Dilemas e Controvérsias No Campo Do Currículo

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SANTOS, Luciola L. P.

Dilemas e Controvérsias no Campo o Currículo:


Programa de Capacitação de Diretores – PROCAD. Secretaria de Estado de
Minas Gerais, 2000.

DILEMAS E CONTROVÉRSIAS NO CAMPO DO CURRÍCULO

1- Desenvolvimento no Campo do Currículo

Diferentes sociedades, nos últimos séculos, colocaram a escola como lugar


central para socializar as novas gerações nos valores, hábitos, atitudes e
conhecimentos produzidos e acumulados historicamente. Pode-se dizer que,
na instituição escolar, é sobretudo por meio do currículo que esse processo se
desenvolve.

Ao longo dos últimos anos, vários significados foram e são atribuídos ao


currículo, de acordo com diferentes concepções sobre o papel da educação
escolar. Para alguns, currículo significa o conjunto de conhecimentos
trabalhados pela escola ou sob sua supervisão, enquanto, para outros, o
currículo constitui as experiências de aprendizagem vivenciadas na escola.
Pode- se dizer que, no primeiro caso, a ênfase é posta em “o que aprender”, ou
seja, no conteúdo a ser trabalhado na escola. No segundo caso, o interesse
dos educadores está voltado para a forma como o currículo deve ser
organizado, dando ênfase à definição das experiências mais significativas a
serem desenvolvidas pela escola. É claro que essas duas orientações
representam apenas diferentes ênfases dadas a esses aspectos que se
apresentam, geralmente, interligados.

São tendências que marcaram o campo do currículo desde sua origem e


permanecem até nossos dias. Nas últimas décadas, no entanto, a produção na
área do currículo vem sofrendo grandes transformações. No início da década
de 70, um grupo de intelectuais, sobretudo ingleses e americanos, foram
responsáveis pelas mudanças no rumo dos estudos e pesquisas sobre
currículo. Esses acadêmicos, influenciados pelo marxismo, pelo neomarxismo,
pela Fenomenologia, pelo interacionismo simbólico, pela Etnometodologia, pela

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Psicanálise e, mais recentemente, pelos estudos culturais e teorias pós-
estruturalistas, levantaram algumas questões e desenvolveram análises que
redirecionaram as preocupações e interesses nessa área. Alguns desses
teóricos são bastante conhecidos no Brasil e muito citados na literatura sobre
currículo, como, por exemplo, Basil BERNSTEIN e Michael YOUNG (ingleses)
e Henry GIROUX e Michael APPLE (americanos).

A preocupação – de caráter prescritivo – com orientações que facilitassem o


desenvolvimento dos currículos escolares é substituída, a partir do trabalho
desses grupos, pelo interesse na compreensão do papel do currículo no
processo educacional.

Até então, associava-se o baixo rendimento do aluno a aspectos


socioeconômicos e culturais. Acreditava-se que a idéia de que as crianças das
camadas populares apresentavam baixo desempenho escolar por questões
ligadas ao seu processo de socialização: problemas relacionados ao
desenvolvimento da linguagem, tipo de experiências vivenciadas, falta de
acesso aos bens culturais, entre outras. Na Inglaterra, o movimento como Nova
Sociologia da Educação volta-se para o estudo do currículo. Michael YOUNG,
em um livro lançado em 1971, intitulado “Conhecimento e Controle”, levanta
importantes questões sobre a educação escolar, mostrando a necessidade de
se analisarem os pressupostos que comandam os processos de seleção e
organização dos conhecimentos trabalhados pela escola. Abre-se, assim,
espaço para questionar os estudos que atribuem o rendimento insatisfatório
dos alunos à falta de condições para a aprendizagem. Se as crianças não
aprendem o que a escola ensina, não seria esse fato decorrente da
inadequação dos próprios currículos escolares? Parte dos estudos sobre
currículo passa, então, a discutir a forma como eles são organizados e
trabalhados nas escolas.

As pesquisas e estudos da década de 70 mostram, ainda, que o que é


ensinado na escola é selecionado dentro de um universo amplo de
possibilidades. No interior da cultura, encontram-se o conhecimento científico,
o conhecimento artístico e literário, o conhecimento do senso comum, enfim,

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diferentes formas de saberes e de saber fazer. Por que, nesse conjunto de
possibilidades, a escola privilegia determinados tipos de conhecimentos em
detrimento de outros? Reconhecendo que o conhecimento escolar é resultado
de um processo de seleção, é necessário, então, entender-se os critérios que
orientam essas escolhas.

Os estudos sobre currículos têm mostrado que os saberes acadêmicos têm


mais prestígio na educação escolar do que os saberes práticos. Mostram,
também, que a forma como os conhecimentos são selecionados, organizados e
trabalhados nas escolas refletem relações de poder e interesses de controle
social, presentes na sociedade. Em conseqüência, os currículos escolares,
como vêm sendo analisados em diferentes trabalhos sobre guias curriculares,
livros didáticos ou práticas de sala de aula, muitas vezes reforçam diferenças
de classe, gênero e etnia, entre outras.

Atualmente, os estudos voltam-se para a análise de como o currículo atua nos


processos de exclusão escolar. Investiga-se se ele facilita ou limita as
possibilidades de desenvolvimento do pensamento crítico, do interesse dos
alunos pelos diferentes aspectos da nossa cultura, como desenvolve
determinadas formas de raciocínio, em detrimentos de outras, enfim, como ele
está formando ou conformando a maneira de ser e de agir das pessoas no
processo de escolarização.

Ao lado disso, busca-se discutir propostas alternativas de currículo, que


permitam a inclusão dos alunos no sistema escolar. A discussão sobre a
construção de uma proposta curricular que torne a escola realmente
democrática, pela oferta de um ensino de qualidade, defronta-se com vários
dilemas que serão apresentados a seguir.

2- Currículo Acadêmico X Currículo Não Acadêmico

As denominações currículo acadêmico e não acadêmico representam


polarizações em torno de dois modelos de currículo que quase nunca
aparecem de forma pura. YOUNG (2000) afirma que o currículo acadêmico,

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centrado nas disciplinas hierarquicamente organizadas, está associado à
educação das crianças consideradas mais hábeis, e caracteriza-se pela ênfase
na comunicação escrita em oposição à oral, no individualismo, na abstração e
no afastamento da vida diária ou da experiência comum. Opostamente, o que é
denominado de currículo não acadêmico são aquelas propostas curriculares
que rompem com a estrutura disciplinar e com a organização seqüencial dos
conteúdos, trabalhando com temas que interagem diferentes áreas do
conhecimento, voltando-se para os processos de aquisição, e não para os
processos de transmissão de saberes. É valorizada, nessa abordagem, a
experiência de alunos e professores, suas vivências e inserção cultural.

Estudos como os de GOODSON (1998) e de YOUNG (1998) sobre o


denominado currículo acadêmico mostram preocupação com a compreensão
dos processos de definição ou de organização de propostas curriculares.
GOODSON (1998), discutindo alguns aspectos da teoria curricular, demonstra
como, na Inglaterra, na década de 40, dois tipos de currículos tornaram-se bem
nítidos. De um lado, um currículo para a classe média e para a elite, centrado
em um corpo de conhecimentos a serem transmitidos caracterizados pelo seu
caráter acadêmico, abstrato e descontextualizado. Segundo diz esse autor, os
documentos oficiais no campo da educação procuravam demonstrar que esse
tipo de currículo era “adequado àqueles alunos interessados em aprender,
capazes de compreender um argumento ou uma cadeia de raciocínios,
interessados em causas e em saber por que as coisas são como são”. Por
outro lado, para as crianças da classe operária era apresentado um currículo
voltado “para contextos práticos, com abordagem pedagógica e relacionado
com processos ativos”. De acordo com os documentos oficiais, esse currículo
seria mais apropriado para o grupo de crianças que lida melhor com coisas
concretas do que com idéias abstratas. Assim as crianças, como os currículos,
eram tratados como acadêmicos e não acadêmicos.

Analisando as discussões e as propostas curriculares da década atual,


percebe-se que a tensão entre currículos acadêmicos e não acadêmicos
continua presente. Em seu trabalho intitulado “Princípios para uma reflexão
sobre currículo”, Pierre BOURDIEU (1998) propõe sete princípios, os quais,

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segundo diz, estão fundamentados na reestruturação ocorrida na definição das
formas de transmissão de conhecimento, na necessidade de eliminação de
noções datadas e na importância da introdução, na escola, de novos
conhecimentos, provenientes tanto da pesquisa como das mudanças
econômicas, sociais e técnicas. Esses princípios podem ser resumidos pelas
seguintes proposições:

1. os conteúdos escolares devem ser constantemente revistos;


2. a educação deve dar prioridade ás áreas que desenvolvam o
pensamento;
3. os currículos devem ser flexíveis, mais apresentar conexão
vertical e horizontal entre os conteúdos;
4. pelo fato de o currículo ser compulsório, deve sempre ser
considerado a possibilidade de transmissão de seus conteúdos;
5. deve-se procurar melhorar a eficácia do processo de
transmissão, pela diversificação dos métodos de ensino;
6. a prática curricular deve ser direcionada para a integração do
trabalho de professores de diferentes disciplinas, superando
divisões existentes antes entre elas, já superadas pela evolução
das ciências;
7. os currículos escolares devem conciliar o universalismo
inerente ao pensamento científico com o relativismo ensinado por
meio das ciências históricas, refletindo a pluralidade de estilos de
vida e de tradições culturais.

A proposta de BOURDIEU revela que o autor defende a idéia de um currículo


acadêmico, modernizado pela introdução de novos conhecimentos e
habilidades necessárias à vida contemporânea, trazidos pelo desenvolvimento
cientifico e tecnológico e pelas inovações produzidas no campo pedagógico.

Os que criticam o currículo acadêmico acusam-no de haver sido sempre hostil


às crianças e adolescente das camadas populares. Em sentido contrário, os
que criticam os currículos não acadêmicos argumentam que eles não
possibilitam a esses estudantes o ingresso no mundo das ciências e do

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conhecimento, deixando-os em condições de desvantagens perante aqueles
que pertencem às elites, cujos pais, principalmente no que se refere ao ensino
médio. Optam por escolas de currículo mais acadêmico.

No campo do ensino das diferentes disciplinas, tem-se verificado que os


currículos baseados na transmissão de conhecimentos têm obtido baixos
resultados. Atualmente, influenciados pela Psicologia Cognitiva, em suas
diferentes matizes, e ainda pela Psicanálise e pela teoria das representações
sociais, os estudos nesses campos têm-se preocupado com os processos de
aquisição do conhecimento, considerando aspectos como concepções
alternativas, senso comum, experiências pessoais e coletivas, emoções e
desejos como elementos constituintes dos processos de aprendizagem. Além
disso, tem-se discutido, no campo da produção do conhecimento escolar, a
idéia de que a difusão, sobretudo pelos meios de comunicação digitalizados,
está levando ao desenvolvimento de novas capacidades mentais, cognitivas e
afetivas.

Nesse contexto, é criticado, hoje, o chamado modelo linear de currículo, que


prescreve uma trajetória de aprendizagem a partir de uma ordenação dos
conteúdos em uma seqüência definida como a melhor. Opondo-se essa matriz,
advoga-se a idéia de que o currículo pode ser concebido a partir da metáfora
da rede hipertextual, a qual estabelece um campo de conservação que oferece
diferentes possibilidades e percursos de aprendizagem.

3- Currículo Por Disciplinas X Currículo Integrado

O modelo do currículo difundido ao longo deste século tem sido o modelo


disciplinar. Nele, os conteúdos escolares são considerados, geralmente, como
uma transposição de campos ou disciplinas acadêmicas para a escola, sob a
forma de áreas de estudo, disciplinas ou matérias escolares. Nessa visão, o
conhecimento escolar é uma versão didatizada do conhecimento científico, ou
seja, mediante princípios pedagógicos, o conhecimento científico é adaptado
ao nível e interesse dos alunos, transformando-se em conhecimento escolar.

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Estudos no campo da história social das disciplinas escolares buscam analisar
as condições de emergência e desenvolvimento das diferentes disciplinas que
integram os currículos do ensino básico. Trabalhando nessa área, Ivor
GOODSON demonstra que as disciplinas escolares são colocadas no currículo
de acordo com interesses práticos. Diante de certas necessidades sociais,
diferentes conteúdos passam a integrar os currículos escolares, como, por
exemplo, a educação sexual, que esta sendo incluída no currículo de muitas
escolas devido ao aumento das doenças sexualmente transmissíveis.
GOODSON mostra que, no seu processo de evolução, visando a alcançar
maior prestígio, as disciplinas escolares tornam-se mais acadêmicas, incluindo
conteúdos mais abstratos, de natureza conceitual. Exemplo disso ocorreu com
a chamada “ciência das coisas comuns” ensinada, no início do século XIX, às
classes operárias na Inglaterra. Essa disciplina trabalhava com o conhecimento
científico de forma contextualizada, partindo da cultura e da experiência das
crianças do povo, estimulando o pensamento, o raciocínio e a compreensão
dos fenômenos estudados. Com o passar dos anos, essa forma de ensinar
ciências foi relegada, e a disciplina “ciência” ensinada na escola passou a
constituir um bloco de conhecimentos abstratos, mais próximo das ciências
desenvolvidas nos laboratórios.

A organização disciplinar dos saberes escolares tem sido duramente criticada,


uma vez que o currículo acaba por constituir um conjunto de conteúdos
justapostos, trabalhando-se com o conhecimento de maneira fragmentária e
pouco significativa para as crianças e adolescentes. Esse tipo de currículo
coloca a escola de costas para o mundo, uma vez que não se vincula às
experiências concretas dos alunos. Neste tipo de currículo, há pouco espaço
para o desenvolvimento, nos estudantes, do espírito de iniciativa, do
pensamento crítico e do gosto pela pesquisa autônoma. Nele, os alunos não
captam ligações que podem ser feitas entre as diferentes disciplinas,
terminando por concentrar seus esforços na memorização de um volume
grande e desarticulado de informações.

O currículo integrado busca trabalhar com situações contextualizadas,


integrando conhecimentos de diferentes áreas. Pode se dizer que, desde o

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começo do século, estão sendo elaboradas propostas curriculares, como o
método de projetos e o ensino por solução de problemas, que compartilham
dessa visão. Nessas propostas, o ensino parte de uma situação ou problema
prático no quais os alunos trabalham, integrando conhecimentos de deferentes
áreas, para solucioná-los.

Os currículos integrados permitem que os estudantes trabalhem com


conteúdos culturais relevantes, enfrentando a discussão de questões que não
podem ser abordadas nos limites de uma única disciplina. Nesse tipo de
currículo privilegiam-se um ensino em torno de problemas reais e questões
práticas, que estimulem e a curiosidade dos estudantes, e a formulação de
respostas criativas e inovadoras. Os problemas abordados em um currículo
desse tipo são trabalhados levando-se em consideração fatores de diferentes
ordens e preparando melhor os jovens para vencerem os desafios do mundo
contemporâneo. Há uma similaridade entre a forma assumida nesse tipo de
desenvolvimento curricular e a maneira como enfrentamos/solucionamos
problemas reais de ordem pessoal ou profissional.

Outra vantagem que os currículos integrados apresentam é que eles favorecem


a “colegialidade” nas instituições escolares, levando os professores a
trabalharem em equipe e de forma cooperativa, eliminando as hierarquias
escolares baseadas no prestígio diferenciado das diversas disciplinas, e
substituindo-as por relações mais horizontais, em que predominam as trocas, o
respeito mútuo e o estabelecimento de objetivos comuns.

No entanto, as escolas continuam a trabalhar com o currículo disciplinar, uma


vez que o currículo integrado supõe ruptura com as formas tradicionais de
ensino, exigindo trabalho coletivo e criatividade. Além disso, os professores –
exceto os das séries ou dos ciclos iniciais-, são formados dentro de uma área
específica de conhecimento, a qual buscam preservar, na defesa de seu
território de trabalho. Contudo as experiências realizadas e bem sucedidas com
currículos integrados mostram que, para os próprios professores participantes
desses projetos, o ensino passa a ser um campo de realizações, novas

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aprendizagens, renovando seu interesse pelo trabalho, deixando de constituir
uma sucessão de tarefas repetitivas, monótonas e cansativas.

4- Universalismo X Multiculturalismo

No Brasil, na década de 80, destacaram-se, no campo da pedagogia crítica,


duas tendências, com concepções próprias a respeito do currículo escolar e de
suas relações com a cultura do aluno e com a cultura mais ampla. Uma delas
ressalta a necessidade de que a escola socialize os conhecimentos
historicamente acumulados, o que, de certa forma, significa tornar a escola
responsável pela popularização do conhecimento científico. A outra enfatiza a
necessidade de que a escola trabalhe com a cultura das camadas populares,
rompendo a relação existente entre a cultura escolar e a cultura daqueles que
detêm o poder na sociedade. A primeira tendência denominada “Pedagogia
Crítico-Social dos Conteúdos”, enfatiza que a escola deve trabalhar com a
socialização dos conhecimentos que fazem parte da chamada cultura legítima.
A outra conhecida como “Educação Popular”, defende a valorização da
experiência do aluno como forma de dar voz às culturas silenciadas pela
escola, fortalecendo os grupos que estão em desvantagem social.

A “Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos” pode ser identificada com o que é


chamado, no campo da Sociologia do Currículo, de universalismo e de
legitimismo, enquanto a “Educação Popular” compartilharia das idéias do
multiculturalismo.

Para a posição universalista, existem saberes, conhecimento e valores que são


universais e transculturais, os quais fazem parte do patrimônio cultural da
Humanidade e devem ser socializados pela escola. Entende-se que existe uma
cultura legítima, cujo acesso é condição necessária para uma integração e uma
participação efetiva do sujeito no mundo social.

Para os que apóiam o multiculturalismo, a escola trabalha apenas com uma


parcela restrita da experiência humana, ou seja, com os saberes, valores e
atitudes que fazem parte do que é denominada versão autorizada ou legítima

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da cultura. Nesse processo, a cultura dos diversos grupos sociais é
marginalizada no processo de escolarização e, mais do que isso, essa cultura é
vista como algo a ser eliminado pela escola, devendo ser substituída pela
versão autorizada da cultura, a qual tem estado presente, geralmente, em
todas as tarefas do sistema de ensino.

Para o multiculturalismo, o currículo escolar deve-se englobar as experiências


culturais dos diferentes grupos que integram a sociedade. Refuta-se a idéia de
que existam conhecimentos universais, uma vez que se designam como tais os
conhecimentos que fazem parte da cultura de um grupo social específico.
Assim, o currículo escolar deve privilegiar a diversidade cultural, organizando a
partir das múltiplas experiências e significados produzidos pelas diferentes
culturas. Da mesma forma, os chamados multiculturalistas põem em questão a
validade ou universalidade dos conteúdos científicos e teóricos, alegando que
não existe um critério justo, a partir do qual se possam considerar algumas
obras humanas mais importantes ou significativas que outras. Para eles, as
hierarquias existentes no interior das manifestações culturais refletem
interesses e relações de poder presentes na sociedade.

Por um lado, os que advogam a posição universalista argumentam que a


escola é o único espaço que permite às crianças das camadas populares
acesso ao conhecimento científico, às obras literárias clássicas, enfim, à
produção cultural mais erudita, constituindo importante ferramenta para a
participação em todas as esferas sociais. Por outro lado, os que defendem o
multiculturalismo consideram que os currículos universalistas trabalham com a
idéia de que as crianças das camadas populares são carentes culturalmente e
que o conhecimento deve suprir o déficit cultural desses alunos. Afirmam que a
posição universalista tende a atribuir um valor negativo aos saberes, as
práticas, aos gostos e ao modo de falar das camadas populares.

Argumentam, ainda, que os currículos universalistas consagram as hierarquias


sociais; valorizam, em suas práticas, o esforço, o amor ao trabalho, buscando,
por meio disso, melhorar as condições sociais dos alunos. Os que colocam a
favor do multiculturalismo argumentam que a falta de compreensão e a

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desvalorização da cultura do aluno tem-se mostrado uma das causas centrais
do fracasso escolar.

Claude GRIGNON, em um artigo intitulado A escola e as culturas populares:


pedagógicas legitimistas e pedagógicas relativistas, publicado na revista Teoria
e Educação nº 5, em 1992, afirma que as pedagogias legitimistas, ao criarem a
ilusão de que todas as crianças têm, em princípio, oportunidades de ascensão
e mobilidade social, que seria conquistada pela posse da cultura autorizada,
acabam por excluir os alunos das camadas populares, por desconhecerem o
universo material e simbólico vivenciado por essas crianças. Da mesma forma,
o autor critica posições relativas (multiculturalistas), que propõem, para as
camadas populares, uma educação escolar voltada para o lúdico, a
espontaneidade e a criatividade popular, reservado, apenas para as elites, uma
educação que trabalha com abstração e capacidade de raciocínio. Para ele,
esta é uma posição populista, que não sabe fazer uma leitura correta da cultura
popular, atribuindo-lhe valores e significados de viés etnocêntrico.

5- Ensino Propedêutico X Formação Profissional

Tem sido muito discutido, no campo da educação, como a escola deve


responder as grandes transformações ocorridas em todos os setores do mundo
contemporâneo.

Emile DURKHEIM, em cursos dados na França, antes da Primeira Guerra, e,


mais tarde, transformados em livros, traduzido para o português, em 1995,
intitulado a Evolução Pedagógica, já colocava a polêmica relativa ao caráter do
ensino secundário – este nível de ensino deveria ser de caráter propedêutico
ou profissionalizante? O autor inicia sua análise mostrando como, desde o
começo do século, havia uma discussão sobre a orientação do currículo do
ensino secundário. Deveria este contemplar mais os Estudos Clássicos,
História e Letras, ou deveria voltar-se, predominantemente, para os estudos
das Ciências da Natureza? DURKHEIM propõe a conjugação desses tipos de
conhecimentos considerando, no entanto, a necessidade de os estudos
clássicos modernizarem-se, tornando-se um instrumento para o conhecimento

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da sociedade e da realidade nas quais os homens estão inseridos. O autor
mostra que o ensino secundário, naquele período, não oferecia uma formação
profissional, posição que ele ratifica. Considera, contudo, que, nesse nível de
ensino, os alunos devam desenvolver habilidades e competências intelectuais,
a partir das quais possam ser introduzidos no ensino das diferentes profissões.

O valor social dos conteúdos curriculares tem variado ao longo da História, ora
dando ênfase às disciplinas do campo das Humanidades, ora enfatizando
aquelas disciplinas que integram o campo das Ciências Físicas, Biológicas e da
Matemática. Essas oscilações estão relacionadas com interesses econômicos,
sociais e culturais. Muitos devem lembrar-se de como o lançamento do Sputnik
desencadeou reformas curriculares voltadas, sobretudo, para o ensino das
Ciências Físicas e Biológicas e da Matemática. Essas reformas foram iniciadas
nos Estados Unidos, e dali se irradiou, chegando até o Brasil. O que a nação
americana propunha era a melhoria do ensino, como uma estratégia para a
formação de cientistas capazes de vencer a antiga União Soviética na corrida
espacial.

Nesse quadro, caberia perguntar: atualmente, quais são os conteúdos


curriculares mais adequados para o ensino, que saberes correspondem às
necessidades e interesses dos estudantes que hoje freqüentam a escola?

Estão em curso, hoje, uma profunda reestruturação produtiva e uma


abrangente reorganização da sociedade, ancoradas no uso intensivo e em
larga escala da microeletrônica e da eletrônica digital. Com esse arsenal
tecnológico, a produção em massa é substituída pela especialização flexível.
Novas idéias podem ser transformadas em novos produtos, e a produção pode
ser feita de acordo com as demandas do cliente, exigindo perícia e
flexibilidade, tanto da máquina quanto do operador.

Essas transformações, sem dúvida, mudam as concepções acerca do perfil do


trabalhador, tendo, conseqüentemente, um grande impacto na maneira de
conceber a educação escolar. Em decorrência disso, assiste-se a uma
intensificação das reformas curriculares, voltadas para o desenvolvimento, no

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aluno, de habilidades tais como a criatividade, a autonomia, o desenvolvimento,
do pensamento divergente e a capacidade de comunicação, competências
consideradas fundamentais para o trabalhador.

A história do currículo vem sendo marcada pela luta de interesses, muitas


vezes conflitantes e que revelam posturas diferentes quanto à educação
escolar. Raymond WILLIAMS examina as disputas em torno do currículo
durante o século XIX, encabeçados por três grupos distintos: os educadores
públicos, os humanistas tradicionais, e os industrialistas. O primeiro grupo era a
favor do ensino público de massa, enquanto o segundo grupo preconizava o
ensino em temos de uma cultura mais desinteressada, desvalorizando os
saberes científicos e técnicos. Já o terceiro grupo lutava por um currículo de
caráter mais utilitarista voltado para as necessidades do mundo do trabalho.

Até hoje, tais disputas continuam presentes no campo do currículo. Em síntese,


pode-se dizer que os educadores consideram a educação como um processo
de formação humana, enquanto grupos que consideram a educação de um
ponto de vista mais instrumental tende-se a relacionar o currículo com as
demandas econômicas, ligada ao mercado de trabalho.

Pode-se argumentar que o currículo que permita o desenvolvimento do


pensamento divergente, do pensamento reflexivo e crítico, e ofereça formas e
materiais de ensino diversificado possibilitam o desenvolvimento de diferentes
habilidades intelectuais e de vivências de práticas variadas. É um tipo de
currículo que prepara o aluno tanto para a solução de seus problemas de vida
como para um melhor desempenho profissional.

6- Formação Humana X Competências

Hoje, grande parte das propostas curriculares coloca as “competências”, a


serem desenvolvidas no interior de um curso, de um ciclo de ensino ou de uma
disciplina como parte integrante e fundamental do currículo. Essas
competências correspondem, pois, aos objetivos de serem alcançados naquela
etapa do ensino ou naquele curso.

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Segundo lembra PERRENOUD (2000), competência pode ser considerada
como a “capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação,
apoiando-se em conhecimentos, mais sem limitar-se a eles.” A competência,
afirma esse autor, não consiste na aplicação pura e simples de conhecimentos,
modelos de ação ou procedimentos; inclui conhecimentos teóricos ou
metodológicos, formas de atuar e atitudes. Para defini-las, é preciso relacioná-
las a um conjunto de problemas ou tarefas e identificar a natureza dos
esquemas de pensamentos ou de recursos cognitivos que serão mobilizados
nessas situações.

São consideradas competentes as pessoas que, diante de uma situação inédita


e complexa, resolvem-na com segurança e rapidez e de forma mais adequada
do que uma outra pessoa, que tivesse o mesmo grau de conhecimento da
primeira, mais não soube mobilizar esses conhecimentos de forma tão eficaz. É
que a competência, segundo diz PERRENOUD, baseia-se não apenas em
conhecimentos, mais em esquemas heurísticos ou análogos próprios de um
campo e também em processos intuitivos. Além disso, supõe atitudes e
posturas mentais, curiosidades, paixão, busca de significado e a conjugação de
intuição com a razão e da cautela com a audácia, que são desenvolvidas tanto
em processo de formação, bem como mediante a experiência.

A definição das competências consiste, pois, em colocar de forma operacional,


e não genérica, os objetivos do ensino. PERRENOUD lembra que, quando se
define de forma geral ou de maneira abstrata, o que se espera de um
profissional, não fica claro como ele desenvolverá suas ações. Dessa forma, a
definição da competência explicita a orientação que assumira a prática ou
atividade desenvolvida.

Uma competência mais geral ou mais abrangente inclui uma série de outras
competências mais específicas que podem ser consideradas como
componentes da primeira. Para o desenvolvimento de competências,
PERRENOUD, recomenda um ensino baseado na solução de problemas, no
desenvolvimento de projetos e a adoção de um contrato didático em que o
professor valorize a cooperação entre os alunos, aceite os erros como parte do

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processo de aprendizagem e incentive a experimentação, para trabalhar nessa
perspectiva o professor deve adotar um planejamento flexível, uma vez que
para desenvolver competências, o mais importante é trabalhar com um
pequeno número de situações fecundas, do que abordar de forma superficial,
um grande número de assuntos, com a preocupação de vencer os programas
escolares.

Como pode ser visto o ensino por competências, está bem próximo ao ensino
por objetivos, preconizado nas décadas de 60 e 70, como uma maneira de
tornar o ensino mais eficiente. A diferença está em que os objetivos
educacionais estavam mais voltados para a aquisição de conhecimentos e de
habilidades cognitivas e, por isso, estavam mais relacionados a um
desenvolvimento mais rígido e sistemático do currículo escolar. De forma
diferente, as competências se voltam mais para ações, que envolvam
conhecimentos teóricos e práticos, habilidades e atitudes relacionadas à
atuação em situações definidas. Por exemplo, hoje se fala muito em
competência em saber utilizar novas tecnologias em determinadas tarefas ou
atividades.

Pode-se dizer que o ensino por competência representa um avanço em relação


ao ensino por objetivos, sobre tudo por reconhecer que as competências não
resultam apenas da aplicação de conhecimentos para a solução de problemas,
mais que envolvem uma série de outros tipos de saberes, como o saber prático
e também atitudes e valores morais.

O que tem sido criticado, em relação ao ensino por competências, é o caráter


instrumental que acaba assumindo a educação, quando passa a colocá-las
como objeto central no processo ensino-aprendizagem. Quando se pensa na
educação em termos de formação humana, não é possível reduzi-la, apenas, a
posse de uma série de competências. Se os valores éticos, a sensibilidade, a
criatividade, o espírito crítico estão, de alguma forma, para autores como
PERRENOUD, implicados no desenvolvimento das competências, não são
eles, nesta abordagem, os objetivos finais da educação.

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Alguns críticos do ensino por competências relacionam a emergência desse
movimento, que, aliás, vem ocorrendo em vários países do mundo, ao
crescimento do controle sobre o ensino, realizado por meio dos grandes testes
nacionais, como ocorre no chamado “provão”, realizado nos cursos superiores,
ou sistema de Avaliação de Educação Básica (SAEB), que buscam aferir os
resultados do ensino, em um determinado nível ou curso. A preocupação dos
educadores, que se posicionam contra esse tipo de avaliação, é que se
organize e desenvolva o ensino, em função desses instrumentos passando a
predominar a preocupação com o produto, e não com o processo de
aprendizagem. Além disso, tais testes exigem que o currículo tenha um
determinado percurso, dificultando o atendimento às diferenças regionais e
locais, bem como as particularidades de cada estabelecimento de ensino, de
cada sala de aula e dos diferentes alunos.

Os educadores críticos defendem a idéia de que os alunos devem adquirir


conhecimentos e desenvolver diferentes habilidades intelectuais, valores
morais e atitudes em relação aos diferentes problemas da realidade. Da
mesma forma, consideram que seja importante que os estudantes sejam
“competentes” para lidar com problemas da vida prática e do mundo do
trabalho. Para isso, defendem um currículo em que os estudantes vivenciam
situações diversificadas, ricas em desafios intelectuais e realidade cultural,
tornando o processo de aprendizagem significativo e dinâmico. Em síntese, a
resistência que existe em relação ao ensino por competência tem origem no
temor de que prevaleçam, na educação, interesses instrumentais, voltado mais
para a eficiência do ensino que para o processo de formação do cidadão
crítico, que deve ser o objetivo central da educação escolar.

7- Conclusões

Em primeiro lugar, é importante destacar que o currículo, como um campo de


produção de significados, não apenas socializa os estudos nos conhecimentos
trabalhados nas diversas disciplinas, mas também forma personalidades e
subjetividades, ao criar predisposições, sensibilidades e formas de raciocínio. É
necessário, então, considerar que os conteúdos e métodos de ensino, ao

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trabalharem com determinados vieses, privilegiados certos tipos de
conhecimentos e formas de ensinar, acabam por reproduzir as estruturas da
vida social, com suas assimetrias, e desigualdades. Nesse contexto. Ao invés
de programas abarrotados de conteúdos, a escola precisa selecionar temas
relevantes, articulados com as experiências das crianças e dos adolescentes,
contendo-o com a vida e com a realidade social. Assim, no currículo escolar,
não deve ser apenas valorizando o domínio de conhecimentos, mas, acima de
tudo, é importante que ele esteja voltado para formação de habilidades
intelectuais, valores e atitudes que garantam a formação dos estudantes como
pessoas bem equipadas para resolverem seus problemas pessoais e os da
comunidade em que vivem.

Em segundo lugar, é preciso reforçar a idéia de que a construção do currículo


constitui um processo de seleção no interior da cultura, processo esse que,
como foi visto, implica inclusões e exclusões. As inclusões legitimam
conhecimentos, valores, formas de pensamentos e conduta, da mesma forma
que as exclusões podem significar desqualificações e marginalização de
determinados saberes, que produzem e ampliam as desvantagens de
determinados grupos sociais e culturais.

Em terceiro lugar é necessário que a escola esteja sempre acompanhando e


analisando as transformações econômicas, sociais e culturais que vem
ocorrendo na sociedade. Merecem destaque, no novo cenário mundial, as
novas tecnologias do texto, da imagem e do som, ou seja, uma penetração
crescente da mídia eletrônica em todos os espaços da vida social. Nesse
contexto é importante que uma proposta curricular conseqüente considere a
emergência de um novo tipo de aluno, com diferentes interesses, capacidades
e necessidades, é importante ainda, que a escola estabeleça relações com a
cultura da informação, de tal maneira que a pedagogia se fortaleça, garantindo
processos de escolarização mais compatíveis com a realidade e com o jovem
do mundo contemporâneo.

O currículo, assim construído, proporciona aos estudantes contatos com


diferentes elementos da produção cultural humana, o que significa a inclusão

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dos saberes práticos, da produção científica, dos produtos da mídia e da
informática, dos filmes, das peças de teatro, das obras literárias, bem como dos
diferentes artefatos e da produção artística das mais diferentes culturas.
Abrange, ainda, a formação de valores éticos, de pensamentos críticos e de
senso prático, da capacidade de resolver problemas, participar da vida social e
política, encontrar formas de realização pessoal no mundo do trabalho e no
lazer, além da consciência do próprio corpo. Um currículo não poderá estar
organizado, exclusivamente, ao redor das disciplinas tradicionais, mas deverá
incluir outras experiências da cultura humana, desenvolvidas mediante
atividades bem planejadas, que privilegiem a produção e a criatividade do
estudante.

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