Cab 4tese - 5877 - TESE - RAFAEL - CERQUEIRA PDF
Cab 4tese - 5877 - TESE - RAFAEL - CERQUEIRA PDF
Cab 4tese - 5877 - TESE - RAFAEL - CERQUEIRA PDF
VITÓRIA
2016
1
VITÓRIA
2016
2
3
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________________
Prof. Doutor Antonio Carlos Amador Gil
Universidade Federal do Espírito Santo - Orientador
_____________________________________________
Professora Doutora Maria Regina Celestino de Almeida
Universidade Federal Fluminense - Examinadora Externa
_____________________________________________
Professor Doutor André Ricardo Valle Vasco Pereira
Universidade Federal do Espírito Santo - Examinador Externo
_____________________________________________
Professora Doutora Maria da Penha Smarzaro Siqueira
Universidade Federal do Espírito Santo - Examinadora Interna
____________________________________________
Professor Doutor Ueber José de Oliveira
Universidade Federal do Espírito Santo - Examinador Interno
4
AGRADECIMENTOS
Externar os agradecimentos parece tarefa fácil. Porém, dedicar algumas palavras aos que
colaboraram direta ou indiretamente para a realização desse trabalho torna-se um momento
complexo pois envolve a limitação das páginas e o risco do esquecimento. Mas, por outro lado,
é o tempo do reconhecimento e da gratidão.
Ao meu orientador, Tom Gil, por aceitar a condução de um trabalho que foge à sua temática de
estudos. Suas leituras, discordâncias e apontamentos foram essenciais na construção da tese.
Mestrado e doutorado sob a sua orientação. Sendo assim, obrigado pela confiança, pelo
comprometimento e pela generosidade ao longo desse tempo.
Agradeço, ainda, ao meu coorientador, Luiz Cláudio Ribeiro, pelas sugestões de bibliografia e
indicações pontuais que permitiram a reflexão sobre a escrita da história do Espírito Santo.
Obrigado por me permitir adentrar nesse campo no qual tem se dedicado.
Agradeço à minha família. Aos meus pais, pela liberdade de escolhas e apoio incondicional.
Aos irmãos, Lelei, por estar conosco, Renata, pela amizade e pelo sobrinho, e Rodrigo,
companheiro e também escudeiro nessa jornada. À Aninha, pela presença constante. À avó,
Maria José, por sempre perguntar se já estava terminando. E, aos tios e primos, pelo apoio e
compreensão de algumas ausências em função desse empreendimento.
Agradeço, especialmente, à Pollyana. Em primeiro lugar, pela coragem. Afinal, ao longo desse
trajeto me acompanhou como amiga, namorada e esposa. Tudo isso, fazendo também seu
doutorado! No mais, amor e admiração resumem bem esse trajeto. Obrigado!
Aos amigos, do GEAK, obrigado pelo apoio de todos e, principalmente, ao Bruno. Aos da
UFES, agradeço à Graziela pela amizade desde o mestrado. Ao Diones Ribeiro, obrigado pela
6
parceria de pesquisa e pelas longas conversas sobre nossos temas que não só ajudaram na
constituição dessa tese como indicaram caminhos futuros de trabalho. Aos companheiros do
IFES, obrigado Krüger, Luiz Henrique, Alex Nassau e Sílvia que acompanharam os primeiros
questionamentos que deram origem ao projeto, à Kalna por estar sempre solicita e, para Vinicius
Lordes, Luiz Antônio e Wallas, três colegas de trabalho e também pós-graduandos, agradeço a
companhia nas pausas para o café.
Edward Said
8
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de realizar uma história da historiografia do Espírito Santo
buscando compreender as formas, as funções e os significados que tiveram as diferentes
manifestações historiográficas sobre o Espírito Santo entre a década de 1960 e o início do século
XXI. Para isso, analisa as obras História do Estado do Espírito Santo, de José Teixeira de
Oliveira (1975), História do Espírito Santo, de Maria Stella de Novaes (1964), O Espírito Santo
é assim, de Neida Lúcia Borges (1971), e História Geral e Econômica do Espírito Santo: do
engenho colonial ao complexo fabril-portuário, de Gabriel Bittencourt (2006). Além dessas,
aborda uma nova produção historiográfica que surge na primeira década do século XXI
associada aos programas de pós-graduação, em especial, mas não exclusivamente, ao Programa
de História Social das Relações Políticas (PPGHIS-UFES). Assim, fundamentando a análise
em referenciais da História da Historiografia e da Teoria da História, em especial, Reinhart
Koselleck e Jörn Rüsen, avaliamos que tipo de relação as produções historiográficas
estabeleceram com o passado local e quais sentidos as narrativas históricas atribuíram para esse
passado. Desse modo, por um lado, identificamos a emergência e o percurso de uma narrativa
histórica da superação do atraso: a narrativa do progressivo desenvolvimento do Espírito
Santo, definida nas obras de José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de Novaes,
e a narrativa da formação econômica do Espírito Santo, representada pela obra de Gabriel
Bittencourt. Por outro, demonstramos como a nova produção historiográfica, as narrativas
críticas do Espírito Santo, tem colaborado com a desconstrução daquelas narrativas mestras
sobre o passado do Espírito Santo. Consideramos, assim, que a análise desse percurso da escrita
da história local permitiu compreendermos como se constituiu um paradigma de compreensão
e formas de narrar o Espírito Santo a partir da noção de atraso e sua superação. Compreendemos
que a perspectiva da superação do atraso definiu um lugar para períodos, acontecimentos e
personagens históricos que tiveram seu valor para o passado local definidos em função de sua
contribuição ou oposição para o desenvolvimento do Estado. Identificamos, com isso, como as
narrativas da superação do atraso corresponderam às expectativas dos projetos de
desenvolvimento do Espírito Santo e contribuíram para sua legitimação, tanto na década de
1960 com a industrialização, como nos usos políticos do passado recorrentes no discurso
político de Paulo Hartung sobre o Terceiro Ciclo de Desenvolvimento já no século XXI. Enfim,
avaliamos a importância das narrativas críticas na desconstrução da perspectiva da superação
do atraso, na desmitificação do lugar do atraso no passado local bem como sua relevância na
definição de diferentes sentidos para a história do Espírito Santo.
ABSTRACT
This thesis aims to perform a history of the historiography of Espírito Santo trying to understand
the procedures, functions and meanings involving different historiographical productions about
the state of Espírito Santo between the 1960s and the early twenty-first century. The research
analyzes the books História do Estado do Espírito Santo, by José Teixeira de Oliveira (1975),
História do Espírito Santo, by Maria Stella de Novaes (1964), O Espírito Santo é assim, by
Neida Lúcia Borges (1971), and Gabriel Bittencourt’s História Geral e Econômica do Espírito
Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário (2006). Besides these, it discusses a
new historiography that emerges in the first decade of this century, specially, but not
exclusively, associated to the Social History of Political Affairs Program (Programa de História
Social das Relações Políticas – PPGHIS-UFES). Therefore, grounding the analysis on
references of History of Historiography and Theory of History, in particular Reinhart Koselleck
and Jörn Rüsen, this thesis evaluates which kind of relations the historiographical productions
established with the local past and which meanings the historical narratives attributed to this
past. Thus, on the one hand, we identify the emergence and course of a historical narrative of
overcoming backwardness: the narrative of the progressive development of Espírito Santo, set
in the works of José Teixeira de Oliveira, Neida Lucia and Maria Stella de Novaes, and account
of the economic formation of Espírito Santo, represented by the work of Gabriel Bittencourt.
On the other hand, we demonstrate how the new historiography, critical narratives about
Espírito Santo, has collaborated with the deconstruction of those mainstream narratives about
the past of state. We, therefore, consider that the analysis of this local history writing path
allowed us to comprehend how this paradigm of writing and understanding the past of Espírito
Santo was built on the notions of delay and overcoming. We understand that the perspective of
overcoming the delay defined a place for periods, historical events and characters that had their
value to the local past defined in terms of their contribution to or obstruction of the development
of the state. Doing so, we identify how the narratives of overcoming backwardness support the
development projects of Espírito Santo and contributed to its legitimacy, both in the 1960s with
industrialization, as in the political uses of the past performed by the political discourse of Paul
Hartung on the Third Development Cycle in the XXI century. Finally, we evaluate the
importance of critical narratives in deconstructing the perspective of overcoming the delay and
its relevance in the definition of different meanings to the history of Espírito Santo.
RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo llevar a cabo una historia de la historiografía del Espírito Santo
tratando de comprender las formas, funciones y significados que tuvieran diferentes
manifestaciones historiográficas relativas al estado de Espírito Santo entre los años 1960 y
principios del siglo XXI. Para ello, analiza los trabajos História do Estado do Espírito Santo,
de José Teixeira de Oliveira (1975), História do Espírito Santo, de Maria Stella de Novaes
(1964), O Espírito Santo é assim, de Neida Lúcia Borges (1971), y História Geral e Econômica
do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário, de Gabriel Bittencourt
(2006). Además de éstos, se discute una nueva historiografía que florece en la primera década
de este siglo, asociada a los programas de posgrado, en particular, pero no exclusivamente, el
Programa de Historia Social de las Relaciones Políticas (PPGHIS-UFES). Por lo tanto, basando
el análisis en referencias de la historia de la historiografía y teoría de la historia, en particular,
Reinhart Koselleck y Jörn Rüsen, evaluamos qué tipo de relación las producciones
historiográficas establecen con el pasado local y que significados las narrativas históricas
atribuyeron a este pasado. De este modo, por un lado, identificamos la aparición y el recorrido
de una narrativa histórica de superación del retraso: la narrativa del desarrollo progresivo del
Espírito Santo, ubicada en las obras de José Teixeira de Oliveira, Neida Lucía y María Stella
de Novaes, y la narrativa de la formación económica del Espíritu Santo, representada por la
obra de Gabriel Bittencourt. Por otro, se demuestra cómo la nueva producción historiográfica,
las narrativas críticas del Espírito Santo, ha colaborado con la deconstrucción de los grandes
relatos sobre el pasado del Espírito Santo. Por consiguiente, consideramos que el análisis de
este recorrido de la escritura de la historia local nos permitió entender cómo se constituyó un
paradigma de comprensión y de formas de narrar el Espírito Santo basado en la noción de
retardo y superación. Comprendemos que la perspectiva de superar el retraso definió un lugar
para períodos, acontecimientos históricos y personajes que tuvieron su valor en el pasado local
definido en términos de su contribución u oposición al desarrollo del estado. Identificamos, con
ello, cómo las narrativas de superar el retraso están relacionadas con las expectativas de los
proyectos de desarrollo del Espírito Santo y han auxiliado a su legitimación, tanto en la década
de 1960, con la industrialización, como en los recurrentes usos políticos del pasado por el
discurso político de Paul Hartung en el Tercer Ciclo de Desarrollo, ya en el siglo XXI. Por
último, se evalúa la importancia de las narrativas críticas en la deconstrucción de la perspectiva
de superar el retraso, en la desmitificación del lugar del retraso en el pasado local y su relevancia
en la definición de los diferentes significados de la historia del Espírito Santo.
LISTA DE SIGLAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 14
INTRODUÇÃO
Refletir sobre o fazer historiográfico faz parte da própria trajetória da disciplina histórica. Em
especial, o chamado giro linguístico (linguistic turn) exerceu, e ainda exerce, influência na
produção historiográfica, pois trouxe questões pertinentes sobre a prática exercida pelos
historiadores:
A expressão giro linguístico foi bastante utilizada entre as décadas de 1970 e 1980
para se referir a um difuso e muito importante movimento intelectual que foi se
articulando progressivamente ao longo do século XX, e que exerceu grande influência
na Filosofia e em diversas Ciências Humanas e Sociais. Esse impacto está relacionado
a preocupações com o papel exercido pela linguagem não apenas nos projetos dessas
disciplinas, mas também nos fenômenos geralmente estudados por elas. Ao modificar
a concepção existente sobre a natureza da linguagem (de “palavra sobre o mundo”
para “ação sobre o mundo”), o giro linguístico apontou questões relativas à natureza
do conhecimento, questionando o que usualmente se entende por “realidade”, e
propiciou o surgimento de novos tipos de investigação e metodologias para sua
análise. [...] Na História, o giro linguístico, ao questionar não apenas as próprias
construções conceituais utilizadas pelos historiadores, mas também seus discursos
sobre “o passado” e seu próprio fazer historiográfico, teria desdobramentos muito
importantes.2
A partir de então fomos obrigados a compreender o texto como uma superfície cheia
de altos e baixos, silêncios e lacunas, que deveriam ser interrogados como elementos
constitutivos da narrativa acerca do passado. Aprendemos da mesma forma que o
texto escrito subordina a uma gramática e a uma semântica o conjunto móvel das
experiências humanas, instaurando, portanto, uma tensão necessariamente presente na
escrita do historiador. Enfim, a escrita histórica, para ser bem mais compreendida,
tomou emprestado o conceito de representação imagética inscrita no ato da escrita.
1
O termo utilizado foi apropriado do título da obra de José Carlos Reis. REIS, José Carlos. O desafio
historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
2
ARAÚJO, George Fellipe Zeidan Vilela. Desafios ao fazer historiográfico contemporâneo. In: Marcelo de Mello
Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º.
Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e
perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. p. 1-9. Disponível em:
http://www.seminariodehistoria.ufop.br/ocs/anais/index.htm Acesso em 2014. p. 1-2.
15
Seus signos, ao serem lidos, evocam imagens a partir das quais o passado se torna
matéria de conhecimento.3
3
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória. In:
ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (orgs). Cultura política e leituras do passado:
historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 26.
4
DOSSE, F. A história à prova do tempo. Da história em migalhas ao resgate dos sentidos. São Paulo: Unesp,
2001. p. 55-74.
5
SILVA, Rogério Chaves da. Método e sentido: a pesquisa e a historiografia na teoria de Jörn Rüsen. Fronteiras:
revista Catarinense de História, n.17, Florianópolis, 2009, p. 33-36.
6
Ibid., p. 52.
16
Espírito Santo? Quais relações e sentido estabeleceram com o passado local em diferentes
épocas?
7
Os aspectos que constituem esse desafio historiográfico, especificamente em relação ao Espírito Santo, se
encontram no primeiro capítulo dessa tese. Nos limitamos, aqui, a apresentá-lo como componente da
problematização e propósitos da tese.
17
A obra História do Estado do Espírito Santo é um marco da historiografia local. Ainda que seu
autor não tenha se radicado no Estado, ela é considerada a principal obra de referência sobre o
passado espiritossantense. Cabe ressaltar que ela é portadora de um discurso que se pretende
oficial. Suas três edições foram realizadas por diferentes governos estaduais. A primeira edição,
1951, ocorreu no governo Jones dos Santos Neves. A segunda, atualizada temporalmente até a
sua publicação, veio com o governo Arthur Gerhardt, e a terceira, em 2008, já no governo Paulo
Hartung. A preocupação central do autor é evidenciar a trajetória e o progresso do Espírito
Santo, de sua origem aos governos republicanos.
Maria Stella de Novaes segue a perspectiva de narrativa e o roteiro histórico definido por José
Teixeira de Oliveira. Sua obra História do Espírito Santo evidencia a preocupação da autora
com a formação e a expansão da sociedade espiritossantense, ainda que enfatize determinados
8
OLIVEIRA, José Teixeira. História do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975.;
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964.;
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971.; BITTENCOURT,
Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário.
Vitória: Multiplicidade, 2006.
18
feitos individuais, fruto de sua preocupação em demonstrar o papel das elites na condução da
história local, e realize uma crônica da história espiritossantense.
Já Neida Lúcia de Moraes se apropria dos dois autores anteriores para construir sua obra,
também caracterizada pela busca das origens do Espírito Santo e seu desenvolvimento.
Diferentemente dos autores anteriores, a autora se fundamenta, sobretudo, em obras já
elaboradas, mas realiza uma narrativa marcada pela identificação dos personagens-modelos ou
exemplares e, sobretudo, por ser uma obra também originária da iniciativa governamental,
valoriza a caracterização do presente, vinculado ao governo Christiano Dias Lopes.
Por último, temos a obra História geral e econômica do Espírito Santo: do engenho colonial
ao complexo fabril-portuário de Gabriel Bittencourt. Dentre esses autores, o único que possui
sua produção vinculada ao meio acadêmico. Selecionamos esta recente obra, pois ela constitui
a síntese dos trabalhos do autor acerca da história do Espírito Santo.9 Além de corresponder às
propostas anteriores de narrar a história local focando em sua formação e trajetória, a
perspectiva de desenvolvimento do Espírito Santo a partir da definição de diferentes ciclos
econômicos propulsores do progresso espiritossantense, colabora com o discurso do “Terceiro
Ciclo de Desenvolvimento”, presente no discurso político, como veremos.
Todos eles, portanto, têm em comum a preocupação de narrar a "formação" do Espírito Santo.
Além disso, suas obras, preocupadas com a trajetória de desenvolvimento espiritossantense,
tomam como marco temporal o presente, definindo assim um determinado sentido para o
passado e, como demonstraremos, o sentido da superação do atraso. Assim, as obras nos
possibilitam compreender o surgimento de uma narrativa histórica sobre o Espírito Santo, que
trazem propostas de sentido e significação para o passado, produzindo expectativas de
entendimento e compreensão relativas a fatos, períodos e personagens, nesse caso, relativos à
narrativa do desenvolvimento do Espírito Santo.
9
Por considerarmos a obra História geral e econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-
portuário, de 2006, como representante da trajetória de pensamento e produção histórica do autor, sua análise será
acompanhada, em conjunto, também de outros trabalhos do mesmo. São elas: BITTENCOURT, Gabriel Augusto
de Mello. Esforços industrializantes na Primeira República: o Espírito Santo 1889-1930. Dissertação
(Mestrado). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1979.;
BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. A formação econômica do Espírito Santo: o roteiro da
industrialização, do engenho às grandes indústrias (1535-1980). Rio de Janeiro: Cátedra; Vitória, ES:
Departamento Estadual de Cultura, 1987.
19
No que tange à construção de imagens sobre o Espírito Santo, nos apropriamos de Pesavento,
Baczko e, sobretudo, Chartier.11 Buscamos no conceito de representações, e seus usos, a
10
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed.
UnB, 2007. p. 81-82.
11
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra História: imaginando o Imaginário. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v.15, nº 29, pp. 9-27, 1995. BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. Enciclopédia
20
Nos apropriamos, também, de um aporte teórico que permitiu a compreensão da relação que
uma sociedade estabelece com seu passado, tendo em vista a historiografia. Na análise da
configuração de modelos explicativos e formas de narrar o Espírito Santo em seu pretérito,
recorremos às contribuições da Teoria da História para a análise das obras eleitas como
manifestações historiográficas locais. Com Reinhart Koselleck compreendemos como a
dimensão temporal do passado foi formulada pela historiografia, recorrendo às categorias de
Einaudi, vol.5. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. pp. 296-332; CHARTIER, Roger. A História
Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1990.
12
Destacamos aqui: GODOY, João M. T. de. Alguns desafios dos estudos de historiografia. Projeto História,
São Paulo, n.41, pp. 195-214, 2010;MALERBA, Jurandir. Teoria e história da historiografia. In: ______ (org.). A
História Escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006; GUIMARÃES, Lúcia Maria P.
Sobre a história da historiografia brasileira como campo de estudos e reflexões. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos
Pereira das, et al. Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011; BLANKE, Horst W.
Para uma nova história da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. A História Escrita: teoria e história da
historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. pp. 27-64.
13
FALCON, Francisco. História e poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.).
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2011; FERRO, Marc. A
história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989; HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998; ORLANDI, Eni P. Discurso Fundador: a formação do país e a identidade nacional. Campinas:
Pontes, 1993.
21
14
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006.
15
RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da História: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UNB,
2010; RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007.
22
Segundo Rüsen, podemos avaliar diferentes tipos de constituição histórica de sentido, a saber:
a constituição tradicional de sentido, a constituição exemplar de sentido, e ainda as
constituições crítica e genética de sentido.16 De acordo com ele, essa tipologia pode ser
empregada como um instrumental analítico para a compreensão dos fenômenos historiográficos
levando-se em consideração que ela: possibilita analisar esses fenômenos historiográficos a
partir da historicidade dessas formatações; permite avaliar as mudanças ocorridas nas formas
de narrativa histórica promovidas pelas opções teóricas; reconhece que nenhum desses tipos
aparece de forma pura ou isolada. A saber, os elementos típicos de cada modelo estão sempre
articulados conjuntamente nas diversas formatações, mas o que não impede o reconhecimento
dos elementos essenciais de uma determinada forma de narrativa.17
Tais considerações nos levaram a distinguir as diferentes leituras do passado e suas formas de
narrativa, diferenciadas não apenas no tempo, mas de acordo com a sua estrutura e o sentido
atribuído ao passado do Espírito Santo por elas constituído. Por exemplo, nas narrativas da
superação do atraso elaboradas por José Teixeira de Oliveira, Maria Stella de Novaes e Neida
Lúcia predominam as constituições tradicional e exemplar de sentido, ainda que a preocupação
em se caracterizar a origem (o atraso colonial) do Espírito Santo e sua diferenciação com o
período republicano possibilitem evidenciar algumas características da constituição genética de
sentido. Esta, por sua vez, é bem representada na obra de Gabriel Bittencourt que analisa as
fases da economia do Espírito Santo e sua inserção na economia capitalista por meio dos ciclos
econômicos. Porém, algumas características predominantes nos autores anteriores aparecem
também nas obras desse autor, o que nos permite realizar as diferenciações, as continuidades e
os deslocamentos nas formas narrar o Espírito Santo. A historiografia recente representada,
essencialmente, pelo Programa de Pós-Graduação do departamento de História da UFES, entre
outras produções acadêmicas, cabe ressaltar, nos remete à constituição crítica de sentido, ao
romper com os modelos explicativos anteriores.
16
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2007.
17
Ibid., p. 63-65.
23
Essa tipologia, portanto, permitiu agrupar essas diferentes produções historiográficas sobre o
Espírito Santo e observar esse percurso da escrita da história local. Porém, ainda que a análise
se fundamente nos tipos de narrativa, a forma de apresentação das mesmas permitiu a
diferenciação da análise no decorrer do nosso trabalho. Rüsen identifica duas formas de
apresentação do sentido histórico que também foi possível distinguir nas obras: a chamada
história narrativa (tradicional), na qual o sentido da história surge no formato de narrativa a
partir da sequência temporal da descrição dos fatos pelo historiador. A outra se caracteriza por
uma forma de apresentação na qual os contextos de sentido são explicitados de maneira
peculiar, por meio de textos parciais que apontam, inclusive, as perspectivas de análise.
Nas obras de José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de Novaes identificamos a
primeira forma indicada por Rüsen. Em Gabriel Bittencourt, ainda que o autor ressalte sua
perspectiva de análise, ela também predomina, pois ele preocupa-se com a narrativa da origem
e da trajetória econômica do Espírito Santo a partir de uma sequência temporal linear. A
segunda forma indicada por Rüsen caracteriza a historiografia definida como constituição
crítica de sentido na qual prevalecem os recortes temporais (que o autor chama de contextos de
sentido) e as argumentações fundamentadas na exposição teórica dos autores, e que
denominamos de historiografia acadêmica atual, representada, principalmente, pela produção
recente associada ao programa de pós-graduação do departamento de História da UFES.18
No que tange às obras que se apresentam na forma de história narrativa, as de José Teixeira de
Oliveira, Neida Lúcia, Maria Stella de Novaes e Gabriel Bittencourt, buscamos, mais dos que
os fatos presentes nessas obras, definir as características de cada produção historiográfica, o
estabelecimento das periodizações e o sentido da narrativa escolhido pelos autores, a eleição de
18
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2007. p. 81-82.
24
Para tal, seguindo a lógica de interpretação utilizada pelos autores, identificamos duas
categorias: a do atraso e do progresso. Com isso, por um lado, definimos um quadro relacionado
ao atraso no qual foi possível inserir acontecimentos, circunstâncias e sujeitos históricos que
foram definidos como representantes do atraso por partes dos autores. Por outro, elencamos,
também, os mesmos elementos constitutivos da categoria progresso, ou seja, daqueles que nas
narrativas históricas foram identificados como responsáveis pela trajetória de superação do
atraso do Espírito Santo. Com isso, além da possibilidade de reconhecer os principais temas e
interesses, assim como a relevância a eles atribuída, no passado do Espírito Santo, foi possível
avaliar como se construiu um roteiro histórico no qual os principais elementos da categoria
atraso foram relacionados no período colonial, e, pelo contrário, os representantes estiveram,
principalmente, situados nas narrativas históricas a partir do século XIX. Tal procedimento de
análise possibilitou, também, compreender como os autores foram construindo suas narrativas,
exatamente por meio dessa oposição entre símbolos do atraso e do progresso. Com isso,
conseguimos evidenciar como se definiram as narrativas da superação do atraso, que definiram
uma trajetória de progressivo desenvolvimento do Espírito Santo até meados do século XX e
início do século XXI, no caso de Gabriel Bittencourt.
25
19
ROBIN, Regine. História e Linguística. São Paulo: Cultrix, 1978.
20
MAINGUENEAU, Dominique. Analise de textos de comunicação. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2002. p. 51-57.
21
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. 2.ed. Campinas: UNICAMP,
1993.p. 54-56.
26
Na análise da historiografia acadêmica atual, que não se apresenta nos moldes da narrativa
tradicional, consideramos o quadro historiográfico caracterizado pelos diferentes “domínios da
história”23, mas, agrupamos as obras de acordo com a temática presente nos estudos.
Selecionamos os trabalhos que correspondiam às questões desenvolvidas ao longo da tese, que
tratavam de aspectos do desenvolvimento, o que nos possibilitaram demonstrar as mudanças na
leitura sobre o Espírito Santo no passado. Sistematizamos em três grupos: primeiramente, os
estudos com o recorte temático da economia colonial, capazes de demonstrar a revisão histórica
da noção de atraso associado ao Espírito Santo no passado. Posteriormente, agrupamos os
trabalhos que tratam dos modelos de desenvolvimento adotados no Espírito Santo,
evidenciando a crítica a eles. E, por último, destacamos a produção historiográfica sobre os
indígenas, ou seja, estudos voltados para a compreensão do papel de sujeitos marginalizados
nas narrativas históricas da superação do atraso, responsáveis por inseri-los no discurso
historiográfico e fazer emergir a memória desses grupos.
Para a melhor compreensão do que analisamos, dividimos esse trabalho em cinco capítulos. No
primeiro, construímos o que denominamos de "desafio historiográfico do Espírito Santo."
22
PINTO, Milton José. Comunicação e Discurso. Introdução à análise de discurso. 2.ed. São Paulo: Hacker
Editores, 2002.p. 26-51.
23
CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2011.
27
O capítulo III complementa o anterior. Apresentamos uma análise das representações dos
diferentes atores históricos presentes nas obras da narrativa histórica do progressivo
desenvolvimento. Donatários, colonos, funcionários reais, jesuítas, imigrantes, governadores e
grupos de índios foram retratados sob a perspectiva da superação do atraso. Com isso,
evidenciamos como se constituiu uma história dos propulsores do progresso em oposição aos
personagens representantes do atraso local, em especial os indígenas.
O ofício do historiador é caracterizado por seus dilemas, impasses e debates que marcam a
história da disciplina. Os diversos campos da história, seus respectivos objetos e problemáticas
que predominam atualmente na historiografia são resultados das questões que envolvem o
percurso da disciplina, de suas controvérsias e embates paradigmáticos que marcam, inclusive,
o cenário recente das ciências humanas e têm seus reflexos no fazer historiográfico. 24 As
transformações ocorridas nos modelos de explicações, teorias e métodos de pesquisa,
conflagraram um cenário historiográfico atual marcado pela diversidade e permanência dos
debates que envolvem a produção do conhecimento histórico.25
Nossa reflexão se insere justamente nas questões que envolvem o percurso da produção do
conhecimento histórico sobre o Espírito Santo. Nesse capítulo, nos propusemos a identificar a
problemática na qual situamos nosso objeto de estudo. Buscamos evidenciar uma série de
questionamentos que envolvem as leituras acerca do passado, seus usos políticos e a escrita da
história do Espírito Santo. Para tal, apresentamo-las a partir da seguinte indagação: o que seria
um desafio historiográfico do Espírito Santo?26
José Carlos Reis argumenta que o "desafio historiográfico” diz respeito ao trabalho do
historiador, ou seja, a problemática que envolve a produção do conhecimento histórico.
Segundo ele, a identidade epistemológica da história deve ser compreendida tal como a de
outros saberes: por meio do conhecimento de suas mudanças no tempo, elaborando uma história
24
CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo. Apresentação. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.;
VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro:
Campus, 2011.
25
MALERBA, Jurandir; AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. Apresentação. In: MALERBA, Jurandir; AGUIRRE
ROJAS, Carlos Antonio (orgs.). Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru, SP: EDUSC,
2007. P. 7.
26
José Carlos Reis realiza uma reflexão sobre o que entende ser o desafio da historiografia: o de refletir sobre si
mesma. REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
30
Nesse sentido, nossa reflexão se define como uma proposta de uma história da historiografia
do Espírito Santo numa perspectiva crítica, ou seja, a de apresentar um desafio historiográfico
que possibilite uma análise crítica do percurso do saber histórico. A história é produzida a partir
de respostas a questões elaboradas pelos homens em todos os tempos.31 Sendo assim, além de
reconhecer a historicidade da produção histórica, reconhecemos que nosso desafio se insere no
diálogo com questões atuais no Espírito Santo. José C. Reis considera que “escrever história”
27
José Carlos Reis realiza uma reflexão sobre o que entende ser o desafio da historiografia: o de refletir sobre si
mesma. REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 19-23.
28
Ibid., p. 11-12.
29
Sobre a produção historiográfica como fonte: “[...] desde há muito, alguns deles já haviam percebido a riqueza
potencial insondável acumulada na obra de inúmeras gerações de historiadores que construíram, cada qual sob as
luzes de seu tempo e de acordo com a maquinaria conceitual disponível, um patrimônio próprio da memória das
sociedades, constituído por sua historiografia.” MALERBA, Jurandir. Teoria e história da historiografia. In:
______ (org.). A História Escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 11. Ao tratar
da função de uma teoria da história, Rüsen chama atenção para o que ele define como autorreflexão. Segundo ele,
não se pode pensar num processo histórico do conhecimento em que o sujeito do conhecimento deixasse de refletir
sobre si mesmo. Por isso, argumenta que a autorreflexão pertence ao trabalho do historiador, considerando que a
“reflexão do pensamento histórico sobre seus fundamentos emerge do trabalho prático do próprio historiador,
baseia-se nele e possui para ele significado.” RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos
da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.p. 26.
30
MALERBA, Jurandir, op. cit., p. 12.
31
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.p.58-59.
31
não está desvinculado de “fazer história”, pois a historiografia é essencial à vida cultural e
política de uma sociedade. A escrita da história é, portanto, uma ação e exerce funções no
contexto em que se insere.32 Ao mediar a relação entre o presente e o passado, produz narrativas
que estabelecem sentido e podem organizar o passado em função dos propósitos do presente,
tornar perceptíveis expectativas de futuro, o que por sua vez, lhe permite servir como elemento
identitário ou estar em função de poderes político-econômicos.33 Desse modo:
É sob essa perspectiva que conduzimos a elaboração desse trabalho bem como a reflexão sobre
um desafio historiográfico do Espírito Santo. Acreditamos que o nosso desafio necessariamente
dialoga com as questões que envolvem as representações de Espírito Santo e a recorrência em
se avaliá-lo, interpretá-lo e qualificá-lo, no presente e no passado. Uma abordagem crítica sobre
a historiografia implica em analisarmos em que termos se apresentam as questões que envolvem
32
REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 10.
33
Ibid., p. 27-28.
34
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O diálogo convergente: políticos e historiadores no início da República.
In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2007. p.
119.
35
MALERBA, Jurandir. Teoria e história da historiografia. In: ______ (org.). A História Escrita: teoria e história
da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 23-24.
36
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed.
UnB, 2007. p. 11 a 16. Para Rüsen, “existem, pois, funções culturais do saber histórico que não estão plenamente
exercidas só porque esse saber foi expresso em termos historiográficos. Ademais, não se entende porque a ciência
da história deve ficar alienada dessas funções. Ela não deve ficar alienada dessas funções porque seu trabalho
cognitivo nasce de impulsos que conduzem a elas.” Ibid., p. 16.
32
Consideramos, portanto, que o desafio historiográfico aqui proposto envolve uma reflexão
historiográfica pensada a partir das questões de seu tempo, pois envolve circunstâncias de
apropriação e ressignificação de determinados enunciados e noções historicamente
(re)produzidas sobre o Espírito Santo e seu passado, que são recorrentes e, sobretudo, legitimam
projetos de políticos tendo em vista os usos do passado.
Diante dessa proposta de refletir sobre um modelo explicativo acerca do Espírito Santo e seu
passado, cabe, inicialmente, questionarmos: qual a especificidade de um desafio historiográfico
relativo ao Espírito Santo? Em torno de quais aspectos e questões se encontram as percepções,
impressões e as narrativas acerca de seu passado?
Danilo José Zioni Ferretti analisa a gênese da representação sobre a “exceção paulista” no
contexto brasileiro. Segundo ele, existe uma autovisão elaborada pelos paulistas, ligada
principalmente ao discurso oficial, que compreende São Paulo como a “locomotiva do Brasil.”
Ferretti observa que tal condição dos paulistas fundamenta-se na concepção de uma herança de
um passado glorioso, que justificaria o lugar de destaque conferido a São Paulo. O autor
observa, também, a existência de um vínculo entre o discurso elaborado pela historiografia
paulista, desde o fim do século XIX, e os usos políticos do passado, ou seja, o paralelismo
existente entre a produção histórica e as práticas políticas nas quais estavam envolvidos seus
33
Nesse sentido, Ferreti evidencia não só a gênese de um discurso sobre o passado bandeirante
no século XIX, mas, sobretudo, demonstra as continuidades e descontinuidades em torno da
37
FERRETI, Danilo José Zioni. A construção da paulistanidade: Identidade, Historiografia e Política em São
Paulo. 2004. 388f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2004.
38
Compreendendo as condições de possibilidade da gênese desse discurso em São Paulo, o autor evidencia: “O
período que vai do início da propaganda republicana (1870) até o início dos preparativos para as comemorações
do Centenário da Independência, marcado pela posse do historiador Afonso de Taunay como diretor do Museu
Paulista (1917), representou um momento importante para a construção de uma nova identidade paulista. A elite
paulista, subitamente transformada pelo café no setor economicamente mais importante do país, esboçou os
primeiros traços e procurou institucionalizar – mediante a criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
(IHGSP) em 1894 - um discurso identitário próprio, não somente autônomo em relação ao discurso identitário
indianista emanado da Corte mas, em diversos pontos, francamente em oposição a ele.” Ibid., p. 109-110.
39
Sobre a influência de Capistrano, o autor argumenta: “Capistrano de Abreu apresentava uma nova interpretação
do fenômeno das Bandeiras que, pela ênfase no seu caráter integrador, possibilitaria o início da mudança do sentido
do símbolo bandeirante. Entendida sob um ponto de vista territorialista, a figura do bandeirante se transformava
em um dos pontos centrais de um imaginário da modernidade nacional. De símbolo maior dos vícios originais da
nacionalidade, como a entendia a historiografia indianista, a Bandeira passava, paulatinamente, a representar um
evento de importância central na constituição da nação brasileira, na medida em que, além de ocupar o interior,
‘costurava’ os dispersos núcleos de povoamento, possibilitando a integração e constituição da unidade do território
nacional, objetivo almejado pelas elites modernizadoras de finais do séc. XIX.” Ibid., p. 148.
40
Ferreti evidenciou a mudança de interpretação sobre o passado paulista e a figura do bandeirante: “Excluídos
dos bastiões da cultura monárquica e dos principais cargos políticos do Império, os intelectuais republicanos
elaboraram uma visão do passado paulista que pode ser considerada como uma verdadeira contra-história
republicana uma vez que invertia o sentido estabelecido pela visão monárquica, escolhendo novos personagens e
ressignificando os já consagrados. Se a visão monárquica do passado paulista se baseava no antibandeirismo de
origem indianista, na louvação do jesuíta como personagem civilizador e principalmente na valorização do
episódio de Amador Bueno e a correspondente definição da fidelidade como atributo principal do paulista, a visão
republicana seria marcada por profundo antijesuitismo, pela ressignificação do episódio de Amador Bueno e pela
revalorização do bandeirante, todos os episódios tomados como representativos da liberdade primitiva do
paulista.” Ibid., p. 180.
34
representação do bandeirante, recorrente nas disputas entre grupos políticos durante as três
primeiras décadas do século XX. Analisou a historicidade e demonstrou o uso político desse
passado resultante de um processo de construção simbólico com matrizes políticas e
historiográficas, definidoras de uma identidade paulista que, segundo ele, ainda pode ser
identificado em diferentes discursos sobre São Paulo.
Esse uso do passado como legitimador de uma posição de São Paulo no cenário nacional pode
ser observado, também, em relação ao Rio de Janeiro. Rui Aniceto Fernandes identifica em
relação a esse Estado um discurso que apela para a centralidade fluminense diante do Brasil.41
O autor parte da existência de uma identidade local que exalta o seu papel no cenário brasileiro,
capaz de associar o destino do Brasil ao do Rio de Janeiro. Aponta, assim, para a presença de
um discurso capaz de ser apropriado e reatualizado entre os fluminenses no qual se definia que
a história brasileira dependia da própria história do Rio de Janeiro. O autor, tal como Ferreti,
atenta para a historicidade e o uso político desse passado. Ele analisa a emergência de um
discurso histórico regional exaltador das tradições locais que surgiu vinculado a um projeto
político de soerguimento do Rio de Janeiro a partir da década de 1940.
Nas décadas de 1940 e 1950, segundo o autor, a política fluminense foi marcada pela instituição
de um grupo político, o amaralismo42, que tinha na figura de Amaral Peixoto seu principal
representante. Esse grupo defendia um projeto de soerguimento do estado no cenário nacional
41
FERNANDES, Rui Aniceto Nascimento. Historiografia e identidade fluminense. A escrita da história e os
usos do passado no Estado do Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 1950. Tese (Doutorado em História) -
Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009.
42
Sobre o amaralismo, o autor assinala: “O projeto amaralista de revitalização político-econômica do estado
desenvolvido nas décadas de 1930 a 1950 afirmava-se como um regenerador da história do estado, pois seria
aquele capaz de recuperar o lugar de destaque outrora ocupado pelo Rio de Janeiro no concerto nacional. As
diretrizes desse grupo, firmadas nas décadas de 1930 e 1940, tiveram continuidade nos anos cinquenta. O
amaralismo fixava seu projeto político e econômico tendo como alicerces as práticas tradicionais do estado: as
políticas clientelistas e as atividades agropecuárias. Suas alianças políticas foram firmadas com grupos locais
ligados às atividades agrícolas e pecuárias. Projetava-se a recuperação econômica e política do estado através do
investimento nos setores agrícolas.” FERNANDES, Rui Aniceto Nascimento. Historiografia e identidade
fluminense. A escrita da história e os usos do passado no Estado do Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e
1950. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, 2009.p. 127.; Sobre a valorização de um determinado passado: “A década de 1950 foi um momento-chave
para o estado do Rio. O amaralismo, formado durante o Estado Novo, lançou mão de um projeto para o Estado
que envolveu todas as esferas da vida na sociedade fluminense – política, econômica, social e cultural. Um projeto
alicerçado politicamente no norte fluminense – a região de maior dinamicidade econômica do Estado, por suas
atividades agropastoris, projeto que se voltou para a formação de um novo homem fluminense, fixado em suas
regiões e tradições, e civilizado em seus hábitos de higiene e instruído nos conhecimentos humanísticos e cívicos.
No discurso de valorização da história agropastoril do Estado, buscava-se sempre recuperar a imagem da Velha
Província.”; FERNANDES, Rui Aniceto Nascimento. Historiografia e identidade fluminense. A escrita da
história e os usos do passado no Estado do Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 1950. Tese (Doutorado em
História) - Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009. p. 145.
35
Em consonância com essa política, construiu-se um discurso de defesa das tradições locais que
impulsionou a produção do conhecimento histórico sobre o Estado. Se o passado bandeirante
era recuperado como símbolo paulista, para o Rio de Janeiro:
Rui Aniceto Fernandes, deste modo, observa que o conhecimento histórico produzido naquela
época legitimava o projeto político amaralista ao mesmo tempo em que reforçava os discursos
43
FERNANDES, Rui Aniceto Nascimento. Historiografia e identidade fluminense. A escrita da história e os
usos do passado no Estado do Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 1950. Tese (Doutorado em História) -
Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009. p. 229.
44
Ibid., p. 154.
36
que resgatavam a Idade de Ouro, o Império, período em que a antiga província do Rio de Janeiro
detinha a primazia política e econômica do Brasil.
Maria do Nascimento Arruda identifica a existência em Minas Gerais de uma concepção acerca
do papel dos mineiros no cenário nacional como políticos dotados de bom senso, moderação e
temperança, “virtudes estas consideradas essenciais à urdidura do acordo”, e necessárias aos
fenômenos conciliatórios nos embates políticos nacionais, que somente os mineiros poderiam
oferecer.46
A autora analisa a mineiridade como uma identidade regional, forjada na comparação com o
restante do país. Dessa forma, a mineiridade constituiu-se como a particularidade de Minas
diante de sua importância para o destino do Brasil. A imagem do mineiro foi utilizada para se
instituir a missão de Minas Gerais para o restante do país, sobretudo, como ressaltou a autora,
na apropriação que os políticos locais realizaram desde o século XIX.47
Nesta relação, a principal característica alimentada pela produção cultural 48 e exaltada pelos
políticos foi o equilíbrio, a sua propalada capacidade conciliatória. O mineiro foi definido como
45
Maria A. do Nascimento Arruda entende assim a mineiridade: “[...] uma visão que se construiu a partir da
realidade de Minas e das práticas sociais. Por fundar a figura abstrata dos mineiros, a mineiridade tem as
características do mito; estes ao se identificarem com essa construção absorvem o pensamento mítico e colaboram
para a sua permanência [...].” ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. O imaginário
mineiro na vida política e cultural do Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989. p. 198.
46
Ibid., p. 14.
47
Sobre a apropriação do passado a autora ressalta: “Os políticos mineiros mobilizaram a memória do passado no
exercício de suas ações, enquanto legítimos porta-vozes de uma história transformada em tradição inquestionável.
[...] Os memorialistas, por seu turno, ofereceram poderosos contributos à nutrição do imaginário mineiro. Os
próprios discursos políticos transitam no interior da memorialística, visto que a lembrança dos feitos passados as
pressupõe. Também os escritores mineiros, fortemente amarrados à sua origem, exprimem esse profundo apego à
memória de Minas.” Ibid., p. 257.
48
A autora recorre a um conjunto diferenciado de fontes geradoras da mitologia da mineiridade. Ela analisa o
memorialismo mineiro, responsável pela sacralização das lembranças da terra; os viajantes do século XIX que, em
suas observações e estudos, traçaram um perfil peculiar dos mineiros; os cronistas responsáveis pelas primeiras
leituras do passado mineiro e, consequentemente, pela glorificação do passado de Minas Gerais; os ensaístas,
delineadores da identidade mineira, ou seja, os que foram capazes de combinar as memórias e as alusões ao passado
conformando um discurso original sobre os mineiros; e, também, a literatura, definidora da atmosfera romântica
na referência à Minas Gerais e fornecedora dos tempos da mineiridade, do tempo mítico desse discurso.
37
elemento conciliador, realista e pragmático. Esta faceta, no entanto, era acompanhada, por outro
lado, por seu ímpeto libertário e incontido. Segundo Maria do Nascimento Arruda, estas duas
faces do mineiro correspondiam à forma como parte da sociedade mineira do século XIX passou
a lidar com seu passado e a produzir uma memória que alimentava essa mineiridade.
Assim como Danilo Ferreti buscou para São Paulo, a autora evidencia a origem da mineiridade.
De acordo com ela, no século XIX, definiu-se em Minas uma relação entre presente e passado
que possibilitou a emergência do mineirismo. A partir de sua produção cultural e de sua
participação política em plano nacional manifestaram-se as características da mineiridade, da
figura abstrata e típica do mineiro. Segundo a autora, o período que se convencionou chamar
de decadência da sociedade mineradora adentrou o século XIX e, no contexto caracterizado
pelo processo de ruralização da sociedade, ficou evidente a diferença entre duas temporalidades
distintas: o presente marcado pela decadência da sociedade aurífera e a prevalência do rural e
um passado imaginado e exaltado, um outro tempo, o da centralidade e da grandiosidade de
Minas no cenário colonial, do dinamismo e da riqueza da vida em torno das cidades mineradoras
e o da cultura presente na vida intelectual local. Nesse contexto, prevaleceu a busca pelas
permanências. As elites mineiras forjaram um ideal que exprimia o desejo de preservação de
um passado glorificado que definia as características do ser mineiro, que permaneceram ao
longo do tempo.
Nesse sentido, cronistas e ensaístas se apropriaram de um passado no qual Minas Gerais era um
marco da história do Brasil e seu centro de equilíbrio. A forma como concebiam o passado de
Minas estabelecia a temperança e a conciliação, ou seja, as mudanças e as percepções sobre o
presente orientaram uma idealização do passado. Maria do Nascimento Arruda evidencia
como, ao longo do século XIX, a leitura que estabeleciam do passado definiu a roupagem do
mineiro: da rebeldia associada aos inconfidentes, passou a representar a ordem, o equilíbrio e a
preservação da unidade.49
Dialogando com essa produção, ela analisou diversos discursos políticos entre o século XIX e meados da década
de 1980 que se apropriavam da figura mítica do mineiro em seus discursos políticos.
49
ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. O imaginário mineiro na vida política e
cultural do Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989. p.71.
38
Dessa forma, dentre outras questões analisadas pela autora, os usos dessa memória acerca de
Minas Gerais e seu papel de centralidade na história do Brasil permearam e foram apropriados
em diferentes contextos políticos nacionais.
No que tange à produção de uma imagem acerca de uma região, Durval Muniz apresenta a
proposta de invenção do Nordeste.51 Segundo ele, a imagem que se tem acerca da região foi um
processo de invenção construído a partir do início do século XX, mais especificamente, com a
emergência do regionalismo. O autor evidencia como diversas obras e diferentes autores, em
épocas e estilos diferentes possibilitaram que o Nordeste fosse nordestinizado, ou seja,
descreveram e inscreveram essa região no país, definindo uma série de atributos que o
qualificam. A ideia central da obra de Durval Muniz aponta para que esse conjunto de
enunciados de matrizes discursivas distintas instituíram um Nordeste da pobreza e do atraso
definido em oposição à região sul.
50
ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. O imaginário mineiro na vida política e
cultural do Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989. p.65-70.
51
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN; Ed.
Massangana; São Paulo, Cortez, 2001.
52
Sobre a emergência discursiva do Nordeste o autor evidencia: “O Nordeste surge como reação às estratégias de
nacionalização que o dispositivo da nacionalidade e a formação discursiva nacional-popular põem em
funcionamento; por isso não expressa mais os simples interesses particularistas dos indivíduos, das famílias ou
39
ao messianismo e com os arranjos das elites políticas para a manutenção de privilégios. Para
ele, a região surge também como práticas discursivas que passaram a produzir um conjunto de
saberes de marcado caráter regional. É assim que o autor evidencia que a legitimação do
“recorte Nordeste” aparece, primeiramente, no movimento cultural iniciado com o Congresso
Regionalista de 1926, cujo primeiro propósito “foi o de instituir uma origem para a região.”
Inserindo, inclusive, Gilberto Freyre53 como representante desse grupo, o autor argumenta que
surgia ali uma história regional:
Esta história regional retrospectiva busca dar à região um estatuto, ao mesmo tempo
universal e histórico. Ela seria restituição de uma verdade num desenvolvimento
histórico contínuo, em que as únicas descontinuidades seriam de ordem negativa:
esquecimento, ilusão, ocultação. A região é inscrita no passado como uma promessa
não realizada, ou não percebida; como um conjunto de indícios que já denunciavam
sua existência ou a prenunciavam. Olha-se para o passado e alinha-se uma série de
fatos, para demonstrar que a identidade regional já estava lá. Passa-se a falar de
história do Nordeste, desde o século XVI, lançando para trás uma problemática
regional e um recorte espacial, dado ao saber só no início do século XX. 54
Dessa forma, além dos aspectos históricos, Durval Muniz observa que a caracterização do
Nordeste se deu por uma série de discursos que passaram a dar sentido à essa região.
Romancistas como José Lins do Rego e Rachel de Queiróz, pintores como Cícero Dias e Lula
Cardoso Ayres seguiram essa perspectiva de inscrever o Nordeste. E, a partir da década de
1930, segundo ele, existiu a reelaboração da ideia de Nordeste, sob outro paradigma, mas
vinculado à tradição formulada pelos discursos anteriores, por meio de temas, imagens e
enunciados já consagrados pelos discursos tradicionalistas:
dos grupos oligárquicos estaduais. Ele é uma nova região nascida de um novo tipo de regionalismo, embora
assentada no discurso da tradição e numa posição nostálgica em relação ao passado. O Nordeste nasce da
construção de uma totalidade político-cultural como reação à sensação de perda de espaços econômicos e políticos
por parte dos produtores tradicionais de açúcar e algodão, dos comerciantes e intelectuais a eles ligados. Lança-se
mão de topos, de símbolos, de tipos, de fatos para construir um todo que reagisse à ameaça de dissolução, numa
totalidade maior, agora não dominada por eles, a nação. Unem-se forças em torno de um novo recorte do espaço
nacional, surgido com as grandes obras contra as secas. Traçam-se novas fronteiras que servissem de trincheira
para a defesa da dominação ameaçada.” ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do
Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo, Cortez, 2001. p. 80.
53
Sobre a interpretação do passado do Nordeste elaborada por Gilberto Freyre, Durval Muniz ressalta: “Gilberto
Freyre, por exemplo, atribui à influência holandesa no século XVII um dos fatores de diferenciação do Nordeste.
Esta área teria se diferenciado até do ponto de vista cultural do restante do país, a partir do momento em que Recife
se constituiu em centro administrativo de uma área equivalente ao atual Nordeste, além de centro financeiro,
comercial e intelectual judaico-holandês. Este mesmo autor atribuiu à administração portuguesa a formação de
uma ‘consciência regional’ mais forte do que uma consciência nacional, que, caso existisse, poria em perigo o
domínio do colonizador. Faz assim, de uma maneira ou de outra, recuar ao período colonial a consciência regional,
a própria existência do Nordeste e, ao mesmo tempo, coloca-a como um dos fatores de formação da própria
consciência nacional. Para ele, a região teria nascido antes da nação.” Ibid., p. 88-89.
54
Ibid., p. 89.
40
Cinema Novo, do final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, tomarão o
Nordeste como exemplo privilegiado da miséria, da fome, do atraso, do
subdesenvolvimento, da alienação do país. Tomando acriticamente o recorte espacial
Nordeste, esta produção artística ‘de esquerda’ termina por reforçar uma série de
imagens e enunciados ligados à região que emergiram com o discurso da seca, já no
final do século passado. Vindo ao encontro, em grande parte, da imagem espaço-
vítima, espoliado; espaço da carência, construído pelo discurso de suas oligarquias.
Eles lançam mão de uma verdadeira mitologia do Nordeste, já fabricada pelos
discursos anteriores, e a submete a uma leitura ‘marxista’ que a inverte de sentido,
mantendo-a, no entanto, presa à mesma lógica de questões. Do Nordeste pelo direito,
passamos a vê-lo pelo avesso, em que as mesmas linhas compõem o tecido, só que,
no avesso, aparecem seus nós, seus cortes, suas emendas, seu rosto menos arrumado,
embora constituinte também da própria malha imagético-discursiva chamada
Nordeste.55
Durval Muniz, portanto, compreende a região como prática discursiva em sua historicidade. A
invenção do Nordeste, em sua análise, evidenciou as configurações discursivas elaboradas
historicamente que lhe atribuíram características morais, culturais e simbólicas, designando-o,
na maioria das vezes, como lugar da pobreza e miséria, do atraso, do rural e contrastado pelo
seu oposto, a região Sul, como lugar do urbano, da riqueza e do progresso. Impressões e
inscrições sobre o Nordeste que, segundo ele, são atualizadas e ainda recorrentes na
caracterização da região.56
E o Espírito Santo? Qual o lugar reservado para ele? Qual a relação entre as leituras do passado
e as representações de Espírito Santo? Quais questões orientam a leitura do passado
espiritossantense? É possível identificarmos também apropriações e usos desse passado? As
representações de Espírito Santo aproximam-se das versões relativas aos estados do Sudeste,
no qual está inserido, ou foge à centralidade e se identifica com a marginalidade instituída nas
representações de Nordeste?
55
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN; Ed.
Massangana; São Paulo, Cortez, 2001. p. 215.
56
Ibid., p. 14-28.
41
Sendo assim, complementando essa reflexão, cabem ainda algumas indagações: por que se diz,
que o Espírito Santo é marginalizado, esquecido, vítima na história do Brasil? Por que se produz
e reproduz, por meio de discursos de diferentes matrizes, qualificações de Espírito Santo que
reservam um lugar especial à ideia de atraso, como uma verdade estabelecida? Nesse sentido,
qual a relação entre essa noção de atraso e a de superação tão recorrentes nos discursos políticos
locais? E, por último, existiria, então, uma relação entre eles e uma concepção do passado do
Espírito Santo?
Tais questões nos ajudam a traçar um panorama do “desafio historiográfico do Espírito Santo”
envolvendo as interpretações e os usos políticos do passado, bem como nos direcionam para a
reflexão de como se avalia, se compreende e se narra o passado espiritossantense a partir das
experiências e práticas do presente. Segundo Salgado Guimarães, as referências que uma
sociedade possui ou às quais ela recorre para compreender sua contemporaneidade são
encontradas no tempo passado, mas o ato de revisitá-lo, não está desvinculado de demandas e
questões de um tempo presente.57
57
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória. In:
ABREU, Marta; SOIHET, Raquel; GONTIJO, Rebeca (orgs.). Cultura política e leituras do passado:
historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 39.
42
Muitos analistas consideram que o Espírito Santo vive hoje o melhor período
econômico de sua história. Há uma explosão de investimentos públicos e privados na
região.[...] A combinação desses fatores fez a arrecadação do Espírito Santo
disparar.[...] Com o dinheiro, Hartung pagou as dívidas herdadas e recuperou a
capacidade de investimento do Estado. Ex-líder do noticiário político-policial, patinho
feio do Sudeste, o Espírito Santo virou destaque. E o imperador comanda o carro-
chefe.59
A matéria da revista Época correspondia a esse processo de construção de uma nova imagem
do Espírito Santo que envolvia a noção de mudança e superação. Essa ideia-força presente nos
discursos sobre o Espírito Santo pode ser identificada no pronunciamento de Paulo Hartung em
solenidade da posse de seu segundo mandato:
Um novo Espírito Santo. Esta é a marca que vai identificar o nosso segundo mandato
à frente do Executivo Estadual. Optamos por começar o Planejamento Estratégico
com esta apresentação porque a marca se refere, a um só tempo, ao nosso presente e
ao nosso futuro.[...] Já podíamos registrar que a ‘Nova História Capixaba’ tinha seus
primeiros capítulos sendo escritos por um mutirão inédito em nosso Estado. [...] Ou
seja, nos últimos quatro anos, um novo Espírito Santo se impôs, um novo Espírito
Santo nasceu e deu os seus primeiros passos. [...] Daí o significado do slogan ‘Um
novo Espírito Santo’. Ele celebra a recente transformação na vida capixaba e indica a
missão de avançar com esse novo tempo que acabamos de inaugurar. [...]Senhoras e
Senhores, as conquistas do presente nos inspiram quanto a um futuro muito, muito
melhor. Mas, antes de tudo, nos fazem comprometidos com a consolidação da
58
Paulo Hartung foi governador do Espírito Santo durante dois mandatos consecutivos, entre os anos de 2003 a
2010. A imagem de um “Novo Espírito Santo” elaborada durante seu governo efetivou-se durante seu segundo
mandato.
59
MENDONÇA, Ricardo. O imperador Capixaba, 22 de maio de 2008. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI4502-15223,00-
O+IMPERADOR+DO+ESPIRITO+SANTO.html. Acesso em: 23 de junho de 2009.
43
De acordo com Gabriel Bittencourt, o Espírito Santo é marcado por um tipo de ideal
desenvolvimentista originário, no início do século XIX, como “uma reação ao seu aspecto
secundário no contexto regional” ao longo de sua trajetória colonial.61 Estilaque Ferreira dos
Santos argumenta que a noção de superação faz parte do discurso político local sobre o
desenvolvimento e se caracteriza por sua longa duração. O autor define o início do século XIX
como momento da “gênese do pensamento político capixaba.” A partir daí, segundo ele,
poderíamos observar uma série de discursos e práticas governamentais voltadas para a
superação de uma condição colonial, por ter sido o Estado “uma capitania relativamente
marginalizada e isolada das correntes comerciais externas que poderiam dinamizar sua
economia.”62 Analisando alguns governos provinciais locais durante o século XIX, argumenta
que, a partir de Silva Pontes (1800), passou a existir um ideal de superação de tal condição.
Segundo ele, existiu nos governantes do Espírito Santo uma percepção da estreita relação entre
vias de comunicação, povoamento e colonização imigrante vistas como caminho para as
mudanças necessárias visando modificar a situação de déficit econômico.63 Estilaque
argumenta que as ideias básicas de Silva Pontes, “naquele momento, estavam muitos distantes
60
HARTUNG, Paulo. Relatório de Gestão. Ano 2007. Disponível em:
http://www.es.gov.br/banco%20de%20documentos/relatorios_gestao/Relatorio_de_Gestao_2007.pdf. Acesso
em: 14 de agosto de 2009.
61
BITTENCOURT, Gabriel. A conjuntura da formação cultural capixaba. Introdução. In: Espírito Santo: um
painel da nossa história. Vitória: Imprensa Oficial/ES, 2002. p. XXVII.
62
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Vias de comunicação, conquista territorial e colonização estrangeira no
Espírito Santo do séc. XIX: a gênese do pensamento político capixaba, DIMENSÕES– Revista de História da
UFES, n.17, Vitória, 2005. p. 49.
63
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Vias de comunicação, conquista territorial e colonização estrangeira no
Espírito Santo do séc. XIX: a gênese do pensamento político capixaba, DIMENSÕES– Revista de História da
UFES, n.17, Vitória, 2005. p.50.
44
das condições que poderiam tê-las viabilizado [...]”, no entanto, ainda que retificadas, tiveram
um “longo futuro na história capixaba.”64
De acordo com Estilaque Ferreira dos Santos e Gabriel Bittencourt, encontramos no início do
século XIX a emergência de práticas e discursos políticos sobre o desenvolvimento do Espírito
Santo fundamentados na noção de superação, ligados ao passado da região e que fazem parte
das ideias políticas locais. Ao observarmos o projeto de desenvolvimento do Espírito Santo no
início do século XXI, identificamos a permanência ou a apropriação dessa ideia na
caracterização do Estado, como evidenciou o pronunciamento,supracitado, de Hartung.
A auto definição exposta no slogan governamental “Novo Espírito Santo” correspondia, deste
modo, a um projeto político viabilizado ao longo da primeira década do século XXI que teve
no governo Paulo Hartung sua realização. Nesse período, o discurso político imprimiu a noção
de Terceiro Ciclo de Desenvolvimento e, consequentemente, apropriando-se da noção de
64
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Vias de comunicação, conquista territorial e colonização estrangeira no
Espírito Santo do séc. XIX: a gênese do pensamento político capixaba, DIMENSÕES– Revista de História da
UFES, n.17, Vitória, 2005.p. 51.
65
Segundo Pesavento, as representações dizem respeito a um sistema de ideias-imagens que dá significado à
realidade, logo, participando de sua existência. Assim, é preciso considerar que o real é, simultaneamente,
concretude e representação, e que se expressa por um sistema de ideias-imagens que constituem a representação
do real. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra História: imaginando o Imaginário. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v.15, nº 29, p.16.
66
Baczko, sobre a força do imaginário, argumenta que ele “intervém a diversos níveis da vida coletiva, realizando
várias funções em relação aos agentes sociais. O seu trabalho opera através de séries de oposições que estruturam
as forças afetivas que agem sobre a vida coletiva, unindo-as, por meio de uma rede de significações, às dimensões
intelectuais dessa vida coletiva: legitimar/invalidar; justificar/acusar; tranquilizar/perturbar;
mobilizar/desencorajar; incluir/excluir” BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. Enciclopédia Einaudi, vol.5.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 312.
67
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1990. p. 19.
45
superação, configurou uma imagem do Espírito Santo que inaugurava um novo momento. O
discurso do “novo” apresentava-se na “nova realidade” representada por indicadores
econômicos, no “novo ciclo econômico”, no “novo lugar” ocupado pelo Estado no cenário
nacional, a “nova era” promulgada em oposição a momentos anteriores do passado
espiritossantense.68
68
A noção de superação presente no discurso político do “Novo Espírito Santo” poderia surgir em enunciados que
envolviam a noção de travessia ou ligação entre passado e futuro, mas que colocavam o “novo momento” como
marco dessa mudança. No relatório de gestão referente ao ano de 2007, o então governador recorreu à noção de
travessia: “Desde 2003, cada ano tem sido melhor que o outro. E tenho certeza: assim também será nos próximos
anos. A caminhada de travessia que iniciamos lá em 2003 nos levou a uma nova fronteira histórica capixaba, ainda
no primeiro mandato.” HARTUNG, Paulo. Relatório de Gestão. Ano 2007. Disponível em:
http://www.es.gov.br/banco%20de%20documentos/relatorios_gestao/Relatorio_de_Gestao_2007.pdf. Acesso
em: 14 de agosto de 2009.;A inauguração da Ponte Carlos Lindenberg em Vitória, conhecida como Ponte da
Passagem, evidenciou a recorrência a esse simbolismo: “Planejamento, desenvolvimento e modernidade são
algumas das características que assemelham a Nova Ponte da Passagem, inaugurada neste sábado, à atual fase de
crescimento pela qual passa o Espírito Santo. Com essa imagem, sob um céu ensolarado e muitos populares, o
Governo do Estado e a Prefeitura de Vitória apresentaram a nova estrutura que liga a Ilha de Vitória ao continente.
[...] O governador Paulo Hartung afirmou que a nova Ponte da Passagem possui uma utilidade concreta, que é a
de melhorar a mobilidade urbana em Vitória e na Região Metropolitana, e também um significado simbólico muito
relevante para o Espírito Santo. [...] ‘Essa ponte liga aquele Espírito Santo desorganizado a esse Espírito Santo de
planejamento, ação e desenvolvimento compartilhado.’” Disponível em: http://www.es.gov.br/site/noticias/show.
aspx?noticiaId=99699416. Acesso em 02 de setembro de 2009.
69
WETLER JUNIOR, Admir Clemente. Espírito Santo 2025: uma análise das implicações econômico-sociais do
novo ciclo previsto. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-
Graduação em Economia, Porto Alegre, 2008. p.14-15.
46
O autor nos demonstra que o século XXI apresentou perspectivas de mudança do cenário
econômico do Espírito Santo. Para além desse diagnóstico da economia local, evidenciamos
que tal panorama possibilitou a emergência de uma série de enunciados qualificadores do
Espírito Santo, que colaboram com a nossa reflexão acerca da construção de representações
bem como dos critérios de avaliação do Espírito Santo.
O presente como marco histórico surgia, assim, como gerador de expectativas acerca de um
novo padrão de desenvolvimento e do lugar do Espírito Santo:
70
WETLER JUNIOR, Admir Clemente. Espírito Santo 2025: uma análise das implicações econômico-sociais do
novo ciclo previsto. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-
Graduação em Economia, Porto Alegre, 2008. p. 38.
71
HARTUNG, Paulo. Apresentação. In: ES 2025. Plano estratégico para o desenvolvimento do Espírito Santo:
carteira de projetos estruturantes. Espírito Santo: Macroplan, 2006. 10 volumes. Disponível em:
http://www.espiritosanto2025.com.br. Acesso em 06 de maio de 2010.
72
DIAS, Guilherme. Introdução. In: ES 2025. Plano estratégico para o desenvolvimento do Espírito Santo:
carteira de projetos estruturantes. Espírito Santo: Macroplan, 2006. 10 volumes. Disponível em:
http://www.espiritosanto2025.com.br. Acesso em 06 de maio de 2010.
47
A “nova realidade” e o “novo lugar” seriam as marcas dessa “nova era” inaugurada, na qual o
Espírito Santo:
Entre 2003 e 2007, o Espírito Santo liderou a redução da pobreza no país. A taxa de
pobreza, que era de 25,2% em 2003, caiu para 13,3% em 2007. Nesse mesmo período,
a extrema pobreza foi reduzida de 7,8% para 3,5%. O crescimento da classe média foi
notável: 48% no Espírito Santo contra 35% no Brasil. Em 2007, a classe média já
representava mais da metade da população capixaba (50,1%), índice acima da média
nacional (47,1%). [...] A expansão da siderurgia e a constituição do negócio de
petróleo e gás são duas das alavancas fundamentais no terceiro ciclo histórico de nossa
economia, iniciado em 2003. Só para citar alguns exemplos: somos o maior
exportador de pellets do mundo, e o segundo em produção de petróleo no Brasil. Em
2009, nós nos tornaremos o principal fornecedor de gás do país, com 20 milhões de
metros cúbicos por dia. [...] Temos pontuado alguns dos maiores índices de
crescimento industrial. Segundo o IBGE, no primeiro semestre de 2008, em
73
ES 2025. Plano estratégico para o desenvolvimento do Espírito Santo: carteira de projetos estruturantes.
Espírito Santo: Macroplan, 2006. 10 volumes. p. 23. Disponível em: http://www.espiritosanto2025.com.br. Acesso
em 06 de maio de 2010.
74
ES 2025. Plano estratégico para o desenvolvimento do Espírito Santo: carteira de projetos estruturantes.
Espírito Santo: Macroplan, 2006. 10 volumes. p. 23. Disponível em: http://www.espiritosanto2025.com.br. Acesso
em 06 de maio de 2010. p. 27.
48
comparação com igual período de 2007, a indústria capixaba foi a que mais cresceu:
16,1%. No mesmo período, o indicador nacional foi de 6,2%. 75
O quadro atual, que se expressa por uma ambiência sadia e motivadora, não foi
construído ao acaso. [...] Sob a liderança política do governador Paulo Hartung, o
Espírito Santo construiu uma nova forma de governança, que conta com um amplo
leque de alianças, parcerias e sustentações. Em grande parte, isso foi possível a partir
de um trabalho árduo de recuperação e moralização da máquina pública. A capacidade
de investimento per capita apresentada hoje pelo Espírito Santo equivale a
aproximadamente quatro vezes a capacidade per capita média nacional. Um dado
impressionante, alcançado em tão pouco tempo. Não temos dúvida em afirmar que o
Espírito Santo está consolidando um novo paradigma de governança e
desenvolvimento, já conhecido e reconhecido em nível nacional. 78
75
HARTUNG, Paulo. Espírito santo: desafios para o desenvolvimento. Disponível em:
http://www.200maiores.com.br/artigos/12-qespirito-santo-os-desafios-para-a-consolidacao-do-
desenvolvimentoq. Acesso em: 16 de junho de 2009. Entrevista ao Anuário IEL 200 maiores.
76
HARTUNG, Paulo. Espírito santo: desafios para o desenvolvimento. Disponível em:
http://www.200maiores.com.br/artigos/12-qespirito-santo-os-desafios-para-a-consolidacao-do-
desenvolvimentoq. Acesso em: 16 de junho de 2009. Entrevista ao Anuário IEL 200 maiores.
77
Recorremos aos discursos proferidos por deputados e senadores do Estado nesse período analisado, bem como
a artigos presentes no sítio eletrônico da ONG ES em Ação, criada por empresários do Espírito Santo. Ver:
http://www.es-acao.org.br/index.php?id=/institucional/espirito_santo_em_acao/index.php.
78
NUNES, Walter Lídio. Um modelo de governança. Disponível em: http://www.es-
acao.org.br/saladeimprensa/artigos/artigos_materia.php?cd_matia=4668&cd_site=0. Acesso em: quinze de junho
de 2009.
49
Identificamos, dessa forma, um discurso que reforça um novo status do Estado, distante de
qualquer semelhança com o “patinho feio do Sudeste.” O discurso da superação era composto
nesse novo quadro do Espírito Santo:
A tendência é de que nosso Estado continue, nos próximos anos, a ser um grande
destaque da economia brasileira. Nesse cenário de futuro, acredito que o crescimento
mundial continuará em alta moderada, mas não necessariamente nos países que
compõem o tradicional G-8 e, sim, no grupo de nações do BRICAMI - ou seja, o
BRIC, que os conceituados economistas formaram, e no novíssimo AMI [...]. Na
verdade, BRICAMI é o grupo dos sete países formados por Brasil, Rússia, Índia,
China, África do Sul, México e Indonésia que, dentro de 20 a 30 anos, estarão,
certamente, entre as 15 maiores nações do mundo. E onde estará inserida a indústria
capixaba nesse contexto econômico? Em primeiro lugar, costumo fazer o mapa de
nosso estado tendo as seguintes divisas: ao norte, a Bahia; a oeste, Minas Gerais; ao
sul, Rio de Janeiro; e, a leste, onde temos o Oceano Atlântico, vejo a China,
possivelmente a maior fábrica do mundo, e a Índia, que será a grande prestadora de
serviço do planeta. [...] Como estado mais globalizado do país, pois seu comércio
internacional (a soma das importações com as exportações) representa praticamente
metade do Produto Interno Bruto, o Espírito Santo tem de estar incluído no contexto
internacional.79
Estes diagnósticos e prognósticos sobre a condição do Espírito Santo durante a primeira década
do século XXI caracterizaram também o discurso de lideranças políticas inseridas no debate
nacional. Deputados e senadores locais, de forma semelhante, contribuíram para a construção
da imagem do Novo Espírito Santo ao evidenciarem o momento do Estado e seu potencial no
contexto brasileiro.
No entanto, cabe ressaltar que, nesses discursos, encontramos mais um aspecto necessário para
a reflexão proposta. Dentro desse cenário de qualificações positivas, de um discurso sobre o
novo lugar do Espírito Santo, é possível identificarmos uma característica distintiva nas
qualificações do Estado: a recorrência às noções de prejuízos, impedimentos e marginalização
do Espírito Santo também comuns no discurso político local, sobretudo, o de caráter
reivindicativo. A noção de superação foi constituída, também, a partir da oposição entre
diagnósticos exaltadores e obstáculos colocados ao desenvolvimento do Espírito Santo.
Evidenciamos, primeiramente, a forma como o Espírito Santo passou a ser apresentado pelos
políticos locais à mesma época dos discursos até aqui analisados. Por exemplo, encontramos o
então senador Gerson Camata ratificando a nova condição do Estado, que recebia, segundo ele,
79
VIEIRA, Lucas Izoton. Espírito Santo Hoje e do Futuro. Disponível em:
http://www.200maiores.com.br/artigos/57-o-espirito-santo-hoje-e-do-futuro. Acesso em dezesseis de junho de
2009.
50
[...] omaior investimento público da história do Espírito Santo, num momento em que
o pessimismo predomina, em que tudo parece conspirar para que prevaleçam a
estagnação e a inércia! Esse volume de recursos é uma injeção de ânimo que garante
o prosseguimento da trajetória de progresso de um Estado com presença cada vez mais
significativa no cenário nacional. 80
O mesmo senador ressaltava o potencial do Espírito Santo e sua colaboração para a economia
brasileira:
Sr.Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em sua última visita ao Espírito Santo, no final
da semana passada, o presidente Lula inaugurou a segunda fase da Unidade de
Tratamento de Gás de Cacimbas, situada no município de Linhares, o maior em área
territorial do Estado. É um acontecimento merecedor de destaque, pois representa a
consolidação do território capixaba como um dos mais importantes agentes no cenário
energético brasileiro.[...] O Brasil não pode ficar dependente de um único fornecedor
externo do combustível, e a crise provocada pela nacionalização das reservas de
petróleo e gás do país vizinho foi a prova que faltava de que é preciso adotar medidas
capazes de reverter esse quadro. Para resolver o problema, as reservas do Espírito
Santo são uma das saídas e, sem dúvida, a mais rápida e econômica. Vai longe a época
em que investimentos como o realizado em Linhares não eram compensadores. Hoje,
são vitais para o futuro do País.81
[...] sob a liderança do Governador Paulo Hartung, o Espírito Santo deu um exemplo
ao País ao entregar o mais completo e abrangente plano estratégico de longo prazo já
80
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Gerson Camata, 13 de março de 2009. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=378799 . Acesso em 26 de junho de 2009.
81
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Gerson Camata, 13 de março de 2009. Disponível em
:http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=378186 . Acesso em 26 de junho de
2009.
82
O discurso de Francisco Pereira definia também a nova condição do Estado no cenário nacional e correspondia
à definição do 3º Ciclo Econômico enunciado a respeito do Espírito Santo. Segundo ele: “[...] vive o Espírito Santo
um momento singularmente favorável no que diz respeito à sua economia. Passadas as mais recentes atribulações
políticas, o crescimento econômico vem retornando, em níveis elevados, a partir principalmente das atividades
produtivas relacionadas ao petróleo. [...] esse fato, que é a infraestrutura capixaba, não só se afigura importante
para o desenvolvimento estadual, mas também indispensável para o incremento de toda gama de setores da
economia brasileira, dado que o Espírito Santo é peça fundamental para diversas cadeias produtivas que vêm
sustentando o desenvolvimento nacional.” SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Francisco Pereira,
14 de abril de 2005. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=352243. Acesso em 26 de junho de 2009;
Paulo Hartung também reforçava o novo lugar do Espírito Santo em termos de importância para o Brasil: “[...] o
Espírito Santo vai despachar para o Brasil, na virada de 2008 para 2009, cerca de 20 milhões de metros cúbicos de
gás. Com isso, 50% da produção nacional, de 40 milhões de metros cúbicos, sairá dos campos terrestres e
marítimos do Espírito Santo. Uma solução capixaba para um sério problema brasileiro. O outro fato é que,
ocupando o segundo lugar na produção nacional de petróleo, o Espírito Santo tem quatro poços da reserva gigante
descoberta na área de pré-sal. E a exploração da nova mega jazida de petróleo começa no mar capixaba, no campo
de Jubarte, no decorrer de 2008. Aqui também uma outra contribuição dos capixabas no suprimento da energia
necessária para o Brasil continuar crescendo.” Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/1862.
Acesso em 17 de julho de 2009.
51
Esse discurso tipicamente de exaltação do Espírito Santo por parte do Senador colaborou com
a construção dessa nova imagem do Estado, no entanto, a “nova realidade” aparecia
acompanhada de uma circunstância negativa:
[...] o Espírito Santo hoje pode viver em céu de brigadeiro, tranquilo, feliz e crescendo.
Infelizmente, não posso falar a mesma coisa no que diz respeito ao Governo Federal,
que tem sido uma madrasta para o Espírito Santo, ao criar, todos os dias, uma unidade
de conservação para atrapalhar o nosso progresso. O Espírito Santo não recebeu no
Governo passado e não recebe neste aquilo que deveria receber.84
Reconhecemos, assim, que o discurso do “novo lugar” ocupado pelo Espírito Santo no cenário
brasileiro fundamentava a crítica e a reivindicação de um tratamento considerado justo na
política nacional. O pronunciamento do então senador Renato Casagrande, sobre o Fundap,
evidenciava a exigência de tratamento igualitário ao Espírito Santo:
83
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Marcos Guerra,21 de junho de 2006. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=363137. Acesso em 23 de junho de 2009.
84
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Marcos Guerra, 21 de junho de 2006. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=363137. Acesso em 23 de junho de 2009.
85
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Renato Casagrande, 4 de novembro de 2008. Disponível
em: http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=376727. Acesso em 23 de junho de
2009.
52
O uso político dessa noção na atualidade não se limitou à construção da imagem do “Novo
Espírito Santo.” Percebemos, ainda, a permanência do diagnóstico dos prejuízos no cenário
político do Espírito Santo. Já no governo Renato Casagrande86, constatamos a recorrência à
vitimização do Estado. Em matéria no jornal A Gazeta, encontramos novamente a questão do
Fundap:
86
O ex-senador Renato Casagrande passou a exercer o mandato de governador do Espírito Santo a partir de 2011
(2011-2014).
87
MONTEIRO, Amanda. Governo federal está ‘empenhado em compensar’ o ES. Disponível em:
http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2013/04/governo-federal-esta-empenhado-em-compensar-o-es-diz-
ministra.html. Acesso em 13 de abril de 2013.
53
Apesar de o Brasil ter uma área de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e população
de 193 milhões de pessoas, o nosso querido Espírito Santo é ainda um dos menores
Estados possuindo apenas 46.077 quilômetros quadrados (0,54% do país) e 3,5
milhões de habitantes (1,8% do Brasil). Se considerarmos o PIB, temos 2,3% da
nação.[...]
Quando avaliamos a arrecadação de impostos federais que o Estado envia anualmente
para Brasília, com baixíssimo retorno, constatamos que, infelizmente, o Espírito Santo
em toda a sua história normalmente ficou à margem do governo federal, desde o Brasil
Colônia até os dias de hoje.
O Espírito Santo é o Estado mais globalizado do Brasil, tem uma boa infraestrutura
portuária, praias lindas de conceito internacional, montanhas maravilhosas, excelente
localização geográfica, um potencial de crescimento fabuloso, e sinceramente, eu,
como capixaba, não consigo entender a má vontade do poder central com o local onde
o destino me fez nascer e por opção decidi viver.
Quando analisamos um pouco mais as questões econômicas que atualmente nos
afligem (Royalties do petróleo, Fundap, falta de investimentos em infraestrutura, etc.)
ficamos tristes por perceber que provavelmente continuaremos à margem das
distribuições de recursos do país.
Somos adeptos do diálogo e da negociação, mas uma ideia, a princípio polêmica, tem
se fortalecido em muitas mentes. Por que o ES tem que ser membro da República
Federativa do Brasil e não pode ser um Estado autônomo? Certamente teríamos mais
recursos para investirmos em nossa região e poderíamos gradativamente corrigir as
deficiências históricas que possuímos.
Espírito Santo, uma nação. Por que não? Com a palavra, as lideranças capixabas. 88
Essa forma de expressar os prejuízos do Estado é classificada por André Ricardo como uma
"mentalidade obsidional"89 típica do discurso político local para atribuir a algo ou a alguém,
geralmente ao Governo Federal, a responsabilidade sobre as dificuldades em seu
desenvolvimento.90A distinção do Espírito Santo como marginalizado na reivindicação
88
VIEIRA, Lucas Izoton. República Capixaba. Disponível em:
http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2012/04/noticias/a_gazeta/opiniao/1208162--republica-capixaba.html.
Acesso em 27 de abril de 2012.
89
Segundo André Pereira: "Mentalidade obsidional, portanto, é uma forma de encarar as coisas a partir da
suposição de que algo ou alguém tem o objetivo de cercar, isolar, perseguir, impedir o livre crescimento ou
desenvolvimento de alguém, de uma cultura, de uma região, de uma sociedade." PEREIRA, André Ricardo Vale
Vasco. Fantasias persecutórias na História do Espírito Santo. Revista Expedições: Teoria da História e
Historiografia. Goiânia, n.1, jan/jul, 2013. p. 141. Disponível em:
http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth. Acesso em: 12/04/2015.
90
Sobre a noção de perseguição presente nessa mentalidade, André Ricardo afirma: "A mentalidade
obsidional capixaba, quando aplicada a temáticas específicas, principalmente aquelas que envolvem conflitos
reais, ajuda a alimentar verdadeiras fantasias persecutórias, ou seja, atribui falsamente a certos atores propósitos
malévolos que visam afetar a todos os capixabas. É o que está acontecendo neste momento a partir do discurso
que resolveu demonizar a figura de Dilma Roussef ou da sua administração de uma forma geral. O formato desta
fantasia é o de estabelecer dois campos distintos: uma entidade que persegue, por um lado, e a sociedade capixaba
como um todo, por outro. Esta é vista como sendo prejudicada, o que implica na necessidade de união entre todos
os seus membros, independente de diferenças de classe, políticas, religiosas, étnicas, de gênero, etc." PEREIRA,
André Ricardo Vale Vasco. Fantasias persecutórias na História do Espírito Santo. Revista Expedições: Teoria da
História e Historiografia. Goiânia, n.1, jan/jul, 2013 . p. 141. Disponível em:
http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth. Acesso em: 12/04/2015.
54
presente no artigo de Izoton revela uma interpretação que envolve a noção de que o Espírito
Santo é prejudicado historicamente no contexto brasileiro. Por isso, observamos a ideia de
superar gradativamente “as deficiências históricas” locais. Estamos diante, portanto, de uma
referência ao passado na legitimação desse discurso reivindicativo acerca do Espírito Santo.
Segundo André Ricardo Pereira, essa interpretação pode ser definida como um recurso do
discurso político local nos debates de caráter nacional:
Dessa forma, diante dos embates políticos nacionais e das possibilidades de prejuízos ao
Espírito Santo, consolida-se, segundo o autor, o discurso do prejuízo histórico:
André Ricardo Pereira, portanto, critica a retórica presente no discurso político local. O
problema exposto acima identifica no discurso das lideranças político-econômicas estaduais,
91
PEREIRA, André Ricardo Valle Vasco. Entrando em campo para perder: a inserção do Espírito Santo no debate
político nacional. In: BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. (orgs.). Espírito
Santo: um painel da nossa história II. Vitória, ES: SECULT, 2012. p. 15.
92
Ibid., p.16.
55
tal como assinalamos no artigo de Izoton, o uso político do passado, como legitimação e
justificativa das condutas políticas.
Segundo Luiz Cláudio Ribeiro, existe uma concepção negativa sobre o passado do Espírito
Santo. Para ele, “tal concepção predomina na sociedade capixaba e condiciona sua
autoimagem”, caracterizada por ser "socialmente construída, ensinada e repetida.”93
Recorrência, também, em se apropriar de uma certa noção de passado, que viabiliza a utilização
e a legitimação do discurso da superação do atraso e que envolve leituras do passado. É possível
identificarmos que concomitante à presença do discurso da superação do atraso em sua matriz
política, outras interpretações do passado, historiográficas ou não, se inserem nessa dinâmica
de se pensar historicamente o Espírito Santo, atribuindo-lhe um lugar e colaborando com a
noção do déficit histórico e sua superação.
Seguindo esse apontamento de Luiz Cláudio Ribeiro, consideramos que essa repetição pode
definir, de alguma forma, uma narrativa que vincula circunstâncias do presente a um
determinado passado considerado adequado:
93
RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Modos de ver (1534-1643): o governo da capitania do Espírito Santo na sua primeira
centúria. In: BITTENCOURT, Gabriel; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. (orgs.). Espírito Santo: um painel da nossa
história II. Vitória: Secult, 2012. p. 171-172.
56
[...] conseguiram mostrar que fomos usados para esconder o grande volume de ouro
que Minas Gerais possuía. Com isso, a história nos deixou para trás. Mas buscamos
nossa história e mostramos aos dois governos, do Espírito Santo, por meio da
Secretaria de Estado de Turismo (Setur), e de Minas Gerais. Ambos acreditaram no
documento e no resgate de informações. Com isso, depois de um ano de muitas idas
e vindas, audiências públicas nos dois estados e muito trabalho, está aí o resultado, a
Rota Imperial da Estrada Real.95
94
SCHWARCZ, Lilia Moritz. De volta ao passado com as lentes focadas no presente, in: SIMAN, Lana Mara de
Castro; FONSECA, Thaís Nívia de Lima (orgs.). Inaugurando a História e construindo a nação. Discursos e
imagens no ensino de História, Belo Horizonte, Autêntica, 2001. p.13.
95
TOLEDO, Luzia. Realizamos ações de grande importância à frente da Ales. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/noticias/696319/realizamos-acoes-de-grande-importancia-a-frente-da-ales . Acesso
em 28 de junho de 2009.
96
Sobre a Estrada Real, atentamos para a definição de Eurípedes Franklin Leal: “Era denominada, na época do
Brasil Colônia, de Estrada Real aquela cuja construção havia sido determinada por ordem do Rei e seu custo a
cargo de seu tesouro. Não foram muitas as estradas reais e a aqui tratada foi possivelmente uma das últimas, senão
a última, no Governo de D. João VI. Ela foi denominada de Estrada Real S. Pedro de Alcântara em homenagem
ao santo protetor da família real portuguesa e com a independência brasileira e instalação do Império, passou a ser
denominada, Estrada Imperial S. Pedro de Alcântara. Uma estrada real era construída para atender a regiões com
seus viajantes, moradores e tropeiros e possuía uma largura média de quinze palmos ou cerca de três metros. No
caso específico da Estrada São Pedro de Alcântara chama atenção o fato de usar sempre um percurso nos altos das
montanhas, principalmente desde a região das cabeceiras do rio Casca, em Minas Gerais, até o litoral do Espírito
Santo. “Atualmente, ela é um roteiro turístico e o Espírito Santo está inserido nessa rota. De acordo com Leal:
“Em janeiro de 2008, o Instituto da Estrada Real, em Belo Horizonte, juntamente com a Federação das Indústrias
de Minas Gerais (FIEMG), a Federação das Industrias do Espírito Santo (FINDES), o Sebrae e as Secretarias de
Turismo dos dois Estados começaram os trabalhos para reencontrar esta Rota Imperial da Estrada Real. Foi
constituído um grupo de trabalho, que após busca de documentos e mapas históricos no Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro, no Arquivo da Marinha, na Biblioteca Nacional, no Arquivo Público do Espírito Santo, no Arquivo
Público Mineiro, concluiu a localização física da Estrada. Em fevereiro de 2009, o grupo realizou a viagem de
demarcação física da Rota Imperial da Estrada Real entre Vitória e Ouro Preto.” LEAL, Eurípedes Franklin. A
rota imperial da Estrada Real: a Estrada S. Pedro de Alcântara. Disponível em:
http://www.rotaimperial.org.br/images/stories/historia/rota-imperial_histrico_artigo.pdf. Acesso em 20 de
fevereiro de 2014.
97
O significado dessa leitura e uso do passado no que tange a Estrada Real deve ser observado a partir da
interpretação que se cristalizou sobre o período da mineração colonial e as implicações para o Espírito Santo, como
vamos evidenciar ao longo da tese. A inserção do Espírito Santo na Estrada Real é observada como uma conquista
uma vez que a ligação com Minas Gerais é simbólica para o Estado, pois o período da mineração, no século XVIII,
é interpretado como um dos principais responsáveis pelo déficit histórico do Espírito Santo.
57
Como observamos, o uso político desse passado é recorrente. Sendo assim, constatamos essa
percepção na interpretação do ex-governador do Estado Christiano Dias Lopes Filho (1967-
1971) que participou efetivamente do projeto de desenvolvimento econômico do Espírito Santo
entre as décadas de 1950 e 1970. Segundo ele, em termos de desenvolvimento, a história
capixaba foi a trajetória do “passou perto.” Ou seja, uma série de episódios “da história do
Brasil que passaram perto do Espírito Santo,” e que “deixaram marcas de atraso para nós.”98
Resumindo a fala do ex-governador, apresentamos suas impressões:
O Espírito Santo com as capitanias hereditárias ficou subordinado; ficou numa faixa
em que vinha do norte para o sul a capitania da Bahia, de Porto Seguro, depois a
capitania do Rio de Janeiro, com indefinições gravíssimas[...]. Aí o governo de
Portugal, para proteger as conquistas dos bandeirantes paulistas, proibiu a exploração
de ouro em outras regiões. Especificamente proibiu que subissem bandeiras e entradas
pelo rio Doce, em direção às regiões que aflorava o ouro. E o Espírito Santo então
ficou fora da grande arrancada na descoberta e exploração do ouro no Brasil. Passou
tudo perto mas não parou por aqui [...]99
Esse lugar do Espírito Santo no passado não se limita ao discurso político. Ele é também uma
preocupação de diferentes estudiosos que interpretam o passado local tendo em vista as
dificuldades e a condição prejudicial do Espírito Santo historicamente. Roberto Simões, por
exemplo, evidencia o problema do lugar do Estado na atualidade. Segundo o autor, no início
desse novo século, ficava evidente um problema considerado histórico, ou seja, a não
correspondência entre o potencial capixaba e sua insuficiência em termos de representação
política no contexto nacional:
98
LOPES FILHO, Christiano Dias, et al. Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p. 22.
99
Ibid., p. 22-23.
100
SIMÕES, Roberto Garcia. Desenvolvimento econômico do Espírito Santo no século XX. In: BITTENCOURT,
Gabriel Augusto de Mello. Espírito Santo: um painel da nossa história. Vitória: Imprensa Oficial/ES, 2002.p.
243.
58
e José Cândido Sueth. O primeiro analisa a “busca à primeira grandeza” do Espírito Santo no
governo de Moniz Freire no início do período republicano. Seguindo essa lógica, bem como
interessado em evidenciar as realizações políticas que visavam a prosperidade do Estado, o
autor analisa o projeto de modernização do Espírito Santo, em especial da capital Vitória, por
este governante. Esta autoridade política ganha destaque, na interpretação de Diones Ribeiro,
sendo considerada uma “personalidade que teve importância imensurável para o
desenvolvimento do Estado, nos primeiros anos da República.”101 A abordagem realizada a
respeito da plataforma de governo, da imigração estrangeira e da busca por transformar a capital
Vitória numa cidade moderna são analisadas na perspectiva de pensar o lugar e a possibilidade
do Espírito Santo inserir-se na modernidade republicana. De acordo com ele:
101
RIBEIRO, Diones Augusto. Busca à Primeira Grandeza: o Espírito Santo e o governo Moniz Freire (1892 a
1896). 2008. 177f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade
Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 3.
102
Ibid., p. 167.
103
SUETH, José Candido R. Espírito Santo, um Estado “satélite” na Primeira Republica: de Moniz Freire a
Jerônimo Monteiro (1892/1912). 2004. 146f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação
em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2004.
59
José Cândido Sueth, portanto, projeta para todo o período republicano a visão que Roberto
Simões apresentou das desvantagens capixabas na atualidade. Tal como Diones Ribeiro, Sueth
analisa o início do século XX, porém, está pensando o século XXI e o foco é a condição
marginalizada do Estado diante do cenário nacional.
Essa avaliação em termos de período republicano pode ser observada em sua projeção para um
período ainda mais distante. Reparemos a visão de Kawashima de Souza, ao tratar do “debate
fundamental em tempos de expectativas”:
Nunca é demais relembrar que a nossa formação é tão antiga como a própria
civilização brasileira. Muito embora estejamos em desvantagem econômica em
relação aos demais Estados da região na qual estamos inseridos. Primeiro, pelo
sistema de exploração implantado desde o início da colonização, que terminou por
privilegiar as áreas geográficas mais dinâmicas para a exploração, depois, por
discriminações por parte das conjunturas imperial e republicana. 105
Consideramos, assim, que a noção de déficit histórico ou o atraso bem como a ideia de sua
superação, associada a uma visão negativa do passado vinculam-se a um modo de avaliação e
qualificação do Espírito Santo. Dessa forma, consideramos que essa imagem negativa é
estabelecida por meio de um conjunto de “enunciados e imagens que se repetem, com certa
regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas”106, por meio de qualificações,
adjetivações, figurações alusivas e simbólicas historicamente instituídas, e definidoras de um
status e do seu lugar no presente e no passado.
104
SUETH, José Candido R. Espírito Santo, um Estado “satélite” na Primeira Republica: de Moniz Freire a
Jerônimo Monteiro (1892/1912). 2004. 146f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação
em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2004. p. 132-133.
105
SOUZA, Chisue Kawashima de. Debate fundamental em tempos de expectativa. Apresentação. In:
BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Espírito Santo: um painel da nossa história. Vitória: Imprensa
Oficial/ES, 2002. p. XIII.
106
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2 ed. Recife: FJN; Ed.
Massangana; São Paulo, Cortez, 2001. p. 35.
60
Avaliamos que no início do século XXI diagnósticos e prognósticos de Espírito Santo forjaram
uma imagem do Estado em vias de superação do atraso vinculados a um discurso do "Terceiro
Ciclo de Desenvolvimento" desenvolvimento econômico. Esse conjunto de enunciados
correspondentes a uma matriz política se integra, por sua vez, a uma determinada concepção de
passado a ser superado, pronunciado por diferentes discursos acadêmicos ou não. Esta forma
de apreensão, consequentemente, revela percepções e sentimentos acerca da região. Como
observamos, o discurso político do desenvolvimento econômico do Estado ao tratar do presente
e suas expectativas apresentam o potencial e um novo status representativo de um novo patamar
econômico do Estado. No entanto, as referências ao passado expõem uma noção de
desprestígio, desvantagem, ausência e isolamento, o que, no discurso político corresponde à
noção de superação.
Nesse ponto, chegamos à “última etapa” do que sugerimos como o “desafio historiográfico do
Espírito Santo”. Acabamos de evidenciar que existem representações de Espírito Santo
recorrentes e que envolvem leituras sobre o passado local. Evidenciamos que o discurso da
superação do atraso, elaborado por matrizes políticas e historiográficas definem uma noção de
atraso e desprestígio do Espírito Santo que são recorrentes na atualidade. Dessa forma, nosso
desafio, compreendendo a história da historiografia como um campo de investigação, volta-se
para o entendimento de como uma sociedade se relaciona com seu passado, a partir de sua
produção historiográfica.
próprio conhecimento histórico que surge justamente das questões que envolvem o seu
tempo.107 Trata-se, segundo ele, do interesse que os homens possuem em orientar-se no fluxo
do tempo, “de assenhorar-se do passado, pelo conhecimento, no presente.”108 Segundo Rüsen,
o conhecimento histórico permite aos homens situarem-se no tempo, elaborando uma
identidade histórica em função das respostas que a história elabora. Para ele, a recuperação do
passado surge por interesses dos indivíduos:
Interesses são determinadas carências cuja satisfação pressupõe, da parte dos que as
querem satisfazer, que esses já as interpretem no sentido das respostas a serem obtidas.
Tais interesses são abordados pela teoria da história a fim de poder expor, a partir
deles, o que significa pensar historicamente e por que se pensa historicamente. 109
Para José Carlos Reis, Koselleck apresenta uma reflexão acerca da temporalidade, evidenciando
que ao historiador interessa também a relação que, sempre, em seu presente, cada sociedade
estabelece com o seu passado e o seu futuro. E, assim, nos permite compreender como tempos
históricos específicos mantiveram relações diferentes com o seu passado.111Ao tratarmos de
107
REIS, José Carlos. História e Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro:
FGV, 2003. p. 181
108
Ibid., p. 30.
109
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001.p.23.
110
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed.
UnB, 2007. p. 43.Segundo Rüsen, a partir do momento em que a necessidade de orientação no tempo é dirigida ao
pensamento sobre o passado, existe a definição de critérios de sentido. “São estes que regulam o trato reflexivo
dos homens com seu mundo e consigo mesmos. Eles decidem como deve ser interpretada a mudança do homem e
de seu mundo, a fim de que se deem orientações práticas da vida humana no tempo que tenham ‘sentido’, sem o
que as carências de orientação não poderiam vir a ser satisfeitas.” RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história
III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed. UnB, 2007. p. 31.
111
REIS, op. cit., p. 191-193.
62
Para a compreensão dessa relação, ao longo do estudo acerca de nosso desafio historiográfico,
cabe ainda questionarmos: quais as formas e as funções assumidas pelo saber histórico no
Espírito Santo? Quais os sentidos se atribuíram (e se tem atribuído) ao passado local tendo em
vista essa forma de se compreender o passado como algo negativo a ser superado? Em que
momento podemos observar a emergência de uma narrativa histórica local em correspondência
com o discurso político da superação do atraso?
Estamos diante de um duplo exercício que define o que propomos como “desafio historiográfico
do Espírito Santo”: a) primeiramente, realizar uma história da historiografia, em termos de
compreender a emergência e o percurso de um modelo de explicação e narrativa do Espírito
Santo, que denominamos de narrativas históricas da superação do atraso; b) e, diante de sua
permanência, analisar como se apresenta atualmente a escrita da história do Espírito Santo, em
suas continuidades e descontinuidades, e, consequentemente, em função dos embates que as
mudanças historiográficas estabeleceram com interpretações cristalizadas e seus usos políticos.
Ao invés de construir uma genealogia do saber histórico, creio ser mais proveitoso
buscar relações e tecer comparações; jogar luz sobre rupturas, sem negligenciar as
continuidades, o que implica estabelecer linhagens e ao mesmo tempo identificar
posições isoladas; identificar focos de tensão e evidenciar pontos de confluência;
mapear zonas de conflito e acompanhar deslocamentos. 112
112
GUIMARÃES, Lúcia Maria P. Sobre a história da historiografia brasileira como campo de estudos e reflexões.
In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das, et al. Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2011. p. 32.
63
[...] pode-se dizer que uma das contribuições mais interessantes dos estudos de
historiografia se referem à pretensão de leitura e avaliação das obras dos historiadores
enquanto documento, ou seja, como indício ou testemunho de dimensões variadas da
realidade e do acontecer humano. Trata-se da tentativa de submeter os escritos dos
historiadores aos procedimentos de crítica, aos quais, frequentemente, estes mesmos
historiadores submetem seus materiais de investigação.114
Assim, alcançamos o segundo exercício desse “desafio historiográfico.” Nessa análise crítica
acerca do percurso do saber histórico sobre o Espírito Santo, se faz necessário avaliar a
historiografia na contemporaneidade. Afinal, por um lado, observamos a recorrência ao uso do
passado no discurso político sobre o desenvolvimento do Estado, bem como a permanência de
113
MALERBA, Jurandir; AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. Apresentação. In: MALERBA, Jurandir;
AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio (orgs.). Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru, SP:
EDUSC, 2007. p. 9.
114
GODOY, João M. T. de. Alguns desafios dos estudos de historiografia. Projeto História, São Paulo, n.41,
2010.p. 197.
64
leituras que definem uma relação com o passado vinculada à noção de superação do atraso. Por
outro, identificamos na atualidade, um conjunto de interpretações historiográficas que se
encontram em oposição às representações históricas do desenvolvimento do Espírito Santo
elaboradas pelos autores anteriormente apresentados. Assim, estamos reconhecendo que o
nosso desafio se insere em um contexto histórico-cultural em que se manifestam narrativas
concorrentes e conflitantes. A produção acadêmica115 recente da historiografia sobre o Espírito
Santo, sob uma nova perspectiva de leitura do passado e do fazer historiográfico, possuiu um
conjunto de trabalhos que passou a problematizar e relativizar um modelo de interpretação
histórica estabelecido.116
O próprio desafio historiográfico do Espírito Santo aqui proposto assume o caráter de sua
função crítica e atual. Segundo Horst Walter Blanke, podemos distinguir duas funções
principais numa abordagem da história da historiografia: uma função afirmativa e a função
crítica. Para ele, a primeira volta-se para a “afirmação da ideologia oficial” e caracteriza-se
como “um importante, senão o mais importante, aspecto da reconstrução histórica.” 117 A
segunda função caracteriza-se em oposição ao conceito de afirmação, pois é “o esforço de
escrever a história da historiografia com a intenção de criticar princípios ideológicos: o objetivo
é superar criticamente visões de mundo e posições políticas.”118 De acordo com Marc Ferro,
“controlar o passado sempre ajudou a dominar o presente.”119 Assim, o desafio historiográfico
do Espírito Santo nos remete ao que o autor argumenta como função política e social da história
que não se encontra apenas na legitimação, mas também, na produção de conhecimento que
contribui “igualmente, para melhor desvendar as armadilhas dos discursos normativos e
115
A produção acadêmica recente a que nos referimos envolve o conjunto de trabalhos historiográficos elaborados,
principalmente, a partir do departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
abrangendo pesquisas de diferentes historiadores. As revistas ligadas ao departamento e o Programa de Pós-
Graduação em História Social das Relações Políticas tem fomentado e divulgado uma produção historiográfica
que colabora na desconstrução de concepções cristalizadas acerca do Espírito Santo.
116
Rüsen sobre a historiografia que ele denomina como crítica: “A historiografia crítica apresenta uma experiência
histórica que problematiza e relativiza o modelo precedente de interpretação histórica, abalando os fundamentos
de sua plausibilidade.”; RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento
histórico. Brasília: Ed. UnB, 2007. p. 56. Cabe ressaltar que, ao longo da tese, no exercício de análise das obras
pesquisadas, recorreremos a essa produção acadêmica recente que fundamentará a nossa abordagem numa
perspectiva crítica.
117
BLANKE, Horst W. Para uma nova história da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. A História Escrita:
teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 32.
118
Ibid., p.34.
119
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 1. De acordo com o autor, “não só o
Estado e o político colocam a história sob vigilância. “Também o faz a sociedade, que, por usa vez, censura e
autocensura qualquer análise que possa revelar suas interdições, seus lapsos, que possa comprometer a imagem
que uma sociedade pretende dar de si mesma.” Ibid., p. 1.
65
Enfim, é no embate que envolve a produção historiográfica atual que o desafio historiográfico
do presente trabalho se insere. Segundo Horst Blanke, uma das funções da história da
historiografia é aquela que a enxerga "tendo uma função exemplar, no sentido de oferecer
material ilustrativo para a reflexão teórica.”121 Ao construirmos o desafio historiográfico do
Espírito Santo, propomos uma análise sobre a construção de modelos paradigmáticos de
compreensão do Espírito Santo no presente e no passado, selecionando obras e entendendo a
historiografia, e o nosso próprio trabalho, como resultado de uma prática cultural 122, que se
insere nas preocupações em se interpretar e qualificar o Espírito Santo. Com isso, essa
exemplaridade presente em nosso desafio historiográfico surge com o propósito de servir de
análise reflexiva sobre a escrita da história espiritossantense. Correspondendo o que afirma
Godoy:
Acredito que seja consensual o valor instrumental dos estudos de historiografia, não
como fim em si mesmo, mas como instrumento de aperfeiçoamento e avanço do
próprio conhecimento histórico. Apresenta-se como um exame de consciência e
crítica autocorretiva do instrumental que define o ofício dos historiadores. No sentido
mesmo de verificar suas possibilidades e limites. Não para atender as necessidades
puramente internas ou identitárias da área de história, mas para que o conhecimento
histórico dê conta, de maneira mais satisfatória, das demandas que a própria sociedade
coloca para a ciência na definição e entendimento de seus problemas fundamentais. 123
O desafio, portanto, é o de analisar numa perspectiva crítica uma forma de narrar o Espírito
Santo e a construção de um enredo histórico associado à sua trajetória de formação e
desenvolvimento. Temos a proposta de deslegitimar, de se posicionar contra o lugar sacralizado
do atraso na sociedade espiritossantense e suas implicações na forma de interpretar períodos,
120
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 2-3.
121
BLANKE, Horst W. Para uma nova história da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. A História Escrita:
teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 35.
122
Entendemos dessa maneira pois reconhecemos que nosso trabalho encontra-se inserido no debate de
interpretações sobre o Espírito Santo. RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do
conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 16.Ainda, segundo ele, é necessário
reconhecer esse caráter reflexivo do conhecimento histórico e da teoria da história: “Os que buscam elaborar tal
teoria – ou seja, esforçam-se por descobrir o que há de fundamental no pensamento histórico e sua pretensão de
racionalidade – veem-se confrontados com a forte desconfiança dos que justamente se consideram produtores
desse pensamento histórico [...]. A teoria da história, num primeiro momento, incomoda-os, pois convida-os a
voltar suas vistas dos conteúdos do passado que examinam para si próprios (autorreflexão). Passa-se com eles algo
parecido com o que ocorre com aqueles que querem saber o que fazem quando dormem e, com isso, acabam
insones." RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001. p. 16.
123
GODOY, João M. T. de. Alguns desafios dos estudos de historiografia. Projeto História, São Paulo, n.41, 2010.
p. 212.
66
Sendo assim, buscaremos agora compreender em que condições emergiram a formação dessa
narrativa histórica do desenvolvimento do Espírito Santo e, consequentemente, desse modelo
explicativo da superação do atraso na historiografia, bem como suas implicações na
representação do passado do Espírito Santo.
67
Argumentamos que o discurso da superação do atraso foi instituído a partir da década de 1960
no Espírito Santo e foi constituído tanto por sua matriz política como historiográfica. Estamos
considerando-o como um discurso fundador, pois, em suas diferentes matrizes, instituiu um
sentido para o Espírito Santo. Segundo Orlandi, o discurso fundador instaura uma "tradição de
sentidos", definindo um locus de interpretação. Instaura uma discursividade sobre o Espírito
Santo, define "uma ordem discursiva sobre lugares e sujeitos"124, o que lhe permite criar um
lugar particular na história e "reorganizar os gestos de interpretação."125
Quando definimos que o discurso da superação do atraso inaugurou uma discursividade para o
Espírito Santo, estamos considerando que sua vertente política configurou-se a partir da década
124
ORLANDI, Eni P. Discurso Fundador: a formação do país e a identidade nacional. Campinas: Pontes, 1993.
p. 18.
125
Ibid., p. 16.
68
Marta Zorzal identifica o segundo governo de Carlos Lindenberg (1959), mesmo sendo
representante de uma elite política agromercantil, como o momento de surgimento de um
ideário desenvolvimentista no Espírito Santo associado à industrialização que efetivar-se-ia
apenas na década de 1970. Configurou-se, nesse período, um núcleo de forças políticas em
torno do projeto de industrialização acelerada que ocorria a nível nacional. Por meio da recém
criada Federação das Indústrias do Estado do Espírito Santo (FINDES), essas forças articularam
meios de dinamizar a economia local e a buscar formas de inserir o Estado nas áreas
consideradas mais desenvolvidas do país.127 Em meados da década de 1960, uma das questões
que envolviam o jogo de forças políticas no Estado, segundo ela, era justamente o contraste
entre o “novo” e o “velho”. As questões acerca do desenvolvimento econômico surgidas durante
o governo Lindenberg permitiram, assim, a emergência do debate em torno da questão do
desenvolvimento (versus subdesenvolvimento) do Espírito Santo.128
126
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p. 39.
127
SILVA, Marta Zorzal. Espírito Santo: Estado, interesse e poder. 1986. 798 f. Dissertação de Mestrado
(Mestrado em Administração Pública). Curso de Mestrado em Administração Pública, Fundação Getúlio Vargas,
Rio de Janeiro, 1986. p. 572-573.
128
Ibid., p. 653-654. Nas conclusões de seu trabalho, a autora assim caracteriza esse período: "[...] tanto a nível das
estruturas como a nível das práticas sociais as contradições oriundas das defasagens do desenvolvimento capitalista
no Espírito Santo foram exacerbadas. Com isso os contrastes entre moderno e tradicional, ou entre novo e velho,
assumiram o centro da cena política. Esse processo aliado ao maior potencial de articulação das forças industriais
emergentes, as quais desde o Governo Jones vinham buscando articular formas de inserir o Espírito Santo no
processo de industrialização, que se realizava a nível nacional, imprimiu uma nova dinâmica a ação governamental,
em curso. [...] Assim, advogando que era preciso desenvolver para sobreviver Carlos Lindenberg reorienta o
sentido que vinha sendo impresso à política de desenvolvimento regional, marcando a intersecção dos efeitos do
desenvolvimentismo econômico na via conservadora de desenvolvimento que se realizava no Espírito Santo."
Ibid., p. 761-762.
69
Rocha e Morandi, ao analisarem a forma como o Espírito Santo foi inserido nas políticas
regionais de desenvolvimento econômico entre as décadas de 1960 e 1970 argumentam que a
forma de conceber as desigualdades regionais no país foi orientada pela concepção cepalina de
desenvolvimento econômico. O binarismo centro-periferia e desenvolvido-subdesenvolvido,
denominações referentes às desigualdades entre os países em relação ao desenvolvimento
econômico capitalista, estiveram presentes nos diagnósticos e reflexões acerca das políticas de
industrialização dos países latino-americanos, observada como caminho necessário para
superar o subdesenvolvimento e a dependência em relação aos países considerados
desenvolvidos.129
Desse modo, a preocupação com o lugar ocupado pelo Espírito Santo e a política de
desenvolvimento regionais no Brasil orientaram as estratégias das elites dirigentes locais
voltadas para a implementação de um projeto de industrialização do Estado. Os discursos
governamentais sobre o desenvolvimento local foram construídos, principalmente, no conjunto
de documentos oficiais elaborados nesse período.132 Neles, identificamos os “diagnósticos do
129
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI. Ângela Maria. Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no
Espírito Santo. 2.ed. Vitória: Espírito Santo em Ação. 2012. p. 51-52.
130
Ibid., p. 53-54.
131
Ibid., p. 57.; SILVA, Marta Zorzal. Espírito Santo: Estado, interesse e poder. 1986. 798 f. Dissertação de
Mestrado (Mestrado em Administração Pública). Curso de Mestrado em Administração Pública, Fundação Getúlio
Vargas, Rio de Janeiro, 1986. p.581.
132
Para compreendermos a emergência desse discurso oficial da superação do atraso e,
consequentemente, a imagem atribuída ao Espírito Santo, analisamos diferentes documentos produzidos
pelos órgãos do governo do Espírito Santo nas décadas de 1960 e 1970. Os documentos aqui citados
foram: ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória, 1966.; ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR,
1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para o desenvolvimento. s.l., 1969.; BANDES. Aspectos
fundamentais da política econômica do Espírito Santo. Vitória, ES: MEC, 1971.; ESPIRITO SANTO
(ESTADO). Governador, 1967/1971 (Dias Lopes). Desafio e resposta: desenvolvimento do Estado do Espírito
70
Esse conjunto de informações acerca dos problemas do Espírito Santo definiu seu lugar em
relação aos estados considerados à época como desenvolvidos economicamente. Sua posição
foi definida por meio da lógica inserção-marginalização. O diagnóstico de 1966 apontava “os
meios para corrigir a relativa marginalização a que o Estado se viu colocado, diante do principal
centro dinâmico do país, em cuja área geoeconômica ele se situa.”137 O objetivo, portanto, era
traçado em função dessa necessidade de agregar o Espírito Santo a outras economias estaduais
consideradas mais dinâmicas por meio de atividades econômicas que
O Espírito Santo passou a ser entendido como “área atrasada, ou de fraco dinamismo” que
melhoraria “sua posição relativa” se conseguisse ter suas atividades incorporadas “a setores de
elevado dinamismo.”139 O desenvolvimento foi orientado dentro da perspectiva da superação
de uma marginalização em relação à centralidade de outros Estados. Segundo o documento
Diagnóstico para planejamento econômico do Estado do Espírito Santo:
138
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 4. A preocupação com a integração do Estado
associava-se à busca por superar entraves que prejudicavam o potencial local: “A paralisação total ou a enervante
lentidão das obras da BR-101 e BR-262 representavam, ao assumirmos o Governo, um dado importante de nossas
dificuldades. A primeira dela tem o destino de abrir o Espírito Santo aos mercados em crescimento do Nordeste,
para onde poderão ser exportados, em condições competitivas, nossos produtos agrícolas, que não conseguem
disputar os mercados do sul.[...] Em 'Estudo Preliminar de Polarização da Rede Urbana Brasileira', do Ministério
do Planejamento, a ação integradora da BR-101 e da BR-116 foi apontada como um dos fatores de polarização do
Rio de Janeiro sobre a macrorregião de sua influência, na qual se inserem os sub-centros de Campos, Vitória, Juiz
de Fora, Governador Valadares e Teófilo Otoni. Na medida, pese em que a importante rodovia (BR-101)
continuasse parada na fronteira com a Bahia, depois de já ter feito a ligação asfáltica de Vitória com o Rio de
Janeiro, menores se tornaram as perspectivas de fortalecimento da micro área de Vitória, para atenuar nossa
dependência em relação do Rio de Janeiro.[...] Da mesma forma, a paralisação da BR-262 contribuía para o
estrangulamento de nossas possibilidades, porque distanciava nosso Porto das extraordinárias perspectivas que
seu ‘hinterland’ oferece, sem falar na sua significação para o desenvolvimento do turismo no Estado.” ESPIRITO
SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para o
desenvolvimento. s.l., 1969. p. 21.
139
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 3.
140
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 152.
72
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, o valor da renda gerada pela Indústria já ultrapassa,
largamente, o da Agricultura. Do ponto de vista da evolução industrial acham-se, pois,
esses Estados à frente do conjunto do País onde a produção agrícola supera à
industrial. [...] O importante é que, mesmo relativamente à Minas Gerais, o Espírito
Santo apresenta-se como altamente agrícola.[...] A conclusão final de nossa análise é
de que o Espírito Santo, sem poder ser classificado entre os Estados subdesenvolvidos
do Brasil, acha-se, todavia, em situação desvantajosa dentro da área tida como
desenvolvida. Colocando a questão de forma ligeiramente diferente poderíamos dizer
que, sem ser subdesenvolvido na escala nacional, nosso Estado deveria receber essa
classificação se levasse em conta a região situada da Bahia para o Sul. Trata-se,
portanto, de uma unidade da federação que não participa suficientemente do impulso
dinâmico do Centro Sul.” 143
141
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 7.
142
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 193.
143
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 9.
144
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 8.
145
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 223.
73
Nesse contexto, de acordo com Rocha e Morandi, a industrialização como caminho no Espírito
Santo passou pela ação do Estado que ganhou um papel preponderante na condução desse
processo.148A elite política espiritossantense traçou estratégias de negociação para viabilizar os
interesses do grande capital. Alinhando-se à política de desenvolvimento do Governo Federal
os dirigentes locais entendiam que essa correspondência com os objetivos da política nacional
possibilitaria a almejada inserção econômica do Espírito Santo no contexto econômico
brasileiro, por meio da viabilização dos investimentos privados estrangeiros direcionados para
o Estado. O que, por sua vez, foi concretizado ao longo da década de 1970 com a implantação
dos Grandes Projetos Industriais.149
146
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1990. p. 19-21.
147
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p. 319.
148
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI. Ângela Maria. Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no
Espírito Santo. 2.ed. Vitória: Espírito Santo em Ação. 2012. p. 67.
149
LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios
Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História.
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006. p. 39-40.
74
A condição de atraso do Espírito Santo foi associada, sobretudo, à crise da economia cafeeira.
Ao propor a confluência de interesses entre as elites locais e o governo militar no que tange o
desenvolvimento econômico, Ueber Oliveira argumenta que a industrialização foi possível a
partir do colapso da estrutura agrária local com a crise do café. 151 Segundo o documento
Aspectos fundamentais da política econômica do Espírito Santo, de 1971:
150
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 18. A industrialização consolidar-se-ia em detrimento dos considerados setores
tradicionais da economia espiritossantense. É o que evidencia o documento de 1966: "Não há, enfim, nenhuma
possibilidade de vir o Espírito Santo, nos próximos anos, intensificar o seu desenvolvimento baseado em seus
produtos tradicionais, sujeitos às flutuações permanentes da sua procura e de seus preços. Mesmo porque, sendo
o Estado de base predominantemente agrícola e com as perspectivas pouco animadoras de seus produtos
tradicionais, nestes não poderá fazer repousar uma política de desenvolvimento de sua economia." ESPIRITO
SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento econômico do
Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 96.
151
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p.151-155.
152
BANDES. Aspectos fundamentais da política econômica do Espírito Santo. Vitória, ES: MEC, 1971. p. 24.
153
DARÉ, Raquel. A “crise” do café e a ideologia desenvolvimentista no Espírito Santo. 2010. 203f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade federal do
Espírito Santo, Vitória, 2010. A autora analisa a produção e a circulação da ideia de crise da economia cafeeira na
década de 1960 no Espírito Santo. Segundo ela, o discurso sobre a crise do café foi basilar na ideologia
desenvolvimentista das décadas de 1960 e 1970 no Estado. No estudo, Raquel Daré amplia sua abordagem para
os estudos acadêmicos sobre a economia do Espírito Santo que, em fins da década de 1970 até meados de 1980,
colaboraram com a circulação da ideia de crise e que, segundo ela, deram um estatuto de verdade à ideia de crise
cafeeira.
154
Ibid., p. 45-60.
75
para a consolidação desse projeto de Espírito Santo. Nesse sentido, a implantação da política
desenvolvimentista, segundo Rocha e Morandi:
apontava o setor industrial como o único capaz de soerguer a economia capixaba, com
destaque para siderurgia, atividades florestais, indústrias produtoras de insumos
básicos para a construção civil, indústria de café solúvel, além de frigoríficos; por
outro lado, concluiu que o livre jogo das forças de mercado não seria suficiente para
provocar a recuperação. A ação do Estado teria um papel primordial, principalmente
com a criação de um mercado de capitais “cativo”, ou seja, do sistema de incentivos
fiscais.155
De acordo com os autores, foi criada uma frente de ação pelo Governo estadual e seus órgãos
para “transformar o Espírito Santo em uma região merecedora dos tão almejados incentivos
fiscais.”156 Seguindo essa estratégia política, o Governo estadual criou as condições
infraestruturais e passou a “vender” a imagem do Espírito Santo, em busca da atração desses
investimentos.157Os "diagnósticos do atraso" dividiram espaço com os "prognósticos da
superação". Analisando os documentos, identificamos que a construção da imagem do atraso
foi associada à representação do Espírito Santo em vias de superação do atraso.158
155
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI. Ângela Maria. Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no
Espírito Santo. 2.ed. Vitória: Espírito Santo em Ação. 2012. p. 67.
156
Ibid., p. 68.
157
LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios
Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História.
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006. p. 43-44 . A autora ressalta o discurso de posse do governador Arthur Gerhardt no qual o governador
enfatizava: "[...] a necessidade de se montar um esquema de atração de investimentos. Fizemos isto, utilizando
como 'capital inicial' o Porto de Vitória e a Companhia Vale do Rio Doce. Logo após a minha posse, em conversa
com o então Ministro Delfim Neto, reforcei ainda mais a minha posição com referência aos investimentos externos,
quando definimos que o Espírito Santo só poderia ter um processo de demarragem econômica, com a realização
de um projeto de igual ou maior envergadura que a Companhia Vale do Rio Doce. Isto porque ela ficava isolada
no panorama econômico do estado e seu efeito multiplicador era, portanto, insuficiente para dinamizar a economia
nos níveis desejados. [...] Conseguimos, assim, trazer recursos de fora, não só no setor privado, mas também no
público, viabilizando a filosofia administrativa que pretendíamos imprimir a este período de governo. Para termos
investimentos maciços, precisamos mostrar que aqui se estava e está operando um trabalho sério. Conquistamos,
desse modo, a confiança do Governo Federal. [...] Como consequência desta participação, diversos foram os
programas estaduais que puderam ser executados em várias áreas: primeiro, na área agrícola, seguida das áreas de
energia, siderurgia, telecomunicações, água, saneamento, entre outras.” SANTOS, Arthur Carlos Gerhardt. As
reivindicações se tornaram realidade. In: BANDES. As etapas do processo histórico de desenvolvimento
socioeconômico do Espírito Santo. Vitória, 1975 apud LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização
autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz
Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História. Programa de Pós-Graduação em História Social
das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2006. p. 44.
158
Assim encontramos a estratégia política no documento de 1969: "Aos primeiros contatos que mantivemos, em
razão da nossa eleição para Governador, para tratar com órgãos da administração federal, de problemas do Estado,
verificamos que em áreas importantes de vários desses órgãos, havia um desconhecimento inexplicável e
injustificável sobre o Espírito Santo. O que dificultava extremamente as conversações e a apresentação dos
problemas do Estado. [...] Talvez, ainda, pudesse que o Espírito Santo sempre fosse muito modesto no querer:
pedir em lugar de reclamar." ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um
Estado em marcha para o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 13-14.
76
Esse esforço, estamos convencidos, poderá criar por certo condições para o
desenvolvimento, mas não conseguirá, senão muito fracamente, motivar o
empresariado a investir no Espírito Santo, achatado economicamente entre o poderoso
complexo industrial ao Sul e a política de incentivos da SUDENE, ao Norte. Entre
investir no Espírito Santo correndo o risco da competição com o complexo industrial
do eixo Rio-São Paulo, já senhor dos mercados e a tranquilidade de investir no
Nordeste, em seu nome, o que teria de pagar ao Governo Federal como imposto sobre
a renda, não há empresário que vacile quanto a segunda alternativa. [...] Diante desta
realidade, convenceu-se o Governo Estadual que deveria lutar para que o Governo
Central, considerando as especialíssimas peculiaridades de nossa crise, instituísse um
sistema de incentivos para os investimentos em território capixaba. [...] Esta tem sido
a batalha mais difícil [...]. Mesmo assim, continuamos trabalhando e confiando. Pois
esta será a chave de nossa grande oportunidade.”161
De acordo com Gabriel Bittencourt, tornou-se praticamente uma espécie de slogan local à ideia
de que o Estado seria um “Nordeste sem Sudene”. Ela tornou-se argumento da elite política
espiritossantense em sua estratégia de sensibilização do Governo Federal afim de que o Espírito
Santo fosse beneficiado com a política federal de distorções regionais a partir da criação de
pólos industriais nessas regiões consideradas atrasadas162 e compreendidas como sem
condições de impulsionar seu desenvolvimento de forma autônoma.163A estratégia em
159
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI. Ângela Maria. Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no
Espírito Santo. 2.ed. Vitória: Espírito Santo em Ação. 2012. p. 57.
160
Ibid., p. 57-58.
161
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 44.
162
BITTENCOURT, Gabriel. A formação econômica do Espírito Santo: do engenho às grandes indústrias (1535-
1980). Vitória: DEC, 1987. p. 205.
163
A industrialização como via de superação do atraso surgia com a necessidade de investimentos para além da
insuficiente esfera estadual: "A concessão da prioridade à Indústria resulta do fato de que somente se o Espírito
Santo for bem-sucedido nesse setor dinâmico, poderá dar partida num surto rápido e duradouro de
desenvolvimento, do tipo registrado hoje na Bahia. Cumpre, porém, reconhecer que a maioria dos investimentos
reclamados para o atingimento dessa meta escapa à capacidade do Governo Estadual." ESPIRITO SANTO
(ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento econômico do Estado do
Espírito Santo. Vitória,1966. p. 215; Reconhecia-se a necessidade de intervenção da esfera federal: "A conclusão
77
imediata, resultante do simples exame das aplicações federais e estaduais, é de que o Governo Federal, em todos
os setores, tem um peso bastante superior ao do Estado. A possibilidade desse último influenciar, por si só, o
desenvolvimento da sua área revela-se, portanto, relativamente pequena." ESPIRITO SANTO (ESTADO).
Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento econômico do Estado do Espírito Santo.
Vitória,1966. p. 198. O documento de 1971 também apresentava o diagnóstico de um Estado sem capacidade de
investimento: “O que se observa, portanto, é que o Governo do Estado não tem conseguido gerar internamente
recursos adicionais para incrementar investimentos, restando uma taxa de 2,0% que teria sido o seu esforço
orçamentário próprio no período 1965/1968. [...] Em alguns anos as despesas excedem em muito as receitas, daí
se originando fortes saldos negativos. [...] Em suma, o que se conclui, é que a geração de poupanças orçamentárias
para investimento no Estado do Espírito Santo tem sido escassa, o que tende a levar a uma situação de dependências
de recursos transferidos da União ou de endividamento mediante operações de crédito para financiar suas obras de
investimento.” BANDES. Aspectos fundamentais da política econômica do Espírito Santo. Vitória,
ES: MEC, 1971.
164
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 165.
165
ORLANDI, Eni P. Discurso Fundador: a formação do país e a identidade nacional. Campinas: Pontes,
1993. p. 18-21.
166
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI. Ângela Maria. Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no
Espírito Santo. 2.ed. Vitória: Espírito Santo em Ação. 2012. p. 114.
167
Ibid., p. 136-142.
78
afirmei aos meus coestaduanos que minha administração seria marcada pelo sentido
da mudança, mudanças nos métodos de trabalho, mudança nas atitudes frente aos
problemas do Estado; mudança no comportamento diante das nossas potencialidades
adormecidas, mudança na perspectiva de desenvolvimento de nosso Estado. [...] Em
torno dessa obra – realizada por uma equipe de abnegados, idealistas e quase
visionários – prevalece o julgamento de todo um povo, de toda uma gente que hoje
acredita porque aprendeu a acreditar, que hoje vibra porque aprendeu a vibrar, que
hoje realiza porque inauguramos a hora de realizar, que hoje cultiva a grandiosidade
do futuro porque sente a grandeza do presente.168
A década de 1970 inaugurou os Grandes Projetos que foram apresentados como prognósticos
da superação do atraso. Segundo o documento Aspectos fundamentais da política econômica
do Espírito Santo, em 1971:
Pelo menos para o setor industrial pode-se dizer que as expectativas são otimistas. [...]
O panorama seria totalmente modificado se os grandes projetos industriais ligados à
siderurgia e celulose, o que se convencionou chamar de ‘enclave’ da economia
capixaba, forem efetivamente implantados. Se as gestões em torno desses projetos
forem aceleradas a entrada em operação dos mesmos seria feita por volta de 1974 e
1975. Esses projetos tem um prazo de maturação longo, de modo que os efeitos de
168
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967/1971 (Dias Lopes). Desafio e resposta: desenvolvimento
do Estado do Espírito Santo, 1967/1970. Rio de Janeiro: Artenova, 1971. p. 4.
169
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967/1971 (Dias Lopes). Desafio e resposta: desenvolvimento
do Estado do Espírito Santo, 1967/1970. Rio de Janeiro: Artenova, 1971. p. 10-11.
79
seus investimentos sobre a economia só seriam sentidos no final do período que aqui
se analisa, ou seja, 1971/1975.170
A elaboração de uma imagem de Espírito Santo em vias de superação do atraso passou a ser
construída a partir das expectativas de consolidação dos grandes empreendimentos industriais.
Analisando o documento Diagnósticos e perspectivas da economia do Espírito Santo, de 1975,
elaborado pelo Governo Élcio Álvares, identificamos precisamente a definição dos marcos de
mudança acerca dos diagnósticos e prognósticos de Espírito Santo.171A imagem elaborada em
torno do processo de industrialização em curso definia a transição de um Espírito Santo da
marginalização para uma nova condição:
O que o documento apresentava como o “advento dos Grandes Projetos” modificava o status
do Estado:
A implantação dos chamados 'Grandes Projetos' consolida uma evolução que vem
desde a década passada, evolução esta representada, sobretudo, pelo desenvolvimento
extraordinário das atividades de exportação do minério de ferro e de produtos
siderúrgicos pelo complexo portuário Vitória/Tubarão. O crescimento dessas
atividades ensejou a construção de moderna infraestrutura econômica em torno da
Grande Vitória (modernização portuária, telecomunicações e ligações energéticas
com FURNAS), o que, aliado aos investimentos Federais em transportes nos últimos
anos (duplicação ferrovia Vitória-Minas, construção das rodovias BR-262 e BR-101)
170
BANDES. Aspectos fundamentais da política econômica do Espírito Santo. Vitória, ES: MEC, 1971. p. 61-
62.
171
Sobre o propósito do documento: “O presente diagnóstico tem por objetivo revelar a natureza e a eficácia do
desempenho econômico recente, assim como a base de recursos produtivos sobre a qual se assentou esse
desempenho. Delineados os antecedentes históricos, segue-se uma apreciação realista das perspectivas que o futuro
parece reservar à economia do Espírito Santo. Forma-se assim um quadro de referência para a formulação de
políticas econômicas apropriadas à consecução dos objetivos de desenvolvimento do Governo do Estado.”
ESPIRITO SANTO (ESTADO)/SECRETARIA DE PLANEJAMENTO. Diagnóstico e perspectiva da
economia do Espírito Santo. Vitória, 1975. p. 6.
172
Ibid., p. 5.
173
ESPIRITO SANTO (ESTADO)/SECRETARIA DE PLANEJAMENTO. Diagnóstico e perspectiva da
economia do Espírito Santo. Vitória, 1975. p. 6.
80
tem permitido ao Estado fazer valer suas excelentes condições locacionais sobretudo
para os projetos que se voltam para o mercado externo. 174
174
ESPIRITO SANTO (ESTADO)/SECRETARIA DE PLANEJAMENTO. Diagnóstico e perspectiva da
economia do Espírito Santo. Vitória, 1975. p. 58.; O documento avaliou os dados relativos às expectativas de
investimento de capital no Estado: "“não se levando em conta os efeitos dos Grandes Projetos, as projeções
realizadas não podem ser consideradas otimistas.[...] Seria mais lícito que o Estado viesse a ser atingido pela
recessão relativa que hoje afeta o país, demonstrando um desempenho menos satisfatório da sua economia.” Ibid.,
p. 73.; Assim, o documento ressaltava o impacto das mudanças no Espírito Santo, demonstrando, “a magnitude
dos investimentos anuais realizados no Espírito Santo no passado recente 1969-1974.” Ibid., p. 73.
175
Ibid., p. 73.
176
ESPIRITO SANTO (ESTADO)/SECRETARIA DE PLANEJAMENTO. Diagnóstico e perspectiva da
economia do Espírito Santo. Vitória, 1975. p. 75.
81
Já temos dito algumas vezes e cabe repetir nessa análise dos componentes da crise,
que o Espírito Santo, numa como que condenação bíblica, tem sido colocado a
margem das grandes oportunidades que, no curso da história econômica do Brasil,
tem bafejado outras regiões.
De fato, quem quer que investigue a História, há de verificar que o nosso Estado não
participou dos ciclos econômicos que assinalaram os períodos de crescimento desse
País. Um conluio de fatores e de circunstâncias, impuseram-nos esse lamentável rol
de oportunidades perdidas. Não se pode atribuir, a esses fatores e essas circunstâncias,
invariavelmente, as mesmas origens e a mesma natureza. Se, em certo instante,
resultaram da condição de meio agreste e, em outros momentos decorreram de
177
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 151-152.
82
178
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 14-15.
179
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 15-16.
83
180
GEHARDT SANTOS, A.C. As reivindicações se tornam realidade. In: ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. As
etapas do processo histórico de desenvolvimento sócio-histórico do Espírito Santo. Vitória: [s.n.], 1975. p.
17.Levamos em consideração, que foi em seu governo que viabilizou-se a segunda edição da obra de José Teixeira
de Oliveira, revista e ampliada até 1975.
181
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006. p. 15-33.
182
Ibid., p. 36-37.
84
Recorremos ao próprio saber histórico produzido acerca do Espírito Santo para avaliarmos a
partir de quê e como se orientou a interpretação do passado nesse contexto. Afinal, a narrativa
histórica é um procedimento interpretativo. Segundo Rüsen:
[...] o pensamento histórico, em todas as suas formas e versões, está condicionado por
um determinado procedimento mental de o homem interpretar a si mesmo e a seu
mundo: a narrativa de uma história. Narrar é uma prática cultural de interpretação do
tempo, antropologicamente universal. A plenitude do passado cujo tornar-se presente
se deve a uma atividade intelectual a que chamamos de ‘história’ pode ser
caracterizada, categoricamente, como narrativa. A ‘história’ como passado tornado
presente assume, por princípio, a forma de uma narrativa. O pensamento histórico
obedece, pois, igualmente por princípio, à lógica da narrativa. 183
Desse modo, buscamos compreender a partir das próprias narrativas a relação entre a escrita da
história e as questões de seu tempo. Para isso, analisamos como os próprios autores avaliaram
o período contemporâneo do Estado, sua época, qual a percepção sobre o momento vivido e
suas expectativas, capazes de evidenciar a lógica interpretativa e o sentido atribuído ao passado
que constituíram o que estamos denominando de narrativa histórica da superação do atraso.
No que tange a cronologia, a estrutura narrativa das obras História do Estado do Espírito Santo,
História do Espírito Santo e O Espírito Santo é assim é caracterizada por uma divisão temporal
correspondente à narrativa tradicional.184 Por isso, partem da expansão marítimo-comercial
portuguesa até o período contemporâneo das obras, entre as décadas de 1960 e 1970. Ainda que
os capítulos sigam a ordem cronológica da sequência temporal dos acontecimentos, os três
grandes períodos, o colonial, o imperial e o republicano aparecem bem definidos, ainda que
divididos por subitens que, por sua vez, não abandonaram a cronologia.
183
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001.p. 64.
184
Segue a linearidade dos acontecimentos históricos. Segundo Rüsen, chamada história narrativa (tradicional) é
aquela na qual o sentido da história surge no formato de narrativa a partir da sequência temporal da descrição dos
fatos pelo historiador.RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento
histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 80-82.
185
Cabe diferenciarmos a obra de Maria Stella de Novaes em relação aos outros autores. Maria Stella não traça
uma caracterização do Espírito Santo pós 1960, ainda que sua publicação corresponda a essa década. A autora
evidencia os mesmos momentos que os demais autores, inclusive a década de 1950, porém, apenas indica o
contexto de mudanças e as expectativas de futuro acerca do Espírito Santo.
85
do regime republicano até a década de 1960 e um outro momento a partir desta década.186 Os
autores não criam nenhuma contradição entre eles, porém, definem dois marcos temporais bem
definidos. As obras nos apresentam uma narrativa da marcha progressiva do Estado para
alcançar um novo patamar de desenvolvimento: processo que se inicia com as possibilidades e
realizações trazidas com os novos governos do período republicano, interpretado como
conquistas que orientavam o Espírito Santo no caminho do progresso, mas que apenas realizar-
se-ia com a política de industrialização.
José Teixeira ressaltou que a experiência republicana foi de mudanças no Espírito Santo:
Essa característica identificada pelo autor, é observada em Maria Stella de Novaes como sendo
a entrada do Estado em um "novo ciclo de progresso"188 e, ao abordar o ano de 1894, a autora
evidenciava que "o Espírito Santo reanimava-se", revelando seu "cabedal de riquezas e vida
própria", por exemplo, contando com "um orçamento cinco vezes maior que o da antiga
Província."189 É nesse sentido, também, que Neida Lúcia de Moraes interpreta a condição local
em termos de desenvolvimento no início do século XX:
186
Ainda que os autores tragam para narrativa marcos políticos-temporais como 1930 e a redemocratização no
início de 1950, como referências de tempo em relação à trajetória de desenvolvimento do Espírito Santo prevaleceu
essa divisão.
187
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p.407.
188
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
317.
189
Ibid., p. 332.
190
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 45.
86
Teixeira, Maria Stella e Neida Lúcia valorizaram em suas narrativas o que chamaram de
conquistas do Espírito Santo, por meio da narração sequencial dos símbolos de
desenvolvimento e modernização que caracterizaram o Estado, principalmente, por meio das
realizações governamentais.191Destacaram a construção de estradas, bondes, automóveis, a
ampliação da estrutura administrativa192 e, principalmente, enfatizaram o desenvolvimento
local por meio dos seguintes aspectos: a construção das estradas de ferro, a modernização da
capital Vitória, vista como símbolo de um novo tempo vivenciado pelo Estado e o esforço,
ainda que incipiente, por uma industrialização local.193
Por exemplo, Neida Lúcia de Moraes, novamente, compara a mudança com a fase anterior do
desenvolvimento do Espírito Santo:
191
O capítulo 3 apresenta uma análise acerca da imagem dos governadores elaborada nas obras.
192
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 44-49.; OLIVEIRA,
José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p.
416-426.; NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo,
1964. p. 332-423.
193
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 44.; OLIVEIRA,
José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p.
415-416.; NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo,
1964. p. 331.
194
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 46.; José Teixeira
assim apresenta: “Vitória transformou-se em cidade moderna, dotada que foi dos serviços de água, esgotos, luz e
bondes elétricos.35 Rasgaram-se novas ruas. Surgiram a Vila Moscoso e seu belíssimo parque. Os principais
edifícios públicos foram reconstruídos, inclusive o antigo Colégio dos jesuítas – que sofreu remodelação completa,
graças a qual o velho casarão se transformou no atual e majestoso Palácio Anchieta.” OLIVEIRA, José Teixeira
de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p.420.
195
NOVAES, Maria Stella, op. cit., p. 371-375.; OLIVEIRA, José Teixeira, op. cit., p. 419-420.
87
que só mais tarde, coma Eclosão da I Grande Guerra, foi encarada nos seus devidos
termos.196
A representação de Espírito Santo passou a ser identificada pelo salto a um novo patamar jamais
experimentado pelo Espírito Santo. Para Neida Lúcia de Moraes e José Teixeira de Oliveira,
configurava-se um momento de expectativas em torno do futuro do Estado. A autora,
apropriando-se do discurso da propaganda militar exalta: "Temos pressa. Ninguém segura o
Brasil. E nem tampouco o Espírito Santo."197 Já José Teixeira, após intitular o capítulo sobre o
período contemporâneo de "Arrancada para o futuro" argumenta que o Estado partia "para
novos destinos", então, caberia "ensaiar um escorço do momento empolgante que vive o Estado
do Espírito Santo. Empolgante e decisivo para o destino de sua gente. "198
196
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 108.
197
Ibid., p. 49.
198
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 445.
199
Neida Lúcia, por exemplo, se apropria do mesmo discurso presente no documento: "ESPIRITO SANTO
(ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para o desenvolvimento.
s.l., 1969." Sobre o Espírito Santo ser um "Estado Ilhado": “Com uma economia preponderantemente embasada
nos resultados da agricultura, como ficou claro atrás, no principio deste capítulo e no panorama desenvolvido da
História do Espírito Santo, não conseguiu o Estado acompanhar, sequer de longe, o desenvolvimento industrial do
eixo Rio – Rio São Paulo, registrado nos últimos quinquênios. E porque constituiu lei universal e irreversível que
as áreas economicamente desenvolvidas exercem considerável poder de absorção sobre as subdesenvolvidas que
lhes são tributárias, um dado a mais passou a atuar em nosso processo de empobrecimento, seja através da atração
de fatores econômicos, como mão de obra especializada, seja através da imobilização da dinâmica econômica de
88
industrialização como o marco de transição para um "novo tempo". Segundo Neida Lúcia, ao
tratar da segunda metade da década de 1960:
Essa "nova fase" também é caracterizada por José Teixeira de Oliveira que, comentando essa
busca por incentivos fiscais, a interpretou como um momento diferenciado:
O apelo foi ouvido com carinho, o governo federal estendeu a mão num gesto de
solidariedade irrecusável e a velha província iniciou a arrancada para o futuro. As
potencialidades da terra e da gente revelaram-se a si mesmas e ao Brasil. Uma
extraordinária e oportuna mobilização de circunstâncias favoráveis se pôs em sintonia
com o esforço e o anseio de toda uma comunidade sedenta de progresso, de
desenvolvimento, de integração na vida universal. 201
retraimento do empresário local, sem possibilidade de competir no mercado dominado pelo complexo industrial
altamente desenvolvido, seja pela hibernação de potencialidades econômicas, conhecidas e proclamadas, mas em
favor das quais não atuaria a dinâmica dos investimentos voluntários, contingenciada pelos fatores antes
alinhados.” MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p.193-194.;
José Teixeira de Oliveira recorre a esses documentos como fonte de pesquisa sobre a realidade contemporânea do
Espírito Santo. OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural
do Espírito Santo, 1975. p. 453-460; José Teixeira de Oliveira destaca a crise do café e o caminho do Espírito
Santo para superá-la: "Intensa campanha – respaldada por levantamentos técnicos das virtualidades de
posicionamento e dos recursos naturais da terra – visando atrair investimentos nacionais e externos para a
concretização de projetos industriais e agropecuários e mais o apoio que o governo federal vem prestando à
Administração local produziram seus primeiros resultados. O Estado conseguiu superar a crise a que o levara a
erradicação de 220 milhões de pés de café (1966-68), o que importou no deslocamento de cerca de 30.000 famílias,
ou sejam 180.000 pessoas, das quais 30.000 emigraram para outros Estados, 20.000 se marginalizaram como
subempregados no meio rural e 10.000 no urbano. E assim, a par do trabalho de aliciamento de recursos para a
implantação dos audaciosos projetos oferecidos aos investidores nacionais e alienígenas, o governo cuidou de
modernizar a máquina administrativa do Estado, aparelhando-a para os novos tempos." OLIVEIRA, José Teixeira
de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 453.Segundo
Neida Lúcia, foi preciso superar a marginalização e injustiças da política de incentivos: "O processo se agravou
ainda extremamente quando o Governo Federal definiu as regiões subdesenvolvidas do País para efeito da
implantação das políticas de incentivos fiscais, buscando equilibrar os desequilíbrios regionais no crescimento
econômico do Brasil. Por volta de 1960, segundo a Fundação Getúlio Vargas, foi encontrada, para o Espírito Santo,
uma renda per capita de Cr$ 17, 30, enquanto para o Nordeste foi de Cr$ 13, 50. Deve ter isto influído para que o
limite do subdesenvolvimento regional do País fosse traçado justamente por onde passa a linha divisória entre o
Espírito Santo e a Bahia. E o nosso Estado ficou fora da SUDENE. [...] Ficamos, então, economicamente ilhados
e, pior do que isso, economicamente achatados, porque não participamos do impulso econômico do Centro-Sul e
não nos beneficiamos da política de incentivos endereçada ao Norte e Nordeste." MORAES, Neida Lúcia Borges.
O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 194.
200
Ibid., p. 117.
201
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 452.
89
solução que o mundo atual impõe, sem alternativa, para os complexos problemas
trazidos pela explosão demográfica universal e de consequências imediatas nos países
em desenvolvimento, cujos povos exigem de seus administradores participação em
todos os benefícios da civilização, do conforto, do progresso.202
Era esse o destino do Espírito Santo, de acordo com o autor. Nessa perspectiva, argumentou,
ainda, que a "eloquência da realidade" poderia ser observada nos novos dados econômicos de
investimentos no Espírito Santo, o que evidenciava "a marcha ascensional do Estado do Espírito
Santo no contexto da vida brasileira."203
As expectativas em torno do Espírito Santo definiam, portanto, esse momento como ímpar na
história do Estado e alinhavam a narrativa histórica com o discurso político da superação do
atraso. Diante disso, trazemos o seguinte questionamento: Se a experiência republicana foi
interpretada pelo paradigma do desenvolvimento progressivo do Estado orientado pela
perspectiva da superação do atraso, como se caracterizou a narrativa histórica do Espírito Santo
em sua origem e trajetória, tal como estruturadas nas obras?
202
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 460.
203
Ibid., p. 452.
204
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
437.
205
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 199.
90
Os que leram as páginas precedentes recordam, por certo, das constantes objurgatórias
de observadores e governantes da terra capixaba, no sentido de que as dificuldades de
fixação do homem ao solo eram quase sobre-humanas e praticamente nenhum o
interesse pelo progresso, pela melhoria das condições de vida da população. Inácio
João Mongeardino – capitão-mor façanhudo, que deixou descendência de prol – legou
depoimento contundente: “A terra é capaz de toda a produção, fazendo-a, mas os seus
habitantes frouxos e nada ferrados ao interesse. Os seus sertões dilatados e de muitos
haveres, mas cultivados três léguas de fundo à frente deles, distância a que só chegam
os lavradores com receio das hostilidades do gentio bárbaro”. Vencer tantas
adversidades foi o objetivo de várias gerações espiritossantenses. [...] Hoje, quando o
Estado parte, consciente, para nova etapa de progresso, bom seria que as novas
gerações meditassem sobre os sacrifícios que custaram aos antepassados o legado de
que são responsáveis.206
Prosperidade, futuro promissor, progresso orientaram a leitura do passado. Diante dessa relação
estabelecida pelos autores, podemos refletir sobre o sentido atribuído ao passado do Espírito
Santo nessas narrativas que buscaram explicar o progresso que caracterizava o presente.
206
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 445.
207
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006. p. 15-33.
208
Sobre as categorias: “São categorias do conhecimento capazes de fundamentar a possibilidade de uma história.
Em outras palavras: todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das
pessoas que atuam ou que sofrem.” Ibid., p. 306. Sobre essa relação entre passado e expectativas de futuro,
argumenta Rüsen: “[...] a história, como realidade, constitui-se nos processos do agir intencional com os quais os
homens superam as condições e circunstâncias de sua vida prática, a fim de realizar, na prática, a transformação
do tempo natural em tempo humano. Esses processos só podem ser pensados como conteúdo de algo já acontecido,
ou seja, do agir passado.” RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.p. 84.
209
KOSELLECK, op. cit., p. 308. Experiência para ele “é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram
incorporados e podem ser lembrados.” A expectativa, por sua vez, “se realiza no hoje, é futuro presente.” Para
Koselleck: “ [...] passado e futuro jamais chegam a coincidir, assim como uma expectativa jamais pode ser
deduzida totalmente da experiência. Uma experiência, uma vez feita, está completa na medida em que suas causas
são passadas, ao passo que a experiência futura, antecipada como expectativa, se decompõe em uma infinidade de
momentos temporais”. Ibid., p.310.
91
210
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006. p. 194-195.
211
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001. p. 57.
212
Ibid., p. 59.
213
Ibid., p. 61.
214
Ibid., p. 63-64.
92
Orientada por essa perspectiva, a narrativa histórica estabeleceu um sentido para o passado
local. Assim, entendemos, de acordo com Rüsen, que a importância da narrativa histórica deve
ser observada por ela ser uma constituição de sentido sobre a experiência do tempo.215 Para ele,
o sentido é "dado pelo modo como a narrativa histórica mobiliza a memória da evolução
temporal do homem e de seu mundo no passado. Isso permite que as mudanças temporais
experimentadas no presente ganhem sentido.”216 Para tal compreensão, consideramos, também,
que os critérios de sentido “governam a reconstrução histórica”, “determinam a lógica de
interpretação” do passado, bem como as formas de constituição de uma representação e as
possibilidades de entender o passado como algo relevante e importante para uma cultura no
presente.217 Esta operação está associada também às normas e valores de uma sociedade
[...] os fatos do passado obtidos pela pesquisa empírica somente se articulam para
formar o constructo significativo de uma história, isto é, o conhecimento histórico só
é possível se e quando se atribuiu aos fatos um significado para a orientação na vida
prática no tempo presente; sem o recurso a normas e valores, isso é totalmente
impossível.”218
Para este autor, os critérios de sentido, portanto, são definidos de acordo com os desafios de
cada tempo ou cultura, e, assim, diante dessas questões conseguimos compreender como
surgem ou entram em uso determinados critérios de sentido da história, como a perspectiva de
progresso presente no discurso da superação do atraso.219
Os autores adotaram uma narrativa histórica preocupada com a "formação" do Espírito Santo,
estruturando a narrativa a partir de sua origem e trajetória, como uma retrospectiva. Com isso,
instituíram um modelo explicativo acerca da história local. A partir da lógica de interpretação
atraso/progresso ou atraso/desenvolvimento, as obras aqui analisadas narraram o passado
215
De acordo com Rüsen, a capacidade de convencimento que uma história possui “depende do princípio
unificador, do critério de sentido (ou de um conjunto de critérios) adotado pela narrativa histórica ou a que ela
recorre, quando media a experiência do tempo passado com a experiência do tempo futuro na unidade de uma
história, de modo tal que seus destinatários se valham dela para se orientar no fluxo temporal de suas vidas práticas,
ou seja, para que se auto afirmem e valorizem.” RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos
da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. p. 90.
216
Ibid., p. 64.
217
RÜSEN, Jörn. Historiografia comparativa intercultural. In: MALERBA, Jurandir (org.). A História Escrita:
teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 119.
218
RÜSEN, Jörn, op. cit., p. 113.
219
Ibid., p. 125.
93
espiritossantense tendo como critério de sentido o progresso, que definiu o que denominamos
de narrativa do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo.
A seguir, veremos como se constituiu um roteiro da história do Espírito Santo, a partir do qual
acontecimentos, períodos, circunstâncias e personagens ganharam diferentes valores e lugares
no passado local.
A análise das obras nos revela que os autores, ao seguirem uma perspectiva temporal linear da
história com o objetivo de narrar a trajetória do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo,
elaboraram uma hierarquia para os diferentes períodos históricos, o que nos possibilitou
compreender a forma como constituíram um conjunto de ideias e imagens associadas à noção
de atraso e sua superação. Luiz Cláudio M. Ribeiro221, ao analisar o governo do Espírito Santo
em seu primeiro século, evidencia uma inquietação em relação a uma imagem imprecisa
elaborada pela historiografia. Segundo ele, a interpretação acerca do papel da capitania no
cenário do início da Era Moderna deve ser questionada, uma vez que a interpretação que
prevalece carrega uma concepção negativa (e limitada) das origens do Espírito Santo. Enaile
Carvalho indica a existência de uma tradição historiográfica local que afirma existir
prosperidade econômica no Espírito Santo apenas em eventos como a cultura cafeeira, após
1850, ou ainda nos grandes projetos industriais que marcaram o Espírito Santo na segunda
220
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1990. p. 19
221
RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Modos de ver (1534-1643): o governo da capitania do Espírito Santo na sua
primeira centúria. In: BITTENCOURT, Gabriel; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. (orgs). Espírito Santo: um painel
da nossa história II. Vitória: Secult, 2012. p. 171-172.
94
metade do século XX. Segundo a autora, tal perspectiva propiciou a adoção de modelos
historiográficos generalizantes ou capazes de definir um período como sem importância,
marcado pelo fracasso econômico.222
Maria Stella de Novaes, José Teixeira de Oliveira e Neida Lúcia, ainda que não realizem uma
abordagem no campo da história econômica, correspondem às indicações de Luiz Cláudio
Ribeiro e Enaile Carvalho, sobretudo, no que concerne à noção de fracasso associada ao período
colonial. A imagem do atraso conferida ao passado se constituiu por meio da demarcação de
valores e lugares atribuídos a determinados períodos e eventos, e que, por sua vez, foram
definidos em função do significado que apresentaram para a trajetória do Espírito Santo.
O passado colonial foi interpretado como sendo a origem do atraso. A estrutura temporal da
narrativa bem como os eventos e circunstâncias eleitos para compor essa trajetória colaboraram
na composição dessa imagem de Espírito Santo. Por isso, em nossa análise, seguimos a
cronologia e os marcos temporais estabelecidos pelos autores. Nesse processo, constatamos que
eles, ainda que tenham seguido uma linearidade, avaliaram e qualificaram o período colonial
considerando o que foi o Espírito Santo no século XVI, XVII e XVIII, sequencialmente.
Associado a essa qualificação atribuída a cada período, foi possível identificarmos os elementos
considerados prejudiciais para o desenvolvimento espiritossantense e os marcos temporais
significativos para essa trajetória apresentada pelas narrativas históricas. A saber, os dois
primeiros séculos foram marcados, a princípio, pelos empecilhos que caracterizaram o
estabelecimento do elemento colonizador, a contar de Vasco Fernandes Coutinho; depois, pela
ausência de administradores considerados competentes na condução da Capitania, o que
implicou nas malsucedidas governanças dos capitães-mores; e, por último, o século XVIII,
assinalado pelos impedimentos oficiais de contato do Espírito Santo com Minas Gerais.
222
Enaile Carvalho cita as seguintes obras como referências dessa tradição historiográfica: “A historiografia
tradicional insiste em reproduzir a tese de só ter havido desenvolvimento econômico no Espírito Santo em meados
do século XIX, com o advento do café. ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e Transição: O Espírito
Santo de 1850/1888. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Esforços
industriais na economia do café: Ocaso do Espírito Santo-1889/1930. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de
Almeida/UFES, 1982. OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação
Cultural do Espírito Santo, 1975.”; CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do
Espírito Santo (1790 a 1821). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em
História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008.
95
Uma representação de Espírito Santo que foi construída carregando consigo noções de
exclusão, ausências e impedimentos que caracterizaram sua trajetória teve no período colonial
o momento inaugural da constituição do atraso. Se por um lado, o Espírito Santo republicano
foi interpretado como o tempo do avanço, do progresso, no qual se realizaria a superação de
uma condição de marginalização, o passado colonial foi a origem, o fundador do atraso.
Os obstáculos para o progresso surgiram ao longo da trajetória percorrida pelo Espírito Santo.
O momento inicial da capitania, que se inaugura, na narrativa dos autores, com a chegada dos
colonizadores e a busca por fixação aos moldes estabelecidos pela Coroa, foi avaliado a partir
das dificuldades que apresentou para a colonização. Um dos fatores responsáveis pela
dificuldade de prosperidade do Espírito Santo apontado nas obras diz respeito ao elemento
humano.
De acordo com José Teixeira de Oliveira, ao definir os “fatores do descalabro”, argumenta que
o Espírito Santo era o “exemplo entre as donatarias cujo progresso foi embargado pela
turbulência dos seus habitantes”:
Por uma dessas coincidências trágicas que o destino constrói, ali se encontraram três
terríveis circunstâncias favoráveis ao desastre: frouxidão de costumes, chefe (Vasco
Coutinho) “mais propenso à indulgência do que à disciplina” e concorrência de
elevado número de criminosos homiziados nas terras. Sem contar o índio – pesadelo
constante, inimigo de todas as horas. 223
223
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 53.
224
Sobre a imagem de Vasco Fernandes Coutinho bem como a dos indígenas, ver próximo capítulo.
96
Tal imagem foi associada, sobretudo, à insuficiência de seus colonizadores em efetivar a obra
colonizadora. José Teixeira de Oliveira, ao caracterizar as “exigências e deficiências” do início
da colonização, destaca as dificuldades causadas pela fraca presença dos elementos
colonizadores diante dos desafios:
225
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 57.
226
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
29.
227
OLIVEIRA, op. cit., p. 39. Neida Lúcia de Moraes registra apenas a dificuldade inicial com o montante de
homens que acompanhavam o primeiro donatário: "A 23 de maio de 1535, no Dia do Espírito Santo, o donatário
desembarcava na enseada junto ao Monte Moreno. Trazia consigo cerca de 60 homens, aí incluídos dois fidalgos
da nobreza: D. Jorge Meneses e D. Simão de castelo branco que vinham cumprir as suas penas de degredo, apenas
disfarçado. Era com esses sessenta homens que Vasco Fernandes Coutinho contava para a tarefa inicial de ocupar,
dominar e disciplinar a terra." MORAES, Neida Lúcia Borges de. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.],
1971. p. 15.
228
As viagens de Vasco Fernandes Coutinho também estão em nossa análise sobre a imagem dos personagens
históricos. Vide nesse capítulo tópico 1.3.1
229
NOVAES, op. cit., p. 21.
97
230
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 52.
231
Ibid., p. 68.
232
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 29.
233
OLIVEIRA, op. cit., p. 63.
98
234
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
34.
235
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 63. p. 87, parênteses do autor.
236
Ibid., p. 94, parênteses do autor.
99
José Teixeira de Oliveira enfatiza o vínculo entre as dificuldades do Espírito Santo com as
enfrentadas pelo primeiro donatário. A necessidade de ajuda e intervenção eram evidências da
condição negativa da Capitania. Nesse sentido, precariedade, decadência, e impedimentos
foram atribuições que passaram a constituir o Espírito Santo em sua trajetória inicial. O fracasso
da experiência colonial foi interpretado tendo em vista a dificuldade de progresso a se realizar
no Espírito Santo, contrastando esse passado a uma outra realidade futura. Foi nessa perspectiva
que ele analisou os “65 anos após o embarque”:
Outras donatarias exibiam mais riquezas, mas, por certo, em nenhuma outra as
condições haviam sido mais adversas à implantação do homem europeu. Aqui, a
floresta espessa – verdadeira fortaleza oposta às tentativas de penetração – era, mais
que qualquer outro acidente de qualquer outra parte do Brasil, uma barreira a
contrariar e esmagar os planos de conquista, não só pela sua pujança inigualável, mas,
e principalmente, pelo inumerável gentio que abrigava. Decênios, séculos decorreriam
até que o homem branco pudesse palmilhar – sem o temor mortal dos primeiros
tempos – o território que ficava além das praias marítimas.237
O autor não trata a atuação indígena como resistência e ainda os incluiu na ordem da barreira
natural posta como dificuldade não superada pelos primeiros colonizadores da Capitania. O
Espírito Santo surgia, assim, com uma condição adversa que seria, de acordo com o autor, o
seu diferencial. Caberia ao Espírito Santo um lugar de não prosperidade que perduraria ao longo
do período colonial.
237
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 118.
238
Luiz Cláudio Ribeiro e Enaile Carvalho explicam essa característica política. Carvalho demonstra da seguinte
maneira: “Observa-se, mediante a leitura do corpo documental oficial (Memórias, Cartas, Ofícios, Decretos, etc.),
que a história do Espírito Santo caracteriza-se pela administração vigente fora da Capitania. Como Capitania
Hereditária, era de responsabilidade do donatário o empenho em desenvolver mecanismos econômicos rentáveis,
100
Esse aspecto político-administrativo negativo indicado pelos autores foi associado a duas
circunstâncias experimentadas pelo Espírito Santo. Primeiramente, ainda em 1577, a Capitania
foi submetida ao Governo Geral da Bahia. Posteriormente, já no início do século XVIII, no ano
de 1718, o Espírito Santo não pertencia mais a particulares, mas à Coroa portuguesa. José
Teixeira de Oliveira e Maria Stella de Novaes não trazem uma análise específica sobre esses
fatos, mas, ao longo da narrativa linear que abarca esse período, teceram considerações a
respeito dessa condição, sendo possível, por sua vez, categorizá-la como um dos elementos do
atraso do Espírito Santo reconhecidos pelos autores.
Sobre o pertencimento à Coroa, por sua vez, a autora limitou-se a considerar que “de diversos
modos, complicava-se tal situação, sobretudo com a distância, agravada pela falta de transporte
e vias de comunicação”.240 José Teixeira, por sua vez, recorrendo a um relato, argumentou:
O vice-rei conde de Sabugosa afirmou, certa feita, que 'a capitania do Espirito Santo
se conservou com melhor harmonia, sendo de donatários do que da Coroa', atribuindo
as 'muitas desordens à pouca capacidade e má escolha de capitães-mores, desde o
governo de Antonio Oliveira Madail'.241
como por exemplo, a implantação de engenhos. A Coroa Portuguesa desempenhava um papel exclusivo, em termos
de nomeação na governança da Capitania, elegendo para os postos-chaves da administração, como o de Capitão-
mor, homens indicados pelo donatário.” CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas
terras do Espírito Santo (1790 a 1821). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós/Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 150. Já Ribeiro, observando
a obra de José Teixeira de Oliveira, evidencia essa sucessão no primeiro século de colonização. A partir de Vasco
Fernandes Coutinho, o autor destaca: “Quando a capitania foi transferida aos herdeiros diretos, verificamos uma
sucessão alternada por governos interinos de vários capitães-mores, até chegar a Ambrósio de Aguiar Coutinho,
em 1643, que assumiu a capitania como herdeiro do pai, Francisco de Aguiar Coutinho, morto em 1627, sem, no
entanto, vir governá-la. De Ambrósio Coutinho em diante, com rápida exceção no governo de Francisco Gil de
Araújo, entre 1678 e 1685, o governo da capitania será exercido sempre por capitães-mores até o final do século
XVIII. O século que analisamos também compreende a fase que Portugal passou ao trono de Castela. Porém,
pouco é conhecido das mudanças nos assuntos administrativos, políticos e econômicos da capitania.” RIBEIRO,
Luiz Cláudio M. Modos de ver (1534-1643): o governo da capitania do Espírito Santo na sua primeira centúria.
In: BITTENCOURT, Gabriel; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. (orgs). Espírito Santo: um painel da nossa história II.
Vitória: Secult, 2012. p. 173.
239
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
41.
240
Ibid., p. 86.
241
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 63. p. 197.
101
No entanto, fosse a sujeição à Bahia, fosse o pertencimento à Coroa, tais circunstâncias foram
permeadas, como indica José Teixeira de Oliveira, por uma característica que marcou
negativamente o Espírito Santo, a ausência de administrações eficientes, que possibilitassem o
progresso da Capitania. Maria Stella de Novaes, comentando a respeito do século XVII,
evidenciava que “raros foram os acontecimentos extraordinários registrados na capitania,
durante muitos anos, salvo a mudança constante dos Capitães-mores [...]”242. José Teixeira
explica essa indicação da autora evidenciando, devido à falta de donatários,243 o prejuízo dessa
política para o Espírito Santo:
Tornou-se praxe atribuir a atonia do Espírito Santo, durante a primeira fase do período
colonial, ao descaso dos donatários que, em maioria, administravam por intermédio
de terceiros – os capitães-mores [...]. A demonstração de que procede a arguição está
nos documentos da época. Regra geral, a presença dos donatários no senhorio coincide
com promissor alento de todas as atividades humanas. Constroem-se novos engenhos,
movimentam-se expedições em busca das minas, o comércio se anima. Governada a
terra pelos capitães-mores, surgem as rusgas, o tráfico decai, o marasmo domina a
tudo e a todos.244
242
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
69.
243
“O abandono da capitania por parte dos donatários desencadeou novo processo de decadência. Não era de se
esperar outra coisa, tão infelizes as escolhas dos administradores, preferentemente aliciados no seio de classe
avessa à tarefa de governar. Regra geral, permaneciam meses, apenas, no posto, logo substituídos.” Ver:
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 142; O autor avalia a incapacidade dos capitães-mores e a relação que se estabelecia entre eles e
as autoridades da Coroa, que prejudicavam a condução do Espírito Santo: “a maneira assaz descortês e rude como
os governadores gerais e vice-reis tratavam os capitães-mores. As cartas daqueles para estes – correspondência
oficial, copiada nos livros do governo – estão repletas de admoestações deprimentes e ameaças escolares. Não
raro, deparamos com ordens da mais alta autoridade da colônia para os seus subordinados imediatos – os capitães-
mores – receberem de seus governados pequenas dívidas de terceiros... E lá vinham as prolixas e fastidiosas
recomendações sobre a maneira de cobrar e o processo a ser obedecido quanto à remessa da importância recebida
para a Bahia, transformando-se os delegados da Coroa em meros agentes cobradores. A subserviência não permitiu
um protesto sequer contra prescrições tão deprimentes. Os homens a quem se confiava a administração da capitania
não estavam à altura do posto... Outra fosse sua formação moral e intelectual, por certo se insurgiriam.” Ibid., p.
143.
244
Ibid., p. 151.
245
Ibid., p. 143.
102
Nem uma palavra sobre a indústria, o comércio, a lavoura, obras públicas, instrução.
Resultado de política tão acanhada: o conteúdo do alvará do vice-rei ao provedor da
capitania, datado de três de setembro de 1664, onde se lê o seguinte: ‘Sendo informado
que a Capitania do Espírito Santo está hoje tão diminuta no rendimento [...].’ 246
Maria Stella de Novaes também analisa essa segunda metade do século XVII, evidenciando que
os dízimos arrecadados no Espírito Santo eram insuficientes para cobrir as despesas. Assim,
segundo ela, “dessas desordens (o problema político-administrativo), surgiu, de certo a crise
financeira atravessada pela capitania.”247 Neida Lúcia de Moraes resume o "triste resultado" do
século XVII exatamente ao isolamento do Espírito Santo:
Mas o mais triste resultado da luta não seria o ataque armado[...] Foi o abandono, por
parte da metrópole, ocupada com a guerra acesa em todo o nordeste e com a defesa
da costa sul, que deixou sem assistência por todo o período do domínio espanhol a
imensa costa de Salvador ao Rio de Janeiro. [...] Excetuados os dias de Francisco Gil
de Araújo, todo o século XVII foi de resultados insignificantes. Não se fez mais do
que manter a faixa de praia conquistada pelos pioneiros. Os próprios jesuítas se
encapsularam nas suas propriedades rurais, de onde não saíam mais para os trabalhos
e catequese.248
246
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 144.
247
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
71.
248
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 30
249
José Teixeira apresenta evidências dessa circunstância: “[...] a queda dos dízimos, que refletia a situação geral
dos negócios da capitania, onde, em 1664, não havia quem comprasse o principal produto da terra – o açúcar. Dois
anos antes, para tornar possível o pagamento do donativo do dote e tributo da paz de Holanda, foi preciso que o
governador geral permitisse aos ‘moradores [cujos cabedais eram limitados]’ venderem pau-brasil na Bahia, ‘por
ser o mais eficaz remédio que tinham para poder dar satisfação ao que deviam’. Tão angustiosa conjuntura
perdurou por vários anos.” OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória:
Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 151. Ainda sobre esse período, apresenta o autor: “Em 1665, faltou
erário para pagar aos oficiais de artilharia. Respondendo a uma carta do provedor da Fazenda Real, o governador
geral autorizou a proceder ‘neste caso’ como ‘em outros semelhantes’, isto é, que pagassem os moradores, pois ‘é
estilo bem ordinário em toda a parte suprir o Povo o que a Fazenda Real não pode para conservar a quem os
defende’.” OLIVEIRA, 1975, loc.cit., destaque do autor.
103
ideias de progresso, pouco mais se fez que manter a faixa de praia cujos limites foram
traçados pelos pioneiros.250
Foi essa a imagem de Espírito Santo elaborada pelos autores em sua trajetória durante o século
XVII. Se os elementos colonizadores, associados aos prejuízos impostos pelos indígenas, foram
apresentados como fatores das dificuldades da capitania em sua origem, a ausência de
condutores para suprir o déficit do Espírito Santo e a falta de uma atenção por parte da Coroa
foram indicados como elementos que impossibilitaram o progresso do Espírito Santo. Aqui,
percebemos, novamente, o critério de interpretação dos autores. Se o período republicano foi o
momento em que o Espírito Santo encontrara a possibilidade de superar o atraso pela presença
e condução administrativa de seus governadores, o período colonial, porém, fora marcado por
essa ausência.
250
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 166.
251
Observamos no Capitulo 1 a recorrência a certos eventos do passado espiritossantense como legitimadores de
determinados posicionamentos e ações políticas. E figurou, entre eles, o ocaso do Espírito Santo com a exploração
aurífera do século XVIII.
252
O autor tece algumas considerações sobre a história do Espírito Santo, e dentre elas comenta a questão dos
impedimentos trazidos à Capitania após a descoberta das minas. LEAL, João Eurípedes Franklin. Posfácio.
História do Espírito Santo: uma reflexão, um caminho. In: OLIVEIRA, José Teixeira. História do Estado do
Espírito Santo.3.ed. Vitória: APEES/SECULT, 2006. p. 503-534.
104
Mas foi no início do século XVIII que outra medida transtornou mais ainda o Espírito
Santo. Com a descoberta do ouro em Minas Gerais a Coroa portuguesa achou por
bem, por ser o Espírito Santo uma defesa natural contra a possível cobiça estrangeira
das novas riquezas encontradas, proibir qualquer abertura para o interior da capitania.
O Espírito Santo passou a funcionar exclusivamente como uma trincheira de defesa
do interior mineiro, evitando qualquer medida ou ação progressiva que atraísse a
cobiça estrangeira, que prejudicasse a mineração nas Minas Gerais ou que facilitasse
o contrabando do ouro. Proibiu qualquer entrada ou penetração para o interior, assim
como toda e qualquer ação colonizadora e fixação de habitantes em terras além do
litoral[...].Em 1711, com o falecimento do donatário Manoel Garcia Pimentel, o rei
ordenou, a 19 de maio, ao governador do Brasil sequestrar a capitania e incorporá-la
à Coroa. Essas medidas foram tomadas, mas o herdeiro Cosme Rolim de Moura
levantou questão que lhe foi favorável na Relação da Bahia, mantendo-o na posse do
Espírito Santo até que, a 6 de abril de 1718, foi realizada a venda da capitania à Coroa,
pelo valor de 40 mil cruzados, pagos em quatro parcelas anuais e iguais. A compra da
capitania do Espírito Santo estava dentro da política portuguesa de manter o Espírito
Santo como a “defesa natural das Minas Gerais”, fortificando principalmente Vitória
e proibindo a abertura do interior, deixando que a própria natureza selvagem servisse
de trincheira contra um possível ataque estrangeiro visando ao ouro, assim como
evitando o seu contrabando.253
253
LEAL, João Eurípedes Franklin. Posfácio. História do Espírito Santo: uma reflexão, um caminho. In:
OLIVEIRA, José Teixeira. História do Estado do Espírito Santo.3.ed. Vitória: APEES/SECULT, 2006. p. 517-
518; Torna-se importante frisar que as obras em geral não examinam a sociedade e a economia do Espírito Santo
em si. As assertivas de fracasso contem, por generalização ou mesmo suposição, um elemento comparativo em
relação a capitanias vizinhas que, por conseguinte, teriam sido bem-sucedidas. A interpretação de João Eurípedes
Franklin Leal e outros autores seguem, muitas vezes, sem questionamento, tal pressuposto.
254
A própria literatura também se apropriou dessa noção. Cláudio Lachini, em narrativa literária sobre Vasco
Fernandes Coutinho, opina sobre esse período: “O Espírito Santo que Vasco Fernandes Coutinho deixou foi
isolado pela Coroa Portuguesa quando da descoberta do ouro em Vila Rica, situada em território que originalmente
pertencia à Capitania do Espírito Santo. Como à mesma Capitania, e, portanto, de Vasco Fernandes Coutinho,
foram as terras de Diamantina e da maior parte das Minas Gerais. As minas, que eram gerais como vaticinara
Vasco, passaram a pertencer à Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, criada em 3 de novembro de 1709.[...] O
preço recebido pela região costeira que vai da divisa com a Bahia até a divisa com o Rio de Janeiro foi o
abandono.[...] Deixá-lo à mingua, protegido por alguns fortes, foi a defesa mais em conta contra qualquer entrada
que se fizesse pelo caminho mais curto. Ver: LACHINI, Cláudio. Vasco: memórias de um precursor da
globalização. São Paulo: Bacarolla, 2009. p. 244.
105
Com José Teixeira de Oliveira, Maria Stella de Novaes e Neida Lúcia, esse período de
impedimento e marginalização ganhou o status de marco histórico negativo. Como veremos, a
imagem de decadência relativa ao início do século XIX na Capitania era resultado dos séculos
anteriores, mas, sobretudo, pela estagnação desse momento. O século XVIII encerrava, segundo
a interpretação dos autores, o passado colonial caracterizado pelo fracasso e, depois dele, a
marca da trajetória do Espírito Santo seria a busca por superar essa condição ao qual fora
submetido.
Em relação à busca pelo ouro, Enaile Carvalho evidencia que o Espírito Santo não esteve
ausente:
Na perspectiva de análise adotada por José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de
Novaes, percebemos que todos registraram as tentativas de exploração aurífera no Espírito
Santo. Os autores evidenciaram as ações e os esforços dispensados por diferentes sujeitos,
255
CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo (1790 a 1821).
2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade Federal
do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 31.
106
valorizados na narrativa e, inclusive, alguns foram destacados pela resistência que exerceram
às ordenações oficiais de impedimento de interiorização no Espírito Santo nesse período.256
A busca pelo ouro ressaltada pelos autores evidencia que a capitania não estava avessa a este
propósito da Coroa portuguesa para sua colônia. No entanto, para eles, a percepção foi a de
perda. De acordo com Neida Lúcia de Moraes, "era o começo do ciclo do ouro do qual o Espírito
Santo deveria permanecer afastado, e em virtude do qual iria ser isolado do resto do Brasil por
cem anos, no decurso de todo o século XVIII."257 Nessa perspectiva, a Capitania perdeu a
oportunidade, estava reservado a ela outro papel nesse contexto da história do Brasil. Segundo
José Teixeira:
256
José Teixeira de Oliveira e Maria Stella de Novaes destacam ao longo da narrativa sobre o período colonial que
as buscas pelo ouro no Espírito Santo ocorreram desde o século XVI, mas a capitania não obteve êxito nesses
empreendimentos, o que reforça a noção de prejuízo do Espírito Santo com a descoberta do ouro na região das
minas. Maria Stella de Novaes apresenta as tentativas, ainda que malsucedidas comparando-se ao que se
desenvolveu na região das minas, que existiram na Capitania: “1646 – Continuava latente nos membros da família
Azeredo, o sonho das pedras verdes. Haviam Antônio e Domingos de Azeredo, filhos de Marcos (Antônio) de
Azeredo (Coutinho), o descobridor das serras de esmeraldas, se apresentado, em 1644, para realizar nova entrada,
o que foi aceito pelas Côrtes Portuguesas. Segundo a notícia transmitida a 24 de setembro de 1646, ao Geral da
Companhia de Jesus, pelo Provincial Francisco Carneiro, foram nomeados: - Superior da entrada, o Pe. Luís da
Sequeira e seu companheiro, o Pe. Vicente de Banhos. Regressaram todos, nesse mesmo ano (1646), com notícias
confirmativas da referida serra.” NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial
do Espírito Santo, 1964. p. 68, parênteses da autora); Novaes destaca, ainda, a resistência às proibições. Pedro
Bueno de Carcunda é assim caracterizado: “sempre atento às minas auríferas. Avesso às ordens superiores
contrárias à exploração do interior da capitania, varava os sertões e iludia os delegados de El –Rei. Declarava suas
riquezas e concorria, assim, para o povoamento do Espírito Santo. Audaz bandeirante, ...” (Ibid., p. 88.); Maria
Stella demonstra ainda: “1758 – desde 1750 havia o Ouvidor do Espírito Santo estabelecido as minas do Castelo.
Venceu, portanto, a perseverante coragem dos mineradores. Embora condenado pelo Governo da Bahia, que
reclamava estar o lugar nos limites de sua administração [...]” (Ibid., p. 88-89.); José Teixeira de Oliveira também
atenta-se para essa busca, evidenciando que a colonização do Espírito Santo foi marcada por essas tentativas:
“Lançadas, pois, as sementes ao solo, Vasco Coutinho e seus companheiros se atiraram às explorações. Basílio
Daemon, recordando o feito, escreveu que, em fins de 1535 ou princípios do ano seguinte, saíram os povoadores
em grande número, ‘bem armados e municiados’ e entranharam-se pelo sertão. Abrindo picadas na floresta,
chegaram até os ‘arredores da hoje cidade da Serra’, sem serem incomodados ou pressentidos pelos índios, pois
nada consta a respeito, acrescenta o minucioso cronologista.” OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado
do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 46; O autor destaca ainda que não
existiu uma atenção voltada para o Espírito Santo, mesmo com indícios: “Preciosa por todos os títulos, a epístola
do famoso jesuíta contém, ainda, esta notícia sensacional: ‘Estão os moradores muito contentes, porque além do
metal, que se na mesma Vila achou que se [sic] tem por prata, e muito ferro, mandou o Capitão Vasco Fernandes
Coutinho descobrir, pelo sertão, e acharam ouro e certas pedras, que dizem que serão de preço, e que de um e de
outro há muita cópia’. É surpreendente que as notícias desses achados não tenham provocado grande afluência de
aventureiros, como se verificou nas outras capitanias. Pelo menos não se conhecem informações.” Ibid., p. 83.;
Registrou, portanto, que essa busca existiu na Capitania: “Dom Francisco de Sousa, o das Manhas, que governou
o Brasil, pela primeira vez, no fim do século XVI, aqui esteve depois de outubro de 1598. Dirigia-se a São Paulo,
mas, ‘por lhe dizerem que havia metais na serra de Mestre Álvaro e em outras partes, as tentou e mandou cavar e
fazer ensaio, de que se tirou alguma prata. Também mandou que fossem às esmeraldas, a que da Bahia havia
mandado por Diogo Martins Cão e as tinha descobertas.’ Informa Basílio Daemon que o governador foi em pessoa
examinar algumas minas e que, entre os da sua comitiva, se contavam dois alemães – um engenheiro, de nome
Geraldo, e um mineiro, Jaques.” Ibid., p. 115.
257
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 30.
107
O século XVII, que se distinguiu pelo número de bandeiras, pela busca desesperada
às brenhas promissoras, ainda assistiu à revelação do ouro no território que passaria a
denominar-se das minas gerais. As lavras mais ricas estavam localizadas, justamente,
na faixa de terra compreendida pelos limites traçados, na carta de doação, à capitania
de Vasco Fernandes Coutinho. Entretanto, não ocorreria a ninguém reclamar o direito
de senhorio sobre a região – tão distante do litoral. A impossibilidade dos donatários
de levarem sua autoridade até os confins do quinhão que el-rei lhes doara conspirou
com o tempo, modificando o direito primitivamente estabelecido.258
Surgiu, depois, o receio das visitas indesejáveis, em busca das riquezas naturais do
interior do Brasil. Vieram, por isso, ordens rigorosas da Bahia, para que se
recolhessem a Vitória todos os que se encontrassem nas lavras. O Espírito Santo era
já trincheira, para a defesa das Minas Gerais!... E, daí, resultou igualmente a proibição
de se abrirem estradas para o Oeste. E, assim, a Capitania viu-se impedida de conhecer
e defender seu próprio território, que se reduzia à pequena faixa litorânea, em
desacordo com a Carta- Régia de doação a Vasco Fernandes Coutinho, baseado no
Tratado de Tordesilhas!259
O papel de “barreira verde” definia um lugar para a capitania no contexto da história do Brasil,
porém, segundo José Teixeira de Oliveira, para o “Espírito Santo, particularmente, a vizinhança
das minas viria constituir empecilho à penetração e ao desenvolvimento das suas atividades
para o interior.”260 Os impedimentos direcionados ao Espírito Santo nesse período da
exploração aurífera do século XVIII passaram, portanto, a definir a dinâmica da colonização
local e a caracterizar sua marginalização. Os autores passaram a representar o lugar da Capitania
e a apontar as causas e implicações dessa condição. Para Neida Lúcia:
258
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 171.
259
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
80.
260
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 171.
261
MORAES, op.cit., p. 31.
108
Seria essa a condição da Capitania, na qual a política do governo geral seria a de ameaçar “de
severos castigos aos transgressores da ordem del-Rei.”263 Maria Stella de Novaes observa como
consequência direta dessa política da Coroa o aparelhamento do Espírito Santo realizada pelo
governo geral para que ela exercesse seu papel:
José Teixeira também faz alusão a essa condição estabelecida, evidenciando o estado em que
se encontrava a capitania:
262
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 173.
263
Ibid., p. 181. Sobre as proibições e controle da Capitania, o autor destaca: “À Bahia chegaram delações contra
o capitão-mor Francisco de Albuquerque Teles, obrigando o governador geral a dirigir-se ao provedor da Fazenda
Manuel Correia de Lemos. Pedia informações sobre a suficiência do acusado, estado das fortificações,
prosseguimento das pesquisas de ouro e abertura do caminho para as minas gerais, pois constava que o capitão-
mor se associara a Pedro Bueno Cacunda para levar a cabo a ligação da capitania com aquela região, ‘o que convém
atalhar logo por todos os meios possíveis para evitar as danosas e irremediáveis consequências que precisamente
se hão de seguir contra o serviço de Sua Majestade e conservação da dita Capitania’.” (Ibid., p. 179.); Ainda
segundo o autor: “Vale acentuar a recomendação do marquês de Angeja ao seu enviado, mestre de campo
Domingos Teixeira, relativa à ‘proibição de que ninguém passe a fazer descobertas [de minas]’ no Espírito Santo,
‘por ser ordem de El-rei se não façam estas enquanto se não fortifica primeiro a Capitania’.” (Ibid., p. 186,
destaques e colchetes do autor).
264
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
80.
265
OLIVEIRA, op. cit., p. 181.
109
Essa função estratégica exercida pelo Espírito Santo nesse momento de sua trajetória, portanto,
trazia consigo, na leitura dos autores, os obstáculos para o seu desenvolvimento. Exclusão e
marginalização, impedimentos e falta de autonomia caracterizavam a Capitania nesse contexto.
Se os dois primeiros séculos da experiência colonizadora foram marcados pela ausência de
progresso, a avaliação dos autores acerca do século XVIII manteve tal perspectiva de análise.
Novamente, portanto, a imagem negativa do atraso atribuída ao passado colonial caracteriza a
representação de Espírito Santo, nesse ponto, em decorrência dos obstáculos definidos pela
Coroa portuguesa. A ideia de conquistas e as expectativas abertas com a mineração aparecem
em contraste com a condição local. Segundo Neida Lúcia:
Enquanto isso, a capitania não podia pagar os impostos devidos à Coroa, não havia
vida social, faltam notícias sobre comércio, atividades industriais ou artesanais, ou
sobre fundação e desenvolvimento de povoados. A vida pobre e sem estímulos era
ainda travada pela legislação que impedia o contato com as minas. 268
Entre 1728 e 1730, a Vila da Vitória atravessava situação econômica difícil, ‘por falta
de negócios’. Seus moradores ‘eram pobres’. Com setecentos fogos e [...] seus
dízimos, em muitas ocasiões, não davam para cobrir os filhos da folha [...]. 269
266
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
86-87. A autora cita, ainda, que em 1709 os habitantes de Vitória “souberam que deveriam entregar armas, pólvora
e dardos, que tivessem para a defesa da Capitania” e em 1710, diante do perigo de invasão estrangeira, “em caso
de tão indesejável e perigosa visita, o capitão-mor Francisco de Albuquerque Teles[...].” Ibid., p. 86.
267
Ainda sobre a função a autora registra: “1736 – Preocupava-se o Governo com a defesa do litoral, contra a
invasão atraída pelas minas auríferas. Uma Carta-Régia, de 20 de abril de 1736, mandava que se estabelecesse, na
Capitania, uma guarnição de 50 soldados, cujo pagamento se devia fazer pela Provedoria da Bahia de Todos os
Santos, quando faltasse rendimento de dízimos.” Ibid., p. 89.
268
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 31.
269
NOVAES, op.cit., p. 87.
110
José Teixeira de Oliveira recorreu mais uma vez à documentação que possibilitava evidenciar
uma imagem da Capitania ao iniciar o século XVIII, mais especificamente, durante a
administração do capitão-mor Francisco Ribeiro de Miranda que:
não se cansou de escrever aos seus superiores hierárquicos, pedindo providências para
o desenvolvimento da capitania. No acervo da documentação conhecida, destaca-se a
resposta que o governador geral deu a várias cartas de Ribeiro Miranda. É uma peça
longa, em que D. Rodrigo da Costa passa em revista os principais problemas
administrativos do Espírito Santo de então. Por ela, ficamos sabendo que a ‘lotação
dos soldados pagos’ (quarenta homens) ‘se achava muito diminuta, havendo muitos
moços que queriam sentar praça’ e que ‘o não faziam pela falta que ha[via] de dinheiro
para se lhes pagar’; o padre reitor da Companhia de Jesus queixava-se de que os índios
não eram pagos quando retirados das suas aldeias para o serviço da Coroa; as lavouras
ficavam desfalcadas de mulatos e pardos, vendidos para as minas, não havendo negros
para suprir a sua falta.270
A influência da região das minas é, portanto, enfatizada contrastando com a condição que
passava a se encontrar o Espírito Santo. Ainda, segundo José Teixeira, no ano de 1752, era
possível identificar “mais um depoimento sobre o senhorio, agora do capitão-mor José Gomes
Borges (aqui chegado a quinze de janeiro daquele ano) e que o encontrara ‘no mais deplorável
estado que se pode considerar’”.271 Imagem, que de acordo com o autor, definiu o que ele
chamou de uma “vida social fraca”:
A marca dessa inserção do Espírito Santo na história do Brasil era, portanto, a da exclusão e
pobreza num momento interpretado como de opulência, trazida pela mineração. Na narrativa
dos autores, deste modo, o século XVIII fora marcado pelos obstáculos impostos à capitania. A
imagem construída sobre o início do século XIX foi, consequentemente, a da decadência,
resultado dos séculos anteriores. Interessante notar que o final do período colonial aparece nas
obras como um momento de possibilidades e mudanças. Ainda assim, mesmo evidenciando a
presença de governos que representariam essa mudança na trajetória do Espírito Santo, o início
do século XIX foi exposto pelos autores seguindo este contraste, pois anunciava possibilidades
270
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 176.
271
Ibid., p. 202.
272
Ibid., p. 187.
111
José Teixeira de Oliveira considerou que no início do século XIX, “quadros bem sugestivos a
capitania de Vasco Coutinho oferecia a um observador dos derradeiros tempos coloniais.”
Segundo o autor, ao retratar o Espírito Santo nesse momento, considerava que o território se
encontrava “reduzido e, sobretudo, a mata, a indiada e, mais que tudo, as ordens del-rei
sojigavam os capixabas na estreita e indeterminada faixa litorânea.” A divisão administrativa
evidenciava a ausência de cidade, “nem a sede da capitania” e parte dos distritos da Vila de
Vitória “não passava de minúsculo povoado, mas oficialmente lhes davam aquele
predicamento”. Segundo o autor, a população era reduzida se comparada às outras capitanias
naquela época. Em termos de governança, a capitania permanecia sob o domínio da Coroa e
“nos últimos tempos do período colonial, os cargos da administração civil, no Espírito Santo,
eram bem reduzidos”, dificultando a administração. Possuía um aparelho de justiça deficiente
que “correspondia a ausência quase total da justiça d’el-rei.”273
Diante desse quadro, o autor chama a atenção para a carta de D. João em 1800, preocupado em
“reanimar a quase extinta Capitania do Espírito Santo.”275 Maria Stella de Novaes também
273
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 232-238.
274
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 33. Segundo a autora,
a atividade aurífera naquele período só foi superada a partir de 1800: "A psicose do ouro criou uma nuvem que
sombreou o Espírito Santo durante todo o século XVIII. Foi necessário que se encerrasse o ciclo do ouro, [...] para
que falhas se abrissem na cortina e ao sol do progresso fosse permitido iluminar um pouco esta dadivosa e boa
terra que veio a constituir o nosso Estado. Ao terminar o século XVIII, exatamente no apagar das luzes, aos 8 de
outubro de 1800, foi estabelecido um registro à margem do Rio Doce, no Quartel do Porto do Souza. Finalmente
nos era concedida a licença de atravessar a estreita faixa de terra do Espírito Santo." Ibid, p. 32.
275
OLIVEIRA, op. cit.,p. 217.
112
ressalta esse momento e o interesse da Coroa frente ao Espírito Santo, o que evidenciava a
necessidade de superação de uma condição de dificuldade que identificava a capitania:
A autora ressalta, ainda, a dificuldade que encontraria o primeiro governo provincial que
apresentava um Espírito Santo deficitário:
276
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
105.
277
Ibid., p. 112. Observamos também em José Teixeira de Oliveira o destaque dessa condição do Espírito Santo
nesse ano: “De 1811, isto é, justamente do ano em que Tovar deixou a governança, é um depoimento de Francisco
Manuel da Cunha, que apresenta a capitania em estado bem contristador. O comércio de Vitória – a darmos crédito
às suas palavras – só negociava, em produtos da terra: açúcar, aguardente, café, milho, feijão, arroz e algodão –
tudo em pequena escala, pois a agricultura estava como esquecida. As casas refletiam a penúria dos moradores e,
se se arruinava, não eram reedificadas. Não havia divertimentos, devido à pobreza, que era geral.[...] Até o corte
de madeira – umas das forças econômicas da terra – decaíra. A minguada produção agrícola e industrial era
transportada em pequenas embarcações, pertencentes aos comerciantes locais, para o Rio de Janeiro e Bahia.
Raramente alcançavam Pernambuco ou Rio Grande do Sul. O Sonhado intercambio com Minas Gerais continuava
sendo uma utopia. As canoas que singravam o Rio Doce conduziam apenas soldados.” OLIVEIRA, José Teixeira
de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 253.
113
Arrecadando 23:378$000, o Espírito Santo tinha seus gastos, para 1827/8, calculados
em 48:121$413. Perduravam, como se vê, os déficits, raramente superados nos
séculos precedentes. Para aliviá-los, determinara o Imperador – pela provisão de nove
de fevereiro de 1826 – fossem entregues aos cofres da Província as sobras dos
rendimentos de Campos que, em 1827, totalizavam 8:933$629 e – por ato de catorze
de novembro de 1826 – se consignasse mensalmente, em favor dos cofres
espiritossantenses, a quantia de 4:000$000. Entretanto, ‘pela estreiteza do comércio’,
andava atrasadíssimo o pagamento da mesada, provocando, ipso facto, o acúmulo da
dívida passiva, que aumentava sempre.279
O “peso” dos séculos anteriores, como sugere o autor, fazia-se presente nos anos inaugurais do
Espírito Santo como província. Dessa forma, período colonial foi constituído, portanto, nas
narrativas presentes nas obras História do Estado do Espírito Santo, História do Espírito Santo
e O Espírito Santo é assim pelo conjunto de referências atribuídas a ele e definidora de sua
condição. A partir da lógica atraso versus progresso, contrastando com o período republicano,
os autores determinaram o significado do passado colonial como o fundador do atraso, o que
possibilitou atribuir um sentido de superação progressivo aos séculos seguintes.
A chegada do século XIX foi representado de forma distinta aos séculos anteriores na narrativa
do progressivo desenvolvimento. Ainda que os autores tenham caracterizado o Espírito Santo
no final do período colonial bem como no início do imperial marcado pelos déficits originários
278
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
147-148.
279
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 298.
114
Segundo Neida Lúcia, por exemplo, o século XIX inaugurou um novo momento do Espírito
Santo em relação às expectativas de seu desenvolvimento econômico. Para ela, era necessário
"examinar como vencemos os demais prejuízos causados por três séculos de restrições que hoje
mal podemos compreender"280, o que por sua vez, evidenciava como o Estado conseguiu
"recuperar em 100 anos o atraso dos 300 que pagamos caro o progresso das outras
capitanias."281 Nesta perspectiva, a lógica atraso/progresso na interpretação do passado definiu
a diferenciação entre o que veio "antes" e "depois" do século XIX, estabelecendo-se, assim, um
marco temporal que, por sua vez, definiu um novo sentido à trajetória do Espírito Santo nessas
narrativas. De acordo com o sentido dado ao passado, no qual assumiam o presente como marco
temporal, o século XIX foi definido dentro da trajetória do progresso como o do início do
processo de superação do atraso. Se esta realizar-se-ia no presente, como já analisamos, o
Espírito Santo em sua fase província foi caracterizado pela libertação dos impedimentos que
caracterizaram o período colonial, ou seja, no qual possibilidades e horizontes se apresentavam
à Província para inaugurar a marcha de progresso rumo ao Espírito Santo republicano.
A visão sobre o século XIX se constituiu em consonância com os critérios de avaliação por eles
estabelecidos, o que implicou na definição do que ele carregava de novidade e colaboração para
o progresso do Espírito Santo. Este foi apresentado nas narrativas por meio de um conjunto de
circunstâncias, eventos e realizações governamentais, que, de maneira geral, compuseram um
quadro em que o Espírito Santo figurou em melhores condições do que no período colonial.
Constatamos que a noção de progresso foi representada por realizações governamentais,
inovações e expansão territorial, interpretadas como conquistas do Espírito Santo. Os autores
evidenciaram os seguintes temas e aspectos que caracterizariam o século XIX: o fim da
dependência em relação à Bahia, o fim dos entraves em relação ao contato com as Minas Gerais,
a possibilidade de interiorização com a construção de vias de comunicação, fundação de
colônias e o surgimento de vilas e povoamentos no interior do Espírito Santo, bem como a
introdução de uma série de inovações como o jornal, estradas, telégrafos e embarcações a vapor,
que surgiam na narrativa como símbolos do progresso.
280
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 35.
281
Ibid., p. 32.
115
Enaile Carvalho argumenta que o diagnóstico sobre o Espírito Santo realizado no início do
século XIX evidenciava uma imagem negativa das condições da Capitania uma vez que os
responsáveis por tais exames compartilhavam a visão de que o Espírito Santo ficara ausente de
participação no sistema colonial de produção que garantia a lucratividade para a Coroa. No
mesmo sentido, observa que existiu uma visão política preocupada em buscar alternativas
econômicas frente à conjuntura do Estado Português e que, consequentemente, evidenciavam
perspectivas em termos de produção e comércio favoráveis desde que conduzidas por uma
administração voltada para realizar melhorias na Capitania.283
282
Segundo o autor, comentando a nomeação de Silva Pontes: "Ou seja, o próprio rei reconhecia abertamente que
se tratava de um território ainda superficialmente explorado, atestando, portanto, a ineficácia de todo processo de
ocupação colonial, e que competia ao seu representante alterar radicalmente este quadro, com providências
inovadoras” SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Vias de comunicação, conquista territorial e colonização estrangeira
no Espírito Santo do séc. XIX: a gênese do pensamento político capixaba, DIMENSÕES– Revista de História da
UFES, n.17, Vitória, 2005. p. 171.
283
A autora ressalta a forma como tratou as fontes que informavam sobre o Espírito Santo nesse período, pois
eram capazes de evidenciar a perspectiva de seus elaboradores sobre a Capitania. Segundo ela: “Como se trata de
fontes escritas por políticos, trabalhei de forma a identificar até que ponto tais documentos representam a realidade
ou o discurso político vigente no momento que foram escritos. A principal preocupação foi a identificação do
relator de cada fonte trabalhada, no sentido de posicioná-lo dentro de seu contexto, verificando quais são suas
preocupações e motivações ao relatar a situação do Espírito Santo.” CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e
economia mercantil nas terras do Espírito Santo (1790 a 1821). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 24.
Dessa forma, compreendemos a interpretação da autora sobre como se construiu uma visão sobre o início do século
XIX no Espírito Santo: “Todas as Memórias, em maior ou menor grau, acabam por retratar a visão política
desenvolvimentista e preocupada em criar alternativas econômicas frente à conjuntura do Estado português. Tanto
Vila Nova Portugal, quanto Alberto Rubim e Accioli de Vasconcellos demonstraram existir no Espírito Santo do
século XIX, perspectivas favoráveis em termos de produção e comércio. O pessimismo de Manoel da Cunha, fruto
de suas desavenças com o governador Tovar, não o impediu, porém, de admitir que, tudo dependia de uma
administração voltada para melhorias na então Capitania, a exemplo do governo de Silva Pontes.[...] Acredito que,
da mesma forma que ocorre na historiografia, a questão da decadência acaba por ser abordada mediante a
inoperância do sistema colonial no Espírito Santo, sistema esse em que a produção total era voltada para a
exportação e, ao utilizarem o discurso de decadência, os políticos demonstram compartilharem de uma visão
portuguesa de lucratividade para a Coroa, através de exportações de açúcar, não considerando a produção voltada
ao abastecimento interno da colônia, como importante na manutenção do mesmo sistema.”Ibid., p. 61- 62.
116
A narrativa histórica analisada apresentou uma nova perspectiva que se abria ao Espírito Santo
no século XIX, correspondendo à chegada desses administradores que buscavam atender as
orientações da Coroa, como indicou Enaile Carvalho. Na obra de Neida Lúcia encontramos a
"recuperação do tempo perdido":
José Teixeira exaltou a expectativa de ligação com Minas Gerais a partir de 1800:
Maria Stella de Novaes estende essa perspectiva para as primeiras décadas desse novo século.
Tal como Enaile Carvalho argumentou sobre as motivações e orientações dos governantes do
início do século XIX na ainda Capitania, Maria Stella evidencia um cenário de potencialidades,
possibilidades e busca de melhorias para o Espírito Santo.286 Ela destacou que:
284
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 34.
285
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 243.
286
José Teixeira de Oliveira também destaca esse evento: “O entusiasmo de Silva Pontes pelas possibilidades da
navegação do Doce – o Nilo Brasiliense, conforme denominação de Francisco Manuel da Cunha – levou-o a
117
Destacando esse novo contexto, a autora chama a atenção para as “condições especiais” em que
assumiu o governante Rubim, uma vez que “de acordo com o referido decreto de 13 de setembro
de 1810, a Capitania ficara independente da Bahia de Todos os Santos.289 Passou o Governador
a entender-se diretamente com o Governador – Geral.” Assim, permitiu o “esforço enviado na
penetração do solo espiritossantense, com o traçado de vias de comunicação e consequente
início de novos núcleos de povoamento.”290
José Teixeira de Oliveira avalia as primeiras décadas do século XIX qualificando o período
como “início de uma nova era”, delimitando uma diferenciação em relação à época colonial.
Ainda que exposto às dificuldades, o Espírito Santo, segundo o autor, modificava sua imagem:
Se boa parte do progresso então verificado pode ser levado à conta das consequências
naturais dos esforços anteriores, é impossível negar a evidência da marcha ascensional
da província após o Sete de Setembro.[...] Rasgaram-se estradas, construíram-se
pontes, abriram-se escolas. A saúde do povo merecia cuidados especiais da
administração. Os índios eram assistidos oficialmente. Se nem sempre as soluções
eram as melhores e se muitas cousas não apresentavam a perfeição desejada, nem por
isso é dado condenar os homens que as executavam. Nunca é demais repetir quão
restritos eram os meios materiais disponíveis. Sem contar a falta do elemento humano
estudar o curso desse rio e seus afluentes e fazer-lhe o levantamento desde a foz até a cachoeira das Escadinhas,
‘sendo esse o primeiro trabalho topográfico que se executou na Capitania’. Logo ao regressar a Vitória, dando
conta da missão ao governador da Bahia, Silva Pontes escreveu, cheio de entusiasmo: ‘Só o distrito desta nova
Capitania das cachoeiras para baixo do Rio Doce forma a mais bela província das marítimas do Brasil’.”
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. P. 245.
287
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
105.
288
Ibid., p. 110-111.
289
José Teixeira de Oliveira também ressalta a vantagem dessa nova condição para o Espírito Santo: “Emancipada
que fora a Capitania daquela espécie de tutela que, durante séculos, a subordinara ao governo da Bahia, podia
agora o Espírito Santo pleitear diretamente junto ao trono as providências reclamadas pelo bem-estar do povo e
progresso da terra.” OLIVEIRA, op. cit., p. 254.
290
NOVAES, op.cit., p. 112.
118
José Teixeira de Oliveira também define os governos provinciais como a principal dificuldade
do Espírito Santo no século XIX. Ele caracteriza como “governos melancólicos” as
administrações capixabas nas quais os relatórios dos presidentes de província evidenciavam
uma “desoladora monotonia.” Segundo o autor:
Para ele, tal condição denunciava a falta de “aspiração de progresso” por parte da população
urbana bem como a dificuldade de se implementar um “empreendimento marcante.” Seguindo
a interpretação dos autores sobre o período republicano, ou seja, o papel atribuído às elites
capixabas no progresso da Província, José Teixeira de Oliveira argumenta que essa limitação
associava-se, “talvez, a falta de uma elite que marchasse à vanguarda, despertando
iniciativas.”295
Mesmo assim, essa perspectiva de superação do atraso que orientou a leitura do passado
espiritossantense implicou na definição do conjunto de aspectos que passaram a constituir o
quadro de características definidoras da imagem do Espírito Santo no século XIX.
291
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 333.
292
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
288-289.
293
Ibid.,p. 191. A visão da autora é reforçada, por exemplo, quando cita a importância do posicionamento de Costa
Pereira em 1861: “Sucediam-se as mudanças do Governo do Espírito Santo. Pela Carta Imperial de 1861, foi
nomeado Presidente da Província o Dr. José Fernandes da Costa Pereira Júnior, que prestou juramento e entrou
em exercício, em 22 de março. Dedicou-se sinceramente ao Espírito Santo, porque nascido em Campos, a 20 de
janeiro de 1833, quando a Paraíba do Sul era parte desta Província, o Dr. Costa Pereira considerava-se realmente
capixaba, mesmo como deputado geral e, depois, Ministro do Império.” Ibid., p. 243.
294
OLIVEIRA, op. cit., p. 345.
295
Ibid., p. 346.
119
Sobre as vias de comunicação, sobretudo com Minas Gerais, de acordo com a historiografia,
elas se tornaram preocupação central dos diversos governantes do Espírito Santo a partir do
século XIX. Leandro do Carmo Quintão focaliza a construção da Estrada de Ferro Sul do
Espírito Santo e trabalha na perspectiva da implementação da mesma como forma de superar
uma situação de atraso econômico. O autor analisa como se propôs inserir o Espírito Santo no
mercado nacional e internacional via porto de Vitória, bem como observa o esforço das
autoridades políticas na realização desses empreendimentos necessários para o
desenvolvimento do Espírito Santo, numa busca por romper a dependência da Província em
relação ao Rio de Janeiro. Mesmo considerando as dificuldades de realização, ele destaca como
se realizou essa busca:
Podemos identificar, ao longo desse período, três meios diferentes idealizados para
realizar a tão almejada ligação com Minas Gerais: o primeiro, com Silva Pontes, ainda
no início do século XIX, através da navegação pelo Rio Doce; o segundo, uma década
depois, com Francisco Rubim, optando pelas estradas de rodagem, ideia que permeou
esse século, pois foi seguida por outros administradores provinciais; e o terceiro, com
Moniz Freire, que encontrou nas vias férreas a melhor forma para concretizar tais
anseios.296
As vias de comunicação, portanto, tornaram-se uma grande preocupação do século XIX e, como
observamos, representativas do ideal de superação do atraso colonial. Sendo assim, nas
narrativas de José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de Novaes estas vias surgem
como símbolos do progresso capixaba, entendido como superação do atraso colonial.
O progresso foi representado, por exemplo, na realização da via de acesso tão idealizada com
as Minas Gerais. Segundo José Teixeira de Oliveira:
[...] ao caminho mandado abrir, durante o governo Rubim, ligando a baía da Vitória à
Vila Rica, na capitania de Minas Gerais. Obra custosa – iniciada em 1814, só em 1820
deu passagem à primeira boiada trazida das pastagens mineiras – exigia, para
segurança dos viajantes contra os ataques dos botocudos, guarnições militares
dispostas em quartéis que se intervalavam de três em três léguas. [...] Apesar dos
favores fiscais concedidos pela Coroa para o trânsito de mercadorias, a estrada nova
do Rubim não conseguiu atrair a preferência do comércio. Em 1830, já era tão
296
QUINTÃO, Leandro do Carmo. A interiorização da capital pela Estrada de Ferro Sul do Espírito Santo.
2008. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 63.
120
reduzido o movimento que o governo pôde retirar as guarnições que mantinha nos
quartéis, abandonando os raríssimos tropeiros à própria sorte.297
Ainda que o autor evidencie que a estrada não teve o resultado esperado, a questão era a busca
pela efetivação do contato com a região vizinha como forma de impulsionar a economia do
Espírito Santo. Nesse sentido, destaca o esforço para a realização de tal propósito. Segundo ele,
mesmo “abandonada pelo governo por inútil – uma vez que não havia comércio para
movimentá-la – a estrada que ligava o Espírito Santo à província de Minas Gerais continuava
preocupando as inteligências de mais ampla visão.” 298José Teixeira segue advertindo sobre os
esforços para essa realização:
Maria Stella de Novaes, por sua vez, destaca ainda que a 4 de setembro de 1848 “iniciou-se a
construção da estrada de Santa Tereza, que partia das margens do Rio Santa Maria da Vitória e
devia chegar à Vila do Coieté em Minas Gerais”300 e que mais tarde teve como implicação o
surgimento do povoado que deu origem a cidade de Santa Tereza. Ao elencar os acontecimentos
em princípios da segunda metade do século XIX a autora chamou a atenção para a importância
das vias de comunicação. Sobre o ano de 1851 ela destacou que “o progresso do povoamento
da Província preocupava o governo, com as vias de comunicação, que se estendiam para as
vilas e os povoados, fontes de abastecimento da Capital, e contribuintes para a exportação, nesse
tempo, já adiantada.”301
297
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 256, destaques do autor. Cabe ressaltar que a perspectiva de análise do autor, orientada pela noção
de progresso do Espírito Santo, faz com que a referência aos índios botocudos não carregue consigo nenhuma
menção à resistência indígena.
298
Ibid., p. 310. O autor faz questão de citar um ofício para ressaltar a necessidade de contato com Minas Gerais:
[...] ‘sendo a abertura de uma estrada que comunique esta Província com a de Minas Gerais um dos únicos meios
que se pode levantar da miséria e pobreza em que se acha tanto de população como de comércio’ (Ofício de vinte
e cinco de janeiro de 1832 do Conselho Provincial a José Lino Coutinho, ministro do Império). Ibid., p. 310,
parênteses do autor.
299
Ibid., p. 319.
300
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
199.
301
Ibid. p. 218.
121
Sobrepondo-se a todas as dificuldades – das quais a maior, por certo, era a deficiência
das rendas – a província ia distendendo sua rede de comunicações. Estradas que
partiam do norte, do centro e do sul ligavam-na com Minas Gerais. Todas as
localidades tinham acesso à Capital por caminhos que, se não eram modelos de
conforto – e em verdade estavam muito longe de o ser – permitiam o transporte dos
produtos das lavouras para os portos do litoral.302
Os autores registram também, como símbolo desse progresso a navegação no Espírito Santo.
Maria Stella de Novaes evidencia o início da navegação a vapor na Província ressaltando o
princípio dos trabalhos do Vapor Rio Doce, ao norte, em 1879, “que representava o progresso
para aquela região”, bem como registra, em relação ao mesmo ano, que foi “recebido
festivamente” o Vapor Ana-Clara ao chegar a Vitória após navegar no sul da Província.303
José Teixeira de Oliveira destaca a importância da navegação para o Espírito Santo naquele
momento:
Entre 1870 e 1880, os principais rios da província foram explorados por companhias
de navegação a vapor. Assim é que em 1876 – a seis de setembro – a Companhia
Cearense de Navegação Fluvial do Espírito Santo inaugurava seus serviços no Santa
Maria; em 1878 funcionavam a Navegação de Itapemirim e a Empresa de Itabapoana,
além da Companhia Espírito Santo e Campos (naturalmente de cabotagem).[...] Bem
animadora era a situação em 1888, quando várias empresas mantinham barcos
trafegando nas costas e rios capixabas, além do benefício da navegação para o
estrangeiro e demais províncias marítimas brasileiras.304
302
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 366.
303
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
275.
304
OLIVEIRA, op. cit., p. 368.
305
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
287.
122
desenvolvimento do Espírito Santo, esse momento da trajetória local foi caracterizado como o
de origem de futuros municípios e cidades do Estado. Neida Lúcia de Moraes sintetiza a
chegada dos imigrantes destacando o surgimento dessas localidades:
A imagem do Espírito Santo no período colonial esteve ligada à sua dificuldade de ultrapassar
os limites do litoral. Assim, a ênfase dada às vias de comunicação, como símbolos do progresso,
permitia ao Espírito Santo romper com obstáculos do passado. Maria Stella de Novaes
evidencia esse processo, do qual ressaltamos algumas de suas referências ao assunto. O futuro
município de São Pedro do Itabapoana foi assim apresentado:
Nessa perspectiva, superar os índios ainda era um obstáculo para se efetivar a interiorização.
Juntamente com eles, era necessário vencer a “barreira verde” que caracterizava o Espírito
Santo. Foi, dessa forma, que a autora também registrou a origem do município de Atílio
Vivácqua, quando em 1843, “Francisco José Leal começou a derribar matas e a plantar as
primeira lavouras, no lugar denominado, então, Vila Nova.308
Dessa forma, também surgiram outros lugares como os futuros municípios de São João do
Muqui e Afonso Cláudio. O primeiro surgiu em 1849 quando “um caboclo de nome João
Corumbá penetrou no maciço florestal da região.” Mas foi João Pinheiro Werneck que iniciou
o “desbravamento do lugar”, cujo “povoado progrediu” e “em 1902 o arraial recebeu o nome
de São João do Muqui.”309 Já “o desbravamento do atual Município de Afonso Cláudio, antigo
306
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 41.
307
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964.
p.190.
308
Ibid., p. 192.
309
Ibid., p. 216.
123
Nesses relatos de interiorização consta ainda a presença dos imigrantes europeus. Segundo
Maria Cristina Dadalto:
A construção da imagem do Espírito Santo em sua fase provincial foi reforçada pelo conjunto
de eventos que ganharam um lugar na narrativa sobre o passado, considerados como
representativos do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo. Seguindo a linearidade
estabelecida nas obras, os autores construíram um quadro da trajetória do Espírito Santo nesse
momento marcado por realizações governamentais e a introdução de inovações de diferentes
ordens que foram interpretadas como conquistas e melhoramentos que passavam a constituir
características adquiridas pelo Espírito Santo em sua trajetória.
310
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
272.
311
DADALTO, Maria Cristina. Relacionamento interétnico e memória: narrativas de colonizadores do norte do
Espírito Santo. In: DIMENSÕES – Revista de História da UFES, Vitória, n.18, 2006. p. 188-189.
312
A análise acerca do lugar dos imigrantes nas obras dos autores também se encontra na parte da abordagem
acerca dos personagens. Consideramos que, na narrativa da superação do atraso, a chegada dos colonos europeus
do século XIX tem seu significado associado ao apagamento dos indígenas na história do Espírito Santo.
Escolhemos realizar essa análise de forma conjunta, deixando para esse momento, apenas o registro de que a
inserção desses grupos nas narrativas, via colonização, colaborou com a construção de uma representação do
Espírito Santo em vias de superação do atraso.
313
Os autores evidenciam, portanto, essa chegada e fixação desses imigrantes no Espírito Santo. Ver: OLIVEIRA,
José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p.
333-334.; NOVAES, op.cit., p. 188-196.
124
Nesse sentido, por exemplo, os autores registraram com destaque o surgimento da imprensa no
Espírito Santo, enfatizando o início da circulação do jornal “Correio da Vitória” no ano de
1849.314 Centrando a abordagem principalmente em Vitória, apresentaram os melhoramentos
que a capital angariava. Novaes registrou como conquista em 1847 melhorias na iluminação de
Vitória que “constituiu acontecimento excepcional.”315 O autor, por sua vez, sobre esse tipo de
benfeitoria, assim registrou:
A iluminação a óleo de peixe, adotada nas ruas de Vitória desde os tempos da colônia,
foi substituída – em 1865 – por lampiões a querosene. Estes, por sua vez – a primeiro
de março de 1879 – deram lugar a bicos de gás, festivamente recebidos.[...] Outro
melhoramento que muito beneficiou a cidade-capital foi o farol de sua barra,
inaugurado a sete de setembro de 1870.316
Cabe ressaltar, ainda, o registro da economia espiritossantense. Maria Stella de Novaes limitou-
se a destacar que a “cidade de Vitória progredia, igualmente, em diversos ramos da indústria,”
sem ampliar sua abordagem. José Teixeira de Oliveira, por sua vez, chamou a atenção para a
fraqueza desse ramo, considerando que “resumia-se a um artesanato despretensioso a indústria
314
Segundo José Teixeira de Oliveira: “O primeiro jornal – Justamente trinta e dois anos depois de iniciar-se a
publicação da Gazeta do Rio de Janeiro, o Espírito Santo viu circular O Estafeta – primeiro jornal impresso na
terra (1840). Nasceu tão mofino que não passou do número inaugural. Saiu da tipografia do alferes Aires Vieira
de Albuquerque Tovar – que também foi a primeira aqui instalada. Nove anos após – a dezessete de janeiro de
1849 – da mesma oficina saiu o Correio da Vitória, fadado a uma vida longa e exornada de relevantes serviços à
província. Com ele começa a história do jornalismo capixaba.”; Maria Stella de Novaes (1969, p. 215) registrou:
“A 17 de janeiro de 1849, a província teve o seu primeiro jornal, o ‘Correio da Vitória’, de propriedade de Pedro
Antônio de Azeredo [...]. O ‘Correio da Vitória’ assinalou o início da história da imprensa no Espírito Santo.”
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 329.
315
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964.
p.196.
316
OLIVEIRA, op. cit., p. 364. Maria Stella de Novaes também registra a inauguração do Farol a 7 de setembro
de 1871. (NOVAES, op.cit., p. 255.).
317
NOVAES, op. cit., p. 263. José Teixeira de Oliveira ao diagnosticar a capital Vitória na década de 1870 registra
também: “a dezenove de fevereiro de 1874 foi inaugurada a estação de Vitória, e ligada a Capital com Itapemirim,
Campos e Rio de Janeiro Os correios, em 1861, possuíam dez agências distribuídas por diferentes localidades,
além da estação central – em Vitória.” OLIVEIRA, op. cit., p. 363.
125
capixaba do ano de 1889.”318 O autor ressalta, por outro lado, a presença do café no progresso
do Espírito Santo. Sem também realizar uma ampla abordagem sobre o assunto, José Teixeira
de Oliveira argumentou que ao longo do século XIX o “café, passo a passo, conquista a
liderança da economia capixaba”.319
Segundo ele, em “meados do século, a rubiácea alcançaria o lugar preeminente que vem
mantendo no conjunto dos produtos que constituem a riqueza do Estado.”320 Evidencia,
portanto, a queda na produção de açúcar que estava diretamente ligada ao crescimento do café,
considerando que assim foi
O café seria, dessa forma, seria a última grande conquista dentre as referidas pelos autores em
relação à trajetória do Espírito Santo no século XIX. É nesse viéis que Neida Lúcia encerra a
narrativa da Província espiritossantense, considerando que "o café havia ultrapassado de tal
forma o açúcar que passara a ser o sustentáculo da economia estadual" e, conclui que, no limiar
desse período: "O Espírito Santo avança em seu desenvolvimento." Nesta perspectiva, portanto,
se o Espírito Santo inaugurava esse século com o déficit do período colonial, seu término
apresentava uma nova condição. Se os três séculos de colonização abordados pelos autores
foram representados pelas dificuldades, impedimentos e marginalização, o século XIX
representou um novo momento da trajetória do Espírito Santo. E, como observamos, inaugurou
o percurso do progressivo desenvolvimento do Estado, que daria andamento com mais vigor no
período republicano, mas que concretizaria o caminho da superação do atraso com o projeto
desenvolvimentista a partir da década de 1960.
318
Ainda que interprete como incipiente a indústria do Espírito Santo, o autor ressalta a diversificação de atividades
e profissões: “Contudo, o Almanaque de Godofredo Silveira refere-se a fabricantes de cal, cigarros, licores,
cerveja, sabão, velas, baús, colchões, selas, aguardente, bem como a joalheiros, padeiros, farmacêuticos,
açougueiros, aparelhadores de gás, alfaiates, afinadores de piano, barbeiros, carpinteiros, marceneiros, douradores,
entalhadores, construtores navais, encadernadores, engenheiros, fogueteiros, ferreiros, serralheiros, funileiros,
armadores de igrejas, guarda-livros, ourives, pedreiros, pintores, professores de piano e de música, relojoeiros,
sapateiros, tipógrafos, fotógrafos, cabeleireiros, jornalistas, tecelões, caldeireiros, dentistas, doceiras, calafates,
médicos, advogados, modistas, mascates, capitalistas, negociantes, agricultores.” OLIVEIRA, José Teixeira de.
História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 398.
319
Ibid., p. 346.
320
Ibid., p. 259.
321
Ibid., p. 400.
126
Considerando que as obras História do Espírito Santo, O Espírito Santo é assim e História do
Estado do Espírito Santo construíram a narrativa histórica do progressivo desenvolvimento do
Espírito Santo. Diante do que foi exposto até o momento, cabem algumas reflexões que
envolvem tanto a construção de representações do passado do Espírito Santo como a formação
de um modelo de interpretação e escrita da história local. Ao observarmos a configuração desse
enredo elaborado pelos autores, identificamos dois importantes aspectos que envolvem o
sentido do passado instituído pelas narrativas. Primeiramente, identificamos que o sentido da
superação, constituído por meio da definição de eventos, circunstâncias e períodos, permitiu a
avaliação dos limites dessa interpretação vinculada ao discurso do desenvolvimento. Em
segundo lugar, argumentamos que a forma dessas narrativas apresentou uma determinação de
sentido instituída pelo modo de formatação do passado construído a partir da sequência
temporal dos fatos. Isso definiu a elaboração de uma história na qual a experiência do passado
tivesse sentido para aquele contexto de modernização do Espírito Santo, tornando significativa
a formulação da narrativa da superação do passado (atraso).
Tendo em vista essa perspectiva, observamos que a narrativa do atraso se preocupou com os
“desígnios do Espírito Santo”, que deveriam se realizar, em termos de progresso,
acompanhando o desenvolvimento da Colônia. Ao apontarem a não prosperidade da Capitania,
os autores definiram em seus roteiros os prejuízos ocasionados pelas dificuldades iniciais dos
colonizadores, a presença de capitães-mores desastrosos à frente da administração local.
Interpretação que pode ser estendida no tempo, principalmente, no que diz respeito à definição
do Espírito Santo como barreira da região das minas auríferas. A visão de Maria Stella de
Novaes, Neida Lúcia e José Teixeira de Oliveira ao definir o papel de trincheira como o
principal impedimento ao desenvolvimento da Capitania parece levar em consideração eventos
322
SOBRINHO, Sueni da Vitória. Capitania do Espírito Santo uma feitoria portuguesa no Atlântico Sul: a
pauta de comércio e a atividade mercantil (1600-1642). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013. p. 15-20.
127
posteriores, do século XIX, que acabaram atribuindo significado a esse período como um
momento de estagnação local. Assim, percebemos que os autores analisaram o Espírito Santo
no século XVIII limitados às fontes oficiais que apresentavam as medidas legais determinadas
pela Coroa à época da descoberta das minas. Consequentemente, como a principal razão de um
fracasso da economia colonial. No entanto, essa perspectiva levou em consideração, sobretudo,
os discursos progressistas dos governadores do início do século XIX bem como a política de
interiorização conduzida a partir desse momento. O que acarretou a oposição figurativa entre a
experiência negativa do século XVIII e o período de conquistas inaugurado com o século XIX.
No que diz respeito ao primeiro, segundo Rüsen, esse modelo de configuração do conhecimento
histórico caracteriza-se por narrativas exemplares, ou seja, do passado como lição a ser
aprendida.323 O sentido do passado estabelecido pelos autores na trajetória do Espírito Santo
apresentou uma memória histórica voltada para os conteúdos da experiência do passado local
que passaram a representar regras e modelos. Assim, o passado do Espírito Santo apresentou-
se marcado pelo atraso, construído por meio de obstáculos e característicos de sua formação.
Uma condição de atraso, por sua vez, que passou a validar a narrativa do desenvolvimento. A
“história dos obstáculos”, a “história da marginalização”, ou a “história da origem do atraso”
do Espírito Santo, identificando no passado aspectos negativos e positivos, possibilitou a
produção de uma história na qual o Espírito Santo foi narrado seguindo o princípio do
progresso, correspondente ao paradigma do desenvolvimento.
Esse caráter modelar do passado, além de presente na formatação historiográfica, pode ser
observado, por exemplo, na preocupação de Maria Stella de Novaes em direcionar sua obra
323
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007.p. 51-53.
128
324
A autora ressalta o passado do Espírito Santo como sendo composto por diferentes personalidades, exemplos a
serem seguidos. NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito
Santo, 1964. p. 11. Na nota da edição da obra, sem autor identificado, provavelmente do editor, observamos que
o comentário afirma que o conhecimento da história do Espírito Santo estava voltado para “apontar o futuro com
o exemplo do passado, principal missão da história.”
325
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007. p.54.
326
Ibid., p. 58.
327
Ibid., p. 59.
129
Evidenciamos, portanto, a correspondência entre discurso político das décadas de 1960 e 1970
e a narrativa histórica da superação do atraso. Os autores Maria Stella de Novaes, José Teixeira
de Oliveira e Neida Lúcia delinearam uma forma de narrar historicamente o Espírito Santo. Não
encontramos nessa narrativa conceitos como o de "subdesenvolvimento" que marcaram a
interpretação do discurso político. Ou ainda, suas abordagens, mesmo preocupadas com o
desenvolvimento do Espírito Santo, não corresponderam a fundamentos ou referências de um
domínio da história econômica. No entanto, a narrativa tradicional que apresentaram constituiu
um saber histórico compatível com o discurso político da superação do atraso. O passado foi
recuperado como aprendizado para agir no presente apresentando um conhecimento histórico
legitimador do projeto político-econômico da época: capaz de explicar a condição de atraso
histórico do Espírito Santo bem como evidenciar a busca por sua superação.
Sendo assim, observamos a emergência num dado momento de discursos políticos que tiveram
sua manifestação na escrita da história. A narrativa histórica do progressivo desenvolvimento
instituiu um discurso sobre o passado do Espírito Santo, apresentou-se como um discurso
fundador, inaugurando uma discursividade, uma determinada narrativa do passado local e
atribuindo um sentido a ele. Um modo de explicar o Espírito Santo. Para Hobsbawm o passado
tem a capacidade de dar sustentação, elaborar um pano de fundo, de permitir que esse passado
seja satisfatório num determinado contexto presente,328 e, a eficácia do uso da história reside
justamente na apresentação de um passado satisfatório.329 A narrativa histórica da superação do
atraso instituiu essa visão.
328
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.p. 17-20.
329
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 1.
131
A abordagem das obras História do Estado do Espírito Santo, História do Espírito Santo e O
Espírito Santo é assim revelou uma série de sujeitos históricos que tiveram sua imagem
construída ao longo das narrativas. Nesse modelo de escrita da história e o enredo elaborado
pelos autores, temos como elementos centrais das narrativas as ações individuais ou de
determinados grupos como condutoras da trajetória do Espírito Santo, o que nos encaminhou
para uma análise da constituição dessas representações.
A produção histórica representada por José Teixeira de Oliveira, Maria Stella de Novaes e
Neida Lúcia instituiu o lugar e o valor de diferentes atores históricos do Espírito Santo,
definidos em função do sentido dado à trajetória de fundação e superação do atraso elaborada
pelos atores. Dessa forma, a principal questão que envolve os diferentes personagens do
passado local é a seguinte: compreender porque e como alguns sujeitos são lembrados de forma
positiva e com papéis preponderantes para a trajetória do Espírito Santo enquanto outros,
quando não são simplesmente apagados, surgem nas narrativas com uma imagem negativa e
sua lembrança está associada a eventos e circunstâncias consideradas prejudiciais para o
desenvolvimento da sociedade espiritossantense.
Tal questão torna-se importante uma vez que a historiografia tem seu papel na memória
instituída sobre determinados grupos. Sobre esse aspecto, para introduzirmos nossa abordagem
sobre essa questão, ressaltamos aqui a preocupação de Vânia Moreira quando diante da
necessidade de se resgatar os vestígios de uma memória indígena no Espírito Santo:
330
MOREIRA, Vânia Maria Lousada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale
do rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001. p.
100.
132
A oposição da autora à condição de ausência dos indígenas na memória local evidencia um dos
limites da narrativa histórica do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo. Analisando a
questão na obra História do Estado do Espírito Santo, Vânia Moreira realiza a seguinte crítica:
Seu livro faz parte de uma produção historiográfica influenciada pelo que hoje
qualificamos de escola metódica cujos limites são bem conhecidos. Mas a
popularização da maneira metódica de escrever-se a história nem sempre produz os
melhores frutos.331
A autora identifica que a narrativa se tornou uma referência negativa no que tange a imagem e
o lugar ocupados por determinados sujeitos históricos na memória local. São narrativas
detentoras de um enredo cujo significado produz lembranças e esquecimentos e reforçam
hierarquias. A reivindicação de Vânia Moreira evidencia como a memória organizada “constitui
um objeto de disputa importante,” sendo “comuns os conflitos para determinar que datas e que
acontecimentos vão ser gravados na memória” de uma coletividade.332Argumentamos que as
obras aqui analisadas produziram determinadas representações ligadas ao Espírito Santo, uma
“memória estruturada com suas hierarquias e classificações.”333 Nessas, em função da trajetória
do progressivo desenvolvimento, os autores classificaram e hierarquizaram personagens-
símbolos do passado espiritossantense.
331
MOREIRA, Vânia Maria Lousada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale
do rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001.
p.106.
333
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989,
p. 3.
334
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 50-52.
133
Segundo Juçara Leite, nas primeiras décadas do século XX, como não existia no Brasil uma
tradição universitária, coube ao IHGB e seus institutos regionais a produção do conhecimento
histórico. O IHGES, assim como seus pares, tornou-se espaço de sociabilidade das elites
intelectuais que passaram a ser formuladoras das interpretações de Espírito Santo. Além da
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo os meios de publicação foram os
livros financiados pelos próprios autores, o que definiu uma geração de “historiadores” sem
formação acadêmica específica. Assim, “eram ‘historiadores’ médicos, advogados,
engenheiros”. Para Juçara Leite, configurou-se uma produção do conhecimento histórico por
meio de uma abordagem memorialista, com uma concepção de história “magistra vitae” 335 e
marcada pela preocupação com o futuro.336
Nesse cenário, intelectuais como Mário Aristides Freire, Archimino Martins de Mattos,
Antônio Athayde, Elpídio Pimentel e Carlos Xavier Paes Barreto colaboraram com a produção
histórica local a partir de uma perspectiva de culto ao passado. A escrita da história
caracterizou-se pela busca por exemplos ilustradores das experiências anteriores e,
consequentemente, na construção de heróis da história do Espírito Santo. Naquela época, a
constituição de um mito espiritossantense de dimensões nacionais tinha como significado a
tentativa de fazer o Espírito Santo reconhecido politicamente em nível nacional. Domingos
Martins337 foi eleito o primeiro herói local. Com ele, argumenta Juçara Leite, estabelecia-se um
regionalismo na formação do herói, uma vez que sua figura identificava o Espírito Santo ao
Brasil, pois representava o herói local com projeção nacional.
A partir da década de 1930, Domingos Martins passou a conviver com outros dois vultos do
passado espiritossantense: José de Anchieta338 e o índio Arariboia. As imagens desses
335
Rüsen caracteriza de constituição exemplar de sentido a formatação historiográfica correspondente à história
magistral vitae, narrativas nas quais é possível identificarmos que os elementos tornados presentes pela
historiografia exerce a função de modelares para a ação do presente. RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da
história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed. UnB, 2007. p. 51.
336
LEITE, Juçara Luzia. Construção indenitária e livro didático regional de História: uma prática geracional de
escrita de si. In: OLIVEIRA, Margarida M. Dias de; STAMATTO, Maria Inês Sucupira (orgs). O livro didático
de história: políticas educacionais, pesquisas e ensino. Natal: Ed.UFRN, 2007. p. 189-191.
337
Domingos Martins, de origem capixaba, tornou-se o primeiro herói da história do Espírito Santo devido a sua
participação na Revolução Pernambucana de 1817. Tal como outros membros do movimento, foi preso e fuzilado
no mesmo ano. A partir da década de 1920, Domingos Martins passou a figurar nos discursos como personagem
representativo do Espírito Santo. Segundo Juçara Leite, no IHGES, “[...] as discussões intelectuais locais estavam
inseridas num contexto nacional de uma mentalidade republicana e, consequentemente, numa ideia de Pátria.”
LEITE, Juçara Luzia. Natureza, folclore e História: a obra de Maria Stella de Novaes e a historiografia
espiritossantense no século XX. Tese de Doutorado. 352 p. São Paulo: FFLCH/ USP, 2002. p. 86.
338
A valorização dos Jesuítas já fazia parte da tradição historiográfica brasileira desde a implantação do IHGB,
justamente voltada para a relação com os indígenas. Segundo Danilo Ferreti: “A tradição à qual os membros
indianistas do IHGB procuravam se vincular, ainda que com algumas reservas, era a tradição cristianizadora dos
134
No entanto, a busca pela valorização do Espírito Santo no passado cedeu lugar à representação
do atraso, o que implicou, também, na apropriação dos personagens históricos. Não é correto
afirmar que essa perspectiva de valorização de determinados indivíduos no passado local tenha
sido abandonada. Como observamos, o discurso fundador permite a produção de novos sentidos
mas se insere numa discursividade já instalada.341 Nas obras de José Teixeira de Oliveira, Maria
Stella de Novaes e Neida Lúcia encontramos personagens históricos que ganharam lugar nas
narrativas a partir da exaltação de seus feitos que, por sua vez, correspondiam a um lugar de
destaque do Espírito Santo, de sua participação na trajetória da história nacional. Dentro da
divisão de períodos e da sequência cronológica do passado local e nacional nas quais se
Assim, demonstraremos como o "problema indígena" é um dos aspectos que envolvem a escrita
da história local. Por meio de oposições figurativas presentes nas narrativas, selecionamos e
ordenamos seus personagens históricos, evidenciando como se configurou lembranças e
ausências, imagens positivas e negativas, destaques e exaltações, bem como depreciações e
estereótipos que o paradigma de análise e os limites do mesmo instituíram para a memória local.
342
Nas três obras aqui analisadas, o sentido da história do Espírito Santo é definido pela sequência cronológica.
Com isso, a narrativa sobre o Espírito Santo foi construída seguindo a história do Brasil. Assim, encontramos ao
longo das tramas, um conjunto de acontecimentos que evidenciam a participação do Espírito Santo no contexto
nacional. Consequentemente, determinados atores históricos representaram a colaboração do Espírito Santo à
história do Brasil. Por exemplo, entre outros, Domingos Martins e Maria Ortiz são inseridos nas narrativas como
personagens locais que colaboraram com a história do Brasil. Os autores mantêm a mesma perspectiva de
interpretação da produção historiográfica representada pelo IHGB, exaltando seus feitos, sendo Maria Ortiz em
prol da defesa da colônia frente a invasão estrangeira e Domingos Martins como mártir da liberdade por ter
participado do movimento emancipacionista em Pernambuco em 1817. No entanto, a constituição de sentido da
história local seguiu o progressivo desenvolvimento espiritossantense, com foco em outros atores históricos que
delinearam a trajetória do Espírito Santo.
136
Não poderíamos deixar de iniciar com Vasco Fernandes Coutinho. Consideramos que ele é o
personagem símbolo dessa perspectiva de análise. Entendemos que sua figura concentra e
sintetiza, de certa maneira, a avaliação dos autores sobre o início da formação do Espírito Santo.
Ele foi representado como o fundador e o vínculo inicial entre o Espírito Santo e a história do
Brasil. No entanto, por meio dessas narrativas que tiveram nas realizações dos governantes o
fio condutor da trajetória espiritossantense, a experiência do fundador Vasco Fernandes
Coutinho à frente da capitania refletia a própria história do Espírito Santo. Cabe ressaltar que
dentre os autores, Neida Lúcia não aborda a experiência de Vasco Fernandes Coutinho tal como
os outros dois autores, daí, em sua obra o primeiro donatário aparece, junto com outros
governantes, retratados em suas dificuldades, correspondentes à condição da capitania, porém,
representados como heróis, no sentido de resistirem às dificuldades.343
Vasco Fernandes Coutinho é retratado pelos autores tendo o seu perfil delineado entre o passado
glorioso, de suas atividades no oriente, e sua condição perante os novos desafios da colonização
portuguesa na América.344 Coutinho345 era “fidalgo da casa real” e deveria conter “o suficiente
para uma existência folgada.”346 No entanto, os autores contrastam sua origem de fidalgo com
343
Segundo a autora, os colonizadores conseguiram "a duras penas, a integridades de seu território, quantos lhe
assumiram a governança, nesse período que pode ser classificado de heroico, tais o destemor, o desprendimento e
a tenacidade ante a agressividade dos óbices que o caracterizaram.” MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito
Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 26. Nessa perspectiva, argumenta que no quadro geral das capitanias,
a condição do Espírito Santo era negativa e por isso seria difícil avaliar os donatários. Ibid., p. 29.
344
José Teixeira de Oliveira ressalta a apreciação em relação ao histórico do donatário: "Aliás, é o próprio soberano
quem lhe atesta os méritos militares quando, na introdução da carta de doação, diz: ‘Esguardando eu aos muitos
serviços que Vasco Fernandes Coutinho, fidalgo de minha casa e El-Rei meu Senhor e pai que santa glória haja e
a mim tem feito assim nestes reinos como em África e nas partes da Índia onde serviu em muitas coisas que se nas
ditas partes fizeram, nas quais deu sempre de si mui boa conta'." OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado
do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 27.
345
Maria Stella de Novaes também registra essa condição assumida por ele: “Vasco Fernandes Coutinho, que foi
capitão de navio e alcaide-mor de Ormuz, regressou à Europa, em 1522, e desembarcou na lendária praia de
Restelo, decidido a estabelecer-se, na sua propriedade o solar de Alenquer, amparado nos seus rendimentos: cem
mil réis de moradia, na matrícula de 1449, e três mil réis, como fidalgo na matrícula de 1450, além de uma tença
que Dom João III lhe concedera, como prêmio de suas façanhas, na Índia” NOVAES, Maria Stella de. História
do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 13.
346
OLIVEIRA, op.cit., p. 28. Essa também e a interpretação utilizada por Neida Lúcia: “O donatário, Vasco
Fernandes Coutinho, era um homem da melhor fidalguia. Servira em Goa, na China e na África. Depois dessas
campanhas devia ser um homem rico, ou, pelo menos, a salvo das dificuldades materiais da vida. Não era um
personagem notável na Metrópole, nem sua empresa foi objeto de grande interesse para uma população fortemente
excitada pela fama das riquezas do Oriente." MORAES, op. cit., p. 15.
137
seu espírito aventureiro, bem como evidenciam que a necessidade de realizar os preparativos
de sua jornada colonizadora já anunciava as dificuldades a que deveria enfrentar, o que marcaria
sua experiência na capitania do Espírito Santo. Maria Stella de Novaes narra o início desse
empreendimento considerando que “o arrojo de uma colonização em terras ignotas conduziu o
donatário a desfazer-se de tudo o que possuía e trocar as vantagens de fidalgo da Casa Real pelo
equipamento de um transporte que o levasse àquele lugar do Brasil.”347A mesma passagem
registrada pela autora é apresentada por José Teixeira de Oliveira como os “primeiros
sacrifícios”348 de Vasco Fernandes Coutinho, o que anunciava uma vida diferente na colônia:
Não fora, de certo, para viver encurralado num arraial, a guerrear com os flecheiros
das selvas, que o donatário do Espírito Santo se desterrara para a sua bárbara capitania
brasileira”[...] Endividado, sem outros recursos de que lançar mão, entrado em anos e
naturalmente combalido pelas canseiras da vida militar a que dedicara a sua mocidade,
não era cômoda nem invejável a situação do ex-alcaide de Ormuz.349
Diante desse contraste que passou a caracterizar a figura de Vasco Fernandes Coutinho,
percebemos que sua imagem foi construída associada à sua busca por um desenvolvimento da
Capitania que não se realizou, integrada às circunstâncias de sacrifício e dificuldades. Os
autores não deixaram de registrar o empenho do primeiro donatário para o progresso de sua
capitania. Maria Stella de Novaes reconhecia na figura do primeiro donatário alguém
preocupado com o “progresso da sua propriedade” e que suas ações foram direcionadas para
esse objetivo, mesmo diante das dificuldades.350Nessa perspectiva também o qualificou José
Teixeira de Oliveira. Ao tratar dos primeiros desbravamentos de Coutinho, o autor ressalta o
esforço e a dificuldade:
347
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
14.
348
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 28.
349
Ibid., p. 39.
350
NOVAES, op. cit., p. 20-21.
138
Com o escasso grupo de que dispunha, não podia se aventurar à conquista de tesouros
no interior.351
Quatro anos após sua chegada à terra brasileira – vencidos os tropeços iniciais,
colhidos os primeiros resultados do trabalho geral – Vasco Coutinho deve ter
constatado que até então mal conquistara uma posição. O futuro, a riqueza, a glória,
escondidos no seio da floresta, pousados na serra de Mestre Álvaro e além,
chamavam-no, seduziam-no com o encantamento do desconhecido. Mas para ir até lá,
tentar as minas, alargar a conquista, fazia-se mister mais gente, mais recursos
materiais. [...] Se a solução estava em Portugal, isto é, se havia necessidade de maior
número de brancos para levar avante a empresa, e esses deviam vir da metrópole, só
havia um caminho a seguir: ir buscá-los. Foi o que se presume ter levado o donatário
ao Reino, em princípios de 1540.352
[...] Alguns cronistas, entre os quais Basílio Daemon, admitem que tenha o donatário
realizado mais de uma viagem à Corte, mesmo por que seria incoerência com seu zelo
pela Capitania demorar-se por tantos anos, na Europa. O certo, porém, é que encontrou
a decadência da sua propriedade e a Villa devastada. Contristou-se, perante a ruína do
seu ‘Vilão Farto’!355
351
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 46.
352
Ibid., p. 48.
353
Ibid., p. 47.
354
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
20.
355
Ibid., p. 22.
139
José Teixeira de Oliveira narra essa mesma viagem considerando que em seu retorno, o “vilão
farto, de que tanto se orgulhava o donatário, convertera-se em ruínas.”356 O autor dá sequência
aos relatos sobre essa ausência de Vasco Fernandes Coutinho e suas implicações:
Presume-se que tenha estado na Europa entre 1550 e 1555. Em abril de 1551, Pero de
Góis, de volta do sul, escrevia ao rei, informando: ‘Fui ter ao Espírito Santo terra de
Vasco Fernandes Coutinho [...] estive aqui cinco ou seis dias por a terra estar quase
perdida com discórdias e desvarios dos homens, por não estar Vasco Fernandes nela
e ter ido não sei lá onde [...].”
Não havia, pois, notícia sobre o paradeiro do donatário e as discórdias dividiam a
população. Dois anos depois, finda a inspeção que realizara pela costa, Tomé de Sousa
dava conta a Sua Majestade do que vira e fizera durante a viagem. Referindo-se ao
senhorio de Vasco Coutinho, assim se expressou:
‘O Espírito Santo é a melhor capitania e mais abastada que há nesta costa mas está tão
perdida como o capitão dela Vasco Fernandes Coutinho [...] mas V. A. deve mandar
capitão ou Vasco Fernandes que se venha para ela e isto com brevidade.’
Muito descera o valoroso soldado de Afonso de Albuquerque para ser apontado como
perdido [...] Aquele ‘que se venha para ela’ dá quase a certeza de que Tomé de Sousa
sabia Vasco Coutinho achar-se em Portugal. Parece um recado ao administrador
negligente.359
O autor apropria-se da crítica realizada por Tomé de Sousa à condição da Capitania do Espírito
Santo para caracterizar a displicência de Vasco Fernandes Coutinho, o que implicou nessa
associação entre o donatário e o Espírito Santo. A insuficiência de suas realizações foi indicada
por José Teixeira ao retratar o fim do primeiro fundador:
Vasco Coutinho faleceu em 1561, ‘tão pobremente que chegou a lhe darem de comer
por amor de Deus, e não sei si teve um lençol seu em que o amortalhassem’. Houve,
356
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 57.
357
Ibid., p. 23, parênteses do autor.
358
Maria Stella de Novaes retrata as consequências negativas de sua ausência: "Seguiu-se no Espírito Santo um
período de decadência, porque na falta do Donatário, em viagem forçada, para a obtenção de recursos necessários
ao desenvolvimento da capitania, seus substitutos faltaram a confiança neles depositada. Dizia Pero de Góis que
‘a terra estava quase toda perdida com discórdias e desvarios dos homens e não estar Coutinho nela, e ter ido não
se sabia para onde'." NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito
Santo, 1964. p. 29.
359
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 68.
140
certamente, algum exagero nestas palavras de frei Vicente do Salvador, muito amigo
de construir frases de efeito. Entretanto, força é convir que os dias de Coutinho no
Brasil foram uma ininterrupta sucessão de trágicos acontecimentos. Senhor de um lote
privilegiado, dispondo de alguns auxiliares tão bons como os melhores que viviam no
Brasil da época, beneficiado pela presença e colaboração dos jesuítas, favorecido com
a proximidade da Bahia, de onde recebeu auxílios vitais em momentos críticos – tudo
foi insuficiente para levar avante o esforço do pobre donatário. 360
Seguindo essa perspectiva, encontramos em José Teixeira de Oliveira a marca dessa crítica
direcionada aos não-colaboradores da história capixaba, principalmente, aos que eram
governantes, responsáveis pela condução da capitania. Por exemplo, quando o autor avalia o
donatário Manuel Garcia Pimentel, o critério utilizado em sua apreciação foi justamente o do
papel que coube a ele para os prejuízos futuros do Espírito Santo. Dessa forma, o autor
caracteriza o “donatário displicente”:
360
José Teixeira de Oliveira ressalta a dificuldade de governança de Vasco Fernandes Coutinho ao ponderar
elementos de seu perfil: “Os que se têm ocupado da sua personalidade negam-lhe dotes de chefia, atribuindo-lhe
vícios e falta de energia para enfrentar os malfeitores que se acoitavam na capitania, todos ou quase todos agentes
da sua ruína. Há demasiado rigor no julgamento. Quem tivesse a responsabilidade de povoar uma parcela do
território brasileiro àquela hora, tão pobre e tão avaro em recompensas, não poderia ter a veleidade ridícula de um
chefe de disciplina colegial. Conceda-se que não foi suficientemente hábil para conter ‘a avidez de lucros e a sede
de ouro que, nos primeiros tempos, extinguiram todos os sentimentos humanos dos colonizadores europeus’, mas
que seja feita justiça à dedicação, à generosidade, à bravura, solidariedade e espírito magnânimo do primeiro
donatário. Não o acusam de um só ato injusto, de uma opressão, da prática de uma vingança.” OLIVEIRA, José
Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 97.
361
Ibid., p. 177. Observamos, anteriormente, que um dos fatores definidos pelos autores como responsáveis pelas
dificuldades do Espírito Santo colonial foi a ausência dos donatários frente à capitania governada pelos capitães-
mores. A partir desse entendimento é que compreendemos a ironia de José Teixeira ao qualificar a presença de um
capitão-mor na categoria de colaborador do progresso da capitania. Assim se refere o autor: “Milagre dos milagres:
141
Se por um lado, os dois donatários foram exemplos negativos, por outro, um conjunto de
indivíduos figurou no enredo histórico como protagonistas da história local.362 Personagens
cuja significação foi definida em função de suas realizações em prol do destino do Espírito
Santo. Uma linha de continuidade que caracterizou a trajetória do progressivo desenvolvimento.
Do período colonial até o período republicano.
um capitão-mor – Manuel da Rocha de Almeida – intentou, e parece que realizou, a construção de “uma força” na
praia de Vitória. Seria pequena fortificação destinada a proteger a vila e que, no entender de Mário Freire, reflete
o seu desenvolvimento.” OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação
Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 140.
362
Os autores privilegiaram em suas narrativas os governantes e administradores do Espírito Santo. No entanto,
outros também figuraram como representantes dessa oposição entre colaboradores e obstáculos do progresso.
Maria Stella de Novaes oferece um exemplo que se caracterizou em contraponto aos impedimentos trazidos ao
Espírito Santo pelas determinações da Coroa portuguesa em relação à condição de “barreira verde” assumida pela
Capitania espiritossantense. Apontada como um dos fatores do déficit do Espírito Santo no período colonial, tal
condição colaborou para caracterizar a imagem de Pedro Bueno Cacunda como homem “sempre atento às minas
auríferas”, identificado pela busca de superação. A autora ressalta sua atuação em sentido contrário às
determinações da Coroa. Temos sobre ele: As atividades de Pedro Bueno Cacunda [...] continuavam a despertar o
interesse do Governo Geral que, por isso, proibiu ‘descobertas’ de minas, segundo, ordem de El-Rei, antes que se
fortificassem a Capitania. [...] Avesso às ordens superiores contrárias à exploração do interior da capitania, varava
os sertões e iludia os delegados de El –Rei. Declarava suas riquezas e concorria, assim, para o povoamento do
Espírito Santo. Audaz bandeirante, chegou mesmo a dirigir-se ao El-Rei, com a narrativa de sua odisseia e pedido
da Superintendência das Minas, das passagens dos rios Manhuaçu, Guandu e Itapemirim [...].”NOVAES, Maria
Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 86-88.
363
Ibid., p. 40.
142
Espírito Santo era ‘o melhor açúcar que há em todo o Brasil’. Dizia ainda que ‘os
moradores vivem abastados de mantimentos da terra, como de fazendas’. 364
José Teixeira de Oliveira segue esta avaliação, valorizando a importância deste donatário
naquele cenário de impedimentos e atraso do Espírito Santo colonial:
Progresso é o termo que caracteriza o governante. Essa é também a valorização que Neida Lúcia
atribuiu à Gil de Araújo:
Maria Stella de Novaes o associa, além disso, à noção de prosperidade. Segundo a autora, ele
“incentivou a lavoura”, “assistiu aos moradores com todos os meios, para que os seus engenhos
progredissem, de par com as lavouras que, nesse tempo, avultavam consideravelmente.”367Em
José Teixeira de Oliveira, observamos o destaque para o caráter progressista de uma
administração que “distinguiu-se pelas obras que levou a termo”:
364
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
38.
365
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 102-103. O autor evidencia a marca positiva da colaboração do filho do primeiro donatário para o
porvir do Espírito Santo: “A administração de Coutinho (filho) distinguiu-se, principalmente, pelo sentido de
estabilidade que imprimiu ao senhorio. Foi durante sua gestão, graças à paz e sossego reinantes, que os habitantes
conseguiram fixar-se, em definitivo, na terra e demonstrar, pela construção de engenhos, desenvolvimento efetivo
da catequese e levantamento da igreja dos jesuítas – para apontar tão-somente três expressivas demonstrações de
desejo de fixação na gleba – confiança no futuro e preocupação de continuidade na nova pátria.” (Ibid., p. 109.).
366
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 30.
367
NOVAES, op. cit., p. 73. Dessa forma, ela apresenta o diferencial desse governante: "[...] em a Terra Goitacá,
de Alberto Lamego diz que: - Enquanto a Capitania da Paraíba do Sul, administrada por Vasqueanes e, ausentes
seus donatários, continuava estacionária. A do Espírito Santo, governada pelo próprio Francisco Gil, prosperava.
[...] Em confirmação das referencias à atividade desse donatário, notemos ainda que consertou a Casa da Câmara,
em Vitória. Em Vila Velha, mandou fazer a Casa da câmara que havia desaparecido, e deu sepultura condigna aos
ossos de Vasco Fernandes Coutinho." Ibid., p. 73-74.
143
primor foi causa do incremento que teve nesse tempo a lavoura de cana de açúcar
[...].368
Foi, assim, retratado como o “homem de mais ampla visão dentre os que passaram pela
administração capixaba na fase colonial.”369 Por meio desses perfis, observamos como se
constituíram as narrativas marcadas pela noção da superação do atraso. Estes governantes do
período colonial ganharam um lugar no passado que estavam de acordo com o desenvolvimento
do Espírito Santo, ainda que o período colonial fora classificado como o da origem do atraso.
Seguindo a linearidade temporal das obras de Neida Lúcia, José Teixeira de Oliveira e Maria
Stella de Novaes, a caracterização associada a alguns governantes que marcaram o século XIX,
por sua vez, correspondia à própria imagem que foi elaborada acerca desse período. Aos
acontecimentos e marcos cronológicos vinculados ao progresso, estavam os responsáveis pelo
desenvolvimento. São exemplares, nesse caso, os governantes Silva Pontes e Francisco Alberto
Rubim.
Nas narrativas, ambos foram responsáveis por inaugurar o roteiro da superação. O primeiro foi
descrito como “um homem de conhecidas luzes e préstimo.” Maria Stella de Novaes evidenciou
suas realizações em prol do desenvolvimento do Espírito Santo, sobretudo em relação à busca
por vias de comunicação, e sua viabilidade, com Minas Gerais, definindo-o como administrador
operoso.370 Neida Lúcia associou o governante à "recuperação do tempo perdido" com as novas
possibilidades trazidas por Silva Pontes em relação ao fim dos impedimentos frente à região
das minas.371 José Teixeira de Oliveira, tratando das expectativas que surgiam com o século
XIX, o situa dentro de uma nova relação, considerada revolucionária, e benéfica, da metrópole
com o Espírito Santo.372 O governante aparece na narrativa em consonância com a modificação
daquilo que prejudicava o Espírito Santo, o acesso à região das minas. Progresso, dinamismo e
368
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 158.
369
Ibid., p. 159.
370
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
106. A autora o indica como alguém preocupado com o desenvolvimento do Espírito Santo: “interessado pelas
vias de comunicação com o interior da Capitania, o Governador Silva Pontes mandou reconstruir a Ponte de
Passagem, com pregões de alvenaria e de acordo com a planta de sua própria autoria.” Ibid., p. 108.
371
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 34.
372
Segundo o autor, o esse governante “trazia especialmente recomendada a abertura e navegação do Rio Doce.
[...] A nova atitude da metrópole em relação aos meios de comunicação entre o Espírito Santo e Minas Gerais bem
merece o qualitativo de revolucionária.” OLIVEIRA, op. cit., p. 244. José Teixeira de Oliveira também atenta para
essa preocupação com a região do Rio Doce: “Sua pré-memória de 1802 testemunha o carinho com que
encaminhava a solução dos problemas ligados ao rio, que, oficialmente, abriu à navegação, tida, aliás, por
impossível.” Ibid., p. 250.
144
A noção de colaboração e legado também marca a imagem criada sobre o governador Rubim.
Neida Lúcia também ressalta a memória acerca desse governante:
Por essa época (1812) desembarcou em Vitória um novo governador, homem íntegro
e de grande capacidade de trabalho. Era Francisco Alberto Rubim, que dirigiu os
destinos do Espírito Santo por sete anos e deixou traços tão visíveis de sua passagem,
que um século e meio depois ainda admiram os que olham, mesmo de relance, a
história de nossa terra.375
Para Maria Stella, ele teve uma “administração laboriosa e segura”, sendo ele um governante
que “prestou valiosos serviços ao Espírito Santo.”376 Essa era a imagem do Espírito Santo à sua
época, uma “capitania em franco desenvolvimento”. A autora evidenciou suas
realizações.377José Teixeira teve a mesma proposta da autora. Em sua narrativa são elencadas
as realizações do governante e sua importância foi definida em termos de realizações em
benefício do progresso espiritossantense. Nessa perspectiva, ele argumenta que Rubim realizou
“uma administração ativa, benéfica e empreendedora.” 378
373
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 249.
374
Ibid., p. 254.
375
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 35.
376
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
115.
377
Ressaltou a busca pela interiorização: “[...] muito justamente pode-se considerar o Governador Rubim o
fundador da atual Cidade de Cachoeiro do Itapemirim, com o Quartel de barca, levantado ‘na margem-Sul do Rio
Itapemirim, de fronte da primeira cachoeira, seis léguas para o sertão da Vila do Itapemirim.” Ibid., p. 126.; Segue
a autora: "[...] Pelo extraordinário empenho, na abertura de estradas, recebeu o Governador Rubim uma Carta-
régia, datada de 4 de dezembro de 1816, que louvava sua atividade, tanto naquela empresa quanto no
desenvolvimento da lavoura, incentivo à mineração, e à navegação nos rios da Capitania." Ibid., p. 120-121.
378
OLIVEIRA, op. cit., p. 259. José Teixeira de Oliveira segue a mesma análise de Maria Stella de Novaes.
Apresenta o caráter de bom administrador compromissado com o progresso do Espírito Santo. Para isso, evidencia
uma série de realizações do governador frente à administração da capitania do Espírito Santo. Ibid., p. 256-259.
379
Maria Stella de Novaes foi a autora que deu mais ênfase às características de alguns governantes em função de
suas respectivas colaborações para o desenvolvimento do Espírito Santo. Sobre o governo de Costa Pereira: “o Dr.
José Fernandes da Costa Pereira Júnior, que prestou juramento e entrou em exercício, a 22 de março. Dedicou-se
sinceramente ao Espírito Santo, porque nascido em Campos, a 20 de janeiro de 1883, quando a Paraíba do Sul era
parte desta província, o Dr. Costa Pereira considerava-se realmente capixaba, mesmo como deputado federal e,
145
Não obstante, foi essa a característica presente nos governantes do período republicano. Estes
foram classificados em função do seu papel de propulsores do progresso, como personagens-
símbolo de um novo momento que conduziu o Espírito Santo para a superação do atraso via
industrialização. Ao caracterizar o início do período republicano no Espírito Santo, José
Teixeira de Oliveira evidenciava que essa nova fase do Estado se deu, principalmente, pela
"ação exercida por uma elite saída dos próprios quadros locais e que, desde as primeiras horas
do novo regime, assumiu o controle dos negócios públicos."380Nesse sentido, as obras se
apresentam, ao longo das narrativas do Espírito Santo republicano, como um sequência de
realizações desses indivíduos na condução do Estado para o futuro.381
Até a década de 1930, foram destacados Muniz Freire, Jerônimo Monteiro e Florentino Ávidos.
Em relação ao primeiro, José Teixeira o define como marco para o Espírito Santo, por seu
"espírito progressista e realizador":
depois, Ministro do Império. Sempre cuidou da colonização da Província. Construiu a estrada do Queimado até as
primeiras clareiras do Rio Santa Maria da Vitória, a fim de facilitar o desenvolvimento da Colônia de Santa
Leopoldina. Defendeu a Província, quando Minas Gerais invadiu as povoações do Veado e São Pedro. Amparou
a Colônia do Rio Novo. Em homenagem de gratidão dos capixabas, o aterro da Prainha, depois de urbanizado,
recebeu o nome de Praça Costa Pereira.” NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo
Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 244. Sobre o governo de João Tomé da Silva, temos: “1873 – Assumiu o
Governo da Província, a 28 de dezembro de 1873, o Dr. João Tomé da Silva, que muito influiu no progresso da
cidade, quer zelando pela instrução do povo, quer intensificando melhoramento de real importância.” Ibid., p. 279.;
E ainda: “Dr. Marcelino de Assis Tostes, que realizaria intenso e proveitoso Governo, até 24 de março de 1882[...]
A 24 de agosto, dizia um cronista: - 'Homem de uma vida dirigida e laboriosa, o Presidente Tostes não ficou no
pedestal que o povo do Espírito Santo e as populações dos municípios lhe ergueram; na lembrança de ter
conseguido a estrada-de-ferro'." Ibid., p. 282.
380
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 407.
381
Nossa análise focalizou-se nos governos estaduais que foram destacados pelos autores a partir de enunciados
que os definiam como elementos da categoria progresso. A tendo em vista as referências usadas pelos próprios
autores. Assim, nem todos os governos foram citados.
382
Ibid., p. 413.
146
Esse quatriênio fez época na terra capixaba, marcando dois períodos: o Espírito Santo
antes do governo Jerônimo Monteiro e o Espírito Santo após esse governo. [...] Sua
operosidade estendeu-se ao Estado inteiro, abrangendo todos os setores da
administração pública. 385
Já Maria Stella de Novaes define o início de seu governo como o de uma "verdadeira renovação
política-social para o Espírito Santo".386 Sobre a administração de Jerônimo Monteiro a autora
ressalta o desenvolvimento da capital Vitória e sua preocupação "no sentido de movimentar a
indústria e todos os demais recursos do progresso e consequente independência econômica do
Estado."387 Já José Teixeira de Oliveira sintetizou sua atuação por seu "programa de amplas
realizações" no qual "o Estado experimentou largos benefícios da ação governamental." 388
383
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
320
384
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 44.
385
Ibid., p. 46.; José Teixeira de Oliveira também ressalta esse governo como marco: "Vale ressaltar que Jerônimo
Monteiro realizou obras tão vultosas – até hoje lembradas em meio às mais gratas referências pelos capixabas."
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 420.
386
NOVAES, op. cit., p. 365.
387
Ibid., p. 373.
388
Segundo o autor: Durante o quadriênio Jerônimo Monteiro, o Estado experimentou largos benefícios da ação
governamental: abertura de estradas, fomento da produção agrícola, melhoria dos rebanhos bovinos, construção
da usina de açúcar de Paineiras – ao tempo considerada a melhor do Brasil –, desenvolvimento do ensino público
e melhoria do aparelho administrativo. Vitória transformou-se em cidade moderna, dotada que foi dos serviços de
água, esgotos, luz e bondes elétricos. OLIVEIRA, op.cit., p. 419.
389
MORAES, op. cit., p. 47. Foi também nessa perspectiva que José Teixeira qualificou o governante: "Florentino
Avidos teve o mérito de saber escolher auxiliares para as tarefas de governo. E conseguiu realizar obras que fazem
seu nome lembrado com carinho em todo o Estado. Duas pontes que construiu – ligando Vitória ao continente e
sobre o rio Doce, em Colatina – são marcos decisivos no progresso do Espírito Santo. A estrada de penetração,
147
Já Christiano Dias Lopes Filho e Arthur Gerhardt são identificados como os responsáveis pelo
início da nova fase de desenvolvimento do Espírito Santo. Para Neida Lúcia, Christiano Dias
Lopes teve um governo "repleto de dinamismo" com "a força de uma equipe jovem e
progressista."392 Sobre Arthur Gerhardt, a autora escreve aludindo às expectativas acerca da
"inteligência lúcida e capacidade de trabalho" do governante, "o criador e presidente do Banco
de Desenvolvimento do Espírito Santo (BANDES)".393 Para José Teixeira de Oliveira, o
governo Christiano Lopes foi o marco da mudança:
ligando Colatina a Nova Venécia, abriu a denominada zona desconhecida ao trabalho fecundo dos povoadores.
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 426.; Maria Stella de Novaes caracterizou esse período como uma “fase intensa de construções":
"Traçara o Dr. Florentino Avidos um plano geral de melhoramentos da Cidade de Vitória: novos bairros, obras de
saneamento, conforto, embelezamento, estradas suburbanas, etc. E foram surgindo: Bomba, Suá, Maruípe, Santa
Maria, Santo Antônio, além da Praia Comprida, bairro planejado desde os tempos de Saturnino Brito. Drenagem,
pavimentação, esgoto, abastecimento de água, jardins, monumentos, etc. movimentaram a cidade de Vitória."
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 408.
390
Maria Stella de Novaes , ainda que caracterize a década de 1950, como observamos no capítulo anterior, não
avalia os demais governos, finalizando sua abordagem nas realizações do Governo Carlos Lindenberg
caracterizado como momento de expectativas acerca do futuro do Espírito Santo. José Teixeira de Oliveira assim
o caracteriza: "Carlos Lindenberg voltou à curul do governo estadual em 1959. Graças à política de recuperação
financeira que assinalou seus dois períodos administrativos, aquele prestigioso homem público lembra a figura
lendária de Campos Sales no plano federal." OLIVEIRA, op. cit., p. 452.;Cabe ressaltar que José Teixeira de
Oliveira faz ainda uma breve referência ao governo Élcio Álvares, momento de publicação da segunda edição de
sua obra. Consideração correspondente às expectativas em relação ao futuro:" No momento mesmo da redação
destas linhas, a Assembleia Legislativa Estadual elege o novo governador que deverá dirigir o Estado no próximo
quadriênio – o deputado Élcio Álvares, cujo passado responde pelos anseios de progresso dos seus coestaduanos."
Ibid., p. 465.
391
OLIVEIRA, op. cit., p. 446.
392
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 49.
393
Ibid., p. 49.
148
Christiano Dias Filho (1967-71) inaugurou fase nova na vida do Estado. [...] Seu
primeiro gesto de governante foi um brado pela afirmação do Espírito Santo como
parte da comunidade brasileira. Com intrepidez e resolução, fez ouvir a voz do povo
capixaba, gritando ao resto do Brasil que o Estado existe e que é parte da Pátria
comum.394
Assim como Neida Lúcia, o autor interpreta o governo de Gerhardt como continuidade de seu
antecessor, pois o governante, "infatigável e culto homem público", já havia comandado "o
trabalho de planejamento das iniciativas governamentais" e, então, iria "realizar muitos dos
projetos que idealizara." Assim, era o responsável por consolidar a nova etapa do Espírito
Santo:
Com essas características, evidenciamos que a elite administrativa do Espírito Santo no século
XX, tornou-se, nas narrativas históricas, os responsáveis pela mudança de status do Estado. Em
especial, Neida Lúcia e José Teixeira de Oliveira assumiram o próprio discurso da elite
dirigente que, como vimos anteriormente, justificou e legitimou a implementação do projeto de
industrialização no Espírito Santo. A representação da elite político-administrativa
correspondeu a uma nova qualificação do Espírito Santo e às expectativas de futuro.
Instituiu-se um roteiro histórico a partir dos modelos e exemplos a serem seguidos, símbolos
do progresso no passado que correspondiam ao ideal de desenvolvimento e superação do atraso
no presente. Neida Lúcia, ao comentar as dificuldades enfrentadas pelos donatários no Espírito
Santo, ressalta que dever-se-ia observar as "suas tremendas dificuldades vencidas com aquela
pertinácia" e que, tal qualidade, "naquele tempo iniciada, nunca abandonou, até hoje, os
responsáveis pelos nossos destinos.” 396
A autora refere-se aos indivíduos considerados
modelares, os exemplos de superação a serem aprendidos. O passado satisfatório ao discurso
da superação do atraso evidencia tanto uma trajetória cuja origem foi repleta de obstáculo a
serem superados, como também identifica os elementos identitários entre o presente gerador de
expectativas e o passado. A mesma autora, por exemplo, estabelece o vínculo entre Silva
394
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 452.
395
Ibid., p. 460.
396
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 29.
149
Pontes, Rubim e Christiano Dias Lopes com a trajetória do Espírito Santo, identificada com a
de seus construtores. Segundo ela, sobre a abertura para Minas:
É bem verdade que demorou mais de um século, até que, sob a chefia suprema de
Teixeira Soares, Pedro Nolasco e Álvaro Mendes, em 1904, começou a ser implantada
no solo espiritossantense a estrada de ferro Vitória à Minas que iria começar a
realização dessa ligação entre Minas Gerais e o mar através do Espírito Santo, no
rumo do Porto de Vitória. [...] Ainda quarenta anos tiveram de decorrer para que se
reconhecesse que o minério de ferro de Itabira tinha em Vitória o seu escoadouro
natural para o exterior. O auto de 1800 determinou as divisas das duas capitanias,
atuais estados do Espírito Santo e Minas Gerais, mas a sua fixação no terreno custou
mais de 150 anos.
Foi a tarefa enfrentada pelo engenheiro Ceciliano Abel de Almeida e o advogado
Bernardino Monteiro, no princípio do século XX e nos meados desse século pelo
engenheiro civil e advogado Cícero Moraes. A mais recente consequência dos Auto
de Silva Pontes ainda ressoa ao nossos ouvidos, com os aplausos que tributamos ao
Vice-Presidente Augusto Hamann Rademarker Grunewald, ao Governador Christiano
Dias Lopes Filho e ao Ministro Mário David Andreazza, no dia 25 de novembro de
1969, na inauguração da Rodovia Castelo Branco que une Vitória a Belo Horizonte,
e representa a conclusão daquela estrada contratada por Francisco Rubim [...].397
A obra da superação do atraso realizar-se-ia, portanto, pela elite administrativa responsável pela
implantação do projeto de desenvolvimento a partir da década de 1960. Uma jornada que, ao
longo de todos os séculos narrados, foi caracterizada pelas ações individuais condutoras desse
percurso. Portanto, por meio de sua linearidade narrativa os autores representaram, ainda que
diferenciando os períodos, a trajetória do Espírito Santo que unia a “obra” de determinados
atores históricos, a saber, de alguns colonizadores, aos governantes provinciais, bem como aos
administradores públicos do período republicano, numa mesma linha condutora, marcada pela
superação dos obstáculos, que culminaria com a industrialização.
397
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 34-35.
150
Nas obras História do Estado do Espírito Santo, O Espírito Santo é assim e História do Espírito
Santo observamos também que alguns grupos ganharam destaque na trama histórica construída
pelos autores, a saber: os jesuítas, os imigrantes e os indígenas. A avaliação e a qualificação
desses grupos seguiram a mesma lógica que orientou a interpretação dos governantes e
administradores espiritossantenses, determinando os grupos (e seus representantes) como
colaboradores ou obstáculos da trajetória do Espírito Santo.
Nesse caso, ficou evidente na configuração das narrativas que os jesuítas correspondiam à força
do progresso presente no contexto do atraso atribuído ao período colonial e os imigrantes foram
elementos constitutivos da narrativa da superação que marcou o século XIX. No entanto,
398
A ideia de superação corresponde ao que Rüsen denominou de constituição genética de sentido dentre os tipos
de constituição narrativa de sentido. RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do
conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 58-61.
399
Rüsen define também as formatações narrativas exemplares, que apresentam o passado como exemplo e dotado
de significação para o agir no presente. Ibid., p. 50-54.
151
No que tange aos jesuítas, a importância que ganharam na história do Espírito Santo, situados
na categoria de colaboradores do progresso, está vinculado ao papel desempenhado frente aos
índios.400José Teixeira de Oliveira os qualificou de “nova e poderosa força”401, quando da
chegada desse grupo, no sentido de possibilitar o progresso da capitania. Dessa forma, os
religiosos aparecem como excelentes colaboradores da colonização no sentido de integrar os
índios à obra colonizadora dos europeus. As referências aos jesuítas estiveram, sobretudo,
associadas ao controle dos indígenas. José Teixeira referindo-se à chegada desses religiosos
ressalta:
O autor deixa claro, portanto, que a colaboração desse grupo se efetivou por meio da política
de relação que os religiosos estabeleceram com os indígenas em benefício dos colonizadores,
pois, sem os jesuítas, argumenta o autor, “teria sido muito diferente a conquista da terra e de
seus primitivos donos e habitantes.”403
400
Segundo Maria Regina de Almeida, o propósito do estabelecimento da ordem jesuítica na colônia foi,
essencialmente, o de colaborar com a colonização por meio do contato com os grupos indígenas: “Sua principal
função seria a de reunir os índios aliados em grandes aldeias próximas aos núcleos portugueses nas quais iriam se
tornar súditos cristãos para garantir e expandir as fronteiras portuguesas na colônia. Era preciso manter os índios
aliados e derrotar os inimigos de forma a seguir adiante com o projeto de colonização.” ALMEIDA, Maria Regina
Celestino. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2011. p. 45.
401
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 76.
402
Ibid., p. 76-77.
403
Ibid., p. 147.
152
Maria Stella destaca também a catequização como uma conquista da Capitania.404 Referindo-
se a um momento de dificuldade do Espírito Santo em torno do ano de 1553, ressalta o papel
dos religiosos:
Somente os jesuítas prosseguiam na missão que lhes fora confiada. E, sob a influência
apostólica dos padres, os índios indomáveis pareciam convencidos de abandonar o
litoral e embrenhar-se na floresta longínqua. Os catequizados, entretanto,
colaboravam com os portugueses, nos roçados e nas construções. 405
Nessa perspectiva de análise adotada pelos autores, tornou-se essa forma de colaboração o
grande legado exercido pelos jesuítas. Maria Stella de Novaes enfatizou a participação dos
membros dessa ordem. Por exemplo, a noção de mediadores de conflito entre colonos e
indígenas caracterizou o perfil do padre Afonso Bras406 definido como “o diretor moral dos
índios e dos colonos, confraternizando-os.”407Esse sentido atribuído ao papel dos jesuítas ficou
evidente, principalmente, na caracterização que a autora realizou de José de Anchieta:
Essa percepção acerca de Anchieta correspondeu aos jesuítas de maneira geral. Se a imagem
que os autores construíram da Capitania estava associada ao descaso, impedimentos e marcada,
como vimos, por colonos considerados inaptos ao progresso, as referências que encontramos
404
Neida Lúcia evidencia esse aspecto mas a partir da noção de legado: “Devemos aos jesuítas, além da obra
apostólica de resultados sociais muito grandes, poderoso auxílio na defesa contra os invasores estrangeiros.
Contribuíram para o abrandamento da ferocidade dos índios, no alevantamento dos padrões de moralidade da
população branca, eram admiráveis como praticantes da medicina e enfermagem. Foram responsáveis pela
construção da igreja e da casa para o primeiro colégio, sendo que desta última, conservada, ampliada e diversas
vezes reformada, se originou a sede do Governo do Estado, sob a atual denominação de Palácio Anchieta."
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 18.
405
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
28.
406
O padre Afonso Brás representava os jesuítas como fator de progresso, segundo Maria Stella de Novaes:
“Devotado sempre em colaborar com o Donatário, no progresso do lugar, o Pe. Brás Lourenço não repousara. [...]
incentivando a fundação do Seminário que tanto beneficiava o povo; dava-lhe instrução e catequizava os índios
que, assim, gradualmente, se integravam no trabalho organizado” Ibid., p. 39. O legado desse religioso é ainda
evidenciado pela autora: “A ampliação do Seminário, pelos esforços do Pe. Brás Lourenço, deve ser recordada,
visto como Afonso Brás, tendo-se demorado apenas dois anos e meses, aqui deixou “somente pequeno Seminário”,
coberto de palhas, conforme relatam cronistas. De certo, porém, o edifício que serviu tantos anos, para residência
dos Presidentes do Espírito Santo e, reconstruído, em 1911-1912, ainda é a sede do Governo do Estado”. Ibid., p.
39.
407
Ibid., p. 24.
408
Ibid., p. 53-54.
153
em relação aos jesuítas nos remetem justamente a uma posição de enfrentamento a essa
condição do Espírito Santo no passado.
Os autores construíram a imagem dos jesuítas, portanto, em função da importância que tiveram
para a viabilidade da colonização, papel evidenciado na narrativa dos autores, quando
interpretaram a expulsão dos religiosos da colônia. Neida Lúcia interpreta como uma situação
prejudicial à já condição difícil da capitania:
Para agravar a penosa situação, cai-nos o raio da expulsão dos jesuítas em 1759. Esses
religiosos, ainda que recolhidos apenas às suas fazendas, serviam de elemento de
harmonia entre colonos e índios e eram educadores únicos. As suas propriedades
estavam disseminadas desde Nova Almeida até Itapemirim. O golpe não foi contra o
Espírito Santo. Mas a nossa parte foi bem sentida.409
Ao despontar o ano de 1760, o Espírito Santo perdeu a poderosa força que, havia mais
de dois séculos, vinha colaborando no seu desenvolvimento: os jesuítas. [...] Faltam
elementos para fixar com precisão os efeitos provocados, na capitania, pela retirada
dos jesuítas. Não foi de menor expressão a desordem trazida à política de
aperfeiçoamento dos indígenas, que, em massa, desertaram as aldeias, de regresso às
brenhas de origem.410
A argumentação dos autores direcionou-se, sobretudo, para o impacto negativo da saída dos
religiosos, uma vez que representavam a perspectiva da superação do atraso. Entretanto, para
essa qualificação dos jesuítas foi preciso que os índios fossem definidos como ferozes,
indomáveis e hostis, reproduzindo, como veremos adiante, um estereótipo dos grupos indígenas
historicamente elaborado.
Se por um lado, a imagem positiva dos religiosos configurou a depreciação dos indígenas, por
outro, a inserção dos imigrantes na história do Espírito Santo se efetivou em detrimento dos
indígenas. A narrativa do progressivo desenvolvimento que classificou o século XIX como o
início do processo de caminhada de superação do Espírito Santo selecionou a interiorização e
a chegada dos colonos europeus como acontecimento-símbolo do progresso. Como
409
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 32.Maria Stella de
Novaes se refere a esse acontecimento: Quantos anos de sacrifício e trabalho! Quanto heroísmo na defesa de
Vitória, repetidas vezes, atacadas pelos aventureiros e inimigos da Coroa Lusitana![...] Privada de seus devotos
apóstolos, sentiu a Capitania os primeiros efeitos do abandono espiritual e a redução da assistência desvelada [...]
De fato, com a expulsão dos jesuítas, desaparecia o maior fator de civilização, na Capitania: - a força conciliadora
dos ânimos, em favor do trabalho e da cultura. NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória:
Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 94.
410
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 203.
154
consequência, configurou-se também a “superação dos indígenas” que tiveram seu paulatino
apagamento da narrativa histórica do Espírito Santo.
Neida Lúcia também cita os momentos em que desembarcaram os imigrantes no Espírito Santo,
considerando sua importância:
O número de imigrantes não foi muito grande se compararmos aos dos que se
dirigiram para os Estados do Sul. [...] Apesar disso, devemos considerar inestimável
o serviço prestado por essa imigração. Quando o Estado instituiu o Museu do
Imigrante, quando levantou o Monumento ao Imigrante, quando festeja o Dia do
Imigrante, não faz senão reconhecer o que devemos a esse contingente de destemidos
trabalhadores.411
No que tange a presença dos imigrantes, Maria Stella de Novaes, ainda que não realize uma
ampla abordagem, associou-os à interiorização do Espírito Santo, enfatizando o aspecto
positivo desse processo. Segundo a autora, a “fundação da Colônia do Rio Novo, em 1855,
assinalou o reinício da colonização, que teria de trazer ao Espírito Santo o movimento heroico
e belo da imigração”.412 Vinculados à noção de prosperidade, os imigrantes seriam elementos
essenciais à penetração do território. José Teixeira de Oliveira, por outro lado, não compreende
a chegada dos imigrantes da mesma forma do que as autoras:
Sem pretender depreciar a valia da colaboração dos colonos europeus, cumpre situá-
la nos seus justos termos. [...] Não consta que os colonos tenham, em tempo algum,
experimentado a ferocidade dos indígenas. Suas terras ficavam muito aquém dos
domínios botocudos. As primeiras estradas já permitiam trânsito mais fácil entre os
diferentes núcleos de população. Ao estrangeiro coube receber a terra penosamente
conquistada e lavrá-la. Ilhados nas suas colônias, mui remotamente influenciariam a
agricultura e a indústria dos nacionais com os seus métodos, necessariamente mais
adiantados. Aqui – como no resto do Brasil – a conquista da terra foi obra exclusiva
dos brasileiros.413
No entanto, ele reconhece que, para tratar especificamente em relação aos imigrantes, Luiz
Derenzi seria o estudioso para definir o papel desse grupo na história espiritossantense, o que,
contribuiu, de alguma maneira, à caracterização desses personagens:
411
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 41.
412
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
227.É assim que a autora evidencia a origem da colônia de Santa Isabel: "Pela influência do Presidente Pedreira,
fundou-se, em 1847, a Colônia de Santa Isabel, com cento e sessenta colonos alemães. [...] Foram concedidas
terras, com duzentas braças de testada e seiscentas de fundo, nas margens do Rio Jucu [...]. A Colônia de Santa
Isabel possuía um terreno fértil, cortado por diversos rios, além do já referido Jucu. Foi privilegiada pela estrada
do Rubim. Progrediu rapidamente com o plantio de cereais e do café." Ibid., p. 196.
413
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 344-345.
155
Esta visão se aproxima à do “movimento heroico e belo” de Maria Stella de Novaes, que
ressalta, inclusive, esse papel atribuído aos imigrantes, sobretudo os italianos, no que tange ao
legado desses grupo.415
Diante dessa imagem construída acerca dos imigrantes em relação ao seu papel na história do
Espírito Santo, consideramos dois aspectos importantes no que diz respeito às avaliações e
qualificações atribuídas aos personagens históricos dentro das narrativas dos autores.
Primeiramente, principalmente em relação aos italianos, as narrativas históricas colaboraram
com o fortalecimento do que Maria Cristina Dadalto chamou de “mito da italianidade do
Espírito Santo”, presente, especialmente, na literatura. Segundo ela:
[...] uma profícua produção literária produzida sobre a imigração italiana no estado
ajudou a construir e a fortalecer este mito. [...] Essas obras literárias teriam cristalizado
o conhecimento sobre o processo de formação e desenvolvimento do Espírito Santo,
ao criar uma trama em ambientes inóspitos, os quais italianos e seus descendentes
sonharam, sofreram, mas venceram todas as adversidades. Projetar-se-ia, assim, uma
representação da identidade capixaba fundada nos italianos trabalhadores e
vencedores. Há de se ressaltar, por outro lado, que não se observa uma produção
literária de imigrantes ou descendentes de outras etnias participantes do processo
colonizador do estado com o mesmo volume da produzida sobre os italianos e
descendentes. Também se pode considerar que outros fatores, tais como a fundação
de associações culturais italianas e o número de representantes políticos eleitos nos
últimos cinquenta anos no Espírito Santo, auxiliaram na construção dessa narrativa.
416
414
Assim, José Teixeira argumenta o recurso a Luiz Serafim Derenzi: “Procurando elucidar o contingente de
progresso trazido ao Espírito Santo pelos imigrantes europeus, pedimos ao Dr. Luiz Derenzi – que conhece o tema
e dá os últimos retoques a um livro sobre a imigração italiana – resumisse algum aspecto do seu trabalho, a ser
publicado dentro em breve.” Ibid., p. 345. Provavelmente, a obra a que se refere José Teixeira é: DERENZI, Luiz
Serafim. Os italianos no Espírito Santo. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1974.
415
Segundo a autora: "Em 1840, chegou à Colônia de Viana, Giuseppe Balestrero, primeiro italiano a fixar-se no
Espírito Santo. [...] Veio parar no Espírito Santo, atraído parece pelas notícias resultantes ainda da propaganda
feita pelo Governador Francisco Alberto Rubim. [...] Dedicou-se à cultura do café e de cereais, além da criação de
gado. Seus numerosos descendentes colaboram ainda em diversos ramos da vida social, industrial, agrícola e
econômica do Espírito Santo." NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial
do Espírito Santo, 1964. p. 188.
416
DADALTO, Maria Cristina. O discurso da italianidade no ES: realidade ou mito construído. Pensamento
Plural – Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPEL, Pelotas, n. 03, 2008, p. 148.
156
José Teixeira de Oliveira, ainda que tenha relativizado o papel dos imigrantes, insere a chegada
deles no mesmo contexto de controle daqueles que ele interpretou como obstáculos do
desenvolvimento espiritossantense. Segundo o autor, dentro do tópico intitulado “início de uma
nova era”, a conquista e controle sobre os indígenas, e posteriormente, a chegada dos imigrantes
europeus constituiriam avanços do Espírito Santo. Avaliando a Província na década 1840, o
autor argumentava que “ganhava impulso animador a domesticação dos índios, sendo de notar
a criação – em 1845 – do aldeamento denominado Imperial Afonsino.” E, dois anos mais tarde,
em “1847, foi reencetado o encaminhamento de europeus para as terras capixabas” quando
“instalou-se a Colônia de Santa Isabel, seguida, em 1857, pela de Santa Leopoldina e outras
[...].”418
[...] recentemente foi publicado pelo Arquivo Público do Estado do Espírito Santo o
relatório do cônsul Carlo Nagar sobre a colonização italiana no Espírito Santo. Escrito
em 1895, o relatório consular é uma importante fonte para a pesquisa do processo de
colonização e imigração, fato, aliás, ressaltado na apresentação escrita por Agostino
Lazzaro. Contudo, na mesma apresentação podemos ler que ‘a imigração italiana,
germânica e polonesa, entre outras, teve como objetivo primordial, no Espírito Santo,
a colonização e o povoamento do grande vazio demográfico que era seu território no
século XIX.' [...] Como em um passe de mágica, as exuberantes florestas habitadas
417
TAMANINI, V. Karina. Brasília, [s.e.], 1981. Sobre essa obra e o mito da italianidade no Espírito Santo,
conclui Maria Cristina Dadalto: "[...] possibilita a configuração de uma narrativa do discurso de um povo que
enfrentou todas as dificuldades, que sofreu vendo filhos, pais, amigos morrendo por problemas de saúde, mordidas
de animais, mas que venceram esse desafio e encontraram a Terra Prometida. [...]Estas considerações oferecem,
assim, a possibilidade de refletir como a história contada por italianos, transmitidas na literatura produzida, apoiada
nas ações realizadas e conhecidas por sua divulgação e difusão na sociedade, compõe-se como elemento indicativo
a constituir e a cristalizar o discurso fundador do mito da italianidade na identidade capixaba.” DADALTO, Maria
Cristina. O discurso da italianidade no ES: realidade ou mito construído. Pensamento Plural – Revista do
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPEL, Pelotas, n. 03, 2008, p. 162.
418
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 333-334.
157
pelos índios tornaram-se, com a chegada do colono europeu, florestas vazias de gente,
graças ao poder imagético do conceito de ‘vazios demográficos’. 419
Em relação ao Espírito Santo, ela argumenta que esse discurso elimina a presença de uma vasta
população indígena no século XIX420 suprimida nas narrativas. Nesse sentido, cabe, então,
compreendermos como os indígenas foram alçados à condição de principal obstáculo da
trajetória do desenvolvimento do Espírito Santo.
Na narrativa histórica construída por José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de
Novaes, os indígenas alcançaram um lugar ímpar, tornando-se o principal inimigo do
desenvolvimento da obra colonizadora. A representação indígena nas obras evidencia a
oposição ao progresso que definiu o lugar dos índios no passado do Espírito Santo.
A revolta, portanto, não se fez esperar e, nessa peleja, morreu no Cricaré, Fernão de
Sá, filho do Governador Geral do Brasil, viera auxiliar a defesa do Espírito Santo.
Surgiu, porém, a valorosa figura de Diogo Morim que, após grandes esforços,
conseguiu reanimar os colonos e reuni-los, em número de sessenta e oito, para
combater o gentio.
Basílio Daemom refere-se a Diogo de Morim, combatendo no Cricaré, durante alguns
meses. Assumira o comando da expedição após a morte de Fernão de Sá, e dirigiu-se
para a Vila da Vitória que estava ameaçada e, até, saqueada, o que forçara o Donatário
a pedir auxílio ao Governador Geral. [...]
Após a derrota dos índios, Mem de Sá escreveu à Rainha Da. Catarina, para comunicar
a vitória sobre os silvícolas, a morte do seu próprio filho e a contribuição intrépida de
Diogo de Morin.421
419
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 100.
420
Sobre o equívoco do conceito de vazio demográfico Vânia Moreira argumenta: “É um grande equívoco definir
o território do Espírito Santo do século XIX como um enorme ‘vazio demográfico’, totalmente disponível à ação
colonizadora oficial e aos novos imigrantes. Ao contrário, no início do século XIX a região possuía expressiva
população indígena para os padrões da época. Existiam, na capitania, não apenas os chamados ‘índios bravos’ ou
‘tapuias’, representantes das tribos puri, coroado, botocudo e outras, mas também os denominados ‘índios mansos’,
‘domesticados’ ou ‘civilizados’, isto é, aqueles pertencentes às tribos tupiniquim e termiminó, que, desde os
tempos das missões jesuíticas (1551-1760), estavam semi-integrados à modesta vida social luso-brasileira.” Ibid.,
p. 100.
421
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
32-33.
158
José Teixeira de Oliveira, por sua vez, sobre essa relação de combate entre o elemento
colonizador e os índios, destaca o papel de Miguel de Azevedo, que governou durante o breve
período em que a capitania esteve sob a responsabilidade de Luiza Grimalda, viúva de Vasco
Fernandes Coutinho Filho. O autor observa que ele presenciou “dois grandes fatos”, um foi a
morte de José de Anchieta, e o outro:
Chefiou, no ano de 1594, uma grande bandeira punitiva contra os goitacazes, que
obstavam a instalação dos cristãos no sul da capitania. Ferozes e em grande número,
grupos daquelas tribos faziam constantes incursões nas propriedades dos que
buscavam as regiões do seu predomínio, talando vidas e benfeitorias. O capitão-mor
se fez acompanhar ‘por Antônio Jorge e João Soares, homens experimentados em
correrias, e dos moradores que com mais frequência tinham sofrido crueldades’. [...]
Cronistas e historiadores são unânimes em afirmar ‘que daí em diante deixaram esses
selvagens de surpreender e atacar os habitantes da Capitania.’ 422
Os dois personagens, tal como os jesuítas e os imigrantes, tomam lugar na narrativa em função
das relações estabelecidas com os indígenas. Nesse caso, pelo combate aos selvagens, perigosos
e inimigos indígenas.
O índio, “pesadelo constante, inimigo de todas as horas”423 foi caracterizado como um dos
principais fatores da não-realização da capitania, em termos de desenvolvimento. A imagem
dos indígenas foi, ao longo das narrativas, tecida sob a perspectiva do colonizador. Foram
interpretados por meio de dicotomias “bons” versus “maus” ou “colaboradores” versus
422
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 112.
423
Ibid., p. 55.
159
“inimigos”, o que implicou numa série de referências que os identificavam como obstáculos,
barreira, empecilhos, opositores de um projeto que deveria ser realizado.
De acordo com Maria Regina Almeida, a interpretação sobre os índios na história do Brasil
esteve vinculada à perspectiva do colonizador.424 E, ao longo do tempo, na historiografia
brasileira, o lugar dos indígenas foi marcado pela manutenção de uma representação:
Tais indígenas ganharam uma posição de destaque justamente por representarem a preocupação
dos autores em buscar no passado um lugar e um papel para o Espírito Santo no contexto da
história nacional. Nesse sentido, tal como Maria Ortiz, esses indígenas foram diferenciados
pelos serviços prestados aos colonizadores. Maracaiguaçu e Arariboia, diferentemente da
maioria dos grupos indígenas, passaram a frequentar a categoria dos heróis da história do
Espírito Santo, não pela resistência, mas pelo papel que desempenharam na contribuição ao
elemento colonizador, mais especificamente, na defesa contra as invasões sofridas pela colônia
portuguesa.426Mesmo que não seja uma abordagem ampla e esclarecedora das experiências de
424
Segundo Maria Regina Almeida: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 com
a intenção de criar uma história do Brasil que unificasse a população do novo estado em torno de uma memória
histórica comum e heroica, iria reservar aos índios um lugar muito especial: o passado. Nessa história, os índios
apareceriam na hora do confronto, como inimigos a serem combatidos ou como heróis que auxiliavam os
portugueses. ALMEIDA, Maria Regina. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 17.
425
Ibid., p. 13.
426
Na História do Espírito Santo, de Maria Stella de Novaes encontramos uma menção a outro indígena que não
se vinculou a essa defesa do território e expulsão dos invasores. A autora destaca a figura do índio Guido
Prockrane: “Com justiça, devemos inserir aqui uma nota sobre o chefe índio botocudo Guido Prockrane que
faleceu, no Rio Doce, em 1843, Soldado da Segunda Companhia da Montanha e diretor da Aldeia dos Índios, do
Manhuaçu, no Caeté, prestou valiosos serviços à catequese e civilização dos seus irmãos. Auxiliado pelo Tenente
Guido Tomás Marliére, seu padrinho de batismo, que o educou, pela retidão de sua conduta elevou-se à estima e
ao respeito de sua tribo e de outras vizinhas.” NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória:
Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 192.
160
ambos, é nítido o contraste entre a presença deles com os demais indígenas na narrativa.
Maracaiguaçu aparece na narrativa sendo primeiramente ajudado por Vasco Fernandes
Coutinho devido ao ataque de índios tamoios e franceses, por seu propósito de tornar-se cristão
e, sobretudo, por ter combatido os franceses no ano de 1558, o que definira, portanto, “os bons
entendimentos que presidiam as relações entre os colonos e a gente de Gato Grande”
(significado de Maracaiaguaçu).427
Mas é Arariboia que surge como herói representativo da colonização do Espírito Santo na
defesa do Brasil. Neida Lúcia ressalta o caráter heroico nas qualidades atribuídas ao indígena:
427
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 82, destaque do autor.
428
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 23-24.
429
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
34-35.
161
nomeado Cavaleiro de Cristo, com uma tença de 12$000 e uma sesmaria, em Niterói,
onde fundou uma aldeia. 430
José Teixeira de Oliveira completa essa visão, na qual o indígena surge numa situação
reverenciada pelo autor, ou seja, na ajuda prestada pela capitania do Espírito Santo à do Rio de
Janeiro em 1561:
Constatamos que José Teixeira, Maria Stella e Neida Lúcia atribuem um significado reduzido
e simplista (aliados de uma causa portuguesa) à atuação de Arariboia e dos temiminós. Estes
foram interpretados em função do papel que caberia ao Espírito Santo no contexto da
colonização portuguesa no Brasil, desconsiderando, deste modo, a complexidade de relações
que se estabeleceram entre índios e colonizadores, conferindo um significado aos indígenas
aliados da obra colonizadora, no qual Arariboia aparece como representante.433 No entanto, na
narrativa do progressivo desenvolvimento, a imagem indígena correspondeu a um outro lugar.
430
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
36.
431
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 101.
432
Ibid., p. 102. José Teixeira de Oliveira apresenta, assim, a colaboração do Espírito Santo: “Poderoso exército de
reserva, utilizado em numerosas ocasiões principalmente contra o invasor estrangeiro – aqui e alhures, no período
colonial – coube aos índios catequizados do Espírito Santo fornecer quinhentos dos seus melhores filhos para a
fundação da aldeia de São Pedro, origem da atual cidade de Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro. Isto se deu
em 1617, quando, expulsos os holandeses e ingleses que tentavam ali estabelecer-se, os portugueses julgaram de
bom aviso instalar na região gente de sua confiança.” Ibid., p. 122.
433
Maria Regina de Almeida chama a atenção para o dinamismo das interações entre europeus e indígenas: “As
informações imprecisas e muitas vezes contraditórias dos documentos não nos permitem acompanhar passo a passo
a trajetória dos temiminós, nem tampouco a de Arariboia, sobre a qual as controvérsias são inúmeras. Não é
possível sequer saber ao certo quando teria regressado ao Rio de Janeiro. Porém, muito mais do que buscar
verdades sobre a trajetória de Arariboia ou dos temiminós, importa reconhecer nessas informações as
possibilidades de rearticulação e construção de alianças, inimizades e identidades que iam surgindo nas diversas
situações, sobretudo em épocas de guerras intensas, como as da costa brasileira em meados do século XVI.”
ALMEIDA, Maria Regina. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p.60-61.
162
Outras donatarias exibiam mais riquezas, mas, por certo, em nenhuma outra as
condições haviam sido mais adversas à implantação do homem europeu. Aqui, a
floresta espessa – verdadeira fortaleza oposta às tentativas de penetração – era, mais
que qualquer outro acidente de qualquer outra parte do Brasil, uma barreira a
contrariar e esmagar os planos de conquista, não só pela sua pujança inigualável, mas,
e principalmente, pelo inumerável gentio que abrigava. Decênios, séculos decorreriam
até que o homem branco pudesse palmilhar – sem o temor mortal dos primeiros
tempos – o território que ficava além das praias marítimas.436
Se Maria Stella os qualificou de “inimigos internos”, José Teixeira evidencia a barreira que
dificultou o desenvolvimento do Espírito Santo, destacando, inclusive, a especificidade local,
o diferencial negativo da Capitania em relação às demais: a presença do índio. Seguindo a
perspectiva da trajetória de progresso espiritossantense, a obra colonizadora deveria representar
o desenvolvimento do Espírito Santo em sua origem, porém, os indígenas eram a dissonância a
esse propósito. Neida Lúcia, Maria Stella e José Teixeira desconsideraram a resistência desses
atores. Esse não reconhecimento implica, segundo Almeida, na cristalização de uma imagem
acerca de certos grupos indígenas:
434
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
18.
435
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 15.
436
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 18.
437
Ibid., p. 47.
163
O primeiro contato com a terra revelou os tropeços que aguardavam aquele pugilo de
aventureiros: os índios preparavam uma recepção nada cordial. Postando-se armados
em grupos na praia, mostravam-se dispostos a impedir o desembarque. Alguns
disparos das peças de bordo, porém, anularam a pretensão, afugentando-os para a
floresta.439
A ausência de cordialidade por parte dos indígenas marcava, assim, o primeiro momento e
contato entre estes, os inimigos, e os portugueses, os pioneiros e realizadores do projeto de
construção do Espírito Santo. Desconsiderando a existência de um processo de conquista e
colonização, a narrativa acerca do contato define o papel reservado aos indígenas, como a
dificuldade a ser superada, tanto que Teixeira argumenta que “as duas grandes tarefas”
reservadas aos colonizadores eram as de “cultivar a terra e conquistar o coração do íncola.”440
A construção da imagem do indígena na história capixaba efetivou-se, assim, por meio dessas
referências que demarcavam o lugar de obstáculo.
Esses atores receberam uma série de alusões a características negativas. Terror, ameaça e
ferocidade caracterizaram as qualificações e adjetivações nessas situações narradas. Maria
Stella de Novaes, ao relatar uma batalha travada entre os colonizadores e índios goitacazes, em
1594, ressalta que estes eram “destros nos arcos, inimigos de todos, ferozes e gigantes” e tinham
438
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
15.
439
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 35.
440
Ibid., p. 39.
164
José Teixeira de Oliveira também narra esse evento, resumindo o que ele definiu como “índios
x brancos”, denominando tal relação como “carnificina”. Nessa perspectiva, encontramos na
conclusão do capítulo “Trabalho, sangue e ruínas” a presença do indígena como responsável
pela condição de “sombras e ruínas” da capitania:
441
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
51.
442
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 49.
443
Ibid., p. 21.
444
Ibid., p. 59. A noção de hostilidade e ameaça foram as que prevaleceram na interpretação sobre o elemento
indígena. Sobre as dificuldades de Vasco Fernandes Coutinho, Teixeira assim retrata as circunstancias vividas pelo
primeiro donatário do Espírito Santo: “Assim pôde manter os íncolas à distância até fins de 1557, quando,
“persuadido de suas poucas forças, e queixas dos povos”, apelou para o governo da Bahia, pedindo auxílio para
dar combate aos selvagens. Suas cartas chegaram à cidade do Salvador pouco antes ou nos dias mesmo em que
Duarte da Costa transmitia o cargo ao sucessor. Lá está, no Instrumento dos Serviços de Mem de Sá, muito bem
contado o que ocorreu: ‘Como me deram posse do governo logo me deram cartas de Vasco Fernandez Coutinho
capitão da capitania do Espírito Santo em que dizia que o gentio da sua capitania se levantara e lhe fazia crua
guerra e lhe tinha mortos muitos homens e feridos e que tinham cercado a vila/ onde dias e noites os combatiam’.
Era, como se vê, de extrema gravidade a situação. Além de muitos mortos e feridos, o donatário e sua gente
165
Esse fato, que alguns historiadores do Espírito Santo consideram ‘mentira histórica’,
ou simples tradição, é encontrada nos trabalhos de Daemon, Amancio Pereira,
Teixeira de Melo e outros, como origem do nome Vitória, para a capital do Espírito
Santo. Alberto Lamego, por exemplo, diz: - ‘Atacada pelos índios e sendo repelidos,
após mortífero combate, deu-se à povoação o nome de Vitória.’ Igualmente, a Vitória
sobre os índios é registrada, em quase todos os autores, pelo fato de terem-se afastado
em definitivo e deixado os colonizadores, em paz.[...]
Portanto, o que se deu, ao certo, a 8 de setembro de 1551, em relação à Vila Nova,
não foi sua fundação, sim a consagração da matriz a Nossa Senhora da Vitória. E, de
acordo com os cronistas, a mudança do nome para Vila da Vitória, em atenção ao
valor, brilhantes feitos e gloriosa vitória que alcançaram os povoadores, ficando até
hoje esse nome, que, por Decreto de 18 de março de 1823, foi confirmado, ainda na
criação da cidade.
Tem, portanto, a Capital do Espírito Santo honrosa fé-de-ofício, um passado heroico,
bastante para justificar o seu batismo e atestar o valor de seus fundadores. 446
O conjunto de característica atribuídas aos indígenas, dessa forma, aparece em oposição aos
responsáveis pela obra colonizadora. Hostilidade, animosidade, perigo e terror constituíram o
perfil desse grupo. Na narrativa do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo não existiu
lugar para a diversidade e reconhecimento das diferentes experiências vivenciadas por esses
sujeitos no passado.
estavam cercados em Vitória, beirantes da rendição.” OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do
Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 83, destaque do autor.
445
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. 31 ; Maria Stella de
Novaes observa que não só as proibições da Coroa tornaram-se impedimentos para a interiorização do Espírito
Santo no período colonial, mas também os índios eram interpretados como barreira. Segundo Maria Stella de
Novaes: “1771 – Houve, nesse ano, pavorosa luta, entre puris e os mineradores, no Castelo. Foram os habitantes
obrigados ao abandono do lugar. Desceram para o Baixo-itapemirim e deixaram as minas de Sant’Ana do Castelo.”
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 98.
446
Ibid., p. 24-25.
166
Os indesejáveis indígenas também figuraram como o obstáculo a ser superado. O que ocorreu
na própria escrita da história. Segundo Cristiane Portela, essa questão permeia a própria história
da historiografia brasileira:
Nas narrativas analisadas, o século XIX surge como o início de uma trajetória de superação do
Espírito Santo e identificamos que os autores, além de se limitarem a reproduzir a imagem da
hostilidade, extinguiram os indígenas da narrativa histórica.
Nesse período, o empecilho para a ligação entre Espírito Santo e Minas Gerais eram os índios
botocudos. Ou seja, na visão dos autores, a grande dificuldade surgida nesse projeto era a de
povoar a região, e, novamente, o indígena surgia em prejuízo ao desenvolvimento. Na passagem
para o período Imperial, José Teixeira de Oliveira evidencia mais uma vez a dificuldade de
penetração e povoamento do interior responsável pela ligação com as Minas Gerais, o que era
visto como necessário para o progresso da região, mas que tiveram nos “inimigos de todas as
horas”, os “temíveis silvícolas” os responsáveis pela não realização do projeto:
447
PORTELA, Cristiane de Assis. Por uma história mais antropológica: indígenas na contemporaneidade. In:
Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 12, n. 1, p. 151-160, jan./jun. 2009.p. 154.
448
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
106.
167
Esse perigo representado pelos indígenas aparece ainda na abordagem de Maria Stella de
Novaes quando a autora ressalta a preocupação em se criar defesas contra os ataques daqueles
quem a autora classificou como inimigos internos. Ao caracterizar o Espírito Santo em inícios
do século XIX, Novaes identifica como sintoma da dificuldade de desenvolvimento da
Capitania a fixação dos colonizadores restrita ao litoral, e que as buscas pela interiorização eram
dificultadas pela presença do indígena. Apareciam, portanto, como responsáveis pela formação
de quartéis, criados com o objetivo de combate aos inimigos do progresso. Segundo a autora:
A fim de prevenir as devastações feitas pelos índios, que chegaram a descer até os
lugares próximos da Vila da Vitória, e invadir as fazendas, nas margens do Rio Santa
Maria da Vitória e na Freguesia da Serra, o Governo, pelo Decreto de 18 de agosto de
1810, criou, na Capitania, um batalhão de Artilharia Miliciana, definitivamente
organizado, a 1º de dezembro. Recebeu um parque de campanha, arma que os índios
mais temiam.450
449
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 320.
450
Ibid., p.111.
451
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
112.
452
Ibid., p. 112-113.
453
"[...] a política seguida por Silva Pontes de abertura do rio Doce à navegação e ao povoamento significou,
segundo Teixeira, uma verdadeira ‘revolução’. Segue o historiador apresentando outros fatos que promoveram a
lenta colonização da região, como criação de alguns quartéis e vilas. Contudo, tendo narrado as principais medidas
168
Para Silva Pontes, por exemplo, que assumiu a administração da capitania em 1800,
a presença indígena era não apenas inequívoca, mas um verdadeiro problema ou um
enorme transtorno. Definiu a situação do Espírito Santo como precária, pois ‘rodeada
de gentio inimigo todo o perímetro da colônia, desde a barra do Rio Doce, até o da
barra da Parayba do Sul, não se estranham os colonos para o centro do sertão.’ Preferia
a população viver, ao contrário, ‘em contínuo litígio, mas nunca deliberando-se a ir
formar estabelecimento, onde as matas estão sem dono, e a abundância abandonada
ao corpo do gentio’.454
Dessa forma, os autores assumiam uma postura de reprodução de atribuições negativas aos
índios, corroborando e fortalecendo uma imagem existente desde o período colonial. As
narrativas estabelecerem as categorias de “colaboradores” ou “inimigos” da obra da
colonização na interpretação dos diferentes sujeitos da história do Espírito Santo, e, para os
indígenas, essa dicotomia significou a apropriação de uma visão sobre eles instituída naquele
período. Para Tarcísio Silva, ao abordar a visão elaborada sobre os indígenas nas primeiras
décadas do século XIX:
[...] essa separação maniqueísta entre “índios bons” e “índios maus” pode levar-nos a
falsas considerações. Essa separação entre os índios é uma visão que pode ter suas
origens nas narrativas dos cronistas da época [...] ou, dizendo de outra maneira, é uma
construção que, sendo repetida, pode ter-se constituído num falso estatuto. 455
do governador Silva pontes, o povoamento do rio Doce é descentralizado da sua análise, cedendo espaço para
outros fatos, certamente considerados por Teixeira mais importantes para caracterizar o progressivo
desenvolvimento do Espírito Santo." MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios
demográficos: guerra e chacinas no vale do rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de
História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 106.
454
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 101.
455
SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta Militar do Rio Doce: a posse da terra como um dos objetivos de conquista.
In: DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, n. 18. Vitória: Centro de Ciências Humanas
e Naturais – UFES, 2006, p. 308.
169
Ao abordarmos diferentes atores individuais e coletivos que tiveram lugares e valores distintos
dentro da história do Espírito Santo apresentada pelos autores, consideramos, portanto, que a
seleção, classificação e ordenação de eventos e seus respectivos personagens – que compõem
as configurações narrativas –, são capazes de organizar a memória, de lembrar/esquecer, de
atribuir um sentido ao passado, e pode ser configurada em conformidade com poderes e
posições de poder.457 A narrativa histórica da superação do atraso elaborou um passado em
conformidade com o projeto de Espírito Santo gestado a partir de meados da década de 1950,
legitimando o discurso político da época. Assim, se a matriz política do discurso da superação
do atraso instituiu um modo de dizer sobre o Estado, a historiografia instituiu uma
discursividade sobre o Espírito Santo no passado e seus atores históricos.
Segundo Marc Ferro, o que ocorre com os personagens nas narrativas é o mesmo que se dá em
relação aos acontecimentos históricos. Ou seja, os atores históricos têm seu significado em
conformidade com os critérios e signos que legitimam a narrativa histórica. 458 A história
espiritossantense escrita sob o signo do progresso, teve como foco o desenvolvimento do
Espírito Santo o que definiu um roteiro de acontecimentos estruturantes e definidores do sentido
e, consequentemente, uma galeria de personagens em concordância ou não com esse sentido.
A história narrativa tradicional, como argumenta José Carlos Reis, caracterizou-se por ser uma
perspectiva com olhar de cima, a partir das elites políticas,459 o que para o Espírito Santo
configurou-se como a história dos propulsores do progresso.
456
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 121.
457
José Carlos Reis, analisando a relação entre historiografia e memória em Paul Ricouer, argumenta que as
configurações narrativas podem ser definidas como uma forma de “esquecimento manifesto” que “é exercido pela
memória manipulada. É um esquecimento estratégico, astucioso. (...) a configuração narrativa seleciona datas,
eventos, personagens e cria um esquecimento estratégico, que justifica poderes e posições de poder.” REIS, José
Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 41.
458
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 15-17.
459
REIS, José Carlos. História e Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro:
FGV, 2003. p. 132-133.
170
Dessa maneira, diante do embate entre lembranças e esquecimentos, e sua implicação nas
hierarquizações e distinções realizadas por esta narrativa em relação a determinados sujeitos
históricos, percebemos, como reivindicou Vânia Moreira ao destacar o “problema indígena”, a
necessidade de uma ruptura com essas narrativas mestras orientadas pela noção da superação
do atraso.
171
O desafio historiográfico do Espírito Santo proposto neste estudo segue a orientação de uma
história da historiografia sob a perspectiva crítica. Nos preocupamos em demonstrar não só a
emergência de certa narrativa histórica mas também em avaliar como se efetivou o percurso de
produção de representações históricas acerca do Espírito Santo. Observamos que as obras
anteriormente analisadas elaboraram um roteiro da trajetória do progressivo desenvolvimento
do Espírito Santo. Esse enredo do passado local fundamentou, por sua vez, um conjunto de
obras que passaram a reiterar certas interpretações e a perpetuar determinadas representações
atribuídas a eventos, períodos e personagens históricos que podem ser identificados em
diferentes narrativas construídas a partir da década de 1970 no Espírito Santo.
André Pirola analisa as obras didáticas da História do Espírito Santo argumentando que elas
colaboraram com a construção de determinadas representações e, por abarcarem gerações de
leitores, constituíram uma forma de compreender a trajetória histórica do Estado. Segundo ele,
Neida Lúcia tornou-se referência na definição de um roteiro de leitura histórica do Espírito
Santo no que tange os textos didáticos. Por exemplo, as obras Pequena História do Espírito
Santo e Espírito Santo, esta é a sua terra, no Brasil, ambas de 1973, e a última adotada
oficialmente pelo governo e difundida nas escolas, caracterizam-se pela busca de transposição,
para a esfera didática, da narrativa presente na obra O Espírito Santo é Assim (1971).
Transferindo para os textos escolares a interpretação do atraso e do "Espírito Santo em marcha
para o desenvolvimento."460 Pirola identifica, assim, como conteúdos e representações do
passado foram apropriadas em diversas obras didáticas, caracterizando o que ele definiu como
a formação de um roteiro de leitura histórica.461
Nessa perspectiva, de acordo com André Pereira, entre os anos de 1980 e a primeira década do
século XXI, um conjunto de obras voltadas para o ensino de História, e mesmo acadêmicas,
reproduziram fatos históricos vinculados a uma determinada representação do passado local
com o propósito de demonstrar como o Espírito Santo foi prejudicado em sua trajetória, o que
460
PIROLA, André Luiz Bis. O livro didático no Espírito Santo e o Espírito Santo no livro didático: história
e representações. 2008. 265f. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória. 2008. p. 113-119.
461
Ibid., p. 120-200.
172
justificava o seu atraso em relação a outros estados. Em sua análise, ele evidencia que as obras
apresentavam a formação da capitania de Minas Gerais e o papel de "barreira verde"
determinado ao Espírito Santo pela Coroa Portuguesa como marco histórico negativo de seu
desenvolvimento. Na esfera acadêmica, ressalta a obra A formação econômica do Espírito
Santo (o roteiro da industrialização), e, também, os livros didáticos: Espírito Santo: minha
terra, minha gente; Espírito Santo: história e geografia; Espírito Santo, uma viagem de cinco
séculos; História do Espírito Santo: uma abordagem didática e atualizada, 1532-2002.462
Tendo a vida do primeiro donatário como condutora da narrativa, as obras traçam um panorama
da origem do Espírito Santo por meio das experiências de Vasco Fernandes Coutinho e,
seguindo o roteiro da "fundação do atraso" estabelecido pela historiografia, apresentam um
462
Evidenciamos aqui, como exemplo, dois comentários de André Pereira: "No livro Espírito Santo: minha terra,
minha gente, três professores do curso de História da UFES - Léa B. R. A. Rosa, Luiz G. Santos Neves e Renato
Pacheco (1986) – sustentaram a fantasia sobre a posse das minas. Sobre isto, afirmam: 'O nome Minas Gerais vem
da quantidade de ouro e pedras achadas nesta região. Parte deste território pertencia ao Espírito Santo, apesar de
bem distante do litoral. Mas acabou se separando da capitania capixaba'. O texto foi publicado em 1986 pelo
governo local e era destinado ao ensino de 1º grau nas escolas estaduais." PEREIRA, André Ricardo Valle V.
Fantasias persecutórias na História do Espírito Santo. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia.
Goiânia, n.1, jan/jul, 2013. Disponível em: http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth. Acesso em:
12/04/2015. p. 155; Encontramos ainda: "A versão de 2001 de Espírito Santo: história e geografia, em quarta
edição, é apontada, na capa, como 'direcionada principalmente ao vestibulando', além de contar o aviso de que se
encontra 'de acordo com o programa da UFES'. Os autores são Thais Helena L. Moreira e Adriano Perrone (2001).
No que se refere ao tema em questão, o texto reproduz várias passagens de Oliveira, assim como o mapa. Por fim,
conclui: 'Em 1720, Minas Gerais foi elevada à condição de Capitania, se desvinculando formalmente do Espírito
Santo, frustrando qualquer ideia de reintegração de terras, que porventura pudesse existir aqui.' Em sua edição
mais recente, publicada em 2008 pelos mesmos autores, mas com ligeira alteração do título para História e
geografia do Espírito Santo, o texto tomou a sério a especulação e o raciocínio contrafactual de um suposto direito
dos capixabas à região das minas e concluíram, de forma incorreta, que a área tinha sido desvinculada do Espírito
Santo." Ibid., p.155-156;
463
PACHECO, Renato. Eu vi o nascer o Brasil: a vida nos primeiros tempos do Brasil colonial. 4. ed. São Paulo:
Moderna, 1997.; NEVES, Luiz Guilherme dos Santos. O Capitão do Fim. Vitória: IHGES, 2001.; MENDES,
Alvarito. Vasco Fernandes Coutinho. Vitória: Pro Texto, 2006.; LACHINI, Cláudio. Vasco: memórias de um
precursor da globalização. São Paulo: Bacarolla, 2009.
173
conjunto de aspectos que caracterizam a região como um lugar que não prosperou. A vida de
Vasco Fernandes Coutinho é apresentada a partir de uma série de aspectos negativos que
caracterizaram sua jornada colonial. Sua figura nas obras sintetiza a representação do Espírito
Santo, inclusive por meio da abordagem do fim melancólico e pobre desse personagem
histórico, que simbolizaria a condição da Capitania.464
464
Destacamos aqui o caráter aventureiro e o momento final da vida desse personagem. Pacheco apresenta Vasco
Fernandes Coutinho como homem de um Portugal quinhentista, contagiado pela “febre do mar”: "Com o tempo,
embora nos meus trinta anos, e rico, e bem estabelecido, fiquei impaciente: via o sol brilhando e rebrilhando sobre
os ribeirões de meus campos e parecia-me estar em pleno mar, imenso e misterioso, e a relva parecia o verde-
oceano, espumando em minhas faces e entrando-me na barba espessa. Estava, como acontecera com milhares de
portugueses daquela época, com a febre do mar. Cinco anos lavrando a terra entre olivais e pinheiros mansos
cansaram-me. A produção era pouca e a vida aventurosa que eu tivera nas Índias me chamava para lugares
desconhecidos. Decididamente não gostava de viver longe do mar." PACHECO, Renato. Eu vi o nascer o Brasil:
a vida nos primeiros tempos do Brasil colonial. 4. ed. São Paulo: Moderna, 1997, p. 17-18; Cláudio Lachini
considera que sobressaiu o espírito aventureiro: "Essa terra de cá, primitiva à margem do Atlântico do Sul, não é
o meu mundo, para onde vim porque uma força interior me impulsionou, como sempre, desde muito cedo, ativou-
me na curiosidade do desconhecido, a navegar em busca de fortuna, ouro e pedras preciosas, em si tão fantasiosas
quanto tudo o que é inanimado. E este foi meu maior erro: entediado em minha Quinta do Alenquer, onde poderia
ter gozado de uma velhice tranquila e abastada.[...] Fui louco. Não tem a mente sã de entregar a seu rei mais do
que sua força ou suas armas; nunca o próprio futuro[...]." LACHINI, Cláudio. Vasco: memórias de um precursor
da globalização. São Paulo: Bacarolla, 2009, p. 15.; Luiz Guilherme, sobre o “Capitão do fim”, corrobora a
aventura colonial. Seu perfil conquistador-militar de outros tempos e sua idade, não condiziam com a maneira
como deveria realizar-se a obra colonizadora: "O capitão veio para se dedicar a essa obra aquilatando mal a
dimensão do sacrifício que lhe iria custar, do tempo de vida que lhe iria exigir. Não bastava desembarcar na
Capitania, batizá-la sob a invocação do Espírito Santo, chanfrar no chão a espada rutilante do sol do meio-dia,
mijar na orla da praia os sais dos seus rins, para que a terra explodisse em cornucópia de facilidade e dádivas. Bem
cedo Vasco Fernandes compreendeu o erro de avaliação que havia cometido, reconhecendo que, movido pela
ambição e soberba, tinha dado com a caravela nos brejos." NEVES, Luiz Guilherme dos Santos. O Capitão do
Fim. Vitória: IHGES, 2001, p. 28-29.; Ressaltamos, também, o que os autores retratam acerca do fim de Vasco
Fernandes Coutinho. Luiz Guilherme elabora a seguinte reflexão do personagem Vasco, como lamentação:
"Lembrais da vila que lá em minha terra vistes? Uma pequena igreja, miúdas choças? Findo-me eu, findam-me
meus netos e bisnetos, a estirpe toda se vai de cabo a rabo, sem que aquela vila avance ou mude de figura. O gentio
que lá existe é bárbaro e inconstante. Os colonos que lá existem, todos me desacatam.[...] Se não fosse eu submisso
à honra do meu nome e escravo da lealdade que devo a meu rei, que Deus guarde, deitava tudo ao chão, da má a
sorte importunado." NEVES, Luiz Guilherme dos Santos, op. cit., p. 101.; Renato Pacheco também narra uma
espécie de fim melancólico de seu personagem:" Nesse entretempo fui defeito em praça pública pelos principais
da vila, que reclamavam de minha moleza em ordenar as entradas.[...] Recolhi-me a meu sítio da Ribeira, onde
ninguém me procurava e onde, se não fosse a escrava Felipa, teria passado fome. Acho que fiz muito por meu
vilão farto. Faltaram-me dinheiro e gente para tocar sua colonização.[...] Minha vida é uma história triste: tive
fama, agora passo o tempo a esperar, as vaidades sumiram como nuvens desfeitas pelos ventos. Dura e escura foi
minha sorte, a velhice é seca e triste, busco um porto que me livre destas dores. Ó Deus, quando terminará minha
jornada?" PACHECO, Renato. op. cit., p. 56.; Cláudio Lachini complementa seu romance, inclusive, com uma
breve avaliação conclusiva sobre o Espírito Santo colonial e apresenta sua interpretação sobre a continuidade do
abandono e dificuldade da capitania: "O Espírito Santo que Vasco deixou foi isolado pela Coroa Portuguesa
quando da descoberta do ouro em Vila Rica, situada em território que originalmente pertencia à Capitania do
Espírito Santo. Com à mesma Capitania, e portanto de Vasco Fernandes Coutinho, foram as terras Diamantina e
da maior parte das Minas Gerais. As Minas, que eram gerais como vaticinara Vasco, passaram a pertencer à
Capitania de São Paulo e Minas de Ouro criada em 3 de novembro de 1709, como consequência da Guerra dos
Emboabas (1707-1709) e necessidade de garantir o controle da Coroa sobre a região das recém-descobertas terras
auríferas.[...] O preço recebido pela região costeira que vai da divisa com a Bahia com até a divisa com o Rio de
Janeiro foi o abandono. E ele é tanto maior por se ilhar o território entre as capitas da colônia a Bahia e o Rio de
Janeiro. Deixá-lo à míngua, protegido por alguns fortes, foi a defesa mais em conta contra qualquer entrada que
se fizesse pelo caminho mais curto (de Vitória a Ouro Preto são cerca de 50 léguas). LACHINI, Cláudio, op. cit.,
p. 239.
174
Diante desse cenário, no entanto, para além dessa identificação de como a narrativa do
progressivo desenvolvimento serviu de matriz para outras narrativas, nosso desafio
historiográfico propôs analisar o percurso de uma determinada forma de se compreender e
narrar o Espírito Santo. Sendo assim, cabe-nos ainda compreender como se configurou a
narrativa da superação do atraso na contemporaneidade e suas relações com o discurso político
do desenvolvimento.
465
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006. p.317-325.
466
O recorte corresponde à elaboração do discurso político de construção da imagem do Novo Espírito Santo como
observamos no capítulo I. As obras analisadas se estendem até o ano de 2012, pois identificamos a continuidade
de certas publicações sob essa perspectiva, relevantes para nossa análise.
175
467
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. Esta obra apresenta a mesma lógica reflexiva e o sentido da
narrativa histórica presente nas obras anteriores do autor. A diferença está no acréscimo de algumas considerações
a respeito de alguns sujeitos históricos e a eventos políticos. O diferencial é justamente a ampliação do período de
abordagem. Enquanto obras anteriores do autor tinham como recorte cronológico a década de 1980, a obra aqui
analisada vai até os primeiros anos da primeira década do século XXI, correspondendo ao período do primeiro
governo de Paulo Hartung. As obras anteriores são: BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Esforços
industrializantes na Primeira República: o Espírito Santo 1889-1930. Dissertação (Mestrado). Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1979.; BITTENCOURT, Gabriel
Augusto de Mello. A formação econômica do Espírito Santo: o roteiro da industrialização, do engenho às
grandes indústrias (1535-1980). Rio de Janeiro: Cátedra; Vitória, ES: Departamento Estadual de Cultura, 1987.
Nesta, encontramos o seguinte propósito: "O objetivo principal do presente trabalho é, portanto, um estudo sobre
a Formação Econômica do Espírito Santo. A maior parte de seu conteúdo, porém, privilegia o acontecido no setor
da transformação dos produtos econômicos. Isso se justifica pelo nosso interesse em analisar a especificidade de
tal processo, sob o prisma regional, pela própria atualidade da industrialização local, como se esta inaugurasse um
"novo ciclo econômico", articulado, porém, com os quadros mais amplos que o gerou [...]". Ibid., p. 17-18.
468
Estilaque Ferreira dos Santos evidencia a obra como referência para se pensar o Espírito Santo: antes mesmo
de sua primeira edição definitiva, que ocorreu em 1991, ela já era utilizada de forma muito intensa desde a década
anterior por alunos e professores de nossa Universidade Federal, e continua assim até hoje. [...] Nela eles
encontravam um conjunto bem-organizado de dados a respeito da evolução econômica do Espírito Santo e uma
consistente interpretação deles, constituindo-se assim em um sólido apoio para suas pesquisas e reflexões a respeito
da trajetória socioeconômica recente do Estado. SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Prefácio à 2ª edição. In:
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI, Ângela Maria. Cafeicultura e grande indústria: a transição no Espírito
Santo (1955-1985). 2.ed. Vitória: ES em Ação, 2012. p.7.
176
Gabriel Bittencourt elaborou uma narrativa que envolveu tanto a sequência tradicional dos
períodos quanto estabeleceu recortes em função de sua perspectiva de análise, dando ênfase aos
aspectos econômicos, entendidos como determinantes no processo histórico de formação do
Espírito Santo. Ao analisarmos a obra do autor, entendemos que constituiu-se um paradigma
de interpretação do passado espiritossantense que reelaborou a narrativa da superação do atraso,
interpretada sob a orientação da história econômica471, diferentemente dos autores
469
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Prefácio à 2ª edição. In: ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI, Ângela
Maria. Cafeicultura e grande indústria: a transição no Espírito Santo (1955-1985). 2.ed. Vitória: ES em Ação,
2012.p. 7-8.
470
DARÉ, Raquel. A “crise” do café e a ideologia desenvolvimentista no Espírito Santo. 2010, 203 f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade federal do
Espírito Santo, Vitória, 2010. p. 93-143.
471
Para o autor: "[...] atenção despertada para as deficiências da historiografia tradicional do Espírito Santo, cujas
obras, quase sempre concentradas nos aspectos narrativos dos temas políticos e administrativos, ficavam restritas
quanto aos aspectos críticos, sem a preocupação da emersão do substrato sócio e econômico dos fatos históricos
regionais." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao
complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 13.
177
A interpretação do passado local pelo autor teve como principal orientação o conceito de sentido
da colonização. Este caracterizou-se como uma forma de compreender o processo histórico e o
sentido do desenvolvimento tomado por uma sociedade e, consequentemente, capaz de explicar
sua condição no presente. Decorreu desse entendimento a noção de formação econômica no
seio da discussão sobre o sentido do desenvolvimento brasileiro, norteando, a partir da década
de 1960, a compreensão das sociedades capitalistas denominadas à época de
subdesenvolvidas.473 No caso de Bittencourt, ele recorre a esse paradigma de explicação para
compreender o Espírito Santo na contemporaneidade, a partir de sua trajetória.
472
Segundo Bittencourt: "[...] coube a Caio Prado promover a primeira análise global do passado do País sob a
inspiração do materialismo dialético (1942), afirmando ele que o Brasil contemporâneo teve a sua formação
assentada sob o tripé: monocultura, latifúndio, escravidão. mais ainda, alimentando o debate sobre as estruturas
socioeconômicas brasileiras nos anos 1940 e 1950. No entanto, não se pode esquecer que foi somente a partir de
Roberto Simonsem (1937), que ficou introduzido, em um critério de periodização, o fator econômico, com a noção
de ciclo econômico, para delimitar as fases do período colonial. Também Celso Furtado a quem, no final dos anos
de 1950, coube a introdução da noção de modelo, concebendo a sua Formação Econômica do Brasil em torno de
três modelos básicos e articulados entre si: a sociedade escravista do açúcar, do café, gerada pela dependência de
mercados distantes e subordinada a estímulos que lhes são exteriores e, portanto, que não podem ser modificados
a partir da sua própria dinâmica interna." Ibid., p. 15-16.
473
Segundo Astor Dihel: "O tema desenvolvimento como conteúdo da História do Brasil foi objeto de estudo no
livro de Caio Prado Júnior, cujo texto parece ser menos historiográfico, tendo como resultado mais uma história
do desenvolvimento, ou melhor, do subdesenvolvimento brasileiro. O texto descreve as imanentes contradições
como variáveis que não podem deixar de ser levadas em consideração na análise do processo de desenvolvimento
da década de 1960. O estudo procura explicitar o subdesenvolvimento brasileiro em termos históricos [...]. A obra
tem condições de mostrar uma dimensão histórica que também pode ser considerada historiográfica quanto ao
conhecimento e interpretação dos fatos, mecanismos e estruturas do passado." Segundo DIHEL, Astor A. A
cultura historiográfica brasileira: década de 1930 aos anos 1970. Passo Fundo: UPF Editora, 1999.p. 169.
178
474
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 14-15.
179
Quando observamos, portanto, o autor caracterizando o Espírito Santo como portador de uma
"economia de sobrevivência", ele está considerando o lugar periférico atribuído à Capitania no
processo histórico de desenvolvimento do Brasil, condição que se iniciou na colonização:
475
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 14-15. p. 75.
476
O autor aborda a formação de grandes propriedades, principalmente ao sul da Capitania, que produziram açúcar
e outros gêneros, caracterizando o modo de produção local: "Tendo como epicentro o município de Itapemirim,
vinham essas famílias dilatando suas propriedades pelo vale acima: os Gomes Bittencourt, dominando o lado do
Itapemirim e o barão de Itapemirim, o lado sul do rio; por terras que somavam quilômetros de extensão; apenas
limitados em suas posses pelo atual município de Cachoeiro de Itapemirim.[...] Essas propriedades, quase todas
antigas sesmarias, abasteciam de açúcar e aguardente toda a província do Espírito Santo, com excedente exportado
em grande quantidade para o Rio de Janeiro. Conforme Antônio Marins, até 1887, de um lado e do outro do rio
Itapemirim, contava-se cerca de vinte fazendas produtoras de açúcar e aguardente, cujos engenhos, em sua maioria
eram movidos a vapor." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho
colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006.p. 79-80.
477
Ibid., p. 88.
180
Não fosse a obra dos jesuítas, por certo, o Espírito Santo poderia ser aquilo que Frei
Vicente do Salvador deixa subentendido e Varnhagem descreveu: 'Uma capitania com
tão boas terras, com um porto excelente, com rios navegáveis para o sertão' e
completamente abandonada por mais de três séculos. Após as primeiras décadas do
século XVII, no entanto, o Espírito Santo entrou em nova fase de depressão que
justificaria aquela tradição da historiografia colonial brasileira, influenciada por Frei
Vicente do Salvador, que apresenta a capitania como um verdadeiro desastre,
desinteressando-se os próprios descendentes de Coutinho da administração da terra
que lhes cabia pela cláusula de sucessão hereditária. Natural, portanto, que, desde
cedo, capitais e contingentes populacionais, e as atenções do mercado, tenham se
afastado do Espírito Santo, indo engrossar aquela corrente que se dirigira ao Nordeste
açucareiro, com melhor possibilidade em atrair os incentivos da produção. Destarte,
dado o insucesso, também, das expedições mineradoras, as únicas perspectivas de
sobrevivência econômica no Espírito santo permaneceram ligadas ao setor açucareiro,
478
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006.p. 107.
479
Segundo Bittencourt: "Por sua vez, a despeito da conjuntura favorável ao açúcar no Espírito Santo, como de
resto das demais capitanias, a princípio, os pioneiros das terras capixabas não pareciam muito interessados na
agricultura. As perspectivas de descobrimento e de exploração de minas de metais preciosos é que, parece,
polarizavam as atenções. [...] Foi a agricultura, porém, que possibilitou a colonização sistemática da capitania. As
tentativas de penetração esbarram em alguns obstáculos intransponíveis, entre estes o temor inspirado pelos
indígenas que, aliados a densa floresta tropical e os rios encachoeirados, a poucas léguas do litoral, tornaram-se
fatores impeditivos à interiorização. Essa economia escravista, que dependia quase exclusivamente da procura
externa, e que deveria multiplicar o capital nela imobilizado, terminou direcionada, em sua maior parte, para o
Nordeste açucareiro que, desde cedo, pelas sua peculiaridades e localização, atraiu os capitais disponíveis ao
açúcar colonial." Ibid., p. 107-108.
480
Ibid., p.108.
181
Curiosamente, a própria descoberta de ouro em grande escala nos fins do século XVII
e início do XVIII, no Brasil, constituiu-se em um empecilho ao desenvolvimento
regional. Entre as repercussões da grande exploração do ouro colonial, nesse
momento, no governo de d. João V, proibiu-se rigorosamente a abertura de estradas
ou caminhos que ligassem o litoral capixaba à rica Capitania das Gerais. Medidas e
estratégias foram adotadas no sentido de se evitar ataques estrangeiros e, sobretudo, o
contrabando pelo litoral espiritossantense, terminando por isolar a capitania entre o
mar e as montanhas proibidas. Nesse contexto passou o século XVIII, com a capitania
espremida nos limites litorâneos, tanto pela floresta indevassável, como pelas
proibições dos governos metropolitanos.[...]482
O autor insere em sua interpretação a noção da "barreira verde" como um dos fatores do atraso
do Espírito Santo no período colonial. Marginalizado no "ciclo do açúcar", a Capitania fora
impedida de participar do "ciclo do ouro" e, assim, marginalizada até o século XIX. Segundo
Bittencourt, "até, então, o capixaba, como caranguejo, errava pelas praias do litoral, em torno
de uma economia de subsistência ou, principalmente, daquela monopolizada pelo açúcar, sem
que fosse criada a necessária infraestrutura à interiorização."483
Foi essa, pois, a "herança colonial" determinante para o lugar secundário do Espírito Santo no
contexto do desenvolvimento da economia brasileira: uma condição originária marcadamente
periférica e ausente do fluxo dos grandes capitais presentes em outras regiões. O modelo de
desenvolvimento agrário-exportador não fora suficiente, segundo Bittencourt, para dinamizar a
Capitania.
481
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006.p. 11. Sobre os jesuítas e a economia local: "Depois da extinção da
Companhia de Jesus no Brasil, e o consequente sequestro de seus bens, resultou para as unidades produtivas do
Espírito Santo uma enorme desorganização[...]. O desequilíbrio econômico regional do qual já se ressentia a
Capitania do Espírito Santo no Século XVII, distanciou-a ainda mais do comércio internacional, limitando-se a
uma navegação de cabotagem com o Rio de Janeiro e Bahia, talvez os únicos mercados atingidos pela economia
capixaba." Ibid., p. 114.
482
Ibid., p. 121.
483
Até os Jesuítas, mesmo com seus empreendimentos: "Os próprios jesuítas, os mais poderosos e esclarecidos
"empresários" da Capitania, ao abrirem suas importantes fazendas, fizeram-nas nas proximidades do litoral, sem
se aventurarem pelo interior, onde predominava o botocudo adverso." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral
e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006.
p 25.
182
484
Este conceito surge na narrativa do autor ao tratar da expansão cafeeira e imigração estrangeira no século XIX.
Presente no próximo item de nossa análise. Segundo Raquel Daré, esse conceito foi utilizado, principalmente, por
Hildo Meirelles de Souza Filho para tratar dos aspectos históricos das transformações econômicas desencadeadas
a partir da década de 1960. Segundo ela, este autor utiliza o conceito de "vazio demográfico" para caracterizar o
interior do Espírito Santo e sua economia de subsistência, entendida como herança do período colonial. DARÉ,
Raquel. A “crise” do café e a ideologia desenvolvimentista no Espírito Santo. 2010. 203 f. Dissertação
(Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade federal do Espírito Santo,
Vitória, 2010. p. 125. Ver também: SOUZA FILHO, Hildo Meirelles de. A modernização violenta: principais
transformações na agropecuária capixaba. 1990. 202 f. Dissertação de Mestrado em Economia. Instituto de
Economia, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, Campinas, 1990.
183
A ligação do Espírito Santo à economia cafeeira foi decisiva para a modificação desse
panorama, na medida em que a agricultura de exportação continuava sendo,
praticamente, a única perspectiva de sobrevivência da economia provincial. Até a
consolidação do café, porém, como vimos, não se apresentara favorável a conjuntura
econômica do Espírito Santo.487
Era essa a condição após o período colonial, "do qual resultara uma província plena de carências
infraestruturais e cuja economia predominante, a do açúcar, não produzira números favoráveis
expressivos capaz de aproximar o Espírito Santo de suas congêneres mais importantes." 488 A
Província, nesse sentido, teve "na cafeicultura a vereda de salvação para a superação do
marasmo em que vivera na maior parte de seu processo histórico."489
Tal como nos autores analisados anteriormente, o sentido da superação do atraso é instituído,
também, pela oposição entre os diferentes momentos experimentados pelo Espírito Santo.
Entretanto, enquanto Neida Lúcia, Maria Stella de Novaes e, principalmente, José Teixeira de
485
JÖRN, Rüsen. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 58.
486
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 157. Sobre o início do cultivo do café: "[...] o café só ganha
destaque no Espírito Santo, a partir da ocupação mais dinâmica do sul da província, em meados do século XIX,
penetrando pelos vales do Itapemirim e do Itabapoana, na medida em que a franja agrícola, deslocando-se da
província do Rio de Janeiro, ia invadindo o solo agrícola capixaba". Ibid., p. 161.
487
Bittencourt apresenta um quadro do Espírito Santo logo após a Independência do Brasil: "Em que pese a
Independência política, no início da segunda década do século XIX, esse movimento poucas modificações trouxe
para o Espírito Santo, que permanecerá como que transformado em posto militar, e apresentando um quadro
demográfico e econômico fortemente atrofiado.[...] Assentada a poeira das agitações políticas na Província,
inaugura-se o período acumulando-se déficits e necessitando-se de subsídios do Governo Federal para a
sobrevivência administrativa." Ibid., p. 155.
488
Ibid., p. 175.
489
Ibid., p. 195.
184
[...] o atraso econômico secular do Espírito Santo pode ser explicado, muito mais pelas
próprias barreiras impostas pelo sistema colonial, cuja estrutura, de caráter unilateral,
produzirá uma estrutura quase sempre favorável à metrópole e aos países de economia
dominante, condição que só ficará superada a partir da liberdade governamental e das
perspectivas de aproveitamento de suas potencialidades, sobretudo, a partir do
substrato representado pela cafeicultura, cuja expansão atraiu investimentos e
acumulou o mínimo necessário de capitais para a criação de uma infraestrutura mais
satisfatória à modernização do século XX.490
O café, segundo o autor, determinou as mudanças em uma região impedida "de explorar seu
próprio território durante a fase colonial", mas que "paradoxalmente, conservara condições
favoráveis para que, a partir da segunda metade do século XIX houvesse a expansão da
cafeicultura pelas terras virgens e desabitadas da Província, ainda verdadeiro vazio
demográfico."491 Como vimos, a não interiorização foi uma das principais características
negativas do Espírito Santo e o café, por sua vez, representou a promoção do desenvolvimento
local:
490
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 196.
491
Ibid., p. 162.
492
Ibid., p. 163.
493
Ibid., p. 164-196. De acordo com o autor, o café permitiu: a) a interiorização: "Essas matas, conforme
assinalamos, representaram formidável obstáculo ao colonizador, mantidos e fixados no litoral ou a poucos
quilômetros para o interior até a penetração da cafeicultura no Século XIX, quando a fronteira agrícola foi
decisivamente dilatada no Espírito Santo, nas justas medidas da destruição das matas capixabas. O café será
portanto, o responsável pela penetração contínua no solo virgem do Espírito Santo, dilatando a fronteira agrícola
da região, superando o temor inspirado pelos botocudos e pelas feras que a floresta encerrava. As extensas
185
Tal sentido, porém, orientado pela lógica hegemonia-decadência, apresentou o duplo papel
desempenhado pela economia cafeeira para o desenvolvimento local. Além das mudanças
infraestruturais, o café possibilitou a execução dos "esforços industrializantes" na 1ª
República.494 A especificidade do Espírito Santo, entretanto, dentro do processo histórico da
formação econômica brasileira, segundo Bittencourt, não permitiu que as transformações
trazidas pela economia cafeeira se configurassem na superação da condição histórica do
Espírito Santo em relação aos Estados mais desenvolvidos do Brasil.
Nesse ponto, ele analisa a condição do Espírito Santo sob a perspectiva do "desequilíbrio
regional" que marcou a trajetória espiritossantense ao longo do século XX. A hegemonia da
cafeicultura não gerou as condições necessárias para elevar o patamar de desenvolvimento
local. A caracterização do Espírito Santo no final do período imperial e no início do republicano
plantações, sobretudo a partir de Cachoeiro de Itapemirim, adensando as populações rurais, seguia o curso dos
principais rios, instalando novos povoados e vilas. Galgando as serras, foram os caminhos que orientaram os
imigrantes europeus." Ibid., p. 164. b) Ampliação da arrecadação: "De qualquer forma, iniciou-se uma nova era
para a agricultura capixaba. A Província cuja renda era derivada quase que essencialmente da agricultura, passou
a registrar seus primeiros superávits orçamentários no século XIX.[...] A produção agrícola provincial do período
1881-82 ficou avaliada em rs. 3.854:070$517 e a safra do período 1885-86 em rs. 5.127:818$499, valores bem
superiores aos de algumas províncias não cafeeiras como a do Amazonas e Piauí, correspondentes a rs.
277:169$225 e rs. 14:566$427, respectivamente. Muito embora, no contexto das grandes regiões do país, a
participação do Espírito Santo ainda se apresentasse bastante reduzida, por exemplo, em comparação com a safra
paulista, cuja expansão já apresentava valores calculados em 42.257:126$182. De qualquer forma, nesse período,
a Província atingia, pela primeira vez, formidável desempenho proporcionado pelo café, cuja produção chegava a
18.498, 205 toneladas, superando agriculturas tradicionais como o milho (661,680 ton.), o açúcar (501, 874 ton.),
e a farinha de mandioca (3.589,036 ton.)." Ibid., p. 165. c) o aumento populacional por meio da imigração: "Graças
à dinâmica do café, a economia agrícola capixaba passou a atrair, decisivamente, pela vez primeira, grandes
contingentes populacionais para a região. Por intermédios de companhias organizadas de colonização, buscaram-
se na Europa, os milhares de emigrantes, sobretudo alemães e italianos, de que o Espírito Santo necessitava[...]"
p. 167; Dinamizou a Província: "A dinâmica do café estava a exigir medidas vigorosas ao escoamento da produção.
Por volta de meados do século XIX, os esforços do governo concentravam-se na recuperação daquelas vias
consideradas vitais à economia provincial, e, sobretudo, na criação de um 'corredor de exportação' para as minas
Gerais pelo interior espiritossantense. [...] Era no núcleo das colônias estrangeiras produtoras de café onde ficará
localizada a atenção das autoridades promotoras da viação provincial. Porquanto, conforme podemos observar, à
proporção que se foi efetivando a ocupação do solo desses núcleos agrícolas, é que se começou a viabilização das
estradas de rodagem com vistas ao fluxo contínuo da produção cafeeira."Ibid., p. 168-169. d) a modernização com
a introdução da navegação: "No Espírito Santo, apesar de toda sua orientação para o mar, praticamente a única
via de comunicação com as demais províncias do império, a navegação era mantida em bases precárias. até o
século XIX, intercomunicavam-se as povoações pelos rios e mar. Também pelo mar, normalmente, ligava-se o
Espírito Santo às demais províncias do Império. Entretanto, em que pese toda essa orientação para o oceano, não
havia navegação regular com o exterior, e mesmo de cabotagem, apesar da posição portuária privilegiada que
caracterizava a Província." Ibid, p. 174; e) a introdução das ferrovias: "[...] não deve ficar negligenciada a histórica
ligação às Minas Gerais pelo vale do Rio Doce, que resultou na Estrada de Ferro Vitória a minas, a mais importante
via férrea do Norte do Estado, ligando, posteriormente, importante área da antiga Província de Minas Gerais ao
Porto de Vitória, não deixando de abrir à colonização expressiva área desse vale." BITTENCOURT, Gabriel.
História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória:
Multiplicidade, 2006. p. 191.
494
Esse é o título da dissertação de mestrado do autor: BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Esforços
industrializantes na Primeira República: o Espírito Santo 1889-1930. Dissertação (Mestrado). Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1979.
186
O Espírito Santo, em que pese a dinâmica da sua economia cafeeira, era reputado
como um dos mais atrasados do Império, apresentando uma representação nacional
muito fraca. Embora inserido entre as principais unidades políticas do Império,
permanecia em grande desequilíbrio regional, apresentando um quadro carencial,
onde sobressaía a deficiência da viação pública para o escoamento da produção
cafeeira, cuja solução muitos localizavam em uma política econômica mais
descentralizada, que capacitasse a província prover suas próprias necessidades. 495
Assim, o Espírito Santo alcançava a República ainda sob o efeito da "herança colonial":
Aqui, apesar das similitudes aos estados da região na qual se insere, sob o ponto de
vista da economia agrária, o Espírito Santo apresentava-se, ainda no início da fase
republicana, em considerável plano secundário em relação àqueles estados. Em que
pese a dinâmica da cafeicultura nas últimas décadas da fase imperial, tal crescimento
econômico não fora suficiente para superar a herança colonial que tornara a região
defasada por longos períodos.496
Seguindo a lógica hegemonia-decadência, o autor evidencia que a cafeicultura, ainda que tenha
permitido mudanças de infraestrutura e possibilitado a modernização da capital Vitória, não
provocou uma dinâmica suficiente para escoar a produção, nem formar um mercado
consumidor, muito menos capaz de gerar acumulação de capitais para o investimento em outras
atividades. Mesmo ressaltando o primeiro projeto de desenvolvimento realizado por Jerônimo
Monteiro497, apesar dos "esforços industrializantes"498, o Estado também foi prejudicado devido
ao "desequilíbrio regional" devido à concorrência com outras unidades federativas mais
desenvolvidas.499 De acordo com Bittencourt, evidenciava-se os limites estruturais que
495
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 271.
496
Ibid., p. 304.
497
Sobre o projeto de Jerônimo Monteiro: "Foi, portanto, graças ao respaldo financeiro amealhado pelo Estado no
governo Coutinho, que Jerônimo Monteiro pode, durante o seu quatriênio de governo, dar início e desenvolver
uma política voltada para grandes esforços industrializantes no Espírito Santo, tendo como promotor o próprio
Estado. Para isso não deixou de contar com o apoio irrestrito do Congresso Legislativo estadual, que quase sempre
referendava seus projetos e solicitações, tanto no que tange à liberação de verbas para a montagem direta de
indústria pelo Governo, como para favores e incentivos às empresas, entre estes a garantia de juros a empréstimos
empresariais, renúncia fiscal, doação de terras e até mesmo fornecimento gratuito de energia elétrica aos projetos
subsidiados pelo Estado." Ibid., p. 308.
498
Em relação às dificuldades de realização da industrialização: "Neste caso, também, cessados os investimentos
públicos, não se conseguiu atrair os capitais industriais para os projetos governamentais, pois eles já se
encontravam canalizados para o centro nacional. Quanto à acumulação criada pelo café, ela ficará imobilizada no
próprio mecanismo da produção da rubiácea. Isto é, como as possibilidades de êxito econômico do Estado
continuavam enquadradas na área cafeeira, ganhando o café, na década de 1920, novos impulsos, os atrativos aos
investimentos, tanto do Governo como da iniciativa privada, foram recanalizados para essa área." Ibid., p. 302.
499
Além dessas dificuldades, Bittencourt identifica outros fatores: "A falta de mão-de-obra especializada,
posicionou-se como um dos mais sérios problemas aos empreendimentos fabris do período [...]. mas não era esse
o único problema enfrentado pelos esforços industrializantes do Espírito Santo: dificuldade de importação de bens
de capital, desvalorização monetária, deficiência dos meios de transportes, custo de fretes, problemas relativos à
187
Assim, o Espírito Santo por mais que superasse a condição de "marasmo colonial" inseria-se
na lógica capitalista a partir de sua condição periférica na região de economia mais dinâmica
do país:
Liderado pelo Estado de São Paulo, onde a dinâmica do café já havia promovido uma
acumulação capitalista capaz de possibilitar a implantação de um parque industrial
diversificado, a economia paulista não só conseguiu liberar-se da extrema
dependência da cafeicultura como, também, possibilitou a conquista do mercado
nacional. Esse foi, também, em menor escala, o caso do Rio de Janeiro, que,
juntamente com São Paulo, assumiu a liderança do processo de industrialização.
processo que, nas décadas que se sucederam, ficou estendido para o Sul do País, assim
como, também, a Minas Gerais. Nesse contexto, o Espírito Santo, conforme vimos,
inserido na mais dinâmica área da produção nacional, permaneceu com sua economia
totalmente apoiada na agricultura do café. [...] A extrema dependência da monocultura
ditava não somente o perfil diferencial que o separava dos demais Estados da região,
como, também, revelava uma base precária de sustentação da renda estadual,
subordinada esta ao sabor das oscilações que caracterizavam o setor agrário - ora em
ascensão, ora em decadência, como fruto das incertezas da cafeicultura. Não havia,
no caso do Espírito Santo, uma dinâmica local que possibilitasse a expansão
capitalista. Ao contrário, as condições intrínsecas da economia capixaba e suas
Diante dessa condição, Bittencourt avalia que o Espírito Santo ganhava um novo capítulo, o da
superação da crise da economia cafeeira. Sua trajetória histórica entrava na transição de uma
economia agrícola para a fase industrial. Tal como José Teixeira de Oliveira e Neida Lúcia, o
governo Jones dos Santos Neves emerge como símbolo de transição 504. A narrativa do autor
evidencia as mudanças que ocorreram no Estado e, consequentemente, a superação da crise
econômica que caracterizava a economia cafeeira. Nesse sentido, ressalta a transição do ciclo
do café para o industrial, marcado pela ação governamental na criação de órgãos por meio de
uma política intervencionista na administração local505 e nas modificações infraestruturais
502
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 377-378.
503
Ibid., p. 361.
504
O autor relata as mudanças na infraestrutura do Estado. Sobre Jones dos Santos Neves: "[...] assim que tomou
posse, lançou, conforme vimos, o 'Plano de Valorização Econômica do Espírito Santo', fundamentado em obras
infraestruturais para implementação do Porto de Vitória, ampliação da produção da energia elétrica, abertura de
rodovias para escoamento da produção agrícola, que deveria ser fomentada. [...] A deficiência da infraestrutura,
porém, em nada viabilizava os empreendimentos industriais, públicos ou privados. As poucas unidades industriais
então existentes eram espoliadas pelos altos preços da energia elétrica, ao que se somavam as dificuldades de
mercado, ausência de mão de obra especializada e outras mazelas que compunham o quadro deficitário regional."
Ibid., p. 379. Narra também a capacidade da energia elétrica: "Em 1976, a capacidade de produção de energia
elétrica do Estado atingiu a aproximadamente 180,8 MW, compondo o 'Sistema ESCELSA'; nesse ano, onze usinas
hidráulicas, duas térmicas, 31 subestações e 1.555 km de linhas de transmissão, interligando-se ainda a empresa
ao sistema 'FURNAS' que possibilitou o suprimento de 23% de toda a demanda que o Estado exigia para
crescimento da vida urbana e a grande decolagem do 'ciclo industrial'." Ibid., p. 382.
505
Segundo ele: "No Espírito Santo, portanto, para a estruturação da sua economia, foram criados alguns órgãos
de atuação que a nova política intervencionista permitia, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e o
Sistema de Crédito para o Desenvolvimento (atuais Bandes e Banestes). Elegeu-se a industrialização como 'carro-
chefe' dessa política de reestruturação." Ibid., p. 399-400.
189
voltadas para a realização desse projeto.506 Para Bittencourt, configurava-se o avanço para uma
nova realidade:
Nessa perspectiva, o Espírito Santo alcançava, enfim, uma nova condição. A "quebra do
isolamento estrutural" definiu, portanto, novas possibilidades e, consequentemente, um novo
lugar para o Espírito Santo no cenário nacional. Assim como o discurso político daquele
período, Bittencourt, sob a ótica do desenvolvimento, define o projeto industrial como marco
de superação de uma condição periférica, de um Espírito Santo, enfim, integrado à economia
nacional:
506
Para Bittencourt: "[...] o projeto de industrialização que vinha sendo realizado em nível nacional, começou a
ter desdobramentos no Espírito Santo. Apesar de reduzido, o setor industrial local começou a demonstrar que havia
um núcleo coeso identificado com o projeto nacional de industrialização 'acelerada'. Foi um projeto articulado em
torno da Federação do Comércio e da recém-criada Federação da Indústria, ambas presididas pelo empresário
Américo Buaiz. O projeto agregou um conjunto de atores importantes. Entre eles, Eliezer Batista, que era gerente
e, depois, diretor da Companhia Vale do Rio Doce, em Vitória. Mais tarde, ele se transformaria em presidente da
estatal e, ainda, ministro de Minas e Energia. Outras figuras de destaque também colaboraram para a realização
do projeto de modernização regional. Entre eles, Arthur Carlos Gerhardt Santos, que foi Secretário do
Planejamento do segundo governo de Carlos Lindenberg, no começo de 1960. Na verdade, esses serão os
formuladores e gestores de uma nova política regional de desenvolvimento. Isto é, a partir das gestões e
articulações realizadas por todo um conjunto de pessoas, é que houve um segundo projeto de desenvolvimento
para o Espírito Santo." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho
colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 384-385.
507
Ibid., p. 401.
190
O Espírito Santo, portanto, alcançava um novo patamar de desenvolvimento que, enfim, situava
o Espírito Santo em um novo lugar no cenário nacional. Os dois ciclos econômicos permitiram
ao Estado ultrapassar uma condição determinada pela "herança colonial." O projeto de
desenvolvimento industrial, nessa perspectiva, tornou-se o principal marco histórico do Espírito
Santo. Considerando o período de escrita da primeira versão do autor, na década de 1980, o
sentido da superação foi definido pela industrialização, interpretada como alavanca que
permitia ao Estado, enfim, figurar como desenvolvido no contexto econômico brasileiro. O
autor corrobora o discurso político da superação do atraso elaborado nas décadas de 1960 e
1970, assumindo o desenvolvimento via industrialização como o caminho necessário para o
Estado, estabelecendo o sentido de superação de sua trajetória.
508
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 429. Encontramos, também: "Destarte, no Espírito Santo, partiu-
se para um processo de industrialização concentrado na área de 'Grande Vitória' e adjacências que, por sua vez, já
canalizava as correntes migratórias do interior, atraídas pelo porto e pelos empreendimentos dos quais, aliás, fora
fator de implantação. Devido às suas múltiplas ligações com os planos superiores, o processo de industrialização
que então se implantou tornou-se irreversível, fato este que proporcionou ao Estado taxas estáveis de crescimento.
A partir de 1966, por cerca de dez anos, a economia capixaba cresceu à taxa de 13,4% a.a., liderado pelo processo
industrial. Esta expectativa de um crescimento global da economia estadual, bem acima da média nacional, tendia
a reduzir a distância entre a renda per capita média do País e a do Estado." Ibid., p. 497.
191
Dessa forma, seguindo a narrativa do autor e sua ampliação temporal, a rememoração dos
marcos históricos da superação do atraso, ou seja, dos dois ciclos de desenvolvimento
econômico anteriores, foram colocados em função das expectativas de surgimento de um novo
ciclo para o Estado. Se o projeto desenvolvimentista da década de 1960 surgiu em sua narrativa
como marco de ascensão do Espírito Santo, o início do século XXI foi interpretado como o de
configuração de um contexto econômico no qual a representação do Espírito Santo é definida
pelas expectativas de seu protagonismo no cenário nacional.
509
É importante ressaltar que o autor não deixa de reconhecer alguns problemas acarretados ao Espírito Santo
nesse processo, ainda que seja secundário em sua obra: “A industrialização engendra um efeito social bastante
adverso, sobretudo em países de grandes desigualdades sociais e em vias de desenvolvimento. Ela eleva os índices
de favelização nas áreas urbanas, atrai trabalhadores das regiões vizinhas e eleva o preço da terra urbana,
degradando o nível de vida nas grandes cidades. Foi o que terminou por ocorrer na área da Grande Vitória. [...] O
Estado do Espírito Santo, entre 1970 e 1980, apresentou um acréscimo de aproximadamente 450.000 habitantes,
acarretando uma taxa média geométrica de incremento anual da população residente de 2.063.610 habitantes.
Desse total, em decorrência do êxodo rural e/ou atraídos pelo advento dos Grandes Projetos de Impacto, 722.607
pessoas viviam na então denominada Grande Vitória, formada pelos municípios da Capital, Vila Velha, Cariacica,
Serra e Viana. Logo, a população do Espírito Santo tornou-se, predominantemente, urbana. Em 1980, 1.325.164
habitantes, 64,21% da população, residiam na zona urbana, enquanto 738.437, apenas 35,78% de seus habitantes,
concentravam-se na zona rural." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do
engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 426-427.
510
JÖRN, Rüsen. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 59.
192
1990 e o início do século XXI apresenta o surgimento de um novo ciclo econômico no Espírito
Santo em função da nova ordem econômica mundial, a da economia globalizada. Para o Espírito
Santo, a internacionalização da economia reativara, segundo Bittencourt, "aquela capacidade
empreendedora em comércio e serviços já manifestada por ocasião das grandes vertentes da
industrialização, que caracterizou o Estado a partir dos anos de 1970."511Nesse contexto, o autor
resgatou o sentido de superação atribuído ao ciclo da industrialização para identificar um
momento de transformação que se configurava no início do novo século. Destacou em sua
narrativa as mudanças e expectativas que a atividade portuária, a siderurgia e o petróleo
introduziram no Estado.
511
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 481.
512
Ibid., p. 473. Sobre contexto econômico caracterizado pelo petróleo, a siderurgia e o complexo portuário
encontramos também: "A introdução de novas tecnologias e de técnicas especiais de perfuração de poços, é que
propiciaram este novo ciclo na bacia terrestre do Espírito Santo, caracterizando tanto as novas descobertas quanto
os expressivos aumentos das reservas e da produção de óleo e gás" p. 485 [...] A companhia Vale do Rio Doce
congrega hoje, instaladas no Porto de Tubarão, sete usinas de pelotização, que produzem cerca de 25 milhões de
toneladas de minério de ferro, destinadas, sobretudo, para o mercado externo. A empresa que detém cerca de 50%
do controle acionário da Samarco, vem estudando a possibilidade de aumentar a produção de suas usinas em mais
de 3,5 milhões de toneladas a partir da construção de mais uma usina, a terceira de pelotização em Ubú, no
município de Anchieta. [...] Por outro lado, as bases portuárias do Espírito Santo vêm, de há muito, servindo de
apoio às empresas multinacionais que atuam na Bacia de campos. A par disso, a movimentação do Porto de Vitória
tem registrado constante crescimento." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito
Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 485.
193
513
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 489.
514
Ibid., p. 491.
515
Ibid., p. 500-501.
516
Ibid., p. 501.
194
Bittencourt, portanto, no início do século XXI, recuperou a expectativa otimista sobre o Espírito
Santo e determinou o sentido da superação a partir da representação de novos marcos históricos
de ruptura: a economia cafeeira, com a modernização possibilitada por ela, e a industrialização
pós 1960. A narrativa da formação econômica do Espírito Santo definiu a trajetória de
superação do atraso, ou do "desequilíbrio regional". Este, instituído no período colonial, foi, de
acordo com a narrativa, superado pela industrialização que permitiu ao Estado avançar de uma
condição periférica ao centro da economia nacional.
profundas, com 22 metros de calado, inicia as obras da Ferrovia Litorânea Sul. Temos
ainda cinco terminais portuários em processo de licenciamento. Eles se somarão ao
terminal de barcaças da Arcelor Mittal, recém-inaugurado juntamente com a expansão
da siderúrgica, e ao terceiro píer em Portocel, em construção, num porto especializado
em celulose. O Espírito Santo caminha para ser um dos pólos nacionais de logística,
base fundamental para o desenvolvimento brasileiro.
A indústria do petróleo e do gás está a todo vapor. A exploração dos campos terrestres
e marítimos avança com novas plataformas e outros investimentos. Ainda nessa área,
registramos dois fatos importantes. O primeiro é que o Espírito Santo vai despachar
para o Brasil, na virada de 2008 para 2009, cerca de 20 milhões de metros cúbicos de
gás. Com isso, 50% da produção nacional, de 40 milhões de metros cúbicos, sairá dos
campos terrestres e marítimos do Espírito Santo. Uma solução capixaba para um sério
problema brasileiro.517
517
REZENDE, Sidney. Três perguntas a Paulo Hartung. 8/01/2008. Disponível em:
http://www.sidneyrezende.com/noticia/1862. Acesso em: 26/06/2009.
518
O documento ES2025, ao projetar o futuro do Estado, apropria-se exatamente da narrativa dos ciclos históricos
do desenvolvimento: "Desde meados do século XIX até a década de 1950, os ciclos econômicos do Estado do
Espírito Santo estavam intimamente ligados à atividade cafeeira. A história do café no estado tem início pelo sul,
por influência da cafeicultura fluminense em franca expansão. Com isso, instalaram-se na região grandes unidades
produtoras de café arábica, utilizando mão de obra escrava. A partir de 1880, com a intensificação da imigração,
começam a surgir novos pólos produtores de café na região central capixaba, que trazem consigo um novo modelo
de produção pautado em pequenas lavouras familiares. No limiar da década de cinquenta, 75% dos
estabelecimentos rurais no Espírito Santo tinham o café como principal atividade e a cafeicultura contribuía
diretamente com cerca de um terço da renda gerada no estado e com mais de 40% das suas receitas tributárias. As
recorrentes crises de queda de preço na atividade cafeeira reduziram significativamente a renda de boa parte da
população. Entretanto, o modelo de produção em pequenas propriedades familiares dificultava a substituição da
cultura, em razão do caráter de subsistência de parte delas. [...]O ciclo de diversificação econômica pela via
industrial tem início na década de 60, quando a cafeicultura sofreu forte redução em sua participação na economia
do estado com o programa de erradicação dos cafezais menos produtivos. A implantação do Porto de Tubarão, em
Vitória, pode ser encarada como o “divisor de águas” deste processo de industrialização, e a subsequente instalação
e operação das duas primeiras usinas de pelotização de minério de ferro da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)
levou a um visível salto na indústria de transformação capixaba. Entretanto, foram ainda pouco expressivas as
alterações da estrutura industrial, pois os pequenos estabelecimentos continuaram predominantes. A partir de 1975,
a expansão industrial foi mais significativa do ponto de vista da diversificação, tendo sido fomentada pelo grande
capital estatal e estrangeiro. Essa etapa foi marcada pela instalação e expansão dos chamados “grandes projetos”
– grandes unidades industriais focadas na produção de bens intermediários (commodities) –, formulados no âmbito
do planejamento estratégico do governo federal que visava deter, ou minimizar, a reversão ocorrida após o fim do
período conhecido como “milagre econômico”.ES 2025. Plano estratégico para o desenvolvimento do Espírito
Santo: carteira de projetos estruturantes. Espírito Santo: Macroplan, 2006. 10 volumes. p. 23. Disponível em:
http://www.espiritosanto2025.com.br. Acesso em 06 de maio de 2010.p. 27-28.
196
A apropriação da narrativa histórica dos ciclos econômicos não foi a única forma de legitimação
do "Novo Espírito Santo". O uso do passado pelo discurso político, como pode ser visto a seguir,
foi recorrente nesse período.
519
VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004.
520
ORRICO, José Luiz Soares. Prefácio. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do
Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p. p. 9. José Luiz Soares Orrico era, à época, diretor da
Organização Futura uma das responsáveis pela publicação da obra junto com o Programa de Mestrado em
Administração da Universidade Federal do Espírito Santo.
197
521
BIANCO, Mônica de Fátima. Introdução. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do
Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p. 11-13.
522
Segundo Arthur Gehardt: "[...] para a economia do Estado era uma transformação muito grande. Depois dessa
transformação que durou desde o final da década de 60, toda a década de 70 até o início da de 80, a composição
da renda bruta do Estado sofreu uma modificação radical. A parte agrícola deixou de ter importância que tinha,
desceu para os níveis civilizados, digamos, de 20% a 30% da formação da renda interna. O setor industrial cresceu
muito. Ele era muito pequeno e passou a ter uma importância muito maior, e o setor de serviços criou uma gama
muito grande e uma importância muito grande no Estado." GEHARDT, Arthur. O nascimento dos grandes
projetos. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade,
2004. p. 54.
523
Segundo Christiano Dias Lopes Filho: "Então, meus caros, esse é um trajeto que fizemos para chegar aos anos
mais recentes que vivemos com muito entusiasmo, sobretudo, para obter do Governo Federal uma compensação
para o Espírito Santo em virtude dos prejuízos que este levava por causa da Sudene". FILHO, Christiano Dias
Lopes. A formulação do Desenvolvimento. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do
Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p. 28.
524
O ex-governador Christiano Dias Lopes Filho resgata um roteiro de superação dos prejuízos históricos: "[...]
Com a Proclamação da República, inicia-se, a partir de 1889, um período de vários governos marcados por
importantes decisões. Não se pode deixar de citar Muniz Freire, Henrique Coutinho, que foi quem antecedeu
Jerônimo Monteiro, que, já no governo de Munis Freire, exerceu o seu prestígio, a sua atividade e a sua inteligência,
conduzindo um empréstimo externo para o governo do Espírito Santo que estava em dificuldade. [...] Bem,
seguindo Jerônimo Monteiro veio Florentino Avidos. Houve aí Marcondes de Souza, Bernardino Monteiro e
Nestor Gomes, que não deixaram registrados muitos acontecimentos e muitos saltos de desenvolvimento do
Estado. Marcantes mesmo foram os períodos de Jerônimo Ribeiro e, já no final do primeiro quartel do século, de
Florentino Avidos." VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento. Vitória:
Multiplicidade, 2004. p. 24-25. Segue, ainda, definindo Jones dos Santos Neves também nessa linha sucessória de
governos desenvolvimentistas: "[...]O Jones entrou num período de intervenção, período interventorial. Nesse
período de 42, 43 e 44, ele deixou plantado, deixou estruturado um projeto de desenvolvimento econômico que
raramente se poderia encontrar para aquela época. Depois, eleito governador em 1950, tomou posse em 1951 e
então executou o seu projeto [...]. Aqueles procedimentos de Jones, aqueles estudos de Jones, aquela dedicação de
Jones, do qual eu fui oficial de gabinete, influenciaram tanto na formação do jovem de 20 anos que eu era [...]."
198
João Gualberto e Ricardo Pandolfi, por sua vez, ressaltando as figuras desses ex-governadores,
analisam a trajetória do desenvolvimento econômico do Espírito Santo a partir do papel político
das "lideranças" como propulsores do desenvolvimento local. Avaliam, assim, a história do
desenvolvimento do Espírito Santo sob a perspectiva das elites políticas e seu papel na
condução do Estado. Para eles:
FILHO, Christiano Dias Lopes. A formulação do Desenvolvimento. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.).
Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p. 26.
525
PANDOLFI, Ricardo; VASCONCELLOS, João Gualberto. Elites e Gestão do Desenvolvimento: uma reflexão
sobre o caso do Espírito Santo. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento.
Vitória: Multiplicidade, 2004. p. 124-125.
526
Ibid., p. 126-134.
527
Sobre a economia cafeeira eles asseveram: "Como o objeto privilegiado da ação do Estado era o café, as
principais realizações estiveram não só na construção de ferrovias, do Porto de Vitória, elementos importantes
para seu escoamento, além da melhoria das condições urbanas da capital, mas também na industrialização do Sul
do Estado. Em termos de gestão pública, chamam a atenção por sua visão de futuro, Muniz Freire, duas vezes
presidente do Estado entre 1891 e 1894 e entre 1900 e 1904, e, pelo caráter gerencial de suas ações, Jerônimo
Monteiro. O último presidente entre 1908 e 1912 acabou transformando em realidade muitos dos projetos de Muniz
Freire. Isso sem falar dos governos laboriosos de florentino Avidos ou de Nestor Gomes, nos anos 1920, auge da
produção cafeeira na República Velha. É importante fixar a ideia de que houve um projeto de desenvolvimento
para o Estado que foi sendo construído por aquilo que estamos chamando de cultura do café e pelos intelectuais
que ela pode gerar. Esse projeto foi sendo implantado aos poucos por várias gerações de empreendedores no campo
político e na iniciativa privada. Foi dessa liga que surgiu o desenvolvimento possível, mas que tirou o Espírito
Santo do marasmo e o colocou, dentro de suas possibilidades, no contexto da economia brasileira." In:
VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p.
130. A respeito do "projeto jonista" encontramos: "O projeto jonista começou a produzir resultados mais orgânicos.
Não apenas o aparelho do Estado ficou mais preparado para gerir um processo de industrialização, mas também
aliados importantes foram construídos, boa parte deles alojados na Findes. Entretanto, a finalização do projeto foi
feita por Christiano Dias Lopes Filho.[...] O projeto jonista viveria no Governo Christiano Dias Lopes, segundo
Orlando Caliman, um período de inflexão, pelo fato de representar uma ruptura com o modelo de crescimento
anterior. Mais uma vez as elites locais, como haviam feito na cultura do café, criaram e implantaram um projeto
de desenvolvimento local. Foi da articulação de diferentes atores e da ação planejada do Estado que ele foi
199
Outro participante da configuração dessa memória é a ONG Espírito Santo em Ação que tem
promovido o reforço do discurso da superação.529 De acordo com a proposta da Organização,
um de seus setores é responsável por promover a imagem do Espírito Santo:
Nesse sentido, ela tem como um de seus propósitos a produção ou a reedição de obras ligadas
ao tema do desenvolvimento do Estado. Por exemplo, a obra de Haroldo Rocha e Ângela
Morandi, Cafeicultura e grande indústria: a transição no Espírito Santo (1955-1985), já citada,
teve sua reedição conduzida pela referida ONG. Tal proposta, demonstra um determinado
formulado e implementado. Mas ele havia produzido resultados. Seu principal objetivo que era tirar o Espírito
Santo da estrita dependência do café, obtivera êxito. Havia as indústrias e um aparato governamental muito mais
qualificado. Assim como os positivistas do final do século XIX formularam um projeto que colocou o Estado na
cena nacional a partir do café, os desenvolvimentistas articulados em torno de Jones e fortemente ligados ao ideal
getulista também obtiveram resultados. O Espírito Santo jamais seria o mesmo." PANDOLFI, Ricardo;
VASCONCELLOS, João Gualberto. Elites e Gestão do Desenvolvimento: uma reflexão sobre o caso do Espírito
Santo. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade,
2004. p. 133-134.
528
A leitura do passado realizada pelos autores surge das expectativas de futuro para o Espírito Santo. Revisitar o
passado, nesse caso, significou apropriar-se de um roteiro histórico já fundamentado com o propósito de pensar os
caminhos do Espírito Santo no século XXI. Por isso, encontramos interpretações condizentes com o discurso do
"Novo Espírito Santo" inaugurado por Hartung na mesma década. Segundo Gualberto e Pandolfi: "Assim,
encontra-se o Espírito Santo no ano de 2002 diante de seu próprio destino. A base industrial está montada. Existem
grandes interesses econômicos constituídos no Estado, mas não existe mais um projeto claramente colocado para
a sociedade. A ausência desse projeto é sentida em vários pontos do tecido social, sejam públicos, sejam privados.
Por tudo isso é preciso pensar em um novo projeto de longo prazo para o Estado. É preciso estabelecer novos
padrões de articulação de interesses capazes de fazer retornar o interesse e a mobilização, capazes de mobilizar a
sociedade em torno do futuro da região" Ibid., p. 138.
529
Como observamos no Capítulo 1, ela participa diretamente na formulação de documentos e projetos acerca do
Espírito Santo, como o ES2025, além da promoção de seminários e estudos relativos ao desenvolvimento
econômico local.
530
Grupo de trabalho responsável pelas ações relativas à essa área temática, responsável pelas publicações.
http://www.es-acao.org.br/index.php?id=/comites_tematicos/capital_social,_cultura_e_imagem/index.php
200
passado a ser resgatado ou a retomada de certa narrativa sobre ele. 531 Assim, o resgate é
orientado por uma noção de "superação de desafios":
Muitas vezes, quem vive neste cenário moderno e atrativo, desconhece os fatos
históricos que conduziram o Espírito Santo a um futuro tão promissor, mas também
desafiador. Esses acontecimentos, que têm suas bases no processo de colonização
brasileira, deixaram marcas claras no desenvolvimento do Estado.
Ao ler este livro, você vai entender as profundas transformações vividas pela
sociedade capixaba, a partir da década de 1960, e vai perceber que a história que o
Espírito Santo escreveu é marcada por desafios. Aliás, esta é uma peculiaridade do
nosso povo: vencer a falta de oportunidades e transformar as ameaças em
benefícios.532
531
Na apresentação da obra, temos: "Hoje, você tem em suas mãos mais um fruto do nosso trabalho. Trata-se do
primeiro volume da coleção, um conjunto de estudos sobre um importante período da história desenvolvimentista
do nosso Estado. São trabalhos profundos, produzidos e publicados por pesquisadores e acadêmicos, sobretudo
nas décadas de 1980-90, que serviram de referência para a construção do pensamento político e econômico acerca
da modernização do nosso estado. Nosso objetivo ao reeditar este primeiro volume - obra de dois importantes
economistas do nosso estado - é promover uma reflexão sobre o processo de industrialização do Espírito Santo,
seus impactos e as oportunidades que surgiram a partir deste processo." THEODORO, Alexandre Nunes.
Apresentação. In: ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI, Ângela Maria. Cafeicultura e grande indústria: a
transição no Espírito Santo (1955-1985). 2.ed. Vitória: ES em Ação, 2012. p. 21.; A divulgação do lançamento
também expôs os propósitos e a perspectiva da reedição desta obra e da linha editorial das publicações de maneira
geral: " O objetivo do Espírito Santo em Ação ao reeditar esse volume - a primeira edição foi lançada em 1991 - é
promover uma reflexão sobre o processo de industrialização do Espírito Santo, seus impactos e as oportunidades
que surgiram a partir deste processo. Esta edição, importante contribuição para os estudos da economia capixaba,
contou com o apoio do Bandes e da Vale. O livro, com 173 páginas, narra o enorme abalo da economia capixaba,
na década de sessenta, com a erradicação dos cafezais. O Estado tinha perdido grande parte de sua principal
atividade econômica e não havia alternativa imediata para sua substituição. Foi este preocupante cenário que levou
os empreendedores e as autoridades políticas capixabas a trilhar novos planos para o desenvolvimento do Estado,
sendo a atividade industrial o foco principal. O coordenador do projeto e membro do Comitê Temático de
Fortalecimento da Identidade e da Imagem do Estado, João Gualberto Vasconcellos, explica que a proposta da
coleção "Economia e Política" é a edição ou reedição de importantes obras para a compreensão da história e
realidade atual do Estado: "Uma das linhas editoriais é valorizar grupos de intelectuais que produziram, nos anos
80, trabalhos muito importantes. Entre os professores da UFES que constituíram a geração intelectual dessa época,
certamente estão Haroldo Corrêa e Ângela Morandi. Trata-se de um trabalho de grande valor para a compreensão
do que se passa hoje e um exemplar extraordinário da capacidade de se produzir intelectualmente". [...] A coleção
"Espírito Santo: Economia e Política" visa reeditar obras e estudos, das décadas de 70 e 80, de pesquisadores que
descrevem fatos econômicos e políticos do Estado. Disponível em: http://www.es-
acao.org.br/index.php?id=/sala_de_imprensa/materia.php&cd_matia=3065.Acesso: 12/04/2015.
532
THEODORO, Alexandre Nunes. Apresentação. In: ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI, Ângela Maria.
Cafeicultura e grande indústria: a transição no Espírito Santo (1955-1985). 2.ed. Vitória: ES em Ação, 2012. p.
22.
201
533
ES em Ação. Memória do Desenvolvimento: Grandes Nomes. Disponível em: http://www.es-
acao.org.br/index.php?id=/rede_de_desenvolvimento/responsabilidade_social/materia.php&cd_matia=2418.
Acesso em: 08/05/2015.
534
Até agora, tal coleção corresponde às seguintes obras: VASCONCELOS, João Gualberto (coord.). Christiano
Dias Lopes. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2010. (Memórias do Desenvolvimento do Espírito Santo: Grandes
Nomes); SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Américo Buaiz. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2011. (Memórias do
Desenvolvimento do Espírito Santo: Grandes Nomes); SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória:
Espírito Santo em Ação, 2012. (Memórias do Desenvolvimento do Espírito Santo: Grandes Nomes). Para nossa
análise, não vamos desenvolver uma abordagem em torno da obra sobre Américo Buaiz pois centramos naquelas
que trazem a trajetória dos ex-governadores. No entanto, Estilaque dos Santos segue a mesma perspectiva das
demais no propósito de ressaltar o legado desse personagem para a história do Espírito Santo. O autor realizou
amplo trabalho de pesquisa e relacionou a experiência de Américo Buaiz tanto à chegada dos imigrantes libaneses
ao Brasil como ao pensamento desenvolvimentista brasileiro.
535
O autor reforça essa imagem: "O legado daquela administração dependeu da força e do caráter de seu líder. Um
líder que não era de meias palavras, não se curvava a interesses privados, não negociava em questões que
colocassem em xeque seus valores, crenças e objetivos. O desejo de desenvolver o Espírito Santo foi infinitamente
maior que os interesses políticos do próprio Governador. Colocando o Estado acima de sua carreira, Christiano se
consolidou como um verdadeiro líder, um estadista, afinal." VASCONCELOS, João Gualberto (coord.).
Christiano Dias Lopes. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2010. p. 328.
202
para tal. A narrativa assume, inclusive, o próprio discurso político da época, tendo como fio
condutor o sentido de superação do atraso estabelecido por suas ações.536
Tendo em vista o contexto de produção dessas narrativas, tão importante quanto as lembranças
recuperadas na obra, evidenciamos como a narrativa é apropriada para ressignificar o discurso
da superação do atraso na contemporaneidade. Estilaque Ferreira dos Santos, no prefácio da
obra, resgata a busca da superação como ideal político do Espírito Santo, do qual Christiano
Dias Lopes seria representante:
De forma muito inteligente e patriótica, ele percebeu que a política que estava sendo
posta em prática pelos militares, que incluía a redução das desigualdades regionais,
mas implicava também eficiência na alocação dos recursos produtivos, poderia
favorecer o Espírito Santo, desde que este apresentasse projetos exequíveis e
razoáveis de desenvolvimento econômico e foi isso o que ele procurou fazer. Ou seja,
ele percebeu que a situação exigia uma requalificação da gestão política e
administrativa do estado, adequando-a às novas funções que aquele quadro impunha.
Era uma 'janela de oportunidade', como se diz hoje, que o estado não poderia perder,
mas que era preciso lutar e qualificar-se para que ela fosse bem aproveitada. E foi isso
o que ele e sua equipe procuraram fazer, iniciando assim a realização de um sonho
que vinha desde os primórdios da república com Moniz e Jerônimo, passando por
Jones dos Santos Neves e Carlos Lindenberg e muitos outros: o da equiparação do
Espírito Santo aos estados mais desenvolvidos da federação brasileira. 537
Estilaque dos Santos reitera os lugares desses personagens, tal como Christiano Dias Lopes
Filho, em função do ideal de superação. Tal perspectiva é também apresentada por Paulo
Hartung na apresentação da obra:
Hartung reforça a questão dos desafios do Espírito Santo como característica de uma "história
de superação, em várias frentes e em condições e tempos desafiantes."539 Aqui, novamente,
536
Ver capítulos IV, V, VI e VII. VASCONCELOS, João Gualberto (coord.). Christiano Dias Lopes. Vitória:
Espírito Santo em Ação, 2010. p. 107-299.
537
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Prefácio. In: VASCONCELOS, João Gualberto (coord.). Christiano Dias
Lopes. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2010. p. 19.
538
HARTUNG, Paulo. Apresentação. In: VASCONCELOS, João Gualberto (coord.). Christiano Dias Lopes.
Vitória: Espírito Santo em Ação, 2010. p. 9.
539
Ibid., p. 10.
203
estamos diante da recuperação de uma noção que orienta o discurso político local. E, ainda
mais, reveladora de seu uso político. No "Prólogo" da obra, Idalberto Luiz Moro, estabelece a
seguinte relação:
540
MORO, Idalberto Luiz. Prólogo. In: VASCONCELOS, João Gualberto (coord.). Christiano Dias Lopes.
Vitória: Espírito Santo em Ação, 2010. p. 11.
541
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. O autor deu
preferência, no transcorrer de seu texto, em denominá-lo de "Muniz Freire". Em nosso texto, mantivemos a grafia
"Moniz Freire" e nas transcrições da obra respeitamos a do autor.
542
Sobre sua pesquisa, o autor argumenta: "A história econômica, social, política e cultural do Espírito Santo nos
séculos XVIII e XIX ainda é bastante desconhecida. Suas fontes documentais são muito escassas, e mais pobre
ainda é a historiografia desse período. Via de regra, a história desses dois séculos nos é apresentada de uma maneira
muito episódica e descontínua, sob a forma de uma extensa lista de funcionários políticos e militares nomeados
pelo Governo metropolitano e, depois pelo Governo central, que teriam governado a antiga capitania sem muita
inspiração. A partir do que nos fornece a historiografia, temos uma noção muito vaga do que teria sido a sua
estruturação social, se é que havia alguma, e igualmente deficientes são as informações de que dispomos no que
diz respeito à sua evolução política e cultural." SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito
Santo em Ação, 2012. p. 24.
543
A origem do jornal O Marimbondo, em 1860, marcou o surgimento de uma ideia que se desenvolveria no ES:
a de um "partido capixaba" voltado para atender aos interesses de uma elite política local no contexto do sistema
político caracterizado pela bipolaridade e revezamento do partido conservador e liberal no poder. Ibid., p. 113-
115. Estilaque estabelece essa relação: "Essa era uma aspiração defendida pelo antigo 'partido capixaba', desde
meados do século XIX, ainda no Império, quando seus parentes, inclusive seu próprio pai, que era natural da Bahia,
204
se empenharam na luta em defesa do partido que reivindicava justamente que os próprios capixabas ocupassem os
cargos eletivos a que tinham direito no plano federal." Ibid., p. 529.
544
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. p.543. Maurício José
da Silva apresenta assim a obra: "O autor nos coloca em contato com fatos que definiram, de maneira fundante, o
modo como nós capixabas passamos a nos posicionar em relação ao restante do país, ou seja, trata-se de uma obra
importante para compreendermos o processo de construção da nossa identidade. Personagem de grande
importância para os rumos do desenvolvimento capixaba, Muniz Freire tem expressa na sua biografia a clara
consciência do protagonismo histórico. Um líder e político visionário, esse ilustre personagem da história capixaba
foi o mentor de um projeto de Espírito Santo moderno, forte e em conexão com os outros estados brasileiros e com
o mundo. SILVA, Maurício José da. Palavras do Secretário de Cultura. In: SANTOS, Estilaque Ferreira dos.
Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. p.11. Carlos Teixeira de Campos Júnior também se refere
às questões contemporâneas que envolvem o Espírito Santo e sua sua economia globalizada: "Todas essas
percepções deslocam a visão sobre o passado, tornando Muniz Freire como marco: o grau de abertura para o mundo
que a economia capixaba apresenta, uma das mais abertas - quem sabe a mais aberta - entre as economias das
unidades da federação, o caráter mercantil-exportador de importante fração da elite local concentrada em Vitória
e os traços do urbanismo de sua capital, Vitória, com forte identificação positivista, são manifestações, na
atualidade, de um projeto político construído para o desenvolvimento do Espírito Santo ainda no século XIX. Nas
bases da concepção e implementação desse projeto está envolvida a figura de Muniz Freire [...]." CAMPOS
JÚNIOR, Carlos Teixeira. Apresentação. In: SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito
Santo em Ação, 2012. p.19.
205
Moniz Freire é identificado como marco de origem de uma definição do lugar que caberia ao
Estado, como momento gerador de um projeto de Espírito Santo moderno, como gênese do que
se definiu na contemporaneidade. A visão atual acerca do Espírito Santo, de seu lugar numa
economia globalizada, é projetada na interpretação acerca de seu passado, o que permitiu
avaliar o governante por sua importância para o devir do Espírito Santo e sua trajetória de
superação do atraso. A perspectiva de interpretação do passado é a do Espírito Santo do século
XXI e a definição desse governante como marco histórico fundamenta-se na lógica atraso
versus progresso.545
A "Era Muniz Freire" é analisada a partir das referências do discurso político contemporâneo.
Por exemplo, o autor interpreta os discursos de Muniz Freire a partir da preocupação com o
lugar e a construção de uma determinada imagem de Espírito Santo. Sob essa perspectiva,
Estilaque argumenta que o que orientava o projeto político e de desenvolvimento daquele
governante era "responder efetivamente aos grandes desafios que estavam na agenda do país, e
dentro dela a conquista de um espaço para seu Estado que fosse capaz de viabilizar o seu
potencial." 546 Observa uma atuação política "pautada pela defesa articulada do que se entendia
como sendo os interesses fundamentais do Espírito Santo."547 Um projeto de Espírito Santo
que, "com base em noções como as de competência, progresso e austeridade, pretendia
impulsionar o Estado a um novo patamar de desenvolvimento, inédito em toda a sua história."548
É nesse sentido de superação de uma condição que emerge a figura de Moniz Freire e,
sobretudo, a questão central era o lugar ocupado pelo Espírito Santo:
Sua ideia mais geral era a de que era preciso urgentemente melhorar a reputação do
Espírito Santo, promovendo de forma sistemática a elevação do Espírito Santo no
ranking dos Estados brasileiros e buscando para isso o aproveitamento de todas as
suas potencialidades. [...] Para ele, o Espírito Santo com seus cerca de 200 mil
habitantes não era um Estado pobre, mas o conceito e a reputação que se tinham dele
no plano nacional o desmereciam, prejudicando-o enormemente. Ele percebia que o
Espírito Santo era habitado por um povo laborioso e possuía elementos inesgotáveis
de riqueza, ocupando o 8º ou 9º lugar no país em rendas públicas, mas, apesar disso,
545
Segundo Estilaque, a origem de um projeto de desenvolvimento vinculou-se à preocupação de superação do
atraso colonial: "Quando jovens advogados como Afonso Cláudio e Muniz Freire iniciaram sua trajetória política
na década de 80 do século XIX, o Espírito Santo era uma formação social onde sobressaíam ainda os vestígios do
mesmo desalento que teria vigorado na época colonial. Capitania 'esquecida' e marginalizada na era colonial,
relativamente isolada das correntes comerciais externas que poderiam dinamizar sua economia, em virtude da
timidez de sua produção voltada para o mercado, o Espírito Santo acabou submergindo, praticamente, em formas
econômicas de subsistência absolutamente incapazes de gerar um desenvolvimento consistente." SANTOS,
Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. p.144.
546
Ibid., p. 224.
547
Ibid., p. 254.
548
Ibid., p. 229.
206
A preocupação era a de que "o Estado aparecia como uma região deficitária dependente de
transferências unilaterais e sem contrapartida da União."550 O autor, portanto, destacou
justamente os elementos constitutivos de uma posição política contestatória do status do
Espírito Santo e seu caráter reivindicativo de um "novo lugar" a ser ocupado pelo Estado.551 A
mudança de patamar era, segundo o autor, reconhecida pelo discurso político local.552 Muniz
Freire é interpretado não só como marco de desenvolvimento do Espírito Santo, mas como
pioneiro na construção de uma imagem de superação do atraso:
E quando se contrastavam esses resultados com o que se teve no passado mais remoto
era quase impossível não se desenvolver, naquele contexto, uma sensação de euforia
que embalou os sonhos de Muniz Freire, de seus apoiadores e da própria sociedade
capixaba.
Na verdadeira euforia que se estava vivendo projetou-se uma imagem do passado mais
remoto do Estado extremamente negativa, onde quase tudo estava ainda por ser feito,
e chegou-se à conclusão de que o Espírito Santo era reputado uma das províncias mais
atrasadas e das menos importantes do Brasil, até o advento da República. 553
Pela própria descrição feita por Muniz Freire da visita do governante mineiro a Vitória
pode-se imaginar a grande repercussão que ela teve, não só no Estado. Ela projetou
nos habitantes do Estado a imagem de um governante ativo, empreendedor,
profundamente patriótico e com iniciativa. Graças a essa ação difundiu-se
concretamente no Espírito Santo, pela primeira vez, a imagem de que o Estado estava
começando a viver efetivamente um tempo novo, de grandes realizações, um tempo
que seria um marco de sua história. A ligação ferroviária do Estado com Minas gerais
simbolizava o progresso, a modernização e a atualização do Espírito Santo no plano
549
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. p. 295.
550
Ibid., p. 295.
551
Em relação à contemporaneidade do Espírito Santo, observamos que essa interpretação se vincula à
reivindicação de um reconhecimento necessário do Estado no cenário nacional e recorrente, não só no discurso
político, mas também no intelectual, como já observamos no capítulo I com Roberto Simões e neste mesmo
capítulo IV com Gabriel Bittencourt. SIMÕES, Roberto Garcia. Desenvolvimento econômico do Espírito Santo
no século XX. In: BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Espírito Santo: um painel da nossa história.
Vitória: Imprensa Oficial/ES, 2002. p. 243; BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito
Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 501.
552
"Muniz Freire também estava certo de que tinha contribuído enormemente para a elevação da reputação do seu
Estado, antes tão espezinhado pela opinião nacional. De acordo com ele: 'Éramos considerados um Estado de
quarta ordem, apontado nas estatísticas oficiais, e na opinião pública generalizada de todos os homens públicos
eminentes, como um dos que mal suportariam sem auxílio central a nova vida federativa: hoje somos invocados
como um dos testemunhos das excelências do regime, como um argumento pela República, como um exemplo de
esforço e de trabalho, e o nome do Espírito Santo fulgura na primeira página entre os Estados do Brasil fadados a
mais altos destinos'." SANTOS, op. cit., p. 358.
553
SANTOS, op. cit., p. 309.
207
nacional: ela dava aos seus habitantes a sensação auspiciosa de que finalmente sua
terra iria entrar em compasso com os estados mais desenvolvidos da federação. 554
Podemos observar como Paulo Hartung, no prefácio dessa obra, apropria-se da narrativa.
Primeiramente, exalta Moniz Freire como marco histórico de superação e definição de um
Espírito Santo moderno:
O Espírito Santo encontrou-se com o Brasil e o Brasil descobriu o Espírito Santo pelas
estradas de ferro. Destacado como barreira verde para proteger as Minas Gerais, o
nosso Estado atravessou quatro séculos de história brasileira como terra indevassável,
intransponível.
Quase 440 anos depois de Vasco Fernandes Coutinho fundar o Espírito Santo, coube
a Muniz Freire estabelecer a integração capixaba ao território nacional. Saímos do
litoral rumo ao interior, entramos no trilho da história e da economia brasileira pelo
caminho das ferrovias. O presidente Muniz Freire, em dois mandatos, de 1892 a 1896
e de 1900 a 1904, consolidou a ligação do Espírito Santo com o Rio de Janeiro e com
Minas Gerais. [...]
Mas essa estrada foi ainda mais longe. Pelas cargas que movimenta e pelo vulto dos
negócios em que está envolvida, a Estrada de Ferro Vitória a Minas faz parte, hoje,
do caminho estratégico de negócios que nos une ao planeta. A estrada que iniciou o
encontro efetivo do nosso Estado com o nosso País compõe a rota entre o Espírito
Santo e o mundo. 556
554
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. p. 319.
555
Ibid., p. 23.
556
HARTUNG, Paulo. Prefácio. In: SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em
Ação, 2012. p 16-17.
208
Complementando, ressalta a exemplaridade de Moniz Freire e define seu governo (2003) como
marco histórico para a trajetória do Espírito Santo, a partir da similaridade encontrada no
passado:
Muniz Freire projetou um Espírito Santo forte, autônomo, coeso e articulado em busca
de uma presença marcante no cenário nacional e pautado pelo desenvolvimento.
Vislumbrou, planejou e chegou a iniciar alguns de seus projetos, mas, certamente, sua
maior obra terá sido a construção das bases do Espírito Santo moderno, institucional,
política e economicamente falando.[...] Ao jogar luz sobre a caminhada de um
visionário, relata uma história que, com a nova fronteira histórica capixaba alcançada
a partir de 2003, pode e deve inspirar as atuais e futuras gerações rumo a um Espírito
Santo sustentável, com oportunidade para todos.557
Hartung recorre, inclusive, às referências utilizadas por Estilaque para caracterizar a atuação
política de Moniz Freire, para estabelecer a correspondência entre seus governos para a história
local. Evidencia, assim, como o uso do passado é elemento importante do discurso político.
Complementando esse cenário, identificamos a obra escrita por Amylton de Almeida em fins
da década de 1980, lançada em 2010 pelo Governo do Estado. Não está inserida na coleção
acima, porém, corresponde ao significado dessas produções contemporâneas. A biografia de
Carlos Lindenberg, além de trazer aspectos particulares de sua vida, ressalta seu caráter de
homem público. Abrangendo desde sua atuação ainda durante o governo de Vargas, a obra
destaca, sobretudo, sua importância para a vida política e para o desenvolvimento do Espírito
Santo durante os seus dois mandatos à frente do governo do Estado. No que tange sua ação
política, é ressaltada sua habilidade administrativa e financeira na condução do governo,
aparecendo como representante de uma classe política rural, mas voltada para o
desenvolvimento do Espírito Santo, ficando em evidência sua administração entre 1959 e 1962
quando viabilizou o acordo sobre o Porto de Tubarão e a Vale do Rio Doce.558
557
HARTUNG, Paulo. Prefácio. In: SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em
Ação, 2012. p 16-17.
558
ALMEIDA, Amylton de. Carlos Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 333-453.
559
O governador à época, Paulo Hartung, definiu a obra como "ímpar oportunidade de conhecer um pouco mais
da nossa história por meio da trajetória de um dos nossos mais laboriosos homens públicos", e assim apresentou
Carlos Lindenberg: " Este livro tem como protagonista um dos mais destacados personagens da história capixaba
do século XX. Integrante de uma família que deu ao Espírito Santo dois presidentes de estado, Jerônimo de Souza
Monteiro (1908-12) e Bernardino de Souza Monteiro (1916-20), Carlos Fernando Monteiro Lindenberg foi
secretário de Estado da Fazenda e da Agricultura, deputado federal constituinte por duas vezes, em 1934-35 e em
1946-47, governador por dois mandatos, de 1947 a 1951 e de 1959 a 1962, e também senador da República em
209
realizada por Estilaque Ferreira dos Santos sobre a relevância da atuação de Carlos Lindenberg,
encontramos um lugar reservado a ele a partir de um perfil político marcado por qualidades
necessárias para a condução do Espírito Santo.560 O que o insere, segundo Estilaque, em um
roteiro da história do Espírito Santo orientado pela ação de determinados governantes que
conduziram a trajetória do Estado:
A historiografia capixaba tem destacado com alguma frequência, por exemplo, a obra
meritória de um Francisco Alberto Rubim (1812-19) que, já no final da era colonial,
abriu a estrada para Minas Gerais, até então quase completamente isolada do Espírito
Santo, estimulou a implantação da cafeicultura e introduziu os primeiros imigrantes
açorianos nas proximidades da capital. Mesmo na era imperial, entre aqueles quase
sempre efêmeros presidentes de província que para cá vinham nomeados apenas para
controlar e manipular as eleições, destaca-se, por exemplo, a figura de um Luís
Pedreira do Couto Ferraz, que, apoiado pela Assembleia Provincial, soube divisar na
imigração estrangeira uma das possíveis alavancas para o nosso povoamento e
desenvolvimento econômico e social; foi graças à sua atuação que se implantou o
núcleo pioneiro de Santa Isabel (no atual município de Domingos Martins) em 1847.
Ele também se interessou, quando já ocupava o importante Ministério dos Negócios
do Império, pela criação do núcleo de Santa Leopoldina em 1857.
Com a República, proclamada em 1889, os próprios capixabas tiveram que enfrentar
o desafio de governar eles mesmos a sua terra e dar a ela um rumo que expressasse de
alguma forma os antigos e persistentes anseios de desenvolvimento que vinham de
sua relativamente pequena população.
Afonso Cláudio, o primeiro desses governantes, além de ter liderado a campanha pelo
republicanismo e pela melhoria de nossos costumes políticos, no curto período em
que governou o estado (1889-90) notabilizou-se por sua honestidade, por sua
inteligência e pelo interesse em expandir a educação elementar. Mas foi com o hábil
Muniz Freire, eleito governador em dois mandatos (1892-96 e 1900-04), que se
consolidou definitivamente um projeto político e social abrangente para o Espírito
Santo, baseado na afirmação da centralidade da cidade e do porto de Vitória, na
abertura de estradas de ferro para o interior e para Minas Gerais, no desenvolvimento
duas ocasiões, de 1951 a 1958 e de 1966 a 1974, ano em que encerrou formalmente sua longa e proveitosa carreira
política." HARTUNG, Paulo. Apresentação. In: ALMEIDA, Amylton de. Carlos Lindenberg: um Estadista e seu
tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 11. Fernando Achiamé evidencia o lugar por ele ocupado na história do Espírito
Santo: "O presente estudo possui outros méritos: por um lado, humanizar um 'monstro sagrado', um mito da política
espíritossantense, apresentando o lado prosaico, comum da sua vida. Por outro, permite que as pessoas
desinformadas – conhecedoras de Carlos Lindenberg por ouvirem falar, ou por seu nome designar uma grande
avenida em Vila Velha, um município pequeno do estado, a nova ponte em Vitória – fiquem sabendo os motivos
de ser ele considerado um estadista espiritossantense. [...] Quer se goste da figura política de Carlos Lindenberg,
quer se tenha alguma restrição às suas ações, um aspecto não pode ser ignorado: sua presença ficará nos registros
da vida capixaba de forma imorredoura. Assim, não se poderá escrever a história espíritossantense de boa parte do
século XX sem se fazer um balanço dos prós e contras que representou nos nossos destinos essa liderança ímpar."
ACHIAMÉ, Fernando Antônio de Moraes. Atualidade de Carlos Lindenberg. In: ALMEIDA, Amylton de. Carlos
Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 43. Estilaque Ferreira dos Santos qualifica o
perfil político do ex-governador: "[...] terá inúmeras oportunidades de acompanhar a lenta formação em
Lindenberg das qualidades apontadas por Weber como necessárias à constituição de um verdadeiro chefe político,
como ele foi: em primeiro lugar a paixão pela política, que ele demonstrou desde muito cedo; em seguida, o
sentimento de responsabilidade, que demonstrou ter não apenas no governo de seu estado mas em todas as funções
que exerceu, especialmente quando lhe competia tomar as decisões mais difíceis, mas necessárias; e por fim o
senso de proporção, que ele demonstrou sobejamente ao pautar sempre sua atuação pela busca de um equilíbrio
entre opções aparentemente antagônicas, e que certamente explica sua opção pela industrialização sem perder de
vista a agricultura." SANTOS, Estilaque Ferreira dos. A dimensão histórica de Carlos Lindenberg. In: ALMEIDA,
Amylton de. Carlos Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 21.
560
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. A dimensão histórica de Carlos Lindenberg. In: ALMEIDA, Amylton de.
Carlos Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 15.
210
561
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. A dimensão histórica de Carlos Lindenberg. In: ALMEIDA, Amylton de.
Carlos Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010.p.17.
562
MORO, Idalberto Luiz. Mensagem do Instituto Sincades. In: ALMEIDA, Amylton de. Carlos Lindenberg:
um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 13.
211
O uso do passado foi recorrente no governo Paulo Hartung. Além dessas obras acima, diferentes
narrativas foram resgatadas pelo próprio governo estadual afim de consolidar o discurso da
superação. O próprio livro de Amylton de Almeida faz parte da Coleção Canaã.563Durante sua
gestão, na primeira década desse século, as publicações da Coleção foram apresentadas pelo
próprio governador. Com isso, ficou evidente a forma como um determinado passado foi
apropriado na formação e no reforço do discurso político da superação. Encontramos como uma
das publicações a reedição da obra de José Teixeira de Oliveira, História do Estado do Espírito
Santo. Se esta, na década de 1970, participou da construção de um roteiro histórico da superação
do atraso, sua terceira edição foi direcionada em função de um horizonte de expectativas
elaborado no início do novo século:
Além de tratar-se de um clássico, o que por si só já seria motivo maior para este
lançamento, fixa-se aqui uma outra razão ao empreendimento desta terceira edição. A
consciência de nossa caminhada de quase cinco séculos de colonização multicultural
enriquece a identidade capixaba. O exercício de nossa memória só tem a nos fortalecer
no início de uma nova era histórica em que muitos desafios e oportunidades se
colocam no presente e no horizonte próximo. [...] Motiva-nos de modo especial a
constituição de bases sólidas para o exercício de nossa memória neste momento em
que o Espírito Santo avança em seu terceiro ciclo histórico, com uma prática político-
administrativa renovada pela devoção incondicional à ética republicana e com um
paradigma econômico transformado pelo petróleo e gás e pela ampliação do
agronegócio e da indústria exportadora.564
Nesse sentido, a partir de 2003, além de nos dedicarmos a uma obra de desafios
gigantescos acerca da reconstrução político-institucional do presente, seja em função
do descalabro que herdamos, seja em busca de um futuro com qualidade de vida,
sustentabilidade e oportunidades compartilhadas, investimos no processo de
compreensão de quase 500 anos de história de colonização das terras capixabas.
Um dos instrumentos mais importantes nesse empreendimento são os livros, os
registros das questões e do desenrolar dos fatos socioeconômicos, políticos e culturais
dos diferentes tempos que as sucessivas gerações de capixabas constituíram nesta
porção do Brasil. [...] Além de incentivarmos a produção contemporânea de estudos
563
Trata-se de uma coleção organizada pelo Arquivo Público do Estado do Espírito Santo no qual encontramos
um conjunto de publicações de documentos históricos e narrativas históricas que compõem a memória do Espírito
Santo. Disponível em: http://www.ape.es.gov.br/publicacoes.htm.
564
HARTUNG, Paulo. História do Estado do Espírito Santo: um clássico. In: OLIVEIRA, José Teixeira de.
História do Estado do Espírito Santo. 3.ed. Vitória: Secretaria do Estado da Cultura, 2008. p. XIX.
212
O uso do passado, portanto, surge como instrumento para caracterizar o presente, em especial
o governo Hartung, como marco histórico da trajetória do Espírito Santo, colaborando com a
instituição do sentido de superação e legitimando seu projeto de poder. Ao resgatar o passado
como exemplo, como modelo, o sentido da superação foi reiterado de acordo com a temática
publicada pela coleção. Por exemplo, nas obras Viagem à província do Espírito Santo:
imigração e colonização suíça (1860) e Colônias imperiais na terra do café : camponeses
trentinos (vênetos e lombardos) nas florestas brasileiras, Espírito Santo (1874-1900), a noção
de superação ganhou o significado de identidade histórica local, no qual o passado surgia como
exemplo, lição a ser seguida no contexto atual. Sobre os imigrantes italianos:
Felizmente, o povo que teve coragem para seguir a esperança, tendo mais uma vez
refeito seus horizontes, acabou ajudando a construir o Brasil moderno. Em nosso caso,
ajudou mesmo a instituir as bases do Espírito Santo que hoje vivemos, visto que até o
século XIX éramos pouco mais que uma lacuna na geopolítica nacional. [...] Neste
momento em que o Espírito Santo trabalha, árdua e coletivamente, para estabelecer
uma nova era de sua história contemporânea, inaugurando uma fase de austeridade e
honradez político-administrativa, prosperidade coletiva e justiça social, não deixa de
ser importante lembrarmos que já fomos vitoriosos, que somos capazes de vencer a
adversidade – processo em que este livro pode ser valioso. [...] Ademais, a consciência
dos desafios e sacrifícios do passado nos faz mais comprometidos com o presente e o
futuro, pois, de outro modo, teriam sido em vão os dias vividos. Em honra de quem
aqui investiu sua existência em busca de uma vida renovada, e contribuiu para
viabilizar um novo Espírito Santo, devemos nos manter firmes e comprometidos com
um Espírito Santo renovado hoje e no futuro, distante do passado recente, tão indigno
do tributo que recebemos de nossos precursores. 566
A saga italiana aparece, assim, como modelo de ação. Já a obra de Tschudi, considerada como
representante de uma visão negativa acerca do futuro das colônias de imigrantes no Espírito
Santo, aparece como exemplo de superação dos obstáculos:
Mas se as previsões não se concretizaram, então por que, depois de mais de um século,
editar um livro no qual elas têm espaço de destaque? [...] Fato relevante, pois, do
passado, mais que lembrança, devemos apreender ensinamentos. A recordação da
ultrapassagem de obstáculos nos é valiosa, fortalece-nos. Tomar consciência de nossa
565
HARTUNG, Paulo. Apresentação. In: DAEMON, Basílio. Província do Espírito Santo: sua descoberta,
história cronológica, sinopse e estatística. 2.ed. Vitória: Secretaria de Estado da Cultura; APEES, 2010. p. 9-10.
566
HARTUNG, Paulo: A Mèrica era o Espírito Santo GROSSELLI, Renzo M. Colônias imperiais na terra do
café: camponeses trentinos (Vênetos e lombardos) nas florestas brasileiras, Espírito Santo, 1874-1900. Vitória:
APEES, 2008. p. 10-11.
213
[...] sem dúvida alguma, de fundamental memória para todos nós. Fundamental
porque, ao permitir paralelos históricos, evidencia o quanto um povo pode mudar a
sua realidade.
No momento em que o Espírito Santo consolida os passos iniciais de seu terceiro ciclo
histórico, com a prática político-administrativa renovada pela devoção incondicional
aos valores republicanos e com o paradigma econômico transformado pelo petróleo e
gás e pela ampliação do agronegócio e da indústria exportadora, o livro de Levy Rocha
traz detalhes do tempo em que o nosso Estado apenas ensaiava os primeiros
movimentos a fim de se firmar para além de uma província esvaziada pela função de
muro protetor das riquezas das Gerais. [...]
[...] Quase um século e meio depois da visita do imperador, o Espírito Santo ainda
registra sérias demandas de origem local e também enfrenta situações críticas
resultantes de um contexto nacional e mesmo planetário. Mas pode-se afirmar que
estamos a anos luz da situação de indigência verificada por Pedro II e revelada por
Levy Rocha em sua fundamental obra. Mais que isso: se a caminhada até aqui nos
legou um presente muito distante do passado provinciano, vale dizer que capixabas
de nenhuma outra geração puderam estar diante de um horizonte tão promissor como
se registra atualmente. Como assinalamos há pouco, neste início de milênio
conquistamos renovados paradigmas político-administrativos e econômicos, o que
nos permite alcançar uma perspectiva de futuro jamais vislumbrada em terras
capixabas. Nesse ambiente é que estamos constituindo planos viáveis e factíveis para
a constituição de dias fundados na revolucionária igualdade de oportunidades para
todos, a partir de um modelo de desenvolvimento socialmente inclusivo,
ambientalmente sustentável e geograficamente desconcentrado.568
O governador legitimava seu governo, nesse caso, a partir do distanciamento entre a experiência
e expectativa e o sentido da superação estabelecido pelo marco histórico que seria seu governo
e modelo de desenvolvimento. Paulo Hartung recorreu ao uso do passado como estratégia
567
HARTUNG, Paulo. Apresentação. In: TSCHUDI, Johan Jakob Von. Viagem à província do Espírito Santo:
imigração e colonização suíça 1860. Vitória: APEES, 2004. p. 8-9.
568
HARTUNG, Paulo. Uma viagem memorável. Prefácio. In: ROCHA, Levy. Viagem de Pedro II ao Espírito
Santo. 3. ed. Vitória: Imprensa Oficial, 2008. p. 8-9.
214
569
ORLANDI, Eni P. Discurso Fundador: a formação do país e a identidade nacional. Campinas: Pontes, 1993.
p. 23-24.
215
Quando reconhecemos esse cenário de reforço do discurso político da superação do atraso e sua
correspondência com narrativas históricas não podemos desconsiderar que a escrita da história
do Espírito Santo na contemporaneidade tem, também, produzido um conjunto de narrativas
que se opõem a esse paradigma do progresso e do desenvolvimento como orientadores das
leituras do passado local. Esse cenário demonstra a existência de formas diferenciadas de
interpretações das experiências no tempo, a partir da mudança de critérios de entendimento e
compreensão, assim como das formas de narrar o Espírito Santo que entram em conflito.
a tarefa de uma história crítica do Espírito Santo fica muito dificultada, pois a sua
forma de operar a interpretação é impessoal, exige estudo, compreensão de conceitos
e concepções, um certo distanciamento que torna a crônica menos prazerosa. Mesmo
assim, é preciso buscar narrativas que enfrentem o problema. No mínimo, professores
de história não devem assinar embaixo versões como a da barreira verde. Cabe-nos
articular teorias e contextos em uma linguagem com o mesmo potencial de
convencimento, de prazer e reconhecimento, tendo sempre em vista a inserção em um
presente que nunca é dado, mas é elaborado por sujeitos em confronto. 571
570
Chartier considera a existência de um campo de concorrência ao se analisar as diferentes representações que
possibilitam a compreensão dos mecanismos pelos quais um grupo tenta impor sua concepção de mundo social e
seus valores. CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora
Bertrand Brasil, 1990. p.17.
571
PEREIRA, André Ricardo Valle Vasco. Fantasias persecutórias na História do Espírito Santo. Revista
Expedições: Teoria da História e Historiografia. Goiânia, n.1, jan/jul, 2013. p. 153. Disponível em:
http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth. Acesso em: 12/04/2015.
217
572
PEREIRA, André Ricardo V. V. Mais do mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no
sistema capitalista internacional. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed.
n.09, v.1, Jun. 2011. pp.203-232.
573
Por considerar que não houve rompimento com o processo de industrialização anterior, ele chama de "segundo
ciclo de modernização industrial" o projeto de desenvolvimento gestado a partir de 2003 no Espírito Santo.
574
O autor discorda de seus status de novidade: "A fase na qual este se encontra hoje gera estímulos crescentes
para o aprofundamento, em direção ao que eu chamo de segundo ciclo de modernização industrial. Daí a ideia de
que teremos, daqui para frente, ― mais do mesmo. Este aprofundamento na integração subordinada terminará por
esgotar a pequena recuperação institucional pela qual o governo do estado passa hoje, porque os fatores externos,
internos e a conexão entre eles geraram uma dinâmica que está relacionada com o modelo político. Eles se
retroalimentam, de forma que é difícil crer em mudança de rumos.” Ibid., p. 204. Arlindo Villaschi e Ednilson
Silva discordam também da noção de Terceiro Ciclo: "[...] embora tenha a capacidade de contribuir para uma
dinamização da economia local, os avanços da indústria do petróleo no Espírito Santo não podem e não devem ser
considerados como o ―terceiro ciclo de desenvolvimento da economia capixaba. Isso porque ela em
absolutamente nada muda o padrão de desenvolvimento da economia local: exploração de recursos naturais
atrelado a uma logística de transporte necessária. Pelo contrário, o que se percebe é o risco de abortar outras ideias
e visões em detrimento do petróleo, diminuindo as possibilidades de novos saltos qualitativos." VILLASCHI,
Arlindo e SILVA FELIPE, Ednilson da. O global e o local: interações e conexões no desenvolvimento do Estado
do Espírito Santo — Anotações para o debate. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN,
UFES, Edição n.09, v.1, Junho. 2011. p. 215.
575
"A recuperação institucional iniciada no ano de 2003 foi resultado do esforço combinado de vários atores,
unificados justamente pelo grau de corrupção, descontrole e falência do poder público que se instalou. Entre todos,
o ator que mais bem aproveitou esta janela de oportunidades foi o Espírito Santo em Ação. O grupo participou da
elaboração do planejamento estratégico do governo Hartung, conhecido como Plano ES 2025. Tal iniciativa
formalizou a proposta de um segundo ciclo de modernização industrial." PEREIRA, André Ricardo V. V. Mais do
218
Assim, o autor se opõe à interpretação do "novo momento" experimentado pelo Espírito Santo
nesse período, considerando que as consequências negativas578 desse processo são anuladas
mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no sistema capitalista internacional. In: SINAIS –
Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed. n.09, v.1, Jun. 2011. p. 227.
576
Ibid., p. 209.
577
PEREIRA, André Ricardo V. V. Mais do mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no
sistema capitalista internacional. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed.
n.09, v.1, Jun. 2011. p. 222.
578
Sobre o lugar do Espírito Santo nesse cenário: "[...] Mesmo contando com unidades fabris complexas e de
grandes dimensões, o que permite falar efetivamente em industrialização, esta não gera bens de consumo
direcionados ao mercado. Isto tem efeitos extremamente negativos no que se refere ao regime fiscal. Em primeiro
lugar, impostos sobre produtos in natura ou semi-elaborados, por sua natureza, são baixos. Mais ainda, o modelo
brasileiro de tributação desonera os setores produtivos e penaliza os consumidores. Como os produtos ―capixabas
são commodities ou bens intermediários pouco elaborados, geram carga fiscal baixa no geral. PEREIRA, André
Ricardo V. V. Mais do mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no sistema capitalista
219
O questionamento realizado por ele evidencia não só a divergência, a oposição que se apresenta
ao modelo de desenvolvimento implantado na contemporaneidade como também ao discurso
da superação do atraso a ele associado. Nesse sentido, a mudança de perspectiva, por parte do
autor, foi acompanhada por uma releitura crítica do passado. Por exemplo, ao questionar os
caminhos do desenvolvimento econômico atual e associá-lo como continuidade de um modelo
anterior, prejudicial ao Espírito Santo, ele questiona o papel das elites dirigentes nesse processo
e o valor atribuído a elas,581 principalmente, em relação a seu protagonismo:
internacional. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed. n.09, v.1, Jun. 2011.
p. 223.
579
Ibid., p. 220.
580
Ibid., p. 211; Villaschi e Silva também abordam o tema: " A financeirização mundializada facilitou o acesso
de empresas localizadas no ES (CST e Aracruz, principalmente) ou com importantes bases produtivas/operacionais
nele localizadas (CVRD e Petrobras, principalmente) a um mercado financeiro com alta liquidez e ávido por
alternativas de aplicações financeiras. Seja pelo processo de privatização (nos casos da CST e da CVRD), seja por
mecanismos de fusões, isso facilitou mudanças no controle acionário dessas empresas. Isso tem induzido uma
crescente perda de vínculo entre as empresas que operam no ES em seus segmentos de maior dinamismo e o
restante da formação socioeconômica capixaba. Antes sede de importantes unidades administrativas dessas
principais empresas (CVRD, Aracruz e CST — no caso dessas duas últimas suas respectivas diretorias), o ES é
hoje localização principalmente de instalações de processamento e circulação de produção e de unidades de apoio
operacional. E, do ponto de vista simbólico, sequer seus nomes guardam relação com o local capixaba (do Vale
do Rio Doce, ficou a Vale; a Aracruz se tornou Fibria; e a Companhia Siderúrgica de Tubarão passou a ser Arcelor
Mittal Tubarão). As articulações entre essas empresas e o restante do aparelho produtivo capixaba, quando muito,
se dão via fornecimento de insumos e a prestação de serviços especializados (principalmente metal mecânico). Até
mesmo as incipientes relações no passado entre essas empresas e a Ufes, e entre elas e a sociedade, vêm diminuindo
e se tornam cada vez mais objeto de campanhas institucionais de construção de imagem via mídia, na medida em
que as esferas de decisões estratégicas se deslocam para outros territórios. VILLASCHI, Arlindo e SILVA
FELIPE, Ednilson da. O global e o local: interações e conexões no desenvolvimento do Estado do Espírito Santo
— Anotações para o debate. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição
n.09, v.1, Junho. 2011. p. 219.
581
Segundo o autor: "A trajetória capixaba é marcada pela incapacidade de sua elite dirigente em alterar o status
quo local a partir de projetos elaborados por ela e recursos sob seu controle (ou acesso a recursos externos por
meio de sua projeção nacional). Houve tentativas neste sentido, mas as condições econômicas gerais, aliadas ao
horizonte estreito das lideranças em uma sociedade com baixo nível de diferenciação interna, de auto-organização
e de confronto ideológico, não foram favoráveis a que fossem gerados os meios para que o estado ocupasse posição
de destaque nas diferentes fases de sua história no plano nacional e sequer para que houvesse mudanças profundas
determinadas por fatores internos. Isto é assim até hoje." PEREIRA, André Ricardo V. V. Mais do mesmo: o
reforço da integração subordinada do Espírito Santo no sistema capitalista internacional. In: SINAIS – Revista
Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed. n.09, v.1, Jun. 2011. p. 214.
220
Nessa perspectiva, para além dos questionamentos trazidos por André Pereira, que outros
aspectos das experiências pretéritas locais têm sido contestados? Quais fundamentos das
narrativas anteriores têm sido desconstruídos? Quais mudanças têm ocorrido nos critérios que
orientam as interpretações sobre o passado e qual o seu significado para a definição de novos
sentidos a ele?
Consideramos, assim, que o século XXI, por um lado, foi marcado pela reconfiguração da
narrativa histórica da superação do atraso, mas, por outro, caracterizou-se por permitir
modificações na perspectiva de compreensão do passado e, consequentemente, a formação de
novas narrativas históricas que emergem em oposição a concepções e imagens cristalizadas
acerca do passado local. Aqui, as denominamos de narrativas críticas da história do Espírito
Santo.
582
PEREIRA, André Ricardo V. V. Mais do mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no
sistema capitalista internacional. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed.
n.09, v.1, Jun. 2011. p. 214-215.
583
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006. p.317-325.
221
Seguindo a proposta dos diferentes tipos de narrativa histórica elaborada por Rüsen,
consideramos que esse novo campo de representações constituído pelo conjunto de produções
historiográficas contemporâneas se vincula ao que o autor chamou de "constituição crítica de
sentido", caracterizada, sobretudo, pelo questionamento a determinados modelos de narrativa
histórica:
Nosso "desafio historiográfico do Espírito Santo", nesse ponto, analisa essa configuração
narrativa crítica a partir de um conjunto de obras acadêmicas. Livros, teses, dissertações e
artigos selecionados em função de seu significado, em termos de questionamento e
desconstrução dos modelos anteriormente constituídos.
584
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed.
UnB, 2007. p. 55.
585
José Carlos Reis ressalta que é necessário superar as possíveis manipulações da memória oficial, por meio do
acesso à “memória crítica”, pela “rememoração, pelo reexame da documentação e da cronologia, pela narração
incessantemente retomada da experiência vivida.” REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2010. p. 40.
222
586
RIBEIRO, Luiz Cláudio. O comércio e a navegação na capitania portuguesa do Espírito Santo-Brasil (séc. XVI-
XVIII). Anais do XXX Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social: Crises
Econômicas, Crises Sociais. Lisboa, 2010, pp. 1-17.
587
"É muito comum no Brasil pessoas tratarem as unidades da atual federação como se elas tivessem nascido com
seus limites atuais definidos e não como unidades hereditárias autônomas no vasto império colonial português.
Desinformadas sobre como funcionava o governo no regime absolutista e no Antigo Sistema Colonial não
percebem que o Brasil não era uma unidade política: cada capitania era organizada de acordo com as relações e
interesses do rei de Portugal e da capacidade empreendedora do seu donatário, desde a preparação para cruzar o
mar Atlântico e alcançar um ponto – às vezes apenas rabiscado num papel ou num tecido – para onde deveria
conduzir pessoas e fundar feitoria e vila para o povoamento." Ibid., p. 1.
588
Luiz Cláudio Ribeiro argumenta o seguinte: "Segundo Assis, as informações veiculadas sobre a capitania
comprometeram o entendimento correto de sua história porque a associaram a uma biografia superficial e
intencionalmente negativa do primeiro capitão-donatário, Vasco Fernandes Coutinho. Essa mesma descrição
tornou-se oficial e foi reproduzida no século XVII na obra do Frei Vicente do Salvador e, por sua vez, foi passada
adiante nos séculos XVIII e XIX por cronistas como Braz da Costa Rubim, José Marcelino Pereira de
Vasconcellos, Mizael Ferreira Pena e Basílio Daemon. No século XIX, ainda segundo afirmou Assis, estes autores
reproduziram uma historiografia baseada nos insucessos da Capitania por decorrência da personalidade do
donatário, tendo-o constituído como um homem sem autoridade para lidar com as dificuldades do estabelecimento
colonial e que, por isso, acabou empobrecido e doente, abandonando suas possessões." Ibid., p. 2.
589
Ressalta o autor: "o rumo das investigações sobre as capitanias portuguesas no Brasil deve extrapolar os
modelos esquemáticos de análise das vilas e cidades como Salvador e Rio de Janeiro para fixar-se em aspectos
que, por sua natureza, escaparam aos registros oficiais – como a vida dos degredados, o contrabando e os
descaminhos – ou se inscreveram em fontes não-literais, no terreno das aldeias mestiças e nos costados das
embarcações pelo mar e pelos rios que chegam à costa. [...] No caso capixaba - isto é, da Capitania do Espírito
Santo, tal lacuna tem servido a que se atribua um recuo das atividades econômicas entre o final do século XVI até
o século XVIII cujas justificativas causais, em última instância, permanecem atreladas à personalidade do primeiro
donatário – como antes explicamos - e à morte prematura do segundo, seu filho e herdeiro. Sob o aspecto da
magnitude e complexidade da empreitada colonial, tais justificativas não cabem numa análise histórica criteriosa.
[...] Além disso, muito da documentação de interesse do Espírito Santo pode ainda estar em outros arquivos
públicos brasileiros aguardando identificação e transcrição paleográfica. Portanto, as investigações de história do
Espírito Santo português, isto é, colonial, ainda demandarão muito esforço e investimento permanente." RIBEIRO,
Luiz Cláudio. O comércio e a navegação na capitania portuguesa do Espírito Santo-Brasil (séc. XVI-XVIII). Anais
223
a Capitania não pode ser orientada pela comparação com outras capitanias justamente por suas
especificidades, devendo-se atentar para as circunstâncias e possibilidades existentes à época.
Por isso, atribui dois momentos chave para essa compreensão. Primeiramente, sobre o século
XVI e XVII, evidencia:
do XXX Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social: Crises Econômicas, Crises
Sociais. Lisboa, 2010. p. 4-5.
590
Ibid., p. 13. Ribeiro aponta também o caráter sui generis dessa condição da capitania: "Em nosso trabalho
acreditamos que a lacuna de conhecimento sobre o povoamento do Espírito Santo indica que além das vilas e
algumas aldeias e fazendas jesuíticas oficiais13 surgiram também comunidades que teriam sido formadas nos
séculos XVI e XVII por remanescentes de grupos de índios dizimados pelos ataques dos brancos, por lutas
intertribais, por decadência dos grupos perambulantes ocasionadas por doenças contagiosas, e por opção ao
sedentarismo e à miscigenação. Neste período, a extração e embarque do pau-brasil e de outras madeiras-de-lei, o
comércio de farinha de mandioca e outros víveres eram a contrapartida para a entrada do comércio de produtos
europeus praticados pelas embarcações portuguesas, holandesas e francesas que ali aportavam. Por isso,
acreditamos que desde os primeiros tempos das capitanias tenha ocorrido uma relativa rede de comércio de artigos
coloniais de produtos trazidos do reino e de outras partes naqueles confins. Afinal, aquelas atividades clandestinas
ocorriam em locais isolados e com acesso por mar ou por rios passando ao largo do controle do donatário, do
capitão-mor e da Alfândega d`El Rey." Ibid., p. 6.
591
RIBEIRO, Luiz Cláudio. O comércio e a navegação na capitania portuguesa do Espírito Santo-Brasil (séc. XVI-
XVIII). Anais do XXX Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social: Crises
Econômicas, Crises Sociais. Lisboa, 2010. p. 13-14.
224
As considerações de Luiz Cláudio Ribeiro nos direcionam justamente para o novo panorama
das interpretações sobre a capitania do Espírito Santo. Nesse sentido, selecionamos artigos
acadêmicos e dissertações de mestrado que formam um conjunto de trabalhos que, de maneira
geral, descartam o caráter homogêneo da experiência colonial espiritossantense e trazem novas
possibilidades de entendimento sobre esse período.
As análises aqui desenvolvidas são parte de uma pesquisa mais abrangente e em curso,
na qual pretendemos estudar um período da administração da Capitania do Espírito
Santo no século XVII, de transição entre donatários que permaneceram na capitania e
aqueles que não vieram à terra. Este quadro somado a um contexto de consolidação
de uma “economia de mercês” que regia contratação de “servidores” para os postos
da burocracia no Império Português, no Reino e em suas conquistas de além-mar,
particularmente quanto a utilização da Ordem monástico-militar de Nosso Senhor
Jesus Cristo. É nosso objetivo, contribuir para uma visão historiográfica que se
contrapõe à historiografia tradicional de uma Capitania do Espírito Santo de total
insucesso e abandono. Nossa hipótese é que em uma administração de donatários
“ausentes”, a consolidação de uma “economia de mercês” implicou numa inflexão
592
BALLARINI, Helmo M. ; RIBEIRO Luiz Cláudio M. Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e a economia de
mercês. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p. 65-83. O artigo é resultado de pesquisas recentes:
"correspondências do/para Conselho Ultramarino que foram sistematizadas, digitalizadas e repatriadas através do
Projeto Resgate Barão do Rio Branco. "O Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco
(Projeto Resgate) foi criado institucionalmente, em 1995, por meio de protocolo assinado entre as autoridades
portuguesas e brasileiras no âmbito da Comissão Bilateral Luso-Brasileira de Salvaguarda e Divulgação do
Patrimônio Documental (COLUSO). É uma iniciativa bilateral Portugal/Brasil conduzida no contexto das
comemorações dos 500 anos do descobrimento. O objetivo principal é disponibilizar documentos históricos
relativos à História do Brasil existentes em arquivos de outros países, Portugal em particular, e demais países
europeus com os quais o Brasil teve uma história colonial imbricada." Ibid., p. 78.
593
Os autores definem esse conceito: "ao apresentar alguns resultados parciais de uma investigação que tem como
objeto a análise da comunicação política entre o reino e as conquistas ultramarinas na América nos informa que
mais de 10% do número de cartas eram relativas às mercês ou as remunerações por serviços prestados à Coroa
pelos vassalos. Por meio das mercês eram nomeados os oficiais – militares e civis – da burocracia régia assim
como concedidos os hábitos militares, as terras etc. Era o que colocava a administração periférica (desde vice-reis
até escrivães da ouvidoria) em movimento. Essas mercês impulsionavam também a hierarquia social estamental
que era tutelada pela monarquia e assim o rei ao exercer sua função distributiva minimizava as tensões da
sociedade. Era pelo sistema de mercês que o rei interferia na gestão política da menor unidade administrativa do
reino." Ibid., p. 74.
225
É essa perspectiva de análise que Luiz Cláudio Ribeiro e Anna Karoline Fernandes utilizam
para questionar a noção de prejuízo e dificuldades que caracterizariam o passado colonial do
Espírito Santo. Em artigo publicado na mesma edição descrita acima596, os autores analisam
documentos de uma devassa597 realizada na Capitania durante o período da União Ibérica
(1581-1640)598 cujo objetivo era controlar os "descaminhos" que implicavam na redução dos
rendimentos da Coroa. Assim, apontam justamente o fortalecimento dos poderes locais e suas
alianças como mecanismos de realização de ações ilícitas. O que, segundo eles, contribuem
para questionar a lógica do atraso:
As fontes mostram que muitas vezes tais funcionários praticavam atividades ilícitas
em relação às obrigações de seus regimentos e eram os principais causadores de
prejuízos à Coroa, pois praticavam atividades ilícitas aproveitando-se de sua
privilegiada posição, e estabeleciam negócios que possibilitassem auferir rendas –
lícitas ou ilícitas – obtidas através das prerrogativas de seus ofícios. Ainda de acordo
594594
BALLARINI, Helmo M. ; RIBEIRO Luiz Cláudio M. Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e a economia de
mercês. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p. 81.
595
De acordo com eles: "Bueno Cacunda em seu relato descreve os seus quase um quarto de século de serviços
prestados à Coroa listando todas as suas dificuldades, seu comprometimento e as despesas que consumiam seus
recursos e também de seus filhos. Então arremata com os pedidos de que sejam estabelecidas as minas por ele
descobertas, que lhe seja concedido auferir rendimentos destas minas e requer 'quatro hábitos de Cristo, na forma
que V. Magde. for servido', corroborando a tese da consolidação de uma economia de mercês no século XVII a
XVIII onde o hábito de Cristo era um desejo disseminado por todo o Império português e funcionava de forma
remuneratória. “Ibid., p. 80.
596
FERNANDES, Anna Karoline da Silva; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Poderes inferiores e Política Fiscal na
Capitania do Espírito Santo. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p. 41-64.
597
Sobre esse evento: "devassa, ou seja, um processo investigativo na Alfândega do Espírito Santo iniciado em 15
de março de 1618 e instaurado apenas sete meses depois da carta que o ordenou, tempo relativamente exíguo para
a época colonial. Dele consta o testemunho de várias pessoas que moravam na capitania do Espírito Santo, todos
eles homens com idade variável entre 30 e 70 anos, sendo que alguns ocupavam cargos de nomeação régia." Ibid.,
p. 45.
598
Os autores destacam o recurso a fontes inéditas: " As 42 fontes manuscritas inéditas dentre as demais existentes
no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa) que foram disponibilizadas pelo Projeto Resgate foram transcritas
através do projeto Estado, comércio e navegação: um estudo da capitania do Espírito Santo, coordenada por Luiz
Cláudio M. Ribeiro entre 2008-2010, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (Fapes)
- PIBIC/UFES. " Ibid., p. 42.
226
599
FERNANDES, Anna Karoline da Silva; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Poderes inferiores e Política Fiscal na
Capitania do Espírito Santo. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p.43. Segundos os autores: "Novas perspectivas
de análise se tornaram possíveis por meio de transcrição paleográfica de novas fontes que forneceram informações
antes desconhecidas. Estas fontes permitem avançar no entendimento a respeito do passado colonial da quinta
capitania do Brasil ultrapassando a ausência da crítica historiográfica. " Ibid., p. 43.
600
Os autores definem o "descaminho": "O conteúdo da carta endereçada ao capitão-mor do Espírito Santo diz
respeito aos descaminhos praticados pelos oficiais da Coroa que resultaram no desvio de mais de 20 mil cruzados
por ano num período de cerca 10 anos. Tais práticas ilícitas se evidenciam na despesa que a Coroa tinha com
manutenção predial da Alfândega sem que ele existisse; e na não cobrança de impostos das fazendas que chegavam
à capitania. Outra evidência de descaminho era o repasse dos dízimos do açúcar à Coroa em valores inferiores
àqueles recolhidos pelo almoxarifado da capitania. Todas essas práticas envolviam primeiramente os funcionários
dos cargos de almoxarife e provedor; pois estavam diretamente ligados e se relacionavam com a arrecadação e
fiscalização das rendas régias. No entanto, foram os ocupantes desses mesmos cargos os acusados pelas
ilegalidades nos recebimentos e pagamentos de impostos." Ibid., p. 44.
601
O descaminho seguia outro sentido: "No entanto, a devassa apurou que na capitania a Alfândega não se
encontrava em atividade, nem possuía sede, sendo este mais um indício da existência de fraude, pois até mesmo
pagamento de aluguel para suas instalações físicas era declarado pelos oficiais como forma de apropriação do valor
correspondente e simulação de seu funcionamento normal. A reclamação do monarca de que os oficiais não
utilizavam o cais da Alfândega para o desembaraço de mercadorias que chegavam à capitania vindas do reino foi
confirmada por vários moradores da vila que testemunharam no processo." Ibid., p. 51.
227
Se esses estudos apontam para a complexidade das experiências que envolviam o Espírito Santo
no contexto do Império Atlântico Português, um outro conjunto trabalhos nos ajuda a traçar um
cenário diferente do passado colonial espiritossantense instituído pelas narrativas anteriormente
analisadas. Identificamos dissertações produzidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) que também correspondem a essa
categoria de "narrativas críticas de sentido."603 Tendo como foco o lugar da Capitania no
contexto da economia colonial, são leituras que contestam a noção de decadência e estagnação
atribuídos ao passado colonial espiritossantense, o que permite a elaboração de uma outra
imagem do Espírito Santo colonial.
Sueni Sobrinho, ao analisar a economia local no século XVII, contesta a noção de fracasso e
identifica os limites dessa historiografia.604 Seguindo a perspectiva interpretativa apontada por
602
FERNANDES, Anna Karoline da Silva; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Poderes inferiores e Política Fiscal na
Capitania do Espírito Santo. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p. 54.
603
Na ordem aqui analisadas, são elas: SOBRINHO, Sueni da Vitória. Capitania do Espírito Santo uma feitoria
portuguesa no Atlântico Sul: a pauta de comércio e a atividade mercantil (1600-1642). Dissertação (Mestrado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013;
CONDE, Bruno Santos. Depois dos Jesuítas: a economia colonial do Espírito Santo (1750-1800). Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2011; CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo
(1790 a 1821). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008.
604
"A História do Espírito Santo do período colonial foi escrita com poucos documentos e publicada por autores
que deram relevo a uma ideia de fracasso da Capitania assimilando ter havido um sucesso na colonização de outras
como São Paulo e Pernambuco. Essa construção, feita de maneira fragmentária, teve como princípio básico que
as informações daqueles documentos expressavam a verdade, característica de uma história positivista. Nesta
228
Luiz Cláudio Ribeiro, ele argumenta que não se pode desconsiderar a posição da Capitania
naquele contexto colonial:
Esta forma de ver os fatos limita o uso dos dados disponíveis e impede um olhar mais
atento da estrutura econômica e do papel estratégico da capitania do Espírito Santo,
pois sua posição geográfica lhe proporciona agir na defesa da colônia para garantir a
possibilidade de intercâmbio direto com a Europa e por cabotagem com as capitanias
do norte e com as do sul [...]A capitania capixaba se configurava como “uma cabeça
de ponte da invasão portuguesa da Mata Atlântica”. Ela tinha uma função estratégica
no que tange a dinâmica comercial litorânea, “no trafego com a Europa, África e Ásia,
bem como no mercado intracolonial, com um fluxo de cabotagem interessante” que
foi perdendo sua robustez, mas não se dizimou por completo, além de auxiliar na
defesa da costa com vista a manutenção do território da Colônia portuguesa na
América. [...] A capitania do Espírito Santo estava em consonância com o projeto de
colonização portuguesa para América. 605
O autor analisa o Espírito Santo como feitoria e entreposto comercial, considerando que sua
produção econômica à época não pode ser considerada irrelevante606, pois é possível identificar
núcleos de atividade açucareira e outros gêneros bem como um fluxo de transações comerciais
com capitanias vizinhas que atestam a conexão comercial em que estava localizada a
Capitania.607 Sobre a produção açucareira ele apresenta:
pesquisa perseguimos outra interpretação. Assim, transcrevemos documentos manuscritos datados do período
entre 1615-1681. Em sua íntegra, a análise inicial parece conduzir à introdução de novos elementos relacionados
com as pautas de comércio no Atlântico, e indicam articulações da capitania capixaba com outras capitanias do
Brasil e com as colônias espanholas na América. [...] Os pesquisadores estabeleceram suas análises como se o
período colonial no Espírito Santo fosse um bloco homogêneo e inflexível durante os três séculos como colônia,
negando, assim, as conjunturas econômicas, os fluxos e influxos monetários, a partir de políticas econômicas
traçadas pela Coroa e posteriormente pelo Conselho Ultramarino português e a atividade dos homens de negócios."
SOBRINHO, Sueni da Vitória. Capitania do Espírito Santo uma feitoria portuguesa no Atlântico Sul: a pauta
de comércio e a atividade mercantil (1600-1642). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013. p. 14-15.
605
Ibid., p. 66.
606
Por exemplo, o autor compara a produção de açúcar do Espírito Santo com Pernambuco e Bahia no início do
século XVII e atenta para as tentativas de invasão por parte dos holandeses: "Esse cotejar da produção mitiga a
aparência de uma capitania secundária e justifica o interesse da Coroa em estabelecer um controle mais rígido dos
negócios do açúcar. O que queremos demonstrar é que a capacidade de produção por unidade da capitania do
Espírito Santo é 25% menor que a de maior produção [Pernambuco] e de 4% em relação a produção da Bahia. Isto
revela o interesse dos holandeses na capitania, haja vista que essas foram as únicas capitanias a sofrer o assédio
dos holandeses, pois eram áreas de satisfatória produção açucareira. Outro fato que essa comparação nos revela é
a não absorção da capitania pela Coroa porque, além da importância econômica de sua produção também serviram
de cabeça de ponte para a interiorização do território, como parte da estratégia militar da Coroa.” Ibid., p. 95.
607
Ibid., p. 85-116.
229
O rol de “fazendas” constantes como mercadoria para exportação também faz parte
da listagem de importações da capitania do Espírito Santo, e isso pode qualificar a
capitania como entreposto. No conjunto do império português era um local em que as
mercadorias chegavam, geralmente em navios do reino transbordadas no porto do Rio
ou da Bahia, e que saem embarcadas para outras capitanias muitas vezes na condição
de meios de pagamento[...]. Concluímos assim que havia um fluxo mercantil de
cabotagem entre o Espírito Santo e outras capitanias. Exemplo disso são as fazendas
mandadas para o Rio de Janeiro por instrução do governador geral Gaspar de Souza. 611
Observamos, portanto, que o "marasmo colonial" é contestado por Sueni Sobrinho que
apresenta a especificidade local naquele período sem se preocupar com "fatores" de exclusão e
marginalização da Capitania, identificando sua importância como entreposto comercial e
questionando a noção de ineficiência atribuída a ela. Se este autor avaliou um determinado
período do século XVII, Bruno Santos Conde avança no tempo em sua pesquisa contrariando a
noção de que o século XVIII foi o período da defasagem econômica devido à atividade aurífera
nas Minas Gerais.612
Segundo Bruno Conde, essa noção de decadência não corresponde à dinâmica interna do
Espírito Santo entre os anos de 1750 e 1800. Ainda que o autor reconheça que a economia local
608
SOBRINHO, Sueni da Vitória. Capitania do Espírito Santo uma feitoria portuguesa no Atlântico Sul: a
pauta de comércio e a atividade mercantil (1600-1642). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013. p. 105.
609
De acordo com o autor: "um complexo quadro de fluxo de capital por meio de transações comerciais que
gravitavam em torno da produção de açúcar: fazendas que chegavam da Bahia, do Rio de Janeiro, de Lisboa;
mercadorias enviadas ao Rio de Janeiro como quitação. Confirmamos a presença de comissários responsáveis por
essas movimentações, procuradores atuando em nome dos senhores de engenhos." Ibid., p.113.
610
Afirma, assim, o caráter de entreposto: "A capitania estava envolvida num circuito mercantil que foi
referenciado pelos testemunhos do auto de devassa. Segundo estes relatos desde pouco antes da União Ibérica
aportavam a cada ano na capitania três a quatro naus com mercadorias diversas, as quais entravam pela capitania,
não estavam direcionadas apenas aos senhores de engenhos, como destinatários finais mas como parte de
pagamento aos açúcares comprados dos lavradores, bem como encaminhadas a comissários e contratadores dos
dízimos, que as atravessavam para o Rio de Janeiro e Bahia." Ibid., p. 116.
611
Ibid., p. 107.
612
CONDE, Bruno Santos. Depois dos Jesuítas: a economia colonial do Espírito Santo (1750-1800). Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidades Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2011.
230
não obteve o mesmo êxito do que a de capitanias vizinhas613, ele argumenta que desde a segunda
metade do século XVIII, ocorreram mudanças na política portuguesa no sentido de tornar mais
vantajosa a Colônia, como a expulsão dos jesuítas, e que o Espírito Santo, diferentemente da
interpretação convencional, não foi caracterizado pelo fracasso. Se na narrativa histórica do
progressivo desenvolvimento do Espírito Santo observamos o ano de 1800 como marco de
mudanças interpretadas por José Teixeira de Oliveira, Maria Stella de Novaes e Neida Lúcia, o
autor analisa o período entre 1750 e 1800 como "um tempo de mudança, do qual o Espírito
Santo participou ativamente, jogando por terra a ideia de que a capitania vivia isolada."614
Nesse sentido, relativiza a noção de fracasso e, tal como Sueni Sobrinho, caracteriza a
especificidade da Capitania:
Assim, recorre às fontes que demonstravam a dinâmica local inserida na economia colonial,
sem isolamento.616 A noção de marginalização deu lugar, nessa narrativa, à participação da
Capitania no mercado interno da Colônia. Bruno Conde recorre aos inventários, por exemplo,
para compreender o significado da estrutura produtiva na segunda metade do século XVIII.
Observando dois casos de proprietários locais o autor argumenta:
613
O autor reconhece essa diferenciação: “Assim, condições para o aproveitamento das oportunidades derivadas
da mineração existiam, mesmo com as medidas da coroa. Interessante seria entender o porquê do Espírito Santo
não ter se aproveitado mais intensamente do nicho gerado pela descoberta do ouro, ao contrário do que ocorrera
com outras capitanias. São Vicente, por exemplo, dinamizou ainda mais a prática do comércio interno e as
articulações com outras regiões, fato que se somou a um crescimento demográfico superior a 400% neste
período.[...] No Rio de Janeiro, as mudanças geradas pelo período da mineração, tal como a ampliação dos
mercados a serem abastecidos, transformou-a num importantíssimo entreposto, tendo em vista o seu papel no
escoamento do ouro e no abastecimento das Minas com víveres, escravos e outros itens. A intensa ligação com a
região mineradora contribuiu de maneira central para que, no decorrer do século XVIII, os negócios mercantis
superassem os agrários, transformando a praça carioca no porto por excelência da região das minas. Necessário
frisar que, paralelamente a tudo isso, ocorria o deslocamento do centro político e econômico do norte para o
centrosul, notadamente para o Rio de Janeiro.” CONDE, Bruno Santos. Depois dos Jesuítas: a economia colonial
do Espírito Santo (1750-1800). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidades Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011. p. 49.
614
Ibid., p. 14.
615
Ibid., p. 114.
616
O autor indica essa integração: "Pode parecer estranho o fato de uma capitania sem ligações diretas com outros
continentes apresentar produtos do reino e até mesmo do oriente numa loja de Vitória. Entretanto, a ligação, através
da cabotagem, com o Rio de Janeiro permitia ao Espírito Santo ter acesso aos produtos que lá chegavam vindos
do outro lado do Atlântico ou mesmo dos diversos mercados regionais internos da América lusa." Ibid., p. 114.
231
Os casos de Joanna da Victória e João Machado são apenas dois exemplos de atores
que ajudavam a moldar a estrutura produtiva do Espírito Santo. A primeira era
portadora de lavouras diversificadas, enquanto o segundo tinha como principal marca
a produção de aguardente. Ambos eram escravistas, residiam em Vitória e
desenvolviam atividades agrícolas e pecuárias no entorno da ilha. Mas não se deve
imaginar que este seja o modelo único dos detentores de bens inventariados no
período. Ao invés disso, a realidade encontrada abrigava toda uma complexidade de
patrimônios e bens. Eram lavouras, escravos, produtos para a venda, dinheiro
emprestado a juros, sobrados e casas nos meios urbano e rural, sítios com benfeitorias,
etc.617
617
CONDE, Bruno Santos. Depois dos Jesuítas: a economia colonial do Espírito Santo (1750-1800). Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidades Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2011. p. 90.
618
Ibid., p. 125. Sobre a produção de algodão no contexto de diversificação da colônia: Embora não seja produção
das mais expressivas, a presença dessas pequenas fábricas no ambiente em questão é algo revelador, notadamente
se considerarmos que o Espírito Santo vez ou outra é apresentado como um centro sempre atrasado em relação às
principais tendências e movimentos econômicos vivenciados pelo restante da colônia. Inegável a contribuição dos
acontecimentos internacionais, a partir da década de 1770, para a expansão da cultura algodoeira, mas a dedicação
a tais lavouras em solo espiritossantense já existia antes disso, incentivada, e não principiada, a partir do contexto
externo. Ibid., p. 125.
619
Ibid., p. 108.
620
CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo (1790 a 1821).
2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade Federal
do Espírito Santo, Vitória, 2008.
621
A autora questiona a perspectiva de Bittencourt: "Em contrapartida, no caso do Espírito Santo, a falta de
pesquisas sobre a história da região, na maioria dos períodos, acaba por propiciar a adoção de modelos
historiográficos generalizantes ou simplesmente, definir um período como sem importância. Um bom exemplo
disso é o caso do recorte temporal compreendido entre o fim do século XVIII e início do XIX, tratado com menor
interesse pela historiografia capixaba que estabelece as pesquisas, privilegiando o advento da cafeicultura no
Espírito Santo a partir de 1850. O enfoque sobre as primeiras décadas do século XIX configura-se de vital
importância para subverter uma tradição historiográfica preocupada, quase sempre, em encontrar prosperidade
apenas nos grandes eventos econômicos como a cultura cafeeira ou os grandes projetos industriais." Ibid., p. 21.
232
décadas do século XIX. Contrariando a noção de fracasso colonial622, Enaile Carvalho identifica
indícios que ajudam a configurar um cenário econômico diferente dos retratados pelas
narrativas da superação do atraso.623 Refletindo sobre o lugar do Espírito Santo, argumenta que
deve ser entendido como participante do comércio interno da colônia.624 Nesse sentido,
argumenta que as atividades comerciais estavam em consonância com o contexto colonial que
já não contemplava o auge da atividade aurífera mas experimentava um dinamismo econômico
interno do qual participava o Espírito Santo:
622
Contra o estigma da terra abandonada : "Pretendo aqui, estabelecer um novo panorama para a história capixaba
do final do Período Colonial, vislumbrado numa realidade diferente daquela presente na historiografia tradicional,
sem contaminações de um discurso que insiste em atribuir o estigma de 'terra abandonada' para o Espírito Santo
do referido período; partindo do pressuposto da existência de uma sociedade ativa do ponto de vista econômico e
social, que superava as dificuldades através das redes de sociabilidade. Além disso, o Espírito Santo chega ao
século XIX, inserido na lógica política, social e econômica da época, confirmado pelo consumo de gêneros
importados e pela produção que, mesmo diversificada e desenvolvida em pequena escala, era sim, voltada para
comercialização." CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo
(1790 a 1821). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 25.
623
"[...] observei a existência, no Espírito Santo do Oitocentos, de uma coerência social própria decorrente de sua
situação geográfica, política e econômica ímpar, elevando a Capitania, não só a uma situação de subsistência
autônoma perante outras capitanias e o Estado no que concerne ao abastecimento, mas também, como parte
integrante do sistema colonial, na medida em que, a produção direcionava-se para o abastecimento de outras
regiões coloniais. Pode-se afirmar que o conhecimento a respeito das dinâmicas, produtiva e política, da Vila de
Vitória, esclarecem acontecimentos locais, como também, informam acerca dos processos globais da colônia."
Ibid., p. 20.
624
No que concerne à economia, os documentos investigados comprovaram a autonomia do Espírito Santo com
relação à subsistência, além de, permitir sua classificação de Capitania voltada para produção e exportação de
gêneros alimentícios e entreposto comercial, posicionando-a como fornecedora de gêneros alimentícios, madeira
de lei, tecidos e algodão em espécie para outras regiões do Brasil. [...] Mesmo os discursos políticos não
reconhecendo a existência de uma produção relevante e capaz de propiciar o desenvolvimento do Espírito Santo,
os mesmos contemplaram, contudo, ser a produção superior à necessidade local, o que promovia exportações para
outras capitanias, além da produção servir como mecanismo de acumulação e consumo de gêneros importados.
Assim, a mesma embarcação responsável em escoar a produção excedente capixaba, acabava por suprir o Espírito
Santo de artigos provenientes de outras localidades da colônia ou do estrangeiro. Ibid., p. 62.
625
Ibid., p. 64-65.
233
Observamos, ainda, que esse lugar do Espírito Santo identificado por Enaile Carvalho
corresponde à sua diversificação econômica como participante do comércio entre capitanias:
[...] expõe o quadro dos fretes contratados, junto à lancha de Francisco de Medeiros
Arruda, para o transporte dos gêneros de abastecimento da Capitania para o Rio de
Janeiro, e aqueles fretes, contratados no retorno para a Vila da Vitória. A referida
viagem levou mercadorias do Espírito Santo para o Rio de Janeiro, como algodão, fio
de algodão, madeira de lei, açúcar; retornando carregada de gêneros, a exemplo de
carne, seda, aguardente, marmelada, louça, queijo, rosca, cera, toucinho, farinha,
azeite, sal e pano. Diante das trajetórias dos homens dedicados aos negócios, seja na
Praça da Vitória, seja em outras capitanias – Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia –
,nota-se que, em princípios do século XIX, já estava estabelecida a elite mercantil
capixaba e os mecanismos garantidores do escoamento dos gêneros da terra e do
abastecimento da população com artigos de fora. Fato constatado não só pelas
narrativas expostas, mas também, pela entrada no Porto do Rio de Janeiro, de
embarcações provenientes da Capitania capixaba.626
Enaile constata que os empreendimentos pessoais analisados por ela evidenciam uma
diversificação de rendas que, por sua vez, apontam para uma produção local voltada para o
abastecimento do mercado colonial que "viabiliza inserir a economia capixaba no contexto da
economia colonial"627
626
CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo (1790 a 1821).
2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade Federal
do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 92.
627
Ibid., p. 68.
234
Rompem, portanto, com o lugar sacralizado do atraso no passado colonial do Espírito Santo,
seja nos discursos políticos ou na historiografia. Ao abandonar a lógica atraso-progresso e
criticar o "sentido da colonização", essa produção historiográfica estabelece novos sentidos para
o passado colonial e define narrativas não orientadas pela expectativa do progresso ou do
desenvolvimento como superação. O significado do conjunto de experiências do passado
colonial não é avaliado como fardo. Atentam para a historicidade das experiências vividas e as
condições de possibilidades existentes nas dinâmicas da economia colonial na qual se inseria a
Capitania. Essa produção historiográfica se relaciona com o passado local sem entendê-lo como
origem do que é o Espírito Santo hoje nem como determinante de uma trajetória cujo sentido
seria a superação do atraso. .629
628
Essas crítica ao século XVIII como o principal obstáculo enfrentado pelo Espírito Santo no roteiro histórico
definido pelas narrativas históricas da superação do atraso correspondem à crítica que André Pereira faz à
interpretação de José Teixeira de Oliveira sobre a noção de "barreira verde": "[...]o texto de Oliveira desenvolveu
uma argumentação que é claramente marcada por um tom emocional e elabora a tese de que o Espírito Santo teria
perdido algo que deveria lhe pertencer por direito, num raciocínio contrafactual que não tem como ser sustentado
pelo fato de que não correspondeu ao processo histórico, e nem mesmo auxilia para elaborar, didaticamente, outras
linhas de atuação em termos potenciais. [...] Nenhuma capitania original se estendeu até o traço de Tordesilhas,
nem teria como fazê-lo. A ocupação do interior seguiu dinâmicas próprias, que iriam gerar outros tipos de interação
social. Não foi assim, porém, que Oliveira pensou. Vale notar que, sendo formado em Direito, talvez tenha se
deixado influenciar por um formalismo legal, que também não teria como ser justificado." PEREIRA, André
Ricardo Valle Vasco. Fantasias persecutórias na História do Espírito Santo. Revista Expedições: Teoria da
História e Historiografia. Goiânia, n.1, jan/jul, 2013. p. 153. Disponível em:
http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth. Acesso em: 12/04/2015.
629
Salgado Guimarães preocupado com as diferentes formas de produção do passado considera que a relação que
um presente estabelece com o passado pode ser o de considerá-lo como fardo quando se apropria dele como origem
de uma realidade presente ou como condições de possibilidade existentes em determinada época. GUIMARÃES,
Manoel Luiz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória. In: ABREU, Marta;
235
SOIHET, Raquel; GONTIJO, Rebeca (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de
história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 39.
630
ROSTOLDO, Jadir Peçanha. A cidade republicana na Belle Époque capixaba: espaço urbano, poder e
sociedade. 210f. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2008; PALACIOS, Wanessa Doellinger C. A expansão dos espaços periféricos em Vitória
durante o processo de urbanização em Vitória (1889-1930). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007.
631
"A maior evidência da atuação e poder do Governo sobre a capital do Espírito Santo são os relatórios e
mensagens produzidos para a prestação de contas ao Congresso Legislativo Estadual. Esse material demonstra as
preocupações com os destinos do Estado e expõe suas realizações. Ressaltamos que grande parte dessas
preocupações estava intimamente vinculada aos interesses dos grupos dominantes que davam suporte ao governo,
236
O foco do autor sobre esse período é crítico quanto aos efeitos desse processo de modernização.
Segundo Rostoldo, realizou-se um projeto modernizante que não gerou ganhos sociais para a
maioria da população, prevalecendo os interesses de uma elite política e social vinculada ao
clientelismo político da época que tornou-se a principal beneficiária das transformações na
Capital. É nesse sentido que o autor direciona sua crítica aos governos de Moniz Freire e
Jerônimo Monteiro. Argumenta que o discurso modernizante era utilizado como legitimador
das ações governamentais.632 Porém, deslocando esses governantes do lugar de símbolos do
progresso, ele aponta as dificuldades de condução e ineficiência de realização do projeto de
modernização bem como seu caráter limitado e excludente.633
o que nos leva a aceitar que os relatórios/mensagens também funcionaram como uma prestação de contas do
governo à sua base política e econômica, uma forma de explicar o seu compromisso com essa parcela da
sociedade." ROSTOLDO, Jadir Peçanha. A cidade republicana na Belle Époque capixaba: espaço urbano, poder
e sociedade. 210f. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2008. p. 197.
632
Sobre os discursos dos governadores: "Nesse sentido, o discurso dos governos foi o mesmo. No início dos seus
períodos administrativos, tudo estava por se fazer na Capital. Apesar das tentativas anteriores, a cidade não
apresentava o padrão necessário: o republicano. As decisões de obras foram tomadas com este foco: retirar a cidade
do abismo colonial e inseri-la nos novos tempos da modernidade republicana, bela e saneada. Esse discurso
também nos remete à maior valorização pelos governos das obras realizadas em seu período, ou seja, o reforço e
a propaganda do negativo afloravam e evidenciavam o positivo. O objetivo não era valorizar as ações anteriores,
mas colocar em foco as suas próprias intervenções, que defendiam ser realmente aquelas que conseguiram reverter
a situação da cidade." Ibid., p. 198.
633
Sobre Moniz Freire: "Após o levantamento desses dados, parece-nos que, apesar do discurso governamental
em defesa de transformar Vitória no grande centro do Estado, a quantidade e a qualidade das intervenções ficou
aquém do prometido e do necessário. Com o direcionamento prioritário para a viação férrea, as demais obras foram
prejudicadas. Quase todas tiveram início tardio, a partir de 1893, e apenas o Quartel de Polícia e a Cadeia Pública,
o Hospital de Isolamento e o Teatro estavam concluídos ao final do governo. Ibid., p. 88; Sobre Jerônimo Monteiro:
" O presidente deixou claro que, resolvidos esses problemas, a cidade pegaria o trem do progresso. Não duvidamos
da importância desses serviços básicos, que já demoravam a funcionar na Capital, mas nos parece relevante indagar
se eles seriam suficientes para remodelar Vitória. Afinal, apenas uma parcela da população seria beneficiada. O
transporte público continuava sem solução e o lixo sem tratamento adequado, só para indicar outras questões
relevantes. Concordamos que as obras contribuiriam para o progresso da cidade, mas não seriam suficientes para
a inclusão de Vitória no rol das cidades com padrão republicano. Ibid., p. 94.
634
"Como o foco de nossa análise não é apenas identificar e catalogar as intervenções urbanas ou indicar suas
consequências para a cidade de Vitória, mas também reconhecer os responsáveis por essas ações e suas
motivações, fez-se necessária a utilização de uma fonte não oficial que pudesse expor a visão diversificada da
sociedade. Esse procedimento abriu novas perspectivas para a pesquisa. [...] As petições foram nossos
instrumentos para que pudéssemos traduzir a atitude da população de Vitória frente às transformações urbanas.
Mesmo que não fossem gratuitas e, em sua maioria, espontâneas, representavam o que de mais próximo
identificamos como expressão da sociedade." Ibid., p. 121.
237
Rostoldo possibilitou à narrativa histórica do Espírito Santo, portanto, inserir diferentes sujeitos
históricos, criticando o projeto de modernização e apresentando o conflito entre a ordem
635
"A sociedade não estava alheia ao processo, no entanto, seu campo de atuação se restringiu às suas necessidades
cotidianas, mais imediatas. O Governo Estadual agiu estrategicamente; já o Municipal atuou no sentido da
manutenção e conservação; e a população, mesmo utilizando um instrumento legal, as petições, não abriu mão do
seu direito de pedir, questionar e propor." ROSTOLDO, Jadir Peçanha. A cidade republicana na Belle Époque
capixaba: espaço urbano, poder e sociedade. 210f. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p. 201
636
Sobre esse caráter ativo: "A sociedade vitoriense também representou um importante sujeito responsável pelas
intervenções no espaço urbano da Capital. Essa constatação foi possível a partir das análise das petições,
documentos utilizados pela população para se comunicar com o Estado, especificamente com o Governo
Municipal. Esse instrumento, um direito da população, tornou-se o veículo para a incorporação da sociedade ao
sistemas de gestão do espaço urbano de Vitória." Ibid., p. 199.
637
O autor apresenta diversos pedidos como de construção para o comércio, saúde pública, embelezamento, etc.
Observemos um caso relatado sobre o comércio: “[...] Leopoldo Tonini e José da Costa Lebres solicitaram, no dia
7-10-1892, licença para estabelecer Kiosque na Capital. O primeiro especificou o tipo e o local onde deveria ficar,
além de indicar que o Kiosque seria imitação dos que existiam no Rio de Janeiro. Para o segundo, o
estabelecimento seria utilizado para vender bebidas em geral, atendendo à classe menos favorecida de fortuna.’
Justificou seu pedido pelo crescente aumento da população da cidade. " ROSTOLDO, Jadir Peçanha. A cidade
republicana na Belle Époque capixaba: espaço urbano, poder e sociedade. 210f. Tese de Doutorado. Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p. 156; Sobre a preocupação
com a modernização da cidade: “[...] podemos perceber a preocupação dos demandantes com as características da
Capital, como no pedido de alinhamento feito por José Luiz Durães, em 25-2-1893, que declarava que o motivo
de sua obra era o embelezamento de sua casa e da praça onde ela estava edificada. Da mesma forma, Antonio
Marques Orsini, comerciante na Praça do Mercado, solicitou permissão, em 22-6-1893, para efetuar obras de
mudança de acesso aos quartos do mercado, obras que permitiriam uma melhor circulação, aumento dos negócios
e aformoseamento do local, fazendo com que o mercado, que não estava à altura da beleza da Capital, passasse a
ter a forma das praças dos mercados mais modernas já existentes.” Ibid., p. 158; E, ainda, sobre a saúde pública:
“A petição do engenheiro Ferreirinha, de 27-7-1895, tocou em uma das questões mais importantes do período: a
higiene. Segundo o peticionário, o maior e mais importante problema da cidade era a falta de saneamento. Vitória
ainda não tinha um serviço regular de tratamento do esgoto nem de remoção do lixo. [...] Preocupado com os
efeitos negativos da situação, o engenheiro enumerou várias sugestões que poderiam solucionar o problema, que
iam desde o tipo de vaso a ser utilizado nas casas até a forma de tratamento dos detritos, além de apresentar os
procedimentos para o recolhimento do lixo. Ibid. p. 160.
638
Ibid., 169-170.
238
A autora analisa a nova feição urbana da cidade, mas problematiza o projeto modernizador e
destaca em sua análise os problemas sociais decorrentes desse processo no início do século XX.
As transformações na Capital aparecem associadas a um modelo de modernização excludente:
639
"O processo de urbanização de Vitória, que teve com Jerônimo Monteiro o seu impulso inicial, consolidou-se
mais concretamente com Florentino Avidos. Todavia, a transformação de Vitória de cidade colonial em uma cidade
mais moderna e saneada não foi acompanhada de um projeto político habitacional mais efetivo, que pudesse sanar
a crise de habitação provocada pelas demolições e pelo aumento populacional verificado na capital durante o seu
processo de urbanização. O direcionamento dado pelo governo estadual durante a Primeira República, mais
especificamente com Florentino Avidos, foi o realojamento de uma parte da população menos favorecida para os
arrabaldes da capital, expandindo-se, assim, os espaços periféricos de Vitória. Nem todos os segmentos da
população podiam se comprometer com a aquisição da casa própria vendida em prestações pelo governo, ou com
os custos de aluguéis em qualquer outra região de Vitória. Podemos relacionar a ocupação dos morros ao redor do
centro de Vitória com essa questão. Morros como o do Moscoso, da Fonte Grande e da Piedade, na segunda década
do século XX já eram ocupados em Vitória. Nesses locais foram construídos casebres e palhoças sem nenhum tipo
de infraestrutura de saneamento e, por isso mesmo, eram vistos como uma constante ameaça de infecções e
moléstias, as quais poderiam ser transmitidas às populações da parte baixa da cidade." PALACIOS, Wanessa
Doellinger C. A expansão dos espaços periféricos em Vitória durante o processo de urbanização em Vitória
(1889-1930). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito
Santo, Vitória, 2007. p. 166.
640
Ibid., p. 18-19.
239
Wanessa Doellinger demonstra, dessa forma, como as contradições sociais se acentuaram nas
primeiras décadas do século XX no Espírito Santo e, consequentemente, como a pobreza e a
falta de habitações populares não só criaram periferias como também, seguindo às concepções
de saúde da época, o sujeito pobre fosse associado à insalubridade e ao perigo social.
A desconstrução de modelos de narrativas históricas anteriores fica ainda mais evidente quando
avançamos no tempo e avaliamos as mudanças historiográficas em torno da temática do
desenvolvimento econômico local a partir das décadas de 1960 e 1970. Como observamos
anteriormente, tanto na definição das narrativas históricas da superação do atraso como na
produção da “memória do desenvolvimento”, esse período tornou-se paradigmático na forma
de se compreender e narrar o passado do Espírito Santo. Esse marco histórico passa também
por revisões críticas e releituras que redimensionam o valor atribuído a determinados eventos e
personagens históricos que são avaliados, principalmente, em função da crítica realizada ao
641
PALACIOS, Wanessa Doellinger C. A expansão dos espaços periféricos em Vitória durante o processo de
urbanização em Vitória (1889-1930). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007. p. 173.
240
Em relação à industrialização como o caminho a ser seguido pelo Espírito Santo, Diones
Ribeiro642 considera que o que foi estabelecido com os Grandes Projetos foi uma perspectiva
conservadora de desenvolvimento. Segundo ele, o desenvolvimentismo foi adotado como
projeto a ser seguido pelas elites locais como meio de se queimar etapas de desenvolvimento
capitalista objetivando maximizar as forças produtivas locais e elaborar um forte parque
industrial para superar o que era considerado atraso econômico associado ao setor agrário-
exportador.643 Foi esse o modelo criticado pelo autor. A industrialização implementada foi a da
tecnocracia que assumiu a condução do Espírito Santo após 1964, o que ele denominou de
“burguesia de Estado”:
Esta burguesia de Estado, como bem conceitua Caio Prado Júnior, se uniu a partir do
aparelho de Estado, para promover o desenvolvimento econômico, tendo destaque as
ações de Eliezer Batista, Carlos Monteiro Lindemberg, Asdrúbal Soares, José Buaiz,
Jones dos Santos Neves, Américo Buaiz, Arthur Gehardt etc [...]. Ou seja, eram
pessoas que utilizavam a máquina estatal em nome de um projeto de Espírito Santo
via industrialização e modernização estrutural. 644
O perfil da modernização, segundo ele, concretizou-se na década de 1970 com a criação dos
grandes projetos de Impacto, o que determinou o alinhamento com o projeto dos militares assim
como suas implicações:
642
RIBEIRO, Diones A. Uma perspectiva conservadora do desenvolvimento econômico capixaba no pós 1964: o
Governo Arthur Gehardt e os Grandes Projetos de Impacto (1971-1975). Revista Ágora. Vitória, n. 20, pp. 127-
150, 2014.
643
Ibid., p. 129-132.
644
Ibid., p. 132.
241
Diones Ribeiro questiona um ponto central das narrativas históricas da superação do atraso. Sua
crítica a esse modelo é direcionada para o fato de que os investimentos realizados pelo Estado,
por meio de órgãos como a CODEC (Conselho de Desenvolvimento do Espírito Santo) e o
BANDES (Banco de Desenvolvimento Econômico e Social do Espírito Santo), não colocaram
a indústria local no patamar de outros estados como Rio de Janeiro e São Paulo, pois, para o
autor, empreendimentos como o da Companhia Vale do Rio Doce, representavam um
“desenvolvimento econômico pensado para o estado [que] visava adequar a economia local aos
ditames do capitalismo transnacional, sem que as arestas ligadas ao subdesenvolvimento
fossem rompidas."646 O que implicou na caracterização que ele fez de um governo identificado
com a “superação do atraso”:
Mesmo que o governo de Arthur Carlos Gehardt Santos tenha sido um marco na
questão do planejamento e que os Grandes Projetos de Impacto tenha permitido a
inserção do Espírito Santo no cenário capitalista internacional, tal perspectiva de
crescimento econômico reforçou o papel complementar do Estado na esfera capitalista
internacional, ao transferir uma tecnologia poupadora de mão-de-obra e dotá-lo de um
parque industrial fornecedor de matérias-primas e insumos a serem utilizados pelos
grandes conglomerados internacionais. 647
Observamos, portanto, que Diones Ribeiro questiona o valor dado a esse período e seus
principais atores políticos como marcos da “superação do atraso” presente nos discursos
políticos sobre o desenvolvimento local. Em relação aos aspectos políticos desse contexto, a
tese de Ueber Oliveira648 nos apresenta a questão da relação entre o projeto de industrialização
645
RIBEIRO, Diones A. Uma perspectiva conservadora do desenvolvimento econômico capixaba no pós 1964: o
Governo Arthur Gehardt e os Grandes Projetos de Impacto (1971-1975). Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p.
141.
646
Ibid., p. 146.
647
I bid., p. 148.
648
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013; Complementada pelo artigo: OLIVEIRA, Ueber.
Regime militar, elites regionais e a confluência de agendas desenvolvimentistas: a ascensão e o Governo de Arthur
Carlos Gehardt no Espírito Santo (1971-1975). DIMENSÕES. Vitória, n. 30, pp. 385-421, 2013.
242
e o jogo político local em termos de legitimidade e permanência de uma parcela da elite política
local no poder e na condução do desenvolvimento econômico do Espírito Santo. Seu foco são
as disputas políticas locais e, em especial, a análise de como um determinado grupo conduziu
o Diretório Regional da Arena e viabilizou, de forma seguida, os governos de Christiano Dias
Lopes Filho, Arthur Carlos Gehardt e Élcio Álvares, entre 1967 e 1979, consolidando a
implantação dos Grandes Projetos Industriais no Estado.
Ueber Oliveira nos remete a um aspecto importante quando se trata desse período que é a análise
dessa relação entre elite política local e o governo dos militares. A exaltação de determinados
fatos e personagens históricos associados ao desenvolvimento econômico das décadas de 1960-
1970, tanto nos discursos políticos como na historiografia, na maioria das vezes, não retratam
essa relação estabelecida com o Regime Militar no que tange a possibilidade de legitimação de
um projeto. O autor, ainda que se concentre nas disputas políticas locais, evidencia que a
plataforma de mudanças estruturais ocorridas no Espírito Santo, conduzida por esses
governantes, foram possíveis pelo alinhamento com os militares, com o modos operandi, com
sua forma de governo. Segundo ele, existiu um comprometimento dos segmentos de poder em
diferentes esferas que garantiram a perpetuação política de atores políticos com esse
alinhamento que garantiam a consolidação do regime ditatorial a nível estadual e municipal,
possibilitando a confluência de interesses de parte da elite local e os militares.649
É nessa perspectiva, por exemplo, que Ueber Oliveira compreende a chegada de Christiano
Dias Lopes ao governo, pois sua trajetória evidenciava uma correspondência com as propostas
modernizantes que se consolidavam no Espírito Santo. Como evidenciou Diones Ribeiro, a
tecnocracia conduziria o processo de industrialização e Ueber Oliveira evidencia como se
estabeleceu a ocupação de um espaço de poder que garantia a legitimidade política dentro do
restrito espaço de atuação. Um consenso em torno do projeto de industrialização que garantiu
não só o governo de Christiano Dias Lopes como a perpetuação dessa tecnocracia no poder. 650
649
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p. 385-390.
650
Segundo o autor: "Tal consenso pôde ser evidenciado em diversos pronunciamentos feitos por lideranças dos
mais diversos agrupamentos políticos do Estado que, indistintamente, pertencentes ao antigo PSD e aos grupos
que lhe faziam oposição, não questionavam a necessidade de se buscar a diversificação da economia capixaba por
meio da industrialização, ante a grave crise do café. [...] Por esse ângulo, para empreender o seu plano de governo,
que vinha ao encontro das novas demandas, e apesar de ser uma gestão inserida no contexto de um regime
autoritário, era necessário ocupar o quanto possível os espaços de poder, inclusive em termos de base de apoio no
Legislativo local – especialmente quando levamos em consideração as realidades regionais – notadamente durante
o tempo em que o mesmo permaneceu funcionando e sem grandes interferências." Ibid., p. 158.
243
É nesse sentido que ele avalia a chegada de Arthur Gerhardt ao poder, substituindo Dias Lopes,
garantindo a continuidade desse processo, inclusive, intensificando-o.651 Em artigo no qual dá
sequência à essa reflexão, Ueber Oliveira confirma a tese do alinhamento652 de Gerhardt e do
lugar que ele representava:
[...] além da Companhia Vale do Rio Doce, com a qual Arthur Carlos possuía fortes
vínculos, outro organismo que teve papel fundamental na indicação do nome de
Gerhardt Santos para a governadoria biônica em 1970/1971, foi a Findes. A entidade
havia sido importantíssima na formulação e execução do programa da gestão Dias
Lopes e, com o tempo, adquiriu importância nas arenas decisórias diversas, em
detrimento dos demais grupos de pressão, o que culminou na implantação dos Grandes
Projetos de Impacto.653
Ao analisar, portanto, o perfil desses governantes, Ueber Oliveira define que existiu uma
“Plataforma Ideal” que garantiu a implementação de um projeto local alinhado aos militares. 654
Dessa forma, o que surge na narrativa histórica da superação do atraso como resultado de um
esforço das elites políticas locais em transformar a estrutura econômica do Espírito Santo é
redimensionado por meio de uma avaliação desse processo em termos de disputas políticas e
651
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p. 234-240. Segundo ele: "Durante o governo Arthur
Gerhardt Santos, foi gestada uma das principais transformações pelas quais passaria o Espírito Santo nos anos
posteriores. Mudou-se - radical e definitivamente - a natureza do espaço econômico capixaba: se até o inicio da
década de 70, o lócus da acumulação capitalista concentrada se centrou nas atividades tradicionais, liderados pelo
capital local, sem nenhum rompimento profundo com a atividade cafeeira - monocultura de exportação -, a partir
do Governo Gerhardt dos Santos, passaria o Estado a ser o locais da ampliação, acumulação e reprodução do
grande capital, com a lógica própria e distinta da que a economia capixaba havia experimentado em sua trajetória
desenvolvimentista." Ibid., p. 241.
652
Alinhamento para além de um modelo econômico, mas também de projeto autoritário: “Nota-se na exposição,
que o então Governador Dias Lopes considerava aquele momento como a consolidação do regime instaurado em
1964. Curiosamente, não menciona, em nenhum momento, naquilo que chamou de hiato ou caos revolucionário,
as cassações de mandatos, as perseguições a grupos políticos e sociais, o fechamento do Congresso e da
Assembleia Legislativa, as torturas, que naquele momento já estavam sendo bastante combatidas. Importante
salientar, além disso, que essa indiferença em relação às ações autoritárias e de exceção por parte do regime não é
demonstrada no fragmento, apesar de o chefe da Polícia Civil do Espírito Santo e, portanto, responsável por grande
parte das prisões e torturas no Estado, ter sido nada menos que o próprio irmão do Governador, o Sr. José Dias
Lopes. OLIVEIRA, Ueber. Regime militar, elites regionais e a confluência de agendas desenvolvimentistas: a
ascensão e o Governo de Arthur Carlos Gehardt no Espírito Santo (1971-1975). Dimensões. Vitória, n. 30, 2013,
p. 388; Sobre as limitações do regime democrático: "Sobre as medidas do Regime que contrariavam os princípios
próprios do sistema democrático, o Governador Dias Lopes é ainda mais enfático ao justificar as medidas de
exceção empreendidas, demonstrando alinhamento absoluto em relação ao Governo Federal." Ibid., p. 390.
653
Ibid., p. 403.
654
Sobre o conceito de Plataforma Ideal: "[...] um projeto de desenvolvimento que fosse capaz de prospectar
vantagens junto ás esferas nacionais e internacionais, no sentido de recuperar a economia capixaba e, por outro,
dar saltos qualitativos em termos desenvolvimentistas. Foi nesse momento de industrialização, via instalação dos
chamados Grandes Projetos de Impacto, que ocorreu a confluência histórica entre os projetos de desenvolvimento
do Espírito Santo e dos governos militares. Nesse sentido, ficou evidenciado que houve uma movimentação
deliberada, por parte da parcela urbano-industrial das elites regionais, na intenção de adequar e fazer confluir os
respectivos projetos desenvolvimentistas." OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do
estado do Espírito Santo no contexto do regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA
e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p. 319.
244
De acordo com Luiz Cláudio Ribeiro, o sistema público de energia elétrica compôs o cenário
de busca pela dinamização da economia local para além da produção cafeeira. No entanto,
diferentemente da perspectiva das narrativas históricas da superação do atraso, o autor não
observa as mudanças no setor elétrico local limitado à condição de elemento constitutivo das
mudanças locais que viabilizaram o salto qualitativo infraestrutural do Espírito Santo que
permitiu sua inserção no cenário nacional. Ele problematiza esse processo de alinhamento,
atribuindo outro sentido que não o da "superação". Ainda que reconheça a importância desse
setor para a efetivação da industrialização, analisa como o modelo de modernização econômica
implantado no Estado impactou o sistema público de energia elétrica. Ao analisar a fusão que
ocorreu em 1968 entre a Escelsa e a CCBFE, argumenta que ela foi resultado de um processo
de articulações engendradas na sociedade brasileira com o projeto dos militares. Considera que
o setor energético no Espírito Santo já estava em reestruturação desde a década de 1950, porém,
a partir do Regime Militar esse setor foi incorporado ao projeto do governo nacional.656 Assim,
a integração do Espírito Santo à economia nacional é entendida sob a perspectiva de que o
Estado atendeu a determinados interesses político-econômicos na montagem do complexo
industrial-portuário, e que o sistema elétrico local passou fazer parte “de um projeto geopolítico
mais amplo, articulando as regiões sudeste e centro-oeste do Brasil aos compromissos e
interesses do Estado brasileiro para com a produção industrial destinada à exportação.”657
655
RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Excelsos destinos: história da energia elétrica no Espírito Santo (1896-1968).
Vitória: EDUFES, 2013.
656
Segundo o autor: "De fato, no Espírito Santo os projetos de maior envergadura dos governos militares foram os
do setor siderúrgico em todo o complexo da Companhia Ferro e Aço de Vitória e pela CVRD envolvendo desde
as atividades mineradoras, transporte ferroviário, beneficiamento dos minerais até as atividades portuárias e o
transporte naval. Porém, desde o final da década de 1950 esses projetos já se encontravam em vias de implantação,
razão pela qual era necessário reestruturar o setor elétrico capixaba. Por isso, os “policymakers” do regime
autoritário só fizeram aprofundar ainda mais o comprometimento do Estado, alterando sua magnitude e atraindo
novos investidores para o setor elétrico estatal, a exemplo do USAID e do EXIMBANK dos EUA. Isso foi
determinante na constituição da “nova” ESCELSA." RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Excelsos destinos: história da
energia elétrica no Espírito Santo (1896-1968). Vitória: EDUFES, 2013. p. 37-38.
657
Ibid., p. 23. O autor demonstra, portanto, que a política de eletrificação estadual foi redirecionada para atender
o parque industrial: "Nesta pesquisa foi verificado que a política de eletrificação dos governos estaduais - voltada
para o estabelecimento de um parque industrial de bens de consumo não-duráveis e para a agroindústria - foi
totalmente alterada para que o sistema ESCELSA se integrasse ao sistema ELETROBRÁS e fosse capacitado a
245
Dessa forma, na mesma orientação de Diones Ribeiro, focalizando o sistema elétrico Estadual,
Luiz Carlos Ribeiro evidencia como o projeto de industrialização conduzido por setores de uma
elite local inseriu o Espírito Santo na economia capitalista. O que era interpretado como
conquista pela narrativa histórica da superação do atraso e pelos discursos políticos da época,
inclusive, resgatados pela “memória do desenvolvimento”, são avaliados pelo autor sob outra
perspectiva:
transmitir a energia gerada por suas próprias usinas e pelas grandes plantas hidrelétricas em funcionamento, como
Furnas e CHESF, para os “grandes projetos” federais como a CVRD e a Cia. Ferro e Aço de Vitória." Ibid., p. 38.
658
RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Excelsos destinos: história da energia elétrica no Espírito Santo (1896-1968).
Vitória: EDUFES, 2013. p. 309.
659
Ibid., p. 310-311.
246
implantado, outras narrativas nos apresentam como esse processo gerou novas configurações
urbanas e relações de trabalho que afetaram a realidade social local desconsideradas na
perspectiva das narrativas da superação do atraso ou nas "memórias do desenvolvimento."
Identificamos que outros autores também questionam a forma como se estabeleceu o conjunto
de transformações econômicas e sociais ocorridas nas décadas de 1960 e 1970. A obra
Industrialização e empobrecimento urbano: o caso de Vitória (1950-1980),660 de Maria da
Penha Smarzaro Siqueira é a principal referência na historiografia local em relação à temática
da urbanização e sua relação com a industrialização.661 Nessa obra, o empobrecimento urbano
é a principal preocupação da autora. Tal como os autores acima, ela problematiza a
modernização econômica do Espírito Santo no período entre 1960-1980. Analisando a inserção
do Estado na lógica do desenvolvimento econômico de integração nacional conduzido pelos
militares, argumenta que esse modelo determinou um ritmo acelerado de crescimento e um
novo padrão de urbanização na região da Grande Vitória. Considerando que a expansão urbana
ocorreu via crescimento da periferia, a autora identifica que esse processo não foi acompanhado
de planejamento e investimentos estatais para atender as novas demandas, acarretando os
problemas de infraestrutura urbana, além das questões da moradia e do trabalho.
660
SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e empobrecimento urbano: o caso da Grande Vitória
(1950-1980). 2.ed. Vitória: Edição da Autora, 2010. Utilizamos a segunda edição. A primeira é do ano de 2001.
661
Sobre essa temática, ver também: SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Urbanização desigual e desigualdade
nacional: um descaminho no processo do desenvolvimento brasileiro. DIMENSÕES, vol. 25, pp. 215-234, 2010;
SIQUEIRA, M. da P. S. Crescimento urbano: modernização e fragmentação social. In: SIQUEIRA, Maria da
Penha Smarzaro (org.). Sociedade e Pobreza. Vitória: UFES/PPGHIS, 2006; e SIQUEIRA, Maria da Penha
Smararzo. A questão regional e a dinâmica econômica do Espírito Santo 1950-1960. In: Fênix - Revista de História
e Estudos Culturais, Outubro/ Novembro/ Dezembro de 2009 Vol. 6, Ano VI, nº 4. Disponível em:
www.revistafenix.pro.br. Acesso em 12/02/2011.
662
Segundo a autora: "[...] a inserção do Espírito Santo nesse processo de modernizador fortaleceu sua condição
periférica, através da especialização da região na produção de bens intermediários destinados ao mercado externo.
Nessa nova fase, estamos nos referindo principalmente ao setor de metalurgia e celulose. Naturalmente, essa
247
Os lucros gerados pelas empresas que se instalaram no Espírito Santo não seriam
reinvestidos no Estado, nem mesmo suas contribuições para a arrecadação estadual
e/ou municipais seriam significativas em decorrência das isenções fiscais que lhes
foram concedidas. [...] Esse fato é nitidamente observado no decorrer dos anos
posteriores, com o procedimento da política desenvolvimentista, sem seguir um plano
de ação integrada, visando a buscar a valorização dos aspectos sociais na mesma
intensidade do desenvolvimento econômico. Esse segmento foi perdendo importância
na medida em que o crescimento da produção industrial passa a ser o setor máximo
de prioridade nas diretrizes do Estado.663
Nesse sentido, Siqueira analisa o projeto desenvolvimentista local considerando que este
voltou-se para o crescimento econômico e teve como consequência um elevado grau de
desigualdade:
As mudanças estruturais, vistas pelo discurso das narrativas da superação do atraso como marco
da mudança de patamar do Espírito Santo, são interpretadas pela autora como marco das
distorções e problemas urbanos na Grande Vitória, entendidas como principais causas dos
desequilíbrios espaciais e a aceleração dos fluxos migratórios que se apresentaram, no decorrer
do processo, na desigualdade e pobreza da região.665 Segundo a autora, a partir da década de
1970 intensificou-se o inchamento da Grande Vitória observado na expansão da periferia e na
urbanização desordenada, com a formação de diversos bairros periféricos, a ocupação de
morros e mangues que evidenciavam a desigualdade e o empobrecimento da população.666
condição foi resultado das próprias características estruturais da região, integrada ao modelo de desenvolvimento
do capitalismo nacional, ou seja, a fragilidade econômica e política do Estado e sua localização geográfica, aliadas
às condições do processo desenvolvimentista que se implantava no país, reservaram ao Espírito Santo a posição
de alojador das grandes empresas, que utilizaram sua privilegiada área física para instalar unidades de bens
exportáveis." SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e empobrecimento urbano: o caso da
Grande Vitória (1950-1980). 2.ed. Vitória: Edição da Autora, 2010. p. 42.
663
Ibid., p. 42-43.
664
Ibid., p. 86.
665
Ibid., p. 67-88.
666
SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e empobrecimento urbano: o caso da Grande Vitória
(1950-1980). 2.ed. Vitória: Edição da Autora, 2010. p. 122-138.
248
Siqueira modifica o valor histórico dos eventos que marcaram o processo de industrialização,
passando a avaliá-los em função da dimensão social, das consequências negativas para grande
parte da sociedade espiritossantense. Seguindo essa proposta de análise, Rachel Fukuda analisa
o fenômeno da expansão urbana associada à industrialização a partir da década de 1960 tendo
como foco os impactos e transformações sociais na formação de bolsões de pobreza e bairros
estigmatizados nos municípios de Anchieta e Guarapari.667 Fenômeno compreendido como
resultado de um modelo de urbanização segregacionista, de fragmentação do espaço urbano
com consequências negativas para a população migrante.668
Considerando que tais cidades foram impactadas pela construção da Samarco Mineração e seu
porto a partir de 1977, assim como pelo crescimento de investimentos em outros segmentos
complementares aos dos Grandes Projetos, a autora considera que os relatos dos sujeitos que
participaram da formação dos bairros periféricos nesses municípios resgatam as motivações de
sua migração, identificadas no momento do estabelecimento das usinas e indústrias locais bem
como da construção civil em Guarapari que apareceu como atividade complementar no início
da década de 1980. Diante dessa constatação, ela analisa a industrialização como fator de
desterritorialização, pois determinou grande parte do fenômeno migratório, como por ela
observado, por exemplo, no caso do bairro Recanto do Sol em Anchieta:
Essa desterritorialização é verificada nos relatos dos moradores e dos gestores locais.
Através destes relatos fica evidenciado que a implantação da mineradora no município
contribuiu e tem contribuído com o crescimento populacional da região, sobretudo em
função da atração de um contingente contínuo de trabalhadores que migram a maior
parte vinda do interior da Bahia, em busca de oportunidades de emprego, um volume
maior de pessoas provenientes de áreas rurais e, portanto, com mão de obra de menor
qualificação profissional, nas indústrias. Recanto do Sol foi um bairro que surgiu no
contexto da industrialização. Sua população é majoritariamente composta por
667
Segundo Fukuda: "[...] não foi apenas a Grande Vitória que se expandiu ao longo das décadas de 60 e 70, o
mesmo fenômeno pode ser identificado nos municípios de Anchieta e Guarapari. Isso porque o modelo
desenvolvimentista adotado pelo Brasil, sua forma heterogênea, que teve como base a industrialização concentrada
em alguns centros urbanos, condicionou a distribuição espacial da população, impelindo o fluxo migratório do
rural para o urbano. E de modo geral, as transformações econômicas decorrentes desse crescimento acelerado e
concentrado, proporcionaram uma expansão urbana também acelerada e fragmentada." FUKUDA, Rachel
Franzan. Estado e políticas públicas: industrialização e fragmentação social – o caso de Anchieta e Guarapari
(1960 – 2004). Dissertação de Mestrado. 132f. Departamento de História - PPGHIS - UFES, Vitória, 2012. p. 86.
668
Diferentemente das narrativas da superação do atraso, a perspectiva de análise da autora envolve a relação entre
os homens e o espaço urbano: "Pode-se dizer que se trata, antes, de uma reflexão sobre as cidades e o impacto
que o processo de industrialização teve sobre elas, no momento de superação de um modelo agrário-exportador
para um modelo capitalista industrial. Mais ainda, trata-se da relação entre homens e a cidade e da forma de
ocupação do espaço urbano nesse processo de construção não apenas de novos horizontes políticos e econômicos,
ressaltados pelo contexto, mas, sobretudo, a construção de novas identidades banhadas num espírito de renovação
e de oportunidades." FUKUDA, Rachel Franzan. Estado e políticas públicas: industrialização e fragmentação
social – o caso de Anchieta e Guarapari (1960 – 2004). Dissertação de Mestrado. 132f. Departamento de História
- PPGHIS - UFES, Vitória, 2012. p. 31.
249
Foi essa mesma interpretação que a autora teve com o caso de Mãe-Bá, bairro também
pertencente a Anchieta, vizinho à Samarco Mineração, que sofreu grande impacto não só
populacional mas também no modo de vida, pois passou de uma vila de pescadores a bairro
vizinho à empresa e seu porto, recebendo migrantes e transformando o perfil da
localidade.670Em relação à Guarapari, Fukuda observa que a formação de bairros periféricos
sofreu tanto a influência do estabelecimento de empreendimentos industriais em Anchieta como
671
também de Vitória. Tendo como foco os sujeitos envolvidos nesse processo, Fukuda
argumenta que esse processo implicou na definição de estigmas, preconceitos e diferenciação
sofridos pelos moradores desses bairros, em especial, os originários da Bahia, trabalhadores da
construção civil em Guarapari. Uma realidade, segundo a autora, que acompanhou o
crescimento desses bairros:
669
FUKUDA, Rachel Franzan. Estado e políticas públicas: industrialização e fragmentação social – o caso de
Anchieta e Guarapari (1960 – 2004). Dissertação de Mestrado. 132f. Departamento de História - PPGHIS - UFES,
Vitória, 2012. p. 97.
670
Ibid., p. 98-100.
671
Argumenta Fukuda: "Apesar de não abrigar nenhuma indústria no município à época, estes Grandes Projetos
foram responsáveis em grande parte pelo crescimento populacional e, consequentemente, a urbanização de
Guarapari. A concentração econômica na Grande Vitória acarretou em oportunidades de desenvolvimento de
Guarapari por meio do desenvolvimento da atividade turística. Os Grandes Projetos apresentaram o Estado no
plano nacional possibilitou de certa forma a divulgação e o acesso à Guarapari, que já era conhecida pela área
monazítica. Além do aumento do fluxo de turistas que promoveu a valorização imobiliária e impulsionou a
construção de residências de veranistas, outro grande impulsionador na década de 1970, foi a construção da
Samarco Mineração SA. A empresa instalou-se no município de Anchieta, que fica a pouco mais de 20 km de
Guarapari. Fato este que promoveu a atração de um novo contingente populacional, não mais característico do
turismo de veraneio, e um novo perfil de migrantes, de bahianos que vieram para as obras da mineradora. Vale
destacar que a construção desordenada gerou uma serie de transtornos, tais como: expulsão, por meio da coerção
econômica, dos pescadores do centro da cidade, sendo empurrados para fora do centro, ocupando suas
intermediações; a decadência da região central e Praia do Morro, devido ao esgotamento de áreas para construção,
transferindo para a fronteira sul do município (considerada a área mais nobre), destacando o bairro Enseada Azul.
[...] Aliado a estes problemas, ressalta-se o processo de favelização iniciado na década de 1960, devido ao
crescimento desordenado. As periferias eram ocupadas por migrantes do sul da Bahia e norte de Minas Gerais. Os
principais fatores para migração foram: a expansão das atividades turísticas, já que muitas pessoas vinham do Sul
da Bahia e Norte de Minas Gerais fugindo da seca e pobreza, em busca de trabalho temporário, nas atividades
ligadas ao turismo; a expansão da atividade da construção civil, que no seu auge não possuía mão de obra suficiente
na região." Ibid., p. 05-106.
250
Percebemos, deste modo, que tanto Siqueira quanto Fukuda elaboraram narrativas históricas
que apresentam o reflexo da industrialização a partir das dificuldades da população. Ao
definirem o modelo de industrialização e sua urbanização desigual, atentaram para aqueles
sujeitos que sofreram os impactos da crescente desigualdade decorrente.
Essa situação de semicaos é agravada pelo fato de que 54% dos migrantes que
trabalham foram alocados no setor terciário contra apenas 14% na indústria.
Acrescente-se a isso que esses migrantes que constituem o setor informal representam
56,7% da força de trabalho informal desse setor. Ou seja, a grande parte dos
trabalhadores provenientes do campo e de outros Estados não encontrou condições
adequadas de subsistência na Região Metropolitana do Espírito Santo. 675
Danielle Fortunado também realiza uma leitura desse momento da história do Estado criticando
o modelo de industrialização local, que "não foi capaz de atender às necessidades sociais dos
672
FUKUDA, Rachel Franzan. Estado e políticas públicas: industrialização e fragmentação social – o caso de
Anchieta e Guarapari (1960 – 2004). Dissertação de Mestrado. 132f. Departamento de História - PPGHIS - UFES,
Vitória, 2012. p. 114-115.
673
FORTUNATO, Dannielle de Oliveira B. Uma análise do Espírito Santo à luz do processo de implantação dos
Grandes Projetos. DIMENSÕES. Vitória, n. 27, pp. 40-62, 2011.
674
Ibid., p. 59.
675
Ibid., p. 60.
251
Dessa forma, com José Teixeira de Oliveira e Neida Lúcia, os governos das décadas de 1960 e
1970 representavam o movimento de ruptura com o passado e indicavam o novo status do
Espírito Santo que realizar-se ia com a industrialização. Com Bittencourt, essa ruptura realizou-
se com o "segundo ciclo de desenvolvimento", que permitiu ao Estado atingir um novo lugar
no cenário nacional, figurando dentre os estados industrializados. O conjunto de trabalhos aqui
destacados, porém, rompe com os modelos de narrativas da superação do atraso e modificam o
valor histórico desses eventos. Abordagens que atestam a crítica realizada por André Ricardo
Pereira ao lugar que deveriam ocupar na história do Espírito Santo esse projeto de
desenvolvimento e as elites responsáveis por sua condução.
Em relação à escrita da história local, consideramos que desse conjunto de estudos resultou um
novo campo de representações acerca do passado do Espírito Santo a partir de novas orientações
que, segundo Rüsen, apresentam a experiência histórica a partir de problematizações e
relativizações dos modelos precedentes de interpretação histórica, combatendo seus
fundamentos. Um trabalho de ruptura, com capacidade de desestruturar narrativas mestras,
desconstruir conceitos-chave, categorias e símbolos, uma atividade "de negação histórica dos
modelos de interpretação e das formas de pensar consagrados culturalmente."677
676
FORTUNATO, Dannielle de Oliveira B. Uma análise do Espírito Santo à luz do processo de implantação dos
Grandes Projetos. DIMENSÕES. Vitória, n. 27, 2011, p. 60-61.
677
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed.
UnB, 2007. p. 56.
678
DOSSE, F. A história à prova do tempo. Da história em migalhas ao resgate dos sentidos. São Paulo: Unesp,
2001. p. 48.
252
de estudos que reavaliam o lugar do Espírito Santo naquele contexto, redefinindo a imagem do
"marasmo colonial" para a do dinamismo econômico dentro de suas diferentes possibilidades.
Observamos, também, os projetos de modernização da Primeira República e o da
industrialização, sobre os quais identificamos a desconstrução dos principais marcos históricos
da superação do atraso e seus personagens símbolos. Esses, por sua vez, passaram a ter seu
lugar e valor no passado redimensionados em função das novas perspectivas que passaram a
orientar as narrativas históricas, problematizantes, com questionamentos relevantes acerca dos
projetos de modernização e preocupadas, sobretudo, em evidenciar os impactos negativos dos
modelos de desenvolvimento adotados pelas elites locais na realidade da população
espiritossantense.
A análise em torno dessas novas narrativas históricas já nos permitiriam avaliar a desconstrução
das narrativas mestras e interpretações cristalizadas em torno do passado do Espírito Santo.
Porém, a nossa abordagem sobre o questionamento, o redimensionamento e a problematização
dos lugares e valores atribuídos a fatos, circunstâncias e sujeitos históricos não poderia ficar
alheia à reconstrução das narrativas acerca dos indígenas.679
679
Não estamos desconsiderando a importância de narrativas históricas que tenham outros sujeitos como objeto
de estudo. Nesse sentido, a historiografia que trata da escravidão no Espírito Santo, por exemplo, é significativa
no que tange ao campo da História Social, no resgate de atores históricos marginalizados que ajudam a
compreender não somente a sua diversidade de experiências em diferentes dinâmicas sociais, bem como no
entendimento da História Econômica e sua reflexão sobre o desenvolvimento econômico local. Nesta perspectiva,
dentre outras, temos: BASTOS, Fabíola Martins. Relações sociais, conflitos e espaços de sociabilidades: formas
de convívio no município de Vitória, 1850-1872. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009; CAMPOS, Adriana. Escravidão
e creolização: a capitania do Espírito Santo, 1790-1815. In: FRAGOSO, João. et al. (Org.). Nas rotas do império:
eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português, 2006; FARIA, Rosani Freitas. Criar laços para
viver juntos: a constituição de famílias entre os escravos de Vitória (1850-1871). 173f. Dissertação (Mestrado
em História). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013; FERREIRA, Heloisa Souza. Ardis da
sedução e estratégias de liberdade: escravos e senhores nos anúncios de jornais do Espírito Santo (1849-
1888). 275f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2012; MERLO,
Patrícia Maria Silva. O nó e o ninho: estudo sobre a família escrava em Vitória, Espírito Santo, 1800-1871. Tese
(Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2008; MERLO, Patrícia M. da Silva. Insurreições escravas em Vitória (ES), séc. XIX: Algumas
considerações. In: Dimensões - Revista de História da Ufes. Vitória: UFES/CCHN, nº. 16, 2004; RIBEIRO, Geisa
Lourenço. Enlacese desenlaces: família escrava e reprodução endógena no Espírito Santo (1790-1871). 200f.
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012; SOARES, Geraldo
Antônio. Os escravos como protagonistas de sua própria liberdade: lutas, famílias, religião e ascensão social. In:
CAMPOS, Adriana Pereira; SILVA, Gilvan da. (Orgs.). O sistema escravista lusobrasileiro e o cotidiano da
escravidão. Vitória: GM, 2011; SOARES, Geraldo Antonio. Cotidiano, sociabilidade e conflito em Vitória no
final do século XIX. Dimensões: revista de História da UFES, Vitória, n. 16, 2004; SOARES, Geraldo Antonio.
Luta pela liberdade e defesa da propriedade: registro de filhos de escravos em Vitória logo após a Lei do Ventre
Livre. Perspectiva Econômica, Vitória, v. 1, p. 153-173, 2000. Sobre os jesuítas, indicamos: CUNHA, Maria José
253
[...] reconhecer o papel fundamental exercido pelos índios nos dois primeiros séculos
da colonização, porque, dentre outras coisas, foi parte deles quem primeiro ensinou
aos portugueses como sobreviver na nova terra, inclusive plantando espécies
alimentares nativas do continente. [...] Não restam dúvidas, no entanto, de que os
estudos históricos das últimas décadas têm formulado novos problemas e, graças a
isso, incorporado setores sociais que, até então, podiam ser definidos como os sem-
história.680
Nesse sentido, a temática indígena relativa ao Espírito Santo tem sido objeto de diferentes
estudos que colaboram com a própria reescrita da história local, deslocando o sentido das
narrativas históricas para perspectivas que compreendem os diferentes grupos indígenas como
agentes históricos autônomos, agindo sempre em função de seus interesses, tanto reagindo ao
processo de colonização ou integrados à dinâmica social. O que, por sua vez, contribui para
eliminar imagens preconceituosas e estereotipadas que ainda se reproduzem na sociedade.681
dos Santos. Os jesuítas no Espírito Santo (1549-1759). Tese. (Doutorado em Teoria Jurídica e Relações
Internacionais). 331f. Instituto de Investigação e Formação Avançada da Universidade de Évora, Évora, 2015;
CONDE, Bruno Santos. Senhores de fé e de escravos: a escravidão nas fazendas jesuíticas do Espírito Santo. In:
Anais - 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil meridional. Universidade Federal de Curitiba, Curitiba,
2012. Disponível em:
http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=65&Itemid=62.
Acesso em: 9/06/2014. Na perspectiva da Micro História: PONTES, José Schayder. Como se tem escrito a
História do Espírito Santo. Cachoeiro de Itapemirim: Cachoeiro Cult, 2011.
680
MOREIRA, Vânia M. Losada. Os índios e a historiografia. DIMENSÕES, n.13, Vitória, 2001, p. 272.
681
De acordo com Antônio Carlos de Souza Lima, a questão indígena nos informa sobre esse desafio: "[...] há
estruturas cognitivas profunda e longamente inculcadas na maneira de pensar a história brasileira que orientam a
percepção, e permitem a reprodução, de um certo universo imaginário em que os indígenas permanecem como
povos ausentes, imutáveis, dotados de essências a-históricas e objeto de preconceito." LIMA, Antônio Carlos de
Souza. Um olhar sobre a presença das populações nativas na invenção do Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da;
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. In: A Temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1° e
2° graus. 4.ed. São Paulo: Global; Brasília: MEC/UNESCO, 2004. p. 408.
682
Para Maria Regina Almeida: "Além da presença estrangeira constante e ameaçadora, as guerras tinham como
alvo os índios hostis que, do século XVI ao XIX, desafiavam ou mesmo impediam a expansão das fronteiras
portuguesas. Foram eles os principais responsáveis pelo malogro da maioria das capitanias, no século XVI".
ALMEIDA, Maria Regina. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 45.
254
[...] a maior parte era refratária às tentativas de contato. Respondiam com guerra a
todas as invasões empreendidas em seus territórios tradicionais, fosse contra os
colonos tradicionais, fosse contra os colonos que tentavam escravizá-los ou contra os
missionários que tentavam reuni-los em aldeias para catequizá-los. Na selva, os
bandos botocudos pareciam quase imbatíveis. Os ataques surpresas a seus ranchos
eram praticamente impossíveis, porque se movimentavam na selva com enorme
rapidez, escapando aos intrusos e revidando os ataques em tocaias diurnas ou
noturnas. Por trezentos anos eles resistiram aos invasores brancos graças a essa tática
de guerrilha nas selvas. Ficaram famosos como grandes guerreiros, mas igualmente
como um dos maiores inimigos da sociedade luso-brasileira em expansão, ganhando
os epítetos de ferozes, tapuias e antropófagos. 683
Se Vânia Moreira destaca o caráter de resistência desses sujeitos históricos, Maria José dos
Santos Cunha, em artigo publicado na revista Ágora684, desconstrói também a noção de
"indígenas bons", ou como vimos, os interpretados como "colaboradores do progresso" pela
narrativa da superação do atraso. A autora analisa o caso do índio Maracaiaguaçu a partir de
sua chegada ao Espírito Santo. Reconhece que a imagem que prevaleceu e perdurou sobre ele
e seu grupo foi a dos colonizadores. Ao analisar a presença dos índios nas cartas jesuíticas, ela
argumenta:
Ao longo de cinco anos, desde a fuga do Rio de Janeiro à fixação junto dos
portugueses na vila de Vitória e às mudanças subsequentes, a aldeia dos Temiminós
do cacique Maracaiaguaçu permaneceu aldeia dos índios, do Gato, da vila, do outro
lado. Quando nela se construiu a igreja, simbolicamente, passou a integrar a esfera do
mundo cristão português, acabando por adotar o nome da padroeira: Nª. Sª da
Conceição. Em todo este tempo e trajetória o retrato físico quer do principal
Maracaiaguaçu, quer dos seus, é inexistente. Sem receber uma palavra de
individualização, não se conhecem nem os traços particulares, nem os étnicos. Nas
escritas de tipo edificante da Companhia de Jesus o relato das conquistas espirituais
sobrepõe-se aos demais. Vence o estereótipo do índio que, ao longo dos séculos, tem
sofrido sucessivas substituições.685
No entanto, Cunha avalia que o caso de Maracaiaguaçu deve ser compreendido de outra forma,
argumentando que suas experiências com os colonizadores evidenciam a complexidade dessa
relação. Analisando as cerimônias religiosas descritas pelos religiosos, a autora identifica uma
relação que envolvia os jesuítas, vistos como agentes colonizadores, e os indígenas, inseridos
numa relação de aliança necessária. Nessa perspectiva, ela destaca a estratégia usada pelos
evangelizadores:
683
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). Dimensões – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 109.
684
CUNHA, Maria José dos Santos. Maracaiaguaçu, O Gato Grande, aliás, Vasco Fernandes, ou o elogio do
discurso evangelizador. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p. 24-40.
685
Ibid., p. 38.
255
mescla dos ritos católicos e indígenas. Com efeito, todo o cerimonial conseguiu
despertar nos índios o efeito desejado e que era a passagem e incorporação para o
modo de vida dos cristãos. A nota distinta dos cânticos, pelo lado cristão, e do prantear
do defunto, ao modo deles, conseguiram agregar elementos tão inusitados quanto
apreciados nas culturas indígenas e promoveram a adesão ao discurso evangelizador.
Os efeitos da música, cânticos e gestos sobre os índios, recurso amplamente usado
pelos jesuítas na catequese, tem na descrição do funeral o primeiro registro
documentado desta prática no Espírito Santo. Para os jesuítas representava aquilo que
se considerava como o elo secreto entre as culturas indígenas e a portuguesa e
serviram como base para a expansão da evangelização, estratégia utilizada para fazer
avanço na ocidentalização dos Temiminós.686
Para selar o acordo simbolizado pelo ato religioso, mas de significado social e político,
Maracaiaguaçu, a mulher e os filhos receberiam respectivamente o nome de Vasco
Coutinho, o da mãe e dos filhos deste. Desta forma, a nobreza do governador da
capitania transferia-se, por parentesco político, para a nova nobreza da terra. Para os
portugueses, acostumados à cultura que valorizava as alianças através dos laços de
parentela, a solução era bem acolhida. Pelo lado da cultura indígena agraciar o chefe
português era bem visto, além de que, como guerreiro, receber um nome elevava o
seu estatuto perante a tribo. Para os jesuítas, era uma forma de conferir através do
batismo um nome pela via da paz e da fé que abraçavam, sem que houvesse
necessidade de recorrer à morte de outro guerreiro.687
Nesse sentido, observamos que a perspectiva do colonizador não pode ser estabelecida como a
imagem acerca dos indígenas. Como exemplo, destacamos sua avaliação acerca da reação dos
índios da tribo de Maracaiguaçu a uma prática religiosa cristã:
O artigo desta autora nos remete, assim, à complexidade das relações estabelecidas pelos
indígenas no seio da sociedade colonizadora no Espírito Santo. O caso de Maracaiguaçu
686
CUNHA, Maria José dos Santos. Maracaiaguaçu, O Gato Grande, aliás, Vasco Fernandes, ou o elogio do
discurso evangelizador. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p.33.
687
Ibid., p. 33-34.
688
Ibid., p. 35.
256
As descrições idealizadas dos indígenas feitas por Auguste François Biard são,
sobretudo, em relação aos índios não civilizados. Essa dualidade entre índio bom e
índio mau está presente na literatura de viagem que vem sendo produzida desde o
descobrimento do Brasil. Assim, o índio era descrito, por um lado, como violento,
cruel, cheio de vícios, mentiroso e, por outro, havia o reconhecimento da inteligência
e nobreza de outro índio, ou seja, o bom selvagem.693
A autora ressalta, principalmente, que essas imagens foram elaboradas a partir de uma noção
etnocêntrica, próprias do período e dos viajantes europeus. Sua abordagem, além de identificar
a construção da imagem preconceituosa dos indígenas colabora, também, com o modo de
compreender essas narrativas. Por exemplo, ao analisar um cortejo religioso descrito pelo autor
689
Sobre essa relação, Maria Regina de Almeida analisa a origem e o significado dessa aliança: "Antes da conquista
da Guanabara, esses índios aparecem na documentação como índios do Gato ou Maracajá que, liderados por
Maracaiaguaçu ou o Gato Grande, estavam em guerra com os Tamoios. Em 1555, sentindo-se ameaçados pelos
inimigos, pediram e obtiveram dos portugueses auxílio para se aldearem na capitania do Espírito Santo. Formaram
uma populosa aldeia que, sob a administração dos jesuítas, tornou-se baluarte de defesa da região. Passaram, então,
a aparecer nos documentos como temiminós. Anos mais tarde, não seria difícil aos portugueses obter apoio de
grande parte desses índios, então liderados por Arariboia, para voltar às terras de origem e dar combate aos tamoios
e franceses.[...] Essa aliança entre os temiminós e os portugueses expressa a mútua dependência entre os grupos
envolvidos e os diferentes interesses que os motivaram ao acordo, cada qual relacionado à dinâmica de suas
perspectivas organizações sociais. Se os portugueses viam a conquista da Guanabara como possibilidade de
estender a administração lusa nas terras da América, para os índios chamados temiminós ela devia significar a
grande oportunidade de regressar às suas terras e combater os inimigos. ALMEIDA, Maria Regina. Os índios na
história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 59.
690
SARNAGLIA, Marcela. Viajantes, natureza e índios: a província do Espírito Santo no relato de Auguste
François Biard (1858-1859). Dissertação de Mestrado. 166f. Programa de Pós-Graduação em História - PPGHIS-
Ufes, Vitória, 2013.
691
A autora define sua perspectiva de análise sobre a referida obra: "Os discursos criam uma ideia de verdade e,
no caso dos relatos de viajantes, os discursos elaborados em relação ao Brasil, na Europa, acerca de sua natureza,
suas riquezas e seus habitantes, muitas vezes se cristalizaram e se perpetuaram ao longo dos séculos. Ibid., p. 22.
692
Ibid., p. 26.
693
Ibid., p. 141.
257
no qual participavam os indígenas, ela chama a atenção para as duas formas de percepção em
torno dessa situação:
Depois de ir para uma outra casa junto com o cortejo, Biard viu dois personagens
importantes aparecerem no local. O primeiro era um índio que vestia uma longa blusa
branca e que segurava com uma das mãos um guarda-chuva vermelho, enfeitado com
flores amarelas e, com a outra, carregava uma caixa com São Benedito. Essa caixa
também era enfeitada com flores e se destinava a receber as oferendas. O segundo
personagem vestia um traje militar de cor azul-celeste, com adornos vermelhos, suas
dragonas de ouro caíam para trás e, em sua cabeça, alteava-se um chapéu de pontas
assombroso em comprimento e altura. Esse segundo personagem era o capitão, que
dançava durante toda a cerimônia. Os músicos, em duas fileiras, acompanhavam o
santo, sendo seguidos pelas velhas devotas, que dançavam o cancan164; 'O grupo
passava em frente da cabana de cada convidado do banquete; o capitão, sempre
dançando, entrava e dava a volta pelo interior da casa [...]. Finalmente, entraram na
igreja, enfeitada com palmeiras e, depois de retirarem as oferendas e fecharem a caixa
com São Benedito, todos foram embora.' [...] Os índios, povos que historicamente
foram subjugados pelos brancos, mesmo não podendo lutar contra a dominação, em
graus variáveis, determinaram aquilo que absorviam e utilizavam na sua própria
cultura.[...]. No caso do interior do Espírito Santo, os índios, ao se identificarem com
São Benedito, assimilaram a devoção a ele, em uma expressão religiosa que mesclou
rituais indígenas e católicos, transformando em única essa festa e a experiência de
participar da mesma.694
A autora destaca a perspectiva eurocêntrica acerca do indígena e o limite dessa visão. Contribui,
portanto, para uma interpretação do passado local que contemple a complexidade das relações
estabelecidas pelos indígenas em contextos que não lhes eram favoráveis. Dominação e
resistência, aliança e conformidade constituíam as relações por eles estabelecidas.
Conseguimos demonstrar, até o momento, como esses estudos representam a mudança na forma
de compreensão desses grupos como atores históricos. Modificações que, de acordo com
Regina Almeida, deslocam o lugar dos índios:
de vítimas passivas ou selvagens rebeldes que, uma vez vencidos, não movimentavam
a história, diferentes grupos étnicos da América passam, a partir dessas pesquisas, a
figurar como agentes sociais que, diante da violência, não se limitaram ao imobilismo
ou à rebeldia. Impulsionados por interesses próprios e visando à sobrevivência diante
das mais variadas situações caóticas e desestruturadoras, movimentaram-se em
diferentes direções, buscando múltiplas estratégias que incluíam rearticulações
culturais e identitárias continuamente transformadas na interação com outros grupos
étnicos e sociais.695
Com a mesma orientação apontada por Almeida, identificamos, também, outro conjunto de
trabalhos que correspondem a narrativas críticas que questionam o sentido atribuído às
694
SARNAGLIA, Marcela. Viajantes, natureza e índios: a província do Espírito Santo no relato de Auguste
François Biard (1858-1859). Dissertação de Mestrado. 166f. Programa de Pós-Graduação em História - PPGHIS-
Ufes, Vitória, 2013.
695
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Apresentação. Tempo, Niterói, v. 12, n. 23, 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413 -77042007000200001&lng=en&nrm=iso. Acesso
em, 25 de Fevereiro de 2012.
258
experiências dos grupos indígenas no passado local. Agrupamos esses estudos porque possuem
como recorte temporal o início do século dezenove, e décadas subsequentes. Apontam para o
momento em que os indígenas são eliminados das narrativas históricas e substituídos pelos
imigrantes no sentido da superação do atraso atribuído à trajetória do Espírito Santo. Assim,
ressaltamos que esses estudos invertem o significado de determinados marcos históricos. Se os
acontecimentos eram interpretados como expansão da sociedade colonial (e imperial) no século
XIX e avaliados como expressão do desenvolvimento do Espírito Santo, passam a ser
entendidos como um avanço e ampliação dos combates às comunidades indígenas, que, por sua
vez, emergem nas narrativas recorrendo a diferentes estratégias de ação.
Segundo Vânia Moreira, as primeiras décadas do século XIX assinalam um alargamento das
fronteiras da sociedade. Assim, a resistência indígena fazia parte de uma reação dos grupos
indígenas e sua atuação evidenciava tal relação696. Para a autora:
696
Sobre essa exclusão dos indígenas, Vânia Moreira questiona: “A pouca atenção dada à questão indígena já é
uma lacuna, um desafio e um claro indício da existência de sérios vícios teóricos e metodológicos presentes na
maneira corrente de escrever-se a história do processo de ocupação e colonização territorial. Se isso está correto,
como creio que está, o que dizer, então, das inúmeras situações em que a presença indígena foi completamente
ignorada, a ponto de fazer-nos crer que eles nunca existiram nas terras depois ocupadas e repovoadas?”
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Índios no Brasil: marginalização social e exclusão historiográfica. Diálogos
Latinoamericanos, n. 3, 2001. p. 88.
697
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). Dimensões – Revista de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 116.
259
Além de fundamentar o discurso político, essa perspectiva de leitura do passado que recorre à
noção de vazio demográfico silencia o conflito que marcou essa relação entre os indígenas e a
sociedade dominante:
Não é absolutamente por acaso, ademais, que o revisionismo presente nos mais
recentes estudos sobre as situações de fronteira esteja destacando principalmente o
caráter conflituoso do processo. A ideia de uma fronteira em expansão desvinculada
dos conflitos étnicos e sociais presentes nas zonas de fronteira transforma a descrição
do fenômeno em algo bastante ideológico, justamente porque transforma o
movimento de expansão em algo realizado sobre uma espécie de vácuo social,
desinteressando-se e até mesmo ignorando os sérios conflitos que tiveram como palco
precisamente as áreas de expansão que progressivamente foram incorporadas à
sociedade dominante.699
Além de chamar a atenção para a questão indígena nesse processo de desenvolvimento, a autora
ressalta a resistência a esse processo. O reconhecimento do conflito que se configurou por meio
de ataques não exclui interpretações que revelam outras formas de relação estabelecidas pelos
indígenas. Pois, como demonstram os autores, além da guerra, a expansão da sociedade luso-
brasileira orientou-se também pelo projeto de civilização dos índios que envolvia contatos
amistosos a fim de evitar conflitos e garantir, consequentemente, o acesso à terra pelos colonos.
Tarcísio Silva, em artigo acadêmico, nos ajuda a compreender o significado de "civilizar os
indígenas" no contexto de criação dos quartéis e aldeamentos no século XIX na região do Rio
Doce:
“[...] a intenção era ‘civilizar’ e trazer os índios botocudos, para o ‘doce julgo da lei’
portuguesa, mesmo que, com isso, uma guerra precisasse ser tratava e, pelo raciocínio
da Coroa, vencida. Civilizar, nesse sentido, seria fazer com que os índios aceitassem
as formas de convívio social e as instituições da sociedade portuguesa. Ora, fazer com
que as comunidades indígenas do sertão das gerais, acostumadas ao vagar livre e a
tirar seu sustento do que as matas e rios da região pudessem lhes prover, aceitassem
viver em aldeamentos restritos e dentro de parâmetros de sociabilidade bem diversos
dos seus, não seria, obviamente, uma tarefa das mais fáceis de serem executadas.” 700
698
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES, Vitória, n. 9, 2001, p. 104.
699
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Os índios e a historiografia. DIMENSÕES, Vitória, n. 13, 2011, p. 272.
700
SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta Militar do Rio Doce: a posse da terra como um dos objetivos de conquista.
In: Dimensões – Revista do departamento de História da UFES, n. 18. Vitória: Centro de Ciências Humanas e
Naturais – UFES, 2006. p. 302. Ver também: SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos
índios e navegação do Rio Doce: fronteiras, apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). 179f. Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006.
260
Os autores, portanto, trazem em suas narrativas a problemática indígena que foi silenciada pelas
narrativas históricas da superação do atraso nas quais prevaleceu os aspectos e personagens
históricos associados ao progresso do Espírito Santo. Vânia Moreira evidencia, ainda, que esse
processo de expropriação dos índios foi marcado por sua continuidade. Em artigo acadêmico703,
a autora analisa os impactos da Lei de Terras de 1850 sobre os direitos territoriais indígenas,
considerando o processo de expulsão das populações de índios Tupiniquins, Puris e Botocudos
no Espírito Santo.
Para a autora a questão indígena sempre esteve vinculada à questão da terra. Porém, segundo
ela, a Lei de Terras de 1850 não considerava a posse de terras indígenas que não
correspondessem ao modelo estabelecido pela nova lei, o que possibilitou que elas fossem alvo
de invasões e desapropriações validadas por administradores locais. A autora questiona esse
processo:
Como poderia uma terra indígena estar abandonada e ter, ao mesmo tempo, índios
vivendo nela? Pior ainda, com base em qual justificativa legal estava-se interditando
aos descendentes dos índios que receberam sesmarias ou terras de aldeia o direito de
legitimarem as posses herdadas? As decisões oficiais não enfrentaram e, menos ainda,
não elucidaram tais questões, mas permitiram a desativação de grande número de
aldeias, viabilizando a abertura das terras indígenas à venda e ao aforamento. Aos
remanescentes indígenas restava somente a quantidade de terra que alguma autoridade
local julgasse suficiente para eles. Mas tais índios tinham que ser identificados como
“índios” para usufruírem o derradeiro direito de posse e propriedade. [...] A nova
conjuntura criada pela Lei de Terras, seu regulamento e leis complementares foram
particularmente nocivos ao patrimônio territorial indígena, não apenas porque as
decisões oficiais foram arbitrárias e contrárias aos interesses indígenas, mas também
porque a nova legislação foi incapaz de coibir as invasões criminosas que continuaram
a ocorrer ao arrepio da nova legislação. A continuidade de formação de posses após a
promulgação da Lei de Terras era indiscutivelmente um ato criminoso, pois só a
701
SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação do Rio Doce: fronteiras,
apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). 179f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2006. p. 311-317.
702
Ibid., p. 315.
703
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n. 43, pp. 153-169, 2002.
261
Nesse sentido, Vânia Moreira estabelece um outro marco histórico para o Espírito Santo, porém,
sob a perspectiva da condição indígena a partir de 1850:
Essa outra visão sobre o passado local não se resume à compreensão da condição indígena a
partir do avanço da sociedade luso-brasileira. Os autores, ao analisarem esse conflito existente,
compreendem essas relações orientados pela noção de zonas de contato. Ao recorrerem a novos
referenciais teóricos e metodológicos, principalmente no diálogo com a antropologia, essas
narrativas conseguem resgatar personagens marginalizados das narrativas construídas sob o
paradigma do desenvolvimento.706Enquanto essas narrativas desconsideravam a presença dos
índios no século XIX, de forma contrária, atentando para esse processo histórico de avanço
sobre as populações indígenas, os autores introduzem a imagem do índio integrado e autônomo,
com capacidade de articular seus interesses e propósitos, mesmo submetidos a essa condição
que marcou sua trajetória.
704
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n. 43, 2002, p. 164-165.
705
Ibid., p. 166-167.
706
Segundo Vânia Moreira: "[...] a interpretação da história brasileira e, em particular, para a história da
colonização do médio e baixo rio Doce, nos séculos XIX e XX. No que tange à história indígena, os conceitos de
fronteira, frente pioneira ou frente de expansão da sociedade nacional podem ser proveitosamente desdobrados em
outro, o de zona de contato, para justamente referir-se aos locais, dentro das frentes de expansão, onde se tornaram
particularmente intensivos o convívio e o conflito entre índios e agentes da sociedade dominante. E, por esse
caminho, talvez nossa historiografia resgate parte da história anônima de numerosos índios, caboclos, pés
descalços e pequenos posseiros sem-história." MOREIRA, Vânia Maria Losada. Os índios e a historiografia.
Dimensões – Revista de História da UFES, n. 13, Vitória, 2011, p. 278.
707
Os artigos são: MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e
transculturações nas fronteiras do Espírito Santo (1798-1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11,
2011. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014.; MOREIRA, Vânia Maria
262
indígena no século XIX na região da Vila de Nova Almeida. A história do Espírito Santo é
analisada a partir da experiência indígena nas "zonas de contato"708 e sua complexidade.709
Compreender o passado indígena, nessa perspectiva, permite tanto a descaracterização do
discurso do "vazio demográfico" bem como a importância dessas populações indígenas em suas
interações sociais. Segundo Vânia Moreira:
A autora segue essas considerações para analisar a vila de Nova Almeida nas primeiras décadas
do século XIX. A define como uma zona de contato, de fronteira que revela a importância dos
indígenas na dinâmica social da região.711 Existia uma preocupação das autoridades em relação
Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-
1845). In: Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012.
708
A mudança de perspectiva possibilita a emergência de outra história: "Na Corografia Brasílica, obra
primeiramente publicada em 1817,Manuel Aires de Casal explicava o 'atrasamento' da capitania pela 'falta de
numerosos colonos, que se façam respeitáveis aos bárbaros'. Adotava o ponto de vista dos donatários e dos
moradores luso-brasileiros, que culpavam frequentemente os índios 'bárbaros' dos sertões, ou 'tapuias', pelo 'atraso'
da capitania. Mas mudando a perspectiva e observando a capitania como uma zona de contato, afigura-se outra
história bem diferente, na qual não cabem muito confortavelmente as imagens de 'atraso'. MOREIRA, Vânia Maria
Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e transculturações nas fronteiras do Espírito Santo (1798-
1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11, 2011. Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014. p. 3
709
A autora sintetiza o artigo dessa forma: "Este artigo visa refletir sobre a moldagem da vida nas zonas de contato,
elegendo como ponto de reflexão o trânsito da população indígena entre os sertões do Espírito Santo e as zonas
policiadas da província, no período de 1798 a 1840. Esse movimento não obedeceu um padrão único, pois variou
dependendo das comunidades e dos indivíduos, em um gradiente que poderia ser temporário, cíclico ou definitivo,
entre os dois lados de uma fronteira porosa e sempre em movimento." Ibid., p. 3.
710
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e transculturações nas fronteiras
do Espírito Santo (1798-1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11, 2011. Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014. p. 4-5.
711
Argumenta a autora: "A explicação para a relativa estabilidade populacional da vila de Nova Almeida e de seus
povoados anexos, Aldeia Velha e Campo do Riacho, deve ser procurada no quadro de tensões e conflitos que
marcavam as fronteiras entre as zonas policiadas e não policiadas do Espírito Santo. Pois, para garantir a segurança
do Espírito Santo, interessava ao governo local a manutenção de uma vila forte e bem organizada naquela fronteira
e zona de contato com os índios “bravos” do sertão. Outro motivo importante para a conservação da vila como um
lugar fundamentalmente indígena era o interesse pela mão-de-obra dos índios, utilizada tanto pelos governos locais
como pelo governo imperial." MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e
263
Do ponto de vista dos índios, existia certa margem de manobra e de negociação com
as autoridades governativas, que, afinal, precisavam deles tanto para o serviço público
(construção civil, serviço de correio, navegação etc.) como para a defesa militar das
vilas e dos povoados. Assim, a despeito das relações muito desiguais e assimétricas
de poder entre eles, de um lado, e, de outro, os governantes e os moradores locais mais
abastados, esses índios defendiam seus próprios interesses nas tramas que
compunham as relações de poder na região. E, se tomarmos como parâmetro as
petições e reclamações que eles próprios dirigiram aos governantes, as duas maiores
preocupações dos índios foram defender a liberdade dos filhos – sequestrados para
serem tutelados por terceiros, de acordo com os instrumentos da legislação
orfanológica –, e manter a posse e a propriedade das terras que ocupavam, contra as
tentativas do esbulho de certos moradores. Não é demais frisar, além disso, que, em
termos indígenas, a tutela orfanológica correspondia à perda da autonomia e da
liberdade conquistadas, pois os índios passavam a ter “dono”, “amo” ou “patrão” em
uma espécie de situação bastante próxima ao cativeiro disfarçado. Mas tão importante
quanto esses requerimentos indígenas, foram as respostas que receberam, pois, não
foram poucas as vezes que os governantes mandaram devolver a eles suas terras e
seus filhos. Por exemplo, em 23 de agosto de 1838, o presidente João Lopes da Silva
informava ao juiz de paz que havia recebido o requerimento do índio José Bernardino
e pedia explicações circunstanciadas sobre o assunto, advertindo-o que “não pode e
nem deve tirar os indígenas do poder dos pais ou daqueles que os tenham criado para
dá-los a terceira pessoa, não havendo melhoramento de condição, como no caso
presente."713
Nova Almeida, nessa perspectiva, é retratada pela autora como o espaço por excelência do
movimento dinâmico social e cultural no qual estavam inseridos grupos indígenas:
transculturações nas fronteiras do Espírito Santo (1798-1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11,
2011. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014. p. 8.
712
De acordo com Vânia Moreira: "[...] na correspondência oficial entre os presidentes da província do Espírito
Santo e as autoridades da vila de Nova Almeida, como os juízes ordinários, o presidente da Câmara, os vereadores
ou o capitão-mor, mantida no período de 1827 a 1853. Nesta série documental, identifiquei um universo de 85
documentos nos quais os índios foram citados textualmente e o assunto mais em voga nesta amostragem estava,
de algum modo, vinculado ao trabalho que eles deveriam prestar ao “Império e à Nação”, perfazendo 58,8% do
total. Lembrando que, em uma mesma correspondência, pode-se encontrar um ou mais assuntos relativos aos
índios, nas 50 correspondências classificadas como pertencendo ao assunto “Trabalho”, foram identificadas 58
ocorrências ligadas ao tema. A solicitação de índios para a prestação de serviço ao Estado ou para render outros
índios que já estavam trabalhando para o “Império e a Nação” é, em disparado, a principal ocorrência (70,7%). Os
tipos de trabalho realizados pelos índios e os lugares onde tais serviços eram feitos são bastante reveladores,
ademais, da função social desses índios no âmbito regional. Em um universo de 50 ocorrências sobre a prestação
de serviço para o Estado, 22% usam as expressões genéricas “serviço nacional e imperial” e 10%, “serviço público”
ou serviço em “obras públicas”. O restante das solicitações de índios era para trabalhar na Diretoria do Rio Doce
(16%), no Forte São João e Passagens (12%), no Escaler do Governo e Passagens (10%), no corte de madeira e na
construção naval (8%) e no combate de quilombos ou na captura de escravos fugitivos (6%)." Ibid., p. 8.
713
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e transculturações nas fronteiras
do Espírito Santo (1798-1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11, 2011. Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014. p. 9.
264
No começo dos oitocentos, portanto, Nova Almeida era uma vila mestiça, do ponto
de vista cultural, agregando pessoas, valores e práticas dos campos ameríndio e afro-
luso-brasileiro. Mas, [...] os índios conseguiram dar, naquele espaço físico, político e
social, uma forma indígena ao processo de mestiçagem.[...] Os índios ocupavam, além
disso, os principais cargos e lugares da governança da vila. Na visitação de 1812, por
exemplo, d. Coutinho ponderou a existência de mais de 3 mil índios na vila de Nova
Almeida, sem contar os brancos e pretos, afirmando ainda que a vila possuía uma
Câmara de “índios puros”, isto é, todos os vereadores e juízes eram índios. [...] Mas
apesar das mestiçagens (biológicas e culturais), não há porque deixar de ler e
interpretar tais vilas e instituições híbridas também como lugares profundamente
indígenas, em um processo contínuo de apropriação, de ressignificação e de
transformação, pois, construídos, vividos, negociados e transmitidos a partir do
encontro intercultural entre afro-luso-brasileiros e índios. O modus vivendi de Nova
Almeida atesta isso, aliás, com bastante eloquência.714
Essa imagem das populações indígenas pode ser observada ainda em artigo da autora sobre a
Carta Régia de 1798715 e sua implicação no sistema de autogoverno716 dos índios nas vilas e
lugares indígenas no Espírito Santo, que vigorou entre 1798 e 1845. Segundo a autora, por mais
que esse sistema tivesse o objetivo primeiro de controlar os indígenas e aproveitá-los como mão
de obra para o Estado, serviu como margem de negociação dessas populações. 717 Exemplar,
714
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e transculturações nas fronteiras
do Espírito Santo (1798-1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11, 2011. Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014. p. 10.
715
Segundo Vânia Moreira: "o fato é que a Carta Régia de 12 de maio de 1798 suspendeu o sistema de Diretório
e inaugurou um período bastante atípico na história dos índios e do indigenismo no Brasil, pois os índios das vilas
e povoados ficaram legalmente livres de qualquer tutela sobre suas pessoas." MOREIRA, Vânia Maria Losada.
Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). In:
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012. p. 228.
716
Sobre o propósito do autogoverno e a margem de ação dos índios: Índios que tinham “dono” conviviam lado a
lado, no Espírito Santo, com outros que eram considerados livres e que viviam com suas famílias e grupos nos
povoados e vilas da província, de forma muito mais autônoma e de acordo com os princípios do autogoverno.
Entenda-se por autogoverno dos índios a extinção da tutela dos diretores, pela Carta Régia de 12 de maio de 1798,
e a subordinação deles ao governo da Câmara e às demais instituições das vilas e lugares, como, por exemplo, as
ordenanças. O sistema de autogoverno dos índios visava, em primeiro lugar, garantir os interesses do Estado,
presentes, de forma bem resumida, na ideia de transformar os índios em “súditos úteis”, por meio do trabalho
prestado ao Estado, aos particulares, a si mesmos e às suas famílias. Trata-se também, como se verá mais adiante,
de um sistema político que, no Espírito Santo, abriu espaços para o exercício da política indígena, expressa na
defesa de sua liberdade e territorialidade contra os outros moradores da província que, na primeira metade do
século XIX, cobiçavam suas terras e muito frequentemente também seu trabalho." MOREIRA, Vânia Maria
Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-
1845). In: Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012. p. 230.
717
Nas povoações de maioria indígena do Espírito Santo, como Benevente (antiga missão de Reritiba) e Nova
Almeida (antiga missão dos Reis Magos), o funcionamento do autogoverno e do sistema de trabalho a ele associado
não pode ser satisfatoriamente explicado pelos artifícios da violência, do engodo ou de uma suposta passividade
dos índios, apesar desses argumentos terem sido apontados por alguns dos contemporâneos para explicar a
participação dos índios em uma ordem social bastante opressora. Afinal, a subalternidade social dos índios não é
condição suficiente para negar a eles a condição de atores de sua própria história, por mais que essa história seja a
história do oprimido. Também não é condição suficiente para caracterizar o autogoverno nas vilas e lugares
indígenas apenas como um simulacro, supondo que eles, no exercício dos poderes municipais (vereadores e juízes)
e de outros cargos da República (capitães-mores de ordenança, etc.), eram apenas iludidos pelas pompas dos cargos
civis e militares do mundo colonial e pós colonial Ao contrário, pesquisas recentes têm demonstrado que, desde a
vigência do Diretório, criou-se ou fortaleceu-se uma elite indígena no interior da lógica da governança colonial
que não apenas respondia aos interesses da política indigenista luso-brasileira, mas também às expectativas dos
índios e da política indígena. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios:
265
Para a autora, os documentos revelam uma "relativa eficácia política do sistema do autogoverno
para os índios, pois os presidentes da província tenderam a apoiar os índios em suas
representações e queixas."719
Essa visão sobre um lugar do indígena no passado local como sujeito ativo e reivindicativo com
estratégias de ação em função da dinâmica social à qual estavam submetidos é observado
também por Francielli Marinato em seu estudo sobre as relações de contato entre a sociedade
colonizadora e os indígenas a partir da instalação da Diretoria de Índios do Rio Doce (DRD),
em 1824.720
Segundo a autora, a DRD possuía, dentre seus objetivos, o propósito de reunir os Botocudos
em aldeamentos. Tal como Vânia Moreira atribuiu uma margem de ação dos índios diante da
Carta Régia de 1798 e o sistema de autogoverno, Marinato ressalta que os indígenas tiveram
capacidade de se organizar em torno dos propósitos da política de aldeamentos, resistindo por
meio da negociação e estabelecendo relações nas quais apresentavam suas demandas e
interesses naquele contexto. Para ela:
liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). In: Revista de História, São Paulo, n. 166, p.
223-243, jan./jun. 2012. p. 235.
718
Ibid., p. 236-237.
719
Ibid., p. 237.
720
MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os Botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce
(Espírito Santo, 1824-1845). 2007. Dissertação (Mestrado em História). PPGHIS, Centro de Ciências Humanas e
Naturais, UFES. Vitória. 2007.
266
Tais narrativas ganham importância não só por avançarem cronologicamente, mas, sobretudo,
porque atendem a necessidade de contrapor-se à cristalização da noção de que os povos
indígenas pertencem ao passado. Com isso, permitem compreendermos a continuidade da luta
desses povos ao longo do tempo no Espírito Santo.722 Selecionamos, nesse ponto, os estudos de
Klítia Loureiro e Kalna Teao,723 pois atendem a esse propósito de resgatar a presença dos
indígenas e produzir referências que modifiquem a percepção acerca desses grupos.724
721
MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os Botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce
(Espírito Santo, 1824-1845). 2007. Dissertação (Mestrado em História). PPGHIS, Centro de Ciências Humanas e
Naturais, UFES. Vitória. 2007, p. 145.
722
Sobre os índios no Espírito Santo, indicamos as contribuições trazidas por Celeste Ciccarone no campo da
Antropologia. Ver: CICCARONE, Celeste (org.). Memória viva Guarani: revelações sobre a terra. Comunidade
Tekoa Porã. Vitória: UFES, 1996; CICCARONE, Celeste. Drama e sensibilidade: migração, xamanismo e
mulheres Mbya Guarani. 2001. 352 f. Tese. (Doutorado em Ciências Sociais). Programa de Estudos de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, Pontifícia Católica de São Paulo, 2001;
723
TEAO, Kalna Mareto; LOUREIRO, Klítia. História dos índios do Espírito Santo. Vitória: Ed. do autor, 2009.
No que tange às reflexões de Klítia, recorremos, principalmente, à sua dissertação de mestrado: LOUREIRO,
Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios Tupinikin e
Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História. Programa de
Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2006.
724
A produção histórica, nesse caso, seguiu também essa orientação: "Após a realização de pesquisas na área de
História e de Educação indígena, foi possível perceber a pouca existência de materiais didáticos referentes aos
índios do Espírito Santo. Devido à carência de materiais específicos sobre a temática, muitos professores
encontram dificuldades para ensinar sobre os povos indígenas.[...] Em geral, os livros didáticos existentes sobre a
história local no Espírito Santo e a história nacional tratam o índio de forma preconceituosa e equivocada." TEAO,
Kalna; LOUREIRO, Klítia. op. cit., p. 29. De acordo com Vânia Moreira, existe uma reivindicação nesse sentido
proveniente do próprio movimento indígena. A autora chama a atenção para o documento de reivindicação dos
indígenas elaborado pela “Conferencia dos Povos Indígenas” reunidos em Cabrália no ano 2000 em contestação à
comemoração dos 500 anos do Brasil. Nessa disputa acerca do lugar reservado aos índios na sociedade brasileira,
a história deveria ser revisitada: A solicitação de que a “verdadeira história” seja ensinada indica que para os índios
reunidos em Cabrália a história ministrada nas escolas brasileiras não é verdadeira porque, entre outras razões, a
presença indígena tem sido sistematicamente ignorada. Os povos indígenas estão, de fato, sub-representados, ou
até mesmo não representados na historiografia, tanto aquela dirigida à formação básica dos cidadãos brasileiros
ensinada nas redes de ensino médio e fundamental, quanto nas mais acadêmicas, ministrada pelas universidades
267
Klítia Loureiro, em sua dissertação de mestrado, questiona o significado de um dos pilares das
narrativas da superação do atraso: o projeto de industrialização das décadas de 1960-1970.
Analisando a implantação do Complexo Aracruz celulose S/A em 1972, considera que o Estado
estabeleceu um discurso de modernização e progresso com os investimentos advindos dos
Grandes Projetos Industriais e que esse processo desencadeou um período de prejuízos e lutas
das comunidades indígenas da região de Aracruz, os Tupinikin e os Guarani Mbya.
A autora reflete justamente sobre os diferentes lados em conflito nesse processo. Por um lado,
Klítia Loureiro expôs "o indígena em seu resistente esforço para não sucumbir ao incivilizado
processo civilizatório",726 que se viu obrigado a "viver ilhado dentro do seu território" pois as
"extensas áreas de matas e florestas naturais foram sendo derrubadas e substituídas pela
monocultura do eucalipto, que se estendia, segundo relatos, até o quintal de suas casas, deixando
nacionais. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Índios no Brasil: marginalização social e exclusão historiográfica.
Diálogos Latinoamericanos, n. 3, 2001. p. 87.
725
LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios
Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História.
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006. p. 169.
726
LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios
Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História.
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006. p. 171.
268
É exatamente essa luta indígena o principal foco da abordagem de Kalna Teao. Ela também
define a industrialização como o marco negativo da história do Espírito Santo para os indígenas
e evidencia, assim, a continuidade da batalha dessas populações por reconhecimento de direitos:
Podemos dividir a história da luta pela terra indígena no Espírito Santo em três fases.
A primeira, ocorrida de 1967, ano da implantação da Aracruz Celulose no Estado, ao
de 1983, ano de homologação das terras indígenas. A segunda fase inicia-se em 1993,
quando os tupinikim e Guarani reivindicaram a ampliação da área indígena, e dura até
1998, com a ampliação do território indígena de Caieiras Velhas. E a terceira fase,
que correspondente à época atual, iniciou-se em fevereiro de 2005, através da
assembleia dos dois povos indígenas para lutar pela ampliação de suas terras e romper
o Termo de Ajustamento de Conduta. 729
Segundo Kalna, esse é um processo de luta que ainda continua. Apesar de ser um fenômeno
contemporâneo, as ações indígenas, tal como no passado, como observamos, têm consolidado
um conjunto de estratégias de resistência dessa população.730 Todavia, ressalta a autora, um dos
727
LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios
Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História.
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006. p. 93.
728
Ibid., p. 166.
729
TEAO, Kalna Mareto. Os Guarani Mbya. In: TEAO, Kalna Mareto; LOUREIRO, Klítia. História dos índios
do Espírito Santo. Vitória: Ed. do autor, 2009. p. 103. Sobre o termo de ajustamento, a autora define o seguinte:
"O Termo de Ajustamento de Conduta foi assinado pelos índios Tupinikim e Guarani com a empresa Aracruz
Celulose em 02 de abril de 1998. Neste documento, a empresa cederia uma quantia de dez milhões e duzentos e
sessenta mil reais às comunidades indígenas num prazo de vinte anos. Além disso, a empresa permitiria que os
índios explorassem os eucaliptos já plantados. Ainda, a empresa seria responsável pelo pagamento das contas de
água e energia elétrica até o valor de sete mil e novecentos e oitenta reais ao ano, além de subsidiar projetos
voltados à agricultura." Ibid., p. 103.
730
Para Kalna: "Uma das estratégias utilizadas pelos índios do Espírito Santo na luta pela terra foi a ocupação de
forma pacífica de 300 índios, incluindo mulheres e crianças à sede da empresa Aracruz Celulose, em 06 de outubro
de 2005. Tal medida, adotada por eles, consistia em chamar a atenção para a causa indígena de defesa da terra e
exigir providências, como maior agilidade da Funai, em terminar os grupos de estudos e publicar o relatório final."
269
Os conflitos pela posse da terra são noticiados através da mídia a partir de um discurso
unívoco, desconsiderando os povos indígenas como sujeitos e protagonistas da
história, desqualificando-os e marginalizando-os ao denominá-los frequentemente
como aculturados, estrangeiros e não índios. Ao utilizar esse discurso, o Estado, os
meios de comunicação, as empresas e os fazendeiros, dentre outros, evocam a defesa
da propriedade privada da terra, negando aos povos indígenas suas reivindicações,
considerando-os como entraves ao processo de modernização e ao progresso. Nesse
sentido, resgatar as visões dos povos indígenas significa buscar o entendimento de
uma realidade muito mais complexa, que ultrapassa apenas o embate entre progresso
material e atraso econômico, mas permite compreender as diversas concepções de
mundo e práticas políticas em confronto, que se refletem cotidianamente na difusão
de preconceitos legitimadores por meio de ações econômicas e governistas.731
Klítia Loureiro e Kalna Teao demonstram em suas narrativas que o problema indígena persiste:
o da sua condição social e a imagem construída sobre eles. A definição de um lugar de atraso e
sua condição social excludente pertencem ao mesmo processo. Assim, justifica-se a
importância dessas novas narrativas. De acordo com Vânia Moreira, a submissão social pela
qual se encontram as comunidades indígenas no Brasil se vincula, de alguma forma, com sua
ausência também na historiografia. Isso é característico do que ela denominou de “ciclo
vicioso”:
A superação reivindicada por Vânia Moreira, portanto, não segue a lógica da "superação do
atraso". Pelo contrário, é outra. É possível atestarmos que na configuração dessas novas
narrativas históricas se revelam um novo lugar para os indígenas na história do Espírito Santo.
Refletindo sobre o papel da historiografia, Dosse argumenta:
TEAO, Kalna Mareto. Os Guarani Mbya. In: TEAO, Kalna Mareto; LOUREIRO, Klítia. História dos índios do
Espírito Santo. Vitória: Ed. do autor, 2009. p. 112.
731
Ibid., 103-104.
732
MOREIRA, Vânia Losada. Os índios e a historiografia. DIMENSÕES – Revista de História da UFES. Vitória,
n. 13, 2001. p. 269.
270
Dessa forma, produzem deslocamentos significativos no lugar ocupado por esses personagens.
Abandonando a lógica "índios bons" versus "índios maus", as narrativas tiram essas populações
da categoria de inimigos selvagens e obstáculos do progresso e os reconhecem como sujeitos
inseridos e integrados em dinâmicas sociais desfavoráveis, porém capazes de agir e reagir de
acordo com suas possibilidades. Retiram os indígenas, também, da condição anacrônica e
idealizada de pertencimento a um período do passado local marcado pelo atraso, o colonial.
Permitem sua emergência na história local justamente em momentos em que as narrativas da
superação do atraso os eliminam e apagam. De uma ausência sugerida pelos "vazios
demográficos" ou, ainda, de uma exclusão diante da exaltação dos marcos históricos e dos
condutores do progresso do Espírito Santo, as populações indígenas são representadas nessas
narrativas em sua diversidade étnica, como sujeitos ativos e, sobretudo, em suas circunstâncias
de participação na sociedade, em suas estratégias de ação, que correspondem às suas lutas
históricas por conquistas e reconhecimento de direitos.
733
DOSSE, F. A história à prova do tempo. Da história em migalhas ao resgate dos sentidos. São Paulo: Unesp,
2001.
271
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando construímos o desafio historiográfico do Espírito Santo a proposta foi a de realizar uma
história da historiografia numa perspectiva crítica, apresentando uma análise reflexiva sobre a
escrita da história do Espírito Santo. O que orientou nosso estudo, desde as problematizações
até o momento das considerações finais, foi a necessidade de agir em função de um determinado
lugar atribuído ao historiador que não deve ser o do poder. Apropriando-nos de Edward Said,
temos:
Esse posicionamento serve à escrita da história, e à do Espírito Santo. Acreditamos que não
pode ser papel do trabalho intelectual criar consensos nem servir a poderes instituídos, devendo
empenhar seu senso crítico na rejeição de verdades convencionalmente estabelecidas, evitando
um modo passivo de posicionamento. Buscamos uma oposição ao que foi instituído como
narrativas oficiais do Espírito Santo, apresentando questões, estabelecendo distinções e dando
destaque à recuperação da memória do que é marginalizado ou esquecido na história
espiritossantense.735
Foi nessa acepção que analisamos não só o percurso das formas de narrar o Espírito Santo mas
identificamos as relações com o poder político e distinguimos as narrativas. Observamos que a
historiografia, como sugeriu Rüsen, permite configurar os materiais que compõem a memória
construindo uma inteligibilidade ao passado. Com isso, avaliamos as diferentes formatações
historiográficas dotadas de significação de acordo com as lembranças que mobilizaram, pelo
734
SAID, Edward W. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo: Cia das Letras,
2005. p. 102-103.
735
Ibid., p. 35-45.
272
modo como atribuíram sentido ao passado e suas funções no contexto cultural e político que
constituíram.
Isso, por sua vez, foi possível a partir da compreensão da diferença temporal entre experiência
e expectativa. Observamos, com Koselleck, que o presente estabelece relações desiguais entre
o passado e o futuro. Tanto a narrativa do progressivo desenvolvimento como a da formação
econômica do Espírito Santo apresentaram a tensão entre o presente (e suas expectativas) com
o passado e estabeleceram o horizonte do Estado como sendo o da superação. Assim, essas
apresentaram uma relação com o passado a partir do distanciamento, estabelecido em função
do que o desenvolvimento econômico indicava como uma nova condição do Estado. Tal
distanciamento em relação a um passado considerado como de atraso caracterizou-se de duas
formas: como ruptura, no sentido de superar uma condição prejudicial pela inserção em novo
patamar de desenvolvimento, como observamos na interpretação dessas narrativas sobre o
significado da industrialização das décadas de 1960-1970; e, ainda, na perspectiva da
exemplaridade. Tanto em relação à definição de uma trajetória de superação em função dos
obstáculos geradores do atraso, como no resgate de exemplos históricos, de modelos a serem
copiados no presente como símbolos do progresso.
273
Nesse ponto, alcançamos a relação entre discurso político e historiográfico presente em nosso
desafio. De acordo com Rüsen:
Não é possível pensar nenhum tipo de dominação cuja legitimação não recorra aos
saberes históricos. Os participantes do poder e da dominação estipulam suas relações
mútuas ao longo do tempo com argumentos históricos, e as internalizam sob a forma de
identidade histórica.736
736
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora UNB, 2010. p. 127.
274
Realizamos, como uma das propostas desse desafio, uma história da historiografia
comprometida com o entendimento da relação entre o saber histórico e o exercício do poder. 737
Constatamos que os projetos de desenvolvimento trouxeram consigo versões do passado
espiritossantense que serviram à formulação de uma experiência pretérita satisfatória em
determinados contextos, na construção de modelos, na definição de lugares atribuídos a
períodos, acontecimentos e sujeitos valorizados (ou não) em função do discurso da superação
do atraso. Por isso, as classificamos como discursos fundadores, tanto pela definição de uma
discursividade sobre o Espírito Santo em forma de narrativa histórica, como pelo "foco da
história" estabelecido, que foi o do discurso oficial relativo ao desenvolvimento. Identificamos
um mecanismo de imposição de uma forma de compreender e narrar o Espírito Santo assim
como os usos políticos do passado, observados na forma como este foi apropriado,
principalmente, por Paulo Hartung na contemporaneidade.
Aqui, ressaltamos que o nosso desafio historiográfico do Espírito Santo e sua relevância não se
limitam ao alcance dessa tese. Pois, o que motivou a construção desse desafio ainda apresenta
questões as quais os historiadores não podem se eximir quando suscitados a desconstruir os
andaimes que sustentam determinados discursos políticos. Primeiramente, a conclusão desse
trabalho se dá durante a condução de um novo mandato de Paulo Hartung (2015-2018) cujo
discurso político inicial assentou-se sobre o seu lugar na história local, a produção de um
cenário de crise e necessidade de se encontrar o "rumo do desenvolvimento" do Espírito
737
FALCON, Francisco. História e poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.).
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2011.p. 61-65.
275
Santo.738 Soma-se a isso, a presença de intelectuais inseridos em seu governo que (re)produzem
o ideal da superação do atraso em seus trabalhos e se vinculam à produção da "memória do
desenvolvimento", tal como avaliamos.739
738
Disponível em: http://seculodiario.com.br/20660/8/ijo-espirito-santo-perdeu-o-rumo-do-crescimentoij-1.
Acesso em 20/07/2015; e: http://www.valor.com.br/politica/3841636/na-posse-hartung-diz-que-espirito-santo-
perdeu-rumo-nos-ultimos-anos. Acesso em 20/07/2015.
739
As pastas de Educação e a de Cultura foram ocupadas, respectivamente, por Haroldo Corrêa e João Gualberto.
740
Disponível em: http://seculodiario.com.br/25941/10/quartorze-dias-depois-samarcovale-tentara-conter-
chegada-da-onda-de-lama-na-foz-do-rio-doce. Acesso em: 19/11/2015.
276
Identificamos que a historiografia, a partir do início desse século, produziu revisões da história
do Espírito Santo que redimensionaram e modificaram o valor histórico atribuído a períodos,
acontecimentos e sujeitos históricos analisados sob o paradigma da superação do atraso. O
conjunto de trabalhos historiográficos que classificamos como narrativas críticas da história
do Espírito Santo permitiu, assim, avaliarmos seu significado a partir do duplo aspecto do
desafio historiográfico: o de desconstruir narrativas mestras e combater as interpretações do
passado que fundamentam o discurso político da superação do atraso.
No que diz respeito ao período colonial, por exemplo, a principal contribuição dessas narrativas
é a dessacralização do lugar que o atraso (e sua superação) possui na história do Espírito Santo.
Como observamos, o horizonte de interpretação do passado deixou de ser o da ruptura com a
experiência vivida, privilegiando a análise das condições de possibilidades, a historicidade dos
acontecimentos, atentando para diferentes condicionantes econômicas, circunstâncias políticas
e diferentes sujeitos que integraram a complexa dinâmica do Espírito Santo colonial. A
desmitificação do atraso, por sua vez, tem um significado importante nas disputas de
interpretação acerca do Espírito Santo e seu lugar, no presente e no passado: inviabiliza a
interpretação do sentido da superação atribuído ao passado local e desconstrói,
consequentemente, a própria lógica atraso/progresso, importantes na emergência de discursos
fundadores do Espírito Santo e seus usos políticos do passado.
O significado das narrativas críticas pode ser observado, ainda, na modificação do valor
histórico atribuído ao período republicano no Estado. Enquanto os projetos de modernização
do início do século XX e a industrialização das décadas de 1960-1970 estabeleceram o sentido
das narrativas históricas da superação do atraso ou são "celebrados" na atualidade pelas
"memórias do desenvolvimento", as narrativas críticas ressignificaram seu valor histórico em
função dos prejuízos e das consequências negativas que determinaram para a sociedade
espiritossantense ou ainda por atenderem aos interesses de determinados grupos sociais e
277
políticos locais em detrimento de ampla parcela da sociedade. Identificamos, assim, tanto nos
estudos que criticaram o modelo de desenvolvimento estabelecido no Estado como nos que
apresentaram as formas de interação e resistência dos grupos indígenas na longa duração, que
os autores colocaram em xeque o próprio sentido do desenvolvimento do Espírito Santo em
uma perspectiva histórica. O presente e seus desafios também convidam a essa forma de
questionamento.
O desafio historiográfico, portanto, não é tarefa fácil. Os aspectos que envolvem o discurso da
superação são atualizados e a apropriação de um determinado passado, como vimos, é
estrategicamente recorrente. Os discursos fundadores do Espírito Santo, tanto no discurso
político como nas narrativas históricas, criam dificuldades para se estabelecer "outras histórias"
que não correspondam à versão das elites e seus projetos de sociedade. No entanto, as narrativas
críticas, ao emergirem em oposição às narrativas mestras do Espírito Santo, não se limitam
apenas à mudança na produção historiográfica, mas representam, principalmente, o quanto as
narrativas históricas podem ser transgressoras em relação ao discurso oficial.741
A historiografia, segundo Rüsen, pode realizar uma catarse da memória, ou seja, é capaz de
mobilizar as lembranças da experiência temporal tramando as peças do passado rememorado
como fator de libertação na motivação para o agir.742 Nesse sentido, a produção do saber
histórico, incluindo a história da historiografia, viabiliza atos de libertação ou de superação com
importante valor para o exercício de crítica do conhecimento histórico, sobretudo, em relação
"ao ato de interrogar o passado, pluralizar seus sentidos e intervir no presente.743
Por isso, a partir das narrativas críticas da história do Espírito Santo e da própria perspectiva
crítica que assumimos nesse trabalho, apresentamos uma reflexão e apontamos a necessidade
da historiografia de superar uma visão do roteiro histórico do atraso, de se libertar de discursos
fundadores por meio da recusa em lhes conferir autoridade, e, principalmente, de renunciar em
ser produtora de uma memória coletiva convertida em propaganda e legitimação de governos e
741
Segundo o autor: "[...] na relação entre seus interesses e funções, os estudos históricos estão comprometidos
com um discurso político da memória coletiva. Ele torna a representação do passado uma parte da luta pelo poder
e reconhecimento. Aqui o pensamento histórico funciona como um meio necessário para a legitimação ou
deslegitimação de todas as formas de dominação e governo." RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões
relevantes de meta-história. In: História da Historiografia, n.2, 2009, p. 187.
742
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora UNB, 2010. p. 31-32.
743
NEVES, Lucia Maria Bastos P. [et al]. Apresentação. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das, et al.
Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. p. 8-9.
278
7. BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed.
Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo, Cortez, 2001.
ALMEIDA, Amylton de. Carlos Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES,
2010.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Apresentação. Tempo, Niterói, v. 12, n. 23, 2007.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413 -
77042007000200001&lng=en&nrm=iso.
ARAÚJO, George Fellipe Zeidan Vilela. Desafios ao fazer historiográfico contemporâneo. In:
Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs).
Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia –
O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. p. 1-
9. Disponível em: http://www.seminariodehistoria.ufop.br/ocs/anais/index.htm Acesso em
2014.
ATHAYDE, Antônio. Os três vultos notáveis da História Colonial do Brasil, com relação à
Capitania do Espírito Santo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo,
n. 8, Vitória, 1935.
BALLARINI, Helmo M. ; RIBEIRO Luiz Cláudio M. Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e
a economia de mercês. Revista Ágora. Vitória, n. 20, pp. 65-83, 2014.
BLANKE, Horst W. Para uma nova história da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. A
História Escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006.
CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo. Apresentação. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2011.
CONDE, Bruno Santos. Depois dos Jesuítas: a economia colonial do Espírito Santo (1750-
1800). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidades Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011.
CUNHA, Maria José dos Santos. Maracaiaguaçu, O Gato Grande, aliás, Vasco Fernandes, ou
o elogio do discurso evangelizador.Revista Ágora. Vitória, n. 20, pp. 24-40, 2014.
DERENZI, Luiz Serafim. Os italianos no Espírito Santo. Rio de Janeiro: Editora Artenova,
1974.
DIHEL, Astor A. A cultura historiográfica brasileira: década de 1930 aos anos 1970. Passo
Fundo: UPF Editora, 1999.
DOSSE, F. A história à prova do tempo. Da história em migalhas ao resgate dos sentidos. São
Paulo: Unesp, 2001.
FALCON, Francisco. História e poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo
(orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus,
2011.
HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
282
GODOY, João M. T. de. Alguns desafios dos estudos de historiografia. Projeto História, São
Paulo, n.41, 2010.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio
de Janeiro: PUC/Contraponto, 2006.
LEAL, João Eurípedes Franklin. Posfácio. História do Espírito Santo: uma reflexão, um
caminho. In: OLIVEIRA, José Teixeira. História do Estado do Espírito Santo.3.ed. Vitória:
APEES/SECULT, 2006.
LEITE, Juçara Luzia. Natureza, folclore e História: a obra de Maria Stella de Novaes e a
historiografia espiritossantense no século XX. Tese de Doutorado. 352 p. São Paulo: FFLCH/
USP, 2002.
_______. Construção identitária e livro didático regional de História: uma prática geracional de
escrita de si. In: OLIVEIRA, Margarida M. Dias de; STAMATTO, Maria Inês Sucupira (orgs).
O livro didático de história: políticas educacionais, pesquisas e ensino. Natal: Ed.UFRN,
2007.
283
LIMA, Antônio Carlos de Souza. Um olhar sobre a presença das populações nativas na
invenção do Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. In: A
Temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1° e 2° graus. 4.ed. São
Paulo: Global; Brasília: MEC/UNESCO, 2004.
_______. Teoria e história da historiografia. In: ______ (org.). A História Escrita: teoria e
história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006.
MORAES, Neida Lúcia Borges de. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971.
MOREIRA, Vânia Maria Lousada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e
chacinas no vale do rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista de História da UFES,
Vitória, n. 9, pp. 99-123, 2001.
284
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial
de 1850. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n. 43, pp. 153-169, 2002.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade,
territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). In: Revista de História, São Paulo, n.
166, p. 223-243, jan./jun. 2012.
NEVES, Luiz Guilherme dos Santos. O Capitão do Fim. Vitória: IHGES, 2001.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das, et al. Estudos de historiografia brasileira. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2011.
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito
Santo, 1964.
OLIVEIRA, José Teixeira. História do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975.
PACHECO, Renato. Eu vi o nascer o Brasil: a vida nos primeiros tempos do Brasil colonial.
4. ed. São Paulo: Moderna, 1997.
______. Entrando em campo para perder: a inserção do Espírito Santo no debate político
nacional. In: BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. (orgs.).
Espírito Santo: um painel da nossa história II. Vitória, ES: SECULT, 2012.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
PINTO, Milton José. Comunicação e Discurso. Introdução à análise de discurso. 2.ed. São
Paulo: Hacker Editores, 2002.
PIROLA, André Luiz Bis. O livro didático no Espírito Santo e o Espírito Santo no livro
didático: história e representações. 2008. 265f. Dissertação (Mestrado em
Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito
Santo. Vitória. 2008.
RIBEIRO, Diones Augusto. Busca à Primeira Grandeza : o Espírito Santo e o governo Moniz
Freire (1892 a 1896). 2008. 177f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós/Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008.
______. Modos de ver (1534-1643): o governo da capitania do Espírito Santo na sua primeira
centúria. In: CAMPOS, A. P. et al. Anais eletrônicos do III Congresso Internacional
Ufes/Université Paris-Est/Universidade do Minho: territórios, poderes, identidades
(Territoires, pouvoirs, identités). Vitória: GM Editora, 2011. pp. 1-15.
_______. Modos de ver (1534-1643): o governo da capitania do Espírito Santo na sua primeira
centúria. In: BITTENCOURT, Gabriel; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. (orgs.). Espírito Santo:
um painel da nossa história II. Vitória: Secult, 2012. pp. 1-19.
______. Excelsos destinos: história da energia elétrica no Espírito Santo (1896-1968). Vitória:
EDUFES, 2013.
ROCHA, Levy. Viagem de Pedro II ao Espírito Santo. 3. ed. Vitória: Imprensa Oficial, 2008.
_______. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico.
Brasília: Ed. UnB, 2007.
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. De volta ao passado com as lentes focadas no presente, In: SIMAN,
Lana Mara de Castro; FONSECA, Thaís Nívia de Lima (orgs.). Inaugurando a História e
construindo a nação. Discursos e imagens no ensino de História, Belo Horizonte, Autêntica,
2001.
SILVA, Marta Zorzal. Espírito Santo: Estado, interesse e poder. 1986. 798 f. Dissertação de
Mestrado (Mestrado em Administração Pública). Curso de Mestrado em Administração
Pública, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1986.
288
SILVA, Rogério Chaves da. Método e sentido: a pesquisa e a historiografia na teoria de Jörn
Rüsen. Fronteiras: revista Catarinense de História, n.17, pp. 33-55, Florianópolis, 2009.
SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta Militar do Rio Doce: a posse da terra como um dos objetivos
de conquista. In: DIMENSÕES – Revista do departamento de História da Ufes, Vitória, n. 18,
pp. 301-331, 2006.
SIMÕES, Roberto Garcia. Desenvolvimento econômico do Espírito Santo no século XX. In:
BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Espírito Santo: um painel da nossa história.
Vitória: Imprensa Oficial/ES, 2002.
TEAO, Kalna Mareto; LOUREIRO, Klítia. História dos índios do Espírito Santo. Vitória:
Ed. do autor, 2009.
VILLASCHI, Arlindo e SILVA FELIPE, Ednilson da. O global e o local: interações e conexões
no desenvolvimento do Estado do Espírito Santo — Anotações para o debate. In: SINAIS –
Revista Eletrônica - Ciências Sociais, Vitória, n.09, v.1, Junho. 2011. p. 188-223.
WETLER JUNIOR, Admir Clemente. Espírito Santo 2025: uma análise das implicações
econômico-sociais do novo ciclo previsto. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Economia, Porto Alegre, 2008.