Psicologia Jurídica - José Osmir Fiorelli - 2020-444-496
Psicologia Jurídica - José Osmir Fiorelli - 2020-444-496
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9.1 INTRODUÇÃO
Segundo o Prof. Menelick de Carvalho Netto (in audiência pública sobre a
interdição judicial), o Direito tem um objeto. Esse objeto do direito não é a conduta
humana, mas a fixação de um padrão de conduta.
Para se atingir esse objeto, o Direito necessita deparar-se com a oposição ao
desejável, isto é, a situação em que ocorre exatamente o contrário do que se
preconiza. Assim, é extremamente relevante para o Direito que alguém mate alguém,
porque aí ele pode funcionar e mostrar que funciona; entretanto, também é
extremamente relevante para o direito que as pessoas habitualmente não se matem;
que haja uma previsibilidade bastante plausível de que as pessoas possam sair de
suas casas sem uma alta probabilidade de serem assaltadas, mortas, estupradas. O
Direito, contudo, não pode garantir que isso não vá ocorrer; se ele existe, é porque
isso pode ocorrer.
O Direito, portanto, trata da conduta humana, porém, a norma jurídica não basta
para inibir, asseguradamente, os comportamentos indesejáveis.
Na busca desse objetivo, atua em um campo de intersecção com as ciências
humanas e de saúde, cujos objetos também focalizam o comportamento humano,
embora por outra perspectiva.
A busca da compreensão sobre o fenômeno delitivo vem desde a Antiguidade.
Houve momentos em que o delinquente, considerado enquanto tal a partir de uma
visão individualista, foi entendido como um ser anormal (por exemplo, na Grécia
antiga), o que, em geral, o levava à expulsão do clã.
No século III, muitos entendiam que o desvio que levava a pessoa a afastar-se
das normas sociais era intervenção do demônio. Somente com o advento das ideias
renascentistas o Homem começou a ser visto como dono de seu próprio destino e
reconduzido à sua condição humana, por conta da abertura de pensamentos próprios
da época. Nessa fase, há também uma intensa busca em se humanizar as penas e o
tratamento dos condenados. Enfatizam-se as causas sociais e econômicas.
Há, porém, até os dias atuais, uma inquietude que move estudiosos, de diversas
áreas do saber, a buscar uma explicação para o comportamento criminoso.
O filme A experiência (Oliver Hirschbiegel, 2001), inspirado em fato real – o
experimento behaviorista conhecido como “O experimento da prisão de Stanford” em
1971 – retrata a incessante busca por esta explicação. Assim como no filme, a
experiência realizada na “vida real” foi interrompida antes de seu término, dadas as
graves consequências que advêm com a manipulação do ser humano e as variáveis
intrínsecas ao confinamento.
Neste capítulo, a convergência entre psicologia e direito sobressai-se para tentar
conjugar as teorias psicológicas com as determinações legais, resvalando no fato de
que estas últimas são determinadas pela ética social e construídas de acordo com
determinantes históricos, sociais, culturais e econômicos.
Essas considerações iniciais trazem uma visão macroscópica; parte-se da
premissa de que o entendimento sobre o comportamento criminoso abre um grande
espectro teórico, cuja compreensão, com a intenção de inibir a prática delitiva e
fomentar políticas públicas que previnam a ocorrência criminosa, solicita uma ampla
interdisciplinaridade. Ainda mais porque nenhuma ciência atingiu o grau de
previsibilidade efetiva do comportamento humano [como retratado no filme Minority
Report (Steven Spielberg, 2002)].
➢ a pessoa do infrator;
➢ a vítima;
➢ as instituições de exclusão, que fazem parte do processo de controle social
do comportamento delitivo.
O controle social pode ser formal, representado pelas instituições estatais, desde
a investigação até a execução da pena, ou informal, o controle presente na sociedade,
que muitas vezes clama pela repressão e o endurecimento do controle formal. A
respeito da pena de morte indicam-se dois filmes paradigmáticos: O lavador de
almas (Adrian Shergold, 2006) e A vida de David Gale (Alan Parker, 2003).
O capítulo dedicado ao estudo da violência tratou de uma das facetas
relacionadas com o crime. Muitas outras, contudo, existem e a violência foi destacada
pela dimensão e pelo impacto que ocasiona sobre a sociedade.
Já a criminologia crítica vem estabelecer novos parâmetros de análise, como
paradigmas nas ciências humanas, incluindo pensar na relação dialética existente
entre as relações humanas de produção, historicamente construídas, e a criminalidade,
enquanto fenômeno igualmente construído a partir dessas relações, essencialmente
desiguais.
➢ a vítima; e
➢ os mecanismos de desestímulo a esse comportamento.
9.2.2 Hipóteses
Diante da abrangência do assunto, cabe ressaltar a importância de não limitar as
abordagens a uma visão reducionista, quer pelo aspecto biológico, quer social. Os
estudos acerca da influência do meio vêm ganhando maior destaque, hajam vistas as
dimensões apontadas por Baratta (1990; 1999) e Zaffaroni (1998); por outro lado,
estudos sobre o funcionamento cerebral e influências endócrinas algumas vezes
recebem proeminência.
Comentam-se, a seguir, duas dessas hipóteses.
Tem especial interesse para o Direito a intenção que cerca o ato criminoso, por
parte de quem o comete. Sob essa ótica, os delitos dividem-se em dois grandes
grupos:
➢ o delito culposo, que consiste na prática de ato voluntário, porém, com
resultados involuntários;
➢ o delito doloso, em que ocorre ato voluntário com resultado esperado.
Betão explica que alguém em sua posição não poderia ser “passado
para trás”; seria uma desmoralização perante a comunidade. Sem dúvida,
mas poderia também ser um ato de afirmação, em que ele demonstra
não precisar das atenções daquela mulher (caso 10).
O delito doloso encontra fácil justificativa no desequilíbrio emocional: ele se
apresenta como a solução que o psiquismo dispõe para dar fim à evolução de um
conflito em que o estresse se acumula e precisa de uma válvula de escape. Explode a
pólvora ou explode a mente. Esta escolhe aquela.
Em boa parte das situações, o condicionamento surge como uma explicação
razoável para o comportamento. Na colisão na rotatória (caso 1), na agressão no
trânsito (caso 27), tudo parece indicar que os agressores são dados a comportamentos
violentos, à reação impulsiva, inconsciente em sua aparência.
Vistas mais de perto, essas reações não são assim tão impulsivas, porque elas
acontecem corriqueiramente, em inúmeras situações que pontuam a vida dessas
pessoas. Inúmeras vezes, conhecidos e familiares já lhes sinalizaram a respeito dos
problemas desses comportamentos que são mantidos por esses indivíduos.
Conforme se comentou, trata-se de uma “drogadição interna”. A mente acostuma-
se com a adrenalina em altos níveis e solicita-a. Ou recebe doses extras por meio do
mecanismo de sublimação, ou vem a explosão, dirigida ao alvo mais próximo. Não há
como debitar essa conta ao passivo do inconsciente.
➢ a imprudência;
➢ a negligência; e
➢ a imperícia.
De Wilson, tudo se espera. Das drogas leves à pesada; dos pequenos delitos aos
graves; no final do túnel espera-o, não a luz, mas a escuridão do homicídio, por
exemplo.
Nesse percurso, a saga de Wilson encontra-se já diagramada aguardando a arte-
final dos acontecimentos. O destino, pacientemente, ajusta o story board para inserir
as vítimas involuntárias – a senhora com a filhinha que aguarda o ônibus e receberá o
efeito da derrapada do BMW; ou o aposentado que se livrará da fila mensal pela bala
perdida no assalto ao banco ou algo assim.
É preciso desenhar esse percurso. O que move Wilson? A aventura ou a busca
do desfecho? Qual desfecho?
Wilson vai colocando depósitos na caderneta de poupança de culpas que
acumula (reveja-se o conceito de dissonância cognitiva, no capítulo de teorias). Não
há saques. A contabilidade emocional não consegue fechar o ativo dos
comportamentos com o passivo dos compromissos.
Se ao observador externo apresentam-se as cores da imprudência, ao analista
revela-se a busca da redenção – a “pulsão de morte” de Freud – que se realiza por
meio do Outro para voltar para ele mesmo. Não tem a coragem para se enfrentar, mas
tem a vantagem de o Outro nada significar para ele. Assim “morre” Wilson, quando
sepulta os valores sociais sob as ferragens ou fere-os mortalmente pela via simbólica
da hemorragia de um desconhecido e resgata o investimento acumulado.
A defesa de Wilson será paga pelo pai, ainda que nisso ele empenhe tudo o que
já angariou. Wilson, o mesmo que roubou dele e dos irmãos as atenções de Neuza,
que se tornou o “queridinho da mamãe”.
Depois que ele chegou, a família transformou-se. Tudo girava em torno dele.
Nada mais se fazia sem que ele não fosse o centro das atenções.
Ivã descuidou da escolinha. Não prestou atenção quando ele começou, mais
tarde, a repetir. Não tinha tempo. Não tinha vontade. Alguém tinha que cuidar dos
mais velhos…
Afinal, ele tinha a mãe (que já não era esposa…). Mas, agora, poderia contar
com o pai, que não iria abandoná-lo, mesmo distante. Não se rasga a promissória da
paternidade.
Neuza, coitada, depois que Wilson nasceu, viveu para ele. Só para ele.
Conhecia-lhe os mínimos gestos e desejos. A ele dedicava todas as preces e sofria
com seus fracassos.
Como exigir dele o que exigiu dos irmãos? Eles eram mais fortes, mais
dedicados aos estudos. Wilson precisava dela, não era uma opção, era um dever de
mãe.
O desafio de transformar Wilson em pessoa responsável, que assuma seu papel
na sociedade, é monumental. Talvez não seja menor do que o desafio de recuperar
Betão, o anti-herói do caso 10.
a) Relato espontâneo
Nesta forma de relato, verificam-se a irregularidade e a incompletude; elementos
inúteis são interpolados. A espontaneidade possibilita a falta de objetividade, até
mesmo porque o que fala pode não ter consciência do que seja relevante.
Além disso, esse tipo de relato permite, ao que fala, concentrar-se na exposição
do que é figura em sua percepção; ainda que de grande relevância, uma cena oculta
n o fundo não será trazida à luz, obscurecida pela figura eleita. Os depoimentos
conflitantes do caso 1 são exemplos bastante claros de como isso acontece.
O relato espontâneo tem, também, o condão de expor as crenças do indivíduo,
seus preconceitos e esquemas de pensamento, que a liberdade propiciada pela
exposição livre permite aflorar; o inconsciente manifesta-se quando não há censura ou
direção obrigatória que cerceie o pensamento.
Fiorelli e Malhadas (2004, p. 104) mostram como isso pode conduzir a
resultados inesperados ao relatar um julgamento de ação trabalhista em que o
empregador, em seu depoimento, incentivado pelo juiz, expõe livremente suas ideias e
percepções com riqueza de detalhes. O indivíduo fala o que quer e diz o que não quer.
Sai, consciente de que demonstrou com clareza seu ponto de vista; surpreende-se,
tardiamente, com o resultado. Ciladas do inconsciente.
O preconceito, mantido zelosamente sob a tutela do consciente, manifesta-se em
frases do tipo “só podia ter vindo desse tipo de gente”, “… típico de uma mulher
descasada” etc. Elas se imiscuem no raciocínio e afloram quando menos o indivíduo
espera… então, é tarde.
Por outro lado, o relato espontâneo pode ser prejudicado por uma série de
características pessoais do indivíduo, tais como:
Valor moral
Compreende a defesa de ideais internalizados, que a situação da vítima
demonstra terem sido transgredidos. Inclui “restaurar a verdade”, “defender o que é
justo”, “equilibrar a renda”, “defender os oprimidos” etc.
Falsas crenças
Inúmeras, povoam o imaginário popular e orientam a forma de interpretar fatos e
notícias. Alguns exemplos conhecidos: “policial bate nos mais fracos”, “morador de
morro é bandido ou ajuda traficante”, “todo político é ladrão”, “não dá para confiar
em empregado”, “patrão está a fim de ganhar dinheiro” etc.
Nos países onde este procedimento foi adotado há alguns anos, ainda não se
chegou a consenso sobre sua eficácia. Avaliar consequências de natureza psicológica
é sempre tarefa complexa, porque exige acompanhamentos de longo prazo e
segmentações de público, segundo os rigores da estatística, de elevado custo e
sofisticada elaboração.
9.6 CONFISSÃO
A confissão será sempre confrontada com as provas existentes nos autos.
Confessar um crime é expor-se voluntariamente à respectiva punição, o que leva a
indagar os motivos pelos quais tantos criminosos confessam.
Acredita-se que, para alguns, o martírio da culpa é insuportável, portanto,
melhor suportar a punição do que prolongar a culpa. Dessa maneira, o indivíduo
livra-se de insuportável dissonância cognitiva.
O sentimento de culpa provoca pensamentos aterrorizantes; a confissão os
elimina. Observe-se que isso somente acontece quando o indivíduo desenvolve o
sentimento de culpa. Não se aplica, portanto, à pessoa com transtorno de
personalidade antissocial, para quem tal sentimento simplesmente não existe.
A confissão também pode estar ligada à estrutura de crenças do indivíduo
(religioso, acredita que, fazendo-a, terá o pecado também perdoado). Há, também, a
expectativa de abrandar o castigo; o crime ocorreu em um momento de descontrole
emocional, que o tempo se encarregou de corrigir – a racionalidade leva-o a calcular
o benefício de confessar.
Há de se considerar, entretanto, que algumas vezes a confissão é, simplesmente,
imposta pela evidência dos fatos.
Existe, também, a confissão falsa, por motivos materiais (pagamento),
solidariedade familiar e, nos grupos de grande coesão, por valores morais (confessa
para livrar um amigo, um líder etc.).
A confissão falsa também pode estar associada a uma extrema fragilidade
emocional; pressionado pelo aparecimento de inúmeras provas incriminadoras,
influenciado mesmo pelo próprio advogado, o indivíduo confessa – mais tarde, a
vítima reaparece para surpresa de todos. O estado emocional pode provocar amnésia
lacunar, por exemplo, e o indivíduo fica em dúvida se, realmente, não praticou o ato
criminoso.
A tortura também leva a confissão falsa ou verdadeira pela fragilização
emocional e física, esta desencadeando aquela e agravando-a ainda mais.
No sistema penal brasileiro, em geral, a polícia está preocupada em determinar o
culpado, ou seja, quem praticou o delito, proceder ao inquérito policial e apontar o
autor do crime para o juiz.
Só recentemente tem-se investido mais em compreender por que o crime é
praticado, com a implementação de serviços de inteligência criminal. Nestes, cruzam-
se dados objetivos e subjetivos e a compreensão do funcionamento da mente humana
se torna muito importante. Esses serviços são fundamentais, pois colaboram, entre
outros aspectos, no estabelecimento de políticas públicas para programas de
prevenção.
Filmografia
O filme mostra uma sessão do júri.