Lógica Hermenêutica EC 2a

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"LÓGICA HERMENÊUTICA"?!

ode-se falar de uma lógica hermenêutica? Para falar a verdade, o que


+ sei é que o termo só foi mesmo empregado por Hans Lipps em seus
Untersuchungen zu einer hermeneutischen Logik, de 1938. A obra foi in-

1. Conferência dada no Instituto Internacional de Filosofia em 1978, cujo texto foi

publicado em Contemporary Philosophy. A new survey, ed. G. Floistad, Martinus Nijhoff,


1981; v. 1: Philosophy of language. Philosophical logic/La philosophie contemporaine. Chro-
niques nouveiles; t. 1: Philosophie du langage. Logique philosophique, p. 179-223. Ricoeur
mergulha numa leitura sistemática das principais pesquisas relativas à hermenêutica filosó-
fica, assim como a suas críticas. Contrário a seus hábitos, ele cita, com comentários bem
abundantes, as referências bibliográficas (alemãs, na maioria) dessa literatura às vezes bem
recente. Como neste livro, os comentários de Ricoeur estão marcados por um (N. do A.). A
eles acrescentamos sistematicamente os editores, omitidos por ele. Nossos outros acréscimos,
a respeito principalmente das referências das traduções francesas existentes, estão marcados
por (N. dos E.) eaparecem entre colchetes quando inseridos aos comentários de Paul Ricoeur.
As notas explicativas sem menção particular foram redigidas pelos editores.
2.H. Lipps, Untersuchungen zu einer hermeneutischen Logik, Klostermann, 1938,?1959.
Citação in Seminar. Philosophische Hermeneutik, ed. H.-G. Gadamer, G. Boehm, Suhrkamp,
1976, p. 286-316. Otto F. BoLLNow fala de suas relações com a "filosofia da vida" de G. Misch
em Zum Begriff der hermeneutischen Logik, in Hermeneutische Philosophie, ed. O. Póggeler,
Nymphenburger, 1972, p. 100-122. (N. do A.) [O livro de H. Lrpps foi traduzido por S.
Kristensen, com o título Recherches pour une logique herméneutique (Vrin, 2004). No artigo
intitulado Georg Misch und die Universalitát der Hermeneutik. Logik oder Rhetorik?
(Dilthey-Jahrbuch, 11 [1997-1998] 48-63), Jean GrONDIN observa que, ao contrário do que
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"LÓGICA HERMENÊUTICA?
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 - HERMENÊUTICA

encerrá-la nela". O arranjo era triplo. Tratava-se, em primeiro lugar, de


terrompida, em primeiro lugar, pela morte prematura de Lipps, mas
defender a autonomia das ciências do espírito em relação às ciências da
principalmente porque a ruptura representada pela radicalização da her-
natureza, depois de estabelecer a diferença entre seu procedimento prin-
menêutica promovida por Heidegger fez que ela parecesse imediatamente
muito ligada à Lebensphilosophie de um Georg Misch, da qual precisamen- cipal, a compreensão e a explicação em uso nas ciências da natureza
—
finalmente, de fundamentar a diferença epistemológica numa propriedade
te a hermenêutica filosófica se afastava de forma decisiva. E, no entanto,
observa-se um retorno a Lipps, relacionado com a tendência geral da primordial da vida espiritual, ou seja, o poder do sujeito de se deslocar
hermenêutica pós-heideggeriana de refletir sobre as condições de possibi- para uma vida psicológica diferente*. A hermenêutica de Dilthey inscrevia-
se, portanto, indubitavelmente no debate epistemológico, na medida em
lidade de seu próprio discurso e com isso se situar em relação às preocupa-
queeraa própria cientificidade das ciências hermenêuticas que estava em
ções lógicas que aparecem nas outras correntes filosóficas contemporâneas.
Meu ensaio focará precisamente, nos parágrafos 3 e 4, esse duplo esforço jogo no triplo plano da determinação de seu campo, do estabelecimento
de seu procedimento principal e do fundamento último de sua especifi-
da filosofia hermenêutica dos últimos anos para refletir [sobre] seu próprio
cidade. A última questão marcava a passagem da epistemologia, no sentido
estatuto epistemológico, mas antes lembraremos a posição filosófica do
preciso do termo, para uma interrogação transcendental de tipo kantiano
problema criada por Heidegger e desenvolvida por Gadamer".
que subordinava a pesquisa metodológica à investigação das condições
de possibilidade.
Ora, é precisamente com esse modo de questionamento que a filosofia ad
1. Radicalização antilógica?
hermenêutica de Heidegger parece romper. E isso também de três maneiras.
Ela não se interessa, de início, pelo menos diretamente, pela justificação
À primeira vista a radicalização da hermenêutica feita por Heidegger
da especificidade das ciências do espírito. Seu questionamento é ontológico:
marca um distanciamento das questões epistemológicas que haviam
nós que nos questionamos sobre o ser, que tipo de ser nós somos? Desde
dominado o período de Dilthey*. Com este ainda era possível situar a
a introdução de Sein und Zeit [1927], fica clara a radicalização não epis-
hermenêutica no plano da discussão epistemológica, sem, contudo, poder
temológica da questão". Se o questionamento inicial é sobre o ser que
somos — o Dasein —, lugar certo para essa questão
é porque é de fato o
Ricoeur afirma, o termo hermeneutische Logik (lógica hermenêutica) já aparece em G. MiscH fundamental. O analítico do Dasein aparece no começo apenas a título
—
ad

(em Lebensphilosophie und Phiúnomenologie. Eine Auseinandersetzung der Diltheyschen


Richtung mit Heidegger und Husserl, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1930,"1967, p. 56). "preparatório". A questão do sentido questão hermenêutica por exce-
(N. dos E.)] lência —
é a do sentido do ser. Assim, uma questão de origem aristotélica
3. Como uma pequena apresentação das abordagens de Dilthey e de Heidegger, cf. P.
suplanta uma questão de origem kantiana*. Segunda linha de ruptura: a
Ricogur, La tâche de P"herméneutique: en venant de Schleiermacher et de Dilthey, in Du
texte à Í "action. Essais d'herméneutique II, Seuil, 1986, p. 88-100. questão da compreensão
—
implícita na questão do sentido do ser ela —
4. Além das últimas publicações de inéditos do próprio Heidegger e do começo da
trabalhos
publicação da Gesamtausgabe (1975-; 4 volumes já publicados cm 1978), existem os 5. Cf. P Ricoeur, La tâche de Pherméneutique, in Du texte à Paction, p. 82.
dedicados à interpretação de sua filosofia: O. PôcGELER (Hrsg.), Heidegger. Perspektiven
6. "Ciências do espírito" é a tradução vigente de Geisteswissenschaften (vs Naturwis-
zur Deutung seines Werkes, Kiepenheuer und Witsch, 1969; Ip., Hermeneutische Philosophie
! senschaften, "ciências da natureza"), que Ricoeur desloca para mais longe com "ciências
(textos de Dilthey, Heidegger, Gadamer, Ritter, Apel, Habermas, Ricoeur, Becker, Bollnow); históricas" e que poderíamos identificar, mutatis mutandis, como "ciências humanas".
E. TucenDHAT, Der Wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger, De Gruyter, 1967; H.-G.
7. M. Herpeccen, Sein und Zeit, Klostermann, 1977, p. 3-53 (Gesamtausgabe, v. 2). Fa-
GADAMER, Martin Heidegger und die Marburger Theologie, in Heidegger. Perspektiven zur
zemos agui referência à tradução francesa de E. Martineau: Être et temps, Authentica, 1985.
Deutung seines Werkes [trad. J. Grondin, Les chemins de Heidegger, Vrin, 2002, p. 49-63. 8. Num contexto semelhante, Ricoeur dirá, em La tâche de herméneutique, que a
(N. dos E.)]1.). KockELMANS (ed.), On Heidegger and Language, Northwestern University
ontologia impõe-se à epistemologia (in Du texte à Vaction, p. 89).
Press, 1972. (N. do A.)
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ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 — HERMENÊUTICA "LÓGICA HERMENÊUTICA"?

própria não é uma questão epistemológica, pelo menos a título primário. Esta é — grosseiramente esboçada — a motivação antiepistemológica
Compreender é um traço distintivo do ser que nós somos, uma proprie- e antilógica da hermenêutica radicalizada de Heidegger em Sein und
dade do Dasein enquanto ser no mundo. A interpretação é apenas o de- Zeit.
senvolvimento da compreensão, na medida em que compreender alguma E, no entanto, na fase pós-heideggeriana que nos interessa aqui, a
coisa como alguma coisa já é interpretá-la. A interpretação, por sua vez, hermenêutica radicalizada não iria escapar de um questionamento de tipo
articula-se num discurso que determinae esclarece as articulações de uma epistemológico, visto que se pode e se deve interpelar a respeito da condição
situação e de uma compreensão que inicialmente estavam ligadas a um de possibilidade própria do discurso da hermenêutica e situá-lo em relação
nível mais primordial do que o discurso. A pretensão de começar pelo ao das filosofias com pretensão lógica e epistemológica, principalmente o
discurso expresso em proposições e, portanto, de se instalar dentro de um da filosofia analítica contemporânea.
logos apofântico é uma falta de compreensão muito grave, contra a qual É preciso confessar que essa reflexão de segundo grau é abordada de
luta a hermenêutica". (O primeiro meio de articulação é o próprio ser-no- forma superficial em Sein und Zeit. Contudo, seus primeiros contornos
mundo, e o encadeamento entre situação-compreensão-interpretação e aparecem em todas as passagens em que está em jogo o) tipo de verdade
discurso fundamenta toda investigação no nível unicamente proposicional. hermenêutica. Assim, lemos no parágrafo 7 que a hermenêutica é uma
Terceira linha de ruptura: não é em termos de condições de possibilidade espécie de fenomenologia"; ora, quem diz fenomenologia diz logos daquilo
que finalmente se coloca o problema da compreensão. Numa perspectiva que se mostra. Temos então de situar o logos hermenêutico em relação ao
kantiana, interrogar-se sobre as condições de possibilidade é referir-se a logos apofântico, o da lógica proposicional. Se o logos apofântico articula-
um sujeito epistemológico portador das categorias que regulam a objeti- se a título primário dentro da proposição que diz alguma coisa enquanto
vidade do objeto. Ora, o que o analítico do Dasein revela não é um sujeito alguma coisa, qual é a relação existente entre o "enquanto" apofântico e o
de conhecimento, mas um ser jogado-projetando!!. Antes da relação de "enquanto" hermenêutico que, como se disse, constitui C momento da
o

conhecimento entre sujeito e objeto existe a implicação da compreensão interpretação, aquele que desenvolve e articula € momento da compreensão
o

na estrutura ontológica do ser-lançado e da antecipação. A designação (Sein und Zeit, $ 32 e 33)?! Aparece assim um novo conceito de verdade
melhor para essa modalidade de ser é a preocupação e não o conhecimento. que não é definido pelos caracteres da proposição, mas pela capacida-
Na preocupação se inclui, a título de pré-compreensão ontológica, a questão de reveladora implicada na relação entre compreensão e situação. Mas em
do ser que, como dissemos há pouco, precede a investigação nas ciências consequência disso a filosofia hermenêutica manifesta uma pretensão à
do espírito. verdade que pode ser comparada com a pretensão à verdade de tipo apo-
A subordinação da epistemologia à ontologia atinge seu ponto alto fântica, ou seja, proposicional.
quando a metodologia das ciências históricas é suplantada por um ques- A filosofia hermenêutica devia se questionar sobre si mesma de outra
tionamento sobre a historicidade do Dasein: antes que a história tenha um maneira no modo epistemológico. A caracterização do Dasein coloca em
objeto e um método, somos históricos de ponta a ponta. ação um tipo de discurso chamado analítico existencial. Duas coisas estão
envolvidas na expressão. Por um lado, longe de ser um retorno ao inefável
9.Cf. M. HeiDEGGER, Étre et temps, S 31, p. 118-121. e ao irracional, como algumas vezes foi erradamente afirmado, a filosofia
10. O)
logos apophantikos aristotélico que Heidegger discute no S 7 B de Étre et temps hermenêutica é analítica naquilo que age por distinção, determinação,
(p. 45s.) corresponde a um "enunciado proposicional" (R. RopriGo, Aristote, Veidétique et
la phénomeénologie, Millon, 1995, p. 191).
11.NoS$31 Heidegger explica a relação entre o ser-jogado e o projeto do compreender 12. Cf. ibid., p. 47.
(Btre et temps, p. 118-121). 13.Cf. ibid.p. 121-129. id
"LÓGICA HERMENÊUTICA"?
ESCRITOS | CONFERÊNCIAS 2 — HERMENÊUTICA

historicidade em relação à
relação (de onde a frequência do termo "estrutura" em Sein und Zeit e o alegação de uma anterioridade ontológica da
caráter fortemente didático da organização do livro). Por outro, esse ana- história-ciência. Ou, se se preferir, não se sabe como as condições de pos-
lítico é um analítico existencial na medida em que articula quase categorias sibilidade da busca ontológica também poderiam ser condições de possi-
— ser-no-mundo, situação, compreensão etc. —
que são para o Dasein o bilidade do conhecimento histórico objetivo. Parece que o movimento de
mas não a
que são as categorias para as coisas. Certamente, a distinção entre existen- recuperação do fundamento é realmente feito com Heidegger,
ciais e categorias apoia-se numa distinção ontológica entre várias moda- "segunda navegação"
—
para falar como Platão —, aquela que traria para
lidades de ser, 0)o ser que somos — o Dasein, o único que ex-iste, e as "coisas" a epistemologia das ciências humanas!*.

que são coisas subsistentes (vorhandene) ou estão ao alcance da mão, como


O mesmo deve ser dito sobre outra contribuição importante de Sein
utensílios (zuhandene)!*. Mas essa distinção entre modos de ser chega à und Zeit para a epistemologia das ciências humanas. Ela se refere menos
ao caráter histórico dessas ciências do que a seu estatuto textual. A her-
linguagem e ao discurso como diferença de categoria. Assim, a hermenêu- —
menêutica antiga nunca deixou de argumentar a respeito do círculo o
tica não pode se subtrair à questão kantiana das condições de possibilidade
de seu próprio discurso. famoso círculo hermenêutico —
em virtude do qual as antecipações de
Ela é trazida de volta de uma terceira maneira: mesmo sendo radical sentido do intérprete fazem parte integrante do sentido a interpretar".
a interrogação hermenêutica vinda de Heidegger, ela não pode eliminar o Para compreender um texto é preciso ter uma pré-compreensão anterior.
fato de a hermenêutica ter nascido da problemática das ciências do espírito. E essa pré-compreensão não pode ser eliminada sem o) risco de romper
Ela é mesmo aad radicalização dessa problemática. Pela mesma razão, o o pacto entre o interpretante e o interpretado que garante ao intérprete
confronto com a hermenêutica de Dilthey é parte integrante de sua própria o acesso às intenções de sentido do texto. Do ponto de vista epistemoló-

ação. Sua pretensão de fundamentar as ciências hermenêuticas continua gico, essa implicação do intérprete na coisa interpretada pode parecer
sendo o componente epistemológico irrecusável de seu próprio discurso, uma fraqueza, uma tara subjetivista, diante da objetividade que parece
círculo hermenêutico
pelo menos no terceiro sentido que demos mais acima à epistemologia de exigir o ideal de cientificidade. Heidegger justifica o
mostrando que a fraqueza epistemológica aparente deriva de sua força
Dilthey. Aliás, inúmeras análises de Sein und Zeit apontam nessa direção
existe
sem, contudo, se aventurar definitivamente. Assim, a derivação da proble- ontológica real: o círculo mais original, com efeito, é aquele que
sempre entre a pré-compreensão e a situação intramundana interpretar
aa '*.
mática das ciências históricas a partir da ontologia da historicidade aparece
O) círculo não é vicioso, mas constitui a condição positiva
do conhecimento
esboçada em análises que mostram como ad historicidade, originalmente
orientada para o futuro, se volta para o passado pela mediação da "repeti- mais original. /A demonstração provavelmente tem força; ela faz parte da

ção", e como se passa do processo de temporalização (Zeitlichkeit), inerente


à dialética da situação e da compreensão, para o "ser-no-tempo" (Inner- 16. Ricoeur publica a mesma crítica em La tâche de Pherméneutique, in Du texte à
como Platão
zeitlichkeit) que supõe a medida e a referência a prazos públicos'?. Mas não Paction, p. 94 s. Aqui ele fala da imagem da segunda navegação (ou expedição),
costumava chamar início de uma nova busca com meios diferentes
e
mesmo um proce-
se vai tão longe quanto essa derivação das condições mais distantes do
o

dimento contrário aos usados na busca. Ver, por exemplo, Platão, Phédon (99d),
primeira
conhecimento histórico. Não é possível construir conceitualmente cate- trad. M. Dixsaut, Flammarion, 1991, p. 277,e o comentário, p. 271 s.
17. Cf. acima p. 70, 85 s. Sobre a ideia de processo de compreensão circular, ver o se-
gorias que poderiam manter essa derivação para alguma coisa além da sua vez, remete a um
gundo "Discurso acadêmico" de Schleiermacher (1829), que, por
manual de Ast (E. D. E. ScHLEIERMACHER, Hermeneutik, ed. H. Kimmerle, Carl Winter
Universitátsverlag, 1959, 21974, p. 141 [Herméneutique, ed.
C. Berner, Cerf/PUL, 1987,
14. Cf ibid.,S 14-18, p. 68-84.
Cf. ibid., cap 6, p. 277-296. Ricoeur refere-se ao conceito de Innerzeitlichkeit em
15. p.1735.)).
18. Cf. M. HerpEGGER, Étre et temps, p. 1245.
Temps et Récit 1. Uintrigue et le récit historique, Seuil, 1983, p. 127. 99
ESCRITOS "LÓGICA HERMENÊUTICA"?
E CONFERÊNCIAS 2 HERMENÊUTICA

2. Verdade e/ou método?


estratégia geral de Sein und Zeit, a de trazer de volta a reflexão das questões
de método a seu enraizamento ontológico. Mas não se sabe como é possível
voltar desse fundamento às dificuldades propriamente epistemológicas O mesmo tipo de interrogação é proposto pela obra mais importante
relativas à interpretação dos textos. Particularmente, a subordinação geral de Gadamer, Wahrheit und Methode, que constitui a segunda etapa entre
do círculo epistemológico ao círculo ontológico não autoriza decidir entre a hermenêutica das ciências humanas de origem diltheiana e nosso trabalho

as diversas maneiras de se comportar diante de um texto; a ontologização sobre a condição epistemológica da hermenêutica?!.
do problema hermenêutico implica a liquidação completa de sua psico- Em vários aspectos, o título de Gadamer convida a uma leitura no
sentido de uma alternativa: verdade ou método. Provavelmente é assim
logização em Dilthey?. Particularmente, deve-se abandonar a pretensão
que o verão os leitores formados na tradição da filosofia analítica.
de avaliar o sentido de um texto pela intenção do autor? Deve-se pa-
rar de querer compreender o autor melhor do que ele se compreende?!"
—
A experiência inicial que originou a obra o) lugar de onde ela fala —
Ou ainda: temos de renunciar à ideia de chegar à intenção de sentido do é o tipo de "distanciamento alienante" (Verfremdung), transformado em

texto, de sermos contemporâneos dele (quer o sentido seja o do texto ou escândalo na escala da consciência moderna, que, mais que um sentimento
o do autor)? Temos de parar de definir a hermenêutica como a luta contra ou um humor, é a pressuposição ontológica que sustenta o procedimen-
a incompreensão, pela apropriação do diferente? Pela luta contra a dis- to objetivo das ciências humanas". A metodologia dessas ciências supõe
tância no espaço e no tempo? Pela reprodução da produção original? A inelutavelmente um distanciamento, o qual, por sua vez, pressupõe a des-
volta ao fundamento, em Heidegger, é tão radical que perdemos de vista truição da relação primordial de pertencimento
—
de Zugehórigkeit sem —
as questões derivadas, como se já não fossem essenciais, até mesmo não o que não existiria relação com o objeto". Gadamer dá continuidade à
controvérsia entre distanciamento alienante e experiência de pertencimento
pertinentes, diante da volta ao fundamento?. E no entanto aa filosofia
hermenêutica estava alheia às questões feitas no passado pela exegese nas três esferas entre as quais, segundo ele, se reparte a experiência her-

bíblica, pela filosofia clássica, pela jurisprudência, e que ainda eram co- menêutica: esfera estética, esfera histórica, esfera linguageira. Na esfera
locadas pela hermenêutica literária, da qual daremos mais adiante uma estética, a experiência de ser impressionado pela coisa bonita é o que sempre

amostragem. Bem mais, é pela capacidade de voltar a essas questões que precede e torna possível o exercício crítico do julgamento, sobre o qual
se mede a pretensão da hermenêutica de ser uma disciplina fundamental,
no sentido próprio do termo.
21. H.-G. GADAMER, Wahrheit und Methode. Grundziúge einer philosophischen
Hermeneutik, Mohr/Siebeck, 1960, 21965, 1967. São extremamente importantes as
19. Sobre a intenção de compreender o texto melhor que o próprio autor, diz J. GREISCH: "introduções" da segunda e da terceira edições. Assim como Kleine Schriften, I e II,
"A tese, há muito difundida, de que esta seria uma expressão típica da hermenêutica român- Mohr/Siebeck, 1967. (N. do A.) [Indicamos ao leitor a tradução francesa: Vérité et Mé-
tica de Schlegel e Schleiermacher não resistiu à evidência dos textos. Desde 1940, O. F. thode. Les grandes lignes d'une herméneutique philosophique, Seuil, 1976,?1996 (edição
Bollnow havia chamado a atenção para uma passagem da Crítica da razão pura de Kant na integral revista e complementada por P. Fruchon, ). Grondin e G. Merlio), que indica na
qual as palavras aparecem enunciadas com todas as letras. [...). Ela é encontrada em Wolff, margem a paginação da edição alemã de 1986: Gesammelte Werke, Hermeneutik 1,
[...] Mesmo que a máxima do 'compreender melhor" tenha sido conhecida por Wolff e Wahrheit und Methode. Grundzige einer philosophischen Hermeneutik, Mohr/ Siebeck,
outros teóricos das Luzes, isso não quer dizer que se deva ignorar o fato de que, nesse con- v. D(N. do E.))].
texto, ela signifique uma coisa completamente diferente do que na hermenêutica romântica 22. Gadamer também emprega o termo Entfremdung (ver, por exemplo, Wahrheit und
e ainda outra na hermenêutica filosófica contemporânea" (Le Cogito herméneutique. Lher- Methode, "1965, p. 11, 80). Sobre a Verfremdung, cf. abaixo p. 123 s.
23. Sobre o conceito de Zugehórigkeit (pertencimento), ver principalmente H.-G.
méneutique philosophique et Phéritage cartésien, Vrin, 2000, p. 86 s.).
20. Cf. M. HEIDEGGER, Être et temps, p. 48. Cf. P. Ricogur, La tâche de "herméneutique, GADAMER, Wahrheit und Methode, p. 434 s.; Vérité et méthode, p. 483 s. Cf. abaixo
in Du texte à Paction, p. 94. p. 177,183s.
401
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 - HERMENÊUTICA "LÓGICA HERMENÊUTICA?

Kant fez a teoria como julgamento do gosto". Na esfera histórica, é a cons- Se nos concentramos agora na segunda parte de Wahrheit und Me-
ciência de ser trazido pelas tradições que torna possível o exercício de uma
thode, os três pontos nos quais o antimetodologismo de Gadamer se
metodologia histórica no nível das ciências humanas e sociais. Finalmente, mostra mais vivo e sobre os quais seus adversários se demoraram sempre
na esfera da linguagem, que de certa forma atravessa as duas precedentes,
são a reabilitação do preconceito, da tradição e da autoridade, a noção
o copertencimento às coisas ditas pelas grandes vozes dos criadores de
de Wirkungsgeschichte e a de "fusão dos horizontes"". São também os
discursos precede e torna possível toda redução instrumental da linguagem
três pontos aos quais será possível ligar uma leitura menos antimetodo-
e toda pretensão das técnicas objetivas de dominar as estruturas do texto menos
lógica de Wahrheit und Methode e dar ao título uma interpretação
de nossa cultura. Assim, uma única e mesma tese circula através das três
disjuntiva.
partes de Wahrheit und Methode?. Foi com uma ponta de provocação, sem dúvida, que Gadamer elaborou
A controvérsia com as ciências do espírito não constitui, portanto, o
sua defesa em favor do preconceito. (O preconceito é uma categoria da
único ponto de fixação da filosofia hermenêutica. A entrada da estética na
Aufklirung. Precisamos nos desfazer dele para "ousar pensar" sapere —
problemática é, ao contrário, muito importante. É aí que a hermenêutica
aude, exclamava Kant! — para chegar à idade "adulta"?*. Mas o preconceito
encontra na consciência comum seu melhor ponto de apoio para quebrar
só é univocamente negativo numa filosofia crítica, numa filosofia do jul-
a pretensão da consciência julgadora de se proclamar árbitro do gosto e
uma filosofia
mestre do sentido. Graças a essa primeira brecha, a filosofia hermenêutica gamento. Por sua vez, só levanta um julgamento em tribunal
a medida
que faz da objetividade, cujo modelo é fornecido pelas ciências,
conseguiu concretizar sua segunda investida, no nível da experiência his-
do conhecimento? É preciso, ao contrário, considerar, com Heidegger,
tórica, e assim restabelecer as relações interrompidas com o que foi, cro-
que nenhum sujeito de conhecimento tem acesso a um domínio
de objeto
nologicamente, seu primeiro ponto de partida. Assim, a universalidade
sem ter antes projetado sobre este domínio uma pré-compreensão que
reivindicada pela hermenêutica na controvérsia, da qual falaremos adiante,
não é com-
entre hermenêutica e crítica das ideologias não exclui, mas exige a multi- garante a familiaridade com ele". Ora, essa pré-compreensão

plicidade dessas fixações concretas. Não é insignificante, contudo, que


Gadamer tenha afastado como menos significativa uma reflexão sobre o neutique et critique des idéologies (in Du texte à Vaction, p. 336), no qual
ele comenta

"ser para o texto" (Sein zum Texte) na qual ele via o perigo de uma redução também a atitude de Gadamer. Acrescentemos que, efetivamente, Gadamer emprega deli-
beradamente o conceito "ser para o texto" de forma negativa, quando, por exemplo, ele
da experiência hermenêutica à tradução, alçada como modelo linguageiro
escreve que graças a suas próprias pesquisas hermenêuticas "a experiência hermenêutica
do comportamento humano para o mundo". [...] já não se limitava ao "ser para o texto" (Sein zum Texte), a uma conduta de questiona-
mento de interpretação de textos dados ao serviço de um intérprete versado em método"
e

(Itinéraire de Hegel, Critique, n. 413 [1981] 889; cf. Dart de comprendre. Écrits I, p. 107).O
24. Ver E. KANT, Critique de la faculté de juger, in Oeuvres philosophiques, ed. F. Alquié, conceito de "ser para o texto", paradoxal e crítico em Gadamer, assume na obra de Ricoeur
trad. Ladmiral/de Launay/Vaisse, Gallimard, 1985; t. H: Des prolégomênes aux écrits de 1791, uma dimensão nitidamente positiva.
p. 957 s. (Analytique du beau, V, 203 s.). 27. A rigor, a Wirkungsgeschichte designa, entre as ciências históricas e exegéticas, a
25. O mesmo comentário aparece em Du texte à "action: La tâche de Pherméneutique, história dos efeitos de um texto, a história de sua recepção através das idades. Ricoeur ex-
96 s., Herméneutique et critique des idéologies, p. 335 s. Ver ainda Ip., Retour de Ga-
e
e método. Sobre
p.
plicará mais adiante o sentido que essa Wirkungsgeschichte tem em Verdade
damer, Libération, 4 jul. 1996; este artigo foi publicado por ocasião da tradução integral de a "fusão dos horizontes" ver abaixo p. 105.
Verdade e método; cf.: <www.fondsricoeur.fr>. 28. Ver E. Kant, Réponse à la question: (Qu est-ce que les Lumiêres? (trad. H. Wismann):
26. O"ser para o texto" é tratado em GADAMER, Rhétorique, herméneutique et critique entendimento! Eis
"Sapere aude! [Ouse saber!]. Tenha a coragem de se servir de seu próprio
de Pidéologie. Commentaires métacritiques de Wahrheit und Methode, in V'Art de compren-
a divisa das Luzes" (in Des prolégomênes aux écrits de 1791, p. 209 [VIII, 35]). O sapere aude
dre. Écrits I, Herméneutique et tradition philosophique, trad. M. Simon, Aubier, 1982, p. 124;
é uma alusão a Horácio, Epistulae, liv. 1, c. 2, v. 40. Sobre as Luzes, cf. ainda abaixo p. 214.
nele Gadamer atribui a expressão a O. Marquard (cf. ibid., p. 143, n. 1). Ricoeur remete a
29. Cf. Herméneutique et critique des idéologies, in Du texte à Vaction, p. 338.
este mesmo texto (publicado antes em Archives de Philosophie [1971] 207-230) em Hermé-
30. Cf. M. HeineGGER, Être et temps, p. 285.

403
"LÓGICA HERMENÊUTICA":
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2— HERMENEUTICA

sua ação, de tal forma que não podemos objetivar essa ação sobre eles, pois
pletamente transparente à reflexão. Nenhum sujeito transcendental a
a eficácia faz parte de seu sentido enquanto fenômeno histórico?. cons-
A
domina completamente. Por isso, o preconceito é simplesmente a projeção
no plano do julgamento de uma categoria hermenêutica fundamental: a
ciência da eficácia tem a e positiva. Negativamente, ela
significação negativ
exclui todo panorama que permitiria dominar com o) olhar o conjunto dos
tradição. "O ser homem encontra sua finitude no fato de estar em primeiro
efeitos do passado sobre nós; o ser histórico é aquele que não passa para
lugar mergulhado nas tradições"*! A tradição é positivamente a expressão
o saber absoluto. Aqui, a filosofia da hermenêutica é, ao contrário de toda
do caráter historicamente finito da compreensão de si pelo ser-homem. O
a da finitude". Positi-
terceiro termo da trilogia preconceito-tradição-autoridade apenas explica absorção hegeliana no saber absoluto, uma filosofi
de
o papel da tradição em termos de eficácia. Mas sua significação é velada vamente, deve-se dizer que o conceito de história eficaz faz mediação a

nossa relação com o passado. A partir dessa mediação, alguma coisa passa
pelo preconceito oriundo da Aufklirung, segundo o qual a autoridade
é
a ser significativa, interessante, válida, memorável, em suma, digna de
ser
sinônima de dominação, no sentido de violência, e a submis são à autorid a-
relatada numa enquete histórica.
de sinônimo de obediência cega.
O terceiro conceito-chave, a "fusão dos horizontes", prova que a
À consequência epistemológica dessa defesa é que as ciências do espírito
— ena primeira fila a história —
se desenvolvem sobre o terreno preliminar competência histórica não significa absolutamente que sejamos prisionei-
da transmissão e da recepção das tradições. A Forschung — inguiry não — ros do passado. O conceito de horizonte completa e corrige o de situação.
.A O horizonte é o que recorta um ponto de vista. Falar de fusão dos horizontes
escapa da consciência histórica daqueles que vivem e fazem ad história se trans-
com é admitir, com a hermenêutica diltheiana, que sempre é possível
partir de uma tradição que a interpela, a história o
questiona passado transferência não é um
Entre a da o e a investigação histórica portar para o ponto de vista do outro. Mas essa
perguntas "lógicas". ação tradiçã numa dialétic a dos pontos de vista
urde-se um pacto que nenhuma consciê ncia crítica poderia desmanchar, enigma psicológico. Se é possível entrar
é porque na tensão entre o outro e o mesmo um acordo preliminar
sobre
sob pena de tornar absurda a própria pesquisa". Mas esse acordo
a própria coisa traz a busca de um acordo efetivo. prévio,
Essa condição "histórica" (geschichtlich) da história (Historie) exprime- aboliria
por sua vez, não pode ser transfo rmado num saber objetiv o que
se no conceito de Wirkungsgeschichte (literal: história dos efeitos). Essa
ncia aalteridade dos pontos de vista, por colocar todos eles a distância: ninguém
categoria já não depende da metodologia histórica, mas da consciê mais teria o que dizer no diálogo, pois ninguém mais viria a ele. Não exis-
reflexiva da metodologia?. É a consciência de seres expostos à história e a
timos nem em horizontes fechados, nem num horizonte único, de caráter

31. 0.-G. Gavamer, Wahrheit und Methode, p. 260; cf. Vérité et méthode, p. 283.
34. Cf. P Ricogur, Herméneutique et critique des idéologies, in Du texte Paction,
à
32. CÊ P. Rrcogur, Herméneutique et critique des ideologies, in Du texte à Paction,
p. 346.
p. 349. on-
35. Ver GWF HeceL, La phénoménologie de Pesprit, trad. J. Hyppolite, Aubier-M
33. Esse comentário indica que, por trás da noção de Wirkungsgeschichte, aquilo a 293-313.
de wirkungsgeschichtliches taigne, 1945-1955, 1991,t. II, 82 parte, p.
que Ricoeur visa é o conceito mais especificamente gadameriano 36. Ver H.-G. GaDAMER, Le principe de Phistoire de Paction (ou influence), in Vérité
Bewusst sein (cf. H.-G. GaDaME R, Vérité et méthod, p. 363 s.). Nesse aspecto, note-se a
et méthode, p. 322-329. Destacam-se em particular a questão colocada por Gadame
r: "Existem
decisiva feita por Gadame r quando convida a "ler como se deve seu capítulo sobre
precisão es , o horizont e no vive que compree nde e aquele,
a consciência da história da ação. Está fora de questão ver nessa consciência uma nova aqui dois horizont distintos qual aquele
de cada no ele se coloca? (ibid., p. 325), e sobretudo a resposta negativa
próprio época, qual
modalidade da consciência em si, por exemplo uma consciência que teria a história da não se forma absolutamente sem o passado.
ntado nela. que ele dá: "O horizonte do presente, portanto,
ação como objeto, ou mesmo um método hermenêutico que estaria fundame existir horizont e do se existirem horizontes históricos que possam ser
Só pode presente
Deve-se antes reconhecer a limitação da consciência pela história da ação na qual estamos no processo de fusão desses horizontes
conquistados. A compree nsão reside, ao contrário ,
todos" (H.-G. GADAMER, Vart de comprendre. Écrits II, Herméneutique et champs de do outro [...]. Quando a tradição prevalece, a fusão não
supostamente independentes um
Pexpérience, ed. P. Fruchon, trad. Juhen-Deygout/Forget/Fruchon/Grondin/Schouwey, de se (ibid, 328; destaque de Gadamer).
cessa produzir" p.
Aubier, 1991, p. 21).
[05
"LÓGICA HERMENÊUTICA"?
ESCRITOS E CONELRENCIAS 7 — HERMENÊUTICA

é o "reconhecimento
ico especulativo". A ideia de "fusão dos hori- histórica. A contrapartida da autoridade da tradição
objetivo empírico ou dialét "a autoridade", segundo Wahrheit
zontes", como a de "competência histórica",
tem um alcance positivo e (Anerkennung) de sua superioridade":
com a obediência: ela
ela significa recusar toda inclusão objeti- und Methode, "não tem relação imediata alguma
outro negativo. Negativamente, . O que, definitivamente, tem autoridade é
vista ou toda Aufhebung especulativa". Positivamente, significa que
a partir repousa no reconhecimento"
coisa que a a tradição a partir da qual nos questionamos.
Admitir não é sacrificar a
da "fusão dos horizontes" e do acordo prévio sobre própria
a
cultural não existe
de vista e para outra cultura razão. Pois a "preservação" (Bewahrung) de uma herança
sustenta é possível transferir para outro ponto entre o espírito de ino-
sem crítica, portanto sem um debate permanente
o que está na base do conhecimento histórico. Nesse aspecto, a operação que, em
Como fica a relação da verdade com o método?
Em primeiro lugar, vação e o espírito de conservação*!.
o desempenhado pela ve-
entre verda de e método não relação à tradição em geral, desempenha papel
temos de dizer, de forma global, que a relação científica é chamada por Gadamer de
de exclusão mútua. Seria se a com- rificação em relação à hipótese
é uma simples relação de oposição ou A hermenêutica jurídica compreendeu melhor
sse oposta no mesmo plano à explicação cientí
fica. "aplicação" (Anwendung)*?.
preensão histórica estive inter- sua importância: a aplicação marca o espaço
de jogo no qual o juiz se
contr a uma
Nesse particular, R. Bubner tem razão quando previne A notoriedade da aplicação é também reconhecida
Methode que cond uziria pura e simplesmente distingue do legislador.
pretação de Warhrheit und se dirige ao ouvinte, cujas paixões ela conhece,
à dicotomia metodológica que Dilthey
não conseguiu ultrapassar". A pela retórica antiga, que
Essa categoria essencial atesta que a arte
mas uma reflexão para convencê-lo e persuadi-lo.
filosofia hermenêutica não é uma antiepistemologia, de compreender não está completa sem uma atualização
crítica do sentido
As três catego-
sobre as condições não epistemológicas da epistemologia. nas condições de uma situação cultural nova.
de constituição contra-
rias que revisamos apontam as condições intransponíveis A categoria da eficácia histórica tampouco funciona sem uma
do espaço de sentido no qual alguma coisa pode
valer como objeto
partida crítica
—
o conceito de "distância histórica"*. A distân cia é, em

histórico. r distância é mais do que isso: é um compor-


und Methode primeiro lugar, um fato, toma
A partir dessa observação geral, é possível dar a Wahrheit a

tamento metodológico. AÀ história dos efeitos ou


da eficácia atua precisa-
da relação entre os dois de afastamento passivo e de
uma interpretação mais dialética que a precedente mente conforme a distância no duplo sentido
termos. Cada uma das três categorias histór
icas toma posse de um mo- do longínquo. À
distanciamento ativo. Ela torna-se assim a proximidade
entre a hermenêutica a distância
mento crítico apropriado que assegura a mediação ilusão metodológica começa somente quando imaginamos que
e as ciências humanas objetivas.
põe fim a nossa coniv
ência com o passado e cria uma situação comparável
toda tradição,
A reabilitação do preconceito não significa submissão a
de transmissão
mas apenas a impossibilidade de se subtrair condição
à
40. Na tradução de 1996 lê-se: "o derradeiro
fundamento da autoridade (...| não está
da razão, mas sim num ato de reconhecimento e de
num ato de submissão e de abdicação
em julgamento e em perspicácia,
conhecimento: conhecimento de que o outro superior
à Vaction, é
et critique des ideologies, in Du texte
37. Cf. P. Ricogur, Herméneutique tem preeminência sobre o nosso" (p. 300). Em seguida
e assim seu julgamento prevalece, ele
p. 348. definitiva da disparidade dos vem a observação feita por Ricoeu r neste texto, segund o a traduç ão de E. Sacre (1976, p. 118),
a
38. Nesse contexto, a Aufhebung designa supressão de 1996 em: "a autoridade não tem relação
direta alguma com a
que resultou na edição
pontos de vista. ao conhe cimen to" (Vérité et métho de, p. 300).
39. R. BusnEr, Úber die wissenschaftstheore
tische Rolle der Hermeneutik, in Dialektik obediência: ela está diretamente ligada
"a é um ato de razão, um daquel es que, é verdade,
. Só uma interpretação transcendentalista da 41. Ver ibid., p. 303: conservação
und Wissenschaft, Suhrkamp, 1973, p. 89-111
o autor, der ao vivo ataque de H. ALsER
T, Traktat iiber passam despercebidos".
hermenêutica pode, segundo respon 329-333.
Transzendentale Hermeneutik?, 42. Sobre a questão de a aplicação ver ibid., p.
kritische Vernunft, Mohr/Siebeck, 1968. Do mesmo autor, també m estão em P. Rrcorur, Herméneutique et critique
in R. StMON-SCHÃFER, W. CH. ZIMME RLI (Hrsg.), Wissenschafts theorie der Geisteswissens- 43. As explicações seguintes
56-70. (N. do A) des ideologies, in Du texte à Paction, p. 346.
chaften, Hoffmann und Campe, 1975, p. 107
"LÓGICA HERMENÊUTICA"?
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 - HERMENEÉUTICA

à objetividade nas ciências da natureza. (O paradoxo da alteridade do pas- Existe um debate porque ora a hermenêutica pretende reger toda
sado está precisamente naquilo que a história eficiente é a eficácia na cientificidade, na medida em que todo conhecimento objetivo enraíza-se
distância. O distanciamento alienante começa quando o momento de numa compreensão linguageira do mundo que a precede, ora ela própria

objetivação está ausente de sua posição concreta, ou seja, o pertencimento parece se limitar ao papel de Kunstlehre diante de um grupo de ciências,
do historiador ao contexto histórico que focaliza em sua investigação. aquelas que o) fim do século XIX chamava ciências do espírito. No primeiro
Quanto à1 categoria histórica de "fusão dos horizontes", cuja localização caso, a universalidade não é contestável: ela exprime a subordinação de
em relação a toda Aufhebung especulativa ou a toda inclusão num saber toda explicação a uma base prévia de compreensão; em compensação, a
objetivo assinalamos, também ela encontra seu complemento crítico na es- cientificidade dessa compreensão é duvidosa. No segundo caso, a cienti-
trutura linguageira desenvolvida na terceira parte de Wahrheit und Methode*. ficidade da hermenêutica é mais fácil de justificar no contexto de uma
Toda compreensão do mundo, com efeito, parece estar aí condicionada por epistemologia das ciências humanas, mas é sua universalidade que se torna
uma prática linguageira comum. Mas, se essa comunidade linguageira se duvidosa, na medida em que a explicação cai fora da compreensão.
ad

afasta da objetivação da linguagem num sistema de signos manipuláveis, isso Sobre isso temos duas contribuições —
aliás, próximas uma da ou-
absolutamente não quer dizer que o acordo prévio sobre a própria coisa, tra — que merecem serem examinadas, as de K.-O. Apel e J. Habermas.
lembrado mais acima, implique um acordo efetivo já dado (aqui ainda Ambas estão propensas a enfatizar a cientificidade da hermenêutica a
R. Bubner alerta contra a confusão do acordo pressuposto com algum con- expensas de sua universalidade e assim situar a hermenêutica num contexto
senso, por efetivo que seja"). A única "lógica" que parece apropriada à fusão "científico" mais amplo.
dos horizontes é a dialética, ou seja, no sentido original do termo, a arte da Esquematicamente, a crítica [da universalidade da hermenêutica pro-
questão e da resposta'*. É nessa dialógica que desemboca a epistemologia
da posta] por Habermas pode ser assim resumida. Enquanto Gadamer
hermenêutica. Ela marca a inclusão do momento crítico da questão na her- empresta ao romantismo filosófico a reabilitação do preconceito e deriva
menêutica da compreensão trazida pela comunidade linguageira. da noção heideggeriana da pré-compreensão seu conceito de consciên-
cia da eficácia histórica, Habermas desenvolve um conceito de interesse

3. Questionada a pretensão da hermenêutica à universalidade als Methodik der Geisteswissenschaften, Mohr/Siebeck, 1967 (Teoria generale della interpre-
tazione, A. Giuffrê, 1955). (N. do A.)
Essas primeiras observações sobre a inclusão de um momento crítico 48.). HaBERMAS, Zur Logik der Sozialwissenschaften, Philosophische Rundschau, 14,
Beiheft 5 (1967) [Logiques des sciences sociales (1967), in Logiques des sciences sociales et
no processo global de compreensão vão se definir em favor do debate sobre
autres essais, trad. R. Rochlitz, PUE, 1987, p. 1-238 (N. do E.)]. Passagem em Hermeneutik
a pretensão da hermenêutica à universalidade. A luta epistemológica sobre und Ideologiekritik, in Zu Gadamers Wahrheit und Methode, p. 45-56. Der Universalitãt-
a hermenêutica cristalizou-se num ponto específico: o que foi feito de sua sanspruch der Hermeneutik, in R. BuBnER, K. CRAMER, R. WiEHL (Hrsg.), Hermeneutik
und Dialektik. Festschrift fir H.-G. Gadamer, Mohr/Siebeck, 1970, 1, p. 73-104; repetido
pretensão à universalidade?". em Hermeneutik und Ideologiekritik, p. 120-159 (La pretention à Puniversalité de
Pherméneutique (1970), in Logiques des sciences sociales, p. 239-273 (N. do E.)]. Do mesmo
44. H.-G. GADAMER, Vérité et méthode, p. 405-516; sobre Aufhebung, cf. acima p. 106. autor, Erkenntnis und Interesse, Suhrkamp, 1968 [Connaissance et intérêt, trad. G. Clémençon,
45. Cf. R. BuBnER, Úber die wissenschaftstheoretische Rolle der Hermeneutik, in Gallimard, 1976 (N. do E.)]; Théorie und Praxis, Luchterhand, 1963 [Théorie et pratique,
trad. G. Raulet, Payot, 1975 (N. do E.)]; Technik und Wissenschaft als Ideologie, Suhrkamp,
Dialetik und Wissenschaft, p. 97.
1968 [La technique et la science comme "idéologie", trad. J.-R. Ladmiral, Gallimard, 1973
46. Ver H.-G. GADAMER, Vérité et méthode, p. 385-402.
47. Os documentos desse debate foram reunidos por Júrgen HaBERMAS, Dieter HEN- (N. do E.)]; Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der kommunikativen Kompetenz,
RICH, Jacob TAUBES fe K.-O. ApEL (N. do E.)] com o título Hermeneutik und Ideologiekritik
in]. HABERMAS, N. LUHMANN, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie?, Suhrkamp,
1971, p. 101-142.(N. do A.)
(Theorie-Diskussion), Suhrkamp, 1971. Cf. também E. Berrr, Aligemeine Auslegunslehre
409
"LÓGICA HERMENÊUTICA"?
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 — HERMENÊUTICA

ele mesmo reinterpretado à hermenêuticas para as ciências sociais críticas, às quais pertencem, quanto
originado na crítica marxista das ideologias,
ao essencial, a crítica das ideologias e a psicanálise"*. Neste par, a crítica das
luz de Lukács em História e consciência de classe e dos trabalhos da escola
de Frankfurt". Na verdade, Habermas está tão longe do marxismo quanto ideologias fornece o campo de aplicação, ou seja, as toneladas de comu-
Gadamer está do romantismo alemão. Habermas substitui o monismo nicação inter-humanas sistematicamente distorcidas, a psicanálise [forne-
ce] €o modelo de explicação, ou seja, a quase objetivação dos processos que
marxista do conceito de produção pelo pluralismo dos interesses com O
um campo científico. sua opacidade torna inacessíveis d uma mera explicação de pressuposições
a

qual cada um regula, como um a4 priori antropológico,


Nesse sentido, ele o regula de forma que aad significação dos enunciados
implícitas. É o desvio pela quase observação e pela quase explicação que
e marca o limite da compreensão hermenêutica. Esta, com efeito, parece se
possíveis que fazem parte dessa esfera de objetos predeterminada pres-
é
técnico ou instrumental, defi- limitar à depuração das formas de incompreensão, elas próprias homogê-
crita por esse interesse. Assim, ao interesse
neas à compreensão, como na tradição de Schleiermacher e de Dilthey. As
nido como "interesse cognitivo no controle técnico aplicado a processos e num
analíticos". quase objetivações devem desembocar finalmente num alargamento
objetivados", corresponde a esfera dos enunciados empíricos derradeiro episódio logo dará
aprofundamento da compreensão de si, e o
Ao interesse prático ou interesse pela comunicação inter-humana corres-
a das propo- lugar a uma escalada de pretensões entre a hermenêutica erigindo-se em
pondem as ciências histórico-hermenêuticas"'; significação metacrítica e a crítica erigindo-se em meta-hermenêutica. Mas, antes desse
da previsão possível e da ex-
sições produzidas neste campo não procede último confronto, trabalhemos a diferença.
do sentido; essa compreensão
ploração técnica, mas da compreensão
Distinguindo ) interesse pela emancipação que guia as ciências sociais
o

acontece pelo canal da interpretação das mensagens trocadas na linguagem


críticas do interesse pela comunicação que regula as ciências histórico-
ordinária, por meio da interpretação dos textos transmitidos pela tradição,
hermenêuticas, Habermas revela o caráter limitado da hermenêutica ligada
das normas que institucionalizam os
graças finalmente à interiorização a um grupo de ciências, as ciências "tradicionais". Ora, é ambígua a noção
interesses encerra O essencial da
papéis sociais. A discussão desses dois de tradição*. De um lado, ela designa o fato incontestável da dependên-
crítica de Marx, acusado de ter confundido o plano técnico e o prático e cia de todo projeto presente de um passado transmitido e assimilado; mas
de ter reconduzido ao positivismo aa crítica das condições de possibilidade
ela designa também os conteúdos transmitidos, dos quais alguns exprimem
do agir humano, de Kant, de Fichte e dos hegelianos de esquerda". Mas
é
formas ideologicamente cristalizadas de relações inter-humanas. Se estas
a distinção entre o interesse pela comunicação e um terceiro interesse,
reificações do laço social só podem ser transformadas criticamente, é
intitulado interesse pela emancipação, que marca a oposição a Gadamer>.
porque o discurso no qual elas se exprimem marca a dependência entre a
Este terceiro interesse desloca o centro da discussão das ciências histórico-
linguagem e o par formado pelo trabalho e pela dominação". A herme-
nêutica, aqui, pode ser acusada de idealismo linguístico, na medida em
49. G. Luxács, Histoire et conscience de classe. Essais de dialectique marxiste,
Minuit,
e Theodor W.
que ignora a relação de dependência da linguagem de forças sociais que
1960. Os representantes mais conhecidos dessa escola são Max Horkheimer fazem do discurso o palco de distorções sistemáticas irredutíveis a fenô-
Adorno.
147: "Eis um
50. Cf. ]. HABERMAS, La technique et la science comme "idéologie", p.
interesse de conhecimento que leva a dispor tecnicamente de processos objetivados". 54. e os dois últimos
Cf. Ip,, La technique et la science comme "idéologie", p. 149 s.,
136 s., 147-149,
51. Para uma análise das ciências histórico-hermenêuticas, cf. ibid., p. de Connaissance et nos Habermas faz uma de Freud e de
capítulos intérêt, quais apreciação
e Connaissance et intérêt, p. 229 s.
Nietzsche (p. 247-331).
52. Sobre Kant e Fichte ver ibid., cap. IX, p. 225-246: Raison et intérêt:
principalmente 55. Sobre a tradição, ver Ip., La technique et la science comme "idéologie", p. 148 s., 160.
Retour sur Kant et Fichte. 56. A linguagem, o trabalho e a dominação são os três meios nos quais se criam os
156 s., e ID.,
53. Cf 1. HABERMAS, La technique et la science comme "idéologie", p.
interesses dirigindo o conhecimento (cf. Ip., Connaissance et intérêt, p. 155).
Connaissance et intérêt, p. 358 s.
141
"LÓGICA HERMENÊUTICA":
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 — HERMENÊUTICA

menos de ignorância a que bastaria uma compreensão mais penetrante a crítica das ideologias implica que-seja colocado como ideia reguladora,
antes de nós, aquilo que a hermenêutica das tradições concebe como
para resolver. A ideologia, com efeito, trabalha na retaguarda dos parceiros
sociais. Por isso sua dissolução requer a desistência de procedimentos existente na origem da compreensão. A ideia reguladora é a de uma co-

explicativos e não apenas compreensivos, colocando em ação um aparelho municação sem limites e sem pressão. É evidente a ênfase kantiana; a ideia
teórico, como o da metapsicologia freudiana, que não pode derivar de uma reguladora é mais dever-ser do que ser, mais antecipação do que reminis-
mera extensão da arte espontânea da interpretação à obra no discurso cência. Essa ideia dá sentido a toda crítica psicanalítica ou sociológica, pois
ordinário e na conversação. só existe "dessimbolização" para um projeto de "ressimbolização", e tal

Se, portanto, a hermenêutica está epistemologicamente limitada li- — projeto só existe na perspectiva revolucionária do fim da violência. Uma
mitada ao das ciências hermenêuticas —, é porque está filosofica- tendência escatológica da não violência constitui assim o horizonte filo-
grupo
mente limitada por sua ignorância da relação entre linguageme violência, sófico último de uma crítica das ideologias. Essa tendência escatológica,

provocada pelo conflito das forças sociais". Nesse sentido, o fenômeno próxima da de Ernst Bloch, substitui a ontologia do acordo linguageiro
cons- numa hermenêutica das tradições".
ideológico, considerado com suas variantes individuais ou coletivas,
titui uma experiência-limite para a hermenêutica. Karl-Otto Apel situa sua apreciação da hermenêutica dentro de um
O conflito entre hermenêutica e crítica das ideologias deve ser levado projeto globalizante que seria o de restituir à Wissenschafislehre que em
—
a um grau ainda mais profundo de radicalidade. Para Habermas, o principal alemão sempre significou mais que ciência —
seu direito epistêmico, sem

defeito da hermenêutica de Gadamer é ter ontologizado a hermenêutica; no entanto reduzi-la à "logic of science", no sentido da filosofia analítica".
o Essa restituição só pode acontecer retomando e expandindo a questão
por isso, ele vê sua insistência no entendimento, no acordo, como se
consenso que nos precede fosse alguma coisa constitutiva, dada no ser>, transcendental kantiana, ou seja, por uma reflexão sobre as condições de
Habermas só pode desconfiar de tudo que possa ser a hipóstase ontológica possibilidade daquilo que, de uma maneira geral, é considerado lógico
de uma experiência rara, ou seja, a experiência de acordo preceder nossos (sinnvoll). A reflexão de segundo grau sobre a hermenêutica será, portanto,
transcendental, na medida em que trata da condição de possibilidade do
diálogos mais felizes". Mas não podemos canonizar esta experiência
e

transformá-la em paradigma da ação comunicativa, e Co empecilho é jus- discurso que articula. Mas essa reflexão só poderá ser bem conduzida se a
tamente o fenômeno ideológico. Se a ideologia fosse somente um obstáculo investigação transcendental não se limitar ao campo do sentido que Kant
interno à compreensão, uma incompreensão que apenas O exercício da delimitou como objetividade e que ele trouxe para a unificação do diferente
dizer que onde da experiência segundo as categorias do entendimento por um sujeito de
questão e da resposta pudesse reintegrar, então poderíamos
existe incompreensão existe acordo prévio. Consequentemente, faz parte puro conhecimento. O que foi omitido por Kant é que uma unificação
de uma crítica das ideologias pensar em termos de antecipação aquilo que linguageira coloca em jogo, além de um entendimento categórico, um
a hermenêutica pensa em termos de tradição assumida. Em outras palavras, compromisso corporal, tecnicamente mediado, e um acordo de caráter

60. E. BLocH, Le Principe Espérance, trad. E Wuilmart, Gallimard, 1976-1991,3 v.


57. Na crítica que faz a Gadamer, Habermas afirma que, como instrumento de domi-
61. K.-O. ApgL, Szientistik, Hermeneutik, Ideologiekritik, Wiener Jahrbuch fiir Phi-
"nação e de poder social, a linguagem serve para legitimar as relações de violência organizada
losophie I (1968) 15-45. Retomado em Hermeneutik und Ideologikritik, p. 7-44, Transfor-
e
(Zu Gadamers Wahrheit und Methode, in Hermeneutik und Ideologiekritik, p. 52).
58. Quase todo o parágrafo está em Herméneutique et critique des idéologies, in Du
mation der Philosophie, Suhrkamp, 1973, t. IL, p. 96-127 [tradução parcial de €. Bouchind-
texte à Paction, p. 360 s. homme, T. Simonelli, D. Trierweiler dos volumes 1 e IL, in K.-O. ApzL, Transformation de
59. Habermas censura Gadamer por ignorar a força da reflexão. Esta compreende a
la philosophie I, Cerf, 2007 (N. dos E.)]. Cf. Th. Kisrzt, Zu einer Hermeneutik naturwis-
da práxis (cf. Zu Gada- senschaftlicher Entdeckung, Zeitschrift fiir allgemeine Wissenschaftstheorie 2 (1971) 195-221.
gênese da tradição e pode, por isso, questionar o caráter dogmático
und G. RADNITZKY, Contemporary Schools of Metascience, Akademifórlaget, 1968. (N. do A.)
mers Wahrheit und Methode, in Hermeneutik Ideologiekritik, p. 48).

113
— HERMENÊUTICA
"LÓGICA HERMENÊUTICA"?
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2

intersubjetivo sobre as normas implícitas da comunicação. Essa unificação uma situação. Por isso a compreensão continua a ser o modo irredutível de
linguageira requer, portanto, bem mais que um a priori de consciência: inteligibilidade em história, na medida em que uma sequência singular
uma a priori corporal e social, e este, por sua vez, coloca em cena os interesses de acontecimentos extrai seu sentido da relação entre as intenções de sentido
descritos e analisados por Habermas e que devem ser trazidos para uma dos agentes e uma situação singular tal como é compreendida por estes.
antropologia transcendental. Por sua vez, a integração de um fragmento de filosofia analítica na
É nessa perspectiva geral de uma cientificidade ampliada que Karl-Otto hermenêutica se dá favorecendo uma dupla inflexão da própria herme-
Apel desenvolve duas teses: a da complementaridade entre o que denomina nêutica. [Primeira inflexão:] de um lado, saímos da questão da diferença
Scientistik e hermenêutica, e a tese da mediação realizada pela crítica das
a ôntico-ontológica, portanto da questão do ser enquanto ser. E [de outro]
ideologias entre as pretensões rivais destas últimas". a ênfase vai quase exclusivamente para o) caráter linguageiro da compreen-
A própria ideia de uma complementaridade entre Scientistik ee herme- são do mundo. A hermenêutica torna-se assim essencialmente uma Sprach-
nêutica implica inicialmente a rejeição do programa neopositivista da hermeneutiks. Esta se liga às pressuposições implícitas a todas as formações
"unified science" [ciência unificada] e, portanto, uma nova retomada do de sentido, em cuja primeira fila estão as transmissões culturais. Segunda
problema diltheiano da distinção entre compreender e explicar". A com- inflexão da hermenêutica: o caráter linguageiro da compreensão do mundo,
dos "jogos de
preensão, afirma Apel, não se limita a uma operação psicológica extrínseca segundo Heidegger, aproxima-se da teoria wittgensteiniana
às operações lógicas; ela não depende apenas de uma heurística prepara- linguagem" considerados como "formas de vida".
tória, como se a ciência começasse somente com a posição de hipóteses Voltaremos a isso mais tarde quando considerarmos o debate entre as
dois
verificáveis ou falsificáveis. A justificação da compreensão como dimensão heranças de Wittgenstein e de Heidegger. Do último Wittgenstein
temas ficaram em virtude de sua analogia com os da Sprachhermeneutik:
epistemológica própria repousa parcialmente num argumento de tipo
diltheiano, isto é, nas ciências hermenêuticas a compreensão é parte inte- de um lado a ideia de que uma articulação linguística determina os limi-
grante da constituição do sentido. A hermenêutica conta com uma ajuda tes de nosso mundo, de outro que essa articulação é inicialmente pública".
no campo analítico, nas resistências que a epistemologia do conhecimento Nesse particular, a crítica wittgensteiniana da linguagem particular suprime
histórico opõe ao modelo explicativo proposto por Hempel e Popper". o problema diltheiano e, em alguns aspectos, husserliano da passagem de
Mas é interessante ver como o argumento, derivado de uma críti- uma compreensão inicialmente subjetiva a uma compreensão intersubjetiva
Gada-
ca interna à filosofia analítica e emprestada de Dray, Danto etc., não é somente pela transferência para as intenções de sentido do outro. Heidegger,
interpolado, mas realmente integrado à tradição hermenêutica de origem mer e Wittgenstein encontram-se aqui na mesma reação antipsicologista.
diltheiana*. Foi de Heidegger e de Gadamer que Apel tirou a ideia de que O problema do conhecimento histórico, reinterpretado nos termos da
de Wittgenstein,
toda compreensão coloca em jogo uma relação lógica entre um projeto e Sprachhermeneutik, ela própria influenciada pela recepção

62. As duas teses foram desenvolvidas em seu artigo Szientistik, Hermeneutik, Ideo- 66.C£ K.-O. Ape, Sprache und Ordnung: Sprachanalytik versus Sprachhermeneutik,
logiekritik, in Transformation der Philosophie, t. IE, p. 101-127. in Transformation der Philosophie, t. 1, p. 167-196.
63. Ver K.-O. APEL, La controverse expliquer-comprendre. Une approche pragmatico- 67. Cf. Ip., Wittgenstein und Heidegger. Die Frage nach dem Sinn von Sein und der
der Philosophie, t. 1,p.225-
transcendentale, trad. S. Mesure, Cerf, 1979, 2000. Sinnlosigkeitsverdacht gegen alle Metaphysik, in Transformation
64. Cf. C. G. HempeL, The function of general laws in History, The Journal of Philo- 275. Sobre as "formas de vida" ver acima p. 87.
39-2 (1942) 35-48, e K. R. Popper, La logique de la découverte scientifique, trad. 68. Ver L. WiTTGENSTEIN, Tractatus logico-philosophicus, trad. G.-G. Granger, Galli
sophy,
Thyssen-Rutten/Devaux, Payot, 1990. mard, 1993,5 6, p 93 "As fronteiras de minha linguagem são as fronteiras de meu mundo";
65. W. Dray, Laws and Explanation in History, Oxford University Press, 1957; A. cf. K.-O. ApEL, Wittgenstein und das Problem des hermeneutischen Verstehens, in Trans-
DAnrto, Analytical Philosophy of History, Cambridge University Press, 1965. (N. do À.) formation der Philosophie, t. 1, p. 335-377,
115
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 7 - HERMENÊUTICA "LÓGICA HERMENÊUTICA"?

transforma-se então na compreensão das razões de agir colocadas por uma concretização do projeto hermenêutico. Só se fala de aplicação para
agentes históricos, irredutível a uma explicação relevante da Scientistik; o textos religiosos cuja autoridade se mantém, mesmo que enfraquecida, ou
conhecimento histórico é somente a retificação no duplo sentido de — para textos literários "clássicos", ou seja, capazes de uma reatualização em
uma prova crítica e de uma complicação —
de um jogo de linguagem que
qualquer situação cultural, ou para textos jurídicos cujo valor normativo
já foi jogado antes que a história se constituísse como ciência, ou seja, a se mantém incontestável. Ora, não é esta a relação moderna com aa tradição.
prática narrativa no horizonte de uma tradição cultural. Neste aspecto, o problema colocado pelas culturas não europeias ou não
O que demonstra melhor a complementaridade entre a Scientistik e a americanas é mais claro e mais radical que o nosso. A reaproximação com
hermenêutica não é, contudo, essa retomada do problema do conhecimento o passado não pode ser concebida como aplicação, mas como penetração
histórico numa perspectiva hermenêutica. É no próprio plano do conhe- por uma dúvida radical que equivale a um recuo às vezes doloroso. Con-
cimento científico tomado em seu todo que se deve mostrar a complemen- sequentemente, já não se pode colocar todo recuo por conta da alienação
taridade entre a explicação objetiva e o acordo intersubjetivo de caráter metódica. Ela faz parte da condição propriamente moderna da relação com
prático e linguageiro. Devemos dizer que todo conhecimento reúne as duas a tradição. Nesse sentido, é € mesmo recuo que torna possíveis a apropria-
o

dimensões da práxis: técnica e ética". A práxis moderna mais envolvida ção e a abstração metódica. Apel concorda de bom grado que atualmente
na tecnologia pressupõe, efetivamente, um acordo prévio sobre as possi- tenha ficado difícil manter juntas as duas teses: de um lado, com efeito, é
bilidades e as normas de um ser no mundo considerado lógico. A tradição preciso admitir a inexistência de um ponto de vista neutro de onde pode-
é a ligação e o meio dessa compreensão. Se, portanto, todo conhecimento ríamos olhar a distância todas as tradições, sem o) risco de cair nos impasses
pressupõe implicitamente a existência de uma comunidade de comunica- do historicismo; nesse sentido, a transmissão da tradição continua aa ser a
ção, cabe à hermenêutica fazer dessa pressuposição um tema. Nessa ope- condição de acesso a qualquer objeto cultural; quanto à ilusão metodoló-
ração prova-se a complementaridade entre Scientistik e hermenêutica". gica, a hermenêutica funciona como revelador de ingenuidade. Mas, de
Por que então recorrer a uma terceira disciplina para conciliá-las? Aí outro lado, temos que reconhecer que esta ou aquela tradição não diz nada
Apel e Habermas distanciam-se de Gadamer. Para este, o envolvimento e sua reapropriação imediata nos é proibida. O que resta é tirar vantagem
existencial com ad tradição deve ser entendido como "aplicação" que [opera
a
da própria distanciação, praticar a seu favor uma quase objetivação dos
uma mediação] entre a norma do passado e a situação presente". Com a conteúdos transmitidos para ter acesso a uma apropriação mais mediata,
aplicação, a eficácia da história é devolvida com toda a sua força original, mais complexa, da qual, em muitos casos, ainda não temos a chave".
a despeito da distância temporal. O modelo da interpretação deve então Essa quase objetivação é praticada pelas ciências sociais críticas cujo
ser procurado no trabalho de atualização da norma pelo juiz. modelo é a psicanálise. Ela consiste em tratar as formações culturais
Sem negar que Gadamer saiba perfeitamente que a hermenêutica só cujo sentido ficou estranho como sintomas de relações reais, de estruturas
tem autoridade para opinar quandoaÀ tradição perdeu sua força, portanto materiais pertencentes a uma outra dimensão que a da linguagem. É o caso
numa situação de crise em que a transmissão cultural está ameaçada de dos efeitos de sentido saídos das relações entre trabalho e dominação na
ruptura, Apel e Habermas veem na "aplicação" antes uma limitação do que sociedade industrial capitalista. Entre discurso, trabalho e dominação tecem-
se redes de relações das quais a opacidade, a não transparência, não é aci-
69. Sobre a práxis cf. acima p. 51 s. dental, mas essencial, não é fragmentária, mas sistemática. Assim, uma
70. Este parágrafo resume as ideias expressas em K.-O. APEL, Szientistik, Hermeneutik, hermenêutica que conta com aa capacidade de explicar o implícito apenas
Ideologiekritik, in Transformation der Philosophie, t. 1, p. 1 112-114.
71. Modificamos o texto inicial, no qual Ricoeur referiu-se a "compreender como
"adaptação que 'faz a mediação" entre a norma do passadoe a

situação presente". 72. Cf. ibid.,p. 119s.


11%
"LÓGICA HERMENÊUTICA"?

ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 — HERMENÉUTICA

a) Num primeiro nível ainda formal, todos concordam com a distinção


com aa força do discurso pode ser acusada de idealismo linguístico. Tal her-
entre a intenção universal da hermenêutica e o) caráter limitado dos campos
menêutica se choca com o que Apel considera o prolongamento da história
de experiência onde ad reflexão tem seu ponto de partida. Pode-se assim
natural na história espiritual". Sem essa não transparência de princípio, os
denunciar o caráter limitado da problemática das ciências humanas, mas,
homens poderiam se igualar a suas próprias intenções de sentido e realizar
mesmo em Wahrheit und Methode, essa problemática não cobre todo o
o ideal de mútua identificação que foi o da hermenêutica romântica. Ora, está inserida entre
espaço percorrido pela reflexão; a experiência histórica
os homens até aqui não fizeram realmente sua história; esta é feita em grande
a experiência da arte e a experiência linguageira; a experiência da arte tem
de seu sentido é
parte nas suas costas, por isso a retomada reflexiva integral mesmo uma prioridade toda especial, pois mostra claramente a anterio-
analisar
impossível. Os fatores contingentes da existência social só se deixam ridade da verdade da coisa no julgamento estético; quanto à experiência
no nível de uma explicação quase objetiva cujo modelo é a metapsicologia se a reduzi-
linguageira, ela, com toda certeza, tem sua própria limitação
freudiana. Nesse nível, a construção dos modelos de explicação apela para
mos à problemática do texto ou à da tradução, mas é ela que contém o
uma terminologia e uma conceitualidade de segundo grau das quais os atores tomados como
princípio da superação de todos os domínios limitados
não podem participar. Em compensação, a hermenêutica retoma a vantagem
do terapeuta pontos de partida.
para lembrar que a quase objetivação característica da posição Por isso podemos sugerir outros pontos de partida diferentes dos ado-
é apenas uma comunicação parcialmente suspensa cuja finalidade é reinte-
tados por Wahrheit und Methode. Por exemplo, a retórica dos antigos foi
si mediata e profunda.
grar significações alienadas a uma compreensão de
para aa filosofia grega o que foi para o pensamento luterano, depois para
O
O) resultado é que o saber quase objetivo pertinente
ao modelo tera-
romantismo alemão, a hermenêutica, ou seja, o ato de opor-se à dissolução
da Scientistik.
pêutico não poderia se deixar reabsorver pela objetividade dos laços sólidos com a tradição, o esforço para perceber alguma coisa
Se fosse o caso, a metalinguagem da explicação terapêutica permitiria que
evanescente e trazê-la para a luz da consciência. A retórica também tem
esta criasse um domínio técnico não apenas dos fenômenos considerados,
seu limite, ou seja, ela abrange antes de tudo o discurso oral e sua influência
mas dos próprios homens. Esse domínio técnico só serviria para estender
sobre o auditório, ao passo que a hermenêutica abrange mais a expressão
o controle do homem sobre o homem. A única saída é subordinar a quase
escrita do discurso: além disso, sua pretensão à verdade limita-se ao campo
objetividade das ciências sociais críticas à reflexão sobre si no contexto de
dos argumentos prováveis, capazes de persuadir. Mas essa dupla limitação
uma suprema compreensão de si.
não é suficiente para esconder a universalidade da hermenêutica a partir
Esse estatuto misto das ciências sociais críticas faz da crítica das ideo-
do problema limitado da retórica. Esta tem uma ubiquidade ilimitada que
e a Scientistik.
logias a disciplina mediadora entre a hermenêutica ainda podemos verificar em nossos dias. fA própria ciência, com efeito, só
é culturalmente eficaz por intermédio da retórica que apela para os recursos

4. A réplica da hermenêtica
de Wahrheit und
herméneutique et critique de Pidéologie. Commentaires métacritiques
Methode, in Vart de Écrits I, 123-143 (N. dos E.)]; Replik, in Hermeneutik
A defesada universalidade da hermenêutica foi levada a níveis dife- comprendre. p.
und Ideologiekritik, p. 283-317 [Réplique à "Herméneutique et critique de Pidéologie", in
rentes por Gadamer, por seus discípulos ou pelos que, sem invocar sua L'Art de comprendre, p. 147-174 (N. dos E.)). Para uma crítica de Gadamer, cf.: W. PANNEN-
autoridade em seu favor, se assemelhamad ele". BERG, Hermeneutik und Universalgeschichte, Zeitschrift fiir Theologie und Kirche, 60 (1963)
90-121; E. D. HirscH, Validity in Interpretation, Yale University Press, 1967. Compare com
a filosofia da linguagem de LoHMANN. Sobre a relação geral da hermenêutica com as ciên-
73.Ct. ibid.,p. 1215. cias: Seminar: die Hermeneutik und die Wissenschaften, ed. H.-G. Gadamer, G. Boehm,
74. H.-G. GADAMER, Rhetorik, Hermeneutik und Ideologiekritik, in Hermeneutik Suhrkamp, 1978 (N. do A.).
und Ideologiekritik, p. 57-82 (retomado em Kleine Schriften I, p. 113-130) [Rhétorique,
419
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 — HERMENÊUTICA "LÓGICA HERMENÊUTICA"?

de compreensão da linguagem ordinária. A hermenêutica apela para os resulta diretamente dos conceitos de eficácia histórica e de aplicação de
mesmos recursos quando recorre à atopon em nossa atitude em relação Gadamer, mas se distingue em dois pontos: a "superioridade de origem"
ao mundo e propõe a apropriação bem-vinda da tradição". eo tipo de imutabilidade que Gadamer reconhecia nas obras clássicas para
Dois ou três exemplos contemporâneos confirmam que a universalidade Jauss parecem ter de se subordinar à produtividade da compreensão". Mas,
da hermenêutica pode valer a partir de pontos de partida diferentes daqueles principalmente, a crítica que Gadamer faz à abstração da consciência es-
explorados pelos herdeiros da problemática das ciências do espírito. tética em nome da densidade ontológica da obra e de sua mensagem de
Assim, Hans Robert Jauss tomaad iniciativa de retomar o problema da verdade leva-o a ignorar o conceito-chave de prazer estético, o qual nunca
experiência estética no contexto de uma hermenêutica literária". O
O caráter
pode ser compreendido aa partir das formas degeneradas da cultura estética
hermenêutico de sua iniciativa fica provado pelo cuidado em recuperar do século XIX e menos ainda aa partir de sua exploração pela cultura con-
em sua integralidade a relação entre autor, texto leitor, sem se limitar a
e
temporânea de consumo.
uma estética da produção de obras. À dimensão poética da "produção" ele Essa apologia do "prazer compreensivo" opõe mais a hermenêutica
acrescenta a dimensão propriamente estética da "recepção" e a dimensão literária de Jauss à estética de Adorno do que a distingue da de Gadamer*".
catártica da "comunicação". Ela, assim, se junta com aa retórica de Górgias Para Adorno, o prazer estético está completamente corrompido pela cultura
e de Aristóteles e com a Crítica da faculdade de julgar de Kant, que cons- burguesa, que faz dele, na forma de consumo passivo, Co complemento
tituem as fontes diversas daquilo que podemos denominar uma estética fictício do ascetismo da produção. Somente um ascetismo estético que
da recepção". A iniciativa lembrava, além disso, a hermenêutica por causa fizesse apelo apenas à reflexão e não ao prazer poderia fazer frente, segundo
de seu esforço para reintroduzir o momento reflexivo da interpretação Adorno, à antiAufklirung da indústria e da cultura. Respondendo ad essa
erudita na experiência primária do "prazer compreensivo"?. Nisso ela "estética da negatividade", Jauss opõe a função ao mesmo tempo subversiva
e educativa da obra de arte, em virtude precisamente do caráter socialmente

75. Atopon — o que parece estranho — é um termo empregado por Gadamer em sua "indomável" do prazer estético*!.
contribuição à coletânea de estudos sobre as relações entre hermenêutica crítica das ideo-
e
Mas o prazer estético só pode ser restaurado no nível de uma expe-
logias (H.-G. GADAMER, Rhetorik, Hermeneutik und Ideologiekritik, in Hermeneutik und riência original se trazido de volta a suas origens por meio de uma verda-
Ideologiekritik, p. 64; Rhétorique, herméneutique et critique de Vidéologie. Commentaires
deira história hermenêutica dos afetos desinteressados*. A história con-
métacritiques de Wahrheit und Methode, p. 129).
76. H. R. Jauss, Kleine Apologie der ásthetischen Erfahrung, Universitatsverlag, 1972 ceitual da satisfação, que atrai tanto Agostinho como Górgias e Aristóteles,
[Petite apologie de Vexpérience esthétique, in Pour une esthétique de la réception, trad. €.
Maillard, Gallimard, 1978, p. 123-157 (N. dos E.)]; Asthetische Erfahrung und literarische i

Hermeneutik, Fink, 1977 [Pour une herméneutique littéraire, trad. (parcial) M. Jacob, Galli- 79. "Definitivamente, é clássico o que se conserva porque designa a si mesmo e inter-
mard, 1988 (N. dos E.)]. Cf também W. Iser, Der implizite Leser, Fink, 1972; Der Akt des preta a si mesmo; o que, portanto, fala de forma a não se limitar uma mera declaração
a

Lesens, Fink, 1976 [EAct de lecture. Théorie de Peffet esthétique, trad. Sznycer, Mardaga, 1997 sobre alguma coisa desaparecida [...). O que se chama "clássico" não precisa começar ven-
(N. dos E.)). K. SrierLE, Text als Handlung, Fink, 1975. J.-M. LorMaN, Die Struktur litera- cendo a distância histórica: esta vitória, ele próprio a traz numa mediação constante" (Vérité
rischer Texte, Fink, 1972. J. MuxaRovsky, Kapitel aus der Poetik, Suhrkamp, 1967; Kapitel et méthode, p. 311; destaque de Gadamer).
aus der Asthetik, Suhrkamp, 1970.— K. R. KosELLEK, WD SrempEL, Poetik und Hermeneutik, 80. Th. W. ADORNO, Asthetische Theorie, Suhrkamp, 1970. (N. do A.) [trad. M. Jimenez,
Arbeitsergebnisse einer Forschungsgruppe, Fink, [1970-1977], t. I-VHI. E. Coseriu, Thesen Théorie esthétique, Klincksieck, 1974. (N. dos E.)).
úber Sprache und Dichtung, in WD SrEMPEL (ed.), Beitráge zur Textlinguistik, Fink, 1971. 81. Cf. a crítica da estética de Adorno em H. R. Jauss, Asthetische Erfahrung und li-
H. BLUMENBERS, Der Prozess der theoretischen Neugierde, Suhrkamp, 1973. (N. do A.) terarische Hermeneutik, p. 37-46.
77. Ver a análise da estética da recepção em Temps et récit III, p. 243-259. 82. Cf. Ip., La jouissance esthétique. Les expériences fondamentales de la poiêsis, de
78. Tradução do conceito de Jauss de um "verstehende Geniessen" (H. R. Jauss, Ásthe- VPaisthêsis et de la catharsis, Poétique, v. 10, nº 39 (1979) 261-274 (cf. RicogURr, Temps et récit
tische Erfahrung und literarische Hermeneutik, p. 9). HI, p. 255, nota 1).
"LÓGICA HERMENÊUTICA"?
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 — HERMENÊUTICA

instituições éticas. Assim, o conceito de práxis recupera sua amplitude


catártica da arte através da retó-
é principalmente uma história da função enquanto vida regulada pelos costumes da comunidade".
da expe-
rica, da poética, da apologética*. Ela revela a riqueza ignorada Aristóteles oferece, assim, o modelo de um pensamento que rompeu
riência estética, a
qual une a contestação do mundo e sua transposição a com aa legitimação mítica pelas origens e pela antiguidade e que coloca no
um objeto estético, o afastamento dos papéis sociais e a identificação
lúdica
desenvolvimento das instituições caminhando para sua maturidade o cri-
ao herói imaginário, a força da desobediência e a capacidade de inaugurar tério concreto de sua autenticidade. A filosofia hegeliana do direito, por
novas normas para a ação. sua vez, não diz outra coisa: para ela também o homem encontra sua rea-
A obra de Jauss parece hoje a mais apropriada para preencher uma lidade e sua liberdade na vida concreta no meio de instituições "éticas".
lacuna importante da hermenêutica, a do estudo dos afetos desinteres- Essa demonstração marca a contribuição da história hermenêutica dos
sados em sua relação com aa ficção e a poesia. A noção de prazer estético conceitos de ética e de política para as diversas tentativas da filosofia her-
à
acrescenta uma dimensão nova, não rigorosamente linguageira, menêutica de injetar vigor na phronêsis, no sensus communis, diante das
se enraízam todos os saberes. A
pré-compreensão do mundo na qual pretensões exclusivas do saber científico".
iniciativa refere-se ao debate epistemológico no sentido em que o conceito
de experiência estética reforça a tese da primazia do sensus communis b) Num segundo nível, a filosofia hermenêutica procura responder
estética sobre
[senso comum] sobre o saber conceitual e da comunicação diretamente à objeção de que a hermenêutica estaria limitada por um
o consenso teórico. conceito estreito de incompreensão que a fecharia num idealismo linguís-
A reflexão hermenêutica pode aparecer em outras áreas da experiência tico. Para tanto, ela se esforça para se expandir integrando ao processo da
a
humana, desde que seja restaurado o tecido concreto de relações que compreensão e da interpretação o segmento explicativo ou quase explica-
É o caso das relações
objetivação e a especialização científica querem rasgar. tivo desenvolvido pelas ciências sociais críticas.
entre política e ética na obra de Joachim Ritter, Metaphysik und Politik, O próprio argumento tem dois lados, um polêmico e um construtivo.
Studien zu Aristoteles und Hegel. Ritter pretende inicialmente recuperar Do ponto de vista simplesmente polêmico, a hermenêutica, por suas
com
a plenitude original do conceito grego de ethos, em sua proximidade próprias críticas, poderia reconhecer o caráter incompleto da explicação
toda a
o ato de habitar e com o hábito da casa, para além de redução regras. objetiva das formas sistemáticas de distorção, da forma como ela é con-
Enraízam-se aí o conceito aristotélico de nomos e o conceito hegeliano de
Sittlichkeit. Da mesma maneira, deve ser recuperado o conceito concreto
85. C£.J. RirrER, "Politik" und "Ethik" in der praktischen Philosophie des Aristoteles,
de pólis, para além de sua redução ao Estado, para devolver sua amplitude in Metaphysik und Politik, p. 106-132.
à política, sem limitá-la ao exercício do poder. A Politie grega,
efetivamente, 86. Sobre as implicações da hermenêutica sobre o domínio da exegese bíblica e da

dentro da cidade. E da mesma teologia cristã, cf. M. van EsBroEck, Herméneutique, structuralisme et exégêse, Desclée,
abrange a totalidade das relações vivas 1968; Th. LorenzmEIER, Exegese und Hermeneutik. Eine vergleichende Darstellung der
maneira Hegel subordina o direito, no sentido kantiano, ao conjunto das Theologie Rudolf Bultmanns, Herbert Brauns und Gerhard Ebelings, Furche, 1968; O.
Lorerz, W. SrroLz (Hrsg.), Die hermeneutische Frage in der Theologie, Herder, 1968; G.
StacHEL, Die neue Hermeneutik. Ein Uberblick, Kósel, 1968; P. FRuCHON, Existence humaine
83. Sobre a catharsis, cf. abaixo p. 162. et Révélation. Essais d'herméneutique, Cerf, 1976; E. Biser, Theologische Sprachtheorie und
und Hegel, Suhrkamp,
84.). RirrER, Metaphysik und Politik. Studien zu Aristoteles Hermeneutik, Kôsel, 1970; G. EBELING, Wort und Glaube, Mohr/Siebeck, 1969, t. II. Sobre
1969, 21972. Extrato: "Politik" und "Ethik" in der praktischen Philosophie des Aristo- a renovação da metafísica pela hermenêutica, cf. E. CorETH, Grundfragen der Hermeneutik,
teles, in O. PoGGELER (Hrsg.), Hermeneutische Philosophie, p. 153-176. Cf O. Ip. Die Herder, 1969; Th. M. SeeBoHM, Zur Kritik der hermeneutischen Vernunft, Bouvier, 1972; L.
in G. G. Grau (Hrsg)),
ethisch-politische Dimension der hermeneutischen Philosophie, PAREYSON, Veritã e interpretazione, Mursia, 1971; M. THEUNISSEN, Hegels Lehre vom abso-
und Politik bei Heidegger, Alber,
Probleme der Ethik, Alber, p. 45-81. Ip., Philosophie luten Geist als theologischpolitischer Traktat, De Gruyter, 1970. (N. do A.)
1972 (N. do A.)
123
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 — HERMENÊUTICA "LÓGICA HERMENÊUTICA"?

duzida pela psicanálise ou pela crítica das ideologias. Conforme Habermas "a pretensão da hermenêutica é e continua aa ser integrar à unidade da
e Apel, a explicação deve levar a uma nova compreensão com muita inter- interpretação linguageira do mundo o que passa por incompreensível ou
mediação pertinente a uma hermenêutica expandida e aprofundada. As não universal, e acessível apenas aos iniciados" e que "separar a reflexão
ciências sociais críticas podem, portanto, ter a ambição de levar a com- da práxis parece implicar uma anomalia dogmática que também atinge o
em
preensão ao nível científico transformando a distância alienadora conceito de reflexão emancipadora"*. De outro, é preciso lembrar que a
alienação controlada (kontrollierte Verfremdung)". Mas o uso crítico
da situação hermenêutica autêntica procede de uma relação entre parceiros
se a crítica sociais irredutível à relação entre paciente e médico. É importante, portanto,
objetivação só será impedido de cair na objetivação dogmática
de caráter
parar de se imaginar como simplesmente antitética a toda relação não misturar os dois jogos de linguagem da reflexão hermenêutica e da
tradicional com o passado. Admitir que a reflexão só intervém quando reflexão psicanalítica. Aliás, a tendência a imaginar todo fracasso de diálogo
desmascara falsas pretensões e destrói o dogmatismo da práxis cotidiana em termos de neurose pode substituir a luta legítima das opiniões por uma
évoltar à oposição ingênua herdada da Aufklirung, entre razão e precon- psiquiatria social que iria mesmo no sentido oposto do projeto de eman-
ceito. Mas valorização da reflexão, sempre atrás de relações substantivas
a cipação, tornando-se o adversário um doente que precisa ser curado e,
mais a
para dissolver e afastada de toda tradicionalidade, merece bem portanto, submeter-se ao cuidado médico. Contra o que é preciso lembrar
da
acusação de idealismo do que a afirmação da arbitragem universal que a relação doente/médico só é saudável se o doente procura volunta-
compreensão linguageira. riamente o tratamento médico por causa de uma doença que ele admite e
Nesse aspecto, o caso da psicanálise é singular. De um lado, a herme- querendo uma ajuda que ele solicita.
nêutica só pode ratificar a interpretação dada por Apel e Habermas da Mas, para mim, a hermenêutica só preservará sua credibilidade se não
metapsicologia freudiana, isto é, que ela constitui somente uma quase se limitar a essa polêmica e superar a afirmação quase encantatória de sua
de
explicação de fenômenos, que estes devem ser descritos como casos universalidade". Ora, ela só provará sua validade nas áreas em que o sentido
dessimbolização sistemática e que a ressimbolização constitui a finalidade não for trabalhado intencionalmente se ela mostrar concretamente como
de todo o processo". Mas, mesmo interpretado dessa forma, o modelo a explicação se intercala entre uma compreensão inicial, próxima daquela

psicanalítico merece ser criticado por duas razões. Em primeiro lugar,


existe que usamos nas conversas habituais, e uma compreensão terminal alta-
e

o risco de colocar sobre a reflexão crítica todo o peso da iniciativa para mente intermediada. Já mostramos acima, na leitura menos antitética da
dissolver falsas compreensões resultando de uma pseudocomunicação; o obra de Gadamer, que cada uma das categorias mestras da hermenêutica
modelo psicanalítico tende então a reforçar o privilégio da reflexão num histórica — tradicionalidade, eficácia histórica, fusão dos horizontes —
sentido idealista. Em segundo lugar, o modelo confere aos médicos um invoca um momento crítico complementar: aplicação, distância histórica,
papel exorbitante de especialistas subtraídos ao controle da comunicação dialética da questão e da resposta. Resta fazer a demonstração do valor
social. Nesse ponto, a intervenção da competência psicanalítica na correção heurístico dessa relação dialética em domínios precisos nos quais a arti-
das disfunções da comunicação torna-se um fator perturbador na troca culação entre compreensão e explicação pode ser como tal transformada
social. Diante desses dois perigos, é importante, de um lado, lembrar que em tema.

87. Em sua contribuição para a coletânea Hermeneutik und Ideologiekritik, GADAMER 89. H.-G. GaDAMER, Replik, p. 291 e 310. (N. do A.); [Replique à "Herméneutique et
remete também a essa ideia de Habermas (Rhetorik, Hermeneutik und Ideologiekritik, critique de Pidéologie", in L'art de comprendre, p. 153 e 168. (N. dos E.)]
P- 66). 90. Eis um discreto mas real corretivo feito por Ricoeur à maneira como Gadamer
. 4

88. Cf. a crítica da metapsicologia freudiana em J. HABERMAS, Connaissance et intérét, "replica" à crítica da hermenêutica feita por Habermas. A continuação da frase ainda marca
p.278-304. sua distância em relação à hermenêutica de Gadamer.

125
"LÓGICA HERMENEUTICA"?
ESCRITOS E CONFERENCIAS 7 - HERMENÉUTICA

autor deste ensaio esforçou-se para aumentar a brecha aberta pela


O> junto de signos pode ser aumentado para um número finito de entidades
leitura de Gadamer e estabelecer uma ligação dialética estreita entre o básicas, definidas apenas por seus valores opositivos e suscetíveis de pro-
porcionar, por meio de um jogo de combinações reguladas, toda a variedade
"pertencimento" que incorpora o intérprete a seu domínio investigação
de
das manifestações linguísticas. Quanto à análise textual propriamente dita,
e o"distanciamento" que torna possíveis os procedimentos de explicação
a aplicação do modelo semiológico tende a levar o texto ao nível de entidade
e em geral a atitude crítica diante de todo conteúdo transmitido". Para
autônoma, regida por códigos que funcionam num nível comparável ao
tanto, ele se esforça para comparar a situação epistemológica que prevalece
da gramática erudita e que se exprimem na superfície do texto com diversos
em áreas de investigação tão diversas quanto a análise textual, o conheci-
efeitos de sentido. A noção de intenção de sentido, imaginada como sig-
mento histórico e a teoria da ação.
A correlação entre as três problemáticas é realmente surpreendente. nificação visada pelo autor e conjeturada pelo leitor, fica assim excluída
A análise textual, tomada isoladamente, traz a hermenêutica de volta do campo de análise. Juntando-se então a uma crítica nietzschiana e
a seu terreno inicial, a exegese e a filologia. Nesse sentido, ela representa apoiando-se numa interpretação de Marx ela própria estruturalista, como
a de Althusser, o estruturalismo surge para o grande público como uma
uma limitação do projeto hermenêutico ao "ser para O texto" para falar
como Gadamer". Mas, como vimos, a hermenêutica sempre faz valer sua contribuição maior para a "morte do sujeito", diagnosticada, aliás, na Ar-
Ora, queologia do saber de Michel Foucault*.
pretensão à universalidade a partir de uma experiência privilegiada.
uma causa da influência predominante Diante do desafio semiológico, a hermenêutica não pode apenas afir-
a experiência textual é delas, por
mar que o texto em si seja uma abstração tirada da operação concreta e
exercida, ao menos na França, pelo estruturalismo. Este criou uma situação
nova que suscita uma reavaliação completa das relações entre explica- completa que engloba autor, texto e leitor. Ela também tem de mostrar o
novos conceitos de objeti- que torna possível a abstração do texto e o que legitima o recurso a uma
ção e compreensão". Com efeito, apareceram
vação e de explicação que nada devem a uma transferência
do método das explicação de tipo semiológica. Parece-me que os métodos de abstração e
ciências da natureza para o campo das ciências humanas, como no tempo de objetivação resultam do próprio estatuto da escrita —
ou da inscrição

de Dilthey. Esses novos conceitos estão ligados ao novo modelo semiológico


em geral —
em relação à palavra viva. A escrita, com efeito, não se reduz
a semântica lexical, absolutamente à fixação material do discurso; esta é a condição de um
que se estendeu sucessivamente da fonologia para
como textos fenômeno muito mais fundamental, o da autonomia do texto. Autonomia
depois para entidades linguísticas mais complexas que frase,
aad

literários, mitos, folclore, histórias. Esse modelo semiológico põe em prática tripla: em relação à intenção do autor, em relação à situação cultural e de
todos os condicionamentos sociológicos da produção do texto, em relação,
os recursos lógicos de um conceito de estrutura segundo o qual um con-
finalmente, ao destinatário primitivo". Isso significa que o texto não coin-
cide mais com aquilo que o autor quis dizer; significação verbal e signifi-
P Ricorur, Qu'est-ce qu'un texte? Expliquer et comprendre, in Hermeneutik und
91.
Dialektik, II, p. 181-200 [retomado em Du texte à Faction, p. 137-159 (N. dos E.));
De cação mental têm destinos diferentes. Esta primeira modalidade de auto-
des interprétations. Essais d'hermé-
Vinterprétation. Essai sur Freud, Seuil, 1965; Le conflit nomia já supõe a possibilidade de que a "coisa do texto" escape do horizonte
neutique, Seuil, 1969; La métaphore vive, Seuil, 1975. Podemos comparar esses textos aos
intencional circunscrito de seu autor e de que Co mundo do texto faça ex-
de alguns autores franceses que não estão ligados à tradição hermenêutica: E. LÉVINAS,
Totalité et infini. Essai sur Vextériorité, Martinus Nijhoff, 1961; Ip., Autrement qw'être ou plodir € mundo de seu autor". Mas o que é verdadeiro nas condições
o

Au-delà de Vessence, M. Nijhoff, 1978; H. MaLDINEY, Aitres de la langue et demeures de la


U
pensée, L Âge d'homme, 1975; M. Henry,
Lessence de la manifestation, PUF, 1963; 1p., Marx,
94. M. Foucautr, DVarchéologie du savoir, Gallimard, 1969.
Gallimard, 1976, 2 v. Na mesma direção, em inglês, Ch. TavLoR, Explanation of Behaviour,
95. Ver De Pinterprétation, in Du texte à ) "action, p. 31, e acima p. 29,69, 82.
Routledge & Kegan Paul, 1964. (N. do A.)
96. Cf. Du texte à Vaction, p. 168: "o que deve ser compreendido [...) não é inicial-
92. Ver acima p. 102 s.
mente quem fala atrás do texto, mas aquilo sobre o que se fala, a coisa do texto, ou seja, O
93. Ver acima p. 23.

12%
"LÓGICA HERMENÊUTICA"?
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 — HERMENÊUTICA

e assim como está hermenêutica de Dilthey*. Já se falou da retomada da disputa em língua


psicológicas também o) é nas condições sociológicas,
fazer mesma coisa inglesa na filosofia hermenêutica continental. Mas a discussão não toca
pronto para liquidar o autor está menos pronto para
arte, da obra literária, da
a

no problema de saber como aa pesquisa (inquiry) histórica objetiva e —


na ordem sociológica; a característica da obra de
obra comum é sempre transcender suas próprias condições psicossocio- explicativa
— se articula com a compreensão sem a qual o historiador seria

ilimitada de leituras, elas incapaz de ligar o menor significado aos fatos que descreve e explica. Pro-
lógicas de produção e se abrir assim a uma série
em suma, vavelmente na própria atividade narrativa é que deveríamos procurar a
próprias situadas em contextos socioculturais sempre diferentes;
faz parte da obra de arte se descontextualizar, tanto do ponto de vista so- articulação da explicação com a compreensão".
de outra forma, Nós nos deteremos um pouco mais no terceiro "lugar", o da teoria da
ciológico como do psicológico, e poder se recontextualizar da
o que faz o ato da leitura. Disso resulta que a mediação do texto não po- ação. Aqui, a hermenêutica encontra, inesperadamente, uma corrente
deria ser tratada como uma extensão da situação dialogal. Neste diálogo,
filosofia analítica vinda de Wittgenstein e de Austin. Neste particular, o
com efeito, o vis-à-vis do discurso é dado antecipadamente pelo próprio paralelismo entre as duas situações é particularmente instrutivo. A dico-
Para além tomia, parecida com aquela que combato no campo textual, opôs um
colóquio; com aa escrita, o destinatário original é transcendido.
deste, a obra cria por si mesma uma audiência virtualmente levada quem
a campo intencionalista um campo causal. Para os primeiros, o jogo de
a

quer que saiba ler". Podemos ver nessa liberdade condição


a mais impor- linguagem incluindo expressões significantes como ação, intenção, motivo,
de
tante para o reconhecimento de uma instância crítica no centro da inter- agente etc. é irredutível ao jogo de linguagem contendo as expressões
faz parte da própria mediação. movimento, de causa e de comportamento. Ora, talvez esse dualismo seja
pretação. Nesse sentido, o distanciamento
tão insustentável quanto o da compreensão e da explicação textual'"". E
Não se pode dizer, portanto, que passagem pela explicação seja destrutiva
a
isso por várias razões. Em primeiro lugar, a experiência da ação se distribui
para a compreensão intersubjetiva. É uma mediação pedida pelo próprio
numa gama contínua de casos, indo da motivação racional a uma moti-
discurso a partir do momento em que ele se exterioriza em sinais visíveis,
inscrito em "códigos literários". vação pulsional na qual os motivos são causas no sentido aristotélico do
Mas aa teoria do texto não é o único campo em que a dialética da ex- termo. Em seguida, talvez seja preciso ressaltar que nenhum motivo tem
em tema como tal. Para valor explicativo se não é também uma causa. Neste aspecto, a fenomeno-
plicação e da compreensão pode ser transformada
uma antropologia filosófica, a teoria do texto apenas um dos "locais" em
é logia do mundo da vida, pouco familiar a uma filosofia analítica, seria
que o debate pode se enriquecer. provavelmente, nesse estágio, a única habilitada a fazer entender em que
A teoria da história é o segundo desses locais. Aí também a oposição sentido o corpo próprio constitui, no plano ontológico, a raiz comum para
entre positivismo e antipositivismo pede hoje uma visão mais dialética das o regime da causalidade e para o da motivação, portanto também para a

relações entre compreensão e explicação. Os argumentos apresentados por explicação e a compreensão!?!. Um argumento ainda mais decisivo contra
aos da
Dray, Danto, Mink etc. contra o modelo hempeliano juntam-se
98. L. O. Mink, The autonomy of historical understanding, in W. H. Drax, Philosophi-
cal Analysis and History, Harper & Row, 1966, p. 160-192.
diante do texto" (destaque de Ricoeur;
tipo de mundo que a obra expõe de algum modo 99. Ver P. Ricoeur, Temps et récit I, p. 137-313.
cf. abaixo p. 175 s. Ver sobre isso D. Frey, V'interprétation et la lecture chez Ricoeur et
100. Ver acima p. 27 s.
Gadamer, PUE, 2008 (De la "chose du texte" [Gadamer] au "monde du texte" [Ricoeur],
101. Em Philosophie de la volonté I Le volontaire et Pinvolontaire (Aubier, 1950), Ricoeur
p.241s.). analisou demoradamente a distinção entre causa e motivo relacionada à ação do "corpo
97. CE H.-G. GADAMER, Vérité et méthode, p. 414: "o que está registrado por
escrito
mundo a uma esfera de sentido da qual também fazem parte próprio" ou corpo do sujeito (também chamado "corpo-sujeito", em oposição ao "corpo-
é levado aos olhos de todo o
objeto" reificado); cf., por exemplo, p. 64.
todos os que sabem ler".
429
ESCRITOS E CONFERENCIAS 2 - HERMENÊUTICA "LÓGICA HERMENÊUTICA"?

o dualismo semântico e epistemológico é fornecido pelo exame das con- acompanha e fecha a explicação. Nesse sentido, a compreensão envolve a
and
dições sob as quais uma ação insere-se no mundo. Em Explanation explicação. Em contrapartida, a explicação desenvolve analiticamente a
Understanding, H. von Wright propõe uma reformulação das condições compreensão. Esta é a projeção, no plano epistemológico, de uma impli-
da explicação, de um lado, e das da compreensão, de outro, que permite cação mais profunda, no plano ontológico, entre o pertencimento de nosso
organizá-las junto na noção de intervenção intencional no
mundo!?, A ser aos seres e ao ser e o distanciamento que torna possível toda objetivação,
reformulação das condições de explicação procede da teoria dos sistemas toda explicação e toda crítica.
e de uma análise rigorosa da diferença entre condição necessária e condição
suficiente. fA possibilidade da ação é introduzida pela consideração das c) Esta última observação introduz ao terceiro nível. Diz respeito ao
análise pre- caráter transcendental da reflexão da hermenêutica sobre seu próprio
condições de isolamento de um sistema fechado submetido a
cedente. Aprendemos a isolar um sistema colocando-o em movimento. É discurso.
o que fazemos fazendo corresponder uma ação que podemos fazer
—
uma Se a hermenêutica não é uma antiepistemologia, mas uma reflexão
"ação de base" no entender de Danto
—
com o3 estado inicial de um siste- sobre as condições não epistemológicas da epistemologia (primeiro nível),
ma'º, É assim que um agente intervém no curso das coisas. À intervenção se ela supõe uma fase explicativa, um momento crítico, que confere um
é o lugar em que se cruzam a compreensão de nossos poder-fazer e a ex- estatuto epistemológico à compreensão (segundo nível), ela não deveria
e fisica- assumir para si mesma o3 tipo de cientificidade que, desde o idealismo
plicação dos sistemas reais. Assim, a dicotomia entre mentalismo
lismo parece resultar de uma ignorância da ação humana no mundo. O alemão, está ligada aos argumentos transcendentais? É a proposta de R.
resultado do modelo da intervenção é que as ciências humanas solicitam Bubner no artigo "Uber die wissenschaftstheoretische Rolle der
uma situação epistemológica específica que coloca em ação uma explicação Hermeneutik"'5, A hermenêutica é, na verdade, uma reflexão sobre as
quase teleológica e uma explicação quase causal. Assim, justifica-se
o es- "pressuposições" de toda compreensão do mundo, portanto sobre as con-
tatuto complexo da explicação nas ciências sociais e particularmente em dições de possibilidade dos saberes que se constroem sobre essa compreen-
história. Não podemos ficar indiferentes diante da convergência dessas são. Nesse sentido ela é um transcendentalismo, de um gênero especial,
conclusões com as de Karl-Otto Apel a respeito da condição das quase- contudo, como mostrou Apel opondo a priori corporal e social a a priori
explicações na crítica das ideologias. Tanto é verdade que
Von Wright re- i
da consciência.
conhece, no primeiro capítulo de seu livro, permanência das "duas tra-
a ' Mas a analogia passa a ser um engano quando perdemos de vista a
a Galileu e outra diferença essencial entre a pretensão inerente ao transcendentalismo de
dições" da investigação científica, das quais uma ele liga
I
i
'

a Aristóteles!º!. Não surpreende, portanto, que sua tentativa para determi- conferir a algum sujeito epistemológico a transparência para si-mesmo,
nar os pontos de interseção epistemológicos entre as duas tradições junte- assim como o) sistema das condições de possibilidade de todos os saberes
se aquelas de uma parte da hermenêutica pós-heideggeriana. (inclusive o saber sobre si mesmo), e o reconhecimento, essencial à her-
) resultado dessa tripla análise é que compreensão e explicação não
O menêutica, do não domínio radical e da não transparência a si das condi-
se opõem como dois métodos. Para falar francamente, somente a explicação ções de todo discurso. A' historicidade dessas condições consiste precisa-
é metódica. A compreensão é o momento não metódico que precede, mente na impossibilidade da reflexão total.

102. G. H. von WRIGHT, Explanation and Understanding, Cornell University, 1971 105. R. BusNER, Úber die wissenschafistheoretische Rolle der Hermeneutik, in Dialektik
[2004]. (N. do A.) und Wissenschaft, p. 89-111.
103. CE. A. DANTO, What we can do, Journal of Philosophy, 60 (1963) 435-445. 106. K.-O. ApeL, Szientistik, Hermeneutik, Ideologiekritik, in Transformation der
104. Ver G. H. von WRiGHT, Explanation and Understanding, 2004, p. 170. Philosophie, t. II, p. 99.
131
"LÓGICA HERMENÊUTICA"?
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 - HERMENÊUTICA

É nesse sentido que Gadamer pode dizer no começo de sua Replik: "se uma teleologia "evidente". É a de uma radicalização e de uma universali-
a hermenêutica é a Verstiândigung, fica, contudo, difícil entender sobre a zação crescentes, procedendo de um primeiro estágio em que a herme-
hermenêutica pelo menos enquanto a discussão for governada por con- nêutica não passa de uma coletânea de regras práticas espalhadas nos
ceitos não elucidados de ciência, de crítica e de reflexão"
!º", A tese final da domínios da exegese bíblica, da filosofia clássica e da jurisprudência, num
hermenêutica filosófica é que essa elucidação não pode ser concluída. segundo estágio em que a hermenêutica se promove a uma reflexão epis-
A hermenêutica é, na verdade, mais do que uma arte, ela é uma Kuns- temológica sobre a compreensão em geral, finalmente num terceiro estágio
tlehre'*. Como tal ela se assemelha à phronêsis, que supera toda techne. Ela em que a hermenêutica se pensa como filosofia hermenêutica e em que a
envolve, portanto, um saber de tipo reflexivo. Mas a reflexão não poderia epistemologia se enraíza na ontologia. Mas essa teleologia da história da
se tornar tudo nessa atividade teórica. Ela é sempre apenas o segmento hermenêutica — que não difere da manifestada por outras escolas de
crítico de uma operação total que nunca rompe seus laços com uma com- pensamento em seus desenvolvimentos
—
não constitui a historicidade

preensão pré-científica do mundo trazida por uma comunidade linguageira profunda da hermenêutica, a saber, o fato de ela própria pertencer a uma
("Gesprâchsgemeinschaft"'). É essa compreensão que se liga, em última história do pensamento que não é inteiramente transparente a ela própria.
instância, à pretensão à universalidade, na medida em que nenhum limite Por isso essa história não se reduz à autobiografia de um movimento, mas
pode ser dado à comunicabilidade do compreender. constitui uma interpretação hermenêutica de sua própria história. Nin-
A impossibilidade da reflexão total explica provavelmente por que guém pode impedir que a hermenêutica tenha nascido quando a tradição
a filosofia hermenêutica é mais sensível à sua história que nenhuma outra perdeu sua força normativa, desde a época dos humanistas e de Lutero,
filosofia. Realmente, é impressionante ver como poucos relatos de filosofia depois no tempo da Aufklirung e do romantismo, e que sua formulação
hermenêutica deixam de começar por uma história da questão hermenêu- heideggeriana e pós-heideggeriana seja contemporânea de uma crise mais
tica!!o, Com certeza, é possível descobrir nessa história um sentido objetivo, radical da transmissão cultural, pela união entre o prestígio cultural da
ciência e a suspeita inoculada no coração da cultura moderna por Marx,
107. H.-G. GADAMER, Replik, p. 283. (N. do A.); cf. Réplique à "Herméneutique et Nietzsche e Freud!!!.
critique de PIdéologie" in Part de comprendre. Ecrits I, p. 147. (N. dos E.) A esse primeiro sinal de finitude, característico da "situação" da her-
108. Ver Du texte à Vaction, p. 78 (com Schleiermacher): "a hermenêutica nasceu desse
esforço para alçar a exegese e a filosofia ao nível de uma Kunstlehre, isto é, de
uma 'tecno- menêutica —
e, portanto, constitutivo de sua própria Befindlichkeit —, se
logia" que não se restringe a uma mera coleção de operações sem ligação"
junta outro sinal, próprio de seu "discurso" e, portanto, inerente a seu
109. H.-G. GADAMER, Replik, p. 289. (N. do A.); em Replique à "Herméneutique et
próprio Verstehen, isto é, que ad filosofia hermenêutica não pode escapar
a

critique de PIdéologie", essa expressão é traduzida como "comunidade dialogal" (p. 152).
(N. dos E.)
110.N. HenrICHS, Bibliographie der Hermeneutik und ihrer Anwendungsbereiche seit
Schleiermacher, Philosophia, 1968. O famoso trabalho de Dilthey
— o Preisschrift de
R. Klibansky, La Nuova Italia, 1969, p. 360-372. O. PôGGELER, Einfiúhrung, in Hermeneutische

1860 — Leben Schleiermachers, publicado somente em 1966 por M. Redeker (Gesammelte


Philosophie, p. 7-71. Encontraremos em O. PógceLER, G. BOEHM, Seminar. Philosophische
Hermeneutik, uma série de trechos de autores pertencentes à "pré-história da hermenêutica
dos
Schriften, Vandenhoeck & Ruprecht, t. XIV, 2) [primeira edição de Reimer em 1870 (N. romântica", à "hermenêutica romântica", a "Dilthey e sua escola", enfim, a alguns contem-
E.)). já era uma história da hermenêutica. Assim como o resumo de 1900, Die Enistehung
der Hermeneutik (Gesammelte Schriften, t. V, p. 317-338) [La naissance de herméneutique, porâneos, entre os quais H. Lipps. Cf. também R. E. PALMER, Hermeneutics. Interpretation
in W. DirHEy, Écrits d'esthétique, seguidos de La naissance de Pherméneutique, ed. S. Theory in Schleiermacher, Dilthey, Heidegger and Gadamer, Northwestern University Press,
1969; E. CosrIU, Die Geschiche der Sprachphilosophie von der Antike bis zur Gegenwart.
Mesure, trad. D. Cohn, E. Lafon, Cerf, 1995, p. 291-307; trad. mais antiga mas integrante
Eine Úbersicht, TBL-Verlag, 1969, I; 1972, IH. (N. do A.) Para concluir, acrescentemos a
dos "complementos extraídos dos manuscritos": Origine et développement de
história da hermenêutica proposta pelo próprio Ricoeur em Du texte à Paction, p. 75-100!
Vherméneutique, in DiLrHey, Le monde de Vesprit, trad. M. Remy, Aubier, 1947,t.1,p.319-
340 (N. dos E.)). H.-G. GADAMER, Hermeneutik, Historisches Worterbuch der Philosophie, (N. dos E.)
ed. ). Ritter, Schwabe, 1974; ID., Hermeneutik, in Contemporary Philosophy: A Survey, ed.
11. Sobre os "mestres da suspeita" ver acima p. 22. s.

433
— "LÓGICA HERMENÊUTICA":
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 HERMENÊUTICA

da história da metafísica"??, Se ela insiste no caráter transcendental de sua 5. O confronto entre hermenêutica e filosofia analítica
reflexão, ela inscreve-se nas filosofias do sujeito; se trata da diferença entre
ciências do espírito e ciências naturais, ela se situa no legado da filosofia Nessa crônica nós propusemos aa realização de duas tarefas: refletir
sobre as condições e as pressuposições do próprio discurso da hermenêu-
hegeliana do espírito objetivo; se tenta ligar as produções do espírito
às

expressões da vida, ela se compromete numa síntese talvez impossível entre tica, situar esse discurso em relação ao das filosofias para as quais as preo-
Concluímos a
filosofia do espírito e filosofia da vida; se traz para o Dasein a compreensão cupações lógicas e epistemológicas são determinantes.
histórica do mundo, ela talvez ainda se deixe aprisionar por uma antropo- primeira tarefa. Quanto à segunda, ela foi esboçada por ocasião da dis-
de cussão sobre os limites da hermenêutica. Particularmente começamos a
logia filosófica que acumula e resume sem aboli-las as três heranças
Kant, de Hegel e do romantismo". A "Kehre" de Heidegger não teria evocar a analogia presumida entre hermenêutica da linguagem, no sentido
sentido sem essa declaração". Quanto 1 filosofia heideggeriana posterior
à de Heidegger e de Gadamer, e "jogos de linguagem" no sentido do último
à Kehre e suas sucessivas tentativas para repensar a ontologia, depois para Wittgenstein"s. Chegou a hora de retomar o debate propriamente dito,
do período pós-
transcendê-la em benefício de um pensar próximoe distante do poetizar, pois ele se tornou um dos desafios mais importantes
ela confirma que nunca acabamos com aad tradição especulativa da filosofia heideggeriano.
ocidental e que sua "destruição" só pode ser uma maneira de pensar mais É evidente hoje que as duas correntes de pensamento se cruzam na
questão da linguagem. Mas isso não basta para criar
uma convergência.
primitivamente aquilo que esta tradição pensou".
Eis a razão essencial do debate hermenêutico com sua própria história. Em vez da maior convergência, o que constatamos é o surgimento da di-
formas
O debate não é um prefácio cronológico de uma tarefa intemporal. É uma vergência, mesmo que, posteriormente, seu aprofundamento sugira
mais sutis de interação.
luta, no coração de sua consciência de finitude, para explicitar suas pres-
Karl-Otto Apel, que abriu esse debate, propõe como ponto de partida
suposições implícitas, seu próprio não dito, e ela sabe, neste particular, que
a analogia superficial entre a função atribuída de um lado e de outro à
uma explicação integral é impossível. Essa finitude da interpretação que
linguagem na compreensão do mundo'". A partir daí, ele
institui dois
afeta o discurso da hermenêutica sobre si mesma é o que impede finalmente
níveis de confronto. O) nível de Carnap e do Wittgenstein do Tractatus, de
esse discurso de se assimilar àÀ filosofia transcendental.
um lado, o nível das Investigações filosóficas, de outro".
No primeiro nível, todas as oposições podem se resumir numa relação
112. Ricoeur apropria-se do vocabulário heideggeriano; cf. o título do S 29 de M.
inversa entre sentido e compreensão. Do lado da hermenêutica, de Lutero
HEIDEGGER, Sein und Zeit; Das Da-Sein als Befindlichkeit; Le Da-Sein comme affection, in
Être et temps, p. 113. E EtambémoS S 31 de Sein und Zeit caracteriza o Da-sein como Verstehen, a Schleiermacher, pode-se dizer que o sentido não é duvidoso; compreen-
como compreender (Être et temps, p. 118).
113. Para uma definição, cf. ibid., p. 30: "Aquele sendo que é sempre nós mesmos e que
tem entre outras a possibilidade essencial de questionar, nós o percebemos terminologica- 116. Ver acima p. 115.
mente como DASEIN". 117.K.-O. ApEL, Wittgenstein und Heidegger. Die Frage nach dem Sinn von Sein und
14. Sobre a Kehre [reviravolta, inversão], ver a carta escrita por M. Heidegger a J. der Sinnlosigkeitsverdacht gegen alle Metaphysik (1967); Heideggers philosophie Radika-
der Sprache (1968);
Beaufret, na qual revela o abandono da terceira parte de Ser e tempo como o ponto no qual lisierung der "Hermeneutik" und die Frage nach dem "Sinnkriterium"
Verstehens (1965), in Transformation
"tudo parece ter desmoronado ["Hier kehrt sich das Ganz um"). Essa parte não foi publi- Wittgenstein und das Problem des hermeneutischen
cada, porque o pensamento não chegou a exprimir claramente essa reviravolta e não chegou der Philosophie, t. I, p. 225-335. (N. do A.)
ao fim com a ajuda da língua da metafísica" (Lettre sur "humanisme, texto alemão, trad. e 118. C£ Ip., Wittgenstein und Heidegger. Die Frage nach dem Sinn von Sein und der

apresent. R. Munier, Aubier, 1964, p. 69). Sinnlosigkeitsverdacht gegen alle Metaphysik, in Transformation der Philosophie, p.231-246,
15.C£ o y 6 de Être et Temps: La táche d'une destruction de Phistoire de Pontologie
$ 250-275, e também Wittgenstein und das Problem des hermeneutischen Verstehens, in ibid.,
(Être et temps, p. 38-42). p. 335-377.
435
"LÓGICA HERMENÊUTICA"?
ESCRITOS E CONFERENCIAS2 HERMENÊUTICA

são os mais significativos. São exatamente os de Carnap e do Tractatus.


dê-lo é o problema; mantém-se o crédito dado ao sentido, mesmo quando
Podemos resumir sua objeção no seguinte: a hermenêutica não pode for-
este perdeu sua força normativa!!?, Assim, com Dilthey, o sentido é a ex-
mular seus enunciados sobre o sentido do ser sem tratar o ser como um
pressão da vida infinita. Depois, com Heidegger, o fundamento do sentido
predicado, portanto sem cair na confusão já anunciada por Kant em sua
já não está na vida, mas no Dasein que sempre se imaginou inserido no
crítica das provas clássicas da existência de Deus!?!. Diante dessa crítica, o
mundo. Com Gadamer, a certeza do sentido ainda precede a interrogação
único recurso da hermenêutica é replicar que os critérios de sentido que
sobre o compreender: a beleza da obra de arte já tomou conta de mim
lhe aplicam comportam pressuposições obscuras que, por sua vez, são
antes que eu a julgue, a tradição a trouxe antes que a colocasse a distância,
inerentes a uma hermenêutica. Para ela, os critérios "lógicos" de sentido
a linguagem já me ensinou, antes que a domine como sistema de signos
exprimem um pensamento que de antemão limitou todo ser suscetível de
disponíveis. Em todas estas formas, o pertencimento ao sentido precede
ser encontrado aad coisas subsistentes ou disponíveis. Em outras palavras a
toda lógica da linguagem. Por isso a hermenêutica é afinal uma luta contra
a ignorância daquilo que sempre foi compreendido, seja porque a igno- Sprachlogik e a Grammatik permanecem dentro dos limites de uma onto-
rância procede das confusões transmitidas pela metafísica (confusão entre logia das coisas subsistentes ou disponíveis. Ora, uma das tarefas da her-
menêutica é preservar a diferença entre o disponível e aquilo para o qual
"o sendo" que nós somos e "os sendos" subsistentes ou manipuláveis,
há o disponível em geral. E é para preservar essa diferença que a herme-
confusão do ser enquanto ser com um "sendo" supremo na ontoteologia;
nêutica apela a uma dimensão da linguagem que não acontece na análise
ignorância da diferença ontológica entre ser e sendo), seja porque ad in-
proporcional e que, no entanto, é o lugar onde acontece o acordo prévio
compreensão procede da objetivação e da alienação metodológica.
sobre o sentido do disponível e do não disponível. A projeção dessa di-
Para a filosofia analítica, a questão não é a compreensão, mas a pres-
mensão de linguagem sobre o plano gramatical e lógico não esgota nem a
suposição do sentido. A questão é o critério de diferença entre o que pode
ser considerado a priori como lógico ou sem sentido. A única forma de intenção nem ad eficácia. Por isso, uma discussão sobre o uso predicativo
da palavra "ser" não esgota absolutamente o "sentido" pré-proposicional
decidir é estabelecer os critérios de sentido a priori, antes de qualquer
dos enunciados da hermenêutica, conforme a distinção já anunciada entre
consideração de conteúdo. Aliás, é aí que começam as divergências dentro
da filosofia analítica: uns colocamo) critério na forma lógica da linguagem, lógica apofântica e lógica hermenêutica!?.
O confronto no nível do Tractatus parece, portanto, resolver-se num fim
outros na possibilidade de verificação empírica das proposições, finalmente
mútuo de não receber. Outros autores, contudo, tentaram discernir algumas
outros numa forma ou outra de eficácia prática ou de valor operacional.
Mas nessas três formas a "crítica do sentido" leva à conclusão de que a convergências entre Heidegger e o Tractatus. Assim, Jórg Zimmermann,
aumentando uma brecha aberta por Fahrenbach, considera hermenêutica a
pressuposta pré-compreensão invocada pela filosofia hermenêutica só se
questão da condição de possibilidade da homologia de estrutura postulada
apresenta em proposições que se revelam não falsas, mas sem sentido!?.
pelo Tractatus entre o sentido proposicional e os estados de coisa mundanos!?.
Quando parecem lógicas é porque apresentam, para uma gramática su-
perficial, uma estrutura semelhante à das proposições com sentido.
Neste particular, os ataques contra a hermenêutica feitos pelos parti- 121. Ver em La critique de la raison pure de E. Kant as partes consagradas à impossi-

dários do primeiro critério de sentido —


pela forma lógica da linguagem
— bilidade das provas da existência de Deus: Oeuvres philosophiques, ed. F. Alquié, trad. De-
lamarre/Marty, Gallimard, 1980; t. 1: Des premiers écrits à la "Critique de la raison pure",
p. 1204-1246 (A 584/B 612 a A 642/B 670; III, 392-426); cf. abaixo p. 187 s.
122. Ver acima p. 96, 97 s.
119. K.-O. Apel observa o mesmo fenômeno; cf. ibid., t. 1, p. 337.
123. H. FABRENBACH, Die logisch-hermeneutische Problemstellung in Wittgensteins
120. Ver a segunda parte do primeiro volume do livro de Apel Hermeneutik und Sinnkri-
Tractatus, in Hermeneutik und Dialktik, t.II, p. 25-54; Positionen und Probleme gegenwãr-
tik (Hermenêutica e crítica do sentido): Transformation der Philosophie, t. 1, p. 223-377.
Ê
ba
g
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"LÓGICA HERMENEUTICA"?
ESCRETOS E CONFERÊNCIAS 2 - HERMENEUTICA

Neste aspecto, a tese de que o sentido se "mostra", sem que possa ser "dito", A relação mais aparente entre a hermenêutica de Heidegger e as Inves-
o que torna possível a função de Darstellung [representação] dos enun- tigações filosóficas de Wittgenstein permite cercar o problema mais de
ciados, define o quadro hermenêutico do Tractatus. A tese de que "a pro- perto.
posição indica seu sentido" vem aa ser a resposta mais geral de Wittgenstein É, com efeito, neste nível que Karl-Otto Apel percebe a analogia mais
à questão hermenêutica das condições da compreensão do sentido! O estreita e a divergência mais profunda entre os dois pensadores. A analogia
mesmo se deve dizer sobre sua afirmação de que "a linguagem cuida de si é clara: a ligação estabelecida por Wittgenstein entre jogos de linguagem

mesma"!5, AA reflexão sobre os limites possíveis do "sentido" também tem e formas de vida não lembra os laços percebidos por Heidegger entre com-

um alcance hermenêutico, portanto sobre a fronteira entre sinnvollen preensão e cuidado? A ideia de Wittgenstein de que todo conhecimento
a do mundo está articulado no plano linguístico não encontra eco na noção
[lógico] e unsinnig [sem sentido] e sua implicação "solipsista", segundo
faz parte da herme- de dimensão linguageira do mundo de Gadamer? A crítica da linguagem
qual o sujeito constitui o limite do mundo. Também
nêutica a tese negativa segundo a qual a filosofia não pode se constituir particular nas Investigações filosóficas não se prolonga na ideia do acordo
numa metalinguagem capaz de "explicar" sua relação com a linguagem- prévio, da transmissão cultural, comum a Gadamer e a seus sucessores,
de a Habermas e Apel inclusive? E a teoria dos atos de discurso não se assemelha
objeto, assim como ad tese positiva, que é sua contrapartida, que relação
às antecipações da lógica hermenêutica de Hans Lipps? A tentativa de
reflexiva da filosofia na linguagem não se exprime em proposições sinn-
vollen, mas em Erliiuterungen [esclarecimentos], que são ubsinnig, pois aproximação parece ainda encorajada pelo fato de as duas escolas terem
como adversário comum a metafísica clássica, pouco importa se for a coisa
fazem ver sem dizer'%. Ainda temos de acrescentar que ) fato de as reflexões
o

em si, o sujeito absoluto ou o solipsismo. Para uma, são pseudoproblemas


de Wittgenstein sobre a relação entre dizer, mostrar e se calar terem con-
e de Kafka constitui desmascarados pela gramática "erudita", para outra são as formas mais
jugado sua influência com as de Hofmannsthal, de Rilke
defendidas da compreensão errônea própria da "metafísica" da filosofia
um depoimento indireto sobre o caráter implicitamente hermenêutico das
ocidental. Mas cava-se um abismo precisamente entre uma crítica que
teses do Tractatus"".
dissolve o problema como uma ilusão metafórica e um pensamento que
Os comentários de Zimmermann não contradizem formalmente os
vê na tradição especulativa do Ocidente formas dogmáticas alienadas que
de Karl-Otto Apel. Se existe uma hermenêutica de Wittgenstein, trata-se
sem dúvida de outra hermenêutica. A questão, na verdade, é saber se é podem ser reconduzidas a uma forma mais original. A consequência dessa
"hermenêutica", enorme diferença de apreciação do passado é uma apreciação muito diversa
possível falar de hermenêutica fora da tradição da própria tarefa da filosofia. Se é difícil definir a hermenêutica em termos
de reflexão transcendental, essa definição não é problemática, mas sim-
Rundschau, 35 (1970)
tiger Philosophie, Teil II: Philosophie der Sprache, Theologische plesmente impossível a partir das Investigações filosóficas. Aos olhos da
277-306; 36 (1971) 125-144, 221-243. J. ZIMMERMANN, Wittgensteins sprachphilosophische
filosofia hermenêutica, a teoria dos jogos de linguagem é incapaz de refletir
Hermeneutik, Klostermann, 1975. (N. do A.)
124. L. WiTIGENSTEIN, Tractatus logico-philosophicus, 4.022, p. 53. sobre suas próprias condições de possibilidade. Se o discurso é sempre
125. ZIMMERMANN, Witigensteins sprachphilosophische Hermeneutik, p. 7, 23-24, 50 considerado dentro de um jogo de linguagem, como fica a reflexão sobre
(N. do A.). —
Citação de Wittgenstein, Carnets 1914-1916, trad. G.-G. Granger, Gallimard, essa condição linguageira? Se a compreensão do ser se identifica com um
si. mesma" (p.
1971, 26.4.1915: "Temos de reconhecer de que maneira a linguagem cuida de
92; destaque no texto). (N. dos E.) jogo de linguagem, em qual jogo de linguagem ele é dito? Se não queremos
126. Ver WiTTGENSTEIN, Tractatus, 4.112, p. 57:"O objetivo da filosofia é o esclareci- reduzir a atividade filosófica a uma convenção verbal, o jogo de linguagem
mento lógico dos pensamentos. A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade. Uma obra
filosófico precisa estar bem enraizado numa compreensão do ser no mundo
filosófica se compõe essencialmente de esclarecimentos".
127. Cf]. ZIMMERMANN, Wittgensteins sprachphilosophische Hermeneutik, p. 77-80. anterior a todo jogo de linguagem. É aí que a apreciação divergente da

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"LÓGICA HERMENÊUTICA"?
ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 — HERMENÊUTICA

essencialmente na designação da linguagem natural como base e horizonte


tradição filosófica projeta todas as suas consequências: se toda linguagem
de toda compreensão de sentido. Podemos, assim, falar de círculo herme-
especulativa veicula somente pseudoproblemas que deve, em vez de resol-
ver, dissolver, o mesmo não acontece com ad filosofia? Karl-Otto Apel não
nêutico em Wittgenstein. Ele estava presente, desde o Tractatus, na tese do
exclui que uma nova convergência possa nascer dessa última divergência!?. isomorfismo entre proposição e estado de coisas, assim como em seu co-
Mas ainda é muito cedo para afirmar isso. Quando muito, podemos dar a rolário, a impossibilidade de filosofar de fora sobre a linguagem. Porém,
com as Investigações filosóficas a articulação da pré-compreensão incluída
dupla sugestão: toda tentativa da filosofia analítica para escapar do puro
convencionalismo, ou para tomar consciência da reflexão fundamental da na linguagem já não consiste no "deixar-ver" de uma estrutura apriorista
de natureza onto-lógica, mas no reconhecimento das pressuposições fac-
linguagem sobre suas próprias determinações e suas próprias instituições,
tuais do falar no contexto das formas de vida. O autor, é verdade, observa
aponta na direção de uma hermenêutica da linguagem. Inversamente,
parece que todo esforço da filosofia hermenêutica para definir as condições que a possibilidade de aproximação entre Wittgenstein e Heidegger-Ga-
de uma inscrição proporcional de sua lógica hermenêutica deve levar a damer só é válida na medida em que é possível livrar as Investigações filo-
uma reflexão sobre aa relação, tanto criadora como crítica, entre o jogo de sóficas de uma interpretação pragmática ou mesmo behaviorista. Ora, o
recurso à "gramática erudita" opõe-se mais aos critérios "externos" do
linguagem da filosofia e os outros jogos de linguagem institucionalizados.
O desafio desse debate é a relação da filosofia com sua própria história. A comportamento do que aos critérios "internos" do psiquismo particular.
filosofia da linguagem marca uma ruptura sem precedente com toda a O behaviorismo assim é apenas o inverso do mentalismo!?. A hermenêutica
das Investigações filosóficas consiste antes na contingência da ordem gra-
tradição, ou seja, uma ruptura tal que chega até a deixar de ser percebido
matical, na medida em que ela constitui o a priori factual que precede toda
aquilo com o que ela rompe? Ou então a "destruição da metafísica" seria
o caminho para uma apropriação intermediada da tradição da filosofia relação no mundo. Zimmermann certamente concorda com Apel para
denunciar o grande conflito entre a pretensão à universalidade da gramática
especulativa que permitiria a continuação do diálogo histórico da huma-
nidade consigo mesma?! Com essa questão fecha-se o duplo confronto filosófica que exclui toda reflexão de fora e sua pretensão crítica em destruir
de Karl-Otto Apel entre Sinnkritik e Sprachhermeneutik. um jogo determinado de linguagem, o da "metafísica"", Mas as reservas
É outra a solução encontrada por Zimmermann: a hermenêutica dos que Zimmermann faz à hermenêutica de Wittgenstein são menos impor-
tantes que as consequências a que ele chega para a própria hermenêutica
jogos de linguagem lhe parece mais fecunda por nada dever à tradição
romântica, nem ao plano filosófico de Heidegger, Lipps e Gadamer, mas da simples existência de uma hermenêutica que se formou fora do cam-

proceder exclusivamente de uma reflexão crítica sobre seus próprios pre- po da reflexão sobre as condições de possibilidade das ciências do espírito.
conceitos que se juntam aos do pensamento racionalista-empirista. É por Nesse aspecto, as convergências anunciadas mais acima devem servir
esse preço que essa hermenêutica traz um complemento e um corretivo à para pintar o quadro de uma hermenêutica mais expandida na qual a her-
hermenêutica. O) caráter hermenêutico da reflexão de Wittgenstein reside menêutica das ciências do espírito ganharia, como dissemos, um comple-
mento e principalmente uma compensação. O complemento se manifesta
mais nitidamente se não é limitado, como acontece com Karl-Otto Apel, à
128. Cf K.-O. ApEL, Wittgenstein und Heidegger. Die Frage nach dem Sinn von Sein
und der Sinnlosigkeitsverdacht gegen aller Metaphysik, in Transformation der Philosophie, comparação entre Sein und Zeit e as Investigações filosóficas. A concepção
t.[, p. 225-275; e Wittgenstein und das Problem des hermeneutischen Verstehens, in ibid.,
p. 335-377.
129. Cf Ip., Heideggers philosophische Radikalisierung der "Hermeneutik" und die 130.). ZIMMERMANN, Wittgenstein sprachphilosophische Hermeneutik, p. 224-237.(N.
do A.)
Frage nach dem "Sinnkriterium" der Sprache, in Transformation der Philosophie, 1,
t.
131. Ibid., p. 251.(N. do A.)
p. 334.
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ESCRITOS E CONFERÊNCIAS 2 - HERMENEUTICA "LÓGICA HERMENÊUTICA"?

da autonomia da linguagem, segundo Unterwegs zur Sprache, joga uma é secundária em relação à nova contextualização do discurso nas situações
nova luz sobre a afirmação de Wittgenstein de que a linguagem "cuida de inéditas da vida cotidiana.
si mesma"?2, Uma afinidade mais secreta ainda surgiria se fizéssemos entrar Mas a primeira hipótese se divide, por sua vez, em dois ramos: em
em jogo os escritos de Wittgenstein sobre a ética, a estética e a religião e relação à transmissão cultural, o acento recai sobre a autoridade da tradição,
tudo aquilo que, nele, se deixa imprimir como o que se mostra, até mesmo portadora de sentido e de verdade possíveis? Ou sobre a instância crítica
o que se cala e que, talvez, fale de outra forma"?. Mas talvez a compensação que transforma todo legado recebido numa "circunstância"?
interesse mais que o complemento. O interesse da hermenêutica de Witt- A essa alternativa soma-se outra: a hermenêutica é universal porque
genstein é que ela não tem seu lugar original na problemática das ciências toda compreensão é de sua alçada? Ou ela é limitada, se é verdade que todas
do espírito e tampouco a transmissão histórica como eixo. Para ela, a his- as estruturas da existência tanto sociais quanto individuais não são inten-
toricidade é secundária, para não dizer suspeita por princípio, em relação cionais? Na primeira hipótese, ela pode admitir mediações inúmeras, es-
à facticidade dos jogos de linguagem cotidianos. O menor efeito da inclusão tender-se e aprofundar-se, sem deixar de ser interpretação. Na segunda, a
de Wittgenstein no campo hermenêutico é o de contestar o privilégio da compreensão é um modo limitado que deixa para fora a explicação e de-
historicidade das mediações linguageiras. Podemos somente nos perguntar nomina a mediação uma terceira disciplina, dialética ou crítica. À mesma
se o divórcio não seria a solução entre uma filosofia na qual alguma coisa alternativa se desdobra na seguinte: se toda compreensão é historicamente
continua a nos falar na tradição especulativa do Ocidente e uma filosofia mediada, deve-se dizer que a reflexão da hermenêutica sobre si mesma
que enfatiza a prática atual do discurso num contexto de todos os dias. também é? Ou temos de dizer que só compreendemos d relatividade con-
a

Vemos assim esboçar-se a favor dessa discussão uma ramificação do próprio textual da interpretação à luz da ideia reguladora de discurso "racional"
conceito de hermenêutica no qual sua identidade pode se perder. ou de "comunicação sem limite e sem entrave???" No primeiro caso, a
Seria, antes de tudo, uma Kunstlehre da compreensão linguageira para hermenêutica confessa sua própria finitude, na própria essência de sua
a qual a interpretação dos textos continuaria a ser modelo privilegiado?
o
pretensão universal, em outras palavras, seu caráter "epocal", em que se
Ou ada própria linguagem seria secundária em relação a uma "experiência reflete sua dependência relativa às "épocas" do ser e do pensar'*. No se-
compreensiva" que pode ser não verbal, como no caso do prazer estético? gundo caso, a hermenêutica transcende a si mesma na reflexão se reins- e

Se se escolhe o primeiro ramo da alternativa, é preciso dizer que a creve na tradição da filosofia transcendental. No primeiro caso, a herme-
atribuição da compreensão é "repensar" o que foi uma vez "pensado", nêutica da hermenêutica continua fiel a sua tese fundamental, mas exclui
"reproduzir" o que foi uma vez "produzido"? Ou a compreensão é "cria- toda cientificidade. No segundo, ela pleiteia um conceito de cientificidade
dora" de sentido na atualidade dos contextos de cultura e de vida? Na distinto do conceito (ao menos anglo-saxão) de ciência, mas renega sua
primeira hipótese, a experiência básica continua a ser a mediação histórica, própria tese da prioridade da pré-compreensão sobre a reflexão.
isto é, finalmente a tradição que vem a nós e nos faz pensar antes que es-
tejamos prontos para refletir. Na segunda hipótese, a mediação histórica 134. Provável alusão a Habermas.
135. Como inúmeros autores de língua inglesa desses anos, Ricoeur também brinca
com a palavra epochal, que remete tanto à épochê filosófica como a époque no sentido tem-
132.M. HerDEGGER, Unterwegs zur Sprache, Klostermann, 1985 (Gesamtausgabe Band poral e histórico do termo. A époche filosófica (grego epokhê, lit. «parada» [subentendido:
12) [Acheminement vers la parole, trad. ]. Beaufret, W. Bromeier, E. Fédier, Gallimard, 1976 consentimento)) designa classicamente a atitude de suspender o julgamento diante das
(N. dos E.)]; sobre a afirmação de Wittgenstein, cf. acima p. 138. representações interrogadas (no ceticismo antigo) ou colocar entre parênteses o mundo
133.A.JANIK, ST. TOULMIN, Wittgenstein's Vienna, Simon & Schuster, 1973; G. BRAND, pré-apresentado (em fenomenologia). Como aqui se trata da hermenêutica admitindo sua
Die grundlegenden Texte von Ludwig Wittgenstein, Suhrkamp, 1975; J. BOUVERESSE, La finitude, isso faz pensar que ela se reconhece herdeira de uma visão do mundo que, de fato,
Parole malheureuse, Mimuit, 1971. (N. do A.) é sempre a de sua época.

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