se
tornem donas de si mesmas, os indisciplinados porque dão licença para o presente,
os servis porque nem eles mesmos se consideram dignos de serem livres. Pelo
menos para mim, este sofrimento parece difícil de suportar, considerando que
existem bons homens, mas estão obrigados a se servir de outros. Ademais, é
necessário que o tirano seja amante da cidade, pois sem a cidade não poderá nem
salvar-se e nem ser feliz. A tirania esta obrigada a prejudicar as suas próprias pátrias,
pois não vão bem quando ao invés de preparar aos cidadãos para serem fortes e
armados, fazem aos estrangeiros mais fortes que os cidadãos e usam estes como
portadores de lanças. Nem sequer quando há bons anos existe complacência com o
bem, nem assim se alegra o tirano, pois pensam que são mais submissos quando
estão mais necessitados [...] (Xenophon, Hiero, V, 1-4).
a exercida por apenas um homem como equivalentes no que se refere aos males por elas
pólis tradicionalmente idealizada, governada pelos melhores. A cidade à qual este grego
aspira requer a intervenção do poder pessoal. Devido à situação crítica das póleis após a
138
Guerra do Peloponeso, para Xenofonte, assim como para Isócrates em diversos escritos, como
governante forte poderia solucionar as contradições das cidades gregas. Nesse sentido, era
que é tida doravante como um bom governo. Para Xenofonte, como demonstra a passagem
citada, o basileus poderia se definir como antitirano, apoiando-se nos valentes e de melhor
estirpe (γενναῖος), nos sábios, nos justos e, em geral, nos cidadãos; mas não nos injustos, nos
sustentação para o tirano. Para Suárez (2007, p. 149), esta seria uma forma de conjugar pólis e
basileia.
Xenofonte não foi o único a ver com simpatia o regime monárquico, no século IV a.C.
Segundo Mossé (1975, p. 72-85), nesse período há uma espécie de desenvolvimento de uma
ideologia real que busca demonstrar os benefícios do poder restituído às mãos de um único
bom basileus não seria tirano nem déspota, mas um homem dotado de predicados nobres que
governaria sobre homens livres. Desta forma, a monarquia não seria imposta. A autoridade
Memoráveis (IV, 6, 12), quando este discorre sobre as formas de governo definidas por
Sócrates, notamos que a monarquia e a tirania são tidas como duas formas de governos
diferentes. A basileia seria o governo aceito pelo povo e conforme às leis da cidade, já a
tirania seria um poder imposto e que não obedeceria à lei, mas somente à vontade do
101
Por as fontes que temos serem provenientes do território da Hélade e a discussão realizada ser a partir de
reflexões sobre o regime políade, devemos ressaltar que esta visão positivada sobre a basileia não exclui a
existência de grupos que apoiassem a manutenção do sistema políade. Na efetividade, eles eram superiores em
números aos grupos com “tendências monarquistas”. Contudo, a discussão sobre a realeza promovida por
homens como Xenofonte e Isócrates torna-se fundamental para nós à medida que, por meio dela, podemos
vislumbrar como esses helenos enxergavam a monarquia. Ao mesmo tempo, conseguimos captar informações
sobre regimes régios sobre os quais não temos, ou praticamente não temos, registros escritos das próprias
sociedades, como no caso da Macedônia.
139
soberano. Devemos ressaltar que o livre consentimento para que um soberano governasse
Esse novo posicionamento diante da monarquia e do soberano ideal foi favorecido por
três fatores: pelo ideal de cosmopolitismo, que começou a ganhar cada vez mais espaço após a
Guerra do Peloponeso; por uma nova configuração da paideia do príncipe, no século IV a.C.;
Hélade, sobretudo a partir da intromissão de Filipe no mundo das póleis. Para Reale (2003, p.
228), mediante o ideal da cosmopólis dissolvia-se a antiga equação entre homem e cidadão. O
mundo passava a ser considerado uma imensa cidade, e o homem grego obrigado a buscar
uma nova identidade após o domínio romano. No que tange ao pensamento de Reale, temos
período, pois, mesmo na Hélade, é difícil determinar um modelo de cidadão válido para todo
o território. Em segundo lugar, as ideias sobre a cosmopólis são bem anteriores à dominação
(ANDRÉ, 2009).
Esse tipo de pensamento foi associado por alguns autores, como Thébert (1985), ao
pan-helenismo,102 que, devido aos problemas do século IV a.C., sofreu uma importante
mutação. Pensadores como Hípias (Plato, Hippias maior) e Antifonte (Fragments, III)
falavam sobre uma igualdade entre os homens. O raciocínio sofístico desses dois autores
cada cidade, era igual a cada cidadão de outra, que cada homem de cada país era igual a cada
102
Com o fim das Guerras Greco-Pérsicas, o fluxo de pessoas das mais diversas origens que circulavam pela
Grécia aumentou significativamente. Esse fato levou alguns a questionarem as diferenças estabelecidas entre os
próprios gregos. Um grupo que partilhava de tal ponto de vista era composto pelos chamados sofistas. Indo de
cidade em cidade para ensinar, mais do que cidadãos de uma simples pólis, eles se sentiam cidadãos da Hélade.
Do ponto de vista político, com os conflitos do século V e IV a.C., muitos políticos viam em uma união das
póleis, no sentido de cessarem as hostilidades, uma forma de amenizar a crise nas cidades gregas.
140
homem de outro, porque, por natureza, todos os homens eram iguais, também colocava em
xeque a visão comum que os helenos possuíam sobre a sua superioridade em relação aos
outros povos. Mesmo que esses pensadores não tenham definido no que consistia essa
igualdade e quais eram os seus fundamentos, percebemos, em seus escritos, que o sentido de
comunidade tão forte na pólis clássica entrava em colapso, surgindo ao mesmo tempo a
JAEGER, 2013).
Isócrates foi um dos que logo abraçaram o ideal cosmopolita diante da crise do sistema
políade, pois acreditava que Atenas poderia ser a responsável pelo fim das mazelas da Hélade.
Em 380 a.C., escreveu um panegírico dedicado à pólis ateniense com a intenção de persuadir
os gregos a buscarem a salvação para si mesmos (NORLIN, 1961, p. 116-117). Propondo uma
aliança entre Atenas e Esparta, Isócrates as exortava a promover uma campanha antipersa
ateniense, realçando os benefícios das leis, evocando o passado de glória da pólis, afirmando
que as leis democráticas eram a causa dos maiores benefícios para os homens e equiparando a
oligarquia à tirania (Isocrates, Panegyricus, 39-40). No entanto, nos anos posteriores Isócrates
voltou sua atenção para os príncipes e suas respectivas formações pedagógicas, enxergando
cada vez mais nestes homens a solução para os problemas que afligiam as cidades gregas.103
Dentre os escritos isocráticos que versam sobre o assunto estão os chamados discursos
cipriotas, compostos por três partes distintas, sendo a primeira dedicada a Evágoras e as
outras duas a Nícocles. Segundo Jaeger (2013), esses discursos se encaixavam nos modelos
da arte pedagógica praticada na escola de Isócrates, que ajudou a preparar uma série de
governantes, incluindo Nícocles. Nesses textos, o autor põe na boca de seu discípulo um
discurso dirigido aos súditos, no qual expõe os seus princípios de governo. Por meio destes
103
Isócrates possuía vários discípulos, muitos deles pertenciam a famílias de governantes e na vida adulta se
tornaram os próprios governantes. Muitos dos escritos do ateniense eram voltados para estes homens.
141
imagem do governante ideal por meio do exercício da moral e da virtude (TOO, 1995, p. 151-
152).
Na opinião de Isócrates (Nicocles, III, 18-20), a nova basileia do século IV a.C. deveria
se basear no governo de um só homem de acordo com uma lei fixa e uma norma superior, que
monarquia, desse modo, seria a melhor forma de governo e, delineada dentro destes
parâmetros, limitava os poderes do rei por meio das virtudes da justiça e da temperança,
atributos que o monarca deveria reivindicar para si como pilares de seu governo, em contraste
com a concepção predominante das virtudes guerreiras do príncipe (JAEGER, 2013, p. 1124-
1137). A paideia do príncipe, assim, seria a única fonte da qual as virtudes brotariam, sendo a
De acordo com Too (1995), a finalidade da cultura retórica de Isócrates era criar um
prosperidade, harmonia interna, prestígio no exterior). Somente pela paideia voltada para a
indivíduo comum. Apenas a origem do monarca, o nascimento, não bastaria para legitimá-lo
como governante, e este deveria se cercar dos melhores homens para que, em momentos
difíceis, pudesse ouvi-los. Com mãos firmes o suficiente não para oprimir o povo, mas para
impedi-lo de transgredir, o melhor dos homens, detentor da verdadeira areté, deveria governar
104
A areté está associada à excelência em todos os sentidos, inclusive da alma, podendo se configurar como
virtude, coragem e honra, e geralmente vinculada aos heróis.
142
que ele fabrica a imagem de um soberano ideal, o autor não perde de vista elementos realistas
que faziam da monarquia um governo mais adequado para o seu contexto histórico,
O basileus, desde que instruído pelas virtudes, estaria autorizado a cometer os atos
acima citados. Baseado nessas premissas, Isócrates, a partir de dado momento, passou a
depositar suas esperanças de salvação para a Hélade em torno de um novo tipo de monarca,
período, o poder macedônio era incontestável aos olhos dos helenos e Isócrates, enxergando
uma oportunidade para a solução dos conflitos internos da Hélade e, talvez, ao mesmo tempo,
buscando amenizar os impactos do poder macedônio sobre esta, exaltou a figura de Filipe
como possível sóter dos gregos. Nesse discurso, ele voltou às premissas básicas dos discursos
cipriotas. Aconselhando o monarca, Isócrates afirmava que o rei deveria tratar as póleis com
igualdade e justiça, empreendendo atividades vantajosas para os gregos, como promover a paz
Porque penso que o importante é que vós, sem abrir mão de nenhum de vossos
negócios, trateis de reconciliar a cidade dos Argivos, a dos Lacedemônios, a dos
Tebanos e a nossa. Pois se puderdes tranquilizar estas, não será difícil, ao que
105
Neste período, os atenienses estavam esgotados pelas contendas travadas com Filipe, por isso, em março, uma
embaixada ateniense foi enviada à Tessália, onde estava o rei. Entre os membros da embaixada estavam oradores
influentes como Ésquines e Filócrates, autor da proposta de paz, que estabeleceram uma trégua. Quando Filipe
retornou para a Macedônia, se firmou definitivamente um acordo de paz entre as duas partes envolvidas,
episódio que ficou conhecido como a Paz de Filócrates. No entanto, depois de jurar a paz, Filipe cruzou as
Termópilas e aniquilou a Fócida, tomando para si os dois votos no Conselho dos Anfictiões que pertenciam a
esta. Mais tarde, Filócrates, pelo fato de ter proposto uma paz que foi desfavorável para Atenas, foi acusado e
condenado ao exílio por traição.
143
entendo, fazer com que as demais concordem. Pois todas já estão sujeitas a estas que
mencionei e, quando têm medo, recorrem a qualquer uma dessas quatro [...] para
serem socorridas. Assim, se trouxerdes à razão as quatro cidades mencionadas,
livrareis todas as demais de muitos males.
território dominado pelos Aquemênida seria, em parte, uma solução para os problemas que
macedônio como o governante ideal para liderar uma campanha contra o Império
Aquemênida. Filipe seria o herói, o homem providencial, que salvaria os gregos deles
[...] É, pois, próprio de um homem esforçado e amante dos helenos, e que tem
capacidade maior que os demais, valer-se desses homens perdidos [gregos
despossuídos] contra os bárbaros, pagando-lhes com terras que mencionei antes;
livrar os soldados estrangeiros dos males que padecem e que fazem os outros
padecerem; com eles formar várias cidades que sirvam de defesa para a Grécia e que
sejam para todos nós um resguardo. Porque, se isso fizerdes, não só os fareis felizes,
como proporcionareis a todos nós vivermos seguros.
dos gregos unidos sob a autoridade deste contra os “bárbaros”, aproximou o soberano da
imagem do seu ancestral, Héracles, associado à imagem do herói fundador. Outros epítetos
são aplicados a Filipe ao longo da obra, tais como: díkaii (justo), prosektikós (prudente),
elliniké (heleno) e, logicamente, hegemón (comandante militar) (Isoc., Phil., 10; 18; 80; 89-
tirania, quando Isócrates compara o monarca macedônio ao rei dos persas. Nessa perspectiva,
o governo do rei persa seria uma tirania marcada pela fraqueza e pela servidão, por isso os
próprios sátrapas deveriam aliar-se a Filipe no momento da guerra, pois este os livraria da
Platão também figura entre os pensadores que refletiram a respeito de uma nova
politeia serviria ao verdadeiro filósofo e buscando uma solução para os problemas da pólis,
[...] não há cidade, nem governo, nem sequer um indivíduo que do mesmo modo
possa jamais tornar-se perfeito, antes que a esses filósofos pouco numerosos a que
agora chamam, não perversos, mas inúteis, a necessidade, saída das circunstâncias,
os force, quer queiram quer não, a ocupar-se da cidade, e que este lhes obedeça; ou
antes que um verdadeiro amor da filosofia verdadeira, por qualquer inspiração
divina, se apodere dos filhos ou dos próprios homens que estão atualmente no poder
ou ocupam o sólio real [...].
[...] ela [a cidade ideal] é possível, mas como dissemos, apenas quando tivermos à
frente da cidade um ou muitos filósofos, que, desprezando as honras hoje almejadas,
considerando-as indignas de um homem livre e desprovidas de valor, atribuam, ao
contrário, maior importância ao dever e às honras que são sua recompensa, e,
concebendo a justiça como a coisa mais importante e mais necessária, fiquem a seu
serviço, fazendo-a florir, e organizem, segundo suas leis, a cidade [...].
Platão tentou converter, embora sem êxito, segundo seu próprio testemunho, os tiranos
de Siracusa, Dênis, o Antigo e Dênis, o Jovem, à filosofia antes de fazer recair suas
esperanças sobre Díon, mostrando que a paideia do príncipe seria de suma importância no
jogo político. Para Platão, mesmo havendo sistemas diferentes, que, na realidade, se dividiam
entre basileia e aristocracia,106 havia um único possível. Não obstante a existência de vários
homens ou apenas um, estes não poderiam abalar as leis da cidade se tivessem a educação e a
instrução próprias de um governante (Pl., Resp., 445 c-e). Em Político, Platão abordou
diretamente o poder de um único homem, cuja missão principal seria tornar melhores, logo
mais felizes, seus concidadãos. Porém, encontrar um portador dos atributos régios não seria
algo fácil, visto que, para Platão (Politicus, 301 e), “[...] não nascem basileis nas cidades
como eclodem nas colmeias, únicos por sua superioridade de corpo e de alma, é preciso então,
ao que parece, reunir-se para escrever códigos, tentando seguir o rastro da mais verdadeira
politeia [...]”.
106
Segundo Suárez (2007, p. 149-150), Platão usa o termo basileia por possuir conotações mais próximas a da
aristocracia. Ambas constituiriam o que o filósofo chamava de bom governo. A liberdade do demos em sua
perspectiva levaria a escravidão, da mesma forma que a democracia levaria a tirania. Deste modo, a monarquia
identificada como uma forma de aristocracia se constituiria como a contraposição máxima entre realeza e tirania.
145
Outro pensador que valorizou a basileia no século IV a.C. por meio da areté do
governante foi Aristóteles. Como mencionado, Aristóteles definiu cinco tipos de realeza na
Política. O estagirita também opôs a basileia à tirania, sendo a primeira exercida pelo
[...] Assim, pois, quando se encontra uma família inteira ou um só indivíduo que
possua virtudes por tal forma eminentes que ultrapassem a de todos os outros, então
é justo que essa família seja elevada ao poder real, tornando-se senhora de tudo, ou
se faça basileus a esse indivíduo tão eminente [...] Ora [...] não é equitativo fazer
perecer ou exilar pelo ostracismo um homem de uma virtude tão eminente, nem
pretender que ele obedeça por sua vez, porque não é da natureza que a parte
prevaleça sobre o todo, e o todo é precisamente aquele que tem uma superioridade
tão grande. Resta, pois, só um partido a tomar: obedecer a tal homem e reconhecer-
lhe uma força soberana, não por um tempo determinado, mas para sempre [...].
excepcional, que seria uma espécie de divindade entre os homens, encarnando a lei devido às
suas virtudes. Segundo Mossé (2004, p. 140), a superioridade da areté do soberano e o fato de
este encarnar a lei seriam aspectos essenciais que viriam a configurar a basileia helenística.
Durante todo o período helenístico, a reflexão sobre estes temas foi particularmente intensa e,
na prática política, ajudou a consolidar a noção de uma monarquia absoluta governada por um
Ao mesmo tempo que uma nova concepção idealizada da basileia surgiu no século IV
a.C., no território das póleis, começa a sobressair o reino da Macedônia com Filipe e
conservando bases parecidas com as que existiam desde o período dos primeiros reis
107
Sobre o caráter e limites da divinização do basileus helenístico, dedicamos mais espaço a esta temática no
terceiro capítulo, ao discutirmos sobre os fundamentos filosóficos desta realeza, e em uma seção do nosso quarto
capítulo, onde discutimos sobre a posição do rei helenístico em um limiar entre o campo dos homens e dos
deuses.
146
reflexões acerca da realeza pelos pensadores do século IV a.C., conjuntamente com as ações
basileia macedônia, o que abriu caminho para a concepção de uma nova monarquia que,
mesmo possuindo elementos inatos a este tipo de governo, incorporou novos princípios
mediante as ações dos diádocos, sobretudo no que se refere às relações entre os basileis
helenísticos e as póleis.
constituição entre três espaços distintos, fato que se deu, em parte, pela conduta de Alexandre
fronteira entre estes três espaços: Macedônia, Hélade e Oriente. Suas ações estavam no limiar
tratadas aqui. Tradicionalmente, o soberano macedônio tinha uma sólida ligação com o
território sobre o qual reinava. Ainda, mesmo que possuísse uma forte conexão com o
sagrado, este monarca não era divino, mas sim um primus inter pares, não podendo nutrir a
ambição de superar sua natureza humana (CERFAUX; TONDRIAU, 1956, p. 123). Mas a
século IV a.C., tornar-se um elemento de destaque. Conforme Theml (1995, p. 134) afirma,
buscava também se promover nas póleis, que exaltavam sua generosidade e sua associação
com diversos cultos, como o do Theos Aniketos. A vitória era atribuída exclusivamente ao
soberano. O basileus era, por excelência, o vitorioso, cuja distinção não era puramente
humana – a vitória era vista como uma dádiva concebida pelos deuses a quem fosse
Para a primeira geração dos basileis helenísticos foi necessário instituir diretrizes que
helenística no fim do século IV a.C. é algo difícil, já que este é um período de redefinições.
Somente no século II a.C. há uma sistematização coesa desse tipo de governo, com Políbio
sobre esse novo tipo de monarché, todavia, remontam ao século IV a.C., quando os homens
da pólis perceberam as intensas transformações que atingiam o seu mundo. Nutrem-se desta
tornado sátrapa, Antígono utilizou o poder da lança para dominar importantes territórios
conquistados por Alexandre. Com o auxílio de Demétrio, reforçou sua imagem como general
se transmitia a função real e não o reino como um bem. No Oriente, nos reinos helenísticos, a
herança não era apenas a dignidade real, simbolizada pelo diadema, mas também o patrimônio
territorial da dinastia (WILL, 1998, p. 382). Com o fim da dinastia argéada, a filiação com
todos os âmbitos. Confiança mútua e emulação formavam parte da ideologia da realeza desde
o tempo dos primeiros diádocos, quando a associação entre Antígono e Demétrio se converteu
Na basileia helenística que surgiu das ações dos sucessores de Alexandre, a areté do
possuía uma série de deveres que constituíam a estrutura moral da monarquia. Embora sem
estrita previsão legal, estes deveres, possuindo raízes na antiga pólis, na Macedônia e na
filosofia política, faziam com que os súditos esperassem dos seus soberanos o exercício de
uma areté real (COHEN, 1974). Segundo Will (1998, p. 385), com a consolidação das
realezas helenísticas, as primeiras virtudes régias não eram o valor militar nem a justiça, mas
a eusébeia (piedade) e todo um conjunto de virtudes destinadas a servir como base das
relações humanas: philía (amor) e philanthropía (amor pela humanidade), por exemplo.
Mesmo que, na prática, não possamos exagerar o alcance destas virtudes, em um sistema de
caráter pessoal, como o da basileia helenística, a existência delas é de suma importância para
a construção de uma aura ética em torno do soberano. É por causa dessas virtudes régias que
Com base nestas reflexões sobre a basileia e sobre as concepções filosóficas em torno
helenística em seus primeiros tempos, tendo como foco as ações de Antígono e Demétrio, que
identidade monárquica helenística, dos vínculos construídos entre pai e filho, da interferência
dos princípios filosóficos na práxis política do papel desempenhado pelas póleis no âmbito
149
desta nova organização política, buscamos traçar como os Antigônida trilharam seu caminho
CAPÍTULO III
Não só os bons são livres, mas também os basileis, porque a basileia é o governo
sem responsabilidade, que ninguém, a não ser o sábio, pode manter. Basileia. [2]
Nem a natureza nem a justiça dão reinos aos homens, mas àqueles que são capazes
de liderar um exército e lidar com assuntos de forma inteligente, tais como Filipe e
os sucessores de Alexandre o eram. [3] A relação de parentesco não beneficia o filho
natural em tudo devido à fraqueza de sua alma. Enquanto aqueles que não tinham
relacionamento familiar [com Alexandre] tornaram-se basileis de quase todo o
mundo habitado [...] (Suidae, Beta 147).
torno da legitimação dos reis: o basileus como depositário da lei, virtuoso, exímio
helenística ocorreu por meio de diferentes etapas e pelas ações de diferentes sujeitos. Como
exposto nesta tese, as inovações implantadas por Filipe, na Macedônia, e seu projeto de
Alexandre. A partir dos acontecimentos que se seguiram à conquista empreendida por este
último, percebe-se como foi possível uma ruptura da práxis política tal como era concebida e
executada por macedônios e gregos,108 lançando dessa forma os fundamentos de um novo tipo
de sistema político. Alexandre, ao morrer, deixava um império territorial com bases frágeis e
o resultado do processo de ruptura política que o soberano havia iniciado ainda estava por se
definir.
108
Como dito anteriormente, Alexandre, ao conquistar os territórios orientais, aderiu a uma série de elementos
próprios da basileia Aquemênida, como a adoção de parte da indumentária dos reis desta dinastia, titulatura e
adoção do título de basileus Alexandros em suas inscrições numismáticas. Essa atitude levava a uma ruptura
profunda de sua monarquia com princípios tradicionais da monarquia macedônia, já que a identificação
monárquica ultrapassava os limites territoriais macedônios.
151
Nesse ponto do percurso, a atuação dos diádocos foi de suma importância para a
ponto crucial para o estabelecimento da monarquia helenística a ser resolvido após a morte de
Alexandre a fabricação de uma imagem régia dentro da lógica do novo contexto, e dos meios
pelos quais esta seria legitimada.109 Optamos pelo vocábulo fabricação devido à ideia de
movimento que ele porta. O alvorecer das realezas helenísticas possui esse aspecto de
âmbitos – inclusive da figura do próprio rei e da realeza. Segundo Burke (1994, p. 22), ao
empregarmos o termo fabricação, ligado à imagem real, devemos levar em consideração dois
aspectos: primeiro, que o rei, assim como outras figuras de autoridade, constrói sua própria
descobrir e analisar quais os meios, canais dos quais o monarca se vale para a construção
Posto isso, nos propomos a analisar, neste capítulo, como Antígono e Demétrio, ao
longo das primeiras décadas do século IV a.C., lançam as bases para a fabricação de uma
imagem monárquica com apoio em elementos originários das fronteiras entre a Macedônia, a
Hélade e o Oriente. Foi a partir da ligação com preceitos políticos e religiosos provenientes
desses três espaços, da associação com Alexandre, da promoção de uma nova dinastia e do
jogo político que envolvia as póleis que Antígono e Demétrio se projetaram como basileis
legítimos.
109
Como dito antes, a morte de Alexandre deixa a questão sucessória como um problema a ser resolvido entre os
seus generais. A situação se torna mais explícita quando os dois últimos argéadas, Filipe Arrideu e Alexandre
IV, morrem. O primeiro em 317 a.C., a mando de Olímpia, de acordo com Justino (XIV, 6), e o segundo por
volta de 310 a.C., por meio de uma conspiração de Cassandro (Diod. Sic., XIX, 102, 2).
152
Por anos a fio a monarquia helenística foi estudada principalmente sob a perspectiva de
suas raízes greco-macedônias, mas, com o passar do tempo e o aprofundamento dos estudos
sobre a temática, ficou cada dia mais evidente a importância do elemento oriental na formação
desta realeza. Desse modo, devemos analisar a basileia helenística como um produto de fatos
Oriente muito mais como receptor do que como contribuinte no processo de formação dos
reinos helenísticos. Tal perspectiva pode ser constatada nos estudos de Bikerman (1938),
Boardman (1988), Cohen (1934) e Droysen (1836),110 o precursor dos estudos sobre o período
helenístico.
Devemos apontar, contudo, que, no início desses estudos, houve autores que atentaram
para o caráter oriental da basileia, embora poucos. Destacamos, por exemplo, o trabalho
qual o autor traça todo um histórico da soberania divina nas realezas orientais, apontando-as
que quando enfatiza os componentes orientais da realeza helenística, o autor rompe o diálogo
com os elementos greco-macedônios, concluindo que o mundo helênico não contribuiu para a
os aspectos divinos ligados à realeza. A contribuição macedônia, por sua vez, é praticamente
ignorada.
110
Além destes estudiosos mais antigos, podemos encontrar essa visão sobre a predominância do elemento grego
na realeza helenística em autores com trabalhos mais recentes, como Mossé (2004) e Shipley (2000).
153
possível, no entanto, obter uma visão mais equilibrada acerca dos diversos componentes da
monarquia helenística. De certo modo, pode-se afirmar que os elementos que constituem a
basileia helenística resultam muito mais da fusão de aspectos da monarquia macedônia com
os da oriental, do que com aqueles provindos do mundo helênico, e isso por duas razões. Em
primeiro lugar, lembramos que o próprio vocábulo basileia foi utilizado amplamente no
mundo grego para definir uma forma de governo própria das sociedades asiáticas, e estava
associado diretamente ao Grande Rei (Suidae, Beta 146). Além disso, ao contrário de como os
substancial.111 Uma evidência material desse caráter pessoal do poder régio, na época
Macedônia. Com uma política voltada para o reforço de sua imagem como governante, o
simbólicos. Ao assumir o trono, em 359 a.C., Filipe fez questão de ressaltar seus predicados
de líder e controlar a produção e circulação de sua imagem dentro e fora da Macedônia. Por
território da Trácia, ele promoveu a maior cunhagem de moedas feitas desses metais no
111
Os gregos pertencentes à Hélade, ainda no século IV a.C., tinham resistência a aceitar o poder pessoal, e a
visão política de que o poder repousava na comunidade dos cidadãos ainda tinha força. Quanto à Macedônia,
existem divergências quanto a aspectos ligados ao caráter do poder régio. Alguns autores, como Walbank
(1984), defendem a existência de uma espécie de monarquia nacional na Macedônia, por o território macedônio
e o conjunto dos macedônios atuarem no campo da representação política lado a lado com a figura do monarca.
Contudo, discordamos desta visão pela controvérsia ligada ao termo monarquia nacional e pela dificuldade em
se avaliar de fato a atuação da assembleia macedônia ao lado do rei. Mas a presença da fórmula Basileus
Makedônon e o papel da assembleia do povo em armas, tão debatida por autores como Hammond (2001), Briant
(1973) e Chaniotis (2005), nos deixa entrever que pelo menos até Filipe II, a Macedônia transitava em meio a
uma espécie de realeza tribal, na qual o papel do monarca não era tão centralizador.
154
Tanto nos padrões de cunhagem quanto nas representações numismáticas fica clara a
associação com o mundo helênico desejada por Filipe, que além de se converter em um
necessária após Queroneia (338 a.C.), devido ao lugar que Filipe passou a ocupar como líder
encontrado em Anfípolis114 e cunhado entre 340 e 328 a.C. No anverso desta moeda, está a
imagem de Apolo, uma das principais divindades do panteão helênico, cuja cabeça aparece
ornada com uma coroa de louros. O olhar, por sua vez, mostra-se alongado, característica
cabeça de Apolo laureada foi uma das imagens mais comuns encontradas nas moedas gregas,
112
De acordo com Thonemann (2015, p. 9), Filipe, assim como seus predecessores, tinha consciência da
ambiguidade do status étnico dos macedônios dado este ser um povo originário das franjas do mundo grego.
Heródoto (V, 22) também nos informa sobre essa questão ao falar do questionamento feito à participação de
Alexandre I da Macedônia nos Jogos Olímpicos.
113
Informações mais abrangentes sobre pesos e medidas, circulação e confecção das moedas do nosso período
podem ser obtidas em Morkholm (1991).
114
Anfípolis era uma cidade gega que ficava entre o território da Macedônia Oriental e a Trácia.
155
vemos uma biga conduzida por um cavaleiro, e a inscrição . A imagem faz
referência à vitória de Filipe na corrida de bigas, nos Jogos Olímpicos de 348 a.C. (Plut., Vit.
Alex., IV, 9; ROMANO, 1990, p. 63-65). Por meio desse estáter de ouro e dos símbolos nele
contidos, é como se Filipe fizesse questão de proclamar, valendo-se do triunfo olímpico, sua
Filipe também fazia questão de enfatizar a origem sagrada de sua linhagem nas moedas,
casa régia macedônia. Esse vínculo com a imagem de Héracles pode ser constatado na Figura
10, que apresenta um meio-estáter de ouro cunhado provavelmente em Anfípolis por volta de
pele de leão, enquanto no reverso vemos a parte dianteira de um leão e ao lado a inscrição
. Por meio das duas moedas apresentadas, percebemos como, ao mesmo tempo
que Filipe demonstrava seu poder e atributos, reforçava seus laços com o sagrado e com a
A presença do nome de Filipe nas moedas é um fator importante para reforçar a imagem
régia não apenas dentro da Macedônia, mas também além de suas fronteiras. Entretanto, é
com Alexandre que se torna possível ver, materialmente, a transição de um poder mais
vinculado ao território para um poder simbólico cada vez mais centralizado na figura do rei.
Enquanto as primeiras moedas emitidas por Alexandre seguiam o modelo das de seu pai,
trazendo tão somente seu nome no anverso, após o início da campanha do Oriente, o monarca
associou duas tradições em sua cunhagem: a macedônia e a aquemênida. Ao passo que Filipe
utilizava apenas seu nome na emissão de moedas, sem mencionar o termo basileus, para o rei
persa ser reconhecido bastava apenas a evocação do termo basileus. Como dissemos, o
vocábulo basileus, no mundo grego, se manteve muito mais atrelado aos governos orientais.
Desse modo, não havia inscrições numismáticas no mundo greco-macedônio que contivessem
presença do termo basileus nas moedas não soaria estranho, fazendo-se inclusive necessário
por sua vez, estabeleceu dois tipos de inscrição no reverso de suas moedas, o primeiro sendo
Esses dois tipos de inscrição podem ser vistas nas figuras a seguir:
157
entre 330 e 301 a.C. No anverso, temos a representação da cabeça de Héracles, vestindo pele
de leão, enquanto no reverso vemos Zeus entronizado, segurando uma águia e um cetro,115
11. Contudo, no que se refere ao reverso da Figura 12, mesmo que a moeda representada
.
115
De acordo com Plant (1979, p. 36-37), Zeus aparece sob diversas formas no material numismático
proveniente do mundo antigo. Contudo, quando vamos analisar a imagem dos soberanos, a representação
preferida do rei do Olimpo é a que este se encontra entronizado e segurando o cetro e a águia. As características
próprias desse deus, aliadas aos símbolos de poder da cena do deus entronizado, formavam um substrato de
grande valia para a construção e reafirmação do poder régio. Além da ligação com o poder monárquico, a
conexão com a figura de Zeus, assim como a da deusa Atená, era apropriada devido ao lugar ocupado por
Alexandre como novo líder da Liga Helênica, após a morte de seu pai (CARRADICE, 1995, p. 57).
158
Mesmo que nas representações das duas últimas figuras Alexandre se associe a
elementos da cultura helênica, como vimos nas moedas referentes a Filipe, a mudança na
poder exercido por Alexandre a partir da conquista do Oriente. Para começar, o local de
11, cunhada na Grécia continental, a moeda em que está inscrito o termo basileus foi
produzida na Babilônia. Mesmo que não seja possível definir uma datação exata para a
confecção do artefato, especialistas como Morkholm (1991, p. 51) e Carradice (1995, p. 58)
afirmam que é possível datar o início desse novo tipo de cunhagem por volta de 329 a.C., em
territórios do Oriente. Assim, infere-se que o título basileus inscrito em algumas moedas de
Alexandre destinava-se às moedas que circulavam nos territórios antes dominados pelos
do Argéada.
suporte de símbolos que poderiam auxiliar a fabricação da imagem régia. Em segundo lugar,
159
esse cuidado com a imagem revela uma estratégia política de Alexandre: de afirmação de seu
poder perante as populações orientais. De acordo com Morkholm (1991, p. 23), ao longo de
todo o século IV a.C. e no período helenístico, as moedas poderiam servir como um meio de
troca, como uma medida de valor ou como uma reserva de riqueza. Thonemann (2015, p.
111), por sua vez, destaca a importância do uso delas em pagamentos, principalmente o soldo
autores despreza o sentido ideológico presente nas moedas. Tanto Filipe quanto Alexandre e,
geralmente chamado de prestígio, reputação, fama etc, que é a forma percebida e reconhecida
como legítima das diferentes espécies de capital.” A utilização dos símbolos, inerentes aos
sistemas simbólicos, pode se tornar um fator importante para a integração social.116 Desta
forma, o capital simbólico auxilia a elucidar alguns fenômenos sociais que, de outra maneira,
1998, p. 15).
116
O uso de símbolos também pode gerar conflitos no meio social. Destacamos o caso do próprio Alexandre.
Mesmo que a adoção de símbolos ligados a basileia Aquemênida fosse parte importante de uma estratégia
política, houve momentos, de acordo com fontes como Arriano e Diodoro, em que os hetairoi se sentiram
incomodados com a visão de um monarca cada vez mais orientalizado em seu comportamento e vestes.
160
Foi por meio do seu capital simbólico que os artífices da basileia helenística se fizeram
ver e crer pelas populações dispersas pela oikoumene – fossem elas compostas por
adotaram o mesmo padrão de cunhagem iniciado por Filipe e depois adaptado por Alexandre,
pois a associação com os últimos soberanos argéadas era um componente do capital simbólico
dos diádocos do qual estes não poderiam abrir mão. No que concerne à cunhagem de moedas
realizada por Antígono, este buscou filiar-se mais especificamente a Alexandre, motivo pelo
qual as suas moedas foram todas cunhadas em nome do Argéada, como atestam as inscrições.
A moeda que possuímos com a inscrição do nome de Antígono no reverso foi, provavelmente,
região do Peloponeso por volta de 303 a.C., no qual Antígono é ligado aos mesmos temas
encontrados em moedas de Alexandre. No anverso, vemos uma vez mais a cabeça de Héracles
segurando águia e cetro e, por fim, a inscrição ΒΑΣΙΛΕΩΣ ΑΝΤΙΓΟΝΟΥ. Essa moeda
161
antecessores como forma de ratificar seu poder. Como dissemos, o próprio Antígono recorreu
demais diádocos. Até mesmo Alexandre fez diversas cunhagens em nome de seu pai e de
outros reis macedônios. Filiar-se aos soberanos do passado era, portanto, um elemento
Quanto a Demétrio, sua representação numismática é muito rica. Ele, inclusive, foi o
primeira década do século III a.C., em cujo anverso observamos Demétrio ornado com o
diadema e chifres de touro acima de sua testa. Já no reverso, aparece a inscrição ΒΑΣΙΛΕΩΣ
ΔΗΜΗΤΡΙΟΥ, acompanhada da figura de Poseidon, nu até a cintura, sentado sobre uma pilha
15, que apresenta outro tetradracma de prata, agora cunhado em Éfeso provavelmente por
reverso vemos Poseidon de pé, preparando-se para lançar seu tridente; ao lado dele, a Estrela
Nas moedas contidas nas Figuras 14 e 15, vemos como Demétrio se associou às
atributos dos monarcas macedônios que se propagou, no século IV a.C., pelo território da
Hélade: a representação do basileus como general vitorioso. Poseidon e Niké foram duas
117
Aplustre se refere a um ornato típico da popa de um navio.
163
sentado ou pisando sobre uma rocha (PLANT, 1979, p. 35), evidencia a virtude bélica de
Demétrio nas batalhas navais. Para acentuar esta característica militar, a associação com a
Niké foi importante. De acordo com Eugenidou e Domas (2004, p. 36-43), a presença da Niké
nas moedas se tornou recorrente a partir do século V a.C. Seu emprego exprimia um caráter
cívico, assinalando as vitórias das póleis. Mas, segundo os autores, a partir da segunda metade
do século IV a.C., a Niké passou a ser associada aos soberanos macedônios, Filipe e
simbólico, a proteção concedida pela deidade ao monarca e o seu sucesso e glória na guerra.
A representação da Niké contida na moeda da Figura 15, tocando trompete sobre uma
embarcação, foi o modelo mais frequente adotado pelos soberanos helenísticos, como
Outro símbolo importante que aparece na Figura 15 é o diadema usado por Demétrio. O
diadema, assim como outros atributos materiais do soberano aquemênida, foi decisivo para
basileia helenística, mostra como a legitimação do soberano, mesmo que construída a partir
da lógica do poder, deve manar do imaginário político partilhado pelo meio social no qual o
muitas controvérsias no que tange à figura de Alexandre, pois, para os gregos, vestir-se como
um oriental e reproduzir usos e costumes persas eram algo ignóbil, ainda mais para um
164
Alexandre costumava vestir trajes sagrados nos banquetes. Às vezes ele usava a
túnica púrpura de Ámon, chinelos e um par de chifres como o deus; às vezes ele se
vestia com a vestimenta de Ártemis (que ele costumava usar em seu carro); com
uma túnica persa, um arco e uma aljava pendendo de seus ombros. Às vezes vestia a
roupa de Hermes; as roupas utilizadas eram compostas por um manto púrpura, uma
túnica branca e um chapéu macedônio com o diadema real, mas nas festas usava
sandálias, um chapéu de viajante e carregava um bastão dos heraldos na mão dele;
ele também costumava brincar com uma pele de leão e uma clava, como Héracles.
assassinato de Dario III, ao vingar o Grande Rei mediante a execução de Besso. Assim como
Éfipo, Diodoro (XVII, 77, 4-7) reporta a adoção do diadema, da túnica e de outros paramentos
asiáticos por Alexandre. Nesse ponto, nos deparamos mais uma vez com o caráter híbrido que
Alexandre, após a conquista da Ásia, se tornava também o βασιλεὺς τῆς Ἀσίας, além de ser o
hegemón dos gregos, como fora seu pai.120 O mesmo caminho será tomado por Antígono, que
inicialmente se fará aclamar como basileus da Ásia, em 311 a.C., antes de se tornar o primeiro
basileus helenístico, em 306 a.C. Uma característica que por muito tempo chamou a atenção
dos estudiosos da realeza helenística foi a adoção do diadema por Alexandre, pois esse
elemento depois se tornou um dos mais importantes símbolos da basileia helenística e, como
mostramos na Figura 15, foi adotado por Demétrio em sua representação numismática.
Um estudo que marcou as pesquisas sobre o diadema foi o livro escrito por Ritter, em
1965, intitulado Diadem und Königsherrschaf. Esse autor defendia que à época o diadema
símbolo teria sido adotado dos Aquemênida. Todavia, a partir da análise feita por Smith
118
Essa censura à adoção por parte de Alexandre do comportamento e indumentária dos Aquemênida entra em
conflito com a visão ideologicamente predominante entre gregos e macedônios de que estes eram superiores aos
asiáticos e que foi reproduzida e relida pelos autores posteriores, como Diodoro e Plutarco.
119
Segundo Bosworth (2005, p. 332), Éfipo de Olinto, era um autor contemporâneo de Alexandre.
120
Na última parte deste capítulo, nos deteremos sobre a atuação do basileus helenístico como protetor das
póleis.
165
(1988, p. 34-37), que associou o diadema a Dioniso, e da observação de Alföldi (1985, p. 105-
110), que o relacionou à faixa utilizada na testa pelos concorrentes nos jogos gregos,
conjunto de artigos presentes na obra Das Diadem der hellenistischen Herrscher (2012),
aquemênida. Diversas frentes de interpretação são abertas nessa coletânea, como a de Haake
(2012, p. 304), que afirma ser muito difícil tratar o diadema como uma insígnia do soberano
helenístico, bem como estabelecer suas conexões com um território específico.121 Por mais
estimulantes que sejam essas reflexões sobre o diadema, pois suscitam a revisão de
argumentos existentes, concordamos com Olbrycht (2014, p. 184-186) que tais reflexões
de Alföldi (1985) carecem de suporte nas evidências materiais. Por isso, nos alinhamos com
Ritter (1965) que, sustentado pelas evidências documentais, associa o diadema ao poder régio
dos Aquemênida.
Sobre o uso do diadema pelo Grande Rei, Wiesehöfer (2003, p. 55-62) afirma que, na
Pérsia, um diadema cercava a tiara alta do rei e que membros da família real também
poderiam usar o diadema, mas a tiara era de uso exclusivo do monarca. Xenofonte (Cyr., VIII,
coroa de Ciro, o Grande (Cyr., VIII, 4): “[...] Enfim, Ciro apareceu sobre um coche vestido de
púrpura, e com uma tiara na cabeça; e logo todos se prostaram e o adoraram [..]”. Essa
das conquistas de Alexandre. Na opinião de Wiesehöfer (2003, p. 56), a tiara era um atributo
tão importante quanto o diadema. Seja como for, o diadema parece ter sido um componente
121
Haake discute amplamente sobre a origem do diadema e qual sua real natureza e significado no território
persa e no período helenístico.
166
importante da tradição régia aquemênida, usado em combinação com a tiara, visto que
Como relata Cúrcio (VI, 6, 4), o argéada adotou o diadema púrpura, visto que o
diadema era feito de tecido vermelho e bordado em branco, da mesma forma que Dario fazia.
Segundo Olbrycht (2014, p. 179), os soberanos aquemênidas poderiam usar coroas de vários
tipos, dependendo da ocasião, algo que se assemelha à prática de alguns reis medievais, que
distinguiam as coroas usadas nas cerimônias de homenagem feudal. Essa hipótese de Olbrycht
não parece de todo improvável, visto que os monarcas persas adotavam dois tipos de trajes
tipos de tiaras, ao lado do diadema. No que concerne à representação do diadema nas moedas
séries monetárias, sendo que os diademas presentes nas moedas oriundas das satrapias eram
constituídos de faixas estreitas, ao contrário dos diademas representados nas moedas dos
soberanos helenísticos. Nieswandt (2012, p. 79-85) ainda aponta uma imagem presente no
sarcófago de Alexandre como evidência de que este teria sido o responsável por introduzir o
diadema como símbolo régio, exemplo que foi seguido pelos demais soberanos helenísticos.
helenístico. Demétrio foi o primeiro a assumir o diadema em sua cunhagem, como parte do
uma vez mais o hibridismo dessa basileia. Com um caráter polimorfo, essa monarquia
helenísticas, estruturadas logo nos primeiros anos da morte de Alexandre, tiveram como seus
fundadores generais ligados a ele no campo de batalha. Dentre esses homens, Antígono
Monoftalmo foi o primeiro diádoco a buscar para si a posição de basileus, no que contou com
o auxílio de seu filho, Demétrio (Plut., Vit. Demetr., XVIII, 2; Diod. Sic., XX, 53). Antígono,
que também pertenceu ao ciclo dos hetairoi de Filipe, era um herdeiro da tradição macedônia.
aspectos: heroico, guerreiro e sagrado. E foi com base nesses fundamentos que Antígono
criou sua basileia. Esses elementos, conjugados com a manipulação da imagem de Alexandre
do qual a basileia helenística seria fatalmente tributária: o papel militar do soberano. Assim
como os demais monarcas macedônios, Antígono submeteu seus territórios mediante o poder
da lança (doriktetos chora). Quando Demétrio passou a ter idade para comandar operações
militares em nome de seu pai, assumindo o seu primeiro comando militar na batalha ocorrida
em Paraetacene contra Eumenes, em 317 a.C., esse atributo do general vitorioso, necessário à
constituição da imagem régia macedônia, tornou-se ainda mais forte. Mas a realeza que estava
se delineando no final do século IV a.C. constituía uma basileia nova, não sendo apenas
macedônia, oriental ou helênica, mas tributária destas três culturas. De fato, ao mesmo tempo
que o monarca era de origem macedônia e se apoiava em seu exército, ele se apresentava
como sucessor dos soberanos aquemênidas ou dos faraós, no caso dos Ptolomeus.
168
uma dinastia que perdurasse após o IV século a.C. Em parte, a tarefa não era fácil devido à
própria natureza controversa da lei de sucessão macedônia, que tratamos no segundo capítulo.
Todos os diádocos, não obstante suas idiossincrasias, mas ao mesmo tempo conservando as
capital e uma corte, adaptar as instituições do governo para enfrentar novos desafios e
fazer com que suas dinastias vingassem. Um elemento fundamental nesse processo foi a
atenção dada à filiação dinástica. Das dinastias fundadas pelos generais de Alexandre,
somente três prosperaram no século III a.C.: a dos Antigônida, que podemos ver na Figura 16,
a dos Selêucida e a dos Ptolomeu. Destas, a antigônida foi a primeira a se instaurar e seu
122
Entre outras coisas, isso implicava a responsabilidade de educar o príncipe herdeiro e seus outros irmãos.
Aqui se aponta para a importância da paideia do príncipe.
169
Segundo Troncoso (2005) e Alonso (2000), pai e filho tornaram-se um caso exemplar
de harmonia paterno-filial, base de uma boa paideia, por isso inspiraram narrativas que
[...] Demétrio [...] gostava muito de seu pai e a atenção e cuidados que dedicava à
mãe dava provas seguras de que honrava ao pai por genuína afeição ao invés de
apenas lisonjeá-lo por causa de seu poder. Em certa ocasião, quando Antígono
estava ocupado em uma audiência com embaixadores, Demétrio voltou para casa
depois da caça, aproximou-se do pai, o beijou e depois sentou ao seu lado do modo
que estava, com armas em mãos. Em seguida, Antígono, em voz alta, saudando os
embaixadores [...] disse, “Ó homens, levem também este relato sobre nós, sobre a
união em que vivemos”, querendo assim mostrar que, nas relações concordes e de
confiança entre ele e o filho, podia ser visto um não pequeno vigor do estado e uma
prova da força do seu poder [...].
entre pai e filho. Percebe-se também o destaque dado por Plutarco ao fato de Demétrio entrar
armado na sala onde se encontra Antígono e sentar-se ao seu lado, sem nenhuma reserva ou
constrangimento. O relato revela que, mesmo num contexto de aguda conturbação política,
170
Antígono estava longe de temer seu filho. Plutarco (Vit. Demetr., III, 3) ainda faz questão de
assinalar que, ao contrário de muitas famílias, a de Antígono não era atravessada por
assassinatos de parentes (mulheres, esposas, irmãos), sendo essa uma condição indispensável
para a segurança das dinastias. Billows (1990, p. 9-10) também enfatiza esse apego aos laços
familiares por Antígono, colocando-o como um homem de família que possuía um grande
afeto por sua esposa, Estratonice, com a qual foi casado por toda a vida, e por seus filhos.
Tanto para Antígono criar uma dinastia quanto para legitimar-se como basileus, a
relação parental com Demétrio foi decisiva. Num primeiro momento, poderíamos interpretar
essa concórdia entre pai e filho como resultante da idade avançada de Antígono. Contudo, as
fontes antigas o descrevem como um homem de grande energia física e mental. Apesar da
idade, Antígono seria um exemplo de homem robusto e vigoroso, como podemos ver no
A essa descrição de Antígono feita por Plutarco, podemos somar o relato de Sêneca, De
ira, no qual o autor, ao tratar de generais e líderes cujo exemplo não deve ser seguido pelo
fato de serem dominados pela cólera, apresenta Antígono como um modelo de moderação e
de brandura para com os seus comandados, mesmo ao ouvir alguns deles proferindo insultos
Essa descrição de Antígono mostra como as fontes antigas são contraditórias no que se
refere à imagem do diádoco. Se alguns autores enaltecem sua figura, outros acentuam sua
arrogância, crueldade e severidade, derivadas do amor pelo poder que possuía – φιλαρχία
(Diod. Sic., XXI, 1; Plut., Vit. Demetr., XXVIII, 2). Diodoro, ao tratar da expedição de
Antígono ao Egito, menciona o tratamento implacável por ele dispensado aos aspirantes a
desertores, que poderiam enfraquecer sua posição militar. Diodoro menciona ainda a
309/8 a.C., como desmandos praticados pelo general (Diod. Sic., XX, 75; XIX, 46, XX, 37).
O importante aqui é fazermos uma ponderação acerca dessas diferentes imagens de Antígono,
levando em conta que a maneira como ele era representado variava segundo as circunstâncias.
O contexto no qual o diádoco estava inserido era turbulento e, muitas vezes, exigiu
deste ações severas, como ser implacável com os inimigos no campo de batalha e até mesmo
deslocar a população inteira de uma cidade para outra, como ocorreu no caso de Escépsis
(Strabo, XIII, 1, 26). Retomando os exemplos citados por Diodoro, provavelmente Antígono
não poderia dar margem para que Peiton lhe causasse problemas no Oriente ou mesmo aceitar
com naturalidade o casamento de Cleópatra com seu rival, Ptolomeu. Além do mais, é
123
Peiton era um dos responsáveis pela segurança pessoal de Alexandre – Σωματοφύλακες. Após a morte do
Argéada, tornou-se sátrapa do território habitado pelos medos, região estrategicamente importante para o
controle das estradas entre o Leste e o Oeste. No verão de 320 a.C., Peiton juntou-se a Seleuco e Antígenes para
assassinar Pérdicas e eles começaram a negociar com os adversários. Ptolomeu sugeriu que Peiton fosse feito o
novo regente do império, mas os outros diádocos não aceitaram, tendo Antípatro assumido a regência. Após a
morte de Antípatro, Peiton expandiu seus domínios. Em 317 a.C., no entanto, os outros sátrapas orientais
uniram-se contra Peiton e o expulsaram. Os exércitos das satrápias orientais foram acompanhados por Eumenes,
que havia sido nomeado pelo novo regente Polipercon para subjugar Antígono. Peiton foi ajudado por Antígono,
que venceu Eumenes e seus novos aliados em uma batalha perto de Susa (FOX, 2011). Após a chamada Segunda
Guerra dos Diádocos, Peiton estava entre os generais mais poderosos na parte oriental do império.
172
possível citar ações de outros diádocos, narradas pelo próprio Diodoro e por outros autores,
que podem ser encaradas de forma tão ou mais severa quanto as de Antígono. Ptolomeu, por
exemplo, assassinou traiçoeiramente o seu aliado, Polemaios (Diod. Sic., XX, 27, 3);
Cassandro executou um amigo simplesmente por suspeitar de uma ambição excessiva por
parte deste (Diod. Sic., XX, 28, 1-3); ainda, Lisímaco puniu de forma cruel um amigo que
teria ridicularizado sua esposa (Sen., De Ira, III, 17, 2-4). Em contrapartida, o que não se pode
antes mesmo da morte de Alexandre, teve uma larga experiência na administração asiática.
Ao contrário dos demais generais de Alexandre, que continuaram a atuar ao lado deste no
campo de batalha, o velho general foi nomeado sátrapa da Grande Frígia por volta de 333
a.C., uma posição da maior importância, pois Antígono era responsável pelo controle das
linhas de comunicação reais, pela defesa da Ásia Menor e pelo apoio a Alexandre na
Apesar de, na condição de sátrapa da Frígia, Antígono ter ficado mais distante de
Alexandre, os dez anos que atuou na região foram determinantes para o fortalecimento da sua
posição. Segundo Anson (1988, p. 471), nesse período, Antígono aproveitou para criar um
protetorado na Ásia Menor baseado no controle direto de uma importante satrapia, a partir do
qual cosntruiu alianças com líderes nativos e recrutou forças locais. Como resultado, no dia
seguinte à morte de Alexandre, Antígono possuía uma das maiores forças militares com as
quais um diádoco poderia contar. Assim, ao longo de sua carreira, Antígono tinha adquirido a
Poucos anos depois, a associação cada vez maior com o filho, Demétrio, aumentaria ainda
124
Autores antigos como Arriano (Anab., I, 29, 3) e Quinto Cúrcio (III, 1, 8), fazem referência a esse posto
assumido por Antígono.
173
contra Eumenes,125 em 317 a.C., aos 19 anos, mas apenas em 313 a.C. foi nomeado estratego
da Síria e da Fenícia por seu pai (NEWELL, 1927, p. 8). A respeito dessa aliança política
entre pai e filho, podemos afirmar que foi estratégico para Antígono contar com o auxílio de
alguém com o carisma e o talento militar de Demétrio, sem mencionar que, devido à afinidade
entre ambos, era possível ao diádoco não temer uma traição por parte daquele que se tornaria
67) esclarece como, na maioria das monarquias da Antiguidade, foi um hábito do soberano
associar o filho ao trono, sendo o jovem rei frequentemente treinado para a sucessão por meio
O principal problema após a morte de Alexandre foi, sem dúvida, encontrar um sucessor
capaz de assumir o império territorial deixado pelo argéada. Somente uma de suas esposas,
Roxana, estava grávida e a outra alternativa para a sucessão dinástica era o meio irmão de
Alexandre, Arrideu, quem as fontes, como Arriano (Photius, Bibliotheca, 92) e Plutarco (Vit.
Alex., LXXVII, 4-5), reportam como incapaz. De acordo com Adams (2006, p. 29), diante do
impasse sucessório abriu-se espaço para a disputa pelo poder que conduziu ao fim da dinastia
argéada, quando então emergiram as dinastias dos principais reinos helenísticos. Adams
(2006) realiza uma análise cuidadosa sobre o surgimento das primeiras dinastias helenísticas,
helenística. Contudo, o autor diminui bastante o papel de Antígono nesse processo, dando
ênfase somente às ações militares de Demétrio, em especial após 306 a.C., depois de
Antígono tornar-se basileus. Adams, assim como outros autores, ao analisar a monarquia
125
Sant’Anna (2011, p. 83-84), mostra ainda que, nesta batalha, Demétrio não atuou sozinho no comando, mas
lutou ao lado de seu pai, que teve importância fundamental para a vitória sobre Eumenes, vitória essa que
fortaleceria mais ainda a posição de Antígono.
174
desconsiderando grande parte do período anterior, que para nós é essencial para a
compreensão da nova forma de governo que se estabelecia, por ser justamente o período de
Para nós, analisar a configuração da realeza helenística apenas a partir de 306 a.C. é
uma opção que não se justifica, pois defendemos que a atuação de Antígono, ao lado de
Demétrio, nas duas primeiras décadas após a morte de Alexandre, foi decisiva para a
no entanto, ganhado força ao longo das últimas décadas entre alguns estudiosos, como Boiy
Em primeiro lugar, a morte de Antígono, em Ipso, em 301 a.C., foi tratada por diversas
vezes como símbolo do fracasso do projeto político do monarca, o que não se justifica, pois a
realeza antigônida foi uma das que prosperaram ao longo do século III a.C. Em segundo
lugar, a imagem de um jovem combatente, como Demétrio, sobre a qual as fontes antigas
helenística. Em terceiro lugar, analisar o papel de Antígono nesse processo torna-se muito
mais complicado por causa das informações esparsas e contraditórias sobre sua persona, que
em grande medida derivam de uma estigmatização da imagem de Antígono após sua morte,
por diádocos como Ptolomeu, que buscavam reforçar a sua própria imagem como basileus.
Por último, mas não menos importante, o protagonismo concedido a Demétrio por seu pai
Por todas essas questões, para nós é de suma importância analisar a construção da
basileia helenística a partir dos Antigônida. Ao fazermos isso, temos como objetivo propor
uma reflexão sobre essa forma de governo que escape do lugar comum no qual muitos autores
ainda a colocam. As ações de pai e filho, de forma conjunta, foram fundamentais nos rumos
que essa monarquia seguiu. Desta forma, seguimos analisando ambas as imagens – a do pai e
175
a do filho – mas sem nunca esquecer que foi Antígono um dos artífices do sistema político em
construção.
elemento foi tão importante na constituição da basileia helenística que, segundo Gehrke
(2013, p. 73), o rei tornou-se o fundamento do próprio Estado, que subsistia apenas por
governados. Para tanto, devemos considerar a legitimidade muito mais do que a legalidade
das ações do monarca. De acordo com Gehrke (2013, p.74), o reconhecimento do monarca se
dava, sobretudo, mediante o seu sucesso militar perante os súditos. A essa altura torna-se
evidente que a associação com o filho fortaleceu ainda mais a imagem de Antígono, primeiro
como general vitorioso e, depois, como basileus vitorioso, pois, como Demétrio tornou-se ao
longo do governo do pai o comandante supremo das forças antigônidas, o destaque dado à sua
recorrente.
vitória militar contra os demais rivais. Inclusive, foi após uma vitória militar liderada por
reproduzidas no início desta seção deixam entrever, que Antígono foi aclamado basileus por
seu exército, em 306 a.C. Ao mesmo tempo, a proclamação de Antígono como basileus, ao
lado de Demétrio, alertava os demais diádocos para o término da ficção acerca de um poder
governado em nome da casa dos Argéada, por isso Ptolomeu, Seleuco, Lisímaco, e
(2005, p. 57) e Müller (1973) informam que a proclamação dos generais de Alexandre como
176
basileis logo após a entronização de Antígono deu ao ano de 306 a designação de Ano dos
Reis.
seu exército, ligando-se assim visivelmente às tradições da realeza macedônia, suscitam uma
controvérsia de interpretação: constituiria esse fato uma eleição do basileus ou tão somente
uma ratificação da sucessão régia? Sobre isso, estamos de acordo com Adams (2006, p. 32-
políticas executadas por Antígono, principalmente a partir de 321 a.C., após o acordo firmado
em Triparadiso, que culminou com sua proclamação como rei e a fundação da dinastia
Podemos supor que o ano de 311 a.C. foi um divisor de águas na constituição da nova
dinastia. É também nesse ano que os vínculos políticos entre Antígono e Demétrio se tornam
mais estreitos. Entre 315 e 311 a.C. as forças de Antígono obtiveram diversas vitórias sobre
os rivais. Contudo, a rudeza das batalhas e alguns reveses levaram Antígono a propor uma
trégua com os demais diádocos, celebrada em 311 a.C. Grosso modo a Paz de 311 dividiu o
Lisímaco.126 Por meio dessa divisão, tornou-se evidente que a existência de uma oikoumene
126
Para Simpson (1954, p. 25-27), a ausência de qualquer menção a Seleuco nas fontes que tratam do acordo de
paz entre os diádocos, em 311 a.C., pode ser interpretada como uma exclusão deliberada de Seleuco do acordo,
já que tanto para Simpson, quanto para Will (1984, p. 53), a eliminação de Seleuco era a prioridade de Antígono
à época.
177
sob domínio argéada não passava de uma ficção. No entanto, por mais que, na prática, os
de um sucessor argéada legítimo, como o filho póstumo de Alexandre com a princesa Roxana
ou Arrideu, filho de Filipe, complicava os planos dos diádocos em conferir legitimidade aos
respectivos governos.
Quando Alexandre IV foi assassinado, por volta de 310 a.C,127 por ordem de Cassandro,
sobretudo nos território da Grécia e da Macedônia.128 O principal relato que temos sobre o fim
Segundo autores como Shipley (2000, p. 42), Billows (1990, p. 155) e Austin (2003, p.
84), talvez os diádocos só tenham de fato respirado aliviados quanto à questão sucessória e à
127
A data da morte de Alexandre IV é controversa. Alguns, como Austin (2003) em sua seleção de fontes sobre
o período, dão a entender que o príncipe teria sido morto logo após o acordo de 311 a.C. Entretanto, a maioria
dos autores situam o assassinato do menino por volta de 310 a.C. (WILL, 1998, p. 317-318; BILLOWS, 1990, p.
155). Essa confusão se dá provavelmente pelo motivo de Cassandro ter mandado matar o herdeiro argéada e
depois ter enterrado o corpo em segredo. Seja como for, optamos por 310 a.C., pois foi a partir desta data que os
boatos sobre a morte do herdeiro de Alexandre foram definitivamente confirmados.
128
Nos territórios asiáticos, os diádocos já se portavam como basileis. O próprio Alexandre havia adotado o
título de basileus na Ásia, como sugere a expressão βασιλέα τñς ՚Ασίας contida em Arriano (Anab., II, 14),
usado por Alexandre ao responder uma carta de Dario. E vemos o mesmo dado aparecendo em Quinto Cúrcio
(IV, I, 10).
129
Simônides, teria sido arconte em Atenas durante o ano 311 a.C. (DUFRESNOY, 1762, p. 158).
178
realidade de suas próprias dinastias após 309 a.C., quando o último descendente de Alexandre
veio a falecer: Héracles, um filho ilegítimo que o monarca teve com sua amante Barsine, uma
nobre persa. Diodoro (XX, 20-28) informa que Poliperconte pensou em utilizar o jovem, que
na data contava com dezessete anos, como rival de Cassandro, mas teria sido persuadido pelo
próprio Cassandro a executar o rapaz, o último elo consaguíneo com os Argéada. Esse
episódio revela a importância de se eliminar todos os concorrentes que detinham filiação com
político então vigente. Na sequência, Antígono e Demétrio buscariam cada vez mais reforçar
seu poder, seja por meio de ações militares, acordos políticos ou atributos simbólicos. Nesse
último caso, um fator importante para a instauração da nova dinastia foi a ligação da
atualizaram.
eram definidos por sua posição em uma intrincada rede de relações sociais. As alianças
políticas que celebravam, da mesma forma que suas relações de interdependência e suas redes
de parentesco, criavam elos, reais ou imaginários, entre os membros de uma elite e seus
antepassados. Esse imaginário do qual trata o autor se refere ao que Le Goff (1975) chama de
maravilhoso político. Para Le Goff, em diversos momentos da História foi por meio do
mão do recurso às origens míticas, mas sem que própria linhagem dos Argéada tenha sido
130
O maravilhoso contém em si acontecimentos fantásticos impossíveis de se realizar dentro de uma perspectiva
empírica da realidade (MARÇAL, 2009, p. 2).
131
Os mitos, impregnados por gestas fantásticas de heróis muitas vezes fabulosos, em diversos momentos
serviram como origem e legitimação para inúmeras sociedades ou, como ocorreu na maioria dos casos, como
elemento de gloriosa ascendência para determinada família (BARCELLOS, 2011, p. 102). Isso se aplica tanto ao
génos dos Argeadae/Temenidae, quanto ao dos Antigônida, que ligaram suas origens familiares ao mito de
Héracles, por exemplo, como forma de legitimação do poder dinástico.
179
Alexandre, que lhe proporcionava uma relação direta com as divindades e heróis protetores
O apoio das divindades padroeiras às novas dinastias que emergiam era de suma
importância, visto que todas as realezas helenísticas precisavam afirmar sua legitimidade.
Para Walbank (1984, p. 85), era natural que os Antigônida tentassem sustentar suas
olímpico, pois a posição do rei se fortaleceria ainda mais se ele pudesse apresentar-se como o
governo, os Antigônida enfatizaram sua associação, decerto fictícia, com os Argéada, como
podemos ver em Políbio (V, 10, 9-10), quando trata de Filipe V e recorda as glórias dos
monarcas passados:132 “Com esses exemplos constantemente presentes em sua mente, Filipe
deveria se mostrar como o verdadeiro herdeiro e sucessor desses príncipes, não apenas
herdando seu reino, mas também seus princípios e magnanimidade [...] e durante toda a vida
ele [Filipe] se esforçou para provar que estava ligado pelo sangue a Alexandre e Filipe [...]”.
Héracles por ancestral, como é possível concluir dos testemunhos numismáticos e epigráficos
referentes a Antígono e Demétrio. Essa filiação com Héracles e demais divindades, assim
como a ligação com a dinastia de Alexandre, foi herdada pelos sucessores dos fundadores da
132
Filipe V, que governou a Macedônia de 221 a 179 a.C., era filho de Demétrio II, neto de Demétrio
Poliorcetes.
180
Anfípolis, no qual observamos a associação desse monarca com Héracles, Perseu e a dinastia
argéada. No anverso da moeda, nota-se um escudo macedônio adornado com sete estrelas de
oito pontas dentro dos dois crescentes, que é um símbolo argéada. No centro do escudo, temos
o herói Perseu usando um capacete alado e com uma harpa atrás do pescoço. No reverso,
destaca-se uma clava, associada a Héracles,133 dentro de uma coroa de carvalho, acompanhada
133
A clava de Héracles surge como um emblema associado aos Antigônida a partir da cunhagem de Antígono II.
181
Já na Figura 18, temos uma moeda cunhada durante o governo de Antígono II (277-239
a.C.). Percebe-se mais uma vez a presença de vários componentes ligados às divindades e aos
macedônio adornado com sete estrelas de oito pontas; no centro dele, há o busto de Pã com
chifres. No reverso, está representada Atena Álcis em posição de avanço, brandindo raio e
emitiu uma série de tetradracmas com a cabeça de Pã, talvez em reconhecimento ao auxílio
anterior, Antígono, por meio das moedas, buscou associar-se a Alexandre, adotando um
Demétrio, em diversas moedas, associa-se a deuses como Héracles, Zeus, Poseidon e à Niké.
No que se refere às fontes epigráficas, ao menos às que chegaram até nós, os nomes de
seu representante direto, seja na celebração de alianças, como no caso da tentativa de criação
de uma nova liga reunindo os gregos (IG, VII-IX; IG, IV² (1) 68), ou na recepção de honrarias
182
e cultos por parte das póleis, como podemos ver por meio de um fragmento de um decreto
ateniense, que ainda em 213/2 a.C. atesta a manutenção de honrarias a pai e filho por meio do
culto aos heróis epônimos (IG, II³, 1, 1165, 15-20): “[...] para louvar as pritanias dos
[Antigônida] e coroá-los com uma coroa de ouro de acordo com a lei, e piedade para com os
Importa acrescentar que não subestimamos a capacidade militar que Demétrio agregava
à figura do pai, mesmo porque esse dado se impõe a qualquer investigação sobre a formação
da basileia helenística. A filiação entre os dois, todavia, ultrapassa a esfera militar. Mesmo
que a vitória nos combates seja fundamental para a legitimação do soberano, não podemos
minimizar o impacto das representações nem a maneira pela qual o rei obtinha o equilíbrio
entre a força física e a simbólica, componentes indispensáveis do jogo político que conduziu à
a Demétrio, após o cerco a Rodes, em 305/4 a.C., e que celebrava indubitavelmente a sua
habilidade militar.
antigônida, que nascia sob o comando do diádoco mais experiente de Alexandre, lançou mão
de vários expedientes para consolidar sua legitimidade, dentre os quais as conquistas militares
e a associação com as divindades. Demétrio e Antígono, mais do que pai e filho, eram
pelo qual analisar tal processo sem considerar a atuação desses homens é algo, em nossa
opinião, inviável. A simbologia em torno das figuras de Antígono e Demétrio, porém, apesar
de primordias, não são os únicos elementos que compõem a formação dessa basileia que,
como organização política, tem em sua base uma série de concepções filosóficas. Por isso,
outro aspecto relevante quando se investiga a formação da basileia é avaliar em que medida
183
filosóficas, ao mesmo tempo que é constituído por todo um imaginário partilhado pelo grupo
traduzir os anseios e aspirações das distintas categorias sociais, mesmo que isso não ocorra de
helenística não fogem a essa regra. Os primeiros basileis tiveram suas monarquias
representações delineadas ao longo do século IV a.C., ao mesmo tempo que práticas exercidas
De acordo com Serbena (2003, p. 5), o imaginário desempenha uma função social e
virtuosa, mas, ao mesmo tempo, de um homem forte, que evoca a imagem do herói homérico,
184
clama por um salvador capaz de restituir à sociedade a segurança perdida (GIRARDET, 1987,
p. 63-71). Segundo Carvalho (1987, p. 11), é por meio do imaginário que: “[...] as sociedades
definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado presente
e futuro [...]”. Isso significa dizer que uma sociedade constrói, em certos termos, a si própria,
de acordo com os princípios daquilo que Anderson (2008) define como comunidade
conflito, onde ocorrem lutas de representações entre diferentes grupos, que buscam o
monopólio do poder, ideia que vai ao encontro do pensamento de Chartier (1990), no que
Como discutimos no capítulo anterior, ao longo do século IV a.C. vimos tomar forma
toda uma especulação política e filosófica em torno do governo e do governante ideais. Esse
período foi marcado por uma profusão de debates acerca da monarquia e das virtudes régias
promovidos por autores como Isócrates e Xenofonte, por exemplo. Para Platão (Pl., Plt.,
294A; Pl., Leges, IV, 711E-712A) e Aristóteles (Arist., Pol., III), a melhor constituição
Segundo Walbank (1984, p. 76-77), a monarquia foi um objeto de reflexão sobre o qual
o autor, embora afirme que alguns dos fundamentos filosóficos em torno da monarquia e do
acredita que as especulações dos filósofos não contribuíram diretamente para o surgimento da
134
Nesse caso, Walbank provavelmente se remete à questão de que, para o homem grego, o homem da Hélade, a
visão de que a monarquia não era uma instituição adequada ainda era muito forte. Nesse aspecto, concordamos
185
regime político, se torna complicado concluir qualquer discussão sobre a melhor forma de
governo do ponto de vista filosófico. Quanto a isso, vale a pena lembrar que os próprios
tratados sobre a realeza helenística surgem apenas mais tarde, por meio da solicitação dos
próprios basileis, já instalados no poder. Um tema recorrente nesses tratados eram as virtudes
inerentes ao bom rei, que deveria ter conhecimento da filosofia para bem governar. No que se
refere à redação desses textos filosóficos, há certo destaque pa os Antigônida, como podemos
É relatado que o rei Antígono era popular e brando [...] Eu devo mostrar aqui apenas
um ato seu cheio de clemência e vazio de orgulho [...] Antígono, percebendo que seu
Filho se comportou de forma rígida e severa em relação a seus súditos: “Você não
sabe, filho, disse ele, que nosso reino não é senão uma gloriosa servidão?” Esse
discurso de Antígono para o seu filho expressou muita brandura e humanidade.
Aquele que concebe o contrário, em minha opinião, parece não entender o que
compete a um rei ou a um súdito, parecendo ter vivido sob algum tirano (Aelianus,
Varia Historia, II, 20).135
No trecho citado, vemos como uma conduta marcada pelas virtudes deveria ser o
caminho trilhado pelo monarca. Eliano destaca virtudes régias que condicionaram a
representação do soberano ideal no período helenístico, como brandura e clemência para com
os súditos.
Infelizmente, boa parte dos tratados sobre a realeza helenística se perdeu. O que temos
(Περι βασιλείας) preservados por Estobeu, que viveu no século V d.C., e cujos autores são
com o autor, mas devemos ressaltar que os primeiros basileis trataram de lidar com esse posicionamento típico
das póleis por meio de um discurso que preconizava a liberdade e autonomia destas, propósito propagandístico
que viria a pautar a relação entre o basileus e as póleis.
135
O aparecimento de preceitos como brandura, clemência, humanidade e certa servidão do monarca aos súditos
nesse relato talvez tenha sido influenciada pela informação, não muito precisa, de que Antígono II encorajou, em
sua corte, a presença dos estoicos. Contudo, na prática, é complicado ver a interferência dos princípios estoicos
na corte antigônida.
136
Esse é o caso do livro I das Histórias de Diodoro, que, ao falar sobre a realeza ptolomaica, provavelmente se
baseou na obra do historiador Hecateu de Abdera, escritor da obra Aegyptiaca.
186
fragmentos começam pela datação, uma vez que os tratados teriam sido compostos num arco
cronológico que vai do século III a.C. ao III d.C. Além disso, esses textos recolhem ideias
contidas numa gama extensa de fontes, muitas das quais tardias no que se refere à monarquia
helenística. Por muito tempo, os fragmentos dos três tratados permaneceram esquecidos,
de 1928, no qual o autor interpreta tais documentos como “programas”, visando a estabelecer
uma teoria filosófica do poder destinada aos primeiros reis helenísticos. Nessa perspectiva, a
melhor forma de governo, segundo os filósofos, não seria mais o governo coletivo da pólis,
Delatte (1942, p. 123-163) sustenta que os tratados contêm duas ideias fundamentais
sobre a basileia: o direito divino ligado à instituição da realeza; e a monarquia como imitação
terrena (mimésis) do governo divino, como podemos ver pelo fragmento coletado por Estobeu
[...] o basileus tem uma natureza mais divina, vencendo a natureza comum por meio
de seu princípio mais elevado. É semelhante ao outro [homem] pelo “pano”, visto
que ele foi feito do mesmo material, mas foi fabricado pelo melhor artista, que o
criou, tomando-se a si como modelo. O rei é realmente o único ser capaz de
representar o rei de cima: seu criador é conhecido em todos os momentos [...] seus
súditos [...] veem a basileia como uma luz [...] ela é divina e difícil de contemplar
por causa de seu brilho excessivo, exceto para os pretendentes legítimos [...] A
basileia [...] é algo puro, incorruptível e indescritível para os seres humanos, por
causa da abundância de sua divindade. Portanto, é necessário que quem estabeleça a
realeza tenha uma natureza muito pura e muito brilhante [...] (Stobaeus, Ἀνθολόγιον,
Ecfanto, VII, 64).
da monarquia como reflexo do governo divino não provêm da escola pitagórica – daí a
classificação dos tratados como pseudo-pitagóricos –, mas são o resultado de uma lenta
orientais e que se perpetuaram sob o Império Romano. Apesar de recolherem elementos que
187
A construção de uma imagem modelar do monarca pode evitar uma série de excessos
necessária na medida em que tais virtudes justificam a monarquia aos olhos dos súditos. As
virtudes régias se tornam mais importantes quando refletimos sobre o sentido da Lei no
mundo helenístico. A relação entre o basileus e a Lei constitui um problema especial, pois no
período helenístico não existiu uma institucionalização do poder do soberano. Em tese, o rei
era limitado pela Lei, mas ao mesmo tempo a encarnava. Então, como poderia haver uma
Por isso talvez seja tão recorrente, tanto nos escritos dos filósofos quanto nos tratados
da realeza, a importância da virtude e o papel da Lei no exercício do governo, como fica claro
no trecho seguinte: “[...] porque sem justiça, ninguém seria basileus, e, sem lei, não há justiça.
Porque o direito está na lei e a lei é a causa da justiça, sendo o basileus a lei viva [ό δὲ
βασιλεύς ῆτοι νόμος εμψυχός], ou o magistrado que está em conformidade com a lei [...]”
comportamento moderado e responsável, mas, no trecho exposto, vemos a tensão que existe
entre o monarca como lei animada, corporificada e representante de uma lei inanimada,
consignada num código escrito. Os documentos que buscam dar conta da concepção filosófica
da realeza, na maioria das vezes, recomendam que o rei não exerça um poder absoluto, mas
A questão que mais uma vez se coloca é a da real aplicabilidade dos preceitos
filosóficos contidos nos tratados sobre a realeza para a construção da basileia ideal, assunto
sobre o qual ainda pairam muitas incertezas. O que podemos afirmar é que, na constituição
188
desta realeza, elementos de caráter não institucional tiveram um peso considerável. Para
helenística, certamente não estamos falando dos poderes constitucionais do rei. Para o autor, a
representação que cerca o basileus foi constituída por um conjunto de crenças coletivas a
respeito do papel do monarca: sua natureza quase divina, sua generosidade como benfeitor,
que de fato se destaca é essa. Como vitorioso, o monarca se apresenta como sóter e evérgeta
de seu povo. Por isso, não soa estranho que Diotógenes inclua em primeiro lugar, na lista das
basileus tem três funções: comandar o exército, servir a justiça e honrar os deuses [...]” (Stob.,
Flor., Diotog., VII, 61, 264); ou que Políbio (IV, 77, 3) destaque a competência militar e a
soberano, aparecem as virtudes, que se unem à figura do rei sob a forma de epítetos.
Sóter (Σωτήρ) e Evérgeta (Εὐεργέτης) são títulos usados sobretudo pelos Ptolomeu, mas
também por outros basileis. Antígono e Demétrio são exaltados como sóter e evérgeta em
diferentes documentos que tratam da gratidão das cidades por eles auxiliadas, como no trecho
epigráfico abaixo, localizado na ágora ateniense, e que trata da concessão de honras divinas
aos Antigônida após Demétrio, a mando do pai, ter libertado a cidade de Atenas do domínio
possam seguir e homenagear [eles com as mais ilustres] honras (SEG, 25, 149; SEG,
25,145; SEG, 25, 150).137
Nesse fragmento, datado de 303/2 a.C., percebemos que o termo basileus já aparece nas
inscrições provenientes da Grécia continental e que esses reis são alvos de cultos e honrarias
por parte das cidades por eles favorecidas. O basileus era visto como o bom pastor, como no
caso de Antíoco I (OGIS, 219), por isso deveria ter bravura. A coragem (ἀνραγαθία) de
Antíoco é mencionada em vários decretos, sempre associada a outras virtudes régias, tal como
a generosidade (φιλανθρωπία), que é um dos atributos que mais aparecem nas inscrições
A bravura do monarca era direcionada amiúde para fins defensivos, no combate aos
inimigos. Quanto a isso, os Antigônida são vistos como eternos protetores das fronteiras ao
norte da Grécia, papel reforçado em algumas fontes antigas. Os reis helenísticos eram assim
guardiães ou restauradores da paz, como vemos na narrativa de Políbio (IX, 35, 1-4) sobre os
assuntos referentes à Grécia, onde se apresenta uma alusão de Flamínio, um general romano,
ao discurso do embaixador Licisco contra os etólios em que ele enfatiza a importância dos
[...] você se orgulha de ter resistido ao ataque dos bárbaros em Delfos e dizer que os
gregos devem lhe agradecer por isso. Mas se agradeço aos etólios por esse serviço
único, quão altamente devemos honrar os macedônios, que para a maior parte de
suas vidas nunca cessaram de lutar contra os bárbaros por causa da segurança da
Grécia? Pois quem não tem consciência de que a Grécia teria permanecido
constantemente no maior dos perigos, não estivéssemos cercados pelos macedônios
e pela honrosa ambição de seus reis?
137
A sigla SEG se refere à abreviação de Supplementum Epigraphicum Graecum, que porta um conjunto de
inscrições compiladas por Pierre Roussel e outros pesquisadores.
190
proposta por Weber (1999), de acordo com a qual o poder emana do próprio líder, que possui
econômica ou religiosa, Gehrke defende que o poder carismático é o que melhor ilumina a
forma da realeza helenística. Segundo Weber (1999), são necessárias duas condições para a
pela instabilidade. Essa ideia corrobora a representação do basileus como salvador, que se
desdobra em quatro modelos de heróis estabelecidos por Girardet (1987, p. 19-20): Cincinato,
De acordo com esse esquema, o herói da normalidade e o herói da exceção são extremos
muitas vezes uma constelação de símbolos, como foi o caso de Alexandre. O herói que se
período de caos para salvar a população, devido aos próprios apelos dela (nesse caso, o herói
é aquele que apazigua, que protege e restaura a ordem); ser uma figura jovem e conquistadora,
cujo furor bélico é seu principal atributo, pois com sua força e audácia domina a tudo e a
todos, transitando entre a ordem do humano e do sagrado; ele também pode aparecer no papel
do legislador, que substitui a figura do conquistador, fundando uma nova ordem; e, por
Essas quatro categorias de heróis, que podem ser conjugadas em uma mesma figura,
Alexandre, surge a necessidade de instauração de uma nova ordem, que desemboca num novo
191
sistema político para o qual são fundamentais novos mecanismos de legitimação, como, por
exemplo, a construção idealizada da imagem do rei como herói salvador, que, por sua vez,
fusão de práticas orientais, mas também possuía raízes na cultura grega, como no culto ao
general vitorioso, que se propagou durante o século IV a.C. Havia assim uma relação direta
divindades foi uma prática constante dos Antigônida e das demais dinastias helenísticas.
Gehrke (2013, p. 83) sublinha uma impressão errônea que muitos podem ter, num
que tal realeza foi por excelência marcial. Esse posicionamento, segundo o autor, não é
totalmente aceitável, visto que devemos considerar os limites da atividade militar. Acordos
diplomáticos e alianças para estabelecer a paz foram comuns entre os diádocos, não sendo
[...] [Demétrio] também perdeu sua tenda, seu dinheiro e, em uma palavra, todos os
pertences pessoais. Mas Ptolomeu enviou-os de volta para ele, juntamente com seus
amigos, acompanhando-os com a mensagem atenciosa e humana de que uma guerra
não deve ser travada para todas as coisas, mas apenas para a glória e o domínio.
Demétrio aceitou a bondade e rezou aos deuses para que ele não estivesse em dívida
com Ptolomeu por isso, mas que pudesse rapidamente fazer um retorno semelhante.
E ele tomou seu desastre, não com o abatimento de um jovem frustrado no início de
uma empresa, mas como um general sensato, familiarizado com os inversos da
fortuna, e ocupou-se com a cobrança aos homens e a preparação de armas, enquanto
ele manteve as cidades em suas mãos e treinava seus novos recrutas.
de Demétrio com o inimigo após uma vitória: “Essa vitória, tão justa e brilhante, Demétrio
adornou ainda mais por sua humanidade e bondade de coração. Ele deu aos mortos do inimigo
192
um magnífico sepultamento, e libertou seus cativos [...]”. Concordamos com a visão de que a
monarquia helenística não se resumiu a guerras e destruição. O fato de a guerra ser necessária
basileia não significa que as batalhas fossem ardentemente desejadas e ocorressem a todo
momento. Walbank (1984, p. 81-82) afirma que, na realidade, os basileis não buscavam
aniquilar seus oponentes, sendo o principal objetivo da guerra conquistar e manter o território
em segurança. Além do mais, o rei deveria levar em conta os anseios dos seus súditos e
subordinados que, na maioria dos casos, ansiavam pelo restabelecimento da ordem e da paz.
No que se refere à relação entre os súditos e o soberano, Gerhke (2013, p. 83-85) chama a
Diante disso, é impossível não evocar os exemplos de Antígono e Demétrio. Dentro dos
as póleis, por meio do discurso em defesa da liberdade dos gregos e do auxílio material a
muitas cidades, das quais recebiam, em troca, honrarias como heróis salvadores e benfeitores.
É justamente por intermédio desses benefícios concedidos às cidades gregas, como defesa
contra invasores e ajuda financeira, por exemplo, que vemos pai e filho exercerem o
constituídos ao longo do século IV a.C., pois vemos em atuação o rei virtuoso que governa
em prol dos seus súditos, que é o bom pastor e não age como um tirano.
193
Diante do exposto, não defendemos que a basileia helenística tenha sido um mero
reflexo dos princípios filosóficos enunciados no século IV a.C. e recolhidos nos tratados
tardios sobre a realeza, mas também não concordamos que essa monarquia tenha sido forjada
tão somente pelos feitos militares dos diádocos e seus descendentes. Consideramos necessário
um equilíbrio entre ambas as variáveis. A monarquia helenística pode ter sido criada no calor
Demétrio, torna-se fundamental abordar a relação deles com as póleis da Península Balcânica,
diádocos, responsáveis pela criação das outras dinastias helenísticas, tenham sido alvo de
destacam nesse particular, sobretudo pelo fato de o próprio Antígono, por meio de sua famosa
proclamação de Tiro, datada em 314 a.C., ter lançado as bases para a futura relação entre os
Antígono, apoiado pelo exército, declara Cassandro como traidor e inimigo dos
194
macedônios,138 ao mesmo tempo que proclama a liberdade de todos os gregos, de maneira que
não deveriam ser oprimidos por guarnições estrangeiras em suas respectivas cidades,
recuperando assim sua autonomia. Diodoro (XIX, 61, 3-4), em seu relato, nos informa que:
“[...] Quando os soldados votaram em favor dessas medidas, Antígono enviou homens em
todas as direções para levar o decreto, porque ele acreditava que, por esses [gregos] terem
esperança de liberdade, ganharia o apoio ansioso deles a seu lado na guerra [...]”.
Por causa dessa jogada política, bastante perspicaz por sinal, não nos causa surpresa que
o primeiro culto prestado a um governante helenístico por uma pólis tenha sido dedicado a
Antígono. A cidade em questão foi Atenas, que, em 307/6 a.C., rendeu homenagens divinas a
Antígono Monoftalmo, extensivas a Demétrio Poliorcetes, após ter sido libertada do domínio
instituiu um culto a ambos, mandando erigir um altar e estabelecendo um festival anual com
A principal questão que aqui se coloca diz respeito à razão pela qual se instituiu um
culto desse tipo aos soberanos helenísticos, assim como o seu significado e limites, tendo
como foco as honrarias prestadas aos Antigônida. Por isso, a contribuição dos dados
epigráficos torna-se fundamental para demonstrar como as póleis tiveram um papel decisivo
na constituição desse culto e os meios que empregaram para tal. Polifônico, o culto ao
soberano, ao mesmo tempo que era conveniente às póleis, pois recebiam proteção e ajuda
138
Como vimos, Cassandro, após a morte de Alexandre III, ficou responsável por governar parte da Grécia até a
maioridade do filho póstumo do monarca com Roxana. Contudo, Antígono, aproveitando-se de desavenças
políticas e da acusação que pairava sobre Cassandro de ter assassinado Olímpia, mãe de Alexandre, lidera uma
ofensiva contra o mesmo. Entre as decisões tomadas durante essa reunião, relatada por Diodoro, estava a
exigência para que Cassandro libertasse de sua tutela Alexandre IV e a mãe Roxana.
195
Desde 321 a.C., ao ser nomeado estratego das forças reais e estratego da Ásia, Antígono
(2012), entre outros autores, destacam o papel central que a vitória militar teve para a
legitimação de Antígono como soberano. Como vimos, o basileus helenístico teria como um
de seus principais atributos a vitória militar, pois era considerado alguém capaz de aplacar as
mazelas sofridas por dada localidade, o que justifica o epíteto salvador (Sóter), amiúde a ele
da imagem de general vitorioso, cada vez mais fortalecida pelos sucessos militares obtidos
por Demétrio, Antígono, nas duas últimas décadas do século IV a.C., destacou-se como o
diádoco mais poderoso, como podemos constatar na observação de Plutarco (Vit. Demetr., III)
Dessa forma, Antígono, que tinha pretensões de estender seu poder sobre as póleis e a
Macedônia, começa a executar uma estratégia de aproximação com as póleis a fim de obter a
colaboração destas. Mediante um discurso em defesa das póleis, a proteção militar e o auxílio
financeiro a elas oferecido, Antígono criou um mecanismo político de aliança com as póleis
que iria perdurar por todo período helenístico. Com essas benesses concedidas a determinadas
cidades, Antígono, ao lado de Demétrio, recebeu cultos, festividades e honras em seu nome.
Essas homenagens são conhecidas tanto por intermédio da documentação escrita quanto da
cultura material.
inscrições reunidas no Orientis Graeci incriptiones selectae, obra editada por Dittenberger
(1903), temos acesso a parte da correspondência oficial de Antígono referente a três cidades
da Ásia Menor entre os anos de 311 a 303 a.C.: Escépsis, Eresus e Teos. Em um dos trechos
de uma carta enviada pela cidade de Escépsis, em resposta à carta de Antígono de 311,
196
[...] A fim de que Antígono possa ser honrado de uma maneira digna pelo o que foi
feito e de que o demos possa ver e dar graças pelas coisas boas que já recebeu, [fica
resolvido][...] fazer para ele [Antígono] um altar e o configurar com uma imagem
tão bem quanto possível; e haverá um sacrifício e um festival a cada ano em sua
honra, assim como foi anteriormente realizado; e coroá-lo com uma coroa de 100
[estáteres] de ouro [...] (OGIS, 6, 3-6).
O trecho acima mostra a boa recepção, pela cidade de Escépsis, da carta de Antígono,
na qual este informava sobre o acordo de paz realizado ente ele, Cassandro, Lísimaco e
Ptolomeu, em 311 a.C. Na carta, Antígono reafirmava os parâmetros do tratado de paz, assim
como o discurso sobre a autonomia das póleis, presente na Proclamação de Tiro, e prometia
apoio à cidade de Escépsis. Em resposta, os cidadãos desta cidade, por meio de decisão
também teria sido ofertada a Demétrio. Em Plutarco (Vit. Demetr., X) e Pausânias (I, 2, 1),
estariam na origem da própria monarquia e, naquele contexto, o maior benefício que um rei
poderia proporcionar seria o respeito à autonomia das póleis. Como Aristóteles teria sugerido
a Alexandre, em uma carta pública, um rei deveria agir com os gregos: “[...] como seu líder,
com os estrangeiros [bárbaros] como seu mestre, tratando os primeiros como amigos e
parentes e os últimos como animais ou plantas” (F 658 R³). Mas não apenas a garantia da
liberdade das póleis configurava um benefício, pois também se esperava do basileus proteção
autogovernar-se.
Em certa medida, podemos dizer que Antígono se esforçou para ser visto como um
benfeitor por muitas cidades gregas, tanto aquelas localizadas na Ásia Menor, quanto aquelas
197
situadas na Grécia, e, com isso, reforçar sua imagem como legítimo basileus nos últimos anos
do século IV a.C. Foi com o propósito de fornecer proteção militar que, por volta de 307/6
a.C., Antígono enviou Demétrio para socorrer Atenas, então sob o jugo de Demétrio de
Falero, aliado de Cassandro (CÂNDIDO, 2004, p. 220). Demétrio, que em breve ganharia o
de Plutarco (Vit. Demetr., VIII, 4-9, 1), a recepção de Demétrio pelos atenienses teria sido a
seguinte:
Demétrio navegou até o Pireu [...]. Ele estava agora à vista de todos. De sua
embarcação, ele deu um sinal para a calma e silêncio e, quando ele foi realizado,
proclamou através de um arauto que seu pai lhe tinha enviado, com boa fortuna, para
libertar os atenienses, expulsar a guarnição [de Cassandro] e restaurar aos atenienses
suas leis e constituição ancestral. Após essa proclamação ter sido feita, a maioria
[dos atenienses] imediatamente colocou seus escudos para baixo diante de seus pés e
o aplaudiram. E, gritando, eles pediam para Demétrio desembarcar, e o chamavam
de “benfeitor” (εὐεργέτην) e “salvador”(σωτῆρα).
controle de sua cidade e do porto. Nessa conjuntura, não causa estranheza que Antígono e
Atenas, mais do que qualquer outro líder desde os Pisístradas. Uma agenda de honras políticas
e religiosas ofertadas a Antígono e Demétrio foi proposta, ao que tudo indica, por
grandiosas. Como reporta Diodoro (XX, 46, 1-4), coroas de ouro, altares com sacrifícios,
139
Estratocles foi um famoso orador ateniense, filho de Eutidemo, e que atuou ativamente na política ateniense
nas últimas décadas do século IV a.C. (CÂNDIDO, 2012). Era aliado de Antígono e Demétrio, e propôs vários
decretos a favor deles na assembleia ateniense.
198
imagens tecidas segundo as vestes de Atená foram dedicados a estes basileis, que ainda
tiveram duas tribos, com seus respectivos nomes, incluídas no corpo cívico de Atenas. Essas
tribos foram representadas por duas estátuas erigidas no Monumento dos Heróis Epônimos,
No que se refere às coroas, estas foram regularmente concedidas a cidadãos e não cidadãos
por serviços meritórios no século IV a.C. O homenageado em questão muitas vezes dedicava
deusa. No entanto, segundo Mikalson (1998, p. 60-67), o custo das coroas de ouro ofertadas a
inflação, como foi o final do século IV a.C. Para o autor, os atenienses talvez tenham
presumido que Demétrio e Antígono dedicariam as coroas a Atená, de maneira que o ouro, no
fim das contas, não deixaria a cidade de Atenas, mas seria apenas transferido do Erário
necessária uma reorganização dos demos, estrutura que não havia sido alterada desde a época
de Clístenes, no início do século V a.C. Essa alteração, que atingiu a organização do corpo
contra os novos protetores de Atenas; em segundo lugar, a alteração de uma estrutura cívica
tão antiga representaria a capacidade de comoção que os basileis teriam dentro das cidades
submetidas ao seu poder, além de reforçar os laços deles com o sagrado na medida em que
140
Mesmo assim, pode-se suspeitar que, no decreto original, os 200 talentos foram destinados a cobrir os custos
não apenas das coroas, mas também das estátuas de ouro e dos demais prêmios a serem concebidos a Antígono e
Demétrio.
199
originais foram heróis lendários. Desse modo, a criação de duas novas tribos também teria
conotações religiosas, visto que cada uma das tribos atenienses mantinha um culto anual
próprio ao herói que lhe dava nome (herói epônimo), bem como um sacerdote.
representação das dez tribos originais criadas no final do século VI a.C. Com a adição das
duas tribos em homenagem a Antígono e Demétrio, foi necessário acrescentar duas bases ao
lado do monumento. Essas bases podem ser vistas ainda hoje junto ao monumento original, na
ágora de Atenas.
200
Na Figura 20, temos a vista atual do monumento, que contém as 10 bases originais dos
heróis epônimos e, ao lado delas, as bases adicionadas no fim do século IV a.C., que remetem
Antigônida. No que tange aos dados epigráficos que corroboram as homenagens prestadas aos
201
Antigônidas pelos atenienses, tal como descritas nos textos antigos, temos alguns fragmentos
307/6 e 201/200 a.C., foi o mais frutífero no que se refere à coleta de vestígios epigráficos.
Tais vestígios demonstram que, apesar de à época Atenas não desempenhar mais um papel
hegemônico na Grécia Continental, a cidade ainda era importante, o que a levou a ser
disputada pelos Antigônida, Selêucida e Ptolomeu. Inclusive, nos fragmentos que datam de
306 a.C. em diante, já encontramos o emprego do termo basileus para se referir a Antígono e
a Demétrio.
Além dos fragmentos que atestam a inserção das duas novas tribos atenienses em
ver que os rituais por elas praticados continuaram ao longo do século III a.C., como consta de
sacrifícios e a concessão de coroas de ouro às duas tribos (IG, II³, 1, 888; Agora XV, n. 84, p.
93); e outro fragmento, de 213/12 a.C., que dispõe sobre o mesmo assunto (IG, II3, 1, 1165;
Agora III, n. 66, p. 56). Há também trechos de um decreto (frag. I5972) que demonstram o
agradecimento dos atenienses a Demétrio devido a mais uma vitória militar e lhe concede
sacrifícios.
muito mais menções ao nome de Demétrio do que ao nome de Antígono. O fato de haver mais
inscrições atenienses relativas a Demétrio se deve, em nossa opinião, a dois fatores: primeiro,
questões diplomáticas, e Antígono, como basileus supremo, não era de fácil acesso; em
141
Os fragmentos de decretos referentes ao chamado “século macedônio” correspondem aos fragmentos de
número 107 a 255.
202
segundo lugar, mesmo após a morte de Antígono, em 301 a.C., na Batalha de Ipso, as relações
Enquanto Antígono era vivo, Demétrio estava submetido a este. Foi a mando do pai
que, por exemplo, buscou construir uma nova simaquia entre eles e as póleis, que remontava,
em certa medida, à liga criada por Filipe após a Batalha de Queroneia, em 338 a.C. De acordo
com a cultura material,142 a construção dessa simaquia ocorreu por volta de 303/2 a.C., tendo
sido a iniciativa de reunião das póleis que mais se aproximou da Liga de Corinto fundada por
Filipe (AGER, 1996, p. 65-66). Sobre os assuntos que envolveram a criação dessa nova liga
Adeimantos era um diplomata e amigo de Demétrio, que o nomeou para ser um dos
presidentes do conselho da nova Liga Helênica e sempre tratou de deixá-lo a par das decisões
procurado estabelecer uma coalizão que unisse os gregos (Diod. Sic. XX, 46). Contudo,
apenas por volta de 303 /2 a.C. representantes de algumas póleis, cujos nomes, em sua
maioria, não foram conservados nos fragmentos que chegaram até nós, se encontraram com
Demétrio, no Istmo, ocasião em que foi elaborada uma declaração dessa Liga Helênica (Diod.
Sic., XX, 102; Plut., Vit. Demetr., XXV). De acordo com Moretti (1967, p. 165), o caráter
lacunar do texto torna impossível determinar quais eram os membros originais da Liga ou
142
A respeito da reconstrução da Liga de Corinto, foram encontrados 12 fragmentos em Asklepios, em Epidauro
(SEG II, 56; ROBERT, Hellenica, II, p. 15-33).
143
Isthmia era uma antiga cidade localizada no istmo de Corinto.
203
Antígono e Demétrio na guerra contra Cassandro, mas as disposições foram elaboradas com a
expectativa de que o órgão continuasse também em tempos de paz. Abaixo, temos parte de
[...] Deixe o sinédrio se reunir em tempo de paz [nos jogos sagrados?], mas em
tempo de guerra, muitas vezes parece benéfico o sinédrio e os [estrateg] os deixados
pelos basileis para a proteção comum [...] As reuniões do sinédrio serão realizadas
até que a guerra comum acabe [...] O [sinédrio] deve realizar negócios quando mais
da metade do seu número estiver presente [...] Quando a guerra [terminar], haverá
cinco [proedos] escolhidos por sorteios dentre os membros do sinédrio. Não mais do
que um, de qualquer liga ou cidade pode ser selecionado por sorteio [...] [Se alguém
quiser] introduzir [qualquer questão] que seja vantajosa para os reis [e os gregos], ou
denunciar [qualquer um como] agindo contrariamente aos interesses dos aliados [ou]
desobedecer às deliberações ou trazer qualquer outro assunto ao sinédrio, antes deve
se registrar [com os proedos] [...] [Os] proedos escolhidos por sorteio [devem ser]
obrigados a prestar conta de [tudo] o que fazem [...] Até a guerra comum terminar,
os proedos devem [sempre ser aqueles] (enviados) pelos reis [...] (MORETTI, n. 44,
Frag., 3; SEG, II, 56).
multas decorrentes do não cumprimento de qualquer uma das obrigações. A busca por
construir a Liga Helênica e a adesão das cidades gregas a ela mostram a influência que
Antígono e Demétrio tinham sobre as póleis. Por meio das evidências citadas, vemos a
importância das relações entre Antígono e Demétrio com as póleis, sobretudo para a
Voltando à questão das honrarias e culto dispensados aos Antigônida pelas poléis,
sabemos que provinham, de certa forma, de serviços prestados pelos basileis às cidades.
Devemos, no entanto, ter cuidado para não considerar a gratidão e as honrarias divinas, nesse
caso aquelas concedidas por Atenas a Antígono e Demétrio, unicamente como retribuição de
serviços prestados. Sem dúvida, tais serviços são importantes para a compreensão da resposta
de Atenas e de outras póleis ao apelo dos Antigônida por apoio, mas também são importantes
144
O que temos são vários fragmentos de uma mesma estela, encontrados em Epidauro, a partir dos quais é
possível identificar o nome da cidade de Élis e a existência dos membros da Liga Aqueia.
204
91). É devido a todos estes fatores, alguns tradicionais, outros relativamente novos, que
reservadas apenas aos deuses: altares, sacrifícios e festivais. Antígono e Demétrio foram
que os novos benfeitores de Atenas, revestidos por uma áurea divina, deveriam garantir:
Em nossa opinião, o basileus que surgia no final do século IV a.C. não era propriamente
uma divindade. No entanto, as honras a ele concedidas, como as que receberam os Antigônida
em 307/6 a.C., em Atenas, já não eram mais honras próprias de um cidadão ilustre. Por um
lado, a pólis via no basileus um protetor, contanto que ele fosse justo, dentro dos termos
aceitáveis, o que justificava a concessão a ele de honrarias de caráter divino; por outro,
Antígono precisava se legitimar como basileus não apenas no que dizia respeito ao monopólio
da força, mas também em termos simbólicos. Sendo o primeiro basileus helenístico, foi o
primeiro a recorrer ao monopólio do poder militar e simbólico. Neste último caso, as póleis,
por meio da criação de cultos e festivais em homenagem aos Antigônida, tiveram um papel
fundamental.
Antígono e Demétrio com o sagrado e seus limites são uma questão sobre a qual devemos nos
debruçar com cuidado. Além disso, para uma maior compreensão da fabricação da monarquia
CAPÍTULO IV
cuja principal função é dar-lhe sustentação, bem como reforçar a imagem dos titulares da
autoridade pública. No caso dos Antigônida, não foi diferente. Como vimos no capítulo
anterior, por meio de uma identidade monárquica constituída numa tríplice fronteira cultural,
Antígono e Demétrio buscaram reforçar seus laços filiais. Ao mesmo tempo, Antígono, com
governante partilhado pelas póleis de modo a encarnar a figura do soberano ideal. Essa
imagem prototípica do governante teve suas bases forjadas em fundamentos filosóficos que
vitórias de Antígono originava-se uma série de epítetos, cerimônias e cultos que reforçavam o
nexo do rei com o sagrado. A partir desses dados, buscamos, neste último capítulo, discutir os
limites da associação entre o sagrado e o basileus, tratar dos cultos e festividades dedicados a
monarquia e a constituição dos ritos em torno de sua figura, ponderamos também sobre a
problemática que se destaca é aquela que diz respeito ao caráter das honrarias divinas
recebidas pelo monarca e da natureza divina ou não do rei. Até o final da primeira metade do
século XX, o culto aos soberanos helenísticos foi visto como uma espécie de sintoma da
Burckhardt (1948), ou como uma devoção religiosa genuína e sincera dos súditos perante os
basileis, a exemplo do que vemos no artigo de Scott (1928), que trata da divinização de
Demétrio Poliorcetes, e no trabalho de Tarn (1928), que faz uma análise do culto ao
Habicht (1970) e Price (1984), por sua vez, lançaram um novo olhar sobre o assunto.
Habicht (1970) afirmou que as honras divinas concedidas aos monarcas helenísticos pelas
cidades gregas tinham suas raízes no próprio sistema religioso grego, no qual homens
benefícios que teriam prestado a esta. Tais honras, até então restritas às divindades, teriam
então sido estendidas a seres humanos. Price (1984),145 valendo-se das contribuições de
Habicht, afirmou que a divinização do monarca, na época helenística, foi um dos caminhos
encontrados para acomodar o basileus no sistema honorífico tradicional que conferia prestígio
145
No referido estudo, mesmo que Price tenha tido como foco os cultos gregos dedicados ao imperador romano
na região da Ásia Menor, e não propriamente os dedicados aos basileis helenísticos, a tentativa do autor em
descobrir os motivos que levaram o imperador romano a ser tratado como uma divindade naquela localidade
apresentam considerações sobre o culto em torno da figura do monarca helenístico que são úteis para este
presente estudo. Price sustenta que, desde o surgimento do cristianismo no Império Romano, o problema sobre a
divinização do soberano foi mal interpretado no Mundo Antigo, pois se estabeleceu uma distinção cristã entre
religião e política que levou à interpretação do culto ao monarca muitas vezes como uma simples forma de
honraria política. Com base em fontes provenientes da numismática e da arqueologia, e com um aporte teórico
oriundo da antropologia, Price nos oferece uma perspectiva diferente.
207
compreensão do culto ao rei como uma prática honorífica e como uma modalidade particular
monarca ocorrem devido à existência da dicotomia entre humanidade e divindade ser bem
mais ambígua e flexível na cosmovisão grega do que em outros sistemas religiosos, como no
aproximação do divino com a esfera humana, bem como a formulação de uma hierarquia
humana entre as divindades. No mundo grego, a diferença crucial entre humanos e deuses
repousava, segundo Petrovic (2015, p. 432): “[...] na quantidade de poder que possuem,
esfera divina.” Na Hélade, bem antes do período helenístico, podemos encontrar diversos
Segundo Mitchell (2013, p. 10-12), o primeiro homem a receber honrarias divinas ainda
em vida teria sido o general espartano Lisandro, por volta de 404 a.C., que veio a falecer na
primeira década do século IV a.C. De acordo com Duris de Samos (FGrH 76 F71),146 o
general teria recebido um altar, sacrifícios, hinos e um festival por parte dos habitantes de
Samos. Informação semelhante nos é fornecida por Plutarco (Vitae parallelae Lysander,
XVIII, 1-3):
[...] Lisandro erigiu estátuas de bronze [...] de si [...], bem como as estrelas douradas
dos Dióscuros [filhos de Zeus], que desapareceram antes da batalha de Leuctra [...]
Lisandro era neste momento mais poderoso do que qualquer grego antes dele [...]
Pois ele foi o primeiro grego, como escreve Duris, a quem as cidades ergueram
altares e fizeram sacrifícios como a um deus, o primeiro também a quem canções de
triunfo foram cantadas [...].
146
Duris de Samos, de acordo com seu próprio testemunho, nasceu por volta de 340 a.C., e escreveu diversas
obras, que infelizmente não chegaram até nós. O que restou de sua obra são apenas fragmentos ou menções em
obras de autores antigos como Plutarco e Diodoro.
208
mundo grego após a Guerra do Peloponeso, momento em que o culto heroico experimentou
nova força, porém de forma bem diversa do culto surgido no século VIII a.C., que era por
primazia ligado ao mito de fundação das póleis (ANDRÉ, 2009). No decorrer do século IV
a.C., esse tipo de culto passaria a ser destinado aos generais vitoriosos e não se configurava
uma reverência à tumba do herói, pois o processo de heroificação ocorria com o general em
vida. Devemos então nos perguntar como foi possível essa apoteose de mortais e o que
com o passar do tempo e com a crise política que acometeu a Hélade no final do século V
a.C., o culto foi cada vez mais direcionado para a pessoa do general. O fato novo era que tais
honras eram prestadas então a um vivo, não a um morto. A especialização militar, a condição
ao fortalecimento da imagem dos generais vitoriosos. Por isso, logo após o fim da Guerra do
Peloponeso, nos primeiros anos do século IV a.C., vemos pela primeira vez estátuas erigidas
proliferou, mas o caráter destas, que visavam fazer reconhecer o heroísmo destes, possuía
Aneziri (2013, p. 5973) nos informa que a concessão de honras divinas a mortais que
detinham poder politico e/ou militar não foi uma criação dos gregos, pois se verifica, no
147
Broneer (1942, p. 156), ao fazer uma análise histórica do culto heroico por meio do estudo da ágora de
Corinto, afirma que é complicado rastrear a trajetória deste tipo de culto no mundo da pólis, mas que dois fatores
são primordiais ao se tratar dessa temática após o final do século V a.C.: em primeiro lugar, o culto heroico
praticado nos tempos helenísticos teria se originado em um culto dos mortos; e, em segundo, o homenageado ao
qual o culto era dedicado podia ser associado a divindades, não sendo ele uma divindade em si.
209
respostas aos feitos extraordinários do indivíduo, como uma grande vitória, ou exprimiam a
gratidão pelo benefício prestado à pólis por um mortal, que, por essa razão, poderia receber
honrarias comumente reservadas aos deuses. Este é o caso de Filipe que, após vencer em
definitivo as forças políades, organizou comemorações em Aigai que contaram com jogos, a
celebração de seu casamento com a jovem Cleópatra e a recepção de homenagens por parte de
diversas cidades gregas,148 como podemos constatar no extrato de Diodoro (XVI, 92, 1-5):
[...] Não apenas homens notáveis lhe coroam com coroas de ouro, mas a maioria das
cidades importantes também, entre elas a pólis de Atenas [...] ao nascer do sol [do
dia seguinte], o cortejo se formou. Junto com a exibição pródiga de todos os tipos,
Filipe incluiu no cortejo, estátuas dos doze deuses forjados com grande mestria e
ricamente adornados, fazendo assim, uma exibição deslumbrante de riqueza para
surpreender o espectador. Ao lado das estátuas destes deuses foi conduzida uma
décima terceira, apropriada a um deus, que era do próprio Filipe, para que o basileus
se exibisse entronizado entre os doze deuses.
mesmo no século IV a.C., com as que Alexandre e os diádocos receberam, é algo, no entanto,
precipitado. Primeiro, porque tratar dos casos mais antigos de dedicação de homenagens a
mortais ainda em vida, na Grécia, torna-se uma tarefa árdua pela escassez de vestígios
textuais e materiais, o que dificulta uma análise mais eficiente. Depois, mesmo em face dos
poucos dados disponíveis, é possível demarcar diferenças entre os dois tipos de culto e
adoração aos deuses e as honras concedidas a um mortal, como nos casos de Lisandro e
148
Cleópatra era uma jovem macedônia, protegida de Átalo, um guarda-costas do rei que pertencia ao círculo
dos hetairoi. Por Cleópatra não ser proveniente do seio da elite macedônia, esse casamento ia contra a tradição
do reino. Momigliano (1992, p. 107) diz que quaisquer que fossem os motivos de Filipe para o casamento, este
acabou por causar um rompimento entre ele e Olímpia, afetando inclusive sua relação com Alexandre.
210
ligados a estes generais, além do fato dos rituais a eles dedicados terem sido efêmeros. Para
nós, é na interseção entre o culto tradicional aos heróis fundadores, aos generais vitoriosos e
Como dito na abertura desta seção, existe uma polêmica em torno da devoção ao
monarca helenístico que coloca em xeque a sua natureza divina. No entanto, podemos afirmar
que mesmo herdeiro de aspectos ligados ao culto aos generais vitoriosos que se popularizou
após a Guerra do Peloponeso, esse tipo de prática religiosa possui suas particularidades,
provenientes sobretudo do culto à figura de Alexandre que, embora obscurecido por narrativas
Para começar, algumas das façanhas militares de Alexandre eram equiparadas às ações
não gregas, como o ato de prostrar-se diante do monarca (προσκύνησις), oriundo da corte
características do culto em torno de Alexandre ainda em vida que podem ser confrontadas
com os atos anteriores de reverência a mortais e que, ao mesmo tempo, o ligam à emergência
Héracles, não era algo incomum no mundo de Alexandre. Em Atenas, existiram gène que
reivindicavam associação com Apolo, por exemplo, assim como os asclepíades da Ilha de Cós
149
Entre os triunfos de Dioniso, destaca-se a conquista da Índia, território que teria sido dominado
primeiramente por este deus, por meio da força e de seu poder místico. Dioniso também teria sido o primeiro a
atravessar o rio Eufrates (Strab., XI, 5, 5; Paus., X, 29, 4).
211
e filhos de deuses permaneceu na maioria das dinastias helenísticas, como podemos constatar
helenístico também se nutriu de elementos da tradição egípcia, pois Alexandre, como faraó,
foi considerado filho de Amon. Alexandre ainda introduziu um elemento adicional ao seu
Para Habicht (1970, p. 18-24), em diversos aspectos, o culto à figura de Alexandre deu
como evérgeta. Em certos aspectos, as honrarias prestadas a Alexandre não diferiam daquelas
sacerdócio e a designação de tribos cívicas também poderiam ocorrer, como vimos no caso de
cultos e ritos envolvendo o argéada passam a dar ensejo à divinização de Alexandre antes
mesmo de sua morte. Essa modificação se exprimiu com toda clareza quando o argéada exigiu
honras divinas para si mesmo e as póleis enviaram emissários a Babilônia para honrar o rei
150
Dentro da mitologia grega, Asclépio (Ἀσκληπιός) era considerado o deus da medicina e da cura. Existem
diferentes versões em torno do mito desta divindade, mas as mais populares são as que o apontam como filho do
deus Apolo e da mortal Corônis. Após um parto complicado, sua mãe morreu ao lhe dar a luz. Asclépio foi
criado, então, pelo centauro Quíron, que o educou na caça e nas artes da cura (HART, 2000, p. 165).
151
Essa descendência direta de um deus influenciou, em certa medida, um hino dedicado a Demétrio pela cidade
de Atenas, datado do final da primeira década do século III a.C. Nele, que analisamos na próxima seção deste
capítulo, Demétrio é caracterizado como filho de Poseidon e Afrodite.
212
diversas ocasiões, firmar sua associação com os deuses, principalmente Zeus, como
anterior. Buscou também promover o culto à sua pessoa por meio de símbolos, como o de
portador do raio, que o ligava diretamente a Zeus (Plut., Vit. Alex., IV, 1); de rituais, como o
ratificar sua origem divina perante os súditos (Plut., Vit. Alex., XXVIII, 1-6; Curt., VI,11, 23).
Podemos mencionar ainda outra diferença importante entre o culto aos generais
destacamos em outros momentos nesta tese, empregam a imagem de Alexandre como um dos
celebrações oficiais. Conquistar um território, agir como um protetor, manter a ordem e o bem
estar sociais foram características incorporadas por Alexandre e adotadas por seus diádocos.
Desta forma, vemos que as honras divinas já contavam com uma longa tradição quando
Alexandre foram homenageados com cultos em cidades submetidas, como vimos no caso de
Antígono, em Escépsis e Teos, por exemplo, e como podemos constatar também mediante o
[...] levando em conta estes propósitos: deve-se escolher cinco emissários para irem
até Antígono e outros cinco até Demétrio, para anunciar as honras [concedidas] e
informá-los que a cidade, em gratidão pelos benefícios que recebeu, permanecerá
amigável com os mesmos por todo o tempo vindouro [...] Os generais devem cuidar
junto com o conselho para que as embaixadas sejam enviadas o mais rápido possível
aos basileis [...] O dinheiro para as coroas deve vir [do erário público].
Essa inscrição, recolhida por Dittenberger (1960), acompanhava as duas estátuas vistas
por Pausânias em Olímpia mais de quatrocentos anos depois (Paus., VI, 15, 7): “[...] Há uma
estátua de Demétrio, que organizou uma expedição contra Seleuco e foi tomado como
prisioneiro na batalha, e uma de Antígono, filho de Demétrio. Essas são ofertas, com certeza
dos bizantinos.” Pela passagem de sua obra, Pausânias pensou que as estátuas representavam
Demétrio e seu filho Antígono II, mas Dittenberger afirma ser claro que a estátua mencionada
por Pausânias se refira a Antígono Monoftalmo. Embora não haja indicação da data da
inscrição, o autor infere que provavelmente as estátuas tenham sido erigidas após a campanha
Mediante a discussão travada até aqui, podemos inferir que as honrarias dedicadas a
Antígono e Demétrio ultrapassavam o sentido cívico dos cultos aos heróis fundadores das
póleis ou mesmo daqueles reservados aos generais vitoriosos que se difundiram pelo território
da Hélade após a Guerra do Peloponeso. A transição entre o culto heroico e o culto régio, na
qual a atuação de Alexandre foi decisiva, exibiu nuances que aproximavam o soberano
helenístico a uma epifânia, visando a destacar a figura do rei como o epicentro da sociedade.
No entanto, a questão que persiste é a seguinte: qual o limite do nexo entre o basileus e o
(1998, p. 183-200) afirma, a partir de uma diferenciação entre quais tributos poderiam ser
prestados a humanos e quais a deuses, que esses sujeitos teriam sido revestidos com atributos
152
Em 303 a.C., Demétrio invadiu o Peloponeso a mando de seu pai e libertou Corinto, Argos, Arcádia e
Mantineia da influência de Cassandro e demais diádocos. Nesse mesmo momento Demétrio começou a pôr em
prática o projeto de construção de uma Liga Helênica sob o comando dos Antigônida (NEWELL, 1927, p. 9).
214
divinos. Era possível, segundo o autor, honrar um homem por razões cívicas, sociais, militares
e até mesmo atléticas. As homenagens prestadas aos deuses, por outro lado, diziam respeito
ao domínio sobre situações fora do controle humano, parcial ou totalmente, como a segurança
muito mais daquelas dedicadas às divindades do que daquelas reservadas aos atletas e
generais, pois os motivos de agradecimentos feitos pela cidade eram menos a vitória na guerra
acaba por fundamentar sua tese sobre o caráter de divino de Antígono e Demétrio no
sentimento de devoção dos atenienses perante ambos, por isso envereda por uma abordagem
Essa questão do caráter deífico ou não do basileus helenístico, entretanto, tem sido
lugar comum. Exemplo disso é a coletânea de artigos organizada por Iossif, Chankowski e
Lorber, intitulada More than Men, Less than Gods, de 2011, resultado de um esforço conjunto
de diversos estudiosos em torno de um projeto que teve por objetivo abrir novas perspectivas
sobre o estudo do culto aos soberanos greco-romanos, sobretudo no tocante à adoração aos
reis helenísticos.
a ideologia real expressa nos artefatos ligados a Dario I, como elementos iconográficos, selos
contexto no qual a distinção entre o rei e o divino era nebulosa. No mesmo livro, Gitler (2011,
p. 110-120), por meio do estudo do significado das representações dos reis aquemênidas em
do Grande rei com Aúra-Masda.153 Tais imagens, portanto, podem ser consideradas
antecedentes dos retratos reais helenísticos cercados de atributos divinos. Como um balanço
das contribuições do referido dossiê, Iossif e Lorber (2011, p. 700-705) concluem, todavia,
que o fato de o basileus representar uma divindade não é algo tão relevante para o seu culto
no período aqui analisado. Sobre o assunto, Gradel (2002) afirma que o ritual em torno dos
soberanos helenísticos assumiu uma função performática que permitiu a concessão de honras
divinas a esses monarcas, sem que necessariamente eles fossem concebidos como deuses
reinando sobre a terra. Dessa forma, percebemos que a divindade dos soberanos helenísticos
pode ser amiúde definida como uma espécie de categoria intermediária, na qual o soberano
Diante do panorama exposto, optamos por seguir uma tendência que vem se
consolidando, nos últimos anos, entre os especialistas do período helenístico, como Chaniotis
(2003; 2011) e Caneva (2012), que interpretam a crença na divindade dos reis helenísticos
como algo menor, centrando a atenção nos elementos acessórios que atestam a divinização do
monarca, como a execução dos rituais e das comemorações, os agentes envolvidos, assim
como o registro dos cultos na literatura ou na cultura material. Desse modo, discutiremos a
A ‘pompé’ e a ‘heorte’
decretos estabelecendo novos festivais para comemorar eventos históricos, expressar gratidão
153
Aúra-Masda pode ser encarado, dentro do zoroastrismo e da mitologia persa, como o deus criador de todas as
coisas. Também era o deus do céu, da sabedoria, da abundância e da fertilidade (ELIADE, 1978, p.148).
216
aos deuses e, sobretudo, honrar os basileis. Medidas tomadas em assembleias por iniciativas
magistrados ou atletas, por exemplo, podiam receber honrarias e dedicatórias. Há, sobre o
assunto, diversas inscrições honoríficas, dentre as quais destacamos – uma vez mais – uma
Resolvido pelo conselho e pelo povo: desde que [o basileus Demétrio tem sido a
causa de grandes bençãos] para a nossa cidade e para todos os gregos, com a boa
sorte é resolvido pelas pessoas se juntarem em regozijar-se com os sucessos
relatados do rei e de seu exército, e que os efésios e todos os moradores da cidade
usarão coroas para celebrar as boas novas que nos foram reportadas; e que [...] uma
sacerdotisa e um magistrado farão um sacrifício em agradecimento a Ártemis,
rezando para que, no futuro, a fortuna do rei Demétrio e do povo de Éfeso seja ainda
maior. Atribuir também, coroas, a Antígono e Demétrio, de acordo com as leis; o
magistrado deve cuidar do custo do sacrifício; e louvar Apolônides, o amigo do rei,
que anunciou [...] boa vontade em relação ao rei e aos efésios; e coroar Apolônides
com uma coroa de ouro de vinte peças de ouro. O magistrado cuidará da coroa; e dar
a cidadania de Apolônides em termos iguais e semelhantes, como foi dado aos
nossos outros benfeitores; e que ele deva ter prioridade no acesso ao conselho e às
pessoas, no que se refere apenas a assuntos sagrados; e que ele deva ter assentos
privilegiados nos jogos, junto com os nossos outros benfeitores [...] (SIG, 352).155
Esta inscrição, datada entre 302/301 a.C., refere-se à concessão de honras pelos efésios
a Antígono e Demétrio, logo após a libertação da cidade de Éfeso pelas forças antigônidas,
assim como a Apolônides, aliado de Demétrio, e mostra como estas honrarias faziam parte da
lógica daquele contexto. Por essa razão, os festivais e as procissões são significativos para a
grega para definir festa ou festival, εορτή (heorte). Encontramos com mais frequência o termo
πομπή, que possui o significado de procissão religiosa, pompa ou cortejo festivo. Os festivais
154
Outros exemplos de inscrições honoríficas são: IG II², 704, 896, 929 e 949.
155
Apolônides, que é louvado aqui como amigo do rei, fazendo parte de seu círculo de hetairoi, mais tarde
abandonou Demétrio e se juntou a Seleuco (Plut., Vit. Demetr., L).
217
cortejo, no seu sentido mais amplo, era o elemento cerimonial no qual se podia observar
procissões podiam ser personificadas por meio da Pompé (πομπή), identificada por alguns
estudiosos, tais como Bieber (1949, p. 31) e Foertmeyer (1988, p. 94), com uma espécie de
divindade ou espírito (daimon) religioso das procissões. Na literatura antiga, temos poucas
menções à Pompé, mas no que concerne à cultura material é possível constatar sua presença
Na Figura 22, a imagem da Pompé, segundo Bieber (1949, p. 32),156 é representada pela
figura de uma mulher que se prepara para um festival em homenagem a Dioniso. Ela está nua,
desenhando uma espécie de túnica em seu corpo. Seu cabelo encontra-se amarrado em uma
coroa que parece feita de louros. A figura porta colar, brincos e pulseiras, o que demonstra
seus atributos festivos. À sua esquerda, está Eros, e Dioniso está sentado à sua direita. A
helenístico, cada vez mais aos rituais em torno dos monarcas helenísticos.
também faziam parte das comemorações ofertadas aos basileus. Segundo Connor (1987),
qualquer exame dessas procissões deve considerar que elas requeriam uma encenação que
responsáveis pela sua organização e atores, assim como destinatários, ou seja, o alvo da
apresentação. Elas podiam variar devido ao contexto histórico ou a fatores como tensões entre
própria dinâmica, assim como todos os rituais. Eles eram moldados pelas circunstâncias
156
Bieber (1949) faz uma análise sobre um grupo de três vasos gregos que possuem uma figura feminina, ao lado
de Eros e Dioniso, que até o final da primeira metade do século XX não era identificada pelos especialistas. A
autora chega à conclusão de que a imagem da mulher presente nos três vasos seria a representação da Pompé, a
encarnação das procissões. A Figura 22 trás o detalhe de um destes três vasos analisados por Bieber.
219
históricas e despertavam emoções, agradando ou decepcionando, por isso podiam ser bem
Por diversos motivos os cortejos régios da época helenística merecem destaque como
um fato distintivo se comparado à sociedade políade. Muitos festivais tiveram início nesse
período e, mesmo que a procissão tivesse sido, ao lado dos sacrifícios seguidos de um
banquete e do concurso (agon), uma característica essencial nos festivais do período políade
clássico ou arcaico, ela agora se voltava, cada vez mais, para a figura do basileus
(CHANIOTIS, 1995, p. 164-168). Numerosas cidades foram fundadas por Alexandre, assim
como por seus diádocos. As novas cidades tiveram que estabelecer seus próprios calendários
festivos, por isso acabaram por adotar práticas tradicionais do mundo grego, ao mesmo tempo
que ocorria um hibridismo com os costumes religiosos locais. Nesse contexto, os eventos
políticos ligados aos diádocos levaram ao estabelecimento de novos festivais, que passaram a
dominar o cenário.
No caso dos festivais e cerimônias em torno dos monarcas, é preciso esclarecer que
havia uma repartição do culto régio helenístico em duas categorias. De início, houve a criação
de um culto aos soberanos mediante a iniciativa das póleis. Num segundo momento, sucedeu-
se a imposição de honrarias divinas pelas próprias casas dinásticas dos basileis.157 Em nossa
análise, privilegiamos a primeira categoria de culto, que remontava aos primórdios do período
contexto de criação do Estado helenístico. A segunda categoria de culto não se aplica a eles.
Chaniotis (2003, p. 439) afirma que os festivais em honra de reis e rainhas, quando
157
Quando as procissões dedicadas pelas cidades são comparadas com as instituídas pela administração real no
período posterior, nota-se que as primeiras necessariamente não concorriam no glamour e riqueza com estas
últimas, mas, sem dúvidas, as procissões cívicas influenciaram toda a estruturação do segundo tipo, instituído
pelo próprio centro de poder da administração régia (CHANIOTIS, 2003, p. 438).
220
aos deuses, os sacríficios não eram apenas anuais, mas oferecidos todos os meses no mesmo
dia. Quando o monarca vinha a receber culto após sua morte, as celebrações podiam ter lugar
17).
entronização do basileus ou a data de uma grande vitória militar. Além dos sacrifícios
ocorrer devido a algum benefício particular concedido aos súditos, quando o monarca era
celebrado por alguma benemerência prestada. Em geral, o festival começava com uma
procissão para a qual todos os cidadãos eram convidados. Eles ornavam a cabeça com
grinaldas e trajavam suas melhores roupas. As honrarias ofertadas a um rei por serviços
prestados a uma cidade se assemelham ao caso das honras divinas recebidas por Antígono e
Demétrio, em Atenas, por volta de 307 a.C., das quais, mais tarde, o filho de Demétrio,
Conforme proposto [...]: visto que o basileus Antígono, o salvador do povo, agiu
continuamente com o demos de Atenas e, por isso, o povo o homenageou com
honras divinas; portanto, com boa sorte [...] resolvem sacrificar no décimo nono dia
do mês de Hecatombaion, no concurso dos jogos dedicados a Grande Nêmesis, e
usar coroas no referido período [Este decreto] será inscrito em uma pedra [estela] e
colocado [no altar] do rei [Antígono] (SEG, 41. 75).158
O decreto acima foi inscrito por volta de 261/239 a.C., pelos cidadãos de Ramnous,159 e
Antígono.
158
Hecatombaion era o primeiro mês do calendário grego (julho/agosto), este mês envolvia celebrações com
grandes ritos em honra de Apolo Hecatombaios e Zeus Hecatombaios (BURKERT, 1993, p. 163-164).
159
Ramnous (Ῥαμνοῦς) foi uma antiga pólis costeira situada na Ática. A cidade era bem conhecida na
antiguidade devido ao seu famoso santuário dedicado a deusa Nêmesis (Paus., III, 3, 2).
221
No conjunto dos cultos dedicados aos basileis pelas cidades gregas, o melhor exemplo
[...] Demétrio, filho de Antígono, tendo recebido de seu pai um poderoso apoio
militar tanto terrestre, quanto marítimo, e também um suprimento adequado de [...]
outras coisas necessárias para realizar um cerco, partiu de Éfeso. Ele tinha instruções
para libertar todas as cidades em toda a Grécia, mas antes de tudo, Atenas, que
estava dominada por uma guarnição de Cassandro. Navegando pelo Pireu com suas
forças, ele [Demétrio] imediatamente atacou todos os lados e emitiu uma
proclamação. Dionísio, que tinha sido mandado ao comando da guarnição em
Muniquia, e Demétrio de Falero, que tinha sido feito governador militar da pólis por
Cassandro, resistiram nos muros com muitos soldados. Alguns dos homens de
Antígono, atacando com violência e efetuando uma entrada ao longo da costa,
encontraram muitos de seus companheiros de guerra dentro da muralha. O resultado
foi que, dessa forma, o Pireu foi tomado [...] e o comandante Dionísio, fugiu para
Muniquia enquanto Demétrio de Falero foi retirado do comando da cidade. No dia
seguinte, quando este fora mandado com outros como enviado pelo povo a
Demétrio, para discutir a independência da cidade e sua própria segurança, este
obteve a garantia de sua seguridade, entregou a direção de Atenas e fugiu para Tebas
e mais tarde para o Egito ao encontro de Ptolomeu [...] E assim, depois de ter sido
dirigente da cidade por dez anos, [Demétrio de Falero] foi levado de sua cidade natal
da maneira descrita. O povo ateniense, tendo recuperado sua liberdade, decretou
honras aos responsáveis por sua libertação.
Na sequência, Diodoro (XX, 46, 1-4) narra as honras recebidas por Antígono e
Demétrio, que foram objeto de análise no terceiro capítulo, quando discutimos a relação entre
ateniense, por isso foram instituídos, por meio de decreto, um corpo de sacerdotes dos
caráter epônimo em homenagem a pai e filho, assim como um festival anual com cortejo e
poderiam se perpetuar por muito tempo após a morte do soberano, como vemos no exemplo
abaixo:
antes das assembleias para Apolo Prostaterios e Artemis Bouleia, e a outros deuses
tradicionais, que para a boa fortuna, as pessoas devem decidir, aceitar as coisas boas
que ocorreram nos sacrifícios que fizeram para a saúde e a preservação da Boulé e
do Demos, reportou-se ainda como o prítane realizou de forma adequada os
sacrifícios e que com amor a honra, foram gerenciados [...]
Convoca-se o Conselho e a Assembleia, e tudo o que as leis e os decretos do Povo
prescrevem para eles, para se louvar o prítane [dos Antigônida] e coroá-lo com uma
coroa de ouro de acordo com a lei e de acordo com a piedade dos deuses [...] (IG II3,
1, 1165).
Por meio da inscrição do fragmento, cuja imagem aparece na Figura 23, é possível
concluir que o culto as tribos instituídas em homenagem a Antígono e Demétrio, assim como
Demétria, em homenagem a Demétrio Poliocertes, que teria sido criado por um decreto das
223
póleis da Eubeia, entre as quais estão Erétria e Oreo (IG XII, 9.207). De acordo com Buraselis
festivais. Após a morte do pai em Ipso, Demétrio, em 294 a.C., teria estabelecido novamente
o controle sobre um grande território, que incluía a pólis de Atenas, e um festival batizado
com seu nome também teria sido instituído nessa cidade. Para Plutarco (Vit. Demetr., XII, 1-
4) o festival dedicado a Demétrio teria sido resultado de uma renomeação das Dionisíacas:
[...] Estrátocles [...] propôs que sempre que Demétrio visitasse a cidade, ele deveria
ser recebido com as honras hospitaleiras pagas a Deméter e Dioniso, e como um
cidadão que ultrapassou todos os outros pelo esplendor e magnificência de sua
recepção, uma soma de dinheiro deveria ser concedida pelo tesouro público para a
dedicação de uma oferenda. E [...] o festival chamado Dionisíaca passou a ser
chamado de Demétria. A maioria dessas inovações foi marcada com o desagrado
divino. A túnica sagrada, por exemplo, na qual decretaram que as figuras de
Demétrio e Antígono fossem tecidas juntamente com as de Zeus e Atená, quando
estava sendo levada em procissão pelo meio do Cerâmico, foi levada por um furacão
que a danificou; novamente, ao redor dos altares daqueles deuses Sóteres, o solo
estava cheio de cicuta, uma planta que não crescia em muitas outras partes do país; e
no dia da celebração da Dionisíaca, a procissão sagrada teve que ser preterida devido
ao frio [...] E seguiu-se uma grande geada, que não só amaldiçoou todas as videiras e
figueiras com o frio, mas também destruiu a maior parte dos grãos [...]. Portanto,
Filípides, que era inimigo de Estrátocles, atacou-o em uma comédia com esses
versículos:
“Foi através dele, que a geada congelou todas as videiras,
Foi por meio de sua impiedade, que o manto se dividiu em dois,
Porque deu as honras dos deuses aos homens [...].”
O tom irônico do trecho retirado da obra de Plutarco, que utiliza o termo cidadão para
construídas por Filípides, poeta cômico, que era inimigo político de Estratócles, aliado de
Demétrio. Afora isso, a passagem nos permite perceber vários elementos em torno das
Buraselis (2012, p. 249-250) afirma que ainda não existe um consenso sobre se o
festival da Demétria foi apenas uma renomeação das Dionisíacas, como sugere Plutarco ou se,
Filípides (IG II², 649) e datado de 292 a.C., teria sido uma fusão entre o antigo festival em
destaca desse dilema, no entanto, é que, em ambas as hipóteses, Demétrio está conectado com
a imagem de uma das divindades mais importantes do mundo grego. Sobre essa associação
com Dioniso, mas uma vez contamos com o testemunho de Plutarco (Vit. Demetr., II, 3):
[...] sua disposição também servia para inspirar nos homens igualmente o medo e a
benevolência. Pois, como ele era um companheiro muito agradável, enquanto a
maioria dos príncipes no lazer se dedicava a beber e aos luxos da vida, ele, por outro
lado, tinha persistência e eficiência as mais enérgicas durante o combate. Por isso,
ele costumava fazer de Dioniso o seu modelo, mais do que qualquer outra divindade,
já que esse deus era o mais terrível em empreender uma guerra e, por outro lado, era
ainda mais hábil, quando a guerra terminava, em se tornar o ministro da paz
desfrutando das alegrias e prazeres.
citada de Plutarco. A dedicação de uma estátua era parte intrínseca das honras concedidas,
mas muitas vezes é difícil distinguir entre o caráter honorífico e o religioso destas estátuas.
determina o seguinte: “[...] deixe a cidade marcar um recinto sagrado para ele, erga um altar e
crie um [culto] tão belo quanto possível [...]” (OGIS, 6). Segundo Chaniotis (2013, p. 25), os
reis helenísticos eram frequentemente adorados como “deuses que partilhavam o templo”, por
meio da instalação de sua estátua em templos de outras deidades. 161 Em geral, as cidades
helenísticas preferiam honrar um rei estabelecendo um santuário separado para ele, quase
sempre no local mais proeminente da cidade. Não raro, os santuários dos basileus eram os
160
Infelizmente o fragmento mencionado é a única fonte do início do período helenístico que aborda a temática
da fusão entre os dois festivais, o que impede que se façam afirmações mais conclusivas.
161
Atálo I e Antíoco III podem ser citados como alguns dos exemplos de reis que partilhavam templos com
outras divindades (SCHIMIDT-DOUNAS, 1993, p. 73-80; SCHIMIDT-DOUNAS, BRINGMANN, AMELING,
1995).
225
lugares onde os documentos oficiais eram publicados. A realização de ritos e o cuidado com
Como discutido na seção anterior deste capítulo, não temos por objetivo avaliar em que
medida essas homenagens aos soberanos os colocavam ou não no mesmo patamar que os
deuses. Sabemos que os festivais podiam tornar-se objeto de manobras políticas, em uma
para com o rei, incutir valores nos mais jovens e, até mesmo, desviar a atenção dos membros
contexto, uma função importante da oferta de honrarias aos basileis seria o de tornar mais
A esta altura, é escusado dizer que as inscrições helenísticas quase sempre invocam a
piedade e a boa vontade dos monarcas perante as populações por ele dominadas, o que
certamente não deve ser interpretado como hipocrisia. Conforme vimos ao longo da tese, as
últimas décadas do século IV a.C. foram marcadas por períodos de intensa conturbação
política, social e militar no mundo grego. Por vezes, a instituição de cultos e outras
premissa novos pontos focais do culto em torno do rei visíveis nessas homenagens. Todas as
festividades e cultos dedicados a Antígono e Demétrio, assim como aos demais diádocos,
foram criados, sem exceção, para comemorar um evento recente conectado a uma vitória
conforme o caso, entre outros. Nesse cenário, o papel de benfeitor, protetor e salvador do rei
Ainda que, num primeiro momento, o caráter religioso dessas honrarias se destaque,
sendo a realização de sacrifícios em homenagem aos deuses o ápice dos cortejos, devemos
atentar para o fato de que o ritual religioso foi incorporado a um contexto político explícito.
Na realidade, assim como em toda Antiguidade, nós não temos no período helenístico uma
acompanhava eram decerto celebrações religiosas, pois foram homenagens criadas para
expressar gratidão aos deuses, mas também aos reis, que constituíam expressões de piedade.
como expresso nos decretos sobreviventes, alguns dos quais foram expostos aqui, não deixam
dúvidas acerca da função igualmente secular destas manifestações de honra aos monarcas.
com propósitos políticos no contexto da cidade helenística, vários fatores parecem ter
legitimavam o carisma da elite responsável por patrocinar os festivais, pois ela participava dos
que diz respeito à história da representação que a sociedade faz de si mesma e à história das
162
Chaniotis (1997, p. 248) disserta sobre outro fator que auxiliou as procissões helenísticas a desempenharem
um papel cada vez mais político e que se liga intimamente com o interesse das elites locais em se promoverem: a
competição, dentro da elite e entre as cidades, pela promoção de cultos locais.
227
desse modo, do status divino no que tangia à sua basileia e às manifestações de orgulho
cívico.
No sentido cívico, póleis antigas, como Atenas, mas também novas cidades, como
Pérgamo (OGIS, 332), fundaram cultos em louvor a soberanos com os quais mantinham
esfera de influência, garantindo boas relações com as cidades gregas. É como se houvesse
comunicar e cooperar uns com os outros apesar da dualidade entre a monarquia e a formação
políade.
Uma das principais imagens que se impõem quando falamos de Alexandre é a do herói
assentamentos urbanos por Alexandre são algo complexo. Como exposto anteriormente,
Isócrates (Phil., 120) já tratava a questão da conquista da Ásia e da fundação de cidades como
uma maneira de solucionar os problemas sociais da Hélade, numa carta endereçada a Filipe
em 346 a.C. Como modelo para este programa de colonização, Isócrates talvez considerasse
as colônias gregas fundadas durante o período arcaico (por volta de 750-550 a.C.) ou as
populações, pois sabemos que diversos grupos foram transferidos pelos persas e, antes deles,
deslocados para vários lugares no interior do Império Aquemênida bem antes da chegada de
Alexandre (Hdt., III, 39; V, 12; Strab., XI, 11,4; Arr., Anab., III, 8, 5).
Seja qual for o número exato de fundações atribuídas a Alexandre, com poucas
exceções, praticamente todos os assentamentos que podem ser atribuídos com certeza
razoável ao conquistador estavam localizados a leste do Tigre. Por ter enfrentado diversas
nômades das estepes do norte e contra a resistência nativa, fato que provavelmente o levou a
fundar mais cidades nesses territórios do que na Ásia menor, por exemplo (COHEN, 2013, p.
2750). Por conta de a maior parte destas fundações ocorrerem em localidades distantes do
Mediterrâneo Oriental, Alexandre teve de enfrentar a resistência dos colonos gregos, que não
queriam permanecer nessas terras tidas como inóspitas (Diod. Sic., XVII, 99, 5, XVIII, 7,1).
Não obstante tais desafios, a fundação de cidades era decisiva no sentido de facilitar a
Por vezes, a fundação podia ter o papel de romper o monopólio de uma antiga elite
local, ao deslocar o centro de poder para uma nova região, assim como a construção de um
espaço dentro de um novo nexo urbano criava uma nova lógica de domínio territorial. Em
nossa opinião, foi isso o que ocorreu, de certa forma, no caso mais emblemático de fundação
território que por milênios teve seu foco de poder localizado no Alto Egito contribuía para
Afora essas questões, outro aspecto que despertou e ainda desperta a atenção dos
fundadores. Devido às opiniões contraditórias contidas nas fontes antigas, essa é uma questão
que decerto continuará a suscitar debate. Mesmo que nos distanciemos de interpretações
romanceadas que expõem um Alexandre em busca de conquistas nos termos das narrativas
seus discursos e em suas séries monetárias. Como vemos nas Figuras 11 e 12,163 o monarca se
associou a Héracles, um dos principais heróis fundadores, assim como a Zeus, referindo-se
várias vezes a si mesmo como o próprio filho desta deidade (Plut., Vit. Alex., XXVI, 6; Arr.,
III, 2, 1). Do ponto de vista da legitimação política, a construção de ligações com o campo do
sagrado foi algo intrínseco à instituição da monarquia de Alexandre, assim como das basileias
helenísticas.
da Síria. A informação que temos sobre essa primeira fundação de Antígono provém de
Estrabão (XIII, 1, 52): “[...] Antígono incorporou os habitantes de Escépsis, como habitantes
de Alexandria da Trôade [...]”.164 Estrabão não nos fornece maiores detalhes sobre essa
fundação, afirmando apenas que, posteriormente, Lisímaco libertou os citadinos levados para
Antigônia, que retornaram a Escépsis. Aos moldes do que Alexandre teria feito, percebemos,
pelo exemplo de Antígono em Antigônia, que batizar as novas cidades com nomes derivados
163
As referidas figuras encontram-se no capítulo III desta tese.
164
O nome que Estrabão emprega, para a cidade, Alexandria da Trôade, se deve ao fato desta cidade, assim
como outras fundadas por Antígono, ter sido rebatizada após a morte do basileus, em 301 a.C.
230
macedônios, para atuar como uma espécie de guarnição permanente das terras conquistadas,
que servia, desta forma, como um suprimento contínuo de homens para o exército e para o
aparato burocrático que ia se formando com os reinos.165 Para Billows (1990, p. 293), embora
Alexandre pareça ter procurado cooptar membros de elites locais como parceiros na
medida, tenha seguido essa prática, torna-se evidente, tanto pela documentação textual quanto
material, que os primeiros basileis tinham como homens de confiança, tanto na esfera
escusado falar sobre o protagonismo ocupado por Alexandre nas produções dos estudiosos
que tratam da fundação de cidades no oriente, uma vez que o argéada é até hoje um ponto de
No entanto, quando passamos para o campo das fundações dos primeiros monarcas do
período helenístico, grande parte dos especialistas, como Cohen (1995, p. 8-12), reconhecem
Seleuco e seu filho Antíoco como aqueles que contribuíram de forma mais significativa.
Mesmo quando o foco está sobre os Antigônida, como no trabalho de Wehrli, intitulado
encerrada em uma breve discussão que visa apenas dar um reconhecimento ao diádoco,
demonstrando que ele também teve sua parcela de contribuição no processo de constituição de
165
A esse respeito, uma dúvida que subsiste é se já num primeiro momento tais fundações acompanharam todas
elas o plano arquitetônico da pólis ou se começaram como colônias militares. Mossé (2004, p. 62-63), ao tratar
de Alexandria, no Egito, afirma que esta era definitivamente uma pólis, tendo sido inicialmente ocupada por
mercenários gregos ou colonos que receberam lotes de terra, ou mesmo por gregos já presentes no Egito antes da
chegada de Alexandre. A autora ainda afirma que, de modo geral, se insiste no caráter político-administrativo
desta cidade e não no militar, ao contrário de outras fundações que balizaram a conquista da oikoumene. Desde o
início teria sido reservado, em Alexandria, lugar para uma ágora e para santuários consagrados aos deuses do
panteão helênico. Segundo Cohen (1995), no entanto, Alexandria representou uma exceção. Para o autor, a
maioria das fundações helenísticas teria começado como colônias militares e, posteriormente, se convertido em
pólis, do ponto de vista do planejamento arquitetônico, com uma função político-administrativa a serviço do
basileus.
231
cidades. Acreditamos que o espaço reduzido reservado a Antígono como fundador se deve à
com os demais diádocos. Mas mesmo diante dessa situação referente à documentação,
importância, como podemos ver nos trabalhos de Tscherikower (1927) e Goukowsky (1981).
Goukowsky (1981, p. 9-12) sugere que provavelmente boa parte dos colonos greco-
macedônios de diferentes localidades do território ocupado pelos Seleucida devem ter sido
introduzidos ainda no período do governo de Antígono. A tese do autor parece coerente visto
que, durante as duas primeiras décadas após a morte de Alexandre, foi Antígono, e não
Seleuco, o diádoco em posição de recrutar tanto macedônios quanto gregos das póleis para os
assentamentos urbanos da Ásia. Como vimos até aqui, a documentação atesta que Antígono,
após 321 a.C., esteve no epicentro político do Mediterrâneo oriental e das relações
diplomáticas no que se refere à conexão entre basileus e cidades gregas. Fontes como
transplantou colonos dessas para cidades selêucidas, como Antioquia e Apameia, ambas
Nesse momento Antígono estava hospedado na Síria superior, fundando uma cidade
no rio Orontes, a qual ele chamou de Antigônia [...]. Ele colocou-a em uma escala
pródiga, fazendo o perímetro ter o tamanho de setenta estádios, 166 pois a localização
era naturalmente bem adaptada para vigiar a Babilônia e as satrapias superiores e, ao
mesmo tempo, supervisionar a Síria inferior e as satrapias próximas ao Egito. No
entanto, aconteceu que a cidade não sobreviveu muito, pois Seleuco a destruiu e
transportou sua [população] para a cidade que ele havia fundado e chamado de
Selêucia [...] (Diod. Sic., XX, 47, 5-6).167
166
Estádio se refere a uma unidade de medida de comprimento usada na Grécia Clássica. O padrão desta medida
era a pista de corrida de Olímpia, onde era disputada a prova do estádio. O estádio olímpico media por volta de
600 pés (HAMILTON, 1838, p. LI).
167
Após a morte de Seleuco, Selêucia foi renomeada por Antíoco I, quando passou a ser chamada de Antioquia.
232
acima foi completamente abandonada, pois ela teria sobrevivido pelo menos até por volta de
Mas quando eles [partas] não conseguiram realizar um cerco e tomar Antioquia, já
que Cássio efetivamente os repeliu, se voltaram para Antigônia. E como os arredores
dessa cidade estava fortificado [...] os partas [...] nem ao menos conseguiram
penetrar com sua cavalaria na cidade [...].168
Mesmo que a maioria das atividades colonizadoras de Antígono não esteja registrada de
forma direta nas fontes, evidências suficientes sobreviveram para mostrar que esse basileus
mencionados, entre outros que tratam da mesma temática.169 Além disso, uma vez que temos
cidades diretamente apontadas nas documentações como fundadas por Antígono, mas que
foram renomeadas após sua morte, como Antigônia da Trôade, Antigônia na Bitínia e
Antigônia no Orontes, temos motivos para supor que outras cidades originalmente fundadas
168
O episódio narrado por Dio Cássio se refere ao período histórico que ficou conhecido como Guerras romano-
partas, que ocorreram entre 66 a.C. e 217. O Cássio ao qual o texto se refere é Caio Cássio Longino, senador
romano, contemporâneo a Júlio César.
169
Como o caso de uma cidade fundada por Antígono próximo à Bitínia e que posteriormente foi renomeada por
Lisímaco como Niceia (Strab., XII, 56, 5).
233
Antígono, afirma que ela se baseou em 5 premissas básicas: cuidados especiais com as póleis
sinoicismo.170 Após assumir o título de basileus, em 306 a.C., Antígono decidiu unir as
cidades de Teos e Lebedos em uma única cidade. Isso envolveria a remoção de todos os
habitantes de Lebedos para Teos ou para uma região próxima a esta. Sobre esse evento, a
cultura material nos auxilia, pois, por meio de dados epigráficos provenientes de duas cartas
Sinoicismo ou sinecismo (συνοικισμóς), de modo geral, refere-se à união de várias aldeias para a formação de
170
uma pólis.
234
sinoicismo, que talvez não tenha sido finalizado.171 A primeira das cartas estabelece como
deve ser a divisão dos territórios entre os habitantes das duas cidades e seu processo de
ocupação:
[...] Achamos melhor que um lote de terra [seja dado] a cada um dos [lebedianos]
proporcional ao que será deixado para trás em Lebedos. Até que as casas novas
sejam construídas, casas [devem ser fornecidas a todos] os lebedianos sem encargos
[...] se for necessário derrubar a cidade atual [Teos], metade das casas existentes
[devem ser deixadas], e dessas um terço devem ser dadas [aos lebedianos] e vocês
terão acesso a dois terços [...]172 [Todos [...] devem construir casas em seus lotes
dentro de três anos, caso contrário, [os lotes] se tornarão propriedade pública.
[Pensamos] certo de que parte dos telhados das casas sejam dados aos lebedianos
[...] [para que] as casas [possam ser concluídas o mais rápido possível].
[Nós pensamos] também que um lugar seja atribuído aos lebedianos onde eles
possam enterrar seus [mortos] [...] (WELLES, RC, n. 3).
Na segunda carta, é possível ver que medidas ainda precisavam ser tomadas para o
perderiam suas casas, e a concessão de casas temporárias aos mesmos enquanto as definitivas
171
Deduzimos essa possível não finalização do sinoicismo pelo fato de a segunda carta, datada por volta de 303
a.C., inscrita, portanto, provavelmente 3 anos depois da primeira, ainda conter algumas instruções que foram
emitidas na primeira carta. Além disso, como reporta Diodoro (XX, 107, 5), em 302 a.C. Cassandro conquistou a
cidade de Teos, o que provavelmente interferiu na conclusão da formação da nova cidade.
172
Nesse caso, o acesso aos dois terços de terra seria reservado aos habitantes de Teos. Quando o trecho se refere
à possibilidade de derrubar a cidade de Teos então existente, pode-se compreender que, se fosse necessário, a
cidade seria reformulada em outro espaço próximo.
235
Por meio dos dois trechos epigráficos expostos, constatamos como Antígono, no papel
assentamentos por ele criados ou remodelados e como todas as medidas referentes a esse
processo provinham de diretrizes ligadas ao monarca. Bem como seu pai, Demétrio também
Demétria (Δημητριάς) foi fundada por Demétrio, em 293 a.C., no território da Magnésia
(Grécia centro oriental) (Strab., IX, 436, 443), como é possível identificar no mapa da Figura
25. De acordo com testemunhos antigos, essa pólis se destacou por sua posição estratégica,
sua economia florescente e sua suntuosidade, tornando-se a residência favorita dos basileis
Essa inscrição, encontrada em Dion, um vilarejo da Pieria,175 por muito tempo foi
considerada do final do século III a.C. No entanto, Hatzopoulos (2006, p. 88-89) indica ser
mais provável que ela pertença ao reinado de Demétrio e, portanto, possivelmente estaria
ligada à fundação de Demétria em 293 a.C., argumento que, de acordo com os dados por nós
173
Entre o final de 294 a.C. e o início de 293 a.C., Demétrio foi aclamado basileus da Macedônia e seguiu com
procedimentos para assegurar a posse e controle de diversos territórios, incluindo a Tessália. Provavelmente foi
nesse período que fundou Demétria, que tinha aspectos de uma grande fortaleza (NEWELL, 1927, p.11).
174
A inscrição original foi recolhida por Melécio de Antioquia, que viveu entre os anos de 358-381. A tradução
foi feita por Hatzoupoulos (2006) mediante uma foto, pois a transcrição no grego não foi publicada até hoje.
175
Localizada na Macedônia Central.
236
Fonte: http://www.ancient.eu
Demétria passou por duros reveses após 196 a.C., quando Felipe V foi derrotado pelas
forças romanas. Segundo Timothy (1991, p. 603-604), sob o domínio de Constantino, tornou-
se uma cidade cristã. De acordo com Procópio (De aedificiis, IV, 3, 5), Demétria foi
reconstruída por Justiniano I, mas outras evidências apontam para a possibilidade de que a
vida urbana aí tenha chegado ao fim ainda no início do século VI (TIMOTHY, 1991). O
território atual de Demétria é um sítio de escavações, que começaram no século XIX. Pelas
escavações, é possível ver que o lugar realmente se adequava aos requisitos de uma pólis, pois
preservada em grande parte de sua extensão. Vários edifícios encontram-se visíveis ainda
dentro do circuito, como o palácio, cujas fundações de pedra e paredes de barro em fossa com
Fonte: https://www.gtp.gr/ArchaeologicalSiteofDemetrias
No entanto, nenhuma escavação abrangente foi realizada até o momento, o que dificulta
a obtenção de informações mais precisas sobre a pólis. As poucas informações das quais
do século XX. Recentemente, algumas áreas foram limpas, tornando o sítio arqueológico mais
acessível.
238
Fonte: https://www.gtp.gr/ArchaeologicalSiteofDemetrias
O teatro antigo, que aparece na Figura 27, encontrava-se ao pé de uma colina, do outro
século XX e finalmente liberado para visitação entre 1958-1959. A borda da orquestra foi
descoberta, bem como a primeira fila de assentos. O teatro aparentemente foi fundado na
morte de Antígono, em 301 a.C., o poder dos Antigônida já havia sido fato estabelecido, e sua
No que se refere à associação com heróis fundadores e divindades, vimos nas Figuras
13, 14 e 15, inseridas no terceiro capítulo, que os Antigônida fizeram questão de se associar a
estes por meio de suas representações numismáticas. Essa associação pode ser também notada
observamos mais uma vez, no anverso, a imagem de Demétrio, ornado com o diadema e
chifres de touro acima de sua testa, que é uma clara referência ao deus Zeus-Amon. Já no
vestindo manto, usando causía e segurando uma longa lança com a mão direita, representação
176
Causía era um típico chapéu macedônio.
240
novamente a cabeça de Demétrio surge ornada com diadema e chifres de touro, enquanto no
reverso vemos Poseidon de pé, com um dos pés sobre uma pedra, segurando seu tridente,
sempre a associação com Alexandre, assim como o fizeram os demais diádocos. Demétrio,
por sua vez, foi o primeiro a representar a si mesmo nas moedas e, como seu governo foi mais
longevo que o de seu pai, pôde ser objeto de uma diversidade maior de homenagens. Nesse
ponto, interessa destacar um hino a ele dedicado pela cidade de Atenas, por volta de 291/290
a.C.
Muito poucos hinos restaram do período helenístico. Com exceção de algumas linhas de
louvor a Seleuco I, o único que restou, conservado na íntegra, foi o hino itifálico cantado
pelos atenienses em homenagem a Demétrio. Por essa razão, esse texto comparece em quase
todos os estudos sobre o culto aos soberanos no período helenístico. No entanto, apesar de ser
tão compulsado, o hino a Demétrio parece suscitar ainda muita discussão. Nas últimas duas
241
décadas, novas interpretações se impuseram, como é o caso dos trabalhos de Mikalson (1998)
e Green (2003). Esse novo conjunto de trabalhos, que buscam estabelecer novas diretrizes de
descobertas epigráficas.177
O canto é composto por 35 linhas. A versão que chegou a nós é atribuída a Duris de
Samos, autor que viveu entre os séculos IV e III a.C. (FGrHist, 76 F 13) :
Como o maior e o mais querido dos deuses está presente em nossa cidade! As
circunstâncias reuniram Deméter e Demétrio. Ela vem para celebrar os mistérios
solenes de kairós, enquanto ele está aqui cheio de alegria, como cabe a um deus,
justo e sorridente. Sua aparência é solene, seus amigos ao seu redor e ele ao centro,
como se estes fossem estrelas e ele o sol. Salve o menino do deus mais poderoso,
Poseidon, e de Afrodite! Pois outros deuses estão distantes ou não têm ouvidos, ou
não existem ou não nos levam em conta, mas você, podemos o ver presente aqui,
não feito de madeira ou pedra, mas real. Então, oramos por você: primeiro faça a paz
[...].
parecia ter, explicitada também em diversos momentos por Plutarco (Vit. Demetr. II, 2). Sobre
a associação com Poseidon e Afrodite, Demétrio é descrito aqui como um descendente direto
das divindades, assim como Alexandre o fizera no episódio de Siva. O hino deve ser decerto
interpretado como uma evidência segura das negociações políticas entre o monarca e a cidade
de Atenas. O poeta anônimo que formulou o canto teve uma importante e delicada tarefa
política a cumprir. Ele não apenas incentivou Demétrio a revelar seu poder, como também
sugeriu uma política a ser adotada pelo soberano diante da pólis (MIKALSON, 1998, p. 94;
MARCOVICH, 1988).
No passado, autores como Scott (1928) e Ehrenberg (1965) criticaram o hino por soar
como uma expressão exagerada de lisonja. Alguns autores contemporâneos, como Green
177
Chaniotis (2011, p. 158) aponta também para os diversos problemas editoriais e de tradução referentes ao
texto.
242
(2003), também se inscrevem nesta visão. Uma mudança importante tem sido observada nos
últimos anos a partir da tendência de se atenuar o caráter religioso do texto. Dentro desta
pelo poeta. Já Henrichs (1999, p. 223-248) centrou-se na convergência entre a narrativa mítica
e a história contida no canto, ao passo que Green (2003) associou o canto com ideias
filosóficas acerca da realeza divina. Sobre esta última abordagem, podemos ver presentes, em
alguns excertos dos tratados de realeza recolhidos por Estobeu, pontos em comum, como a
que o seu autor não era apenas um adulador, mas um poeta chamado a executar uma tarefa
complexa, ao se valer do hino para enviar uma mensagem política da cidade ao soberano.
Segundo Chaniotis, por meio do hino constrói-se uma imagem de divindade multifacetada
para Demétrio, que é associado aos deuses e a elementos religiosos tradicionais, de maneira
que o hino deve ser inserido num contexto ritualístico. Essa imagem divina do poder
como dito no hino, ele deveria se comportar como tal. Se ele tivesse poderes divinos, deveria
empregá-los.
Enfim, podemos inferir que o hino a Demétrio integrava o repertório das práticas rituais
em torno do basileus helenístico, que transitava entre a política e a religião. No campo das
ao mesmo tempo que exigia que ele beneficiasse as cidades submetidas, exercendo o papel de
sóter e de evérgeta próprios dos soberanos helenísticos, além de manifestar a piedade para
com os deuses. Todos esses elementos iam ao encontro das esperanças depositadas pelos
cultos instituídos em honra a Antígono e Demétrio, no final do século IV a.C. Eis, então, o
trajeto dos soberanos Antigônida: de heróis fundadores a filhos dos próprios deuses.
243
aqueles que em algum momento estão sob as graças da casa dinástica. Strootman (2014, p.
34-35), ao falar sobre as dimensões ou funções da corte, afirma que ela pode servir como um
locus para a (re) distribuição de capital, prestígio e poder político, econômico, social e
simbólico. Desta forma, a corte teria cinco funções principais: 1) funcionar como uma arena
Mesmo que os primeiros reis helenísticos, com exceção de Ptolomeu, não tenham possuído
uma capital real definida, essas diretrizes nos ajudam a compreender como se davam as
relações intra corte dos primeiros reinos helenísticos. Mas falar de uma corte nos primeiros
anos da basileia helenística é algo complicado. Esse foi um período árduo, no sentido de se
a uma cultura de corte helenística significa nos reportarmos aos padrões fixados pela casa
reinos, como o da Bitínia, sofreram a influência do tribunal macedônio, assim como dos
de três dos principais reinos helenísticos foram bastante semelhantes: dos Ptolomeu, dos
244
Selêucida e o dos Antigônida.178 A corte real era essencialmente a casa da família régia e,
muitas vezes, era chamada de oikos nas fontes gregas (basiliké oikía). No entanto, nas fontes
mais antigas, a corte régia, no seu sentido social, era qualificada como séquito (therapeia) ou
como “os amigos do rei” (hoi philoi tou basileus). Nesse ponto, nos concentramos num
constituíam um grupo de elevado prestígio ao lado do rei, ao qual se vinculavam por laços de
philia e xenia, por meio de formas de amizade ritualizadas (HERMAN, 1997, p. 200). Os
philoi eram predominantemente macedônios e gregos, algo que ocorria mesmo na monarquia
Antigônida, que tinha domínio, ou pelo menos influência, tanto sobre territórios da Grécia,
quanto em territórios do oriente. Muitas vezes, os integrantes desses grupos competiam entre
si por uma posição mais próxima ao rei, ocasionando conflitos violentos. Após a consolidação
da monarquia helenística, tornou-se um hábito entre os monarcas presentear seus amigos mais
próximos, o que podia se mostrar como uma espécie de relação de dádiva e contra dádiva, que
reis recrutavam frequentemente os seus hetairoi mais próximos nas fileiras do syntrophoi
número considerável de amigos, oficiais e diplomatas a serviço do rei é conhecido por meio
tais homens criadas pelas cidades gregas. Dentre esses homens, destacamos Andrônico de
Olinto, que foi um dos generais que acompanhou Alexandre na campanha rumo ao oriente, e
178
Kosmetatou (2013, p. 457) chama a atenção para o fato de que, na corte dos Antigônida, na Macedônia, os
tribunais se mantiveram mais simples, pois buscaram não aderir ao luxo oriental, que poderia ser visto, aos olhos
dos súditos, como um exagero dos soberanos.
179
Como dissemos, a proximidade habitual entre o rei da Macedônia e os demais aristocratas é perceptível pela
existência do termo hetairoi, que significa companheiros. A ausência de uma hierarquia administrativa ou
jurídica na Macedônia significava que o rei governava com o auxílio de sua comitiva, sobretudo por meio de sua
guarda pessoal (somatophulakes) (BILLOWS, 1994, p. 9-10). Esse aspecto da basileia macedônia foi um dentre
os vários outros herdados pelas monarquias helenísticas.
245
2012, p. 147-150). Em 315 a.C., Andrônico participou do cerco a Tiro liderado por Antígono,
Agesilau. Sua principal função foi atuar como diplomata, como podemos ver na passagem de
Diodoro, pois estava a serviço de Antígono em uma missão em Chipre em 315 a.C. Outra
evidência, desta vez epigráfica, que atesta a importância de oficiais a serviço de Antígono nas
direcionada a cidade de Escépsis, inscrita em 311 a.C. (WELLES, RC, 1): “Enviamos
Aristodemo, Ésquilo e Hegésias para elaborar o acordo. Eles voltaram com promessas do
representante de Ptolomeu, Aristóbulo [...]. Saibam então que a trégua foi estabelecida e que a
Antígono também reuniu em torno de si homens com as mais diversas habilidades e que
podiam vir a contribuir com a fabricação e estabelecimento de sua basileia. Esse é o caso de
Epímaco de Atenas, um renomado engenheiro e arquiteto que ficou famoso por ter construído
o Helépolis (ἐλέπολις). Se referindo ao relato de Diodoro (XX, 48), Smith (SMITH et al.,
Quando Demétrio Poliorcetes sitiou Salamina, em Chipre, ele fez construir uma
máquina que ele chamou de “o tomador das cidades”. Sua forma era a de uma torre
quadrada, cada lado tendo 90 côvados de altura e 45 de largura. 182 Apoiava-se em
quatro rodas, cada uma com oito côvados de altura. Dividia-se em nove andares, a
180
Nicocreonte foi um dos mais poderosos tiranos de Chipre, tendo sido rei de Salamina e aliado de Ptolomeu.
Provavelmente morreu antes de 306 a.C., por seu nome não constar no cerco a Rodes feito por Demétrio, no qual
o antigônida ganhou o epíteto de Poliorcetes (SMITH, 2005, p. 184).
181
Aristodemo era originário de Mileto, Ésquilo de Rodes, enquanto Hegésias era proveniente da Magnésia.
182
Côvado se refere a uma medida de comprimento usada por diversas sociedades antigas, como a egípcia e a
babilônica. Baseava-se no comprimento do antebraço.
246
parte inferior continha máquinas para atirar grandes pedras, as catapultas do meio
jogavam lanças e as máquinas altas atiravam pedras menores, juntamente com
catapultas menores. Ele estava equipado com 200 soldados, além daqueles que o
moviam, empurrando os feixes paralelos no fundo [...].
Mesmo que o cerco no qual Helépolis foi empregado não tenha rendido uma vitória, a
magnitude das forças antigônidas foi tão impactante que, como já dito, resultou desta batalha
a alcunha de Poliorcetes dada a Demétrio. Muitos outros nomes de homens, provenientes das
mais diversas localidades, poderiam ser registrados aqui como parte dos hetairoi de Antígono,
ou como seus subordinados em algum momento, mas nosso objetivo neste estudo não é
executar uma listagem,183 mas deixar nítido que, já nas primeiras décadas da basileia
administrativos de Antígono.
possível destacar a seguinte passagem: “[...] Sua aparência é solene, seus amigos ao seu redor
e ele ao centro, como se estes fossem estrelas e ele o Sol [...]” (FGrHist, 76 F 13). Nesse
trecho, Demétrio é descrito entre seus amigos como o Sol cercado pelas estrelas. Essa
metáfora não foi escolhida aleatoriamente pelo poeta, pois se trata de uma imagem de poder
importante para a prática administrativa dos reinos helenísticos, como apontam diversos
especialistas que analisam o papel dos amigos reais (φίλοι) nos fundamentos político-
Quando o poeta, em outro trecho do hino, pergunta a Demétrio se ele pode atribuir a
amigo do rei. Chaniotis (2011, p. 183) afirma que o bom relacionamento de Demétrio com
seus amigos também assumiu um caráter ritualístico. Demétrio teria sido o único entre os
183
Billows (1990, p. 361-452) elaborou um apanhado de todos os nomes de amigos e subordinados a Antígono
que aparecem nas documentações literárias e epigráficas.
247
sucessores que tolerou e encorajou de fato a concessão de honras religiosas aos seus
F 1).
Sobre Adeimantos, lembramos que foi ele o responsável por organizar toda a formação
da Liga Helênica, sobre a qual temos alguns fragmentos de Epidauro (SEG, 45, 479), datados
de 302 a.C. A Liga visava a reunir as cidades gregas em torno de Antígono e Demétrio para
fazer frente aos diádocos rivais. Além disso, ao analisarmos alguns fragmentos encontrados
honrarias a homens próximos a Demétrio. No fragmento 107 (SEG, XXX, 72), por exemplo,
Alcaios e Sólon, identificados apenas como amigos de Demétrio Poliocertes, recebem honras
oficiais por terem auxiliado os atenienses em negociações diretas com o rei. Como Buraselis
Uma das formas de relação entre o monarca e seu séquito eram as comemorações
festivas, dentre as quais podem ser citados os banquetes. O registro que temos sobre um
O excerto acima, retirado da obra de Ateneu de Náucratis, que viveu no século II,
menciona que o banquete ofertado a Demétrio, assim como o realizado por Antígono, possuía
todos os tipos de carnes e peixes, fato que retrata a suntuosidade que tinham essas
da comida e bebida que era apresentada em uma festa. Os banquetes e os simpósios eram
184
Cumpre observar que a relação dos monarcas com os seus amigos nem sempre ocorreu de modo harmonioso,
como podemos constatar desde o período de Filipe e Alexandre.
248
elementos centrais na vida da corte helenística e se constituíam uma chave para os encontros
entre rei e súditos desde a época dos Argéada (BORZA, 1982, p. 45-46). Sobre os banquetes
dados por Demétrio, Diodoro (XX, 92, 4) afirma que, em tempo de paz, o antigônida gostava
muito de banquetear, dançar e divertir-se. Enquanto Plutarco (Vit. Demetr., XXVII, 3) afirma
que, durante essas festividades, os membros da elite esperavam a atenção do rei, para
monarca podia manter relações com o mundo exterior, pois, por meio delas, ele era capaz de
negociar com outras casas reais, súditos e membros de elites locais, assim como de resolver os
mais diversos assuntos públicos (STROOTMAN, 2014, p. 195-196). Durante esta tese,
governo de Antígono. Esse tipo de recepção de membros externos se manteve com Demétrio,
como podemos ver em Plutarco (Vit. Demetr., XLII, 1), que trata de um episódio no qual, por
um tempo, o comportamento do rei foi criticado pelos súditos, que desaprovavam seu modo
de vida luxuoso, sua aspereza e a dificuldade de acesso à sua pessoa para tratar de assuntos
importantes:
[...] Ele não dava audiência a qualquer um que fosse, ou ele era severo e áspero com
seus assessores. Por exemplo, ele manteve uma embaixada de atenienses esperando
por dois anos, isso porque pertencia a cidade à qual ele era mais solícito dentre todas
as cidades gregas [...] Em uma ocasião, quando se pensava que ele estava andando
no exterior de um modo mais afável do que o habitual e parecia encarar seus
assuntos sem desagrado, havia um grande número de pessoas que lhe apresentaram
petições escritas. Ele os recebeu todos e dobrou-os em seu manto; as pessoas
ficaram encantadas e o acompanharam durante o caminho. Mas quando chegou à
ponte sobre o Áxio, sacudiu as dobras de seu manto e lançou todas as petições no
rio. Essa foi uma grande vexação para os macedônios, que se julgaram insultados,
não governados, e eles se lembraram ou escutaram aqueles que lembraram como
Filipe costumava ser [...] acessível. Uma anciã uma vez surpreendeu Demétrio
enquanto passava e exigiu muitas vezes que lhe desse uma audiência. “Não tenho
tempo”, disse Demétrio. “Então não seja rei”, gritou a velha. Demétrio [...] depois de
pensar sobre o assunto, voltou para sua casa e, adiando os demais assuntos por
vários dias, dedicou-se inteiramente àqueles que desejavam ter uma audiência com
ele, começando com a anciã que o repreendeu (Plut., Vit. Demetr., XLII, 2-4)
249
A passagem acima reflete como o acesso ao monarca era algo que fazia parte do
de embaixadas, as audiências e tudo mais que envolvia a figura do monarca faziam parte de
definidas por uma institucionalização, a monarquia helenística, em sua relação intra corte,
De forma inequívoca, dentre todas as relações que o rei estava envolvido, a que figurou
como a mais importante foi entre ele, os hetairoi e, consequentemente, o seu exército. A
helenística. Já tratamos desse ponto quando discutimos sobre a carcaterização dessa basileia.
Como afirma Sant’Anna (2014, p. 15-16), mesmo que vários tipos de homens pudessem
Como uma realeza de caráter carismático, a basileia antigônida foi marcada e definida
por aspectos ligados à vitória na guerra, que determinaram sua representação. Quando
tratamos das evidências textuais, epigráficas e numismáticas, por diversas vezes encontramos
associados com deidades e imagens que fortaleciam suas características de força bélica. Todos
esses elementos serviram para destacar e reforçar o principal papel exercido pelo monarca do
250
exércitos que Antígono e Demétrio são entronizados como os primeiros basileis helenísticos.
primeiros reis helenísticos, o papel dos hetairoi e dos membros do seu exército, que eram os
elementos centrais na proclamação do monarca. Foi por meio de uma vitória de Demétrio, que
liderava as forças antigônidas, que Antígono foi aclamado o primeiro rei helenístico. Como
Theos Aniketos, o general vitorioso se convertia em basileus, como podemos observar nos
[...] Ptolomeu desistiu da luta em Chipre e voltou ao Egito. Demétrio, depois de ter
tomado todas as cidades da ilha e suas guarnições, matriculou os homens em
companhias – quando eles foram organizados chegaram a dezesseis mil a pé e cerca
de seiscentos a cavalo. Ele imediatamente enviou mensageiros a seu pai para
informá-lo sobre os sucessos, embarcando-os em seu maior navio. Quando Antígono
ouviu falar da vitória conquistada, exaltado pela magnitude de sua boa fortuna,
assumiu o diadema e, desde então, usou o estilo de rei, permitindo também a
Demétrio assumir esse mesmo título e posição [...].
podemos atestar nos trechos acima, de Plutarco e Diodoro, deveria se processar segundo os
diadema em torno da cabeça, como é possível observar na Figura 14, na qual vemos
(2000, p. 125-126; 1985, p, 256), a maioria dos casos de escolha de um monarca helenístico
não possui evidências de aclamação popular e, mesmo que a aprovação dos súditos tenha
reforçado a posição de Antígono como basileus, como podemos ver na análise da relação dele
com as cidades gregas, e seu exército, ela não foi a responsável pela sua transformação em rei,
185
Após a vitória das forças antigônidas, lideradas por Demétrio, sobre o exército de Ptolomeu em 306 a.C. em
Chipre.
251
mas sim suas vitórias. Ainda destacamos que, no caso de Demétrio, mesmo ele sendo o
responsável pelas operações militares das forças antigônidas, de acordo com os relatos,
Ainda reportando aos relatos de Plutarco e Diodoro sobre a adoção do título de basileis
dois assume nos referidos excertos. Strootman (2014, p. 229-230) questiona o fato de que o
ritual tenha sido algo espontâneo, pois com certeza foi previamente organizado. Para o autor,
Antígono decerto recebeu a notícia da vitória por um mensageiro, bem antes da chegada de
Demétrio sobre as forças de Ptolomeu (Plut., Vit. Demetr., XVII, 2; Diod. Sic., XX, 53, 1). Na
realidade, a proclamação teria sido uma performance teatral, visto que, somente depois que
momento em que ele saiu, Aristodemo o saudou como basileus, seguido de uma aclamação
geral pelo exército e os philoi. Além disso, o relato não menciona a amarração do diadema, o
que significa que Antígono provavelmente já estava usando um diadema quando saiu do
palácio para encontrar a multidão. Desta forma, a coroação do monarca helenístico também se
encaixava dentro de um ritual que, assim como os demais, demandava uma teatralização
lado da figura do monarca são os seus amigos, seu exército e uma vitória.
nunca deixou de ser um guerreiro. Sua realeza, assim como seu reino, era fruto de uma
doriktetos chora. Ainda segundo Sales (2005, p. 57-58), o confronto direto com outros
de aclamação do basileus, por seu exército, necessárias e suficientes. Como dissemos, nunca
186
Aqui estamos nos referindo ao mesmo Aristodemo que é citado na inscrição de Escépsis de 311 a.C.
(WELLES, RC, 1).
187
De acordo com as fontes, Antígono estaria em Antigônia, na Síria.
252
existiu uma lei de sucessão ou aclamação real. A monarquia helenística, em grande parte, foi
Embora não existisse uma lei de sucessão, fontes antigas sugerem que a investidura de
um novo rei e o enterro de seu antecessor foram eventos rituais inter-relacionados, pois a
transmissão da basileia era feita preferencialmente de pai para filho. O sucessor seria
transformado em novo líder da casa dinástica, por isso era obrigado a dedicar honras ao seu
Antes da sucessão, deveria haver um período de luto. Isso permitia que o sepultamento
levar algum tempo para que as pessoas viajassem até a corte a fim de participar da investidura
do novo soberano. Além disso, o exército tinha que ser reorganizado e sua fidelidade
garantida (Polyb., XVIII, 55, 3-4). Segundo Walbank (1984, p. 226), a presença do exército
na coroação era algo imperativo. O sepultamento real foi um cortejo público suntuoso e
importante. O transporte da urna ou do caixão que continha o corpo embalsamado do rei até o
seu lugar de repouso final era cuidado pelo exército e pelos membros da corte. Relatos de tais
procissões mostram que a última jornada do basileus poderia ser espetacularmente encenada e
que o corpo dele poderia ser divinizado, sendo, a partir daí, mais sagrado do que foi durante
sua vida. Quando nos referimos aos cortejos fúnebres dos primeiros soberanos helenísticos,
mais uma vez os Antigônida representam um modelo. Sobre o funeral de Antígono, após sua
morte em Ipso em 301 a.C., não temos evidências significativas, mas em relação a Demétrio,
seu sepultamento foi marcado por cerimônias fúnebres pomposas. Por volta de 283 a.C., sua
urna foi trazida da Síria para a Grécia pela frota antigônida comandada pelo seu filho e então
188
Demétrio morreu entre 283/282 a.C. em Apameia na Síria. Desde 285 a.C., o antigônida estava na condição
de prisioneiro de Seleuco (NEWELL, 1927, p. 12).
253
[...] havia algo dramático e teatral mesmo nas cerimônias funerárias de Demétrio.
Pois o filho Antígono, quando soube que seus restos tinham sido enviados para casa,
lançou-se ao mar com toda a frota e os encontrou nas ilhas. Eles foram entregues a
ele em uma urna de ouro, e ele os colocou no maior dos navios de sua frota. Das
cidades por onde a frota passou em seu caminho, alguns trouxeram guirlandas para
enfeitar a urna, outros enviaram homens com roupas de funeral para ajudar a
escoltá-lo para casa e enterrá-lo. Quando a frota aportou em Corinto, o vaso
cinerário era conspícuo na popa do navio, adornado com púrpura real e diadema de
um rei, e os homens jovens estavam de pé e armados como guarda-costas. Além
disso, o mais famoso tocador de flauta vivo [...] sentou-se perto e, com a melodia
mais solene sobre a flauta, acompanhou os remadores. A esta melodia, os remos
mantiveram o tempo perfeito, e seus espirros, como batimentos funerários do peito,
responderam às cadências dos tons de flauta. Mas a maior pena e lamentação entre
aqueles que haviam entrado na multidão do mar foi despertada pela visão do próprio
Antígono, que se curvava em lágrimas. Depois, as guirlandas e outras honras
concedidas [...] em Corinto, foram trazidas por Antígono até Demétria para o funeral
[...] (Plut., Vit. Demetr., LIII, 1-3).
O excerto mostra como, por meio dos rituais fúnebres em torno de Demétrio, o novo rei
aproveitou para percorrer as cidades costeiras da Grécia e conquistar a aclamação para sua
sucessão em uma magnífica demonstração de esplendor real e poder militar. Além disso, o
fragmentos encontrados em Epidauro, constatamos que, por volta de 302 a.C., Demétrio, sob
o comando de Antígono I, organizou e criou uma Liga Helênica, que simbolicamente buscava
remontar a Liga de Corinto. Segundo Strootman (2014, p. 213), Corinto, ainda em 283 a.C.,
era considerada politicamente o coração que unia o mundo das póleis em busca da democracia
e da autonomia, prerrogativas que foram defendidas por Antígono e Demétrio ainda no final
monarquia, a natureza heroica dessa realeza e o papel do rei como um salvador divino e
delineada. Antígono e Demétrio, por meio de suas ações, contribuíram de modo decisivo para
254
a realização dessa empreitada, e a dinastia dos Antigônida se firmou como uma das principais
realezas helenísticas.
255
CONSIDERAÇÕES FINAIS
décadas do século IV a.C., conseguimos perceber a importância que as ações dos diádocos
atuação dos Antigônida, foi possível analisar os caminhos e os diversos mecanismos que
qual vimos um mundo mediterrâneo marcado por uma profunda transformação, sobretudo
política.
Desta forma, longe de considerarmos o período entre 323 e 301 a.C., que compreende o
como uma conjuntura de turbulência que, em si, não teria contribuído para o advento da
monarquia helenística, constatamos que o novo sistema político que se delineou neste período
foi tributário de uma dinâmica que envolveu uma série de espaços étnicos e de sujeitos.
Sujeitos esses que ultrapassavam Alexandre e seus feitos. Concordamos que o governo de
Alexandre provocou uma ruptura com a prática política anterior, mas também que as ações de
seus sucessores, o fato de serem macedônios e a apropriação que realizaram das imagens do
com esse monarca, seja por meio da atuação ao seu lado no campo de batalha ou pela
tanto, teriam que resolver a questão sucessória que, de acordo com a tradição macedônia,
morrer, não deixara um herdeiro em condições de assumir o trono naquele momento. A partir
figura dos diádocos cada vez mais ligada à imagem do general vitorioso, somadas às
reinos.
alternativa para um império territorial imenso, mas com estruturas frágeis, pois, como foi
administrativos. Assim, entre 323 e 301 a.C., houve uma reestruturação do sistema político
Em conformidade com o objetivo central desta tese, analisamos como, após a morte de
Alexandre, a realeza helenística foi fabricada a partir das ações dos diádocos. Mantivemos
como foco o período de 321 a 301 a.C., em que Antígono Monoftalmo, ao lado de seu filho,
como ponto de partida o legado de Alexandre, mas também toda a tradição macedônia e
que a basileia que se consolidou após a morte de Alexandre foi um elemento novo, que já não
Antígono, ao assumir o título de basileus em 306 a.C., depois de ter sido aclamado pelo
seu exército como tal, e tendo Demétrio como corregente, inaugurava uma dinastia que
helenística. A criação de uma nova dinastia foi um aspecto fundamental na constituição dessa
realeza. Para haver uma continuidade dinástica, foi necessário a identificação do herdeiro com
seu progenitor em todos os âmbitos. Mesmo que os critérios sucessórios não tenham sido
definidos com clareza ao longo do período helenístico, confiança e emulação formavam parte
da ideologia da realeza desde os tempos dos primeiros diádocos. Nesse contexto, Antígono e
Demétrio formavam o primeiro e mais importante caso de harmonia entre pai e filho, o que
sucessor legítimo, ele próprio, por sua vez, se apresentava como um continuador genuíno de
helenístico, na altura de 306 a.C., já tinha empregado a associação com Alexandre nas
oriental; seguido como fundador de cidades; e se proclamado o maior benfeitor das cidades
Demétrio.
alguns conceitos, ferramentas que nos permitiram compreender o processo de formação dessa
acompanhar suas variações, seja no período homérico ou nos anos de tirania da pólis arcaica
e, sobretudo, durante a vigência da realeza dos macedônios e dos persas, nos ajudaram a
alcançar a natureza da monarquia helenística: uma basileia híbrida que transitou, durante seu
aquemênida.
258
espaços citados, contribuíram para a concepção da própria basileia antigônida, razão pela qual
o conceito de representação foi de suma importância para a tese. Como constatamos durante a
pesquisa, uma das principais características da realeza macedônia foi o seu caráter militar. O
rei era, sobretudo, rei de uma terra conquistada, ou seja, um soberano teoricamente exógeno à
sociedade que governava. Esse princípio foi absorvido na constituição da imagem monárquica
desencadeamento de outros fatores ligados à imagem régia, como os vínculos do basileus com
o sagrado.
Por meio da sua representação como Theos Aniketos, foi possível a Antígono, assim
vitórias, receberam inúmeras homenagens que possuíam não apenas um sentido político, mas
também religioso, como procissões, dedicação de estátuas e hinos. Como havia feito
momentos, como filhos destas. Como vimos, a conexão com o divino também desempenhou
um papel importante na realeza macedônia desde a sua formação, por meio da dinastia dos
Antigônida fabricaram de forma gradual sua imagem régia ao longo das duas últimas décadas
do século IV a.C.
dados epigráficos e as moedas, foi possível identificar os dados oriundos do âmbito político
nas imagens contidas nas moedas que emitia, encontrava uma solução eficaz para legitimar
seu poder. Pouco depois, ao vermos Demétrio ser o primeiro dentre os basileis a se
helenística havia dado frutos. Da mesma forma, o material epigráfico, constituído por
fragmentos de decretos e epístolas, nas quais foi possível encontrar termos como sóter e
apresentarem como bons governantes, segundo uma imagem do monarca ideal que havia sido
helenística em seus primórdios, e que a base desta realeza em grande medida se apoiou no
poder carismático do rei, os epítetos atribuídos aos soberanos nos levam a crer que, mesmo
que essa monarquia tenha sido criada num contexto de agudo embate político, quando a força
militar parecia ser a protagonista, os diádocos tiveram de lançar mão, no decorrer do processo
religiosos. Nesse contexto, foi com a intenção de enfatizar os aspectos sagrados da monarquia
helenística em formação que dedicamos a última parte da tese à análise dos ritos e das
Essa, no entanto, não foi uma tarefa fácil, sobretudo quando nos reportamos à persona
de Antígono, pois em virtude de sua morte, em 301 a.C., possuímos evidências escassas sobre
os ritos que adotou, ao contrário do que ocorre com Demétrio e os demais diádocos, como
Ptolomeu e Seleuco. Além disso, mesmo que este seja um aspecto importante da basileia, é
helenística, como é o caso das que envolviam as relações intra corte, como a entronização.
momento de (re) definições, quando o protocolo e a etiqueta próprios da basileia ainda não se
encontravam consolidados.
documentação sobre Antígono e Demétrio, percebemos que, mesmo que tenha ocorrido uma
evidente mitificação dos eventos ligados a esses reis, representados como heróis ou mesmo
filhos de divindades, como vimos no hino itifálico dedicado a Demétrio, tal mitificação
transitava entre o campo do religioso e o do político, aspecto que perdurou durante todo o
período helenístico, e que, em suma, nos mostra as ligações do sistema monárquico que
Em se tratando dos vínculos com o sagrado, o importante não é definir se o monarca era
em si mesmo concebido como uma divindade, mas os motivos que levaram à criação de
símbolos da realeza aquemênida ou se representando como filhos de deuses, nos revelam que
durante a formação da basileia helenística já havia uma preocupação com o aparato simbólico
em torno do monarca, não apenas em eventos públicos, mas também nas representações
escultórica e numismática.
Por todos os motivos elencados até aqui, chegamos ao final da tese reiterando a
helenística. Mesmo nos temas sobre os quais a documentação nos reporta poucas
serem tratadas no que tange aos primeiros reinos helenísticos, sobretudo porque este é um
campo de pesquisa que tem obtido mais fôlego apenas nas duas últimas décadas. No entanto,
consideramos que a tentativa de lançar luz sobre a dinastia antigônida, removendo o véu que
teima em encobri-la, sobretudo a figura de Antígono Monoftalmo, foi uma iniciativa capaz de
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