Cab 4tese - 5877 - TESE - RAFAEL - CERQUEIRA PDF

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DAS
RELAÇÕES POLÍTICAS

RAFAEL CERQUEIRA DO NASCIMENTO

A NARRATIVA HISTÓRICA DA SUPERAÇÃO DO ATRASO:


UM DESAFIO HISTORIOGRÁFICO DO ESPÍRITO SANTO.

VITÓRIA
2016
1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DAS
RELAÇÕES POLÍTICAS

RAFAEL CERQUEIRA DO NASCIMENTO

A NARRATIVA HISTÓRICA DA SUPERAÇÃO DO ATRASO:


UM DESAFIO HISTORIOGRÁFICO DO ESPÍRITO SANTO.

Tese apresentada ao PPGHIS –


UFES como quesito parcial para a
obtenção de título de Doutor em
História.
Orientador: Prof. Dr. Antonio
Carlos Amador Gil.

VITÓRIA
2016
2
3

A NARRATIVA HISTÓRICA DA SUPERAÇÃO DO ATRASO: UM


DESAFIO HISTORIOGRÁFICO DO ESPÍRITO SANTO.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História - PPGHIS, da Universidade


Federal do Espírito Santo -UFES, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor
em História, na área de concentração História Social das Relações Políticas.

Aprovada em _____ de _________________ de 2016.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________________
Prof. Doutor Antonio Carlos Amador Gil
Universidade Federal do Espírito Santo - Orientador

_____________________________________________
Professora Doutora Maria Regina Celestino de Almeida
Universidade Federal Fluminense - Examinadora Externa

_____________________________________________
Professor Doutor André Ricardo Valle Vasco Pereira
Universidade Federal do Espírito Santo - Examinador Externo

_____________________________________________
Professora Doutora Maria da Penha Smarzaro Siqueira
Universidade Federal do Espírito Santo - Examinadora Interna

____________________________________________
Professor Doutor Ueber José de Oliveira
Universidade Federal do Espírito Santo - Examinador Interno
4

À minha avó Aidyr.


5

AGRADECIMENTOS

Externar os agradecimentos parece tarefa fácil. Porém, dedicar algumas palavras aos que
colaboraram direta ou indiretamente para a realização desse trabalho torna-se um momento
complexo pois envolve a limitação das páginas e o risco do esquecimento. Mas, por outro lado,
é o tempo do reconhecimento e da gratidão.

Ao meu orientador, Tom Gil, por aceitar a condução de um trabalho que foge à sua temática de
estudos. Suas leituras, discordâncias e apontamentos foram essenciais na construção da tese.
Mestrado e doutorado sob a sua orientação. Sendo assim, obrigado pela confiança, pelo
comprometimento e pela generosidade ao longo desse tempo.

Agradeço, ainda, ao meu coorientador, Luiz Cláudio Ribeiro, pelas sugestões de bibliografia e
indicações pontuais que permitiram a reflexão sobre a escrita da história do Espírito Santo.
Obrigado por me permitir adentrar nesse campo no qual tem se dedicado.

Meus agradecimentos se direcionam também às componentes da banca de qualificação. À


professora Juçara Luzia Leite pela crítica e indicações teórico-metodológicas e à professora
Marta Zorzal pelas sugestões para o entendimento do desenvolvimento econômico do Espírito
Santo.

Aos funcionários da Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações


Políticas - PPGHIS - UFES, obrigado pela atenção e dedicado trabalho.

Agradeço à minha família. Aos meus pais, pela liberdade de escolhas e apoio incondicional.
Aos irmãos, Lelei, por estar conosco, Renata, pela amizade e pelo sobrinho, e Rodrigo,
companheiro e também escudeiro nessa jornada. À Aninha, pela presença constante. À avó,
Maria José, por sempre perguntar se já estava terminando. E, aos tios e primos, pelo apoio e
compreensão de algumas ausências em função desse empreendimento.

Agradeço, especialmente, à Pollyana. Em primeiro lugar, pela coragem. Afinal, ao longo desse
trajeto me acompanhou como amiga, namorada e esposa. Tudo isso, fazendo também seu
doutorado! No mais, amor e admiração resumem bem esse trajeto. Obrigado!

Aos amigos, do GEAK, obrigado pelo apoio de todos e, principalmente, ao Bruno. Aos da
UFES, agradeço à Graziela pela amizade desde o mestrado. Ao Diones Ribeiro, obrigado pela
6

parceria de pesquisa e pelas longas conversas sobre nossos temas que não só ajudaram na
constituição dessa tese como indicaram caminhos futuros de trabalho. Aos companheiros do
IFES, obrigado Krüger, Luiz Henrique, Alex Nassau e Sílvia que acompanharam os primeiros
questionamentos que deram origem ao projeto, à Kalna por estar sempre solicita e, para Vinicius
Lordes, Luiz Antônio e Wallas, três colegas de trabalho e também pós-graduandos, agradeço a
companhia nas pausas para o café.

Enfim, obrigado a todos, independentemente da ausência nessas páginas e, em especial, a uma


força maior, Deus, por tudo isso e por vocês.
7

O que me prende é mais um espírito de


oposição do que de acomodação, porque o
ideal romântico, o interesse e o desafio da
vida intelectual devem ser encontrados na
dissensão contra o status quo, num momento
em que a luta em nome de grupos
desfavorecidos e pouco representados parece
pender tão injustamente para o lado contrário
ao deles.

Edward Said
8

RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de realizar uma história da historiografia do Espírito Santo
buscando compreender as formas, as funções e os significados que tiveram as diferentes
manifestações historiográficas sobre o Espírito Santo entre a década de 1960 e o início do século
XXI. Para isso, analisa as obras História do Estado do Espírito Santo, de José Teixeira de
Oliveira (1975), História do Espírito Santo, de Maria Stella de Novaes (1964), O Espírito Santo
é assim, de Neida Lúcia Borges (1971), e História Geral e Econômica do Espírito Santo: do
engenho colonial ao complexo fabril-portuário, de Gabriel Bittencourt (2006). Além dessas,
aborda uma nova produção historiográfica que surge na primeira década do século XXI
associada aos programas de pós-graduação, em especial, mas não exclusivamente, ao Programa
de História Social das Relações Políticas (PPGHIS-UFES). Assim, fundamentando a análise
em referenciais da História da Historiografia e da Teoria da História, em especial, Reinhart
Koselleck e Jörn Rüsen, avaliamos que tipo de relação as produções historiográficas
estabeleceram com o passado local e quais sentidos as narrativas históricas atribuíram para esse
passado. Desse modo, por um lado, identificamos a emergência e o percurso de uma narrativa
histórica da superação do atraso: a narrativa do progressivo desenvolvimento do Espírito
Santo, definida nas obras de José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de Novaes,
e a narrativa da formação econômica do Espírito Santo, representada pela obra de Gabriel
Bittencourt. Por outro, demonstramos como a nova produção historiográfica, as narrativas
críticas do Espírito Santo, tem colaborado com a desconstrução daquelas narrativas mestras
sobre o passado do Espírito Santo. Consideramos, assim, que a análise desse percurso da escrita
da história local permitiu compreendermos como se constituiu um paradigma de compreensão
e formas de narrar o Espírito Santo a partir da noção de atraso e sua superação. Compreendemos
que a perspectiva da superação do atraso definiu um lugar para períodos, acontecimentos e
personagens históricos que tiveram seu valor para o passado local definidos em função de sua
contribuição ou oposição para o desenvolvimento do Estado. Identificamos, com isso, como as
narrativas da superação do atraso corresponderam às expectativas dos projetos de
desenvolvimento do Espírito Santo e contribuíram para sua legitimação, tanto na década de
1960 com a industrialização, como nos usos políticos do passado recorrentes no discurso
político de Paulo Hartung sobre o Terceiro Ciclo de Desenvolvimento já no século XXI. Enfim,
avaliamos a importância das narrativas críticas na desconstrução da perspectiva da superação
do atraso, na desmitificação do lugar do atraso no passado local bem como sua relevância na
definição de diferentes sentidos para a história do Espírito Santo.

Palavras-chaves: Historiografia; Espírito Santo; Desenvolvimento; História; Aspectos


econômicos.
9

ABSTRACT
This thesis aims to perform a history of the historiography of Espírito Santo trying to understand
the procedures, functions and meanings involving different historiographical productions about
the state of Espírito Santo between the 1960s and the early twenty-first century. The research
analyzes the books História do Estado do Espírito Santo, by José Teixeira de Oliveira (1975),
História do Espírito Santo, by Maria Stella de Novaes (1964), O Espírito Santo é assim, by
Neida Lúcia Borges (1971), and Gabriel Bittencourt’s História Geral e Econômica do Espírito
Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário (2006). Besides these, it discusses a
new historiography that emerges in the first decade of this century, specially, but not
exclusively, associated to the Social History of Political Affairs Program (Programa de História
Social das Relações Políticas – PPGHIS-UFES). Therefore, grounding the analysis on
references of History of Historiography and Theory of History, in particular Reinhart Koselleck
and Jörn Rüsen, this thesis evaluates which kind of relations the historiographical productions
established with the local past and which meanings the historical narratives attributed to this
past. Thus, on the one hand, we identify the emergence and course of a historical narrative of
overcoming backwardness: the narrative of the progressive development of Espírito Santo, set
in the works of José Teixeira de Oliveira, Neida Lucia and Maria Stella de Novaes, and account
of the economic formation of Espírito Santo, represented by the work of Gabriel Bittencourt.
On the other hand, we demonstrate how the new historiography, critical narratives about
Espírito Santo, has collaborated with the deconstruction of those mainstream narratives about
the past of state. We, therefore, consider that the analysis of this local history writing path
allowed us to comprehend how this paradigm of writing and understanding the past of Espírito
Santo was built on the notions of delay and overcoming. We understand that the perspective of
overcoming the delay defined a place for periods, historical events and characters that had their
value to the local past defined in terms of their contribution to or obstruction of the development
of the state. Doing so, we identify how the narratives of overcoming backwardness support the
development projects of Espírito Santo and contributed to its legitimacy, both in the 1960s with
industrialization, as in the political uses of the past performed by the political discourse of Paul
Hartung on the Third Development Cycle in the XXI century. Finally, we evaluate the
importance of critical narratives in deconstructing the perspective of overcoming the delay and
its relevance in the definition of different meanings to the history of Espírito Santo.

Keywords: Historiography; Espírito Santo; Development; History.


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RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo llevar a cabo una historia de la historiografía del Espírito Santo
tratando de comprender las formas, funciones y significados que tuvieran diferentes
manifestaciones historiográficas relativas al estado de Espírito Santo entre los años 1960 y
principios del siglo XXI. Para ello, analiza los trabajos História do Estado do Espírito Santo,
de José Teixeira de Oliveira (1975), História do Espírito Santo, de Maria Stella de Novaes
(1964), O Espírito Santo é assim, de Neida Lúcia Borges (1971), y História Geral e Econômica
do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário, de Gabriel Bittencourt
(2006). Además de éstos, se discute una nueva historiografía que florece en la primera década
de este siglo, asociada a los programas de posgrado, en particular, pero no exclusivamente, el
Programa de Historia Social de las Relaciones Políticas (PPGHIS-UFES). Por lo tanto, basando
el análisis en referencias de la historia de la historiografía y teoría de la historia, en particular,
Reinhart Koselleck y Jörn Rüsen, evaluamos qué tipo de relación las producciones
historiográficas establecen con el pasado local y que significados las narrativas históricas
atribuyeron a este pasado. De este modo, por un lado, identificamos la aparición y el recorrido
de una narrativa histórica de superación del retraso: la narrativa del desarrollo progresivo del
Espírito Santo, ubicada en las obras de José Teixeira de Oliveira, Neida Lucía y María Stella
de Novaes, y la narrativa de la formación económica del Espíritu Santo, representada por la
obra de Gabriel Bittencourt. Por otro, se demuestra cómo la nueva producción historiográfica,
las narrativas críticas del Espírito Santo, ha colaborado con la deconstrucción de los grandes
relatos sobre el pasado del Espírito Santo. Por consiguiente, consideramos que el análisis de
este recorrido de la escritura de la historia local nos permitió entender cómo se constituyó un
paradigma de comprensión y de formas de narrar el Espírito Santo basado en la noción de
retardo y superación. Comprendemos que la perspectiva de superar el retraso definió un lugar
para períodos, acontecimientos históricos y personajes que tuvieron su valor en el pasado local
definido en términos de su contribución u oposición al desarrollo del estado. Identificamos, con
ello, cómo las narrativas de superar el retraso están relacionadas con las expectativas de los
proyectos de desarrollo del Espírito Santo y han auxiliado a su legitimación, tanto en la década
de 1960, con la industrialización, como en los recurrentes usos políticos del pasado por el
discurso político de Paul Hartung en el Tercer Ciclo de Desarrollo, ya en el siglo XXI. Por
último, se evalúa la importancia de las narrativas críticas en la deconstrucción de la perspectiva
de superar el retraso, en la desmitificación del lugar del retraso en el pasado local y su relevancia
en la definición de los diferentes significados de la historia del Espírito Santo.

Palabras clave: Historiografía; Espírito Santo; desarrollo; Historia.


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LISTA DE SIGLAS

BANDES - Banco de Desenvolvimento Econômico e Social do Espírito Santo

CODEC - Conselho de Desenvolvimento do Espírito Santo

FINDES - Federação das Indústrias do Estado do Espírito Santo

FUNDAP - Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias

IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

IHGES - Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo

PPGHIS - UFES - Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações


Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo

SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

UFES - Universidade Federal do Espírito Santo.


12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 14

1. CAPÍTULO I: CONSTRUINDO UM DESAFIO HISTORIOGRÁFICO DO ESPÍRITO


SANTO ................................................................................................................................................. 29

1.1 O DESAFIO HISTORIOGRÁFICO E A HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA COMO CAMPO DE


INVESTIGAÇÃO...................................................................................................................................29

1.2 O DESAFIO HISTORIOGRÁFICO: A ESCRITA DA HISTÓRIA COMO CAMPO DE


INVESTIGAÇÃO E UMA PROPOSTA DE ANÁLISE SOBRE O ESPÍRITO SANTO....................32

1.2.1 O DESAFIO HISTORIOGRÁFICO E AS REPRESENTAÇÕES POLÍTICAS DE ESPÍRITO


SANTO: O DISCURSO DA SUPERAÇÃO DO ATRASO E AS LEITURAS DE
PASSADO............................................................................................................................................. 42

1.3 DEFININDO O DESAFIO HISTORIOGRÁFICO DO ESPÍRITO SANTO ................................ 60

2. CAPÍTULO II: O SENTIDO DA SUPERAÇÃO DO ATRASO: O ESPÍRITO SANTO NO


DISCURSO DESENVOLVIMENTISTA E A NARRATIVA HISTÓRICA DO PROGRESSIVO
DESENVOLVIMENTO. ..................................................................................................................... 67

2.1 O DISCURSO DA SUPERAÇÃO DO ATRASO E O PROJETO DE DESENVOLVIMENTO VIA


INDUSTRIALIZAÇÃO NO ESPÍRITO SANTO................................................................................ 67

2.2 O DISCURSO DA SUPERAÇÃO DO ATRASO E A NARRATIVA HISTÓRICA DO ESPÍRITO


SANTO.................................................................................................................................................. 83

2.2.1 O ESPIRITO SANTO REPUBLICANO: O SENTIDO DA NARRATIVA HISTÓRICA DA


SUPERAÇÃO DO ATRASO................................................................................................................ 84

2.2.2 O ESPÍRITO SANTO COLONIAL E A NARRATIVA DA ORIGEM DO ATRASO


............................................................................................................................................................... 93
2.2.3 AS ORIGENS DO ESPÍRITO SANTO NOS SÉCULOS XVI E XVII: OBSTÁCULOS,
DIFICULDADES E A IMAGEM DO FRACASSO INICIAL DA
COLONIZAÇÃO.................................................................................................................................. 95

2.2.4. O PAPEL DE DEFESA E O ESPÍRITO SANTO COMO A BARREIRA PARA AS


MINAS................................................................................................................................................. 103

2.3 O SÉCULO XIX E A NARRATIVA DA SUPERAÇÃO DO


ATRASO............................................................................................................................................. 113
13

3. CAPÍTULO III - ENTRE O ATRASO E O PROGRESSO: OS PERSONAGENS


HISTÓRICOS NA NARRATIVA DO PROGRESSIVO DESENVOLVIMENTO DO ESPÍRITO
SANTO ............................................................................................................................................. ..131

3.1 A ELITE ADMINISTRATIVA: ENTRE O ATRASO E O PROGRESSO................................. 135


3.2 JESUÍTAS, IMIGRANTES E INDÍGENAS: A SUPERAÇÃO DO ATRASO NA
REPRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS........................................................ ............................ 150

3.2.1 OS ÍNDIOS NA HISTÓRIA DO ESPÍRITO SANTO: O INIMIGO DE TODAS AS


HORAS................................................................................................................................................ 157

4. CAPITÚLO IV - A NARRATIVA HISTÓRICA DA SUPERAÇÃO DO ATRASO NA


CONTEMPORANEIDADE: HISTÓRIA E OS USOS POLÍTICOS DO PASSADO. ................ 171

4.1 A NARRATIVA HISTÓRICA DA FORMAÇÃO ECONÔMICA DO ESPÍRITO SANTO: A


SUPERAÇÃO DO ATRASO PELOS CICLOS DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO..........175

4.1.1 A NARRATIVA HISTÓRICA DO ATRASO E A HERANÇA COLONIAL DO ESPÍRITO


SANTO.................................................................................................................................................178

4.1.2 DA PERIFERIA AO CENTRO: OS CICLOS ECONÔMICOS DO CAFÉ E DA


INDUSTRIALIZAÇÃO.......................................................................................................................182

4.1.3 A NARRATIVA HISTÓRICA DA SUPERAÇÃO DO ATRASO NO SÉCULO XXI: UM NOVO


CICLO DE DESENVOLVIMENTO E O PROTAGONISMO DO ESPÍRITO SANTO....................190

4.2 AS "MEMÓRIAS DO DESENVOLVIMENTO" E OS USOS POLÍTICOS DO PASSADO......196

5. CAPÍTULO V - POR OUTRAS HISTÓRIAS DO ESPÍRITO SANTO...................................216

5.1 O ESPÍRITO SANTO COLONIAL: DESCONSTRUINDO A "ORIGEM DO ATRASO."........221

5.2 O ESPÍRITO SANTO REPUBLICANO: A CRÍTICA AOS MODELOS DE MODERNIZAÇÃO E


DESENVOLVIMENTO......................................................................................................................235

5.3 POR UMA HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO ESPÍRITO SANTO...................................................252

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 271

7 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................. 279


14

INTRODUÇÃO

Um desafio historiográfico do Espírito Santo.1 O nome do presente trabalho pressupõe a


definição do que encaramos como desafio: uma reflexão sobre a historiografia, especialmente,
uma análise crítica sobre a escrita da história do Espírito Santo. Como será possível reconhecer
ao longo desse estudo, construímos um desafio e buscamos responder às suas provocações.

Refletir sobre o fazer historiográfico faz parte da própria trajetória da disciplina histórica. Em
especial, o chamado giro linguístico (linguistic turn) exerceu, e ainda exerce, influência na
produção historiográfica, pois trouxe questões pertinentes sobre a prática exercida pelos
historiadores:

A expressão giro linguístico foi bastante utilizada entre as décadas de 1970 e 1980
para se referir a um difuso e muito importante movimento intelectual que foi se
articulando progressivamente ao longo do século XX, e que exerceu grande influência
na Filosofia e em diversas Ciências Humanas e Sociais. Esse impacto está relacionado
a preocupações com o papel exercido pela linguagem não apenas nos projetos dessas
disciplinas, mas também nos fenômenos geralmente estudados por elas. Ao modificar
a concepção existente sobre a natureza da linguagem (de “palavra sobre o mundo”
para “ação sobre o mundo”), o giro linguístico apontou questões relativas à natureza
do conhecimento, questionando o que usualmente se entende por “realidade”, e
propiciou o surgimento de novos tipos de investigação e metodologias para sua
análise. [...] Na História, o giro linguístico, ao questionar não apenas as próprias
construções conceituais utilizadas pelos historiadores, mas também seus discursos
sobre “o passado” e seu próprio fazer historiográfico, teria desdobramentos muito
importantes.2

Assim, ganhou espaço dentro da teoria da História a problematização do texto e,


principalmente, da narrativa. Sobre essa guinada, Salgado Guimarães argumenta:

A partir de então fomos obrigados a compreender o texto como uma superfície cheia
de altos e baixos, silêncios e lacunas, que deveriam ser interrogados como elementos
constitutivos da narrativa acerca do passado. Aprendemos da mesma forma que o
texto escrito subordina a uma gramática e a uma semântica o conjunto móvel das
experiências humanas, instaurando, portanto, uma tensão necessariamente presente na
escrita do historiador. Enfim, a escrita histórica, para ser bem mais compreendida,
tomou emprestado o conceito de representação imagética inscrita no ato da escrita.

1
O termo utilizado foi apropriado do título da obra de José Carlos Reis. REIS, José Carlos. O desafio
historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
2
ARAÚJO, George Fellipe Zeidan Vilela. Desafios ao fazer historiográfico contemporâneo. In: Marcelo de Mello
Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º.
Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e
perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. p. 1-9. Disponível em:
http://www.seminariodehistoria.ufop.br/ocs/anais/index.htm Acesso em 2014. p. 1-2.
15

Seus signos, ao serem lidos, evocam imagens a partir das quais o passado se torna
matéria de conhecimento.3

A definição do significado do giro linguístico trouxe o reconhecimento de que as Ciências


Sociais, e a História em particular, são interpretativas. Isso não significa assumir a história como
ficção, mas insere a importância da reflexão sobre o fazer historiográfico e a busca de se analisar
as diferentes interpretações e os modos de fazer história ao longo do tempo.4 Rüsen nos alerta
justamente para o caráter narrativista da história em sua reflexão sobre a teoria da História. Em
sua perspectiva, o paradigma narrativista não reduz o discurso historiográfico à texto literário,
mas chama a atenção, considerando a importância do método da pesquisa para a produção
histórica, para a relevância da narratividade do passado na produção de sentido no contexto da
vida social a partir da qual foi gerado, em sua historicidade. Nesse sentido, atenta para a
necessidade de compreensão da representação narrativa como parte integrante do conhecimento
histórico, "pois a conexão entre a experiência humana do passado, conhecida a partir da
pesquisa, e as demandas por sentido requeridas pela vida humana do presente, somente se dá
através da historiografia, entendida como um saber histórico redigido, o produto intelectual do
historiador em seu formato narrativo."5 Rogério Silva destaca a reflexão de Rüsen sobre a
narrativa histórica:

Ao apresentar o passado por meio de uma narrativa, o presente emerge e os resultados


da pesquisa são transplantados a um locus discursivo diferente daquele em que se deu
sua produção. A historiografia não se encarrega somente de dizer o que foi algo no
passado: também faz com que o conhecimento alcançado pela pesquisa seja revestido
de orientação para os destinatários desse saber. Deste modo, torna a factualidade do
passado, investigada pela pesquisa, significativa para os processos de atribuição de
sentido do universo cultural do presente.6

Diante disso, é justamente a partir do reconhecimento de que as narrativas históricas são


constructos históricos, da importância de compreender os modos de fazer história, em especial,
as formas de narrar o passado, e do significado que essas possuem por sua capacidade de atribuir
sentido ao passado em função do contexto a que respondem, que direcionamos o desafio
historiográfico para a escrita da História do Espírito Santo. Quais as formas, as funções e os
significados que tiveram diferentes manifestações historiográficas ou formas de narrar o

3
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória. In:
ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (orgs). Cultura política e leituras do passado:
historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 26.
4
DOSSE, F. A história à prova do tempo. Da história em migalhas ao resgate dos sentidos. São Paulo: Unesp,
2001. p. 55-74.
5
SILVA, Rogério Chaves da. Método e sentido: a pesquisa e a historiografia na teoria de Jörn Rüsen. Fronteiras:
revista Catarinense de História, n.17, Florianópolis, 2009, p. 33-36.
6
Ibid., p. 52.
16

Espírito Santo? Quais relações e sentido estabeleceram com o passado local em diferentes
épocas?

Consideramos relevante a construção de um desafio historiográfico do Espírito Santo7 porque


uma certa leitura do passado local é socialmente reconhecida e legitimadora de projetos e
discursos políticos, principalmente, quando vinculada ao ideário de desenvolvimento do
Espírito Santo. Partimos de questões que envolvem as circunstâncias de apropriação e
ressignificação de determinados enunciados e noções historicamente (re)produzidas sobre o
Espírito Santo e seu passado. Nos referimos, nesse sentido, ao lugar ocupado pela noção de
atraso bem como à ideia de sua superação, associadas a uma visão negativa de sua experiência
histórica. Nosso desafio surgiu justamente da preocupação em compreender como se constituiu
o que denominamos de discurso da superação do atraso no Espírito Santo.

Identificamos critérios de avaliação e qualificação do Espírito Santo, no presente e no passado,


constitutivos tanto dos discursos políticos como de narrativas históricas que se caracterizaram
pela recorrência em definir uma condição de atraso ao Estado bem como pela capacidade em
instituírem o sentido da superação, definido pelo progresso ou desenvolvimento econômico.
Dessa forma, buscamos compreender que o Espírito Santo, associado ao atraso e sua superação,
foi constituído por meio de um conjunto de enunciados que trazem referências à essas noções.
Em relação à historiografia, consideramos que ela mobilizou um conjunto de imagens sobre o
Espírito Santo, positivas e negativas, atribuindo o sentido da superação do atraso,
fundamentando e legitimando seu uso político.

Defendemos que esta narrativa histórica do Espírito Santo emergiu concomitantemente ao


projeto político de desenvolvimento via industrialização a partir da segunda metade do século
XX. A narrativa histórica da superação do atraso elaborou um roteiro de escrita da história
espiritossantense que se tornou paradigmática na compreensão do passado local. Trajetória na
qual determinados períodos, fatos e personagens históricos foram enredados em função do
desenvolvimento do Espírito Santo. Assim, avaliamos o percurso da escrita da história local a

7
Os aspectos que constituem esse desafio historiográfico, especificamente em relação ao Espírito Santo, se
encontram no primeiro capítulo dessa tese. Nos limitamos, aqui, a apresentá-lo como componente da
problematização e propósitos da tese.
17

partir dessa época até a contemporaneidade, evidenciando suas continuidades, deslocamentos e


desconstruções.

Desse modo, além de avaliarmos a construção de representações de Espírito Santo pelos


discursos políticos em diferentes épocas, no que tange à historiografia, identificamos e
selecionamos obras que elaboraram um roteiro histórico do Espírito Santo, focados na narrativa
de sua formação e trajetória. As denominamos de narrativas históricas da superação do atraso
e as classificamos a partir de duas formatações historiográficas distintas: definimos como
narrativa histórica do progressivo desenvolvimento ao conjunto de obras formado por História
do Estado do Espírito Santo, de José Teixeira de Oliveira; História do Espírito Santo, de Maria
Stella de Novaes; e O Espírito Santo é Assim, de Neida Lúcia de Moraes. Depois, o que
classificamos como a narrativa histórica da formação econômica do Espírito Santo, que
elegemos como referência a obra História geral e econômica do Espírito Santo: do engenho
colonial ao complexo fabril-portuário, de Gabriel Bittencourt. Todas constituem um conjunto
de obras que, mesmo com suas especificidades, elaboraram um sentido para o passado local por
meio de marcos temporais e atribuições de sentido e significado a períodos, acontecimentos e
personagens.8

A obra História do Estado do Espírito Santo é um marco da historiografia local. Ainda que seu
autor não tenha se radicado no Estado, ela é considerada a principal obra de referência sobre o
passado espiritossantense. Cabe ressaltar que ela é portadora de um discurso que se pretende
oficial. Suas três edições foram realizadas por diferentes governos estaduais. A primeira edição,
1951, ocorreu no governo Jones dos Santos Neves. A segunda, atualizada temporalmente até a
sua publicação, veio com o governo Arthur Gerhardt, e a terceira, em 2008, já no governo Paulo
Hartung. A preocupação central do autor é evidenciar a trajetória e o progresso do Espírito
Santo, de sua origem aos governos republicanos.

Maria Stella de Novaes segue a perspectiva de narrativa e o roteiro histórico definido por José
Teixeira de Oliveira. Sua obra História do Espírito Santo evidencia a preocupação da autora
com a formação e a expansão da sociedade espiritossantense, ainda que enfatize determinados

8
OLIVEIRA, José Teixeira. História do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975.;
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964.;
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971.; BITTENCOURT,
Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário.
Vitória: Multiplicidade, 2006.
18

feitos individuais, fruto de sua preocupação em demonstrar o papel das elites na condução da
história local, e realize uma crônica da história espiritossantense.

Já Neida Lúcia de Moraes se apropria dos dois autores anteriores para construir sua obra,
também caracterizada pela busca das origens do Espírito Santo e seu desenvolvimento.
Diferentemente dos autores anteriores, a autora se fundamenta, sobretudo, em obras já
elaboradas, mas realiza uma narrativa marcada pela identificação dos personagens-modelos ou
exemplares e, sobretudo, por ser uma obra também originária da iniciativa governamental,
valoriza a caracterização do presente, vinculado ao governo Christiano Dias Lopes.

Por último, temos a obra História geral e econômica do Espírito Santo: do engenho colonial
ao complexo fabril-portuário de Gabriel Bittencourt. Dentre esses autores, o único que possui
sua produção vinculada ao meio acadêmico. Selecionamos esta recente obra, pois ela constitui
a síntese dos trabalhos do autor acerca da história do Espírito Santo.9 Além de corresponder às
propostas anteriores de narrar a história local focando em sua formação e trajetória, a
perspectiva de desenvolvimento do Espírito Santo a partir da definição de diferentes ciclos
econômicos propulsores do progresso espiritossantense, colabora com o discurso do “Terceiro
Ciclo de Desenvolvimento”, presente no discurso político, como veremos.

Todos eles, portanto, têm em comum a preocupação de narrar a "formação" do Espírito Santo.
Além disso, suas obras, preocupadas com a trajetória de desenvolvimento espiritossantense,
tomam como marco temporal o presente, definindo assim um determinado sentido para o
passado e, como demonstraremos, o sentido da superação do atraso. Assim, as obras nos
possibilitam compreender o surgimento de uma narrativa histórica sobre o Espírito Santo, que
trazem propostas de sentido e significação para o passado, produzindo expectativas de
entendimento e compreensão relativas a fatos, períodos e personagens, nesse caso, relativos à
narrativa do desenvolvimento do Espírito Santo.

9
Por considerarmos a obra História geral e econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-
portuário, de 2006, como representante da trajetória de pensamento e produção histórica do autor, sua análise será
acompanhada, em conjunto, também de outros trabalhos do mesmo. São elas: BITTENCOURT, Gabriel Augusto
de Mello. Esforços industrializantes na Primeira República: o Espírito Santo 1889-1930. Dissertação
(Mestrado). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1979.;
BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. A formação econômica do Espírito Santo: o roteiro da
industrialização, do engenho às grandes indústrias (1535-1980). Rio de Janeiro: Cátedra; Vitória, ES:
Departamento Estadual de Cultura, 1987.
19

Em oposição a essas narrativas, selecionamos um conjunto de obras que denominamos de


narrativas críticas do Espírito Santo. São teses, dissertações e artigos acadêmicos de diferentes
autores e que versam sobre a temática do desenvolvimento do Espírito Santo em diferentes
épocas, assim como direcionam seu olhar para sujeitos marginalizados da história local. Uma
historiografia vinculada, principalmente, mas não apenas, ao Programa de Pós-Graduação em
História da Ufes que se apresenta não só como uma nova forma de produção histórica mas que
estabelecem novos sentidos ao passado do Espírito Santo.

Nossa abordagem, portanto, busca a formação e o percurso de um modelo explicativo acerca


do Espírito Santo, o que permite compreendermos as formas e as funções assumidas por essas
narrativas, bem como o sentido atribuído ao passado local. Segundo Rüsen, são as formatações
historiográficas que dão sentido ao passado, sejam as que se apresentam no formato narrativo,
na qual os processos temporais são descritos de modo visível, sejam as que se apresentam em
textos parciais abertos à discursividade e à argumentação. Ambas, porém, a seu modo,
organizam o saber histórico como algo apresentável e portador de sentido em seu contexto
cultural e político.10

Para melhor desenvolvimento do que denominamos de desafio historiográfico do Espírito


Santo, buscamos um aporte teórico que possibilitou elucidar a representação de Espírito Santo
produzida a partir dos discursos da superação do atraso bem como colaborou com a análise da
historiografia local em suas relações com as representações do atraso e sua superação. Assim,
nossos referenciais teóricos podem ser observados a partir de três funções dentro do estudo: a)
autores utilizados com o intuito de avaliar a produção de representações de Espírito Santo e a
historiografia como representação do passado; b) a recorrência a referências voltadas para
fundamentar nossa análise no campo da história da historiografia e os usos do passado; c) e a
apropriação de referenciais teóricos que nos permitam operacionalizar a análise das obras
selecionadas tendo em vista os modelos de explicação e de narrativas históricas elaboradas
pelos diferentes autores.

No que tange à construção de imagens sobre o Espírito Santo, nos apropriamos de Pesavento,
Baczko e, sobretudo, Chartier.11 Buscamos no conceito de representações, e seus usos, a

10
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed.
UnB, 2007. p. 81-82.
11
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra História: imaginando o Imaginário. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v.15, nº 29, pp. 9-27, 1995. BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. Enciclopédia
20

referência necessária para analisarmos as ideais, impressões e percepções constitutivas das


ideias-imagens de Espírito Santo associadas ao desenvolvimento, tanto nos discursos políticos
como nas imagens produzidas pela representação historiográfica. Por meio desses autores,
avaliamos como as representações de Espírito Santo forjadas ao longo do tempo aqui proposto,
e vistas em sua historicidade, evidenciam a busca por justificativas de determinadas escolhas e
legitimação de projetos políticos.

Considerando, também, que o desafio historiográfico pretende analisar a emergência e o


percurso de uma determinada forma de compreender e narrar o Espírito Santo, recorremos a
referências teóricas que viabilizaram uma fundamentação e uma operacionalidade na análise
sobre a escrita da história. Um conjunto de autores colaboraram com a compreensão da
historiografia como objeto de estudo12, orientando a análise no que diz respeito à realização de
uma história da historiografia. Complementando, buscamos em autores como Hobsbawm,
Falcon, Ferro e Eni Orlandi orientações para compreendermos as relações entre história e poder,
e os usos políticos do passado, características de determinadas narrativas históricas locais.
Assim como, com Orlandi, o entendimento dos discursos fundadores que emergiram e foram
ressignificados ao longo do tempo no Espírito Santo e têm na relação com o passado um de
seus traços característicos no discurso da superação do atraso.13

Nos apropriamos, também, de um aporte teórico que permitiu a compreensão da relação que
uma sociedade estabelece com seu passado, tendo em vista a historiografia. Na análise da
configuração de modelos explicativos e formas de narrar o Espírito Santo em seu pretérito,
recorremos às contribuições da Teoria da História para a análise das obras eleitas como
manifestações historiográficas locais. Com Reinhart Koselleck compreendemos como a
dimensão temporal do passado foi formulada pela historiografia, recorrendo às categorias de

Einaudi, vol.5. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. pp. 296-332; CHARTIER, Roger. A História
Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1990.
12
Destacamos aqui: GODOY, João M. T. de. Alguns desafios dos estudos de historiografia. Projeto História,
São Paulo, n.41, pp. 195-214, 2010;MALERBA, Jurandir. Teoria e história da historiografia. In: ______ (org.). A
História Escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006; GUIMARÃES, Lúcia Maria P.
Sobre a história da historiografia brasileira como campo de estudos e reflexões. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos
Pereira das, et al. Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011; BLANKE, Horst W.
Para uma nova história da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. A História Escrita: teoria e história da
historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. pp. 27-64.
13
FALCON, Francisco. História e poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.).
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2011; FERRO, Marc. A
história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989; HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998; ORLANDI, Eni P. Discurso Fundador: a formação do país e a identidade nacional. Campinas:
Pontes, 1993.
21

conhecimento que o autor denomina de campo de experiência e horizonte de expectativa, que


possibilitaram a reflexão sobre a temporalidade a partir da tensão entre o presente, que se
apresenta com suas expectativas de futuro, e o passado. Assim, viabilizou a compreensão do
tempo histórico como condições de possibilidades para escritas da história.14 Com Jörn Rüsen,
dialogamos com os conceitos de consciência histórica, narrativa histórica e identidade histórica
para compreender a historiografia e sua capacidade de atribuir sentido ao passado a partir de
determinados critérios de sentido estabelecidos de acordo com o contexto cultural que
dialogam.15

Conjugando as categorias elaboradas por Koselleck e os conceitos de Rüsen, conseguimos


orientar a análise sobre a constituição das narrativas históricas do Espírito Santo, avaliando
como as obras narraram o passado espiritossantense a partir de uma lógica interpretativa da
superação do atraso cujo critério de sentido foi o do progresso e desenvolvimento do Espírito
Santo. Perspectivas de interpretação que, por sua vez, se modificaram a partir de um novo
entendimento do passado, o que nos levou também analisar novas formas de narrativa na
historiografia local.

Nesse ponto, alcançamos a explicação da metodologia utilizada na construção do trabalho.


Primeiramente, recorremos, novamente, a Rüsen. Tendo em vista a emergência de uma
narrativa histórica da superação do atraso, sua continuidade, os deslocamentos e as
descontinuidades dessa produção histórica sobre o Espírito Santo, recorremos à tipologia
elaborada pelo autor na compreensão da historiografia, entendida por ele como um processo de
constituição da narrativa de sentido. Dessa maneira, foi possível agrupar os autores em
diferentes formas de narrativa e modelos explicativos acerca do passado do Espírito Santo.
Tendo em vista os critérios e categorias de análise, agrupamos em 3 modelos ao longo do
período estudado: a) José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de Novaes como
autores que instituíram a narrativa histórica da superação do atraso, caracterizada pelo
progressivo desenvolvimento; b) evidenciamos a produção de Gabriel Bittencourt como
representante de uma continuidade dessa narrativa da superação, mas deslocada para o meio
acadêmico e sob a perspectiva da história econômica, definindo a narrativa histórica da

14
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006.
15
RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da História: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UNB,
2010; RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007.
22

formação econômica do Espírito Santo; c) por último, avaliamos a produção historiográfica


acadêmica recente e suas mudanças nas interpretações acerca do passado, constituindo as
narrativas críticas do Espírito Santo.

Segundo Rüsen, podemos avaliar diferentes tipos de constituição histórica de sentido, a saber:
a constituição tradicional de sentido, a constituição exemplar de sentido, e ainda as
constituições crítica e genética de sentido.16 De acordo com ele, essa tipologia pode ser
empregada como um instrumental analítico para a compreensão dos fenômenos historiográficos
levando-se em consideração que ela: possibilita analisar esses fenômenos historiográficos a
partir da historicidade dessas formatações; permite avaliar as mudanças ocorridas nas formas
de narrativa histórica promovidas pelas opções teóricas; reconhece que nenhum desses tipos
aparece de forma pura ou isolada. A saber, os elementos típicos de cada modelo estão sempre
articulados conjuntamente nas diversas formatações, mas o que não impede o reconhecimento
dos elementos essenciais de uma determinada forma de narrativa.17

Tais considerações nos levaram a distinguir as diferentes leituras do passado e suas formas de
narrativa, diferenciadas não apenas no tempo, mas de acordo com a sua estrutura e o sentido
atribuído ao passado do Espírito Santo por elas constituído. Por exemplo, nas narrativas da
superação do atraso elaboradas por José Teixeira de Oliveira, Maria Stella de Novaes e Neida
Lúcia predominam as constituições tradicional e exemplar de sentido, ainda que a preocupação
em se caracterizar a origem (o atraso colonial) do Espírito Santo e sua diferenciação com o
período republicano possibilitem evidenciar algumas características da constituição genética de
sentido. Esta, por sua vez, é bem representada na obra de Gabriel Bittencourt que analisa as
fases da economia do Espírito Santo e sua inserção na economia capitalista por meio dos ciclos
econômicos. Porém, algumas características predominantes nos autores anteriores aparecem
também nas obras desse autor, o que nos permite realizar as diferenciações, as continuidades e
os deslocamentos nas formas narrar o Espírito Santo. A historiografia recente representada,
essencialmente, pelo Programa de Pós-Graduação do departamento de História da UFES, entre
outras produções acadêmicas, cabe ressaltar, nos remete à constituição crítica de sentido, ao
romper com os modelos explicativos anteriores.

16
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2007.
17
Ibid., p. 63-65.
23

Essa tipologia, portanto, permitiu agrupar essas diferentes produções historiográficas sobre o
Espírito Santo e observar esse percurso da escrita da história local. Porém, ainda que a análise
se fundamente nos tipos de narrativa, a forma de apresentação das mesmas permitiu a
diferenciação da análise no decorrer do nosso trabalho. Rüsen identifica duas formas de
apresentação do sentido histórico que também foi possível distinguir nas obras: a chamada
história narrativa (tradicional), na qual o sentido da história surge no formato de narrativa a
partir da sequência temporal da descrição dos fatos pelo historiador. A outra se caracteriza por
uma forma de apresentação na qual os contextos de sentido são explicitados de maneira
peculiar, por meio de textos parciais que apontam, inclusive, as perspectivas de análise.

Nas obras de José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de Novaes identificamos a
primeira forma indicada por Rüsen. Em Gabriel Bittencourt, ainda que o autor ressalte sua
perspectiva de análise, ela também predomina, pois ele preocupa-se com a narrativa da origem
e da trajetória econômica do Espírito Santo a partir de uma sequência temporal linear. A
segunda forma indicada por Rüsen caracteriza a historiografia definida como constituição
crítica de sentido na qual prevalecem os recortes temporais (que o autor chama de contextos de
sentido) e as argumentações fundamentadas na exposição teórica dos autores, e que
denominamos de historiografia acadêmica atual, representada, principalmente, pela produção
recente associada ao programa de pós-graduação do departamento de História da UFES.18

Essa diferenciação entre as formas de apresentação das obras historiográficas colaborou em


nosso propósito de analisar as representações de Espírito Santo no passado e o roteiro histórico
construído pelas narrativas. Buscamos compreender as formas de narrativas históricas
constituídas nesse “percurso” aqui estudado por meio de uma metodologia de análise que
abarcasse as formatações do saber histórico a partir da trama textual elaborada pelos autores,
levando-se em consideração essas diferenças mencionadas bem como suas características
específicas, em suas historicidades.

No que tange às obras que se apresentam na forma de história narrativa, as de José Teixeira de
Oliveira, Neida Lúcia, Maria Stella de Novaes e Gabriel Bittencourt, buscamos, mais dos que
os fatos presentes nessas obras, definir as características de cada produção historiográfica, o
estabelecimento das periodizações e o sentido da narrativa escolhido pelos autores, a eleição de

18
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2007. p. 81-82.
24

certas temáticas, marcos temporais definidos ao longo da descrição dos acontecimentos, as


fontes documentais reconhecidas que revelam a preservação ou o apagamento de certos fatos e
sujeitos. Além disso, sem abandonar as especificidades de cada obra, consideramos também
que os enunciados dialogam e estão presentes nos códigos de seu tempo, guardando relação
com o momento vivido.

Sendo assim, de forma complementar a esse procedimento, para compreendermos a enunciação


de um Espírito Santo nessas obras que se apresentam de forma narrativa, ou seja, a
representação de passado elaborada por essa historiografia caracterizada pela narrativa da
superação do atraso, apropriamos, também, recursos do campo da linguística, recorrendo tanto
às possibilidades engendradas pela análise de conteúdo, como pela análise do discurso, no que
tange à compreensão do texto como prática discursiva. A análise temática possibilitou o
reconhecimento dos principais temas ligados à história do Espírito Santo recorrentes nesses
autores. Assim, elencamos os principais temas que constituíram as análises e colaboraram com
a definição do roteiro histórico da trajetória de superação do atraso do Espírito Santo.

Para tal, seguindo a lógica de interpretação utilizada pelos autores, identificamos duas
categorias: a do atraso e do progresso. Com isso, por um lado, definimos um quadro relacionado
ao atraso no qual foi possível inserir acontecimentos, circunstâncias e sujeitos históricos que
foram definidos como representantes do atraso por partes dos autores. Por outro, elencamos,
também, os mesmos elementos constitutivos da categoria progresso, ou seja, daqueles que nas
narrativas históricas foram identificados como responsáveis pela trajetória de superação do
atraso do Espírito Santo. Com isso, além da possibilidade de reconhecer os principais temas e
interesses, assim como a relevância a eles atribuída, no passado do Espírito Santo, foi possível
avaliar como se construiu um roteiro histórico no qual os principais elementos da categoria
atraso foram relacionados no período colonial, e, pelo contrário, os representantes estiveram,
principalmente, situados nas narrativas históricas a partir do século XIX. Tal procedimento de
análise possibilitou, também, compreender como os autores foram construindo suas narrativas,
exatamente por meio dessa oposição entre símbolos do atraso e do progresso. Com isso,
conseguimos evidenciar como se definiram as narrativas da superação do atraso, que definiram
uma trajetória de progressivo desenvolvimento do Espírito Santo até meados do século XX e
início do século XXI, no caso de Gabriel Bittencourt.
25

Nesse processo, ficou clara a definição de um critério de avaliação e qualificação do passado


do Espírito Santo. De forma complementar à análise temática, portanto, recorremos à análise
semântica.19 Em termos de enunciação, analisamos a construção da narrativa da superação do
atraso a partir da caracterização que os autores realizaram dos acontecimentos, circunstâncias
e sujeitos símbolos do atraso ou do progresso do Espírito Santo. Para isso, identificamos as
funções e qualificações atribuídas a cada momento histórico analisado pela historiografia, assim
como aos diferentes fatos, grupos, situações, e os valores a eles associados, e, ainda, referências
de identificação positivas ou negativas, de acordo com o critério de interpretação, que
constituem as ideias-imagens elaboradas pela historiografia.

No entanto, tendo em vista a necessidade de avaliar o sentido atribuído ao passado e o


significado dessas narrativas, não nos limitamos à análise de conteúdo. Consideramos que as
narrativas que compõem o discurso da superação do atraso, estavam inseridas em uma
discursividade que permite a produção de um conjunto de textos produzidos sobre o Espírito
Santo. Tratamos, assim, de uma discursividade ou de um modo de dizer sobre o Espírito Santo,
que não se limitou a um enunciador mas constituiu uma totalidade coerente, que identificamos
em matrizes distintas, tanto no discurso político da superação como no historiográfico. 20
Entendemos, assim, as formas de narrar o Espírito Santo, no presente e no passado, como uma
prática discursiva. O discurso da superação do atraso pode ser compreendido como uma
formação discursiva na qual são gerados os textos que qualificam e avaliam o Espírito Santo.21

Compreender o discurso da superação do atraso como constitutivo de uma discursividade sobre


o Espírito Santo significa, também, considerá-lo como parte integrante do contexto sócio-
histórico ao qual pertencem, reconhecendo seu papel na reprodução, manutenção ou
transformação das representações que uma sociedade elabora sobre si mesma, tal como
avaliamos as diferentes formas de narrar o Espírito Santo. Desse modo, tendo em vista que
estamos compreendendo como o discurso da superação do atraso e, em especial, as narrativas
históricas estabeleceram sentido ao passado local, buscamos, para além de uma análise
semântica, compreender não só o que o texto diz ou demonstra, mas por que e como o diz e
mostra. Com isso, observamos não só as adjetivações que caracterizam o atraso, mas como a
construção das narrativas encandearam o processo histórico local, ou a trajetória do Espírito

19
ROBIN, Regine. História e Linguística. São Paulo: Cultrix, 1978.
20
MAINGUENEAU, Dominique. Analise de textos de comunicação. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2002. p. 51-57.
21
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. 2.ed. Campinas: UNICAMP,
1993.p. 54-56.
26

Santo, tendo em vista as expectativas do presente, como estabeleceram similaridades ou


discrepâncias entre eventos e personagens do passado e do presente, ou ainda como instituíram
um lugar para o presente que determinou um enredo sobre o passado em função do
desenvolvimento e em consonância com os projetos políticos em execução.22

Na análise da historiografia acadêmica atual, que não se apresenta nos moldes da narrativa
tradicional, consideramos o quadro historiográfico caracterizado pelos diferentes “domínios da
história”23, mas, agrupamos as obras de acordo com a temática presente nos estudos.
Selecionamos os trabalhos que correspondiam às questões desenvolvidas ao longo da tese, que
tratavam de aspectos do desenvolvimento, o que nos possibilitaram demonstrar as mudanças na
leitura sobre o Espírito Santo no passado. Sistematizamos em três grupos: primeiramente, os
estudos com o recorte temático da economia colonial, capazes de demonstrar a revisão histórica
da noção de atraso associado ao Espírito Santo no passado. Posteriormente, agrupamos os
trabalhos que tratam dos modelos de desenvolvimento adotados no Espírito Santo,
evidenciando a crítica a eles. E, por último, destacamos a produção historiográfica sobre os
indígenas, ou seja, estudos voltados para a compreensão do papel de sujeitos marginalizados
nas narrativas históricas da superação do atraso, responsáveis por inseri-los no discurso
historiográfico e fazer emergir a memória desses grupos.

Em relação à enunciação, analisamos as obras individualmente, porém, caracterizadas em seu


conjunto. Atentamos às qualificações atribuídas aos momentos e sujeitos históricos, às
referências de identificação capazes de colaborar com as ideias-imagens de Espírito Santo
construídas pela historiografia atual em oposição às anteriores. Tratamos, também, esses
conjuntos de obras como uma prática discursiva, porém, inserida no embate com formulações
cristalizadas, capazes de reformular a imagem historicamente construída sobre o Espírito Santo.
Isso contribuiu para a identificação da mudança de paradigma na escrita da história local e dos
critérios de avaliação do Espírito Santo. Permitiu, também, avaliar não só o significado
historiográfico dessas obras, mas também o político.

Para a melhor compreensão do que analisamos, dividimos esse trabalho em cinco capítulos. No
primeiro, construímos o que denominamos de "desafio historiográfico do Espírito Santo."

22
PINTO, Milton José. Comunicação e Discurso. Introdução à análise de discurso. 2.ed. São Paulo: Hacker
Editores, 2002.p. 26-51.
23
CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2011.
27

Partindo da identificação da construção de um discurso político da superação no início do século


XXI, em especial, durante o governo Paulo Hartung, em que se consolidou o slogan do "Novo
Espírito Santo" e se configurou a noção de "Terceiro Ciclo de Desenvolvimento", consideramos
a relação entre esse discurso da superação e uma determinada forma de conceber o passado
local. Diante disso, construímos um desafio historiográfico que se definiu como a realização de
uma história da historiografia numa perspectiva crítica.

No capítulo II, analisamos a emergência do discurso da superação do atraso em função do


projeto de desenvolvimento econômico das décadas de 1960-1970. Para isso, buscamos
compreender a instituição de discursos fundadores do Espírito Santo: o discurso político e seu
projeto de desenvolvimento e, em consonância com este, a narrativa histórica do progressivo
desenvolvimento do Espírito Santo, seu enredo, a imagem de atraso e o sentido da superação
que elaborou acerca do passado local. Narrativa histórica representada pelas obras de José
Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de Novaes.

O capítulo III complementa o anterior. Apresentamos uma análise das representações dos
diferentes atores históricos presentes nas obras da narrativa histórica do progressivo
desenvolvimento. Donatários, colonos, funcionários reais, jesuítas, imigrantes, governadores e
grupos de índios foram retratados sob a perspectiva da superação do atraso. Com isso,
evidenciamos como se constituiu uma história dos propulsores do progresso em oposição aos
personagens representantes do atraso local, em especial os indígenas.

O quarto capítulo apresenta uma análise da narrativa histórica da formação econômica do


Espírito Santo e das "memórias do desenvolvimento." Em relação à primeira, representada por
Gabriel Bittencourt, evidenciamos como ocorreu um deslocamento na forma de narrar o
Espírito Santo, atualizado em função do tempo e com o sentido da superação definido pelos
ciclos econômicos. Analisamos como o autor atualiza e ressignifica a narrativa da superação do
atraso em função das expectativas de desenvolvimento e do discurso político do "Terceiro Ciclo
de Desenvolvimento." Abordamos, ainda, como a narrativa histórica da superação foi
apropriada pela coleção "Memórias do Desenvolvimento do Espírito Santo", organizada pela
ONG ES em Ação. Diante disso, demonstramos os usos políticos do passado como estratégia
do exercício do poder, recorrente com Paulo Hartung.

O capítulo V finaliza o trabalho enfatizando o que denominamos de narrativas críticas do


Espírito Santo. Nele, destacamos diferentes narrativas que rompem e desconstroem as
28

narrativas históricas mestras do Espírito Santo. Avaliamos como a historiografia acadêmica


recente, principalmente associada ao Programa de Pós-Graduação em História da Ufes, mas
não exclusivamente, tem colaborado com a desmitificação do atraso como característica do
passado local, com a crítica aos modelos de desenvolvimento econômico instituídos no Estado
e com a elaboração de uma história indígena no Espírito Santo reivindicativa de uma memória
desses grupos e seu papel como sujeitos da história local.
29

1. CAPÍTULO I: CONSTRUINDO UM DESAFIO HISTORIOGRÁFICO DO


ESPÍRITO SANTO.

1.1 O DESAFIO HISTORIOGRÁFICO E A HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA COMO


CAMPO DE INVESTIGAÇÃO.

O ofício do historiador é caracterizado por seus dilemas, impasses e debates que marcam a
história da disciplina. Os diversos campos da história, seus respectivos objetos e problemáticas
que predominam atualmente na historiografia são resultados das questões que envolvem o
percurso da disciplina, de suas controvérsias e embates paradigmáticos que marcam, inclusive,
o cenário recente das ciências humanas e têm seus reflexos no fazer historiográfico. 24 As
transformações ocorridas nos modelos de explicações, teorias e métodos de pesquisa,
conflagraram um cenário historiográfico atual marcado pela diversidade e permanência dos
debates que envolvem a produção do conhecimento histórico.25

Nossa reflexão se insere justamente nas questões que envolvem o percurso da produção do
conhecimento histórico sobre o Espírito Santo. Nesse capítulo, nos propusemos a identificar a
problemática na qual situamos nosso objeto de estudo. Buscamos evidenciar uma série de
questionamentos que envolvem as leituras acerca do passado, seus usos políticos e a escrita da
história do Espírito Santo. Para tal, apresentamo-las a partir da seguinte indagação: o que seria
um desafio historiográfico do Espírito Santo?26

José Carlos Reis argumenta que o "desafio historiográfico” diz respeito ao trabalho do
historiador, ou seja, a problemática que envolve a produção do conhecimento histórico.
Segundo ele, a identidade epistemológica da história deve ser compreendida tal como a de
outros saberes: por meio do conhecimento de suas mudanças no tempo, elaborando uma história

24
CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo. Apresentação. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.;
VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro:
Campus, 2011.
25
MALERBA, Jurandir; AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. Apresentação. In: MALERBA, Jurandir; AGUIRRE
ROJAS, Carlos Antonio (orgs.). Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru, SP: EDUSC,
2007. P. 7.
26
José Carlos Reis realiza uma reflexão sobre o que entende ser o desafio da historiografia: o de refletir sobre si
mesma. REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
30

de si mesma.27 Compõem o desafio historiográfico a capacidade que a história possui de refletir


sobre si mesma, de reconhecer suas modificações pelo viés do questionamento.28

Diante disso, refletir sobre um "desafio historiográfico" requer compreendermos que as


narrativas históricas de Espírito Santo são constructos históricos. Entendidas como modelos
explicativos e formas de narrar as experiências pretéritas locais, possuem sua historicidade e
também um percurso. Segundo Malerba, ao ser apropriada como fonte histórica a historiografia
deve ser vista como elaborações discursivas acerca de eventos do passado, e como objeto da
história sugere a reflexão sobre os elementos envolvidos nesse processo de elaboração. O
“desafio historiográfico do Espírito Santo” proposto segue essa perspectiva. Malerba argumenta
que a reflexão sobre o fazer historiográfico faz parte do processo de constituição da
historiografia, o que, consequentemente, pode ser observado na própria história da disciplina.29
Para ele, o conjunto de “artefatos históricos”, ou seja, a quantidade de obras dos historiadores
guardam:

não só o percurso de desenvolvimento histórico da própria disciplina, do metier, como


também as relações orgânicas deste com as sociedades históricas que tiveram a
necessidade de sistematizar e relatar seu passado, a tal ponto que acabaram
aperfeiçoando os instrumentos de sua construção e desconstrução. 30

Nesse sentido, nossa reflexão se define como uma proposta de uma história da historiografia
do Espírito Santo numa perspectiva crítica, ou seja, a de apresentar um desafio historiográfico
que possibilite uma análise crítica do percurso do saber histórico. A história é produzida a partir
de respostas a questões elaboradas pelos homens em todos os tempos.31 Sendo assim, além de
reconhecer a historicidade da produção histórica, reconhecemos que nosso desafio se insere no
diálogo com questões atuais no Espírito Santo. José C. Reis considera que “escrever história”

27
José Carlos Reis realiza uma reflexão sobre o que entende ser o desafio da historiografia: o de refletir sobre si
mesma. REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 19-23.
28
Ibid., p. 11-12.
29
Sobre a produção historiográfica como fonte: “[...] desde há muito, alguns deles já haviam percebido a riqueza
potencial insondável acumulada na obra de inúmeras gerações de historiadores que construíram, cada qual sob as
luzes de seu tempo e de acordo com a maquinaria conceitual disponível, um patrimônio próprio da memória das
sociedades, constituído por sua historiografia.” MALERBA, Jurandir. Teoria e história da historiografia. In:
______ (org.). A História Escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 11. Ao tratar
da função de uma teoria da história, Rüsen chama atenção para o que ele define como autorreflexão. Segundo ele,
não se pode pensar num processo histórico do conhecimento em que o sujeito do conhecimento deixasse de refletir
sobre si mesmo. Por isso, argumenta que a autorreflexão pertence ao trabalho do historiador, considerando que a
“reflexão do pensamento histórico sobre seus fundamentos emerge do trabalho prático do próprio historiador,
baseia-se nele e possui para ele significado.” RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos
da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.p. 26.
30
MALERBA, Jurandir, op. cit., p. 12.
31
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.p.58-59.
31

não está desvinculado de “fazer história”, pois a historiografia é essencial à vida cultural e
política de uma sociedade. A escrita da história é, portanto, uma ação e exerce funções no
contexto em que se insere.32 Ao mediar a relação entre o presente e o passado, produz narrativas
que estabelecem sentido e podem organizar o passado em função dos propósitos do presente,
tornar perceptíveis expectativas de futuro, o que por sua vez, lhe permite servir como elemento
identitário ou estar em função de poderes político-econômicos.33 Desse modo:

Estudos de historiografia supõem o julgamento da obra de História, não apenas como


trabalho de inspiração individual, mais ou menos bem-sucedido, mas também como
resultado intelectual do confronto de concepções que uma sociedade tem sobre si
mesma em um determinado momento vivido de seu percurso. Por essa circunstância,
as condições históricas sob as quais a obra historiográfica foi produzida são tão
importantes quanto as citações bibliográficas nelas contidas. 34

A produção historiográfica, além de ser vista em sua historicidade, é fonte de entendimento


acerca das concepções de Espírito Santo. Segundo Malerba, as narrativas históricas são
produtos culturais de determinado tempo, nas quais se inserem experiências e visões de mundo
da sociedade na qual ela é produzida e sobre a qual ela mesma almeja elucidar.35 Para Rüsen, a
história precisa ser “escrita” e toda historiografia está inserida em um contexto prático de
funções, ou seja, a reflexão sobre o fazer historiográfico não se limita às problematizações sobre
as regras da pesquisa histórica. Atento à função prática do saber histórico, este autor argumenta
que o historiador redige textos que não se limitam às regras do fazer historiográfico de sua
época, mas que, também, se referem aos desafios da vida cultural de seu tempo, pois a própria
elaboração do saber histórico emerge de impulsos que conduzem a esses desafios.36

É sob essa perspectiva que conduzimos a elaboração desse trabalho bem como a reflexão sobre
um desafio historiográfico do Espírito Santo. Acreditamos que o nosso desafio necessariamente
dialoga com as questões que envolvem as representações de Espírito Santo e a recorrência em
se avaliá-lo, interpretá-lo e qualificá-lo, no presente e no passado. Uma abordagem crítica sobre
a historiografia implica em analisarmos em que termos se apresentam as questões que envolvem

32
REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 10.
33
Ibid., p. 27-28.
34
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O diálogo convergente: políticos e historiadores no início da República.
In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2007. p.
119.
35
MALERBA, Jurandir. Teoria e história da historiografia. In: ______ (org.). A História Escrita: teoria e história
da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 23-24.
36
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed.
UnB, 2007. p. 11 a 16. Para Rüsen, “existem, pois, funções culturais do saber histórico que não estão plenamente
exercidas só porque esse saber foi expresso em termos historiográficos. Ademais, não se entende porque a ciência
da história deve ficar alienada dessas funções. Ela não deve ficar alienada dessas funções porque seu trabalho
cognitivo nasce de impulsos que conduzem a elas.” Ibid., p. 16.
32

as representações de Espírito Santo, a presença de ideias-força acerca de seu desenvolvimento


e os usos políticos de determinada visão do passado.

Consideramos, portanto, que o desafio historiográfico aqui proposto envolve uma reflexão
historiográfica pensada a partir das questões de seu tempo, pois envolve circunstâncias de
apropriação e ressignificação de determinados enunciados e noções historicamente
(re)produzidas sobre o Espírito Santo e seu passado, que são recorrentes e, sobretudo, legitimam
projetos de políticos tendo em vista os usos do passado.

1.2 O DESAFIO HISTORIOGRÁFICO: A ESCRITA DA HISTÓRIA COMO CAMPO DE


INVESTIGAÇÃO E UMA PROPOSTA DE ANÁLISE SOBRE O ESPÍRITO SANTO.

Diante dessa proposta de refletir sobre um modelo explicativo acerca do Espírito Santo e seu
passado, cabe, inicialmente, questionarmos: qual a especificidade de um desafio historiográfico
relativo ao Espírito Santo? Em torno de quais aspectos e questões se encontram as percepções,
impressões e as narrativas acerca de seu passado?

A perspectiva historiográfica atual, que reconhece a historicidade da percepção dos


acontecimentos do passado, bem como seus usos e funções, contribuiu para esse desafio de
pensar o Espírito Santo. Diversos estudos sobre a construção de narrativas históricas de outros
estados ou regiões do Brasil nos apresentam um duplo aspecto importante para a construção do
desafio historiográfico proposto: primeiramente, indicam diferentes formas de se relacionar e
se apropriar do passado. Além disso, demonstram a relação da escrita da história com a
formação da identidade local ou com projetos de poder e usos políticos do passado. Observando
leituras sobre São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e o Nordeste, onde poderíamos situar o
Espírito Santo nessas reflexões?

Danilo José Zioni Ferretti analisa a gênese da representação sobre a “exceção paulista” no
contexto brasileiro. Segundo ele, existe uma autovisão elaborada pelos paulistas, ligada
principalmente ao discurso oficial, que compreende São Paulo como a “locomotiva do Brasil.”
Ferretti observa que tal condição dos paulistas fundamenta-se na concepção de uma herança de
um passado glorioso, que justificaria o lugar de destaque conferido a São Paulo. O autor
observa, também, a existência de um vínculo entre o discurso elaborado pela historiografia
paulista, desde o fim do século XIX, e os usos políticos do passado, ou seja, o paralelismo
existente entre a produção histórica e as práticas políticas nas quais estavam envolvidos seus
33

produtores. Uma construção do passado ligada a interesses econômicos, sociais e culturais e


que se incorporavam na forma de demandas políticas.37

O autor identifica a gênese e o percurso do discurso sobre o passado paulista, mais


especificamente, sobre o bandeirante, símbolo da exceção paulista e seu passado glorioso. A
historicidade da paulistanidade é observada pelo autor tendo suas bases no período da
propaganda republicana de finais do século XIX, a partir do qual eventos e personagens
históricos ganharam conotações e significados de acordo com as lutas políticas estabelecidas
no presente.38Nesse cenário, portanto, constituiu-se uma nova leitura sobre o passado paulista
que passava a corresponder ao discurso político liberal sobre a “exceção paulista”, em fins do
século XIX, no seio da luta federalista. Influenciados pelas concepções historiográficas de
Capistrano de Abreu39, a historiografia paulista construía uma representação de passado que
correspondia à visão do paulista como uma exceção de progresso e liberdade no Brasil, como
uma herança colonial, herdada da experiência dos bandeirantes.40

Nesse sentido, Ferreti evidencia não só a gênese de um discurso sobre o passado bandeirante
no século XIX, mas, sobretudo, demonstra as continuidades e descontinuidades em torno da

37
FERRETI, Danilo José Zioni. A construção da paulistanidade: Identidade, Historiografia e Política em São
Paulo. 2004. 388f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2004.
38
Compreendendo as condições de possibilidade da gênese desse discurso em São Paulo, o autor evidencia: “O
período que vai do início da propaganda republicana (1870) até o início dos preparativos para as comemorações
do Centenário da Independência, marcado pela posse do historiador Afonso de Taunay como diretor do Museu
Paulista (1917), representou um momento importante para a construção de uma nova identidade paulista. A elite
paulista, subitamente transformada pelo café no setor economicamente mais importante do país, esboçou os
primeiros traços e procurou institucionalizar – mediante a criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
(IHGSP) em 1894 - um discurso identitário próprio, não somente autônomo em relação ao discurso identitário
indianista emanado da Corte mas, em diversos pontos, francamente em oposição a ele.” Ibid., p. 109-110.
39
Sobre a influência de Capistrano, o autor argumenta: “Capistrano de Abreu apresentava uma nova interpretação
do fenômeno das Bandeiras que, pela ênfase no seu caráter integrador, possibilitaria o início da mudança do sentido
do símbolo bandeirante. Entendida sob um ponto de vista territorialista, a figura do bandeirante se transformava
em um dos pontos centrais de um imaginário da modernidade nacional. De símbolo maior dos vícios originais da
nacionalidade, como a entendia a historiografia indianista, a Bandeira passava, paulatinamente, a representar um
evento de importância central na constituição da nação brasileira, na medida em que, além de ocupar o interior,
‘costurava’ os dispersos núcleos de povoamento, possibilitando a integração e constituição da unidade do território
nacional, objetivo almejado pelas elites modernizadoras de finais do séc. XIX.” Ibid., p. 148.
40
Ferreti evidenciou a mudança de interpretação sobre o passado paulista e a figura do bandeirante: “Excluídos
dos bastiões da cultura monárquica e dos principais cargos políticos do Império, os intelectuais republicanos
elaboraram uma visão do passado paulista que pode ser considerada como uma verdadeira contra-história
republicana uma vez que invertia o sentido estabelecido pela visão monárquica, escolhendo novos personagens e
ressignificando os já consagrados. Se a visão monárquica do passado paulista se baseava no antibandeirismo de
origem indianista, na louvação do jesuíta como personagem civilizador e principalmente na valorização do
episódio de Amador Bueno e a correspondente definição da fidelidade como atributo principal do paulista, a visão
republicana seria marcada por profundo antijesuitismo, pela ressignificação do episódio de Amador Bueno e pela
revalorização do bandeirante, todos os episódios tomados como representativos da liberdade primitiva do
paulista.” Ibid., p. 180.
34

representação do bandeirante, recorrente nas disputas entre grupos políticos durante as três
primeiras décadas do século XX. Analisou a historicidade e demonstrou o uso político desse
passado resultante de um processo de construção simbólico com matrizes políticas e
historiográficas, definidoras de uma identidade paulista que, segundo ele, ainda pode ser
identificado em diferentes discursos sobre São Paulo.

Esse uso do passado como legitimador de uma posição de São Paulo no cenário nacional pode
ser observado, também, em relação ao Rio de Janeiro. Rui Aniceto Fernandes identifica em
relação a esse Estado um discurso que apela para a centralidade fluminense diante do Brasil.41
O autor parte da existência de uma identidade local que exalta o seu papel no cenário brasileiro,
capaz de associar o destino do Brasil ao do Rio de Janeiro. Aponta, assim, para a presença de
um discurso capaz de ser apropriado e reatualizado entre os fluminenses no qual se definia que
a história brasileira dependia da própria história do Rio de Janeiro. O autor, tal como Ferreti,
atenta para a historicidade e o uso político desse passado. Ele analisa a emergência de um
discurso histórico regional exaltador das tradições locais que surgiu vinculado a um projeto
político de soerguimento do Rio de Janeiro a partir da década de 1940.

Nas décadas de 1940 e 1950, segundo o autor, a política fluminense foi marcada pela instituição
de um grupo político, o amaralismo42, que tinha na figura de Amaral Peixoto seu principal
representante. Esse grupo defendia um projeto de soerguimento do estado no cenário nacional

41
FERNANDES, Rui Aniceto Nascimento. Historiografia e identidade fluminense. A escrita da história e os
usos do passado no Estado do Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 1950. Tese (Doutorado em História) -
Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009.
42
Sobre o amaralismo, o autor assinala: “O projeto amaralista de revitalização político-econômica do estado
desenvolvido nas décadas de 1930 a 1950 afirmava-se como um regenerador da história do estado, pois seria
aquele capaz de recuperar o lugar de destaque outrora ocupado pelo Rio de Janeiro no concerto nacional. As
diretrizes desse grupo, firmadas nas décadas de 1930 e 1940, tiveram continuidade nos anos cinquenta. O
amaralismo fixava seu projeto político e econômico tendo como alicerces as práticas tradicionais do estado: as
políticas clientelistas e as atividades agropecuárias. Suas alianças políticas foram firmadas com grupos locais
ligados às atividades agrícolas e pecuárias. Projetava-se a recuperação econômica e política do estado através do
investimento nos setores agrícolas.” FERNANDES, Rui Aniceto Nascimento. Historiografia e identidade
fluminense. A escrita da história e os usos do passado no Estado do Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e
1950. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, 2009.p. 127.; Sobre a valorização de um determinado passado: “A década de 1950 foi um momento-chave
para o estado do Rio. O amaralismo, formado durante o Estado Novo, lançou mão de um projeto para o Estado
que envolveu todas as esferas da vida na sociedade fluminense – política, econômica, social e cultural. Um projeto
alicerçado politicamente no norte fluminense – a região de maior dinamicidade econômica do Estado, por suas
atividades agropastoris, projeto que se voltou para a formação de um novo homem fluminense, fixado em suas
regiões e tradições, e civilizado em seus hábitos de higiene e instruído nos conhecimentos humanísticos e cívicos.
No discurso de valorização da história agropastoril do Estado, buscava-se sempre recuperar a imagem da Velha
Província.”; FERNANDES, Rui Aniceto Nascimento. Historiografia e identidade fluminense. A escrita da
história e os usos do passado no Estado do Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 1950. Tese (Doutorado em
História) - Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009. p. 145.
35

baseado na revitalização das suas atividades econômicas tradicionais. Reafirmava-se que a


recuperação do lugar fluminense no contexto nacional deveria ancorar-se na recuperação do
campo. Desse modo, prevalecia a noção de que a recuperação do Rio de Janeiro seria uma
recuperação histórica de sua posição alicerçada em atividades historicamente características da
região. Essa noção, por sua vez, era afirmada nos discursos políticos que se ancoravam no
saudosismo histórico de um período que fora perdido, a Idade do Ouro fluminense, a província
do século XIX.

Em consonância com essa política, construiu-se um discurso de defesa das tradições locais que
impulsionou a produção do conhecimento histórico sobre o Estado. Se o passado bandeirante
era recuperado como símbolo paulista, para o Rio de Janeiro:

Priorizou-se, no período, a construção das histórias locais ensejadas pelas efemérides


cinquentenárias e centenárias. No entanto, esses estudos não se perdiam no localismo.
Seus autores procuravam demonstrar a contribuição local para o estado e para o país.
A pequena pátria não estava dissociada da grande pátria. Por isso, eram ressaltadas as
características guerreiras/conquistadoras e agrícolas locais. O fluminense era um
guerreiro que através do labor agrícola construíra a riqueza do Brasil Império. 43

Segundo Fernandes, proliferaram, inclusive, com o apoio da administração pública estadual,


produções de história locais e regionais, no sentido de se destacar a contribuição das localidades
fluminenses, em suas especificidades e pioneirismo, na construção da história do Brasil.
Argumenta ele:

Esses estudos colocavam-se uma questão de maior envergadura: como a localidade


em análise poderia atuar no processo de revitalização política e econômica que então
se desenvolvia. E para respondê-la um leque de dados eram reunidos, destacando,
nesses casos, a história. Ela era compreendida como aquela capaz de dignificar o local,
pois no ordenamento cronológico dos fatos, nas sinopses biográficas dos filhos
ilustres, apresentava-se o que ela fora outrora. Que em tempos idos aquela faixa do
território do estado dera sua contribuição para a construção de um tipo específico, o
fluminense, e que colaborara no esplendor imperial. Era a história que podia
apresentar as vocações locais onde seriam investidos os recursos do estado para que
o dado município pudesse integrar-se no processo de revitalização que se
implementava.44

Rui Aniceto Fernandes, deste modo, observa que o conhecimento histórico produzido naquela
época legitimava o projeto político amaralista ao mesmo tempo em que reforçava os discursos

43
FERNANDES, Rui Aniceto Nascimento. Historiografia e identidade fluminense. A escrita da história e os
usos do passado no Estado do Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 1950. Tese (Doutorado em História) -
Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009. p. 229.
44
Ibid., p. 154.
36

que resgatavam a Idade de Ouro, o Império, período em que a antiga província do Rio de Janeiro
detinha a primazia política e econômica do Brasil.

O autor identifica a emergência de um discurso sobre a centralidade fluminense para a história


do Brasil que vincula leitura do passado e a possibilidade de seu uso político, no passado e no
presente. Esta centralidade do Rio de Janeiro e a “locomotiva” paulista são representações que
apresentam a necessidade de se definir e atestar um lugar desses estados no âmbito nacional.
Nesse cenário, Minas Gerais também se caracteriza por sua mineiridade.45

Maria do Nascimento Arruda identifica a existência em Minas Gerais de uma concepção acerca
do papel dos mineiros no cenário nacional como políticos dotados de bom senso, moderação e
temperança, “virtudes estas consideradas essenciais à urdidura do acordo”, e necessárias aos
fenômenos conciliatórios nos embates políticos nacionais, que somente os mineiros poderiam
oferecer.46

A autora analisa a mineiridade como uma identidade regional, forjada na comparação com o
restante do país. Dessa forma, a mineiridade constituiu-se como a particularidade de Minas
diante de sua importância para o destino do Brasil. A imagem do mineiro foi utilizada para se
instituir a missão de Minas Gerais para o restante do país, sobretudo, como ressaltou a autora,
na apropriação que os políticos locais realizaram desde o século XIX.47

Nesta relação, a principal característica alimentada pela produção cultural 48 e exaltada pelos
políticos foi o equilíbrio, a sua propalada capacidade conciliatória. O mineiro foi definido como

45
Maria A. do Nascimento Arruda entende assim a mineiridade: “[...] uma visão que se construiu a partir da
realidade de Minas e das práticas sociais. Por fundar a figura abstrata dos mineiros, a mineiridade tem as
características do mito; estes ao se identificarem com essa construção absorvem o pensamento mítico e colaboram
para a sua permanência [...].” ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. O imaginário
mineiro na vida política e cultural do Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989. p. 198.
46
Ibid., p. 14.
47
Sobre a apropriação do passado a autora ressalta: “Os políticos mineiros mobilizaram a memória do passado no
exercício de suas ações, enquanto legítimos porta-vozes de uma história transformada em tradição inquestionável.
[...] Os memorialistas, por seu turno, ofereceram poderosos contributos à nutrição do imaginário mineiro. Os
próprios discursos políticos transitam no interior da memorialística, visto que a lembrança dos feitos passados as
pressupõe. Também os escritores mineiros, fortemente amarrados à sua origem, exprimem esse profundo apego à
memória de Minas.” Ibid., p. 257.
48
A autora recorre a um conjunto diferenciado de fontes geradoras da mitologia da mineiridade. Ela analisa o
memorialismo mineiro, responsável pela sacralização das lembranças da terra; os viajantes do século XIX que, em
suas observações e estudos, traçaram um perfil peculiar dos mineiros; os cronistas responsáveis pelas primeiras
leituras do passado mineiro e, consequentemente, pela glorificação do passado de Minas Gerais; os ensaístas,
delineadores da identidade mineira, ou seja, os que foram capazes de combinar as memórias e as alusões ao passado
conformando um discurso original sobre os mineiros; e, também, a literatura, definidora da atmosfera romântica
na referência à Minas Gerais e fornecedora dos tempos da mineiridade, do tempo mítico desse discurso.
37

elemento conciliador, realista e pragmático. Esta faceta, no entanto, era acompanhada, por outro
lado, por seu ímpeto libertário e incontido. Segundo Maria do Nascimento Arruda, estas duas
faces do mineiro correspondiam à forma como parte da sociedade mineira do século XIX passou
a lidar com seu passado e a produzir uma memória que alimentava essa mineiridade.

Assim como Danilo Ferreti buscou para São Paulo, a autora evidencia a origem da mineiridade.
De acordo com ela, no século XIX, definiu-se em Minas uma relação entre presente e passado
que possibilitou a emergência do mineirismo. A partir de sua produção cultural e de sua
participação política em plano nacional manifestaram-se as características da mineiridade, da
figura abstrata e típica do mineiro. Segundo a autora, o período que se convencionou chamar
de decadência da sociedade mineradora adentrou o século XIX e, no contexto caracterizado
pelo processo de ruralização da sociedade, ficou evidente a diferença entre duas temporalidades
distintas: o presente marcado pela decadência da sociedade aurífera e a prevalência do rural e
um passado imaginado e exaltado, um outro tempo, o da centralidade e da grandiosidade de
Minas no cenário colonial, do dinamismo e da riqueza da vida em torno das cidades mineradoras
e o da cultura presente na vida intelectual local. Nesse contexto, prevaleceu a busca pelas
permanências. As elites mineiras forjaram um ideal que exprimia o desejo de preservação de
um passado glorificado que definia as características do ser mineiro, que permaneceram ao
longo do tempo.

Nesse sentido, cronistas e ensaístas se apropriaram de um passado no qual Minas Gerais era um
marco da história do Brasil e seu centro de equilíbrio. A forma como concebiam o passado de
Minas estabelecia a temperança e a conciliação, ou seja, as mudanças e as percepções sobre o
presente orientaram uma idealização do passado. Maria do Nascimento Arruda evidencia
como, ao longo do século XIX, a leitura que estabeleciam do passado definiu a roupagem do
mineiro: da rebeldia associada aos inconfidentes, passou a representar a ordem, o equilíbrio e a
preservação da unidade.49

O episódio da Inconfidência Mineira e a figura de Tiradentes são exemplares, segundo ela. Na


interpretação do passado de Minas, a vocação democrática, o ímpeto de liberdade e rebeldia
estavam presentes na figura do Inconfidente. No entanto, o modo como se deu o desfecho desse

Dialogando com essa produção, ela analisou diversos discursos políticos entre o século XIX e meados da década
de 1980 que se apropriavam da figura mítica do mineiro em seus discursos políticos.
49
ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. O imaginário mineiro na vida política e
cultural do Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989. p.71.
38

acontecimento somado à decadência da sociedade mineradora e o estabelecimento de uma nova


ordem política, a Imperial, possibilitou uma idealização do passado em conformidade com a
nova condição. Os mineiros permaneciam como herdeiros dos inconfidentes, amantes de nobres
ideais em prol do Brasil, como críticos da tirania, mas passavam a ser defensores da ordem.
Mantinha-se o ideal de liberdade, porém, associado ao da moderação.50

Dessa forma, dentre outras questões analisadas pela autora, os usos dessa memória acerca de
Minas Gerais e seu papel de centralidade na história do Brasil permearam e foram apropriados
em diferentes contextos políticos nacionais.

Diante dessa perspectiva de abordagem e da identificação de formas de se compreender o


passado que definem lugares a Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, caberia avaliar onde
se insere o Espírito Santo, sob qual perspectiva se recupera o passado local. No entanto, antes
de analisarmos os parâmetros utilizados acerca do entendimento de seu lugar e de como se
compreende seu passado, podemos observar as ideias e imagens que nos remetem a um lugar
diferenciado a esses atribuídos a paulistas, mineiros e fluminenses. É o caso do Nordeste, por
exemplo.

No que tange à produção de uma imagem acerca de uma região, Durval Muniz apresenta a
proposta de invenção do Nordeste.51 Segundo ele, a imagem que se tem acerca da região foi um
processo de invenção construído a partir do início do século XX, mais especificamente, com a
emergência do regionalismo. O autor evidencia como diversas obras e diferentes autores, em
épocas e estilos diferentes possibilitaram que o Nordeste fosse nordestinizado, ou seja,
descreveram e inscreveram essa região no país, definindo uma série de atributos que o
qualificam. A ideia central da obra de Durval Muniz aponta para que esse conjunto de
enunciados de matrizes discursivas distintas instituíram um Nordeste da pobreza e do atraso
definido em oposição à região sul.

A origem do Nordeste, como prática discursiva, segundo o autor é datada historicamente 52 e


emerge de um conjunto de práticas como o combate à seca, o combate violento ao cangaço e

50
ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. O imaginário mineiro na vida política e
cultural do Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989. p.65-70.
51
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN; Ed.
Massangana; São Paulo, Cortez, 2001.
52
Sobre a emergência discursiva do Nordeste o autor evidencia: “O Nordeste surge como reação às estratégias de
nacionalização que o dispositivo da nacionalidade e a formação discursiva nacional-popular põem em
funcionamento; por isso não expressa mais os simples interesses particularistas dos indivíduos, das famílias ou
39

ao messianismo e com os arranjos das elites políticas para a manutenção de privilégios. Para
ele, a região surge também como práticas discursivas que passaram a produzir um conjunto de
saberes de marcado caráter regional. É assim que o autor evidencia que a legitimação do
“recorte Nordeste” aparece, primeiramente, no movimento cultural iniciado com o Congresso
Regionalista de 1926, cujo primeiro propósito “foi o de instituir uma origem para a região.”
Inserindo, inclusive, Gilberto Freyre53 como representante desse grupo, o autor argumenta que
surgia ali uma história regional:

Esta história regional retrospectiva busca dar à região um estatuto, ao mesmo tempo
universal e histórico. Ela seria restituição de uma verdade num desenvolvimento
histórico contínuo, em que as únicas descontinuidades seriam de ordem negativa:
esquecimento, ilusão, ocultação. A região é inscrita no passado como uma promessa
não realizada, ou não percebida; como um conjunto de indícios que já denunciavam
sua existência ou a prenunciavam. Olha-se para o passado e alinha-se uma série de
fatos, para demonstrar que a identidade regional já estava lá. Passa-se a falar de
história do Nordeste, desde o século XVI, lançando para trás uma problemática
regional e um recorte espacial, dado ao saber só no início do século XX. 54

Dessa forma, além dos aspectos históricos, Durval Muniz observa que a caracterização do
Nordeste se deu por uma série de discursos que passaram a dar sentido à essa região.
Romancistas como José Lins do Rego e Rachel de Queiróz, pintores como Cícero Dias e Lula
Cardoso Ayres seguiram essa perspectiva de inscrever o Nordeste. E, a partir da década de
1930, segundo ele, existiu a reelaboração da ideia de Nordeste, sob outro paradigma, mas
vinculado à tradição formulada pelos discursos anteriores, por meio de temas, imagens e
enunciados já consagrados pelos discursos tradicionalistas:

Os romances de Graciliano Ramos e Jorge Amado, da década de trinta, a poesia de


João Cabral de Melo Neto, a pintura de caráter social, da década de quarenta, e o

dos grupos oligárquicos estaduais. Ele é uma nova região nascida de um novo tipo de regionalismo, embora
assentada no discurso da tradição e numa posição nostálgica em relação ao passado. O Nordeste nasce da
construção de uma totalidade político-cultural como reação à sensação de perda de espaços econômicos e políticos
por parte dos produtores tradicionais de açúcar e algodão, dos comerciantes e intelectuais a eles ligados. Lança-se
mão de topos, de símbolos, de tipos, de fatos para construir um todo que reagisse à ameaça de dissolução, numa
totalidade maior, agora não dominada por eles, a nação. Unem-se forças em torno de um novo recorte do espaço
nacional, surgido com as grandes obras contra as secas. Traçam-se novas fronteiras que servissem de trincheira
para a defesa da dominação ameaçada.” ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do
Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo, Cortez, 2001. p. 80.
53
Sobre a interpretação do passado do Nordeste elaborada por Gilberto Freyre, Durval Muniz ressalta: “Gilberto
Freyre, por exemplo, atribui à influência holandesa no século XVII um dos fatores de diferenciação do Nordeste.
Esta área teria se diferenciado até do ponto de vista cultural do restante do país, a partir do momento em que Recife
se constituiu em centro administrativo de uma área equivalente ao atual Nordeste, além de centro financeiro,
comercial e intelectual judaico-holandês. Este mesmo autor atribuiu à administração portuguesa a formação de
uma ‘consciência regional’ mais forte do que uma consciência nacional, que, caso existisse, poria em perigo o
domínio do colonizador. Faz assim, de uma maneira ou de outra, recuar ao período colonial a consciência regional,
a própria existência do Nordeste e, ao mesmo tempo, coloca-a como um dos fatores de formação da própria
consciência nacional. Para ele, a região teria nascido antes da nação.” Ibid., p. 88-89.
54
Ibid., p. 89.
40

Cinema Novo, do final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, tomarão o
Nordeste como exemplo privilegiado da miséria, da fome, do atraso, do
subdesenvolvimento, da alienação do país. Tomando acriticamente o recorte espacial
Nordeste, esta produção artística ‘de esquerda’ termina por reforçar uma série de
imagens e enunciados ligados à região que emergiram com o discurso da seca, já no
final do século passado. Vindo ao encontro, em grande parte, da imagem espaço-
vítima, espoliado; espaço da carência, construído pelo discurso de suas oligarquias.
Eles lançam mão de uma verdadeira mitologia do Nordeste, já fabricada pelos
discursos anteriores, e a submete a uma leitura ‘marxista’ que a inverte de sentido,
mantendo-a, no entanto, presa à mesma lógica de questões. Do Nordeste pelo direito,
passamos a vê-lo pelo avesso, em que as mesmas linhas compõem o tecido, só que,
no avesso, aparecem seus nós, seus cortes, suas emendas, seu rosto menos arrumado,
embora constituinte também da própria malha imagético-discursiva chamada
Nordeste.55

Durval Muniz, portanto, compreende a região como prática discursiva em sua historicidade. A
invenção do Nordeste, em sua análise, evidenciou as configurações discursivas elaboradas
historicamente que lhe atribuíram características morais, culturais e simbólicas, designando-o,
na maioria das vezes, como lugar da pobreza e miséria, do atraso, do rural e contrastado pelo
seu oposto, a região Sul, como lugar do urbano, da riqueza e do progresso. Impressões e
inscrições sobre o Nordeste que, segundo ele, são atualizadas e ainda recorrentes na
caracterização da região.56

E o Espírito Santo? Qual o lugar reservado para ele? Qual a relação entre as leituras do passado
e as representações de Espírito Santo? Quais questões orientam a leitura do passado
espiritossantense? É possível identificarmos também apropriações e usos desse passado? As
representações de Espírito Santo aproximam-se das versões relativas aos estados do Sudeste,
no qual está inserido, ou foge à centralidade e se identifica com a marginalidade instituída nas
representações de Nordeste?

Quando avaliamos as percepções e impressões acerca do Espírito Santo identificamos algumas


questões que envolvem a sua designação como lugar de carência, marginalização e atraso,
considerados históricos, principalmente, quando essas atribuições surgem da definição que o
Estado ocupa em comparação com outras unidades federativas, principalmente, em relação às
do Sudeste. Então, diferentemente da identidade fluminense que se afirma na representação da
importância do Rio de Janeiro para o Brasil; oposta à identidade bandeirante e à ideia de São
Paulo como “locomotiva do Brasil”; e distante das virtudes que compõem a construção da

55
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN; Ed.
Massangana; São Paulo, Cortez, 2001. p. 215.
56
Ibid., p. 14-28.
41

mitologia da mineiridade, identificamos a especificidade de uma representação de Espírito


Santo que institui e reforça o que denominamos de imagem do atraso e sua superação.

Sendo assim, complementando essa reflexão, cabem ainda algumas indagações: por que se diz,
que o Espírito Santo é marginalizado, esquecido, vítima na história do Brasil? Por que se produz
e reproduz, por meio de discursos de diferentes matrizes, qualificações de Espírito Santo que
reservam um lugar especial à ideia de atraso, como uma verdade estabelecida? Nesse sentido,
qual a relação entre essa noção de atraso e a de superação tão recorrentes nos discursos políticos
locais? E, por último, existiria, então, uma relação entre eles e uma concepção do passado do
Espírito Santo?

Tais questões nos ajudam a traçar um panorama do “desafio historiográfico do Espírito Santo”
envolvendo as interpretações e os usos políticos do passado, bem como nos direcionam para a
reflexão de como se avalia, se compreende e se narra o passado espiritossantense a partir das
experiências e práticas do presente. Segundo Salgado Guimarães, as referências que uma
sociedade possui ou às quais ela recorre para compreender sua contemporaneidade são
encontradas no tempo passado, mas o ato de revisitá-lo, não está desvinculado de demandas e
questões de um tempo presente.57

Ao propormos uma reflexão sobre os regimes de escrita da história espiritossantense,


reconhecemos que o nosso “desafio historiográfico” deve partir das questões que envolvem as
formas de apreensão do Espírito Santo. Na construção desse desafio, portanto, considerando
essas questões e demandas de um tempo presente, identificamos que no Estado, o início do
século XXI foi marcado por uma série de análises e expectativas acerca do desenvolvimento
econômico que buscaram caracterizá-lo. Nesse cenário, reconhecemos uma série de discursos
reveladores de uma determinada relação: entre a forma de se compreender o Espírito Santo –
os critérios de avaliação e qualificação do mesmo –, no presente e no passado, com os usos
políticos dessas leituras. Em suma, vamos abordar essa relação necessária para a definição e
compreensão do que entendemos como "desafio historiográfico do Espírito Santo."

57
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória. In:
ABREU, Marta; SOIHET, Raquel; GONTIJO, Rebeca (orgs.). Cultura política e leituras do passado:
historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 39.
42

1.2.1 O DESAFIO HISTORIOGRÁFICO E AS REPRESENTAÇÕES POLÍTICAS DE


ESPÍRITO SANTO: O DISCURSO DA SUPERAÇÃO DO ATRASO E AS LEITURAS DE
PASSADO.

A primeira década do século XXI exibiu expectativas acerca do crescimento econômico do


Espírito Santo, o que, por sua vez, possibilitou a emergência de uma série de diagnósticos e
prognósticos acerca do desenvolvimento do Estado que carregavam um conjunto de enunciados
caracterizadores de uma imagem projetada do Espírito Santo. Constituiu-se, principalmente, ao
longo dos dois primeiros mandatos de governador de Paulo Hartung58, a construção de uma
imagem do Espírito Santo integrada ao desenvolvimento e ao progresso, que identificava seu
governo à uma nova condição do Estado em relação ao cenário nacional bem como à sua
trajetória histórica. Hartung apresentou-se como personagem símbolo de uma nova realidade
que marcaria um novo status do Espírito Santo. Em reportagem sobre o Estado, seu
representante fora apresentado como o “Imperador do Espírito Santo”:

Muitos analistas consideram que o Espírito Santo vive hoje o melhor período
econômico de sua história. Há uma explosão de investimentos públicos e privados na
região.[...] A combinação desses fatores fez a arrecadação do Espírito Santo
disparar.[...] Com o dinheiro, Hartung pagou as dívidas herdadas e recuperou a
capacidade de investimento do Estado. Ex-líder do noticiário político-policial, patinho
feio do Sudeste, o Espírito Santo virou destaque. E o imperador comanda o carro-
chefe.59

A matéria da revista Época correspondia a esse processo de construção de uma nova imagem
do Espírito Santo que envolvia a noção de mudança e superação. Essa ideia-força presente nos
discursos sobre o Espírito Santo pode ser identificada no pronunciamento de Paulo Hartung em
solenidade da posse de seu segundo mandato:

Um novo Espírito Santo. Esta é a marca que vai identificar o nosso segundo mandato
à frente do Executivo Estadual. Optamos por começar o Planejamento Estratégico
com esta apresentação porque a marca se refere, a um só tempo, ao nosso presente e
ao nosso futuro.[...] Já podíamos registrar que a ‘Nova História Capixaba’ tinha seus
primeiros capítulos sendo escritos por um mutirão inédito em nosso Estado. [...] Ou
seja, nos últimos quatro anos, um novo Espírito Santo se impôs, um novo Espírito
Santo nasceu e deu os seus primeiros passos. [...] Daí o significado do slogan ‘Um
novo Espírito Santo’. Ele celebra a recente transformação na vida capixaba e indica a
missão de avançar com esse novo tempo que acabamos de inaugurar. [...]Senhoras e
Senhores, as conquistas do presente nos inspiram quanto a um futuro muito, muito
melhor. Mas, antes de tudo, nos fazem comprometidos com a consolidação da

58
Paulo Hartung foi governador do Espírito Santo durante dois mandatos consecutivos, entre os anos de 2003 a
2010. A imagem de um “Novo Espírito Santo” elaborada durante seu governo efetivou-se durante seu segundo
mandato.
59
MENDONÇA, Ricardo. O imperador Capixaba, 22 de maio de 2008. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI4502-15223,00-
O+IMPERADOR+DO+ESPIRITO+SANTO.html. Acesso em: 23 de junho de 2009.
43

mudança. Garantindo as vitórias do presente, garantiremos a superação histórica que


iniciamos em 2003. 60

Ao se apresentar como marco da história do Espírito Santo, de um novo momento, o discurso


de posse de Paulo Hartung evidencia a construção da imagem de um “Novo Espírito Santo”,
caracterizada pela relação que guarda com a noção de superação – característica do discurso
político e das representações de Espírito Santo no presente e no passado. Cabe ressaltar que a
recorrência a esta ideia por parte de Hartung não foi casual. Pelo contrário, sua força e sentido
se encontram em sua relação com a existência de um ideal historicamente elaborado acerca do
desenvolvimento local fundamentado na noção de superação do atraso.

De acordo com Gabriel Bittencourt, o Espírito Santo é marcado por um tipo de ideal
desenvolvimentista originário, no início do século XIX, como “uma reação ao seu aspecto
secundário no contexto regional” ao longo de sua trajetória colonial.61 Estilaque Ferreira dos
Santos argumenta que a noção de superação faz parte do discurso político local sobre o
desenvolvimento e se caracteriza por sua longa duração. O autor define o início do século XIX
como momento da “gênese do pensamento político capixaba.” A partir daí, segundo ele,
poderíamos observar uma série de discursos e práticas governamentais voltadas para a
superação de uma condição colonial, por ter sido o Estado “uma capitania relativamente
marginalizada e isolada das correntes comerciais externas que poderiam dinamizar sua
economia.”62 Analisando alguns governos provinciais locais durante o século XIX, argumenta
que, a partir de Silva Pontes (1800), passou a existir um ideal de superação de tal condição.
Segundo ele, existiu nos governantes do Espírito Santo uma percepção da estreita relação entre
vias de comunicação, povoamento e colonização imigrante vistas como caminho para as
mudanças necessárias visando modificar a situação de déficit econômico.63 Estilaque
argumenta que as ideias básicas de Silva Pontes, “naquele momento, estavam muitos distantes

60
HARTUNG, Paulo. Relatório de Gestão. Ano 2007. Disponível em:
http://www.es.gov.br/banco%20de%20documentos/relatorios_gestao/Relatorio_de_Gestao_2007.pdf. Acesso
em: 14 de agosto de 2009.
61
BITTENCOURT, Gabriel. A conjuntura da formação cultural capixaba. Introdução. In: Espírito Santo: um
painel da nossa história. Vitória: Imprensa Oficial/ES, 2002. p. XXVII.
62
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Vias de comunicação, conquista territorial e colonização estrangeira no
Espírito Santo do séc. XIX: a gênese do pensamento político capixaba, DIMENSÕES– Revista de História da
UFES, n.17, Vitória, 2005. p. 49.
63
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Vias de comunicação, conquista territorial e colonização estrangeira no
Espírito Santo do séc. XIX: a gênese do pensamento político capixaba, DIMENSÕES– Revista de História da
UFES, n.17, Vitória, 2005. p.50.
44

das condições que poderiam tê-las viabilizado [...]”, no entanto, ainda que retificadas, tiveram
um “longo futuro na história capixaba.”64

De acordo com Estilaque Ferreira dos Santos e Gabriel Bittencourt, encontramos no início do
século XIX a emergência de práticas e discursos políticos sobre o desenvolvimento do Espírito
Santo fundamentados na noção de superação, ligados ao passado da região e que fazem parte
das ideias políticas locais. Ao observarmos o projeto de desenvolvimento do Espírito Santo no
início do século XXI, identificamos a permanência ou a apropriação dessa ideia na
caracterização do Estado, como evidenciou o pronunciamento,supracitado, de Hartung.

Desse modo, consideramos que as ideias, impressões e percepções construtoras das


representações de Espírito Santo ligadas ao desenvolvimento econômico e presentes nos
discursos de realização ou busca pelo “Novo Espírito Santo,” associadas à noção de superação,
foram definidas a partir de ideias-imagens que buscaram dar um significado à realidade
espiritossantense.65 Entendendo a força dessas imagens,66 consideramos que a representação de
um “Novo Espírito Santo”, vinculou-se a um conjunto de ordenações simbólicas que permitem
não só significar a realidade, mas, fundamentalmente, produzi-la. Os discursos produzem
estratégias e práticas sociais voltados para “[...] legitimar um projeto reformador ou a justificar,
para os próprios indivíduos suas escolhas e condutas.”67

A auto definição exposta no slogan governamental “Novo Espírito Santo” correspondia, deste
modo, a um projeto político viabilizado ao longo da primeira década do século XXI que teve
no governo Paulo Hartung sua realização. Nesse período, o discurso político imprimiu a noção
de Terceiro Ciclo de Desenvolvimento e, consequentemente, apropriando-se da noção de

64
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Vias de comunicação, conquista territorial e colonização estrangeira no
Espírito Santo do séc. XIX: a gênese do pensamento político capixaba, DIMENSÕES– Revista de História da
UFES, n.17, Vitória, 2005.p. 51.
65
Segundo Pesavento, as representações dizem respeito a um sistema de ideias-imagens que dá significado à
realidade, logo, participando de sua existência. Assim, é preciso considerar que o real é, simultaneamente,
concretude e representação, e que se expressa por um sistema de ideias-imagens que constituem a representação
do real. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra História: imaginando o Imaginário. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v.15, nº 29, p.16.
66
Baczko, sobre a força do imaginário, argumenta que ele “intervém a diversos níveis da vida coletiva, realizando
várias funções em relação aos agentes sociais. O seu trabalho opera através de séries de oposições que estruturam
as forças afetivas que agem sobre a vida coletiva, unindo-as, por meio de uma rede de significações, às dimensões
intelectuais dessa vida coletiva: legitimar/invalidar; justificar/acusar; tranquilizar/perturbar;
mobilizar/desencorajar; incluir/excluir” BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. Enciclopédia Einaudi, vol.5.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 312.
67
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1990. p. 19.
45

superação, configurou uma imagem do Espírito Santo que inaugurava um novo momento. O
discurso do “novo” apresentava-se na “nova realidade” representada por indicadores
econômicos, no “novo ciclo econômico”, no “novo lugar” ocupado pelo Estado no cenário
nacional, a “nova era” promulgada em oposição a momentos anteriores do passado
espiritossantense.68

O discurso do desenvolvimento e a representação do “Novo Espírito Santo” correspondiam às


ações governamentais, às circunstâncias econômicas bem como a um conjunto de práticas
político-discursivas que possibilitavam a emergência dessa realidade representada. O Espírito
Santo a partir do início do século XXI recebeu investimentos do governo federal e da iniciativa
particular tornando-se um dos estados brasileiros com os maiores níveis de investimentos
econômicos.69 Segundo Admir Wetler Júnior, o governo Paulo Hartung elaborou o Plano
Estratégico de Desenvolvimento do Espírito Santo, conhecido como ES 2025, voltado para o
direcionamento das ações político-econômicas locais com o propósito de atingir metas de
desenvolvimento econômico. Para ele, a elaboração do ES 2025 surgiu no momento de amplos
investimentos, o que o discurso oficial caracterizou como “Terceiro Ciclo Econômico”,
marcado pelo foco direcionado à área de recursos energéticos. Sobre esse momento, ele
assinala:

Dessa forma, depois de um período de crise e reestruturação, o estado estaria


partindo para um novo ciclo de investimentos.
O novo ciclo traz como carro chefe as novas descobertas de petróleo e gás
natural no Estado. Cinco pólos de exploração e produção (E&P), que crescem
simultaneamente, elevam o Espírito Santo a um patamar diferenciado,
abrangendo E&P em terra, águas rasas, profundas e ultra profundas, bem como

68
A noção de superação presente no discurso político do “Novo Espírito Santo” poderia surgir em enunciados que
envolviam a noção de travessia ou ligação entre passado e futuro, mas que colocavam o “novo momento” como
marco dessa mudança. No relatório de gestão referente ao ano de 2007, o então governador recorreu à noção de
travessia: “Desde 2003, cada ano tem sido melhor que o outro. E tenho certeza: assim também será nos próximos
anos. A caminhada de travessia que iniciamos lá em 2003 nos levou a uma nova fronteira histórica capixaba, ainda
no primeiro mandato.” HARTUNG, Paulo. Relatório de Gestão. Ano 2007. Disponível em:
http://www.es.gov.br/banco%20de%20documentos/relatorios_gestao/Relatorio_de_Gestao_2007.pdf. Acesso
em: 14 de agosto de 2009.;A inauguração da Ponte Carlos Lindenberg em Vitória, conhecida como Ponte da
Passagem, evidenciou a recorrência a esse simbolismo: “Planejamento, desenvolvimento e modernidade são
algumas das características que assemelham a Nova Ponte da Passagem, inaugurada neste sábado, à atual fase de
crescimento pela qual passa o Espírito Santo. Com essa imagem, sob um céu ensolarado e muitos populares, o
Governo do Estado e a Prefeitura de Vitória apresentaram a nova estrutura que liga a Ilha de Vitória ao continente.
[...] O governador Paulo Hartung afirmou que a nova Ponte da Passagem possui uma utilidade concreta, que é a
de melhorar a mobilidade urbana em Vitória e na Região Metropolitana, e também um significado simbólico muito
relevante para o Espírito Santo. [...] ‘Essa ponte liga aquele Espírito Santo desorganizado a esse Espírito Santo de
planejamento, ação e desenvolvimento compartilhado.’” Disponível em: http://www.es.gov.br/site/noticias/show.
aspx?noticiaId=99699416. Acesso em 02 de setembro de 2009.
69
WETLER JUNIOR, Admir Clemente. Espírito Santo 2025: uma análise das implicações econômico-sociais do
novo ciclo previsto. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-
Graduação em Economia, Porto Alegre, 2008. p.14-15.
46

na exploração do gás natural. A ideia fundamental é que esta atividade sirva de


catalizador para impulsionar a economia estadual, pressupondo-se sinergias
diretas e indiretas do setor do petróleo com os demais arranjos produtivos
capixabas.
Com estas descobertas, o ES deixa a posição de pequeno produtor e passa a
entrar no eixo estratégico produtivo do cenário nacional e internacional. 70

O autor nos demonstra que o século XXI apresentou perspectivas de mudança do cenário
econômico do Espírito Santo. Para além desse diagnóstico da economia local, evidenciamos
que tal panorama possibilitou a emergência de uma série de enunciados qualificadores do
Espírito Santo, que colaboram com a nossa reflexão acerca da construção de representações
bem como dos critérios de avaliação do Espírito Santo.

Nesse sentido, destacamos o ES 2025, como representante do projeto político governamental,


e enunciador dessas percepções e impressões sobre o Espírito Santo a que nos propusemos
avaliar. Primeiramente, observamos como as expectativas de futuro condiziam com a visão
sobre o presente. A representação do “Novo Espírito Santo” era, assim, definida a partir da
caracterização desse momento como marco inaugural:

[...] esse mutirão libertou os capixabas da opressão criminosa do passado, vem


acertando as contas com o presente e nos deu oportunidade de pensar no futuro, como
mostra este Plano. [...]O futuro já está escrito. Suas linhas passam a compor nossos
projetos e nossos sonhos. Num momento de perspectivas tão promissoras, como nunca
se viu no Espírito Santo, este plano sinaliza um caminho concreto para a efetivação
de um horizonte de prosperidade.71

O presente como marco histórico surgia, assim, como gerador de expectativas acerca de um
novo padrão de desenvolvimento e do lugar do Espírito Santo:

O Plano de Desenvolvimento Espírito Santo 2025 mostra que é possível alcançar um


padrão elevado de desenvolvimento para a sociedade capixaba. Não se pretende que
o Estado do Espírito Santo seja uma ‘ilha’ no Brasil. Provavelmente nossas virtudes
não são maiores nem são menores os defeitos do que em outras regiões do Brasil. Mas
o enfrentamento e a superação de desafios no presente nos encorajam e nos obrigam
a ousar um salto de qualidade.72

70
WETLER JUNIOR, Admir Clemente. Espírito Santo 2025: uma análise das implicações econômico-sociais do
novo ciclo previsto. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-
Graduação em Economia, Porto Alegre, 2008. p. 38.
71
HARTUNG, Paulo. Apresentação. In: ES 2025. Plano estratégico para o desenvolvimento do Espírito Santo:
carteira de projetos estruturantes. Espírito Santo: Macroplan, 2006. 10 volumes. Disponível em:
http://www.espiritosanto2025.com.br. Acesso em 06 de maio de 2010.
72
DIAS, Guilherme. Introdução. In: ES 2025. Plano estratégico para o desenvolvimento do Espírito Santo:
carteira de projetos estruturantes. Espírito Santo: Macroplan, 2006. 10 volumes. Disponível em:
http://www.espiritosanto2025.com.br. Acesso em 06 de maio de 2010.
47

A preocupação em se atestar e afirmar o lugar do Espírito Santo no cenário nacional aparece


associada à noção de superação. No tópico sobre as expectativas de futuro do Plano de
Desenvolvimento Estratégico, identificamos a projeção de um Espírito Santo que afirmaria seu
lugar no contexto nacional:

Estamos em 2025. O Espírito Santo acaba de se tornar um dos primeiros estados do


Brasil a conquistar um padrão de vida semelhante àquele experimentado pelas nações
mais desenvolvidas. A população capixaba se orgulha de ter erradicado a pobreza e
de viver em um estado precursor de um modelo de desenvolvimento que se diferencia
pela qualidade de seu capital humano, pela capacidade competitiva de suas empresas
e por instituições públicas eficientes e reconhecidas. [...] No campo econômico, há
mais de um quarto de século que o Espírito Santo não para de crescer. O estado cresce,
em média, 6% ao ano e já é o 5º mais competitivo da Federação.73

A “nova realidade” e o “novo lugar” seriam as marcas dessa “nova era” inaugurada, na qual o
Espírito Santo:

antecipa o advento de um modelo diferenciado de desenvolvimento que inaugura o


terceiro ciclo capixaba. E este novo ciclo é uma aspiração da sociedade capixaba. [...]
Em 2025, o Espírito Santo adquiriria um nível de desenvolvimento semelhante ao de
países mais avançados, e os capixabas conquistariam padrão de vida equivalente ao
que hoje desfrutam as sociedades do chamado Primeiro Mundo.74

A imagem do Espírito Santo era formulada pelo discurso do desenvolvimento econômico,


portador de diagnósticos qualificadores do presente e prognósticos que nos remetem,
consequentemente, à noção de superação. Esta, portanto, caracterizou-se como uma ideia-força
no discurso político e na construção dessa imagem do Espírito Santo. Segundo o ex-governador
Paulo Hartung:

Entre 2003 e 2007, o Espírito Santo liderou a redução da pobreza no país. A taxa de
pobreza, que era de 25,2% em 2003, caiu para 13,3% em 2007. Nesse mesmo período,
a extrema pobreza foi reduzida de 7,8% para 3,5%. O crescimento da classe média foi
notável: 48% no Espírito Santo contra 35% no Brasil. Em 2007, a classe média já
representava mais da metade da população capixaba (50,1%), índice acima da média
nacional (47,1%). [...] A expansão da siderurgia e a constituição do negócio de
petróleo e gás são duas das alavancas fundamentais no terceiro ciclo histórico de nossa
economia, iniciado em 2003. Só para citar alguns exemplos: somos o maior
exportador de pellets do mundo, e o segundo em produção de petróleo no Brasil. Em
2009, nós nos tornaremos o principal fornecedor de gás do país, com 20 milhões de
metros cúbicos por dia. [...] Temos pontuado alguns dos maiores índices de
crescimento industrial. Segundo o IBGE, no primeiro semestre de 2008, em

73
ES 2025. Plano estratégico para o desenvolvimento do Espírito Santo: carteira de projetos estruturantes.
Espírito Santo: Macroplan, 2006. 10 volumes. p. 23. Disponível em: http://www.espiritosanto2025.com.br. Acesso
em 06 de maio de 2010.
74
ES 2025. Plano estratégico para o desenvolvimento do Espírito Santo: carteira de projetos estruturantes.
Espírito Santo: Macroplan, 2006. 10 volumes. p. 23. Disponível em: http://www.espiritosanto2025.com.br. Acesso
em 06 de maio de 2010. p. 27.
48

comparação com igual período de 2007, a indústria capixaba foi a que mais cresceu:
16,1%. No mesmo período, o indicador nacional foi de 6,2%. 75

A representação do “Novo Espírito Santo” fundamentou-se, assim, numa série de índices


comparativos que colaboravam para instituir uma nova condição, tendo como característica sua
marca de superação:

Um bom teste de verificação são as conquistas no dia-a-dia da população, traduzidos


em números e indicadores. Os que citei acima, entre outros, mostram o resultado
espetacular do mutirão que estamos liderando desde 2003. A reconstrução e a
superação capixabas são uma conquista coletiva[...]. Quanto ao futuro, devo dizer que
os dias que virão são plantados no presente. Nesse sentido, estamos preparando o
estado para seguir firme e forte na rota do desenvolvimento sustentável e com
igualdade de oportunidades. Tenho fé no futuro capixaba, até porque nos últimos anos
temos mostrado do que somos capazes. A superação é uma marca do povo capixaba.76

Essa identificação de um novo patamar de desenvolvimento na construção da imagem do


Espírito Santo no inicio do século XXI não se limitou ao discurso governamental. A
caracterização do presente e a representação do novo lugar do Espírito Santo tornaram-se
recorrentes no discurso político da primeira década do século XXI. Tanto o discurso oficial
como o de lideranças econômicas e políticas do Estado reforçaram a noção de superação. 77 A
exaltação de números e dados comparativos estabeleceram um novo estágio alcançado pelo
Espírito Santo. Segundo Walter Lídio Nunes:

O quadro atual, que se expressa por uma ambiência sadia e motivadora, não foi
construído ao acaso. [...] Sob a liderança política do governador Paulo Hartung, o
Espírito Santo construiu uma nova forma de governança, que conta com um amplo
leque de alianças, parcerias e sustentações. Em grande parte, isso foi possível a partir
de um trabalho árduo de recuperação e moralização da máquina pública. A capacidade
de investimento per capita apresentada hoje pelo Espírito Santo equivale a
aproximadamente quatro vezes a capacidade per capita média nacional. Um dado
impressionante, alcançado em tão pouco tempo. Não temos dúvida em afirmar que o
Espírito Santo está consolidando um novo paradigma de governança e
desenvolvimento, já conhecido e reconhecido em nível nacional. 78

75
HARTUNG, Paulo. Espírito santo: desafios para o desenvolvimento. Disponível em:
http://www.200maiores.com.br/artigos/12-qespirito-santo-os-desafios-para-a-consolidacao-do-
desenvolvimentoq. Acesso em: 16 de junho de 2009. Entrevista ao Anuário IEL 200 maiores.
76
HARTUNG, Paulo. Espírito santo: desafios para o desenvolvimento. Disponível em:
http://www.200maiores.com.br/artigos/12-qespirito-santo-os-desafios-para-a-consolidacao-do-
desenvolvimentoq. Acesso em: 16 de junho de 2009. Entrevista ao Anuário IEL 200 maiores.
77
Recorremos aos discursos proferidos por deputados e senadores do Estado nesse período analisado, bem como
a artigos presentes no sítio eletrônico da ONG ES em Ação, criada por empresários do Espírito Santo. Ver:
http://www.es-acao.org.br/index.php?id=/institucional/espirito_santo_em_acao/index.php.
78
NUNES, Walter Lídio. Um modelo de governança. Disponível em: http://www.es-
acao.org.br/saladeimprensa/artigos/artigos_materia.php?cd_matia=4668&cd_site=0. Acesso em: quinze de junho
de 2009.
49

Identificamos, dessa forma, um discurso que reforça um novo status do Estado, distante de
qualquer semelhança com o “patinho feio do Sudeste.” O discurso da superação era composto
nesse novo quadro do Espírito Santo:

A tendência é de que nosso Estado continue, nos próximos anos, a ser um grande
destaque da economia brasileira. Nesse cenário de futuro, acredito que o crescimento
mundial continuará em alta moderada, mas não necessariamente nos países que
compõem o tradicional G-8 e, sim, no grupo de nações do BRICAMI - ou seja, o
BRIC, que os conceituados economistas formaram, e no novíssimo AMI [...]. Na
verdade, BRICAMI é o grupo dos sete países formados por Brasil, Rússia, Índia,
China, África do Sul, México e Indonésia que, dentro de 20 a 30 anos, estarão,
certamente, entre as 15 maiores nações do mundo. E onde estará inserida a indústria
capixaba nesse contexto econômico? Em primeiro lugar, costumo fazer o mapa de
nosso estado tendo as seguintes divisas: ao norte, a Bahia; a oeste, Minas Gerais; ao
sul, Rio de Janeiro; e, a leste, onde temos o Oceano Atlântico, vejo a China,
possivelmente a maior fábrica do mundo, e a Índia, que será a grande prestadora de
serviço do planeta. [...] Como estado mais globalizado do país, pois seu comércio
internacional (a soma das importações com as exportações) representa praticamente
metade do Produto Interno Bruto, o Espírito Santo tem de estar incluído no contexto
internacional.79

Estes diagnósticos e prognósticos sobre a condição do Espírito Santo durante a primeira década
do século XXI caracterizaram também o discurso de lideranças políticas inseridas no debate
nacional. Deputados e senadores locais, de forma semelhante, contribuíram para a construção
da imagem do Novo Espírito Santo ao evidenciarem o momento do Estado e seu potencial no
contexto brasileiro.

No entanto, cabe ressaltar que, nesses discursos, encontramos mais um aspecto necessário para
a reflexão proposta. Dentro desse cenário de qualificações positivas, de um discurso sobre o
novo lugar do Espírito Santo, é possível identificarmos uma característica distintiva nas
qualificações do Estado: a recorrência às noções de prejuízos, impedimentos e marginalização
do Espírito Santo também comuns no discurso político local, sobretudo, o de caráter
reivindicativo. A noção de superação foi constituída, também, a partir da oposição entre
diagnósticos exaltadores e obstáculos colocados ao desenvolvimento do Espírito Santo.

Evidenciamos, primeiramente, a forma como o Espírito Santo passou a ser apresentado pelos
políticos locais à mesma época dos discursos até aqui analisados. Por exemplo, encontramos o
então senador Gerson Camata ratificando a nova condição do Estado, que recebia, segundo ele,

79
VIEIRA, Lucas Izoton. Espírito Santo Hoje e do Futuro. Disponível em:
http://www.200maiores.com.br/artigos/57-o-espirito-santo-hoje-e-do-futuro. Acesso em dezesseis de junho de
2009.
50

[...] omaior investimento público da história do Espírito Santo, num momento em que
o pessimismo predomina, em que tudo parece conspirar para que prevaleçam a
estagnação e a inércia! Esse volume de recursos é uma injeção de ânimo que garante
o prosseguimento da trajetória de progresso de um Estado com presença cada vez mais
significativa no cenário nacional. 80

O mesmo senador ressaltava o potencial do Espírito Santo e sua colaboração para a economia
brasileira:

Sr.Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em sua última visita ao Espírito Santo, no final
da semana passada, o presidente Lula inaugurou a segunda fase da Unidade de
Tratamento de Gás de Cacimbas, situada no município de Linhares, o maior em área
territorial do Estado. É um acontecimento merecedor de destaque, pois representa a
consolidação do território capixaba como um dos mais importantes agentes no cenário
energético brasileiro.[...] O Brasil não pode ficar dependente de um único fornecedor
externo do combustível, e a crise provocada pela nacionalização das reservas de
petróleo e gás do país vizinho foi a prova que faltava de que é preciso adotar medidas
capazes de reverter esse quadro. Para resolver o problema, as reservas do Espírito
Santo são uma das saídas e, sem dúvida, a mais rápida e econômica. Vai longe a época
em que investimentos como o realizado em Linhares não eram compensadores. Hoje,
são vitais para o futuro do País.81

Tal como identificamos na definição do “Terceiro Ciclo Econômico”82, os políticos do Estado


passaram a anunciar uma “nova realidade” do Espírito Santo. O discurso do Senador Marcos
Guerra, proferido a respeito do lançamento do ES 2025 também ressaltava o progresso da região
frente à economia brasileira:

[...] sob a liderança do Governador Paulo Hartung, o Espírito Santo deu um exemplo
ao País ao entregar o mais completo e abrangente plano estratégico de longo prazo já

80
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Gerson Camata, 13 de março de 2009. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=378799 . Acesso em 26 de junho de 2009.
81
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Gerson Camata, 13 de março de 2009. Disponível em
:http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=378186 . Acesso em 26 de junho de
2009.
82
O discurso de Francisco Pereira definia também a nova condição do Estado no cenário nacional e correspondia
à definição do 3º Ciclo Econômico enunciado a respeito do Espírito Santo. Segundo ele: “[...] vive o Espírito Santo
um momento singularmente favorável no que diz respeito à sua economia. Passadas as mais recentes atribulações
políticas, o crescimento econômico vem retornando, em níveis elevados, a partir principalmente das atividades
produtivas relacionadas ao petróleo. [...] esse fato, que é a infraestrutura capixaba, não só se afigura importante
para o desenvolvimento estadual, mas também indispensável para o incremento de toda gama de setores da
economia brasileira, dado que o Espírito Santo é peça fundamental para diversas cadeias produtivas que vêm
sustentando o desenvolvimento nacional.” SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Francisco Pereira,
14 de abril de 2005. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=352243. Acesso em 26 de junho de 2009;
Paulo Hartung também reforçava o novo lugar do Espírito Santo em termos de importância para o Brasil: “[...] o
Espírito Santo vai despachar para o Brasil, na virada de 2008 para 2009, cerca de 20 milhões de metros cúbicos de
gás. Com isso, 50% da produção nacional, de 40 milhões de metros cúbicos, sairá dos campos terrestres e
marítimos do Espírito Santo. Uma solução capixaba para um sério problema brasileiro. O outro fato é que,
ocupando o segundo lugar na produção nacional de petróleo, o Espírito Santo tem quatro poços da reserva gigante
descoberta na área de pré-sal. E a exploração da nova mega jazida de petróleo começa no mar capixaba, no campo
de Jubarte, no decorrer de 2008. Aqui também uma outra contribuição dos capixabas no suprimento da energia
necessária para o Brasil continuar crescendo.” Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/1862.
Acesso em 17 de julho de 2009.
51

formulado por um Estado da Federação. Resultado de sete meses de trabalho intenso,


do qual participaram as principais forças sociais, econômicas e políticas, o Plano de
Desenvolvimento Espírito Santo 2025 é um macroplanejamento que traça metas para
o Estado nos próximos 20 anos. [...] Agora, estamos iniciando nosso terceiro ciclo
econômico, que conciliará as atuais atividades com a exploração intensiva de petróleo
e gás em jazidas há pouco descobertas.
Temos pela frente perspectivas animadoras. O Espírito Santo possui a segunda maior
reserva de petróleo do País e deve tornar-se o primeiro Estado produtor de gás
natural.[...] No Espírito Santo, o Brasil está sendo planejado por meio de uma agenda
que, por sua amplitude e por estar ancorada em bases realistas, criará um modelo de
progresso[...].83

Esse discurso tipicamente de exaltação do Espírito Santo por parte do Senador colaborou com
a construção dessa nova imagem do Estado, no entanto, a “nova realidade” aparecia
acompanhada de uma circunstância negativa:

[...] o Espírito Santo hoje pode viver em céu de brigadeiro, tranquilo, feliz e crescendo.
Infelizmente, não posso falar a mesma coisa no que diz respeito ao Governo Federal,
que tem sido uma madrasta para o Espírito Santo, ao criar, todos os dias, uma unidade
de conservação para atrapalhar o nosso progresso. O Espírito Santo não recebeu no
Governo passado e não recebe neste aquilo que deveria receber.84

Reconhecemos, assim, que o discurso do “novo lugar” ocupado pelo Espírito Santo no cenário
brasileiro fundamentava a crítica e a reivindicação de um tratamento considerado justo na
política nacional. O pronunciamento do então senador Renato Casagrande, sobre o Fundap,
evidenciava a exigência de tratamento igualitário ao Espírito Santo:

O Estado do Espírito Santo está preocupado. Já conversei sobre a questão com


diversas lideranças do meu Estado, com lideranças do governo, com lideranças
empresariais, com o Governador Paulo Hartung, e a Bancada acabou de fazer uma
reunião. Estamos preocupados, porque a atividade portuária, que é importante e que
recebe incentivo do Estado, o que facilita a operação de importação para os portos
capixabas está excluída da prorrogação dos incentivos por mais doze anos. Isso
prejudica muito os Municípios do Estado do Espírito Santo, prejudica a arrecadação
do Estado e prejudica a geração de emprego.
Não queremos tratamento privilegiado, mas não queremos ser discriminados nem
prejudicados. O Espírito Santo aceita que se acabem com os incentivos em todos os
Estados, o Espírito Santo aceita que se acabe com o dele, mas não podemos manter o
incentivo em alguns Estados e acabar com os incentivos em outros Estados. É um
tratamento que não interessa ao Espírito Santo e a nenhuma outra unidade da
Federação.
[...] Vamos empreender uma luta na Câmara com nossa Bancada e no Senado, para
que nenhum tratamento diferenciado e prejudicial possa atingir e prejudicar os
interesses do nosso Estado, que é um Estado que se está reorganizando muito bem. V.
Exª conhece nosso Estado também muito bem e sabe do potencial dele. 85

83
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Marcos Guerra,21 de junho de 2006. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=363137. Acesso em 23 de junho de 2009.
84
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Marcos Guerra, 21 de junho de 2006. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=363137. Acesso em 23 de junho de 2009.
85
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do Senador Renato Casagrande, 4 de novembro de 2008. Disponível
em: http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=376727. Acesso em 23 de junho de
2009.
52

Nos pronunciamentos dos senadores Marcos Guerra e Renato Casagrande é possível


reconhecermos a oposição entre o potencial e o progresso do Estado no início do século XXI
contrastados às possíveis circunstâncias dificultadorasvivenciadas pelo Estado. Nesse sentido,
quando identificamos a noção de superação presente na construção da imagem do Espírito
Santo não podemos disassocia-la dessa recorrência às noções de prejuízos e impedimentos. Se
os discursos sobre o desenvolvimento econômico local nos apresentaram atributos
qualificadores de seu progresso e avanço, a noção de superação presente na construção da
imagem do Espírito Santo se fundamenta e se fortalece na existência de prejuízos e
impedimentos a serem transpostos, que assinalam, por consequência, a superação do atraso.

O uso político dessa noção na atualidade não se limitou à construção da imagem do “Novo
Espírito Santo.” Percebemos, ainda, a permanência do diagnóstico dos prejuízos no cenário
político do Espírito Santo. Já no governo Renato Casagrande86, constatamos a recorrência à
vitimização do Estado. Em matéria no jornal A Gazeta, encontramos novamente a questão do
Fundap:

Prefeitos do Espírito Santo se reuniram em Vitória nesta sexta-feira (12). O encontro


teve a presença da ministra-chefe da Secretaria de Relações Institucionais Ideli
Salvatti. Ela informou que o governo federal está empenhado em compensar o estado
após as perdas de recursos do ICMS e do Fundo de Desenvolvimento das Atividades
Portuárias (Fundap). O evento aconteceu no Centro de Convenções da capital. [...]
Sem detalhar como, a ministra disse que o governo federal quer ajudar a resolver
problemas históricos do estado. "Não faltará esforço para desenterrar as cabeças de
burro que têm em várias obras aqui no Espírito Santo. Precisa andar aeroporto, precisa
andar BR-101, algumas já estão encaminhadas, mas o Espírito Santo terá o que
merece", garantiu.
O governador Renato Casagrande afirmou que nenhuma medida será suficiente para
recompensar as perdas recentes, mas disse que todo incentivo que ajude a recuperar
receita é bem-vindo. "Há um passivo histórico da União com obras de infraestrutura
no Espírito Santo. Mas estou acreditando que 2013 é ano da virada. Estamos tendo
licitação da BR-262, vamos fazer a concessão da BR-101, vamos ter um investimento
histórico no Porto, a obra do aeroporto será retomada. Nada compensará a nossa perda,
mas é fundamental que aquilo que puder ser construído, que possa manter a atividade
econômica, seja feito".87

Percebemos, assim, ideias de compensação e ressarcimento como discurso reivindicativo que


surgem da noção de prejuízo e de danos causados ao Espírito Santo. Tal perspectiva de
vitimização pode ser observada no descontentamento em relação à esfera federal. O potencial
e o lugar do Estado em termos de índices econômicos, característicos dessa imagem elaborada

86
O ex-senador Renato Casagrande passou a exercer o mandato de governador do Espírito Santo a partir de 2011
(2011-2014).
87
MONTEIRO, Amanda. Governo federal está ‘empenhado em compensar’ o ES. Disponível em:
http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2013/04/governo-federal-esta-empenhado-em-compensar-o-es-diz-
ministra.html. Acesso em 13 de abril de 2013.
53

acerca do Espírito Santo, são representados em oposição à sua condição de marginalizado. Em


artigo denominado “República capixaba”, Izoton se apropria dessa oposição:

Apesar de o Brasil ter uma área de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e população
de 193 milhões de pessoas, o nosso querido Espírito Santo é ainda um dos menores
Estados possuindo apenas 46.077 quilômetros quadrados (0,54% do país) e 3,5
milhões de habitantes (1,8% do Brasil). Se considerarmos o PIB, temos 2,3% da
nação.[...]
Quando avaliamos a arrecadação de impostos federais que o Estado envia anualmente
para Brasília, com baixíssimo retorno, constatamos que, infelizmente, o Espírito Santo
em toda a sua história normalmente ficou à margem do governo federal, desde o Brasil
Colônia até os dias de hoje.
O Espírito Santo é o Estado mais globalizado do Brasil, tem uma boa infraestrutura
portuária, praias lindas de conceito internacional, montanhas maravilhosas, excelente
localização geográfica, um potencial de crescimento fabuloso, e sinceramente, eu,
como capixaba, não consigo entender a má vontade do poder central com o local onde
o destino me fez nascer e por opção decidi viver.
Quando analisamos um pouco mais as questões econômicas que atualmente nos
afligem (Royalties do petróleo, Fundap, falta de investimentos em infraestrutura, etc.)
ficamos tristes por perceber que provavelmente continuaremos à margem das
distribuições de recursos do país.
Somos adeptos do diálogo e da negociação, mas uma ideia, a princípio polêmica, tem
se fortalecido em muitas mentes. Por que o ES tem que ser membro da República
Federativa do Brasil e não pode ser um Estado autônomo? Certamente teríamos mais
recursos para investirmos em nossa região e poderíamos gradativamente corrigir as
deficiências históricas que possuímos.
Espírito Santo, uma nação. Por que não? Com a palavra, as lideranças capixabas. 88

Essa forma de expressar os prejuízos do Estado é classificada por André Ricardo como uma
"mentalidade obsidional"89 típica do discurso político local para atribuir a algo ou a alguém,
geralmente ao Governo Federal, a responsabilidade sobre as dificuldades em seu
desenvolvimento.90A distinção do Espírito Santo como marginalizado na reivindicação

88
VIEIRA, Lucas Izoton. República Capixaba. Disponível em:
http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2012/04/noticias/a_gazeta/opiniao/1208162--republica-capixaba.html.
Acesso em 27 de abril de 2012.
89
Segundo André Pereira: "Mentalidade obsidional, portanto, é uma forma de encarar as coisas a partir da
suposição de que algo ou alguém tem o objetivo de cercar, isolar, perseguir, impedir o livre crescimento ou
desenvolvimento de alguém, de uma cultura, de uma região, de uma sociedade." PEREIRA, André Ricardo Vale
Vasco. Fantasias persecutórias na História do Espírito Santo. Revista Expedições: Teoria da História e
Historiografia. Goiânia, n.1, jan/jul, 2013. p. 141. Disponível em:
http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth. Acesso em: 12/04/2015.
90
Sobre a noção de perseguição presente nessa mentalidade, André Ricardo afirma: "A mentalidade
obsidional capixaba, quando aplicada a temáticas específicas, principalmente aquelas que envolvem conflitos
reais, ajuda a alimentar verdadeiras fantasias persecutórias, ou seja, atribui falsamente a certos atores propósitos
malévolos que visam afetar a todos os capixabas. É o que está acontecendo neste momento a partir do discurso
que resolveu demonizar a figura de Dilma Roussef ou da sua administração de uma forma geral. O formato desta
fantasia é o de estabelecer dois campos distintos: uma entidade que persegue, por um lado, e a sociedade capixaba
como um todo, por outro. Esta é vista como sendo prejudicada, o que implica na necessidade de união entre todos
os seus membros, independente de diferenças de classe, políticas, religiosas, étnicas, de gênero, etc." PEREIRA,
André Ricardo Vale Vasco. Fantasias persecutórias na História do Espírito Santo. Revista Expedições: Teoria da
História e Historiografia. Goiânia, n.1, jan/jul, 2013 . p. 141. Disponível em:
http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth. Acesso em: 12/04/2015.
54

presente no artigo de Izoton revela uma interpretação que envolve a noção de que o Espírito
Santo é prejudicado historicamente no contexto brasileiro. Por isso, observamos a ideia de
superar gradativamente “as deficiências históricas” locais. Estamos diante, portanto, de uma
referência ao passado na legitimação desse discurso reivindicativo acerca do Espírito Santo.
Segundo André Ricardo Pereira, essa interpretação pode ser definida como um recurso do
discurso político local nos debates de caráter nacional:

O governo de Renato Casagrande (PSB) no Estado do Espírito Santo, iniciado em


janeiro de 2011, está sendo obrigado a enfrentar uma série de questões presentes na
agenda da política nacional. Os temas em questão são: as alterações no marco
regulatório da exploração do pré-sal, a reforma tributária e a mudança do Fundo de
Participação dos Estados (FPE). As consequências de todos eles implicam ou
ameaçam uma perda muito grande de receitas próprias ou repasses federais. Com
relação ao FPE, pouco foi feito até agora (novembro de 2011). De todos, por enquanto,
o tema dos royalties de petróleo adquiriu maior visibilidade, inclusive com uma
grande manifestação de rua no dia 10 de novembro. 91

Dessa forma, diante dos embates políticos nacionais e das possibilidades de prejuízos ao
Espírito Santo, consolida-se, segundo o autor, o discurso do prejuízo histórico:

O discurso dominante dos que têmse posicionado sobre o assunto – políticos,


empresários, intelectuais e jornalistas – gira em torno de um diagnóstico mais ou
menos comum. Ele parte da ideia de que o Espírito Santo é uma vítima histórica dos
governos centrais desde a época da colonização. No momento atual, quando o Estado
teria ganhado um ‘bilhete premiado’ com o petróleo, a União cometeu um ‘erro’, ao
mudar o marco regulatório e permitir que ‘crescesse o olho grande’ dos outros Estados
sobre as ‘nossas’ riquezas. Desta forma, a presidente Dilma Roussef (PT), que
resolveu ‘lavar as mãos’ para o assunto, teria que ser ‘sensibilizada’ para que ela lidere
as negociações entre os Estados, impedindo uma ‘garfada’ no volume de royalties e
participações especiais, que inviabilize as contas estaduais e dos municípios. [...] Essa
interpretação possui um tom moralista e se mostra incapaz de dar conta da
complexidade não só do problema do conflito em torno dos royalties como de todos
os pontos relevantes citados. O que eu pretendo demonstrar é que a intervenção
capixaba nesses temas exige das elites dirigentes locais uma atitude realista e altas
doses de competência no seu enfrentamento. Todavia, essas habilidades não existem
e não foram alimentadas ao longo dos anos [...] Assim, como o ‘buraco é mais
embaixo’, a indignação e o denuncismo não levarão a nada. É preciso agir em um
plano mais profundo. Porém, sempre fica mais fácil atribuir os nossos defeitos aos
outros. 92

André Ricardo Pereira, portanto, critica a retórica presente no discurso político local. O
problema exposto acima identifica no discurso das lideranças político-econômicas estaduais,

91
PEREIRA, André Ricardo Valle Vasco. Entrando em campo para perder: a inserção do Espírito Santo no debate
político nacional. In: BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. (orgs.). Espírito
Santo: um painel da nossa história II. Vitória, ES: SECULT, 2012. p. 15.
92
Ibid., p.16.
55

tal como assinalamos no artigo de Izoton, o uso político do passado, como legitimação e
justificativa das condutas políticas.

Deste modo, o discurso do "Terceiro Ciclo de Desenvolvimento" do Espírito Santo no início do


século XXI configurou-se por meio da exaltação de seu potencial e índices econômicos bem
como pela identificação de um "novo lugar" do Estado no cenário nacional. A nova imagem foi
constituída a partir da noção de superação que permeou os enunciados qualificadores do
discurso político local. Por último, identificamos que o sentido e a força dessa representação do
Espírito Santo em superação se relaciona com a noção de um atraso histórico. O Espírito Santo,
como prática discursiva, é construído por meio de suas representações, tendo sua imagem
elaborada e assumindo um lugar nos próprios discursos que o proferem, tanto em relação ao
presente como a seu passado. E, é justamente na forma como o passado emerge nas
representações do Espírito Santo que se evidencia a relação que se estabelece com o passado
local, um modo de concebê-lo e avaliá-lo como negativo e a ser superado. Aspecto importante
na definição do "desafio historiográfico".

Segundo Luiz Cláudio Ribeiro, existe uma concepção negativa sobre o passado do Espírito
Santo. Para ele, “tal concepção predomina na sociedade capixaba e condiciona sua
autoimagem”, caracterizada por ser "socialmente construída, ensinada e repetida.”93
Recorrência, também, em se apropriar de uma certa noção de passado, que viabiliza a utilização
e a legitimação do discurso da superação do atraso e que envolve leituras do passado. É possível
identificarmos que concomitante à presença do discurso da superação do atraso em sua matriz
política, outras interpretações do passado, historiográficas ou não, se inserem nessa dinâmica
de se pensar historicamente o Espírito Santo, atribuindo-lhe um lugar e colaborando com a
noção do déficit histórico e sua superação.

Seguindo esse apontamento de Luiz Cláudio Ribeiro, consideramos que essa repetição pode
definir, de alguma forma, uma narrativa que vincula circunstâncias do presente a um
determinado passado considerado adequado:

na medida em que situações novas ora assumem referências a contextos anteriores,


ora retomam um passado, a essas alturas, mitificado. Assim, pela repetição mecânica
de passagens, eventos e fatos conforma-se uma determinada memória e um certo
encadeamento que apaga suas pistas, enquanto estabelece uma ponte imediata com

93
RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Modos de ver (1534-1643): o governo da capitania do Espírito Santo na sua primeira
centúria. In: BITTENCOURT, Gabriel; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. (orgs.). Espírito Santo: um painel da nossa
história II. Vitória: Secult, 2012. p. 171-172.
56

momentos retirados de uma certa história, ou características sociais que deixam de


serem datadas para fazer sentido de forma essencial e quase ontológica. 94

Identificamos a recorrência e repetição de um conjunto de enunciados de diferentes matrizes


caraterizadores de uma condição prejudicial em relação ao passado do Espírito Santo utilizados
na interpretação de circunstâncias e na formulação de questões atuais. Por exemplo, quando
constatamos o discurso sobre o significado da “entrada” do Espírito Santo no que se define
como “Rota Imperial.” Segundo a ex-presidente da Assembleia Legislativa do Estado, os
pesquisadores:

[...] conseguiram mostrar que fomos usados para esconder o grande volume de ouro
que Minas Gerais possuía. Com isso, a história nos deixou para trás. Mas buscamos
nossa história e mostramos aos dois governos, do Espírito Santo, por meio da
Secretaria de Estado de Turismo (Setur), e de Minas Gerais. Ambos acreditaram no
documento e no resgate de informações. Com isso, depois de um ano de muitas idas
e vindas, audiências públicas nos dois estados e muito trabalho, está aí o resultado, a
Rota Imperial da Estrada Real.95

O pertencimento do Estado ao roteiro da Estrada Real96 surge como uma forma de


reconhecimento e superação de uma condição histórica.97 Essa interpretação não é isolada, pelo

94
SCHWARCZ, Lilia Moritz. De volta ao passado com as lentes focadas no presente, in: SIMAN, Lana Mara de
Castro; FONSECA, Thaís Nívia de Lima (orgs.). Inaugurando a História e construindo a nação. Discursos e
imagens no ensino de História, Belo Horizonte, Autêntica, 2001. p.13.
95
TOLEDO, Luzia. Realizamos ações de grande importância à frente da Ales. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/noticias/696319/realizamos-acoes-de-grande-importancia-a-frente-da-ales . Acesso
em 28 de junho de 2009.
96
Sobre a Estrada Real, atentamos para a definição de Eurípedes Franklin Leal: “Era denominada, na época do
Brasil Colônia, de Estrada Real aquela cuja construção havia sido determinada por ordem do Rei e seu custo a
cargo de seu tesouro. Não foram muitas as estradas reais e a aqui tratada foi possivelmente uma das últimas, senão
a última, no Governo de D. João VI. Ela foi denominada de Estrada Real S. Pedro de Alcântara em homenagem
ao santo protetor da família real portuguesa e com a independência brasileira e instalação do Império, passou a ser
denominada, Estrada Imperial S. Pedro de Alcântara. Uma estrada real era construída para atender a regiões com
seus viajantes, moradores e tropeiros e possuía uma largura média de quinze palmos ou cerca de três metros. No
caso específico da Estrada São Pedro de Alcântara chama atenção o fato de usar sempre um percurso nos altos das
montanhas, principalmente desde a região das cabeceiras do rio Casca, em Minas Gerais, até o litoral do Espírito
Santo. “Atualmente, ela é um roteiro turístico e o Espírito Santo está inserido nessa rota. De acordo com Leal:
“Em janeiro de 2008, o Instituto da Estrada Real, em Belo Horizonte, juntamente com a Federação das Indústrias
de Minas Gerais (FIEMG), a Federação das Industrias do Espírito Santo (FINDES), o Sebrae e as Secretarias de
Turismo dos dois Estados começaram os trabalhos para reencontrar esta Rota Imperial da Estrada Real. Foi
constituído um grupo de trabalho, que após busca de documentos e mapas históricos no Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro, no Arquivo da Marinha, na Biblioteca Nacional, no Arquivo Público do Espírito Santo, no Arquivo
Público Mineiro, concluiu a localização física da Estrada. Em fevereiro de 2009, o grupo realizou a viagem de
demarcação física da Rota Imperial da Estrada Real entre Vitória e Ouro Preto.” LEAL, Eurípedes Franklin. A
rota imperial da Estrada Real: a Estrada S. Pedro de Alcântara. Disponível em:
http://www.rotaimperial.org.br/images/stories/historia/rota-imperial_histrico_artigo.pdf. Acesso em 20 de
fevereiro de 2014.
97
O significado dessa leitura e uso do passado no que tange a Estrada Real deve ser observado a partir da
interpretação que se cristalizou sobre o período da mineração colonial e as implicações para o Espírito Santo, como
vamos evidenciar ao longo da tese. A inserção do Espírito Santo na Estrada Real é observada como uma conquista
uma vez que a ligação com Minas Gerais é simbólica para o Estado, pois o período da mineração, no século XVIII,
é interpretado como um dos principais responsáveis pelo déficit histórico do Espírito Santo.
57

contrário, vincula-se ao que identificamos como um conjunto de percepções, impressões e


ideias a respeito do Espírito Santo no passado que o definem por sua condição de atraso.

Como observamos, o uso político desse passado é recorrente. Sendo assim, constatamos essa
percepção na interpretação do ex-governador do Estado Christiano Dias Lopes Filho (1967-
1971) que participou efetivamente do projeto de desenvolvimento econômico do Espírito Santo
entre as décadas de 1950 e 1970. Segundo ele, em termos de desenvolvimento, a história
capixaba foi a trajetória do “passou perto.” Ou seja, uma série de episódios “da história do
Brasil que passaram perto do Espírito Santo,” e que “deixaram marcas de atraso para nós.”98
Resumindo a fala do ex-governador, apresentamos suas impressões:

O Espírito Santo com as capitanias hereditárias ficou subordinado; ficou numa faixa
em que vinha do norte para o sul a capitania da Bahia, de Porto Seguro, depois a
capitania do Rio de Janeiro, com indefinições gravíssimas[...]. Aí o governo de
Portugal, para proteger as conquistas dos bandeirantes paulistas, proibiu a exploração
de ouro em outras regiões. Especificamente proibiu que subissem bandeiras e entradas
pelo rio Doce, em direção às regiões que aflorava o ouro. E o Espírito Santo então
ficou fora da grande arrancada na descoberta e exploração do ouro no Brasil. Passou
tudo perto mas não parou por aqui [...]99

Esse lugar do Espírito Santo no passado não se limita ao discurso político. Ele é também uma
preocupação de diferentes estudiosos que interpretam o passado local tendo em vista as
dificuldades e a condição prejudicial do Espírito Santo historicamente. Roberto Simões, por
exemplo, evidencia o problema do lugar do Estado na atualidade. Segundo o autor, no início
desse novo século, ficava evidente um problema considerado histórico, ou seja, a não
correspondência entre o potencial capixaba e sua insuficiência em termos de representação
política no contexto nacional:

O Espírito Santo é o oitavo Estado no ranking de competitividade nacional,


considerando noventa e oito indicadores socioeconômicos, segundo o Instituto
Simonsen, de São Paulo. Porém, o Espírito Santo não está colocado entre os quinze
Estados divulgados que, em 2000, conseguiram mobilizar o maior volume de recursos
federais para investimentos.100

A percepção de desprestígio de Simões não é única. Corresponde a uma perspectiva de se


interpretar a história do Espírito Santo buscando identificar qual o “lugar” que o Estado ocupa
no cenário nacional. Essa condição é ampliada no tempo pela interpretação de Diones Ribeiro

98
LOPES FILHO, Christiano Dias, et al. Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p. 22.
99
Ibid., p. 22-23.
100
SIMÕES, Roberto Garcia. Desenvolvimento econômico do Espírito Santo no século XX. In: BITTENCOURT,
Gabriel Augusto de Mello. Espírito Santo: um painel da nossa história. Vitória: Imprensa Oficial/ES, 2002.p.
243.
58

e José Cândido Sueth. O primeiro analisa a “busca à primeira grandeza” do Espírito Santo no
governo de Moniz Freire no início do período republicano. Seguindo essa lógica, bem como
interessado em evidenciar as realizações políticas que visavam a prosperidade do Estado, o
autor analisa o projeto de modernização do Espírito Santo, em especial da capital Vitória, por
este governante. Esta autoridade política ganha destaque, na interpretação de Diones Ribeiro,
sendo considerada uma “personalidade que teve importância imensurável para o
desenvolvimento do Estado, nos primeiros anos da República.”101 A abordagem realizada a
respeito da plataforma de governo, da imigração estrangeira e da busca por transformar a capital
Vitória numa cidade moderna são analisadas na perspectiva de pensar o lugar e a possibilidade
do Espírito Santo inserir-se na modernidade republicana. De acordo com ele:

[...] o legado de Moniz para o Espírito Santo é algo que, para os


contemporâneos, pode parecer pequeno, porém ele, como foi Homem a frente
de seu tempo e grande personalidade política de sua era, Moniz Freire, soube,
como poucos, vislumbrar as melhorias que, em longo prazo, seriam
imprescindíveis para o crescimento do Estado, e esperamos que este estudo
seja o ‘pontapé’ inicial para a melhor compreensão de nossa história, de nossa
política e de nossa economia. Oxalá que, no século XXI, o Espírito Santo atinja
a tão sonhada ‘primeira grandeza na constelação em que São Paulo [ainda] é o
alfa’, com a qual Moniz tanto sonhou!102

Novamente, destacamos a preocupação em se atestar e definir o lugar do Espírito Santo, no


passado e no presente. Ao comparar a condição do Espírito Santo em momentos distintos,
Diones Ribeiro evidencia a busca pela superação do atraso, reconhecida na atuação de Moniz
Freire. De um ponto de vista similar, José Cândido Sueth, estudando os governos de Moniz
Freire e Jerônimo Monteiro, durante a Primeira República, analisa a condição do Espírito Santo
como estado satélite na política nacional, o que acarretou prejuízos para o seu
desenvolvimento.103Assim, ao focalizar os discursos desses governadores na busca por um
espaço no cenário político, evidencia uma percepção de isolamento e discriminação. Para ele,
tal condição seria um fenômeno de longa duração:

[...] observa-se disperso no imaginário de políticos e de especialistas capixabas um


conjunto de ideias que, em muito, assemelham-se às que estão presentes nos
documentos oficiais de Moniz Freire, Graciano dos Santos Neves, Henrique da Silva
Coutinho e Jerônimo Monteiro. É a denúncia da continuidade de um mesmo

101
RIBEIRO, Diones Augusto. Busca à Primeira Grandeza: o Espírito Santo e o governo Moniz Freire (1892 a
1896). 2008. 177f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade
Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 3.
102
Ibid., p. 167.
103
SUETH, José Candido R. Espírito Santo, um Estado “satélite” na Primeira Republica: de Moniz Freire a
Jerônimo Monteiro (1892/1912). 2004. 146f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação
em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2004.
59

mecanismo. Trata-se evidentemente da continuidade de um mesmo processo no qual


a autonomia do Espírito Santo acha-se ausente pelo menos há quase um século [...].104

José Cândido Sueth, portanto, projeta para todo o período republicano a visão que Roberto
Simões apresentou das desvantagens capixabas na atualidade. Tal como Diones Ribeiro, Sueth
analisa o início do século XX, porém, está pensando o século XXI e o foco é a condição
marginalizada do Estado diante do cenário nacional.

Essa avaliação em termos de período republicano pode ser observada em sua projeção para um
período ainda mais distante. Reparemos a visão de Kawashima de Souza, ao tratar do “debate
fundamental em tempos de expectativas”:

Nunca é demais relembrar que a nossa formação é tão antiga como a própria
civilização brasileira. Muito embora estejamos em desvantagem econômica em
relação aos demais Estados da região na qual estamos inseridos. Primeiro, pelo
sistema de exploração implantado desde o início da colonização, que terminou por
privilegiar as áreas geográficas mais dinâmicas para a exploração, depois, por
discriminações por parte das conjunturas imperial e republicana. 105

Novamente, percebemos desvantagem e discriminação, na caracterização de Espírito Santo,


sobretudo, vistas num longo período da trajetória espiritossantense. Portanto, é possível
reconhecermos a existência de uma perspectiva de interpretação histórica do Espírito Santo que
atribui ao passado a presença de elementos condicionantes de um déficit econômico ou atraso
historicamente constituído.

Consideramos, assim, que a noção de déficit histórico ou o atraso bem como a ideia de sua
superação, associada a uma visão negativa do passado vinculam-se a um modo de avaliação e
qualificação do Espírito Santo. Dessa forma, consideramos que essa imagem negativa é
estabelecida por meio de um conjunto de “enunciados e imagens que se repetem, com certa
regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas”106, por meio de qualificações,
adjetivações, figurações alusivas e simbólicas historicamente instituídas, e definidoras de um
status e do seu lugar no presente e no passado.

104
SUETH, José Candido R. Espírito Santo, um Estado “satélite” na Primeira Republica: de Moniz Freire a
Jerônimo Monteiro (1892/1912). 2004. 146f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação
em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2004. p. 132-133.
105
SOUZA, Chisue Kawashima de. Debate fundamental em tempos de expectativa. Apresentação. In:
BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Espírito Santo: um painel da nossa história. Vitória: Imprensa
Oficial/ES, 2002. p. XIII.
106
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2 ed. Recife: FJN; Ed.
Massangana; São Paulo, Cortez, 2001. p. 35.
60

Avaliamos que no início do século XXI diagnósticos e prognósticos de Espírito Santo forjaram
uma imagem do Estado em vias de superação do atraso vinculados a um discurso do "Terceiro
Ciclo de Desenvolvimento" desenvolvimento econômico. Esse conjunto de enunciados
correspondentes a uma matriz política se integra, por sua vez, a uma determinada concepção de
passado a ser superado, pronunciado por diferentes discursos acadêmicos ou não. Esta forma
de apreensão, consequentemente, revela percepções e sentimentos acerca da região. Como
observamos, o discurso político do desenvolvimento econômico do Estado ao tratar do presente
e suas expectativas apresentam o potencial e um novo status representativo de um novo patamar
econômico do Estado. No entanto, as referências ao passado expõem uma noção de
desprestígio, desvantagem, ausência e isolamento, o que, no discurso político corresponde à
noção de superação.

Tratar do Espírito Santo é compreender sobre a formulação de um arquivo de imagens e


enunciados, uma discursividade sobre o Espírito Santo. Consideramos aqui que a historiografia
é uma forma de interpretar e narrar o Espírito Santo, pois, por meio dela, ele é (re)definido e
atualizado em função das questões que envolvem sua realidade, como o discurso político da
superação na representação do "Novo Espírito Santo". Entendemos, assim, que ela é uma forma
de ver e dizer sobre o Espírito Santo, definidora de atributos e conceitos que o avaliam e o
qualificam no passado. Diante desse cenário, cabe compreendermos nosso desafio a partir das
questões que nos remetem à produção historiográfica.

1.3 DEFININDO O DESAFIO HISTORIOGRÁFICO DO ESPÍRITO SANTO.

Nesse ponto, chegamos à “última etapa” do que sugerimos como o “desafio historiográfico do
Espírito Santo”. Acabamos de evidenciar que existem representações de Espírito Santo
recorrentes e que envolvem leituras sobre o passado local. Evidenciamos que o discurso da
superação do atraso, elaborado por matrizes políticas e historiográficas definem uma noção de
atraso e desprestígio do Espírito Santo que são recorrentes na atualidade. Dessa forma, nosso
desafio, compreendendo a história da historiografia como um campo de investigação, volta-se
para o entendimento de como uma sociedade se relaciona com seu passado, a partir de sua
produção historiográfica.

Para José Carlos Reis, a questão da problemática do tempo histórico é a do acompanhamento


dos homens em suas mudanças, descontinuidades, em sua descrição e análise, o que envolve o
61

próprio conhecimento histórico que surge justamente das questões que envolvem o seu
tempo.107 Trata-se, segundo ele, do interesse que os homens possuem em orientar-se no fluxo
do tempo, “de assenhorar-se do passado, pelo conhecimento, no presente.”108 Segundo Rüsen,
o conhecimento histórico permite aos homens situarem-se no tempo, elaborando uma
identidade histórica em função das respostas que a história elabora. Para ele, a recuperação do
passado surge por interesses dos indivíduos:

Interesses são determinadas carências cuja satisfação pressupõe, da parte dos que as
querem satisfazer, que esses já as interpretem no sentido das respostas a serem obtidas.
Tais interesses são abordados pela teoria da história a fim de poder expor, a partir
deles, o que significa pensar historicamente e por que se pensa historicamente. 109

A reflexão de Rüsen nos indica a importância da recuperação do passado em termos de


compreensão de si e da realidade por uma dada coletividade. A questão que envolve o “desafio
historiográfico” proposto segue esse papel atribuído ao passado: compreender como a dimensão
temporal do passado é entendida por uma sociedade, ou seja, como a produção historiográfica
local elabora essa relação do Espírito Santo com seu passado. Assim, consideramos que a
historiografia local se apresenta como orientadora das interpretações sobre o Espírito Santo.
Segundo Rüsen:

A historiografia pode ser caracterizada como processo da constituição da narrativa de


sentido, na qual o saber histórico é inserido (mediante narrativa) nos processos
comunicativos da vida humana prática. É nesses processos que o agir humano e a
autocompreensão dos sujeitos se orientam pelas representações das mudanças
temporais significativas. 110

Para José Carlos Reis, Koselleck apresenta uma reflexão acerca da temporalidade, evidenciando
que ao historiador interessa também a relação que, sempre, em seu presente, cada sociedade
estabelece com o seu passado e o seu futuro. E, assim, nos permite compreender como tempos
históricos específicos mantiveram relações diferentes com o seu passado.111Ao tratarmos de

107
REIS, José Carlos. História e Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro:
FGV, 2003. p. 181
108
Ibid., p. 30.
109
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001.p.23.
110
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed.
UnB, 2007. p. 43.Segundo Rüsen, a partir do momento em que a necessidade de orientação no tempo é dirigida ao
pensamento sobre o passado, existe a definição de critérios de sentido. “São estes que regulam o trato reflexivo
dos homens com seu mundo e consigo mesmos. Eles decidem como deve ser interpretada a mudança do homem e
de seu mundo, a fim de que se deem orientações práticas da vida humana no tempo que tenham ‘sentido’, sem o
que as carências de orientação não poderiam vir a ser satisfeitas.” RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história
III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed. UnB, 2007. p. 31.
111
REIS, op. cit., p. 191-193.
62

representações do Espírito Santo vinculadas à emergência de uma leitura do passado local


correspondentes ao discurso político da superação do atraso, consideramos que nosso desafio
historiográfico viabiliza a compreensão de uma escrita da história espiritossantense observada
em diferentes momentos, sua continuidade e seus deslocamentos. Estamos, portanto,
considerando que a historiografia local, ao longo do tempo, mobilizou um universo de discursos
e imagens sobre o Espírito Santo, positivas e negativas, ligadas, principalmente, ao
desenvolvimento do Estado, socialmente reconhecidas e historicamente elaboradas, atribuindo
um sentido ao passado local e colaborando com a produção da ideia de superação do atraso,
fundamentando e legitimando seu uso político.

Para a compreensão dessa relação, ao longo do estudo acerca de nosso desafio historiográfico,
cabe ainda questionarmos: quais as formas e as funções assumidas pelo saber histórico no
Espírito Santo? Quais os sentidos se atribuíram (e se tem atribuído) ao passado local tendo em
vista essa forma de se compreender o passado como algo negativo a ser superado? Em que
momento podemos observar a emergência de uma narrativa histórica local em correspondência
com o discurso político da superação do atraso?

Estamos diante de um duplo exercício que define o que propomos como “desafio historiográfico
do Espírito Santo”: a) primeiramente, realizar uma história da historiografia, em termos de
compreender a emergência e o percurso de um modelo de explicação e narrativa do Espírito
Santo, que denominamos de narrativas históricas da superação do atraso; b) e, diante de sua
permanência, analisar como se apresenta atualmente a escrita da história do Espírito Santo, em
suas continuidades e descontinuidades, e, consequentemente, em função dos embates que as
mudanças historiográficas estabeleceram com interpretações cristalizadas e seus usos políticos.

Em relação ao primeiro aspecto do “desafio historiográfico”, ressaltamos que a abordagem do


estudo sobre a história da historiografia não se limita ao encadeamento dos modelos de narrativa
histórica expostos temporalmente. Segundo Lúcia Maria Guimarães:

Ao invés de construir uma genealogia do saber histórico, creio ser mais proveitoso
buscar relações e tecer comparações; jogar luz sobre rupturas, sem negligenciar as
continuidades, o que implica estabelecer linhagens e ao mesmo tempo identificar
posições isoladas; identificar focos de tensão e evidenciar pontos de confluência;
mapear zonas de conflito e acompanhar deslocamentos. 112

112
GUIMARÃES, Lúcia Maria P. Sobre a história da historiografia brasileira como campo de estudos e reflexões.
In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das, et al. Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2011. p. 32.
63

Entendemos, nessa perspectiva, que produzir uma história da historiografia significa


realizarmos uma análise crítica do saber histórico no Espírito Santo, compreendendo as
questões que envolvem a produção do conhecimento histórico que podem ser em termos de
“teorias, métodos, perspectivas e os produtos resultantes do ofício dos historiadores,” inserindo
obras e autores nos sucessivos contextos historiográficos, sociais e intelectuais.113 Nesse
sentido, consideramos que podemos compreender a emergência e a trajetória de um modelo de
interpretação do passado e de narrativa do Espírito Santo, que se vincula à perspectiva de
superação do atraso presente no ideário político local.

Para tal, identificamos historiadores e obras que, reconhecidamente, “narram” a história do


Espírito Santo e colaboram para entendermos o percurso de um modelo explicativo e das formas
de narrá-lo. Segundo Godoy:

[...] pode-se dizer que uma das contribuições mais interessantes dos estudos de
historiografia se referem à pretensão de leitura e avaliação das obras dos historiadores
enquanto documento, ou seja, como indício ou testemunho de dimensões variadas da
realidade e do acontecer humano. Trata-se da tentativa de submeter os escritos dos
historiadores aos procedimentos de crítica, aos quais, frequentemente, estes mesmos
historiadores submetem seus materiais de investigação.114

Perante esse “desafio historiográfico”, identificamos e selecionamos obras que elaboraram um


roteiro de escrita da história do Espírito Santo. História do Estado do Espírito Santo, de José
Teixeira de Oliveira; História do Espírito Santo, de Maria Stella de Novaes; O Espírito Santo
é Assim, de Neida Lúcia de Moraes; e História geral e econômica do Espírito Santo: do
engenho colonial ao complexo fabril-portuário, de Gabriel Bittencourt, compõem o conjunto
de obras que analisamos e denominamos como narrativas históricas da superação do atraso,
preocupadas com a "formação" do Espírito Santo e seu desenvolvimento e surgem a partir da
segunda metade do século XX, nos permitindo compreender a trajetória da escrita da história
local.

Assim, alcançamos o segundo exercício desse “desafio historiográfico.” Nessa análise crítica
acerca do percurso do saber histórico sobre o Espírito Santo, se faz necessário avaliar a
historiografia na contemporaneidade. Afinal, por um lado, observamos a recorrência ao uso do
passado no discurso político sobre o desenvolvimento do Estado, bem como a permanência de

113
MALERBA, Jurandir; AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. Apresentação. In: MALERBA, Jurandir;
AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio (orgs.). Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru, SP:
EDUSC, 2007. p. 9.
114
GODOY, João M. T. de. Alguns desafios dos estudos de historiografia. Projeto História, São Paulo, n.41,
2010.p. 197.
64

leituras que definem uma relação com o passado vinculada à noção de superação do atraso. Por
outro, identificamos na atualidade, um conjunto de interpretações historiográficas que se
encontram em oposição às representações históricas do desenvolvimento do Espírito Santo
elaboradas pelos autores anteriormente apresentados. Assim, estamos reconhecendo que o
nosso desafio se insere em um contexto histórico-cultural em que se manifestam narrativas
concorrentes e conflitantes. A produção acadêmica115 recente da historiografia sobre o Espírito
Santo, sob uma nova perspectiva de leitura do passado e do fazer historiográfico, possuiu um
conjunto de trabalhos que passou a problematizar e relativizar um modelo de interpretação
histórica estabelecido.116

O próprio desafio historiográfico do Espírito Santo aqui proposto assume o caráter de sua
função crítica e atual. Segundo Horst Walter Blanke, podemos distinguir duas funções
principais numa abordagem da história da historiografia: uma função afirmativa e a função
crítica. Para ele, a primeira volta-se para a “afirmação da ideologia oficial” e caracteriza-se
como “um importante, senão o mais importante, aspecto da reconstrução histórica.” 117 A
segunda função caracteriza-se em oposição ao conceito de afirmação, pois é “o esforço de
escrever a história da historiografia com a intenção de criticar princípios ideológicos: o objetivo
é superar criticamente visões de mundo e posições políticas.”118 De acordo com Marc Ferro,
“controlar o passado sempre ajudou a dominar o presente.”119 Assim, o desafio historiográfico
do Espírito Santo nos remete ao que o autor argumenta como função política e social da história
que não se encontra apenas na legitimação, mas também, na produção de conhecimento que
contribui “igualmente, para melhor desvendar as armadilhas dos discursos normativos e

115
A produção acadêmica recente a que nos referimos envolve o conjunto de trabalhos historiográficos elaborados,
principalmente, a partir do departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
abrangendo pesquisas de diferentes historiadores. As revistas ligadas ao departamento e o Programa de Pós-
Graduação em História Social das Relações Políticas tem fomentado e divulgado uma produção historiográfica
que colabora na desconstrução de concepções cristalizadas acerca do Espírito Santo.
116
Rüsen sobre a historiografia que ele denomina como crítica: “A historiografia crítica apresenta uma experiência
histórica que problematiza e relativiza o modelo precedente de interpretação histórica, abalando os fundamentos
de sua plausibilidade.”; RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento
histórico. Brasília: Ed. UnB, 2007. p. 56. Cabe ressaltar que, ao longo da tese, no exercício de análise das obras
pesquisadas, recorreremos a essa produção acadêmica recente que fundamentará a nossa abordagem numa
perspectiva crítica.
117
BLANKE, Horst W. Para uma nova história da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. A História Escrita:
teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 32.
118
Ibid., p.34.
119
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 1. De acordo com o autor, “não só o
Estado e o político colocam a história sob vigilância. “Também o faz a sociedade, que, por usa vez, censura e
autocensura qualquer análise que possa revelar suas interdições, seus lapsos, que possa comprometer a imagem
que uma sociedade pretende dar de si mesma.” Ibid., p. 1.
65

ideológicos de qualquer propaganda, de qualquer publicidade, quer emanem de uma Igreja ou


de uma empresa, quer de um poder ou de um partido.”120

Enfim, é no embate que envolve a produção historiográfica atual que o desafio historiográfico
do presente trabalho se insere. Segundo Horst Blanke, uma das funções da história da
historiografia é aquela que a enxerga "tendo uma função exemplar, no sentido de oferecer
material ilustrativo para a reflexão teórica.”121 Ao construirmos o desafio historiográfico do
Espírito Santo, propomos uma análise sobre a construção de modelos paradigmáticos de
compreensão do Espírito Santo no presente e no passado, selecionando obras e entendendo a
historiografia, e o nosso próprio trabalho, como resultado de uma prática cultural 122, que se
insere nas preocupações em se interpretar e qualificar o Espírito Santo. Com isso, essa
exemplaridade presente em nosso desafio historiográfico surge com o propósito de servir de
análise reflexiva sobre a escrita da história espiritossantense. Correspondendo o que afirma
Godoy:

Acredito que seja consensual o valor instrumental dos estudos de historiografia, não
como fim em si mesmo, mas como instrumento de aperfeiçoamento e avanço do
próprio conhecimento histórico. Apresenta-se como um exame de consciência e
crítica autocorretiva do instrumental que define o ofício dos historiadores. No sentido
mesmo de verificar suas possibilidades e limites. Não para atender as necessidades
puramente internas ou identitárias da área de história, mas para que o conhecimento
histórico dê conta, de maneira mais satisfatória, das demandas que a própria sociedade
coloca para a ciência na definição e entendimento de seus problemas fundamentais. 123

O desafio, portanto, é o de analisar numa perspectiva crítica uma forma de narrar o Espírito
Santo e a construção de um enredo histórico associado à sua trajetória de formação e
desenvolvimento. Temos a proposta de deslegitimar, de se posicionar contra o lugar sacralizado
do atraso na sociedade espiritossantense e suas implicações na forma de interpretar períodos,

120
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 2-3.
121
BLANKE, Horst W. Para uma nova história da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. A História Escrita:
teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 35.
122
Entendemos dessa maneira pois reconhecemos que nosso trabalho encontra-se inserido no debate de
interpretações sobre o Espírito Santo. RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do
conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 16.Ainda, segundo ele, é necessário
reconhecer esse caráter reflexivo do conhecimento histórico e da teoria da história: “Os que buscam elaborar tal
teoria – ou seja, esforçam-se por descobrir o que há de fundamental no pensamento histórico e sua pretensão de
racionalidade – veem-se confrontados com a forte desconfiança dos que justamente se consideram produtores
desse pensamento histórico [...]. A teoria da história, num primeiro momento, incomoda-os, pois convida-os a
voltar suas vistas dos conteúdos do passado que examinam para si próprios (autorreflexão). Passa-se com eles algo
parecido com o que ocorre com aqueles que querem saber o que fazem quando dormem e, com isso, acabam
insones." RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001. p. 16.
123
GODOY, João M. T. de. Alguns desafios dos estudos de historiografia. Projeto História, São Paulo, n.41, 2010.
p. 212.
66

fatos e personagens históricos. Um desafio historiográfico, numa perspectiva crítica, portanto,


no sentido de desconstruir a tradição que reforça um lugar negativo e que instituiu verdades
naturalizadas a respeito do Espírito Santo no passado, que podem favorecer ou estar afinadas
com discursos e projetos políticos.

Sendo assim, buscaremos agora compreender em que condições emergiram a formação dessa
narrativa histórica do desenvolvimento do Espírito Santo e, consequentemente, desse modelo
explicativo da superação do atraso na historiografia, bem como suas implicações na
representação do passado do Espírito Santo.
67

2. CAPÍTULO II: O SENTIDO DA SUPERAÇÃO DO ATRASO: O ESPÍRITO SANTO


NO DISCURSO DESENVOLVIMENTISTA E A NARRATIVA HISTÓRICA DO
PROGRESSIVO DESENVOLVIMENTO.

A proposta de um desafio historiográfico do Espírito Santo busca elucidar a construção de


modelos paradigmáticos de compreensão do Espírito Santo capazes de orientar e fundamentar
o discurso da superação do atraso, no que tange a produção de narrativas históricas, essenciais
na formulação de um passado satisfatório ao discurso político. O propósito desse capítulo é
analisar a emergência de uma narrativa histórica da superação do atraso do Espírito Santo a
partir da década de 1960 que denominamos de narrativa histórica do progressivo
desenvolvimento.

Argumentamos que o discurso da superação do atraso foi instituído a partir da década de 1960
no Espírito Santo e foi constituído tanto por sua matriz política como historiográfica. Estamos
considerando-o como um discurso fundador, pois, em suas diferentes matrizes, instituiu um
sentido para o Espírito Santo. Segundo Orlandi, o discurso fundador instaura uma "tradição de
sentidos", definindo um locus de interpretação. Instaura uma discursividade sobre o Espírito
Santo, define "uma ordem discursiva sobre lugares e sujeitos"124, o que lhe permite criar um
lugar particular na história e "reorganizar os gestos de interpretação."125

No que tange ao discurso político, correspondeu ao processo de implantação e legitimação de


um projeto político-econômico de parte da elite política espiritossantense, que estabeleceu o
sentido do progresso local a partir do desenvolvimento via industrialização. A sua matriz
historiográfica, por sua vez, buscou produzir um sentido para a história do Espírito Santo,
fundando um passado em consonância com as aspirações e expectativas de sua época. Essa
dupla emergência de formas de narrar o Espírito Santo e a relação entre elas que analisamos a
seguir.

2.1 O DISCURSO DA SUPERAÇÃO DO ATRASO E O PROJETO DE


DESENVOLVIMENTO VIA INDUSTRIALIZAÇÃO NO ESPÍRITO SANTO.

Quando definimos que o discurso da superação do atraso inaugurou uma discursividade para o
Espírito Santo, estamos considerando que sua vertente política configurou-se a partir da década

124
ORLANDI, Eni P. Discurso Fundador: a formação do país e a identidade nacional. Campinas: Pontes, 1993.
p. 18.
125
Ibid., p. 16.
68

de 1960 correspondendo ao processo de implantação e legitimação de um projeto político-


econômico que caracterizou o período. Segundo Ueber Oliveira, a industrialização no Espírito
Santo foi empreendida por uma parcela da elite urbano-industrial local que, após derrubar o
governador Francisco Lacerda de Aguiar em 1966, conduziu ao poder, entre 1966 e 1979, três
governadores biônicos (respectivamente, Christiano Dias Lopes Filho, Arthur Carlos Gehardt
e Élcio Álvares) responsáveis pela inauguração e consolidação desse projeto industrializante.126
Nesse período, constituiu-se um conjunto de referências acerca do Espírito Santo associado ao
atraso econômico e sua superação. O discurso oficial buscou avaliar, qualificar e explicar tanto
a condição do Espírito Santo como o próprio projeto de industrialização, o que permitiu a
definição de um discurso da superação do atraso.

Marta Zorzal identifica o segundo governo de Carlos Lindenberg (1959), mesmo sendo
representante de uma elite política agromercantil, como o momento de surgimento de um
ideário desenvolvimentista no Espírito Santo associado à industrialização que efetivar-se-ia
apenas na década de 1970. Configurou-se, nesse período, um núcleo de forças políticas em
torno do projeto de industrialização acelerada que ocorria a nível nacional. Por meio da recém
criada Federação das Indústrias do Estado do Espírito Santo (FINDES), essas forças articularam
meios de dinamizar a economia local e a buscar formas de inserir o Estado nas áreas
consideradas mais desenvolvidas do país.127 Em meados da década de 1960, uma das questões
que envolviam o jogo de forças políticas no Estado, segundo ela, era justamente o contraste
entre o “novo” e o “velho”. As questões acerca do desenvolvimento econômico surgidas durante
o governo Lindenberg permitiram, assim, a emergência do debate em torno da questão do
desenvolvimento (versus subdesenvolvimento) do Espírito Santo.128

126
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p. 39.
127
SILVA, Marta Zorzal. Espírito Santo: Estado, interesse e poder. 1986. 798 f. Dissertação de Mestrado
(Mestrado em Administração Pública). Curso de Mestrado em Administração Pública, Fundação Getúlio Vargas,
Rio de Janeiro, 1986. p. 572-573.
128
Ibid., p. 653-654. Nas conclusões de seu trabalho, a autora assim caracteriza esse período: "[...] tanto a nível das
estruturas como a nível das práticas sociais as contradições oriundas das defasagens do desenvolvimento capitalista
no Espírito Santo foram exacerbadas. Com isso os contrastes entre moderno e tradicional, ou entre novo e velho,
assumiram o centro da cena política. Esse processo aliado ao maior potencial de articulação das forças industriais
emergentes, as quais desde o Governo Jones vinham buscando articular formas de inserir o Espírito Santo no
processo de industrialização, que se realizava a nível nacional, imprimiu uma nova dinâmica a ação governamental,
em curso. [...] Assim, advogando que era preciso desenvolver para sobreviver Carlos Lindenberg reorienta o
sentido que vinha sendo impresso à política de desenvolvimento regional, marcando a intersecção dos efeitos do
desenvolvimentismo econômico na via conservadora de desenvolvimento que se realizava no Espírito Santo."
Ibid., p. 761-762.
69

Rocha e Morandi, ao analisarem a forma como o Espírito Santo foi inserido nas políticas
regionais de desenvolvimento econômico entre as décadas de 1960 e 1970 argumentam que a
forma de conceber as desigualdades regionais no país foi orientada pela concepção cepalina de
desenvolvimento econômico. O binarismo centro-periferia e desenvolvido-subdesenvolvido,
denominações referentes às desigualdades entre os países em relação ao desenvolvimento
econômico capitalista, estiveram presentes nos diagnósticos e reflexões acerca das políticas de
industrialização dos países latino-americanos, observada como caminho necessário para
superar o subdesenvolvimento e a dependência em relação aos países considerados
desenvolvidos.129

Segundo os autores, o pensamento cepalino colaborou para o desenvolvimento de uma


conscientização política sobre as desigualdades regionais no Brasil e, consequentemente, a
necessidade de promover as regiões consideradas atrasadas em relação ao desenvolvimento dos
estados da região Centro-Sul. Seguindo a lógica centro-periferia, tornara-se necessário
desenvolver a industrialização das regiões periféricas do país a partir da intervenção estatal
mediante a criação de políticas econômicas específicas. 130 A região Nordeste, por exemplo,
passou a ser encarada como área prioritária para a intervenção do Governo Federal. O Espírito
Santo, por sua vez, continuou atrelado à região Centro-Sul na redefinição da geografia
econômica do país, o que não o permitiu ter acesso a essas políticas.131

Desse modo, a preocupação com o lugar ocupado pelo Espírito Santo e a política de
desenvolvimento regionais no Brasil orientaram as estratégias das elites dirigentes locais
voltadas para a implementação de um projeto de industrialização do Estado. Os discursos
governamentais sobre o desenvolvimento local foram construídos, principalmente, no conjunto
de documentos oficiais elaborados nesse período.132 Neles, identificamos os “diagnósticos do

129
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI. Ângela Maria. Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no
Espírito Santo. 2.ed. Vitória: Espírito Santo em Ação. 2012. p. 51-52.
130
Ibid., p. 53-54.
131
Ibid., p. 57.; SILVA, Marta Zorzal. Espírito Santo: Estado, interesse e poder. 1986. 798 f. Dissertação de
Mestrado (Mestrado em Administração Pública). Curso de Mestrado em Administração Pública, Fundação Getúlio
Vargas, Rio de Janeiro, 1986. p.581.
132
Para compreendermos a emergência desse discurso oficial da superação do atraso e,
consequentemente, a imagem atribuída ao Espírito Santo, analisamos diferentes documentos produzidos
pelos órgãos do governo do Espírito Santo nas décadas de 1960 e 1970. Os documentos aqui citados
foram: ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória, 1966.; ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR,
1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para o desenvolvimento. s.l., 1969.; BANDES. Aspectos
fundamentais da política econômica do Espírito Santo. Vitória, ES: MEC, 1971.; ESPIRITO SANTO
(ESTADO). Governador, 1967/1971 (Dias Lopes). Desafio e resposta: desenvolvimento do Estado do Espírito
70

atraso” e “prognósticos de superação” que moldaram as interpretações de Espírito Santo. 133


Nesse sentido, definiram uma representação do Estado a partir de sua especificidade no
contexto econômico brasileiro: por um lado, demarcaram o Espírito Santo como marginalizado
e ocupando o lugar do atraso; por outro, ao longo das décadas de 1960 e 1970, instituíram o
discurso da superação do atraso, via industrialização.

Iniciamos nossa análise pelo do “diagnóstico do atraso”, elaborado em função da necessidade


de inserção de um Estado que se encontrava à margem. O documento Diagnóstico para o
planejamento econômico do Estado do Espírito Santo, de 1966, apresentou o propósito de
possibilitar “uma visão ampla e global da economia do Espírito Santo, seus problemas e
potencialidades.”134 Já o intitulado Um Estado em marcha para o desenvolvimento, de 1969,
apresentava-se como “uma tomada de consciência”135 sobre a condição do Estado e, por isso,
pretendia-se portador de "amplo diagnóstico da problemática estadual."136

Esse conjunto de informações acerca dos problemas do Espírito Santo definiu seu lugar em
relação aos estados considerados à época como desenvolvidos economicamente. Sua posição
foi definida por meio da lógica inserção-marginalização. O diagnóstico de 1966 apontava “os
meios para corrigir a relativa marginalização a que o Estado se viu colocado, diante do principal
centro dinâmico do país, em cuja área geoeconômica ele se situa.”137 O objetivo, portanto, era
traçado em função dessa necessidade de agregar o Espírito Santo a outras economias estaduais
consideradas mais dinâmicas por meio de atividades econômicas que

Santo, 1967/1970. Rio de Janeiro: Artenova, 1971.; ESPIRITO SANTO (ESTADO)/SECRETARIA DE


PLANEJAMENTO. Diagnóstico e perspectiva da economia do Espírito Santo. Vitória, 1975.
133
O documento "Um Estado em marcha para o desenvolvimento" apresentou a estratégia de caracterizar a imagem
do Espírito Santo: “Através de conferencias, entrevistas, reportagens, publicações, estudos, temos procurado
projetar imagem autêntica, o que tem facilitado a compreensão de nossos problemas. E conseguimos criar um
clima favorável do Espírito Santo junto ao Governo Federal.” ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR,
1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 28.
134
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 3.
135
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 2.
136
Os diagnósticos estavam de acordo com o que se considerava o lugar e a necessidade do Espírito Santo:
"Especialmente nas regiões subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, em que os problemas, dificuldades e
deficiências, a serem transpostas possuem razoável semelhança, é comum a montagem de planos baseados em
elementos, dados e informações genericamente conhecidos. E o plano de Governo, então, limitar-se-á a documento
sintético, que não vai além da justificativa [...]. Assim não é, porém, quando o plano de Governo resulta indicações
colhidas de amplo diagnóstico da problemática estadual. Foi essa a nossa opção, no Espírito Santo. Entendemos
que não bastava simplesmente conhecer e localizar problemas do Estado. Era preciso conhecê-los em nível de
análise e diagnóstico[...]." Ibid., p. 7.
137
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 4-5.
71

integrariam o Estado em setores nacionais de maior dinamismo. É essa preocupação,


aliás, que nos levará, em cada caso, a estudar as potencialidades dinâmicas do Estado
no contexto nacional. Um programa formulado segundo as diretrizes aqui expostas,
deveria, idealmente, partir do plano adotado para o conjunto do país, identificar nele
os setores de maior crescimento, passando, em seguida, ao estudo das possibilidades
locais em ingressar em tais setores.”138

O Espírito Santo passou a ser entendido como “área atrasada, ou de fraco dinamismo” que
melhoraria “sua posição relativa” se conseguisse ter suas atividades incorporadas “a setores de
elevado dinamismo.”139 O desenvolvimento foi orientado dentro da perspectiva da superação
de uma marginalização em relação à centralidade de outros Estados. Segundo o documento
Diagnóstico para planejamento econômico do Estado do Espírito Santo:

Nossa proposta no sentido de desenvolvimento, a longo prazo, ao Estado consiste, em


última análise, na tentativa de quebrar de uma vez por todas seu relativo isolamento,
integrando-o firmemente, na área economicamente mais dinâmica do país. 140

Demarcava-se um lugar de atraso do Espírito Santo. O critério de avaliação fundamentado na


relação desenvolvido versus subdesenvolvido foi apropriada para avaliar a condição do Estado.
O discurso político atribuiu ao Espírito Santo uma condição de “atraso relativo.” Residia nela,
inclusive, a especificidade local, justificativa para a adoção de um novo modelo de
desenvolvimento.

O documento de 1966 apresentava o seguinte questionamento: "Estamos diante de uma região


subdesenvolvida do ponto de vista do conjunto do país ou seu atraso existe apenas relativamente

138
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 4. A preocupação com a integração do Estado
associava-se à busca por superar entraves que prejudicavam o potencial local: “A paralisação total ou a enervante
lentidão das obras da BR-101 e BR-262 representavam, ao assumirmos o Governo, um dado importante de nossas
dificuldades. A primeira dela tem o destino de abrir o Espírito Santo aos mercados em crescimento do Nordeste,
para onde poderão ser exportados, em condições competitivas, nossos produtos agrícolas, que não conseguem
disputar os mercados do sul.[...] Em 'Estudo Preliminar de Polarização da Rede Urbana Brasileira', do Ministério
do Planejamento, a ação integradora da BR-101 e da BR-116 foi apontada como um dos fatores de polarização do
Rio de Janeiro sobre a macrorregião de sua influência, na qual se inserem os sub-centros de Campos, Vitória, Juiz
de Fora, Governador Valadares e Teófilo Otoni. Na medida, pese em que a importante rodovia (BR-101)
continuasse parada na fronteira com a Bahia, depois de já ter feito a ligação asfáltica de Vitória com o Rio de
Janeiro, menores se tornaram as perspectivas de fortalecimento da micro área de Vitória, para atenuar nossa
dependência em relação do Rio de Janeiro.[...] Da mesma forma, a paralisação da BR-262 contribuía para o
estrangulamento de nossas possibilidades, porque distanciava nosso Porto das extraordinárias perspectivas que
seu ‘hinterland’ oferece, sem falar na sua significação para o desenvolvimento do turismo no Estado.” ESPIRITO
SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para o
desenvolvimento. s.l., 1969. p. 21.
139
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 3.
140
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 152.
72

às áreas mais prósperas do Centro-Sul?”141 Existia, portanto, a necessidade de classificá-lo em


função dos estados considerados desenvolvidos. De acordo com o documento Um Estado em
marcha para o desenvolvimento o Espírito Santo era um “Estado ilhado.” Apresentava “uma
economia preponderantemente embasada nos resultados da agricultura”, e não conseguiu,
segundo esse diagnóstico, “acompanhar, sequer de longe, o desenvolvimento industrial do eixo
Rio - São Paulo, registrado nos últimos quinquênios.”142 Nessa relação, a industrialização,
projeto de desenvolvimento a ser implementado, constituía o fator de comparação e definição
do lugar do Espírito Santo:

Em São Paulo e no Rio de Janeiro, o valor da renda gerada pela Indústria já ultrapassa,
largamente, o da Agricultura. Do ponto de vista da evolução industrial acham-se, pois,
esses Estados à frente do conjunto do País onde a produção agrícola supera à
industrial. [...] O importante é que, mesmo relativamente à Minas Gerais, o Espírito
Santo apresenta-se como altamente agrícola.[...] A conclusão final de nossa análise é
de que o Espírito Santo, sem poder ser classificado entre os Estados subdesenvolvidos
do Brasil, acha-se, todavia, em situação desvantajosa dentro da área tida como
desenvolvida. Colocando a questão de forma ligeiramente diferente poderíamos dizer
que, sem ser subdesenvolvido na escala nacional, nosso Estado deveria receber essa
classificação se levasse em conta a região situada da Bahia para o Sul. Trata-se,
portanto, de uma unidade da federação que não participa suficientemente do impulso
dinâmico do Centro Sul.” 143

Residia nesse critério de avaliação a classificação do Espírito Santo na condição do “atraso


relativo.” Na lógica do desenvolvimento via industrialização, ou seja, “do ponto de vista da área
mais desenvolvida do Brasil a situação do Estado” era, “portanto, nitidamente desfavorável.”144
Por isso, encontramos no documento Diagnóstico para planejamento econômico do Estado do
Espírito Santo, de 1966, “a finalidade básica das medidas sugeridas” para o Espírito Santo que
tinham como propósito “arrancá-lo dessa situação indefinida, integrando-o, de uma vez por
todas, na área geoeconômica de maior desenvolvimento do país.”145

141
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 7.
142
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 193.
143
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 9.
144
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 8.
145
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 223.
73

A caracterização do "diagnóstico do atraso", evidenciando a especificidade do Espírito Santo,


correspondia à justificativa e à legitimação de um determinado projeto de sociedade.146
Segundo Ueber Oliveira:

um projeto de desenvolvimento que fosse capaz de prospectar vantagens junto às


esferas nacionais e internacionais, no sentido de recuperar a economia capixaba e, por
outro, dar saltos qualitativos em termos desenvolvimentistas. Foi nesse momento de
industrialização, via instalação dos chamados Grandes Projetos de Impacto, que
ocorreu a confluência histórica entre os projetos de desenvolvimento do Espírito Santo
e dos governos militares. Nesse sentido, ficou evidenciado que houve uma
movimentação deliberada, por parte da parcela urbano-industrial das elites regionais,
na intenção de adequar e fazer confluir os respectivos projetos desenvolvimentistas. 147

Nesse contexto, de acordo com Rocha e Morandi, a industrialização como caminho no Espírito
Santo passou pela ação do Estado que ganhou um papel preponderante na condução desse
processo.148A elite política espiritossantense traçou estratégias de negociação para viabilizar os
interesses do grande capital. Alinhando-se à política de desenvolvimento do Governo Federal
os dirigentes locais entendiam que essa correspondência com os objetivos da política nacional
possibilitaria a almejada inserção econômica do Espírito Santo no contexto econômico
brasileiro, por meio da viabilização dos investimentos privados estrangeiros direcionados para
o Estado. O que, por sua vez, foi concretizado ao longo da década de 1970 com a implantação
dos Grandes Projetos Industriais.149

Nesse processo, a instituição de um novo modelo de desenvolvimento local destituiu a


economia agrária enquanto legitimou a via industrializante para o Espírito Santo. No conjunto
de documentos que denominamos de "diagnósticos do atraso" e "prognósticos da superação",
observamos que a industrialização como caminho de superação do atraso foi identificada em
oposição ao setor agrícola. De acordo com o estudo presente no documento Um Estado em
marcha para o desenvolvimento, a indústria deveria impulsionar o desenvolvimento:

Ao estudarmos a estrutura industrial do Espírito Santo, em primeiro lugar, ter-se bem


presente que o setor é relativamente pouco importante no conjunto do Estado. A

146
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1990. p. 19-21.
147
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p. 319.
148
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI. Ângela Maria. Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no
Espírito Santo. 2.ed. Vitória: Espírito Santo em Ação. 2012. p. 67.
149
LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios
Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História.
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006. p. 39-40.
74

produção agrícola é cerca de cinco vezes maior à industrial. Não obstante, é


indispensável um exame cuidadoso desse setor porque [...] uma política de
desenvolvimento do Estado deverá conceder especial importância à ampliação desse
tipo de atividade.150

A condição de atraso do Espírito Santo foi associada, sobretudo, à crise da economia cafeeira.
Ao propor a confluência de interesses entre as elites locais e o governo militar no que tange o
desenvolvimento econômico, Ueber Oliveira argumenta que a industrialização foi possível a
partir do colapso da estrutura agrária local com a crise do café. 151 Segundo o documento
Aspectos fundamentais da política econômica do Espírito Santo, de 1971:

A análise do comportamento da economia do Espírito Santo no período 1962/1969


revela que a taxa de expansão da renda interna [...] poderia ter sido apreciavelmente
mais alta, não fosse o fraco desempenho do setor agrícola, especialmente do subsetor
lavouras. [...] A causa disso é bem conhecida: o persistente declínio da lavoura de
café, ao lado de uma ausência de diversificação relevante das atividades daquele
subsetor.152

A crise do café orientou a definição da industrialização como caminho de superação do atraso.


No entanto, como defende Raquel Daré, a ideia de crise153 tornou-se hegemônica nesse período.
Assim, segundo ela, a construção da noção de crise constituiu o discurso desenvolvimentista
vinculado ao projeto político-econômico implantado a época154 e, consequentemente, compôs
a representação do atraso do Espírito Santo. Diante dessa dicotomia atraso versus
desenvolvimento, representado nos pólos agricultura/industrialização, instituiu-se as estratégias

150
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 18. A industrialização consolidar-se-ia em detrimento dos considerados setores
tradicionais da economia espiritossantense. É o que evidencia o documento de 1966: "Não há, enfim, nenhuma
possibilidade de vir o Espírito Santo, nos próximos anos, intensificar o seu desenvolvimento baseado em seus
produtos tradicionais, sujeitos às flutuações permanentes da sua procura e de seus preços. Mesmo porque, sendo
o Estado de base predominantemente agrícola e com as perspectivas pouco animadoras de seus produtos
tradicionais, nestes não poderá fazer repousar uma política de desenvolvimento de sua economia." ESPIRITO
SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento econômico do
Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 96.
151
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p.151-155.
152
BANDES. Aspectos fundamentais da política econômica do Espírito Santo. Vitória, ES: MEC, 1971. p. 24.
153
DARÉ, Raquel. A “crise” do café e a ideologia desenvolvimentista no Espírito Santo. 2010. 203f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade federal do
Espírito Santo, Vitória, 2010. A autora analisa a produção e a circulação da ideia de crise da economia cafeeira na
década de 1960 no Espírito Santo. Segundo ela, o discurso sobre a crise do café foi basilar na ideologia
desenvolvimentista das décadas de 1960 e 1970 no Estado. No estudo, Raquel Daré amplia sua abordagem para
os estudos acadêmicos sobre a economia do Espírito Santo que, em fins da década de 1970 até meados de 1980,
colaboraram com a circulação da ideia de crise e que, segundo ela, deram um estatuto de verdade à ideia de crise
cafeeira.
154
Ibid., p. 45-60.
75

para a consolidação desse projeto de Espírito Santo. Nesse sentido, a implantação da política
desenvolvimentista, segundo Rocha e Morandi:

apontava o setor industrial como o único capaz de soerguer a economia capixaba, com
destaque para siderurgia, atividades florestais, indústrias produtoras de insumos
básicos para a construção civil, indústria de café solúvel, além de frigoríficos; por
outro lado, concluiu que o livre jogo das forças de mercado não seria suficiente para
provocar a recuperação. A ação do Estado teria um papel primordial, principalmente
com a criação de um mercado de capitais “cativo”, ou seja, do sistema de incentivos
fiscais.155

De acordo com os autores, foi criada uma frente de ação pelo Governo estadual e seus órgãos
para “transformar o Espírito Santo em uma região merecedora dos tão almejados incentivos
fiscais.”156 Seguindo essa estratégia política, o Governo estadual criou as condições
infraestruturais e passou a “vender” a imagem do Espírito Santo, em busca da atração desses
investimentos.157Os "diagnósticos do atraso" dividiram espaço com os "prognósticos da
superação". Analisando os documentos, identificamos que a construção da imagem do atraso
foi associada à representação do Espírito Santo em vias de superação do atraso.158

155
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI. Ângela Maria. Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no
Espírito Santo. 2.ed. Vitória: Espírito Santo em Ação. 2012. p. 67.
156
Ibid., p. 68.
157
LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios
Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História.
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006. p. 43-44 . A autora ressalta o discurso de posse do governador Arthur Gerhardt no qual o governador
enfatizava: "[...] a necessidade de se montar um esquema de atração de investimentos. Fizemos isto, utilizando
como 'capital inicial' o Porto de Vitória e a Companhia Vale do Rio Doce. Logo após a minha posse, em conversa
com o então Ministro Delfim Neto, reforcei ainda mais a minha posição com referência aos investimentos externos,
quando definimos que o Espírito Santo só poderia ter um processo de demarragem econômica, com a realização
de um projeto de igual ou maior envergadura que a Companhia Vale do Rio Doce. Isto porque ela ficava isolada
no panorama econômico do estado e seu efeito multiplicador era, portanto, insuficiente para dinamizar a economia
nos níveis desejados. [...] Conseguimos, assim, trazer recursos de fora, não só no setor privado, mas também no
público, viabilizando a filosofia administrativa que pretendíamos imprimir a este período de governo. Para termos
investimentos maciços, precisamos mostrar que aqui se estava e está operando um trabalho sério. Conquistamos,
desse modo, a confiança do Governo Federal. [...] Como consequência desta participação, diversos foram os
programas estaduais que puderam ser executados em várias áreas: primeiro, na área agrícola, seguida das áreas de
energia, siderurgia, telecomunicações, água, saneamento, entre outras.” SANTOS, Arthur Carlos Gerhardt. As
reivindicações se tornaram realidade. In: BANDES. As etapas do processo histórico de desenvolvimento
socioeconômico do Espírito Santo. Vitória, 1975 apud LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização
autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz
Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História. Programa de Pós-Graduação em História Social
das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2006. p. 44.
158
Assim encontramos a estratégia política no documento de 1969: "Aos primeiros contatos que mantivemos, em
razão da nossa eleição para Governador, para tratar com órgãos da administração federal, de problemas do Estado,
verificamos que em áreas importantes de vários desses órgãos, havia um desconhecimento inexplicável e
injustificável sobre o Espírito Santo. O que dificultava extremamente as conversações e a apresentação dos
problemas do Estado. [...] Talvez, ainda, pudesse que o Espírito Santo sempre fosse muito modesto no querer:
pedir em lugar de reclamar." ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um
Estado em marcha para o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 13-14.
76

Segundo Rocha e Morandi, o Espírito Santo "não conseguiu, em nenhum momento, se


desvencilhar de sua inserção na região mais dinâmica do país, ficando à margem dos contornos
regionais periféricos."159 O Estado não foi contemplado pela política de benefícios fiscais
elaborada pelo Governo Federal, como por exemplo, a que instituiu em 1959 a
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). O “relativo atraso” que
caracterizou o Espírito Santo nos discursos sobre o desenvolvimento econômico local se
referiam exatamente a essa impossibilidade a qual o Estado esteve sujeito, pois permaneceu
vinculado à região Sudeste, sendo considerado, como observamos, marginalizado, periférico e
atrasado em relação aos demais estados dessa região.160 Assim, o caminho para a inserção do
Espírito Santo passava pela política de incentivos fiscais para o capital privado:

Esse esforço, estamos convencidos, poderá criar por certo condições para o
desenvolvimento, mas não conseguirá, senão muito fracamente, motivar o
empresariado a investir no Espírito Santo, achatado economicamente entre o poderoso
complexo industrial ao Sul e a política de incentivos da SUDENE, ao Norte. Entre
investir no Espírito Santo correndo o risco da competição com o complexo industrial
do eixo Rio-São Paulo, já senhor dos mercados e a tranquilidade de investir no
Nordeste, em seu nome, o que teria de pagar ao Governo Federal como imposto sobre
a renda, não há empresário que vacile quanto a segunda alternativa. [...] Diante desta
realidade, convenceu-se o Governo Estadual que deveria lutar para que o Governo
Central, considerando as especialíssimas peculiaridades de nossa crise, instituísse um
sistema de incentivos para os investimentos em território capixaba. [...] Esta tem sido
a batalha mais difícil [...]. Mesmo assim, continuamos trabalhando e confiando. Pois
esta será a chave de nossa grande oportunidade.”161

De acordo com Gabriel Bittencourt, tornou-se praticamente uma espécie de slogan local à ideia
de que o Estado seria um “Nordeste sem Sudene”. Ela tornou-se argumento da elite política
espiritossantense em sua estratégia de sensibilização do Governo Federal afim de que o Espírito
Santo fosse beneficiado com a política federal de distorções regionais a partir da criação de
pólos industriais nessas regiões consideradas atrasadas162 e compreendidas como sem
condições de impulsionar seu desenvolvimento de forma autônoma.163A estratégia em

159
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI. Ângela Maria. Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no
Espírito Santo. 2.ed. Vitória: Espírito Santo em Ação. 2012. p. 57.
160
Ibid., p. 57-58.
161
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 44.
162
BITTENCOURT, Gabriel. A formação econômica do Espírito Santo: do engenho às grandes indústrias (1535-
1980). Vitória: DEC, 1987. p. 205.
163
A industrialização como via de superação do atraso surgia com a necessidade de investimentos para além da
insuficiente esfera estadual: "A concessão da prioridade à Indústria resulta do fato de que somente se o Espírito
Santo for bem-sucedido nesse setor dinâmico, poderá dar partida num surto rápido e duradouro de
desenvolvimento, do tipo registrado hoje na Bahia. Cumpre, porém, reconhecer que a maioria dos investimentos
reclamados para o atingimento dessa meta escapa à capacidade do Governo Estadual." ESPIRITO SANTO
(ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento econômico do Estado do
Espírito Santo. Vitória,1966. p. 215; Reconhecia-se a necessidade de intervenção da esfera federal: "A conclusão
77

corresponder à política engendrada pelo governo federal permitiu a representação do Espírito


Santo em busca pela superação do atraso:

Estamos convencidos de que a continuidade dessa campanha de esclarecimento e mais


a luta titânica que se trava pela obtenção de uma política de incentivos fiscais para o
nosso Estado, está podendo sensibilizar os homens de empresa no estabelecimento de
indústrias no nosso Estado, que irão oferecer o resultado com o qual acelerar-se-á o
processo desenvolvimentista do Espírito Santo.164

Os enunciados acerca do Espírito Santo ganharam referências que estabeleciam o sentido da


superação. Analisando os documentos, identificamos, também, que, a partir da década de 1970,
o Espírito Santo do atraso e da marginalização passou a ser representado a partir da expectativa
de superação o que, instituiu, por sua vez, o processo de industrialização em curso como um
marco para o Estado. Ou seja, o discurso da superação do atraso definia-se como um discurso
fundador, instituindo um modo de dizer sobre o Espírito Santo assim como definia um lugar
particular tanto para o Estado como para o projeto de industrialização.165

A partir da década de 1970, o desenvolvimento econômico local caracterizou-se pelo acelerado


crescimento, impulsionado pela presença do grande capital, "em sua maioria de grandes grupos
estatais e privados, tanto nacionais como estrangeiros."166 Nesse sentido, a economia
espiritossantense vinculava-se à dinâmica da economia brasileira a partir da presença de
grandes grupos privados e estatais que, a partir de 1975, instalaram diversos projetos industriais,
conhecidos como Grandes Projetos de Investimento.167

imediata, resultante do simples exame das aplicações federais e estaduais, é de que o Governo Federal, em todos
os setores, tem um peso bastante superior ao do Estado. A possibilidade desse último influenciar, por si só, o
desenvolvimento da sua área revela-se, portanto, relativamente pequena." ESPIRITO SANTO (ESTADO).
Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento econômico do Estado do Espírito Santo.
Vitória,1966. p. 198. O documento de 1971 também apresentava o diagnóstico de um Estado sem capacidade de
investimento: “O que se observa, portanto, é que o Governo do Estado não tem conseguido gerar internamente
recursos adicionais para incrementar investimentos, restando uma taxa de 2,0% que teria sido o seu esforço
orçamentário próprio no período 1965/1968. [...] Em alguns anos as despesas excedem em muito as receitas, daí
se originando fortes saldos negativos. [...] Em suma, o que se conclui, é que a geração de poupanças orçamentárias
para investimento no Estado do Espírito Santo tem sido escassa, o que tende a levar a uma situação de dependências
de recursos transferidos da União ou de endividamento mediante operações de crédito para financiar suas obras de
investimento.” BANDES. Aspectos fundamentais da política econômica do Espírito Santo. Vitória,
ES: MEC, 1971.
164
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 165.
165
ORLANDI, Eni P. Discurso Fundador: a formação do país e a identidade nacional. Campinas: Pontes,
1993. p. 18-21.
166
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI. Ângela Maria. Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no
Espírito Santo. 2.ed. Vitória: Espírito Santo em Ação. 2012. p. 114.
167
Ibid., p. 136-142.
78

Diante desse contexto, observamos também que os documentos produzidos no período


apresentaram o Estado em vias de superação do atraso. O documento Desafio e resposta:
desenvolvimento do Estado do Espírito Santo, 1967/1970 foi apresentado pelo governador
Christiano Dias Lopes Filho trazendo uma ideia de mudanças e expectativas acerca do Espírito
Santo:

afirmei aos meus coestaduanos que minha administração seria marcada pelo sentido
da mudança, mudanças nos métodos de trabalho, mudança nas atitudes frente aos
problemas do Estado; mudança no comportamento diante das nossas potencialidades
adormecidas, mudança na perspectiva de desenvolvimento de nosso Estado. [...] Em
torno dessa obra – realizada por uma equipe de abnegados, idealistas e quase
visionários – prevalece o julgamento de todo um povo, de toda uma gente que hoje
acredita porque aprendeu a acreditar, que hoje vibra porque aprendeu a vibrar, que
hoje realiza porque inauguramos a hora de realizar, que hoje cultiva a grandiosidade
do futuro porque sente a grandeza do presente.168

Os “prognósticos de superação” surgiram exatamente dessas perspectivas de transformação do


Espírito Santo a partir do processo de industrialização em curso adotado pelo Governo local:

Paralelamente ao esforço de aparelhamento institucional, o poder público capixaba


empreendeu uma intensa campanha junto ao Governo da União buscando sensibilizar
as autoridades Federais com vistas à crítica situação em que se encontrava a economia
regional, e que estava a reclamar a adoção de medidas especiais que possibilitassem
a reativação econômica do Espírito Santo. Tratava-se de uma velha reivindicação
capixaba no sentido de que o Governo da República institucionalizasse um esquema
de incentivos fiscais semelhantes aos que vigoram em outras áreas de baixo nível de
desenvolvimento.”[...] A conquista dos incentivos fiscais, evidentemente, não resolve
por si só o problema econômico do Espírito Santo. Deve-se reconhecer, entretanto,
que sua contribuição nesse sentido é de elevada importância, o que pode ser avaliado
pelos recursos até fins de 1970, no montante de mais de 9 milhões de cruzeiros
aplicados na nossa industrialização. Foi, inegavelmente, uma grande conquista. 169

A década de 1970 inaugurou os Grandes Projetos que foram apresentados como prognósticos
da superação do atraso. Segundo o documento Aspectos fundamentais da política econômica
do Espírito Santo, em 1971:

Pelo menos para o setor industrial pode-se dizer que as expectativas são otimistas. [...]
O panorama seria totalmente modificado se os grandes projetos industriais ligados à
siderurgia e celulose, o que se convencionou chamar de ‘enclave’ da economia
capixaba, forem efetivamente implantados. Se as gestões em torno desses projetos
forem aceleradas a entrada em operação dos mesmos seria feita por volta de 1974 e
1975. Esses projetos tem um prazo de maturação longo, de modo que os efeitos de

168
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967/1971 (Dias Lopes). Desafio e resposta: desenvolvimento
do Estado do Espírito Santo, 1967/1970. Rio de Janeiro: Artenova, 1971. p. 4.
169
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967/1971 (Dias Lopes). Desafio e resposta: desenvolvimento
do Estado do Espírito Santo, 1967/1970. Rio de Janeiro: Artenova, 1971. p. 10-11.
79

seus investimentos sobre a economia só seriam sentidos no final do período que aqui
se analisa, ou seja, 1971/1975.170

A elaboração de uma imagem de Espírito Santo em vias de superação do atraso passou a ser
construída a partir das expectativas de consolidação dos grandes empreendimentos industriais.
Analisando o documento Diagnósticos e perspectivas da economia do Espírito Santo, de 1975,
elaborado pelo Governo Élcio Álvares, identificamos precisamente a definição dos marcos de
mudança acerca dos diagnósticos e prognósticos de Espírito Santo.171A imagem elaborada em
torno do processo de industrialização em curso definia a transição de um Espírito Santo da
marginalização para uma nova condição:

O Espírito Santo foi, até recentemente, um retardatário no processo de


desenvolvimento econômico nacional. Embora, situado dentro da Região Sudeste, de
cujo dinamismo tem dependido o crescimento da economia brasileira, o Espírito Santo
ficou para trás, pouco se atenuando seus traços de região subdesenvolvida. 172

Identificava-se, assim, um processo de mudança para uma nova condição:

[...] a economia local deu alento a um processo de industrialização que vinha se


esboçando desde o início da década. [...] O início da década de 1970 foi marcado pela
descoberta do Espírito Santo como localização privilegiada de grandes
empreendimentos, de interesse de firmas nacionais e estrangeiras. Os chamados
'grandes projetos' de industrialização prometem modificar sensivelmente a fisionomia
econômica do Estado nos próximos anos. 173

O que o documento apresentava como o “advento dos Grandes Projetos” modificava o status
do Estado:

A implantação dos chamados 'Grandes Projetos' consolida uma evolução que vem
desde a década passada, evolução esta representada, sobretudo, pelo desenvolvimento
extraordinário das atividades de exportação do minério de ferro e de produtos
siderúrgicos pelo complexo portuário Vitória/Tubarão. O crescimento dessas
atividades ensejou a construção de moderna infraestrutura econômica em torno da
Grande Vitória (modernização portuária, telecomunicações e ligações energéticas
com FURNAS), o que, aliado aos investimentos Federais em transportes nos últimos
anos (duplicação ferrovia Vitória-Minas, construção das rodovias BR-262 e BR-101)

170
BANDES. Aspectos fundamentais da política econômica do Espírito Santo. Vitória, ES: MEC, 1971. p. 61-
62.
171
Sobre o propósito do documento: “O presente diagnóstico tem por objetivo revelar a natureza e a eficácia do
desempenho econômico recente, assim como a base de recursos produtivos sobre a qual se assentou esse
desempenho. Delineados os antecedentes históricos, segue-se uma apreciação realista das perspectivas que o futuro
parece reservar à economia do Espírito Santo. Forma-se assim um quadro de referência para a formulação de
políticas econômicas apropriadas à consecução dos objetivos de desenvolvimento do Governo do Estado.”
ESPIRITO SANTO (ESTADO)/SECRETARIA DE PLANEJAMENTO. Diagnóstico e perspectiva da
economia do Espírito Santo. Vitória, 1975. p. 6.
172
Ibid., p. 5.
173
ESPIRITO SANTO (ESTADO)/SECRETARIA DE PLANEJAMENTO. Diagnóstico e perspectiva da
economia do Espírito Santo. Vitória, 1975. p. 6.
80

tem permitido ao Estado fazer valer suas excelentes condições locacionais sobretudo
para os projetos que se voltam para o mercado externo. 174

Mais do que um diagnóstico do processo de desenvolvimento do Espírito Santo, o documento


apresentou o momento atravessado pelo Estado como um marco, uma vez que “os
investimentos anuais representados pelos Grandes Projetos” suplantariam em “quase duas
vezes o que seria esperado” para a década de 1970.175 O que, por sua vez, definia uma imagem
de Espírito Santo associado à superação do atraso:

O desempenho da economia estadual dependerá da magnitude desses efeitos, mas


obviamente será maior do que aquele representado pela taxa histórica de crescimento
observada no período de 1968-1972. A formação de capital mais que triplicará em
relação ao nível de investimentos esperado segundo o comportamento histórico da
economia. Com a intensificação do dinamismo da economia prevê-se, em espaço de
tempo certamente curto, a superação do tradicional e persistente atraso relativo do
Estado comparativamente aos níveis de desenvolvimento registrados para outras
regiões mais ricas do país.176

Constituía-se, assim, o discurso da superação do atraso. Se foi possível identificá-lo,


anteriormente, vinculado ao discurso do "Terceiro Ciclo de Desenvolvimento" do Espírito
Santo no século XXI, avaliamos que ele emergiu associado ao projeto de industrialização
efetivado nas décadas de 1960 e 1970. Nesse contexto, institui-se uma lógica de interpretação
fundamentada em binarismos tais como subdesenvolvido/desenvolvido, periferia/centro,
atraso/desenvolvimento, marginalização/inserção, que caracterizaram as ideias
desenvolvimentistas locais e orientaram as interpretações sobre a condição do Espírito Santo.

Consideramos, portanto, que o discurso político inaugurou um modo de dizer e interpretar o


Espírito Santo a partir da definição de um novo status em seu desenvolvimento econômico e
um novo lugar no cenário nacional. As expectativas de mudança em torno da industrialização
a definiram como um marco de mudança e orientaram a representação da superação do atraso
do Espírito Santo.

174
ESPIRITO SANTO (ESTADO)/SECRETARIA DE PLANEJAMENTO. Diagnóstico e perspectiva da
economia do Espírito Santo. Vitória, 1975. p. 58.; O documento avaliou os dados relativos às expectativas de
investimento de capital no Estado: "“não se levando em conta os efeitos dos Grandes Projetos, as projeções
realizadas não podem ser consideradas otimistas.[...] Seria mais lícito que o Estado viesse a ser atingido pela
recessão relativa que hoje afeta o país, demonstrando um desempenho menos satisfatório da sua economia.” Ibid.,
p. 73.; Assim, o documento ressaltava o impacto das mudanças no Espírito Santo, demonstrando, “a magnitude
dos investimentos anuais realizados no Espírito Santo no passado recente 1969-1974.” Ibid., p. 73.
175
Ibid., p. 73.
176
ESPIRITO SANTO (ESTADO)/SECRETARIA DE PLANEJAMENTO. Diagnóstico e perspectiva da
economia do Espírito Santo. Vitória, 1975. p. 75.
81

Na composição dessa representação, encontramos, ainda, uma característica peculiar da


definição do sentido da superação. Tal como reconhecemos na contemporaneidade, a presença
dessa noção está associada ao passado como lugar do atraso, como condição histórica a ser
modificada. Seguindo a lógica de interpretação adotada, no documento de 1966, o atraso e a
marginalização do Espírito Santo aparecem como uma condição histórica:

[...] o Espírito Santo, apesar de situado na zona do Brasil que os economistas


convencionaram chamar de ‘desenvolvida’, jamais se integrou plenamente a ela. A
prosperidade dessa zona teve seu início no século XVIII com o chamado Ciclo do
Ouro. Em condições normais poder-se-ia esperar que, ao lado do Rio de Janeiro,
Vitória constituísse um segundo porto da zona de mineração. Sucedeu, porém, que o
Governo Português, desejoso de ter sob controle a produção aurífera, interditou o vale
do Rio Doce como caminho para região das minas. Como consequência disso o Estado
ficou marginalizado no quadro do processo dinâmico da época.[...]
A segunda pulsação dinâmica da área teve seu fulcro no café. A prosperidade surgida
com esse produto bafejou sem dúvida o Espírito Santo. O centro dinâmico
fundamental gerado pelo café localizou-se contudo em São Paulo e não no Rio. O eixo
dinâmico se deslocou, portanto, em direção ao Sul aumentando o isolamento do nosso
Estado.
O terceiro surto de expansão surgiu ligado ao processo industrial. A indústria
brasileira direcionada essencialmente ao mercado interno teve como corolário a
criação de uma extensa rede rodoviária. Nascida da necessidade de proporcionar ao
país um sistema de comunicação verdadeiramente nacional, ela não tardou em se
transformar no canal através do qual as zonas mais prósperas transmitem seu
dinamismo para o restante do país. Dentro desse novo ciclo o Espírito Santo foi
beneficiado com uma rodovia asfaltada ligando-o ao Rio. Do ponto de vista de seu
desenvolvimento a longo prazo esse eixo ficou, todavia, incompleto. Houvesse a
ligação com o Nordeste sido feita pelo Litoral, o nosso Estado se veria como ponto de
passagem obrigatória do surto de prosperidade que, originando-se no sul do país,
deveria, mais cedo ou mais tarde, dirigir-se para o Nordeste. Por motivos políticos, e
até militares, preferiu-se efetuar a ligação pelo interior ficando o Espírito Santo, mais
uma vez, marginalizado.177

Um conjunto de fatores que justificavam a situação de um Estado historicamente


marginalizado, como sugeriu o documento de 1969:

Já temos dito algumas vezes e cabe repetir nessa análise dos componentes da crise,
que o Espírito Santo, numa como que condenação bíblica, tem sido colocado a
margem das grandes oportunidades que, no curso da história econômica do Brasil,
tem bafejado outras regiões.
De fato, quem quer que investigue a História, há de verificar que o nosso Estado não
participou dos ciclos econômicos que assinalaram os períodos de crescimento desse
País. Um conluio de fatores e de circunstâncias, impuseram-nos esse lamentável rol
de oportunidades perdidas. Não se pode atribuir, a esses fatores e essas circunstâncias,
invariavelmente, as mesmas origens e a mesma natureza. Se, em certo instante,
resultaram da condição de meio agreste e, em outros momentos decorreram de

177
ESPIRITO SANTO (ESTADO). Governador, 1967-1971 (Dias Lopes). Diagnóstico para planejamento
econômico do Estado do Espírito Santo. Vitória,1966. p. 151-152.
82

motivos geográficos, não raro, conveniências políticas e razões de Estado apareceram


como responsáveis pelas melhores oportunidades perdidas. 178

Condição que surge no discurso da superação do atraso com um roteiro definido:

No ciclo da cana de açúcar, apesar do florescimento de várias dezenas de engenhos e


engenhocas, como referidas em velhas crônicas, não se conseguiu firmar aqui,
definitivamente, a indústria canavieira, que criou o fastígio das Capitanias da Bahia e
Pernambuco, e, mais tarde, de outras regiões nordestinas. [...]
O advento do ciclo da mineração poderia ter representado novas perspectivas para a
Capitania do malgrado Vasco Fernandes Coutinho. Afinal, o Rio Doce seria caminho
muito mais curto para as Minas Gerais do que o Rio Tietê. O Conselho Ultramarino,
no entanto, arrebatou ao Espírito Santo essa oportunidade, ao determinar o
fechamento de outros acessos às minas, com receio de que novos caminhos
multiplicassem os descaminhos do ouro. Neste caso das Minas em lugar de benefícios,
sofreu a Província consequências negativas, quando, no movimento do refluxo das
populações mineiras, pelo esgotamento das lavras, vieram levas e mais levas de gente
à procura de terra para plantio, gerando o problema de limites com Minas Gerais que,
durante séculos, constituiu triste lembrança de mais uma oportunidade perdida.”
O ciclo do café iria fazer o Espírito Santo experimentar algum surto de progresso. O
rompimento do nosso secular idílio com o café, imposto por superiores interesses
nacionais, deu-se, porém, em condições dramáticas.
O ciclo do desenvolvimento industrial no Brasil foi marcado pela construção de uma
extensa rede rodoviária ligando diversos pontos no País. E a Rio-Bahia haveria de
abrir o Nordeste às manufaturas do Sul. Na hora da construção da importante rodovia,
contrariando todos os critérios econômicos e geográficos, que indicavam o traçado
pelo litoral, cortando o Espírito Santo de Sul a Norte, preferiu-se a rota pelo interior.
E o Espírito Santo perdeu outra oportunidade.
A longa história das oportunidades perdidas teve mais um capítulo nos critérios para
a delimitação da área de ação da SUDENE.179

O passado do atraso colaborava na definição do lugar do projeto de industrialização que


configurava uma nova realidade, distinta da trajetória histórica. No contexto de emergência
desse discurso da superação do atraso podemos identificar, portanto, uma forma de se relacionar
com o passado em função das expectativas do desenvolvimento econômico bem como do uso
político de uma determinada forma de apreender o passado.

Nesse ponto, inserimos os seguintes questionamentos: em que se fundamenta ou se orienta essa


leitura do passado inserida na construção de uma imagem de Espírito Santo em vias de
superação do atraso? Quando o discurso político apresenta um roteiro histórico de
marginalização do Espírito Santo, qual a sua relação com o saber histórico produzido acerca do
Estado? Direcionamos, assim, nossa análise para a produção historiográfica capaz de elucidar

178
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 14-15.
179
ESPIRITO SANTO (ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para
o desenvolvimento. s.l., 1969. p. 15-16.
83

como a produção do conhecimento histórico, naquele contexto, estabeleceu um determinado


sentido ao passado em conformidade com o projeto de Espírito Santo em questão.

2.2 O DISCURSO DA SUPERAÇÃO DO ATRASO E A NARRATIVA HISTÓRICA DO


ESPÍRITO SANTO.

Em 1975, o ex-governador Arthur Gerhardt, ressaltava a importância do conhecimento de um


determinado passado do local. Vejamos:

Para a minha geração, o problema do atraso do Espírito Santo, em relação a


seus vizinhos e Estados com quem mantínhamos mais intensas relações
comerciais e culturais, se apresentava com um fato a desafiar a audácia dos
capixabas. Não havia uma consciência do atraso, que era apenas sentido.
Pouco a pouco, graças à pesquisa histórica e a levantamentos da realidade
atual, fomos tomando consciência das deficiências estruturais e trabalhando
para superá-las.180

A “consciência do atraso”, segundo Gerhardt, passou a ser compreendida por meio do


conhecimento histórico. Consideramos que a interpretação da experiência temporal, a partir de
determinadas categorias de análise, de critérios de avaliação e qualificação do passado local,
efetivou-se por meio de narrativas históricas que também se orientaram pelo paradigma da
superação do atraso.

No que diz respeito ao contexto apresentado acerca do Espírito Santo e à instauração do


discurso da superação do atraso, consideramos, de acordo com Koselleck, que expectativas,
esperanças e prognósticos foram trazidos à superfície da linguagem, abrindo a possibilidade de
compreendermos como a dimensão temporal do passado passou a ser apreendida no Espírito
Santo.181 Para isso, nos apropriamos do próprio papel da historiografia:

A elaboração metódica da experiência do tempo, no passado, em uma perspectiva


orientadora que torna possível ver o passado como história, só aparece nas formas de
apresentação (na historiografia). É nestas que a perspectiva orientadora com respeito
ao passado toma a forma concreta de saber histórico.182

180
GEHARDT SANTOS, A.C. As reivindicações se tornam realidade. In: ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. As
etapas do processo histórico de desenvolvimento sócio-histórico do Espírito Santo. Vitória: [s.n.], 1975. p.
17.Levamos em consideração, que foi em seu governo que viabilizou-se a segunda edição da obra de José Teixeira
de Oliveira, revista e ampliada até 1975.
181
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006. p. 15-33.
182
Ibid., p. 36-37.
84

Recorremos ao próprio saber histórico produzido acerca do Espírito Santo para avaliarmos a
partir de quê e como se orientou a interpretação do passado nesse contexto. Afinal, a narrativa
histórica é um procedimento interpretativo. Segundo Rüsen:

[...] o pensamento histórico, em todas as suas formas e versões, está condicionado por
um determinado procedimento mental de o homem interpretar a si mesmo e a seu
mundo: a narrativa de uma história. Narrar é uma prática cultural de interpretação do
tempo, antropologicamente universal. A plenitude do passado cujo tornar-se presente
se deve a uma atividade intelectual a que chamamos de ‘história’ pode ser
caracterizada, categoricamente, como narrativa. A ‘história’ como passado tornado
presente assume, por princípio, a forma de uma narrativa. O pensamento histórico
obedece, pois, igualmente por princípio, à lógica da narrativa. 183

Desse modo, buscamos compreender a partir das próprias narrativas a relação entre a escrita da
história e as questões de seu tempo. Para isso, analisamos como os próprios autores avaliaram
o período contemporâneo do Estado, sua época, qual a percepção sobre o momento vivido e
suas expectativas, capazes de evidenciar a lógica interpretativa e o sentido atribuído ao passado
que constituíram o que estamos denominando de narrativa histórica da superação do atraso.

2.2.1 O ESPIRITO SANTO REPUBLICANO: O SENTIDO DA NARRATIVA HISTÓRICA


DA SUPERAÇÃO DO ATRASO.

No que tange a cronologia, a estrutura narrativa das obras História do Estado do Espírito Santo,
História do Espírito Santo e O Espírito Santo é assim é caracterizada por uma divisão temporal
correspondente à narrativa tradicional.184 Por isso, partem da expansão marítimo-comercial
portuguesa até o período contemporâneo das obras, entre as décadas de 1960 e 1970. Ainda que
os capítulos sigam a ordem cronológica da sequência temporal dos acontecimentos, os três
grandes períodos, o colonial, o imperial e o republicano aparecem bem definidos, ainda que
divididos por subitens que, por sua vez, não abandonaram a cronologia.

Ao analisarmos as abordagens dos autores em torno do período republicano é possível


percebermos que existem dois momentos diferenciados pelos autores185 em termos de
importância para o desenvolvimento e futuro do Espírito Santo. O período que vai desde o início

183
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001.p. 64.
184
Segue a linearidade dos acontecimentos históricos. Segundo Rüsen, chamada história narrativa (tradicional) é
aquela na qual o sentido da história surge no formato de narrativa a partir da sequência temporal da descrição dos
fatos pelo historiador.RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento
histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 80-82.
185
Cabe diferenciarmos a obra de Maria Stella de Novaes em relação aos outros autores. Maria Stella não traça
uma caracterização do Espírito Santo pós 1960, ainda que sua publicação corresponda a essa década. A autora
evidencia os mesmos momentos que os demais autores, inclusive a década de 1950, porém, apenas indica o
contexto de mudanças e as expectativas de futuro acerca do Espírito Santo.
85

do regime republicano até a década de 1960 e um outro momento a partir desta década.186 Os
autores não criam nenhuma contradição entre eles, porém, definem dois marcos temporais bem
definidos. As obras nos apresentam uma narrativa da marcha progressiva do Estado para
alcançar um novo patamar de desenvolvimento: processo que se inicia com as possibilidades e
realizações trazidas com os novos governos do período republicano, interpretado como
conquistas que orientavam o Espírito Santo no caminho do progresso, mas que apenas realizar-
se-ia com a política de industrialização.

José Teixeira ressaltou que a experiência republicana foi de mudanças no Espírito Santo:

Sobrepairando às vicissitudes políticas e ao trabalho contínuo em busca do


aprimoramento das condições ambientes, uma constante presidiu aos atos dos
governos espiritossantenses na primeira metade do século – a conquista do
hinterland.[...] Consequências imediatas da penetração foram as picadas e ranchos,
que se transformaram em rodovias e estradas de ferro e centros pujantes de progresso
e civilização.187

Essa característica identificada pelo autor, é observada em Maria Stella de Novaes como sendo
a entrada do Estado em um "novo ciclo de progresso"188 e, ao abordar o ano de 1894, a autora
evidenciava que "o Espírito Santo reanimava-se", revelando seu "cabedal de riquezas e vida
própria", por exemplo, contando com "um orçamento cinco vezes maior que o da antiga
Província."189 É nesse sentido, também, que Neida Lúcia de Moraes interpreta a condição local
em termos de desenvolvimento no início do século XX:

Confrontando-se a situação do Espírito Santo, no início do regime republicano, com


a apresentada no começo do novo século – decurso de uma década e quarenta e um
dias – ressalta o desenvolvimento ocorrido. A população de 110 000 saltou para 209
783 habitantes; triplicaram-se as cidades, enquanto as vilas se aproximaram da
duplicação; as comarcas foram um pouco além da quintuplicação. [...] o comércio se
desenvolveu, manifestando-se o desenvolvimento através das exportações e
importações diretas. [...] Atestando o progresso, dois estabelecimentos bancários
funcionavam em Vitória [...].190

A comparação da autora evidencia a percepção sobre um "novo tempo" que se configurou na


forma como eles representaram essa marcha do desenvolvimento no período republicano. José

186
Ainda que os autores tragam para narrativa marcos políticos-temporais como 1930 e a redemocratização no
início de 1950, como referências de tempo em relação à trajetória de desenvolvimento do Espírito Santo prevaleceu
essa divisão.
187
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p.407.
188
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
317.
189
Ibid., p. 332.
190
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 45.
86

Teixeira, Maria Stella e Neida Lúcia valorizaram em suas narrativas o que chamaram de
conquistas do Espírito Santo, por meio da narração sequencial dos símbolos de
desenvolvimento e modernização que caracterizaram o Estado, principalmente, por meio das
realizações governamentais.191Destacaram a construção de estradas, bondes, automóveis, a
ampliação da estrutura administrativa192 e, principalmente, enfatizaram o desenvolvimento
local por meio dos seguintes aspectos: a construção das estradas de ferro, a modernização da
capital Vitória, vista como símbolo de um novo tempo vivenciado pelo Estado e o esforço,
ainda que incipiente, por uma industrialização local.193

Por exemplo, Neida Lúcia de Moraes, novamente, compara a mudança com a fase anterior do
desenvolvimento do Espírito Santo:

Vitória, capital provinciana, de aspecto desagradável, quanto ao casario antigo de ruas


tortuosas e desniveladas, e desprovida dos requisitos indispensáveis ao bem-estar
coletivo, higienizou-se com os serviços de água, esgoto e luz, modernizou-se,
embelezando-se, com os bondes elétricos e o Parque Moscoso, com a retificação e
nivelamento das ruas, com a construção de novos e imponentes edifícios [...].194

A modernização da capital e a busca pela industrialização tornaram-se os elementos marcantes


desse novo momento. Maria Stella de Novaes ressalta o dinamismo que caracterizou o Espírito
Santo no início do século XX no que tange a busca pela industrialização e o crescimento do
Espírito Santo, enquanto José Teixeira de Oliveira ressaltou a instalação de fábricas no sul do
Estado.195 Já Neida Lúcia, ressaltou o pioneirismo espiritossantense na indústria:

Quando no princípio do século ainda se discutia da conveniência ou não da


implantação da indústria no Brasil, porque talvez fosse mais econômico vender as
matérias-primas e os produtos agrícolas e importar os produtos manufaturados, o
governo do Espírito Santo, sob a presidência de Jerônimo Monteiro (1908-1912),
tomou a iniciativa de instalar um parque industrial no Estado. Foi uma ideia arrojada

191
O capítulo 3 apresenta uma análise acerca da imagem dos governadores elaborada nas obras.
192
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 44-49.; OLIVEIRA,
José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p.
416-426.; NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo,
1964. p. 332-423.
193
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 44.; OLIVEIRA,
José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p.
415-416.; NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo,
1964. p. 331.
194
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 46.; José Teixeira
assim apresenta: “Vitória transformou-se em cidade moderna, dotada que foi dos serviços de água, esgotos, luz e
bondes elétricos.35 Rasgaram-se novas ruas. Surgiram a Vila Moscoso e seu belíssimo parque. Os principais
edifícios públicos foram reconstruídos, inclusive o antigo Colégio dos jesuítas – que sofreu remodelação completa,
graças a qual o velho casarão se transformou no atual e majestoso Palácio Anchieta.” OLIVEIRA, José Teixeira
de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p.420.
195
NOVAES, Maria Stella, op. cit., p. 371-375.; OLIVEIRA, José Teixeira, op. cit., p. 419-420.
87

que só mais tarde, coma Eclosão da I Grande Guerra, foi encarada nos seus devidos
termos.196

Tais realizações, segundo eles, confirmariam a marcha de progresso do Espírito Santo,


característica de sua trajetória republicana. Ainda que os autores façam referência a algumas
realizações de governantes ao longo das décadas de 1930, 1940 e, sobretudo, 1950 com Jones
dos Santos Neves e Carlos Lindenberg, definem como um segundo marco do desenvolvimento
do Espírito Santo a década de 1960. A partir desse momento, a trajetória seria de aceleração do
processo de desenvolvimento, justamente por meio da implementação de um projeto de
industrialização.

A representação de Espírito Santo passou a ser identificada pelo salto a um novo patamar jamais
experimentado pelo Espírito Santo. Para Neida Lúcia de Moraes e José Teixeira de Oliveira,
configurava-se um momento de expectativas em torno do futuro do Estado. A autora,
apropriando-se do discurso da propaganda militar exalta: "Temos pressa. Ninguém segura o
Brasil. E nem tampouco o Espírito Santo."197 Já José Teixeira, após intitular o capítulo sobre o
período contemporâneo de "Arrancada para o futuro" argumenta que o Estado partia "para
novos destinos", então, caberia "ensaiar um escorço do momento empolgante que vive o Estado
do Espírito Santo. Empolgante e decisivo para o destino de sua gente. "198

É nesse momento da narrativa histórica republicana que o discurso historiográfico se apropriou


do discurso político. A representação do Espírito Santo em vias de superação do atraso,
estabelecido por uma matriz política, surge na narrativa dos autores. Nela, a trajetória do
Espírito Santo republicano tornou-se a da superação do atraso. A marginalização no cenário
econômico brasileiro, a crise do café, as proclamadas injustiças quanto às políticas de incentivos
regionais, bem como a campanha do governo do Estado em prol desses incentivos, todos
originários do discurso político, ganharam destaque nas narrativas.199Apresentava-se, assim, a

196
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 108.
197
Ibid., p. 49.
198
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 445.
199
Neida Lúcia, por exemplo, se apropria do mesmo discurso presente no documento: "ESPIRITO SANTO
(ESTADO). GOVERNADOR, 1967-1971 (DIAS LOPES). Um Estado em marcha para o desenvolvimento.
s.l., 1969." Sobre o Espírito Santo ser um "Estado Ilhado": “Com uma economia preponderantemente embasada
nos resultados da agricultura, como ficou claro atrás, no principio deste capítulo e no panorama desenvolvido da
História do Espírito Santo, não conseguiu o Estado acompanhar, sequer de longe, o desenvolvimento industrial do
eixo Rio – Rio São Paulo, registrado nos últimos quinquênios. E porque constituiu lei universal e irreversível que
as áreas economicamente desenvolvidas exercem considerável poder de absorção sobre as subdesenvolvidas que
lhes são tributárias, um dado a mais passou a atuar em nosso processo de empobrecimento, seja através da atração
de fatores econômicos, como mão de obra especializada, seja através da imobilização da dinâmica econômica de
88

industrialização como o marco de transição para um "novo tempo". Segundo Neida Lúcia, ao
tratar da segunda metade da década de 1960:

[...] a história do desenvolvimento industrial do Espírito Santo acaba de ingressar em


uma nova fase. Depois da peregrinação do governador Cristiano Dias Lopes Filho às
capitais de todos os estados do Norte e do Nordeste, aquinhoados com os incentivos
fiscais distribuídos àquelas unidades federais, para pedir-lhes o apoio ao governo do
Espírito Santo, conseguiu, este estado, do governo federal, uma concessão
semelhante. [...] Com os recursos provenientes dessas fontes, é de esperar um surto
que venha marcar uma nova época no desenvolvimento industrial do Espírito Santo. 200

Essa "nova fase" também é caracterizada por José Teixeira de Oliveira que, comentando essa
busca por incentivos fiscais, a interpretou como um momento diferenciado:

O apelo foi ouvido com carinho, o governo federal estendeu a mão num gesto de
solidariedade irrecusável e a velha província iniciou a arrancada para o futuro. As
potencialidades da terra e da gente revelaram-se a si mesmas e ao Brasil. Uma
extraordinária e oportuna mobilização de circunstâncias favoráveis se pôs em sintonia
com o esforço e o anseio de toda uma comunidade sedenta de progresso, de
desenvolvimento, de integração na vida universal. 201

Exaltando a industrialização, o autor a definiu como:

retraimento do empresário local, sem possibilidade de competir no mercado dominado pelo complexo industrial
altamente desenvolvido, seja pela hibernação de potencialidades econômicas, conhecidas e proclamadas, mas em
favor das quais não atuaria a dinâmica dos investimentos voluntários, contingenciada pelos fatores antes
alinhados.” MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p.193-194.;
José Teixeira de Oliveira recorre a esses documentos como fonte de pesquisa sobre a realidade contemporânea do
Espírito Santo. OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural
do Espírito Santo, 1975. p. 453-460; José Teixeira de Oliveira destaca a crise do café e o caminho do Espírito
Santo para superá-la: "Intensa campanha – respaldada por levantamentos técnicos das virtualidades de
posicionamento e dos recursos naturais da terra – visando atrair investimentos nacionais e externos para a
concretização de projetos industriais e agropecuários e mais o apoio que o governo federal vem prestando à
Administração local produziram seus primeiros resultados. O Estado conseguiu superar a crise a que o levara a
erradicação de 220 milhões de pés de café (1966-68), o que importou no deslocamento de cerca de 30.000 famílias,
ou sejam 180.000 pessoas, das quais 30.000 emigraram para outros Estados, 20.000 se marginalizaram como
subempregados no meio rural e 10.000 no urbano. E assim, a par do trabalho de aliciamento de recursos para a
implantação dos audaciosos projetos oferecidos aos investidores nacionais e alienígenas, o governo cuidou de
modernizar a máquina administrativa do Estado, aparelhando-a para os novos tempos." OLIVEIRA, José Teixeira
de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 453.Segundo
Neida Lúcia, foi preciso superar a marginalização e injustiças da política de incentivos: "O processo se agravou
ainda extremamente quando o Governo Federal definiu as regiões subdesenvolvidas do País para efeito da
implantação das políticas de incentivos fiscais, buscando equilibrar os desequilíbrios regionais no crescimento
econômico do Brasil. Por volta de 1960, segundo a Fundação Getúlio Vargas, foi encontrada, para o Espírito Santo,
uma renda per capita de Cr$ 17, 30, enquanto para o Nordeste foi de Cr$ 13, 50. Deve ter isto influído para que o
limite do subdesenvolvimento regional do País fosse traçado justamente por onde passa a linha divisória entre o
Espírito Santo e a Bahia. E o nosso Estado ficou fora da SUDENE. [...] Ficamos, então, economicamente ilhados
e, pior do que isso, economicamente achatados, porque não participamos do impulso econômico do Centro-Sul e
não nos beneficiamos da política de incentivos endereçada ao Norte e Nordeste." MORAES, Neida Lúcia Borges.
O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 194.
200
Ibid., p. 117.
201
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 452.
89

solução que o mundo atual impõe, sem alternativa, para os complexos problemas
trazidos pela explosão demográfica universal e de consequências imediatas nos países
em desenvolvimento, cujos povos exigem de seus administradores participação em
todos os benefícios da civilização, do conforto, do progresso.202

Era esse o destino do Espírito Santo, de acordo com o autor. Nessa perspectiva, argumentou,
ainda, que a "eloquência da realidade" poderia ser observada nos novos dados econômicos de
investimentos no Espírito Santo, o que evidenciava "a marcha ascensional do Estado do Espírito
Santo no contexto da vida brasileira."203

As expectativas em torno do Espírito Santo definiam, portanto, esse momento como ímpar na
história do Estado e alinhavam a narrativa histórica com o discurso político da superação do
atraso. Diante disso, trazemos o seguinte questionamento: Se a experiência republicana foi
interpretada pelo paradigma do desenvolvimento progressivo do Estado orientado pela
perspectiva da superação do atraso, como se caracterizou a narrativa histórica do Espírito Santo
em sua origem e trajetória, tal como estruturadas nas obras?

Os autores expuseram, de alguma forma, suas perspectivas de recuperação e narrativa do


passado. Ao seu estilo, Maria Stella de Novaes relaciona a perspectiva de progresso do Estado
com sua trajetória histórica:

Ao final deste resumo da História do Espírito Santo, meditamos nas ardorosas e


sinceras palavras do Dr. Bernardino de Souza Monteiro, quando, a cavalo, percorria
todos os cantos do Estado [...]: o Espírito Santo quer crescer e prosperar! Deixai que
ele suba, cresça e prospere! Nós percorremos, com o pensamento, com o coração, a
leitura, os documentos e todos os múltiplos recursos ao nosso alcance, – o
crescimento, a ascensão, a prosperidade, as lutas, os revezes, as vitórias do Espírito
Santo desde 1535 [...]204

As expectativas de futuro também estiveram presentes na obra O Espírito Santo é assim. De


acordo com Neida Lúcia de Moraes, sua narrativa histórica estava destinada a registrar "o que
o Espírito Santo foi, o que é, e as perspectivas abertas para um futuro promissor."205 Em José
Teixeira de Oliveira, identificamos que essa relação permite uma diferenciação entre presente
e passado. Ao iniciar a narrativa da "arrancada para o futuro", o autor define dois tempos
distintos:

202
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 460.
203
Ibid., p. 452.
204
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
437.
205
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 199.
90

Os que leram as páginas precedentes recordam, por certo, das constantes objurgatórias
de observadores e governantes da terra capixaba, no sentido de que as dificuldades de
fixação do homem ao solo eram quase sobre-humanas e praticamente nenhum o
interesse pelo progresso, pela melhoria das condições de vida da população. Inácio
João Mongeardino – capitão-mor façanhudo, que deixou descendência de prol – legou
depoimento contundente: “A terra é capaz de toda a produção, fazendo-a, mas os seus
habitantes frouxos e nada ferrados ao interesse. Os seus sertões dilatados e de muitos
haveres, mas cultivados três léguas de fundo à frente deles, distância a que só chegam
os lavradores com receio das hostilidades do gentio bárbaro”. Vencer tantas
adversidades foi o objetivo de várias gerações espiritossantenses. [...] Hoje, quando o
Estado parte, consciente, para nova etapa de progresso, bom seria que as novas
gerações meditassem sobre os sacrifícios que custaram aos antepassados o legado de
que são responsáveis.206

Prosperidade, futuro promissor, progresso orientaram a leitura do passado. Diante dessa relação
estabelecida pelos autores, podemos refletir sobre o sentido atribuído ao passado do Espírito
Santo nessas narrativas que buscaram explicar o progresso que caracterizava o presente.

Apropriando-nos de Koselleck, as categorias campos de experiência e horizontes de expectativa


colaboram com a compreensão de como a dimensão temporal do passado foi entendida em
determinado contexto por uma sociedade.207 Segundo ele, tais categorias208 de conhecimento
“são constitutivas, ao mesmo tempo, da história e de seu conhecimento, e certamente o fazem
mostrando e produzindo a relação interna entre passado e futuro, hoje e amanhã.” 209 Assim,
consideramos que a narrativa dos autores correspondeu aos "prognósticos da superação"
elaborados pelo discurso político. A experiência recente do Estado resgatada pelas narrativas
foi interpretada em função das mudanças apresentadas pelo desenvolvimento econômico e
orientada pelo horizonte de expectativas formulado em torno da implementação desse projeto
de Espírito Santo.

206
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 445.
207
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006. p. 15-33.
208
Sobre as categorias: “São categorias do conhecimento capazes de fundamentar a possibilidade de uma história.
Em outras palavras: todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das
pessoas que atuam ou que sofrem.” Ibid., p. 306. Sobre essa relação entre passado e expectativas de futuro,
argumenta Rüsen: “[...] a história, como realidade, constitui-se nos processos do agir intencional com os quais os
homens superam as condições e circunstâncias de sua vida prática, a fim de realizar, na prática, a transformação
do tempo natural em tempo humano. Esses processos só podem ser pensados como conteúdo de algo já acontecido,
ou seja, do agir passado.” RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.p. 84.
209
KOSELLECK, op. cit., p. 308. Experiência para ele “é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram
incorporados e podem ser lembrados.” A expectativa, por sua vez, “se realiza no hoje, é futuro presente.” Para
Koselleck: “ [...] passado e futuro jamais chegam a coincidir, assim como uma expectativa jamais pode ser
deduzida totalmente da experiência. Uma experiência, uma vez feita, está completa na medida em que suas causas
são passadas, ao passo que a experiência futura, antecipada como expectativa, se decompõe em uma infinidade de
momentos temporais”. Ibid., p.310.
91

É possível identificarmos nessa relação um mecanismo de interpretação temporal em que o


passado é interpretado, no presente, em função de sua relação com futuro. O Espírito Santo, a
partir da década de 1960, foi caracterizado pela expectativa do futuro inédito, observado como
um momento de transição entre algo vivido, como velho, a ser superado, e que apresenta o
tempo novo. Os autores estabeleceram, assim, a categoria progresso como elemento para
produzir uma configuração temporal entre o devir do Estado e seu passado. Existiu na narrativa
de Espírito Santo republicano até aqui analisada uma lógica interpretativa que se aproxima da
forma de compreender, avaliar e qualificar identificada nos discursos políticos vinculados ao
desenvolvimento econômico. A perspectiva do progresso, portanto, permitiu que a narrativa
historiográfica assumisse também a noção de superação.

Conseguimos compreender esse mecanismo temporal e, como implicação, analisar a relação


que estabeleceram com o passado, entendido como campo das experiências do Espírito Santo,
recuperado e interpretado pelos autores sob o paradigma da superação do atraso. Segundo José
Carlos Reis, essas categorias elaboradas por Koselleck permitem analisar o tempo histórico não
vinculado ao calendário, mas pensado como uma experiência particular de uma sociedade
presente com seu passado. Nessa perspectiva, o conhecimento histórico pode ser observado
como interpretação, como o tempo de uma dada consciência histórica.210 Rüsen argumenta que
todo pensamento histórico é uma articulação da consciência histórica, entendida como a “suma
das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução
temporal de seu mundo e de si mesmos.”211 Para o autor, ela é o trabalho intelectual “efetuado
na forma de interpretações das experiências do tempo”212 e, por conseguinte, fundamenta
decisivamente todo o pensamento histórico e todo conhecimento histórico científico.”213
Segundo Rüsen:

[...] só se pode falar de consciência histórica quando, para interpretar experiências


atuais do tempo, é necessário mobilizar a lembrança de determinada maneira: ela é
transposta para o processo de tornar presente o passado mediante o movimento da
narrativa. A mera subsistência do passado na memória ainda não é constitutiva da
consciência histórica. Para a constituição da consciência histórica requer-se uma
correlação expressa do presente com o passado – ou seja, uma atividade intelectual
que pode ser identificada e descrita como narrativa (histórica). 214

210
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006. p. 194-195.
211
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001. p. 57.
212
Ibid., p. 59.
213
Ibid., p. 61.
214
Ibid., p. 63-64.
92

Consideramos a narrativa histórica da superação do atraso como constitutiva de uma dada


consciência histórica, e entendida como uma forma de interpretação das experiências do tempo
acerca do Espírito Santo tendo em vista o paradigma da superação do atraso.

Orientada por essa perspectiva, a narrativa histórica estabeleceu um sentido para o passado
local. Assim, entendemos, de acordo com Rüsen, que a importância da narrativa histórica deve
ser observada por ela ser uma constituição de sentido sobre a experiência do tempo.215 Para ele,
o sentido é "dado pelo modo como a narrativa histórica mobiliza a memória da evolução
temporal do homem e de seu mundo no passado. Isso permite que as mudanças temporais
experimentadas no presente ganhem sentido.”216 Para tal compreensão, consideramos, também,
que os critérios de sentido “governam a reconstrução histórica”, “determinam a lógica de
interpretação” do passado, bem como as formas de constituição de uma representação e as
possibilidades de entender o passado como algo relevante e importante para uma cultura no
presente.217 Esta operação está associada também às normas e valores de uma sociedade

[...] os fatos do passado obtidos pela pesquisa empírica somente se articulam para
formar o constructo significativo de uma história, isto é, o conhecimento histórico só
é possível se e quando se atribuiu aos fatos um significado para a orientação na vida
prática no tempo presente; sem o recurso a normas e valores, isso é totalmente
impossível.”218

Para este autor, os critérios de sentido, portanto, são definidos de acordo com os desafios de
cada tempo ou cultura, e, assim, diante dessas questões conseguimos compreender como
surgem ou entram em uso determinados critérios de sentido da história, como a perspectiva de
progresso presente no discurso da superação do atraso.219

Os autores adotaram uma narrativa histórica preocupada com a "formação" do Espírito Santo,
estruturando a narrativa a partir de sua origem e trajetória, como uma retrospectiva. Com isso,
instituíram um modelo explicativo acerca da história local. A partir da lógica de interpretação
atraso/progresso ou atraso/desenvolvimento, as obras aqui analisadas narraram o passado

215
De acordo com Rüsen, a capacidade de convencimento que uma história possui “depende do princípio
unificador, do critério de sentido (ou de um conjunto de critérios) adotado pela narrativa histórica ou a que ela
recorre, quando media a experiência do tempo passado com a experiência do tempo futuro na unidade de uma
história, de modo tal que seus destinatários se valham dela para se orientar no fluxo temporal de suas vidas práticas,
ou seja, para que se auto afirmem e valorizem.” RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos
da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. p. 90.
216
Ibid., p. 64.
217
RÜSEN, Jörn. Historiografia comparativa intercultural. In: MALERBA, Jurandir (org.). A História Escrita:
teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 119.
218
RÜSEN, Jörn, op. cit., p. 113.
219
Ibid., p. 125.
93

espiritossantense tendo como critério de sentido o progresso, que definiu o que denominamos
de narrativa do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo.

A seguir, veremos como se constituiu um roteiro da história do Espírito Santo, a partir do qual
acontecimentos, períodos, circunstâncias e personagens ganharam diferentes valores e lugares
no passado local.

2.2.2 O ESPÍRITO SANTO COLONIAL E A NARRATIVA DA ORIGEM DO ATRASO.

De acordo com Chartier, a representação faz referência a um determinado conjunto de


ordenações simbólicas que dão significado à realidade, bem como, a produzem.220 Dessa forma,
observarmos as narrativas sobre o passado local como uma reconstrução, ou seja, como um
conjunto ordenado da representação dos fatos, que não só atribuem uma significação à realidade
mas, sobretudo, possibilitam a construção de um sentido para o real. Sendo assim, na construção
desse enredo por meio da seleção e ordenação dos fatos, da qualificação de períodos,
acontecimentos e sujeitos, que tornam o passado significativo, entendemos que as narrativas
construíram imagens de um passado marcado pelo atraso, elegendo elementos identificadores
de tal condição e atribuindo um significado, sobretudo, ao período colonial.

A análise das obras nos revela que os autores, ao seguirem uma perspectiva temporal linear da
história com o objetivo de narrar a trajetória do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo,
elaboraram uma hierarquia para os diferentes períodos históricos, o que nos possibilitou
compreender a forma como constituíram um conjunto de ideias e imagens associadas à noção
de atraso e sua superação. Luiz Cláudio M. Ribeiro221, ao analisar o governo do Espírito Santo
em seu primeiro século, evidencia uma inquietação em relação a uma imagem imprecisa
elaborada pela historiografia. Segundo ele, a interpretação acerca do papel da capitania no
cenário do início da Era Moderna deve ser questionada, uma vez que a interpretação que
prevalece carrega uma concepção negativa (e limitada) das origens do Espírito Santo. Enaile
Carvalho indica a existência de uma tradição historiográfica local que afirma existir
prosperidade econômica no Espírito Santo apenas em eventos como a cultura cafeeira, após
1850, ou ainda nos grandes projetos industriais que marcaram o Espírito Santo na segunda

220
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1990. p. 19
221
RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Modos de ver (1534-1643): o governo da capitania do Espírito Santo na sua
primeira centúria. In: BITTENCOURT, Gabriel; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. (orgs). Espírito Santo: um painel
da nossa história II. Vitória: Secult, 2012. p. 171-172.
94

metade do século XX. Segundo a autora, tal perspectiva propiciou a adoção de modelos
historiográficos generalizantes ou capazes de definir um período como sem importância,
marcado pelo fracasso econômico.222

Maria Stella de Novaes, José Teixeira de Oliveira e Neida Lúcia, ainda que não realizem uma
abordagem no campo da história econômica, correspondem às indicações de Luiz Cláudio
Ribeiro e Enaile Carvalho, sobretudo, no que concerne à noção de fracasso associada ao período
colonial. A imagem do atraso conferida ao passado se constituiu por meio da demarcação de
valores e lugares atribuídos a determinados períodos e eventos, e que, por sua vez, foram
definidos em função do significado que apresentaram para a trajetória do Espírito Santo.

O passado colonial foi interpretado como sendo a origem do atraso. A estrutura temporal da
narrativa bem como os eventos e circunstâncias eleitos para compor essa trajetória colaboraram
na composição dessa imagem de Espírito Santo. Por isso, em nossa análise, seguimos a
cronologia e os marcos temporais estabelecidos pelos autores. Nesse processo, constatamos que
eles, ainda que tenham seguido uma linearidade, avaliaram e qualificaram o período colonial
considerando o que foi o Espírito Santo no século XVI, XVII e XVIII, sequencialmente.
Associado a essa qualificação atribuída a cada período, foi possível identificarmos os elementos
considerados prejudiciais para o desenvolvimento espiritossantense e os marcos temporais
significativos para essa trajetória apresentada pelas narrativas históricas. A saber, os dois
primeiros séculos foram marcados, a princípio, pelos empecilhos que caracterizaram o
estabelecimento do elemento colonizador, a contar de Vasco Fernandes Coutinho; depois, pela
ausência de administradores considerados competentes na condução da Capitania, o que
implicou nas malsucedidas governanças dos capitães-mores; e, por último, o século XVIII,
assinalado pelos impedimentos oficiais de contato do Espírito Santo com Minas Gerais.

222
Enaile Carvalho cita as seguintes obras como referências dessa tradição historiográfica: “A historiografia
tradicional insiste em reproduzir a tese de só ter havido desenvolvimento econômico no Espírito Santo em meados
do século XIX, com o advento do café. ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e Transição: O Espírito
Santo de 1850/1888. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Esforços
industriais na economia do café: Ocaso do Espírito Santo-1889/1930. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de
Almeida/UFES, 1982. OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação
Cultural do Espírito Santo, 1975.”; CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do
Espírito Santo (1790 a 1821). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em
História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008.
95

2.2.3 AS ORIGENS DO ESPÍRITO SANTO NOS SÉCULOS XVI E XVII: OBSTÁCULOS,


DIFICULDADES E A IMAGEM DO FRACASSO INICIAL DA COLONIZAÇÃO.

Uma representação de Espírito Santo que foi construída carregando consigo noções de
exclusão, ausências e impedimentos que caracterizaram sua trajetória teve no período colonial
o momento inaugural da constituição do atraso. Se por um lado, o Espírito Santo republicano
foi interpretado como o tempo do avanço, do progresso, no qual se realizaria a superação de
uma condição de marginalização, o passado colonial foi a origem, o fundador do atraso.

Os obstáculos para o progresso surgiram ao longo da trajetória percorrida pelo Espírito Santo.
O momento inicial da capitania, que se inaugura, na narrativa dos autores, com a chegada dos
colonizadores e a busca por fixação aos moldes estabelecidos pela Coroa, foi avaliado a partir
das dificuldades que apresentou para a colonização. Um dos fatores responsáveis pela
dificuldade de prosperidade do Espírito Santo apontado nas obras diz respeito ao elemento
humano.

De acordo com José Teixeira de Oliveira, ao definir os “fatores do descalabro”, argumenta que
o Espírito Santo era o “exemplo entre as donatarias cujo progresso foi embargado pela
turbulência dos seus habitantes”:

Por uma dessas coincidências trágicas que o destino constrói, ali se encontraram três
terríveis circunstâncias favoráveis ao desastre: frouxidão de costumes, chefe (Vasco
Coutinho) “mais propenso à indulgência do que à disciplina” e concorrência de
elevado número de criminosos homiziados nas terras. Sem contar o índio – pesadelo
constante, inimigo de todas as horas. 223

Ao apresentar a noção de desastre, o autor indica os participantes das dificuldades iniciais. O


perfil dos colonizadores e os indígenas surgem como os primeiros obstáculos ao progresso da
Capitania.224 A fundação do Espírito Santo, nas narrativas, foi marcada, principalmente, pela
experiência de Vasco Fernandes Coutinho à frente do processo de colonização efetivado na
Capitania. Dessa forma, encontramos um conjunto de referências ao período inicial do Espírito

223
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 53.
224
Sobre a imagem de Vasco Fernandes Coutinho bem como a dos indígenas, ver próximo capítulo.
96

Santo como um lugar de “sombras e ruínas”225, com característica de “Villa devastada” e em


“decadência”.226

Tal imagem foi associada, sobretudo, à insuficiência de seus colonizadores em efetivar a obra
colonizadora. José Teixeira de Oliveira, ao caracterizar as “exigências e deficiências” do início
da colonização, destaca as dificuldades causadas pela fraca presença dos elementos
colonizadores diante dos desafios:

A magnitude da tarefa estava exigindo número muito superior de colonizadores.


Aquele grupinho de brancos, assentado na orla do país, impossibilitado de se fazer
temido e respeitado pelo gentio – origem de todas as atribulações e prejuízos – era um
convite às suas incursões devastadoras. ‘Não fora, de certo, para viver encurralado
num arraial, a guerrear com os flecheiros das selvas, que o donatário do Espírito Santo
se desterrara para a sua bárbara capitania brasileira’. 227

As noções de impedimento e dificuldade tornaram-se as referências para se definir o Espírito


Santo. Maria Stella de Novaes em alusão à primeira viagem de Vasco Fernandes Coutinho à
Europa,228 acrescenta à questão dos obstáculos para o progresso, a chegada de colonizadores
incapazes de conduzir a Capitania:

Há controvérsias relativas às viagens de Vasco Fernandes Coutinho. Mas, em 1549,


ele regressou ao Brasil, ‘em navio seu, com objetos e companheiros, para sua
capitania’. Tocou em Ilhéus, onde recebeu indivíduos criminosos, presos ali, por
pirataria, e outros evadidos do presídio local. Vieram juntar-se aos péssimos
elementos, já homiziados no Espírito Santo.229

José Teixeira de Oliveira reforça os colonos como elementos prejudiciais à formação do


Espírito Santo:

Não são mais favoráveis os juízos sobre os habitantes da capitania. Em princípio,


quem vinha para o Brasil, ao transpor a linha equatorial, aliviava-se da maior parte
dos preceitos morais vigentes na metrópole. Aventureiros, degredados, criminosos

225
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 57.
226
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
29.
227
OLIVEIRA, op. cit., p. 39. Neida Lúcia de Moraes registra apenas a dificuldade inicial com o montante de
homens que acompanhavam o primeiro donatário: "A 23 de maio de 1535, no Dia do Espírito Santo, o donatário
desembarcava na enseada junto ao Monte Moreno. Trazia consigo cerca de 60 homens, aí incluídos dois fidalgos
da nobreza: D. Jorge Meneses e D. Simão de castelo branco que vinham cumprir as suas penas de degredo, apenas
disfarçado. Era com esses sessenta homens que Vasco Fernandes Coutinho contava para a tarefa inicial de ocupar,
dominar e disciplinar a terra." MORAES, Neida Lúcia Borges de. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.],
1971. p. 15.
228
As viagens de Vasco Fernandes Coutinho também estão em nossa análise sobre a imagem dos personagens
históricos. Vide nesse capítulo tópico 1.3.1
229
NOVAES, op. cit., p. 21.
97

formavam a massa no seio da qual fermentavam e explodiam as rudes paixões


daquelas mentalidades primárias.230

O início do Espírito Santo, tendo em vista o estabelecimento do elemento colonizador


apresentava, assim, os primeiros obstáculos para sua trajetória. As dificuldades encontradas por
Vasco Fernandes Coutinho e a ausência de colonos foram apresentados como fatores do
fracasso inicial, o que, classificaria o Espírito Santo dentre as capitanias que não prosperaram.

José Teixeira de Oliveira evidencia as condições financeiras da Capitania ressaltando que no


ano de 1552, “o povo enfrentava as maiores dificuldades na terra capixaba”, pois “a capitania
não rendia o suficiente para pagar ao padre Gomes Ribeiro, deão da Sé e cabildo da cidade de
Salvador” os dízimos que lhe competiam naquele momento.231 Neida Lúcia caracterizou o
início da colonização marcado pela ausência do progresso, visto na incapacidade de
interiorização:

As riquezas da época, nesta parte do mundo, seriam as pedras e metais preciosos ou a


lavoura da cana-de-açúcar. As primeiras não foram encontradas. Era necessário
pensar na última[ ...]. Durante todo o século XVI, o açúcar reinou quase só nestas
plagas. Deu alicerces ao progresso, mas a cultura da cana, sendo de baixada e as serras
aproximando-se muito do litoral, nesta região, não houve penetração para o interior.232

Na representação do período inicial, os autores recorreram às avaliações do governo-geral para


evidenciar as condições do Espírito Santo. Seguindo uma interpretação tradicional que afirmava
a não prosperidade das capitanias hereditárias na Colônia e, consequentemente, a introdução
por parte da Coroa portuguesa dos governos-gerais, os autores ressaltam os diagnósticos
realizados pelos representantes oficiais. José Teixeira de Oliveira destaca a preocupação da
Coroa com a realidade da Capitania:

No Regimento passado a Tomé de Sousa, primeiro governador geral, todo um


parágrafo é dedicado à capitania do Espírito Santo. Muito boas informações devia ter
o soberano para fazer recomendações tão minuciosas como estas: ‘Tanto que os
negócios que na dita Bahia haveis de fazer [sic] para poderdes deixar e ireis visitar as
outras capitanias [...] e por que a do Espírito Santo que é de Vasco Fernandes Coutinho
esta alevantada ireis a ela com a mais brevidade que poderdes e tomareis informação
pelo dito Vasco Fernandes e por quaisquer outras pessoas que vos saibam dar razão
da maneira que estão com os ditos gentios e o que cumpre fazer para que a dita
capitania se tornar a reformar e povoar, e o que assentardes poreis em obra trabalhando
tudo o que for [...].’233

230
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 52.
231
Ibid., p. 68.
232
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 29.
233
OLIVEIRA, op. cit., p. 63.
98

Os autores se baseiam na avaliação a respeito do Espírito Santo. Seguindo a apreciação anterior,


Maria Stella de Novaes, ao comentar o ano de 1560, evidencia que:

O governador Geral regressou entre julho e agosto à Bahia de Todos os Santos e


chegou à Vitória. Demorou-se algum tempo para examinar a situação da capitania.
Observou o desânimo geral e considerou bem razoável o desejo dos moradores que
reunidos às mulheres e os filhinhos, angustiados, lhes pediram que tomassem a terra
para a Coroa, em vista da renúncia de Vasco Fernandes Coutinho. 234

Os autores ressaltam, portanto, as dificuldades e a necessidade de melhoria da Capitania, e,


nesse momento do passado local por eles abordado, a referência estava ligada a essa origem do
Espírito Santo por meio da experiência de Vasco Fernandes Coutinho. Dentre os autores, foi
José Teixeira de Oliveira quem mais enfatizou as dificuldades vivenciadas pelo Espírito Santo
em sua origem. Baseando-se nas avaliações de Mem de Sá sobre a Capitania e Vasco Fernandes
Coutinho, o autor retoma a ideia da necessidade de soerguimento e superação das dificuldades.
Assim, ele evidencia em passagem intitulada “pessimismo de Mem de Sá”:

O governador geral já tinha elementos para julgar a situação do senhorio de Vasco


Coutinho e não vacilou em transmitir seu ponto de vista ao soberano: ‘O perigo que
esta terra agora pode ter é ter capitão tão velho e pobre e nisto vera Vossa Alteza que
os armadores são os nervos do Brasil / e a capitania que os não tiver senão poderá
sustentar’. Tão certo estava o missivista de que o estado precário da capitania decorria
da falta de capitais e da própria pessoa do seu donatário que chegou mesmo a
aconselhar: Parece- me que Vossa Alteza devia de tomar esta terra a Vasco Fernandes
e logo mandar a São Tomé e dar aos homens ricos que para cá querem vir [...] e
conceder privilégios de novo ainda que esteja já no foral aos que para cá quiserem
vir.’235

O autor continua a caracterização do Espírito Santo recorrendo às apreciações de Mem de Sá


como evidência da realidade da capitania de Vasco Fernandes Coutinho:

Do Rio de Janeiro, no derradeiro dia de março, o governador geral mandou longa


epístola ao soberano sobre os negócios do Brasil. Bem extenso é o trecho alusivo ao
Espírito Santo. De princípio participa que encontrou aqui ‘três filhos de Vasco
Fernandes Coutinho’ e uma carta do donatário, dirigida ao ouvidor da capitania,
rogando que renunciasse o senhorio. Para tanto, juntou à missiva uma procuração. O
povo, que já estava resolvido a deixar a colônia, quando tomou conhecimento da
atitude de Fernandes Coutinho, procurou o governador geral, a quem pediu tomasse
conta da capitania em nome da realeza. Com parecer dos capitães – é o próprio Mem
de Sá quem o informa – fez lavrar um auto aceitando a renúncia ‘(para que) se não
perdesse uma tão boa capitania.’236

234
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
34.
235
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 63. p. 87, parênteses do autor.
236
Ibid., p. 94, parênteses do autor.
99

José Teixeira de Oliveira enfatiza o vínculo entre as dificuldades do Espírito Santo com as
enfrentadas pelo primeiro donatário. A necessidade de ajuda e intervenção eram evidências da
condição negativa da Capitania. Nesse sentido, precariedade, decadência, e impedimentos
foram atribuições que passaram a constituir o Espírito Santo em sua trajetória inicial. O fracasso
da experiência colonial foi interpretado tendo em vista a dificuldade de progresso a se realizar
no Espírito Santo, contrastando esse passado a uma outra realidade futura. Foi nessa perspectiva
que ele analisou os “65 anos após o embarque”:

Outras donatarias exibiam mais riquezas, mas, por certo, em nenhuma outra as
condições haviam sido mais adversas à implantação do homem europeu. Aqui, a
floresta espessa – verdadeira fortaleza oposta às tentativas de penetração – era, mais
que qualquer outro acidente de qualquer outra parte do Brasil, uma barreira a
contrariar e esmagar os planos de conquista, não só pela sua pujança inigualável, mas,
e principalmente, pelo inumerável gentio que abrigava. Decênios, séculos decorreriam
até que o homem branco pudesse palmilhar – sem o temor mortal dos primeiros
tempos – o território que ficava além das praias marítimas.237

O autor não trata a atuação indígena como resistência e ainda os incluiu na ordem da barreira
natural posta como dificuldade não superada pelos primeiros colonizadores da Capitania. O
Espírito Santo surgia, assim, com uma condição adversa que seria, de acordo com o autor, o
seu diferencial. Caberia ao Espírito Santo um lugar de não prosperidade que perduraria ao longo
do período colonial.

Somando-se às dificuldades e à precariedade da Capitania, os autores identificaram, também,


outro elemento que pode ser abordado como fator do atraso. Diante da necessidade de superação
das condições iniciais que marcaram a colonização, os autores identificaram que o Espírito
Santo experimentou uma circunstância político-administrativa que criou obstáculos ao seu
desenvolvimento. Após o fracassado início da colonização, os séculos XVII e XVIII seriam
assinalados pela ausência de donatários e bons governantes, mais especificamente, marcados
por administrações de capitães-mores e também pelo pertencimento do Espírito Santo à Coroa
portuguesa, o que segundo os autores, determinava uma condição de sujeição e marginalização
da Capitania, submetida à ausência de uma política de incentivo ao progresso e sujeita às
constantes nomeações de capitães-mores, prejudicando sua trajetória.238

237
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 118.
238
Luiz Cláudio Ribeiro e Enaile Carvalho explicam essa característica política. Carvalho demonstra da seguinte
maneira: “Observa-se, mediante a leitura do corpo documental oficial (Memórias, Cartas, Ofícios, Decretos, etc.),
que a história do Espírito Santo caracteriza-se pela administração vigente fora da Capitania. Como Capitania
Hereditária, era de responsabilidade do donatário o empenho em desenvolver mecanismos econômicos rentáveis,
100

Esse aspecto político-administrativo negativo indicado pelos autores foi associado a duas
circunstâncias experimentadas pelo Espírito Santo. Primeiramente, ainda em 1577, a Capitania
foi submetida ao Governo Geral da Bahia. Posteriormente, já no início do século XVIII, no ano
de 1718, o Espírito Santo não pertencia mais a particulares, mas à Coroa portuguesa. José
Teixeira de Oliveira e Maria Stella de Novaes não trazem uma análise específica sobre esses
fatos, mas, ao longo da narrativa linear que abarca esse período, teceram considerações a
respeito dessa condição, sendo possível, por sua vez, categorizá-la como um dos elementos do
atraso do Espírito Santo reconhecidos pelos autores.

Maria Stella de Novaes registra como sujeição a relação com a Bahia:

1577 – Da restauração de um Governo único, sediado na Bahia de Todos os Santos, a


12 de abril de 1577, resultou a inclusão do Espírito Santo entre as capitanias
subalternas, sujeitas, por isso, à Capitania Geral da Bahia, e governado por um
Capitão-Mor, sendo o primeiro Antônio de Oliveira Madail. 239

Sobre o pertencimento à Coroa, por sua vez, a autora limitou-se a considerar que “de diversos
modos, complicava-se tal situação, sobretudo com a distância, agravada pela falta de transporte
e vias de comunicação”.240 José Teixeira, por sua vez, recorrendo a um relato, argumentou:

O vice-rei conde de Sabugosa afirmou, certa feita, que 'a capitania do Espirito Santo
se conservou com melhor harmonia, sendo de donatários do que da Coroa', atribuindo
as 'muitas desordens à pouca capacidade e má escolha de capitães-mores, desde o
governo de Antonio Oliveira Madail'.241

como por exemplo, a implantação de engenhos. A Coroa Portuguesa desempenhava um papel exclusivo, em termos
de nomeação na governança da Capitania, elegendo para os postos-chaves da administração, como o de Capitão-
mor, homens indicados pelo donatário.” CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas
terras do Espírito Santo (1790 a 1821). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós/Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 150. Já Ribeiro, observando
a obra de José Teixeira de Oliveira, evidencia essa sucessão no primeiro século de colonização. A partir de Vasco
Fernandes Coutinho, o autor destaca: “Quando a capitania foi transferida aos herdeiros diretos, verificamos uma
sucessão alternada por governos interinos de vários capitães-mores, até chegar a Ambrósio de Aguiar Coutinho,
em 1643, que assumiu a capitania como herdeiro do pai, Francisco de Aguiar Coutinho, morto em 1627, sem, no
entanto, vir governá-la. De Ambrósio Coutinho em diante, com rápida exceção no governo de Francisco Gil de
Araújo, entre 1678 e 1685, o governo da capitania será exercido sempre por capitães-mores até o final do século
XVIII. O século que analisamos também compreende a fase que Portugal passou ao trono de Castela. Porém,
pouco é conhecido das mudanças nos assuntos administrativos, políticos e econômicos da capitania.” RIBEIRO,
Luiz Cláudio M. Modos de ver (1534-1643): o governo da capitania do Espírito Santo na sua primeira centúria.
In: BITTENCOURT, Gabriel; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. (orgs). Espírito Santo: um painel da nossa história II.
Vitória: Secult, 2012. p. 173.
239
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
41.
240
Ibid., p. 86.
241
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 63. p. 197.
101

No entanto, fosse a sujeição à Bahia, fosse o pertencimento à Coroa, tais circunstâncias foram
permeadas, como indica José Teixeira de Oliveira, por uma característica que marcou
negativamente o Espírito Santo, a ausência de administrações eficientes, que possibilitassem o
progresso da Capitania. Maria Stella de Novaes, comentando a respeito do século XVII,
evidenciava que “raros foram os acontecimentos extraordinários registrados na capitania,
durante muitos anos, salvo a mudança constante dos Capitães-mores [...]”242. José Teixeira
explica essa indicação da autora evidenciando, devido à falta de donatários,243 o prejuízo dessa
política para o Espírito Santo:

Tornou-se praxe atribuir a atonia do Espírito Santo, durante a primeira fase do período
colonial, ao descaso dos donatários que, em maioria, administravam por intermédio
de terceiros – os capitães-mores [...]. A demonstração de que procede a arguição está
nos documentos da época. Regra geral, a presença dos donatários no senhorio coincide
com promissor alento de todas as atividades humanas. Constroem-se novos engenhos,
movimentam-se expedições em busca das minas, o comércio se anima. Governada a
terra pelos capitães-mores, surgem as rusgas, o tráfico decai, o marasmo domina a
tudo e a todos.244

Segundo o autor, existiu uma má condução da Capitania:

Na volumosa documentação consultada não encontramos uma referência sequer à


mais rápida visita de qualquer dos capitães-mores ao sertão. Limitavam-se à aldeia da
Vitória, onde, aliás, não deixaram qualquer construção que lhes recordasse o nome. O
governo geral da Bahia, por sua vez, não traçava rumos à administração regional.
Contentava-se em determinar que seus delegados apresentassem relatórios
minuciosos sobre as fortificações 'porque ainda que de presente exista paz com os
Holandeses, sempre convém estar a Capitania com a prevenção necessária a qualquer
intento, ou invasão de outros inimigos desta Coroa'.245

242
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
69.
243
“O abandono da capitania por parte dos donatários desencadeou novo processo de decadência. Não era de se
esperar outra coisa, tão infelizes as escolhas dos administradores, preferentemente aliciados no seio de classe
avessa à tarefa de governar. Regra geral, permaneciam meses, apenas, no posto, logo substituídos.” Ver:
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 142; O autor avalia a incapacidade dos capitães-mores e a relação que se estabelecia entre eles e
as autoridades da Coroa, que prejudicavam a condução do Espírito Santo: “a maneira assaz descortês e rude como
os governadores gerais e vice-reis tratavam os capitães-mores. As cartas daqueles para estes – correspondência
oficial, copiada nos livros do governo – estão repletas de admoestações deprimentes e ameaças escolares. Não
raro, deparamos com ordens da mais alta autoridade da colônia para os seus subordinados imediatos – os capitães-
mores – receberem de seus governados pequenas dívidas de terceiros... E lá vinham as prolixas e fastidiosas
recomendações sobre a maneira de cobrar e o processo a ser obedecido quanto à remessa da importância recebida
para a Bahia, transformando-se os delegados da Coroa em meros agentes cobradores. A subserviência não permitiu
um protesto sequer contra prescrições tão deprimentes. Os homens a quem se confiava a administração da capitania
não estavam à altura do posto... Outra fosse sua formação moral e intelectual, por certo se insurgiriam.” Ibid., p.
143.
244
Ibid., p. 151.
245
Ibid., p. 143.
102

Analisando a documentação do Governo Geral da Bahia em relação ao Espírito Santo, José


Teixeira argumenta os prejuízos acarretados por tal situação:

Nem uma palavra sobre a indústria, o comércio, a lavoura, obras públicas, instrução.
Resultado de política tão acanhada: o conteúdo do alvará do vice-rei ao provedor da
capitania, datado de três de setembro de 1664, onde se lê o seguinte: ‘Sendo informado
que a Capitania do Espírito Santo está hoje tão diminuta no rendimento [...].’ 246

Maria Stella de Novaes também analisa essa segunda metade do século XVII, evidenciando que
os dízimos arrecadados no Espírito Santo eram insuficientes para cobrir as despesas. Assim,
segundo ela, “dessas desordens (o problema político-administrativo), surgiu, de certo a crise
financeira atravessada pela capitania.”247 Neida Lúcia de Moraes resume o "triste resultado" do
século XVII exatamente ao isolamento do Espírito Santo:

Mas o mais triste resultado da luta não seria o ataque armado[...] Foi o abandono, por
parte da metrópole, ocupada com a guerra acesa em todo o nordeste e com a defesa
da costa sul, que deixou sem assistência por todo o período do domínio espanhol a
imensa costa de Salvador ao Rio de Janeiro. [...] Excetuados os dias de Francisco Gil
de Araújo, todo o século XVII foi de resultados insignificantes. Não se fez mais do
que manter a faixa de praia conquistada pelos pioneiros. Os próprios jesuítas se
encapsularam nas suas propriedades rurais, de onde não saíam mais para os trabalhos
e catequese.248

Se a autora evidenciou que não ocorreram “acontecimentos extraordinários registrados na


Capitania, durante muitos anos”, José Teixeira de Oliveira denominou de “angustiosa
conjuntura” a dificuldade do Espírito Santo em efetuar o pagamento de suas despesas, condição
que “perdurou por vários anos”.249 Infeliz, acanhado, tornara-se o Espírito Santo, segundo o
autor:

Mofinos – excessivamente mofinos – os resultados do trabalho de cem anos. Além


dos dias de Francisco Gil de Araújo, em que a capitania viveu animada por generosas

246
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 144.
247
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
71.
248
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 30
249
José Teixeira apresenta evidências dessa circunstância: “[...] a queda dos dízimos, que refletia a situação geral
dos negócios da capitania, onde, em 1664, não havia quem comprasse o principal produto da terra – o açúcar. Dois
anos antes, para tornar possível o pagamento do donativo do dote e tributo da paz de Holanda, foi preciso que o
governador geral permitisse aos ‘moradores [cujos cabedais eram limitados]’ venderem pau-brasil na Bahia, ‘por
ser o mais eficaz remédio que tinham para poder dar satisfação ao que deviam’. Tão angustiosa conjuntura
perdurou por vários anos.” OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória:
Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 151. Ainda sobre esse período, apresenta o autor: “Em 1665, faltou
erário para pagar aos oficiais de artilharia. Respondendo a uma carta do provedor da Fazenda Real, o governador
geral autorizou a proceder ‘neste caso’ como ‘em outros semelhantes’, isto é, que pagassem os moradores, pois ‘é
estilo bem ordinário em toda a parte suprir o Povo o que a Fazenda Real não pode para conservar a quem os
defende’.” OLIVEIRA, 1975, loc.cit., destaque do autor.
103

ideias de progresso, pouco mais se fez que manter a faixa de praia cujos limites foram
traçados pelos pioneiros.250

Foi essa a imagem de Espírito Santo elaborada pelos autores em sua trajetória durante o século
XVII. Se os elementos colonizadores, associados aos prejuízos impostos pelos indígenas, foram
apresentados como fatores das dificuldades da capitania em sua origem, a ausência de
condutores para suprir o déficit do Espírito Santo e a falta de uma atenção por parte da Coroa
foram indicados como elementos que impossibilitaram o progresso do Espírito Santo. Aqui,
percebemos, novamente, o critério de interpretação dos autores. Se o período republicano foi o
momento em que o Espírito Santo encontrara a possibilidade de superar o atraso pela presença
e condução administrativa de seus governadores, o período colonial, porém, fora marcado por
essa ausência.

Nessa construção de uma representação de Espírito Santo colonial vinculado ao fracasso, a


narrativa histórica do atraso que marcou a sua trajetória guardou mais um obstáculo com
consequências negativas: o papel exercido pela capitania no século XVIII, período da atividade
aurífera na região de Minas Gerais.

2.2.4. O PAPEL DE DEFESA E O ESPÍRITO SANTO COMO A BARREIRA PARA AS


MINAS.

Quando observamos as representações de Espírito Santo e os usos do passado no presente251


identificamos que as referências a esse passado carregam sentimentos de ausência,
marginalização ou ainda, por meio dessa apropriação, justificam o discurso de mudança ou o
de superação de algo que no passado fora negado ao Espírito Santo. Dentre os elementos
presentes nesse roteiro, as dificuldades originadas com a descoberta do ouro na região das
Minas aparecem como o principal fator do atraso. Na terceira edição (2008) da obra de José
Teixeira de Oliveira, João Eurípedes Franklin Leal252 corrobora essa interpretação sobre os
prejuízos sofridos pelo Espírito Santo no contexto da mineração do século XVIII. Segundo o
autor:

250
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 166.
251
Observamos no Capitulo 1 a recorrência a certos eventos do passado espiritossantense como legitimadores de
determinados posicionamentos e ações políticas. E figurou, entre eles, o ocaso do Espírito Santo com a exploração
aurífera do século XVIII.
252
O autor tece algumas considerações sobre a história do Espírito Santo, e dentre elas comenta a questão dos
impedimentos trazidos à Capitania após a descoberta das minas. LEAL, João Eurípedes Franklin. Posfácio.
História do Espírito Santo: uma reflexão, um caminho. In: OLIVEIRA, José Teixeira. História do Estado do
Espírito Santo.3.ed. Vitória: APEES/SECULT, 2006. p. 503-534.
104

Mas foi no início do século XVIII que outra medida transtornou mais ainda o Espírito
Santo. Com a descoberta do ouro em Minas Gerais a Coroa portuguesa achou por
bem, por ser o Espírito Santo uma defesa natural contra a possível cobiça estrangeira
das novas riquezas encontradas, proibir qualquer abertura para o interior da capitania.
O Espírito Santo passou a funcionar exclusivamente como uma trincheira de defesa
do interior mineiro, evitando qualquer medida ou ação progressiva que atraísse a
cobiça estrangeira, que prejudicasse a mineração nas Minas Gerais ou que facilitasse
o contrabando do ouro. Proibiu qualquer entrada ou penetração para o interior, assim
como toda e qualquer ação colonizadora e fixação de habitantes em terras além do
litoral[...].Em 1711, com o falecimento do donatário Manoel Garcia Pimentel, o rei
ordenou, a 19 de maio, ao governador do Brasil sequestrar a capitania e incorporá-la
à Coroa. Essas medidas foram tomadas, mas o herdeiro Cosme Rolim de Moura
levantou questão que lhe foi favorável na Relação da Bahia, mantendo-o na posse do
Espírito Santo até que, a 6 de abril de 1718, foi realizada a venda da capitania à Coroa,
pelo valor de 40 mil cruzados, pagos em quatro parcelas anuais e iguais. A compra da
capitania do Espírito Santo estava dentro da política portuguesa de manter o Espírito
Santo como a “defesa natural das Minas Gerais”, fortificando principalmente Vitória
e proibindo a abertura do interior, deixando que a própria natureza selvagem servisse
de trincheira contra um possível ataque estrangeiro visando ao ouro, assim como
evitando o seu contrabando.253

Assim, constatamos que a noção da Capitania como trincheira254 permanece em parte da


historiografia local. Em relação aos autores aqui analisados, cabe observarmos qual o
significado atribuído a esse período e evento para o sentido da trajetória do Espírito Santo
definido em suas narrativas. O grande elemento que marcou o não desenvolvimento, ou o
atraso, do Espírito Santo em seu período colonial foi o papel desempenhado pela capitania no
século XVIII. No que diz respeito ao “capítulo da mineração” na história local, a colaboração
do Espírito Santo para a história do Brasil ganha um sentido negativo para sua trajetória. O
papel de defesa, que em relação às invasões sofridas pela colônia foram qualificados em termos
de exaltar a participação do Espírito Santo ao longo da história do Brasil, no caso do período
da mineração na região das Minas esse papel foi interpretado em função dos prejuízos
acarretados para o desenvolvimento da Capitania.

253
LEAL, João Eurípedes Franklin. Posfácio. História do Espírito Santo: uma reflexão, um caminho. In:
OLIVEIRA, José Teixeira. História do Estado do Espírito Santo.3.ed. Vitória: APEES/SECULT, 2006. p. 517-
518; Torna-se importante frisar que as obras em geral não examinam a sociedade e a economia do Espírito Santo
em si. As assertivas de fracasso contem, por generalização ou mesmo suposição, um elemento comparativo em
relação a capitanias vizinhas que, por conseguinte, teriam sido bem-sucedidas. A interpretação de João Eurípedes
Franklin Leal e outros autores seguem, muitas vezes, sem questionamento, tal pressuposto.
254
A própria literatura também se apropriou dessa noção. Cláudio Lachini, em narrativa literária sobre Vasco
Fernandes Coutinho, opina sobre esse período: “O Espírito Santo que Vasco Fernandes Coutinho deixou foi
isolado pela Coroa Portuguesa quando da descoberta do ouro em Vila Rica, situada em território que originalmente
pertencia à Capitania do Espírito Santo. Como à mesma Capitania, e, portanto, de Vasco Fernandes Coutinho,
foram as terras de Diamantina e da maior parte das Minas Gerais. As minas, que eram gerais como vaticinara
Vasco, passaram a pertencer à Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, criada em 3 de novembro de 1709.[...] O
preço recebido pela região costeira que vai da divisa com a Bahia até a divisa com o Rio de Janeiro foi o
abandono.[...] Deixá-lo à mingua, protegido por alguns fortes, foi a defesa mais em conta contra qualquer entrada
que se fizesse pelo caminho mais curto. Ver: LACHINI, Cláudio. Vasco: memórias de um precursor da
globalização. São Paulo: Bacarolla, 2009. p. 244.
105

Tal papel surge na narrativa como um momento associado a impedimentos, marginalização,


estagnação e exclusão. Enquanto a mineração era acompanhada da ideia de riqueza, de
progresso para a história do Brasil, para o Espírito Santo ela significou o atraso, o principal
obstáculo da trajetória capixaba. A própria ênfase direcionada à mineração, associando-a a um
período de esplendor das Minas Gerais, contrasta e reforça, por sua vez, a noção de marasmo
do Espírito Santo, que diferentemente do restante da colônia, não se contaminou, ficando
isolado.

Com José Teixeira de Oliveira, Maria Stella de Novaes e Neida Lúcia, esse período de
impedimento e marginalização ganhou o status de marco histórico negativo. Como veremos, a
imagem de decadência relativa ao início do século XIX na Capitania era resultado dos séculos
anteriores, mas, sobretudo, pela estagnação desse momento. O século XVIII encerrava, segundo
a interpretação dos autores, o passado colonial caracterizado pelo fracasso e, depois dele, a
marca da trajetória do Espírito Santo seria a busca por superar essa condição ao qual fora
submetido.

Em relação à busca pelo ouro, Enaile Carvalho evidencia que o Espírito Santo não esteve
ausente:

No que se refere ao Espírito Santo, inúmeras entradas ao interior da Capitania


buscaram a tão sonhada serra das esmeraldas, utopia que persistiu até a entrada do
século XIX, sempre com dispêndio de gentes, provisões e mantimentos não só do Real
Erário português, como também, de particulares. [...] Há várias referências no Arquivo
Histórico Ultramarino, sobre expedições realizadas para descobrir a localização da
serra das esmeraldas que se supunha existir nos limites da Capitania. Essa utopia,
iniciada por Marcos de Azevedo, teve como adeptos seus filhos Antonio de Azevedo
Coutinho e Domingos de Azevedo Coutinho e, mais tarde, vários aventureiros
seguiram-se em expedições financiadas pelo Estado lusitano e/ou particulares, com o
mesmo objetivo de encontrar o eldorado capixaba. Arquivo Histórico Ultramarino -
CTA: AHU – Espírito Santo, de 1585 a 1821.255

Na perspectiva de análise adotada por José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de
Novaes, percebemos que todos registraram as tentativas de exploração aurífera no Espírito
Santo. Os autores evidenciaram as ações e os esforços dispensados por diferentes sujeitos,

255
CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo (1790 a 1821).
2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade Federal
do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 31.
106

valorizados na narrativa e, inclusive, alguns foram destacados pela resistência que exerceram
às ordenações oficiais de impedimento de interiorização no Espírito Santo nesse período.256

A busca pelo ouro ressaltada pelos autores evidencia que a capitania não estava avessa a este
propósito da Coroa portuguesa para sua colônia. No entanto, para eles, a percepção foi a de
perda. De acordo com Neida Lúcia de Moraes, "era o começo do ciclo do ouro do qual o Espírito
Santo deveria permanecer afastado, e em virtude do qual iria ser isolado do resto do Brasil por
cem anos, no decurso de todo o século XVIII."257 Nessa perspectiva, a Capitania perdeu a
oportunidade, estava reservado a ela outro papel nesse contexto da história do Brasil. Segundo
José Teixeira:

256
José Teixeira de Oliveira e Maria Stella de Novaes destacam ao longo da narrativa sobre o período colonial que
as buscas pelo ouro no Espírito Santo ocorreram desde o século XVI, mas a capitania não obteve êxito nesses
empreendimentos, o que reforça a noção de prejuízo do Espírito Santo com a descoberta do ouro na região das
minas. Maria Stella de Novaes apresenta as tentativas, ainda que malsucedidas comparando-se ao que se
desenvolveu na região das minas, que existiram na Capitania: “1646 – Continuava latente nos membros da família
Azeredo, o sonho das pedras verdes. Haviam Antônio e Domingos de Azeredo, filhos de Marcos (Antônio) de
Azeredo (Coutinho), o descobridor das serras de esmeraldas, se apresentado, em 1644, para realizar nova entrada,
o que foi aceito pelas Côrtes Portuguesas. Segundo a notícia transmitida a 24 de setembro de 1646, ao Geral da
Companhia de Jesus, pelo Provincial Francisco Carneiro, foram nomeados: - Superior da entrada, o Pe. Luís da
Sequeira e seu companheiro, o Pe. Vicente de Banhos. Regressaram todos, nesse mesmo ano (1646), com notícias
confirmativas da referida serra.” NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial
do Espírito Santo, 1964. p. 68, parênteses da autora); Novaes destaca, ainda, a resistência às proibições. Pedro
Bueno de Carcunda é assim caracterizado: “sempre atento às minas auríferas. Avesso às ordens superiores
contrárias à exploração do interior da capitania, varava os sertões e iludia os delegados de El –Rei. Declarava suas
riquezas e concorria, assim, para o povoamento do Espírito Santo. Audaz bandeirante, ...” (Ibid., p. 88.); Maria
Stella demonstra ainda: “1758 – desde 1750 havia o Ouvidor do Espírito Santo estabelecido as minas do Castelo.
Venceu, portanto, a perseverante coragem dos mineradores. Embora condenado pelo Governo da Bahia, que
reclamava estar o lugar nos limites de sua administração [...]” (Ibid., p. 88-89.); José Teixeira de Oliveira também
atenta-se para essa busca, evidenciando que a colonização do Espírito Santo foi marcada por essas tentativas:
“Lançadas, pois, as sementes ao solo, Vasco Coutinho e seus companheiros se atiraram às explorações. Basílio
Daemon, recordando o feito, escreveu que, em fins de 1535 ou princípios do ano seguinte, saíram os povoadores
em grande número, ‘bem armados e municiados’ e entranharam-se pelo sertão. Abrindo picadas na floresta,
chegaram até os ‘arredores da hoje cidade da Serra’, sem serem incomodados ou pressentidos pelos índios, pois
nada consta a respeito, acrescenta o minucioso cronologista.” OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado
do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 46; O autor destaca ainda que não
existiu uma atenção voltada para o Espírito Santo, mesmo com indícios: “Preciosa por todos os títulos, a epístola
do famoso jesuíta contém, ainda, esta notícia sensacional: ‘Estão os moradores muito contentes, porque além do
metal, que se na mesma Vila achou que se [sic] tem por prata, e muito ferro, mandou o Capitão Vasco Fernandes
Coutinho descobrir, pelo sertão, e acharam ouro e certas pedras, que dizem que serão de preço, e que de um e de
outro há muita cópia’. É surpreendente que as notícias desses achados não tenham provocado grande afluência de
aventureiros, como se verificou nas outras capitanias. Pelo menos não se conhecem informações.” Ibid., p. 83.;
Registrou, portanto, que essa busca existiu na Capitania: “Dom Francisco de Sousa, o das Manhas, que governou
o Brasil, pela primeira vez, no fim do século XVI, aqui esteve depois de outubro de 1598. Dirigia-se a São Paulo,
mas, ‘por lhe dizerem que havia metais na serra de Mestre Álvaro e em outras partes, as tentou e mandou cavar e
fazer ensaio, de que se tirou alguma prata. Também mandou que fossem às esmeraldas, a que da Bahia havia
mandado por Diogo Martins Cão e as tinha descobertas.’ Informa Basílio Daemon que o governador foi em pessoa
examinar algumas minas e que, entre os da sua comitiva, se contavam dois alemães – um engenheiro, de nome
Geraldo, e um mineiro, Jaques.” Ibid., p. 115.
257
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 30.
107

O século XVII, que se distinguiu pelo número de bandeiras, pela busca desesperada
às brenhas promissoras, ainda assistiu à revelação do ouro no território que passaria a
denominar-se das minas gerais. As lavras mais ricas estavam localizadas, justamente,
na faixa de terra compreendida pelos limites traçados, na carta de doação, à capitania
de Vasco Fernandes Coutinho. Entretanto, não ocorreria a ninguém reclamar o direito
de senhorio sobre a região – tão distante do litoral. A impossibilidade dos donatários
de levarem sua autoridade até os confins do quinhão que el-rei lhes doara conspirou
com o tempo, modificando o direito primitivamente estabelecido.258

À impossibilidade de assumir o protagonismo da exploração aurífera, Maria Stella apresenta a


condição de barreira que passava a caracterizar o Espírito Santo no cenário da colonização do
Brasil:

Surgiu, depois, o receio das visitas indesejáveis, em busca das riquezas naturais do
interior do Brasil. Vieram, por isso, ordens rigorosas da Bahia, para que se
recolhessem a Vitória todos os que se encontrassem nas lavras. O Espírito Santo era
já trincheira, para a defesa das Minas Gerais!... E, daí, resultou igualmente a proibição
de se abrirem estradas para o Oeste. E, assim, a Capitania viu-se impedida de conhecer
e defender seu próprio território, que se reduzia à pequena faixa litorânea, em
desacordo com a Carta- Régia de doação a Vasco Fernandes Coutinho, baseado no
Tratado de Tordesilhas!259

O papel de “barreira verde” definia um lugar para a capitania no contexto da história do Brasil,
porém, segundo José Teixeira de Oliveira, para o “Espírito Santo, particularmente, a vizinhança
das minas viria constituir empecilho à penetração e ao desenvolvimento das suas atividades
para o interior.”260 Os impedimentos direcionados ao Espírito Santo nesse período da
exploração aurífera do século XVIII passaram, portanto, a definir a dinâmica da colonização
local e a caracterizar sua marginalização. Os autores passaram a representar o lugar da Capitania
e a apontar as causas e implicações dessa condição. Para Neida Lúcia:

[...] a capitania se encontrava em lugar que necessitava de vigilância minuciosa e ativa


para evitar o contrabando do ouro.[...] Era necessária à fazenda real a manutenção da
inviolabilidade da ‘barreira verde’ que vedava o acesso às jazidas auríferas. Eis como
era bem assegurada a impermeabilização do tecido de proibições. Em 1716, o
Marquês de Angeja recomendava ao seu enviado, o mestre de campo Domingos
Teixeira, que observasse a ‘proibição de que ninguém passe a fazer descobertas de
ouro no Espírito Santo por ser ordem de El-Rei, que não se façam estas enquanto não
se fortifica primeiro a Capitania.261

258
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 171.
259
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
80.
260
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 171.
261
MORAES, op.cit., p. 31.
108

Assim também os demais autores evidenciaram os impedimentos que sujeitavam o Espírito


Santo ao papel de trincheira. Segundo José Teixeira, foi essa a destinação atribuída por parte
da Coroa portuguesa:

Por muitos anos, os administradores portugueses e seus delegados no Brasil estiveram


convencidos de que qualquer ataque estrangeiro, dirigido contra as jazidas das minas
gerais, teria o Espírito Santo como base de desembarque, daqui marchando em
direção àqueles centros. A proibição de se fazerem estradas que ligassem a capitania
à sua vizinha do oeste e a atenção dedicada às fortificações locais demonstram
suficientemente a procedência dessa informação.262

Seria essa a condição da Capitania, na qual a política do governo geral seria a de ameaçar “de
severos castigos aos transgressores da ordem del-Rei.”263 Maria Stella de Novaes observa como
consequência direta dessa política da Coroa o aparelhamento do Espírito Santo realizada pelo
governo geral para que ela exercesse seu papel:

[...] tratou, simultaneamente, o Governo Geral do Brasil de providenciar o


aparelhamento da capitania, para qualquer emergência. Realmente, a Fortaleza de São
Francisco de Xavier, concluída em 1702, no local, mais ou menos onde se encontrava
o Forte de Piratininga, notável desde os primórdios do povoamento, atestou o zelo do
Governador Geral Dom Rodrigo da Costa, pela defesa da Vila; dotou-a de artilharia
necessária.264

José Teixeira também faz alusão a essa condição estabelecida, evidenciando o estado em que
se encontrava a capitania:

Numerosas referências a remessas de armas e munições por parte do governo da Bahia


dão a entender que havia real temor de que alguma expedição estrangeira tentasse
assaltar o Espírito Santo, para daqui passar às minas. Mesmo assim, em 1710, o
governador geral aludia ao ‘miserável estado em que essa praça [Vitória] se acha pela
falta que tem de tudo o que conduz à sua conservação e defesa’.265

262
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 173.
263
Ibid., p. 181. Sobre as proibições e controle da Capitania, o autor destaca: “À Bahia chegaram delações contra
o capitão-mor Francisco de Albuquerque Teles, obrigando o governador geral a dirigir-se ao provedor da Fazenda
Manuel Correia de Lemos. Pedia informações sobre a suficiência do acusado, estado das fortificações,
prosseguimento das pesquisas de ouro e abertura do caminho para as minas gerais, pois constava que o capitão-
mor se associara a Pedro Bueno Cacunda para levar a cabo a ligação da capitania com aquela região, ‘o que convém
atalhar logo por todos os meios possíveis para evitar as danosas e irremediáveis consequências que precisamente
se hão de seguir contra o serviço de Sua Majestade e conservação da dita Capitania’.” (Ibid., p. 179.); Ainda
segundo o autor: “Vale acentuar a recomendação do marquês de Angeja ao seu enviado, mestre de campo
Domingos Teixeira, relativa à ‘proibição de que ninguém passe a fazer descobertas [de minas]’ no Espírito Santo,
‘por ser ordem de El-rei se não façam estas enquanto se não fortifica primeiro a Capitania’.” (Ibid., p. 186,
destaques e colchetes do autor).
264
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
80.
265
OLIVEIRA, op. cit., p. 181.
109

Diante do impedimento de interiorização e, consequentemente, de participação na economia


aurífera, o Espírito Santo se encontrava com a preocupação de defesa, canalizando esforços
nesse sentido.266Maria Stella de Novaes, ressalta, portanto, os impedimentos oficiais e o lugar
estratégico ocupado pela capitania:

continuavam a despertar a atenção do Governo Geral que, por isso, proibiu


‘descobertas de minas, segundo ordem de El-Rei, antes que se fortificasse a Capitania.
Essas recomendações vieram... ‘com a determinação que fortificasse o litoral da
Capitania, datava de 2 de setembro de 1716.’ [...] governo preocupado com pontos
estratégicos no qual o ES encontrava-se [...] 1726 – Verificou-se, passados alguns
anos, que o Governo continuava a preparar as forças armadas e providenciava
equitativamente a guarnição de diversos pontos do Brasil, tidos como estratégicos. 267

Essa função estratégica exercida pelo Espírito Santo nesse momento de sua trajetória, portanto,
trazia consigo, na leitura dos autores, os obstáculos para o seu desenvolvimento. Exclusão e
marginalização, impedimentos e falta de autonomia caracterizavam a Capitania nesse contexto.
Se os dois primeiros séculos da experiência colonizadora foram marcados pela ausência de
progresso, a avaliação dos autores acerca do século XVIII manteve tal perspectiva de análise.
Novamente, portanto, a imagem negativa do atraso atribuída ao passado colonial caracteriza a
representação de Espírito Santo, nesse ponto, em decorrência dos obstáculos definidos pela
Coroa portuguesa. A ideia de conquistas e as expectativas abertas com a mineração aparecem
em contraste com a condição local. Segundo Neida Lúcia:

Enquanto isso, a capitania não podia pagar os impostos devidos à Coroa, não havia
vida social, faltam notícias sobre comércio, atividades industriais ou artesanais, ou
sobre fundação e desenvolvimento de povoados. A vida pobre e sem estímulos era
ainda travada pela legislação que impedia o contato com as minas. 268

Maria Stella de Novaes caracteriza a situação econômica em 1728:

Entre 1728 e 1730, a Vila da Vitória atravessava situação econômica difícil, ‘por falta
de negócios’. Seus moradores ‘eram pobres’. Com setecentos fogos e [...] seus
dízimos, em muitas ocasiões, não davam para cobrir os filhos da folha [...]. 269

266
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
86-87. A autora cita, ainda, que em 1709 os habitantes de Vitória “souberam que deveriam entregar armas, pólvora
e dardos, que tivessem para a defesa da Capitania” e em 1710, diante do perigo de invasão estrangeira, “em caso
de tão indesejável e perigosa visita, o capitão-mor Francisco de Albuquerque Teles[...].” Ibid., p. 86.
267
Ainda sobre a função a autora registra: “1736 – Preocupava-se o Governo com a defesa do litoral, contra a
invasão atraída pelas minas auríferas. Uma Carta-Régia, de 20 de abril de 1736, mandava que se estabelecesse, na
Capitania, uma guarnição de 50 soldados, cujo pagamento se devia fazer pela Provedoria da Bahia de Todos os
Santos, quando faltasse rendimento de dízimos.” Ibid., p. 89.
268
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 31.
269
NOVAES, op.cit., p. 87.
110

José Teixeira de Oliveira recorreu mais uma vez à documentação que possibilitava evidenciar
uma imagem da Capitania ao iniciar o século XVIII, mais especificamente, durante a
administração do capitão-mor Francisco Ribeiro de Miranda que:

não se cansou de escrever aos seus superiores hierárquicos, pedindo providências para
o desenvolvimento da capitania. No acervo da documentação conhecida, destaca-se a
resposta que o governador geral deu a várias cartas de Ribeiro Miranda. É uma peça
longa, em que D. Rodrigo da Costa passa em revista os principais problemas
administrativos do Espírito Santo de então. Por ela, ficamos sabendo que a ‘lotação
dos soldados pagos’ (quarenta homens) ‘se achava muito diminuta, havendo muitos
moços que queriam sentar praça’ e que ‘o não faziam pela falta que ha[via] de dinheiro
para se lhes pagar’; o padre reitor da Companhia de Jesus queixava-se de que os índios
não eram pagos quando retirados das suas aldeias para o serviço da Coroa; as lavouras
ficavam desfalcadas de mulatos e pardos, vendidos para as minas, não havendo negros
para suprir a sua falta.270

A influência da região das minas é, portanto, enfatizada contrastando com a condição que
passava a se encontrar o Espírito Santo. Ainda, segundo José Teixeira, no ano de 1752, era
possível identificar “mais um depoimento sobre o senhorio, agora do capitão-mor José Gomes
Borges (aqui chegado a quinze de janeiro daquele ano) e que o encontrara ‘no mais deplorável
estado que se pode considerar’”.271 Imagem, que de acordo com o autor, definiu o que ele
chamou de uma “vida social fraca”:

Não há notícia de festas, convívio entre escravos e senhores, comércio, atividades


industriais, desenvolvimento das povoações, relações com os silvícolas etc. Os
grandes senhores, que passeiam suas riquezas ou títulos de nobreza pelas páginas das
crônicas de outras capitanias, são ignorados no Espírito Santo. Nada que se destaque
da mesmice de uma vida paupérrima, manietada pela absurda legislação que impedia
o contato tonificante com as minas. 272

A marca dessa inserção do Espírito Santo na história do Brasil era, portanto, a da exclusão e
pobreza num momento interpretado como de opulência, trazida pela mineração. Na narrativa
dos autores, deste modo, o século XVIII fora marcado pelos obstáculos impostos à capitania. A
imagem construída sobre o início do século XIX foi, consequentemente, a da decadência,
resultado dos séculos anteriores. Interessante notar que o final do período colonial aparece nas
obras como um momento de possibilidades e mudanças. Ainda assim, mesmo evidenciando a
presença de governos que representariam essa mudança na trajetória do Espírito Santo, o início
do século XIX foi exposto pelos autores seguindo este contraste, pois anunciava possibilidades

270
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 176.
271
Ibid., p. 202.
272
Ibid., p. 187.
111

de modificação, mas ainda registrava, em decorrência do atraso histórico, a imagem que


caracterizara o período colonial na Capitania.

José Teixeira de Oliveira considerou que no início do século XIX, “quadros bem sugestivos a
capitania de Vasco Coutinho oferecia a um observador dos derradeiros tempos coloniais.”
Segundo o autor, ao retratar o Espírito Santo nesse momento, considerava que o território se
encontrava “reduzido e, sobretudo, a mata, a indiada e, mais que tudo, as ordens del-rei
sojigavam os capixabas na estreita e indeterminada faixa litorânea.” A divisão administrativa
evidenciava a ausência de cidade, “nem a sede da capitania” e parte dos distritos da Vila de
Vitória “não passava de minúsculo povoado, mas oficialmente lhes davam aquele
predicamento”. Segundo o autor, a população era reduzida se comparada às outras capitanias
naquela época. Em termos de governança, a capitania permanecia sob o domínio da Coroa e
“nos últimos tempos do período colonial, os cargos da administração civil, no Espírito Santo,
eram bem reduzidos”, dificultando a administração. Possuía um aparelho de justiça deficiente
que “correspondia a ausência quase total da justiça d’el-rei.”273

Com Neida Lúcia de Moraes, o diagnóstico negativo da situação local evidenciava-se na


ocupação de seu território:

Acabamos de enumerar os obstáculos opostos à nossa penetração. Todo o século


XVIII foi preenchido com o estabelecimento e a manutenção da ‘barreira verde,
encobrindo as minas.’ Segundo assinala Saint Hilare, ao raiar o século XIX, em
trezentos anos de sacrifícios, de incompreensão, de submissão forçada a interesses
estranhos à Capitania, a faixa povoada não ultrapassava a média de 4 léguas a partir
do mar, assim mesmo dividida em duas partes, distantes 80 km entre si, que tal é
menor a distancia que vai do Rio Doce ao Rio São Mateus, em linha reta. A verdade
é que as circunstancias não nos deixaram ir além. 274

Diante desse quadro, o autor chama a atenção para a carta de D. João em 1800, preocupado em
“reanimar a quase extinta Capitania do Espírito Santo.”275 Maria Stella de Novaes também

273
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 232-238.
274
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 33. Segundo a autora,
a atividade aurífera naquele período só foi superada a partir de 1800: "A psicose do ouro criou uma nuvem que
sombreou o Espírito Santo durante todo o século XVIII. Foi necessário que se encerrasse o ciclo do ouro, [...] para
que falhas se abrissem na cortina e ao sol do progresso fosse permitido iluminar um pouco esta dadivosa e boa
terra que veio a constituir o nosso Estado. Ao terminar o século XVIII, exatamente no apagar das luzes, aos 8 de
outubro de 1800, foi estabelecido um registro à margem do Rio Doce, no Quartel do Porto do Souza. Finalmente
nos era concedida a licença de atravessar a estreita faixa de terra do Espírito Santo." Ibid, p. 32.
275
OLIVEIRA, op. cit.,p. 217.
112

ressalta esse momento e o interesse da Coroa frente ao Espírito Santo, o que evidenciava a
necessidade de superação de uma condição de dificuldade que identificava a capitania:

Diante da situação de real decadência da Capitania, o Príncipe Regente Dom João VI


escreveu ao governador da Bahia, Francisco Cunha Menezes, sobre ‘um particular
cuidado em reanimá-la’, porque estivera ‘confiada, até agora a ignorantes e poucos
zelosos capitães-mores’. Nomeou, por isso, um Governador particular, ‘um homem
de conhecidas luzes e préstimos’. Recomendava ainda a cooperação com o mesmo
Governador, para que realizasse grandes planos de que fora encarregado, tais como: -
1º) Abrir uma mais fácil comunicação com a Capitania de Minas Gerais de que hão
de seguir-se vantagens incalculáveis;
2º) Ampliar e conservar as preciosas matas da Capitania do Espírito Santo.
3º) Aumentar a extensão de toda a qualidade de culturas, nos férteis campos da
Capitania.
4º) Civilizar os índios, por meio de propaganda das luzes do Cristianismo e concorrer
assim para que eles se tornem vassalos leais. 276

Maria Stella de Novaes também caracteriza o final do período colonial evidenciando as


limitações encontradas pelo Espírito Santo:

A 23 de junho de 1811, o Escrivão da Junta da Fazenda Real, Francisco Manuel da


Cunha, apresentava ao Conselheiro Antonio de Araújo e Azeredo amplas informações
do estado da Capitania: - serviço público, topografia, história, etc. Estava a agricultura
desprezada, por isso, os negócios giravam com açúcar, aguardente, café, milho, feijão,
arroz e algodão, em pequena escala. Casas arruinadas. As mulheres fiavam o algodão.
O transporte da reduzida produção agrícola fazia-se, para o Rio de Janeiro e a Bahia,
em pequenas embarcações dos comerciantes.
Vila Velha tinha ‘quarenta casas cobertas de palhas.’
As condições das outras vilas não eram melhores.
Finalmente, ‘ desde o Rio Doce até o Itabapoana, a estrada é sempre pela costa do
mar, e, raras vezes, dela se aparta.’277

A autora ressalta, ainda, a dificuldade que encontraria o primeiro governo provincial que
apresentava um Espírito Santo deficitário:

- O primeiro Secretário do Governo Provincial foi Henrique José de Paiva, nomeado


a 28 de novembro de 1823.
- Era então precária a situação financeira da província. Em ofício de 2 de janeiro, a
junta Provisória pedira ao Governo na Corte uma Bandeira nacional, porque não podia
fazê-la na Vitória, pela ‘extrema falta de meios.’ [...]Seriam enormes os prejuízos

276
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
105.
277
Ibid., p. 112. Observamos também em José Teixeira de Oliveira o destaque dessa condição do Espírito Santo
nesse ano: “De 1811, isto é, justamente do ano em que Tovar deixou a governança, é um depoimento de Francisco
Manuel da Cunha, que apresenta a capitania em estado bem contristador. O comércio de Vitória – a darmos crédito
às suas palavras – só negociava, em produtos da terra: açúcar, aguardente, café, milho, feijão, arroz e algodão –
tudo em pequena escala, pois a agricultura estava como esquecida. As casas refletiam a penúria dos moradores e,
se se arruinava, não eram reedificadas. Não havia divertimentos, devido à pobreza, que era geral.[...] Até o corte
de madeira – umas das forças econômicas da terra – decaíra. A minguada produção agrícola e industrial era
transportada em pequenas embarcações, pertencentes aos comerciantes locais, para o Rio de Janeiro e Bahia.
Raramente alcançavam Pernambuco ou Rio Grande do Sul. O Sonhado intercambio com Minas Gerais continuava
sendo uma utopia. As canoas que singravam o Rio Doce conduziam apenas soldados.” OLIVEIRA, José Teixeira
de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 253.
113

decorrentes das dificuldades financeiras da Província, principalmente quanto à


civilização dos índios, pois, abandonados, atacariam as lavouras, os núcleos do
povoamento, etc. E a defesa militar exigia sempre novos gastos. Dizia mais: - ‘É
preciso que S.M. Imperial esteja cabalmente ciente de que esta Província é a mais
miserável do Império: - não tem agricultura nem comércio; seus habitantes são
paupérrimos.’
E concluía com esta sincera afirmativa: - ‘Bem vejo que o Governo de S. M. Imperial
está sobrecarregado de grandes ponderações qual a salvação da Pátria, mas, também
é certo que esta parte do Império, pela sua constante adesão à causa do mesmo
Império, lhe deve merecer atenção assim como a requisição do seu Presidente que em
tempo algum deseja ser notado de omisso ou indolente em negócios de tanta monta, e
pelo que fazia responsável perante S.M. Imperial e à Nação.’ 278

O início do período imperial apresentava, assim, a “Província mais miserável do Império”,


herança do período colonial. Segundo José Teixeira de Oliveira, as dificuldades, os
impedimentos e a marginalização que foram determinados ao Espírito Santo estavam presentes
em sua realidade nesse momento:

Arrecadando 23:378$000, o Espírito Santo tinha seus gastos, para 1827/8, calculados
em 48:121$413. Perduravam, como se vê, os déficits, raramente superados nos
séculos precedentes. Para aliviá-los, determinara o Imperador – pela provisão de nove
de fevereiro de 1826 – fossem entregues aos cofres da Província as sobras dos
rendimentos de Campos que, em 1827, totalizavam 8:933$629 e – por ato de catorze
de novembro de 1826 – se consignasse mensalmente, em favor dos cofres
espiritossantenses, a quantia de 4:000$000. Entretanto, ‘pela estreiteza do comércio’,
andava atrasadíssimo o pagamento da mesada, provocando, ipso facto, o acúmulo da
dívida passiva, que aumentava sempre.279

O “peso” dos séculos anteriores, como sugere o autor, fazia-se presente nos anos inaugurais do
Espírito Santo como província. Dessa forma, período colonial foi constituído, portanto, nas
narrativas presentes nas obras História do Estado do Espírito Santo, História do Espírito Santo
e O Espírito Santo é assim pelo conjunto de referências atribuídas a ele e definidora de sua
condição. A partir da lógica atraso versus progresso, contrastando com o período republicano,
os autores determinaram o significado do passado colonial como o fundador do atraso, o que
possibilitou atribuir um sentido de superação progressivo aos séculos seguintes.

2.3 O SÉCULO XIX E A NARRATIVA DA SUPERAÇÃO DO ATRASO.

A chegada do século XIX foi representado de forma distinta aos séculos anteriores na narrativa
do progressivo desenvolvimento. Ainda que os autores tenham caracterizado o Espírito Santo
no final do período colonial bem como no início do imperial marcado pelos déficits originários

278
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
147-148.
279
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 298.
114

dos séculos anteriores, percebemos uma mudança na qualificação e no significado desse


momento para a história do Espírito Santo, quando comparado ao colonial.

Segundo Neida Lúcia, por exemplo, o século XIX inaugurou um novo momento do Espírito
Santo em relação às expectativas de seu desenvolvimento econômico. Para ela, era necessário
"examinar como vencemos os demais prejuízos causados por três séculos de restrições que hoje
mal podemos compreender"280, o que por sua vez, evidenciava como o Estado conseguiu
"recuperar em 100 anos o atraso dos 300 que pagamos caro o progresso das outras
capitanias."281 Nesta perspectiva, a lógica atraso/progresso na interpretação do passado definiu
a diferenciação entre o que veio "antes" e "depois" do século XIX, estabelecendo-se, assim, um
marco temporal que, por sua vez, definiu um novo sentido à trajetória do Espírito Santo nessas
narrativas. De acordo com o sentido dado ao passado, no qual assumiam o presente como marco
temporal, o século XIX foi definido dentro da trajetória do progresso como o do início do
processo de superação do atraso. Se esta realizar-se-ia no presente, como já analisamos, o
Espírito Santo em sua fase província foi caracterizado pela libertação dos impedimentos que
caracterizaram o período colonial, ou seja, no qual possibilidades e horizontes se apresentavam
à Província para inaugurar a marcha de progresso rumo ao Espírito Santo republicano.

A visão sobre o século XIX se constituiu em consonância com os critérios de avaliação por eles
estabelecidos, o que implicou na definição do que ele carregava de novidade e colaboração para
o progresso do Espírito Santo. Este foi apresentado nas narrativas por meio de um conjunto de
circunstâncias, eventos e realizações governamentais, que, de maneira geral, compuseram um
quadro em que o Espírito Santo figurou em melhores condições do que no período colonial.
Constatamos que a noção de progresso foi representada por realizações governamentais,
inovações e expansão territorial, interpretadas como conquistas do Espírito Santo. Os autores
evidenciaram os seguintes temas e aspectos que caracterizariam o século XIX: o fim da
dependência em relação à Bahia, o fim dos entraves em relação ao contato com as Minas Gerais,
a possibilidade de interiorização com a construção de vias de comunicação, fundação de
colônias e o surgimento de vilas e povoamentos no interior do Espírito Santo, bem como a
introdução de uma série de inovações como o jornal, estradas, telégrafos e embarcações a vapor,
que surgiam na narrativa como símbolos do progresso.

280
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 35.
281
Ibid., p. 32.
115

A perspectiva de progressivo desenvolvimento, adotada por José Teixeira de Oliveira, Maria


Stella de Novaes e Neida Lúcia orientou a leitura que estabeleceram sobre o século XIX.
Estilaque Ferreira dos Santos282, argumenta que o governo de Silva Pontes (1800) inaugurou
uma política de revitalização da capitania por meio das vias de comunicação e representava,
portanto, a busca pelo desenvolvimento local tendo em vista o déficit dos séculos anteriores.
Consideramos que os autores apresentaram essa visão progressista que delineou a imagem de
Espírito Santo construída sobre o período.

Enaile Carvalho argumenta que o diagnóstico sobre o Espírito Santo realizado no início do
século XIX evidenciava uma imagem negativa das condições da Capitania uma vez que os
responsáveis por tais exames compartilhavam a visão de que o Espírito Santo ficara ausente de
participação no sistema colonial de produção que garantia a lucratividade para a Coroa. No
mesmo sentido, observa que existiu uma visão política preocupada em buscar alternativas
econômicas frente à conjuntura do Estado Português e que, consequentemente, evidenciavam
perspectivas em termos de produção e comércio favoráveis desde que conduzidas por uma
administração voltada para realizar melhorias na Capitania.283

Considerando os critérios de avaliação e qualificação do passado adotados pelos autores, eles


se apropriaram dos diagnósticos realizados sobre o Espírito Santo desse período para

282
Segundo o autor, comentando a nomeação de Silva Pontes: "Ou seja, o próprio rei reconhecia abertamente que
se tratava de um território ainda superficialmente explorado, atestando, portanto, a ineficácia de todo processo de
ocupação colonial, e que competia ao seu representante alterar radicalmente este quadro, com providências
inovadoras” SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Vias de comunicação, conquista territorial e colonização estrangeira
no Espírito Santo do séc. XIX: a gênese do pensamento político capixaba, DIMENSÕES– Revista de História da
UFES, n.17, Vitória, 2005. p. 171.
283
A autora ressalta a forma como tratou as fontes que informavam sobre o Espírito Santo nesse período, pois
eram capazes de evidenciar a perspectiva de seus elaboradores sobre a Capitania. Segundo ela: “Como se trata de
fontes escritas por políticos, trabalhei de forma a identificar até que ponto tais documentos representam a realidade
ou o discurso político vigente no momento que foram escritos. A principal preocupação foi a identificação do
relator de cada fonte trabalhada, no sentido de posicioná-lo dentro de seu contexto, verificando quais são suas
preocupações e motivações ao relatar a situação do Espírito Santo.” CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e
economia mercantil nas terras do Espírito Santo (1790 a 1821). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 24.
Dessa forma, compreendemos a interpretação da autora sobre como se construiu uma visão sobre o início do século
XIX no Espírito Santo: “Todas as Memórias, em maior ou menor grau, acabam por retratar a visão política
desenvolvimentista e preocupada em criar alternativas econômicas frente à conjuntura do Estado português. Tanto
Vila Nova Portugal, quanto Alberto Rubim e Accioli de Vasconcellos demonstraram existir no Espírito Santo do
século XIX, perspectivas favoráveis em termos de produção e comércio. O pessimismo de Manoel da Cunha, fruto
de suas desavenças com o governador Tovar, não o impediu, porém, de admitir que, tudo dependia de uma
administração voltada para melhorias na então Capitania, a exemplo do governo de Silva Pontes.[...] Acredito que,
da mesma forma que ocorre na historiografia, a questão da decadência acaba por ser abordada mediante a
inoperância do sistema colonial no Espírito Santo, sistema esse em que a produção total era voltada para a
exportação e, ao utilizarem o discurso de decadência, os políticos demonstram compartilharem de uma visão
portuguesa de lucratividade para a Coroa, através de exportações de açúcar, não considerando a produção voltada
ao abastecimento interno da colônia, como importante na manutenção do mesmo sistema.”Ibid., p. 61- 62.
116

caracterizá-lo. Como demonstramos anteriormente, por um lado, elaborou-se uma imagem de


decadência da Capitania no início do século XIX, porém, por outro, essa perspectiva presente
em tais diagnósticos sobre o Espírito Santo, como indicou Enaile Carvalho, traziam consigo
uma visão progressista que também foi adotada pelos autores em questão, tornando-a
paradigmática na interpretação do Espírito Santo no século XIX. Por conseguinte, isso
influenciou também na própria qualificação atribuída pelos autores a esse período e a
determinados governos observados como administrações que buscaram superar as condições
indicativas do atraso.

A narrativa histórica analisada apresentou uma nova perspectiva que se abria ao Espírito Santo
no século XIX, correspondendo à chegada desses administradores que buscavam atender as
orientações da Coroa, como indicou Enaile Carvalho. Na obra de Neida Lúcia encontramos a
"recuperação do tempo perdido":

A recuperação do tempo perdido começou depois do Auto de 1800, cuja importância


foi crescendo com o tempo. Na data da sua assinatura não era mais que um convenio
para ‘os efeitos de se estabelecerem registros e desbravamentos respectivos, segundo
as reais ordens do Príncipe Real Nosso Senhor, e a vantajosa comunicação de correios
para os povos do interior com regiões marítimas.’284

José Teixeira exaltou a expectativa de ligação com Minas Gerais a partir de 1800:

A nova atitude da metrópole em relação aos meios de comunicação entre o Espírito


Santo e Minas Gerais bem merece o qualificativo de revolucionária. Repetidas vezes
temos citado as providências determinadas pelas administrações coloniais proibindo
as relações entre os habitantes das duas capitanias. Providências, é bem de ver,
coerentes com a linha adotada pela Coroa frente ao seu domínio sul-americano. Ainda
em 1773, o Real Erário expedia uma ordem ao governo de Minas proibindo que
qualquer pessoa, sob pretexto algum, passasse pelo rio Doce.[...]Ou porque fosse
tarefa muito de seu agrado ou porque trouxera recomendações de dar pronta execução
ao plano – parece que de inspiração de Rodrigo de Sousa Coutinho, que passa por ter
sido protetor do novo chefe do executivo espiritossantense – o certo é que Silva Pontes
agiu com presteza inusitada.285

Maria Stella de Novaes estende essa perspectiva para as primeiras décadas desse novo século.
Tal como Enaile Carvalho argumentou sobre as motivações e orientações dos governantes do
início do século XIX na ainda Capitania, Maria Stella evidencia um cenário de potencialidades,
possibilidades e busca de melhorias para o Espírito Santo.286 Ela destacou que:

284
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 34.
285
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 243.
286
José Teixeira de Oliveira também destaca esse evento: “O entusiasmo de Silva Pontes pelas possibilidades da
navegação do Doce – o Nilo Brasiliense, conforme denominação de Francisco Manuel da Cunha – levou-o a
117

Extasiado frente a opulência da Natureza, no Rio Doce, Silva Pontes informava ao


Governador da Bahia, a 16 de novembro de 1800, ‘de tudo isto que forma um tesouro
daquelas riquezas, que não acabam enquanto durar o braço do homem.’ E relatava que
‘só o distrito desta Capitania, das Cachoeiras para baixo do Rio Doce, forma as mais
belas das províncias do Brasil.’287

Tal perspectiva corresponde também ao período de Tovar, em 1809:

[...] ao regressar da Corte, o Governador foi ao Rio Doce. Percorreu e observou as


obras necessárias à navegação comercial. Essa viagem correspondia aliás aos
interesses da Coroa, para providências indispensáveis à exportação de gêneros das
Capitanias de Minas Gerais e Espírito Santo. [...] o ano de 1810 foi intenso. A viagem
do Governador Tovar ao Rio Doce, iniciada a 30 de março, visava a exploração
daquelas paragens, a fim de dar ao Governo geral um relatório amplo dos seus
recursos naturais e possibilidades de navegação. 288

Destacando esse novo contexto, a autora chama a atenção para as “condições especiais” em que
assumiu o governante Rubim, uma vez que “de acordo com o referido decreto de 13 de setembro
de 1810, a Capitania ficara independente da Bahia de Todos os Santos.289 Passou o Governador
a entender-se diretamente com o Governador – Geral.” Assim, permitiu o “esforço enviado na
penetração do solo espiritossantense, com o traçado de vias de comunicação e consequente
início de novos núcleos de povoamento.”290

José Teixeira de Oliveira avalia as primeiras décadas do século XIX qualificando o período
como “início de uma nova era”, delimitando uma diferenciação em relação à época colonial.
Ainda que exposto às dificuldades, o Espírito Santo, segundo o autor, modificava sua imagem:

Se boa parte do progresso então verificado pode ser levado à conta das consequências
naturais dos esforços anteriores, é impossível negar a evidência da marcha ascensional
da província após o Sete de Setembro.[...] Rasgaram-se estradas, construíram-se
pontes, abriram-se escolas. A saúde do povo merecia cuidados especiais da
administração. Os índios eram assistidos oficialmente. Se nem sempre as soluções
eram as melhores e se muitas cousas não apresentavam a perfeição desejada, nem por
isso é dado condenar os homens que as executavam. Nunca é demais repetir quão
restritos eram os meios materiais disponíveis. Sem contar a falta do elemento humano

estudar o curso desse rio e seus afluentes e fazer-lhe o levantamento desde a foz até a cachoeira das Escadinhas,
‘sendo esse o primeiro trabalho topográfico que se executou na Capitania’. Logo ao regressar a Vitória, dando
conta da missão ao governador da Bahia, Silva Pontes escreveu, cheio de entusiasmo: ‘Só o distrito desta nova
Capitania das cachoeiras para baixo do Rio Doce forma a mais bela província das marítimas do Brasil’.”
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. P. 245.
287
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
105.
288
Ibid., p. 110-111.
289
José Teixeira de Oliveira também ressalta a vantagem dessa nova condição para o Espírito Santo: “Emancipada
que fora a Capitania daquela espécie de tutela que, durante séculos, a subordinara ao governo da Bahia, podia
agora o Espírito Santo pleitear diretamente junto ao trono as providências reclamadas pelo bem-estar do povo e
progresso da terra.” OLIVEIRA, op. cit., p. 254.
290
NOVAES, op.cit., p. 112.
118

habilitado para levar a efeito os planos administrativos da elite que empunhava as


rédeas do governo.291

A “marcha ascensional” indicava um novo perfil de Espírito Santo em sua trajetória de


progresso, ainda que marcado por dificuldades. Maria Stella de Novaes292 argumentou que a
“política impedia a nomeação efetiva de um Presidente de Província”, caracterizando
“mudanças sucessivas, na administração pública”, que, segundo ela “impediam a ordem e o
trabalho e, portanto, o progresso e o estímulo.”293

José Teixeira de Oliveira também define os governos provinciais como a principal dificuldade
do Espírito Santo no século XIX. Ele caracteriza como “governos melancólicos” as
administrações capixabas nas quais os relatórios dos presidentes de província evidenciavam
uma “desoladora monotonia.” Segundo o autor:

examinando-se a lista dos presidentes que estiveram à frente da província, verifica-se


que – exceção feita de uns três ou quatro – todos eram principiantes bisonhos, que
vinham pescar, no Espírito Santo, uma cadeira de deputado geral. Dois ou três
conseguiram fazer carreira política. Os demais – a quase totalidade – desapareceram
no cenário nacional.294

Para ele, tal condição denunciava a falta de “aspiração de progresso” por parte da população
urbana bem como a dificuldade de se implementar um “empreendimento marcante.” Seguindo
a interpretação dos autores sobre o período republicano, ou seja, o papel atribuído às elites
capixabas no progresso da Província, José Teixeira de Oliveira argumenta que essa limitação
associava-se, “talvez, a falta de uma elite que marchasse à vanguarda, despertando
iniciativas.”295

Mesmo assim, essa perspectiva de superação do atraso que orientou a leitura do passado
espiritossantense implicou na definição do conjunto de aspectos que passaram a constituir o
quadro de características definidoras da imagem do Espírito Santo no século XIX.

291
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 333.
292
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
288-289.
293
Ibid.,p. 191. A visão da autora é reforçada, por exemplo, quando cita a importância do posicionamento de Costa
Pereira em 1861: “Sucediam-se as mudanças do Governo do Espírito Santo. Pela Carta Imperial de 1861, foi
nomeado Presidente da Província o Dr. José Fernandes da Costa Pereira Júnior, que prestou juramento e entrou
em exercício, em 22 de março. Dedicou-se sinceramente ao Espírito Santo, porque nascido em Campos, a 20 de
janeiro de 1833, quando a Paraíba do Sul era parte desta Província, o Dr. Costa Pereira considerava-se realmente
capixaba, mesmo como deputado geral e, depois, Ministro do Império.” Ibid., p. 243.
294
OLIVEIRA, op. cit., p. 345.
295
Ibid., p. 346.
119

Primeiramente, destacamos a ênfase dada pelos autores às vias de comunicação e à


interiorização em detrimento dos obstáculos dos séculos anteriores. Depois, evidenciamos a
valorização direcionada a certos eventos interpretados como conquistas do Espírito Santo em
sua trajetória e representativos do progresso capixaba, segundo eles.

Sobre as vias de comunicação, sobretudo com Minas Gerais, de acordo com a historiografia,
elas se tornaram preocupação central dos diversos governantes do Espírito Santo a partir do
século XIX. Leandro do Carmo Quintão focaliza a construção da Estrada de Ferro Sul do
Espírito Santo e trabalha na perspectiva da implementação da mesma como forma de superar
uma situação de atraso econômico. O autor analisa como se propôs inserir o Espírito Santo no
mercado nacional e internacional via porto de Vitória, bem como observa o esforço das
autoridades políticas na realização desses empreendimentos necessários para o
desenvolvimento do Espírito Santo, numa busca por romper a dependência da Província em
relação ao Rio de Janeiro. Mesmo considerando as dificuldades de realização, ele destaca como
se realizou essa busca:

Podemos identificar, ao longo desse período, três meios diferentes idealizados para
realizar a tão almejada ligação com Minas Gerais: o primeiro, com Silva Pontes, ainda
no início do século XIX, através da navegação pelo Rio Doce; o segundo, uma década
depois, com Francisco Rubim, optando pelas estradas de rodagem, ideia que permeou
esse século, pois foi seguida por outros administradores provinciais; e o terceiro, com
Moniz Freire, que encontrou nas vias férreas a melhor forma para concretizar tais
anseios.296

As vias de comunicação, portanto, tornaram-se uma grande preocupação do século XIX e, como
observamos, representativas do ideal de superação do atraso colonial. Sendo assim, nas
narrativas de José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de Novaes estas vias surgem
como símbolos do progresso capixaba, entendido como superação do atraso colonial.

O progresso foi representado, por exemplo, na realização da via de acesso tão idealizada com
as Minas Gerais. Segundo José Teixeira de Oliveira:

[...] ao caminho mandado abrir, durante o governo Rubim, ligando a baía da Vitória à
Vila Rica, na capitania de Minas Gerais. Obra custosa – iniciada em 1814, só em 1820
deu passagem à primeira boiada trazida das pastagens mineiras – exigia, para
segurança dos viajantes contra os ataques dos botocudos, guarnições militares
dispostas em quartéis que se intervalavam de três em três léguas. [...] Apesar dos
favores fiscais concedidos pela Coroa para o trânsito de mercadorias, a estrada nova
do Rubim não conseguiu atrair a preferência do comércio. Em 1830, já era tão

296
QUINTÃO, Leandro do Carmo. A interiorização da capital pela Estrada de Ferro Sul do Espírito Santo.
2008. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 63.
120

reduzido o movimento que o governo pôde retirar as guarnições que mantinha nos
quartéis, abandonando os raríssimos tropeiros à própria sorte.297

Ainda que o autor evidencie que a estrada não teve o resultado esperado, a questão era a busca
pela efetivação do contato com a região vizinha como forma de impulsionar a economia do
Espírito Santo. Nesse sentido, destaca o esforço para a realização de tal propósito. Segundo ele,
mesmo “abandonada pelo governo por inútil – uma vez que não havia comércio para
movimentá-la – a estrada que ligava o Espírito Santo à província de Minas Gerais continuava
preocupando as inteligências de mais ampla visão.” 298José Teixeira segue advertindo sobre os
esforços para essa realização:

A falta de dinheiro para enfrentar as despesas de desobstrução e outras obrigou a


protelações de toda ordem, até que, em 1833, a obra foi contratada com o coronel
Inácio Pereira Duarte Carneiro – o mesmo diligente oficial que construíra a estrada
nos dias do governador Rubim. Tamanha significação se emprestava ao assunto que
o governo, quando verificou a exaustão dos próprios cofres, resolveu pedir dinheiro
emprestado ao comércio para iniciar as obras.299

Maria Stella de Novaes, por sua vez, destaca ainda que a 4 de setembro de 1848 “iniciou-se a
construção da estrada de Santa Tereza, que partia das margens do Rio Santa Maria da Vitória e
devia chegar à Vila do Coieté em Minas Gerais”300 e que mais tarde teve como implicação o
surgimento do povoado que deu origem a cidade de Santa Tereza. Ao elencar os acontecimentos
em princípios da segunda metade do século XIX a autora chamou a atenção para a importância
das vias de comunicação. Sobre o ano de 1851 ela destacou que “o progresso do povoamento
da Província preocupava o governo, com as vias de comunicação, que se estendiam para as
vilas e os povoados, fontes de abastecimento da Capital, e contribuintes para a exportação, nesse
tempo, já adiantada.”301

297
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 256, destaques do autor. Cabe ressaltar que a perspectiva de análise do autor, orientada pela noção
de progresso do Espírito Santo, faz com que a referência aos índios botocudos não carregue consigo nenhuma
menção à resistência indígena.
298
Ibid., p. 310. O autor faz questão de citar um ofício para ressaltar a necessidade de contato com Minas Gerais:
[...] ‘sendo a abertura de uma estrada que comunique esta Província com a de Minas Gerais um dos únicos meios
que se pode levantar da miséria e pobreza em que se acha tanto de população como de comércio’ (Ofício de vinte
e cinco de janeiro de 1832 do Conselho Provincial a José Lino Coutinho, ministro do Império). Ibid., p. 310,
parênteses do autor.
299
Ibid., p. 319.
300
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
199.
301
Ibid. p. 218.
121

José Teixeira de Oliveira, também nessa perspectiva, destacando as características do Espírito


Santo na década de 1870, aponta para a importância das vias de comunicação abertas ao longo
do século:

Sobrepondo-se a todas as dificuldades – das quais a maior, por certo, era a deficiência
das rendas – a província ia distendendo sua rede de comunicações. Estradas que
partiam do norte, do centro e do sul ligavam-na com Minas Gerais. Todas as
localidades tinham acesso à Capital por caminhos que, se não eram modelos de
conforto – e em verdade estavam muito longe de o ser – permitiam o transporte dos
produtos das lavouras para os portos do litoral.302

Os autores registram também, como símbolo desse progresso a navegação no Espírito Santo.
Maria Stella de Novaes evidencia o início da navegação a vapor na Província ressaltando o
princípio dos trabalhos do Vapor Rio Doce, ao norte, em 1879, “que representava o progresso
para aquela região”, bem como registra, em relação ao mesmo ano, que foi “recebido
festivamente” o Vapor Ana-Clara ao chegar a Vitória após navegar no sul da Província.303

José Teixeira de Oliveira destaca a importância da navegação para o Espírito Santo naquele
momento:

Entre 1870 e 1880, os principais rios da província foram explorados por companhias
de navegação a vapor. Assim é que em 1876 – a seis de setembro – a Companhia
Cearense de Navegação Fluvial do Espírito Santo inaugurava seus serviços no Santa
Maria; em 1878 funcionavam a Navegação de Itapemirim e a Empresa de Itabapoana,
além da Companhia Espírito Santo e Campos (naturalmente de cabotagem).[...] Bem
animadora era a situação em 1888, quando várias empresas mantinham barcos
trafegando nas costas e rios capixabas, além do benefício da navegação para o
estrangeiro e demais províncias marítimas brasileiras.304

Considerando, portanto, os impedimentos e obstáculos que marcaram o período colonial, os


autores destacaram que “estrada e a navegação uniam-se, para o progresso da Província.”305
Tais aspectos positivos, ausentes no passado colonial, passavam a compor a representação do
Espírito Santo em vias de superação do atraso.

Complementando essa abordagem, identificamos, ainda, principalmente na obra de Maria Stella


de Novaes, a preocupação com o progresso local por meio do registro do surgimento de vilas e
povoados que representavam o processo de interiorização. Se a preocupação era evidenciar o

302
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 366.
303
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
275.
304
OLIVEIRA, op. cit., p. 368.
305
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
287.
122

desenvolvimento do Espírito Santo, esse momento da trajetória local foi caracterizado como o
de origem de futuros municípios e cidades do Estado. Neida Lúcia de Moraes sintetiza a
chegada dos imigrantes destacando o surgimento dessas localidades:

Os primeiros foram os alemães que se destinaram ao núcleo de Santa Isabel. Depois


desses, já na vigência da Lei de 14 de novembro de 1850, que proibiu o tráfico negro,
outros colonos alemães que iniciaram o núcleo de Porto de Cachoeiro (atual Santa
Leopoldina). [...] Vieram também os holandeses, suíços, tiroleses, luxemburguenses
e belgas, todos instalados nas faldas do maciço montanhoso do sul do Estado,
principalmente nos territórios que constituem os atuais municípios de Santa
Leopoldina, Santa Tereza e Domingos Martins. [...] Em 1875 começou a imigração
de italianos que se distribuíram pelas zonas que constituem hoje os municípios de
Castelo, Cachoeiro de Itapemirim, Rio Novo do Sul, Santa Tereza, Colatina, Baixo
Guandu e São Mateus.306

A imagem do Espírito Santo no período colonial esteve ligada à sua dificuldade de ultrapassar
os limites do litoral. Assim, a ênfase dada às vias de comunicação, como símbolos do progresso,
permitia ao Espírito Santo romper com obstáculos do passado. Maria Stella de Novaes
evidencia esse processo, do qual ressaltamos algumas de suas referências ao assunto. O futuro
município de São Pedro do Itabapoana foi assim apresentado:

Mais uma noticia relativa ao interior da província: a 1º de setembro de 1837, Francisco


José Lopes da Rocha, acompanhado de sua família, chegou ao lugar que se chamaria
Santa Cruz, afim de ‘possiar’ as terras e fazer fazenda. Foi o primeiro posseiro do
lugar que viria a constituir depois o município de São Pedro do Itabapoana. Lutou
com os índios e acabou vencendo-os.307

Nessa perspectiva, superar os índios ainda era um obstáculo para se efetivar a interiorização.
Juntamente com eles, era necessário vencer a “barreira verde” que caracterizava o Espírito
Santo. Foi, dessa forma, que a autora também registrou a origem do município de Atílio
Vivácqua, quando em 1843, “Francisco José Leal começou a derribar matas e a plantar as
primeira lavouras, no lugar denominado, então, Vila Nova.308

Dessa forma, também surgiram outros lugares como os futuros municípios de São João do
Muqui e Afonso Cláudio. O primeiro surgiu em 1849 quando “um caboclo de nome João
Corumbá penetrou no maciço florestal da região.” Mas foi João Pinheiro Werneck que iniciou
o “desbravamento do lugar”, cujo “povoado progrediu” e “em 1902 o arraial recebeu o nome
de São João do Muqui.”309 Já “o desbravamento do atual Município de Afonso Cláudio, antigo

306
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 41.
307
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964.
p.190.
308
Ibid., p. 192.
309
Ibid., p. 216.
123

Alto-Guandu”, iniciou-se em 1876, quando “Jorge Guilherme Gomes, Inácio Gonçalves


Lamas, José Manuel Ribeiro e outros vindos de Minas Gerais, estabeleceram-se nas margens
do Ribeirão Lagoa, e fizeram abertas nas matas.”310

Nesses relatos de interiorização consta ainda a presença dos imigrantes europeus. Segundo
Maria Cristina Dadalto:

No Espírito Santo, o processo imigratório europeu ocorreu de forma peculiar ao


realizado nos outros estados da Federação: a imigração era parte da estratégia
governamental para promover o povoamento de grande parte do território capixaba,
ampliar a fronteira agrícola e fomentar o desenvolvimento regional, por meio da
produção de riquezas. [...] Entre os anos de 1847 e 1881 entraram no Espírito Santo
13.828 imigrantes, sendo o auge os anos de 1872 a 1879, quando chegaram 10.300
imigrantes Foram criados, nessa fase, quatro núcleos coloniais — Santa Izabel, Rio
Novo, Santa Leopoldina e Castelo.311

Os autores inserem o estabelecimento desses colonos na narrativa de trajetória do Espírito


Santo.312 O que Dadalto argumenta como estratégia governamental, os autores representaram
como mais um elemento definidor do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo,
elencando o surgimento das colônias como resultado desse processo, compondo esse novo
cenário que se consolidava, de acordo com a narrativa da superação do atraso.313

A construção da imagem do Espírito Santo em sua fase provincial foi reforçada pelo conjunto
de eventos que ganharam um lugar na narrativa sobre o passado, considerados como
representativos do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo. Seguindo a linearidade
estabelecida nas obras, os autores construíram um quadro da trajetória do Espírito Santo nesse
momento marcado por realizações governamentais e a introdução de inovações de diferentes
ordens que foram interpretadas como conquistas e melhoramentos que passavam a constituir
características adquiridas pelo Espírito Santo em sua trajetória.

310
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
272.
311
DADALTO, Maria Cristina. Relacionamento interétnico e memória: narrativas de colonizadores do norte do
Espírito Santo. In: DIMENSÕES – Revista de História da UFES, Vitória, n.18, 2006. p. 188-189.
312
A análise acerca do lugar dos imigrantes nas obras dos autores também se encontra na parte da abordagem
acerca dos personagens. Consideramos que, na narrativa da superação do atraso, a chegada dos colonos europeus
do século XIX tem seu significado associado ao apagamento dos indígenas na história do Espírito Santo.
Escolhemos realizar essa análise de forma conjunta, deixando para esse momento, apenas o registro de que a
inserção desses grupos nas narrativas, via colonização, colaborou com a construção de uma representação do
Espírito Santo em vias de superação do atraso.
313
Os autores evidenciam, portanto, essa chegada e fixação desses imigrantes no Espírito Santo. Ver: OLIVEIRA,
José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p.
333-334.; NOVAES, op.cit., p. 188-196.
124

Nesse sentido, por exemplo, os autores registraram com destaque o surgimento da imprensa no
Espírito Santo, enfatizando o início da circulação do jornal “Correio da Vitória” no ano de
1849.314 Centrando a abordagem principalmente em Vitória, apresentaram os melhoramentos
que a capital angariava. Novaes registrou como conquista em 1847 melhorias na iluminação de
Vitória que “constituiu acontecimento excepcional.”315 O autor, por sua vez, sobre esse tipo de
benfeitoria, assim registrou:

A iluminação a óleo de peixe, adotada nas ruas de Vitória desde os tempos da colônia,
foi substituída – em 1865 – por lampiões a querosene. Estes, por sua vez – a primeiro
de março de 1879 – deram lugar a bicos de gás, festivamente recebidos.[...] Outro
melhoramento que muito beneficiou a cidade-capital foi o farol de sua barra,
inaugurado a sete de setembro de 1870.316

No conjunto dos melhoramentos, do progresso observado em Vitória, os autores destacaram,


também, a chegada do telégrafo e melhoria dos correios. Maria Stella de Novaes ressaltou o
entusiasmo da população com o benefício:

A 19 de fevereiro de 1874, inaugurou-se festivamente e com o maior entusiasmo


popular e a presença do Presidente da Província Luís Eugênio Horta Barbosa, a Linha
Telegráfica, entre Vitória, Itapemirim e Campos, instalada pelo engenheiro César
Rainville. Dentro do protocolo, foram trocados telegramas congratulatórios do mesmo
Presidente a S. M. Imperador Pedro II.317

Cabe ressaltar, ainda, o registro da economia espiritossantense. Maria Stella de Novaes limitou-
se a destacar que a “cidade de Vitória progredia, igualmente, em diversos ramos da indústria,”
sem ampliar sua abordagem. José Teixeira de Oliveira, por sua vez, chamou a atenção para a
fraqueza desse ramo, considerando que “resumia-se a um artesanato despretensioso a indústria

314
Segundo José Teixeira de Oliveira: “O primeiro jornal – Justamente trinta e dois anos depois de iniciar-se a
publicação da Gazeta do Rio de Janeiro, o Espírito Santo viu circular O Estafeta – primeiro jornal impresso na
terra (1840). Nasceu tão mofino que não passou do número inaugural. Saiu da tipografia do alferes Aires Vieira
de Albuquerque Tovar – que também foi a primeira aqui instalada. Nove anos após – a dezessete de janeiro de
1849 – da mesma oficina saiu o Correio da Vitória, fadado a uma vida longa e exornada de relevantes serviços à
província. Com ele começa a história do jornalismo capixaba.”; Maria Stella de Novaes (1969, p. 215) registrou:
“A 17 de janeiro de 1849, a província teve o seu primeiro jornal, o ‘Correio da Vitória’, de propriedade de Pedro
Antônio de Azeredo [...]. O ‘Correio da Vitória’ assinalou o início da história da imprensa no Espírito Santo.”
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 329.
315
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964.
p.196.
316
OLIVEIRA, op. cit., p. 364. Maria Stella de Novaes também registra a inauguração do Farol a 7 de setembro
de 1871. (NOVAES, op.cit., p. 255.).
317
NOVAES, op. cit., p. 263. José Teixeira de Oliveira ao diagnosticar a capital Vitória na década de 1870 registra
também: “a dezenove de fevereiro de 1874 foi inaugurada a estação de Vitória, e ligada a Capital com Itapemirim,
Campos e Rio de Janeiro Os correios, em 1861, possuíam dez agências distribuídas por diferentes localidades,
além da estação central – em Vitória.” OLIVEIRA, op. cit., p. 363.
125

capixaba do ano de 1889.”318 O autor ressalta, por outro lado, a presença do café no progresso
do Espírito Santo. Sem também realizar uma ampla abordagem sobre o assunto, José Teixeira
de Oliveira argumentou que ao longo do século XIX o “café, passo a passo, conquista a
liderança da economia capixaba”.319

Segundo ele, em “meados do século, a rubiácea alcançaria o lugar preeminente que vem
mantendo no conjunto dos produtos que constituem a riqueza do Estado.”320 Evidencia,
portanto, a queda na produção de açúcar que estava diretamente ligada ao crescimento do café,
considerando que assim foi

o rush cafeeiro, que prosseguiu avassalador – empolgando antigos fazendeiros e


monopolizando o interesse dos novos. Os primeiros abandonavam a lavoura
canavieira, empenho de pais e avós; os últimos traziam das terras donde vinham a
imagem extasiante dos oceanos verdes. [...] Todos tinham os olhos postos no café. 321

O café seria, dessa forma, seria a última grande conquista dentre as referidas pelos autores em
relação à trajetória do Espírito Santo no século XIX. É nesse viéis que Neida Lúcia encerra a
narrativa da Província espiritossantense, considerando que "o café havia ultrapassado de tal
forma o açúcar que passara a ser o sustentáculo da economia estadual" e, conclui que, no limiar
desse período: "O Espírito Santo avança em seu desenvolvimento." Nesta perspectiva, portanto,
se o Espírito Santo inaugurava esse século com o déficit do período colonial, seu término
apresentava uma nova condição. Se os três séculos de colonização abordados pelos autores
foram representados pelas dificuldades, impedimentos e marginalização, o século XIX
representou um novo momento da trajetória do Espírito Santo. E, como observamos, inaugurou
o percurso do progressivo desenvolvimento do Estado, que daria andamento com mais vigor no
período republicano, mas que concretizaria o caminho da superação do atraso com o projeto
desenvolvimentista a partir da década de 1960.

318
Ainda que interprete como incipiente a indústria do Espírito Santo, o autor ressalta a diversificação de atividades
e profissões: “Contudo, o Almanaque de Godofredo Silveira refere-se a fabricantes de cal, cigarros, licores,
cerveja, sabão, velas, baús, colchões, selas, aguardente, bem como a joalheiros, padeiros, farmacêuticos,
açougueiros, aparelhadores de gás, alfaiates, afinadores de piano, barbeiros, carpinteiros, marceneiros, douradores,
entalhadores, construtores navais, encadernadores, engenheiros, fogueteiros, ferreiros, serralheiros, funileiros,
armadores de igrejas, guarda-livros, ourives, pedreiros, pintores, professores de piano e de música, relojoeiros,
sapateiros, tipógrafos, fotógrafos, cabeleireiros, jornalistas, tecelões, caldeireiros, dentistas, doceiras, calafates,
médicos, advogados, modistas, mascates, capitalistas, negociantes, agricultores.” OLIVEIRA, José Teixeira de.
História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 398.
319
Ibid., p. 346.
320
Ibid., p. 259.
321
Ibid., p. 400.
126

Considerando que as obras História do Espírito Santo, O Espírito Santo é assim e História do
Estado do Espírito Santo construíram a narrativa histórica do progressivo desenvolvimento do
Espírito Santo. Diante do que foi exposto até o momento, cabem algumas reflexões que
envolvem tanto a construção de representações do passado do Espírito Santo como a formação
de um modelo de interpretação e escrita da história local. Ao observarmos a configuração desse
enredo elaborado pelos autores, identificamos dois importantes aspectos que envolvem o
sentido do passado instituído pelas narrativas. Primeiramente, identificamos que o sentido da
superação, constituído por meio da definição de eventos, circunstâncias e períodos, permitiu a
avaliação dos limites dessa interpretação vinculada ao discurso do desenvolvimento. Em
segundo lugar, argumentamos que a forma dessas narrativas apresentou uma determinação de
sentido instituída pelo modo de formatação do passado construído a partir da sequência
temporal dos fatos. Isso definiu a elaboração de uma história na qual a experiência do passado
tivesse sentido para aquele contexto de modernização do Espírito Santo, tornando significativa
a formulação da narrativa da superação do passado (atraso).

Em relação ao primeiro aspecto, tendo como orientação o sentido histórico da superação do


atraso, os autores se limitaram a apresentar os fatos em sua sequência temporal o que
transformou as narrativas, dentro do binarismo atraso/progresso, no relato do progressivo
desenvolvimento do Espírito Santo. Desse modo, não interpretaram o período colonial fora da
perspectiva da expansão da sociedade colonizadora, que no Espírito Santo não teria se realizado
como em outras capitanias, definindo uma trajetória homogênea para a Capitania.322

Tendo em vista essa perspectiva, observamos que a narrativa do atraso se preocupou com os
“desígnios do Espírito Santo”, que deveriam se realizar, em termos de progresso,
acompanhando o desenvolvimento da Colônia. Ao apontarem a não prosperidade da Capitania,
os autores definiram em seus roteiros os prejuízos ocasionados pelas dificuldades iniciais dos
colonizadores, a presença de capitães-mores desastrosos à frente da administração local.
Interpretação que pode ser estendida no tempo, principalmente, no que diz respeito à definição
do Espírito Santo como barreira da região das minas auríferas. A visão de Maria Stella de
Novaes, Neida Lúcia e José Teixeira de Oliveira ao definir o papel de trincheira como o
principal impedimento ao desenvolvimento da Capitania parece levar em consideração eventos

322
SOBRINHO, Sueni da Vitória. Capitania do Espírito Santo uma feitoria portuguesa no Atlântico Sul: a
pauta de comércio e a atividade mercantil (1600-1642). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013. p. 15-20.
127

posteriores, do século XIX, que acabaram atribuindo significado a esse período como um
momento de estagnação local. Assim, percebemos que os autores analisaram o Espírito Santo
no século XVIII limitados às fontes oficiais que apresentavam as medidas legais determinadas
pela Coroa à época da descoberta das minas. Consequentemente, como a principal razão de um
fracasso da economia colonial. No entanto, essa perspectiva levou em consideração, sobretudo,
os discursos progressistas dos governadores do início do século XIX bem como a política de
interiorização conduzida a partir desse momento. O que acarretou a oposição figurativa entre a
experiência negativa do século XVIII e o período de conquistas inaugurado com o século XIX.

Em relação ao significado da narrativa do progressivo desenvolvimento naquele contexto,


entendemos que a sequência temporal e a ordenação dos fatos nas obras evidenciam que os
acontecimentos lembrados pela historiografia, constituintes desse enredo, foram definidos em
função do significado que passaram a possuir para o presente. Consequentemente, delinearam-
se narrativas que vincularam às circunstâncias do presente um determinado passado adequado.
E a superação do atraso foi o sentido da trajetória histórica do Espírito Santo. Nas obras de
Maria Stella de Novaes, José Teixeira de Oliveira e Neida Lúcia, isso se apresentou tanto na
forma de um passado como lição bem como no formato de um passado a ser superado.

No que diz respeito ao primeiro, segundo Rüsen, esse modelo de configuração do conhecimento
histórico caracteriza-se por narrativas exemplares, ou seja, do passado como lição a ser
aprendida.323 O sentido do passado estabelecido pelos autores na trajetória do Espírito Santo
apresentou uma memória histórica voltada para os conteúdos da experiência do passado local
que passaram a representar regras e modelos. Assim, o passado do Espírito Santo apresentou-
se marcado pelo atraso, construído por meio de obstáculos e característicos de sua formação.
Uma condição de atraso, por sua vez, que passou a validar a narrativa do desenvolvimento. A
“história dos obstáculos”, a “história da marginalização”, ou a “história da origem do atraso”
do Espírito Santo, identificando no passado aspectos negativos e positivos, possibilitou a
produção de uma história na qual o Espírito Santo foi narrado seguindo o princípio do
progresso, correspondente ao paradigma do desenvolvimento.

Esse caráter modelar do passado, além de presente na formatação historiográfica, pode ser
observado, por exemplo, na preocupação de Maria Stella de Novaes em direcionar sua obra

323
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007.p. 51-53.
128

“especialmente para a juventude espiritossantense.”324 Segundo Rüsen, essa forma de


constituição de sentido define o passado como exemplar. Para ele,

no discurso político, por exemplo, acontecimentos e situações presentes são


frequentemente remetidos a casos históricos, de modo a deixar entender que
ambas as circunstancias obedecem aos mesmos princípios gerais e que a
experiência do passado deve servir de lição para o presente.325

Como um modelo explicativo do Espírito Santo, na narrativa da superação do atraso, portanto,


na perspectiva de Rüsen, o passado surge como aprendizado direcionado para dar uma
explicação acerca do presente do Estado, como exemplo da trajetória de dificuldade e superação
que marcaria, segundo os autores, o progressivo desenvolvimento do Espírito Santo, do atraso
colonial à industrialização.

Nessa relação estabelecida com a experiência passada, na narrativa da origem e da superação


do atraso, observamos também as mudanças identificadas em determinados momentos e que
surgem nas narrativas dotadas de sentido. Esse tipo de formatação historiográfica, segundo
Rüsen, enfatiza o caráter de transição que passa a ser destacado nos processos e acontecimentos
do passado e, consequentemente, historicamente lembrados como portadores de sentido. 326 A
história do Espírito Santo é interpretada, portanto, não apenas como uma trajetória linear do
progressivo desenvolvimento, mas com momentos específicos responsáveis pela inauguração
de novas etapas que deram, também, sentido à trajetória de superação. Caracterizaram-se como
narrativas orientadas e em diálogo com o contexto gerador de expectativas do qual
participavam. De acordo com Rüsen, a divergência entre o que se viveu e as perspectivas de
um futuro diferente, possibilita que o passado seja articulado com o tempo presente, o que
implica que o futuro apareça como oportunidade de superação.327 Desse modo, do atraso do
período colonial ao projeto de modernização de meados do século XX, os autores construíram
em suas narrativas um sentido para o passado do Espírito Santo, classificando e hierarquizando
seus diferentes períodos.

324
A autora ressalta o passado do Espírito Santo como sendo composto por diferentes personalidades, exemplos a
serem seguidos. NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito
Santo, 1964. p. 11. Na nota da edição da obra, sem autor identificado, provavelmente do editor, observamos que
o comentário afirma que o conhecimento da história do Espírito Santo estava voltado para “apontar o futuro com
o exemplo do passado, principal missão da história.”
325
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007. p.54.
326
Ibid., p. 58.
327
Ibid., p. 59.
129

Nesse aspecto, ficou evidente a relação entre o campo de experiência e o horizonte de


expectativa. Os marcos definidores de um sentido do passado como alcance de novos patamares
de desenvolvimento do Espírito Santo não corresponderam aos tradicionais marcos políticos ou
à divisão sequencial dos períodos colonial, imperial e republicano. Mesmo sendo evidente a
diferenciação entre eles e o próprio significado de cada um para a trajetória histórica do Estado,
as categorias atraso/progresso foram as definidoras do sentido histórico e de marcos negativos
(atraso) e positivos (progresso).

Entre a experiência do atraso e a expectativa da superação, a relação estabelecida foi a de


diferenciação e afastamento, ou seja, uma relação de ruptura com o passado, representado pelo
atraso. Nas narrativas, o passado como experiência não correspondia às expectativas. Assim,
além da diferenciação entre os períodos, os autores instituíram determinados eventos como
marcos definidores do sentido do passado espiritossantense. Nessa perspectiva, o período
colonial inaugurou o atraso. No entanto, o descaso, a marginalização e os obstáculos são
modificados ao longo das narrativas por mudanças que surgem como elementos
impulsionadores do desenvolvimento. Dessa maneira, instituem o ano de 1800 e o governo de
Silva Pontes como símbolos de uma nova etapa da trajetória do Espírito Santo, ainda que pela
sequência temporal dos fatos narrados situem-se no que seria o período colonial. A incipiente
tentativa de industrialização no início do século XX com Jerônimo Monteiro seria também um
marco, inaugurando um esforço, mas que apenas realizar-se-ia com o projeto
desenvolvimentista pós-1950.

Nessa perspectiva, mesmo posicionados de acordo com a linearidade temporal da narrativa, o


sentido de superação foi dado pela dicotomia entre esses marcos do atraso versus os do
progresso. Por exemplo, a interpretação acerca do ano de 1800 como nova etapa da trajetória
do Espírito Santo ou a chegada dos imigrantes como símbolo de conquistas para a Província,
ganharam uma conotação positiva na trajetória local porque correspondem a marcos de
superação de uma condição anterior, caracterizada pelo lugar atribuído às dificuldades
administrativas, as de ocupação e de interiorização que marcaram os séculos XVI, XVII e XVIII
no Espírito Santo. A narrativa estabelece momentos de ruptura entre períodos que são
interpretados em função da noção de superação ou ruptura que caracterizava as expectativas do
presente.
130

Evidenciamos, portanto, a correspondência entre discurso político das décadas de 1960 e 1970
e a narrativa histórica da superação do atraso. Os autores Maria Stella de Novaes, José Teixeira
de Oliveira e Neida Lúcia delinearam uma forma de narrar historicamente o Espírito Santo. Não
encontramos nessa narrativa conceitos como o de "subdesenvolvimento" que marcaram a
interpretação do discurso político. Ou ainda, suas abordagens, mesmo preocupadas com o
desenvolvimento do Espírito Santo, não corresponderam a fundamentos ou referências de um
domínio da história econômica. No entanto, a narrativa tradicional que apresentaram constituiu
um saber histórico compatível com o discurso político da superação do atraso. O passado foi
recuperado como aprendizado para agir no presente apresentando um conhecimento histórico
legitimador do projeto político-econômico da época: capaz de explicar a condição de atraso
histórico do Espírito Santo bem como evidenciar a busca por sua superação.

Sendo assim, observamos a emergência num dado momento de discursos políticos que tiveram
sua manifestação na escrita da história. A narrativa histórica do progressivo desenvolvimento
instituiu um discurso sobre o passado do Espírito Santo, apresentou-se como um discurso
fundador, inaugurando uma discursividade, uma determinada narrativa do passado local e
atribuindo um sentido a ele. Um modo de explicar o Espírito Santo. Para Hobsbawm o passado
tem a capacidade de dar sustentação, elaborar um pano de fundo, de permitir que esse passado
seja satisfatório num determinado contexto presente,328 e, a eficácia do uso da história reside
justamente na apresentação de um passado satisfatório.329 A narrativa histórica da superação do
atraso instituiu essa visão.

Diante desses apontamentos, observaremos a seguir como a narrativa histórica do progressivo


desenvolvimento elaborou representações de determinados sujeitos históricos do Espírito
Santo.

328
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.p. 17-20.
329
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 1.
131

3. CAPÍTULO III - ENTRE O ATRASO E O PROGRESSO: OS PERSONAGENS


HISTÓRICOS NA NARRATIVA DO PROGRESSIVO DESENVOLVIMENTO DO
ESPÍRITO SANTO

A abordagem das obras História do Estado do Espírito Santo, História do Espírito Santo e O
Espírito Santo é assim revelou uma série de sujeitos históricos que tiveram sua imagem
construída ao longo das narrativas. Nesse modelo de escrita da história e o enredo elaborado
pelos autores, temos como elementos centrais das narrativas as ações individuais ou de
determinados grupos como condutoras da trajetória do Espírito Santo, o que nos encaminhou
para uma análise da constituição dessas representações.

A produção histórica representada por José Teixeira de Oliveira, Maria Stella de Novaes e
Neida Lúcia instituiu o lugar e o valor de diferentes atores históricos do Espírito Santo,
definidos em função do sentido dado à trajetória de fundação e superação do atraso elaborada
pelos atores. Dessa forma, a principal questão que envolve os diferentes personagens do
passado local é a seguinte: compreender porque e como alguns sujeitos são lembrados de forma
positiva e com papéis preponderantes para a trajetória do Espírito Santo enquanto outros,
quando não são simplesmente apagados, surgem nas narrativas com uma imagem negativa e
sua lembrança está associada a eventos e circunstâncias consideradas prejudiciais para o
desenvolvimento da sociedade espiritossantense.

Tal questão torna-se importante uma vez que a historiografia tem seu papel na memória
instituída sobre determinados grupos. Sobre esse aspecto, para introduzirmos nossa abordagem
sobre essa questão, ressaltamos aqui a preocupação de Vânia Moreira quando diante da
necessidade de se resgatar os vestígios de uma memória indígena no Espírito Santo:

Foram, no mínimo, cento e quarenta anos de história de contato e conflito na região


do rio Doce e adjacências e somente em 1940 o ‘problema indígena’ foi considerado
superado naquelas regiões, então sob o controle do Estado do Espírito Santo.
Entendeu-se, na ocasião, que o problema estava superado porque os vestígios da
presença indígena naquele território haviam sido suprimidos. Essa história de contatos
e conflitos ainda permanece basicamente desconhecida pelas novas gerações que não
viram, com os próprios olhos, os índios do rio Doce.330

330
MOREIRA, Vânia Maria Lousada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale
do rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001. p.
100.
132

A oposição da autora à condição de ausência dos indígenas na memória local evidencia um dos
limites da narrativa histórica do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo. Analisando a
questão na obra História do Estado do Espírito Santo, Vânia Moreira realiza a seguinte crítica:

Seu livro faz parte de uma produção historiográfica influenciada pelo que hoje
qualificamos de escola metódica cujos limites são bem conhecidos. Mas a
popularização da maneira metódica de escrever-se a história nem sempre produz os
melhores frutos.331

A autora identifica que a narrativa se tornou uma referência negativa no que tange a imagem e
o lugar ocupados por determinados sujeitos históricos na memória local. São narrativas
detentoras de um enredo cujo significado produz lembranças e esquecimentos e reforçam
hierarquias. A reivindicação de Vânia Moreira evidencia como a memória organizada “constitui
um objeto de disputa importante,” sendo “comuns os conflitos para determinar que datas e que
acontecimentos vão ser gravados na memória” de uma coletividade.332Argumentamos que as
obras aqui analisadas produziram determinadas representações ligadas ao Espírito Santo, uma
“memória estruturada com suas hierarquias e classificações.”333 Nessas, em função da trajetória
do progressivo desenvolvimento, os autores classificaram e hierarquizaram personagens-
símbolos do passado espiritossantense.

Quando tratamos da emergência de uma narrativa histórica da superação do atraso,


evidenciamos que se definiu um modelo de interpretação do Espírito Santo no passado. A
historiografia local, entretanto, surgiu associada à instituição de um outro modelo de
interpretação do passado a partir da segunda década do século vinte e que se estendeu aos anos
de 1940. A inauguração do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES) no ano
de 1916 marcou o início de uma efetiva produção historiográfica no Estado e,
consequentemente, a organização de uma memória histórica. As publicações da Revista do
IHGES, a partir de 1917, mesmo com algumas interrupções ao longo das duas décadas
seguintes, foram instrumentos importantes para as interpretações sobre o Espírito Santo.334

331
MOREIRA, Vânia Maria Lousada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale
do rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001.
p.106.
333
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989,
p. 3.
334
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 50-52.
133

Segundo Juçara Leite, nas primeiras décadas do século XX, como não existia no Brasil uma
tradição universitária, coube ao IHGB e seus institutos regionais a produção do conhecimento
histórico. O IHGES, assim como seus pares, tornou-se espaço de sociabilidade das elites
intelectuais que passaram a ser formuladoras das interpretações de Espírito Santo. Além da
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo os meios de publicação foram os
livros financiados pelos próprios autores, o que definiu uma geração de “historiadores” sem
formação acadêmica específica. Assim, “eram ‘historiadores’ médicos, advogados,
engenheiros”. Para Juçara Leite, configurou-se uma produção do conhecimento histórico por
meio de uma abordagem memorialista, com uma concepção de história “magistra vitae” 335 e
marcada pela preocupação com o futuro.336

Nesse cenário, intelectuais como Mário Aristides Freire, Archimino Martins de Mattos,
Antônio Athayde, Elpídio Pimentel e Carlos Xavier Paes Barreto colaboraram com a produção
histórica local a partir de uma perspectiva de culto ao passado. A escrita da história
caracterizou-se pela busca por exemplos ilustradores das experiências anteriores e,
consequentemente, na construção de heróis da história do Espírito Santo. Naquela época, a
constituição de um mito espiritossantense de dimensões nacionais tinha como significado a
tentativa de fazer o Espírito Santo reconhecido politicamente em nível nacional. Domingos
Martins337 foi eleito o primeiro herói local. Com ele, argumenta Juçara Leite, estabelecia-se um
regionalismo na formação do herói, uma vez que sua figura identificava o Espírito Santo ao
Brasil, pois representava o herói local com projeção nacional.

A partir da década de 1930, Domingos Martins passou a conviver com outros dois vultos do
passado espiritossantense: José de Anchieta338 e o índio Arariboia. As imagens desses

335
Rüsen caracteriza de constituição exemplar de sentido a formatação historiográfica correspondente à história
magistral vitae, narrativas nas quais é possível identificarmos que os elementos tornados presentes pela
historiografia exerce a função de modelares para a ação do presente. RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da
história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed. UnB, 2007. p. 51.
336
LEITE, Juçara Luzia. Construção indenitária e livro didático regional de História: uma prática geracional de
escrita de si. In: OLIVEIRA, Margarida M. Dias de; STAMATTO, Maria Inês Sucupira (orgs). O livro didático
de história: políticas educacionais, pesquisas e ensino. Natal: Ed.UFRN, 2007. p. 189-191.
337
Domingos Martins, de origem capixaba, tornou-se o primeiro herói da história do Espírito Santo devido a sua
participação na Revolução Pernambucana de 1817. Tal como outros membros do movimento, foi preso e fuzilado
no mesmo ano. A partir da década de 1920, Domingos Martins passou a figurar nos discursos como personagem
representativo do Espírito Santo. Segundo Juçara Leite, no IHGES, “[...] as discussões intelectuais locais estavam
inseridas num contexto nacional de uma mentalidade republicana e, consequentemente, numa ideia de Pátria.”
LEITE, Juçara Luzia. Natureza, folclore e História: a obra de Maria Stella de Novaes e a historiografia
espiritossantense no século XX. Tese de Doutorado. 352 p. São Paulo: FFLCH/ USP, 2002. p. 86.
338
A valorização dos Jesuítas já fazia parte da tradição historiográfica brasileira desde a implantação do IHGB,
justamente voltada para a relação com os indígenas. Segundo Danilo Ferreti: “A tradição à qual os membros
indianistas do IHGB procuravam se vincular, ainda que com algumas reservas, era a tradição cristianizadora dos
134

personagens históricos foram formuladas em relação ao momento fundacional do Espírito


Santo, glorificando essa origem, ou seja, por meio da consagração de determinados sujeitos.
Por exemplo, a edição de 1935 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo
publicou um artigo de Antônio Athayde. O título do artigo, “Os três vultos notáveis da História
Colonial do Brasil, com relação à Capitania do Espírito Santo”, já enunciava a valorização dos
personagens locais e sua importância para o passado nacional. Nesse sentido, para esse autor, a
história deveria “melhor despertar sociocraticamente um culto ao Passado” assim como “servir
de ensinamentos cívicos às futuras gerações, como objeto de admiração e de exemplo,
educando-as pelo conhecimento da conduta dos seus grandes homens.”339 Assim, segundo
Juçara Leite, esses sujeitos representavam a identidade local e correspondiam ao ideário
patriótico daquele período. Essa galeria surgia, portanto, ligada à concepção de um passado
mítico que justificaria a existência de um Espírito Santo valoroso no passado.340

No entanto, a busca pela valorização do Espírito Santo no passado cedeu lugar à representação
do atraso, o que implicou, também, na apropriação dos personagens históricos. Não é correto
afirmar que essa perspectiva de valorização de determinados indivíduos no passado local tenha
sido abandonada. Como observamos, o discurso fundador permite a produção de novos sentidos
mas se insere numa discursividade já instalada.341 Nas obras de José Teixeira de Oliveira, Maria
Stella de Novaes e Neida Lúcia encontramos personagens históricos que ganharam lugar nas
narrativas a partir da exaltação de seus feitos que, por sua vez, correspondiam a um lugar de
destaque do Espírito Santo, de sua participação na trajetória da história nacional. Dentro da
divisão de períodos e da sequência cronológica do passado local e nacional nas quais se

missionários, principalmente jesuítas. Se os membros do IHGB e a própria Monarquia se identificavam com


alguma missão civilizadora oriunda do passado colonial, esta era com a tradição dos jesuítas de cristianização dos
indígenas e defesa de sua “liberdade” contra a escravidão. O Jesuíta, e não o colono, era, assim, o que mais próximo
chegava de um herói civilizador da história brasileira, a despeito de toda a hesitação existente em torno de sua
figura. A historiografia indianista via o processo de colonização do Brasil como uma missão cristianizadora
determinada pelos desígnios da Providência. Este caráter ao mesmo tempo civilizatório e cristão, estava definido
desde os primórdios, desde o momento fundador da chegada de Cabral à terra que significativamente batizara de
Santa Cruz.” FERRETI, Danilo José Zioni. A construção da paulistanidade: Identidade, Historiografia e Política
em São Paulo. 2004. 388f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. p. 40-65
339
ATHAYDE, Antônio. Os três vultos notáveis da História Colonial do Brasil, com relação à Capitania do Espírito
Santo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, n. 8, Vitória, 1935, p. 13.
340
LEITE, Juçara Luzia. Natureza, folclore e História: a obra de Maria Stella de Novaes e a historiografia
espiritossantense no século XX. Tese de Doutorado. 352 p. São Paulo: FFLCH/ USP, 2002. p. 104-106.
341
ORLANDI, Eni P. Discurso Fundador: a formação do país e a identidade nacional. Campinas: Pontes, 1993.
p.23-24
135

estruturam as obras, determinados personagens evidenciam a participação e colaboração do


Espírito Santo para a história do Brasil.342

Porém, a mudança na perspectiva de interpretação do passado e o modelo de escrita da história


do Espírito Santo trouxe consigo um deslocamento na forma de relação com os sujeitos
históricos. A lógica atraso/progresso e o presente com suas expectativas como marco temporal
que orientaram a qualificação e hierarquia dos períodos do passado local definiram, também, o
modo de dizer sobre os personagens. Indivíduos e grupos foram avaliados pelo papel que
exerceram em termos de contribuição para o desenvolvimento do Espírito Santo. Governantes,
colonos, funcionários reais, religiosos, indígenas ganharam um lugar e um valor nas narrativas
em função da colaboração (ou não) para o progresso do Espírito Santo.

Assim, demonstraremos como o "problema indígena" é um dos aspectos que envolvem a escrita
da história local. Por meio de oposições figurativas presentes nas narrativas, selecionamos e
ordenamos seus personagens históricos, evidenciando como se configurou lembranças e
ausências, imagens positivas e negativas, destaques e exaltações, bem como depreciações e
estereótipos que o paradigma de análise e os limites do mesmo instituíram para a memória local.

3.1 A ELITE ADMINISTRATIVA: ENTRE O ATRASO E O PROGRESSO.

A narrativa histórica do progressivo desenvolvimento construiu uma história centrada na


“missão” das elites locais na condução do Espírito Santo. A forma como se apropriaram de suas
respectivas fontes, sobretudo documentos oficiais, bem como os critérios de interpretação e
qualificação do passado implicaram na definição desses personagens. Produziram uma
hierarquia e diferenciações no seio dessa elite governante, distinguindo os que estavam de
acordo com a função de realizadores do progresso, bem como identificando aqueles que
estavam vinculados ao atraso.

342
Nas três obras aqui analisadas, o sentido da história do Espírito Santo é definido pela sequência cronológica.
Com isso, a narrativa sobre o Espírito Santo foi construída seguindo a história do Brasil. Assim, encontramos ao
longo das tramas, um conjunto de acontecimentos que evidenciam a participação do Espírito Santo no contexto
nacional. Consequentemente, determinados atores históricos representaram a colaboração do Espírito Santo à
história do Brasil. Por exemplo, entre outros, Domingos Martins e Maria Ortiz são inseridos nas narrativas como
personagens locais que colaboraram com a história do Brasil. Os autores mantêm a mesma perspectiva de
interpretação da produção historiográfica representada pelo IHGB, exaltando seus feitos, sendo Maria Ortiz em
prol da defesa da colônia frente a invasão estrangeira e Domingos Martins como mártir da liberdade por ter
participado do movimento emancipacionista em Pernambuco em 1817. No entanto, a constituição de sentido da
história local seguiu o progressivo desenvolvimento espiritossantense, com foco em outros atores históricos que
delinearam a trajetória do Espírito Santo.
136

Não poderíamos deixar de iniciar com Vasco Fernandes Coutinho. Consideramos que ele é o
personagem símbolo dessa perspectiva de análise. Entendemos que sua figura concentra e
sintetiza, de certa maneira, a avaliação dos autores sobre o início da formação do Espírito Santo.
Ele foi representado como o fundador e o vínculo inicial entre o Espírito Santo e a história do
Brasil. No entanto, por meio dessas narrativas que tiveram nas realizações dos governantes o
fio condutor da trajetória espiritossantense, a experiência do fundador Vasco Fernandes
Coutinho à frente da capitania refletia a própria história do Espírito Santo. Cabe ressaltar que
dentre os autores, Neida Lúcia não aborda a experiência de Vasco Fernandes Coutinho tal como
os outros dois autores, daí, em sua obra o primeiro donatário aparece, junto com outros
governantes, retratados em suas dificuldades, correspondentes à condição da capitania, porém,
representados como heróis, no sentido de resistirem às dificuldades.343

Reside em sua imagem a exclusão, o atraso, insuficiências e dificuldades que os autores


apresentaram sobre a Capitania. Se o Espírito Santo no período colonial foi retratado, sobretudo,
por sua condição de déficit, a figura de Vasco Fernandes Coutinho refletiu, por sua vez, tal
condição, estando manifestada na forma como foi interpretado o primeiro donatário.

Vasco Fernandes Coutinho é retratado pelos autores tendo o seu perfil delineado entre o passado
glorioso, de suas atividades no oriente, e sua condição perante os novos desafios da colonização
portuguesa na América.344 Coutinho345 era “fidalgo da casa real” e deveria conter “o suficiente
para uma existência folgada.”346 No entanto, os autores contrastam sua origem de fidalgo com

343
Segundo a autora, os colonizadores conseguiram "a duras penas, a integridades de seu território, quantos lhe
assumiram a governança, nesse período que pode ser classificado de heroico, tais o destemor, o desprendimento e
a tenacidade ante a agressividade dos óbices que o caracterizaram.” MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito
Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 26. Nessa perspectiva, argumenta que no quadro geral das capitanias,
a condição do Espírito Santo era negativa e por isso seria difícil avaliar os donatários. Ibid., p. 29.
344
José Teixeira de Oliveira ressalta a apreciação em relação ao histórico do donatário: "Aliás, é o próprio soberano
quem lhe atesta os méritos militares quando, na introdução da carta de doação, diz: ‘Esguardando eu aos muitos
serviços que Vasco Fernandes Coutinho, fidalgo de minha casa e El-Rei meu Senhor e pai que santa glória haja e
a mim tem feito assim nestes reinos como em África e nas partes da Índia onde serviu em muitas coisas que se nas
ditas partes fizeram, nas quais deu sempre de si mui boa conta'." OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado
do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 27.
345
Maria Stella de Novaes também registra essa condição assumida por ele: “Vasco Fernandes Coutinho, que foi
capitão de navio e alcaide-mor de Ormuz, regressou à Europa, em 1522, e desembarcou na lendária praia de
Restelo, decidido a estabelecer-se, na sua propriedade o solar de Alenquer, amparado nos seus rendimentos: cem
mil réis de moradia, na matrícula de 1449, e três mil réis, como fidalgo na matrícula de 1450, além de uma tença
que Dom João III lhe concedera, como prêmio de suas façanhas, na Índia” NOVAES, Maria Stella de. História
do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 13.
346
OLIVEIRA, op.cit., p. 28. Essa também e a interpretação utilizada por Neida Lúcia: “O donatário, Vasco
Fernandes Coutinho, era um homem da melhor fidalguia. Servira em Goa, na China e na África. Depois dessas
campanhas devia ser um homem rico, ou, pelo menos, a salvo das dificuldades materiais da vida. Não era um
personagem notável na Metrópole, nem sua empresa foi objeto de grande interesse para uma população fortemente
excitada pela fama das riquezas do Oriente." MORAES, op. cit., p. 15.
137

seu espírito aventureiro, bem como evidenciam que a necessidade de realizar os preparativos
de sua jornada colonizadora já anunciava as dificuldades a que deveria enfrentar, o que marcaria
sua experiência na capitania do Espírito Santo. Maria Stella de Novaes narra o início desse
empreendimento considerando que “o arrojo de uma colonização em terras ignotas conduziu o
donatário a desfazer-se de tudo o que possuía e trocar as vantagens de fidalgo da Casa Real pelo
equipamento de um transporte que o levasse àquele lugar do Brasil.”347A mesma passagem
registrada pela autora é apresentada por José Teixeira de Oliveira como os “primeiros
sacrifícios”348 de Vasco Fernandes Coutinho, o que anunciava uma vida diferente na colônia:

Não fora, de certo, para viver encurralado num arraial, a guerrear com os flecheiros
das selvas, que o donatário do Espírito Santo se desterrara para a sua bárbara capitania
brasileira”[...] Endividado, sem outros recursos de que lançar mão, entrado em anos e
naturalmente combalido pelas canseiras da vida militar a que dedicara a sua mocidade,
não era cômoda nem invejável a situação do ex-alcaide de Ormuz.349

Diante desse contraste que passou a caracterizar a figura de Vasco Fernandes Coutinho,
percebemos que sua imagem foi construída associada à sua busca por um desenvolvimento da
Capitania que não se realizou, integrada às circunstâncias de sacrifício e dificuldades. Os
autores não deixaram de registrar o empenho do primeiro donatário para o progresso de sua
capitania. Maria Stella de Novaes reconhecia na figura do primeiro donatário alguém
preocupado com o “progresso da sua propriedade” e que suas ações foram direcionadas para
esse objetivo, mesmo diante das dificuldades.350Nessa perspectiva também o qualificou José
Teixeira de Oliveira. Ao tratar dos primeiros desbravamentos de Coutinho, o autor ressalta o
esforço e a dificuldade:

Ao donatário, responsável e interessado direto no progresso do quinhão que lhe tocara,


a revelação das minas oferecia vantagem dupla: faria dele um nababo, caso fosse ele
próprio o descobridor, e atrairia, de qualquer maneira, multidões para a terra. [...]
Lançadas, pois, as sementes ao solo, Vasco Coutinho e seus companheiros se atiraram
às explorações. Basílio Daemon, recordando o feito, escreveu que, em fins de 1535
ou princípios do ano seguinte, saíram os povoadores em grande número, ‘bem
armados e municiados’ e entranharam-se pelo sertão. Abrindo picadas na floresta,
chegaram até os ‘arredores da hoje cidade da Serra’, sem serem incomodados ou
pressentidos pelos índios, pois nada consta a respeito, acrescenta o minucioso
cronologista. O único resultado dessa expedição foi consolidar no espírito do capitão
a ideia da necessidade de aumentar o número de habitantes brancos da sua governança.

347
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
14.
348
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 28.
349
Ibid., p. 39.
350
NOVAES, op. cit., p. 20-21.
138

Com o escasso grupo de que dispunha, não podia se aventurar à conquista de tesouros
no interior.351

No entanto, a caracterização desse personagem histórico passou a ser vinculada às dificuldades.


Segundo José Teixeira Oliveira:

Quatro anos após sua chegada à terra brasileira – vencidos os tropeços iniciais,
colhidos os primeiros resultados do trabalho geral – Vasco Coutinho deve ter
constatado que até então mal conquistara uma posição. O futuro, a riqueza, a glória,
escondidos no seio da floresta, pousados na serra de Mestre Álvaro e além,
chamavam-no, seduziam-no com o encantamento do desconhecido. Mas para ir até lá,
tentar as minas, alargar a conquista, fazia-se mister mais gente, mais recursos
materiais. [...] Se a solução estava em Portugal, isto é, se havia necessidade de maior
número de brancos para levar avante a empresa, e esses deviam vir da metrópole, só
havia um caminho a seguir: ir buscá-los. Foi o que se presume ter levado o donatário
ao Reino, em princípios de 1540.352

Impedimentos, frustrações, sacrifícios foram as referências usadas para qualificar as ações do


primeiro donatário correspondendo à própria trajetória inicial do Espírito Santo. O autor ainda
argumenta que tudo o que dele nos ficou “recorda sacrifícios, renúncias, amarguras.”353A partir
do ano de 1540, os autores evidenciam os descaminhos de Vasco Fernandes Coutinho como
fatores prejudiciais à Capitania. Suas viagens à Europa tomam um sentido de desventuras e
frustrações frente à condução do Espírito Santo.Maria Stella de Novaes ressalta que Coutinho
viajou “[...] a Portugal em 1540, a fim de equipar-se, para varar o sertão, ‘a conquistar minas
de ouro e prata de que tinham novas’, e realizar negócios, que lhe convinham.”354 Mesmo com
a dificuldade em se definir quanto tempo ele permaneceu ausente, a autora evidencia a
consequência negativa da viagem:

[...] Alguns cronistas, entre os quais Basílio Daemon, admitem que tenha o donatário
realizado mais de uma viagem à Corte, mesmo por que seria incoerência com seu zelo
pela Capitania demorar-se por tantos anos, na Europa. O certo, porém, é que encontrou
a decadência da sua propriedade e a Villa devastada. Contristou-se, perante a ruína do
seu ‘Vilão Farto’!355

351
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 46.
352
Ibid., p. 48.
353
Ibid., p. 47.
354
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
20.
355
Ibid., p. 22.
139

José Teixeira de Oliveira narra essa mesma viagem considerando que em seu retorno, o “vilão
farto, de que tanto se orgulhava o donatário, convertera-se em ruínas.”356 O autor dá sequência
aos relatos sobre essa ausência de Vasco Fernandes Coutinho e suas implicações:

Nesse mesmo ano (1650), viajou novamente o Donatário. A 14 de julho, já havia


passado pela Capitania de Porto Seguro, governada, então, por Duarte de Lemos, que
o denunciou ao Soberano, pelo fato de ter deixado o Espírito Santo e ‘ir à França a se
restaurar dos seus gastos que tem feito na sua Capitania.’ 357

Sacrifícios e prejuízos marcavam, portanto, a trajetória do primeiro donatário do Espírito


Santo.358José Teixeira de Oliveira também avalia essa ausência de Vasco Fernandes Coutinho
fazendo alusão à displicência, deficiência administrativa e descaminho dado ao Espírito Santo
devido ao seu distanciamento frente à Capitania:

Presume-se que tenha estado na Europa entre 1550 e 1555. Em abril de 1551, Pero de
Góis, de volta do sul, escrevia ao rei, informando: ‘Fui ter ao Espírito Santo terra de
Vasco Fernandes Coutinho [...] estive aqui cinco ou seis dias por a terra estar quase
perdida com discórdias e desvarios dos homens, por não estar Vasco Fernandes nela
e ter ido não sei lá onde [...].”
Não havia, pois, notícia sobre o paradeiro do donatário e as discórdias dividiam a
população. Dois anos depois, finda a inspeção que realizara pela costa, Tomé de Sousa
dava conta a Sua Majestade do que vira e fizera durante a viagem. Referindo-se ao
senhorio de Vasco Coutinho, assim se expressou:
‘O Espírito Santo é a melhor capitania e mais abastada que há nesta costa mas está tão
perdida como o capitão dela Vasco Fernandes Coutinho [...] mas V. A. deve mandar
capitão ou Vasco Fernandes que se venha para ela e isto com brevidade.’
Muito descera o valoroso soldado de Afonso de Albuquerque para ser apontado como
perdido [...] Aquele ‘que se venha para ela’ dá quase a certeza de que Tomé de Sousa
sabia Vasco Coutinho achar-se em Portugal. Parece um recado ao administrador
negligente.359

O autor apropria-se da crítica realizada por Tomé de Sousa à condição da Capitania do Espírito
Santo para caracterizar a displicência de Vasco Fernandes Coutinho, o que implicou nessa
associação entre o donatário e o Espírito Santo. A insuficiência de suas realizações foi indicada
por José Teixeira ao retratar o fim do primeiro fundador:

Vasco Coutinho faleceu em 1561, ‘tão pobremente que chegou a lhe darem de comer
por amor de Deus, e não sei si teve um lençol seu em que o amortalhassem’. Houve,

356
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 57.
357
Ibid., p. 23, parênteses do autor.
358
Maria Stella de Novaes retrata as consequências negativas de sua ausência: "Seguiu-se no Espírito Santo um
período de decadência, porque na falta do Donatário, em viagem forçada, para a obtenção de recursos necessários
ao desenvolvimento da capitania, seus substitutos faltaram a confiança neles depositada. Dizia Pero de Góis que
‘a terra estava quase toda perdida com discórdias e desvarios dos homens e não estar Coutinho nela, e ter ido não
se sabia para onde'." NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito
Santo, 1964. p. 29.
359
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 68.
140

certamente, algum exagero nestas palavras de frei Vicente do Salvador, muito amigo
de construir frases de efeito. Entretanto, força é convir que os dias de Coutinho no
Brasil foram uma ininterrupta sucessão de trágicos acontecimentos. Senhor de um lote
privilegiado, dispondo de alguns auxiliares tão bons como os melhores que viviam no
Brasil da época, beneficiado pela presença e colaboração dos jesuítas, favorecido com
a proximidade da Bahia, de onde recebeu auxílios vitais em momentos críticos – tudo
foi insuficiente para levar avante o esforço do pobre donatário. 360

Evidenciou-se, assim, o momento final do primeiro donatário associado a uma realidade de


pobreza marcada pela trajetória de “trágicos acontecimentos.” Vasco Fernandes Coutinho
surgiu, assim, com a imagem-símbolo da condição da capitania construída pela historiografia,
evidenciando em sua figura as dificuldades e impedimentos. Sua experiência, interpretada como
sendo de um valor negativo frente à capitania do Espírito Santo, colaborou com o lugar por ele
ocupado na história local, figurando na categoria de personagens definidos como obstáculos do
progresso.

Seguindo essa perspectiva, encontramos em José Teixeira de Oliveira a marca dessa crítica
direcionada aos não-colaboradores da história capixaba, principalmente, aos que eram
governantes, responsáveis pela condução da capitania. Por exemplo, quando o autor avalia o
donatário Manuel Garcia Pimentel, o critério utilizado em sua apreciação foi justamente o do
papel que coube a ele para os prejuízos futuros do Espírito Santo. Dessa forma, o autor
caracteriza o “donatário displicente”:

Não se conhece qualquer ato do donatário Manuel Garcia Pimentel em benefício da


capitania. Tudo o que fez, enquanto o Espírito Santo lhe pertenceu, foi nomear alguns
poucos funcionários, não interferindo, segundo parece, nem mesmo na escolha dos
capitães-mores. É admissível supor que o Espírito Santo viesse a ser melhor
aquinhoado territorialmente se o herdeiro de Francisco Gil de Araújo zelasse um
pouco mais pelo senhorio, não permitindo que os delegados del-rei restringissem,
como fizeram, suas possibilidades de expansão. [...] Garcia Pimentel preferiu
continuar administrando suas propriedades baianas, sacrificando, com tal atitude, o
futuro da capitania.361

360
José Teixeira de Oliveira ressalta a dificuldade de governança de Vasco Fernandes Coutinho ao ponderar
elementos de seu perfil: “Os que se têm ocupado da sua personalidade negam-lhe dotes de chefia, atribuindo-lhe
vícios e falta de energia para enfrentar os malfeitores que se acoitavam na capitania, todos ou quase todos agentes
da sua ruína. Há demasiado rigor no julgamento. Quem tivesse a responsabilidade de povoar uma parcela do
território brasileiro àquela hora, tão pobre e tão avaro em recompensas, não poderia ter a veleidade ridícula de um
chefe de disciplina colegial. Conceda-se que não foi suficientemente hábil para conter ‘a avidez de lucros e a sede
de ouro que, nos primeiros tempos, extinguiram todos os sentimentos humanos dos colonizadores europeus’, mas
que seja feita justiça à dedicação, à generosidade, à bravura, solidariedade e espírito magnânimo do primeiro
donatário. Não o acusam de um só ato injusto, de uma opressão, da prática de uma vingança.” OLIVEIRA, José
Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 97.
361
Ibid., p. 177. Observamos, anteriormente, que um dos fatores definidos pelos autores como responsáveis pelas
dificuldades do Espírito Santo colonial foi a ausência dos donatários frente à capitania governada pelos capitães-
mores. A partir desse entendimento é que compreendemos a ironia de José Teixeira ao qualificar a presença de um
capitão-mor na categoria de colaborador do progresso da capitania. Assim se refere o autor: “Milagre dos milagres:
141

O governante, portanto, surgiu na narrativa situado na mesma categoria de Vasco Fernandes


Coutinho, uma vez que essa dificuldade identificada por José Teixeira correspondia aos
impedimentos de expansão sofridos pelo Espírito Santo que o impediram de usufruir dos
benefícios da exploração aurífera.

Se por um lado, os dois donatários foram exemplos negativos, por outro, um conjunto de
indivíduos figurou no enredo histórico como protagonistas da história local.362 Personagens
cuja significação foi definida em função de suas realizações em prol do destino do Espírito
Santo. Uma linha de continuidade que caracterizou a trajetória do progressivo desenvolvimento.
Do período colonial até o período republicano.

Os autores ressaltaram o perfil de determinados governantes à frente da capitania. Foram eles


Vasco Fernandes Coutinho Filho e Gil de Araújo, que foram representados em oposição ao que
se configurava como atraso colonial. O primeiro é marcadamente posicionado em lado oposto
ao de seu pai, o primeiro donatário. Pois, “sob o governo de Coutinho Filho”, argumenta Maria
Stella “tudo ressurgia”.363 A contraposição ao momento anterior aparece na caracterização de
seu período como governante:

Em contrário, porém, à fase de inércia, a posse de Vasco Fernandes Coutinho Filho,


herdeiro do primeiro Donatário, assinalava o ressurgimento da Vila [...] Plantações de
cana, algodão e cereais, criação de gado e instalação de novos engenhos,
transformavam Vitória num centro irradiante de movimento para toda a Capitania. O
comércio direto com Portugal tomou novo incremento. Gandavo registrava que do

um capitão-mor – Manuel da Rocha de Almeida – intentou, e parece que realizou, a construção de “uma força” na
praia de Vitória. Seria pequena fortificação destinada a proteger a vila e que, no entender de Mário Freire, reflete
o seu desenvolvimento.” OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação
Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 140.
362
Os autores privilegiaram em suas narrativas os governantes e administradores do Espírito Santo. No entanto,
outros também figuraram como representantes dessa oposição entre colaboradores e obstáculos do progresso.
Maria Stella de Novaes oferece um exemplo que se caracterizou em contraponto aos impedimentos trazidos ao
Espírito Santo pelas determinações da Coroa portuguesa em relação à condição de “barreira verde” assumida pela
Capitania espiritossantense. Apontada como um dos fatores do déficit do Espírito Santo no período colonial, tal
condição colaborou para caracterizar a imagem de Pedro Bueno Cacunda como homem “sempre atento às minas
auríferas”, identificado pela busca de superação. A autora ressalta sua atuação em sentido contrário às
determinações da Coroa. Temos sobre ele: As atividades de Pedro Bueno Cacunda [...] continuavam a despertar o
interesse do Governo Geral que, por isso, proibiu ‘descobertas’ de minas, segundo, ordem de El-Rei, antes que se
fortificassem a Capitania. [...] Avesso às ordens superiores contrárias à exploração do interior da capitania, varava
os sertões e iludia os delegados de El –Rei. Declarava suas riquezas e concorria, assim, para o povoamento do
Espírito Santo. Audaz bandeirante, chegou mesmo a dirigir-se ao El-Rei, com a narrativa de sua odisseia e pedido
da Superintendência das Minas, das passagens dos rios Manhuaçu, Guandu e Itapemirim [...].”NOVAES, Maria
Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 86-88.
363
Ibid., p. 40.
142

Espírito Santo era ‘o melhor açúcar que há em todo o Brasil’. Dizia ainda que ‘os
moradores vivem abastados de mantimentos da terra, como de fazendas’. 364

José Teixeira de Oliveira segue esta avaliação, valorizando a importância deste donatário
naquele cenário de impedimentos e atraso do Espírito Santo colonial:

Preocupado com o desenvolvimento do senhorio, Vasco Coutinho (filho) fez uma


revisão na distribuição das terras, passando a novas mãos aquelas cujos sesmeiros
tinham morrido ou as haviam deixado no abandono [...]. Com o auxílio de novos
braços e capitais, o Espírito Santo conheceu uma quadra de progresso, assinalando-se
a construção de alguns engenhos de açúcar e o incremento do comércio direto com
Portugal. Rubim diria com justiça: ‘A Colônia tomou um aspecto mais lisonjeiro.’ 365

Progresso é o termo que caracteriza o governante. Essa é também a valorização que Neida Lúcia
atribuiu à Gil de Araújo:

Um homem enérgico e bem-intencionado podia desenvolver um trabalho profícuo. E


a oportunidade foi bem aproveitada. Os serviços público tomaram impulso, as
finanças foram regularizadas, edifícios públicos foram restaurados, o comércio e a
agricultura foram objeto de suas atenções.[...]366

Maria Stella de Novaes o associa, além disso, à noção de prosperidade. Segundo a autora, ele
“incentivou a lavoura”, “assistiu aos moradores com todos os meios, para que os seus engenhos
progredissem, de par com as lavouras que, nesse tempo, avultavam consideravelmente.”367Em
José Teixeira de Oliveira, observamos o destaque para o caráter progressista de uma
administração que “distinguiu-se pelas obras que levou a termo”:

Resta mencionar as notícias colhidas em outras fontes a respeito de administração tão


progressista. Rubim, por exemplo, informa que Gil de Araújo ‘trouxe da Bahia muitos
casais de colonos a quem doou terras, e tanto a estes, como aos antigos moradores
assistiu com cabedal para fornecerem seus engenhos e lavouras. Este dinheiro de

364
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
38.
365
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 102-103. O autor evidencia a marca positiva da colaboração do filho do primeiro donatário para o
porvir do Espírito Santo: “A administração de Coutinho (filho) distinguiu-se, principalmente, pelo sentido de
estabilidade que imprimiu ao senhorio. Foi durante sua gestão, graças à paz e sossego reinantes, que os habitantes
conseguiram fixar-se, em definitivo, na terra e demonstrar, pela construção de engenhos, desenvolvimento efetivo
da catequese e levantamento da igreja dos jesuítas – para apontar tão-somente três expressivas demonstrações de
desejo de fixação na gleba – confiança no futuro e preocupação de continuidade na nova pátria.” (Ibid., p. 109.).
366
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 30.
367
NOVAES, op. cit., p. 73. Dessa forma, ela apresenta o diferencial desse governante: "[...] em a Terra Goitacá,
de Alberto Lamego diz que: - Enquanto a Capitania da Paraíba do Sul, administrada por Vasqueanes e, ausentes
seus donatários, continuava estacionária. A do Espírito Santo, governada pelo próprio Francisco Gil, prosperava.
[...] Em confirmação das referencias à atividade desse donatário, notemos ainda que consertou a Casa da Câmara,
em Vitória. Em Vila Velha, mandou fazer a Casa da câmara que havia desaparecido, e deu sepultura condigna aos
ossos de Vasco Fernandes Coutinho." Ibid., p. 73-74.
143

primor foi causa do incremento que teve nesse tempo a lavoura de cana de açúcar
[...].368

Foi, assim, retratado como o “homem de mais ampla visão dentre os que passaram pela
administração capixaba na fase colonial.”369 Por meio desses perfis, observamos como se
constituíram as narrativas marcadas pela noção da superação do atraso. Estes governantes do
período colonial ganharam um lugar no passado que estavam de acordo com o desenvolvimento
do Espírito Santo, ainda que o período colonial fora classificado como o da origem do atraso.

Seguindo a linearidade temporal das obras de Neida Lúcia, José Teixeira de Oliveira e Maria
Stella de Novaes, a caracterização associada a alguns governantes que marcaram o século XIX,
por sua vez, correspondia à própria imagem que foi elaborada acerca desse período. Aos
acontecimentos e marcos cronológicos vinculados ao progresso, estavam os responsáveis pelo
desenvolvimento. São exemplares, nesse caso, os governantes Silva Pontes e Francisco Alberto
Rubim.

Nas narrativas, ambos foram responsáveis por inaugurar o roteiro da superação. O primeiro foi
descrito como “um homem de conhecidas luzes e préstimo.” Maria Stella de Novaes evidenciou
suas realizações em prol do desenvolvimento do Espírito Santo, sobretudo em relação à busca
por vias de comunicação, e sua viabilidade, com Minas Gerais, definindo-o como administrador
operoso.370 Neida Lúcia associou o governante à "recuperação do tempo perdido" com as novas
possibilidades trazidas por Silva Pontes em relação ao fim dos impedimentos frente à região
das minas.371 José Teixeira de Oliveira, tratando das expectativas que surgiam com o século
XIX, o situa dentro de uma nova relação, considerada revolucionária, e benéfica, da metrópole
com o Espírito Santo.372 O governante aparece na narrativa em consonância com a modificação
daquilo que prejudicava o Espírito Santo, o acesso à região das minas. Progresso, dinamismo e

368
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 158.
369
Ibid., p. 159.
370
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
106. A autora o indica como alguém preocupado com o desenvolvimento do Espírito Santo: “interessado pelas
vias de comunicação com o interior da Capitania, o Governador Silva Pontes mandou reconstruir a Ponte de
Passagem, com pregões de alvenaria e de acordo com a planta de sua própria autoria.” Ibid., p. 108.
371
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 34.
372
Segundo o autor, o esse governante “trazia especialmente recomendada a abertura e navegação do Rio Doce.
[...] A nova atitude da metrópole em relação aos meios de comunicação entre o Espírito Santo e Minas Gerais bem
merece o qualitativo de revolucionária.” OLIVEIRA, op. cit., p. 244. José Teixeira de Oliveira também atenta para
essa preocupação com a região do Rio Doce: “Sua pré-memória de 1802 testemunha o carinho com que
encaminhava a solução dos problemas ligados ao rio, que, oficialmente, abriu à navegação, tida, aliás, por
impossível.” Ibid., p. 250.
144

realizações marcariam, assim, o momento e a figura do governador, sobre quem “os


memorialistas e historiadores têm concedido [...] as homenagens que se tributam aos
governadores dignos do respeito da posteridade.”373 Um lugar, portanto, ao “homem íntegro,
competente e ativo, embora arbitrário”, cuja “administração coincidiu com a fase mais fecunda
em realizações do período de permanência da Corte portuguesa no Brasil.”374

A noção de colaboração e legado também marca a imagem criada sobre o governador Rubim.
Neida Lúcia também ressalta a memória acerca desse governante:

Por essa época (1812) desembarcou em Vitória um novo governador, homem íntegro
e de grande capacidade de trabalho. Era Francisco Alberto Rubim, que dirigiu os
destinos do Espírito Santo por sete anos e deixou traços tão visíveis de sua passagem,
que um século e meio depois ainda admiram os que olham, mesmo de relance, a
história de nossa terra.375

Para Maria Stella, ele teve uma “administração laboriosa e segura”, sendo ele um governante
que “prestou valiosos serviços ao Espírito Santo.”376 Essa era a imagem do Espírito Santo à sua
época, uma “capitania em franco desenvolvimento”. A autora evidenciou suas
realizações.377José Teixeira teve a mesma proposta da autora. Em sua narrativa são elencadas
as realizações do governante e sua importância foi definida em termos de realizações em
benefício do progresso espiritossantense. Nessa perspectiva, ele argumenta que Rubim realizou
“uma administração ativa, benéfica e empreendedora.” 378

As referências que prevaleceram na caracterização dos presidentes de província ao longo do


século XIX tiveram, de maneira geral, essa conotação do progresso.379Delineou-se, assim, um

373
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 249.
374
Ibid., p. 254.
375
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 35.
376
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
115.
377
Ressaltou a busca pela interiorização: “[...] muito justamente pode-se considerar o Governador Rubim o
fundador da atual Cidade de Cachoeiro do Itapemirim, com o Quartel de barca, levantado ‘na margem-Sul do Rio
Itapemirim, de fronte da primeira cachoeira, seis léguas para o sertão da Vila do Itapemirim.” Ibid., p. 126.; Segue
a autora: "[...] Pelo extraordinário empenho, na abertura de estradas, recebeu o Governador Rubim uma Carta-
régia, datada de 4 de dezembro de 1816, que louvava sua atividade, tanto naquela empresa quanto no
desenvolvimento da lavoura, incentivo à mineração, e à navegação nos rios da Capitania." Ibid., p. 120-121.
378
OLIVEIRA, op. cit., p. 259. José Teixeira de Oliveira segue a mesma análise de Maria Stella de Novaes.
Apresenta o caráter de bom administrador compromissado com o progresso do Espírito Santo. Para isso, evidencia
uma série de realizações do governador frente à administração da capitania do Espírito Santo. Ibid., p. 256-259.
379
Maria Stella de Novaes foi a autora que deu mais ênfase às características de alguns governantes em função de
suas respectivas colaborações para o desenvolvimento do Espírito Santo. Sobre o governo de Costa Pereira: “o Dr.
José Fernandes da Costa Pereira Júnior, que prestou juramento e entrou em exercício, a 22 de março. Dedicou-se
sinceramente ao Espírito Santo, porque nascido em Campos, a 20 de janeiro de 1883, quando a Paraíba do Sul era
parte desta província, o Dr. Costa Pereira considerava-se realmente capixaba, mesmo como deputado federal e,
145

conjunto de representações imagético-discursivas acerca de alguns indivíduos que passaram a


compor uma galeria de personagens do passado símbolos do progresso. A narrativa histórica
do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo relatou, assim, as experiências dos
construtores do Espírito Santo.

Não obstante, foi essa a característica presente nos governantes do período republicano. Estes
foram classificados em função do seu papel de propulsores do progresso, como personagens-
símbolo de um novo momento que conduziu o Espírito Santo para a superação do atraso via
industrialização. Ao caracterizar o início do período republicano no Espírito Santo, José
Teixeira de Oliveira evidenciava que essa nova fase do Estado se deu, principalmente, pela
"ação exercida por uma elite saída dos próprios quadros locais e que, desde as primeiras horas
do novo regime, assumiu o controle dos negócios públicos."380Nesse sentido, as obras se
apresentam, ao longo das narrativas do Espírito Santo republicano, como um sequência de
realizações desses indivíduos na condução do Estado para o futuro.381

Até a década de 1930, foram destacados Muniz Freire, Jerônimo Monteiro e Florentino Ávidos.
Em relação ao primeiro, José Teixeira o define como marco para o Espírito Santo, por seu
"espírito progressista e realizador":

A dois de maio de 1892 foi solenemente promulgada a nova Constituição, seguindo-


se, no mesmo dia, a eleição do presidente do Estado – José de Melo Carvalho Muniz
Freire. Inaugurou-se, com este, uma fase de arrojadas realizações na terra capixaba. 382

depois, Ministro do Império. Sempre cuidou da colonização da Província. Construiu a estrada do Queimado até as
primeiras clareiras do Rio Santa Maria da Vitória, a fim de facilitar o desenvolvimento da Colônia de Santa
Leopoldina. Defendeu a Província, quando Minas Gerais invadiu as povoações do Veado e São Pedro. Amparou
a Colônia do Rio Novo. Em homenagem de gratidão dos capixabas, o aterro da Prainha, depois de urbanizado,
recebeu o nome de Praça Costa Pereira.” NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo
Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 244. Sobre o governo de João Tomé da Silva, temos: “1873 – Assumiu o
Governo da Província, a 28 de dezembro de 1873, o Dr. João Tomé da Silva, que muito influiu no progresso da
cidade, quer zelando pela instrução do povo, quer intensificando melhoramento de real importância.” Ibid., p. 279.;
E ainda: “Dr. Marcelino de Assis Tostes, que realizaria intenso e proveitoso Governo, até 24 de março de 1882[...]
A 24 de agosto, dizia um cronista: - 'Homem de uma vida dirigida e laboriosa, o Presidente Tostes não ficou no
pedestal que o povo do Espírito Santo e as populações dos municípios lhe ergueram; na lembrança de ter
conseguido a estrada-de-ferro'." Ibid., p. 282.
380
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 407.
381
Nossa análise focalizou-se nos governos estaduais que foram destacados pelos autores a partir de enunciados
que os definiam como elementos da categoria progresso. A tendo em vista as referências usadas pelos próprios
autores. Assim, nem todos os governos foram citados.
382
Ibid., p. 413.
146

Maria Stella de Novaes ressalta a "energia e a clarividência do ilustre Governador"383 enquanto


Neida Lúcia considera que "seu dinamismo estendeu-se a vários setores da administração" e
seu governo trouxe realizações voltadas para a "garantia de prosperidade do Espírito Santo."384
Mas, a narrativa elaborada pelos autores definem o governo de Jerônimo Monteiro como o
principal marco de desenvolvimento durante a Primeira República no Espírito Santo. Segundo
Neida Lúcia:

Esse quatriênio fez época na terra capixaba, marcando dois períodos: o Espírito Santo
antes do governo Jerônimo Monteiro e o Espírito Santo após esse governo. [...] Sua
operosidade estendeu-se ao Estado inteiro, abrangendo todos os setores da
administração pública. 385

Já Maria Stella de Novaes define o início de seu governo como o de uma "verdadeira renovação
política-social para o Espírito Santo".386 Sobre a administração de Jerônimo Monteiro a autora
ressalta o desenvolvimento da capital Vitória e sua preocupação "no sentido de movimentar a
indústria e todos os demais recursos do progresso e consequente independência econômica do
Estado."387 Já José Teixeira de Oliveira sintetizou sua atuação por seu "programa de amplas
realizações" no qual "o Estado experimentou largos benefícios da ação governamental." 388

Jerônimo Monteiro, portanto, tornou-se, marco desse processo de desenvolvimento. O


governante aparece na própria definição acerca de Florentino Ávidos, realizada por Neida
Lúcia:

Esse quatriênio marcou o ritmo de progresso acelerado de doze anos antes. A


morfologia da cidade foi alterada: alargamento e abertura de novas ruas,
pavimentação, redes de esgoto, núcleos residenciais, edifícios públicos, ponte sobre a
baía, escadaria, viaduto, jardins e monumentos. Foi aberta a av. Jerônimo Monteiro. 389

383
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
320
384
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 44.
385
Ibid., p. 46.; José Teixeira de Oliveira também ressalta esse governo como marco: "Vale ressaltar que Jerônimo
Monteiro realizou obras tão vultosas – até hoje lembradas em meio às mais gratas referências pelos capixabas."
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 420.
386
NOVAES, op. cit., p. 365.
387
Ibid., p. 373.
388
Segundo o autor: Durante o quadriênio Jerônimo Monteiro, o Estado experimentou largos benefícios da ação
governamental: abertura de estradas, fomento da produção agrícola, melhoria dos rebanhos bovinos, construção
da usina de açúcar de Paineiras – ao tempo considerada a melhor do Brasil –, desenvolvimento do ensino público
e melhoria do aparelho administrativo. Vitória transformou-se em cidade moderna, dotada que foi dos serviços de
água, esgotos, luz e bondes elétricos. OLIVEIRA, op.cit., p. 419.
389
MORAES, op. cit., p. 47. Foi também nessa perspectiva que José Teixeira qualificou o governante: "Florentino
Avidos teve o mérito de saber escolher auxiliares para as tarefas de governo. E conseguiu realizar obras que fazem
seu nome lembrado com carinho em todo o Estado. Duas pontes que construiu – ligando Vitória ao continente e
sobre o rio Doce, em Colatina – são marcos decisivos no progresso do Espírito Santo. A estrada de penetração,
147

Definia-se, assim, os governos modelares da primeira república, que antecipava, segundo a


narrativa dos autores, o novo momento que surgiria no Espírito Santo a partir da década de
1950. Carlos Lindenberg é lembrado pela administração que realizou, mas foram Jones dos
Santos Neves, Christiano Dias Lopes e Arthur Gerhardt os governantes identificados como os
responsáveis pelo impulso necessário ao desenvolvimento do Espírito Santo.390Jones dos
Santos Neves é interpretado como o responsável por preparar a nova fase de realizações que
caracterizariam o Espírito Santo:

A passagem de Jones dos Santos Neves pela interventoria (1943-45) já prenunciava


administração brilhante para o quadriênio inaugurado em 1951. Beneficiado pela
atuação saneadora de seu antecessor, que lhe entregara o governo em boa situação
financeira, Santos Neves realizou gestão profícua, inteligentemente conduzida. Cabe-
lhe o privilégio de ter sido o primeiro governante capixaba a estabelecer planejamento
para a administração: o Plano de Valorização Econômica do Estado. Assessorado por
uma equipe de escol, o governo atacou obras em numerosas frentes de trabalho. 391

Já Christiano Dias Lopes Filho e Arthur Gerhardt são identificados como os responsáveis pelo
início da nova fase de desenvolvimento do Espírito Santo. Para Neida Lúcia, Christiano Dias
Lopes teve um governo "repleto de dinamismo" com "a força de uma equipe jovem e
progressista."392 Sobre Arthur Gerhardt, a autora escreve aludindo às expectativas acerca da
"inteligência lúcida e capacidade de trabalho" do governante, "o criador e presidente do Banco
de Desenvolvimento do Espírito Santo (BANDES)".393 Para José Teixeira de Oliveira, o
governo Christiano Lopes foi o marco da mudança:

ligando Colatina a Nova Venécia, abriu a denominada zona desconhecida ao trabalho fecundo dos povoadores.
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 426.; Maria Stella de Novaes caracterizou esse período como uma “fase intensa de construções":
"Traçara o Dr. Florentino Avidos um plano geral de melhoramentos da Cidade de Vitória: novos bairros, obras de
saneamento, conforto, embelezamento, estradas suburbanas, etc. E foram surgindo: Bomba, Suá, Maruípe, Santa
Maria, Santo Antônio, além da Praia Comprida, bairro planejado desde os tempos de Saturnino Brito. Drenagem,
pavimentação, esgoto, abastecimento de água, jardins, monumentos, etc. movimentaram a cidade de Vitória."
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 408.
390
Maria Stella de Novaes , ainda que caracterize a década de 1950, como observamos no capítulo anterior, não
avalia os demais governos, finalizando sua abordagem nas realizações do Governo Carlos Lindenberg
caracterizado como momento de expectativas acerca do futuro do Espírito Santo. José Teixeira de Oliveira assim
o caracteriza: "Carlos Lindenberg voltou à curul do governo estadual em 1959. Graças à política de recuperação
financeira que assinalou seus dois períodos administrativos, aquele prestigioso homem público lembra a figura
lendária de Campos Sales no plano federal." OLIVEIRA, op. cit., p. 452.;Cabe ressaltar que José Teixeira de
Oliveira faz ainda uma breve referência ao governo Élcio Álvares, momento de publicação da segunda edição de
sua obra. Consideração correspondente às expectativas em relação ao futuro:" No momento mesmo da redação
destas linhas, a Assembleia Legislativa Estadual elege o novo governador que deverá dirigir o Estado no próximo
quadriênio – o deputado Élcio Álvares, cujo passado responde pelos anseios de progresso dos seus coestaduanos."
Ibid., p. 465.
391
OLIVEIRA, op. cit., p. 446.
392
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 49.
393
Ibid., p. 49.
148

Christiano Dias Filho (1967-71) inaugurou fase nova na vida do Estado. [...] Seu
primeiro gesto de governante foi um brado pela afirmação do Espírito Santo como
parte da comunidade brasileira. Com intrepidez e resolução, fez ouvir a voz do povo
capixaba, gritando ao resto do Brasil que o Estado existe e que é parte da Pátria
comum.394

Assim como Neida Lúcia, o autor interpreta o governo de Gerhardt como continuidade de seu
antecessor, pois o governante, "infatigável e culto homem público", já havia comandado "o
trabalho de planejamento das iniciativas governamentais" e, então, iria "realizar muitos dos
projetos que idealizara." Assim, era o responsável por consolidar a nova etapa do Espírito
Santo:

Familiarizado com todos os problemas do Estado, Artur Gerhardt vem administrando


à base de planos meticulosamente elaborados e tem sabido atender às aspirações da
atualidade. A tônica de seu governo é a industrialização do Espírito Santo. 395

Com essas características, evidenciamos que a elite administrativa do Espírito Santo no século
XX, tornou-se, nas narrativas históricas, os responsáveis pela mudança de status do Estado. Em
especial, Neida Lúcia e José Teixeira de Oliveira assumiram o próprio discurso da elite
dirigente que, como vimos anteriormente, justificou e legitimou a implementação do projeto de
industrialização no Espírito Santo. A representação da elite político-administrativa
correspondeu a uma nova qualificação do Espírito Santo e às expectativas de futuro.

Instituiu-se um roteiro histórico a partir dos modelos e exemplos a serem seguidos, símbolos
do progresso no passado que correspondiam ao ideal de desenvolvimento e superação do atraso
no presente. Neida Lúcia, ao comentar as dificuldades enfrentadas pelos donatários no Espírito
Santo, ressalta que dever-se-ia observar as "suas tremendas dificuldades vencidas com aquela
pertinácia" e que, tal qualidade, "naquele tempo iniciada, nunca abandonou, até hoje, os
responsáveis pelos nossos destinos.” 396
A autora refere-se aos indivíduos considerados
modelares, os exemplos de superação a serem aprendidos. O passado satisfatório ao discurso
da superação do atraso evidencia tanto uma trajetória cuja origem foi repleta de obstáculo a
serem superados, como também identifica os elementos identitários entre o presente gerador de
expectativas e o passado. A mesma autora, por exemplo, estabelece o vínculo entre Silva

394
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 452.
395
Ibid., p. 460.
396
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 29.
149

Pontes, Rubim e Christiano Dias Lopes com a trajetória do Espírito Santo, identificada com a
de seus construtores. Segundo ela, sobre a abertura para Minas:

É bem verdade que demorou mais de um século, até que, sob a chefia suprema de
Teixeira Soares, Pedro Nolasco e Álvaro Mendes, em 1904, começou a ser implantada
no solo espiritossantense a estrada de ferro Vitória à Minas que iria começar a
realização dessa ligação entre Minas Gerais e o mar através do Espírito Santo, no
rumo do Porto de Vitória. [...] Ainda quarenta anos tiveram de decorrer para que se
reconhecesse que o minério de ferro de Itabira tinha em Vitória o seu escoadouro
natural para o exterior. O auto de 1800 determinou as divisas das duas capitanias,
atuais estados do Espírito Santo e Minas Gerais, mas a sua fixação no terreno custou
mais de 150 anos.
Foi a tarefa enfrentada pelo engenheiro Ceciliano Abel de Almeida e o advogado
Bernardino Monteiro, no princípio do século XX e nos meados desse século pelo
engenheiro civil e advogado Cícero Moraes. A mais recente consequência dos Auto
de Silva Pontes ainda ressoa ao nossos ouvidos, com os aplausos que tributamos ao
Vice-Presidente Augusto Hamann Rademarker Grunewald, ao Governador Christiano
Dias Lopes Filho e ao Ministro Mário David Andreazza, no dia 25 de novembro de
1969, na inauguração da Rodovia Castelo Branco que une Vitória a Belo Horizonte,
e representa a conclusão daquela estrada contratada por Francisco Rubim [...].397

A obra da superação do atraso realizar-se-ia, portanto, pela elite administrativa responsável pela
implantação do projeto de desenvolvimento a partir da década de 1960. Uma jornada que, ao
longo de todos os séculos narrados, foi caracterizada pelas ações individuais condutoras desse
percurso. Portanto, por meio de sua linearidade narrativa os autores representaram, ainda que
diferenciando os períodos, a trajetória do Espírito Santo que unia a “obra” de determinados
atores históricos, a saber, de alguns colonizadores, aos governantes provinciais, bem como aos
administradores públicos do período republicano, numa mesma linha condutora, marcada pela
superação dos obstáculos, que culminaria com a industrialização.

Portanto, analisando as oposições figurativas entre os personagens símbolos do progresso e os


representantes do atraso, é possível identificarmos as diferenciações entre os atores históricos
da elite política-administrativa. Por exemplo, a nítida dicotomia entre o próspero e operoso
Vasco Fernandes Coutinho Filho e seu pai, o fundador do atraso. Acompanhando a construção
dessas oposições, consideramos que se constituiu uma narrativa histórica que instituiu
personagens símbolos de mudanças assim como definiu uma linha de continuidade entre os
responsáveis pelo desenvolvimento do Espírito Santo, considerando que elas seguem as formas
de constituição de sentido presentes nas narrativas, tanto à "genética de sentido" como à
"exemplar de sentido".

397
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 34-35.
150

Desse modo, por um lado, correspondendo às expectativas de futuro, determinados indivíduos


tornaram-se marcos de mudança.398 Por exemplo, Silva Pontes e Jerônimo Monteiro
correspondiam, no passado, ao mesmo papel de mudança que era atribuído a Christiano Dias
Lopes Filho no presente. A narrativa histórica do progressivo desenvolvimento elaborou um
roteiro histórico satisfatório ao momento de implementação de um projeto de desenvolvimento,
demarcando, no passado, determinados atores responsáveis por impulsionar o Espírito Santo
para o caminho do progresso. Por outro lado, na linearidade do progressivo desenvolvimento
do Espírito Santo, determinados atores são evidenciados no enredo pelos acontecimentos que
se tornaram significativos para essa trajetória peculiar do Espírito Santo. São identificados
como exemplos históricos uma vez que suas ações são narradas como experiências modelares
do agir humano no passado.399 É possível identificarmos, assim, a construção de uma imagem
de Arthur Gerhardt como exemplo de governante associado ao desenvolvimento e que sua
experiência, no presente, seria a continuidade de ações em prol do progresso do Espírito Santo
existentes na trajetória local. As expectativas do projeto de industrialização, no presente,
ganhavam sentido na narrativa histórica como continuidade dos feitos de Gil de Araújo, Rubim,
Muniz Freire e Florentino Ávidos, que começaram a marcha da superação, num passado
marcado pelo atraso.

3.2 JESUÍTAS, IMIGRANTES E INDÍGENAS: A SUPERAÇÃO DO ATRASO NA


REPRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS.

Nas obras História do Estado do Espírito Santo, O Espírito Santo é assim e História do Espírito
Santo observamos também que alguns grupos ganharam destaque na trama histórica construída
pelos autores, a saber: os jesuítas, os imigrantes e os indígenas. A avaliação e a qualificação
desses grupos seguiram a mesma lógica que orientou a interpretação dos governantes e
administradores espiritossantenses, determinando os grupos (e seus representantes) como
colaboradores ou obstáculos da trajetória do Espírito Santo.

Nesse caso, ficou evidente na configuração das narrativas que os jesuítas correspondiam à força
do progresso presente no contexto do atraso atribuído ao período colonial e os imigrantes foram
elementos constitutivos da narrativa da superação que marcou o século XIX. No entanto,

398
A ideia de superação corresponde ao que Rüsen denominou de constituição genética de sentido dentre os tipos
de constituição narrativa de sentido. RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do
conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 58-61.
399
Rüsen define também as formatações narrativas exemplares, que apresentam o passado como exemplo e dotado
de significação para o agir no presente. Ibid., p. 50-54.
151

mesmo em momentos distintos, ambos foram caracterizados em função da maneira como os


índios foram interpretados e inseridos nesse enredo elaborado pelos autores. A forma como os
jesuítas e os imigrantes emergem nas narrativas, o papel que desempenham e o valor a eles
atribuído na história do Espírito Santo correspondem à secundarização e apagamento dos
indígenas, bem como à definição de sua imagem como principal símbolo do atraso no passado
do Espírito Santo.

No que tange aos jesuítas, a importância que ganharam na história do Espírito Santo, situados
na categoria de colaboradores do progresso, está vinculado ao papel desempenhado frente aos
índios.400José Teixeira de Oliveira os qualificou de “nova e poderosa força”401, quando da
chegada desse grupo, no sentido de possibilitar o progresso da capitania. Dessa forma, os
religiosos aparecem como excelentes colaboradores da colonização no sentido de integrar os
índios à obra colonizadora dos europeus. As referências aos jesuítas estiveram, sobretudo,
associadas ao controle dos indígenas. José Teixeira referindo-se à chegada desses religiosos
ressalta:

Coube-lhes também o papel relevantíssimo de, pela linguagem do coração, tornar


menos bravios e ferozes os silvícolas inconquistáveis. Se não os trouxeram a todos
para o lado dos brancos, aplainaram pelo menos grandes dificuldades que se
antepunham à aproximação, mesmo precária, das duas sociedades. 402

O autor deixa claro, portanto, que a colaboração desse grupo se efetivou por meio da política
de relação que os religiosos estabeleceram com os indígenas em benefício dos colonizadores,
pois, sem os jesuítas, argumenta o autor, “teria sido muito diferente a conquista da terra e de
seus primitivos donos e habitantes.”403

400
Segundo Maria Regina de Almeida, o propósito do estabelecimento da ordem jesuítica na colônia foi,
essencialmente, o de colaborar com a colonização por meio do contato com os grupos indígenas: “Sua principal
função seria a de reunir os índios aliados em grandes aldeias próximas aos núcleos portugueses nas quais iriam se
tornar súditos cristãos para garantir e expandir as fronteiras portuguesas na colônia. Era preciso manter os índios
aliados e derrotar os inimigos de forma a seguir adiante com o projeto de colonização.” ALMEIDA, Maria Regina
Celestino. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2011. p. 45.
401
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 76.
402
Ibid., p. 76-77.
403
Ibid., p. 147.
152

Maria Stella destaca também a catequização como uma conquista da Capitania.404 Referindo-
se a um momento de dificuldade do Espírito Santo em torno do ano de 1553, ressalta o papel
dos religiosos:

Somente os jesuítas prosseguiam na missão que lhes fora confiada. E, sob a influência
apostólica dos padres, os índios indomáveis pareciam convencidos de abandonar o
litoral e embrenhar-se na floresta longínqua. Os catequizados, entretanto,
colaboravam com os portugueses, nos roçados e nas construções. 405

Nessa perspectiva de análise adotada pelos autores, tornou-se essa forma de colaboração o
grande legado exercido pelos jesuítas. Maria Stella de Novaes enfatizou a participação dos
membros dessa ordem. Por exemplo, a noção de mediadores de conflito entre colonos e
indígenas caracterizou o perfil do padre Afonso Bras406 definido como “o diretor moral dos
índios e dos colonos, confraternizando-os.”407Esse sentido atribuído ao papel dos jesuítas ficou
evidente, principalmente, na caracterização que a autora realizou de José de Anchieta:

E, em todos os recantos do Espírito Santo, atingidos pelo trabalho da colonização,


notava-se de fato, a indefinível poesia, que se irradiava das pegadas de Anchieta.
Ensaiava autos e desvendava os segredos da língua indígena. Confraternizava os
índios com os portugueses. [...] Dir-se-ia, porém, que o seu dinamismo apostólico
propagara-se e enraizara-se, nos diversos pontos da capitania [...], os princípios da arte
e da indústria, lançados desde o estabelecimento dos padres, na Capitania,
prosperavam em todos os sentidos.408

Essa percepção acerca de Anchieta correspondeu aos jesuítas de maneira geral. Se a imagem
que os autores construíram da Capitania estava associada ao descaso, impedimentos e marcada,
como vimos, por colonos considerados inaptos ao progresso, as referências que encontramos

404
Neida Lúcia evidencia esse aspecto mas a partir da noção de legado: “Devemos aos jesuítas, além da obra
apostólica de resultados sociais muito grandes, poderoso auxílio na defesa contra os invasores estrangeiros.
Contribuíram para o abrandamento da ferocidade dos índios, no alevantamento dos padrões de moralidade da
população branca, eram admiráveis como praticantes da medicina e enfermagem. Foram responsáveis pela
construção da igreja e da casa para o primeiro colégio, sendo que desta última, conservada, ampliada e diversas
vezes reformada, se originou a sede do Governo do Estado, sob a atual denominação de Palácio Anchieta."
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 18.
405
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
28.
406
O padre Afonso Brás representava os jesuítas como fator de progresso, segundo Maria Stella de Novaes:
“Devotado sempre em colaborar com o Donatário, no progresso do lugar, o Pe. Brás Lourenço não repousara. [...]
incentivando a fundação do Seminário que tanto beneficiava o povo; dava-lhe instrução e catequizava os índios
que, assim, gradualmente, se integravam no trabalho organizado” Ibid., p. 39. O legado desse religioso é ainda
evidenciado pela autora: “A ampliação do Seminário, pelos esforços do Pe. Brás Lourenço, deve ser recordada,
visto como Afonso Brás, tendo-se demorado apenas dois anos e meses, aqui deixou “somente pequeno Seminário”,
coberto de palhas, conforme relatam cronistas. De certo, porém, o edifício que serviu tantos anos, para residência
dos Presidentes do Espírito Santo e, reconstruído, em 1911-1912, ainda é a sede do Governo do Estado”. Ibid., p.
39.
407
Ibid., p. 24.
408
Ibid., p. 53-54.
153

em relação aos jesuítas nos remetem justamente a uma posição de enfrentamento a essa
condição do Espírito Santo no passado.

Os autores construíram a imagem dos jesuítas, portanto, em função da importância que tiveram
para a viabilidade da colonização, papel evidenciado na narrativa dos autores, quando
interpretaram a expulsão dos religiosos da colônia. Neida Lúcia interpreta como uma situação
prejudicial à já condição difícil da capitania:

Para agravar a penosa situação, cai-nos o raio da expulsão dos jesuítas em 1759. Esses
religiosos, ainda que recolhidos apenas às suas fazendas, serviam de elemento de
harmonia entre colonos e índios e eram educadores únicos. As suas propriedades
estavam disseminadas desde Nova Almeida até Itapemirim. O golpe não foi contra o
Espírito Santo. Mas a nossa parte foi bem sentida.409

Na mesma perspectiva, temos a visão de José Teixeira de Oliveira:

Ao despontar o ano de 1760, o Espírito Santo perdeu a poderosa força que, havia mais
de dois séculos, vinha colaborando no seu desenvolvimento: os jesuítas. [...] Faltam
elementos para fixar com precisão os efeitos provocados, na capitania, pela retirada
dos jesuítas. Não foi de menor expressão a desordem trazida à política de
aperfeiçoamento dos indígenas, que, em massa, desertaram as aldeias, de regresso às
brenhas de origem.410

A argumentação dos autores direcionou-se, sobretudo, para o impacto negativo da saída dos
religiosos, uma vez que representavam a perspectiva da superação do atraso. Entretanto, para
essa qualificação dos jesuítas foi preciso que os índios fossem definidos como ferozes,
indomáveis e hostis, reproduzindo, como veremos adiante, um estereótipo dos grupos indígenas
historicamente elaborado.

Se por um lado, a imagem positiva dos religiosos configurou a depreciação dos indígenas, por
outro, a inserção dos imigrantes na história do Espírito Santo se efetivou em detrimento dos
indígenas. A narrativa do progressivo desenvolvimento que classificou o século XIX como o
início do processo de caminhada de superação do Espírito Santo selecionou a interiorização e
a chegada dos colonos europeus como acontecimento-símbolo do progresso. Como

409
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 32.Maria Stella de
Novaes se refere a esse acontecimento: Quantos anos de sacrifício e trabalho! Quanto heroísmo na defesa de
Vitória, repetidas vezes, atacadas pelos aventureiros e inimigos da Coroa Lusitana![...] Privada de seus devotos
apóstolos, sentiu a Capitania os primeiros efeitos do abandono espiritual e a redução da assistência desvelada [...]
De fato, com a expulsão dos jesuítas, desaparecia o maior fator de civilização, na Capitania: - a força conciliadora
dos ânimos, em favor do trabalho e da cultura. NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória:
Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 94.
410
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 203.
154

consequência, configurou-se também a “superação dos indígenas” que tiveram seu paulatino
apagamento da narrativa histórica do Espírito Santo.

Neida Lúcia também cita os momentos em que desembarcaram os imigrantes no Espírito Santo,
considerando sua importância:

O número de imigrantes não foi muito grande se compararmos aos dos que se
dirigiram para os Estados do Sul. [...] Apesar disso, devemos considerar inestimável
o serviço prestado por essa imigração. Quando o Estado instituiu o Museu do
Imigrante, quando levantou o Monumento ao Imigrante, quando festeja o Dia do
Imigrante, não faz senão reconhecer o que devemos a esse contingente de destemidos
trabalhadores.411

No que tange a presença dos imigrantes, Maria Stella de Novaes, ainda que não realize uma
ampla abordagem, associou-os à interiorização do Espírito Santo, enfatizando o aspecto
positivo desse processo. Segundo a autora, a “fundação da Colônia do Rio Novo, em 1855,
assinalou o reinício da colonização, que teria de trazer ao Espírito Santo o movimento heroico
e belo da imigração”.412 Vinculados à noção de prosperidade, os imigrantes seriam elementos
essenciais à penetração do território. José Teixeira de Oliveira, por outro lado, não compreende
a chegada dos imigrantes da mesma forma do que as autoras:

Sem pretender depreciar a valia da colaboração dos colonos europeus, cumpre situá-
la nos seus justos termos. [...] Não consta que os colonos tenham, em tempo algum,
experimentado a ferocidade dos indígenas. Suas terras ficavam muito aquém dos
domínios botocudos. As primeiras estradas já permitiam trânsito mais fácil entre os
diferentes núcleos de população. Ao estrangeiro coube receber a terra penosamente
conquistada e lavrá-la. Ilhados nas suas colônias, mui remotamente influenciariam a
agricultura e a indústria dos nacionais com os seus métodos, necessariamente mais
adiantados. Aqui – como no resto do Brasil – a conquista da terra foi obra exclusiva
dos brasileiros.413

No entanto, ele reconhece que, para tratar especificamente em relação aos imigrantes, Luiz
Derenzi seria o estudioso para definir o papel desse grupo na história espiritossantense, o que,
contribuiu, de alguma maneira, à caracterização desses personagens:

Os colonos europeus, tanto os germanos, chegados entre 1847 e 1880, como os


italianos, introduzidos de 1874 a 1895, contribuíram poderosamente para o progresso

411
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 41.
412
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
227.É assim que a autora evidencia a origem da colônia de Santa Isabel: "Pela influência do Presidente Pedreira,
fundou-se, em 1847, a Colônia de Santa Isabel, com cento e sessenta colonos alemães. [...] Foram concedidas
terras, com duzentas braças de testada e seiscentas de fundo, nas margens do Rio Jucu [...]. A Colônia de Santa
Isabel possuía um terreno fértil, cortado por diversos rios, além do já referido Jucu. Foi privilegiada pela estrada
do Rubim. Progrediu rapidamente com o plantio de cereais e do café." Ibid., p. 196.
413
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 344-345.
155

demográfico e econômico do Estado. A contribuição estimada pelos analistas foi,


respectivamente, de 11.000 austro-alemães e 40.000 italianos. Assim que a população
de 1862, de 60.702 habitantes, alcançou, em 1890, 209.783, um acréscimo salutar de
149.081 almas. No campo econômico, a produção de café teve a marca: em 1860,
50.529 sacas; em 1890, 250.000; em 1900, 394.150! O italiano, que por primeiro se
miscigenou, deu sadio exemplo de perseverança, amor ao trabalho e à família.
Introduziu novos hábitos e restaurou a moral doméstica. Os colonos venceram sós. As
autoridades públicas não lhes deram a mínima assistência. [...] Desde as primeiras
levas, os colonos viveram sós e caminharam apenas acompanhados pelos
agrimensores e futuros administradores dos núcleos. Não acharam nem derribada de
mata nem ranchos.414

Esta visão se aproxima à do “movimento heroico e belo” de Maria Stella de Novaes, que
ressalta, inclusive, esse papel atribuído aos imigrantes, sobretudo os italianos, no que tange ao
legado desses grupo.415

Diante dessa imagem construída acerca dos imigrantes em relação ao seu papel na história do
Espírito Santo, consideramos dois aspectos importantes no que diz respeito às avaliações e
qualificações atribuídas aos personagens históricos dentro das narrativas dos autores.
Primeiramente, principalmente em relação aos italianos, as narrativas históricas colaboraram
com o fortalecimento do que Maria Cristina Dadalto chamou de “mito da italianidade do
Espírito Santo”, presente, especialmente, na literatura. Segundo ela:

[...] uma profícua produção literária produzida sobre a imigração italiana no estado
ajudou a construir e a fortalecer este mito. [...] Essas obras literárias teriam cristalizado
o conhecimento sobre o processo de formação e desenvolvimento do Espírito Santo,
ao criar uma trama em ambientes inóspitos, os quais italianos e seus descendentes
sonharam, sofreram, mas venceram todas as adversidades. Projetar-se-ia, assim, uma
representação da identidade capixaba fundada nos italianos trabalhadores e
vencedores. Há de se ressaltar, por outro lado, que não se observa uma produção
literária de imigrantes ou descendentes de outras etnias participantes do processo
colonizador do estado com o mesmo volume da produzida sobre os italianos e
descendentes. Também se pode considerar que outros fatores, tais como a fundação
de associações culturais italianas e o número de representantes políticos eleitos nos
últimos cinquenta anos no Espírito Santo, auxiliaram na construção dessa narrativa.
416

414
Assim, José Teixeira argumenta o recurso a Luiz Serafim Derenzi: “Procurando elucidar o contingente de
progresso trazido ao Espírito Santo pelos imigrantes europeus, pedimos ao Dr. Luiz Derenzi – que conhece o tema
e dá os últimos retoques a um livro sobre a imigração italiana – resumisse algum aspecto do seu trabalho, a ser
publicado dentro em breve.” Ibid., p. 345. Provavelmente, a obra a que se refere José Teixeira é: DERENZI, Luiz
Serafim. Os italianos no Espírito Santo. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1974.
415
Segundo a autora: "Em 1840, chegou à Colônia de Viana, Giuseppe Balestrero, primeiro italiano a fixar-se no
Espírito Santo. [...] Veio parar no Espírito Santo, atraído parece pelas notícias resultantes ainda da propaganda
feita pelo Governador Francisco Alberto Rubim. [...] Dedicou-se à cultura do café e de cereais, além da criação de
gado. Seus numerosos descendentes colaboram ainda em diversos ramos da vida social, industrial, agrícola e
econômica do Espírito Santo." NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial
do Espírito Santo, 1964. p. 188.
416
DADALTO, Maria Cristina. O discurso da italianidade no ES: realidade ou mito construído. Pensamento
Plural – Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPEL, Pelotas, n. 03, 2008, p. 148.
156

A autora analisa, por exemplo, o romance Karina417, de Virgínia Tamanini, no qual os


imigrantes italianos se deparam com a obra de desbravamento das florestas em direção ao
interior do Espírito Santo. E, nesse ponto, evidenciamos o segundo aspecto a ser observado
nessa abordagem dos autores sobre os imigrantes. O lugar que obtiveram nas narrativas
históricas do Espírito Sano está vinculado, justamente, ao de romper a “barreira verde” e
“superar o atraso”, ou seja, a dificuldade de penetração territorial característica do período
colonial, na qual também se inserem os indígenas.

José Teixeira de Oliveira, ainda que tenha relativizado o papel dos imigrantes, insere a chegada
deles no mesmo contexto de controle daqueles que ele interpretou como obstáculos do
desenvolvimento espiritossantense. Segundo o autor, dentro do tópico intitulado “início de uma
nova era”, a conquista e controle sobre os indígenas, e posteriormente, a chegada dos imigrantes
europeus constituiriam avanços do Espírito Santo. Avaliando a Província na década 1840, o
autor argumentava que “ganhava impulso animador a domesticação dos índios, sendo de notar
a criação – em 1845 – do aldeamento denominado Imperial Afonsino.” E, dois anos mais tarde,
em “1847, foi reencetado o encaminhamento de europeus para as terras capixabas” quando
“instalou-se a Colônia de Santa Isabel, seguida, em 1857, pela de Santa Leopoldina e outras
[...].”418

Dentro da narrativa histórica do progressivo desenvolvimento, portanto, o lugar destinado ao


colono europeu correspondeu ao que Vânia Moreira chamou, como vimos, de “problema
indígena.” A lembrança do papel da imigração corresponde a eliminação do indígena:

[...] recentemente foi publicado pelo Arquivo Público do Estado do Espírito Santo o
relatório do cônsul Carlo Nagar sobre a colonização italiana no Espírito Santo. Escrito
em 1895, o relatório consular é uma importante fonte para a pesquisa do processo de
colonização e imigração, fato, aliás, ressaltado na apresentação escrita por Agostino
Lazzaro. Contudo, na mesma apresentação podemos ler que ‘a imigração italiana,
germânica e polonesa, entre outras, teve como objetivo primordial, no Espírito Santo,
a colonização e o povoamento do grande vazio demográfico que era seu território no
século XIX.' [...] Como em um passe de mágica, as exuberantes florestas habitadas

417
TAMANINI, V. Karina. Brasília, [s.e.], 1981. Sobre essa obra e o mito da italianidade no Espírito Santo,
conclui Maria Cristina Dadalto: "[...] possibilita a configuração de uma narrativa do discurso de um povo que
enfrentou todas as dificuldades, que sofreu vendo filhos, pais, amigos morrendo por problemas de saúde, mordidas
de animais, mas que venceram esse desafio e encontraram a Terra Prometida. [...]Estas considerações oferecem,
assim, a possibilidade de refletir como a história contada por italianos, transmitidas na literatura produzida, apoiada
nas ações realizadas e conhecidas por sua divulgação e difusão na sociedade, compõe-se como elemento indicativo
a constituir e a cristalizar o discurso fundador do mito da italianidade na identidade capixaba.” DADALTO, Maria
Cristina. O discurso da italianidade no ES: realidade ou mito construído. Pensamento Plural – Revista do
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPEL, Pelotas, n. 03, 2008, p. 162.
418
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 333-334.
157

pelos índios tornaram-se, com a chegada do colono europeu, florestas vazias de gente,
graças ao poder imagético do conceito de ‘vazios demográficos’. 419

Em relação ao Espírito Santo, ela argumenta que esse discurso elimina a presença de uma vasta
população indígena no século XIX420 suprimida nas narrativas. Nesse sentido, cabe, então,
compreendermos como os indígenas foram alçados à condição de principal obstáculo da
trajetória do desenvolvimento do Espírito Santo.

3.2.1 OS ÍNDIOS NA HISTÓRIA DO ESPÍRITO SANTO: O INIMIGO DE TODAS AS


HORAS.

Na narrativa histórica construída por José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de
Novaes, os indígenas alcançaram um lugar ímpar, tornando-se o principal inimigo do
desenvolvimento da obra colonizadora. A representação indígena nas obras evidencia a
oposição ao progresso que definiu o lugar dos índios no passado do Espírito Santo.

Observemos, a princípio, a importância que os autores atribuem a dois personagens do período


colonial no Espírito Santo. A saber, Diogo Morim e Miguel de Azevedo. Maria Stella de
Novaes, ao narrar a batalha travada entre colonizadores e indígenas no Rio Cricaré ao norte da
Capitania chama a atenção para o papel de Diogo Morin:

A revolta, portanto, não se fez esperar e, nessa peleja, morreu no Cricaré, Fernão de
Sá, filho do Governador Geral do Brasil, viera auxiliar a defesa do Espírito Santo.
Surgiu, porém, a valorosa figura de Diogo Morim que, após grandes esforços,
conseguiu reanimar os colonos e reuni-los, em número de sessenta e oito, para
combater o gentio.
Basílio Daemom refere-se a Diogo de Morim, combatendo no Cricaré, durante alguns
meses. Assumira o comando da expedição após a morte de Fernão de Sá, e dirigiu-se
para a Vila da Vitória que estava ameaçada e, até, saqueada, o que forçara o Donatário
a pedir auxílio ao Governador Geral. [...]
Após a derrota dos índios, Mem de Sá escreveu à Rainha Da. Catarina, para comunicar
a vitória sobre os silvícolas, a morte do seu próprio filho e a contribuição intrépida de
Diogo de Morin.421

419
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 100.
420
Sobre o equívoco do conceito de vazio demográfico Vânia Moreira argumenta: “É um grande equívoco definir
o território do Espírito Santo do século XIX como um enorme ‘vazio demográfico’, totalmente disponível à ação
colonizadora oficial e aos novos imigrantes. Ao contrário, no início do século XIX a região possuía expressiva
população indígena para os padrões da época. Existiam, na capitania, não apenas os chamados ‘índios bravos’ ou
‘tapuias’, representantes das tribos puri, coroado, botocudo e outras, mas também os denominados ‘índios mansos’,
‘domesticados’ ou ‘civilizados’, isto é, aqueles pertencentes às tribos tupiniquim e termiminó, que, desde os
tempos das missões jesuíticas (1551-1760), estavam semi-integrados à modesta vida social luso-brasileira.” Ibid.,
p. 100.
421
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
32-33.
158

José Teixeira de Oliveira, por sua vez, sobre essa relação de combate entre o elemento
colonizador e os índios, destaca o papel de Miguel de Azevedo, que governou durante o breve
período em que a capitania esteve sob a responsabilidade de Luiza Grimalda, viúva de Vasco
Fernandes Coutinho Filho. O autor observa que ele presenciou “dois grandes fatos”, um foi a
morte de José de Anchieta, e o outro:

Chefiou, no ano de 1594, uma grande bandeira punitiva contra os goitacazes, que
obstavam a instalação dos cristãos no sul da capitania. Ferozes e em grande número,
grupos daquelas tribos faziam constantes incursões nas propriedades dos que
buscavam as regiões do seu predomínio, talando vidas e benfeitorias. O capitão-mor
se fez acompanhar ‘por Antônio Jorge e João Soares, homens experimentados em
correrias, e dos moradores que com mais frequência tinham sofrido crueldades’. [...]
Cronistas e historiadores são unânimes em afirmar ‘que daí em diante deixaram esses
selvagens de surpreender e atacar os habitantes da Capitania.’ 422

Os dois personagens, tal como os jesuítas e os imigrantes, tomam lugar na narrativa em função
das relações estabelecidas com os indígenas. Nesse caso, pelo combate aos selvagens, perigosos
e inimigos indígenas.

A importância atribuída à trajetória de superação do atraso definida como linha condutora do


sentido do passado espiritossantense nas obras aqui analisadas determinou uma hierarquia de
posições na qual, por sua vez, instituíram os indígenas como um dos principais obstáculos ao
progresso do Espírito Santo. Ou seja, a representação construída acerca dos índios corresponde
às narrativas do atraso e a da superação: o período colonial foi o da origem do atraso, e os
indígenas foram o principal obstáculo. O século XIX, interpretado como a gênese do processo
de superação, foi marcado nas narrativas tanto pela manutenção dos índios como empecilhos
ao progresso como também pela “superação” do indígena na história do Espírito Santo,
silenciados nas narrativas em detrimento dos acontecimentos e personagens símbolos do
desenvolvimento.

O índio, “pesadelo constante, inimigo de todas as horas”423 foi caracterizado como um dos
principais fatores da não-realização da capitania, em termos de desenvolvimento. A imagem
dos indígenas foi, ao longo das narrativas, tecida sob a perspectiva do colonizador. Foram
interpretados por meio de dicotomias “bons” versus “maus” ou “colaboradores” versus

422
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 112.
423
Ibid., p. 55.
159

“inimigos”, o que implicou numa série de referências que os identificavam como obstáculos,
barreira, empecilhos, opositores de um projeto que deveria ser realizado.

De acordo com Maria Regina Almeida, a interpretação sobre os índios na história do Brasil
esteve vinculada à perspectiva do colonizador.424 E, ao longo do tempo, na historiografia
brasileira, o lugar dos indígenas foi marcado pela manutenção de uma representação:

Desde a História do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagem (1854) até um


momento bastante avançado do século XX, os índios, grosso modo, vinham
desempenhando papel muito secundário, agindo sempre em função dos interesses
alheios. Pareciam estar no Brasil à disposição dos europeus, que se serviam deles
conforme seus interesses. Teriam sido úteis para determinadas atividades e inúteis
para outras, aliados ou inimigos, bons ou maus, sempre de acordo com os objetivos
dos colonizadores.425

O indígena, dentro da galeria de personagens da história do Espírito Santo, insere-se no


conjunto de grupos e indivíduos pertencentes à categoria de inimigos, identificados, sobretudo,
com a imagem do atraso. No entanto, seguindo essa lógica interpretativa, encontramos também
personagens indígenas que passaram a frequentar essa galeria histórica no papel de aliados,
definidos como “colaboradores” da colonização.

Tais indígenas ganharam uma posição de destaque justamente por representarem a preocupação
dos autores em buscar no passado um lugar e um papel para o Espírito Santo no contexto da
história nacional. Nesse sentido, tal como Maria Ortiz, esses indígenas foram diferenciados
pelos serviços prestados aos colonizadores. Maracaiguaçu e Arariboia, diferentemente da
maioria dos grupos indígenas, passaram a frequentar a categoria dos heróis da história do
Espírito Santo, não pela resistência, mas pelo papel que desempenharam na contribuição ao
elemento colonizador, mais especificamente, na defesa contra as invasões sofridas pela colônia
portuguesa.426Mesmo que não seja uma abordagem ampla e esclarecedora das experiências de

424
Segundo Maria Regina Almeida: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 com
a intenção de criar uma história do Brasil que unificasse a população do novo estado em torno de uma memória
histórica comum e heroica, iria reservar aos índios um lugar muito especial: o passado. Nessa história, os índios
apareceriam na hora do confronto, como inimigos a serem combatidos ou como heróis que auxiliavam os
portugueses. ALMEIDA, Maria Regina. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 17.
425
Ibid., p. 13.
426
Na História do Espírito Santo, de Maria Stella de Novaes encontramos uma menção a outro indígena que não
se vinculou a essa defesa do território e expulsão dos invasores. A autora destaca a figura do índio Guido
Prockrane: “Com justiça, devemos inserir aqui uma nota sobre o chefe índio botocudo Guido Prockrane que
faleceu, no Rio Doce, em 1843, Soldado da Segunda Companhia da Montanha e diretor da Aldeia dos Índios, do
Manhuaçu, no Caeté, prestou valiosos serviços à catequese e civilização dos seus irmãos. Auxiliado pelo Tenente
Guido Tomás Marliére, seu padrinho de batismo, que o educou, pela retidão de sua conduta elevou-se à estima e
ao respeito de sua tribo e de outras vizinhas.” NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória:
Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 192.
160

ambos, é nítido o contraste entre a presença deles com os demais indígenas na narrativa.
Maracaiguaçu aparece na narrativa sendo primeiramente ajudado por Vasco Fernandes
Coutinho devido ao ataque de índios tamoios e franceses, por seu propósito de tornar-se cristão
e, sobretudo, por ter combatido os franceses no ano de 1558, o que definira, portanto, “os bons
entendimentos que presidiam as relações entre os colonos e a gente de Gato Grande”
(significado de Maracaiaguaçu).427

Mas é Arariboia que surge como herói representativo da colonização do Espírito Santo na
defesa do Brasil. Neida Lúcia ressalta o caráter heroico nas qualidades atribuídas ao indígena:

As crônicas portuguesas da época contam bem o heroísmo do índio e os seus feitos de


guerra. Contam que ele foi o vencedor do terrível tamoio, na Guanabara e mesmo fora
dela. E vencedor que aterrava o inimigo pela sua coragem e arrojo.” (p. 23)
Seguindo a narrativa sobre Arariboia, a autora evidencia a fala de um governante do
Rio de Janeiro em uma cerimônia: 'O grande Arariboia, aquele a quem tanto deve
Portugal; o tacape mais valoroso desta parte da América. Garantiu o brilho das armas
portuguesas nos famosos encontros de Paranapicuí e Uruçumirim, pelos tempos de
fundação do Rio de Janeiro, isso, sem falar das campanhas de Cabo Frio. Escudo vivo
Del-rei.'428

Assim os insere Maria Stella em sua narrativa:

[...] A expedição para combater Villegaigon saíra da Bahia de Todos os Santos, a 16


de Janeiro de 1560; fundeou na Guanabara a 21 de fevereiro. Levou do Espírito Santo
um contingente de índios-flecheiros, apesar de estarem os moradores temerosos dos
índios dos franceses. Rocha Pombo e outros historiadores registram que, nessa viagem
do Governador Geral, Maracaiguaçu, incorporou-se à expedição. De acordo com
Simão de Vasconcelos, o chefe Arariboia foi, igualmente, ao Rio de Janeiro na mesma
ocasião.
Dado o valor dos índios flecheiros desta Capitania, sempre atenta a auxiliar a defesa
do Brasil, não se pode desprezar a ideia nas duas viagens do intrépido Arariboia, o
bravo auxiliar dos colonizadores, - no Espírito Santo e no Rio de Janeiro (onde
nasceu). [...]429

O lugar do Espírito Santo surge, então, dessa participação. A Capitania colaborou,


principalmente com índios flecheiros sob o comando de Arariboia:

Seguiram, de fato, muitos índios flecheiros, sob o comando de Arariboia, que,


segundo já escrevemos, durante quatro anos, muito auxiliou no combate aos franceses.
Colaborou, assim, na fundação da cidade do Rio de Janeiro, e, pelos seus méritos, foi

427
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 82, destaque do autor.
428
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 23-24.
429
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
34-35.
161

nomeado Cavaleiro de Cristo, com uma tença de 12$000 e uma sesmaria, em Niterói,
onde fundou uma aldeia. 430

José Teixeira de Oliveira completa essa visão, na qual o indígena surge numa situação
reverenciada pelo autor, ou seja, na ajuda prestada pela capitania do Espírito Santo à do Rio de
Janeiro em 1561:

Aludimos ao auxílio prestado pelo Espírito Santo a Estácio de Sá na empresa que


culminou na expulsão dos franceses da Guanabara e fundação da cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro, depois capital do Brasil. A colaboração que a capitania
de Vasco Coutinho dispensou a este episódio da consolidação da hegemonia
portuguesa no Brasil se inscreve entre as mais belas e eloquentes demonstrações de
acuidade política e solidariedade fraternal do período colonial.431

É nesse contexto que o autor insere Arariboia:

De Arariboia, comandante de duzentos temiminós que o Espírito Santo mandou à luta


contra os franceses de Villegagnon, não é necessário dizer mais que isto: ele e os
flecheiros que tinha junto de si decidiram da sorte dos intrusos.432

Constatamos que José Teixeira, Maria Stella e Neida Lúcia atribuem um significado reduzido
e simplista (aliados de uma causa portuguesa) à atuação de Arariboia e dos temiminós. Estes
foram interpretados em função do papel que caberia ao Espírito Santo no contexto da
colonização portuguesa no Brasil, desconsiderando, deste modo, a complexidade de relações
que se estabeleceram entre índios e colonizadores, conferindo um significado aos indígenas
aliados da obra colonizadora, no qual Arariboia aparece como representante.433 No entanto, na
narrativa do progressivo desenvolvimento, a imagem indígena correspondeu a um outro lugar.

430
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
36.
431
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 101.
432
Ibid., p. 102. José Teixeira de Oliveira apresenta, assim, a colaboração do Espírito Santo: “Poderoso exército de
reserva, utilizado em numerosas ocasiões principalmente contra o invasor estrangeiro – aqui e alhures, no período
colonial – coube aos índios catequizados do Espírito Santo fornecer quinhentos dos seus melhores filhos para a
fundação da aldeia de São Pedro, origem da atual cidade de Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro. Isto se deu
em 1617, quando, expulsos os holandeses e ingleses que tentavam ali estabelecer-se, os portugueses julgaram de
bom aviso instalar na região gente de sua confiança.” Ibid., p. 122.
433
Maria Regina de Almeida chama a atenção para o dinamismo das interações entre europeus e indígenas: “As
informações imprecisas e muitas vezes contraditórias dos documentos não nos permitem acompanhar passo a passo
a trajetória dos temiminós, nem tampouco a de Arariboia, sobre a qual as controvérsias são inúmeras. Não é
possível sequer saber ao certo quando teria regressado ao Rio de Janeiro. Porém, muito mais do que buscar
verdades sobre a trajetória de Arariboia ou dos temiminós, importa reconhecer nessas informações as
possibilidades de rearticulação e construção de alianças, inimizades e identidades que iam surgindo nas diversas
situações, sobretudo em épocas de guerras intensas, como as da costa brasileira em meados do século XVI.”
ALMEIDA, Maria Regina. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p.60-61.
162

O que prevaleceu foram representações imagético-discursivas que evidenciam o lugar de


obstáculo ao progresso instituído sobre os indígenas. Maria Stella de Novaes apresenta uma
interpretação similar ao falar do princípio da colonização considerando que exigia de Vasco
Fernandes Coutinho “previsões contra inimigos internos e externos”, dentre eles, o índio.434
Neida Lúcia, por sua vez, avalia as dificuldades do Espírito Santo em sua origem:

Ia começar a dolorosa adaptação, a luta sem intervalos, a vigília permanente, com o


desconhecido sufocando anseios[...] A mata começava na praia e não se interrompia
ao surgir a cordilheira. Em cada volta o inimigo, ora com a forma de uma fera, ora
representado por uma doença, ora encarnado na figura do índio. 435

Constatamos, assim, o espaço reservado ao indígena. Ao realizar a comparação entre o Espírito


Santo e outras capitanias, José Teixeira de Oliveira argumenta:

Outras donatarias exibiam mais riquezas, mas, por certo, em nenhuma outra as
condições haviam sido mais adversas à implantação do homem europeu. Aqui, a
floresta espessa – verdadeira fortaleza oposta às tentativas de penetração – era, mais
que qualquer outro acidente de qualquer outra parte do Brasil, uma barreira a
contrariar e esmagar os planos de conquista, não só pela sua pujança inigualável, mas,
e principalmente, pelo inumerável gentio que abrigava. Decênios, séculos decorreriam
até que o homem branco pudesse palmilhar – sem o temor mortal dos primeiros
tempos – o território que ficava além das praias marítimas.436

Se Maria Stella os qualificou de “inimigos internos”, José Teixeira evidencia a barreira que
dificultou o desenvolvimento do Espírito Santo, destacando, inclusive, a especificidade local,
o diferencial negativo da Capitania em relação às demais: a presença do índio. Seguindo a
perspectiva da trajetória de progresso espiritossantense, a obra colonizadora deveria representar
o desenvolvimento do Espírito Santo em sua origem, porém, os indígenas eram a dissonância a
esse propósito. Neida Lúcia, Maria Stella e José Teixeira desconsideraram a resistência desses
atores. Esse não reconhecimento implica, segundo Almeida, na cristalização de uma imagem
acerca de certos grupos indígenas:

Alguns desses grupos foram especialmente aguerridos e tornaram-se bastante


conhecidos pelas descrições extremamente negativas e estereotipadas, como os caetés,
os potiguaras, os Goitacazes e os terríveis aimorés que, a partir do século XVIII, foram
sendo chamados de botocudos.437

434
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
18.
435
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. p. 15.
436
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 18.
437
Ibid., p. 47.
163

A narrativa histórica reforçou estereótipos. A representação de inimigos e obstáculo do


desenvolvimento constituiu-se por meio dos eventos narrados e nas qualificações negativas.
Identificamos os indígenas no contexto de chegada e fixação do colonizador e,
consequentemente, do desenvolvimento do Espírito Santo. Assim, foram representados na luta
contrária ao estabelecimento do elemento português. As ações dos grupos indígenas não eram
tratadas como resistência, mas lhes foi atribuído o significado de barreira. A própria chegada
dos colonizadores retrata esse perfil elaborado sobre os indígenas. Segundo Maria Stella de
Novaes:

Senhor Absoluto daquela Natureza incógnita, o índio enfrenta o colonizador de sua


terra estremecida. Arcos, flechas, lanças e outras armas, ao seu dispor, são manejadas
contra as balas, que rompem a folhagem e os canhões troantes abordo, até que,
aturdido, o aborígene afasta-se para as matas distantes, enquanto o lusitano, decidido,
pisa nas terras de suas esperanças.438

Teixeira narra esse momento também fazendo alusão à noção de impedimento:

O primeiro contato com a terra revelou os tropeços que aguardavam aquele pugilo de
aventureiros: os índios preparavam uma recepção nada cordial. Postando-se armados
em grupos na praia, mostravam-se dispostos a impedir o desembarque. Alguns
disparos das peças de bordo, porém, anularam a pretensão, afugentando-os para a
floresta.439

A ausência de cordialidade por parte dos indígenas marcava, assim, o primeiro momento e
contato entre estes, os inimigos, e os portugueses, os pioneiros e realizadores do projeto de
construção do Espírito Santo. Desconsiderando a existência de um processo de conquista e
colonização, a narrativa acerca do contato define o papel reservado aos indígenas, como a
dificuldade a ser superada, tanto que Teixeira argumenta que “as duas grandes tarefas”
reservadas aos colonizadores eram as de “cultivar a terra e conquistar o coração do íncola.”440
A construção da imagem do indígena na história capixaba efetivou-se, assim, por meio dessas
referências que demarcavam o lugar de obstáculo.

Esses atores receberam uma série de alusões a características negativas. Terror, ameaça e
ferocidade caracterizaram as qualificações e adjetivações nessas situações narradas. Maria
Stella de Novaes, ao relatar uma batalha travada entre os colonizadores e índios goitacazes, em
1594, ressalta que estes eram “destros nos arcos, inimigos de todos, ferozes e gigantes” e tinham

438
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
15.
439
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 35.
440
Ibid., p. 39.
164

“predicados para a luta.”441José Teixeira também qualificava os “inimigos de todas as horas” a


partir da dicotomia entre atraso e progresso, que marcara a interpretação sobre o Espírito Santo
colonial:

No Espírito Santo, sua atuação vinha sendo de franca hostilidade ao branco. As


eventuais tréguas entre as duas sociedades nada mais pressagiavam, nesta faixa
litorânea, que maior ameaça futura, quiçá golpe mortal, por parte dos belicosos
habitantes da floresta.442

Associados, então, à guerra, avessos e hostis à obra colonizadora, os indígenas foram


construídos nessa trajetória capixaba condicionados aos prejuízos do Espírito Santo,
correspondendo à imagem negativa constituída acerca do período colonial. Se as ausências de
Vasco Fernandes Coutinho foram interpretadas como danosas para o desenvolvimento da
Capitania, os indígenas lá estavam:

Muito perdeu a Vila de Nossa Senhora da Vitória, na ausência do donatário, porque


os tupiniquins, aliados aos goitacás, serrearam os colonizadores, queimaram os
engenhos e as fazendas; atacaram a flechadas Dom Jorge de Menezes e seu substituto
Simão Castelo Branco[...] Cercada a Vila, seus moradores viram-se obrigados a
abandoná-la; passaram para a Ilha de Duarte de Lemos. Foram alguns para as
capitanias vizinhas.443

José Teixeira de Oliveira também narra esse evento, resumindo o que ele definiu como “índios
x brancos”, denominando tal relação como “carnificina”. Nessa perspectiva, encontramos na
conclusão do capítulo “Trabalho, sangue e ruínas” a presença do indígena como responsável
pela condição de “sombras e ruínas” da capitania:

Os que não morreram em combate – restrita minoria – fugiram aterrorizados para as


capitanias vizinhas ou pereceram transviados na floresta. Os silvícolas reduziram o
trabalho de mais de um decênio a pouco mais de uma tapera.[...] O 'vilão farto' de que
tanto se orgulhava o donatário, convertera-se em ruínas, depois de ter sido a terra da
dor e da morte para os que teimavam em salvá-la.444

441
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
51.
442
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 49.
443
Ibid., p. 21.
444
Ibid., p. 59. A noção de hostilidade e ameaça foram as que prevaleceram na interpretação sobre o elemento
indígena. Sobre as dificuldades de Vasco Fernandes Coutinho, Teixeira assim retrata as circunstancias vividas pelo
primeiro donatário do Espírito Santo: “Assim pôde manter os íncolas à distância até fins de 1557, quando,
“persuadido de suas poucas forças, e queixas dos povos”, apelou para o governo da Bahia, pedindo auxílio para
dar combate aos selvagens. Suas cartas chegaram à cidade do Salvador pouco antes ou nos dias mesmo em que
Duarte da Costa transmitia o cargo ao sucessor. Lá está, no Instrumento dos Serviços de Mem de Sá, muito bem
contado o que ocorreu: ‘Como me deram posse do governo logo me deram cartas de Vasco Fernandez Coutinho
capitão da capitania do Espírito Santo em que dizia que o gentio da sua capitania se levantara e lhe fazia crua
guerra e lhe tinha mortos muitos homens e feridos e que tinham cercado a vila/ onde dias e noites os combatiam’.
Era, como se vê, de extrema gravidade a situação. Além de muitos mortos e feridos, o donatário e sua gente
165

Neida Lúcia os inseriu, também, como impedimento à interiorização e à busca de riquezas na


capitania. Ao falar da única possibilidade de progresso aberta no século XVIII no Espírito
Santo, devido ao bloqueio determinado pela Coroa, a autora argumenta que o empreendimento
foi impedido devido aos índios:

Foi no início da segunda metade do século, em 1757. A mineração do ouro, descoberto


em Castelo, na bacia do Rio Itapemirim, foi permitida, apesar de veemente
condenação do governo da Bahia. Esse, entretanto, tinha outros aliados. Os índios
destruíram a povoação nascente.445

A apreciação acerca do índio como um perigo à colonização chegou a definir mesmo a


argumentação acerca do nome da Ilha de Vitória. Independente do debate e das interpretações
sobre esse tema, o triunfo dos colonos sobre os indígenas tornou-se referência para a origem da
nomeação da Ilha:

Esse fato, que alguns historiadores do Espírito Santo consideram ‘mentira histórica’,
ou simples tradição, é encontrada nos trabalhos de Daemon, Amancio Pereira,
Teixeira de Melo e outros, como origem do nome Vitória, para a capital do Espírito
Santo. Alberto Lamego, por exemplo, diz: - ‘Atacada pelos índios e sendo repelidos,
após mortífero combate, deu-se à povoação o nome de Vitória.’ Igualmente, a Vitória
sobre os índios é registrada, em quase todos os autores, pelo fato de terem-se afastado
em definitivo e deixado os colonizadores, em paz.[...]
Portanto, o que se deu, ao certo, a 8 de setembro de 1551, em relação à Vila Nova,
não foi sua fundação, sim a consagração da matriz a Nossa Senhora da Vitória. E, de
acordo com os cronistas, a mudança do nome para Vila da Vitória, em atenção ao
valor, brilhantes feitos e gloriosa vitória que alcançaram os povoadores, ficando até
hoje esse nome, que, por Decreto de 18 de março de 1823, foi confirmado, ainda na
criação da cidade.
Tem, portanto, a Capital do Espírito Santo honrosa fé-de-ofício, um passado heroico,
bastante para justificar o seu batismo e atestar o valor de seus fundadores. 446

O conjunto de característica atribuídas aos indígenas, dessa forma, aparece em oposição aos
responsáveis pela obra colonizadora. Hostilidade, animosidade, perigo e terror constituíram o
perfil desse grupo. Na narrativa do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo não existiu
lugar para a diversidade e reconhecimento das diferentes experiências vivenciadas por esses
sujeitos no passado.

estavam cercados em Vitória, beirantes da rendição.” OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do
Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1975. p. 83, destaque do autor.
445
MORAES, Neida Lúcia Borges. O Espírito Santo é assim. Rio de Janeiro: [s.n.], 1971. 31 ; Maria Stella de
Novaes observa que não só as proibições da Coroa tornaram-se impedimentos para a interiorização do Espírito
Santo no período colonial, mas também os índios eram interpretados como barreira. Segundo Maria Stella de
Novaes: “1771 – Houve, nesse ano, pavorosa luta, entre puris e os mineradores, no Castelo. Foram os habitantes
obrigados ao abandono do lugar. Desceram para o Baixo-itapemirim e deixaram as minas de Sant’Ana do Castelo.”
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p. 98.
446
Ibid., p. 24-25.
166

Os indesejáveis indígenas também figuraram como o obstáculo a ser superado. O que ocorreu
na própria escrita da história. Segundo Cristiane Portela, essa questão permeia a própria história
da historiografia brasileira:

Se considerarmos que, no Brasil, desde a criação do Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro (IHGB), no século XIX, até meados do século XX predominou uma
perspectiva tradicional que considerava as sociedades indígenas como inferiores e
destituídas de história, e que a superação dessa tendência só veio com a interpretação
marxista a partir da década de 1960 (na qual o ‘apagamento’ da história indígena foi
tão grande quanto), constata-se, não sem admiração, a ausência historiográfica do
indígena em praticamente toda a história do Brasil. 447

Nas narrativas analisadas, o século XIX surge como o início de uma trajetória de superação do
Espírito Santo e identificamos que os autores, além de se limitarem a reproduzir a imagem da
hostilidade, extinguiram os indígenas da narrativa histórica.

Primeiramente, foram interpretados também como obstáculo à penetração territorial no século


XIX. Maria Stella de Novaes evidencia que o governador Silva Pontes no início buscou criar
destacamentos militares uma vez que “os botocudos, ferozes e indomáveis, atacavam as
fazendas e matavam os colonizadores.” Como registra a autora, ao citar a dificuldade desse
Governador em constituir a ligação entre o Espírito Santo e Minas Gerais via Rio Doce: “Em
pouco tempo, a Aldeia de Coutins foi visitada pelos botocudos que mataram um soldado e
correram com os outros.”448

Nesse período, o empecilho para a ligação entre Espírito Santo e Minas Gerais eram os índios
botocudos. Ou seja, na visão dos autores, a grande dificuldade surgida nesse projeto era a de
povoar a região, e, novamente, o indígena surgia em prejuízo ao desenvolvimento. Na passagem
para o período Imperial, José Teixeira de Oliveira evidencia mais uma vez a dificuldade de
penetração e povoamento do interior responsável pela ligação com as Minas Gerais, o que era
visto como necessário para o progresso da região, mas que tiveram nos “inimigos de todas as
horas”, os “temíveis silvícolas” os responsáveis pela não realização do projeto:

A existência de numerosas tribos de botocudos na região atravessada pela estrada


Espírito Santo-Minas era a causa principal do seu abandono. Em verdade, os temíveis
silvícolas não eram simples tema literário. Enchiam de pavor mesmo aos habitantes
das vilas e até os da Capital, pois visitavam frequentemente as lavouras situadas nas
proximidades daquelas povoações, depredando e matando. A correspondência dos

447
PORTELA, Cristiane de Assis. Por uma história mais antropológica: indígenas na contemporaneidade. In:
Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 12, n. 1, p. 151-160, jan./jun. 2009.p. 154.
448
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
106.
167

presidentes, de quando em vez, acusa o terror que os índios inspiravam, prejudicando


todas as tentativas de penetração.449

Esse perigo representado pelos indígenas aparece ainda na abordagem de Maria Stella de
Novaes quando a autora ressalta a preocupação em se criar defesas contra os ataques daqueles
quem a autora classificou como inimigos internos. Ao caracterizar o Espírito Santo em inícios
do século XIX, Novaes identifica como sintoma da dificuldade de desenvolvimento da
Capitania a fixação dos colonizadores restrita ao litoral, e que as buscas pela interiorização eram
dificultadas pela presença do indígena. Apareciam, portanto, como responsáveis pela formação
de quartéis, criados com o objetivo de combate aos inimigos do progresso. Segundo a autora:

A fim de prevenir as devastações feitas pelos índios, que chegaram a descer até os
lugares próximos da Vila da Vitória, e invadir as fazendas, nas margens do Rio Santa
Maria da Vitória e na Freguesia da Serra, o Governo, pelo Decreto de 18 de agosto de
1810, criou, na Capitania, um batalhão de Artilharia Miliciana, definitivamente
organizado, a 1º de dezembro. Recebeu um parque de campanha, arma que os índios
mais temiam.450

Os indígenas definiam essa dinâmica de estabelecimento e expansão de um aparato militar, que


foi registrado pela autora também em função dos ataques das tribos. Segundo ela, “ainda em
1810, para o mesmo fim de combater os índios criou-se um posto militar, o Quartel de
Bragança.”451 E, registra que, em 1813, eles:

atacaram os quartéis de Aguiar, a 19 de fevereiro de 1813; de Linhares, a 31 de março,


o sertão de Iconha, em Benevente, a 29 de maio; a povoação de Linhares, a 16 de
agosto; e ainda o Porto do Sousa, a 30 de setembro. Morreram igualmente alguns
defensores. [...] Foi esse o motivo por que, no mesmo ano, foram desdobrados os
destacamentos da Capitania [...].452

Os autores, portanto, reproduzem a imagem de hostilidade atribuída aos indígenas. A


construção de quartéis aparece simplesmente como exemplo da necessidade de proteção à
postura dos “inimigos” do processo de interiorização. No entanto, ao observarmos que os
indígenas são excluídos da história do Espírito Santo a partir desse momento nas obras,
identificamos que eles cedem lugar aos fatos e personagens selecionados para a composição da
narrativa da superação do atraso.453Comparativamente, podemos observar a percepção de Silva

449
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito
Santo, 1975. p. 320.
450
Ibid., p.111.
451
NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, 1964. p.
112.
452
Ibid., p. 112-113.
453
"[...] a política seguida por Silva Pontes de abertura do rio Doce à navegação e ao povoamento significou,
segundo Teixeira, uma verdadeira ‘revolução’. Segue o historiador apresentando outros fatos que promoveram a
lenta colonização da região, como criação de alguns quartéis e vilas. Contudo, tendo narrado as principais medidas
168

Pontes, personagem-símbolo do progresso na leitura dos autores, em suas impressões sobre os


índios. Segundo Vânia Moreira:

Para Silva Pontes, por exemplo, que assumiu a administração da capitania em 1800,
a presença indígena era não apenas inequívoca, mas um verdadeiro problema ou um
enorme transtorno. Definiu a situação do Espírito Santo como precária, pois ‘rodeada
de gentio inimigo todo o perímetro da colônia, desde a barra do Rio Doce, até o da
barra da Parayba do Sul, não se estranham os colonos para o centro do sertão.’ Preferia
a população viver, ao contrário, ‘em contínuo litígio, mas nunca deliberando-se a ir
formar estabelecimento, onde as matas estão sem dono, e a abundância abandonada
ao corpo do gentio’.454

Dessa forma, os autores assumiam uma postura de reprodução de atribuições negativas aos
índios, corroborando e fortalecendo uma imagem existente desde o período colonial. As
narrativas estabelecerem as categorias de “colaboradores” ou “inimigos” da obra da
colonização na interpretação dos diferentes sujeitos da história do Espírito Santo, e, para os
indígenas, essa dicotomia significou a apropriação de uma visão sobre eles instituída naquele
período. Para Tarcísio Silva, ao abordar a visão elaborada sobre os indígenas nas primeiras
décadas do século XIX:

[...] essa separação maniqueísta entre “índios bons” e “índios maus” pode levar-nos a
falsas considerações. Essa separação entre os índios é uma visão que pode ter suas
origens nas narrativas dos cronistas da época [...] ou, dizendo de outra maneira, é uma
construção que, sendo repetida, pode ter-se constituído num falso estatuto. 455

Corroborando esse autor, consideramos a avaliação de Vânia Moreira sobre os estereótipos


acerca dos indígenas, estabelecidos nos conflitos por eles vivenciados no passado e
reproduzidos ao longo do tempo:

Tais estereótipos foram, aliás, incorporados e reproduzidos por segmentos


importantes da intelectualidade da província no decorrer do século XIX.
Para o historiador Braz da Costa Rubim, em livro publicado em 1861, os botocudos
eram não apenas os maiores responsáveis pelo atraso da lavoura no interior, mas
também verdadeiros assassinos, bárbaros e antropófagos. As conclusões do
historiador não podiam ser, de fato, muito diferentes, já que sua metodologia de
pesquisa baseava-se na reprodução textual dos documentos oficiais de época.[...] ‘A
verdade histórica’ da segunda metade do século XIX era, portanto, inequívoca: os

do governador Silva pontes, o povoamento do rio Doce é descentralizado da sua análise, cedendo espaço para
outros fatos, certamente considerados por Teixeira mais importantes para caracterizar o progressivo
desenvolvimento do Espírito Santo." MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios
demográficos: guerra e chacinas no vale do rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de
História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 106.
454
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 101.
455
SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta Militar do Rio Doce: a posse da terra como um dos objetivos de conquista.
In: DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, n. 18. Vitória: Centro de Ciências Humanas
e Naturais – UFES, 2006, p. 308.
169

índios impediam o desenvolvimento da lavoura e não passavam de bárbaros


assassinos e canibais.456

Analisando as interpretações de José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e Maria Stella de


Novaes, consideramos que eles colaboraram, ainda após meados do século XX, para essa
(re)produção histórica acerca do papel e do lugar do indígena no passado no Espírito Santo,
bem como de sua exclusão, ao cristalizar e limitar sua presença ao período colonial.

Ao abordarmos diferentes atores individuais e coletivos que tiveram lugares e valores distintos
dentro da história do Espírito Santo apresentada pelos autores, consideramos, portanto, que a
seleção, classificação e ordenação de eventos e seus respectivos personagens – que compõem
as configurações narrativas –, são capazes de organizar a memória, de lembrar/esquecer, de
atribuir um sentido ao passado, e pode ser configurada em conformidade com poderes e
posições de poder.457 A narrativa histórica da superação do atraso elaborou um passado em
conformidade com o projeto de Espírito Santo gestado a partir de meados da década de 1950,
legitimando o discurso político da época. Assim, se a matriz política do discurso da superação
do atraso instituiu um modo de dizer sobre o Estado, a historiografia instituiu uma
discursividade sobre o Espírito Santo no passado e seus atores históricos.

Segundo Marc Ferro, o que ocorre com os personagens nas narrativas é o mesmo que se dá em
relação aos acontecimentos históricos. Ou seja, os atores históricos têm seu significado em
conformidade com os critérios e signos que legitimam a narrativa histórica. 458 A história
espiritossantense escrita sob o signo do progresso, teve como foco o desenvolvimento do
Espírito Santo o que definiu um roteiro de acontecimentos estruturantes e definidores do sentido
e, consequentemente, uma galeria de personagens em concordância ou não com esse sentido.
A história narrativa tradicional, como argumenta José Carlos Reis, caracterizou-se por ser uma
perspectiva com olhar de cima, a partir das elites políticas,459 o que para o Espírito Santo
configurou-se como a história dos propulsores do progresso.

456
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 121.
457
José Carlos Reis, analisando a relação entre historiografia e memória em Paul Ricouer, argumenta que as
configurações narrativas podem ser definidas como uma forma de “esquecimento manifesto” que “é exercido pela
memória manipulada. É um esquecimento estratégico, astucioso. (...) a configuração narrativa seleciona datas,
eventos, personagens e cria um esquecimento estratégico, que justifica poderes e posições de poder.” REIS, José
Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 41.
458
FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 15-17.
459
REIS, José Carlos. História e Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro:
FGV, 2003. p. 132-133.
170

Na construção de um enredo da história do Espírito Santo, constituiu-se uma trama histórica


em que se definiram lugares e papéis a diferentes atores tendo em vista o paradigma da marcha
progressiva do desenvolvimento espiritossantense. Por um lado, em consonância com a linha
ordenadora, com o sentido ascensional de sua trajetória, o Espírito Santo seria o herdeiro da
atuação de determinados protagonistas, assim, foram selecionados e mereceram destaques
certos governantes dos períodos colonial e imperial ou grupos como jesuítas e imigrantes,
evidenciados pelo papel de propulsores do progresso. Por outro, em desalinho ao sentido da
superação, estiveram os personagens representativos do atraso e dos obstáculos enfrentados
pelo Espírito Santo. Vasco Fernandes Coutinho, dentre outros governantes, como vimos, foi
situado na categoria de obstáculo. E, os indígenas, nesse caso, não correspondiam ao progresso
e ganharam um lugar depreciativo, caracterizados pela paulatina exclusão e apagamento nos
enredos dos autores.

Dessa maneira, diante do embate entre lembranças e esquecimentos, e sua implicação nas
hierarquizações e distinções realizadas por esta narrativa em relação a determinados sujeitos
históricos, percebemos, como reivindicou Vânia Moreira ao destacar o “problema indígena”, a
necessidade de uma ruptura com essas narrativas mestras orientadas pela noção da superação
do atraso.
171

4. CAPITÚLO IV - A NARRATIVA HISTÓRICA DA SUPERAÇÃO DO ATRASO NA


CONTEMPORANEIDADE: HISTÓRIA E OS USOS POLÍTICOS DO PASSADO.

O desafio historiográfico do Espírito Santo proposto neste estudo segue a orientação de uma
história da historiografia sob a perspectiva crítica. Nos preocupamos em demonstrar não só a
emergência de certa narrativa histórica mas também em avaliar como se efetivou o percurso de
produção de representações históricas acerca do Espírito Santo. Observamos que as obras
anteriormente analisadas elaboraram um roteiro da trajetória do progressivo desenvolvimento
do Espírito Santo. Esse enredo do passado local fundamentou, por sua vez, um conjunto de
obras que passaram a reiterar certas interpretações e a perpetuar determinadas representações
atribuídas a eventos, períodos e personagens históricos que podem ser identificados em
diferentes narrativas construídas a partir da década de 1970 no Espírito Santo.

André Pirola analisa as obras didáticas da História do Espírito Santo argumentando que elas
colaboraram com a construção de determinadas representações e, por abarcarem gerações de
leitores, constituíram uma forma de compreender a trajetória histórica do Estado. Segundo ele,
Neida Lúcia tornou-se referência na definição de um roteiro de leitura histórica do Espírito
Santo no que tange os textos didáticos. Por exemplo, as obras Pequena História do Espírito
Santo e Espírito Santo, esta é a sua terra, no Brasil, ambas de 1973, e a última adotada
oficialmente pelo governo e difundida nas escolas, caracterizam-se pela busca de transposição,
para a esfera didática, da narrativa presente na obra O Espírito Santo é Assim (1971).
Transferindo para os textos escolares a interpretação do atraso e do "Espírito Santo em marcha
para o desenvolvimento."460 Pirola identifica, assim, como conteúdos e representações do
passado foram apropriadas em diversas obras didáticas, caracterizando o que ele definiu como
a formação de um roteiro de leitura histórica.461

Nessa perspectiva, de acordo com André Pereira, entre os anos de 1980 e a primeira década do
século XXI, um conjunto de obras voltadas para o ensino de História, e mesmo acadêmicas,
reproduziram fatos históricos vinculados a uma determinada representação do passado local
com o propósito de demonstrar como o Espírito Santo foi prejudicado em sua trajetória, o que

460
PIROLA, André Luiz Bis. O livro didático no Espírito Santo e o Espírito Santo no livro didático: história
e representações. 2008. 265f. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória. 2008. p. 113-119.
461
Ibid., p. 120-200.
172

justificava o seu atraso em relação a outros estados. Em sua análise, ele evidencia que as obras
apresentavam a formação da capitania de Minas Gerais e o papel de "barreira verde"
determinado ao Espírito Santo pela Coroa Portuguesa como marco histórico negativo de seu
desenvolvimento. Na esfera acadêmica, ressalta a obra A formação econômica do Espírito
Santo (o roteiro da industrialização), e, também, os livros didáticos: Espírito Santo: minha
terra, minha gente; Espírito Santo: história e geografia; Espírito Santo, uma viagem de cinco
séculos; História do Espírito Santo: uma abordagem didática e atualizada, 1532-2002.462

A representação do atraso histórico foi reiterada ao longo do tempo. Complementando esse


cenário, além dessas referências, também no decorrer das décadas posteriores à década de 1970
até o início do século XXI, encontramos um conjunto de obras auto intituladas como "romances
históricos" que reforçaram um determinado lugar do período colonial assim como reproduziram
as imagens atribuídas a Vasco Fernandes Coutinho e aos indígenas. Eu vi nascer o Brasil, de
Renato Pacheco, O Capitão do fim, de Luiz Guilherme dos Santos Neves, Vasco Fernandes
Coutinho, de Alvarito Mendes, e Vasco: memórias de um precursor da globalização, narram a
trajetória desse personagem histórico do Espírito Santo seguindo o roteiro estabelecido pela
historiografia.463

Tendo a vida do primeiro donatário como condutora da narrativa, as obras traçam um panorama
da origem do Espírito Santo por meio das experiências de Vasco Fernandes Coutinho e,
seguindo o roteiro da "fundação do atraso" estabelecido pela historiografia, apresentam um

462
Evidenciamos aqui, como exemplo, dois comentários de André Pereira: "No livro Espírito Santo: minha terra,
minha gente, três professores do curso de História da UFES - Léa B. R. A. Rosa, Luiz G. Santos Neves e Renato
Pacheco (1986) – sustentaram a fantasia sobre a posse das minas. Sobre isto, afirmam: 'O nome Minas Gerais vem
da quantidade de ouro e pedras achadas nesta região. Parte deste território pertencia ao Espírito Santo, apesar de
bem distante do litoral. Mas acabou se separando da capitania capixaba'. O texto foi publicado em 1986 pelo
governo local e era destinado ao ensino de 1º grau nas escolas estaduais." PEREIRA, André Ricardo Valle V.
Fantasias persecutórias na História do Espírito Santo. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia.
Goiânia, n.1, jan/jul, 2013. Disponível em: http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth. Acesso em:
12/04/2015. p. 155; Encontramos ainda: "A versão de 2001 de Espírito Santo: história e geografia, em quarta
edição, é apontada, na capa, como 'direcionada principalmente ao vestibulando', além de contar o aviso de que se
encontra 'de acordo com o programa da UFES'. Os autores são Thais Helena L. Moreira e Adriano Perrone (2001).
No que se refere ao tema em questão, o texto reproduz várias passagens de Oliveira, assim como o mapa. Por fim,
conclui: 'Em 1720, Minas Gerais foi elevada à condição de Capitania, se desvinculando formalmente do Espírito
Santo, frustrando qualquer ideia de reintegração de terras, que porventura pudesse existir aqui.' Em sua edição
mais recente, publicada em 2008 pelos mesmos autores, mas com ligeira alteração do título para História e
geografia do Espírito Santo, o texto tomou a sério a especulação e o raciocínio contrafactual de um suposto direito
dos capixabas à região das minas e concluíram, de forma incorreta, que a área tinha sido desvinculada do Espírito
Santo." Ibid., p.155-156;
463
PACHECO, Renato. Eu vi o nascer o Brasil: a vida nos primeiros tempos do Brasil colonial. 4. ed. São Paulo:
Moderna, 1997.; NEVES, Luiz Guilherme dos Santos. O Capitão do Fim. Vitória: IHGES, 2001.; MENDES,
Alvarito. Vasco Fernandes Coutinho. Vitória: Pro Texto, 2006.; LACHINI, Cláudio. Vasco: memórias de um
precursor da globalização. São Paulo: Bacarolla, 2009.
173

conjunto de aspectos que caracterizam a região como um lugar que não prosperou. A vida de
Vasco Fernandes Coutinho é apresentada a partir de uma série de aspectos negativos que
caracterizaram sua jornada colonial. Sua figura nas obras sintetiza a representação do Espírito
Santo, inclusive por meio da abordagem do fim melancólico e pobre desse personagem
histórico, que simbolizaria a condição da Capitania.464

464
Destacamos aqui o caráter aventureiro e o momento final da vida desse personagem. Pacheco apresenta Vasco
Fernandes Coutinho como homem de um Portugal quinhentista, contagiado pela “febre do mar”: "Com o tempo,
embora nos meus trinta anos, e rico, e bem estabelecido, fiquei impaciente: via o sol brilhando e rebrilhando sobre
os ribeirões de meus campos e parecia-me estar em pleno mar, imenso e misterioso, e a relva parecia o verde-
oceano, espumando em minhas faces e entrando-me na barba espessa. Estava, como acontecera com milhares de
portugueses daquela época, com a febre do mar. Cinco anos lavrando a terra entre olivais e pinheiros mansos
cansaram-me. A produção era pouca e a vida aventurosa que eu tivera nas Índias me chamava para lugares
desconhecidos. Decididamente não gostava de viver longe do mar." PACHECO, Renato. Eu vi o nascer o Brasil:
a vida nos primeiros tempos do Brasil colonial. 4. ed. São Paulo: Moderna, 1997, p. 17-18; Cláudio Lachini
considera que sobressaiu o espírito aventureiro: "Essa terra de cá, primitiva à margem do Atlântico do Sul, não é
o meu mundo, para onde vim porque uma força interior me impulsionou, como sempre, desde muito cedo, ativou-
me na curiosidade do desconhecido, a navegar em busca de fortuna, ouro e pedras preciosas, em si tão fantasiosas
quanto tudo o que é inanimado. E este foi meu maior erro: entediado em minha Quinta do Alenquer, onde poderia
ter gozado de uma velhice tranquila e abastada.[...] Fui louco. Não tem a mente sã de entregar a seu rei mais do
que sua força ou suas armas; nunca o próprio futuro[...]." LACHINI, Cláudio. Vasco: memórias de um precursor
da globalização. São Paulo: Bacarolla, 2009, p. 15.; Luiz Guilherme, sobre o “Capitão do fim”, corrobora a
aventura colonial. Seu perfil conquistador-militar de outros tempos e sua idade, não condiziam com a maneira
como deveria realizar-se a obra colonizadora: "O capitão veio para se dedicar a essa obra aquilatando mal a
dimensão do sacrifício que lhe iria custar, do tempo de vida que lhe iria exigir. Não bastava desembarcar na
Capitania, batizá-la sob a invocação do Espírito Santo, chanfrar no chão a espada rutilante do sol do meio-dia,
mijar na orla da praia os sais dos seus rins, para que a terra explodisse em cornucópia de facilidade e dádivas. Bem
cedo Vasco Fernandes compreendeu o erro de avaliação que havia cometido, reconhecendo que, movido pela
ambição e soberba, tinha dado com a caravela nos brejos." NEVES, Luiz Guilherme dos Santos. O Capitão do
Fim. Vitória: IHGES, 2001, p. 28-29.; Ressaltamos, também, o que os autores retratam acerca do fim de Vasco
Fernandes Coutinho. Luiz Guilherme elabora a seguinte reflexão do personagem Vasco, como lamentação:
"Lembrais da vila que lá em minha terra vistes? Uma pequena igreja, miúdas choças? Findo-me eu, findam-me
meus netos e bisnetos, a estirpe toda se vai de cabo a rabo, sem que aquela vila avance ou mude de figura. O gentio
que lá existe é bárbaro e inconstante. Os colonos que lá existem, todos me desacatam.[...] Se não fosse eu submisso
à honra do meu nome e escravo da lealdade que devo a meu rei, que Deus guarde, deitava tudo ao chão, da má a
sorte importunado." NEVES, Luiz Guilherme dos Santos, op. cit., p. 101.; Renato Pacheco também narra uma
espécie de fim melancólico de seu personagem:" Nesse entretempo fui defeito em praça pública pelos principais
da vila, que reclamavam de minha moleza em ordenar as entradas.[...] Recolhi-me a meu sítio da Ribeira, onde
ninguém me procurava e onde, se não fosse a escrava Felipa, teria passado fome. Acho que fiz muito por meu
vilão farto. Faltaram-me dinheiro e gente para tocar sua colonização.[...] Minha vida é uma história triste: tive
fama, agora passo o tempo a esperar, as vaidades sumiram como nuvens desfeitas pelos ventos. Dura e escura foi
minha sorte, a velhice é seca e triste, busco um porto que me livre destas dores. Ó Deus, quando terminará minha
jornada?" PACHECO, Renato. op. cit., p. 56.; Cláudio Lachini complementa seu romance, inclusive, com uma
breve avaliação conclusiva sobre o Espírito Santo colonial e apresenta sua interpretação sobre a continuidade do
abandono e dificuldade da capitania: "O Espírito Santo que Vasco deixou foi isolado pela Coroa Portuguesa
quando da descoberta do ouro em Vila Rica, situada em território que originalmente pertencia à Capitania do
Espírito Santo. Com à mesma Capitania, e portanto de Vasco Fernandes Coutinho, foram as terras Diamantina e
da maior parte das Minas Gerais. As Minas, que eram gerais como vaticinara Vasco, passaram a pertencer à
Capitania de São Paulo e Minas de Ouro criada em 3 de novembro de 1709, como consequência da Guerra dos
Emboabas (1707-1709) e necessidade de garantir o controle da Coroa sobre a região das recém-descobertas terras
auríferas.[...] O preço recebido pela região costeira que vai da divisa com a Bahia com até a divisa com o Rio de
Janeiro foi o abandono. E ele é tanto maior por se ilhar o território entre as capitas da colônia a Bahia e o Rio de
Janeiro. Deixá-lo à míngua, protegido por alguns fortes, foi a defesa mais em conta contra qualquer entrada que
se fizesse pelo caminho mais curto (de Vitória a Ouro Preto são cerca de 50 léguas). LACHINI, Cláudio, op. cit.,
p. 239.
174

Diante desse cenário, no entanto, para além dessa identificação de como a narrativa do
progressivo desenvolvimento serviu de matriz para outras narrativas, nosso desafio
historiográfico propôs analisar o percurso de uma determinada forma de se compreender e
narrar o Espírito Santo. Sendo assim, cabe-nos ainda compreender como se configurou a
narrativa da superação do atraso na contemporaneidade e suas relações com o discurso político
do desenvolvimento.

De acordo com Koselleck, em cada presente as antigas expectativas se modificam, se desgastam


em novas experiências, o que permite rever, interpretar ou “emitir juízo” em relação ao passado.
Assim, quanto maior a experiência, mais aberta se tornam as expectativas que se apresentam à
sociedade, pois mais ainda ela pode aprender com o vivido. Com isso, o presente permite as
modificações nas perspectivas de compreensão do passado, até mesmo, modificando o valor
histórico desse passado.465 Koselleck, portanto, nos indica que podem existir mudanças na
relação entre a experiência e a expectativa, o que acarreta modificação na forma de se
compreender o passado.

Ao considerarmos a temporalidade das narrativas históricas, estendemos nossa análise para o a


primeira década do século XXI466 que corresponde aos dois primeiros mandatos de Paulo
Hartung no governo do Estado e período no qual observamos a publicação e a reedição de um
conjunto de obras que tratam sobre o passado local e que ganharam um significado político
correspondente ao discurso do "Novo Espírito Santo", que orientou a problemática desse
desafio historiográfico. Tivemos como objeto de análise a obra História Geral e Econômica do
Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário, de Gabriel Bittencourt, a
coleção Memórias do Desenvolvimento: Grandes Nomes e, complementado, avaliamos as
intervenções de Paulo Hartung nas obras reeditadas pela Coleção Canaã durante seus dois
mandatos nesse período. Buscamos, assim, analisar as continuidades e deslocamentos que
ocorreram na narrativa da superação do atraso, os novos critérios de determinação de sentido e,
seguindo nosso desafio, as relações com o discurso político do desenvolvimento.

465
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006. p.317-325.
466
O recorte corresponde à elaboração do discurso político de construção da imagem do Novo Espírito Santo como
observamos no capítulo I. As obras analisadas se estendem até o ano de 2012, pois identificamos a continuidade
de certas publicações sob essa perspectiva, relevantes para nossa análise.
175

4.1 A NARRATIVA HISTÓRICA DA FORMAÇÃO ECONÔMICA DO ESPÍRITO SANTO:


A SUPERAÇÃO DO ATRASO PELOS CICLOS DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO.

História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-


portuário, de Gabriel Bittencourt, é uma obra singular. A narrativa tem o propósito de abarcar
desde o início da colonização até os primeiros anos do século XXI. Porém, apesar de sua edição
datar do ano de 2006, ela caracteriza-se por reunir o conteúdo trabalhado pelo autor em outras
obras e seguir exatamente a mesma lógica de interpretação e o roteiro histórico presente nesses
estudos anteriores.467Assim, consideramos que essa obra do autor corresponde à leitura do
passado que respondia tanto aos desafios de se pensar o Estado na década de 1980, após os
impactos das transformações ocorridas com a industrialização, assim como aos novos
horizontes que se apresentaram ao Espírito Santo na primeira década do século XXI.

Na apresentação da reedição (2012) da obra Cafeicultura e Grande Indústria: a transição no


Espírito Santo (1955-1980), de 1991, de Haroldo Corrêa Rocha e Ângela Maria Morandi,468
Estilaque Ferreira dos Santos argumenta que se instituiu durante a década de 1980 uma leitura
acadêmica do Espírito Santo:

A mobilização social decorrente da mudança econômica gerou um processo de


urbanização e de concentração populacional na Grande Vitória que assumiu
proporções inéditas, redesenhando completamente sua configuração urbanística.
Mas essas transformações não poderiam deixar de se refletir também no campo
cultural e intelectual e foram elas mesmas o principal tema daquilo que se pode

467
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. Esta obra apresenta a mesma lógica reflexiva e o sentido da
narrativa histórica presente nas obras anteriores do autor. A diferença está no acréscimo de algumas considerações
a respeito de alguns sujeitos históricos e a eventos políticos. O diferencial é justamente a ampliação do período de
abordagem. Enquanto obras anteriores do autor tinham como recorte cronológico a década de 1980, a obra aqui
analisada vai até os primeiros anos da primeira década do século XXI, correspondendo ao período do primeiro
governo de Paulo Hartung. As obras anteriores são: BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Esforços
industrializantes na Primeira República: o Espírito Santo 1889-1930. Dissertação (Mestrado). Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1979.; BITTENCOURT, Gabriel
Augusto de Mello. A formação econômica do Espírito Santo: o roteiro da industrialização, do engenho às
grandes indústrias (1535-1980). Rio de Janeiro: Cátedra; Vitória, ES: Departamento Estadual de Cultura, 1987.
Nesta, encontramos o seguinte propósito: "O objetivo principal do presente trabalho é, portanto, um estudo sobre
a Formação Econômica do Espírito Santo. A maior parte de seu conteúdo, porém, privilegia o acontecido no setor
da transformação dos produtos econômicos. Isso se justifica pelo nosso interesse em analisar a especificidade de
tal processo, sob o prisma regional, pela própria atualidade da industrialização local, como se esta inaugurasse um
"novo ciclo econômico", articulado, porém, com os quadros mais amplos que o gerou [...]". Ibid., p. 17-18.
468
Estilaque Ferreira dos Santos evidencia a obra como referência para se pensar o Espírito Santo: antes mesmo
de sua primeira edição definitiva, que ocorreu em 1991, ela já era utilizada de forma muito intensa desde a década
anterior por alunos e professores de nossa Universidade Federal, e continua assim até hoje. [...] Nela eles
encontravam um conjunto bem-organizado de dados a respeito da evolução econômica do Espírito Santo e uma
consistente interpretação deles, constituindo-se assim em um sólido apoio para suas pesquisas e reflexões a respeito
da trajetória socioeconômica recente do Estado. SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Prefácio à 2ª edição. In:
ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI, Ângela Maria. Cafeicultura e grande indústria: a transição no Espírito
Santo (1955-1985). 2.ed. Vitória: ES em Ação, 2012. p.7.
176

chamar a “redescoberta” do Espírito Santo, pelos próprios capixabas, da qual este


livro é um marco significativo. [...]
Criou-se, a partir desses trabalhos, um núcleo regional de produção acadêmica que
inseriu o Espírito Santo nas discussões nacionais e revelou a especificidade de nossa
formação. Esses estudos, entre os quais esta obra se destaca, acabaram se convertendo
em verdadeiros paradigmas e constituem até hoje referência obrigatória.469

As considerações de Estilaque chamam a atenção, primeiramente, para o contexto de produção


dessas interpretações que surgem academicamente sob a influência das mudanças ocorridas no
Espírito Santo na década de 1970. E, principalmente, atenta para a emergência de uma
interpretação acerca do Estado e sua especificidade, vista como paradigmática. Gabriel
Bittencourt também esteve presente nesse cenário. Segundo Raquel Daré, o NEP, Núcleo de
Estudo e Pesquisa do departamento de Economia da UFES, possibilitou a produção de uma
série de estudos acadêmicos que reproduziram o ideário desenvolvimentista durante a década
de 1980. Para ela, tal produção buscou compreender o processo de transição de uma economia
agrária, a partir da crise do café, para a industrial. Com isso, direcionaram para o meio
acadêmico a hegemonia do discurso desenvolvimentista das décadas de 1960 e 1970: a
industrialização como via de superação do atraso ganhava um estatuto científico ao ser
apropriada por esses estudos acadêmicos.470

Conseguimos compreender a lógica de interpretação que orientou a leitura do passado realizada


por Gabriel Bittencourt em suas produções e, também, na obra História Geral e Econômica do
Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário.

Gabriel Bittencourt elaborou uma narrativa que envolveu tanto a sequência tradicional dos
períodos quanto estabeleceu recortes em função de sua perspectiva de análise, dando ênfase aos
aspectos econômicos, entendidos como determinantes no processo histórico de formação do
Espírito Santo. Ao analisarmos a obra do autor, entendemos que constituiu-se um paradigma
de interpretação do passado espiritossantense que reelaborou a narrativa da superação do atraso,
interpretada sob a orientação da história econômica471, diferentemente dos autores

469
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Prefácio à 2ª edição. In: ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI, Ângela
Maria. Cafeicultura e grande indústria: a transição no Espírito Santo (1955-1985). 2.ed. Vitória: ES em Ação,
2012.p. 7-8.
470
DARÉ, Raquel. A “crise” do café e a ideologia desenvolvimentista no Espírito Santo. 2010, 203 f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade federal do
Espírito Santo, Vitória, 2010. p. 93-143.
471
Para o autor: "[...] atenção despertada para as deficiências da historiografia tradicional do Espírito Santo, cujas
obras, quase sempre concentradas nos aspectos narrativos dos temas políticos e administrativos, ficavam restritas
quanto aos aspectos críticos, sem a preocupação da emersão do substrato sócio e econômico dos fatos históricos
regionais." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao
complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 13.
177

anteriormente analisados que a apresentaram sob a perspectiva do progressivo desenvolvimento


do Espírito Santo. Com Gabriel Bittencourt instituiu-se o que denominamos de narrativa
histórica da formação econômica do Espírito Santo.

A redefinição do sentido da superação ocorreu por meio da apropriação de conceitos clássicos


da história brasileira forjados após 1950: o sentido da colonização, apropriado de Caio Prado
Júnior, o de ciclos econômicos, de Roberto Simonsen e a noção de modelo, de Celso Furtado.472
Bittencourt narra, então, o lugar ocupado pelo Espírito Santo no contexto de desenvolvimento
da economia brasileira. Recorrendo a esses conceitos, define o caráter marginal do Estado ao
longo de sua trajetória, as dificuldades e impedimentos para o seu desenvolvimento, assim
como a busca pela superação de sua condição.

A interpretação do passado local pelo autor teve como principal orientação o conceito de sentido
da colonização. Este caracterizou-se como uma forma de compreender o processo histórico e o
sentido do desenvolvimento tomado por uma sociedade e, consequentemente, capaz de explicar
sua condição no presente. Decorreu desse entendimento a noção de formação econômica no
seio da discussão sobre o sentido do desenvolvimento brasileiro, norteando, a partir da década
de 1960, a compreensão das sociedades capitalistas denominadas à época de
subdesenvolvidas.473 No caso de Bittencourt, ele recorre a esse paradigma de explicação para
compreender o Espírito Santo na contemporaneidade, a partir de sua trajetória.

No entanto, Gabriel Bittencourt trouxe para a interpretação dessa especificidade do Espírito


Santo um outro conceito: o de ciclos econômicos. Interessante notar, que a noção de sentido da

472
Segundo Bittencourt: "[...] coube a Caio Prado promover a primeira análise global do passado do País sob a
inspiração do materialismo dialético (1942), afirmando ele que o Brasil contemporâneo teve a sua formação
assentada sob o tripé: monocultura, latifúndio, escravidão. mais ainda, alimentando o debate sobre as estruturas
socioeconômicas brasileiras nos anos 1940 e 1950. No entanto, não se pode esquecer que foi somente a partir de
Roberto Simonsem (1937), que ficou introduzido, em um critério de periodização, o fator econômico, com a noção
de ciclo econômico, para delimitar as fases do período colonial. Também Celso Furtado a quem, no final dos anos
de 1950, coube a introdução da noção de modelo, concebendo a sua Formação Econômica do Brasil em torno de
três modelos básicos e articulados entre si: a sociedade escravista do açúcar, do café, gerada pela dependência de
mercados distantes e subordinada a estímulos que lhes são exteriores e, portanto, que não podem ser modificados
a partir da sua própria dinâmica interna." Ibid., p. 15-16.
473
Segundo Astor Dihel: "O tema desenvolvimento como conteúdo da História do Brasil foi objeto de estudo no
livro de Caio Prado Júnior, cujo texto parece ser menos historiográfico, tendo como resultado mais uma história
do desenvolvimento, ou melhor, do subdesenvolvimento brasileiro. O texto descreve as imanentes contradições
como variáveis que não podem deixar de ser levadas em consideração na análise do processo de desenvolvimento
da década de 1960. O estudo procura explicitar o subdesenvolvimento brasileiro em termos históricos [...]. A obra
tem condições de mostrar uma dimensão histórica que também pode ser considerada historiográfica quanto ao
conhecimento e interpretação dos fatos, mecanismos e estruturas do passado." Segundo DIHEL, Astor A. A
cultura historiográfica brasileira: década de 1930 aos anos 1970. Passo Fundo: UPF Editora, 1999.p. 169.
178

colonização, entendendo o passado como processo, diferencia-se da ideia de desenvolvimento


histórico baseada na noção de ciclos, caracterizada pela lógica hegemonia-decadência, a partir
da qual uma atividade econômica tornar-se ia hegemônica e determinante da organização da
sociedade, mas fadada à decadência e superada por outra atividade. Bittencourt aplica a noção
de ciclos econômicos associada à do "sentido" e também à noção de modelos, considerando que
o modelo de desenvolvimento agrário-exportador não permitiu a dinamização da economia
local, o que só seria resolvido com a industrialização. Configurou-se, assim, a lógica do sentido
da superação do atraso na narrativa da formação econômica do Espírito Santo.

Determinado o sentido da trajetória espiritossantense estabelecido pelo autor, é possível


compreendermos como o roteiro histórico do Espírito Santo presente nesta obra corresponde a
essa chave interpretativa do passado. A obra de Gabriel Bittencourt apresenta um modelo de
explicação e de narrativa do Espírito Santo a partir do qual percebemos as continuidades e
também as mudanças em relação às narrativas anteriormente analisadas. Ela apresenta
mudanças em relação a marcos históricos e aspectos estruturantes, definidores do sentido da
história local, mas também, carrega consigo elementos característicos e reiterações acerca de
fatos, circunstâncias e sujeitos históricos do Espírito Santo.

4.1.1 A NARRATIVA HISTÓRICA DO ATRASO E A HERANÇA COLONIAL DO


ESPÍRITO SANTO.

Tal como a narrativa histórica do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo, o período


colonial foi representado de forma negativa. A "herança colonial" do Espírito Santo foi o atraso
econômico. A análise de Bittencourt, cujo propósito é o de realizar "um estudo sobre a formação
contemporânea do Espírito Santo", apresenta a narrativa de um processo histórico local
caracterizado por uma "formação defasada em sua fase colonial", definida por um processo
histórico que engendrou "uma construção gigantesca que deu ao país uma das maiores
economias tropicais de exportação mas que redundou em uma 'economia de sobrevivência' para
o Espírito Santo."474 Se o café será, de acordo com essa narrativa, o marco histórico que
inaugurou o Primeiro Ciclo de Desenvolvimento local, essa foi a caracterização elaborada de
sua formação inaugural pelo modelo agrário-exportador que demarcou a não participação da
Capitania no "ciclo do açúcar".

474
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 14-15.
179

A narrativa do autor buscou evidenciar os fatores estruturais e conjunturais que determinaram


esse lugar do Espírito Santo. Segundo Bittencourt, o "sentido da colonização" instituiu o
sistema de ocupação territorial baseado na sesmaria durante o período colonial, o que teve uma
implicação negativa. Tal sistema, para ele, "ficou fatalmente condenado ao fracasso, também
no Espírito Santo, gerando grandes latifúndios, muitas vezes improdutivos."475 Além desse
problema estrutural da distribuição da posse da terra, ele argumenta que a Capitania não
participou da lógica comercial e não conseguiu atrair os grandes capitais necessários para o
desenvolvimento de seu potencial de produção e comercialização de açúcar. Mesmo com a
presença de grandes propriedades produtoras desse produto, elas não participaram da dinâmica
do mercantilismo no período.476

Quando observamos, portanto, o autor caracterizando o Espírito Santo como portador de uma
"economia de sobrevivência", ele está considerando o lugar periférico atribuído à Capitania no
processo histórico de desenvolvimento do Brasil, condição que se iniciou na colonização:

Desde cedo, na realidade, capitais e contingente populacionais, e as atenções do


mercado, afastaram-se do Espírito Santo, indo engrossar aquela corrente que se
dirigira ao Nordeste açucareiro, com melhor possibilidade de atrair os incentivos da
produção.477

Os fatores estruturais e conjunturais definidores da especificidade do Espírito Santo passaram


a caracterizar os dois primeiros séculos de colonização na Capitania, marcados na narrativa
pelas dificuldades de desenvolvimento local. Assim, alguns aspectos considerados como
fundamentais para o atraso colonial presentes nas obras anteriormente analisadas permanecem
na interpretação de Bittencourt, porém, atrelados e subordinados à essa determinação
econômica do processo histórico:

Vista como um obstáculo imposto à colonização portuguesa, no início da fase


colonial, toda a região capixaba era coberta por exuberante floresta tropical que
atingia cerca de 90% do atual território do Estado. Aliados à densa floresta, os rios

475
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 14-15. p. 75.
476
O autor aborda a formação de grandes propriedades, principalmente ao sul da Capitania, que produziram açúcar
e outros gêneros, caracterizando o modo de produção local: "Tendo como epicentro o município de Itapemirim,
vinham essas famílias dilatando suas propriedades pelo vale acima: os Gomes Bittencourt, dominando o lado do
Itapemirim e o barão de Itapemirim, o lado sul do rio; por terras que somavam quilômetros de extensão; apenas
limitados em suas posses pelo atual município de Cachoeiro de Itapemirim.[...] Essas propriedades, quase todas
antigas sesmarias, abasteciam de açúcar e aguardente toda a província do Espírito Santo, com excedente exportado
em grande quantidade para o Rio de Janeiro. Conforme Antônio Marins, até 1887, de um lado e do outro do rio
Itapemirim, contava-se cerca de vinte fazendas produtoras de açúcar e aguardente, cujos engenhos, em sua maioria
eram movidos a vapor." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho
colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006.p. 79-80.
477
Ibid., p. 88.
180

encachoeirados para o interior e o indígena adverso, pareciam completar o quadro


considerado desfavorável. Sobretudo, se levarmos em consideração que a colonização
brasileira tomou o aspecto de uma verdadeira empresa comercial, destinada a explorar
os recursos da terra descoberta, particularmente pela agricultura, cujos estímulos eram
provenientes do exterior.[...] Não foram as características físicas e o silvícola hostil
os fatores determinantes do insucesso inicial da capitania de Vasco Fernandes
Coutinho. A localização geográfica excêntrica, a má administração nos primeiros
tempos e a baixa capacidade de atração dos capitais disponíveis para o açúcar, talvez
se posicionem melhor.478

Os "obstáculos do progresso" característicos das leituras anteriores aparecem como fatores de


impedimento à interiorização, reforçando a condição secundária que o Espírito Santo iniciava
sua trajetória.479 Dessa forma, a Capitania definia sua peculiaridade inicial, marcada por fatores
internos e determinada pela lógica do capital mercantil:

A incapacidade de conter os frequentes ataques indígenas, as discórdias constantes


entre os colonos e a desorganização administrativa, são as causas que podem ser
captadas na historiografia tradicional, no sentido da dificuldade da manutenção de
uma produção dinâmica ligada à economia tropical de exportação. Razão pela qual
desviou-se aquela corrente que compreendia capitais e contingentes de população e
da mão-de-obra para o Nordeste brasileiro, que melhor atraía os fatores de
produção."480

Bittencourt, portanto, recuperou a interpretação tradicional acerca da imagem da Capitania para


tratar das dificuldades locais no século XVII:

Não fosse a obra dos jesuítas, por certo, o Espírito Santo poderia ser aquilo que Frei
Vicente do Salvador deixa subentendido e Varnhagem descreveu: 'Uma capitania com
tão boas terras, com um porto excelente, com rios navegáveis para o sertão' e
completamente abandonada por mais de três séculos. Após as primeiras décadas do
século XVII, no entanto, o Espírito Santo entrou em nova fase de depressão que
justificaria aquela tradição da historiografia colonial brasileira, influenciada por Frei
Vicente do Salvador, que apresenta a capitania como um verdadeiro desastre,
desinteressando-se os próprios descendentes de Coutinho da administração da terra
que lhes cabia pela cláusula de sucessão hereditária. Natural, portanto, que, desde
cedo, capitais e contingentes populacionais, e as atenções do mercado, tenham se
afastado do Espírito Santo, indo engrossar aquela corrente que se dirigira ao Nordeste
açucareiro, com melhor possibilidade em atrair os incentivos da produção. Destarte,
dado o insucesso, também, das expedições mineradoras, as únicas perspectivas de
sobrevivência econômica no Espírito santo permaneceram ligadas ao setor açucareiro,

478
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006.p. 107.
479
Segundo Bittencourt: "Por sua vez, a despeito da conjuntura favorável ao açúcar no Espírito Santo, como de
resto das demais capitanias, a princípio, os pioneiros das terras capixabas não pareciam muito interessados na
agricultura. As perspectivas de descobrimento e de exploração de minas de metais preciosos é que, parece,
polarizavam as atenções. [...] Foi a agricultura, porém, que possibilitou a colonização sistemática da capitania. As
tentativas de penetração esbarram em alguns obstáculos intransponíveis, entre estes o temor inspirado pelos
indígenas que, aliados a densa floresta tropical e os rios encachoeirados, a poucas léguas do litoral, tornaram-se
fatores impeditivos à interiorização. Essa economia escravista, que dependia quase exclusivamente da procura
externa, e que deveria multiplicar o capital nela imobilizado, terminou direcionada, em sua maior parte, para o
Nordeste açucareiro que, desde cedo, pelas sua peculiaridades e localização, atraiu os capitais disponíveis ao
açúcar colonial." Ibid., p. 107-108.
480
Ibid., p.108.
181

quando o Brasil já começava a trajetória de declínio como principal produtor mundial


de açúcar.481

A condição desfavorável e o lugar marginalizado na economia colonial permaneceram, segundo


o autor, no século XVIII. Nesse ponto, observamos a reiteração do lugar do Espírito Santo
durante a exploração da atividade aurífera nas Minas Gerais:

Curiosamente, a própria descoberta de ouro em grande escala nos fins do século XVII
e início do XVIII, no Brasil, constituiu-se em um empecilho ao desenvolvimento
regional. Entre as repercussões da grande exploração do ouro colonial, nesse
momento, no governo de d. João V, proibiu-se rigorosamente a abertura de estradas
ou caminhos que ligassem o litoral capixaba à rica Capitania das Gerais. Medidas e
estratégias foram adotadas no sentido de se evitar ataques estrangeiros e, sobretudo, o
contrabando pelo litoral espiritossantense, terminando por isolar a capitania entre o
mar e as montanhas proibidas. Nesse contexto passou o século XVIII, com a capitania
espremida nos limites litorâneos, tanto pela floresta indevassável, como pelas
proibições dos governos metropolitanos.[...]482

O autor insere em sua interpretação a noção da "barreira verde" como um dos fatores do atraso
do Espírito Santo no período colonial. Marginalizado no "ciclo do açúcar", a Capitania fora
impedida de participar do "ciclo do ouro" e, assim, marginalizada até o século XIX. Segundo
Bittencourt, "até, então, o capixaba, como caranguejo, errava pelas praias do litoral, em torno
de uma economia de subsistência ou, principalmente, daquela monopolizada pelo açúcar, sem
que fosse criada a necessária infraestrutura à interiorização."483

Foi essa, pois, a "herança colonial" determinante para o lugar secundário do Espírito Santo no
contexto do desenvolvimento da economia brasileira: uma condição originária marcadamente
periférica e ausente do fluxo dos grandes capitais presentes em outras regiões. O modelo de
desenvolvimento agrário-exportador não fora suficiente, segundo Bittencourt, para dinamizar a
Capitania.

481
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006.p. 11. Sobre os jesuítas e a economia local: "Depois da extinção da
Companhia de Jesus no Brasil, e o consequente sequestro de seus bens, resultou para as unidades produtivas do
Espírito Santo uma enorme desorganização[...]. O desequilíbrio econômico regional do qual já se ressentia a
Capitania do Espírito Santo no Século XVII, distanciou-a ainda mais do comércio internacional, limitando-se a
uma navegação de cabotagem com o Rio de Janeiro e Bahia, talvez os únicos mercados atingidos pela economia
capixaba." Ibid., p. 114.
482
Ibid., p. 121.
483
Até os Jesuítas, mesmo com seus empreendimentos: "Os próprios jesuítas, os mais poderosos e esclarecidos
"empresários" da Capitania, ao abrirem suas importantes fazendas, fizeram-nas nas proximidades do litoral, sem
se aventurarem pelo interior, onde predominava o botocudo adverso." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral
e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006.
p 25.
182

Reiterando as narrativas anteriores, Bittencourt também define o período colonial como o da


fundação do atraso do Espírito Santo e determinante do sentido de sua trajetória histórica de
superação. Essa perspectiva em relação à fase colonial do desenvolvimento do Espírito Santo
estabeleceu, por sua vez, o significado de determinados eventos e personagens coloniais,
reforçando a imagem negativa a eles atribuídas. O período relativo à exploração da atividade
aurífera na região de Minas Gerais surge, novamente, como marco histórico negativo e os
impeditivos da Coroa em relação à Capitania, no que tange ao seu papel de "barreira", aparecem
na narrativa como obstáculo ao desenvolvimento local e determinante de seu atraso. Os
indígenas, por sua vez, se perderam o status de principal obstáculo ao progresso, continuaram
seguindo o papel de inimigos a eles atribuído no roteiro histórico do atraso. Ainda que os fatores
econômicos fossem os determinantes para a formação da sociedade espiritossantense, os índios
surgem na narrativa sob a condição de empecilho à interiorização, principal consequência
negativa atribuída à Capitania pelo autor. Além do reforço dessa imagem, o sentido da
superação da trajetória do Espírito Santo estabeleceu a eliminação dos indígenas na narrativa.
O lugar desses grupos no passado local aparece associado exclusivamente ao do atraso colonial,
pois, foram eliminados da narrativa com a introdução do conceito de "vazio demográfico" que
o autor inseriu em sua narrativa na caracterização dos marcos históricos da superação do
atraso.484

4.1.2 DA PERIFERIA AO CENTRO: OS CICLOS ECONÔMICOS DO CAFÉ E DA


INDUSTRIALIZAÇÃO.

Gabriel Bittencourt apresenta uma representação histórica do desenvolvimento do Espírito


Santo a partir dos ciclos econômicos. Ao diferenciar as diferentes fases da evolução econômica,
a obra constituiu o que Rüsen denominou de narrativa genética de sentido. Para esse autor essa
forma narrativa tem o momento da mudança temporal no centro do trabalho de interpretação
histórica e é caracterizado por ser portador de sentido. O tempo histórico surge como "chance

484
Este conceito surge na narrativa do autor ao tratar da expansão cafeeira e imigração estrangeira no século XIX.
Presente no próximo item de nossa análise. Segundo Raquel Daré, esse conceito foi utilizado, principalmente, por
Hildo Meirelles de Souza Filho para tratar dos aspectos históricos das transformações econômicas desencadeadas
a partir da década de 1960. Segundo ela, este autor utiliza o conceito de "vazio demográfico" para caracterizar o
interior do Espírito Santo e sua economia de subsistência, entendida como herança do período colonial. DARÉ,
Raquel. A “crise” do café e a ideologia desenvolvimentista no Espírito Santo. 2010. 203 f. Dissertação
(Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade federal do Espírito Santo,
Vitória, 2010. p. 125. Ver também: SOUZA FILHO, Hildo Meirelles de. A modernização violenta: principais
transformações na agropecuária capixaba. 1990. 202 f. Dissertação de Mestrado em Economia. Instituto de
Economia, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, Campinas, 1990.
183

de superar os padrões de qualidade de vida alcançados, como abertura de perspectivas de futuro,


que vão qualitativamente além do horizonte do que se obteve até o momento."485

Com Gabriel Bittencourt a narrativa da superação do atraso estabelece marcos históricos de


ruptura que definiram novos patamares de desenvolvimento. A superação do atraso colonial
ocorreu com as transformações efetuadas pela economia cafeeira no século XIX e,
posteriormente, com o ciclo da industrialização após a década de 1960, seguindo o sentido
estabelecido pela lógica hegemonia-decadência de uma determinada atividade econômica.
Gabriel Bittencourt define a economia cafeeira486 como o principal marco histórico do Espírito
Santo. O "ciclo do café" propiciou, segundo ele, a superação de uma condição de "marasmo"
herdado da fase colonial:

A ligação do Espírito Santo à economia cafeeira foi decisiva para a modificação desse
panorama, na medida em que a agricultura de exportação continuava sendo,
praticamente, a única perspectiva de sobrevivência da economia provincial. Até a
consolidação do café, porém, como vimos, não se apresentara favorável a conjuntura
econômica do Espírito Santo.487

Era essa a condição após o período colonial, "do qual resultara uma província plena de carências
infraestruturais e cuja economia predominante, a do açúcar, não produzira números favoráveis
expressivos capaz de aproximar o Espírito Santo de suas congêneres mais importantes." 488 A
Província, nesse sentido, teve "na cafeicultura a vereda de salvação para a superação do
marasmo em que vivera na maior parte de seu processo histórico."489

Tal como nos autores analisados anteriormente, o sentido da superação do atraso é instituído,
também, pela oposição entre os diferentes momentos experimentados pelo Espírito Santo.
Entretanto, enquanto Neida Lúcia, Maria Stella de Novaes e, principalmente, José Teixeira de

485
JÖRN, Rüsen. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 58.
486
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 157. Sobre o início do cultivo do café: "[...] o café só ganha
destaque no Espírito Santo, a partir da ocupação mais dinâmica do sul da província, em meados do século XIX,
penetrando pelos vales do Itapemirim e do Itabapoana, na medida em que a franja agrícola, deslocando-se da
província do Rio de Janeiro, ia invadindo o solo agrícola capixaba". Ibid., p. 161.
487
Bittencourt apresenta um quadro do Espírito Santo logo após a Independência do Brasil: "Em que pese a
Independência política, no início da segunda década do século XIX, esse movimento poucas modificações trouxe
para o Espírito Santo, que permanecerá como que transformado em posto militar, e apresentando um quadro
demográfico e econômico fortemente atrofiado.[...] Assentada a poeira das agitações políticas na Província,
inaugura-se o período acumulando-se déficits e necessitando-se de subsídios do Governo Federal para a
sobrevivência administrativa." Ibid., p. 155.
488
Ibid., p. 175.
489
Ibid., p. 195.
184

Oliveira inseriram os "símbolos do progresso" conquistados a partir do progressivo


desenvolvimento do Espírito Santo no século XIX, dentre eles, a introdução da atividade
cafeeira, Gabriel Bittencourt estabelece a economia cafeeira como o divisor temporal
espiritossantense, estabelecendo a superação da condição anterior e como propulsor do
dinamismo do Espírito Santo:

[...] o atraso econômico secular do Espírito Santo pode ser explicado, muito mais pelas
próprias barreiras impostas pelo sistema colonial, cuja estrutura, de caráter unilateral,
produzirá uma estrutura quase sempre favorável à metrópole e aos países de economia
dominante, condição que só ficará superada a partir da liberdade governamental e das
perspectivas de aproveitamento de suas potencialidades, sobretudo, a partir do
substrato representado pela cafeicultura, cuja expansão atraiu investimentos e
acumulou o mínimo necessário de capitais para a criação de uma infraestrutura mais
satisfatória à modernização do século XX.490

O café, segundo o autor, determinou as mudanças em uma região impedida "de explorar seu
próprio território durante a fase colonial", mas que "paradoxalmente, conservara condições
favoráveis para que, a partir da segunda metade do século XIX houvesse a expansão da
cafeicultura pelas terras virgens e desabitadas da Província, ainda verdadeiro vazio
demográfico."491 Como vimos, a não interiorização foi uma das principais características
negativas do Espírito Santo e o café, por sua vez, representou a promoção do desenvolvimento
local:

O crescimento da cafeicultura no Espírito Santo vai, mesmo que indiretamente,


promover o desbravamento da floresta, o incremento da imigração e, sobretudo, a
fixação desse imigrante europeu, particularmente, o não português, a construção de
estradas e novos caminhos para o transporte, a navegação regular a vapor e, até
mesmo, a implantação da ferrovia.492

O sentido da superação, portanto, passou a ser definido pela hegemonia do café e as


consequências positivas que arregimentou no Espírito Santo, sobretudo as transformações
infraestruturais que, também, ganharam o status de "símbolos do progresso" espiritossantense
e contribuíram para a definição do sentido dessa narrativa da superação do atraso.493

490
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 196.
491
Ibid., p. 162.
492
Ibid., p. 163.
493
Ibid., p. 164-196. De acordo com o autor, o café permitiu: a) a interiorização: "Essas matas, conforme
assinalamos, representaram formidável obstáculo ao colonizador, mantidos e fixados no litoral ou a poucos
quilômetros para o interior até a penetração da cafeicultura no Século XIX, quando a fronteira agrícola foi
decisivamente dilatada no Espírito Santo, nas justas medidas da destruição das matas capixabas. O café será
portanto, o responsável pela penetração contínua no solo virgem do Espírito Santo, dilatando a fronteira agrícola
da região, superando o temor inspirado pelos botocudos e pelas feras que a floresta encerrava. As extensas
185

Tal sentido, porém, orientado pela lógica hegemonia-decadência, apresentou o duplo papel
desempenhado pela economia cafeeira para o desenvolvimento local. Além das mudanças
infraestruturais, o café possibilitou a execução dos "esforços industrializantes" na 1ª
República.494 A especificidade do Espírito Santo, entretanto, dentro do processo histórico da
formação econômica brasileira, segundo Bittencourt, não permitiu que as transformações
trazidas pela economia cafeeira se configurassem na superação da condição histórica do
Espírito Santo em relação aos Estados mais desenvolvidos do Brasil.

Nesse ponto, ele analisa a condição do Espírito Santo sob a perspectiva do "desequilíbrio
regional" que marcou a trajetória espiritossantense ao longo do século XX. A hegemonia da
cafeicultura não gerou as condições necessárias para elevar o patamar de desenvolvimento
local. A caracterização do Espírito Santo no final do período imperial e no início do republicano

plantações, sobretudo a partir de Cachoeiro de Itapemirim, adensando as populações rurais, seguia o curso dos
principais rios, instalando novos povoados e vilas. Galgando as serras, foram os caminhos que orientaram os
imigrantes europeus." Ibid., p. 164. b) Ampliação da arrecadação: "De qualquer forma, iniciou-se uma nova era
para a agricultura capixaba. A Província cuja renda era derivada quase que essencialmente da agricultura, passou
a registrar seus primeiros superávits orçamentários no século XIX.[...] A produção agrícola provincial do período
1881-82 ficou avaliada em rs. 3.854:070$517 e a safra do período 1885-86 em rs. 5.127:818$499, valores bem
superiores aos de algumas províncias não cafeeiras como a do Amazonas e Piauí, correspondentes a rs.
277:169$225 e rs. 14:566$427, respectivamente. Muito embora, no contexto das grandes regiões do país, a
participação do Espírito Santo ainda se apresentasse bastante reduzida, por exemplo, em comparação com a safra
paulista, cuja expansão já apresentava valores calculados em 42.257:126$182. De qualquer forma, nesse período,
a Província atingia, pela primeira vez, formidável desempenho proporcionado pelo café, cuja produção chegava a
18.498, 205 toneladas, superando agriculturas tradicionais como o milho (661,680 ton.), o açúcar (501, 874 ton.),
e a farinha de mandioca (3.589,036 ton.)." Ibid., p. 165. c) o aumento populacional por meio da imigração: "Graças
à dinâmica do café, a economia agrícola capixaba passou a atrair, decisivamente, pela vez primeira, grandes
contingentes populacionais para a região. Por intermédios de companhias organizadas de colonização, buscaram-
se na Europa, os milhares de emigrantes, sobretudo alemães e italianos, de que o Espírito Santo necessitava[...]"
p. 167; Dinamizou a Província: "A dinâmica do café estava a exigir medidas vigorosas ao escoamento da produção.
Por volta de meados do século XIX, os esforços do governo concentravam-se na recuperação daquelas vias
consideradas vitais à economia provincial, e, sobretudo, na criação de um 'corredor de exportação' para as minas
Gerais pelo interior espiritossantense. [...] Era no núcleo das colônias estrangeiras produtoras de café onde ficará
localizada a atenção das autoridades promotoras da viação provincial. Porquanto, conforme podemos observar, à
proporção que se foi efetivando a ocupação do solo desses núcleos agrícolas, é que se começou a viabilização das
estradas de rodagem com vistas ao fluxo contínuo da produção cafeeira."Ibid., p. 168-169. d) a modernização com
a introdução da navegação: "No Espírito Santo, apesar de toda sua orientação para o mar, praticamente a única
via de comunicação com as demais províncias do império, a navegação era mantida em bases precárias. até o
século XIX, intercomunicavam-se as povoações pelos rios e mar. Também pelo mar, normalmente, ligava-se o
Espírito Santo às demais províncias do Império. Entretanto, em que pese toda essa orientação para o oceano, não
havia navegação regular com o exterior, e mesmo de cabotagem, apesar da posição portuária privilegiada que
caracterizava a Província." Ibid, p. 174; e) a introdução das ferrovias: "[...] não deve ficar negligenciada a histórica
ligação às Minas Gerais pelo vale do Rio Doce, que resultou na Estrada de Ferro Vitória a minas, a mais importante
via férrea do Norte do Estado, ligando, posteriormente, importante área da antiga Província de Minas Gerais ao
Porto de Vitória, não deixando de abrir à colonização expressiva área desse vale." BITTENCOURT, Gabriel.
História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória:
Multiplicidade, 2006. p. 191.
494
Esse é o título da dissertação de mestrado do autor: BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Esforços
industrializantes na Primeira República: o Espírito Santo 1889-1930. Dissertação (Mestrado). Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1979.
186

evidenciam a percepção do autor acerca das possibilidades e limites do desenvolvimento


espiritossantense. Sobre os efeitos do café na Província:

O Espírito Santo, em que pese a dinâmica da sua economia cafeeira, era reputado
como um dos mais atrasados do Império, apresentando uma representação nacional
muito fraca. Embora inserido entre as principais unidades políticas do Império,
permanecia em grande desequilíbrio regional, apresentando um quadro carencial,
onde sobressaía a deficiência da viação pública para o escoamento da produção
cafeeira, cuja solução muitos localizavam em uma política econômica mais
descentralizada, que capacitasse a província prover suas próprias necessidades. 495

Assim, o Espírito Santo alcançava a República ainda sob o efeito da "herança colonial":

Aqui, apesar das similitudes aos estados da região na qual se insere, sob o ponto de
vista da economia agrária, o Espírito Santo apresentava-se, ainda no início da fase
republicana, em considerável plano secundário em relação àqueles estados. Em que
pese a dinâmica da cafeicultura nas últimas décadas da fase imperial, tal crescimento
econômico não fora suficiente para superar a herança colonial que tornara a região
defasada por longos períodos.496

Seguindo a lógica hegemonia-decadência, o autor evidencia que a cafeicultura, ainda que tenha
permitido mudanças de infraestrutura e possibilitado a modernização da capital Vitória, não
provocou uma dinâmica suficiente para escoar a produção, nem formar um mercado
consumidor, muito menos capaz de gerar acumulação de capitais para o investimento em outras
atividades. Mesmo ressaltando o primeiro projeto de desenvolvimento realizado por Jerônimo
Monteiro497, apesar dos "esforços industrializantes"498, o Estado também foi prejudicado devido
ao "desequilíbrio regional" devido à concorrência com outras unidades federativas mais
desenvolvidas.499 De acordo com Bittencourt, evidenciava-se os limites estruturais que

495
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 271.
496
Ibid., p. 304.
497
Sobre o projeto de Jerônimo Monteiro: "Foi, portanto, graças ao respaldo financeiro amealhado pelo Estado no
governo Coutinho, que Jerônimo Monteiro pode, durante o seu quatriênio de governo, dar início e desenvolver
uma política voltada para grandes esforços industrializantes no Espírito Santo, tendo como promotor o próprio
Estado. Para isso não deixou de contar com o apoio irrestrito do Congresso Legislativo estadual, que quase sempre
referendava seus projetos e solicitações, tanto no que tange à liberação de verbas para a montagem direta de
indústria pelo Governo, como para favores e incentivos às empresas, entre estes a garantia de juros a empréstimos
empresariais, renúncia fiscal, doação de terras e até mesmo fornecimento gratuito de energia elétrica aos projetos
subsidiados pelo Estado." Ibid., p. 308.
498
Em relação às dificuldades de realização da industrialização: "Neste caso, também, cessados os investimentos
públicos, não se conseguiu atrair os capitais industriais para os projetos governamentais, pois eles já se
encontravam canalizados para o centro nacional. Quanto à acumulação criada pelo café, ela ficará imobilizada no
próprio mecanismo da produção da rubiácea. Isto é, como as possibilidades de êxito econômico do Estado
continuavam enquadradas na área cafeeira, ganhando o café, na década de 1920, novos impulsos, os atrativos aos
investimentos, tanto do Governo como da iniciativa privada, foram recanalizados para essa área." Ibid., p. 302.
499
Além dessas dificuldades, Bittencourt identifica outros fatores: "A falta de mão-de-obra especializada,
posicionou-se como um dos mais sérios problemas aos empreendimentos fabris do período [...]. mas não era esse
o único problema enfrentado pelos esforços industrializantes do Espírito Santo: dificuldade de importação de bens
de capital, desvalorização monetária, deficiência dos meios de transportes, custo de fretes, problemas relativos à
187

determinavam o lugar secundário ou periférico do Espírito Santo. Para o autor, na década de


1920, o Estado era o terceiro maior produtor nacional de café, "responsável pela quase
totalidade dos recursos arrecadados que mantinha dinâmico o setor terciário e, por extensão, os
próprios projetos industrializantes." Situação mantida "graças aos recursos do café, que
permanecia como a principal fonte da acumulação capitalista do Espírito Santo."500 Condição
que definia o problema estrutural do modelo agrário-exportador no Estado, incapaz de produzir
uma indústria competitiva pela ausência de capital e de mercado consumidor:

No confronto com o quadro nacional, as peculiaridades inerentes à nossa formação


industrial e as especificidades da economia brasileira, criam dificuldades apreciáveis
para a análise e interpretação dos esforços regionais do setor industrial, nos rumos
tomados pela economia local. Retardatário em um País de indústria retardatária,
repercutirá decisivamente no Espírito Santo a inexistência de um mercado nacional
integrado, coexistindo no Estado duas barreiras expressivas: a competição com
produtos importados e a competição com produtos nacionais provenientes de outros
centros, além de não esquecermos que a indústria capixaba da 1ª República objetivava
transcender ao mercado local demandando mercado mais amplo que aquele
espiritossantense.[...] A tentativa de implantação de unidades industriais, de porte
multirregional, próximo dos estados de São Paulo ou Rio de Janeiro, fatalmente
defrontaria com as maiores indústrias desses dois Estados.501

Assim, o Espírito Santo por mais que superasse a condição de "marasmo colonial" inseria-se
na lógica capitalista a partir de sua condição periférica na região de economia mais dinâmica
do país:

Liderado pelo Estado de São Paulo, onde a dinâmica do café já havia promovido uma
acumulação capitalista capaz de possibilitar a implantação de um parque industrial
diversificado, a economia paulista não só conseguiu liberar-se da extrema
dependência da cafeicultura como, também, possibilitou a conquista do mercado
nacional. Esse foi, também, em menor escala, o caso do Rio de Janeiro, que,
juntamente com São Paulo, assumiu a liderança do processo de industrialização.
processo que, nas décadas que se sucederam, ficou estendido para o Sul do País, assim
como, também, a Minas Gerais. Nesse contexto, o Espírito Santo, conforme vimos,
inserido na mais dinâmica área da produção nacional, permaneceu com sua economia
totalmente apoiada na agricultura do café. [...] A extrema dependência da monocultura
ditava não somente o perfil diferencial que o separava dos demais Estados da região,
como, também, revelava uma base precária de sustentação da renda estadual,
subordinada esta ao sabor das oscilações que caracterizavam o setor agrário - ora em
ascensão, ora em decadência, como fruto das incertezas da cafeicultura. Não havia,
no caso do Espírito Santo, uma dinâmica local que possibilitasse a expansão
capitalista. Ao contrário, as condições intrínsecas da economia capixaba e suas

exportação e a Guerra Mundial de 1914 complementavam o quadro de adversidades." BITTENCOURT, Gabriel.


História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória:
Multiplicidade, 2006. p. 313. Aponta ainda outras limitações: "Em 1920, contavam-se no Espírito Santo, 457.328
habitantes, destes, 159.966 tinham profissão definida. A grande maioria, 132.628 encontravam-se ocupados na
lavoura, como que confirmando a 'vocação agrícola' do Estado. Poucos, portanto, se localizavam na indústria,
demonstrando não terem sido suficientes os investimentos realizados no setor secundário há quase duas décadas.
Mesmo o setor básico da indústria de energia elétrica não parecia muito promissor." Ibid., p, 319.
500
Ibid., p. 324.
501
Ibid., p. 326-327.
188

relações de produção no setor primário, impediam que o Estado pudesse desempenhar


um papel de destaque na nova conjuntura em que começava a se ater a economia do
País.502

Para ele, o Espírito Santo não acompanhou o desenvolvimento nacional. A estagnação e a


decadência da economia cafeeira demarcariam o lugar ocupado pelo Espírito Santo. Assim, o
Estado vivia em função já da ultrapassada economia cafeeira:

No nível do planejamento econômico nacional, desde algum tempo que técnicos


estrangeiros e brasileiros insistiam na necessidade de desenvolvimento. Dessa
maneira, promoviam balanço das deficiências nacionais, dos meios de suprimi-las e
dos esforços para a concentração de recursos para tal. No Espírito Santo, nenhum
governo, a quem cabia, de fato, administrar a solução do problema da monocultura
agrícola, animava-se em empreender grandes obras infraestruturais, ante o resultado
aleatório da receita estadual, ora em ascensão, ora em declínio, ao sabor das estiagens
e das especulações mercantis do mercado cafeeiro.503

Diante dessa condição, Bittencourt avalia que o Espírito Santo ganhava um novo capítulo, o da
superação da crise da economia cafeeira. Sua trajetória histórica entrava na transição de uma
economia agrícola para a fase industrial. Tal como José Teixeira de Oliveira e Neida Lúcia, o
governo Jones dos Santos Neves emerge como símbolo de transição 504. A narrativa do autor
evidencia as mudanças que ocorreram no Estado e, consequentemente, a superação da crise
econômica que caracterizava a economia cafeeira. Nesse sentido, ressalta a transição do ciclo
do café para o industrial, marcado pela ação governamental na criação de órgãos por meio de
uma política intervencionista na administração local505 e nas modificações infraestruturais

502
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 377-378.
503
Ibid., p. 361.
504
O autor relata as mudanças na infraestrutura do Estado. Sobre Jones dos Santos Neves: "[...] assim que tomou
posse, lançou, conforme vimos, o 'Plano de Valorização Econômica do Espírito Santo', fundamentado em obras
infraestruturais para implementação do Porto de Vitória, ampliação da produção da energia elétrica, abertura de
rodovias para escoamento da produção agrícola, que deveria ser fomentada. [...] A deficiência da infraestrutura,
porém, em nada viabilizava os empreendimentos industriais, públicos ou privados. As poucas unidades industriais
então existentes eram espoliadas pelos altos preços da energia elétrica, ao que se somavam as dificuldades de
mercado, ausência de mão de obra especializada e outras mazelas que compunham o quadro deficitário regional."
Ibid., p. 379. Narra também a capacidade da energia elétrica: "Em 1976, a capacidade de produção de energia
elétrica do Estado atingiu a aproximadamente 180,8 MW, compondo o 'Sistema ESCELSA'; nesse ano, onze usinas
hidráulicas, duas térmicas, 31 subestações e 1.555 km de linhas de transmissão, interligando-se ainda a empresa
ao sistema 'FURNAS' que possibilitou o suprimento de 23% de toda a demanda que o Estado exigia para
crescimento da vida urbana e a grande decolagem do 'ciclo industrial'." Ibid., p. 382.
505
Segundo ele: "No Espírito Santo, portanto, para a estruturação da sua economia, foram criados alguns órgãos
de atuação que a nova política intervencionista permitia, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e o
Sistema de Crédito para o Desenvolvimento (atuais Bandes e Banestes). Elegeu-se a industrialização como 'carro-
chefe' dessa política de reestruturação." Ibid., p. 399-400.
189

voltadas para a realização desse projeto.506 Para Bittencourt, configurava-se o avanço para uma
nova realidade:

O aspecto mais marcante, contudo, da ação governamental, concentrou-se na


infraestrutura implantada para atender aos 'Grandes Projetos', principalmente àquela
infraestrutura relacionada com a rede de comunicação e transporte. As ligações
asfálticas com o Rio de janeiro, Belo Horizonte e Salvador, datam de 1965, 1969 e
1973, respectivamente. O Porto de Tubarão inicia suas operações em 1966. Duplica-
se a Estrada de Ferro Vitória-Minas [...] A nova ESCELSA-Espírito Santo Centrais
Elétricas S.A., em 1968, a interligação desta com FURNAS e com a CEMIG, a
construção da hidrelétrica de Mascarenhas, no Rio doce, no Município de Baixo
Guandu (ES), as redes de transmissão que se estenderam por todas as cidades e vilas,
romperam o estrangulamento energético que retardou historicamente o crescimento
econômico e a industrialização capixaba. A TELEST - Telecomunicações do Espírito
Santo S.A. expandiu a rede urbana e interurbana, integrando-se, ainda, ao sistema
nacional da EMBRATEL - Empresa Brasileira de Telecomunicações S.A.,
expandindo, ainda, os terminais de TELEX. No campo do saneamento básico, a
CESAN - Companhia Espiritossantense de Saneamento, beneficiou dezenas de
localidades estaduais com o programa 'PLANASA-PAEG'. Foi a conjugação de tudo
isso que permitiu a quebra do isolamento estrutural do Espírito Santo.507

Nessa perspectiva, o Espírito Santo alcançava, enfim, uma nova condição. A "quebra do
isolamento estrutural" definiu, portanto, novas possibilidades e, consequentemente, um novo
lugar para o Espírito Santo no cenário nacional. Assim como o discurso político daquele
período, Bittencourt, sob a ótica do desenvolvimento, define o projeto industrial como marco
de superação de uma condição periférica, de um Espírito Santo, enfim, integrado à economia
nacional:

Modifica-se, portanto, o perfil econômico do Estado. Passara, rapidamente, do estágio


agrícola para um importante pólo industrial, nascido da política de incentivos fiscais,
que já apresentava, então, expressivo desempenho no setor que já representava cerca
de 39% da economia estadual, em oposição a 45% do setor de serviços, enquanto a
agricultura respondia apenas por 16%. Graças a todo esse esforço, a Coordenação de
Planejamento da Presidência da República (Coplan), considerou o Espírito Santo

506
Para Bittencourt: "[...] o projeto de industrialização que vinha sendo realizado em nível nacional, começou a
ter desdobramentos no Espírito Santo. Apesar de reduzido, o setor industrial local começou a demonstrar que havia
um núcleo coeso identificado com o projeto nacional de industrialização 'acelerada'. Foi um projeto articulado em
torno da Federação do Comércio e da recém-criada Federação da Indústria, ambas presididas pelo empresário
Américo Buaiz. O projeto agregou um conjunto de atores importantes. Entre eles, Eliezer Batista, que era gerente
e, depois, diretor da Companhia Vale do Rio Doce, em Vitória. Mais tarde, ele se transformaria em presidente da
estatal e, ainda, ministro de Minas e Energia. Outras figuras de destaque também colaboraram para a realização
do projeto de modernização regional. Entre eles, Arthur Carlos Gerhardt Santos, que foi Secretário do
Planejamento do segundo governo de Carlos Lindenberg, no começo de 1960. Na verdade, esses serão os
formuladores e gestores de uma nova política regional de desenvolvimento. Isto é, a partir das gestões e
articulações realizadas por todo um conjunto de pessoas, é que houve um segundo projeto de desenvolvimento
para o Espírito Santo." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho
colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 384-385.
507
Ibid., p. 401.
190

como o único parceiro da economia de São Paulo, em termos absolutamente


proporcionais, entre todos os demais estados brasileiros. 508

O Espírito Santo, portanto, alcançava um novo patamar de desenvolvimento que, enfim, situava
o Espírito Santo em um novo lugar no cenário nacional. Os dois ciclos econômicos permitiram
ao Estado ultrapassar uma condição determinada pela "herança colonial." O projeto de
desenvolvimento industrial, nessa perspectiva, tornou-se o principal marco histórico do Espírito
Santo. Considerando o período de escrita da primeira versão do autor, na década de 1980, o
sentido da superação foi definido pela industrialização, interpretada como alavanca que
permitia ao Estado, enfim, figurar como desenvolvido no contexto econômico brasileiro. O
autor corrobora o discurso político da superação do atraso elaborado nas décadas de 1960 e
1970, assumindo o desenvolvimento via industrialização como o caminho necessário para o
Estado, estabelecendo o sentido de superação de sua trajetória.

Nesse ponto, chegamos ao último período analisado por Bittencourt. Se a industrialização


marcou a emergência de um Espírito Santo desenvolvido, industrializado, qual o sentido da
narrativa para o início do século XXI? A atualização da narrativa elaborada pelo autor remete
a um sentido construído no contexto da última década? Poderíamos, então, tratar de um sentido
da superação do atraso?

4.1.3 A NARRATIVA HISTÓRICA DA SUPERAÇÃO DO ATRASO NO SÉCULO XXI:


UM NOVO CICLO DE DESENVOLVIMENTO E O PROTAGONISMO DO ESPÍRITO
SANTO.

Quando analisamos o paradigma de compreensão e narrativa do Espírito Santo na obra de


Gabriel Bittencourt, percebemos que, o que na década de 1970, com Neida Lúcia e José Teixeira
era a "arrancada para o futuro" ou a "marcha do desenvolvimento", a narrativa elaborada por
Bittencourt definiu o sentido da trajetória do Espírito Santo tendo em vista a superação de sua
condição periférica, considerando que o Estado já havia realizado seu "segundo ciclo de

508
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 429. Encontramos, também: "Destarte, no Espírito Santo, partiu-
se para um processo de industrialização concentrado na área de 'Grande Vitória' e adjacências que, por sua vez, já
canalizava as correntes migratórias do interior, atraídas pelo porto e pelos empreendimentos dos quais, aliás, fora
fator de implantação. Devido às suas múltiplas ligações com os planos superiores, o processo de industrialização
que então se implantou tornou-se irreversível, fato este que proporcionou ao Estado taxas estáveis de crescimento.
A partir de 1966, por cerca de dez anos, a economia capixaba cresceu à taxa de 13,4% a.a., liderado pelo processo
industrial. Esta expectativa de um crescimento global da economia estadual, bem acima da média nacional, tendia
a reduzir a distância entre a renda per capita média do País e a do Estado." Ibid., p. 497.
191

desenvolvimento" e se encontrava em outro patamar, participando da dinâmica econômica


nacional.509

Ao analisarmos a narrativa histórica realizada por Bittencourt no início do século XXI,


observamos que a ampliação da experiência local e o surgimento de expectativas acerca do
crescimento econômico do Espírito Santo, possibilitou a definição de uma narrativa genética
de sentido em diálogo com esse novo horizonte acerca do Estado. Segundo Rüsen:

No modo da constituição genética de sentido, a experiência histórica adquire uma


nova qualidade temporal. Ela passa a ser determinada categoricamente pela
divergência estrutural entre a experiência de tudo o que se acumulou até agora e a
expectativa do inteiramente diverso. O presente entra no campo tenso da transição de
uma à outra. Esse caráter de transição é destacado nos processos e acontecimentos do
passado, historicamente lembrados, como portador de sentido. A concepção
determinante, pela qual o passado dinamizado temporalmente é articulado com a
prática do tempo presente, de modo que o futuro apareça como chance de superação,
é a da mudança constante [...] A plenitude das mudanças temporais, que se rememora,
é integrada numa determinação de sentido (direção), que remete a um futuro para além
do momento presente, e faz aparecerem como transitórias as circunstancias atuais da
vida.510

Dessa forma, seguindo a narrativa do autor e sua ampliação temporal, a rememoração dos
marcos históricos da superação do atraso, ou seja, dos dois ciclos de desenvolvimento
econômico anteriores, foram colocados em função das expectativas de surgimento de um novo
ciclo para o Estado. Se o projeto desenvolvimentista da década de 1960 surgiu em sua narrativa
como marco de ascensão do Espírito Santo, o início do século XXI foi interpretado como o de
configuração de um contexto econômico no qual a representação do Espírito Santo é definida
pelas expectativas de seu protagonismo no cenário nacional.

O Estado é caracterizado pelo seu potencial de, enfim, corresponder ao sentido do


desenvolvimento da economia nacional e internacional. A narrativa do autor sobre a década de

509
É importante ressaltar que o autor não deixa de reconhecer alguns problemas acarretados ao Espírito Santo
nesse processo, ainda que seja secundário em sua obra: “A industrialização engendra um efeito social bastante
adverso, sobretudo em países de grandes desigualdades sociais e em vias de desenvolvimento. Ela eleva os índices
de favelização nas áreas urbanas, atrai trabalhadores das regiões vizinhas e eleva o preço da terra urbana,
degradando o nível de vida nas grandes cidades. Foi o que terminou por ocorrer na área da Grande Vitória. [...] O
Estado do Espírito Santo, entre 1970 e 1980, apresentou um acréscimo de aproximadamente 450.000 habitantes,
acarretando uma taxa média geométrica de incremento anual da população residente de 2.063.610 habitantes.
Desse total, em decorrência do êxodo rural e/ou atraídos pelo advento dos Grandes Projetos de Impacto, 722.607
pessoas viviam na então denominada Grande Vitória, formada pelos municípios da Capital, Vila Velha, Cariacica,
Serra e Viana. Logo, a população do Espírito Santo tornou-se, predominantemente, urbana. Em 1980, 1.325.164
habitantes, 64,21% da população, residiam na zona urbana, enquanto 738.437, apenas 35,78% de seus habitantes,
concentravam-se na zona rural." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do
engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 426-427.
510
JÖRN, Rüsen. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007. p. 59.
192

1990 e o início do século XXI apresenta o surgimento de um novo ciclo econômico no Espírito
Santo em função da nova ordem econômica mundial, a da economia globalizada. Para o Espírito
Santo, a internacionalização da economia reativara, segundo Bittencourt, "aquela capacidade
empreendedora em comércio e serviços já manifestada por ocasião das grandes vertentes da
industrialização, que caracterizou o Estado a partir dos anos de 1970."511Nesse contexto, o autor
resgatou o sentido de superação atribuído ao ciclo da industrialização para identificar um
momento de transformação que se configurava no início do novo século. Destacou em sua
narrativa as mudanças e expectativas que a atividade portuária, a siderurgia e o petróleo
introduziram no Estado.

O Espírito Santo surge em um novo cenário no início do século XXI:

O impacto regional representado pelos investimentos em grandes empresas


implantadas no Espírito santo, como a Aracruz Celulose, a CST, a CVRD e a Samarco,
ou em setores como os de mármore, granito, confecções e metal-mecânico, vem
proporcionando especificidade à economia capixaba. as perspectivas trazidas pelo
segmento de petróleo complementam a possibilidade de ascensão econômica do
estado [...]. Dotado de uma completa infraestrutura de transporte rodoviário,
ferroviário e marítimo, além das modernas estações aduaneiras do interior, para
armazenagem de cargas, esta estrutura permite também ao Estado receber parte da
produção dos estados de Minas gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e Bahia. Uma
situação que posiciona o complexo portuário do Espírito Santo na rota de grandes
investimentos, estimulando a geração de novos negócios e consequente aumento do
volume de cargas transportadas.512

Bittencourt estabeleceu, para o sentido da trajetória de desenvolvimento do Espírito Santo em


sua narrativa, a expectativa de um novo ciclo:

O capixaba pode estar experimentando um novo ciclo da riqueza produtiva, emergente


dos campos de petróleo. É necessário, no entanto, criar um clima contagioso de
investimento empresarial no Estado. Além do aço, celulose, minério e petróleo, o
incentivo a novos setores posiciona-se entre os grandes desafios ao Executivo e

511
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 481.
512
Ibid., p. 473. Sobre contexto econômico caracterizado pelo petróleo, a siderurgia e o complexo portuário
encontramos também: "A introdução de novas tecnologias e de técnicas especiais de perfuração de poços, é que
propiciaram este novo ciclo na bacia terrestre do Espírito Santo, caracterizando tanto as novas descobertas quanto
os expressivos aumentos das reservas e da produção de óleo e gás" p. 485 [...] A companhia Vale do Rio Doce
congrega hoje, instaladas no Porto de Tubarão, sete usinas de pelotização, que produzem cerca de 25 milhões de
toneladas de minério de ferro, destinadas, sobretudo, para o mercado externo. A empresa que detém cerca de 50%
do controle acionário da Samarco, vem estudando a possibilidade de aumentar a produção de suas usinas em mais
de 3,5 milhões de toneladas a partir da construção de mais uma usina, a terceira de pelotização em Ubú, no
município de Anchieta. [...] Por outro lado, as bases portuárias do Espírito Santo vêm, de há muito, servindo de
apoio às empresas multinacionais que atuam na Bacia de campos. A par disso, a movimentação do Porto de Vitória
tem registrado constante crescimento." BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito
Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 485.
193

Assembleia Legislativa a quem competem as políticas estaduais de incentivo ao


desenvolvimento econômico.513

O século XXI apresentava a expectativa de uma nova condição, de protagonismo e afirmação


do Espírito Santo:

No contexto evolucional da economia brasileira o Espírito Santo vem ocupando um


papel de destaque. Pelos números relativos ao Espírito Santo, divulgados pelo IBGE,
o Estado alcançou um crescimento de 6% no ano de 2002, fato este que significou a
maior expansão registrada na Região Sudeste no período. Representou também o
quarto lugar entre os estados que mais sofreram ampliação em suas economias.
Naquele ano, o PIB espiritossantense representou R$ 24,723 bilhões, o 13º lugar entre
as 27 unidades da Federação. Este fato significou, também, a consolidação de uma
característica de crescimento positivo da economia capixaba, pois desde meados da
década de 1980, o PIB local vem crescendo em percentuais acima da média brasileira.
É de se esperar que os esforços da sociedade atual produzam resultados até melhores
do que os que vêm sendo apresentados.514

No entanto, observamos, também, o discurso reivindicativo acerca do novo lugar do Espírito


Santo diante de seus desafios e impedimentos:

A construção de uma posição digna do Espírito Santo quanto a sua organização


espacial requer um processo político ético e competente, com planejamento: esse é o
desafio atual do Espírito Santo. O descompasso entre a posição econômica do Espírito
santo e os resultados políticos e sociais são flagrantes. O Espírito Santo até há pouco,
era o oitavo Estado no ranking de competitividade nacional, considerando-se noventa
e oito indicadores socioeconômicos, segundo o Instituto Simonsen, de São Paulo. [...]
Na última década o Espírito Santo não conseguiu atrair nenhum empreendimento
significativo, que faça sombra aos grandes projetos tecidos nos anos de 1970. [...]
Logo, nos anos de 1960/70, a formulação sobre o desenvolvimento no Espírito Santo
foi superior à dos últimos vinte anos. Desde a década de 1980, vem ocorrendo uma
certa paralisia nesse sentido, no Espírito Santo. Ultimamente, o Estado tem sido uma
das unidades da federação que menos tem recebido investimentos do Governo
Federal.[...] É inadmissível um Estado como o Espírito Santo, com o potencial
econômico que representa, e que se torna ainda mais importante com o crescimento
previsto com a instalação definitiva da indústria do petróleo, dispor de investimentos
tão acanhados por parte do Poder Central.515

Apropriando-se do discurso político característico da primeira década do século XXI no


Espírito Santo, Gabriel Bittencourt finaliza sua narrativa considerando que a "primeira década
deste terceiro milênio possa ficar marcada pela superação dos principais desafios que estão
obstando o desenvolvimento da terra espiritossantense."516

513
BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo
fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 489.
514
Ibid., p. 491.
515
Ibid., p. 500-501.
516
Ibid., p. 501.
194

Bittencourt, portanto, no início do século XXI, recuperou a expectativa otimista sobre o Espírito
Santo e determinou o sentido da superação a partir da representação de novos marcos históricos
de ruptura: a economia cafeeira, com a modernização possibilitada por ela, e a industrialização
pós 1960. A narrativa da formação econômica do Espírito Santo definiu a trajetória de
superação do atraso, ou do "desequilíbrio regional". Este, instituído no período colonial, foi, de
acordo com a narrativa, superado pela industrialização que permitiu ao Estado avançar de uma
condição periférica ao centro da economia nacional.

O sentido de ruptura estabelecido na relação entre as expectativas e a experiência histórica é


modificada apenas na representação do desenvolvimento do Espírito Santo do século XXI. No
contexto do "Terceiro Ciclo de Desenvolvimento", a representação é a da condição de
protagonista. O autor recupera o sentido da superação, mas o avanço do Estado não é
interpretado como ruptura com o ciclo anterior. O horizonte é o do desenvolvimento de suas
potencialidades e o desafio tornou-se o aproveitamento e o reconhecimento desse novo status
no contexto nacional, principalmente, em relação ao Governo Federal. A nova fase da formação
econômica do Espírito Santo seria a do seu protagonismo.

O paradigma da história econômica e a determinação do sentido da narrativa fundamentada nos


ciclos de desenvolvimento econômico estabeleceu novos marcos históricos que ganharam um
significado no contexto do início do século XXI. De acordo com a trajetória do Espírito Santo
na obra de Bittencourt, o lugar marginalizado e periférico do Estado no passado não condizia
mais com a atualidade e as expectativas de crescimento. Assim, a narrativa histórica da
superação do atraso via ciclos econômicos estabeleceu o passado histórico para a legitimação
do "Terceiro Ciclo de Desenvolvimento" utilizado por Paulo Hartung durante a primeira década
desse século. Como vimos, o discurso político nesse período reforçou o novo lugar do Espírito
Santo no cenário nacional. O próprio Hartung caracterizou esse status:

A partir de 2003, o Espírito Santo reconquista a estabilidade e a credibilidade político-


governamental e institui um renovado modelo de desenvolvimento, dando início ao
seu terceiro ciclo econômico. O novo ambiente político-institucional capixaba traz
impactos positivos para o setor privado em duas frentes: anima os empresários já
instalados a ampliar seus negócios e, ao mesmo tempo, atrai novos investidores
nacionais e estrangeiros. [...] Nos últimos cinco anos, nosso PIB mais que dobrou. O
crescimento industrial capixaba se destaca no cenário nacional. De outubro de 2006 a
outubro de 2007, o incremento da indústria capixaba chegou a 6,8%.
O investimento privado foi importante em 2007, ano em que também se anunciaram
novos recursos em áreas como siderurgia, petróleo e gás, logística, entre outros.
Podemos destacar, na siderurgia, a expansão da Arcelor Mittal, a ampliação da Vale
e da Samarco e a nova usina Companhia Siderúrgica Vitória (CSV), parceria da Vale
com a chinesa Baosteel. Na área de logística, a Vale, além de um porto de águas
195

profundas, com 22 metros de calado, inicia as obras da Ferrovia Litorânea Sul. Temos
ainda cinco terminais portuários em processo de licenciamento. Eles se somarão ao
terminal de barcaças da Arcelor Mittal, recém-inaugurado juntamente com a expansão
da siderúrgica, e ao terceiro píer em Portocel, em construção, num porto especializado
em celulose. O Espírito Santo caminha para ser um dos pólos nacionais de logística,
base fundamental para o desenvolvimento brasileiro.
A indústria do petróleo e do gás está a todo vapor. A exploração dos campos terrestres
e marítimos avança com novas plataformas e outros investimentos. Ainda nessa área,
registramos dois fatos importantes. O primeiro é que o Espírito Santo vai despachar
para o Brasil, na virada de 2008 para 2009, cerca de 20 milhões de metros cúbicos de
gás. Com isso, 50% da produção nacional, de 40 milhões de metros cúbicos, sairá dos
campos terrestres e marítimos do Espírito Santo. Uma solução capixaba para um sério
problema brasileiro.517

O discurso de Paulo Hartung, portanto, corresponde à caracterização de um novo ciclo narrado


por Gabriel Bittencourt. O discurso do desenvolvimento e a imagem do "Novo Espírito Santo"
foram construídos a partir da projeção de um horizonte inaugurado por um novo ciclo, nova
fase de uma trajetória que já contava com dois ciclos históricos de desenvolvimento.518
Instituía-se, assim, um discurso político que definia o governo Paulo Hartung como marco
histórico de superação. E, a narrativa da formação econômica do Espírito Santo fundamentava,
nessa perspectiva, essa imagem política.

517
REZENDE, Sidney. Três perguntas a Paulo Hartung. 8/01/2008. Disponível em:
http://www.sidneyrezende.com/noticia/1862. Acesso em: 26/06/2009.
518
O documento ES2025, ao projetar o futuro do Estado, apropria-se exatamente da narrativa dos ciclos históricos
do desenvolvimento: "Desde meados do século XIX até a década de 1950, os ciclos econômicos do Estado do
Espírito Santo estavam intimamente ligados à atividade cafeeira. A história do café no estado tem início pelo sul,
por influência da cafeicultura fluminense em franca expansão. Com isso, instalaram-se na região grandes unidades
produtoras de café arábica, utilizando mão de obra escrava. A partir de 1880, com a intensificação da imigração,
começam a surgir novos pólos produtores de café na região central capixaba, que trazem consigo um novo modelo
de produção pautado em pequenas lavouras familiares. No limiar da década de cinquenta, 75% dos
estabelecimentos rurais no Espírito Santo tinham o café como principal atividade e a cafeicultura contribuía
diretamente com cerca de um terço da renda gerada no estado e com mais de 40% das suas receitas tributárias. As
recorrentes crises de queda de preço na atividade cafeeira reduziram significativamente a renda de boa parte da
população. Entretanto, o modelo de produção em pequenas propriedades familiares dificultava a substituição da
cultura, em razão do caráter de subsistência de parte delas. [...]O ciclo de diversificação econômica pela via
industrial tem início na década de 60, quando a cafeicultura sofreu forte redução em sua participação na economia
do estado com o programa de erradicação dos cafezais menos produtivos. A implantação do Porto de Tubarão, em
Vitória, pode ser encarada como o “divisor de águas” deste processo de industrialização, e a subsequente instalação
e operação das duas primeiras usinas de pelotização de minério de ferro da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)
levou a um visível salto na indústria de transformação capixaba. Entretanto, foram ainda pouco expressivas as
alterações da estrutura industrial, pois os pequenos estabelecimentos continuaram predominantes. A partir de 1975,
a expansão industrial foi mais significativa do ponto de vista da diversificação, tendo sido fomentada pelo grande
capital estatal e estrangeiro. Essa etapa foi marcada pela instalação e expansão dos chamados “grandes projetos”
– grandes unidades industriais focadas na produção de bens intermediários (commodities) –, formulados no âmbito
do planejamento estratégico do governo federal que visava deter, ou minimizar, a reversão ocorrida após o fim do
período conhecido como “milagre econômico”.ES 2025. Plano estratégico para o desenvolvimento do Espírito
Santo: carteira de projetos estruturantes. Espírito Santo: Macroplan, 2006. 10 volumes. p. 23. Disponível em:
http://www.espiritosanto2025.com.br. Acesso em 06 de maio de 2010.p. 27-28.
196

A apropriação da narrativa histórica dos ciclos econômicos não foi a única forma de legitimação
do "Novo Espírito Santo". O uso do passado pelo discurso político, como pode ser visto a seguir,
foi recorrente nesse período.

4.2 AS "MEMÓRIAS DO DESENVOLVIMENTO" E OS USOS POLÍTICOS DO PASSADO.

O início do século XXI e as expectativas de crescimento econômico estadual apresentaram,


também, outras configurações que caracterizaram a mobilização de determinadas lembranças
em função da legitimação do poder e definiram, como sugere Marc Ferro, um novo foco da
história local a partir das "memórias do desenvolvimento".

Um marco desse fenômeno podemos identificar na publicação do livro "Memórias do


Desenvolvimento."519 A obra é resultado de seminários realizados no meio acadêmico inseridos
no curso de mestrado em Administração da UFES, coordenados por João Gualberto que à época
era detentor de uma cadeira de história do desenvolvimento do Estado. A proposta do livro é a
de "registrar a memória do desenvolvimento econômico do Espírito Santo" a partir da noção de
que o entendimento das "explicações sobre o que ocorreu no passado ajudam a entender melhor
o presente e a planejar o futuro."520 O livro lançado em 2002 reflete justamente as preocupações
com o Espírito Santo no início do século XXI, com o propósito de "refletir sobre as 'trajetórias
de Desenvolvimento do Espírito Santo', apontando caminhos de reconstrução baseados no
entendimento do processo histórico de desenvolvimento do Estado e reconhecendo o papel de
diversos atores políticos nessa trajetória". A obra, dessa maneira, é apresentada como resgate
de uma memória entendida como exemplar para se pensar o Espírito Santo no início do século:

A partir desse contexto, a exigência de uma reviravolta nos rumos e de perspectivas


propositivas de ação inspirou o professor e pesquisador João Gualberto a investigar o
passado em busca de identidades positivas, que demonstrassem que, partindo da
vontade política do que ele denomina 'lideranças' e de uma conjuntura promissora
(perspectiva de novos governos em âmbito federal e estadual, com discurso
desenvolvimentista; descoberta de novos campos de petróleo no Estado; etc.), como
houvera em décadas passadas, se poderiam cumprir dois papéis: um de valor histórico,
de resgate da memória de desenvolvimento do Estado respaldada por aqueles que
ajudaram a construí-la, o que, ao mesmo tempo, lhes presta um tributo; outro de valor
reflexivo, a partir do momento em que dialoga a academia universitária, analítica,
apontando os caminhos de desenvolvimento, dada uma determinada conjuntura
político-econômica, com personagens políticos que desmitificam a possibilidade de

519
VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004.
520
ORRICO, José Luiz Soares. Prefácio. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do
Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p. p. 9. José Luiz Soares Orrico era, à época, diretor da
Organização Futura uma das responsáveis pela publicação da obra junto com o Programa de Mestrado em
Administração da Universidade Federal do Espírito Santo.
197

racionalização na análise do processo de desenvolvimento, colocando em questão as


subjetividades envolvidas nos processos decisórios [...]." 521

A obra é constituída de capítulos em que se debatem os caminhos do Espírito Santo tendo em


vista a sua "trajetória de desenvolvimento". É sob essa perspectiva que capítulos como o de
João Gualberto e Ricardo Pandolfi ou ainda os dos ex-governadores Christiano Dias Lopes
Filho e Arthur Gerhardt colaboram na construção de uma memória que se articula com uma
dada narrativa da superação. As abordagens dos ex-governadores estão presentes em função de
serem eleitos como marcos, exemplos desse passado a ser resgatado em função do futuro do
Estado. Assim, uma análise do texto de Arthur Gerhardt nos permite encontrar o relato de sua
experiência profissional e política, bem como seu papel na condução dos Grandes Projetos
Industriais e que, consequentemente, segundo ele, considerou ser uma grande transformação do
Estado.522 Christiano Dias Lopes, por sua vez, destaca sua atuação frente ao governo do
ressaltando, sobretudo, o esforço empreendido para que o Espírito Santo conquistasse os
investimentos industriais.523 Seguindo o sentido da superação do atraso, insere o seu governo e
o de Gehardt como marcantes de uma trajetória de desenvolvimento do Espírito Santo.524

521
BIANCO, Mônica de Fátima. Introdução. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do
Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p. 11-13.
522
Segundo Arthur Gehardt: "[...] para a economia do Estado era uma transformação muito grande. Depois dessa
transformação que durou desde o final da década de 60, toda a década de 70 até o início da de 80, a composição
da renda bruta do Estado sofreu uma modificação radical. A parte agrícola deixou de ter importância que tinha,
desceu para os níveis civilizados, digamos, de 20% a 30% da formação da renda interna. O setor industrial cresceu
muito. Ele era muito pequeno e passou a ter uma importância muito maior, e o setor de serviços criou uma gama
muito grande e uma importância muito grande no Estado." GEHARDT, Arthur. O nascimento dos grandes
projetos. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade,
2004. p. 54.
523
Segundo Christiano Dias Lopes Filho: "Então, meus caros, esse é um trajeto que fizemos para chegar aos anos
mais recentes que vivemos com muito entusiasmo, sobretudo, para obter do Governo Federal uma compensação
para o Espírito Santo em virtude dos prejuízos que este levava por causa da Sudene". FILHO, Christiano Dias
Lopes. A formulação do Desenvolvimento. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do
Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p. 28.
524
O ex-governador Christiano Dias Lopes Filho resgata um roteiro de superação dos prejuízos históricos: "[...]
Com a Proclamação da República, inicia-se, a partir de 1889, um período de vários governos marcados por
importantes decisões. Não se pode deixar de citar Muniz Freire, Henrique Coutinho, que foi quem antecedeu
Jerônimo Monteiro, que, já no governo de Munis Freire, exerceu o seu prestígio, a sua atividade e a sua inteligência,
conduzindo um empréstimo externo para o governo do Espírito Santo que estava em dificuldade. [...] Bem,
seguindo Jerônimo Monteiro veio Florentino Avidos. Houve aí Marcondes de Souza, Bernardino Monteiro e
Nestor Gomes, que não deixaram registrados muitos acontecimentos e muitos saltos de desenvolvimento do
Estado. Marcantes mesmo foram os períodos de Jerônimo Ribeiro e, já no final do primeiro quartel do século, de
Florentino Avidos." VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento. Vitória:
Multiplicidade, 2004. p. 24-25. Segue, ainda, definindo Jones dos Santos Neves também nessa linha sucessória de
governos desenvolvimentistas: "[...]O Jones entrou num período de intervenção, período interventorial. Nesse
período de 42, 43 e 44, ele deixou plantado, deixou estruturado um projeto de desenvolvimento econômico que
raramente se poderia encontrar para aquela época. Depois, eleito governador em 1950, tomou posse em 1951 e
então executou o seu projeto [...]. Aqueles procedimentos de Jones, aqueles estudos de Jones, aquela dedicação de
Jones, do qual eu fui oficial de gabinete, influenciaram tanto na formação do jovem de 20 anos que eu era [...]."
198

João Gualberto e Ricardo Pandolfi, por sua vez, ressaltando as figuras desses ex-governadores,
analisam a trajetória do desenvolvimento econômico do Espírito Santo a partir do papel político
das "lideranças" como propulsores do desenvolvimento local. Avaliam, assim, a história do
desenvolvimento do Espírito Santo sob a perspectiva das elites políticas e seu papel na
condução do Estado. Para eles:

Os chamados bons governos, aqueles que conseguem dotar as instâncias públicas de


eficiência e produzir atores sociais consistentes, acabam alimentando positivamente a
sociedade. No que diz respeito à esfera econômica, os bons governos terminam por
produzir a outros arranjos institucionais e conduzem a coletividade a outros patamares
produtivos. No caso inverso, quando as elites que se apropriam da máquina pública
não são capazes de conduzir com eficiência os destinos coletivos, temos o fracasso. 525

Atualizam a narrativa da superação de atraso e reforçam o paradigma da superação


evidenciando um roteiro histórico do Espírito Santo com marcos significativos do passado que
dão sentido à trajetória do Estado. Assim, recuperam a noção dos dois ciclos econômicos como
fundamentais desse percurso, a cafeicultura e a industrialização.526 Para eles, dois contextos
bem específicos do Espírito Santo produziram elites capazes de conduzir o Estado a novos
patamares de desenvolvimento: a elite política proveniente da economia cafeeira do início do
período republicano, responsável por inserir o Espírito Santo na economia nacional e o "projeto
jonista" de industrialização das décadas de 1950, 1960 e 1970.527

FILHO, Christiano Dias Lopes. A formulação do Desenvolvimento. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.).
Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p. 26.
525
PANDOLFI, Ricardo; VASCONCELLOS, João Gualberto. Elites e Gestão do Desenvolvimento: uma reflexão
sobre o caso do Espírito Santo. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento.
Vitória: Multiplicidade, 2004. p. 124-125.
526
Ibid., p. 126-134.
527
Sobre a economia cafeeira eles asseveram: "Como o objeto privilegiado da ação do Estado era o café, as
principais realizações estiveram não só na construção de ferrovias, do Porto de Vitória, elementos importantes
para seu escoamento, além da melhoria das condições urbanas da capital, mas também na industrialização do Sul
do Estado. Em termos de gestão pública, chamam a atenção por sua visão de futuro, Muniz Freire, duas vezes
presidente do Estado entre 1891 e 1894 e entre 1900 e 1904, e, pelo caráter gerencial de suas ações, Jerônimo
Monteiro. O último presidente entre 1908 e 1912 acabou transformando em realidade muitos dos projetos de Muniz
Freire. Isso sem falar dos governos laboriosos de florentino Avidos ou de Nestor Gomes, nos anos 1920, auge da
produção cafeeira na República Velha. É importante fixar a ideia de que houve um projeto de desenvolvimento
para o Estado que foi sendo construído por aquilo que estamos chamando de cultura do café e pelos intelectuais
que ela pode gerar. Esse projeto foi sendo implantado aos poucos por várias gerações de empreendedores no campo
político e na iniciativa privada. Foi dessa liga que surgiu o desenvolvimento possível, mas que tirou o Espírito
Santo do marasmo e o colocou, dentro de suas possibilidades, no contexto da economia brasileira." In:
VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade, 2004. p.
130. A respeito do "projeto jonista" encontramos: "O projeto jonista começou a produzir resultados mais orgânicos.
Não apenas o aparelho do Estado ficou mais preparado para gerir um processo de industrialização, mas também
aliados importantes foram construídos, boa parte deles alojados na Findes. Entretanto, a finalização do projeto foi
feita por Christiano Dias Lopes Filho.[...] O projeto jonista viveria no Governo Christiano Dias Lopes, segundo
Orlando Caliman, um período de inflexão, pelo fato de representar uma ruptura com o modelo de crescimento
anterior. Mais uma vez as elites locais, como haviam feito na cultura do café, criaram e implantaram um projeto
de desenvolvimento local. Foi da articulação de diferentes atores e da ação planejada do Estado que ele foi
199

Os autores reforçam uma dada memória do desenvolvimento do Espírito Santo evidenciando


as realizações de determinados atores políticos para o futuro do Estado. Tal como a narrativa
de Bittencourt, como vimos, o sentido do passado local é definido pelos dois momentos
caracterizados pelos autores que, inclusive, a partir desse início do século XXI fundamentariam
a definição do "Terceiro Ciclo de Desenvolvimento."528

Outro participante da configuração dessa memória é a ONG Espírito Santo em Ação que tem
promovido o reforço do discurso da superação.529 De acordo com a proposta da Organização,
um de seus setores é responsável por promover a imagem do Espírito Santo:

O Comitê Temático de Capital Social, Cultura e Imagem - CT07 objetiva desenvolver,


valorizar e ressaltar aspectos da sociedade capixaba, fazendo com que suas
características e peculiaridades sejam reconhecidas pela sociedade, evidenciando o
Estado como um dos mais promissores e ricos em diversidade cultural no país. A
proposta é promover o conhecimento do Espírito Santo no Brasil e no mundo,
disseminando uma imagem positiva do Estado, além de enfatizar os atributos que
caracterizam a identidade capixaba.530

Nesse sentido, ela tem como um de seus propósitos a produção ou a reedição de obras ligadas
ao tema do desenvolvimento do Estado. Por exemplo, a obra de Haroldo Rocha e Ângela
Morandi, Cafeicultura e grande indústria: a transição no Espírito Santo (1955-1985), já citada,
teve sua reedição conduzida pela referida ONG. Tal proposta, demonstra um determinado

formulado e implementado. Mas ele havia produzido resultados. Seu principal objetivo que era tirar o Espírito
Santo da estrita dependência do café, obtivera êxito. Havia as indústrias e um aparato governamental muito mais
qualificado. Assim como os positivistas do final do século XIX formularam um projeto que colocou o Estado na
cena nacional a partir do café, os desenvolvimentistas articulados em torno de Jones e fortemente ligados ao ideal
getulista também obtiveram resultados. O Espírito Santo jamais seria o mesmo." PANDOLFI, Ricardo;
VASCONCELLOS, João Gualberto. Elites e Gestão do Desenvolvimento: uma reflexão sobre o caso do Espírito
Santo. In: VASCONCELLOS, João Gualberto (org.). Memórias do Desenvolvimento. Vitória: Multiplicidade,
2004. p. 133-134.
528
A leitura do passado realizada pelos autores surge das expectativas de futuro para o Espírito Santo. Revisitar o
passado, nesse caso, significou apropriar-se de um roteiro histórico já fundamentado com o propósito de pensar os
caminhos do Espírito Santo no século XXI. Por isso, encontramos interpretações condizentes com o discurso do
"Novo Espírito Santo" inaugurado por Hartung na mesma década. Segundo Gualberto e Pandolfi: "Assim,
encontra-se o Espírito Santo no ano de 2002 diante de seu próprio destino. A base industrial está montada. Existem
grandes interesses econômicos constituídos no Estado, mas não existe mais um projeto claramente colocado para
a sociedade. A ausência desse projeto é sentida em vários pontos do tecido social, sejam públicos, sejam privados.
Por tudo isso é preciso pensar em um novo projeto de longo prazo para o Estado. É preciso estabelecer novos
padrões de articulação de interesses capazes de fazer retornar o interesse e a mobilização, capazes de mobilizar a
sociedade em torno do futuro da região" Ibid., p. 138.
529
Como observamos no Capítulo 1, ela participa diretamente na formulação de documentos e projetos acerca do
Espírito Santo, como o ES2025, além da promoção de seminários e estudos relativos ao desenvolvimento
econômico local.
530
Grupo de trabalho responsável pelas ações relativas à essa área temática, responsável pelas publicações.
http://www.es-acao.org.br/index.php?id=/comites_tematicos/capital_social,_cultura_e_imagem/index.php
200

passado a ser resgatado ou a retomada de certa narrativa sobre ele. 531 Assim, o resgate é
orientado por uma noção de "superação de desafios":

Muitas vezes, quem vive neste cenário moderno e atrativo, desconhece os fatos
históricos que conduziram o Espírito Santo a um futuro tão promissor, mas também
desafiador. Esses acontecimentos, que têm suas bases no processo de colonização
brasileira, deixaram marcas claras no desenvolvimento do Estado.
Ao ler este livro, você vai entender as profundas transformações vividas pela
sociedade capixaba, a partir da década de 1960, e vai perceber que a história que o
Espírito Santo escreveu é marcada por desafios. Aliás, esta é uma peculiaridade do
nosso povo: vencer a falta de oportunidades e transformar as ameaças em
benefícios.532

Além dessa política de reedições, a ES em Ação é responsável pela coleção Memórias do


Desenvolvimento do Espírito Santo: Grandes Nomes que tem produzido obras que resgatam a
experiência pretérita de personalidades vinculadas ao desenvolvimento econômico do Estado.
De acordo com a própria ONG, temos o propósito da Coleção:

O Comitê Temático de Fortalecimento da Identidade e Imagem do Estado (CT10) está


desenvolvendo o programa Memória do Desenvolvimento do Espírito Santo, cuja
finalidade é resgatar e preservar a sua rica história de crescimento e, assim, evitar que
a memória se perca no tempo.[...] A coleção Memória do Desenvolvimento do
Espírito Santo: Grandes Nomes é uma das ações do programa e contempla a

531
Na apresentação da obra, temos: "Hoje, você tem em suas mãos mais um fruto do nosso trabalho. Trata-se do
primeiro volume da coleção, um conjunto de estudos sobre um importante período da história desenvolvimentista
do nosso Estado. São trabalhos profundos, produzidos e publicados por pesquisadores e acadêmicos, sobretudo
nas décadas de 1980-90, que serviram de referência para a construção do pensamento político e econômico acerca
da modernização do nosso estado. Nosso objetivo ao reeditar este primeiro volume - obra de dois importantes
economistas do nosso estado - é promover uma reflexão sobre o processo de industrialização do Espírito Santo,
seus impactos e as oportunidades que surgiram a partir deste processo." THEODORO, Alexandre Nunes.
Apresentação. In: ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI, Ângela Maria. Cafeicultura e grande indústria: a
transição no Espírito Santo (1955-1985). 2.ed. Vitória: ES em Ação, 2012. p. 21.; A divulgação do lançamento
também expôs os propósitos e a perspectiva da reedição desta obra e da linha editorial das publicações de maneira
geral: " O objetivo do Espírito Santo em Ação ao reeditar esse volume - a primeira edição foi lançada em 1991 - é
promover uma reflexão sobre o processo de industrialização do Espírito Santo, seus impactos e as oportunidades
que surgiram a partir deste processo. Esta edição, importante contribuição para os estudos da economia capixaba,
contou com o apoio do Bandes e da Vale. O livro, com 173 páginas, narra o enorme abalo da economia capixaba,
na década de sessenta, com a erradicação dos cafezais. O Estado tinha perdido grande parte de sua principal
atividade econômica e não havia alternativa imediata para sua substituição. Foi este preocupante cenário que levou
os empreendedores e as autoridades políticas capixabas a trilhar novos planos para o desenvolvimento do Estado,
sendo a atividade industrial o foco principal. O coordenador do projeto e membro do Comitê Temático de
Fortalecimento da Identidade e da Imagem do Estado, João Gualberto Vasconcellos, explica que a proposta da
coleção "Economia e Política" é a edição ou reedição de importantes obras para a compreensão da história e
realidade atual do Estado: "Uma das linhas editoriais é valorizar grupos de intelectuais que produziram, nos anos
80, trabalhos muito importantes. Entre os professores da UFES que constituíram a geração intelectual dessa época,
certamente estão Haroldo Corrêa e Ângela Morandi. Trata-se de um trabalho de grande valor para a compreensão
do que se passa hoje e um exemplar extraordinário da capacidade de se produzir intelectualmente". [...] A coleção
"Espírito Santo: Economia e Política" visa reeditar obras e estudos, das décadas de 70 e 80, de pesquisadores que
descrevem fatos econômicos e políticos do Estado. Disponível em: http://www.es-
acao.org.br/index.php?id=/sala_de_imprensa/materia.php&cd_matia=3065.Acesso: 12/04/2015.
532
THEODORO, Alexandre Nunes. Apresentação. In: ROCHA, Haroldo Corrêa; MORANDI, Ângela Maria.
Cafeicultura e grande indústria: a transição no Espírito Santo (1955-1985). 2.ed. Vitória: ES em Ação, 2012. p.
22.
201

publicação de uma série de livros que contam a história de grandes empreendedores


que tiveram um papel relevante na construção e no desenvolvimento do Espírito
Santo. Além disso, contempla a reedição de obras de autores capixabas que tenham
explorado o mesmo tema. 533

Assim, dentre as publicações, encontram-se as que abordam a trajetória de Christiano Dias


Lopes Filho, elaborada por João Gualberto Moreira Vasconcellos, e as que trazem as
experiências de Américo Buaiz e Moniz Freire, ambas escritas por Estilaque Ferreira dos
Santos.534 De modo geral, elas trazem as trajetórias de vida desses personagens históricos
destacando suas atividades empreendedoras que são identificadas com a própria história do
Espírito Santo. As realizações de empresários e governadores surgem como marcos históricos
do Estado que nos remetem, inclusive, ao lugar ocupado pelos "condutores do progresso" nas
narrativas da superação do atraso.

A primeira publicação, em 2010, apresenta a "memória do desenvolvimento" a partir de


Christiano Dias Lopes Filho. Além de englobar os principais acontecimentos políticos que
compuseram a carreira política do ex-governador, a narrativa ressalta seu legado na elaboração
de um projeto de desenvolvimento535 e criação das condições necessárias para que o Espírito
Santo ingressasse em uma era de transformações via industrialização. O roteiro, portanto,
constitui-se, principalmente, pelas mudanças administrativas e criação de órgãos necessários
para viabilizar o desenvolvimento no Estado, junto com a luta por investimentos necessários

533
ES em Ação. Memória do Desenvolvimento: Grandes Nomes. Disponível em: http://www.es-
acao.org.br/index.php?id=/rede_de_desenvolvimento/responsabilidade_social/materia.php&cd_matia=2418.
Acesso em: 08/05/2015.
534
Até agora, tal coleção corresponde às seguintes obras: VASCONCELOS, João Gualberto (coord.). Christiano
Dias Lopes. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2010. (Memórias do Desenvolvimento do Espírito Santo: Grandes
Nomes); SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Américo Buaiz. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2011. (Memórias do
Desenvolvimento do Espírito Santo: Grandes Nomes); SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória:
Espírito Santo em Ação, 2012. (Memórias do Desenvolvimento do Espírito Santo: Grandes Nomes). Para nossa
análise, não vamos desenvolver uma abordagem em torno da obra sobre Américo Buaiz pois centramos naquelas
que trazem a trajetória dos ex-governadores. No entanto, Estilaque dos Santos segue a mesma perspectiva das
demais no propósito de ressaltar o legado desse personagem para a história do Espírito Santo. O autor realizou
amplo trabalho de pesquisa e relacionou a experiência de Américo Buaiz tanto à chegada dos imigrantes libaneses
ao Brasil como ao pensamento desenvolvimentista brasileiro.
535
O autor reforça essa imagem: "O legado daquela administração dependeu da força e do caráter de seu líder. Um
líder que não era de meias palavras, não se curvava a interesses privados, não negociava em questões que
colocassem em xeque seus valores, crenças e objetivos. O desejo de desenvolver o Espírito Santo foi infinitamente
maior que os interesses políticos do próprio Governador. Colocando o Estado acima de sua carreira, Christiano se
consolidou como um verdadeiro líder, um estadista, afinal." VASCONCELOS, João Gualberto (coord.).
Christiano Dias Lopes. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2010. p. 328.
202

para tal. A narrativa assume, inclusive, o próprio discurso político da época, tendo como fio
condutor o sentido de superação do atraso estabelecido por suas ações.536

Tendo em vista o contexto de produção dessas narrativas, tão importante quanto as lembranças
recuperadas na obra, evidenciamos como a narrativa é apropriada para ressignificar o discurso
da superação do atraso na contemporaneidade. Estilaque Ferreira dos Santos, no prefácio da
obra, resgata a busca da superação como ideal político do Espírito Santo, do qual Christiano
Dias Lopes seria representante:

De forma muito inteligente e patriótica, ele percebeu que a política que estava sendo
posta em prática pelos militares, que incluía a redução das desigualdades regionais,
mas implicava também eficiência na alocação dos recursos produtivos, poderia
favorecer o Espírito Santo, desde que este apresentasse projetos exequíveis e
razoáveis de desenvolvimento econômico e foi isso o que ele procurou fazer. Ou seja,
ele percebeu que a situação exigia uma requalificação da gestão política e
administrativa do estado, adequando-a às novas funções que aquele quadro impunha.
Era uma 'janela de oportunidade', como se diz hoje, que o estado não poderia perder,
mas que era preciso lutar e qualificar-se para que ela fosse bem aproveitada. E foi isso
o que ele e sua equipe procuraram fazer, iniciando assim a realização de um sonho
que vinha desde os primórdios da república com Moniz e Jerônimo, passando por
Jones dos Santos Neves e Carlos Lindenberg e muitos outros: o da equiparação do
Espírito Santo aos estados mais desenvolvidos da federação brasileira. 537

Estilaque dos Santos reitera os lugares desses personagens, tal como Christiano Dias Lopes
Filho, em função do ideal de superação. Tal perspectiva é também apresentada por Paulo
Hartung na apresentação da obra:

[...] À frente do governo, promoveu uma drástica modernização da máquina


administrativa. Num momento de crise da economia capixaba, soube agir para
viabilizar o segundo ciclo da história econômica do Espírito Santo. [...] O ideal de
superação da subalterna condição político-econômica do Estado, assim como das
precárias condições de vida de nosso povo, mobilizou Christiano ao longo de sua vida,
levando-o ao Palácio Anchieta no período de 1967 a 1971. [...] Christiano fez
importantes movimentos no processo de superação desses desafios. No tocante à
administração estadual, o ex-governador promoveu a modernização das estruturas
governativas, com extinção de diversos órgãos, criação de departamentos, empresas
públicas, autarquias e serviços que dessem maior capacidade de ação do governo.538

Hartung reforça a questão dos desafios do Espírito Santo como característica de uma "história
de superação, em várias frentes e em condições e tempos desafiantes."539 Aqui, novamente,

536
Ver capítulos IV, V, VI e VII. VASCONCELOS, João Gualberto (coord.). Christiano Dias Lopes. Vitória:
Espírito Santo em Ação, 2010. p. 107-299.
537
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Prefácio. In: VASCONCELOS, João Gualberto (coord.). Christiano Dias
Lopes. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2010. p. 19.
538
HARTUNG, Paulo. Apresentação. In: VASCONCELOS, João Gualberto (coord.). Christiano Dias Lopes.
Vitória: Espírito Santo em Ação, 2010. p. 9.
539
Ibid., p. 10.
203

estamos diante da recuperação de uma noção que orienta o discurso político local. E, ainda
mais, reveladora de seu uso político. No "Prólogo" da obra, Idalberto Luiz Moro, estabelece a
seguinte relação:

[A obra] ganha importância porque retrata a história e as decisões de homens públicos


que foram fundamentais e interferiram na história de cada um de nós.[...] O momento
político no qual Dr. Christiano Dias Lopes foi Governador do Estado permitiu que sua
capacidade política e administrativa fosse colocada à prova. Ele conduziu com rara
habilidade as delicadas relações institucionais internas. Assim também o fez entre o
Estado e a União. O Espírito Santo, acanhado na região sudeste, precisava de projetos
que fortalecessem a sua economia. [...] A exemplo da gestão inovadora do Governo
Paulo Hartung, que implementou o Programa de Competitividade - Compet, que
beneficiou o Estado e, especificamente, o segmento atacadista e distribuidor, Dr.
Christiano planejou e concretizou importantes estruturas como Fundap, o Bandes e o
Geres, que até hoje são fundamentais para o desenvolvimento econômico e social do
Espírito Santo. prova inequívoca da competência de um estadista ímpar. 540

Podemos observar como a "memória do desenvolvimento" torna-se legitimadora de


determinados grupos e projetos políticos. No contexto de possibilidades acerca do
desenvolvimento econômico na primeira década do século XXI, as biografias definiram um
valor histórico a esses personagens atribuindo-lhes um sentido de superação e um legado para
o presente e seus horizontes de expectativas. É com essa orientação que se apresenta a obra
"Muniz Freire"541, de Estilaque Ferreira dos Santos. Ela é uma biografia que apresenta uma
relação direta com a história das ideias políticas. O autor realiza um trabalho de pesquisa amplo
e analisa a atuação política de Moniz Freire a partir da história do pensamento político, em
especial, a história do pensamento republicano no Brasil.542 Nesse sentido, Moniz Freire, tendo
sua formação político-intelectual fundamentada na tradição política familiar, a do "partido
capixaba"543 e pelo positivismo do século XIX, é interpretado pelo autor como representante da

540
MORO, Idalberto Luiz. Prólogo. In: VASCONCELOS, João Gualberto (coord.). Christiano Dias Lopes.
Vitória: Espírito Santo em Ação, 2010. p. 11.
541
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. O autor deu
preferência, no transcorrer de seu texto, em denominá-lo de "Muniz Freire". Em nosso texto, mantivemos a grafia
"Moniz Freire" e nas transcrições da obra respeitamos a do autor.
542
Sobre sua pesquisa, o autor argumenta: "A história econômica, social, política e cultural do Espírito Santo nos
séculos XVIII e XIX ainda é bastante desconhecida. Suas fontes documentais são muito escassas, e mais pobre
ainda é a historiografia desse período. Via de regra, a história desses dois séculos nos é apresentada de uma maneira
muito episódica e descontínua, sob a forma de uma extensa lista de funcionários políticos e militares nomeados
pelo Governo metropolitano e, depois pelo Governo central, que teriam governado a antiga capitania sem muita
inspiração. A partir do que nos fornece a historiografia, temos uma noção muito vaga do que teria sido a sua
estruturação social, se é que havia alguma, e igualmente deficientes são as informações de que dispomos no que
diz respeito à sua evolução política e cultural." SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito
Santo em Ação, 2012. p. 24.
543
A origem do jornal O Marimbondo, em 1860, marcou o surgimento de uma ideia que se desenvolveria no ES:
a de um "partido capixaba" voltado para atender aos interesses de uma elite política local no contexto do sistema
político caracterizado pela bipolaridade e revezamento do partido conservador e liberal no poder. Ibid., p. 113-
115. Estilaque estabelece essa relação: "Essa era uma aspiração defendida pelo antigo 'partido capixaba', desde
meados do século XIX, ainda no Império, quando seus parentes, inclusive seu próprio pai, que era natural da Bahia,
204

gênese do pensamento e manifestação do republicanismo, e sua especificidade, no Espírito


Santo.

A narrativa reconhece a atuação política de Moniz Freire como origem da manifestação do


discurso político reivindicativo tendo em vista a condição de marginalização do Estado no
cenário nacional. A obra não só vincula-se à proposta da "memória do desenvolvimento" como
também está inserida em seu tempo. O contexto de crescimento econômico, as expectativas
acerca do desenvolvimento local e a questão do lugar ocupado pelo Espírito Santo orientam a
interpretação do passado, no caso, o contexto de atuação política de Moniz Freire. Ele é
interpretado como marco de superação de um atraso. As referências relacionam a atualidade do
Espírito Santo, do "Terceiro Ciclo de Desenvolvimento", com o projeto de Moniz Freire.
Segundo o próprio autor:

[...] antecipando-se premonitoriamente à atual onda globalizante, eles se sentem


integrados nessa realidade universal, e, embora reconheçam e busquem as marcas da
identidade regional, e daí o seu capixabismo (o capixabismo modernizado do partido
capixaba), o que eles queriam de fato era colocar sua província no nível do século,
aprofundando sua integração nessa realidade. O que eles queriam era, como disse
Muniz Freire na epígrafe inicial deste livro 'Aproveitar as grandes forças brutas desta
natureza que ainda não teve lapidários, transformar esse bloco rude em um ideal
grandioso - é o que incumbe às correntes diretoras da opinião e dos governos, pondo
em ação todos os elementos que dormem no fundo escuro do incerto e do
desconhecido.' Nesse sentido, destaca-se o caráter francamente prospectivo de seu
pensamento, mas sem utopismos desvinculados da realidade em que viviam, uma vez
que para eles sua terra valia não pelo que ela era naquele momento, mas pelo que ela
haveria de ser no futuro, e daí o seu forte apelo aos homens de sua geração para ações
transformadoras, ações que apressassem e viabilizassem as potencialidades de sua
província.544

se empenharam na luta em defesa do partido que reivindicava justamente que os próprios capixabas ocupassem os
cargos eletivos a que tinham direito no plano federal." Ibid., p. 529.
544
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. p.543. Maurício José
da Silva apresenta assim a obra: "O autor nos coloca em contato com fatos que definiram, de maneira fundante, o
modo como nós capixabas passamos a nos posicionar em relação ao restante do país, ou seja, trata-se de uma obra
importante para compreendermos o processo de construção da nossa identidade. Personagem de grande
importância para os rumos do desenvolvimento capixaba, Muniz Freire tem expressa na sua biografia a clara
consciência do protagonismo histórico. Um líder e político visionário, esse ilustre personagem da história capixaba
foi o mentor de um projeto de Espírito Santo moderno, forte e em conexão com os outros estados brasileiros e com
o mundo. SILVA, Maurício José da. Palavras do Secretário de Cultura. In: SANTOS, Estilaque Ferreira dos.
Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. p.11. Carlos Teixeira de Campos Júnior também se refere
às questões contemporâneas que envolvem o Espírito Santo e sua sua economia globalizada: "Todas essas
percepções deslocam a visão sobre o passado, tornando Muniz Freire como marco: o grau de abertura para o mundo
que a economia capixaba apresenta, uma das mais abertas - quem sabe a mais aberta - entre as economias das
unidades da federação, o caráter mercantil-exportador de importante fração da elite local concentrada em Vitória
e os traços do urbanismo de sua capital, Vitória, com forte identificação positivista, são manifestações, na
atualidade, de um projeto político construído para o desenvolvimento do Espírito Santo ainda no século XIX. Nas
bases da concepção e implementação desse projeto está envolvida a figura de Muniz Freire [...]." CAMPOS
JÚNIOR, Carlos Teixeira. Apresentação. In: SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito
Santo em Ação, 2012. p.19.
205

Moniz Freire é identificado como marco de origem de uma definição do lugar que caberia ao
Estado, como momento gerador de um projeto de Espírito Santo moderno, como gênese do que
se definiu na contemporaneidade. A visão atual acerca do Espírito Santo, de seu lugar numa
economia globalizada, é projetada na interpretação acerca de seu passado, o que permitiu
avaliar o governante por sua importância para o devir do Espírito Santo e sua trajetória de
superação do atraso. A perspectiva de interpretação do passado é a do Espírito Santo do século
XXI e a definição desse governante como marco histórico fundamenta-se na lógica atraso
versus progresso.545

A "Era Muniz Freire" é analisada a partir das referências do discurso político contemporâneo.
Por exemplo, o autor interpreta os discursos de Muniz Freire a partir da preocupação com o
lugar e a construção de uma determinada imagem de Espírito Santo. Sob essa perspectiva,
Estilaque argumenta que o que orientava o projeto político e de desenvolvimento daquele
governante era "responder efetivamente aos grandes desafios que estavam na agenda do país, e
dentro dela a conquista de um espaço para seu Estado que fosse capaz de viabilizar o seu
potencial." 546 Observa uma atuação política "pautada pela defesa articulada do que se entendia
como sendo os interesses fundamentais do Espírito Santo."547 Um projeto de Espírito Santo
que, "com base em noções como as de competência, progresso e austeridade, pretendia
impulsionar o Estado a um novo patamar de desenvolvimento, inédito em toda a sua história."548

É nesse sentido de superação de uma condição que emerge a figura de Moniz Freire e,
sobretudo, a questão central era o lugar ocupado pelo Espírito Santo:

Sua ideia mais geral era a de que era preciso urgentemente melhorar a reputação do
Espírito Santo, promovendo de forma sistemática a elevação do Espírito Santo no
ranking dos Estados brasileiros e buscando para isso o aproveitamento de todas as
suas potencialidades. [...] Para ele, o Espírito Santo com seus cerca de 200 mil
habitantes não era um Estado pobre, mas o conceito e a reputação que se tinham dele
no plano nacional o desmereciam, prejudicando-o enormemente. Ele percebia que o
Espírito Santo era habitado por um povo laborioso e possuía elementos inesgotáveis
de riqueza, ocupando o 8º ou 9º lugar no país em rendas públicas, mas, apesar disso,

545
Segundo Estilaque, a origem de um projeto de desenvolvimento vinculou-se à preocupação de superação do
atraso colonial: "Quando jovens advogados como Afonso Cláudio e Muniz Freire iniciaram sua trajetória política
na década de 80 do século XIX, o Espírito Santo era uma formação social onde sobressaíam ainda os vestígios do
mesmo desalento que teria vigorado na época colonial. Capitania 'esquecida' e marginalizada na era colonial,
relativamente isolada das correntes comerciais externas que poderiam dinamizar sua economia, em virtude da
timidez de sua produção voltada para o mercado, o Espírito Santo acabou submergindo, praticamente, em formas
econômicas de subsistência absolutamente incapazes de gerar um desenvolvimento consistente." SANTOS,
Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. p.144.
546
Ibid., p. 224.
547
Ibid., p. 254.
548
Ibid., p. 229.
206

aos olhos da federação brasileira, ele ocupava o status de um Estado de 4ª classe e


que: talhado para viver grande e próspero entre os primeiros, nós vegetamos
servilmente entre os últimos, ao menos no conceito geral da nação. 549

A preocupação era a de que "o Estado aparecia como uma região deficitária dependente de
transferências unilaterais e sem contrapartida da União."550 O autor, portanto, destacou
justamente os elementos constitutivos de uma posição política contestatória do status do
Espírito Santo e seu caráter reivindicativo de um "novo lugar" a ser ocupado pelo Estado.551 A
mudança de patamar era, segundo o autor, reconhecida pelo discurso político local.552 Muniz
Freire é interpretado não só como marco de desenvolvimento do Espírito Santo, mas como
pioneiro na construção de uma imagem de superação do atraso:

E quando se contrastavam esses resultados com o que se teve no passado mais remoto
era quase impossível não se desenvolver, naquele contexto, uma sensação de euforia
que embalou os sonhos de Muniz Freire, de seus apoiadores e da própria sociedade
capixaba.
Na verdadeira euforia que se estava vivendo projetou-se uma imagem do passado mais
remoto do Estado extremamente negativa, onde quase tudo estava ainda por ser feito,
e chegou-se à conclusão de que o Espírito Santo era reputado uma das províncias mais
atrasadas e das menos importantes do Brasil, até o advento da República. 553

Percebemos, assim, a noção de exemplaridade de Muniz Freire e sua correspondência com a


forma como se construiu a imagem de um "Novo Espírito Santo" no discurso político
contemporâneo:

Pela própria descrição feita por Muniz Freire da visita do governante mineiro a Vitória
pode-se imaginar a grande repercussão que ela teve, não só no Estado. Ela projetou
nos habitantes do Estado a imagem de um governante ativo, empreendedor,
profundamente patriótico e com iniciativa. Graças a essa ação difundiu-se
concretamente no Espírito Santo, pela primeira vez, a imagem de que o Estado estava
começando a viver efetivamente um tempo novo, de grandes realizações, um tempo
que seria um marco de sua história. A ligação ferroviária do Estado com Minas gerais
simbolizava o progresso, a modernização e a atualização do Espírito Santo no plano

549
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. p. 295.
550
Ibid., p. 295.
551
Em relação à contemporaneidade do Espírito Santo, observamos que essa interpretação se vincula à
reivindicação de um reconhecimento necessário do Estado no cenário nacional e recorrente, não só no discurso
político, mas também no intelectual, como já observamos no capítulo I com Roberto Simões e neste mesmo
capítulo IV com Gabriel Bittencourt. SIMÕES, Roberto Garcia. Desenvolvimento econômico do Espírito Santo
no século XX. In: BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Espírito Santo: um painel da nossa história.
Vitória: Imprensa Oficial/ES, 2002. p. 243; BITTENCOURT, Gabriel. História Geral e Econômica do Espírito
Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória: Multiplicidade, 2006. p. 501.
552
"Muniz Freire também estava certo de que tinha contribuído enormemente para a elevação da reputação do seu
Estado, antes tão espezinhado pela opinião nacional. De acordo com ele: 'Éramos considerados um Estado de
quarta ordem, apontado nas estatísticas oficiais, e na opinião pública generalizada de todos os homens públicos
eminentes, como um dos que mal suportariam sem auxílio central a nova vida federativa: hoje somos invocados
como um dos testemunhos das excelências do regime, como um argumento pela República, como um exemplo de
esforço e de trabalho, e o nome do Espírito Santo fulgura na primeira página entre os Estados do Brasil fadados a
mais altos destinos'." SANTOS, op. cit., p. 358.
553
SANTOS, op. cit., p. 309.
207

nacional: ela dava aos seus habitantes a sensação auspiciosa de que finalmente sua
terra iria entrar em compasso com os estados mais desenvolvidos da federação. 554

A experiência histórica de Moniz Freire é interpretada a partir dos horizontes de expectativas


relacionados ao Espírito Santo, no presente e no passado. Por um lado, o autor tem o mérito de
evidenciar dois aspectos históricos importantes: a origem de um discurso propriamente
capixaba, voltado para a reivindicação dos interesses locais, e o de demonstrar que a experiência
do passado local colabora com a compreensão das questões que envolvem os horizontes e
expectativas do Espírito Santo na atualidade. Por outro lado, a obra se insere no contexto de
produção de um conjunto de produções que reforçam e reiteram um determinado discurso
político contemporâneo que se apropria da representação de um passado sob a perspectiva da
superação do atraso para legitimar posições e projetos de poder. A imagem de Moniz Freire
também permitiu esse uso político do passado. Vejamos, por exemplo, a definição de Estilaque
em relação a esse ex-governante do Estado:

Muniz Freire construiu uma carreira política verdadeiramente excepcional,


projetando-se como uma das lideranças políticas mais proeminentes de toda a história
política do Espírito Santo. Ele pode ser considerado, sem sombra de dúvida, do nosso
ponto de vista, um dos personagens mais significativos da vida política e intelectual
de um período marcante da história do Espírito Santo, o período em que ele abandona
a lerda "sonolência" herdada da era colonial, e, talvez, de toda sua história. 555

Podemos observar como Paulo Hartung, no prefácio dessa obra, apropria-se da narrativa.
Primeiramente, exalta Moniz Freire como marco histórico de superação e definição de um
Espírito Santo moderno:

O Espírito Santo encontrou-se com o Brasil e o Brasil descobriu o Espírito Santo pelas
estradas de ferro. Destacado como barreira verde para proteger as Minas Gerais, o
nosso Estado atravessou quatro séculos de história brasileira como terra indevassável,
intransponível.
Quase 440 anos depois de Vasco Fernandes Coutinho fundar o Espírito Santo, coube
a Muniz Freire estabelecer a integração capixaba ao território nacional. Saímos do
litoral rumo ao interior, entramos no trilho da história e da economia brasileira pelo
caminho das ferrovias. O presidente Muniz Freire, em dois mandatos, de 1892 a 1896
e de 1900 a 1904, consolidou a ligação do Espírito Santo com o Rio de Janeiro e com
Minas Gerais. [...]
Mas essa estrada foi ainda mais longe. Pelas cargas que movimenta e pelo vulto dos
negócios em que está envolvida, a Estrada de Ferro Vitória a Minas faz parte, hoje,
do caminho estratégico de negócios que nos une ao planeta. A estrada que iniciou o
encontro efetivo do nosso Estado com o nosso País compõe a rota entre o Espírito
Santo e o mundo. 556

554
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em Ação, 2012. p. 319.
555
Ibid., p. 23.
556
HARTUNG, Paulo. Prefácio. In: SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em
Ação, 2012. p 16-17.
208

Complementando, ressalta a exemplaridade de Moniz Freire e define seu governo (2003) como
marco histórico para a trajetória do Espírito Santo, a partir da similaridade encontrada no
passado:

Muniz Freire projetou um Espírito Santo forte, autônomo, coeso e articulado em busca
de uma presença marcante no cenário nacional e pautado pelo desenvolvimento.
Vislumbrou, planejou e chegou a iniciar alguns de seus projetos, mas, certamente, sua
maior obra terá sido a construção das bases do Espírito Santo moderno, institucional,
política e economicamente falando.[...] Ao jogar luz sobre a caminhada de um
visionário, relata uma história que, com a nova fronteira histórica capixaba alcançada
a partir de 2003, pode e deve inspirar as atuais e futuras gerações rumo a um Espírito
Santo sustentável, com oportunidade para todos.557

Hartung recorre, inclusive, às referências utilizadas por Estilaque para caracterizar a atuação
política de Moniz Freire, para estabelecer a correspondência entre seus governos para a história
local. Evidencia, assim, como o uso do passado é elemento importante do discurso político.

Complementando esse cenário, identificamos a obra escrita por Amylton de Almeida em fins
da década de 1980, lançada em 2010 pelo Governo do Estado. Não está inserida na coleção
acima, porém, corresponde ao significado dessas produções contemporâneas. A biografia de
Carlos Lindenberg, além de trazer aspectos particulares de sua vida, ressalta seu caráter de
homem público. Abrangendo desde sua atuação ainda durante o governo de Vargas, a obra
destaca, sobretudo, sua importância para a vida política e para o desenvolvimento do Espírito
Santo durante os seus dois mandatos à frente do governo do Estado. No que tange sua ação
política, é ressaltada sua habilidade administrativa e financeira na condução do governo,
aparecendo como representante de uma classe política rural, mas voltada para o
desenvolvimento do Espírito Santo, ficando em evidência sua administração entre 1959 e 1962
quando viabilizou o acordo sobre o Porto de Tubarão e a Vale do Rio Doce.558

Vista nesse campo de representações acerca de uma memória do desenvolvimento, a obra é


apropriada no sentido de evidenciar a importância de sua figura para a trajetória do Espírito
Santo, principalmente pelos responsáveis por sua publicação e apresentação.559 Na leitura

557
HARTUNG, Paulo. Prefácio. In: SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Moniz Freire. Vitória: Espírito Santo em
Ação, 2012. p 16-17.
558
ALMEIDA, Amylton de. Carlos Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 333-453.
559
O governador à época, Paulo Hartung, definiu a obra como "ímpar oportunidade de conhecer um pouco mais
da nossa história por meio da trajetória de um dos nossos mais laboriosos homens públicos", e assim apresentou
Carlos Lindenberg: " Este livro tem como protagonista um dos mais destacados personagens da história capixaba
do século XX. Integrante de uma família que deu ao Espírito Santo dois presidentes de estado, Jerônimo de Souza
Monteiro (1908-12) e Bernardino de Souza Monteiro (1916-20), Carlos Fernando Monteiro Lindenberg foi
secretário de Estado da Fazenda e da Agricultura, deputado federal constituinte por duas vezes, em 1934-35 e em
1946-47, governador por dois mandatos, de 1947 a 1951 e de 1959 a 1962, e também senador da República em
209

realizada por Estilaque Ferreira dos Santos sobre a relevância da atuação de Carlos Lindenberg,
encontramos um lugar reservado a ele a partir de um perfil político marcado por qualidades
necessárias para a condução do Espírito Santo.560 O que o insere, segundo Estilaque, em um
roteiro da história do Espírito Santo orientado pela ação de determinados governantes que
conduziram a trajetória do Estado:

A historiografia capixaba tem destacado com alguma frequência, por exemplo, a obra
meritória de um Francisco Alberto Rubim (1812-19) que, já no final da era colonial,
abriu a estrada para Minas Gerais, até então quase completamente isolada do Espírito
Santo, estimulou a implantação da cafeicultura e introduziu os primeiros imigrantes
açorianos nas proximidades da capital. Mesmo na era imperial, entre aqueles quase
sempre efêmeros presidentes de província que para cá vinham nomeados apenas para
controlar e manipular as eleições, destaca-se, por exemplo, a figura de um Luís
Pedreira do Couto Ferraz, que, apoiado pela Assembleia Provincial, soube divisar na
imigração estrangeira uma das possíveis alavancas para o nosso povoamento e
desenvolvimento econômico e social; foi graças à sua atuação que se implantou o
núcleo pioneiro de Santa Isabel (no atual município de Domingos Martins) em 1847.
Ele também se interessou, quando já ocupava o importante Ministério dos Negócios
do Império, pela criação do núcleo de Santa Leopoldina em 1857.
Com a República, proclamada em 1889, os próprios capixabas tiveram que enfrentar
o desafio de governar eles mesmos a sua terra e dar a ela um rumo que expressasse de
alguma forma os antigos e persistentes anseios de desenvolvimento que vinham de
sua relativamente pequena população.
Afonso Cláudio, o primeiro desses governantes, além de ter liderado a campanha pelo
republicanismo e pela melhoria de nossos costumes políticos, no curto período em
que governou o estado (1889-90) notabilizou-se por sua honestidade, por sua
inteligência e pelo interesse em expandir a educação elementar. Mas foi com o hábil
Muniz Freire, eleito governador em dois mandatos (1892-96 e 1900-04), que se
consolidou definitivamente um projeto político e social abrangente para o Espírito
Santo, baseado na afirmação da centralidade da cidade e do porto de Vitória, na
abertura de estradas de ferro para o interior e para Minas Gerais, no desenvolvimento

duas ocasiões, de 1951 a 1958 e de 1966 a 1974, ano em que encerrou formalmente sua longa e proveitosa carreira
política." HARTUNG, Paulo. Apresentação. In: ALMEIDA, Amylton de. Carlos Lindenberg: um Estadista e seu
tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 11. Fernando Achiamé evidencia o lugar por ele ocupado na história do Espírito
Santo: "O presente estudo possui outros méritos: por um lado, humanizar um 'monstro sagrado', um mito da política
espíritossantense, apresentando o lado prosaico, comum da sua vida. Por outro, permite que as pessoas
desinformadas – conhecedoras de Carlos Lindenberg por ouvirem falar, ou por seu nome designar uma grande
avenida em Vila Velha, um município pequeno do estado, a nova ponte em Vitória – fiquem sabendo os motivos
de ser ele considerado um estadista espiritossantense. [...] Quer se goste da figura política de Carlos Lindenberg,
quer se tenha alguma restrição às suas ações, um aspecto não pode ser ignorado: sua presença ficará nos registros
da vida capixaba de forma imorredoura. Assim, não se poderá escrever a história espíritossantense de boa parte do
século XX sem se fazer um balanço dos prós e contras que representou nos nossos destinos essa liderança ímpar."
ACHIAMÉ, Fernando Antônio de Moraes. Atualidade de Carlos Lindenberg. In: ALMEIDA, Amylton de. Carlos
Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 43. Estilaque Ferreira dos Santos qualifica o
perfil político do ex-governador: "[...] terá inúmeras oportunidades de acompanhar a lenta formação em
Lindenberg das qualidades apontadas por Weber como necessárias à constituição de um verdadeiro chefe político,
como ele foi: em primeiro lugar a paixão pela política, que ele demonstrou desde muito cedo; em seguida, o
sentimento de responsabilidade, que demonstrou ter não apenas no governo de seu estado mas em todas as funções
que exerceu, especialmente quando lhe competia tomar as decisões mais difíceis, mas necessárias; e por fim o
senso de proporção, que ele demonstrou sobejamente ao pautar sempre sua atuação pela busca de um equilíbrio
entre opções aparentemente antagônicas, e que certamente explica sua opção pela industrialização sem perder de
vista a agricultura." SANTOS, Estilaque Ferreira dos. A dimensão histórica de Carlos Lindenberg. In: ALMEIDA,
Amylton de. Carlos Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 21.
560
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. A dimensão histórica de Carlos Lindenberg. In: ALMEIDA, Amylton de.
Carlos Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 15.
210

da cafeicultura, da imigração e da pequena propriedade. Um projeto que teve


sequência com a operosidade de um Jerônimo Monteiro (1908-12) – tio e grande
referência política e pessoal do próprio Carlos Lindenberg –, que “modernizou”
Vitória, implantando a iluminação e os bondes elétricos, concluiu o parque Moscoso
e chegou a imaginar a possibilidade da implantação de indústrias no estado; e de um
Florentino Avidos (1924-28), construtor das “Cinco Pontes” e da ponte de Colatina,
que incrementaram o desenvolvimento de suas respectivas cidades. E, já no fim da
chamada Era Vargas, foi muito marcante também a administração do mateense Jones
dos Santos Neves (1943-45 e 1951-54), o qual, em meio ao possível esgotamento da
cafeicultura estadual, elaborou um Plano de Valorização Econômica do Estado que
implicava a eletrificação rural, a diversificação da agricultura e a implantação de
indústrias.
É claro que essa “lista” não está ainda completa, pois outros nomes, principalmente
mais recentes, devem nela ser acrescentados. Entretanto, parece-nos fora de dúvida
que, na galeria de governantes respeitáveis, que são ainda hoje o pilar em que se pode
assentar a negação daquela cultura cética que apenas vê nos políticos e na política um
estorvo, e cuja memória é imprescindível para a reabilitação e consolidação necessária
do ideal democrático entre nós, certamente deve figurar com destaque o nome do ex-
governador Carlos Lindenberg (1947-51 e 1959-62).561

E, na "Mensagem do Instituto Sincades", também apresentando a obra, o uso dessa memória


acerca dos governantes do Espírito Santo é direcionada em função de legitimar o lugar de Paulo
Hartung nessa história dos responsáveis pela condução do Estado:

Disseminar a exemplar contribuição de Carlos Lindenberg como estadista é


necessário. Ele liderou o estado do Espírito Santo em momentos de crise no estado e
no país, e conseguiu – característica que o distingue – aglutinar forças políticas e
empresariais que deram sustentação à construção de sólidos valores e de uma
identidade capixaba, calcada no desenvolvimento socioeconômico, na ética e na
melhoria da qualidade de vida. Esta é a mesma característica que marca a liderança
do governador Paulo Hartung. Não por acaso, ele foi o principal entusiasta para a
publicação desta obra, escrita pelo saudoso jornalista Amylton de Almeida. Tão
importante quanto oferecer subsídios preciosos para a história capixaba, ela reaviva a
nossa memória para homenagearmos quem muito se empenhou, com seu exemplo,
para o nosso desenvolvimento.562

O legado dos responsáveis pelo desenvolvimento na história do Espírito Santo é vinculado a


um novo marco histórico nesse roteiro, instituindo o governo Paulo Hartung. Observamos,
portanto, a configuração de uma dada memória, a do desenvolvimento, construída e reforçada
por meio de lembranças que ganharam uma significação no contexto da primeira década do
século XXI. O resgate desse passado ao mesmo tempo que correspondeu às expectativas de
crescimento econômico que caracterizaram o Estado no período, possibilitou a construção do
legado do desenvolvimento e seus condutores o que, por sua vez, permitiu uma apropriação

561
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. A dimensão histórica de Carlos Lindenberg. In: ALMEIDA, Amylton de.
Carlos Lindenberg: um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010.p.17.
562
MORO, Idalberto Luiz. Mensagem do Instituto Sincades. In: ALMEIDA, Amylton de. Carlos Lindenberg:
um Estadista e seu tempo. Vitória: APEES, 2010. p. 13.
211

direcionada para legitimar o discurso da superação característico da imagem do "Novo Espírito


Santo".

O uso do passado foi recorrente no governo Paulo Hartung. Além dessas obras acima, diferentes
narrativas foram resgatadas pelo próprio governo estadual afim de consolidar o discurso da
superação. O próprio livro de Amylton de Almeida faz parte da Coleção Canaã.563Durante sua
gestão, na primeira década desse século, as publicações da Coleção foram apresentadas pelo
próprio governador. Com isso, ficou evidente a forma como um determinado passado foi
apropriado na formação e no reforço do discurso político da superação. Encontramos como uma
das publicações a reedição da obra de José Teixeira de Oliveira, História do Estado do Espírito
Santo. Se esta, na década de 1970, participou da construção de um roteiro histórico da superação
do atraso, sua terceira edição foi direcionada em função de um horizonte de expectativas
elaborado no início do novo século:

Além de tratar-se de um clássico, o que por si só já seria motivo maior para este
lançamento, fixa-se aqui uma outra razão ao empreendimento desta terceira edição. A
consciência de nossa caminhada de quase cinco séculos de colonização multicultural
enriquece a identidade capixaba. O exercício de nossa memória só tem a nos fortalecer
no início de uma nova era histórica em que muitos desafios e oportunidades se
colocam no presente e no horizonte próximo. [...] Motiva-nos de modo especial a
constituição de bases sólidas para o exercício de nossa memória neste momento em
que o Espírito Santo avança em seu terceiro ciclo histórico, com uma prática político-
administrativa renovada pela devoção incondicional à ética republicana e com um
paradigma econômico transformado pelo petróleo e gás e pela ampliação do
agronegócio e da indústria exportadora.564

A obra torna-se, em um novo contexto, portadora de uma narrativa histórica de superação do


atraso que justifica a definição de um "Novo Espírito Santo." Ao analisarmos as intervenções
de Paulo Hartung nas apresentações dessas obras, identificamos o propósito do resgate e o
sentido atribuído ao passado:

Nesse sentido, a partir de 2003, além de nos dedicarmos a uma obra de desafios
gigantescos acerca da reconstrução político-institucional do presente, seja em função
do descalabro que herdamos, seja em busca de um futuro com qualidade de vida,
sustentabilidade e oportunidades compartilhadas, investimos no processo de
compreensão de quase 500 anos de história de colonização das terras capixabas.
Um dos instrumentos mais importantes nesse empreendimento são os livros, os
registros das questões e do desenrolar dos fatos socioeconômicos, políticos e culturais
dos diferentes tempos que as sucessivas gerações de capixabas constituíram nesta
porção do Brasil. [...] Além de incentivarmos a produção contemporânea de estudos

563
Trata-se de uma coleção organizada pelo Arquivo Público do Estado do Espírito Santo no qual encontramos
um conjunto de publicações de documentos históricos e narrativas históricas que compõem a memória do Espírito
Santo. Disponível em: http://www.ape.es.gov.br/publicacoes.htm.
564
HARTUNG, Paulo. História do Estado do Espírito Santo: um clássico. In: OLIVEIRA, José Teixeira de.
História do Estado do Espírito Santo. 3.ed. Vitória: Secretaria do Estado da Cultura, 2008. p. XIX.
212

sobre a vida espiritossantense, investimos fortemente na reedição de obras


fundamentais da história capixaba. Podemos citar, entre peças raras, Viagem de Pedro
II ao Espírito Santo, de Levy Rocha, e História do Estado do Espírito Santo, de José
Teixeira de Oliveira. [...] Esta é mais uma importante conquista para compreendermos
como chegamos até aqui e para refletirmos como queremos caminhar em direção aos
dias que virão. [...] E o nosso presente, pelo menos desde 2003, contempla e busca,
nas lições e marcas da história, referências para a construção de um novo Espírito
Santo.565

O uso do passado, portanto, surge como instrumento para caracterizar o presente, em especial
o governo Hartung, como marco histórico da trajetória do Espírito Santo, colaborando com a
instituição do sentido de superação e legitimando seu projeto de poder. Ao resgatar o passado
como exemplo, como modelo, o sentido da superação foi reiterado de acordo com a temática
publicada pela coleção. Por exemplo, nas obras Viagem à província do Espírito Santo:
imigração e colonização suíça (1860) e Colônias imperiais na terra do café : camponeses
trentinos (vênetos e lombardos) nas florestas brasileiras, Espírito Santo (1874-1900), a noção
de superação ganhou o significado de identidade histórica local, no qual o passado surgia como
exemplo, lição a ser seguida no contexto atual. Sobre os imigrantes italianos:

Felizmente, o povo que teve coragem para seguir a esperança, tendo mais uma vez
refeito seus horizontes, acabou ajudando a construir o Brasil moderno. Em nosso caso,
ajudou mesmo a instituir as bases do Espírito Santo que hoje vivemos, visto que até o
século XIX éramos pouco mais que uma lacuna na geopolítica nacional. [...] Neste
momento em que o Espírito Santo trabalha, árdua e coletivamente, para estabelecer
uma nova era de sua história contemporânea, inaugurando uma fase de austeridade e
honradez político-administrativa, prosperidade coletiva e justiça social, não deixa de
ser importante lembrarmos que já fomos vitoriosos, que somos capazes de vencer a
adversidade – processo em que este livro pode ser valioso. [...] Ademais, a consciência
dos desafios e sacrifícios do passado nos faz mais comprometidos com o presente e o
futuro, pois, de outro modo, teriam sido em vão os dias vividos. Em honra de quem
aqui investiu sua existência em busca de uma vida renovada, e contribuiu para
viabilizar um novo Espírito Santo, devemos nos manter firmes e comprometidos com
um Espírito Santo renovado hoje e no futuro, distante do passado recente, tão indigno
do tributo que recebemos de nossos precursores. 566

A saga italiana aparece, assim, como modelo de ação. Já a obra de Tschudi, considerada como
representante de uma visão negativa acerca do futuro das colônias de imigrantes no Espírito
Santo, aparece como exemplo de superação dos obstáculos:

Mas se as previsões não se concretizaram, então por que, depois de mais de um século,
editar um livro no qual elas têm espaço de destaque? [...] Fato relevante, pois, do
passado, mais que lembrança, devemos apreender ensinamentos. A recordação da
ultrapassagem de obstáculos nos é valiosa, fortalece-nos. Tomar consciência de nossa

565
HARTUNG, Paulo. Apresentação. In: DAEMON, Basílio. Província do Espírito Santo: sua descoberta,
história cronológica, sinopse e estatística. 2.ed. Vitória: Secretaria de Estado da Cultura; APEES, 2010. p. 9-10.
566
HARTUNG, Paulo: A Mèrica era o Espírito Santo GROSSELLI, Renzo M. Colônias imperiais na terra do
café: camponeses trentinos (Vênetos e lombardos) nas florestas brasileiras, Espírito Santo, 1874-1900. Vitória:
APEES, 2008. p. 10-11.
213

capacidade de superar adversidades, saber que já vencemos e que, portanto, somos


capazes de vencer novamente, é fundamental num momento em que estamos, todos
nós – poderes públicos, sociedade civil organizada e cidadãos –, diante de um dos
maiores desafios de nossa história: a reconstrução das instituições públicas capixabas
como fator essencial ao alcance de uma realidade com ampliado e sustentado
desenvolvimento socioeconômico e igualdade de oportunidades.
Saber dos sacrifícios da caminhada faz-nos mais comprometidos com o presente e o
futuro, afinal, somos os herdeiros não apenas das conquistas de nossos antepassados,
mas também eternos portadores e guardiões de suas lutas, vitórias e perdas.[...]
O ímpeto, a força, a coragem, o olhar para além do presente muitas vezes indigno e
desalentador, a capacidade de soerguimento, a vocação e o dom de sonhar e realizar,
como bem mostra este livro, são mais que características dos capixabas de hoje, são
marcas ancestrais que compõem a identidade capixaba.567

A superação como identidade histórica local é apresentada a partir da apropriação do passado,


como característica também do governo Hartung, legitimando-se como marco histórico,
identificado com o passado local de enfrentamento das adversidades. A noção de superação
apareceu, ainda, na apresentação da obra Viagem de Pedro II ao Espírito Santo, de Levy Rocha.
Sobre a obra:

[...] sem dúvida alguma, de fundamental memória para todos nós. Fundamental
porque, ao permitir paralelos históricos, evidencia o quanto um povo pode mudar a
sua realidade.
No momento em que o Espírito Santo consolida os passos iniciais de seu terceiro ciclo
histórico, com a prática político-administrativa renovada pela devoção incondicional
aos valores republicanos e com o paradigma econômico transformado pelo petróleo e
gás e pela ampliação do agronegócio e da indústria exportadora, o livro de Levy Rocha
traz detalhes do tempo em que o nosso Estado apenas ensaiava os primeiros
movimentos a fim de se firmar para além de uma província esvaziada pela função de
muro protetor das riquezas das Gerais. [...]
[...] Quase um século e meio depois da visita do imperador, o Espírito Santo ainda
registra sérias demandas de origem local e também enfrenta situações críticas
resultantes de um contexto nacional e mesmo planetário. Mas pode-se afirmar que
estamos a anos luz da situação de indigência verificada por Pedro II e revelada por
Levy Rocha em sua fundamental obra. Mais que isso: se a caminhada até aqui nos
legou um presente muito distante do passado provinciano, vale dizer que capixabas
de nenhuma outra geração puderam estar diante de um horizonte tão promissor como
se registra atualmente. Como assinalamos há pouco, neste início de milênio
conquistamos renovados paradigmas político-administrativos e econômicos, o que
nos permite alcançar uma perspectiva de futuro jamais vislumbrada em terras
capixabas. Nesse ambiente é que estamos constituindo planos viáveis e factíveis para
a constituição de dias fundados na revolucionária igualdade de oportunidades para
todos, a partir de um modelo de desenvolvimento socialmente inclusivo,
ambientalmente sustentável e geograficamente desconcentrado.568

O governador legitimava seu governo, nesse caso, a partir do distanciamento entre a experiência
e expectativa e o sentido da superação estabelecido pelo marco histórico que seria seu governo
e modelo de desenvolvimento. Paulo Hartung recorreu ao uso do passado como estratégia

567
HARTUNG, Paulo. Apresentação. In: TSCHUDI, Johan Jakob Von. Viagem à província do Espírito Santo:
imigração e colonização suíça 1860. Vitória: APEES, 2004. p. 8-9.
568
HARTUNG, Paulo. Uma viagem memorável. Prefácio. In: ROCHA, Levy. Viagem de Pedro II ao Espírito
Santo. 3. ed. Vitória: Imprensa Oficial, 2008. p. 8-9.
214

política. Fosse diferindo e distanciando o presente em relação à experiência histórica marcada


pelo atraso ou buscando no passado os exemplos de superação com os quais buscou
identificação.

Em suma, avaliamos que essas narrativas, de Gabriel Bittencourt e as que compõem as


"memórias do desenvolvimento", emergiram no século XXI correspondendo às expectativas de
crescimento econômico que se assinalavam no horizonte do Espírito Santo. Todas, cada uma
em seu formato, tiveram o desenvolvimento como o paradigma de compreensão do passado,
atribuindo um valor histórico, o da contribuição para o progresso, a determinados fatos e
personagens da história local. Recuperaram e ressignificaram elementos constitutivos da
narrativa do progressivo desenvolvimento estabelecida por José Teixeira de Oliveira, Neida
Lúcia e Maria Stella de Novaes, possibilitando, assim, uma recuperação do passado sob a
perspectiva da superação do atraso em consonância com o discurso político do "Terceiro Ciclo
de Desenvolvimento".

Conseguimos estabelecer, novamente, as relações entre a narrativa histórica e o discurso


político. Primeiramente, no que tange a narrativa histórica da formação econômica do Espírito
Santo, de Gabriel Bittencourt, observamos a recuperação de um passado satisfatório ao contexto
político no qual a obra foi produzida: o sentido de superação definido a partir da noção de ciclos
econômicos engendrou uma trajetória da formação econômica do Estado que culminava
justamente em sua nova condição no cenário nacional que, por sua vez, correspondia às
expectativas do "Terceiro Ciclo" e seu discurso político. Em relação à "memória do
desenvolvimento", as produções trouxeram os exemplos do passado responsáveis pelo
progresso do Estado. Essa produção histórica não abandonou a perspectiva da superação do
atraso, mas as biografias que compõem a Coleção da ONG ES em Ação determinaram como
foco da história as lideranças do desenvolvimento local, e o resgate de personalidades do
passado esteve em função do governo de Paulo Hartung, identificado como um novo marco
histórico. E, enfim, evidenciamos que este governante remodelou o lugar do Espírito Santo e
sua imagem. O efeito de um discurso fundador do "Novo Espírito Santo" foi construído a partir
de um novo contexto de expectativas econômicas positivas e por meio das representações que
lhes foram associadas. Segundo Orlandi, a eficácia do "fundador" reside na possibilidade de
produzir o efeito do novo, de ressignificar sentidos já estabelecidos.569 O discurso político

569
ORLANDI, Eni P. Discurso Fundador: a formação do país e a identidade nacional. Campinas: Pontes, 1993.
p. 23-24.
215

imprimiu a noção de "Terceiro Ciclo de Desenvolvimento" e recorreu ao sentido da superação.


Além das narrativas, o próprio governador, como vimos, apropriou-se do passado definindo
uma notoriedade e um lugar particular na história, para o Espírito Santo e para o seu governo.
216

5. CAPÍTULO V - POR OUTRAS HISTÓRIAS DO ESPÍRITO SANTO.

Quando reconhecemos esse cenário de reforço do discurso político da superação do atraso e sua
correspondência com narrativas históricas não podemos desconsiderar que a escrita da história
do Espírito Santo na contemporaneidade tem, também, produzido um conjunto de narrativas
que se opõem a esse paradigma do progresso e do desenvolvimento como orientadores das
leituras do passado local. Esse cenário demonstra a existência de formas diferenciadas de
interpretações das experiências no tempo, a partir da mudança de critérios de entendimento e
compreensão, assim como das formas de narrar o Espírito Santo que entram em conflito.

Consideramos que as representações históricas podem estar no centro de determinadas disputas,


presentes num campo de concorrências sobre interpretações centrais que dizem respeito a uma
determinada sociedade. As avaliações e qualificações do lugar do Espírito Santo no presente e
no passado se inserem nessa disputa, afinal, como vimos, colaboram com a legitimação de
determinados projetos políticos.570 No entanto, esse campo de concorrência na
contemporaneidade envolve um processo de reescrita da história do Espírito Santo por meio de
revisões e atribuições de novos sentidos às experiências passadas.

André Pereira, por exemplo, ao analisar os equívocos interpretativos acerca da história


espiritossantense, reconhece a necessidade de novas narrativas que sejam não só atrativas para
o público, mas, principalmente, que evidenciem o embate acerca da interpretação sobre o
passado em um dado presente. Segundo ele:

a tarefa de uma história crítica do Espírito Santo fica muito dificultada, pois a sua
forma de operar a interpretação é impessoal, exige estudo, compreensão de conceitos
e concepções, um certo distanciamento que torna a crônica menos prazerosa. Mesmo
assim, é preciso buscar narrativas que enfrentem o problema. No mínimo, professores
de história não devem assinar embaixo versões como a da barreira verde. Cabe-nos
articular teorias e contextos em uma linguagem com o mesmo potencial de
convencimento, de prazer e reconhecimento, tendo sempre em vista a inserção em um
presente que nunca é dado, mas é elaborado por sujeitos em confronto. 571

570
Chartier considera a existência de um campo de concorrência ao se analisar as diferentes representações que
possibilitam a compreensão dos mecanismos pelos quais um grupo tenta impor sua concepção de mundo social e
seus valores. CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora
Bertrand Brasil, 1990. p.17.
571
PEREIRA, André Ricardo Valle Vasco. Fantasias persecutórias na História do Espírito Santo. Revista
Expedições: Teoria da História e Historiografia. Goiânia, n.1, jan/jul, 2013. p. 153. Disponível em:
http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth. Acesso em: 12/04/2015.
217

Essa avaliação do autor ajuda-nos a refletir sobre novas perspectivas de interpretação do


passado. Seguindo a indicação de André Pereira, consideramos a seguinte problemática: o
discurso político da superação, no presente, se encontra em confronto com interpretações
dissonantes, que se opõem ao que está estabelecido. O que, por sua vez, nos remete a considerar
que a contemporaneidade também tem produzido narrativas históricas que se opõem às que
legitimam esse discurso político contemporâneo.

Para melhor caracterizarmos esse embate e, consequentemente, as novas formatações


historiográficas e seu significado para a releitura do passado local, recorremos novamente às
considerações de André Pereira para refletirmos sobre as mudanças de perspectiva em torno do
que estava instituído como narrativa histórica do Espírito Santo. Em artigo publicado em revista
eletrônica local572, ele analisa o que se denominou de "Terceiro Ciclo do Desenvolvimento"573,
trazendo uma perspectiva crítica acerca desse processo, do discurso acerca dele e,
principalmente, desconsiderando a noção de um "novo ciclo" de desenvolvimento ligado à
prosperidade do Estado.574

Segundo André Pereira, o novo cenário de desenvolvimento econômico que se estabelece a


partir da última década originou-se da relação entre o Governo Estadual e o Movimento Espírito
Santo em Ação575 e não engendrou um novo modelo de desenvolvimento. Para o autor, esse

572
PEREIRA, André Ricardo V. V. Mais do mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no
sistema capitalista internacional. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed.
n.09, v.1, Jun. 2011. pp.203-232.
573
Por considerar que não houve rompimento com o processo de industrialização anterior, ele chama de "segundo
ciclo de modernização industrial" o projeto de desenvolvimento gestado a partir de 2003 no Espírito Santo.
574
O autor discorda de seus status de novidade: "A fase na qual este se encontra hoje gera estímulos crescentes
para o aprofundamento, em direção ao que eu chamo de segundo ciclo de modernização industrial. Daí a ideia de
que teremos, daqui para frente, ― mais do mesmo. Este aprofundamento na integração subordinada terminará por
esgotar a pequena recuperação institucional pela qual o governo do estado passa hoje, porque os fatores externos,
internos e a conexão entre eles geraram uma dinâmica que está relacionada com o modelo político. Eles se
retroalimentam, de forma que é difícil crer em mudança de rumos.” Ibid., p. 204. Arlindo Villaschi e Ednilson
Silva discordam também da noção de Terceiro Ciclo: "[...] embora tenha a capacidade de contribuir para uma
dinamização da economia local, os avanços da indústria do petróleo no Espírito Santo não podem e não devem ser
considerados como o ―terceiro ciclo de desenvolvimento da economia capixaba. Isso porque ela em
absolutamente nada muda o padrão de desenvolvimento da economia local: exploração de recursos naturais
atrelado a uma logística de transporte necessária. Pelo contrário, o que se percebe é o risco de abortar outras ideias
e visões em detrimento do petróleo, diminuindo as possibilidades de novos saltos qualitativos." VILLASCHI,
Arlindo e SILVA FELIPE, Ednilson da. O global e o local: interações e conexões no desenvolvimento do Estado
do Espírito Santo — Anotações para o debate. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN,
UFES, Edição n.09, v.1, Junho. 2011. p. 215.
575
"A recuperação institucional iniciada no ano de 2003 foi resultado do esforço combinado de vários atores,
unificados justamente pelo grau de corrupção, descontrole e falência do poder público que se instalou. Entre todos,
o ator que mais bem aproveitou esta janela de oportunidades foi o Espírito Santo em Ação. O grupo participou da
elaboração do planejamento estratégico do governo Hartung, conhecido como Plano ES 2025. Tal iniciativa
formalizou a proposta de um segundo ciclo de modernização industrial." PEREIRA, André Ricardo V. V. Mais do
218

modelo implantado seguiu a lógica econômica da reprimarização de bens exportados e


fortaleceu o Espírito Santo como "lugar de passagem." Argumenta que a forma de
desenvolvimento adotada pelo Brasil nesse período seguiu o avanço da China e definiu a
reprimarização do país, ou seja, definiu-se como exportador de produção do "agronegócio e das
indústrias de baixo valor agregado", o que surge como "algo que se adequa ao caso do Espírito
Santo."576O que no discurso político e na narrativa histórica de Bittencourt aparecem como
principais especificidades do Espírito Santo (o potencial logístico, sua posição geográfica e seus
portos) são caracterizados como elementos negativos e definidores do Estado como "lugar de
passagem." Característica que, segundo o autor, não é nova, mas ampliada e reforçada na
atualidade em função dos interesses do grande capital:

Desde que a CVRD transformou a EFVM num meio de transporte eficiente e


confiável, tal processo vem se ampliando e não há sinal de que venha a sofrer
inflexões, devido à intima relação entre o local e o global desde antes da fase atual no
qual se encontra o sistema capitalista internacional. Como na atual conjuntura ele se
expande com menos resistências, a inserção combinada e dependente do Espírito
Santo no processo é crescente. [...]Várias empresas atuam no setor, mas, à semelhança
da centralidade da CVRD no caso do minério de ferro, a Petrobrás transformou-se na
articuladora geral das ações. Sendo uma empresa estatal altamente complexa, ela traz
as mesmas características que a Vale possui, sua condição de mediadora, fomentadora
e descompromisso com intervenção específica na realidade capixaba. A Petrobrás
também age no sentido da constituição de meios de transporte adequados, como os
terminais citados e gasodutos. A lógica citada acima se reintroduz. O aproveitamento
do gás implica na construção de unidades de tratamento e sua conexão com gasodutos.
Clientes em potencial são estimulados a converter suas plantas para o uso do recurso,
como as grandes fábricas já existentes, as usinas termoelétricas e novidades, como o
projetado Pólo Gás-Químico para a cidade de Linhares. Ele vai gerar insumos para a
produção de fertilizantes. Ou seja, mais uma vez, estamos falando de bens
intermediários, da transformação de recursos naturais em mercadorias semi-
elaboradas que são destinadas a outros pontos geográficos, dentro ou fora do Brasil.
Isso remete ao problema da ― reprimarização da economia brasileira, mas da
capixaba em particular.577

Assim, o autor se opõe à interpretação do "novo momento" experimentado pelo Espírito Santo
nesse período, considerando que as consequências negativas578 desse processo são anuladas

mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no sistema capitalista internacional. In: SINAIS –
Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed. n.09, v.1, Jun. 2011. p. 227.
576
Ibid., p. 209.
577
PEREIRA, André Ricardo V. V. Mais do mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no
sistema capitalista internacional. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed.
n.09, v.1, Jun. 2011. p. 222.
578
Sobre o lugar do Espírito Santo nesse cenário: "[...] Mesmo contando com unidades fabris complexas e de
grandes dimensões, o que permite falar efetivamente em industrialização, esta não gera bens de consumo
direcionados ao mercado. Isto tem efeitos extremamente negativos no que se refere ao regime fiscal. Em primeiro
lugar, impostos sobre produtos in natura ou semi-elaborados, por sua natureza, são baixos. Mais ainda, o modelo
brasileiro de tributação desonera os setores produtivos e penaliza os consumidores. Como os produtos ―capixabas
são commodities ou bens intermediários pouco elaborados, geram carga fiscal baixa no geral. PEREIRA, André
Ricardo V. V. Mais do mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no sistema capitalista
219

pelo discurso da prosperidade e progresso do Estado.579 Ao associar o modelo de


desenvolvimento contemporâneo ao implantado nas décadas de 1960-170, André Pereira critica
a visão acerca desse modelo, justamente pelos efeitos negativos e o descompromisso dessas
empresas com a realidade local.580

O questionamento realizado por ele evidencia não só a divergência, a oposição que se apresenta
ao modelo de desenvolvimento implantado na contemporaneidade como também ao discurso
da superação do atraso a ele associado. Nesse sentido, a mudança de perspectiva, por parte do
autor, foi acompanhada por uma releitura crítica do passado. Por exemplo, ao questionar os
caminhos do desenvolvimento econômico atual e associá-lo como continuidade de um modelo
anterior, prejudicial ao Espírito Santo, ele questiona o papel das elites dirigentes nesse processo
e o valor atribuído a elas,581 principalmente, em relação a seu protagonismo:

a sedução provocada pelos projetos das grandes empresas levou formuladores e


executores a agirem no sentido de oferecer-lhes o máximo de vantagens,
comprometendo a capacidade sempre pequena da administração estadual em elaborar
formas de intervenção alternativas em termos de política econômica e, ainda por cima,
dar conta das demandas crescentes em educação, saúde e segurança pública. Isto

internacional. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed. n.09, v.1, Jun. 2011.
p. 223.
579
Ibid., p. 220.
580
Ibid., p. 211; Villaschi e Silva também abordam o tema: " A financeirização mundializada facilitou o acesso
de empresas localizadas no ES (CST e Aracruz, principalmente) ou com importantes bases produtivas/operacionais
nele localizadas (CVRD e Petrobras, principalmente) a um mercado financeiro com alta liquidez e ávido por
alternativas de aplicações financeiras. Seja pelo processo de privatização (nos casos da CST e da CVRD), seja por
mecanismos de fusões, isso facilitou mudanças no controle acionário dessas empresas. Isso tem induzido uma
crescente perda de vínculo entre as empresas que operam no ES em seus segmentos de maior dinamismo e o
restante da formação socioeconômica capixaba. Antes sede de importantes unidades administrativas dessas
principais empresas (CVRD, Aracruz e CST — no caso dessas duas últimas suas respectivas diretorias), o ES é
hoje localização principalmente de instalações de processamento e circulação de produção e de unidades de apoio
operacional. E, do ponto de vista simbólico, sequer seus nomes guardam relação com o local capixaba (do Vale
do Rio Doce, ficou a Vale; a Aracruz se tornou Fibria; e a Companhia Siderúrgica de Tubarão passou a ser Arcelor
Mittal Tubarão). As articulações entre essas empresas e o restante do aparelho produtivo capixaba, quando muito,
se dão via fornecimento de insumos e a prestação de serviços especializados (principalmente metal mecânico). Até
mesmo as incipientes relações no passado entre essas empresas e a Ufes, e entre elas e a sociedade, vêm diminuindo
e se tornam cada vez mais objeto de campanhas institucionais de construção de imagem via mídia, na medida em
que as esferas de decisões estratégicas se deslocam para outros territórios. VILLASCHI, Arlindo e SILVA
FELIPE, Ednilson da. O global e o local: interações e conexões no desenvolvimento do Estado do Espírito Santo
— Anotações para o debate. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição
n.09, v.1, Junho. 2011. p. 219.
581
Segundo o autor: "A trajetória capixaba é marcada pela incapacidade de sua elite dirigente em alterar o status
quo local a partir de projetos elaborados por ela e recursos sob seu controle (ou acesso a recursos externos por
meio de sua projeção nacional). Houve tentativas neste sentido, mas as condições econômicas gerais, aliadas ao
horizonte estreito das lideranças em uma sociedade com baixo nível de diferenciação interna, de auto-organização
e de confronto ideológico, não foram favoráveis a que fossem gerados os meios para que o estado ocupasse posição
de destaque nas diferentes fases de sua história no plano nacional e sequer para que houvesse mudanças profundas
determinadas por fatores internos. Isto é assim até hoje." PEREIRA, André Ricardo V. V. Mais do mesmo: o
reforço da integração subordinada do Espírito Santo no sistema capitalista internacional. In: SINAIS – Revista
Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed. n.09, v.1, Jun. 2011. p. 214.
220

remete ao papel efetivamente cumprido pela elite dirigente local no conjunto de


transformações citadas. Tal papel sempre foi secundário e submetido a decisões
geradas por indivíduos sem compromisso com a representação de interesses radicados
na sociedade capixaba. A literatura sobre o tema, porém, costuma ser bastante
condescendente para com o protagonismo da elite[...]. Em termos gerais, ela registra
iniciativas variadas ao longo do tempo, detalha certos resultados concretos obtidos
(em termos de empresas médias ou pequenas para a realidade agregada do estado) ou
mesmo defende a tese do protagonismo. Eu discordo completamente de tal
diagnóstico. Neste trabalho, defendo o entendimento de que a elite local não foi e não
é capaz de agir de maneira proativa por causa da relação com as bases sociais, por
causa da capacidade limitada do aparelho de Estado regional e pelo peso das grandes
empresas e dos processos irreversíveis que elas desencadearam ao longo do tempo. 582

O protagonismo de determinados atores históricos, o estabelecimento de marcos temporais e a


definição de acontecimentos como marcos significativos do passado local, como vimos, foram
elementos constitutivos das narrativas da superação do atraso. As considerações de André
Pereira nos remetem a outras formas de relação com o passado do Espírito Santo na
contemporaneidade. Vimos, com Koselleck, que o tempo histórico deve ser observado como
condição de possibilidades para escritas da história. Com ele, entendemos também que a
ampliação da experiência permite que uma sociedade aprenda mais com sua vivência e, assim,
existe a possibilidade do presente produzir mudanças na perspectiva da compreensão do
passado e a reavaliação de seu valor histórico.583

Nessa perspectiva, para além dos questionamentos trazidos por André Pereira, que outros
aspectos das experiências pretéritas locais têm sido contestados? Quais fundamentos das
narrativas anteriores têm sido desconstruídos? Quais mudanças têm ocorrido nos critérios que
orientam as interpretações sobre o passado e qual o seu significado para a definição de novos
sentidos a ele?

Consideramos, assim, que o século XXI, por um lado, foi marcado pela reconfiguração da
narrativa histórica da superação do atraso, mas, por outro, caracterizou-se por permitir
modificações na perspectiva de compreensão do passado e, consequentemente, a formação de
novas narrativas históricas que emergem em oposição a concepções e imagens cristalizadas
acerca do passado local. Aqui, as denominamos de narrativas críticas da história do Espírito
Santo.

582
PEREIRA, André Ricardo V. V. Mais do mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no
sistema capitalista internacional. In: SINAIS – Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Ed.
n.09, v.1, Jun. 2011. p. 214-215.
583
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC/Contraponto, 2006. p.317-325.
221

Seguindo a proposta dos diferentes tipos de narrativa histórica elaborada por Rüsen,
consideramos que esse novo campo de representações constituído pelo conjunto de produções
historiográficas contemporâneas se vincula ao que o autor chamou de "constituição crítica de
sentido", caracterizada, sobretudo, pelo questionamento a determinados modelos de narrativa
histórica:

Modelos consagrados de autocompreensão e da legitimação históricas das relações


sociais são desmantelados quando contrastados com as possibilidades alternativas da
memória histórica. Do mesmo modo, as interpretações históricas das circunstâncias
atuais da vida, e as perspectivas de futuro da vida prática que delas decorrem, são
desconstruídas pelo conflito das experiências históricas, abrindo espaço para outros e
novos modelos de interpretação.584

Evidenciamos que novas interpretações historiográficas entram nesse cenário de qualificações


do passado local e redefinem representações acerca de determinados períodos, fatos e
personagens históricos. Desse conjunto de trabalhos analisados destacamos as perspectivas de
orientação dessas narrativas e os seus principais aspectos que questionam, relativizam e
contradizem as narrativas anteriormente analisadas. Portanto, elementos que apontam para a
produção de um conhecimento histórico que possibilita uma inteligibilidade em relação ao
passado, como narrativa histórica, que exerce a função de suplantar uma leitura orientada pela
noção da superação do atraso.585

Nosso "desafio historiográfico do Espírito Santo", nesse ponto, analisa essa configuração
narrativa crítica a partir de um conjunto de obras acadêmicas. Livros, teses, dissertações e
artigos selecionados em função de seu significado, em termos de questionamento e
desconstrução dos modelos anteriormente constituídos.

5.1 O ESPÍRITO SANTO COLONIAL: DESCONSTRUINDO A "ORIGEM DO ATRASO."

O período colonial, como observamos, é fundamental na interpretação de Espírito Santo e sua


trajetória. As novas perspectivas de abordagem acerca do período colonial criticam as
concepções cristalizadas e a imagem de atraso estabelecida em relação ao Espírito Santo. São
artigos e dissertações produzidos em âmbito local que questionam o caráter atribuído a esse
passado, permitindo outras possibilidades de entendimento acerca da Capitania. Diferentemente

584
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed.
UnB, 2007. p. 55.
585
José Carlos Reis ressalta que é necessário superar as possíveis manipulações da memória oficial, por meio do
acesso à “memória crítica”, pela “rememoração, pelo reexame da documentação e da cronologia, pela narração
incessantemente retomada da experiência vivida.” REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2010. p. 40.
222

do reducionismo das narrativas da superação do atraso, identificamos que as novas narrativas


demonstram a complexidade das relações que se estabeleciam e contribuíam para a dinâmica
política, econômica e social no Espírito Santo colonial e, sobretudo, caracterizam a forma como
a Capitania inseria-se naquele contexto, evidenciando suas especificidades.

Em artigo intitulado "O comércio e a navegação na Capitania Portuguesa do Espírito Santo -


Brasil (Sec. XVI-XVIII)"586, Luiz Cláudio Ribeiro critica o anacronismo das avaliações acerca
das capitanias a partir da noção de unidades federativas, chamando a atenção para a
complexidade de se estudar essa experiência passada, que não deve ser entendida como um
espaço definido como na atualidade.587 Outra crítica do autor refere-se à imagem negativa do
Espírito Santo no período colonial condicionada às interpretações equivocadas sobre o seu
primeiro donatário, Vasco Fernandes Coutinho, iniciadas com os cronistas do período colonial
e que permearam também leituras ao longo do século XIX, tornando-se fontes recorrentes das
narrativas históricas sobre o Espírito Santo.588 Desse modo, argumenta que deve-se analisar o
período colonial espiritossantense sob outros paradigmas.589 O autor defende que a leitura sobre

586
RIBEIRO, Luiz Cláudio. O comércio e a navegação na capitania portuguesa do Espírito Santo-Brasil (séc. XVI-
XVIII). Anais do XXX Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social: Crises
Econômicas, Crises Sociais. Lisboa, 2010, pp. 1-17.
587
"É muito comum no Brasil pessoas tratarem as unidades da atual federação como se elas tivessem nascido com
seus limites atuais definidos e não como unidades hereditárias autônomas no vasto império colonial português.
Desinformadas sobre como funcionava o governo no regime absolutista e no Antigo Sistema Colonial não
percebem que o Brasil não era uma unidade política: cada capitania era organizada de acordo com as relações e
interesses do rei de Portugal e da capacidade empreendedora do seu donatário, desde a preparação para cruzar o
mar Atlântico e alcançar um ponto – às vezes apenas rabiscado num papel ou num tecido – para onde deveria
conduzir pessoas e fundar feitoria e vila para o povoamento." Ibid., p. 1.
588
Luiz Cláudio Ribeiro argumenta o seguinte: "Segundo Assis, as informações veiculadas sobre a capitania
comprometeram o entendimento correto de sua história porque a associaram a uma biografia superficial e
intencionalmente negativa do primeiro capitão-donatário, Vasco Fernandes Coutinho. Essa mesma descrição
tornou-se oficial e foi reproduzida no século XVII na obra do Frei Vicente do Salvador e, por sua vez, foi passada
adiante nos séculos XVIII e XIX por cronistas como Braz da Costa Rubim, José Marcelino Pereira de
Vasconcellos, Mizael Ferreira Pena e Basílio Daemon. No século XIX, ainda segundo afirmou Assis, estes autores
reproduziram uma historiografia baseada nos insucessos da Capitania por decorrência da personalidade do
donatário, tendo-o constituído como um homem sem autoridade para lidar com as dificuldades do estabelecimento
colonial e que, por isso, acabou empobrecido e doente, abandonando suas possessões." Ibid., p. 2.
589
Ressalta o autor: "o rumo das investigações sobre as capitanias portuguesas no Brasil deve extrapolar os
modelos esquemáticos de análise das vilas e cidades como Salvador e Rio de Janeiro para fixar-se em aspectos
que, por sua natureza, escaparam aos registros oficiais – como a vida dos degredados, o contrabando e os
descaminhos – ou se inscreveram em fontes não-literais, no terreno das aldeias mestiças e nos costados das
embarcações pelo mar e pelos rios que chegam à costa. [...] No caso capixaba - isto é, da Capitania do Espírito
Santo, tal lacuna tem servido a que se atribua um recuo das atividades econômicas entre o final do século XVI até
o século XVIII cujas justificativas causais, em última instância, permanecem atreladas à personalidade do primeiro
donatário – como antes explicamos - e à morte prematura do segundo, seu filho e herdeiro. Sob o aspecto da
magnitude e complexidade da empreitada colonial, tais justificativas não cabem numa análise histórica criteriosa.
[...] Além disso, muito da documentação de interesse do Espírito Santo pode ainda estar em outros arquivos
públicos brasileiros aguardando identificação e transcrição paleográfica. Portanto, as investigações de história do
Espírito Santo português, isto é, colonial, ainda demandarão muito esforço e investimento permanente." RIBEIRO,
Luiz Cláudio. O comércio e a navegação na capitania portuguesa do Espírito Santo-Brasil (séc. XVI-XVIII). Anais
223

a Capitania não pode ser orientada pela comparação com outras capitanias justamente por suas
especificidades, devendo-se atentar para as circunstâncias e possibilidades existentes à época.
Por isso, atribui dois momentos chave para essa compreensão. Primeiramente, sobre o século
XVI e XVII, evidencia:

[...] o acerto de uma abordagem das relações geopolíticas e econômicas do Atlântico


português revelando a estratégia diplomática e o modo administrativo do Estado em
cada uma das antigas doações. Assim, destacamos o papel da villa de Victória como
porto e defesa regional no conjunto das capitanias vizinhas do Espírito Santo. Nesta
análise evidencia-se a navegação pela costa, os negócios lícitos e ilícitos e a
administração régia como elementos-chave de compreensão histórica da capitania do
Espírito Santo. Entendemos que todo o seu desempenho se relaciona com o comércio
e a navegação, pois ela detinha alguns dos produtos coloniais mais valorizados: pau-
brasil, madeiras nobres, açúcar, aguardente, farinha de mandioca, carnes e escravos.
590

E, o outro, após ser adquirida pela Coroa, no século XVIII:

[...] o ouro fortalecera suficientemente a cidade do Rio de Janeiro dando-lhe


autonomia em relação aos vice-reis da Bahia. Na disputa entre estes dois pólos do
poder político todas exceto uma das pequenas capitanias hereditárias - Ilhéus, Porto
Seguro e Campos de Goitacazes que compunham a região econômica entre os seus
territórios - desapareceram como unidades políticas da colônia. O antigo vilão farto
do capitão Vasco Fernandes Coutinho, apoiado pelas vantagens logísticas - defesa,
navegação, comércio e fiscalidade - e econômicas do porto-vila de Vitória, no entanto,
resistiu às mudanças pombalinas e manteve sua autonomia. Porém, o porto do Rio de
Janeiro fortalecia-se cada vez mais até açambarcar as atividades comerciais do
Espírito Santo e esvaziar a importância econômica do porto de Vitória em suas rotas
de navegação com o reino, com Pernambuco e Baía e com as vilas e portos das
capitanias vizinhas. Nessa faixa sudeste-nordeste do litoral brasileiro o que prosperou
foram as atividades de abastecimento interno feitas por cabotagem articulada ao Rio
de Janeiro. Mas entre os pólos portuários e políticos mais fortes – Rio e Salvador - o
Espírito Santo se manteve autônomo graças à natureza do porto e à importância
estratégica de Vitória na defesa dos interesses da Coroa.591

do XXX Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social: Crises Econômicas, Crises
Sociais. Lisboa, 2010. p. 4-5.
590
Ibid., p. 13. Ribeiro aponta também o caráter sui generis dessa condição da capitania: "Em nosso trabalho
acreditamos que a lacuna de conhecimento sobre o povoamento do Espírito Santo indica que além das vilas e
algumas aldeias e fazendas jesuíticas oficiais13 surgiram também comunidades que teriam sido formadas nos
séculos XVI e XVII por remanescentes de grupos de índios dizimados pelos ataques dos brancos, por lutas
intertribais, por decadência dos grupos perambulantes ocasionadas por doenças contagiosas, e por opção ao
sedentarismo e à miscigenação. Neste período, a extração e embarque do pau-brasil e de outras madeiras-de-lei, o
comércio de farinha de mandioca e outros víveres eram a contrapartida para a entrada do comércio de produtos
europeus praticados pelas embarcações portuguesas, holandesas e francesas que ali aportavam. Por isso,
acreditamos que desde os primeiros tempos das capitanias tenha ocorrido uma relativa rede de comércio de artigos
coloniais de produtos trazidos do reino e de outras partes naqueles confins. Afinal, aquelas atividades clandestinas
ocorriam em locais isolados e com acesso por mar ou por rios passando ao largo do controle do donatário, do
capitão-mor e da Alfândega d`El Rey." Ibid., p. 6.
591
RIBEIRO, Luiz Cláudio. O comércio e a navegação na capitania portuguesa do Espírito Santo-Brasil (séc. XVI-
XVIII). Anais do XXX Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social: Crises
Econômicas, Crises Sociais. Lisboa, 2010. p. 13-14.
224

As considerações de Luiz Cláudio Ribeiro nos direcionam justamente para o novo panorama
das interpretações sobre a capitania do Espírito Santo. Nesse sentido, selecionamos artigos
acadêmicos e dissertações de mestrado que formam um conjunto de trabalhos que, de maneira
geral, descartam o caráter homogêneo da experiência colonial espiritossantense e trazem novas
possibilidades de entendimento sobre esse período.

Primeiramente, identificamos que essas abordagens desconstroem a lógica atraso-progresso e a


do "sentido da colonização", avaliando como laços de sociabilidade e suas implicações
caracterizaram a vida administrativa e econômica da Capitania, divergindo de uma simples
noção de atraso. Em artigo publicado na Revista Ágora592, Helmo Ballarini e Luiz Cláudio
Ribeiro questionam a noção de "abandono" administrativo como fator de determinação de uma
condição negativa do Espírito Santo. Segundo os autores, apresentando um outro paradigma de
análise, a Capitania deve ser interpretada a partir das relações estabelecidas por uma "economia
de mercês"593:

As análises aqui desenvolvidas são parte de uma pesquisa mais abrangente e em curso,
na qual pretendemos estudar um período da administração da Capitania do Espírito
Santo no século XVII, de transição entre donatários que permaneceram na capitania e
aqueles que não vieram à terra. Este quadro somado a um contexto de consolidação
de uma “economia de mercês” que regia contratação de “servidores” para os postos
da burocracia no Império Português, no Reino e em suas conquistas de além-mar,
particularmente quanto a utilização da Ordem monástico-militar de Nosso Senhor
Jesus Cristo. É nosso objetivo, contribuir para uma visão historiográfica que se
contrapõe à historiografia tradicional de uma Capitania do Espírito Santo de total
insucesso e abandono. Nossa hipótese é que em uma administração de donatários
“ausentes”, a consolidação de uma “economia de mercês” implicou numa inflexão

592
BALLARINI, Helmo M. ; RIBEIRO Luiz Cláudio M. Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e a economia de
mercês. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p. 65-83. O artigo é resultado de pesquisas recentes:
"correspondências do/para Conselho Ultramarino que foram sistematizadas, digitalizadas e repatriadas através do
Projeto Resgate Barão do Rio Branco. "O Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco
(Projeto Resgate) foi criado institucionalmente, em 1995, por meio de protocolo assinado entre as autoridades
portuguesas e brasileiras no âmbito da Comissão Bilateral Luso-Brasileira de Salvaguarda e Divulgação do
Patrimônio Documental (COLUSO). É uma iniciativa bilateral Portugal/Brasil conduzida no contexto das
comemorações dos 500 anos do descobrimento. O objetivo principal é disponibilizar documentos históricos
relativos à História do Brasil existentes em arquivos de outros países, Portugal em particular, e demais países
europeus com os quais o Brasil teve uma história colonial imbricada." Ibid., p. 78.
593
Os autores definem esse conceito: "ao apresentar alguns resultados parciais de uma investigação que tem como
objeto a análise da comunicação política entre o reino e as conquistas ultramarinas na América nos informa que
mais de 10% do número de cartas eram relativas às mercês ou as remunerações por serviços prestados à Coroa
pelos vassalos. Por meio das mercês eram nomeados os oficiais – militares e civis – da burocracia régia assim
como concedidos os hábitos militares, as terras etc. Era o que colocava a administração periférica (desde vice-reis
até escrivães da ouvidoria) em movimento. Essas mercês impulsionavam também a hierarquia social estamental
que era tutelada pela monarquia e assim o rei ao exercer sua função distributiva minimizava as tensões da
sociedade. Era pelo sistema de mercês que o rei interferia na gestão política da menor unidade administrativa do
reino." Ibid., p. 74.
225

diferenciada na então Capitania do Espírito Santo levando a outro arranjo da economia


e do poder local.594

Analisando a influência dessa relação estabelecida entre diversos atores político-sociais e a


Coroa portuguesa na dinâmica administrativa da colônia, os autores indicam que no Espírito
Santo tal relação também se manifestou.595 Assim, questionam a ausência de administradores
como característica negativa da Capitania, considerando as condições de possibilidades na qual
se encontrava, o que direcionava os arranjos econômicos e administrativos em função de
determinados interesses de poderes locais e não em função do sentido estabelecido pela Coroa
Portuguesa.

É essa perspectiva de análise que Luiz Cláudio Ribeiro e Anna Karoline Fernandes utilizam
para questionar a noção de prejuízo e dificuldades que caracterizariam o passado colonial do
Espírito Santo. Em artigo publicado na mesma edição descrita acima596, os autores analisam
documentos de uma devassa597 realizada na Capitania durante o período da União Ibérica
(1581-1640)598 cujo objetivo era controlar os "descaminhos" que implicavam na redução dos
rendimentos da Coroa. Assim, apontam justamente o fortalecimento dos poderes locais e suas
alianças como mecanismos de realização de ações ilícitas. O que, segundo eles, contribuem
para questionar a lógica do atraso:

As fontes mostram que muitas vezes tais funcionários praticavam atividades ilícitas
em relação às obrigações de seus regimentos e eram os principais causadores de
prejuízos à Coroa, pois praticavam atividades ilícitas aproveitando-se de sua
privilegiada posição, e estabeleciam negócios que possibilitassem auferir rendas –
lícitas ou ilícitas – obtidas através das prerrogativas de seus ofícios. Ainda de acordo

594594
BALLARINI, Helmo M. ; RIBEIRO Luiz Cláudio M. Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e a economia de
mercês. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p. 81.
595
De acordo com eles: "Bueno Cacunda em seu relato descreve os seus quase um quarto de século de serviços
prestados à Coroa listando todas as suas dificuldades, seu comprometimento e as despesas que consumiam seus
recursos e também de seus filhos. Então arremata com os pedidos de que sejam estabelecidas as minas por ele
descobertas, que lhe seja concedido auferir rendimentos destas minas e requer 'quatro hábitos de Cristo, na forma
que V. Magde. for servido', corroborando a tese da consolidação de uma economia de mercês no século XVII a
XVIII onde o hábito de Cristo era um desejo disseminado por todo o Império português e funcionava de forma
remuneratória. “Ibid., p. 80.
596
FERNANDES, Anna Karoline da Silva; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Poderes inferiores e Política Fiscal na
Capitania do Espírito Santo. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p. 41-64.
597
Sobre esse evento: "devassa, ou seja, um processo investigativo na Alfândega do Espírito Santo iniciado em 15
de março de 1618 e instaurado apenas sete meses depois da carta que o ordenou, tempo relativamente exíguo para
a época colonial. Dele consta o testemunho de várias pessoas que moravam na capitania do Espírito Santo, todos
eles homens com idade variável entre 30 e 70 anos, sendo que alguns ocupavam cargos de nomeação régia." Ibid.,
p. 45.
598
Os autores destacam o recurso a fontes inéditas: " As 42 fontes manuscritas inéditas dentre as demais existentes
no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa) que foram disponibilizadas pelo Projeto Resgate foram transcritas
através do projeto Estado, comércio e navegação: um estudo da capitania do Espírito Santo, coordenada por Luiz
Cláudio M. Ribeiro entre 2008-2010, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (Fapes)
- PIBIC/UFES. " Ibid., p. 42.
226

com as fontes, percebe-se a participação de pessoas do Espírito Santo envolvidas com


a navegação comercial dos séculos XVI e XVII vinculadas a negócios com o
estrangeiro por meio da importação de produtos e da exportação de bens da terra tais
como madeiras e açúcar. Por isso, entendemos não ser apropriado conceber atraso
econômico a uma determinada economia local partindo a análise de dados
comparativos entre as capitanias brasileiras tais como a eficiência produtiva e a
[des]organização das estruturas administrativas e políticas já que a especificidade da
capitania capixaba requer uma “escala” de análise própria [...]599

Nesta perspectiva, Ribeiro e Fernandes avaliam os "poderes inferiores" presentes na Capitania


que conduziam a administração local em função de seus interesses e por meio de alianças com
comerciantes, descumprindo as ordens régias provenientes da Coroa. De acordo com os autores,
a devassa ocorreu justamente porque o descaminho das receitas600 era uma prática comum que
caracterizava o Espírito Santo. Evidenciam que a arrecadação dos direitos metropolitanos não
se dava de acordo com os regimentos oficiais devido às ações ilícitas que eram possíveis graças
à rede de favorecimentos que se estabelecia entre mercadores e oficiais responsáveis pelas
instâncias burocráticas de fiscalização, envolvendo ações em diferentes âmbitos como a
produção e comércio, na alfândega e na navegação.601 Na Capitania, os interesses locais
determinavam a ausência de arrecadação:

Segundo essas fontes as mercadorias que chegavam à capitania pertenciam aos


homens identificados como Marcos Fernandes Monsanto (dono de dois engenhos na
capitania) e Leonardo Fróes (dono de três engenhos na capitania). A nosso ver estes
eram negociantes portugueses que eram proprietários não só de engenhos como
também de trapiches e cais estruturados para onde conduziam as cargas importadas e
de onde partiam os carregamentos de açúcar. Sob seus comandos trabalhavam
feitores, mestres açucareiros, plantadores índios e outros trabalhadores da atividade
açucareira, trabalhadores portuários, marinheiros e trabalhadores em atividades
comerciais. No caso das mercadorias importadas, como vimos anteriormente estas
deveriam ser objeto de inspeção alfandegária que as conferisse e sobre elas recolhesse

599
FERNANDES, Anna Karoline da Silva; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Poderes inferiores e Política Fiscal na
Capitania do Espírito Santo. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p.43. Segundos os autores: "Novas perspectivas
de análise se tornaram possíveis por meio de transcrição paleográfica de novas fontes que forneceram informações
antes desconhecidas. Estas fontes permitem avançar no entendimento a respeito do passado colonial da quinta
capitania do Brasil ultrapassando a ausência da crítica historiográfica. " Ibid., p. 43.
600
Os autores definem o "descaminho": "O conteúdo da carta endereçada ao capitão-mor do Espírito Santo diz
respeito aos descaminhos praticados pelos oficiais da Coroa que resultaram no desvio de mais de 20 mil cruzados
por ano num período de cerca 10 anos. Tais práticas ilícitas se evidenciam na despesa que a Coroa tinha com
manutenção predial da Alfândega sem que ele existisse; e na não cobrança de impostos das fazendas que chegavam
à capitania. Outra evidência de descaminho era o repasse dos dízimos do açúcar à Coroa em valores inferiores
àqueles recolhidos pelo almoxarifado da capitania. Todas essas práticas envolviam primeiramente os funcionários
dos cargos de almoxarife e provedor; pois estavam diretamente ligados e se relacionavam com a arrecadação e
fiscalização das rendas régias. No entanto, foram os ocupantes desses mesmos cargos os acusados pelas
ilegalidades nos recebimentos e pagamentos de impostos." Ibid., p. 44.
601
O descaminho seguia outro sentido: "No entanto, a devassa apurou que na capitania a Alfândega não se
encontrava em atividade, nem possuía sede, sendo este mais um indício da existência de fraude, pois até mesmo
pagamento de aluguel para suas instalações físicas era declarado pelos oficiais como forma de apropriação do valor
correspondente e simulação de seu funcionamento normal. A reclamação do monarca de que os oficiais não
utilizavam o cais da Alfândega para o desembaraço de mercadorias que chegavam à capitania vindas do reino foi
confirmada por vários moradores da vila que testemunharam no processo." Ibid., p. 51.
227

o imposto devido. Porém, autorizados pelos fiscais, os negociantes retiravam suas


cargas diretamente para seus estabelecimentos sem haver fiscalização aduaneira.
Sendo assim, os oficiais régios permitiam que as cargas importadas fossem
descaminhadas pelos proprietários e estes apenas pagassem imposto sobre o que
desejassem declarar.602

Os "descaminhos" definiam "outro sentido" da colonização da região. Os autores, portanto,


questionam que o Espírito Santo não deve ser qualificado como ineficiente. Pelo contrário,
argumentam que era a ação administrativa metropolitana na colônia que era ineficaz e isso ficou
evidente na Capitania. Ou seja, a questão não se refere à sua marginalização no cenário
econômico mercantil da colônia como interpretou Gabriel Bittencourt, nem se limita à ausência
de recursos humanos e financeiros ou à indiferença da Coroa, como apresentou a narrativa
histórica do progressivo desenvolvimento do Espírito Santo. Esses artigos assinalam uma nova
perspectiva de entendimento acerca da especificidade da Capitania e indicam diferentes
percepções e narrativas acerca de sua condição.

Se esses estudos apontam para a complexidade das experiências que envolviam o Espírito Santo
no contexto do Império Atlântico Português, um outro conjunto trabalhos nos ajuda a traçar um
cenário diferente do passado colonial espiritossantense instituído pelas narrativas anteriormente
analisadas. Identificamos dissertações produzidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) que também correspondem a essa
categoria de "narrativas críticas de sentido."603 Tendo como foco o lugar da Capitania no
contexto da economia colonial, são leituras que contestam a noção de decadência e estagnação
atribuídos ao passado colonial espiritossantense, o que permite a elaboração de uma outra
imagem do Espírito Santo colonial.

Sueni Sobrinho, ao analisar a economia local no século XVII, contesta a noção de fracasso e
identifica os limites dessa historiografia.604 Seguindo a perspectiva interpretativa apontada por

602
FERNANDES, Anna Karoline da Silva; RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Poderes inferiores e Política Fiscal na
Capitania do Espírito Santo. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p. 54.
603
Na ordem aqui analisadas, são elas: SOBRINHO, Sueni da Vitória. Capitania do Espírito Santo uma feitoria
portuguesa no Atlântico Sul: a pauta de comércio e a atividade mercantil (1600-1642). Dissertação (Mestrado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013;
CONDE, Bruno Santos. Depois dos Jesuítas: a economia colonial do Espírito Santo (1750-1800). Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2011; CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo
(1790 a 1821). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008.
604
"A História do Espírito Santo do período colonial foi escrita com poucos documentos e publicada por autores
que deram relevo a uma ideia de fracasso da Capitania assimilando ter havido um sucesso na colonização de outras
como São Paulo e Pernambuco. Essa construção, feita de maneira fragmentária, teve como princípio básico que
as informações daqueles documentos expressavam a verdade, característica de uma história positivista. Nesta
228

Luiz Cláudio Ribeiro, ele argumenta que não se pode desconsiderar a posição da Capitania
naquele contexto colonial:

Esta forma de ver os fatos limita o uso dos dados disponíveis e impede um olhar mais
atento da estrutura econômica e do papel estratégico da capitania do Espírito Santo,
pois sua posição geográfica lhe proporciona agir na defesa da colônia para garantir a
possibilidade de intercâmbio direto com a Europa e por cabotagem com as capitanias
do norte e com as do sul [...]A capitania capixaba se configurava como “uma cabeça
de ponte da invasão portuguesa da Mata Atlântica”. Ela tinha uma função estratégica
no que tange a dinâmica comercial litorânea, “no trafego com a Europa, África e Ásia,
bem como no mercado intracolonial, com um fluxo de cabotagem interessante” que
foi perdendo sua robustez, mas não se dizimou por completo, além de auxiliar na
defesa da costa com vista a manutenção do território da Colônia portuguesa na
América. [...] A capitania do Espírito Santo estava em consonância com o projeto de
colonização portuguesa para América. 605

O autor analisa o Espírito Santo como feitoria e entreposto comercial, considerando que sua
produção econômica à época não pode ser considerada irrelevante606, pois é possível identificar
núcleos de atividade açucareira e outros gêneros bem como um fluxo de transações comerciais
com capitanias vizinhas que atestam a conexão comercial em que estava localizada a
Capitania.607 Sobre a produção açucareira ele apresenta:

A documentação faz emergir o volume da exportação desse gênero tão importante à


Fazenda real – o açúcar. Segundo consta no Auto de devassa de 1617, os engenhos
produziam uns pelos outros, a média de 4.000 arrobas. O engenho Nossa. Srª. da Paz
declarou ter exportado 2.547 arrobas do açúcar produzido, todavia, o livro de registro
da alfândega acusou 4.123 arrobas e 29 libras, em 273 caixas, o bastante para três
navios conduzirem a Portugal. À mesma época, é sabido que o engenho de Marcos
d’Azeredo fabricou sozinho a quantidade de 3.763 arrobas,e que foram despachadas
em 242 caixas. Ora, esta quantidade multiplicada pelo número de seis engenhos em
produção na capitania atinge o total de 25.000 arrobas. [...]Essas informações nos

pesquisa perseguimos outra interpretação. Assim, transcrevemos documentos manuscritos datados do período
entre 1615-1681. Em sua íntegra, a análise inicial parece conduzir à introdução de novos elementos relacionados
com as pautas de comércio no Atlântico, e indicam articulações da capitania capixaba com outras capitanias do
Brasil e com as colônias espanholas na América. [...] Os pesquisadores estabeleceram suas análises como se o
período colonial no Espírito Santo fosse um bloco homogêneo e inflexível durante os três séculos como colônia,
negando, assim, as conjunturas econômicas, os fluxos e influxos monetários, a partir de políticas econômicas
traçadas pela Coroa e posteriormente pelo Conselho Ultramarino português e a atividade dos homens de negócios."
SOBRINHO, Sueni da Vitória. Capitania do Espírito Santo uma feitoria portuguesa no Atlântico Sul: a pauta
de comércio e a atividade mercantil (1600-1642). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013. p. 14-15.
605
Ibid., p. 66.
606
Por exemplo, o autor compara a produção de açúcar do Espírito Santo com Pernambuco e Bahia no início do
século XVII e atenta para as tentativas de invasão por parte dos holandeses: "Esse cotejar da produção mitiga a
aparência de uma capitania secundária e justifica o interesse da Coroa em estabelecer um controle mais rígido dos
negócios do açúcar. O que queremos demonstrar é que a capacidade de produção por unidade da capitania do
Espírito Santo é 25% menor que a de maior produção [Pernambuco] e de 4% em relação a produção da Bahia. Isto
revela o interesse dos holandeses na capitania, haja vista que essas foram as únicas capitanias a sofrer o assédio
dos holandeses, pois eram áreas de satisfatória produção açucareira. Outro fato que essa comparação nos revela é
a não absorção da capitania pela Coroa porque, além da importância econômica de sua produção também serviram
de cabeça de ponte para a interiorização do território, como parte da estratégia militar da Coroa.” Ibid., p. 95.
607
Ibid., p. 85-116.
229

permitem inferir que a atividade econômica na capitania, no período em questão,


difere bastante do que nos mostra a historiografia tradicional do Espírito Santo e de
alguns autores de história do Brasil.608

Assim, segundo Sueni, as primeiras décadas do século XVII apresentam um movimento


ascendente da economia instalada na Capitania, não limitada ao negócio do açúcar609, contando
com uma relativa dinamização comercial610que caracterizava o Espírito Santo como entreposto
comercial:

O rol de “fazendas” constantes como mercadoria para exportação também faz parte
da listagem de importações da capitania do Espírito Santo, e isso pode qualificar a
capitania como entreposto. No conjunto do império português era um local em que as
mercadorias chegavam, geralmente em navios do reino transbordadas no porto do Rio
ou da Bahia, e que saem embarcadas para outras capitanias muitas vezes na condição
de meios de pagamento[...]. Concluímos assim que havia um fluxo mercantil de
cabotagem entre o Espírito Santo e outras capitanias. Exemplo disso são as fazendas
mandadas para o Rio de Janeiro por instrução do governador geral Gaspar de Souza. 611

Observamos, portanto, que o "marasmo colonial" é contestado por Sueni Sobrinho que
apresenta a especificidade local naquele período sem se preocupar com "fatores" de exclusão e
marginalização da Capitania, identificando sua importância como entreposto comercial e
questionando a noção de ineficiência atribuída a ela. Se este autor avaliou um determinado
período do século XVII, Bruno Santos Conde avança no tempo em sua pesquisa contrariando a
noção de que o século XVIII foi o período da defasagem econômica devido à atividade aurífera
nas Minas Gerais.612

Segundo Bruno Conde, essa noção de decadência não corresponde à dinâmica interna do
Espírito Santo entre os anos de 1750 e 1800. Ainda que o autor reconheça que a economia local

608
SOBRINHO, Sueni da Vitória. Capitania do Espírito Santo uma feitoria portuguesa no Atlântico Sul: a
pauta de comércio e a atividade mercantil (1600-1642). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013. p. 105.
609
De acordo com o autor: "um complexo quadro de fluxo de capital por meio de transações comerciais que
gravitavam em torno da produção de açúcar: fazendas que chegavam da Bahia, do Rio de Janeiro, de Lisboa;
mercadorias enviadas ao Rio de Janeiro como quitação. Confirmamos a presença de comissários responsáveis por
essas movimentações, procuradores atuando em nome dos senhores de engenhos." Ibid., p.113.
610
Afirma, assim, o caráter de entreposto: "A capitania estava envolvida num circuito mercantil que foi
referenciado pelos testemunhos do auto de devassa. Segundo estes relatos desde pouco antes da União Ibérica
aportavam a cada ano na capitania três a quatro naus com mercadorias diversas, as quais entravam pela capitania,
não estavam direcionadas apenas aos senhores de engenhos, como destinatários finais mas como parte de
pagamento aos açúcares comprados dos lavradores, bem como encaminhadas a comissários e contratadores dos
dízimos, que as atravessavam para o Rio de Janeiro e Bahia." Ibid., p. 116.
611
Ibid., p. 107.
612
CONDE, Bruno Santos. Depois dos Jesuítas: a economia colonial do Espírito Santo (1750-1800). Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidades Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2011.
230

não obteve o mesmo êxito do que a de capitanias vizinhas613, ele argumenta que desde a segunda
metade do século XVIII, ocorreram mudanças na política portuguesa no sentido de tornar mais
vantajosa a Colônia, como a expulsão dos jesuítas, e que o Espírito Santo, diferentemente da
interpretação convencional, não foi caracterizado pelo fracasso. Se na narrativa histórica do
progressivo desenvolvimento do Espírito Santo observamos o ano de 1800 como marco de
mudanças interpretadas por José Teixeira de Oliveira, Maria Stella de Novaes e Neida Lúcia, o
autor analisa o período entre 1750 e 1800 como "um tempo de mudança, do qual o Espírito
Santo participou ativamente, jogando por terra a ideia de que a capitania vivia isolada."614

Nesse sentido, relativiza a noção de fracasso e, tal como Sueni Sobrinho, caracteriza a
especificidade da Capitania:

O Espírito Santo colonial comumente é apresentado como uma capitania pobre, um


empreendimento fracassado, discrepante das grandes regiões exportadoras
escravistas. De fato, isso não deixa de ser verdade em alguns aspectos, mas suscita a
necessidade de entendermos a configuração específica do lugar. Se não era um
exemplo de esplendor entre o Setecentos e o Oitocentos, o Espírito Santo apresentava
suas marcas próprias.615

Assim, recorre às fontes que demonstravam a dinâmica local inserida na economia colonial,
sem isolamento.616 A noção de marginalização deu lugar, nessa narrativa, à participação da
Capitania no mercado interno da Colônia. Bruno Conde recorre aos inventários, por exemplo,
para compreender o significado da estrutura produtiva na segunda metade do século XVIII.
Observando dois casos de proprietários locais o autor argumenta:

613
O autor reconhece essa diferenciação: “Assim, condições para o aproveitamento das oportunidades derivadas
da mineração existiam, mesmo com as medidas da coroa. Interessante seria entender o porquê do Espírito Santo
não ter se aproveitado mais intensamente do nicho gerado pela descoberta do ouro, ao contrário do que ocorrera
com outras capitanias. São Vicente, por exemplo, dinamizou ainda mais a prática do comércio interno e as
articulações com outras regiões, fato que se somou a um crescimento demográfico superior a 400% neste
período.[...] No Rio de Janeiro, as mudanças geradas pelo período da mineração, tal como a ampliação dos
mercados a serem abastecidos, transformou-a num importantíssimo entreposto, tendo em vista o seu papel no
escoamento do ouro e no abastecimento das Minas com víveres, escravos e outros itens. A intensa ligação com a
região mineradora contribuiu de maneira central para que, no decorrer do século XVIII, os negócios mercantis
superassem os agrários, transformando a praça carioca no porto por excelência da região das minas. Necessário
frisar que, paralelamente a tudo isso, ocorria o deslocamento do centro político e econômico do norte para o
centrosul, notadamente para o Rio de Janeiro.” CONDE, Bruno Santos. Depois dos Jesuítas: a economia colonial
do Espírito Santo (1750-1800). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidades Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011. p. 49.
614
Ibid., p. 14.
615
Ibid., p. 114.
616
O autor indica essa integração: "Pode parecer estranho o fato de uma capitania sem ligações diretas com outros
continentes apresentar produtos do reino e até mesmo do oriente numa loja de Vitória. Entretanto, a ligação, através
da cabotagem, com o Rio de Janeiro permitia ao Espírito Santo ter acesso aos produtos que lá chegavam vindos
do outro lado do Atlântico ou mesmo dos diversos mercados regionais internos da América lusa." Ibid., p. 114.
231

Os casos de Joanna da Victória e João Machado são apenas dois exemplos de atores
que ajudavam a moldar a estrutura produtiva do Espírito Santo. A primeira era
portadora de lavouras diversificadas, enquanto o segundo tinha como principal marca
a produção de aguardente. Ambos eram escravistas, residiam em Vitória e
desenvolviam atividades agrícolas e pecuárias no entorno da ilha. Mas não se deve
imaginar que este seja o modelo único dos detentores de bens inventariados no
período. Ao invés disso, a realidade encontrada abrigava toda uma complexidade de
patrimônios e bens. Eram lavouras, escravos, produtos para a venda, dinheiro
emprestado a juros, sobrados e casas nos meios urbano e rural, sítios com benfeitorias,
etc.617

Ampliando sua argumentação, enfatiza a produção de outros gêneros como a mandioca e o


algodão618 que estiveram entre as principais atividades produtivas nesse período, assim como
demonstra a considerável presença da cabotagem servindo à importação e exportação de
produtos no comércio com outras Capitanias:

Sem recorrentes ligações comerciais diretas com a Europa e a África, coube ao


comércio de cabotagem com as capitanias vizinhas providenciar o escoamento da
produção local e a busca pelos gêneros aqui faltantes, inclusive cativos africanos, os
quais vinham do Rio de Janeiro[...] As canoas, embarcações menores e mais
comumente encontradas nos inventários, tinham a importância de levar aos cais de
Vitória os gêneros produzidos às margens dos diversos rios que desaguavam na baía,
tal como a região do rio Santa Maria, marcada pela presença de engenhos. 619

Se a análise de Sueni e Conde recortam dois momentos do período colonial e evidenciam a


presença do Espírito Santo na complexidade da dinâmica colonial, Enaile Carvalho também
colabora em sua dissertação620 para essa revisão. Contrapondo-se à noção de ciclos econômicos
e ao sentido da história resultante dessa perspectiva621, a autora recorre aos empreendimentos
pessoais e às redes de sociabilidade que permitiram-na avaliar o cenário local nas primeiras

617
CONDE, Bruno Santos. Depois dos Jesuítas: a economia colonial do Espírito Santo (1750-1800). Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidades Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2011. p. 90.
618
Ibid., p. 125. Sobre a produção de algodão no contexto de diversificação da colônia: Embora não seja produção
das mais expressivas, a presença dessas pequenas fábricas no ambiente em questão é algo revelador, notadamente
se considerarmos que o Espírito Santo vez ou outra é apresentado como um centro sempre atrasado em relação às
principais tendências e movimentos econômicos vivenciados pelo restante da colônia. Inegável a contribuição dos
acontecimentos internacionais, a partir da década de 1770, para a expansão da cultura algodoeira, mas a dedicação
a tais lavouras em solo espiritossantense já existia antes disso, incentivada, e não principiada, a partir do contexto
externo. Ibid., p. 125.
619
Ibid., p. 108.
620
CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo (1790 a 1821).
2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade Federal
do Espírito Santo, Vitória, 2008.
621
A autora questiona a perspectiva de Bittencourt: "Em contrapartida, no caso do Espírito Santo, a falta de
pesquisas sobre a história da região, na maioria dos períodos, acaba por propiciar a adoção de modelos
historiográficos generalizantes ou simplesmente, definir um período como sem importância. Um bom exemplo
disso é o caso do recorte temporal compreendido entre o fim do século XVIII e início do XIX, tratado com menor
interesse pela historiografia capixaba que estabelece as pesquisas, privilegiando o advento da cafeicultura no
Espírito Santo a partir de 1850. O enfoque sobre as primeiras décadas do século XIX configura-se de vital
importância para subverter uma tradição historiográfica preocupada, quase sempre, em encontrar prosperidade
apenas nos grandes eventos econômicos como a cultura cafeeira ou os grandes projetos industriais." Ibid., p. 21.
232

décadas do século XIX. Contrariando a noção de fracasso colonial622, Enaile Carvalho identifica
indícios que ajudam a configurar um cenário econômico diferente dos retratados pelas
narrativas da superação do atraso.623 Refletindo sobre o lugar do Espírito Santo, argumenta que
deve ser entendido como participante do comércio interno da colônia.624 Nesse sentido,
argumenta que as atividades comerciais estavam em consonância com o contexto colonial que
já não contemplava o auge da atividade aurífera mas experimentava um dinamismo econômico
interno do qual participava o Espírito Santo:

Outras iniciativas surgiram no sentido de verificar novas fontes de riquezas perante a


administração lusitana no advento do Oitocentos. Neste sentido, amostras de madeiras
e sementes foram enviadas a partir de 1800, tanto por Silva Pontes quanto por seus
sucessores, no intuito de fazer a Coroa conhecer melhor a terra e identificar as riquezas
passíveis de exploração e envio para o Reino.[...] A título de exemplo, em 1805, o
então governador Manoel de Albuquerque Tovar enviara pelo Bergantim “Lobos
Unidos” remessa com amostras de todas as madeiras identificadas na Capitania. No
ano seguinte, saía do Porto de Vitória a galera “Prontidão” carregada de madeiras com
a Marca Real [...].Essas iniciativas evidenciam a nítida mudança na visão de
lucratividade que não mais se pautava na descoberta de metais e pedras preciosas ou
na agroexportação, mas também, vislumbrava a exploração dos elementos naturais ou
produzidos pela terra como mecanismo rentável. Portanto, as remessas de amostras
botânicas ou agrícolas não representavam exceções, mas aspectos administrativos
bem comuns no advento do século XIX. [...] Diante do exposto, o papel de capitanias
voltadas ao abastecimento interno, como a do Espírito Santo, deixa de ser visto como
um problema de estagnação, mas compreendido como um fator conjuntural de
independência da colônia quanto aos gêneros de primeira necessidade perante a
instabilidade europeia.625

622
Contra o estigma da terra abandonada : "Pretendo aqui, estabelecer um novo panorama para a história capixaba
do final do Período Colonial, vislumbrado numa realidade diferente daquela presente na historiografia tradicional,
sem contaminações de um discurso que insiste em atribuir o estigma de 'terra abandonada' para o Espírito Santo
do referido período; partindo do pressuposto da existência de uma sociedade ativa do ponto de vista econômico e
social, que superava as dificuldades através das redes de sociabilidade. Além disso, o Espírito Santo chega ao
século XIX, inserido na lógica política, social e econômica da época, confirmado pelo consumo de gêneros
importados e pela produção que, mesmo diversificada e desenvolvida em pequena escala, era sim, voltada para
comercialização." CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo
(1790 a 1821). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 25.
623
"[...] observei a existência, no Espírito Santo do Oitocentos, de uma coerência social própria decorrente de sua
situação geográfica, política e econômica ímpar, elevando a Capitania, não só a uma situação de subsistência
autônoma perante outras capitanias e o Estado no que concerne ao abastecimento, mas também, como parte
integrante do sistema colonial, na medida em que, a produção direcionava-se para o abastecimento de outras
regiões coloniais. Pode-se afirmar que o conhecimento a respeito das dinâmicas, produtiva e política, da Vila de
Vitória, esclarecem acontecimentos locais, como também, informam acerca dos processos globais da colônia."
Ibid., p. 20.
624
No que concerne à economia, os documentos investigados comprovaram a autonomia do Espírito Santo com
relação à subsistência, além de, permitir sua classificação de Capitania voltada para produção e exportação de
gêneros alimentícios e entreposto comercial, posicionando-a como fornecedora de gêneros alimentícios, madeira
de lei, tecidos e algodão em espécie para outras regiões do Brasil. [...] Mesmo os discursos políticos não
reconhecendo a existência de uma produção relevante e capaz de propiciar o desenvolvimento do Espírito Santo,
os mesmos contemplaram, contudo, ser a produção superior à necessidade local, o que promovia exportações para
outras capitanias, além da produção servir como mecanismo de acumulação e consumo de gêneros importados.
Assim, a mesma embarcação responsável em escoar a produção excedente capixaba, acabava por suprir o Espírito
Santo de artigos provenientes de outras localidades da colônia ou do estrangeiro. Ibid., p. 62.
625
Ibid., p. 64-65.
233

Observamos, ainda, que esse lugar do Espírito Santo identificado por Enaile Carvalho
corresponde à sua diversificação econômica como participante do comércio entre capitanias:

[...] expõe o quadro dos fretes contratados, junto à lancha de Francisco de Medeiros
Arruda, para o transporte dos gêneros de abastecimento da Capitania para o Rio de
Janeiro, e aqueles fretes, contratados no retorno para a Vila da Vitória. A referida
viagem levou mercadorias do Espírito Santo para o Rio de Janeiro, como algodão, fio
de algodão, madeira de lei, açúcar; retornando carregada de gêneros, a exemplo de
carne, seda, aguardente, marmelada, louça, queijo, rosca, cera, toucinho, farinha,
azeite, sal e pano. Diante das trajetórias dos homens dedicados aos negócios, seja na
Praça da Vitória, seja em outras capitanias – Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia –
,nota-se que, em princípios do século XIX, já estava estabelecida a elite mercantil
capixaba e os mecanismos garantidores do escoamento dos gêneros da terra e do
abastecimento da população com artigos de fora. Fato constatado não só pelas
narrativas expostas, mas também, pela entrada no Porto do Rio de Janeiro, de
embarcações provenientes da Capitania capixaba.626

Enaile constata que os empreendimentos pessoais analisados por ela evidenciam uma
diversificação de rendas que, por sua vez, apontam para uma produção local voltada para o
abastecimento do mercado colonial que "viabiliza inserir a economia capixaba no contexto da
economia colonial"627

Entendemos, portanto, que tanto os artigos analisados como as dissertações produzidas a


respeito do período colonial atendem aos propósitos do nosso desafio historiográfico no que
tange à abordagem crítica acerca da produção historiográfica do Espírito Santo. Ao recorrerem
a novas fontes e releituras de outras, tais estudos colaboram com a reflexão sobre a escrita da
história local pois orientam suas abordagens justamente na crítica aos fundamentos das
narrativas históricas da superação do atraso.

Elas relativizam, desconstroem e redimensionam o valor atribuído a determinadas


circunstâncias, acontecimentos e marcos temporais. Assim, negam o caráter homogêneo da
economia colonial da Capitania e viabilizam outras avaliações e qualificações. Os artigos
apresentados evidenciam a mudança de paradigma de compreensão e as possibilidades de
entendimento sobre os primeiros séculos no Espírito Santo, contestando as noções de sentido
único da história colonial e seu status de fundação do atraso. Complementando, as dissertações
demonstraram que a Capitania experimentou diferentes circunstâncias econômicas e
reavaliaram marcos tradicionais do passado. O Espírito Santo que emerge nas narrativas de

626
CARVALHO, Enaile Flauzina. Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo (1790 a 1821).
2008. 160f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós/Graduação em História, Universidade Federal
do Espírito Santo, Vitória, 2008. p. 92.
627
Ibid., p. 68.
234

Bruno Conde e Enaile Carvalho não corresponde à imagem de fracasso e abandono


caracterizada pelas narrativas anteriores. O primeiro identifica o revigoramento econômico da
Capitania no século XVIII com a expulsão dos jesuítas, contrariando a tese de que a região
esteve estagnada devido à exploração da atividade aurífera. Já a autora demonstra a capacidade
de inserção do Espírito Santo na economia colonial, principalmente para a abastecimento do
mercado regional, no início do século XIX. O que antes foi definido como marco inicial de um
processo de mudança que só ocorreria com o advento da República, é definido pela autora como
momento de afirmação do Espírito Santo na nova dinâmica econômica que se configura após o
auge da mineração.628 E, ainda mais distante no tempo, Sueni Sobrinho destaca que a inserção
da Capitania no contexto econômico colonial já existia no século XVII. Revisões e
deslocamentos, portanto, constitutivas dessas novas narrativas críticas.

Rompem, portanto, com o lugar sacralizado do atraso no passado colonial do Espírito Santo,
seja nos discursos políticos ou na historiografia. Ao abandonar a lógica atraso-progresso e
criticar o "sentido da colonização", essa produção historiográfica estabelece novos sentidos para
o passado colonial e define narrativas não orientadas pela expectativa do progresso ou do
desenvolvimento como superação. O significado do conjunto de experiências do passado
colonial não é avaliado como fardo. Atentam para a historicidade das experiências vividas e as
condições de possibilidades existentes nas dinâmicas da economia colonial na qual se inseria a
Capitania. Essa produção historiográfica se relaciona com o passado local sem entendê-lo como
origem do que é o Espírito Santo hoje nem como determinante de uma trajetória cujo sentido
seria a superação do atraso. .629

628
Essas crítica ao século XVIII como o principal obstáculo enfrentado pelo Espírito Santo no roteiro histórico
definido pelas narrativas históricas da superação do atraso correspondem à crítica que André Pereira faz à
interpretação de José Teixeira de Oliveira sobre a noção de "barreira verde": "[...]o texto de Oliveira desenvolveu
uma argumentação que é claramente marcada por um tom emocional e elabora a tese de que o Espírito Santo teria
perdido algo que deveria lhe pertencer por direito, num raciocínio contrafactual que não tem como ser sustentado
pelo fato de que não correspondeu ao processo histórico, e nem mesmo auxilia para elaborar, didaticamente, outras
linhas de atuação em termos potenciais. [...] Nenhuma capitania original se estendeu até o traço de Tordesilhas,
nem teria como fazê-lo. A ocupação do interior seguiu dinâmicas próprias, que iriam gerar outros tipos de interação
social. Não foi assim, porém, que Oliveira pensou. Vale notar que, sendo formado em Direito, talvez tenha se
deixado influenciar por um formalismo legal, que também não teria como ser justificado." PEREIRA, André
Ricardo Valle Vasco. Fantasias persecutórias na História do Espírito Santo. Revista Expedições: Teoria da
História e Historiografia. Goiânia, n.1, jan/jul, 2013. p. 153. Disponível em:
http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth. Acesso em: 12/04/2015.
629
Salgado Guimarães preocupado com as diferentes formas de produção do passado considera que a relação que
um presente estabelece com o passado pode ser o de considerá-lo como fardo quando se apropria dele como origem
de uma realidade presente ou como condições de possibilidade existentes em determinada época. GUIMARÃES,
Manoel Luiz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória. In: ABREU, Marta;
235

5.2 O ESPÍRITO SANTO REPUBLICANO: A CRÍTICA AOS MODELOS DE


MODERNIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO.

Se a representação do atraso colonial é desconstruída pelas narrativas críticas, o período


republicano, antes narrado como a imagem do progresso e do rompimento com o atraso,
também emerge sob outra perspectiva de análise. De acordo com as narrativas anteriormente
analisadas, o período republicano no Espírito Santo seria marcado por duas grandes
experiências de desenvolvimento: a modernização, com seus esforços industrializantes, na
Primeira República e o projeto de industrialização das décadas de 1960 e 1970 que se tornaram
os principais marcos da “superação do atraso” local. Na avaliação acerca dos estudos em torno
do Período Republicano no Espírito Santo identificamos e selecionamos trabalhos acadêmicos:
livros, artigos em revistas científicas, dissertações e teses. A releitura do passado nessas
abordagens reconfigura a narrativa de Espírito Santo republicano problematizando fatos e
sujeitos históricos de seus lugares sacralizados na memória local, desconstruindo símbolos do
progresso estabelecidos nas narrativas históricas da superação do atraso e apropriados, como
vimos, na atualidade como elementos constituintes de uma memória do desenvolvimento e do
discurso político da superação do atraso.

Em relação à Primeira República, os trabalhos de Jadir Peçanha Rostoldo e Wanessa Doellinger


Palácios630 são exemplares para avaliarmos a importância de releituras sobre a modernização
do início do século passado. Em sua tese, Rostoldo faz uma análise crítica acerca dos governos
estaduais que conduziram o projeto de modernização, considerando-os não como propulsores
do progresso e de superação do marasmo do Espírito Santo, mas analisou-os como uma forma
de exercício do poder, fundamentado nas relações clientelísticas do período e orientados por
um ideal de modernidade característico da época. Dessa forma, observa os relatórios dos
presidentes de Estado como representação da modernidade presente no discurso político, o do
progresso, ao qual estava atrelado o da transformação da capital Vitória.631

SOIHET, Raquel; GONTIJO, Rebeca (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de
história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 39.
630
ROSTOLDO, Jadir Peçanha. A cidade republicana na Belle Époque capixaba: espaço urbano, poder e
sociedade. 210f. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2008; PALACIOS, Wanessa Doellinger C. A expansão dos espaços periféricos em Vitória
durante o processo de urbanização em Vitória (1889-1930). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007.
631
"A maior evidência da atuação e poder do Governo sobre a capital do Espírito Santo são os relatórios e
mensagens produzidos para a prestação de contas ao Congresso Legislativo Estadual. Esse material demonstra as
preocupações com os destinos do Estado e expõe suas realizações. Ressaltamos que grande parte dessas
preocupações estava intimamente vinculada aos interesses dos grupos dominantes que davam suporte ao governo,
236

O foco do autor sobre esse período é crítico quanto aos efeitos desse processo de modernização.
Segundo Rostoldo, realizou-se um projeto modernizante que não gerou ganhos sociais para a
maioria da população, prevalecendo os interesses de uma elite política e social vinculada ao
clientelismo político da época que tornou-se a principal beneficiária das transformações na
Capital. É nesse sentido que o autor direciona sua crítica aos governos de Moniz Freire e
Jerônimo Monteiro. Argumenta que o discurso modernizante era utilizado como legitimador
das ações governamentais.632 Porém, deslocando esses governantes do lugar de símbolos do
progresso, ele aponta as dificuldades de condução e ineficiência de realização do projeto de
modernização bem como seu caráter limitado e excludente.633

Além da abordagem crítica em relação ao projeto de modernização republicano no Espírito


Santo, Rostoldo também relativiza o lugar de “propulsores do progresso” instituído em relação
aos governos estaduais desse período. Analisando as petições634 o autor argumenta que a
modernização da capital Vitória não pode ser avaliada apenas como expressão da ação desses
governantes. Ainda que reconheça o governo estadual como principal promotor das mudanças,

o que nos leva a aceitar que os relatórios/mensagens também funcionaram como uma prestação de contas do
governo à sua base política e econômica, uma forma de explicar o seu compromisso com essa parcela da
sociedade." ROSTOLDO, Jadir Peçanha. A cidade republicana na Belle Époque capixaba: espaço urbano, poder
e sociedade. 210f. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2008. p. 197.
632
Sobre os discursos dos governadores: "Nesse sentido, o discurso dos governos foi o mesmo. No início dos seus
períodos administrativos, tudo estava por se fazer na Capital. Apesar das tentativas anteriores, a cidade não
apresentava o padrão necessário: o republicano. As decisões de obras foram tomadas com este foco: retirar a cidade
do abismo colonial e inseri-la nos novos tempos da modernidade republicana, bela e saneada. Esse discurso
também nos remete à maior valorização pelos governos das obras realizadas em seu período, ou seja, o reforço e
a propaganda do negativo afloravam e evidenciavam o positivo. O objetivo não era valorizar as ações anteriores,
mas colocar em foco as suas próprias intervenções, que defendiam ser realmente aquelas que conseguiram reverter
a situação da cidade." Ibid., p. 198.
633
Sobre Moniz Freire: "Após o levantamento desses dados, parece-nos que, apesar do discurso governamental
em defesa de transformar Vitória no grande centro do Estado, a quantidade e a qualidade das intervenções ficou
aquém do prometido e do necessário. Com o direcionamento prioritário para a viação férrea, as demais obras foram
prejudicadas. Quase todas tiveram início tardio, a partir de 1893, e apenas o Quartel de Polícia e a Cadeia Pública,
o Hospital de Isolamento e o Teatro estavam concluídos ao final do governo. Ibid., p. 88; Sobre Jerônimo Monteiro:
" O presidente deixou claro que, resolvidos esses problemas, a cidade pegaria o trem do progresso. Não duvidamos
da importância desses serviços básicos, que já demoravam a funcionar na Capital, mas nos parece relevante indagar
se eles seriam suficientes para remodelar Vitória. Afinal, apenas uma parcela da população seria beneficiada. O
transporte público continuava sem solução e o lixo sem tratamento adequado, só para indicar outras questões
relevantes. Concordamos que as obras contribuiriam para o progresso da cidade, mas não seriam suficientes para
a inclusão de Vitória no rol das cidades com padrão republicano. Ibid., p. 94.
634
"Como o foco de nossa análise não é apenas identificar e catalogar as intervenções urbanas ou indicar suas
consequências para a cidade de Vitória, mas também reconhecer os responsáveis por essas ações e suas
motivações, fez-se necessária a utilização de uma fonte não oficial que pudesse expor a visão diversificada da
sociedade. Esse procedimento abriu novas perspectivas para a pesquisa. [...] As petições foram nossos
instrumentos para que pudéssemos traduzir a atitude da população de Vitória frente às transformações urbanas.
Mesmo que não fossem gratuitas e, em sua maioria, espontâneas, representavam o que de mais próximo
identificamos como expressão da sociedade." Ibid., p. 121.
237

evidencia a participação de outros sujeitos, o poder público municipal e a população.635 O autor


possibilita que a população de Vitória636 se apresente como ativa frente às ações do Estado e
ocupe um lugar na narrativa histórica republicana do Espírito Santo. Nessa perspectiva, ele
identifica que os moradores foram os principais demandantes das petições, o que demonstra sua
participação na transformação da cidade em diversas maneiras.637 Ele destaca, principalmente,
as petições espontâneas e coletivas como representantes da ação consciente da população:

Os moradores da cidade também agiram em conjunto buscando ações do ente público


para o benefício coletivo e não apenas individual. Em petição do dia 18-11-1910, os
moradores da Rua Presidente Pereira, ‘usando do incontestável direito de petição que
as leis lhes garantem’, solicitaram reparos e manutenção da rua onde moravam, tendo
em vista seu estado lastimável provocado pelas escavações para a colocação dos canos
de esgoto. Finalizaram declarando: ‘É nessas tristes condições que os abaixo
assinados se dirigem à Prefeitura ficando, a bem da justiça da sua reclamação, as
urgentes providências em defesa da saúde destes, interessando portanto a higiene
pública.638

Rostoldo possibilitou à narrativa histórica do Espírito Santo, portanto, inserir diferentes sujeitos
históricos, criticando o projeto de modernização e apresentando o conflito entre a ordem

635
"A sociedade não estava alheia ao processo, no entanto, seu campo de atuação se restringiu às suas necessidades
cotidianas, mais imediatas. O Governo Estadual agiu estrategicamente; já o Municipal atuou no sentido da
manutenção e conservação; e a população, mesmo utilizando um instrumento legal, as petições, não abriu mão do
seu direito de pedir, questionar e propor." ROSTOLDO, Jadir Peçanha. A cidade republicana na Belle Époque
capixaba: espaço urbano, poder e sociedade. 210f. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p. 201
636
Sobre esse caráter ativo: "A sociedade vitoriense também representou um importante sujeito responsável pelas
intervenções no espaço urbano da Capital. Essa constatação foi possível a partir das análise das petições,
documentos utilizados pela população para se comunicar com o Estado, especificamente com o Governo
Municipal. Esse instrumento, um direito da população, tornou-se o veículo para a incorporação da sociedade ao
sistemas de gestão do espaço urbano de Vitória." Ibid., p. 199.
637
O autor apresenta diversos pedidos como de construção para o comércio, saúde pública, embelezamento, etc.
Observemos um caso relatado sobre o comércio: “[...] Leopoldo Tonini e José da Costa Lebres solicitaram, no dia
7-10-1892, licença para estabelecer Kiosque na Capital. O primeiro especificou o tipo e o local onde deveria ficar,
além de indicar que o Kiosque seria imitação dos que existiam no Rio de Janeiro. Para o segundo, o
estabelecimento seria utilizado para vender bebidas em geral, atendendo à classe menos favorecida de fortuna.’
Justificou seu pedido pelo crescente aumento da população da cidade. " ROSTOLDO, Jadir Peçanha. A cidade
republicana na Belle Époque capixaba: espaço urbano, poder e sociedade. 210f. Tese de Doutorado. Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p. 156; Sobre a preocupação
com a modernização da cidade: “[...] podemos perceber a preocupação dos demandantes com as características da
Capital, como no pedido de alinhamento feito por José Luiz Durães, em 25-2-1893, que declarava que o motivo
de sua obra era o embelezamento de sua casa e da praça onde ela estava edificada. Da mesma forma, Antonio
Marques Orsini, comerciante na Praça do Mercado, solicitou permissão, em 22-6-1893, para efetuar obras de
mudança de acesso aos quartos do mercado, obras que permitiriam uma melhor circulação, aumento dos negócios
e aformoseamento do local, fazendo com que o mercado, que não estava à altura da beleza da Capital, passasse a
ter a forma das praças dos mercados mais modernas já existentes.” Ibid., p. 158; E, ainda, sobre a saúde pública:
“A petição do engenheiro Ferreirinha, de 27-7-1895, tocou em uma das questões mais importantes do período: a
higiene. Segundo o peticionário, o maior e mais importante problema da cidade era a falta de saneamento. Vitória
ainda não tinha um serviço regular de tratamento do esgoto nem de remoção do lixo. [...] Preocupado com os
efeitos negativos da situação, o engenheiro enumerou várias sugestões que poderiam solucionar o problema, que
iam desde o tipo de vaso a ser utilizado nas casas até a forma de tratamento dos detritos, além de apresentar os
procedimentos para o recolhimento do lixo. Ibid. p. 160.
638
Ibid., 169-170.
238

republicana e a necessidade dos moradores. Este conflito fica evidente na dissertação de


Wanessa Doellinger Palácios, que trata da emergência dos espaços periféricos em Vitória com
a implantação das mudanças urbanas na Capital. Tal como Rostoldo, realiza uma análise com
foco nas consequências desse processo para a vida da população, associando seus efeitos
negativos às ações governamentais da época.639

A autora analisa a nova feição urbana da cidade, mas problematiza o projeto modernizador e
destaca em sua análise os problemas sociais decorrentes desse processo no início do século XX.
As transformações na Capital aparecem associadas a um modelo de modernização excludente:

O Estado foi o grande agente direcionador e gerenciador do processo de urbanização,


que transformou a antiga Vitória, de aspectos coloniais, sem nenhum tipo de
saneamento, em uma cidade mais moderna e saneada. Da mesma forma, o poder
público estadual também voltou seu olhar para a questão habitacional. Assim, ao
mesmo tempo em que iam ocorrendo às demolições e recuos de prédios para abertura
de ruas e avenidas, foi-se construindo habitações para as camadas desfavorecidas de
fortuna. Essas habitações foram erguidas em locais afastados do centro, como forma
de homogeneizar os espaços da urbe: o centro para a elite e a classe média e os
arrabaldes para as camadas pobres da população. Sobre essa perspectiva, os
melhoramentos urbanos efetuados em Vitória foram acompanhados de uma
segregação espacial que se refletiu num alargamento dos espaços periféricos na
capital, refúgio dos impossibilitados de usufruir dos frutos da modernidade elitista. 640

Diante dessa problemática, a autora argumenta que as mudanças tiveram, principalmente, um


caráter elitista, mas a concretização da expansão do espaço urbano das áreas centrais de Vitória,
com o surgimento de ruas, avenidas, praças e prédios públicos, significou um processo de
exclusão e diferenciação social, caracterizado, sobretudo, pela periferização:

Os espaços periféricos da capital não cresceram em habitação e em população de


forma imediata. O foram, à medida que o projeto político de urbanização de Vitória e
do remodelamento de seu centro foi se efetivando gradativamente. Dessa forma, os

639
"O processo de urbanização de Vitória, que teve com Jerônimo Monteiro o seu impulso inicial, consolidou-se
mais concretamente com Florentino Avidos. Todavia, a transformação de Vitória de cidade colonial em uma cidade
mais moderna e saneada não foi acompanhada de um projeto político habitacional mais efetivo, que pudesse sanar
a crise de habitação provocada pelas demolições e pelo aumento populacional verificado na capital durante o seu
processo de urbanização. O direcionamento dado pelo governo estadual durante a Primeira República, mais
especificamente com Florentino Avidos, foi o realojamento de uma parte da população menos favorecida para os
arrabaldes da capital, expandindo-se, assim, os espaços periféricos de Vitória. Nem todos os segmentos da
população podiam se comprometer com a aquisição da casa própria vendida em prestações pelo governo, ou com
os custos de aluguéis em qualquer outra região de Vitória. Podemos relacionar a ocupação dos morros ao redor do
centro de Vitória com essa questão. Morros como o do Moscoso, da Fonte Grande e da Piedade, na segunda década
do século XX já eram ocupados em Vitória. Nesses locais foram construídos casebres e palhoças sem nenhum tipo
de infraestrutura de saneamento e, por isso mesmo, eram vistos como uma constante ameaça de infecções e
moléstias, as quais poderiam ser transmitidas às populações da parte baixa da cidade." PALACIOS, Wanessa
Doellinger C. A expansão dos espaços periféricos em Vitória durante o processo de urbanização em Vitória
(1889-1930). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito
Santo, Vitória, 2007. p. 166.
640
Ibid., p. 18-19.
239

espaços em Vitória foram organizando-se e se homogeneizando de acordo com as


condições socioeconômicas de seus cidadãos: a maioria dos espaços no centro da
cidade ficou para a elite, para a classe média e para as atividades relacionadas ao lazer,
à administração e ao comércio. Não se excluíram totalmente do centro da cidade as
camadas menos favorecidas da população, mas, com certeza, seus espaços ficaram
bem menores. A grande maioria dessa população dirigiu-se para os arrabaldes da
capital, como Jucutuquara, Santo Antônio, Ilha de Santa Maria, Praia Comprida, Suá
e Vila Rubim. Esses espaços foram se consolidando enquanto lócus dessas camadas,
paralelamente ao aumento da população de Vitória e do processo de modernização da
cidade.641

Wanessa Doellinger demonstra, dessa forma, como as contradições sociais se acentuaram nas
primeiras décadas do século XX no Espírito Santo e, consequentemente, como a pobreza e a
falta de habitações populares não só criaram periferias como também, seguindo às concepções
de saúde da época, o sujeito pobre fosse associado à insalubridade e ao perigo social.

Assim, percebemos que as consequências negativas do processo de modernização são trazidas


pelos autores, que estabelecem com o passado uma relação problematizante. O sentido do
passado não é mais o do progresso. A mudança de foco permite que as narrativas apresentem
outros sujeitos históricos bem como evidenciem os efeitos negativos do projeto modernizante
da elite política local. Por um lado, como vimos, Moniz Freire, Jerônimo Monteiro e Florentino
Avidos são redimensionados, sendo revistos o lugar e valor atribuído a eles. Por outro, o foco
está nos sujeitos que sofreram as consequências dessa ordem republicana como também nos
atores sociais partícipes desse processo, de forma ativa e, dentro das possibilidades,
reivindicativa.

A desconstrução de modelos de narrativas históricas anteriores fica ainda mais evidente quando
avançamos no tempo e avaliamos as mudanças historiográficas em torno da temática do
desenvolvimento econômico local a partir das décadas de 1960 e 1970. Como observamos
anteriormente, tanto na definição das narrativas históricas da superação do atraso como na
produção da “memória do desenvolvimento”, esse período tornou-se paradigmático na forma
de se compreender e narrar o passado do Espírito Santo. Esse marco histórico passa também
por revisões críticas e releituras que redimensionam o valor atribuído a determinados eventos e
personagens históricos que são avaliados, principalmente, em função da crítica realizada ao

641
PALACIOS, Wanessa Doellinger C. A expansão dos espaços periféricos em Vitória durante o processo de
urbanização em Vitória (1889-1930). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007. p. 173.
240

modelo de desenvolvimento adotado na formulação e realização dos chamados Grandes


Projetos.

Na abordagem desse conjunto de estudos, identificamos duas linhas de interesse: os que


analisam o modelo de desenvolvimento adotado pela elite política local e os que avaliam os
impactos do processo de industrialização ocorrido na sociedade espiritossantense.
Selecionamos artigos de revistas acadêmicas bem como teses e dissertações que nos revelam
outra forma de compreensão e narrativa histórica acerca desse período. Primeiramente, no que
tange à análise crítica em torno do modelo de desenvolvimento implantado no Espírito Santo,
os estudos são pautados pelas questões que envolveram a via da industrialização como caminho
para o desenvolvimento, seus aspectos políticos e suas relações com as mudanças ocorridas no
cenário local.

Em relação à industrialização como o caminho a ser seguido pelo Espírito Santo, Diones
Ribeiro642 considera que o que foi estabelecido com os Grandes Projetos foi uma perspectiva
conservadora de desenvolvimento. Segundo ele, o desenvolvimentismo foi adotado como
projeto a ser seguido pelas elites locais como meio de se queimar etapas de desenvolvimento
capitalista objetivando maximizar as forças produtivas locais e elaborar um forte parque
industrial para superar o que era considerado atraso econômico associado ao setor agrário-
exportador.643 Foi esse o modelo criticado pelo autor. A industrialização implementada foi a da
tecnocracia que assumiu a condução do Espírito Santo após 1964, o que ele denominou de
“burguesia de Estado”:

Esta burguesia de Estado, como bem conceitua Caio Prado Júnior, se uniu a partir do
aparelho de Estado, para promover o desenvolvimento econômico, tendo destaque as
ações de Eliezer Batista, Carlos Monteiro Lindemberg, Asdrúbal Soares, José Buaiz,
Jones dos Santos Neves, Américo Buaiz, Arthur Gehardt etc [...]. Ou seja, eram
pessoas que utilizavam a máquina estatal em nome de um projeto de Espírito Santo
via industrialização e modernização estrutural. 644

O perfil da modernização, segundo ele, concretizou-se na década de 1970 com a criação dos
grandes projetos de Impacto, o que determinou o alinhamento com o projeto dos militares assim
como suas implicações:

642
RIBEIRO, Diones A. Uma perspectiva conservadora do desenvolvimento econômico capixaba no pós 1964: o
Governo Arthur Gehardt e os Grandes Projetos de Impacto (1971-1975). Revista Ágora. Vitória, n. 20, pp. 127-
150, 2014.
643
Ibid., p. 129-132.
644
Ibid., p. 132.
241

[...] a política econômica desenvolvida pelos militares e implementada no Espírito


Santo na década de 1970 deu ao país um papel complementar no capitalismo
internacional, dotando-o de indústrias que exportariam materiais e insumos
indispensáveis para o desenvolvimento capitalista de empresas estrangeiras,
notoriamente as americanas e japonesas. Ao se poupar mão de obra através da
transferência de tecnologia, também se racionava empregos. Os postos melhor
qualificados eram aqueles que recebiam os melhores salários, ao passo que a grande
maioria da população receberia baixa remuneração[...]. O projeto das elites do Espírito
Santo formulado para a superação do atraso foi balizado nesta lógica, já que ele foi
pensado através da associação do capital nacional e do internacional através da
transferência de tecnologia. Era o modelo da modernização conservadora se tornando
hegemônico no Espírito Santo. 645

Diones Ribeiro questiona um ponto central das narrativas históricas da superação do atraso. Sua
crítica a esse modelo é direcionada para o fato de que os investimentos realizados pelo Estado,
por meio de órgãos como a CODEC (Conselho de Desenvolvimento do Espírito Santo) e o
BANDES (Banco de Desenvolvimento Econômico e Social do Espírito Santo), não colocaram
a indústria local no patamar de outros estados como Rio de Janeiro e São Paulo, pois, para o
autor, empreendimentos como o da Companhia Vale do Rio Doce, representavam um
“desenvolvimento econômico pensado para o estado [que] visava adequar a economia local aos
ditames do capitalismo transnacional, sem que as arestas ligadas ao subdesenvolvimento
fossem rompidas."646 O que implicou na caracterização que ele fez de um governo identificado
com a “superação do atraso”:

Mesmo que o governo de Arthur Carlos Gehardt Santos tenha sido um marco na
questão do planejamento e que os Grandes Projetos de Impacto tenha permitido a
inserção do Espírito Santo no cenário capitalista internacional, tal perspectiva de
crescimento econômico reforçou o papel complementar do Estado na esfera capitalista
internacional, ao transferir uma tecnologia poupadora de mão-de-obra e dotá-lo de um
parque industrial fornecedor de matérias-primas e insumos a serem utilizados pelos
grandes conglomerados internacionais. 647

Observamos, portanto, que Diones Ribeiro questiona o valor dado a esse período e seus
principais atores políticos como marcos da “superação do atraso” presente nos discursos
políticos sobre o desenvolvimento local. Em relação aos aspectos políticos desse contexto, a
tese de Ueber Oliveira648 nos apresenta a questão da relação entre o projeto de industrialização

645
RIBEIRO, Diones A. Uma perspectiva conservadora do desenvolvimento econômico capixaba no pós 1964: o
Governo Arthur Gehardt e os Grandes Projetos de Impacto (1971-1975). Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p.
141.
646
Ibid., p. 146.
647
I bid., p. 148.
648
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013; Complementada pelo artigo: OLIVEIRA, Ueber.
Regime militar, elites regionais e a confluência de agendas desenvolvimentistas: a ascensão e o Governo de Arthur
Carlos Gehardt no Espírito Santo (1971-1975). DIMENSÕES. Vitória, n. 30, pp. 385-421, 2013.
242

e o jogo político local em termos de legitimidade e permanência de uma parcela da elite política
local no poder e na condução do desenvolvimento econômico do Espírito Santo. Seu foco são
as disputas políticas locais e, em especial, a análise de como um determinado grupo conduziu
o Diretório Regional da Arena e viabilizou, de forma seguida, os governos de Christiano Dias
Lopes Filho, Arthur Carlos Gehardt e Élcio Álvares, entre 1967 e 1979, consolidando a
implantação dos Grandes Projetos Industriais no Estado.

Ueber Oliveira nos remete a um aspecto importante quando se trata desse período que é a análise
dessa relação entre elite política local e o governo dos militares. A exaltação de determinados
fatos e personagens históricos associados ao desenvolvimento econômico das décadas de 1960-
1970, tanto nos discursos políticos como na historiografia, na maioria das vezes, não retratam
essa relação estabelecida com o Regime Militar no que tange a possibilidade de legitimação de
um projeto. O autor, ainda que se concentre nas disputas políticas locais, evidencia que a
plataforma de mudanças estruturais ocorridas no Espírito Santo, conduzida por esses
governantes, foram possíveis pelo alinhamento com os militares, com o modos operandi, com
sua forma de governo. Segundo ele, existiu um comprometimento dos segmentos de poder em
diferentes esferas que garantiram a perpetuação política de atores políticos com esse
alinhamento que garantiam a consolidação do regime ditatorial a nível estadual e municipal,
possibilitando a confluência de interesses de parte da elite local e os militares.649

É nessa perspectiva, por exemplo, que Ueber Oliveira compreende a chegada de Christiano
Dias Lopes ao governo, pois sua trajetória evidenciava uma correspondência com as propostas
modernizantes que se consolidavam no Espírito Santo. Como evidenciou Diones Ribeiro, a
tecnocracia conduziria o processo de industrialização e Ueber Oliveira evidencia como se
estabeleceu a ocupação de um espaço de poder que garantia a legitimidade política dentro do
restrito espaço de atuação. Um consenso em torno do projeto de industrialização que garantiu
não só o governo de Christiano Dias Lopes como a perpetuação dessa tecnocracia no poder. 650

649
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p. 385-390.
650
Segundo o autor: "Tal consenso pôde ser evidenciado em diversos pronunciamentos feitos por lideranças dos
mais diversos agrupamentos políticos do Estado que, indistintamente, pertencentes ao antigo PSD e aos grupos
que lhe faziam oposição, não questionavam a necessidade de se buscar a diversificação da economia capixaba por
meio da industrialização, ante a grave crise do café. [...] Por esse ângulo, para empreender o seu plano de governo,
que vinha ao encontro das novas demandas, e apesar de ser uma gestão inserida no contexto de um regime
autoritário, era necessário ocupar o quanto possível os espaços de poder, inclusive em termos de base de apoio no
Legislativo local – especialmente quando levamos em consideração as realidades regionais – notadamente durante
o tempo em que o mesmo permaneceu funcionando e sem grandes interferências." Ibid., p. 158.
243

É nesse sentido que ele avalia a chegada de Arthur Gerhardt ao poder, substituindo Dias Lopes,
garantindo a continuidade desse processo, inclusive, intensificando-o.651 Em artigo no qual dá
sequência à essa reflexão, Ueber Oliveira confirma a tese do alinhamento652 de Gerhardt e do
lugar que ele representava:

[...] além da Companhia Vale do Rio Doce, com a qual Arthur Carlos possuía fortes
vínculos, outro organismo que teve papel fundamental na indicação do nome de
Gerhardt Santos para a governadoria biônica em 1970/1971, foi a Findes. A entidade
havia sido importantíssima na formulação e execução do programa da gestão Dias
Lopes e, com o tempo, adquiriu importância nas arenas decisórias diversas, em
detrimento dos demais grupos de pressão, o que culminou na implantação dos Grandes
Projetos de Impacto.653

Ao analisar, portanto, o perfil desses governantes, Ueber Oliveira define que existiu uma
“Plataforma Ideal” que garantiu a implementação de um projeto local alinhado aos militares. 654
Dessa forma, o que surge na narrativa histórica da superação do atraso como resultado de um
esforço das elites políticas locais em transformar a estrutura econômica do Espírito Santo é
redimensionado por meio de uma avaliação desse processo em termos de disputas políticas e

651
OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do estado do Espírito Santo no contexto do
regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de
Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p. 234-240. Segundo ele: "Durante o governo Arthur
Gerhardt Santos, foi gestada uma das principais transformações pelas quais passaria o Espírito Santo nos anos
posteriores. Mudou-se - radical e definitivamente - a natureza do espaço econômico capixaba: se até o inicio da
década de 70, o lócus da acumulação capitalista concentrada se centrou nas atividades tradicionais, liderados pelo
capital local, sem nenhum rompimento profundo com a atividade cafeeira - monocultura de exportação -, a partir
do Governo Gerhardt dos Santos, passaria o Estado a ser o locais da ampliação, acumulação e reprodução do
grande capital, com a lógica própria e distinta da que a economia capixaba havia experimentado em sua trajetória
desenvolvimentista." Ibid., p. 241.
652
Alinhamento para além de um modelo econômico, mas também de projeto autoritário: “Nota-se na exposição,
que o então Governador Dias Lopes considerava aquele momento como a consolidação do regime instaurado em
1964. Curiosamente, não menciona, em nenhum momento, naquilo que chamou de hiato ou caos revolucionário,
as cassações de mandatos, as perseguições a grupos políticos e sociais, o fechamento do Congresso e da
Assembleia Legislativa, as torturas, que naquele momento já estavam sendo bastante combatidas. Importante
salientar, além disso, que essa indiferença em relação às ações autoritárias e de exceção por parte do regime não é
demonstrada no fragmento, apesar de o chefe da Polícia Civil do Espírito Santo e, portanto, responsável por grande
parte das prisões e torturas no Estado, ter sido nada menos que o próprio irmão do Governador, o Sr. José Dias
Lopes. OLIVEIRA, Ueber. Regime militar, elites regionais e a confluência de agendas desenvolvimentistas: a
ascensão e o Governo de Arthur Carlos Gehardt no Espírito Santo (1971-1975). Dimensões. Vitória, n. 30, 2013,
p. 388; Sobre as limitações do regime democrático: "Sobre as medidas do Regime que contrariavam os princípios
próprios do sistema democrático, o Governador Dias Lopes é ainda mais enfático ao justificar as medidas de
exceção empreendidas, demonstrando alinhamento absoluto em relação ao Governo Federal." Ibid., p. 390.
653
Ibid., p. 403.
654
Sobre o conceito de Plataforma Ideal: "[...] um projeto de desenvolvimento que fosse capaz de prospectar
vantagens junto ás esferas nacionais e internacionais, no sentido de recuperar a economia capixaba e, por outro,
dar saltos qualitativos em termos desenvolvimentistas. Foi nesse momento de industrialização, via instalação dos
chamados Grandes Projetos de Impacto, que ocorreu a confluência histórica entre os projetos de desenvolvimento
do Espírito Santo e dos governos militares. Nesse sentido, ficou evidenciado que houve uma movimentação
deliberada, por parte da parcela urbano-industrial das elites regionais, na intenção de adequar e fazer confluir os
respectivos projetos desenvolvimentistas." OLIVEIRA, Ueber José de. Configuração político-partidária do
estado do Espírito Santo no contexto do regime militar: um estudo regional acerca das trajetórias de ARENA
e MDB (1964-1982). 355 f. Tese de Doutorado, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2013. p. 319.
244

legitimação de um projeto de Espírito Santo conduzido por determinados atores. As abordagens


de Diones Ribeiro e Ueber Oliveira, ao evidenciarem que o modelo de industrialização do
Estado foi resultado da vitória de um determinado setor da elite (e seu projeto), são
complementadas pela tese de Luiz Cláudio Ribeiro sobre o sistema público de energia elétrica
no Espírito Santo, em especial, nas décadas de 1950 e 1960.655

De acordo com Luiz Cláudio Ribeiro, o sistema público de energia elétrica compôs o cenário
de busca pela dinamização da economia local para além da produção cafeeira. No entanto,
diferentemente da perspectiva das narrativas históricas da superação do atraso, o autor não
observa as mudanças no setor elétrico local limitado à condição de elemento constitutivo das
mudanças locais que viabilizaram o salto qualitativo infraestrutural do Espírito Santo que
permitiu sua inserção no cenário nacional. Ele problematiza esse processo de alinhamento,
atribuindo outro sentido que não o da "superação". Ainda que reconheça a importância desse
setor para a efetivação da industrialização, analisa como o modelo de modernização econômica
implantado no Estado impactou o sistema público de energia elétrica. Ao analisar a fusão que
ocorreu em 1968 entre a Escelsa e a CCBFE, argumenta que ela foi resultado de um processo
de articulações engendradas na sociedade brasileira com o projeto dos militares. Considera que
o setor energético no Espírito Santo já estava em reestruturação desde a década de 1950, porém,
a partir do Regime Militar esse setor foi incorporado ao projeto do governo nacional.656 Assim,
a integração do Espírito Santo à economia nacional é entendida sob a perspectiva de que o
Estado atendeu a determinados interesses político-econômicos na montagem do complexo
industrial-portuário, e que o sistema elétrico local passou fazer parte “de um projeto geopolítico
mais amplo, articulando as regiões sudeste e centro-oeste do Brasil aos compromissos e
interesses do Estado brasileiro para com a produção industrial destinada à exportação.”657

655
RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Excelsos destinos: história da energia elétrica no Espírito Santo (1896-1968).
Vitória: EDUFES, 2013.
656
Segundo o autor: "De fato, no Espírito Santo os projetos de maior envergadura dos governos militares foram os
do setor siderúrgico em todo o complexo da Companhia Ferro e Aço de Vitória e pela CVRD envolvendo desde
as atividades mineradoras, transporte ferroviário, beneficiamento dos minerais até as atividades portuárias e o
transporte naval. Porém, desde o final da década de 1950 esses projetos já se encontravam em vias de implantação,
razão pela qual era necessário reestruturar o setor elétrico capixaba. Por isso, os “policymakers” do regime
autoritário só fizeram aprofundar ainda mais o comprometimento do Estado, alterando sua magnitude e atraindo
novos investidores para o setor elétrico estatal, a exemplo do USAID e do EXIMBANK dos EUA. Isso foi
determinante na constituição da “nova” ESCELSA." RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Excelsos destinos: história da
energia elétrica no Espírito Santo (1896-1968). Vitória: EDUFES, 2013. p. 37-38.
657
Ibid., p. 23. O autor demonstra, portanto, que a política de eletrificação estadual foi redirecionada para atender
o parque industrial: "Nesta pesquisa foi verificado que a política de eletrificação dos governos estaduais - voltada
para o estabelecimento de um parque industrial de bens de consumo não-duráveis e para a agroindústria - foi
totalmente alterada para que o sistema ESCELSA se integrasse ao sistema ELETROBRÁS e fosse capacitado a
245

Dessa forma, na mesma orientação de Diones Ribeiro, focalizando o sistema elétrico Estadual,
Luiz Carlos Ribeiro evidencia como o projeto de industrialização conduzido por setores de uma
elite local inseriu o Espírito Santo na economia capitalista. O que era interpretado como
conquista pela narrativa histórica da superação do atraso e pelos discursos políticos da época,
inclusive, resgatados pela “memória do desenvolvimento”, são avaliados pelo autor sob outra
perspectiva:

[...] além de abrigar a sede da CVRD, da COFAVI e de contar com complexo


portuário de Tubarão, o Espírito Santo também tinha disponibilidade de terras e uma
configuração geográfica privilegiada para a construção de infraestrutura portuária e
de proximidade com as jazidas de minério de ferro do país, enfim, tudo sob controle
federal, fechando o circuito de produção e transporte do setor minero-siderúrgico sob
monopólio federal. Assim, no Espírito Santo, pôde o Estado brasileiro induzir, a partir
daí, um ciclo artificial de crescimento econômico regional e de urbanização acelerada
baseando-se nos investimentos em infraestrutura energética, construção e montagem
industrial e em transportes que moldaria a industrialização pesada ocorrida no estado.
Em sua primeira fase, tal modelo visava especializar a produção capixaba no
beneficiamento de produtos primários como o minério de ferro e outros minerais, na
produção de semi-acabados como celulose em placas, perfis laminados de aço, etc.,
ou simplesmente no embarque de grãos. Naturalmente que toda essa produção seria
voltada para o abastecimento dos mercados dos países industrializados.658

Assim, avalia a inserção do Espírito Santo no cenário econômico brasileiro e, mesmo


focalizando o “casamento” de empresas do setor elétrico, nos apresenta uma abordagem crítica
sobre o modelo implementado:

É nesse contexto que, em 1968, a ESCELSA e a CCBFE deixaram de ser empresas


solteiras, com atuação independente, e foram casadas - fundidas – numa só empresa,
prevalecendo o nome do 'noivo'. O casamento geraria a nova infraestrutura energética
no Espírito Santo: a ESCELSA seria o pivô do modelo industrial primário-exportador
que vingaria nas décadas seguintes. Tal modelo tornaria possível a futura construção
de mais portos, a multiplicação das exportações da CVRD, a implantação da grande
indústria de celulose e de outros grandes projetos associados em mineração e
siderurgia. Em consequência, moldaria um novo cenário urbano-industrial na Grande
Vitória onde se destacaria a ocupação desordenada de extensas áreas da ilha-capital e
regiões periféricas.659

Luiz Cláudio Ribeiro, portanto, além de avaliar o impacto da industrialização introduzida no


Espírito Santo na década de 1960, nos indica as consequências desse processo. Tal como Ueber
Oliveira e Diones Ribeiro, o autor não adentra nas implicações negativas em torno do cenário
urbano-industrial daí resultante. No entanto, se esses autores colaboraram para a narrativa
histórica do Espírito Santo problematizando e questionando o modelo de industrialização

transmitir a energia gerada por suas próprias usinas e pelas grandes plantas hidrelétricas em funcionamento, como
Furnas e CHESF, para os “grandes projetos” federais como a CVRD e a Cia. Ferro e Aço de Vitória." Ibid., p. 38.
658
RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Excelsos destinos: história da energia elétrica no Espírito Santo (1896-1968).
Vitória: EDUFES, 2013. p. 309.
659
Ibid., p. 310-311.
246

implantado, outras narrativas nos apresentam como esse processo gerou novas configurações
urbanas e relações de trabalho que afetaram a realidade social local desconsideradas na
perspectiva das narrativas da superação do atraso ou nas "memórias do desenvolvimento."

Identificamos que outros autores também questionam a forma como se estabeleceu o conjunto
de transformações econômicas e sociais ocorridas nas décadas de 1960 e 1970. A obra
Industrialização e empobrecimento urbano: o caso de Vitória (1950-1980),660 de Maria da
Penha Smarzaro Siqueira é a principal referência na historiografia local em relação à temática
da urbanização e sua relação com a industrialização.661 Nessa obra, o empobrecimento urbano
é a principal preocupação da autora. Tal como os autores acima, ela problematiza a
modernização econômica do Espírito Santo no período entre 1960-1980. Analisando a inserção
do Estado na lógica do desenvolvimento econômico de integração nacional conduzido pelos
militares, argumenta que esse modelo determinou um ritmo acelerado de crescimento e um
novo padrão de urbanização na região da Grande Vitória. Considerando que a expansão urbana
ocorreu via crescimento da periferia, a autora identifica que esse processo não foi acompanhado
de planejamento e investimentos estatais para atender as novas demandas, acarretando os
problemas de infraestrutura urbana, além das questões da moradia e do trabalho.

Siqueira reconhece que o processo de industrialização no qual se envolveu o Espírito Santo


permitiu um conjunto de expectativas econômicas que surgiram devido ao novo padrão de
produção industrial no Estado e seu lugar alcançado no quadro das exportações nacionais.
Porém, diferentemente do que é apresentado pelo discurso da superação do atraso, a autora
argumenta que ficou reservado ao Espírito Santo um lugar periférico nessa integração nacional
de acordo com o modelo de desenvolvimento capitalista da época, limitando-se à produção de
bens intermediários destinados à exportação.662 Um perfil que, segundo ela, não foi capaz de
valorizar os aspectos sociais:

660
SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e empobrecimento urbano: o caso da Grande Vitória
(1950-1980). 2.ed. Vitória: Edição da Autora, 2010. Utilizamos a segunda edição. A primeira é do ano de 2001.
661
Sobre essa temática, ver também: SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Urbanização desigual e desigualdade
nacional: um descaminho no processo do desenvolvimento brasileiro. DIMENSÕES, vol. 25, pp. 215-234, 2010;
SIQUEIRA, M. da P. S. Crescimento urbano: modernização e fragmentação social. In: SIQUEIRA, Maria da
Penha Smarzaro (org.). Sociedade e Pobreza. Vitória: UFES/PPGHIS, 2006; e SIQUEIRA, Maria da Penha
Smararzo. A questão regional e a dinâmica econômica do Espírito Santo 1950-1960. In: Fênix - Revista de História
e Estudos Culturais, Outubro/ Novembro/ Dezembro de 2009 Vol. 6, Ano VI, nº 4. Disponível em:
www.revistafenix.pro.br. Acesso em 12/02/2011.
662
Segundo a autora: "[...] a inserção do Espírito Santo nesse processo de modernizador fortaleceu sua condição
periférica, através da especialização da região na produção de bens intermediários destinados ao mercado externo.
Nessa nova fase, estamos nos referindo principalmente ao setor de metalurgia e celulose. Naturalmente, essa
247

Os lucros gerados pelas empresas que se instalaram no Espírito Santo não seriam
reinvestidos no Estado, nem mesmo suas contribuições para a arrecadação estadual
e/ou municipais seriam significativas em decorrência das isenções fiscais que lhes
foram concedidas. [...] Esse fato é nitidamente observado no decorrer dos anos
posteriores, com o procedimento da política desenvolvimentista, sem seguir um plano
de ação integrada, visando a buscar a valorização dos aspectos sociais na mesma
intensidade do desenvolvimento econômico. Esse segmento foi perdendo importância
na medida em que o crescimento da produção industrial passa a ser o setor máximo
de prioridade nas diretrizes do Estado.663

Nesse sentido, Siqueira analisa o projeto desenvolvimentista local considerando que este
voltou-se para o crescimento econômico e teve como consequência um elevado grau de
desigualdade:

No caso do Espírito Santo, o desenvolvimento se dá com a concentração dos Grandes


projetos Industriais na Grande Vitória, sendo que a região era carente de infraestrutura
básica, constituindo este um dos principais motivos de grande desorganização social.
[...] Verifica-se a inexistência de políticas urbanas com capacidade de fazer frente aos
problemas que passaram a marcar a vida da cidade. a primeira evidência seria, no
caso, a necessidade de a região se preparar quantitativamente no que se refere a
serviços básicos, como: saúde, educação, habitação, segurança, transporte coletivo,
lazer, etc. Por outro lado, do segundo ponto, depreende-se uma colocação qualitativa
da cidade. Ela precisava verticalizar seus serviços, aperfeiçoá-los e colocá-los à
disposição em qualidade compatível com o seu novo 'status' de metrópole emergente.
[...] Entretanto, se procurarmos cruzar as duas evidências, chegaremos a um contraste
quali-quantitativo, na medida em que o atendimento à função básica - gerar empregos
em números e qualidades adequados à realidade local - não estava assegurado pelo
crescimento econômico esperado.664

As mudanças estruturais, vistas pelo discurso das narrativas da superação do atraso como marco
da mudança de patamar do Espírito Santo, são interpretadas pela autora como marco das
distorções e problemas urbanos na Grande Vitória, entendidas como principais causas dos
desequilíbrios espaciais e a aceleração dos fluxos migratórios que se apresentaram, no decorrer
do processo, na desigualdade e pobreza da região.665 Segundo a autora, a partir da década de
1970 intensificou-se o inchamento da Grande Vitória observado na expansão da periferia e na
urbanização desordenada, com a formação de diversos bairros periféricos, a ocupação de
morros e mangues que evidenciavam a desigualdade e o empobrecimento da população.666

condição foi resultado das próprias características estruturais da região, integrada ao modelo de desenvolvimento
do capitalismo nacional, ou seja, a fragilidade econômica e política do Estado e sua localização geográfica, aliadas
às condições do processo desenvolvimentista que se implantava no país, reservaram ao Espírito Santo a posição
de alojador das grandes empresas, que utilizaram sua privilegiada área física para instalar unidades de bens
exportáveis." SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e empobrecimento urbano: o caso da
Grande Vitória (1950-1980). 2.ed. Vitória: Edição da Autora, 2010. p. 42.
663
Ibid., p. 42-43.
664
Ibid., p. 86.
665
Ibid., p. 67-88.
666
SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e empobrecimento urbano: o caso da Grande Vitória
(1950-1980). 2.ed. Vitória: Edição da Autora, 2010. p. 122-138.
248

Siqueira modifica o valor histórico dos eventos que marcaram o processo de industrialização,
passando a avaliá-los em função da dimensão social, das consequências negativas para grande
parte da sociedade espiritossantense. Seguindo essa proposta de análise, Rachel Fukuda analisa
o fenômeno da expansão urbana associada à industrialização a partir da década de 1960 tendo
como foco os impactos e transformações sociais na formação de bolsões de pobreza e bairros
estigmatizados nos municípios de Anchieta e Guarapari.667 Fenômeno compreendido como
resultado de um modelo de urbanização segregacionista, de fragmentação do espaço urbano
com consequências negativas para a população migrante.668

Considerando que tais cidades foram impactadas pela construção da Samarco Mineração e seu
porto a partir de 1977, assim como pelo crescimento de investimentos em outros segmentos
complementares aos dos Grandes Projetos, a autora considera que os relatos dos sujeitos que
participaram da formação dos bairros periféricos nesses municípios resgatam as motivações de
sua migração, identificadas no momento do estabelecimento das usinas e indústrias locais bem
como da construção civil em Guarapari que apareceu como atividade complementar no início
da década de 1980. Diante dessa constatação, ela analisa a industrialização como fator de
desterritorialização, pois determinou grande parte do fenômeno migratório, como por ela
observado, por exemplo, no caso do bairro Recanto do Sol em Anchieta:

Essa desterritorialização é verificada nos relatos dos moradores e dos gestores locais.
Através destes relatos fica evidenciado que a implantação da mineradora no município
contribuiu e tem contribuído com o crescimento populacional da região, sobretudo em
função da atração de um contingente contínuo de trabalhadores que migram a maior
parte vinda do interior da Bahia, em busca de oportunidades de emprego, um volume
maior de pessoas provenientes de áreas rurais e, portanto, com mão de obra de menor
qualificação profissional, nas indústrias. Recanto do Sol foi um bairro que surgiu no
contexto da industrialização. Sua população é majoritariamente composta por

667
Segundo Fukuda: "[...] não foi apenas a Grande Vitória que se expandiu ao longo das décadas de 60 e 70, o
mesmo fenômeno pode ser identificado nos municípios de Anchieta e Guarapari. Isso porque o modelo
desenvolvimentista adotado pelo Brasil, sua forma heterogênea, que teve como base a industrialização concentrada
em alguns centros urbanos, condicionou a distribuição espacial da população, impelindo o fluxo migratório do
rural para o urbano. E de modo geral, as transformações econômicas decorrentes desse crescimento acelerado e
concentrado, proporcionaram uma expansão urbana também acelerada e fragmentada." FUKUDA, Rachel
Franzan. Estado e políticas públicas: industrialização e fragmentação social – o caso de Anchieta e Guarapari
(1960 – 2004). Dissertação de Mestrado. 132f. Departamento de História - PPGHIS - UFES, Vitória, 2012. p. 86.
668
Diferentemente das narrativas da superação do atraso, a perspectiva de análise da autora envolve a relação entre
os homens e o espaço urbano: "Pode-se dizer que se trata, antes, de uma reflexão sobre as cidades e o impacto
que o processo de industrialização teve sobre elas, no momento de superação de um modelo agrário-exportador
para um modelo capitalista industrial. Mais ainda, trata-se da relação entre homens e a cidade e da forma de
ocupação do espaço urbano nesse processo de construção não apenas de novos horizontes políticos e econômicos,
ressaltados pelo contexto, mas, sobretudo, a construção de novas identidades banhadas num espírito de renovação
e de oportunidades." FUKUDA, Rachel Franzan. Estado e políticas públicas: industrialização e fragmentação
social – o caso de Anchieta e Guarapari (1960 – 2004). Dissertação de Mestrado. 132f. Departamento de História
- PPGHIS - UFES, Vitória, 2012. p. 31.
249

migrantes de outros estados, atraídos à localidade pela oportunidade de emprego nos


grandes empreendimentos. 669

Foi essa mesma interpretação que a autora teve com o caso de Mãe-Bá, bairro também
pertencente a Anchieta, vizinho à Samarco Mineração, que sofreu grande impacto não só
populacional mas também no modo de vida, pois passou de uma vila de pescadores a bairro
vizinho à empresa e seu porto, recebendo migrantes e transformando o perfil da
localidade.670Em relação à Guarapari, Fukuda observa que a formação de bairros periféricos
sofreu tanto a influência do estabelecimento de empreendimentos industriais em Anchieta como
671
também de Vitória. Tendo como foco os sujeitos envolvidos nesse processo, Fukuda
argumenta que esse processo implicou na definição de estigmas, preconceitos e diferenciação
sofridos pelos moradores desses bairros, em especial, os originários da Bahia, trabalhadores da
construção civil em Guarapari. Uma realidade, segundo a autora, que acompanhou o
crescimento desses bairros:

Esses mesmos bairros são apresentados como sendo os de maiores índices de


homicídios e criminalidade. Para os gestores públicos municipais, de Anchieta e de
Guarapari, a criminalidade tem nome e endereço. A origem da criminalidade em
Anchieta tem relação com a chamada “geração usina”, em Guarapari a “geração
construção civil”. Em ambas as situações a naturalidade imputada nestas populações
são de “baianos”, de populações migrantes que vieram ou para a construção civil ou
para a expansão da segunda e da terceira usinas da Samarco Mineração (Anchieta).
Esses eventos, ainda que em diferentes contextos, são apresentados como

669
FUKUDA, Rachel Franzan. Estado e políticas públicas: industrialização e fragmentação social – o caso de
Anchieta e Guarapari (1960 – 2004). Dissertação de Mestrado. 132f. Departamento de História - PPGHIS - UFES,
Vitória, 2012. p. 97.
670
Ibid., p. 98-100.
671
Argumenta Fukuda: "Apesar de não abrigar nenhuma indústria no município à época, estes Grandes Projetos
foram responsáveis em grande parte pelo crescimento populacional e, consequentemente, a urbanização de
Guarapari. A concentração econômica na Grande Vitória acarretou em oportunidades de desenvolvimento de
Guarapari por meio do desenvolvimento da atividade turística. Os Grandes Projetos apresentaram o Estado no
plano nacional possibilitou de certa forma a divulgação e o acesso à Guarapari, que já era conhecida pela área
monazítica. Além do aumento do fluxo de turistas que promoveu a valorização imobiliária e impulsionou a
construção de residências de veranistas, outro grande impulsionador na década de 1970, foi a construção da
Samarco Mineração SA. A empresa instalou-se no município de Anchieta, que fica a pouco mais de 20 km de
Guarapari. Fato este que promoveu a atração de um novo contingente populacional, não mais característico do
turismo de veraneio, e um novo perfil de migrantes, de bahianos que vieram para as obras da mineradora. Vale
destacar que a construção desordenada gerou uma serie de transtornos, tais como: expulsão, por meio da coerção
econômica, dos pescadores do centro da cidade, sendo empurrados para fora do centro, ocupando suas
intermediações; a decadência da região central e Praia do Morro, devido ao esgotamento de áreas para construção,
transferindo para a fronteira sul do município (considerada a área mais nobre), destacando o bairro Enseada Azul.
[...] Aliado a estes problemas, ressalta-se o processo de favelização iniciado na década de 1960, devido ao
crescimento desordenado. As periferias eram ocupadas por migrantes do sul da Bahia e norte de Minas Gerais. Os
principais fatores para migração foram: a expansão das atividades turísticas, já que muitas pessoas vinham do Sul
da Bahia e Norte de Minas Gerais fugindo da seca e pobreza, em busca de trabalho temporário, nas atividades
ligadas ao turismo; a expansão da atividade da construção civil, que no seu auge não possuía mão de obra suficiente
na região." Ibid., p. 05-106.
250

responsáveis pela formação de periferias. Regiões nomeadas como “novas bahias”,


”bairro dos baianos”, ”morro dos baianos”.672

Percebemos, deste modo, que tanto Siqueira quanto Fukuda elaboraram narrativas históricas
que apresentam o reflexo da industrialização a partir das dificuldades da população. Ao
definirem o modelo de industrialização e sua urbanização desigual, atentaram para aqueles
sujeitos que sofreram os impactos da crescente desigualdade decorrente.

Nessa mesma perspectiva, Danielle Fortunato673 analisa as modificações na estrutura do


mercado de trabalho, considerando que a mão de obra nesse processo esteve excluída de seus
principais benefícios. Segundo a autora, a migração e a urbanização sofreram rápido impacto
nas décadas de 1960 e 1970, porém, os altos investimentos financeiros não se traduziram em
uma geração de emprego esperada o que acarretou em consequências negativas para a mão de
obra, principalmente a migratória. Analisando a precarização das relações de trabalho na
Grande Vitória a partir da População Economicamente Ativa (PEA), a autora demonstra:

Esse processo de marginalização da população proveniente dos fluxos migratórios


pode ser observado pela variação dos rendimentos mensais por estrato social. De fato,
apenas 12,88% da PEA contavam com proventos superiores a cinco salários mínimos;
enquanto 60,53% não apresentavam nenhuma renda ou renda inferior a dois salários
mínimos; e apenas 21,41% da PEA apresentavam assalariamento mediano de dois a
cinco salários mínimos. Isso demonstra um alto grau de precarização das relações de
trabalho, consubstanciada no baixo nível de rendimentos e em um alto índice de
informalidade, principalmente no setor terciário .674

O que, segundo ela, não atendia à concentração populacional:

Essa situação de semicaos é agravada pelo fato de que 54% dos migrantes que
trabalham foram alocados no setor terciário contra apenas 14% na indústria.
Acrescente-se a isso que esses migrantes que constituem o setor informal representam
56,7% da força de trabalho informal desse setor. Ou seja, a grande parte dos
trabalhadores provenientes do campo e de outros Estados não encontrou condições
adequadas de subsistência na Região Metropolitana do Espírito Santo. 675

Danielle Fortunado também realiza uma leitura desse momento da história do Estado criticando
o modelo de industrialização local, que "não foi capaz de atender às necessidades sociais dos

672
FUKUDA, Rachel Franzan. Estado e políticas públicas: industrialização e fragmentação social – o caso de
Anchieta e Guarapari (1960 – 2004). Dissertação de Mestrado. 132f. Departamento de História - PPGHIS - UFES,
Vitória, 2012. p. 114-115.
673
FORTUNATO, Dannielle de Oliveira B. Uma análise do Espírito Santo à luz do processo de implantação dos
Grandes Projetos. DIMENSÕES. Vitória, n. 27, pp. 40-62, 2011.
674
Ibid., p. 59.
675
Ibid., p. 60.
251

trabalhadores localizados no Espírito Santo, gerando uma massa excluída, incluída


precariamente e marginalizada."676

Dessa forma, com José Teixeira de Oliveira e Neida Lúcia, os governos das décadas de 1960 e
1970 representavam o movimento de ruptura com o passado e indicavam o novo status do
Espírito Santo que realizar-se ia com a industrialização. Com Bittencourt, essa ruptura realizou-
se com o "segundo ciclo de desenvolvimento", que permitiu ao Estado atingir um novo lugar
no cenário nacional, figurando dentre os estados industrializados. O conjunto de trabalhos aqui
destacados, porém, rompe com os modelos de narrativas da superação do atraso e modificam o
valor histórico desses eventos. Abordagens que atestam a crítica realizada por André Ricardo
Pereira ao lugar que deveriam ocupar na história do Espírito Santo esse projeto de
desenvolvimento e as elites responsáveis por sua condução.

Em relação à escrita da história local, consideramos que desse conjunto de estudos resultou um
novo campo de representações acerca do passado do Espírito Santo a partir de novas orientações
que, segundo Rüsen, apresentam a experiência histórica a partir de problematizações e
relativizações dos modelos precedentes de interpretação histórica, combatendo seus
fundamentos. Um trabalho de ruptura, com capacidade de desestruturar narrativas mestras,
desconstruir conceitos-chave, categorias e símbolos, uma atividade "de negação histórica dos
modelos de interpretação e das formas de pensar consagrados culturalmente."677

Identificamos essas formatações historiográficas que trouxeram novas interpretações acerca do


Espírito Santo e seu lugar no passado, o resgate de experiências e circunstâncias
desconsideradas e, consequentemente, questionamentos aos roteiros históricos estabelecidos.
Essas narrativas críticas da história do Espírito Santo nos possibilitam compreender como a
revisitação histórica, no entender de Dosse, tem a "função de abrir para o presente um espaço
próprio para marcar o passado, a fim de redistribuir o espaço dos possíveis."678 Ao analisarmos
essas narrativas, identificamos a redefinição da imagem do passado local em seus diferentes
momentos, especialmente, naqueles que se referiam aos marcos definidores do atraso ou do
progresso espiritossantense. O período colonial tem seu "roteiro de obstáculos" revisto por meio

676
FORTUNATO, Dannielle de Oliveira B. Uma análise do Espírito Santo à luz do processo de implantação dos
Grandes Projetos. DIMENSÕES. Vitória, n. 27, 2011, p. 60-61.
677
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed.
UnB, 2007. p. 56.
678
DOSSE, F. A história à prova do tempo. Da história em migalhas ao resgate dos sentidos. São Paulo: Unesp,
2001. p. 48.
252

de estudos que reavaliam o lugar do Espírito Santo naquele contexto, redefinindo a imagem do
"marasmo colonial" para a do dinamismo econômico dentro de suas diferentes possibilidades.
Observamos, também, os projetos de modernização da Primeira República e o da
industrialização, sobre os quais identificamos a desconstrução dos principais marcos históricos
da superação do atraso e seus personagens símbolos. Esses, por sua vez, passaram a ter seu
lugar e valor no passado redimensionados em função das novas perspectivas que passaram a
orientar as narrativas históricas, problematizantes, com questionamentos relevantes acerca dos
projetos de modernização e preocupadas, sobretudo, em evidenciar os impactos negativos dos
modelos de desenvolvimento adotados pelas elites locais na realidade da população
espiritossantense.

5.3 POR UMA HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO ESPÍRITO SANTO.

A análise em torno dessas novas narrativas históricas já nos permitiriam avaliar a desconstrução
das narrativas mestras e interpretações cristalizadas em torno do passado do Espírito Santo.
Porém, a nossa abordagem sobre o questionamento, o redimensionamento e a problematização
dos lugares e valores atribuídos a fatos, circunstâncias e sujeitos históricos não poderia ficar
alheia à reconstrução das narrativas acerca dos indígenas.679

679
Não estamos desconsiderando a importância de narrativas históricas que tenham outros sujeitos como objeto
de estudo. Nesse sentido, a historiografia que trata da escravidão no Espírito Santo, por exemplo, é significativa
no que tange ao campo da História Social, no resgate de atores históricos marginalizados que ajudam a
compreender não somente a sua diversidade de experiências em diferentes dinâmicas sociais, bem como no
entendimento da História Econômica e sua reflexão sobre o desenvolvimento econômico local. Nesta perspectiva,
dentre outras, temos: BASTOS, Fabíola Martins. Relações sociais, conflitos e espaços de sociabilidades: formas
de convívio no município de Vitória, 1850-1872. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009; CAMPOS, Adriana. Escravidão
e creolização: a capitania do Espírito Santo, 1790-1815. In: FRAGOSO, João. et al. (Org.). Nas rotas do império:
eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português, 2006; FARIA, Rosani Freitas. Criar laços para
viver juntos: a constituição de famílias entre os escravos de Vitória (1850-1871). 173f. Dissertação (Mestrado
em História). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013; FERREIRA, Heloisa Souza. Ardis da
sedução e estratégias de liberdade: escravos e senhores nos anúncios de jornais do Espírito Santo (1849-
1888). 275f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2012; MERLO,
Patrícia Maria Silva. O nó e o ninho: estudo sobre a família escrava em Vitória, Espírito Santo, 1800-1871. Tese
(Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2008; MERLO, Patrícia M. da Silva. Insurreições escravas em Vitória (ES), séc. XIX: Algumas
considerações. In: Dimensões - Revista de História da Ufes. Vitória: UFES/CCHN, nº. 16, 2004; RIBEIRO, Geisa
Lourenço. Enlacese desenlaces: família escrava e reprodução endógena no Espírito Santo (1790-1871). 200f.
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012; SOARES, Geraldo
Antônio. Os escravos como protagonistas de sua própria liberdade: lutas, famílias, religião e ascensão social. In:
CAMPOS, Adriana Pereira; SILVA, Gilvan da. (Orgs.). O sistema escravista lusobrasileiro e o cotidiano da
escravidão. Vitória: GM, 2011; SOARES, Geraldo Antonio. Cotidiano, sociabilidade e conflito em Vitória no
final do século XIX. Dimensões: revista de História da UFES, Vitória, n. 16, 2004; SOARES, Geraldo Antonio.
Luta pela liberdade e defesa da propriedade: registro de filhos de escravos em Vitória logo após a Lei do Ventre
Livre. Perspectiva Econômica, Vitória, v. 1, p. 153-173, 2000. Sobre os jesuítas, indicamos: CUNHA, Maria José
253

Segundo Vânia Moreira, existe um descompasso entre a história e a historiografia em relação a


esses sujeitos da história local. Para a autora, é necessário:

[...] reconhecer o papel fundamental exercido pelos índios nos dois primeiros séculos
da colonização, porque, dentre outras coisas, foi parte deles quem primeiro ensinou
aos portugueses como sobreviver na nova terra, inclusive plantando espécies
alimentares nativas do continente. [...] Não restam dúvidas, no entanto, de que os
estudos históricos das últimas décadas têm formulado novos problemas e, graças a
isso, incorporado setores sociais que, até então, podiam ser definidos como os sem-
história.680

Nesse sentido, a temática indígena relativa ao Espírito Santo tem sido objeto de diferentes
estudos que colaboram com a própria reescrita da história local, deslocando o sentido das
narrativas históricas para perspectivas que compreendem os diferentes grupos indígenas como
agentes históricos autônomos, agindo sempre em função de seus interesses, tanto reagindo ao
processo de colonização ou integrados à dinâmica social. O que, por sua vez, contribui para
eliminar imagens preconceituosas e estereotipadas que ainda se reproduzem na sociedade.681

Primeiramente, agrupamos os trabalhos que chamam a atenção para a necessidade de romper


com esses estereótipos e com a visão limitada acerca dos indígenas como selvagens, inimigos
e obstáculos do progresso. Os estudos que identificamos advogam a necessidade de
reconhecimento do papel de resistência que os indígenas exerceram ao projeto colonizador,682
o que, consequentemente, acarretou na construção de uma imagem associada aos ataques
direcionados aos colonizadores. Contra essa versão, Vânia Moreira, em artigo sobre as guerras
contra os botocudos no início do século XIX, enfatiza que:

dos Santos. Os jesuítas no Espírito Santo (1549-1759). Tese. (Doutorado em Teoria Jurídica e Relações
Internacionais). 331f. Instituto de Investigação e Formação Avançada da Universidade de Évora, Évora, 2015;
CONDE, Bruno Santos. Senhores de fé e de escravos: a escravidão nas fazendas jesuíticas do Espírito Santo. In:
Anais - 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil meridional. Universidade Federal de Curitiba, Curitiba,
2012. Disponível em:
http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=65&Itemid=62.
Acesso em: 9/06/2014. Na perspectiva da Micro História: PONTES, José Schayder. Como se tem escrito a
História do Espírito Santo. Cachoeiro de Itapemirim: Cachoeiro Cult, 2011.
680
MOREIRA, Vânia M. Losada. Os índios e a historiografia. DIMENSÕES, n.13, Vitória, 2001, p. 272.
681
De acordo com Antônio Carlos de Souza Lima, a questão indígena nos informa sobre esse desafio: "[...] há
estruturas cognitivas profunda e longamente inculcadas na maneira de pensar a história brasileira que orientam a
percepção, e permitem a reprodução, de um certo universo imaginário em que os indígenas permanecem como
povos ausentes, imutáveis, dotados de essências a-históricas e objeto de preconceito." LIMA, Antônio Carlos de
Souza. Um olhar sobre a presença das populações nativas na invenção do Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da;
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. In: A Temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1° e
2° graus. 4.ed. São Paulo: Global; Brasília: MEC/UNESCO, 2004. p. 408.
682
Para Maria Regina Almeida: "Além da presença estrangeira constante e ameaçadora, as guerras tinham como
alvo os índios hostis que, do século XVI ao XIX, desafiavam ou mesmo impediam a expansão das fronteiras
portuguesas. Foram eles os principais responsáveis pelo malogro da maioria das capitanias, no século XVI".
ALMEIDA, Maria Regina. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 45.
254

[...] a maior parte era refratária às tentativas de contato. Respondiam com guerra a
todas as invasões empreendidas em seus territórios tradicionais, fosse contra os
colonos tradicionais, fosse contra os colonos que tentavam escravizá-los ou contra os
missionários que tentavam reuni-los em aldeias para catequizá-los. Na selva, os
bandos botocudos pareciam quase imbatíveis. Os ataques surpresas a seus ranchos
eram praticamente impossíveis, porque se movimentavam na selva com enorme
rapidez, escapando aos intrusos e revidando os ataques em tocaias diurnas ou
noturnas. Por trezentos anos eles resistiram aos invasores brancos graças a essa tática
de guerrilha nas selvas. Ficaram famosos como grandes guerreiros, mas igualmente
como um dos maiores inimigos da sociedade luso-brasileira em expansão, ganhando
os epítetos de ferozes, tapuias e antropófagos. 683

Se Vânia Moreira destaca o caráter de resistência desses sujeitos históricos, Maria José dos
Santos Cunha, em artigo publicado na revista Ágora684, desconstrói também a noção de
"indígenas bons", ou como vimos, os interpretados como "colaboradores do progresso" pela
narrativa da superação do atraso. A autora analisa o caso do índio Maracaiaguaçu a partir de
sua chegada ao Espírito Santo. Reconhece que a imagem que prevaleceu e perdurou sobre ele
e seu grupo foi a dos colonizadores. Ao analisar a presença dos índios nas cartas jesuíticas, ela
argumenta:

Ao longo de cinco anos, desde a fuga do Rio de Janeiro à fixação junto dos
portugueses na vila de Vitória e às mudanças subsequentes, a aldeia dos Temiminós
do cacique Maracaiaguaçu permaneceu aldeia dos índios, do Gato, da vila, do outro
lado. Quando nela se construiu a igreja, simbolicamente, passou a integrar a esfera do
mundo cristão português, acabando por adotar o nome da padroeira: Nª. Sª da
Conceição. Em todo este tempo e trajetória o retrato físico quer do principal
Maracaiaguaçu, quer dos seus, é inexistente. Sem receber uma palavra de
individualização, não se conhecem nem os traços particulares, nem os étnicos. Nas
escritas de tipo edificante da Companhia de Jesus o relato das conquistas espirituais
sobrepõe-se aos demais. Vence o estereótipo do índio que, ao longo dos séculos, tem
sofrido sucessivas substituições.685

No entanto, Cunha avalia que o caso de Maracaiaguaçu deve ser compreendido de outra forma,
argumentando que suas experiências com os colonizadores evidenciam a complexidade dessa
relação. Analisando as cerimônias religiosas descritas pelos religiosos, a autora identifica uma
relação que envolvia os jesuítas, vistos como agentes colonizadores, e os indígenas, inseridos
numa relação de aliança necessária. Nessa perspectiva, ela destaca a estratégia usada pelos
evangelizadores:

Em ano de rebeliões e guerra com algumas tribos indígenas a norte, as cerimônias


fúnebres foram a oportunidade para a congregação de esforços de todas as entidades,
associações e privados e funcionaram como espaço de convívio intercultural com a

683
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). Dimensões – Revista do Departamento de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 109.
684
CUNHA, Maria José dos Santos. Maracaiaguaçu, O Gato Grande, aliás, Vasco Fernandes, ou o elogio do
discurso evangelizador. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p. 24-40.
685
Ibid., p. 38.
255

mescla dos ritos católicos e indígenas. Com efeito, todo o cerimonial conseguiu
despertar nos índios o efeito desejado e que era a passagem e incorporação para o
modo de vida dos cristãos. A nota distinta dos cânticos, pelo lado cristão, e do prantear
do defunto, ao modo deles, conseguiram agregar elementos tão inusitados quanto
apreciados nas culturas indígenas e promoveram a adesão ao discurso evangelizador.
Os efeitos da música, cânticos e gestos sobre os índios, recurso amplamente usado
pelos jesuítas na catequese, tem na descrição do funeral o primeiro registro
documentado desta prática no Espírito Santo. Para os jesuítas representava aquilo que
se considerava como o elo secreto entre as culturas indígenas e a portuguesa e
serviram como base para a expansão da evangelização, estratégia utilizada para fazer
avanço na ocidentalização dos Temiminós.686

No entanto, as experiências indígenas não refletiam submissão à ordem religiosa. Analisando a


cerimônia de casamento de Maracaiguaçu, a autora aponta a relação de aliança entre os
diferentes grupos:

Para selar o acordo simbolizado pelo ato religioso, mas de significado social e político,
Maracaiaguaçu, a mulher e os filhos receberiam respectivamente o nome de Vasco
Coutinho, o da mãe e dos filhos deste. Desta forma, a nobreza do governador da
capitania transferia-se, por parentesco político, para a nova nobreza da terra. Para os
portugueses, acostumados à cultura que valorizava as alianças através dos laços de
parentela, a solução era bem acolhida. Pelo lado da cultura indígena agraciar o chefe
português era bem visto, além de que, como guerreiro, receber um nome elevava o
seu estatuto perante a tribo. Para os jesuítas, era uma forma de conferir através do
batismo um nome pela via da paz e da fé que abraçavam, sem que houvesse
necessidade de recorrer à morte de outro guerreiro.687

Nesse sentido, observamos que a perspectiva do colonizador não pode ser estabelecida como a
imagem acerca dos indígenas. Como exemplo, destacamos sua avaliação acerca da reação dos
índios da tribo de Maracaiguaçu a uma prática religiosa cristã:

Assustados, sem conhecimento dos meios de propagação da infecção, depressa se


espalhou entre os índios a ideia de que a água do batismo era a causadora do aumento
da doença. Não importava o quanto os jesuítas se esforçassem, não conseguiam acudir
a todos, tampouco substituir o respeito pelo saber e experiência dos mais velhos, em
especial os ditos das velhas. A custo, e pontualmente, conseguiam alguma conversão,
os índios preferiam fugir e esconderem-se a ficar e enfrentar o batismo com receio de
morrerem. Quando em aflição, a maioria preferiu as crenças em que haviam sido
educados.688

O artigo desta autora nos remete, assim, à complexidade das relações estabelecidas pelos
indígenas no seio da sociedade colonizadora no Espírito Santo. O caso de Maracaiguaçu

686
CUNHA, Maria José dos Santos. Maracaiaguaçu, O Gato Grande, aliás, Vasco Fernandes, ou o elogio do
discurso evangelizador. Revista Ágora. Vitória, n. 20, 2014, p.33.
687
Ibid., p. 33-34.
688
Ibid., p. 35.
256

demonstra as alianças e diferentes possibilidades que se colocavam nas circunstâncias


vivenciadas, situações em que os índios agiam em função de suas necessidades e interesses.689

Complementando essa abordagem de narrativas que rompem com as imagens estereotipadas e


preconceituosas, a historiografia colabora na problematização sobre os discursos e
representações historicamente produzidas contra os indígenas. Assim, em relação ao Espírito
Santo, temos a abordagem de Marcela Sarnaglia.690 Tendo como foco de estudo a obra Dois
anos no Brasil (Deux années au Brésil), de 1862, Auguste François Biard, a autora analisa a
emergência dessas práticas discursivas691 sobre os indígenas considerando que esse viajante
francês retratou-os de forma ambígua, ou seja, "ora como o idealizado bom selvagem, ora como
o ser indolente, preguiçoso e ladrão."692 Segundo Sarnaglia:

As descrições idealizadas dos indígenas feitas por Auguste François Biard são,
sobretudo, em relação aos índios não civilizados. Essa dualidade entre índio bom e
índio mau está presente na literatura de viagem que vem sendo produzida desde o
descobrimento do Brasil. Assim, o índio era descrito, por um lado, como violento,
cruel, cheio de vícios, mentiroso e, por outro, havia o reconhecimento da inteligência
e nobreza de outro índio, ou seja, o bom selvagem.693

A autora ressalta, principalmente, que essas imagens foram elaboradas a partir de uma noção
etnocêntrica, próprias do período e dos viajantes europeus. Sua abordagem, além de identificar
a construção da imagem preconceituosa dos indígenas colabora, também, com o modo de
compreender essas narrativas. Por exemplo, ao analisar um cortejo religioso descrito pelo autor

689
Sobre essa relação, Maria Regina de Almeida analisa a origem e o significado dessa aliança: "Antes da conquista
da Guanabara, esses índios aparecem na documentação como índios do Gato ou Maracajá que, liderados por
Maracaiaguaçu ou o Gato Grande, estavam em guerra com os Tamoios. Em 1555, sentindo-se ameaçados pelos
inimigos, pediram e obtiveram dos portugueses auxílio para se aldearem na capitania do Espírito Santo. Formaram
uma populosa aldeia que, sob a administração dos jesuítas, tornou-se baluarte de defesa da região. Passaram, então,
a aparecer nos documentos como temiminós. Anos mais tarde, não seria difícil aos portugueses obter apoio de
grande parte desses índios, então liderados por Arariboia, para voltar às terras de origem e dar combate aos tamoios
e franceses.[...] Essa aliança entre os temiminós e os portugueses expressa a mútua dependência entre os grupos
envolvidos e os diferentes interesses que os motivaram ao acordo, cada qual relacionado à dinâmica de suas
perspectivas organizações sociais. Se os portugueses viam a conquista da Guanabara como possibilidade de
estender a administração lusa nas terras da América, para os índios chamados temiminós ela devia significar a
grande oportunidade de regressar às suas terras e combater os inimigos. ALMEIDA, Maria Regina. Os índios na
história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 59.
690
SARNAGLIA, Marcela. Viajantes, natureza e índios: a província do Espírito Santo no relato de Auguste
François Biard (1858-1859). Dissertação de Mestrado. 166f. Programa de Pós-Graduação em História - PPGHIS-
Ufes, Vitória, 2013.
691
A autora define sua perspectiva de análise sobre a referida obra: "Os discursos criam uma ideia de verdade e,
no caso dos relatos de viajantes, os discursos elaborados em relação ao Brasil, na Europa, acerca de sua natureza,
suas riquezas e seus habitantes, muitas vezes se cristalizaram e se perpetuaram ao longo dos séculos. Ibid., p. 22.
692
Ibid., p. 26.
693
Ibid., p. 141.
257

no qual participavam os indígenas, ela chama a atenção para as duas formas de percepção em
torno dessa situação:

Depois de ir para uma outra casa junto com o cortejo, Biard viu dois personagens
importantes aparecerem no local. O primeiro era um índio que vestia uma longa blusa
branca e que segurava com uma das mãos um guarda-chuva vermelho, enfeitado com
flores amarelas e, com a outra, carregava uma caixa com São Benedito. Essa caixa
também era enfeitada com flores e se destinava a receber as oferendas. O segundo
personagem vestia um traje militar de cor azul-celeste, com adornos vermelhos, suas
dragonas de ouro caíam para trás e, em sua cabeça, alteava-se um chapéu de pontas
assombroso em comprimento e altura. Esse segundo personagem era o capitão, que
dançava durante toda a cerimônia. Os músicos, em duas fileiras, acompanhavam o
santo, sendo seguidos pelas velhas devotas, que dançavam o cancan164; 'O grupo
passava em frente da cabana de cada convidado do banquete; o capitão, sempre
dançando, entrava e dava a volta pelo interior da casa [...]. Finalmente, entraram na
igreja, enfeitada com palmeiras e, depois de retirarem as oferendas e fecharem a caixa
com São Benedito, todos foram embora.' [...] Os índios, povos que historicamente
foram subjugados pelos brancos, mesmo não podendo lutar contra a dominação, em
graus variáveis, determinaram aquilo que absorviam e utilizavam na sua própria
cultura.[...]. No caso do interior do Espírito Santo, os índios, ao se identificarem com
São Benedito, assimilaram a devoção a ele, em uma expressão religiosa que mesclou
rituais indígenas e católicos, transformando em única essa festa e a experiência de
participar da mesma.694

A autora destaca a perspectiva eurocêntrica acerca do indígena e o limite dessa visão. Contribui,
portanto, para uma interpretação do passado local que contemple a complexidade das relações
estabelecidas pelos indígenas em contextos que não lhes eram favoráveis. Dominação e
resistência, aliança e conformidade constituíam as relações por eles estabelecidas.
Conseguimos demonstrar, até o momento, como esses estudos representam a mudança na forma
de compreensão desses grupos como atores históricos. Modificações que, de acordo com
Regina Almeida, deslocam o lugar dos índios:

de vítimas passivas ou selvagens rebeldes que, uma vez vencidos, não movimentavam
a história, diferentes grupos étnicos da América passam, a partir dessas pesquisas, a
figurar como agentes sociais que, diante da violência, não se limitaram ao imobilismo
ou à rebeldia. Impulsionados por interesses próprios e visando à sobrevivência diante
das mais variadas situações caóticas e desestruturadoras, movimentaram-se em
diferentes direções, buscando múltiplas estratégias que incluíam rearticulações
culturais e identitárias continuamente transformadas na interação com outros grupos
étnicos e sociais.695

Com a mesma orientação apontada por Almeida, identificamos, também, outro conjunto de
trabalhos que correspondem a narrativas críticas que questionam o sentido atribuído às

694
SARNAGLIA, Marcela. Viajantes, natureza e índios: a província do Espírito Santo no relato de Auguste
François Biard (1858-1859). Dissertação de Mestrado. 166f. Programa de Pós-Graduação em História - PPGHIS-
Ufes, Vitória, 2013.
695
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Apresentação. Tempo, Niterói, v. 12, n. 23, 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413 -77042007000200001&lng=en&nrm=iso. Acesso
em, 25 de Fevereiro de 2012.
258

experiências dos grupos indígenas no passado local. Agrupamos esses estudos porque possuem
como recorte temporal o início do século dezenove, e décadas subsequentes. Apontam para o
momento em que os indígenas são eliminados das narrativas históricas e substituídos pelos
imigrantes no sentido da superação do atraso atribuído à trajetória do Espírito Santo. Assim,
ressaltamos que esses estudos invertem o significado de determinados marcos históricos. Se os
acontecimentos eram interpretados como expansão da sociedade colonial (e imperial) no século
XIX e avaliados como expressão do desenvolvimento do Espírito Santo, passam a ser
entendidos como um avanço e ampliação dos combates às comunidades indígenas, que, por sua
vez, emergem nas narrativas recorrendo a diferentes estratégias de ação.

Segundo Vânia Moreira, as primeiras décadas do século XIX assinalam um alargamento das
fronteiras da sociedade. Assim, a resistência indígena fazia parte de uma reação dos grupos
indígenas e sua atuação evidenciava tal relação696. Para a autora:

A tímida abertura de zonas pioneiras motivadas pelo desenvolvimento interno da


capitania não evitou, portanto, o grande número de confrontos durante os primeiros
30 anos do século XIX. Os ataques indígenas representavam uma resposta às
bandeiras e agressões sofridas nas zonas de contato. As perdas territoriais
desorganizavam a estrutura social e econômica das tribos e estiveram fortemente
condicionados pela pressão exercida pela expansão da sociedade regional de Minas
Gerais, muito mais dinâmica que a propriamente local. Eles estavam, na realidade,
encurralados em uma zona territorial cada vez menor, cercada por todos os lados pela
crescente presença da população luso-brasileira.697

Os trabalhos da autora colaboram tanto na compreensão da resistência indígena nesse processo


como no entendimento de como se estabeleceu a expropriação dos indígenas no Espírito Santo
em detrimento do desenvolvimento local ao longo do século XIX. Contrariando a narrativa de
Gabriel Bittencourt, Vânia Moreira critica, sobretudo, a construção de um discurso sobre os
“vazios demográficos” como um discurso político que nega a história desses grupos. A autora
argumenta que o apagamento do índio corresponde ao uso político desse conceito:

Vazio demográfico é, portanto, um clichê produzido pelo Estado e por parcelas da


sociedade brasileira, com profundas raízes na historia nacional do século XX. Na
maior parte das vezes indica senão a completa ausência de traços humanos em dado

696
Sobre essa exclusão dos indígenas, Vânia Moreira questiona: “A pouca atenção dada à questão indígena já é
uma lacuna, um desafio e um claro indício da existência de sérios vícios teóricos e metodológicos presentes na
maneira corrente de escrever-se a história do processo de ocupação e colonização territorial. Se isso está correto,
como creio que está, o que dizer, então, das inúmeras situações em que a presença indígena foi completamente
ignorada, a ponto de fazer-nos crer que eles nunca existiram nas terras depois ocupadas e repovoadas?”
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Índios no Brasil: marginalização social e exclusão historiográfica. Diálogos
Latinoamericanos, n. 3, 2001. p. 88.
697
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). Dimensões – Revista de História da UFES, Vitória, n. 9, 2001, p. 116.
259

território, pelo menos a existência de uma densidade demográfica muito baixa. Na


boca dos políticos, a noção de vazios demográficos foi mais longe, pois via de regra
serviu para justificar medidas ou políticas para incrementar o nível de povoamento.698

Além de fundamentar o discurso político, essa perspectiva de leitura do passado que recorre à
noção de vazio demográfico silencia o conflito que marcou essa relação entre os indígenas e a
sociedade dominante:

Não é absolutamente por acaso, ademais, que o revisionismo presente nos mais
recentes estudos sobre as situações de fronteira esteja destacando principalmente o
caráter conflituoso do processo. A ideia de uma fronteira em expansão desvinculada
dos conflitos étnicos e sociais presentes nas zonas de fronteira transforma a descrição
do fenômeno em algo bastante ideológico, justamente porque transforma o
movimento de expansão em algo realizado sobre uma espécie de vácuo social,
desinteressando-se e até mesmo ignorando os sérios conflitos que tiveram como palco
precisamente as áreas de expansão que progressivamente foram incorporadas à
sociedade dominante.699

Além de chamar a atenção para a questão indígena nesse processo de desenvolvimento, a autora
ressalta a resistência a esse processo. O reconhecimento do conflito que se configurou por meio
de ataques não exclui interpretações que revelam outras formas de relação estabelecidas pelos
indígenas. Pois, como demonstram os autores, além da guerra, a expansão da sociedade luso-
brasileira orientou-se também pelo projeto de civilização dos índios que envolvia contatos
amistosos a fim de evitar conflitos e garantir, consequentemente, o acesso à terra pelos colonos.
Tarcísio Silva, em artigo acadêmico, nos ajuda a compreender o significado de "civilizar os
indígenas" no contexto de criação dos quartéis e aldeamentos no século XIX na região do Rio
Doce:

“[...] a intenção era ‘civilizar’ e trazer os índios botocudos, para o ‘doce julgo da lei’
portuguesa, mesmo que, com isso, uma guerra precisasse ser tratava e, pelo raciocínio
da Coroa, vencida. Civilizar, nesse sentido, seria fazer com que os índios aceitassem
as formas de convívio social e as instituições da sociedade portuguesa. Ora, fazer com
que as comunidades indígenas do sertão das gerais, acostumadas ao vagar livre e a
tirar seu sustento do que as matas e rios da região pudessem lhes prover, aceitassem
viver em aldeamentos restritos e dentro de parâmetros de sociabilidade bem diversos
dos seus, não seria, obviamente, uma tarefa das mais fáceis de serem executadas.” 700

698
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos vazios demográficos: guerra e chacinas no vale do
rio Doce (1800-1830). DIMENSÕES, Vitória, n. 9, 2001, p. 104.
699
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Os índios e a historiografia. DIMENSÕES, Vitória, n. 13, 2011, p. 272.
700
SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta Militar do Rio Doce: a posse da terra como um dos objetivos de conquista.
In: Dimensões – Revista do departamento de História da UFES, n. 18. Vitória: Centro de Ciências Humanas e
Naturais – UFES, 2006. p. 302. Ver também: SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos
índios e navegação do Rio Doce: fronteiras, apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). 179f. Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006.
260

Existia o interesse no aproveitamento do indígena como elemento de defesa e como mão de


obra.701 Analisando esse meio de avanço da sociedade colonial, Tarcísio Silva defende a ideia
de que os aldeamentos não se limitavam a ser um local de pretensa civilização do índio da
região do médio rio Doce, mas pode ser entendido como forma de afastar os indígenas de seu
território possibilitando sua ocupação. Era, assim, uma estratégia "para tirar o índio de sua terra
de forma a inseri-lo na 'sociedade civilizada portuguesa' não como igual, mas como um
subgrupo marginalizado."702

Os autores, portanto, trazem em suas narrativas a problemática indígena que foi silenciada pelas
narrativas históricas da superação do atraso nas quais prevaleceu os aspectos e personagens
históricos associados ao progresso do Espírito Santo. Vânia Moreira evidencia, ainda, que esse
processo de expropriação dos índios foi marcado por sua continuidade. Em artigo acadêmico703,
a autora analisa os impactos da Lei de Terras de 1850 sobre os direitos territoriais indígenas,
considerando o processo de expulsão das populações de índios Tupiniquins, Puris e Botocudos
no Espírito Santo.

Para a autora a questão indígena sempre esteve vinculada à questão da terra. Porém, segundo
ela, a Lei de Terras de 1850 não considerava a posse de terras indígenas que não
correspondessem ao modelo estabelecido pela nova lei, o que possibilitou que elas fossem alvo
de invasões e desapropriações validadas por administradores locais. A autora questiona esse
processo:

Como poderia uma terra indígena estar abandonada e ter, ao mesmo tempo, índios
vivendo nela? Pior ainda, com base em qual justificativa legal estava-se interditando
aos descendentes dos índios que receberam sesmarias ou terras de aldeia o direito de
legitimarem as posses herdadas? As decisões oficiais não enfrentaram e, menos ainda,
não elucidaram tais questões, mas permitiram a desativação de grande número de
aldeias, viabilizando a abertura das terras indígenas à venda e ao aforamento. Aos
remanescentes indígenas restava somente a quantidade de terra que alguma autoridade
local julgasse suficiente para eles. Mas tais índios tinham que ser identificados como
“índios” para usufruírem o derradeiro direito de posse e propriedade. [...] A nova
conjuntura criada pela Lei de Terras, seu regulamento e leis complementares foram
particularmente nocivos ao patrimônio territorial indígena, não apenas porque as
decisões oficiais foram arbitrárias e contrárias aos interesses indígenas, mas também
porque a nova legislação foi incapaz de coibir as invasões criminosas que continuaram
a ocorrer ao arrepio da nova legislação. A continuidade de formação de posses após a
promulgação da Lei de Terras era indiscutivelmente um ato criminoso, pois só a

701
SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação do Rio Doce: fronteiras,
apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). 179f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2006. p. 311-317.
702
Ibid., p. 315.
703
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n. 43, pp. 153-169, 2002.
261

compra de terra poderia justificar novas propriedades. Mas quando as posses


criminosas eram realizadas em terras indígenas, em vez de serem anuladas, serviam
antes de motivo para a expropriação dos índios, que passavam a estar 'confundidos
com a massa da população civilizada'.704

Nesse sentido, Vânia Moreira estabelece um outro marco histórico para o Espírito Santo, porém,
sob a perspectiva da condição indígena a partir de 1850:

As leis e avisos complementares à Lei de Terras de 1850 praticamente fecharam todas


as alternativas à propriedade indígena. As terras pertencentes às tribos independentes,
embora não pudessem ser consideradas devolutas, foram efetivamente tratadas como
terras do domínio público, sob a alegação de que estariam 'vagas', isto é, não teriam o
domínio ou posse de pessoa alguma. Para sanar a incongruência desse raciocínio, os
legisladores se limitaram a reservar parte das terras devolutas à “colonização
indígena”. As terras indígenas oriundas de antigas sesmarias ou aldeias sem cultura e
moradia efetiva foram igualmente consideradas vagas e, por isso, deveriam retornar
ao domínio das terras públicas. Muitas aldeias e missões foram sumariamente extintas,
e a última possibilidade ainda existente aos índios remanescentes em sesmarias e
terras de aldeia era a de possuírem pequenos lotes de terra.705

Essa outra visão sobre o passado local não se resume à compreensão da condição indígena a
partir do avanço da sociedade luso-brasileira. Os autores, ao analisarem esse conflito existente,
compreendem essas relações orientados pela noção de zonas de contato. Ao recorrerem a novos
referenciais teóricos e metodológicos, principalmente no diálogo com a antropologia, essas
narrativas conseguem resgatar personagens marginalizados das narrativas construídas sob o
paradigma do desenvolvimento.706Enquanto essas narrativas desconsideravam a presença dos
índios no século XIX, de forma contrária, atentando para esse processo histórico de avanço
sobre as populações indígenas, os autores introduzem a imagem do índio integrado e autônomo,
com capacidade de articular seus interesses e propósitos, mesmo submetidos a essa condição
que marcou sua trajetória.

As publicações de Vânia Moreira representam esse sentido atribuído ao passado indígena no


Espírito Santo. Como exemplos, evidenciamos dois artigos707 da autora que tratam da presença

704
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n. 43, 2002, p. 164-165.
705
Ibid., p. 166-167.
706
Segundo Vânia Moreira: "[...] a interpretação da história brasileira e, em particular, para a história da
colonização do médio e baixo rio Doce, nos séculos XIX e XX. No que tange à história indígena, os conceitos de
fronteira, frente pioneira ou frente de expansão da sociedade nacional podem ser proveitosamente desdobrados em
outro, o de zona de contato, para justamente referir-se aos locais, dentro das frentes de expansão, onde se tornaram
particularmente intensivos o convívio e o conflito entre índios e agentes da sociedade dominante. E, por esse
caminho, talvez nossa historiografia resgate parte da história anônima de numerosos índios, caboclos, pés
descalços e pequenos posseiros sem-história." MOREIRA, Vânia Maria Losada. Os índios e a historiografia.
Dimensões – Revista de História da UFES, n. 13, Vitória, 2011, p. 278.
707
Os artigos são: MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e
transculturações nas fronteiras do Espírito Santo (1798-1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11,
2011. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014.; MOREIRA, Vânia Maria
262

indígena no século XIX na região da Vila de Nova Almeida. A história do Espírito Santo é
analisada a partir da experiência indígena nas "zonas de contato"708 e sua complexidade.709
Compreender o passado indígena, nessa perspectiva, permite tanto a descaracterização do
discurso do "vazio demográfico" bem como a importância dessas populações indígenas em suas
interações sociais. Segundo Vânia Moreira:

Na província, isto é, na zona policiada, representavam 25% da população livre. E se


for somada essa população com os índios que se estimavam existir nos sertões, chega-
se a surpreendente cifra de que os ameríndios representavam 61% da população
regional durante a década de 1820. Em outras palavras, existiam os índios 'civilizados'
da província e os índios 'selvagens' dos sertões e, não raras vezes, o governo provincial
utilizou-se daqueles para o combate e 'amansamento' destes. Desse ângulo, as
fronteiras étnicas e sociais entre os índios 'civilizados', 'cristãos' ou 'mansos', de um
lado, e, de outro, os índios dos sertões, isto é, os “tapuias”, “gentios inimigos” ou
simplesmente “botocudos” parecem claras e bem nítidas. Contudo, era amplamente
reconhecido pelos governantes locais os limites de tais diferenças, pois o trânsito de
índios do sertão para a província e, inversamente, de índios das vilas e povoados para
os sertões era intenso e difícil de ser controlado. Assim, pelo menos do ponto de vista
dos governos locais, a realidade social do Espírito Santo era caracterizada pela
necessidade de governar uma importante população indígena em diferentes estágios
de contato e de transculturação.710

A autora segue essas considerações para analisar a vila de Nova Almeida nas primeiras décadas
do século XIX. A define como uma zona de contato, de fronteira que revela a importância dos
indígenas na dinâmica social da região.711 Existia uma preocupação das autoridades em relação

Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-
1845). In: Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012.
708
A mudança de perspectiva possibilita a emergência de outra história: "Na Corografia Brasílica, obra
primeiramente publicada em 1817,Manuel Aires de Casal explicava o 'atrasamento' da capitania pela 'falta de
numerosos colonos, que se façam respeitáveis aos bárbaros'. Adotava o ponto de vista dos donatários e dos
moradores luso-brasileiros, que culpavam frequentemente os índios 'bárbaros' dos sertões, ou 'tapuias', pelo 'atraso'
da capitania. Mas mudando a perspectiva e observando a capitania como uma zona de contato, afigura-se outra
história bem diferente, na qual não cabem muito confortavelmente as imagens de 'atraso'. MOREIRA, Vânia Maria
Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e transculturações nas fronteiras do Espírito Santo (1798-
1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11, 2011. Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014. p. 3
709
A autora sintetiza o artigo dessa forma: "Este artigo visa refletir sobre a moldagem da vida nas zonas de contato,
elegendo como ponto de reflexão o trânsito da população indígena entre os sertões do Espírito Santo e as zonas
policiadas da província, no período de 1798 a 1840. Esse movimento não obedeceu um padrão único, pois variou
dependendo das comunidades e dos indivíduos, em um gradiente que poderia ser temporário, cíclico ou definitivo,
entre os dois lados de uma fronteira porosa e sempre em movimento." Ibid., p. 3.
710
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e transculturações nas fronteiras
do Espírito Santo (1798-1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11, 2011. Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014. p. 4-5.
711
Argumenta a autora: "A explicação para a relativa estabilidade populacional da vila de Nova Almeida e de seus
povoados anexos, Aldeia Velha e Campo do Riacho, deve ser procurada no quadro de tensões e conflitos que
marcavam as fronteiras entre as zonas policiadas e não policiadas do Espírito Santo. Pois, para garantir a segurança
do Espírito Santo, interessava ao governo local a manutenção de uma vila forte e bem organizada naquela fronteira
e zona de contato com os índios “bravos” do sertão. Outro motivo importante para a conservação da vila como um
lugar fundamentalmente indígena era o interesse pela mão-de-obra dos índios, utilizada tanto pelos governos locais
como pelo governo imperial." MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e
263

ao aproveitamento da mão de obra indígena, convocada em diferentes frentes de trabalho em


serviços prestados ao Estado, reveladores da função social que se atribuía a esses grupos.712
Vânia Moreira, no entanto, preocupa-se com a perspectiva indígena diante dessa condição, em
sua margem de atuação:

Do ponto de vista dos índios, existia certa margem de manobra e de negociação com
as autoridades governativas, que, afinal, precisavam deles tanto para o serviço público
(construção civil, serviço de correio, navegação etc.) como para a defesa militar das
vilas e dos povoados. Assim, a despeito das relações muito desiguais e assimétricas
de poder entre eles, de um lado, e, de outro, os governantes e os moradores locais mais
abastados, esses índios defendiam seus próprios interesses nas tramas que
compunham as relações de poder na região. E, se tomarmos como parâmetro as
petições e reclamações que eles próprios dirigiram aos governantes, as duas maiores
preocupações dos índios foram defender a liberdade dos filhos – sequestrados para
serem tutelados por terceiros, de acordo com os instrumentos da legislação
orfanológica –, e manter a posse e a propriedade das terras que ocupavam, contra as
tentativas do esbulho de certos moradores. Não é demais frisar, além disso, que, em
termos indígenas, a tutela orfanológica correspondia à perda da autonomia e da
liberdade conquistadas, pois os índios passavam a ter “dono”, “amo” ou “patrão” em
uma espécie de situação bastante próxima ao cativeiro disfarçado. Mas tão importante
quanto esses requerimentos indígenas, foram as respostas que receberam, pois, não
foram poucas as vezes que os governantes mandaram devolver a eles suas terras e
seus filhos. Por exemplo, em 23 de agosto de 1838, o presidente João Lopes da Silva
informava ao juiz de paz que havia recebido o requerimento do índio José Bernardino
e pedia explicações circunstanciadas sobre o assunto, advertindo-o que “não pode e
nem deve tirar os indígenas do poder dos pais ou daqueles que os tenham criado para
dá-los a terceira pessoa, não havendo melhoramento de condição, como no caso
presente."713

Nova Almeida, nessa perspectiva, é retratada pela autora como o espaço por excelência do
movimento dinâmico social e cultural no qual estavam inseridos grupos indígenas:

transculturações nas fronteiras do Espírito Santo (1798-1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11,
2011. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014. p. 8.
712
De acordo com Vânia Moreira: "[...] na correspondência oficial entre os presidentes da província do Espírito
Santo e as autoridades da vila de Nova Almeida, como os juízes ordinários, o presidente da Câmara, os vereadores
ou o capitão-mor, mantida no período de 1827 a 1853. Nesta série documental, identifiquei um universo de 85
documentos nos quais os índios foram citados textualmente e o assunto mais em voga nesta amostragem estava,
de algum modo, vinculado ao trabalho que eles deveriam prestar ao “Império e à Nação”, perfazendo 58,8% do
total. Lembrando que, em uma mesma correspondência, pode-se encontrar um ou mais assuntos relativos aos
índios, nas 50 correspondências classificadas como pertencendo ao assunto “Trabalho”, foram identificadas 58
ocorrências ligadas ao tema. A solicitação de índios para a prestação de serviço ao Estado ou para render outros
índios que já estavam trabalhando para o “Império e a Nação” é, em disparado, a principal ocorrência (70,7%). Os
tipos de trabalho realizados pelos índios e os lugares onde tais serviços eram feitos são bastante reveladores,
ademais, da função social desses índios no âmbito regional. Em um universo de 50 ocorrências sobre a prestação
de serviço para o Estado, 22% usam as expressões genéricas “serviço nacional e imperial” e 10%, “serviço público”
ou serviço em “obras públicas”. O restante das solicitações de índios era para trabalhar na Diretoria do Rio Doce
(16%), no Forte São João e Passagens (12%), no Escaler do Governo e Passagens (10%), no corte de madeira e na
construção naval (8%) e no combate de quilombos ou na captura de escravos fugitivos (6%)." Ibid., p. 8.
713
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e transculturações nas fronteiras
do Espírito Santo (1798-1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11, 2011. Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014. p. 9.
264

No começo dos oitocentos, portanto, Nova Almeida era uma vila mestiça, do ponto
de vista cultural, agregando pessoas, valores e práticas dos campos ameríndio e afro-
luso-brasileiro. Mas, [...] os índios conseguiram dar, naquele espaço físico, político e
social, uma forma indígena ao processo de mestiçagem.[...] Os índios ocupavam, além
disso, os principais cargos e lugares da governança da vila. Na visitação de 1812, por
exemplo, d. Coutinho ponderou a existência de mais de 3 mil índios na vila de Nova
Almeida, sem contar os brancos e pretos, afirmando ainda que a vila possuía uma
Câmara de “índios puros”, isto é, todos os vereadores e juízes eram índios. [...] Mas
apesar das mestiçagens (biológicas e culturais), não há porque deixar de ler e
interpretar tais vilas e instituições híbridas também como lugares profundamente
indígenas, em um processo contínuo de apropriação, de ressignificação e de
transformação, pois, construídos, vividos, negociados e transmitidos a partir do
encontro intercultural entre afro-luso-brasileiros e índios. O modus vivendi de Nova
Almeida atesta isso, aliás, com bastante eloquência.714

Essa imagem das populações indígenas pode ser observada ainda em artigo da autora sobre a
Carta Régia de 1798715 e sua implicação no sistema de autogoverno716 dos índios nas vilas e
lugares indígenas no Espírito Santo, que vigorou entre 1798 e 1845. Segundo a autora, por mais
que esse sistema tivesse o objetivo primeiro de controlar os indígenas e aproveitá-los como mão
de obra para o Estado, serviu como margem de negociação dessas populações. 717 Exemplar,

714
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre as vilas e os sertões: trânsitos indígenas e transculturações nas fronteiras
do Espírito Santo (1798-1840). In: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Debates, n.11, 2011. Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/60746. Acesso em: 16/02/2014. p. 10.
715
Segundo Vânia Moreira: "o fato é que a Carta Régia de 12 de maio de 1798 suspendeu o sistema de Diretório
e inaugurou um período bastante atípico na história dos índios e do indigenismo no Brasil, pois os índios das vilas
e povoados ficaram legalmente livres de qualquer tutela sobre suas pessoas." MOREIRA, Vânia Maria Losada.
Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). In:
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012. p. 228.
716
Sobre o propósito do autogoverno e a margem de ação dos índios: Índios que tinham “dono” conviviam lado a
lado, no Espírito Santo, com outros que eram considerados livres e que viviam com suas famílias e grupos nos
povoados e vilas da província, de forma muito mais autônoma e de acordo com os princípios do autogoverno.
Entenda-se por autogoverno dos índios a extinção da tutela dos diretores, pela Carta Régia de 12 de maio de 1798,
e a subordinação deles ao governo da Câmara e às demais instituições das vilas e lugares, como, por exemplo, as
ordenanças. O sistema de autogoverno dos índios visava, em primeiro lugar, garantir os interesses do Estado,
presentes, de forma bem resumida, na ideia de transformar os índios em “súditos úteis”, por meio do trabalho
prestado ao Estado, aos particulares, a si mesmos e às suas famílias. Trata-se também, como se verá mais adiante,
de um sistema político que, no Espírito Santo, abriu espaços para o exercício da política indígena, expressa na
defesa de sua liberdade e territorialidade contra os outros moradores da província que, na primeira metade do
século XIX, cobiçavam suas terras e muito frequentemente também seu trabalho." MOREIRA, Vânia Maria
Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-
1845). In: Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012. p. 230.
717
Nas povoações de maioria indígena do Espírito Santo, como Benevente (antiga missão de Reritiba) e Nova
Almeida (antiga missão dos Reis Magos), o funcionamento do autogoverno e do sistema de trabalho a ele associado
não pode ser satisfatoriamente explicado pelos artifícios da violência, do engodo ou de uma suposta passividade
dos índios, apesar desses argumentos terem sido apontados por alguns dos contemporâneos para explicar a
participação dos índios em uma ordem social bastante opressora. Afinal, a subalternidade social dos índios não é
condição suficiente para negar a eles a condição de atores de sua própria história, por mais que essa história seja a
história do oprimido. Também não é condição suficiente para caracterizar o autogoverno nas vilas e lugares
indígenas apenas como um simulacro, supondo que eles, no exercício dos poderes municipais (vereadores e juízes)
e de outros cargos da República (capitães-mores de ordenança, etc.), eram apenas iludidos pelas pompas dos cargos
civis e militares do mundo colonial e pós colonial Ao contrário, pesquisas recentes têm demonstrado que, desde a
vigência do Diretório, criou-se ou fortaleceu-se uma elite indígena no interior da lógica da governança colonial
que não apenas respondia aos interesses da política indigenista luso-brasileira, mas também às expectativas dos
índios e da política indígena. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios:
265

nessa abordagem, é a identificação de um lugar de participação política e reivindicativa que


conquistaram:

A participação dos índios na governança local [...] foi um expediente político de


relativa eficácia para os índios. Permitiu, por exemplo, a tramitação de suas
reivindicações e de seus interesses nos canais políticos da província. Na série de 85
correspondências entre os presidentes da província do Espírito Santo e as autoridades
civis e militares da vila de Nova Almeida mantidas no período entre 1828 e 1853,
onde os índios são textualmente citados, foram encontradas 19 ocorrências de queixas
de índios, principalmente contra três situações: as tentativas de esbulho de suas terras,
as violências físicas perpetradas por moradores e os sequestros de seus filhos pelas
autoridades locais, que os distribuíam a terceiros. 718

Para a autora, os documentos revelam uma "relativa eficácia política do sistema do autogoverno
para os índios, pois os presidentes da província tenderam a apoiar os índios em suas
representações e queixas."719

Essa visão sobre um lugar do indígena no passado local como sujeito ativo e reivindicativo com
estratégias de ação em função da dinâmica social à qual estavam submetidos é observado
também por Francielli Marinato em seu estudo sobre as relações de contato entre a sociedade
colonizadora e os indígenas a partir da instalação da Diretoria de Índios do Rio Doce (DRD),
em 1824.720

Segundo a autora, a DRD possuía, dentre seus objetivos, o propósito de reunir os Botocudos
em aldeamentos. Tal como Vânia Moreira atribuiu uma margem de ação dos índios diante da
Carta Régia de 1798 e o sistema de autogoverno, Marinato ressalta que os indígenas tiveram
capacidade de se organizar em torno dos propósitos da política de aldeamentos, resistindo por
meio da negociação e estabelecendo relações nas quais apresentavam suas demandas e
interesses naquele contexto. Para ela:

Em realidade, a história da DRD é uma história de tensão permanente, polarizada


pelos índios versus diretores, militares e colonos. Isso, sobretudo, porque nos planos
gestados às pressas pelo nascente Estado imperial, bem como nas resoluções dadas de
relance pelos governantes provinciais, há enormes erros de cálculo. Os mais explícitos
ligam-se à crença de que os Botocudos seriam fácil e rapidamente assentados em
aldeamentos a partir da conquista e manipulação de seus interesses com a oferta de
uma infinidade de quinquilharias. [...] Ao se mobilizar e atrair os inúmeros e
inimagináveis grupos Botocudos entranhados nas florestas, fazendo propagar

liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). In: Revista de História, São Paulo, n. 166, p.
223-243, jan./jun. 2012. p. 235.
718
Ibid., p. 236-237.
719
Ibid., p. 237.
720
MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os Botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce
(Espírito Santo, 1824-1845). 2007. Dissertação (Mestrado em História). PPGHIS, Centro de Ciências Humanas e
Naturais, UFES. Vitória. 2007.
266

promessas de sustento, bom tratamento e ofertas de presentes, errou-se de forma cabal


com a crença no pressuposto de que isso seria suficiente para torná-los sedentários e,
pior, submetidos ao trabalho colonial. As relações estabelecidas com as populações
nativas em torno da Diretoria mostram que as ofertas de presentes, ferramentas e
alimentos eram, sim, atrativas e engendraram muitos interesses no mundo indígena,
mas sem que os diretores tivessem qualquer controle e manipulação sobre isso. 721

A abordagem da autora demonstra a capacidade de articulação e autonomia, assim como uma


resistência desencadeada de acordo com a dinâmica na qual estavam inseridos. Novos sentidos
são estabelecidos, portanto, para o papel desempenhado pelos indígenas no passado do Espírito
Santo. Além de estudos que propõem uma releitura do passado indígena, essa perspectiva
historiográfica, é composta, também, por trabalhos que têm permitido resgatar as experiências
indígenas no século XX.

Tais narrativas ganham importância não só por avançarem cronologicamente, mas, sobretudo,
porque atendem a necessidade de contrapor-se à cristalização da noção de que os povos
indígenas pertencem ao passado. Com isso, permitem compreendermos a continuidade da luta
desses povos ao longo do tempo no Espírito Santo.722 Selecionamos, nesse ponto, os estudos de
Klítia Loureiro e Kalna Teao,723 pois atendem a esse propósito de resgatar a presença dos
indígenas e produzir referências que modifiquem a percepção acerca desses grupos.724

721
MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os Botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce
(Espírito Santo, 1824-1845). 2007. Dissertação (Mestrado em História). PPGHIS, Centro de Ciências Humanas e
Naturais, UFES. Vitória. 2007, p. 145.
722
Sobre os índios no Espírito Santo, indicamos as contribuições trazidas por Celeste Ciccarone no campo da
Antropologia. Ver: CICCARONE, Celeste (org.). Memória viva Guarani: revelações sobre a terra. Comunidade
Tekoa Porã. Vitória: UFES, 1996; CICCARONE, Celeste. Drama e sensibilidade: migração, xamanismo e
mulheres Mbya Guarani. 2001. 352 f. Tese. (Doutorado em Ciências Sociais). Programa de Estudos de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, Pontifícia Católica de São Paulo, 2001;
723
TEAO, Kalna Mareto; LOUREIRO, Klítia. História dos índios do Espírito Santo. Vitória: Ed. do autor, 2009.
No que tange às reflexões de Klítia, recorremos, principalmente, à sua dissertação de mestrado: LOUREIRO,
Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios Tupinikin e
Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História. Programa de
Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2006.
724
A produção histórica, nesse caso, seguiu também essa orientação: "Após a realização de pesquisas na área de
História e de Educação indígena, foi possível perceber a pouca existência de materiais didáticos referentes aos
índios do Espírito Santo. Devido à carência de materiais específicos sobre a temática, muitos professores
encontram dificuldades para ensinar sobre os povos indígenas.[...] Em geral, os livros didáticos existentes sobre a
história local no Espírito Santo e a história nacional tratam o índio de forma preconceituosa e equivocada." TEAO,
Kalna; LOUREIRO, Klítia. op. cit., p. 29. De acordo com Vânia Moreira, existe uma reivindicação nesse sentido
proveniente do próprio movimento indígena. A autora chama a atenção para o documento de reivindicação dos
indígenas elaborado pela “Conferencia dos Povos Indígenas” reunidos em Cabrália no ano 2000 em contestação à
comemoração dos 500 anos do Brasil. Nessa disputa acerca do lugar reservado aos índios na sociedade brasileira,
a história deveria ser revisitada: A solicitação de que a “verdadeira história” seja ensinada indica que para os índios
reunidos em Cabrália a história ministrada nas escolas brasileiras não é verdadeira porque, entre outras razões, a
presença indígena tem sido sistematicamente ignorada. Os povos indígenas estão, de fato, sub-representados, ou
até mesmo não representados na historiografia, tanto aquela dirigida à formação básica dos cidadãos brasileiros
ensinada nas redes de ensino médio e fundamental, quanto nas mais acadêmicas, ministrada pelas universidades
267

Klítia Loureiro, em sua dissertação de mestrado, questiona o significado de um dos pilares das
narrativas da superação do atraso: o projeto de industrialização das décadas de 1960-1970.
Analisando a implantação do Complexo Aracruz celulose S/A em 1972, considera que o Estado
estabeleceu um discurso de modernização e progresso com os investimentos advindos dos
Grandes Projetos Industriais e que esse processo desencadeou um período de prejuízos e lutas
das comunidades indígenas da região de Aracruz, os Tupinikin e os Guarani Mbya.

Se observamos que em outras narrativas esse modelo de industrialização foi questionado em


função das suas consequências negativas de várias ordens para a população, a autora indica as
implicações desse processo nas populações indígenas e como isso obrigou esses grupos a um
rearranjo cotidiano devido a violência e expropriações contidas no modo de implantação da
Aracruz Celulose. Desse modo, buscou desconstruir o discurso do progresso relativo à
industrialização:

Ao analisar a implantação da Aracruz Celulose S/A e a consequente luta pelas terras


indígenas Tupinikin e Guarani Mbya e pela afirmação étnica dos índios Tupinikin,
tidos como “extintos” desde o final do século XIX, nossa pesquisa evidenciou que
houve na atuação do Estado (1967 a 1983) capixaba, junto com a empresa Aracruz
Celulose, um discurso de modernização e progresso que a nosso ver repetia antigos
discursos já bastante conhecidos: o Mito sacrifical do índio e da natureza em prol não
mais da civilização, como acontecia na Colônia e no Império, mas em favor da
modernização capitalista do Espírito Santo e do Brasil. Os colonizadores lançaram
mão de um argumento religioso que pudesse justificar o massacre, o extermínio, o
encobrimento do Outro, a fim de levar a civilização cristã às terras descobertas e
retirar os índios da condição de selvagens. A esse respeito, foi nossa intenção destacar
a dialética intrínseca a esse processo civilizatório, que traz em seu bojo o seu
contrário: a barbárie.725

A autora reflete justamente sobre os diferentes lados em conflito nesse processo. Por um lado,
Klítia Loureiro expôs "o indígena em seu resistente esforço para não sucumbir ao incivilizado
processo civilizatório",726 que se viu obrigado a "viver ilhado dentro do seu território" pois as
"extensas áreas de matas e florestas naturais foram sendo derrubadas e substituídas pela
monocultura do eucalipto, que se estendia, segundo relatos, até o quintal de suas casas, deixando

nacionais. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Índios no Brasil: marginalização social e exclusão historiográfica.
Diálogos Latinoamericanos, n. 3, 2001. p. 87.
725
LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios
Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História.
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006. p. 169.
726
LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios
Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História.
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006. p. 171.
268

os moradores acuados e obrigados a abandonarem o local."727 Por outro, narra a luta e os


dilemas das populações indígenas do Espírito Santo pela demarcação de suas terras e,
principalmente, o papel contraditório desempenhado pelo Estado diante desse conflito:

A homologação das três áreas indígenas não equacionou o dilema da sobrevivência


física e cultural das comunidades envolvidas. A luta pela terra, pelo direito de ser
diferente, pelo direito à vida, à dignidade, ainda hoje faz parte das principais
reivindicações das comunidades indígenas Tupinikin e Guarani Mbya do litoral norte
do Espírito Santo. O importante aqui é reconhecer a contradição existente na atuação
do Estado, no que diz respeito à demanda por terras por parte das populações
indígenas. Se, por um lado, o “Estado”, em parceria com o capital transnacional, tem
sido o principal responsável pela negação da existência das comunidades indígenas
no Espírito Santo, por outro, foi também um órgão específico do Estado que
“contribuiu” para que o resgate e a defesa dos remanescentes Tupinikin se tornassem
prioridade dentro das políticas públicas, embora tenha submetido o grupo a estranhos
acordos financeiros com os interesses industriais da empresa transnacional Aracruz
Celulose S.A.728

É exatamente essa luta indígena o principal foco da abordagem de Kalna Teao. Ela também
define a industrialização como o marco negativo da história do Espírito Santo para os indígenas
e evidencia, assim, a continuidade da batalha dessas populações por reconhecimento de direitos:

Podemos dividir a história da luta pela terra indígena no Espírito Santo em três fases.
A primeira, ocorrida de 1967, ano da implantação da Aracruz Celulose no Estado, ao
de 1983, ano de homologação das terras indígenas. A segunda fase inicia-se em 1993,
quando os tupinikim e Guarani reivindicaram a ampliação da área indígena, e dura até
1998, com a ampliação do território indígena de Caieiras Velhas. E a terceira fase,
que correspondente à época atual, iniciou-se em fevereiro de 2005, através da
assembleia dos dois povos indígenas para lutar pela ampliação de suas terras e romper
o Termo de Ajustamento de Conduta. 729

Segundo Kalna, esse é um processo de luta que ainda continua. Apesar de ser um fenômeno
contemporâneo, as ações indígenas, tal como no passado, como observamos, têm consolidado
um conjunto de estratégias de resistência dessa população.730 Todavia, ressalta a autora, um dos

727
LOUREIRO, Klítia. O processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo: Os índios
Tupinikin e Guarani Mbya e a Empresa Aracruz Celulose S/A (1967-1983). 2006, 172fls. Mestrado em História.
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2006. p. 93.
728
Ibid., p. 166.
729
TEAO, Kalna Mareto. Os Guarani Mbya. In: TEAO, Kalna Mareto; LOUREIRO, Klítia. História dos índios
do Espírito Santo. Vitória: Ed. do autor, 2009. p. 103. Sobre o termo de ajustamento, a autora define o seguinte:
"O Termo de Ajustamento de Conduta foi assinado pelos índios Tupinikim e Guarani com a empresa Aracruz
Celulose em 02 de abril de 1998. Neste documento, a empresa cederia uma quantia de dez milhões e duzentos e
sessenta mil reais às comunidades indígenas num prazo de vinte anos. Além disso, a empresa permitiria que os
índios explorassem os eucaliptos já plantados. Ainda, a empresa seria responsável pelo pagamento das contas de
água e energia elétrica até o valor de sete mil e novecentos e oitenta reais ao ano, além de subsidiar projetos
voltados à agricultura." Ibid., p. 103.
730
Para Kalna: "Uma das estratégias utilizadas pelos índios do Espírito Santo na luta pela terra foi a ocupação de
forma pacífica de 300 índios, incluindo mulheres e crianças à sede da empresa Aracruz Celulose, em 06 de outubro
de 2005. Tal medida, adotada por eles, consistia em chamar a atenção para a causa indígena de defesa da terra e
exigir providências, como maior agilidade da Funai, em terminar os grupos de estudos e publicar o relatório final."
269

grandes inimigos indígenas ainda é a representação de obstáculos do progresso atribuída a eles


no presente:

Os conflitos pela posse da terra são noticiados através da mídia a partir de um discurso
unívoco, desconsiderando os povos indígenas como sujeitos e protagonistas da
história, desqualificando-os e marginalizando-os ao denominá-los frequentemente
como aculturados, estrangeiros e não índios. Ao utilizar esse discurso, o Estado, os
meios de comunicação, as empresas e os fazendeiros, dentre outros, evocam a defesa
da propriedade privada da terra, negando aos povos indígenas suas reivindicações,
considerando-os como entraves ao processo de modernização e ao progresso. Nesse
sentido, resgatar as visões dos povos indígenas significa buscar o entendimento de
uma realidade muito mais complexa, que ultrapassa apenas o embate entre progresso
material e atraso econômico, mas permite compreender as diversas concepções de
mundo e práticas políticas em confronto, que se refletem cotidianamente na difusão
de preconceitos legitimadores por meio de ações econômicas e governistas.731

Klítia Loureiro e Kalna Teao demonstram em suas narrativas que o problema indígena persiste:
o da sua condição social e a imagem construída sobre eles. A definição de um lugar de atraso e
sua condição social excludente pertencem ao mesmo processo. Assim, justifica-se a
importância dessas novas narrativas. De acordo com Vânia Moreira, a submissão social pela
qual se encontram as comunidades indígenas no Brasil se vincula, de alguma forma, com sua
ausência também na historiografia. Isso é característico do que ela denominou de “ciclo
vicioso”:

Os povos indígenas estão, de fato, sub-representados ou até mesmo não representados


na historiografia, tanto naquela dirigida à formação básica dos brasileiros, ensinada
nas redes de ensino médio e fundamental, quanto na mais acadêmica, ministrada nas
universidades nacionais. A historiografia é, entre outras coisas, o diálogo entre o
passado e o presente, ou, se preferirmos, uma interrogação sistemática, feita por
pesquisadores de um determinado presente, sobre temas e problemas do passado. Se
o índio é pouco visível nas obras de caráter historiográfico, especialmente naquelas
que tratam do período pós-colonial, é porque, em grande medida, também teve pouca
visibilidade no ambiente social que originou aquelas obras. Formou-se um ciclo
vicioso: a subalternidade social gera uma espécie de invisibilidade histórica e esta, por
sua vez, ajuda a produzir a subalternidade e invisibilidade social. Trata-se, além disso,
de um círculo vicioso que precisa ser superado.732

A superação reivindicada por Vânia Moreira, portanto, não segue a lógica da "superação do
atraso". Pelo contrário, é outra. É possível atestarmos que na configuração dessas novas
narrativas históricas se revelam um novo lugar para os indígenas na história do Espírito Santo.
Refletindo sobre o papel da historiografia, Dosse argumenta:

TEAO, Kalna Mareto. Os Guarani Mbya. In: TEAO, Kalna Mareto; LOUREIRO, Klítia. História dos índios do
Espírito Santo. Vitória: Ed. do autor, 2009. p. 112.
731
Ibid., 103-104.
732
MOREIRA, Vânia Losada. Os índios e a historiografia. DIMENSÕES – Revista de História da UFES. Vitória,
n. 13, 2001. p. 269.
270

A história, como lugar de controvérsias, como lugar privilegiado do conflito de


interpretações, pode ter função terapêutica. Ela pode apoiar-se na conscientização
recente de que existem diversos relatos possíveis das mesmas ações, dos mesmos
acontecimentos. Nesse sentido a história pode retroagir positivamente sobre a
memória ao pôr a memória coletiva, nacional, em situação de abertura, de discussão,
de controvérsia. Desse modo, ela permite que a memória não se recolha na
fossilização da compulsão repetitiva e que se abra para a memória do outro. 733

A história sob a perspectiva do desenvolvimento do Espírito Santo, ou como definimos, as


narrativas históricas da superação do atraso correspondem à história da exclusão e do
apagamento dos indígenas. Entendendo que Dosse se refere à função da historiografia em
relação aos efeitos negativos da memória oficial sobre determinados sujeitos da história, essas
novas narrativas históricas sobre os indígenas, no caso do Espírito Santo, como observamos,
contemplam mudanças importantes que rompem com imagens cristalizadas e preconceitos
historicamente produzidos que se perpetuam na sociedade.

Dessa forma, produzem deslocamentos significativos no lugar ocupado por esses personagens.
Abandonando a lógica "índios bons" versus "índios maus", as narrativas tiram essas populações
da categoria de inimigos selvagens e obstáculos do progresso e os reconhecem como sujeitos
inseridos e integrados em dinâmicas sociais desfavoráveis, porém capazes de agir e reagir de
acordo com suas possibilidades. Retiram os indígenas, também, da condição anacrônica e
idealizada de pertencimento a um período do passado local marcado pelo atraso, o colonial.
Permitem sua emergência na história local justamente em momentos em que as narrativas da
superação do atraso os eliminam e apagam. De uma ausência sugerida pelos "vazios
demográficos" ou, ainda, de uma exclusão diante da exaltação dos marcos históricos e dos
condutores do progresso do Espírito Santo, as populações indígenas são representadas nessas
narrativas em sua diversidade étnica, como sujeitos ativos e, sobretudo, em suas circunstâncias
de participação na sociedade, em suas estratégias de ação, que correspondem às suas lutas
históricas por conquistas e reconhecimento de direitos.

733
DOSSE, F. A história à prova do tempo. Da história em migalhas ao resgate dos sentidos. São Paulo: Unesp,
2001.
271

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando construímos o desafio historiográfico do Espírito Santo a proposta foi a de realizar uma
história da historiografia numa perspectiva crítica, apresentando uma análise reflexiva sobre a
escrita da história do Espírito Santo. O que orientou nosso estudo, desde as problematizações
até o momento das considerações finais, foi a necessidade de agir em função de um determinado
lugar atribuído ao historiador que não deve ser o do poder. Apropriando-nos de Edward Said,
temos:

Na minha visão, nada é mais repreensível do que certos hábitos de pensamento do


intelectual que induzem à abstenção, àquele desvio tão característico de uma posição
difícil e embasada em princípios, que se sabe ser a correta, mas que se decide não
tomar. Você não quer parecer muito político; você tem medo de parecer controverso;
você precisa da aprovação de um chefe ou de uma figura de autoridade; você quer
manter uma reputação de pessoa equilibrada, objetiva, moderada; sua esperança é
tornar a ser convidado, consultado, ser membro de um conselho, comissão ou comitê
de prestígio, e assim continuar vinculado à esfera do mainstream [...]. Para um
intelectual esses hábitos de pensamentos são corruptores par excellence. Se alguma
coisa pode desfigurar, neutralizar e, finalmente, matar uma vida intelectual
apaixonada é a interiorização de tais hábitos. 734

Esse posicionamento serve à escrita da história, e à do Espírito Santo. Acreditamos que não
pode ser papel do trabalho intelectual criar consensos nem servir a poderes instituídos, devendo
empenhar seu senso crítico na rejeição de verdades convencionalmente estabelecidas, evitando
um modo passivo de posicionamento. Buscamos uma oposição ao que foi instituído como
narrativas oficiais do Espírito Santo, apresentando questões, estabelecendo distinções e dando
destaque à recuperação da memória do que é marginalizado ou esquecido na história
espiritossantense.735

Foi nessa acepção que analisamos não só o percurso das formas de narrar o Espírito Santo mas
identificamos as relações com o poder político e distinguimos as narrativas. Observamos que a
historiografia, como sugeriu Rüsen, permite configurar os materiais que compõem a memória
construindo uma inteligibilidade ao passado. Com isso, avaliamos as diferentes formatações
historiográficas dotadas de significação de acordo com as lembranças que mobilizaram, pelo

734
SAID, Edward W. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo: Cia das Letras,
2005. p. 102-103.
735
Ibid., p. 35-45.
272

modo como atribuíram sentido ao passado e suas funções no contexto cultural e político que
constituíram.

Vistas em sua historicidade, analisamos as seguintes narrativas históricas: a do progressivo


desenvolvimento do Espírito Santo, representada por José Teixeira de Oliveira, Neida Lúcia e
Maria Stella de Novaes, a da formação econômica do Espírito Santo, representada por Gabriel
Bittencourt, e as narrativas críticas da história do Espírito Santo, representada por um conjunto
de trabalhos acadêmicos na contemporaneidade que emergem em oposição às duas
configurações anteriores. Em especial, avaliamos a emergência e percurso das narrativas
históricas da superação do atraso, suas continuidades e mudanças, assim como suas relações
com o poder e os usos políticos do passado.

No que tange às narrativas históricas da superação do atraso, observamos que o


desenvolvimento do Espírito Santo tornou-se paradigmático para se interpretar e narrar o
passado local. Este paradigma possibilitou tanto à narrativa do progressivo desenvolvimento
do Espírito Santo como à narrativa da formação econômica do Espírito Santo determinarem o
sentido da superação do atraso a trajetória local. Fosse a partir da lógica atraso/progresso ou a
da decadência/superação, respectivamente, as narrativas tiveram o progresso/desenvolvimento
como categorias norteadoras das representações históricas do Espírito Santo.

Isso, por sua vez, foi possível a partir da compreensão da diferença temporal entre experiência
e expectativa. Observamos, com Koselleck, que o presente estabelece relações desiguais entre
o passado e o futuro. Tanto a narrativa do progressivo desenvolvimento como a da formação
econômica do Espírito Santo apresentaram a tensão entre o presente (e suas expectativas) com
o passado e estabeleceram o horizonte do Estado como sendo o da superação. Assim, essas
apresentaram uma relação com o passado a partir do distanciamento, estabelecido em função
do que o desenvolvimento econômico indicava como uma nova condição do Estado. Tal
distanciamento em relação a um passado considerado como de atraso caracterizou-se de duas
formas: como ruptura, no sentido de superar uma condição prejudicial pela inserção em novo
patamar de desenvolvimento, como observamos na interpretação dessas narrativas sobre o
significado da industrialização das décadas de 1960-1970; e, ainda, na perspectiva da
exemplaridade. Tanto em relação à definição de uma trajetória de superação em função dos
obstáculos geradores do atraso, como no resgate de exemplos históricos, de modelos a serem
copiados no presente como símbolos do progresso.
273

A dimensão temporal do passado, portanto, foi elaborada sob o paradigma do desenvolvimento


e definiu a perspectiva da superação do atraso. Instituiu-se, assim, uma identidade histórica que
permeou o discurso político e historiográfico. Uma relação com o passado a partir da definição
de um sentido (atraso/superação) e do lugar do Espírito Santo na história. Diante desse
paradigma de compreensão do passado local, identificamos um modo de explicar, de dizer e
qualificar o Espírito Santo. Tanto em sua matriz política como historiográfica a representação
do desenvolvimento apresentou um corpo de enunciados que manifestam processos de
percepção e avaliação do Espírito Santo orientadas por uma lógica dualista como
“atraso/progresso”, "desenvolvido/subdesenvolvido", “local/nacional”, “dentro/fora” (ou
inserido/marginalizado), que se configuraram como formas de compreender a realidade
espiritossantense, e que têm nesses referenciais seus fundamentos para se pensar e narrar o
Espírito Santo, no presente e no passado.

Nesse ponto, alcançamos a relação entre discurso político e historiográfico presente em nosso
desafio. De acordo com Rüsen:

Não é possível pensar nenhum tipo de dominação cuja legitimação não recorra aos
saberes históricos. Os participantes do poder e da dominação estipulam suas relações
mútuas ao longo do tempo com argumentos históricos, e as internalizam sob a forma de
identidade histórica.736

O conhecimento histórico produziu narrativas que buscaram compreender o lugar do Espírito


Santo no passado em função do presente e, com isso, legitimaram projetos políticos. Na
construção de nosso desafio historiográfico, comparamos como se estabeleceram diferentes
formas de relação com o passado, como na afirmação do lugar do Rio de Janeiro para a
construção do Brasil, na representação da "Locomotiva" em relação à São Paulo e, ainda, Minas
Gerais e as virtudes da mineiridade. Consideramos que a do Espírito Santo se aproxima da
caracterização do Nordeste em termos de instituir a condição de atraso, mas sua especificidade
reside na correspondência com o discurso político da superação.

Tanto a narrativa do progressivo desenvolvimento como a da formação econômica do Espírito


Santo elaboraram, cada uma em sua formatação historiográfica, enredos históricos do Espírito
Santo nos quais ele não acompanhou o progresso, sucessivamente, de outras capitanias,
províncias e estados da federação, condição que ocorreria apenas com a industrialização.

736
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora UNB, 2010. p. 127.
274

Condição instituída em oposição ao lugar atribuído, em termos de desenvolvimento, a São


Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, possibilitando, como alertou Rüsen, a produção de
argumentos históricos. Em relação ao Espírito Santo, os autores narraram a busca em se adequar
ou se inserir na centralidade representada pelos Estados supracitados. O discurso da superação
do atraso direciona o Espírito Santo para a centralidade, estabelece esse sentido. Elaboraram,
assim, narrativas históricas que correspondiam ao discurso político do "atraso relativo" das
décadas de 1960-1970 ou ainda ao discurso reivindicativo do lugar de protagonismo do Estado
no contexto do "Terceiro Ciclo de Desenvolvimento" no século XXI. O que evidencia que essas
narrativas históricas corresponderam à emergência do discurso político da superação do atraso
e sua atualização ao longo do tempo.

Realizamos, como uma das propostas desse desafio, uma história da historiografia
comprometida com o entendimento da relação entre o saber histórico e o exercício do poder. 737
Constatamos que os projetos de desenvolvimento trouxeram consigo versões do passado
espiritossantense que serviram à formulação de uma experiência pretérita satisfatória em
determinados contextos, na construção de modelos, na definição de lugares atribuídos a
períodos, acontecimentos e sujeitos valorizados (ou não) em função do discurso da superação
do atraso. Por isso, as classificamos como discursos fundadores, tanto pela definição de uma
discursividade sobre o Espírito Santo em forma de narrativa histórica, como pelo "foco da
história" estabelecido, que foi o do discurso oficial relativo ao desenvolvimento. Identificamos
um mecanismo de imposição de uma forma de compreender e narrar o Espírito Santo assim
como os usos políticos do passado, observados na forma como este foi apropriado,
principalmente, por Paulo Hartung na contemporaneidade.

Aqui, ressaltamos que o nosso desafio historiográfico do Espírito Santo e sua relevância não se
limitam ao alcance dessa tese. Pois, o que motivou a construção desse desafio ainda apresenta
questões as quais os historiadores não podem se eximir quando suscitados a desconstruir os
andaimes que sustentam determinados discursos políticos. Primeiramente, a conclusão desse
trabalho se dá durante a condução de um novo mandato de Paulo Hartung (2015-2018) cujo
discurso político inicial assentou-se sobre o seu lugar na história local, a produção de um
cenário de crise e necessidade de se encontrar o "rumo do desenvolvimento" do Espírito

737
FALCON, Francisco. História e poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.).
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2011.p. 61-65.
275

Santo.738 Soma-se a isso, a presença de intelectuais inseridos em seu governo que (re)produzem
o ideal da superação do atraso em seus trabalhos e se vinculam à produção da "memória do
desenvolvimento", tal como avaliamos.739

Entretanto, nosso desafio historiográfico trouxe também a possibilidade de analisarmos a


escrita da história do Espírito Santo a partir de "outras histórias." As narrativas críticas também
revelam a importância e o significado desse trabalho para a reflexão acerca dos paradigmas de
entendimento e formas de narrar o Espírito Santo. Nesse caso, partimos de outro fato relevante
nesse contexto de encerramento da tese: o desastre socioambiental que envolveu a mineradora
Samarco/Vale e o Rio Doce no dia 05 de novembro de 2015.740

Esse evento envolve não apenas a necessidade de recuperação de danos ambientais e


econômicos causados pelo que ficou chamado de "lama da Samarco." A relação desse evento
com o Espírito Santo envolve o que vimos sobre o comprometimento dos estudos históricos
com o discurso político da memória coletiva e sua capacidade de produzir lembranças e
esquecimentos, hierarquias e distinções, assim como justificar escolhas e legitimar projetos
políticos. O Rio Doce, o minério, o contato com Minas Gerais e a Samarco/Vale compõem o
imaginário desenvolvimentista local e estão enredadas na narrativa da superação. Na história
do Espírito Santo, essas empresas possuem um lugar privilegiado e se legitimam em função da
representação histórica do desenvolvimento, pois aparecem como símbolos da superação do
atraso.

Nessa perspectiva, elas representam a efetivação das expectativas de desenvolvimento


presentes no ideário do progresso local que permeou discursos e práticas políticas no Espírito
Santo ao longo do século XIX e XX. Em 1800 com Silva Pontes, como vimos, iniciou-se a
busca pelo "sonho capixaba" de contato com Minas Gerais como reação ao "isolamento"
colonial. O percurso era justamente o Rio Doce, ainda que não tenha se efetivado. Depois, a
expectativa foi renovada com a "Estrada do Rubim", também abandonada. O fim do século XIX
e o século XX trouxeram a expectativa de realização dessa integração com o avanço das estradas
de ferro que permitiram esse contato. A Vale do Rio Doce e a Samarco surgem, nesse roteiro,

738
Disponível em: http://seculodiario.com.br/20660/8/ijo-espirito-santo-perdeu-o-rumo-do-crescimentoij-1.
Acesso em 20/07/2015; e: http://www.valor.com.br/politica/3841636/na-posse-hartung-diz-que-espirito-santo-
perdeu-rumo-nos-ultimos-anos. Acesso em 20/07/2015.
739
As pastas de Educação e a de Cultura foram ocupadas, respectivamente, por Haroldo Corrêa e João Gualberto.
740
Disponível em: http://seculodiario.com.br/25941/10/quartorze-dias-depois-samarcovale-tentara-conter-
chegada-da-onda-de-lama-na-foz-do-rio-doce. Acesso em: 19/11/2015.
276

no contexto da industrialização do Espírito Santo e representam, na lógica da superação, a


conquista de algo que fora negado ao Espírito Santo no passado. A narrativa histórica, portanto,
é capaz de legitimar a ação dessas empresas e definir um lugar irrepreensível a elas, se encaradas
sob o paradigma do desenvolvimento. Porém, avaliamos que as narrativas críticas produzem
novos entendimentos sobre o passado local e combatem a versão que se pretende oficial. Torna-
se, portanto, necessário "superar" essa visão.

Identificamos que a historiografia, a partir do início desse século, produziu revisões da história
do Espírito Santo que redimensionaram e modificaram o valor histórico atribuído a períodos,
acontecimentos e sujeitos históricos analisados sob o paradigma da superação do atraso. O
conjunto de trabalhos historiográficos que classificamos como narrativas críticas da história
do Espírito Santo permitiu, assim, avaliarmos seu significado a partir do duplo aspecto do
desafio historiográfico: o de desconstruir narrativas mestras e combater as interpretações do
passado que fundamentam o discurso político da superação do atraso.

No que diz respeito ao período colonial, por exemplo, a principal contribuição dessas narrativas
é a dessacralização do lugar que o atraso (e sua superação) possui na história do Espírito Santo.
Como observamos, o horizonte de interpretação do passado deixou de ser o da ruptura com a
experiência vivida, privilegiando a análise das condições de possibilidades, a historicidade dos
acontecimentos, atentando para diferentes condicionantes econômicas, circunstâncias políticas
e diferentes sujeitos que integraram a complexa dinâmica do Espírito Santo colonial. A
desmitificação do atraso, por sua vez, tem um significado importante nas disputas de
interpretação acerca do Espírito Santo e seu lugar, no presente e no passado: inviabiliza a
interpretação do sentido da superação atribuído ao passado local e desconstrói,
consequentemente, a própria lógica atraso/progresso, importantes na emergência de discursos
fundadores do Espírito Santo e seus usos políticos do passado.

O significado das narrativas críticas pode ser observado, ainda, na modificação do valor
histórico atribuído ao período republicano no Estado. Enquanto os projetos de modernização
do início do século XX e a industrialização das décadas de 1960-1970 estabeleceram o sentido
das narrativas históricas da superação do atraso ou são "celebrados" na atualidade pelas
"memórias do desenvolvimento", as narrativas críticas ressignificaram seu valor histórico em
função dos prejuízos e das consequências negativas que determinaram para a sociedade
espiritossantense ou ainda por atenderem aos interesses de determinados grupos sociais e
277

políticos locais em detrimento de ampla parcela da sociedade. Identificamos, assim, tanto nos
estudos que criticaram o modelo de desenvolvimento estabelecido no Estado como nos que
apresentaram as formas de interação e resistência dos grupos indígenas na longa duração, que
os autores colocaram em xeque o próprio sentido do desenvolvimento do Espírito Santo em
uma perspectiva histórica. O presente e seus desafios também convidam a essa forma de
questionamento.

O desafio historiográfico, portanto, não é tarefa fácil. Os aspectos que envolvem o discurso da
superação são atualizados e a apropriação de um determinado passado, como vimos, é
estrategicamente recorrente. Os discursos fundadores do Espírito Santo, tanto no discurso
político como nas narrativas históricas, criam dificuldades para se estabelecer "outras histórias"
que não correspondam à versão das elites e seus projetos de sociedade. No entanto, as narrativas
críticas, ao emergirem em oposição às narrativas mestras do Espírito Santo, não se limitam
apenas à mudança na produção historiográfica, mas representam, principalmente, o quanto as
narrativas históricas podem ser transgressoras em relação ao discurso oficial.741

A historiografia, segundo Rüsen, pode realizar uma catarse da memória, ou seja, é capaz de
mobilizar as lembranças da experiência temporal tramando as peças do passado rememorado
como fator de libertação na motivação para o agir.742 Nesse sentido, a produção do saber
histórico, incluindo a história da historiografia, viabiliza atos de libertação ou de superação com
importante valor para o exercício de crítica do conhecimento histórico, sobretudo, em relação
"ao ato de interrogar o passado, pluralizar seus sentidos e intervir no presente.743

Por isso, a partir das narrativas críticas da história do Espírito Santo e da própria perspectiva
crítica que assumimos nesse trabalho, apresentamos uma reflexão e apontamos a necessidade
da historiografia de superar uma visão do roteiro histórico do atraso, de se libertar de discursos
fundadores por meio da recusa em lhes conferir autoridade, e, principalmente, de renunciar em
ser produtora de uma memória coletiva convertida em propaganda e legitimação de governos e

741
Segundo o autor: "[...] na relação entre seus interesses e funções, os estudos históricos estão comprometidos
com um discurso político da memória coletiva. Ele torna a representação do passado uma parte da luta pelo poder
e reconhecimento. Aqui o pensamento histórico funciona como um meio necessário para a legitimação ou
deslegitimação de todas as formas de dominação e governo." RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões
relevantes de meta-história. In: História da Historiografia, n.2, 2009, p. 187.
742
RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
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determinados interesses. Pelo contrário, ela deve possibilitar a produção de argumentos


históricos a partir de apresentações históricas que permitam a compreensão do passado para os
sujeitos do presente em termos de contestação de verdades estabelecidas sobre o Espírito Santo,
de redefinição de expectativas e reavaliação de projetos de sociedade aos quais o conhecimento
histórico não pode se eximir de participar, sob o risco da perpetuação de um determinado
discurso sobre o desenvolvimento e o sentido da trajetória do Espírito Santo que se impõem.
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