Ebook NarrativasHumanistas

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BRASÍLIA 2021

NARRATIVAS
HUMANISTAS
Medicina além dos livros

Organizadores
Eliana Mendonça Vilar Trindade
Allan Eurípedes Rezende Napoli
Organizadores
Eliana Mendonça Vilar Trindade
Allan Eurípedes Rezende Napoli

Brasília
2021
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA - CEUB
Reitor
Getúlio Américo Moreira Lopes

FACULDADE DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E SAÚDE - FACES


Diretora
Dalva Guimarães

Curso de Medicina
Coordenador: Manoel Eugênio dos Santos Modelli

Revisão textual
Cláudia Falcão

Diagramação
Biblioteca Reitor João Herculino

Capa
Beatriz Kaminski Fink

Documento disponível no link


repositorio.uniceub.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Narrativas humanistas: medicina além dos livros /


organizadores Eliana Mendonça Vilar Trindade; Allan
Eurípedes Rezende Napoli. – Brasília: CEUB, 2021.

292 p.

ISBN 978-65-87823-29-4

1. Medicina. I. Centro Universitário de Brasília. II. Título.

CDU 614.253
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitor João Herculino

Centro Universitário de Brasília – CEUB


SEPN 707/709 Campus do CEUB
Tel. (61) 3966-1335 / 3966-1336
O convite que recebi da profa. dra. Eliana Mendonça Vilar Trindade e
do prof. dr. Allan Eurípedes Rezende Napoli, para prefaciar a obra intitulada
Narrativas humanistas: medicina além dos livros, é motivo de honra e
gratidão. Honra por me manifestar sobre uma obra de dois amigos e colegas
de trabalho que conheço e admiro há mais de duas décadas e gratidão por
redigir observações preliminares a respeito desse trabalho literário que
desperta para a importância de se criar um novo paradigma na medicina,
voltado para o atendimento integral do ser humano. A professora Eliana,
mestra e doutora em psicologia, pela Universidade de Brasília, com numerosas
publicações e experiências no campo da educação médica – em especial, nas
metodologias ativas que buscam revitalização do olhar humanista –, destaca,
nas primeiras páginas escritas, a importância de se focar na pessoa que
adoece e não na doença que se procura diagnosticar e tratar, conquista essa
que se inicia por uma bela história ou narrativa. O professor Allan, médico há
39 anos, mestre em medicina e com dedicação à docência médica há 20 anos,
enriquece esse trabalho com a sua vasta experiência espiritualista. A dra.
Gabriela Mendonça Trindade, médica, formada pela Escola Superior de
Ciências da Saúde do Distrito Federal, contribui destacando a importância da
medicina narrativa para uma abordagem biopsicossocial, disruptora do modelo
secular reducionista e tecnicista. Os colaboradores discentes, já em fase de
conclusão da metade dos seus currículos universitários, com grandes
habilidades cognitivas e comunicativas, captaram as histórias dos seus
pacientes, refletindo sobre seus conflitos e a realidade dos atendimentos, sem
alijar-se das suas condições humanas de pessoas sensíveis ao sofrimento
alheio. A palavra mais repetida nas narrativas elaboradas por eles foi
empatia, demonstrando maior consciência ética e transmutando
relacionamento profissional autoritário, objetivo e reducionista, em busca de
um diagnóstico e suas implicações, habitualmente presente na cultura médica
tradicional, para uma nova “estética médica”, em que a inspiração, a
sensibilidade e a espontaneidade permeiam a experiência formativa
estruturada no conhecimento científico, transcendendo o foco biomédico para
uma dimensão mais ampliada e holística do ser humano.

A educação médica é uma preparação para ações práticas e éticas,


em cuja arena de desafios se apresentam questões dilemáticas e
permanentes, como: o que é melhor fazer; como se deve agir; como
descobrir-se o suficiente para se tornar o ato médico satisfatório e que
escolhas se deve fazer em prol do paciente. Essas decisões, segundo a
médica e professora inglesa Trisha Greenhalg, são implacavelmente
contextuais.
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

A medicina é uma ciência milenar, cujo exercício vem


experimentando mudanças de arquétipos ao longo do tempo. O pilar
primordial dessa atividade é o fato de que tudo começa com o encontro de
dois indivíduos, denominados pelo filósofo e bioeticista americano Hugo
Tristam Engelhardt (1941-2018), estranhos morais. Estes, com suas
narrativas individuais e em uma relação efêmera, darão início a uma nova
história, etapa incipiente no contexto semiológico e que poderá prolongar-se
por muitos anos. O encontro entre o paciente e o seu médico implica
expectativas de ambas as partes, e o êxito decorrente dessa relação é fator
primordial para o sucesso de qualquer tratamento.

O progresso científico e tecnológico dos últimos 170 anos trouxe à


profissão médica um cenário de múltiplas opções de desempenho. A evolução
galopante da indústria farmacêutica e das tecnologias permitiu a melhora e a
cura de muitas doenças complexas, antes fora de possibilidades terapêuticas.
A expectativa de vida humana, que girava em torno de quatro décadas, no
início do século passado, foi praticamente duplicada até o momento atual.
Multiplicaram-se as especialidades médicas, fragmentando o corpo em
segmentos passíveis de correção pelos mais bem treinados experts das áreas.
Essa medicina, lastreada no modelo secular tecnicista e cientificista, a despeito
das conquistas inquestionáveis no aspecto biológico do indivíduo, não
conseguiu suprir as maiores carências com que diuturnamente os profissionais
de saúde se deparam. As doenças crônicas e degenerativas, mais frequentes
nos processos de envelhecimento, expõem uma realidade de insatisfação nos
recursos da saúde a que se tem acesso, uma vez que as pessoas percebem
que faltam profissionais nos atendimentos primários, as filas para admissão às
consultas são intermináveis, os custos assistenciais e a demanda de exames
complementares dispararam, e o humanismo se tornou motivo de elogio,
quando se faz presente.

A palavra paciente, de origem latina, significa: “o que sofre”; “o


que padece”. Com toda essa historicidade e evolução da ciência médica não
precisamos de muito esforço contemplativo para percebermos que o
sofrimento humano aumenta à medida que o enfrentamento das incertezas e
ambiguidades do seu adoecimento se distancia do altruísmo, empatia, justiça,
respeito e compaixão, atitudes e comportamentos essenciais aos que se
dedicam a prolongar a vida e a aliviar a dor dos que sofrem.

Uma propedêutica médica clássica enfoca um padrão sistematizado,


pautado na anamnese, no exame físico e nos exames complementares, com o
propósito de estabelecer diagnóstico e prognóstico de enfermidade específica.
Não contempla a subjetividade que cada narrativa carrega no seu bojo e dá

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

espaço para maior tecnificação, além de superfluidades de exames e


obstinações ou futilidades terapêuticas.

A professora doutora Rita Charon, criadora do Programa de Medicina


Narrativa, em 2000, na Universidade de Columbia (USA), destaca que, quando
um estudante de medicina ou outro profissional ligado à área da saúde escreve
com imaginação e fluência sobre os relatos dos pacientes, consegue vislumbrar
um universo bem mais amplo e fértil, preenchendo eventuais lacunas que a
anamnese clássica pode gerar.

Introduzir as narrativas como instrumento da prática clínica, na


formação e no exercício profissional, representa mudança de paradigma, cuja
principal conquista será maior humanização, capacitando indivíduos mais
conscientes e seguros no enfrentamento de todos os contextos que a arte da
medicina pode ostentar. Quando o médico elabora uma história clínica ou
narrativa, ele age como historiador, antropólogo e biógrafo, tentando
compreender os fenômenos biológicos e psicossociais que envolvem o
adoecimento individual. É necessário saber enxergar o que se vê e escutar o
que se ouve, para não se frustrar o encontro de duas narrativas que podem
ser efêmeras na sua temporalidade, mas permanentes no seu significado
hermenêutico.

Educar é uma tarefa transformadora, e essa responsabilidade na


docência médica implica inspirar e resgatar da medicina profissão a medicina
vocação. Lapidar o médico vocacionado é investir em uma relação
interpessoal, sem as formalidades que conduzem a comportamentos
padronizados e limitam as livres exposições dos enigmas individuais. Essa
relação intersubjetiva e ontológica tem seu espaço incontestável nas narrativas
médicas e humanistas a que essa obra se refere. Incorporar esse
“instrumento” formativo no currículo do curso de medicina do Centro
Universitário de Brasília (UniCEUB) representa contribuição significativa para o
surgimento de uma nova geração de médicos, em que o conhecimento
científico, permeado pelas habilidades comunicativas verbais e textuais,
permitirá o resgate da abordagem holística que toda a enfermidade merece
ter.

José Antero do Nascimento Sobrinho


Médico e professor do curso de medicina do UniCEUB

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Capítulo introdutório
A FACE HUMANA DA EDUCAÇÃO MÉDICA NO CENTRO
UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA (UniCEUB) .................................. 07
ELIANA MENDONÇA VILAR TRINDADE

Capítulo 1
MEDICINA NARRATIVA E O DESENVOLVIMENTO DA EMPATIA NO
FUTURO MÉDICO ........................................................................ 29
ELIANA MENDONÇA VILAR TRINDADE; GABRIELA MENDONÇA TRINDADE

Capítulo 2
UM SONHO REALIZADO .............................................................. 53
ALLAN EURÍPEDES REZENDE NAPOLI

Capítulo 3
VIVÊNCIAS EMOCIONAIS E COMPETÊNCIA AFETIVA DURANTE A
GRADUAÇÃO: O SOFRIMENTO DO ESTUDANTE DE MEDICINA .......... 71
CAROLINNE CAMILA DE SOUZA SCARCELA

Capítulo 4
O OLHAR HUMANIZADO NA GRADUAÇÃO MÉDICA: UMA EXPERIÊNCIA
DE CRESCIMENTO ....................................................................... 136
ANA LUIZA ANTONY GOMES DE MATOS DA COSTA E SILVA

Capítulo 5
EXPERIÊNCIAS INESQUECÍVEIS PROPORCIONADAS PELO CURSO
DE MEDICINA ........................................................................... 177
MARINA BATISTA KAMINSKI

Capítulo 6
SENSIBILIDADE ÉTICA DO ESTUDANTE DE MEDICINA .............. 213
LUIZ FELIPE FALCÃO DE SOUZA

Capítulo 7
MORTE E MORRER: LIDANDO COM A FINITUDE DA EXISTÊNCIA .... 251
ANA JÚLIA SOUZA MALHEIROS
Eliana Mendonça Vilar Trindade

“A poesia tem comunicação secreta com o


sofrimento dos homens”
Pablo Neruda

Este livro é fruto de esforço acadêmico conjunto, com foco no


cuidado integral pelo ser humano. A busca do fortalecimento da
face humana da medicina e o compromisso e a sensibilidade dos
estudantes, ao longo de 2020, ano inesquecível, pela sua
singularidade e pelo seu valor histórico, mostraram-se, por meio
de narrativas humanistas, reveladores de nova perspectiva da
educação médica. O trabalho foi estruturado durante a
devastadora pandemia da Covid-19, portanto, em momento
marcado por dramas infinitos, de aguçada sensibilidade e abertura
das pessoas para a dimensão afetiva e artística de nossa existência
e da ampliação de nossa percepção acerca do sofrimento associado
ao adoecimento.

Sem dúvida, cada paciente carrega, em seu corpo doente,


em seu sofrimento, em seu semblante, uma história a ser contada
e recontada. O hospital não é lugar simples. Ninguém sai impune
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

desse cenário, as imagens são fortes, inesquecíveis. São muitas


histórias, muitos olhares. Falamos do Sistema Único de Saúde
(SUS), dos riscos de decadência de uma prática médica
deteriorada, da necessidade de resgate dos valores humanistas, de
uma formação mais plena para estudantes de medicina. São muito
os desafios colocados. Optamos apenas por contar histórias. Antes
de mais nada, é preciso perceber as demandas não explícitas de
quem nos procura, escutar o que cada paciente tem a dizer e não
apenas ouvir. Decodificar as doenças, traduzir as múltiplas
linguagens apresentadas pelo paciente, encantar-se com as
infinitas possibilidades do encontro humano e ultrapassar as
barreiras erigidas pelos sintomas físicos e por prática médica
deveras protocolar e tecnicista. É preciso silenciar a mente e deixar
falar a voz que vem do coração.

Toda doença é sempre repulsiva e pode anunciar uma morte


temida, perda de status social, desvalorização, enfim, ela dilacera
nossa sensação de segurança e de inviolabilidade. Freud (1901),
médico vienense, criador da Psicanálise, afirmava que somente
conhecemos a estrutura mais profunda de nossa mente por meio
das neuroses, do adoecimento psíquico, como um cristal que, ao
se quebrar, deixa perceptível suas veias estruturais. Com sua
metateoria, ele nos mostrou que o normal se aproxima muito do
patológico, já que temos todos um universo subjetivo marcado por
vicissitudes e por traumas. De perto, ninguém é normal.

Por outro lado, a doença nos convida a chegar mais próximo


do que naturalmente evitamos lidar e falar. Se o nosso objetivo é
conhecer o ser humano em suas vivências e idiossincrasias, temos
de nos aproximar dos hospitais, de seus leitos e, sobretudo, de nós
mesmos. Nessa perspectiva, não existem pacientes difíceis de
serem tratados, mas existem dificuldades do próprio médico em

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

lidar com uma gama imensa de situações estressantes, seja pela


dureza e pela hostilidade da situação, seja pela gravidade das
doenças e pela dramaticidade da condição humana, enfim, pelo
forte sentimento de impotência diante das injustiças sociais.

Medicina além dos livros é uma prática médica sem foco


exclusivo nas doenças. Ninguém gosta de ficar doente e, muito
menos, de admitir suas próprias mazelas. A sensação de ameaça
pode ser mais patogênica do que a própria doença. A psicogênese
e a relação entre nossa mente e o nosso corpo, ou seja, o quanto
nossas emoções negativas podem contribuir para o nosso
adoecimento físico, representam um consenso científico desde o
século passado. A experiência de adoecimento, em sua realidade
pungente, orgânica, inexorável, acompanhada de dor e de
desfiguração do corpo, constitui, portanto, grande reveladora
antropológica, psicológica e sociológica de nossa frágil condição
humana. De outra forma, é por meio da doença – grande
professora, denominada pelo saudoso médico e escritor Moacyr
Scliar, como uma paixão transformada – que vamos
desenvolvendo maior consciência reflexiva acerca de nossa finitude
e fragilidade. O estudante de medicina vai aprendendo aos poucos
a compreender todas as dimensões aí presentes.

Se a doença é o lado reversível do amor, segundo


Thomas Mann, então, como paixão transformada,
ela manifesta elevados níveis de sensibilidade e
transcendência que frequentemente conduzem o
ser humano a realizar obras inesperadas. Seja ela
transformada num estado espiritual
transcendente, numa descoberta profissional ou
numa obra literária, a doença tem sido uma musa
inspiradora para a arte e a ciência. (SCLIAR,
1996).
A prática clínica realizada de forma espontânea, automática e
não reflexiva por parte da grande maioria dos médicos é
insuficiente. Cabe a outros profissionais buscar refletir e repensar o

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

vínculo estabelecido entre médicos e pacientes. Nesse outro lugar,


próximo, mas distante, eu venho tentando me encaixar, buscando
ângulos e perspectivas. A psicologia da saúde e a psicanálise
oferecem relativo conforto para esse novo olhar da relação
médico-paciente. Essa percepção não é um fato apenas teórico. No
meu caso, em especial, desde criança, testemunhei, admirei e me
alegrei ao ver o amor de meu pai no cuidado com seus pacientes e
percebi que a medicina, muito mais que um ofício, representava
uma forma de existência mais comprometida com o ser humano.
Com esse pequeno parêntesis, quero reforçar a ideia central do
nosso livro de que medicina não se aprende apenas nos livros.
Muito além dos livros, dos compêndios, das ciências biológicas, da
psicologia, existem encontros, narrativas e histórias a serem
contadas.

Como filha de mineiros, herdei o prazer de ser anfitriã, de


acolher, de colher frutos, de oferecer o melhor da gastronomia
familiar e humana, de conversar, de dialogar, de romper com o
lado mais rasteiro e mecânico do cotidiano. Acredito que podemos
ser anfitriões da vida e na vida. Cuidar das pessoas como se
fossem nossos convidados. Que essas pessoas jamais sejam
pacientes anônimos, esquecidos, mas, sim, sempre lembrados e
homenageados. A memória afetiva permanece, as pessoas
renascem, e a medicina agradece.

Como docentes, tentamos transmitir aos queridos


estudantes, o amor pela vida e pelas pessoas – que possamos ser
pessoas compassivas, que possamos praticar a biofilia, apesar de
vivermos em uma sociedade marcada pela destrutividade e pela
violência. É preciso lembrar para esquecer! Segundo essa premissa
psicanalítica, tudo aquilo que pode ser dito, materializado de forma
catártica em palavras, liberta-nos, esclarece-nos, mas, por outro

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

lado, se carregamos muitos tabus, feridas e traumas, não


conseguimos escapar da compulsão à repetição freudiana, da sina
de sempre sermos vítimas de nossos recalques e do destino já
previamente definido, das profecias que se autocumprem.

A arte da conversação tem sido esquecida por todos, não


apenas por médicos. Tem sido banida dos lares, pois a pressa é
grande, são muitos os afazeres, são muitos os celulares. Uma
prática que rivaliza, em excesso, com a lógica capitalista, com a
agilidade dos celulares e das redes sociais. É preciso pensar
melhor, conversar verdadeiramente, treinar o altruísmo, o
interesse genuíno pelo outro, valorizar saberes, buscar o pasmo
essencial diante do mundo, conviver respeitando a distância
preconizada por Carlos Drummond de Andrade – não muito longe
nem tão perto –, praticar a arte da escuta, envolver-se sem ficar
envolvido em demasia.

Somos constituídos por inúmeras narrativas, perpassados por


tantas falas e redes sociais, pela dimensão simbólica da
linguagem, somos depositários de tantos encontros ao longo da
vida. Contar histórias é uma forma de romper com o silêncio e o
vazio, é uma estratégia de reunir pessoas, de transmitir cultura, de
compartilhar dores, de sair da solidão em uma cidade bastante
focada no trabalho, no status social, no poder e nos papéis sociais
estanques. Tudo isso em uma cidade marcada pela solidão, pelos
desencontros, ainda sem identidade definida, carregando a marca
da diversidade para o bem e para o mal. A psicologia me trouxe
outras lentes e me permitiu viver em outra Brasília, viver além do
real, escutando e vendo situações raras. É grande a emoção de
trazer, neste livro, juntamente com meus parceiros, um pouco da
teoria sobre narrativas médicas, sobre educação médica. O nosso

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

grande desafio é compartilhar emoções e vivências dos


estudantes, inspirar corações, resgatar a crença nos milagres.

O sentimento principal que permeia esta obra é felicidade e


não sofrimento, embora o tema central seja narrativas médicas.
Sabemos que a crença de que existem maneiras rápidas de se
alcançar a felicidade cria legiões de pessoas entristecidas,
conflitivas e deprimidas, mas me refiro à felicidade fruto do
exercício continuado e criativo de virtudes, de talentos, de
sensibilidade, bastante inspirador e inspirado nas relações
acadêmicas. A felicidade surge quando existe prazer, engajamento
e significado na vida. Tornar-se pessoa implica processo de
continuidade, de complexidade e de profundidade em busca de si
mesmo, o que ficará evidente ao longo deste nosso percurso.

1 O CURRÍCULO MÉDICO INOVADOR E FORMADOR DE


UM NOVO PERFIL DE MÉDICOS: A DIVERSIDADE DE
POSSIBILIDADES CRIADAS

Como professora do UniCEUB, sabemos da importância de


estar em uma instituição acadêmica e, também, de se ter um
currículo educacional que nos direcione e que possa nos trazer,
com clareza, um caminho a ser percorrido. Um currículo inovador
de medicina é marcado por maior diversidade de recursos
pedagógicos modernos e de temáticas humanistas autênticas e
propulsoras do processo de amadurecimento dos estudantes.

Minha primeira experiência clínica e docente com medicina


narrativa ocorreu na Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS),
do Governo do Distrito Federal (GDF). A maturidade clínica dos
estudantes do UniCEUB nos permitiu retomar essa prática
humanista, uma vez que essa ferramenta pedagógica pode ser
usada nas séries iniciais da graduação médica, o que permite ao

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

estudante expressar suas angústias e seus receios inerentes ao


processo de aprendizagem. Iremos abordar com mais propriedade
teórica esse tema em capítulos posteriores.

Temos em mente o perfil de um médico humanista, reflexivo,


compassivo, comprometido com a dinâmica social, engajado em
ciência, enfim, um perfil de egresso condizente com os dramas
humanos contemporâneos. Nesse sentido, fica patente que
competência médica científica sozinha não consegue ajudar o
paciente a enfrentar as perdas da doença ou a encontrar sentido
no sofrimento. Juntamente com a habilidade científica, os médicos
precisam da habilidade de ouvir as queixas de seus pacientes,
apreender e honrar seus significados e serem movidos a agir
sempre buscando a saúde dos pacientes. Muitas narrativas
humanistas revelam sofrimento, angústias, anseios, medos dos
alunos durante as práticas na graduação médica. Ao revelarem
feridas incuráveis e potencial de bondade no cuidado com o outro,
demonstram aos leitores leigos e técnicos a importância da
subjetividade e da humanidade dos médicos, fato tão bem
retratado pelo mito de Quíron, na mitologia grega, ao representar
o centauro que se humaniza devido à consciência de sua ferida
incurável. Ele era considerado por seus pais como um ser superior,
inteligente, civilizado, bondoso e célebre por sua habilidade em
medicina. De vez em quando, é bom o futuro médico adoecer.
Como os pais de Quíron, sentimo-nos profundamente orgulhosos
de nossos estudantes, seres sensíveis, emotivos, dedicados e
colaborativos com nossos sonhos.

De acordo com Santos et al (2017), a educação médica não


diz respeito somente à aquisição de conjunto de conhecimentos e
habilidades necessários ao exercício profissional, mas também à
aquisição de nova identidade na vida, a identidade de médico com

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

todos os direitos, recompensas e responsabilidades embutidos na


profissão. Buscamos sempre um foco na face humana da medicina,
e sou testemunha de que a educação médica tem sido, sem
dúvida, grande propulsora das ações e das transformações da
prática docente e da qualidade do cuidado com o paciente.

Vamos criando um ambiente mais amigo e afável dentro da


universidade, um novo campo fenomenal. Vamos formando
parceiros empenhados em objetivos comuns, e tudo isso propicia o
que chamamos de sincronicidade. No livro Sincronicidade: a
dinâmica do inconsciente, do psiquiatra suíço Carl Jung, a
apresentação da teoria sobre as conexões acausais ou
coincidências significativas contribuiu para o esclarecimento de
fenômenos que extrapolam explicações científicas (JUNG, 2014). A
sincronicidade de acontecimentos e de encontros estaria associada
a paralelismo acausal de acontecimentos sem ligação aparente, o
que coincide com uma crença pessoal relacionada à riqueza e à
fecundidade das relações pessoais e profissionais existentes entre
estudantes, docentes e pacientes.

Neste livro, conseguimos materializar um sonho coletivo de


criação, por meio da concretização de grande espaço dialógico,
afinal, todos nós gostamos e necessitamos de conversar, interagir,
contar histórias, escutar casos, recriar narrativas estruturadas e
estruturantes de nossa realidade afetiva, social, acadêmica, laboral
e cultural. A sincronicidade se deu por meio da agregação de
pessoas com interesses e crenças similares, e o paralelismo
acausal se deu em função das atividades acadêmicas escolhidas
previamente, que visam a promover no estudante condições e
habilidades motoras, cognitivas, éticas e afetivas necessárias para
a abordagem qualificada da pessoa do paciente, das suas doenças,
queixas e dores.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Estamos desenvolvendo – ou tentando desenvolver – no


estudante de medicina do UniCEUB, no eixo educacional
Profissionalismo, habilidades de cunho clínico, psicanalítico e
existencial, tais como: liderança, comunicação eficiente,
autoconfiança, percepção, escuta ativa, manejo de conflitos,
raciocínio clínico, promoção de segurança para o paciente,
habilidades técnicas, capacidade de satisfação com a experiência
de aprendizagem, resiliência e criatividade. Tal elenco de
habilidades são necessárias para compreensão plena da
experiência de adoecimento e dos seres humanos singulares em
suas trajetórias existenciais.

Sem dúvida, a reconfiguração dos currículos médicos se faz


necessária, considerando-se a complexidade das demandas
associadas à tripla carga de doenças da atualidade, manifestada na
convivência de doenças infecciosas, parasitárias e problemas de
saúde reprodutiva, causas externas e doenças crônicas. As
habilidades clínicas são bastante treinadas ao longo de todo o
curso de graduação médica, já que são fundamentais para a
realização da anamnese e do exame físico, como observação,
interpretação de sinais e sintomas, ausculta, entre outras. Por
outro lado, muito além dos dons e dos talentos, as habilidades
comunicacionais, interpessoais, artísticas, empáticas são
subdimensionadas em currículos tradicionais e na prática médica
atual.

A incoerência da situação de saúde atual representa grande


desafio para a educação médica contemporânea. A transição
demográfica acelerada e a tripla carga de doenças, com forte
predominância de condições crônicas, além do sistema
fragmentado de saúde voltado para condições agudas e
agudizações das condições crônicas representam gigantesco

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

desafio para gestores e educadores. O eixo educacional


Habilidades e Atitudes do UniCEUB se mostra bastante antenado a
toda essa complexidade e busca sempre integrar a dimensão
semiológica com a dimensão humanista, permeando as relações
entre o estudante de medicina e o paciente bem como entre os
docentes e os discentes. Acreditamos que o cuidado integral com a
subjetividade do estudante contribui para a não deterioração ética
do futuro médico.

A atuação de estudantes de medicina do UniCEUB nos


diversos cenários hospitalares tem sido digna de nota, pois o
estudante é convidado a lidar com a realidade crítica desde os
ciclos iniciais do curso. O encontro entre o futuro médico e o
paciente deve ser sempre supervisionado por docentes preparados
e capacitados para “leitura” humanista da relação, que deve ser
permeada pela compaixão, empatia, capacidade de escuta ativa,
dedicação bem como pelo cuidado ético e técnico durante a
realização da anamnese com pacientes internados em hospitais
públicos vinculados com a instituição de ensino. Acreditamos que o
feedback ao estudante é crucial para o aperfeiçoamento da
técnica, e as narrativas humanistas representam via de acesso
bem como parâmetro de avaliação da qualidade da relação
estabelecida com os pacientes (TRINDADE et al, 2005).

Se pensarmos nas pessoas entrevistadas pelos estudantes


nos diversos cenários de ensino hospitalares e na própria
comunidade, poderíamos dizer que são vozes esquecidas, são
pessoas que se sentem muitas vezes invisíveis. Nada mais triste
do que a invisibilidade, o não existir como pessoa para o outro.
Que estas narrativas reflitam a importância dos encontros
interpares, entre docentes e discentes bem como entre estudantes
e seus pacientes. Sejam encontros com o outro, sejam encontros

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

consigo mesmo, associados ao processo de individuação e


autoconhecimento, pré-requisito para a consolidação de postura
madura, motivada, responsável e autêntica no exercício da
profissão (NOVAES; TRINDADE, 2007).

2 O CAMPO RELACIONAL DO ESTUDANTE DE


MEDICINA E OS DESAFIOS DAS RELAÇÕES COM OS
PACIENTES, OS DOCENTES E A SOCIEDADE

Neste livro, foi possível testemunhar o valor da graduação


médica pautada e voltada para o resgate de valores humanistas,
como compaixão, empatia e cuidado altruísta com o outro. Mesmo
parecendo uma abordagem por demais utópica e ingênua, é
preciso reafirmar que somos seres vocacionados ao amor, somos
dotados filogeneticamente para a construção de vínculos e para a
abertura de nosso ser com outros seres humanos. Se os laços
emocionais constituídos na infância e ao longo da vida não forem
postos em prática, se nossas identificações, antipatias, simpatias
não forem materializadas, por meio do cuidado, nada valeu a
pena.

O olhar psicanalítico nos convida a sempre desconfiar das


aparências, dos discursos dogmáticos, das compulsões e dos
fenômenos aparentemente banais e sem sentido. Tudo faz sentido,
e nada é por acaso, pois, embora não tenhamos a percepção
consciente, nossas intuições e nosso inconsciente sempre entram
em cena, por meio de nossos lapsos de linguagem, de nossos
sonhos e de nossa percepção flutuante da realidade. A teoria do
caos estruturado, oriunda do pensamento pós-moderno, confirma
e resgata o valor científico das teorias freudianas bem como o
impacto, na saúde de nossa vida onírica, de nossos traumas
inconscientes, de nossos sonhos, o que é denominado pelo
neurocientista Sidarta Ribeiro como o nosso oráculo da noite

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

(RIBEIRO, 2019). Que possamos, em nosso processo de


individuação psíquica contínuo, superar nossos conflitos, integrar
áreas opostas de nossa mente consciente e inconsciente, atuar de
forma ética e plena regidos por teorias fecundas, em uma práxis
enriquecida – lembrando que a teoria sem a prática se torna estéril
e, por sua vez, a prática sem teoria se torna cega. A praxiologia
pressupõe a integração de dois momentos, e, neste livro, isso se
dará de forma dinâmica. Os estudos da psicogênese das doenças
crônicas e do papel das questões inconscientes na organização da
doença são exemplos de aplicações e de fecundidade da teoria
psicanalítica neste campo de saber, o que será visível nas
narrativas incluídas nesta obra. O critério de inclusão dos relatos
foi eminentemente o voluntariado e o consentimento expresso por
estudantes do quinto semestre da graduação médica do UniCEUB.

Relembrando que a relação médico-paciente representa


espaço de projeções, de encontros e desencontros, de expectativas
inconscientes por parte do paciente diante da figura idealizada do
médico, permeada por afetos e transferências inconscientes, há,
dessa forma, reconhecimento acerca dos benefícios clínicos e
teóricos oriundos da teoria psicanalítica para a qualificação dessa
relação e do treinamento dos estudantes nesse processo. Segundo
Botega (2002), a prática médica baseia-se, portanto, não apenas
nas ciências biológicas, mas também deve se abrir, de forma
epistemológica e pedagógica, para toda a complexidade das
ciências humanas, nas quais se inclui a abordagem psicodinâmica
das reações dos pacientes ao adoecimento.

A nossa consciência existencialista está associada ao


sentimento de responsabilidade diante da vida, de nossas
escolhas. A questão central que nos permeia é o que, de fato,
fazemos com o que fizeram conosco. Como nos diz Jean-Paul

18
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Sartre, estamos condenados a sermos livres diante da existência.


Sabemos que as escolhas são muito difíceis, e viver sempre dói,
pois implica tomada de decisões e sentimentos de perdas. Sartre,
o representante maior dessa corrente filosófica, defendia que o
homem é livre e responsável por tudo que está à sua volta. Ele
dizia que “somos inteiramente responsáveis por nosso passado,
nosso presente e nosso futuro” (SARTRE, 2007). Neste livro,
somos responsáveis por mostrar ao leitor o papel grandioso do
futuro médico na nossa sociedade, pois as condutas e as reflexões
destes estudantes foram permeadas pela consciência social e pela
crescente amorização no cuidado do paciente.

Todos nós sabemos que a vida não nos poupa, e muitos


estudantes, pela idade tão jovem – vivendo ainda o luto pela
adolescência e pela juventude vivida com restrições – precisam
muito do nosso apoio psicológico e da nossa orientação docente,
para aprenderem gradualmente a importância do trato cuidadoso e
respeitoso, na lida com seus pacientes, bem como para assumirem
todas as responsabilidades geradas pela escolha da medicina,
frente ao paciente, frente ao próprio conhecimento, frente à
formação, frente à própria saúde emocional e, finalmente, frente à
qualidade das relações e dos vínculos estabelecidos.

As narrativas e o currículo médico inovador, baseado no


diálogo e no cuidado com a dimensão da subjetividade das
pessoas, podem catalisar o processo crescente de amadurecimento
e de responsabilização. Os diálogos em sala de aula provocativos e
o exercício pedagógico associado à produção de narrativas podem
ser catárticos e reveladores de todas as dificuldades e angústias
vivenciadas pelos estudantes na aproximação progressiva com a
realidade hospitalar e acadêmica. O leitor leigo, por meio da leitura
dessas narrativas, será presenteado com esta nova visão da

19
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

formação médica, mais poética, artesanal e gradual, que nos


permite ver de perto a face humana da educação médica
(TRINDADE et al, 2005).

Muitos pacientes, de forma colaborativa, foram entrevistados


por estudantes de medicina, em fase de aprendizagem e de
treinamento. Os hospitais públicos servem de escola para
inúmeras faculdades de medicina. Nosso país assiste a uma
explosão de abertura de novas escolas médicas, são 298
instituições que oferecem por volta de 35 mil vagas para
estudantes, mas, nem por isso, deve haver abuso e
constrangimento nos encontros dos estudantes com os pacientes,
e, por esse motivo, as narrativas representam importante via de
desenvolvimento ético do futuro médico e de agradecimento a
todos que foram escutados e aqui representados. Não se formam
verdadeiros médicos se houver descuido com a dimensão
psicológica e existencial de todos os atores envolvidos no processo
de saúde e doença. Não levando essa dimensão em conta,
estaremos formando apenas técnicos e não médicos vocacionados
que todos nós necessitamos e almejamos.

3 O PROFISSIONALISMO MÉDICO E AS NARRATIVAS


HUMANISTAS COMO CAMINHO PARA A RETOMADA
DA CONFIANÇA NA PRÁTICA MÉDICA HUMANIZADA

No UniCEUB, o investimento na construção do


profissionalismo médico tem sido substancial. Durante quatro
semestres formais, os estudantes participam de atividades
inovadoras, vivências, reflexões, palestras e dramatizações de
casos clínicos e, finalmente, constroem narrativas inspiradas nas
atividades desenvolvidas e supervisionadas pelo eixo educacional
Habilidades e Atitudes. A semiologia médica visa a fortalecer a arte
e a técnica do exame físico e da realização de anamneses

20
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

completas e estruturadas. Ressaltamos que o profissionalismo


médico tem sido apontado por muitos como o caminho para a
retomada da relação de confiança necessária à interação médico-
paciente e profissão-sociedade e a força mediadora das
transformações necessárias da formação e do exercício profissional
(SANTOS et al, 2017).

Precisamos, neste capítulo introdutório, esclarecer um pouco


alguns conceitos. Profissionalismo é um termo relacionado às
atitudes e aos comportamentos expressos no exercício da
profissão, sendo orientado por valores pessoais e profissionais e
permeado pelos aspectos históricos, sociais, culturais e
institucionais que delimitam a realidade das práticas
(MARTIMIANAKIS; MANIATE; HODGES, 2009).

Engloba um conjunto de elementos inter-relacionados, de


limites imprecisos, que, em linhas gerais, expressam o
compromisso ético, moral e humanístico que, normalmente, os
profissionais devem manter com o objeto de seu trabalho.

Há cerca de quatro décadas, o conceito de profissão e de


profissionalismo na educação médica era praticamente ausente.
Atitudes e comportamentos ditos “profissionais” eram apenas
marginalmente abordados no espaço acadêmico e no ambiente de
trabalho (SMITH, 2005; ARNOLD; STERN, 2006).

Na década de 1980, o Comitê Americano de Medicina Interna


(da sigla em inglês ABIM – American Board of Internal Medicine)
iniciou o projeto de humanização da profissão que, na década de
1990, abriu caminho para o projeto profissionalismo (ARNOLD,
STERN, 2006). Desde então, tem havido movimento crescente no
sentido de se obter compreensão comum sobre o tema.

21
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Ressaltamos a importância da publicação de definição


normativa do profissionalismo médico. Foram definidos nove
componentes e um conjunto de comportamentos representativos
desses componentes. Nesses componentes, foram destacados
princípios como altruísmo, responsividade às necessidades da
população, valores éticos, qualidade humanística,
responsabilidade, compromisso com a excelência, com o
crescimento profissional e da profissão e a prática reflexiva
(SWICK, 2000). O currículo do UniCEUB tem buscado,
constantemente, sintonia filosófica, pedagógica e institucional com
o que está preconizado pela literatura científica sobre esse tema e,
ao mesmo tempo, já demonstra sinais de amadurecimento,
gerando frutos palpáveis associados à qualidade de seu alunado,
qualidade de produção científica e compromisso de seu corpo
gestor e docente com o aperfeiçoamento do curso.

Enfim, uma bela história nos permite perceber o mais


encantador aspecto da medicina que é o foco na pessoa que
adoece e não na doença. Foram muitas histórias contadas e
narradas pelos estudantes do UniCEUB, as quais promoverão, sem
dúvida, fantástica viagem acadêmica, literária, humanística,
hermenêutica e interpretativa dos discursos mediados e
mediadores dos processos de cura e de cuidado demandados pelo
sofrimento humano.

4 ORGANIZAÇÃO DO LIVRO E TEMÁTICAS


HUMANISTAS

Este livro foi organizado em sete capítulos e representa,


sobretudo, um trabalho intergeracional em equipe interdisciplinar,
pautado na qualidade do vínculo estabelecido entre docentes e
discentes bem como entre cada discente e seus pacientes

22
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

homenageados nestas narrativas. Professor Allan Napoli, docente


do UniCEUB, médico homeopata e grande humanista, juntamente
com os estudantes Luiz Felipe Falcão de Souza, Carolinne Camila
de Souza Scarcela, Ana Júlia Souza Malheiros, Marina Batista
Kaminski e Ana Luiza Antony Gomes de Matos da Costa e Silva
fazem parte do grupo de trabalho responsável pela elaboração e
pela organização deste produto acadêmico.

A cada momento, o estudante de medicina vivencia um ritual


de iniciação, mobilizado para atender aos próprios anseios. Em
busca de suprir necessidades, mudanças e pedidos de ajuda, acaba
por lançar mão de motivações conscientes e inconscientes.
Sentimentos conflitantes dos estudantes são despertados pela
imaturidade deles frente à realidade acadêmica. Surgem dúvidas,
incertezas, sentimentos ambíguos, desencantos e frustrações
(TRINDADE; VIEIRA, 2013).

A adoção da metodologia Problem Based Learning (PBL) –


Aprendizagem Baseada em Problemas – pelo UniCEUB possibilitou
a inserção precoce do aluno no ambiente hospitalar, exigindo dele
saber como lidar com diferentes situações, com as quais não tinha
contato prévio, bem com demonstrar habilidade técnica e
emocional frente ao paciente. Assim, além de ter de demonstrar
que sabe realizar um bom exame clínico, deve também ter suporte
para o enfrentamento de situações de forte cunho ético,
emocional, psicológico e social. Essa consciência deve criar elos
que possibilitem ao docente agir sempre em prol do equilíbrio
mental do estudante.

Nesse aspecto, também são importantes as experiências


iniciais sobre conhecer o outro. Muitas vezes, sentimento de culpa
é despertado no aluno, já que, por meio do contato com o
paciente, são obtidos dados da história do adoecer e de sua vida, e

23
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

o estudante percebe estar aprendendo sem dar nada em troca,


sentindo-se invasivo e especulador. Ademais, ao realizar o exame
físico, tendo de tocar, palpar e fazer exame ginecológico ou retal
em pacientes, o estudante pode ser tomado por emoções e
angústias de intensidade variável, de acordo com o nível de
conflito que estiver vivendo (JORGE, 2014).

Sem dúvida, é impossível conhecer o homem sem lhe


estudar a morte, porque, talvez, mais do que na vida, é na morte
que o homem exprime o que a vida tem de mais fundamental. Por
isso, parece indispensável integrar a reflexão sobre a morte no
estudo da educação médica.

A busca por maior humanização da prática médica se


revela complexa, real e necessária. No capítulo dedicado a
esse tema, podemos visualizar que esse conceito permeia o ideário
dos estudantes, que buscam com avidez modelos, referências e
teorias que os ampare no alcance de prática mais comprometida
com valores humanistas, tais como altruísmo, equidade, justiça,
respeito e compaixão.

São diversos e inesgotáveis temas, como o apresentado no


capítulo em que são abordados os inúmeros ganhos e
aprendizagens inerentes à graduação médica bem como no
capítulo que trata da “Indesejada das gentes”, linda expressão do
escritor Manuel Bandeira (2016), para falar de nossa finitude.
Sabemos que somos seres mortais, no entanto, eternamente
desadaptados e marcados pelo terror à morte.

Profundamente relevante o capítulo dedicado aos


sentimentos e às vivências dos estudantes de medicina, até
porque devemos cuidar mais desse grupo de pessoas, visando a
promover resiliência, inteligência emocional e proatividade, assim

24
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

como devemos prevenir o adoecimento psíquico tão prevalente e


grave nesse grupo populacional.

Muito relevante também a reflexão voltada à questão de


cunho ético, sobre o médico que o futuro médico não quer
ser, que, sobretudo, alerta-nos para os riscos do aumento do
ceticismo, da perda do humanismo espontâneo, enfim para o risco
de deformação ética gerada no estudante, pela face adversa da
graduação médica. As reflexões de cunho ético são fundamentais
para a prevenção da deterioração de valores e de práticas do
futuro médico, ao relatar posturas de não aceitação passiva e
silenciosa de processo crescente de naturalização de ações
violentas, por parte de médicos e de professores de medicina.
Nesse capítulo, são abordados os malefícios do assédio moral ao
estudante de medicina e a negatividade associada à prática médica
deteriorada e descuidada.

Esse capítulo reforça a nossa crença de que docentes,


membros da faculdade, médicos e demais profissionais de saúde
devem estar atentos para incorporar os valores e os
comportamentos os quais desejam que seus estudantes
demonstrem na atuação como profissionais. Mensagens
contraditórias oriundas de um currículo oculto são
didatopatogênicas.

O aprendiz terá dificuldade em desenvolver uma


prática baseada na compaixão e no cuidado,
quando de um lado são incentivados para a
prática compassiva e do outro vivenciam práticas
baseada na competição, em questões financeiras
e no uso inadequado da autoridade. Educadores
devem servir de modelos e inspiração, criando
situações que traduzam o privilégio e a honra do
exercício profissional e, dessa forma, colaborar
com as transformações positivas do ambiente
educacional que delimita o currículo oculto
(SMITH, 2005).

25
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Precisamos, sem dúvida, também falar sobre morte e


morrer, porque concordamos com Ana Claudia Quintana Arantes,
que a morte é um dia que vale à pena ser vivido (ARANTES,
2020). Precisamos nos humanizar, precisamos compreender os
sentimentos e os sofrimentos dos estudantes, em seus ritos de
passagem, e precisamos também refletir sobre os ganhos e as
aprendizagens gerados por um currículo médico inovador que abre
espaço para a reflexão inspirada na tanatologia.

O professor Allan Napoli, grande parceiro de jornada,


presenteia-nos, também, com sua visão de mundo bastante
diferenciada e enriquecida por sua espiritualidade, bondade e
filosofia de vida, em um capítulo poético e literário que aborda os
grandes benefícios do resgate da cultura oral em sala de aula, por
meio da apresentação, aos estudantes, de fábulas e de histórias
universais com conteúdo ético e moral. Leremos seu belo capítulo
em que poderemos conhecer um pouco mais de sua história de
vida, de sua atuação como docente e de suas práticas
pedagógicas.

Antes da apresentação das narrativas, resolvemos inserir um


capítulo de cunho teórico, em que eu juntamente com Gabriela
Mendonça, egressa do curso de medicina da ESCS, onde fui
professora durante 13 anos, contextualizamos e refletimos sobre a
importância da ferramenta pedagógica denominada Medicina
Narrativa para a Educação Médica Contemporânea, prática
ainda bastante pouco divulgada e conhecida.

Por fim, é fundamental agradecer o apoio do UniCEUB na


edição deste livro, em formato de e-book, e de todos os alunos
empenhados e dedicados na elaboração deste trabalho e,
sobretudo, o carinho e a dedicação do professor Allan Napoli, que,
sem dúvida, quebra o modelo educacional e institucional voltado à

26
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

onipotência médica e, pelo contrário, revela a doçura e a gentileza


daqueles que são verdadeiros médicos de homens e de almas.

Referências

ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a


pena viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.

ARNOLD, Louise; STERN, David Thomas. What is medical


professionalism? In: STERN, David Thomas (Ed.). Measuring
Medical Professionalism. New York: Oxford University Press, 2006.
p. 15-37.

BANDEIRA, Manuel. Os melhores poemas de Manuel Bandeira.


Prefácio Francisco de Assis Barbosa. São Paulo: Global, 2016.

BOTEGA, Neury José (Org.). Prática psiquiátrica no hospital geral:


interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2002.

FREUD, Sigmund. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901).


In: ______. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Volume VI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

JORGE, Miguel Roberto. Globalized medical ethics and research


ethics. Clinical Evaluation, v. 42, p. 452-455, 2014.

JUNG, Carl Gustav. Sincronicidade: a dinâmica do inconsciente. 21.


ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

MARTIMIANAKIS, Maria Athina; MANIATE, Jerry M.; HODGES,


Brian David. Sociological interpretations of professionalism. Medical
Education, v. 43, n. 9, p. 829-837, Sept. 2009.

NOVAES, Maria Rita Carvalho Garbi; TRINDADE, Eliana Mendonça.


A morte e o morrer: considerações bioéticas sobre a eutanásia e a
finitude da vida no contexto da relação médico-paciente.
Comunicação em Ciências da Saúde, v. 18, n. 1, p. 69-77,
jan./mar. 2007 (impresso).

RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: a história e a ciência do


sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SANTOS, Wilton Silva dos et al. Profissionalismo médico: efeito da


diversidade sociodemográfica e da organização curricular no

27
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

desempenho atitudinal dos estudantes de medicina. Revista


Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 41, n. 4. p. 594-
603, out./dez. 2017.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia


fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão.15. ed. Petrópolis:
Vozes, 2007.

SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada: história da medicina na


literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SMITH, Lawrence G. Medical professionalism and the generation


gap. The American Journal of Medicine, v. 118, n. 4, p. 439-442,
Apr. 2005.

SWICK, Herbert M. Toward a normative definition of medical


professionalism. Academic Medicine, v. 75, n. 6, p. 612-616, June
2000.

TRINDADE, Eliana Mendonça Vilar et al. Resgatando a dimensão


subjetiva e biopsicossocial da prática médica com estudantes de
medicina: relato de caso. Revista Brasileira de Educação Médica,
Brasília, v. 29, n. 1, jan./abr. 2005.

TRINDADE, Leda Maria Delmondes Freitas; VIEIRA, Maria Jésia. O


aluno de medicina e estratégias de enfrentamento no atendimento
ao paciente. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 37, n. 2, p.
167-177, 2013.

28
Eliana Mendonça Vilar Trindade
Gabriela Mendonça Trindade

Este capítulo visa a fornecer bases teóricas para o leitor


interessado. Nele, abordaremos aspectos históricos, conceituais e
de cunho prático sobre o tema central deste livro. Informações
contextualizadas e não fragmentadas são cruciais, se
considerarmos que a educação médica contemporânea, de cunho
humanista e formativo, tem como principal foco a aquisição, por
parte do acadêmico, de nova identidade na vida, a identidade de
médico reflexivo, crítico, compassivo, com todos os direitos,
recompensas e responsabilidades embutidos na profissão. Em
consonância com as novas Diretrizes Curriculares Nacionais do
Curso de Graduação em Medicina do Ministério da Educação (MEC),
fica patente a amplitude dessa empreitada (BRASIL, 2014).

A frase célebre do médico português Abel Salazar (1915) –


“o médico que só sabe medicina nem medicina sabe”, ainda
bastante atual, reforça a necessidade de buscarmos novos
recursos pedagógicos, dinâmicos, interativos e reveladores de
todas as nuances e vicissitudes do processo de formação do futuro
médico.

É preciso buscar ativamente outros saberes, outros olhares.


Precisamos também dar voz aos inúmeros pacientes hospitalizados
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

que são entrevistados por nossos estudantes. São muitas histórias


lindas e emocionantes, inacreditáveis, que revelam a face humana
tão esquecida da medicina bem como toda a subjetividade de
quem cuida, no caso, esses cuidadores representam uma
juventude corajosa, consciente e humanista, pouco difundida pela
mídia, mas ainda muito presente nas escolas médicas.

O contato precoce com os pacientes promove experiências


únicas e possibilita catalisar o processo de amadurecimento do
futuro médico. Ninguém se conhece de fato, são muitos espelhos
internos e externos! São muitos vieses e elementos distratores a
serem superados e esclarecidos para o estudante, como no caso
do Mito de Narciso, o qual sucumbe, ao se encantar e se
envaidecer com sua própria imagem espelhada no lago. Fantasias
infantis de onipotência e poder irrestrito permeiam o contexto
acadêmico e dificultam o árduo convívio cotidiano do futuro médico
com o sofrimento, as doenças e a morte. Como em um
caleidoscópio, são muitas imagens que vão convergindo ou
divergindo, no processo de busca identitária inerente à graduação
médica. Gostar de gente é preciso, navegar é preciso, viver não é
preciso.

Criar e narrar impõe o risco de admitir que é necessário se


envolver, é necessário amar, é necessário trabalhar muito.
Apresentamos narrativas médicas e humanistas que retratam
estratégia de trabalho desenvolvida com alunos do quinto
semestre de medicina do UniCEUB e que visam a tornar o árduo e
longo trajeto da graduação médica menos adoecedor e iatrogênico.

A medicina narrativa, diferentemente da clássica história


clínica, foi conceituada por Rita Charon (2000) como forma de
transcendência da prática médica tradicional, incluindo vivências
privadas e subjetivas inerentes às relações humanas. As narrativas

30
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

espelham expectativas, valores, ética, emoções, enfim, a riqueza


da subjetividade dos nossos acadêmicos e reforçam a visão
formadora e transformadora da educação médica atual, buscando
corresponder aos anseios de uma sociedade cada vez mais
insatisfeita pela falta de referências positivas.

A dimensão privada da relação com o paciente não é


contemplada na história clínica clássica, a qual focaliza aspectos
semiológicos da queixa principal do paciente bem como todos os
antecedentes patológicos daquele indivíduo, construída durante a
realização de entrevista estruturada de anamnese, corroborando
princípios científicos positivistas calcados na observação, na
mensuração, na escuta e no registro dos sinais e dos sintomas de
patologia previamente catalogada.

Ressaltamos a importância do contexto no processo de


significação das falas, fato que não é esquecido durante a
graduação médica, no eixo educacional Integração Ensino, Serviço
e Comunidade (IESC), uma vez que já existe grande preocupação
de se promover a inserção do estudante na comunidade, por meio
de visitas supervisionadas, seguidas de técnica de problematização
daquela prática.

A medicina narrativa também pode ser um instrumento de


grande valia ao médico na investigação semiológica das queixas do
paciente, na medida em que o profissional com competências
narrativas, durante todo o tempo da consulta, atenta-se ao diálogo
com o paciente, extraindo dele aquilo que considera relevante ao
quadro e interpretando, baseado em seu conhecimento científico, a
experiência da doença que é contada pelo paciente. Dessa forma,
também é capaz de compreender como os eventos da vida de uma
pessoa influenciam no processo de saúde-doença.

31
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

1 POSSÍVEL CLASSIFICAÇÃO DAS NARRATIVAS


MÉDICAS EM DIFERENTES CONTEXTOS

Grossman e Cardoso (2006), em reflexão de cunho


epistemológico para classificar diferentes tipos de narrativas,
afirmam que a metodologia PBL – Aprendizagem Baseada em
Problemas – apresenta a narrativa por meio dos “problemas”. Esse
tipo de metodologia ativa visa a substituir aulas puramente
expositivas e sem contextualização por vivências extraídas do
mundo real, essa estratégia didático-pedagógica centrada no
estudante tem o problema como elemento central, simples,
objetivo e motivador, abordando situações que trazem possíveis
conhecimentos prévios ou experiências vivenciadas pelo aluno.

A utilização da medicina narrativa vem representando


possibilidade de diálogo fecundo no UniCEUB. Qual o espaço que
deve existir entre médicos e pacientes, entre estudantes de
medicina e seus docentes e, sobretudo, entre o mundo acadêmico
e o público leigo? Precisamos valorizar toda a subjetividade
inerente a esse contexto. Existem muitos tipos de narrativas, que
devemos conhecer melhor para contextualizar esse nosso
empenho.

Dessa forma, é relevante relembrar que, na prática médica,


também existem as narrativas dos próprios pacientes sobre as
suas doenças. Nelas, os indivíduos tecem discussões sobre a
doença e os desequilíbrios por ela impostos e como eles agem para
transformar essa nova realidade. No que tange aos estudos sobre
doenças crônicas, tais narrativas ganham grande relevância, pois
mostram o esforço empreendido pelos doentes para encarar
situações de vida cotidiana, com os problemas de identidade que a
enfermidade gera. É cada vez mais frequente a produção de

32
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

patonarrativas catárticas e didáticas, em que o autor narra a


trajetória de sua luta contra os males associados ao adoecimento.

A belíssima patonarrativa escrita pelo psicólogo Andrew


Solomon, em seu livro O demônio do meio-dia: uma anatomia da
depressão (2014), aborda com intensidade e densidade teórica e
humanística toda sua trajetória de luta contra a depressão,
contemplando o grave risco de suicídio, a busca por um terapeuta
ideal, os benefícios e os malefícios dos medicamentos e,
sobretudo, a vontade dele, como psicólogo, de conviver com
dignidade com essa doença. Ao longo de sua vida, ele viajou o
mundo, curioso acerca dos recursos de cada cultura no
enfrentamento do sofrimento. A sua narrativa começa de forma
implacável, quando ele nos alerta que a depressão é fruto da
imperfeição no amor e que amar implica a capacidade de nos
desesperarmos com as perdas.

2 O QUE APRENDEMOS COM A PRÁTICA DAS


NARRATIVAS MÉDICAS?

O conteúdo pedagógico de algumas narrativas é evidente,


segundo Grossman e Cardoso (2006). A linguagem padronizada
dos prontuários reflete as entrevistas estruturadas de anamnese,
foco de treinamento contínuo ao longo da graduação médica. Elas
trazem uma abordagem fixa, com informações de identificação,
queixa principal, história da doença atual, história patológica
pregressa, revisão dos sistemas, história familiar e social.

A partir dos dados abordados nas anamneses, é desenvolvida


outra modalidade de narrativa médica – os relatos de casos em
sessões clínicas ou casos apresentados em revistas científicas –
que constituem o meio pelo qual se estabelece comunicação na
comunidade médica, possibilitando o entendimento a respeito de

33
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

pacientes individualizados e seus problemas médicos e a busca de


solução para seus casos.

A competência narrativa acarreta abertura na visão


epistemológica do médico, na medida em que passam a ser
consideradas e legitimadas múltiplas fontes de saber acerca do
paciente, incluindo as informais e subjetivas, muitas vezes
consideradas não científicas.

Charon (2000) afirma que, apesar de tentar se manter


onisciente em suas narrativas, o médico, inegavelmente, “habita”
seu set de motivos, medos, esperanças. Logo, as narrativas por
ele realizadas têm caráter pessoal e, por isso, são limitadas pelo
seu ponto de vista. Um exemplo disso é a capacidade de
transformar a história contada pelo paciente em dados objetivos
que caracterizam o curso da disfunção biológica atual, excluindo as
percepções dele sobre sua doença, aflições e angústias.

A subjetividade arraigada nessas narrativas é vista por


González Rey (2002), professor de psicologia nascido em cuba e
criador da epistemologia qualitativa, como um fenômeno complexo
que deve ser conhecido de forma mais aproximada e dinâmica por
meio de métodos qualitativos. Em suas obras, esse autor traça um
percurso do desenvolvimento da pesquisa qualitativa e mostra que
a categoria subjetividade é passível de ser a principal proposição
para investigação (TRINDADE; COSTA, 2009).

O médico com habilidades interpessoais concentra-se no que


o paciente diz, possibilitando estabelecimento de vínculo de
confiança, o que é fundamental para a efetiva aliança terapêutica.
Essa postura estimula o paciente a falar sobre sua doença,
trazendo mais dados, acerca do caso e, com isso, maior benefício
terapêutico.

34
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Além disso, a narrativa escrita possibilita ao médico não


apenas conhecimento sobre o paciente e sua patologia, mas
“mergulho” em si mesmo, promovendo reflexão sobre suas
vivências e, com isso, adquirindo maior confiança, capacidade de
reconhecer e prevenir erros e compromisso ético com o paciente.

Segundo Favoreto e Camargo Júnior (2011), no diálogo entre


o paciente e o médico, está presente interação social entre esses
sujeitos que estão buscando criar um enredo; sendo assim, as
narrativas estão em constante mudança e sendo continuamente
negociadas, dependendo das mudanças de perspectivas e de
modificações que ocorrem no processo de adoecimento. Ambos
(médicos e pacientes) precisam procurar um modo de entender,
explicar e articular a doença a um sentido mais amplo. Nesse caso,
a narrativa assume o caráter de contínua negociação, visando à
construção de um novo e diferente desfecho (HYDÉN, 1997 apud
FAVORETO; CAMARGO JÚNIOR, 2011). O resultado do encontro
clínico seria, portanto, o produto da narrativa de médicos e de
pacientes e da interação desses sujeitos. Essa influência mútua
produz novas realidades por meio de construção compartilhada.

3 MEDICINA E LITERATURA: PERSPECTIVA


HISTÓRICA

Vale a pena ressaltar que a graduação médica pode ser


excelente berço para o nascimento de futuros escritores e que o
estudante no UniCEUB é bastante incentivado a mergulhar em
terrenos extramédicos, tais como a literatura e o cinema.

A introdução do campo da literatura e da medicina nas


escolas médicas remonta a década de 1970 (GROSSMAN;
CARDOSO, 2006). Isso se deu como consequência da ampla
reflexão sobre como enfrentar o desafio da educação médica de

35
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

integrar excelência técnica e traços humanistas. Os currículos


médicos estão preocupados em formar médicos detentores de tais
traços, os quais são vistos como objetivos educacionais.

Tapajós (2008) realiza uma crítica bastante lúcida acerca da


limitação da educação médica tradicional, no que tange, ao
desenvolvimento de habilidades interpessoais mais complexas. A
taxonomia de objetivos educacionais clássica, que envolve os
domínios afetivo, cognitivo e psicomotor, abarca os traços
humanísticos, mas deixa a desejar quanto a aspectos do
conhecimento humano cruciais para as humanidades, como os
objetivos que se referem ao autoconhecimento, ao
amadurecimento e à individuação bem como ao reconhecimento
dos próprios sentimentos e habilidades de comunicação
interpessoal. Dessa forma, busca-se, então, outros sistemas
conceituais como referenciais teóricos mais adequados às
humanidades (TAPAJÓS, 2008).

Sem dúvida, a educação médica se reinventa de forma


bastante criativa e eficiente. São muitas possibilidades de
integração entre a cultura científica do ambiente acadêmico e as
diversas modalidades artísticas, tais como literatura em seus
múltiplos formatos, histórias curtas, ensaios e novelas. A utilização
de artigos extraídos de periódicos médicos contemporâneos tem o
poder de instigar discussões sobre determinantes sociais, culturais
e econômicos das doenças suscitados pelas artes. Acreditamos e
colocamos em prática, no UniCEUB, como Blasco e Moreto (2012),
da Universidade de Santo Amaro, o projeto literatura e cinema
para estudantes de medicina, em que estudantes de primeiro ao
quinto ano da graduação, discutem, com base em obras literárias e
filmes, a figura do médico; o paciente e o sofrimento humano,
doenças, limitações e insanidades; relações humanas e ética.

36
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

4 O CURRÍCULO INOVADOR DO UNICEUB: UMA


EXPERIÊNCIA PARA CONTAR

No UniCEUB, no eixo educacional Habilidades e Atitudes, a


professora Renata Bortoli, poetisa e psicanalista, e o professor
Allan Napoli, têm contribuído muito com atividades inovadoras,
envolvendo análise e interpretação de arte cinemática e literária
bem como utilização criativa de filmes com conteúdo médico, no
laboratório de simulação realística. São selecionadas cenas
emblemáticas e inspiradoras de debates e, após serem simuladas,
com apoio de atores previamente treinados, os discentes são
estimulados a refletir sobre a complexidade ética e técnica inerente
à relação médico-paciente. Os atores são convidados a replicar
cenas de filmes e são entrevistados por estudantes previamente
orientados. Surgem situações que promovem intenso estresse
controlado, necessário para gerar, gradativamente, aproximação
sucessiva dos desafios inerentes à clínica, com pacientes difíceis e
portadores de transtornos mentais. Há cuidado ético de não expor
o estudante a situações por demais intensas e constrangedoras,
mas, sim, existe cuidado com toda a dimensão afetiva do
estudante. Os atores são envolvidos na discussão posterior da
cena, trazendo importante feedback para os alunos, pois
conseguem particularizar as situações, verbalizar detalhes
observados nas falas e na postura de escuta dos estudantes.

É conveniente enfatizar que o curso de medicina do UniCEUB


– partindo do princípio de garantir e aperfeiçoar a formação geral
do médico em termos técnicos, científicos e humanísticos, em
perspectiva interdisciplinar – tem como uma de suas metas formar
profissionais com capacidade para compreender as necessidades
de saúde das pessoas não apenas do ponto de vista físico, mas
também nos contextos psicológico, familiar, laboral e comunitário.

37
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Com base nessa metodologia de ensino, os estudantes


desenvolvem, além de habilidades clínicas, senso de observação,
capacidade de expressão oral e escrita, autoconhecimento,
intuição, autoavaliação e empatia.

No quinto semestre do curso de medicina do UniCEUB,


discentes passam a ter maior contato com o paciente, tanto na
emergência como na enfermaria. Em função disso, vivenciam
diversas situações conflitantes, sejam elas de cunho ético, social
ou humanístico. Para auxiliar os estudantes no enfrentamento
dessas questões, em 2010, foi incluída no currículo desse período
do curso, a técnica de medicina narrativa, que já estava sendo
empregada há algum tempo no terceiro semestre.

Observa-se, portanto, no currículo do UniCEUB, grande


preocupação para garantir que a abordagem das vivências e
dificuldades dos estudantes no desenvolvimento de habilidades
éticas, afetivas e interpessoais esteja contextualizada e em
harmonia com os princípios do SUS, com o método de ensino e
com o modelo biopsicossocial mais abrangente e atual.

Segundo os psiquiatras norte-americanos Kaplan e Sadock


(1990), na história da medicina, é possível observar que, a cada
época, o modelo de assistência médica segue o pensamento
dominante referente a esse período. O modelo biomédico,
tecnicista, o qual predominou nos últimos dois séculos, vem sendo
ofuscado pela tendência biopsicossocial. Ou seja, o foco em
parâmetros biológicos, diagnóstico e tratamento, agora cede
espaço para a visão do paciente dentro de todas as suas
dimensões: biológica, psicológica e social. Sem dúvida, a medicina
narrativa visa à consolidação de um modelo que transcenda o foco
restrito no biomédico.

38
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

De acordo os mesmos autores, o modelo biopsicossocial


surgiu a partir do desenvolvimento de várias áreas de
conhecimento, como a psiquiatria, a psicologia, a psicanálise e a
medicina psicossomática, entre outras. A partir de tais
conhecimentos, busca-se visão holística do homem, na qual os
aspectos psicológicos e sociais estão intrinsecamente vinculados
aos aspectos biológicos. Logo, para ser efetivo em sua ação, o
médico deve compreender não apenas a doença, mas também o
paciente. E, para que isso seja possível, é indispensável que se
desenvolvam, nos profissionais de saúde, as habilidades
necessárias para o surgimento de boa relação entre médico e
paciente, a qual adquire importância terapêutica.

5 MEDICINA NARRATIVA E DESENVOLVIMENTO


DE HABILIDADES EMPÁTICAS

A medicina narrativa qualifica a relação do estudante com o


seu paciente. Para que se formem profissionais com capacitação
consonante com o modelo biopsicossocial, os currículos médicos
devem mostrar coerência com propostas pedagógicas que deem
foco aos aspectos humanísticos. Frequentemente, esses pontos
são elencados nos projetos pedagógicos sob referencial teórico
clássico – a taxonomia de objetivos educacionais – e divididos em
três domínios: cognitivo, afetivo e psicomotor (MEDEIROS et al,
2013).

Faltam estudos sérios que possam comprovar a correlação


causal entre medicina narrativa e desenvolvimento de empatia. Há
consenso que atividades pedagógicas inovadoras promovem
aumento do escore em escalas de empatia, em estudantes de
medicina, já que permitem ao estudante refletir e visualizar os
benefícios de escuta qualificada bem como compreender, por meio

39
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

de autoconhecimento, as suas próprias limitações e bloqueios


afetivos na relação com os pacientes simulados por atores
previamente treinados.

Os domínios afetivos contemplados na medicina narrativa são


abarcados no conceito de empatia, que envolve a habilidade
cognitiva de compreender como a circunstância em que outra
pessoa está vivendo influencia a vida dela, a reação emocional aos
seus sentimentos e a habilidade de expressar compreensão e apoio
para com o outro. A empatia tem sido descrita como importante
elemento da formação médica, e o seu papel como responsável
pelo desenvolvimento da boa relação entre pacientes e médicos é
discutido em diversas pesquisas sobre educação e cuidado médico.

A empatia e a habilidade comunicacional aumentam a


satisfação e a confiança dos pacientes, intensificam a habilidade do
médico em diagnosticar e tratá-los bem como representam bom
preditor de saúde emocional, ajudando o futuro médico a gerir
melhor os seus conflitos, a fadiga e a responsabilidade diante da
tomada de decisões, além de catalisar o processo de formação de
um médico compassivo, que saiba se envolver com o paciente, de
forma ética e respeitosa, sem ficar envolvido, enfim, sem ficar
afetado negativamente por contratransferência não manejada, de
forma consciente.

Estudos propõem que os indivíduos empáticos tornam as


relações mais agradáveis, reduzindo o conflito e o rompimento
(DAVIS, 1983). A habilidade em “ler” e valorizar os pensamentos e
os sentimentos das outras pessoas é o que, provavelmente, torna
esses indivíduos mais bem-sucedidos em suas relações pessoais e
profissionais (ICKES, 1997). De outra forma, indivíduos não
empáticos parecem carecer de inteligência social e podem se
tornar prejudicados no trabalho, na escola, na vida conjugal, nas

40
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

amizades e nas relações familiares, além de correrem o risco de


viver à margem da sociedade (GOLEMAN, 2012).

Vale lembrar as contribuições inestimáveis do psicanalista


Michael Balint para a humanização da medicina e a qualificação da
relação médico-paciente, na década de 1950, na Inglaterra, com a
teoria e o método grupal para a formação psicológica de médicos,
incentivando o autoconhecimento e a percepção da influência de
conteúdos inconscientes e irracionais na relação com o paciente
(BALINT, 1961).

Em relação ao monitoramento dos efeitos de um currículo


inovador, no desenvolvimento de atitudes humanísticas e de
competências clínicas e empáticas do estudante, tivemos
experiência prévia na ESCS, com forte adesão ao método da
medicina narrativa, durante um período de dez anos, onde
docentes eram capacitados a realizarem devolutivas significativas
para cada narrativa produzida, de forma minuciosa e singular, o
que permitia estreitamento da relação entre docente e discente.
Foram realizados estudos visando a avaliar a percepção do
estudante sobre o método bem como estudos qualitativos e
comparativos da qualidade das narrativas, ao longo da graduação
(ALMEIDA et al, 2005).

A empatia contempla a grande capacidade de se colocar no


lugar do outro, por meio de uma ousada competência afetiva,
cognitiva e comportamental, em que é necessário ter sensibilidade,
flexibilidade de pensamento, altruísmo e capacidade de
compreender a perspectiva do outro, enfim, pouca gente empática
neste mundo confuso, imagético, percebido de forma confusa por
todos. Se ganhamos muito com a era da comunicação, com a
agilidade de transmissão das informações com as redes sociais,
perdemos muito em termos afetivos. As imagens privadas circulam

41
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

nas redes sociais, mas são apenas simulacros de vidas bastante


inexpressivas e esvaziadas de sentido existencial. De acordo com
Bauman (2004), trata-se de um mundo em que o vínculo e o amor
são líquidos e voláteis.

Não é simples ir na contramão dessa tendência, não é


simples obter essa competência nem tão pouco é simples ensinar
ou, ao menos, motivar o estudante para o desenvolvimento de
habilidades comunicacionais e inter-relacionais. A sensibilidade
permite que as pessoas possam ter boa capacidade de percepção e
observação dos fenômenos humanos, de autoconhecimento, e,
dessa forma, obter boa relação com o paciente. Muitos estudantes
demonstram dificuldades na construção de vocações humanistas,
por serem pessoas fechadas e não se sentirem confortáveis com
situações imprevistas ou com forte colorido emocional tão presente
nos hospitais visitados. Muitos, infelizmente, deformam-se ao
longo do próprio curso de medicina altamente iatrogênico, se não
há, na faculdade, preocupação com a transmissão de valores e
com o cuidado da saúde emocional do futuro médico.

Medicina pressupõe a arte do encontro, pressupõe a


capacidade de lidar com o inusitado, com o imprevisto, com a dor,
com o próprio sofrimento vicário. Como qualquer forma de arte,
pressupõe performance única e singular a cada nova consulta e
atendimento. No UniCEUB, os estudantes são convidados a narrar,
de forma livre, uma situação significativa vivida durante as
atividades nos hospitais ou na comunidade. Acredito que a arte do
encontro não é só uma questão de treino e de reflexão pessoal,
mas, acima de tudo, pressupõe a decisão individual e o
envolvimento emocional e afetivo com a dor do próximo. Nesse
contexto, eu sempre falo para os meus alunos, em sua maioria da
geração millenium: “vocês não precisam seguir uma receita, mas

42
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

precisam ampliar seus limites e, sobretudo, respeitá-los. Não


precisam fugir de temas afetivos durante as entrevistas, já que
eles fazem parte de todo este processo e não precisam se
incomodar tanto com o sentimento de angústia diante de certas
situações”. Os bloqueios iniciais associados à ansiedade gerada
pelo espaço narrativo escrito e oral são suplantados pela crescente
maturidade ao longo do curso.

A observação e a literatura científica indicam que os médicos


possuem dificuldades no trato dos aspectos emocionais em sua
prática profissional. Com os avanços tecnológicos, a prática médica
tornou-se mecanizada e distante dos pacientes. Os médicos,
atualmente, apresentam a tendência de estabelecer relações
distantes, sem confiabilidade, o que leva ao aumento da
iatrogenia, segundo Cassorla (1991). Algumas disciplinas nas
escolas médicas tradicionais, como a psicologia médica e a
psiquiatria, vêm tentando enfatizar, em suas práticas, a
importância dos fatores psicossociais tanto no processo saúde-
doença como na atenção ao ser humano sadio ou doente.

O grande desafio atualmente é fazer o médico e até mesmo o


estudante de medicina se interessarem por aspectos emocionais
em suas práticas. As vivências emocionais podem ser trabalhadas
por meio de atividades nos cenários hospitalares ou de simulação
realística, em que há contato dos estudantes com os pacientes e,
por conseguinte, com seus conflitos e aflições. A supervisão dessas
atividades promove feedback e busca resgatar a subjetividade
inerente ao modelo biopsicossocial adotado pela escola (ALMEIDA
et al, 2005).

Precisamos ser mais ousados e corajosos se quisermos lidar


com o sofrimento e com o processo de adoecimento, premissa
fundamental que me pautei nesta longa jornada inerente à

43
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

formação psicológica de médicos no Distrito Federal. Parafraseando


o famoso psicanalista húngaro Michael Balint, a pessoa do médico
representa o maior medicamento, a mais poderosa droga e, por
isso mesmo, devemos sempre cuidar de sua posologia, efeitos
colaterais e benefícios terapêuticos (BALINT, 1961).

Somos seres dialógicos, imensamente dependentes do


convívio social e, como o filósofo austríaco Martin Buber (2001)
nos afirma, não há como o homem existir sem o diálogo e a
comunicação, e ambos não são possíveis sem que haja interação
entre as pessoas. De fato, ninguém consegue se comunicar sem
um interlocutor, uma vez que a comunicação é sempre direcionada
a algo ou a alguém e, para ter e ganhar sentido, precisa ser
decodificada e entendida pelo outro. As narrativas médicas
promovem rica interlocução promotora de maior humanização e
escuta de pessoas enfermas.

O papel da narratividade – de integrar o contexto de vida das


pessoas e a construção de suas realidades e identidades – é
compreendido, por Hydén (1997 apud FAVORETO; CAMARGO
JÚNIOR, 2011), como fruto de síntese de discursos políticos e
morais, criados pelas pessoas para entenderem e julgarem as
circunstâncias e situações em que vivem. Nesse sentido, a
entrevista médica é fundamental, uma vez que pode ampliar muito
a visão de mundo do estudante e, ao mesmo tempo, pode servir
de espaço de reconstrução de sínteses sobre o significado e o
impacto da doença na vida da pessoa. Em um segundo momento,
o estudante, ao narrar uma situação vivida, é convidado a assumir
posições, eleger detalhes, esquecer aspectos incômodos e ressaltar
situações marcantes. O estudante passa a assumir posicionamento
e envolvimento maior com a dor do outro.

44
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Nesse sentido, a narrativa Milena, de autoria do médico


chileno Jaime Duclos (2001), constitui verdadeira homenagem a
uma paciente acompanhada por ele, em regime de cuidados
paliativos, ao longo dos seus últimos sete anos de vida. A beleza
ética e poética dessa narrativa reside no cuidado amoroso de um
médico delicado e consciente, que expressa, de forma
transparente, os conflitos dele de não gerar sofrimentos
desnecessários nessa senhora bem como de promover o máximo
de autonomia, acolhendo bastante os anseios dela de estar até o
fim em casa com a família.

Publicações recentes revelam que a empatia dos estudantes


de medicina tende a decrescer ao longo do seu percurso nas
escolas médicas, em particular com o primeiro ano de contato com
a realidade clínica (HOJAT et al, 2009). Em concordância com esse
estudo, no UniCEUB, temos observado que alguns estudantes não
conseguem ter uma relação empática nos primeiros contatos com
os pacientes, mas, se existir espaço para elaboração das
dificuldades bem como investimento em atividades que simulem
situações complexas e desafiadoras, a motivação do estudante
pelo tema cresce e, assim, previne-se o declínio do humanismo
espontâneo do estudante.

A medicina narrativa representa elemento mediador da


evolução do estudante e até mesmo pode atuar como forma de
monitoramento e avaliação da qualidade da relação do estudante
com o paciente. Sugerimos que o estudante pode ser
acompanhado de forma longitudinal no curso, e suas narrativas
devem, de forma crescente, revelar maior amadurecimento e
equilíbrio do futuro médico, que, aos poucos, vai materializando
diversas situações, por meio de olhar mais integrado e
singularizado de cada paciente.

45
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Neste exato momento, podemos imaginar a extensão do


sentimento de solidão, de abandono, de carência, de apreensão,
enfim, dos dramas humanos e, portanto, da dimensão social e
humanística inerente à prática médica contemporânea, bem como
ficam patentes o valor e o papel das escolas médicas nesse
cenário. Os dramas humanos são historicamente retratados pelas
artes, pela sociologia, pela psicologia e pela bioética. O
protagonismo de estudantes que flagram esses dramas merece ser
abordado de forma cuidadosa e produtiva. O sofrimento deve ser
transformador de mentalidades e de ações construtivas em prol de
pessoas internadas em hospitais públicos por motivos variados,
por doenças graves, mas que, em sua maioria, não são
verdadeiramente compreendidas em suas demandas e sofrimentos
existenciais. A qualidade da relação dos estudantes de medicina
com os pacientes representa eterno desafio marcado pelo encontro
entre sujeitos morais bastante distintos e por alteridade radical.

O maior desafio é suplantar essa distância radical, gerada


pelas imensas diferenças sociais do nosso país, bem como diminuir
possível assimetria de vivências, de posições e de consciências,
por meio de esforço empático promotor de identificações e de
vínculos. Essa escuta – denominada como escuta ativa,
acolhedora, implicada e enriquecida pela qualidade de um bom
rapport (KAPLAN; SADOCK, 1990) – deve transcender uma
alteridade radical para jovens estudantes de medicina, gerada pela
faixa etária, pela condição social e pela realidade cultural, seja pela
violência das doenças, seja pela proximidade com a morte. Todo
ato pedagógico deve estar baseado em intencionalidade explícita, e
diríamos que o objetivo pedagógico das narrativas médicas assume
caráter bastante valorativo e ético. Escutar o outro representa
tomada de decisão, valorização da compaixão e cuidado integral

46
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

com o paciente, portanto, não representa uma técnica isolada de


valores, mas, sim, um valor que vai gradativamente ganhando
corpo com o treinamento efetivo do estudante.

Dunker e Thebas (2019) catalogam diferentes padrões de


escuta: escuta hospitaleira, escuta hospedeira, escuta hospício e
escuta hospital, trazendo à tona toda a complexidade da arte e da
técnica de escutar todas as vozes verbais e não verbais presentes
na linguagem corporal, gestual, atitudinal, verbal e
comportamental do paciente. Sem escuta, não há narrativas
singulares; sem narrativas singulares, não há cuidado humanizado
e diferenciado com o ser humano; sem narrativa, não há
lembranças marcantes e transformadoras. Com base no que nos
diz Gabriel García Márquez, você é o que sua memória lhe permite
ser. Se não existe memória, a identidade pessoal vai sendo
subtraída, gerando uma postura despersonalizada e alienada.
Estamos flagrando, no momento atual, um contingente muito
grande de indivíduos autômatos, que não conseguem protagonizar
a própria história nem, tão pouco, produzir narrativas autênticas,
estruturadas e estruturantes de uma vida mais plena.

Considerando o que a literatura científica menciona a


respeito da grande dificuldade de o estudante sentir empatia pelos
pacientes, principalmente, por aqueles cuja realidade social,
afetiva e/ou cultural seja muito diferente, optamos por abordar
muitas situações, em sala de aula e nos laboratórios de habilidades
clínicas e de simulação realística, tais como: qual a forma correta
de abordar questões psicológicas e emocionais dos pacientes; é
permitido abraçar o paciente, visando a promover apoio; que tipo
de toque pode representar respeito e cuidado; como buscar
coerência crescente entre a comunicação verbal e a não verbal
com os pacientes; como interpretar os sinais não verbalizados

47
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

pelos pacientes durante as entrevistas; como fazer sobrepor a


gentileza em todos os momentos; como dizer a verdade, por mais
dura e cruel que ela possa ser; como lidar com o pranto do
paciente e com tantas inseguranças, enfim, são temas inesgotáveis
que nenhum protocolo consegue esgotar.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A medicina narrativa mostrou-se como uma estratégia


pedagógica válida no UniCEUB, na medida em que possibilitou a
expressão, a elaboração e a reflexão de conteúdos humanísticos
inerentes à prática médica, o que será visível ao longo deste livro.
A adesão voluntária e espontânea ao instrumento é crescente.
Muitos docentes e discentes acreditam na eficácia dessa
ferramenta.

Como professora de psicologia médica do UniCEUB,


juntamente com o professor Allan Napoli e os demais membros da
equipe de docentes, conscientes das dificuldades e das
potencialidades dos estudantes, sempre buscamos instrumentalizar
os futuros médicos com maior capacidade de observação e de
compreensão psicodinâmica dos conflitos, comportamentos e
reações dos pacientes biófilos ou tanatofílicos diante das doenças
bem como buscamos treinar, nos diversos laboratórios de
simulação realística e de habilidades e atitudes da instituição, por
meio de atividades com atores preparados e orientados, escuta
mais plena que contemple não só a palavra proferida, mas
também a linguagem não verbal, paraverbal, gestual, atitudinal,
enfim, que contemple o corpo e os seus simbolismos, além de toda
a dimensão polissêmica da palavra. Enfatizamos o valor de
conhecermos a espiritualidade dos pacientes e os seus conflitos
mais íntimos e inconscientes, as suas culpas e os seus segredos

48
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

existenciais, as suas expectativas diante da vida e da morte e não


apenas as suas doenças.

As competências narrativas possibilitam melhor habilidade de


ouvir e de acompanhar o que se é relatado, reconhecendo-se as
imagens e as metáforas usadas pelas pessoas e adotando o ponto
de vista do outro. As competências criativas, afetivas e textuais
serão visualizadas nas histórias narradas por nossos estudantes.
Todos os nomes utilizados neste livro são fictícios, visando a
proteger e a preservar o anonimato das pessoas, visto que o sigilo
ético e a confidencialidade representam a pedra angular da aliança
terapêutica.

O desafio de tornar o encontro dos estudantes de medicina


com seus inúmeros pacientes um momento singular, único,
artístico, literário e marcado pela esperança e pela plenitude de
significados nos convida a buscar sempre novas metodologias
pedagógicas. Inicialmente, na relação estudante-paciente, há dois
sujeitos moralmente anônimos, com demandas diferenciadas, e
cujo destino e desfecho desse encontro dependem da qualidade do
vínculo criado e da comunicação estabelecida. As habilidades de
metacognição associadas à consciência crítica de si mesmo e, ao
mesmo tempo, à capacidade de identificar quais narrativas são
possíveis nessa relação, geradas pelo processo saúde e doença e
pela busca de superação dos problemas, fazem com que o futuro
médico passe a intervir e a crescer durante esse momento de
aprendizagem. Alguns estudantes ainda são bastante jovens,
outros, mais maduros mentalmente, mas, como diz o sábio ditado
popular: “demora-se muitos anos para se tornar jovem, é preciso
ter muita calma e paciência nesse ofício”. Que a prática médica
seja sempre rejuvenescedora e plena de significados e de
narrativas eternas!

49
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

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52
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Allan Eurípedes Rezende Napoli

A vida é feita de sonhos. Sonhos que se entrelaçam nas telas


do infinito!

Os sonhos funcionam como agentes que impulsionam o ser


humano à realização das mais altas conquistas. Desde a infância,
somos os atores no palco da vida e interpretamos vários papéis.
Se formos perguntar a uma criança qual o sonho que ela quer que
se realize quando crescer, teremos uma diversidade de respostas.

Cada um de nós é um sonhador à sua moda, o que nos faz


seres especiais, ímpares, sem cópias. Somos compositores e
intérpretes, autores e protagonistas neste mundo de sonhos e
realidades. Quem não sonha perde a grande chance de mudar o
seu destino, pois, com os nossos sonhos, podemos alcançar os
nossos ideais.

Na qualidade de professor dos alunos cujas narrativas


compõem este livro, fui convidado pela professora Eliana Trindade
a contribuir com um relato que tratasse da minha trajetória de
vida.

Meu sonho, desde criança, era ser médico, compartilhado


também com o do meu irmão gêmeo. Construímos esse sonho com

53
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

a argamassa da boa vontade, do amor, da disciplina, da confiança,


do entusiasmo, da esperança e do esforço pessoal, sem desanimar
diante dos percalços da existência.

André Luiz, no livro O espírito da verdade, ensina-nos que o


lar é a primeira escola; os pais, os primeiros professores; o
primeiro dia de vida, a primeira aula do filho (XAVIER; VIEIRA,
1961). Minha primeira escola era impregnada de religiosidade e
espiritualidade cristãs. Meus pais professavam a religião espírita e,
pelo exemplo e pelo incentivo, ensinaram-me que nascemos neste
mundo para trilhar o caminho do bem e do amor ao próximo.

Desde criança, estudo a Doutrina Espírita e, em Uberaba, tive


a oportunidade de conhecer o nosso estimado benfeitor Chico
Xavier, participando das atividades semanais do Grupo Espírita da
Prece, criado por ele. A espiritualidade de Chico Xavier inspirou-me
o anseio de ser uma pessoa melhor e me esquivar dos caminhos
que pudessem me desviar desse objetivo. Vários artigos
demonstram o papel relevante da espiritualidade no processo de
resiliência, na medida em que age como fator de proteção contra o
suicídio e, juntamente com a religiosidade, também contra o uso
de álcool e de drogas (CHEQUINI, 2007; SANCHEZ; NAPPO, 2007).

E foi assim, construindo sonhos, vencendo desafios e


estudando diuturnamente, que meu irmão e eu fomos aprovados
no vestibular para medicina da Universidade Federal do Triângulo
Mineiro (UFTM), em Uberaba, Minas Gerais, e que, ao cabo de seis
anos, nosso sonho foi realizado ao concluir o curso.

Mas, como nossos sonhos não acabam, eu continuei a


sonhar!

Concluí, em 1984, a Residência Médica nas áreas de Clínica


Médica e Cardiologia, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, ingressei

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

na Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, na Regional


de Ceilândia, trabalhando na área de Clínica Médica e no Programa
de Controle da Tuberculose (PCT).

Como Coordenador do PCT de Ceilândia, aprendi a trabalhar


em equipe, valorizando cada profissional em sua área de atuação.
No Hospital Regional de Ceilândia (HRC) e em todos os Centros de
Saúde dessa Regional, tive o contato com os pacientes mais
carentes de recursos materiais, aqueles cujo direito de sonhar
anda a braços dados com duras necessidades imediatas, não só do
tratamento das suas doenças orgânicas, mas também do alívio de
suas dores morais e espirituais.

Anos depois, especializei-me também em Homeopatia e


Acupunturiatria, o que me proporcionou uma visão holística,
ampliando o meu entendimento do paciente como ser integral,
com os seus medos, as suas angústias, o seu sofrimento interno.
Vi que era preciso tratar não apenas doenças, mas doentes, em
toda a sua individualidade. Na obra Organon da arte de curar,
Samuel Hahnemann, o pai da Homeopatia, diz que “a mais alta e
única missão do médico é restabelecer a saúde nos doentes, que é
o que se chama curar”. Nessa lição, Hahnemann é imparcial e sem
preconceitos ao definir a missão do médico. Não disse qual deveria
ser o método terapêutico utilizado pelo médico, se seria a
homeopatia, a alopatia, a acupunturiatria ou a cirurgia. Quis
expressar que o médico deve fazer o melhor ao seu alcance para a
cura do paciente (HAHNEMANN, 2001).

E eu continuei sonhando...

Em 2003, tornei-me docente da ESCS/GDF, onde permaneci


até 2015, e, em 2016, ingressei na faculdade de medicina do
UniCEUB.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Hoje, sinto-me uma pessoa realizada, como docente e como


médico.

Percebi, ao longo dos anos, que a minha espiritualidade,


aquela que aprendi com Chico Xavier, ajudou-me muito na prática
médica e na docência. Na docência, vejo o aluno como um ser
integral, único e diferenciado um do outro, que deve ser avaliado
pelo seu crescimento individual, sem comparações com os seus
pares. O aluno que adentra a faculdade de medicina é como um
diamante bruto que busca a lapidação. Tem, dentro de si, a
grandeza do diamante em forma latente. Cabe ao professor
incentivá-lo a despertar o melhor que existe em si, buscando
estimular-lhe os pontos fortes, para que ele desenvolva a
autoconfiança pelo constante autoburilamento.

Um dos grandes ensinamentos que costumo citar nas aulas é


inspirado no filme O Grande Ditador, de 1940, em que Charles
Chaplin diz: “mais do que máquinas, precisamos de humanidade.
Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem
essas virtudes, a vida será violenta e tudo será perdido”. Esse
ensinamento de Chaplin, para mim, aplica-se bem à formação
médica e à conduta do médico no exercício da profissão. A
medicina conta, atualmente, com um aparato tecnológico bastante
avançado, com aparelhos capazes de realizar exames que, se bem
indicados, esclarecem dúvidas diagnósticas, após anamnese e
exame físico bem feitos. Mas, à maneira de Chaplin, entendo que é
importante alargar os olhos para o sentimento de humanidade.
Cabe ao médico pensar sempre muito bem ao solicitar
indiscriminadamente exames, sem uma indicação precisa, de vez
que eles são caros e oneram o bolso do paciente, privando-o, por
vezes, do essencial. Quando Chaplin diz ser preciso mais
humanidade, isso está uníssono com as Diretrizes Curriculares

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, que preconiza ao


graduado a formação geral e humanista, ou seja, priorizar o afeto
e a doçura, acima da inteligência, é um convite ao médico para
que, além do conhecimento intelectual, invista no trato humano
para com o paciente enfermo, pois tais valores são capazes de
fazer prodígios no seu tratamento (BRASIL, 2014).

Emmanuel, no livro Mãos unidas (2005), relata que a


existência na Terra é um livro que estamos escrevendo e que cada
dia é uma página. Creio que podemos escrever nosso livro
endereçando, aos nossos pacientes, a cada dia de nossa
existência, seja como médicos, seja como alunos de medicina,
páginas de esperança, amor, empatia, compaixão, misericórdia,
confiança, afeto, doçura, entusiasmo e alegria.

Vejo a sala de aula como um encontro, uma troca de


experiências. No curso de medicina do UniCEUB, é aplicada a
metodologia ativa PBL – Aprendizagem Baseada em Problemas –,
em que o professor é um facilitador (GOMES et al, 2009). O ensino
é focado no aluno, e ele é o ator principal desse processo ensino-
aprendizagem. No eixo educacional Profissionalismo, todos
participam ativamente, fazendo perguntas, comentários e
reflexões, em processo dinâmico, um verdadeiro debate no qual o
aluno desenvolve a criatividade, a resiliência e a autoestima.
Trabalhamos, a professora Eliana Trindade e eu, no
Profissionalismo do quinto semestre do curso de medicina do
UniCEUB. Como psicóloga e com experiência de quase duas
décadas na área da educação e pesquisa, Eliana nos traz, além do
profundo conhecimento científico, a amorosidade com os alunos,
os professores e os funcionários da instituição, expressa em seu
sorriso acolhedor, capaz de quebrar barreiras e fortalecer vínculos
que transcendem o tempo e o espaço da sala de aula.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Segundo Santos et al (2017), educar é sobre pessoas e sobre


saúde também. Acredito numa linha de humanização da docência
porque, com certeza, isso se reflete no trato com o paciente. Por
essa razão, a relação entre docente e aluno é algo sagrado para
mim. Sempre me coloquei contrário ao que considero como
assédio moral praticado por alguns professores, traduzido em
posturas por demais frias, distanciadas, rígidas e, muitas das
vezes, punitivas, porque, afinal, o curso de medicina não é uma
incubadora de fracassos ou sucessos acadêmicos, mas um lugar de
seres humanos que ali chegaram com suas próprias pernas para
aprender a salvar vidas.

Também considero primordial tratar o aluno pelo nome, pois


entendo que isso é valorizá-lo como pessoa, como ser responsável
pelo seu crescimento individual. E, para que eu consiga memorizar
o nome de todos, procuro fazer associações com algo que facilite a
lembrança. O nome é nossa marca registrada, é o que nos torna
únicos. Ao longo do tempo, sempre pude comprovar que se sentir
“enxergado” pelo médico é o primeiro passo para a recuperação do
paciente. Assim, na prática médica, procuro também tratar o
paciente pelo nome, com cortesia, como uma forma de respeitá-lo
e valorizá-lo, aperfeiçoando a relação médico-paciente.

Na minha prática docente, meu maior modelo é Jesus, que


ilustrou seus ensinos com as mais belas parábolas. Também amo
ler, ouvir e contar histórias. A contação de histórias, conforme
conceitos reunidos por Mateus et al,

é uma das atividades mais antigas de que se tem


notícia. Essa arte remonta à época do surgimento
do homem, há milhões de anos. Contar histórias
e declamar versos constituem práticas da cultura
humana que antecedem o desenvolvimento da
escrita. [...].

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

As histórias são a maneira mais significativa que


a humanidade encontrou para expressar
experiências que, nas narrativas realistas, não
acontecem. A contação de histórias, além de
pertencer ao campo da educação e à área das
ciências humanas, é uma atividade comunicativa.
Por meio dela, os homens repassam costumes,
tradições e valores capazes de estimular a
formação do cidadão. Por isso, contar histórias é
saber criar um ambiente de encantamento,
suspense, surpresa e emoção, no qual o enredo e
os personagens ganham vida, transformando
tanto o narrador como o ouvinte. O ato de contar
histórias deve impregnar todos os sentidos,
tocando o coração e enriquecendo a leitura de
mundo na trajetória de cada um. (MATEUS et al,
2013).
Muitos contos e fábulas são transmitidos ao longo das
gerações e despertam valores virtuosos de cooperação, trabalho
de equipe, humildade e generosidade.

No UniCEUB, sempre é feito o planejamento da aula com


antecedência, para que tudo ocorra com a necessária harmonia. E
é, então, que busco incluir, no início ou no fim da aula, uma
história, seja um conto, seja uma fábula, com dois objetivos: o
primeiro, para resgatar a simplicidade latente das nossas
recordações da infância, após anos de estudos, fórmulas e
disputas; o segundo – e principal –, para estimular reflexões
importantes na consolidação ética do estudante de medicina. Ao
encerrar a narrativa, sempre indago aos alunos: Qual é a moral da
história? Nesse momento, surge uma diversidade de reflexões
essenciais sobre a vida, o mundo e o ser humano.

No final deste capítulo, apresento algumas das histórias que


costumo contar.

A poesia também sempre me sensibilizou. Desde os onze


anos de idade, comecei a escrever poemas. O poema traduz, em

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

poucas palavras, um sentimento profundo, porque nele o poeta


consegue trazer a síntese das coisas.

Estou escrevendo este capítulo no momento da pandemia da


Covid-19, momento que ninguém sonhou, ímpar e histórico para o
nosso Planeta Terra. Em sua ação progressiva, um ser
microscópico percorre o orbe inteiro, visita os casebres e os
palácios, levando a enfermidade para todos os recantos, como a
convocar a todos para uma renovação moral, por meio da empatia,
da compaixão e da solidariedade. E a humanidade, registrando
intuitivamente tal mensagem, que atinge profundamente seu
âmago e lhe fala de modo particular, pouco a pouco, começa a
repensar as suas ações.

Eis que uma onda de mudanças começa a ocorrer! O que é


supérfluo, fútil e superficial no ser humano está sendo descartado,
e o essencial está, gradativamente, sendo mais observado e
valorizado, porque as pessoas estão perdendo os subterfúgios, os
mecanismos de fuga, seja do consumismo, seja da vida aparente,
e agora estão buscando a essência do ser humano.

Vendo tantas pessoas desesperadas, doentes ou não, mas


com um pavor capaz de desarmonizar a saúde diante da
pandemia, fiz o singelo poema a seguir, na tentativa de levar um
pouco de esperança a elas. Ofereço-o a todos os leitores, com
votos de que possamos vencer os males que assolam a
humanidade e continuar sonhando, tecendo nossos laços nas telas
do infinito.

E, aqui, me despeço, agradecendo aos alunos, aos


professores e à direção do UniCEUB pela oportunidade de me
realizar no trabalho, em prol do ensino médico humanizado.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

CORONAVÍRUS: INIMIGO DEVASTADOR

Allan Eurípedes Rezende Napoli

Nosso Planeta se rende

Aos pés de pequeno ser,

Que ataca vorazmente

E nos faz adoecer.

Pequeno, mas poderoso

Vírus chamado Corona,

Pode dar um golpe mortal,

Levando o homem à lona.

Os médicos recomendam:

O melhor é a prevenção!

Façamos a nossa parte...

É a nossa salvação!

Recomendações bem simples:

Lave sempre as suas mãos,

Use máscara, fique longe.

Isso salva seus irmãos!

Se alguém for contaminado,

Em seu núcleo familiar,

Deixe-o em observação,

No recesso do seu lar.

Mas, se o quadro se agravar,

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Não espere acontecer,

Leve logo pra emergência,

Que é quem pode socorrer.

O mundo inteiro pede:

Isolamento social!

Essa é uma das armas

No combate a esse mal.

A ciência trabalha

Com amor e disciplina,

Para criar rapidamente

A tão sonhada vacina.

O acaso não existe!

Peçamos sempre a Deus

Que as Suas bênçãos recaiam

Sobre crentes e ateus.

O pânico é destruidor!

A fé e a confiança

Melhoram o sistema imune,

Assim como a esperança.

Quem cultiva o entusiasmo,

Por dentro do coração,

Tem chances ainda maiores

De uma recuperação.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Diante desse inimigo,

Brilha a solidariedade,

Ações fraternas no mundo

Já são uma realidade.

Guardemos a real certeza,

Neste momento atual:

Mesmo que demore um pouco,

Venceremos esse mal.

CONTOS E FÁBULAS UTILIZADOS NAS AULAS

Discussão na marcenaria

(Autor desconhecido)

Contam que, em uma marcenaria, houve uma estranha


assembleia. Foi uma reunião onde as ferramentas se juntaram
para acertar suas diferenças.

Um martelo estava exercendo a presidência, mas os


participantes exigiram que ele renunciasse. A causa? Fazia
demasiado barulho e, além do mais, passava todo tempo
golpeando.

O martelo aceitou sua culpa, mas pediu que também fosse


expulso o parafuso, alegando que ele dava muitas voltas para
conseguir algo.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Diante do ataque, o parafuso concordou, mas, por sua vez,


pediu a expulsão da lixa. Observou que ela era muito áspera no
tratamento com os demais, entrando sempre em atritos.

A lixa acatou, com a condição de que se expulsasse também


o metro, que sempre media os outros segundo a sua medida,
como se fosse o único perfeito.

Nesse momento, entrou o marceneiro, juntou todas as


ferramentas e iniciou o seu trabalho. Utilizou o martelo, a lixa, o
metro, o parafuso... E a rústica madeira se converteu em belos
móveis, úteis e funcionais.

Quando o marceneiro foi embora para casa, as ferramentas


voltaram à discussão. Mas o serrote adiantou-se e disse:

– Senhores, hoje ficou demonstrado que temos defeitos, mas


o marceneiro trabalha com nossas qualidades, ressaltando nossos
pontos valiosos...

Portanto, em vez de pensar em nossas fraquezas, devemos


nos concentrar em nossos pontos positivos!

Então, a assembleia entendeu que o martelo era forte, o


parafuso unia e dava força, a lixa era especial para limpar a afinar
asperezas, o metro era preciso e exato.

Todos se sentiram como uma equipe, capaz de produzir com


qualidade...

E uma grande alegria tomou conta de todos pela


oportunidade de trabalharem juntos.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

A ratoeira e o rato

(Autoria atribuída a Esopo, escritor da Grécia Antiga)

Um rato, olhando pelo buraco na parede, vê o fazendeiro e


sua esposa abrindo um pacote. Pensou logo no tipo de comida que
haveria ali.

Ao descobrir que era uma ratoeira, ficou aterrorizado. Correu


ao pátio da fazenda, advertindo a todos:

– Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira na casa!

A galinha disse:

– Desculpe-me, senhor Rato, eu entendo que isso seja um


grande problema para o senhor, mas não me prejudica em nada,
não me incomoda.

O rato foi até o porco e disse:

– Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira!

– Desculpe-me, senhor Rato, disse o porco, mas não há nada


que eu possa fazer, a não ser orar. Fique tranquilo que o senhor
será lembrado nas minhas orações.

O rato dirigiu-se à vaca. E ela lhe disse:

– O quê? Uma ratoeira? Por acaso estou em perigo? Acho


que não!

Então, o rato voltou para casa abatido, para encarar a


ratoeira.

Naquela noite, ouviu-se um barulho, como o da ratoeira


pegando sua vítima. A mulher do fazendeiro correu para ver o que

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

havia pegado. No escuro, ela não viu que a ratoeira havia pegado
a cauda de uma cobra venenosa. E a cobra picou a mulher.

O fazendeiro a levou imediatamente ao hospital. Ela voltou


com febre. Todo mundo sabe que para alimentar alguém com
febre, nada melhor que uma canja de galinha. O fazendeiro pegou
seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal.

Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos


vieram visitá-la. Para alimentá-los, o fazendeiro matou o porco.

A mulher não melhorou e acabou morrendo. Muita gente veio


para o funeral. O fazendeiro, então, sacrificou a vaca, para
alimentar todo aquele povo.

Na próxima vez que você ouvir dizer que alguém está diante
de um problema e acreditar que o problema não lhe diz respeito,
lembre-se de que, quando há uma ratoeira na casa, toda fazenda
corre risco. O problema de um é problema de todos.

A martelada

(Autor desconhecido)

Um navio carregado de ouro, revestido de todo o cuidado e


segurança, atravessava o oceano quando, de repente, o motor
enguiçou. Imediatamente, o comandante mandou chamar o
técnico do porto mais próximo, que trabalhou durante uma
semana, porém sem resultados concretos. Chamaram, então, o
melhor engenheiro naval do país. O engenheiro trabalhou três dias
inteiros, sem descanso, mas nada conseguiu, o navio continuava
enguiçado. A empresa proprietária do navio mandou, então, buscar
o maior especialista do mundo naquele tipo de motor. Ele chegou,
olhou detidamente a casa das máquinas, escutou o barulho do

66
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

vapor, apalpou a tubulação e, abrindo a sua valise, retirou um


pequeno martelo. Deu uma martelada em uma válvula vermelha
que estava meio solta e guardou o martelo de volta na valise.
Mandou ligar o motor, e este funcionou na primeira tentativa. Dias
depois, chegaram as contas ao escritório da empresa de
navegação:

– Por uma semana de trabalho, o técnico cobrou US$700.

-– O engenheiro naval cobrou, por três dias de trabalho,


US$900.

– Já o especialista, por sua vez, cobrou US$10.000 pelo


serviço.

Atônito com a última conta, o Diretor Financeiro da empresa


enviou um telegrama ao especialista, perguntando:

“Como você chegou a esse valor de US$10 mil por cerca de 1


minuto de trabalho e uma única martelada?”

O especialista, então, enviou os seguintes detalhes do cálculo


à empresa:

“Por dar 1 martelada – US$1; por saber onde bater o martelo


– US$9.999”.

Moral da história – “O que vale no Universo não é dar a


martelada e sim saber onde bater o martelo. A martelada em si
você pode até delegar para outro”. E é por (querer) ignorar isto
que muitos subestimam certos tipos de trabalho, que são
trivialmente avaliados pelo tempo de duração. “No mundo dos
negócios, todos são pagos em duas moedas: dinheiro e
experiência. Agarre a experiência primeiro, o dinheiro virá depois”.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

A caverna

Autor desconhecido

Conta a lenda que certa mulher pobre, com uma criança no


colo, passou diante de uma caverna e escutou uma voz misteriosa
que lá dentro lhe dizia:

“Entre e apanhe tudo o que você desejar, mas não se


esqueça do principal. Lembre-se, porém, de uma coisa: depois que
você sair, a porta se fechará para sempre. Portanto, aproveite a
oportunidade, mas não se esqueça do principal...”

A mulher entrou na caverna e encontrou muitas riquezas.


Fascinada pelo ouro e pelas joias, colocou a criança no chão e
começou a juntar, ansiosamente, tudo o que podia no seu avental.
A voz misteriosa falou novamente: “Você, agora, só tem oito
minutos”.

Esgotados os oito minutos, a mulher, carregada de ouro e


pedras preciosas, correu para fora da caverna, e a porta se fechou.
Lembrou-se, então, de que a criança lá ficara e a porta estava
fechada para sempre! A riqueza durou pouco e o desespero,
sempre...

A mesma situação acontece, por vezes, conosco. Temos uns


oitenta anos para viver neste mundo, e uma voz sempre nos
adverte: “não se esqueça do principal”! E o principal são os valores
espirituais, a vida, as amizades, o amor! Mas a ganância, a
riqueza, os prazeres materiais nos fascinam tanto que o principal
vai ficando sempre de lado...

Assim, esgotamos o nosso tempo aqui e deixamos de lado o


essencial: “os tesouros da alma”! Que jamais nos esqueçamos que

68
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

a vida, neste mundo, passa breve e que a morte chega de


inesperado. E, quando a porta desta vida se fechar para nós, de
nada valerão as lamentações.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.


Câmara de Educação Superior. Resolução n. 3, de 20 de junho de
2014 – Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação
em Medicina. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, 23
de junho de 2014. Seção 1, p. 8-11.

CHEQUINI, Maria Cecilia Menegatti. A relevância da espiritualidade


no processo de resiliência. Psicologia Revista, São Paulo, v. 16, n.
1/2, p. 93-117, 2007.

GOMES, Romeu et al. Aprendizagem Baseada em Problemas na


formação médica e o currículo tradicional de Medicina: uma revisão
bibliográfica. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de
Janeiro, v. 33, n. 3, jul./set. 2009.

HAHNEMANN, Samuel. Organon da arte de curar. 6. ed. São Paulo:


Robe Editorial, 2001. 248 p.

MATEUS, Ana do Nascimento Biluca et al. A importância da


contação de história como prática educativa na educação infantil.
Pedagogia em Ação, v. 5, n. 1, p. 54-69, 2013.

O GRANDE ditador. Roteiro, direção e protagonização: Charlie


Chaplin. Filme em preto e branco. EUA, 1940. (128 min).

SANCHEZ, Zila van der Meer; NAPPO, Solange Aparecida. A


religiosidade, a espiritualidade e o consumo de drogas. Revista de
Psiquiatria Clínica, v. 34, suppl.1, p. 73-81, 2007.

SANTOS, Wilton Silva dos et al. Profissionalismo médico: efeito da


diversidade sociodemográfica e da organização curricular no
desempenho atitudinal dos estudantes de medicina. Revista
Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 41, n. 4. p. 594-
603, out./dez. 2017.

XAVIER, Francisco Cândido. Mãos unidas. Ditado pelo espírito de


Emmanuel. Psicografado. Araras/SP: Ide, 2005.

69
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

XAVIER, Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo. O espírito da verdade:


estudos e dissertações em torno da obra “O Evangelho segundo o
Espiritismo”, de Allan Kardec. Ditado por vários Espíritos.
Psicografado. 3. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,
1961. p. 46.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Carolinne Camila de Souza Scarcela

Como a medicina é incrível, a poderosa, a imponente, a arte


de curar. É ela que acalenta os corações desesperados frente às
incertezas e os alegra quando há cura. O pavor e o medo da morte
nunca acabam, mesmo enfrentando-a de forma incansável e com
coragem todos os dias. A beleza da esperança que se encontra no
jaleco branco e bem passado traz consigo o conforto de que algo
pode ser feito.

Talvez a medicina seja realmente isso tudo, a depender do


seu ponto filosófico na situação, mas não é apenas isso. Ao longo
de séculos, construiu imagem imponente e autoritária sobre a
sociedade e os pacientes. O respeito por curar pessoas em
momentos tênues de vida e a boa remuneração monetária foram
associados a um estilo de vida de glamour e até ostentação,
perdurado até hodiernamente.

Por vezes, dissociada da ciência e sob comando da


arrogância, do autoritarismo e da ignorância, a medicina trouxe
consigo estereótipos e moldes do “médico perfeito”, uma espécie
de semideus. Nessa ideologia de jaleco sempre alinhado, a postura
de superioridade e de inacessibilidade nunca faltam assim como o

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

modelo biomédico em detrimento do biopsicossocial. Isso significa


que as condições físicas do paciente são analisadas de maneira
dissociada dos aspectos sociais e psíquicos, logo, não contemplam
a integralidade do ser. No filme Patch Adams – o amor é
contagioso (1998), o personagem Dean Walcott, interpretado por
Bob Gunton, retrata claramente quais comportamentos eram – e
ainda podem continuar sendo – considerados ideais para um
médico.

A imagem utópica sobre o graduado em medicina é


disseminada em vários âmbitos sociais. Dessa forma, muitos
indivíduos almejam a medicina “glamorizada” que não deixa de
existir, pois, em 2020, o piso salarial médico determinado pela
Federação Nacional dos Médicos é quatorze vezes maior que o
salário mínimo do Brasil (FENAM, 2020; BRASIL, 2020).

Por outro lado, a medicina não é inteiramente composta por


esse privilégio econômico. A escolha de praticar essa arte durante
toda a vida é admirável, sendo considerada como dom divino pelos
religiosos. O próprio médico dos médicos mencionou isso, em
Eclesiástico, 38: “1Honra o médico por causa da necessidade, pois
foi o Altíssimo quem o criou. [...]. 13
Virá um tempo em que cairás
nas mãos deles. E eles mesmos rogarão ao Senhor que mande
14

por meio deles o alívio e a saúde (ao doente) segundo a finalidade


de sua vida” (BÍBLIA SAGRADA, 2012).

É importante enfatizar que médicos não surgem


inesperadamente, muito menos da noite para o dia. Eles não são
super-heróis ou semideuses e não vieram de outro planeta. Foram
gerados em útero por, aproximadamente, nove meses, foram
crianças, adolescentes, e sangue corre em suas veias. Têm família,
amigos, histórias para contar e talvez até piadas, que, às vezes,
podem não ser tão boas. Sobre as emoções, elas sempre estão

72
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

presentes e nunca devem ser esquecidas. É também importante


lembrar que médico é um ser humano!

Os caminhos para conquistar o título de médico são tão


peculiares de cada um que ousa começar essa jornada que, por
isso, uma tentativa de comparação é absolutamente ineficaz.
Porém, há momentos em que todos que conquistaram o registro
no Conselho Regional de Medicina (CRM) passaram: a escolha do
curso, o vestibular e o contato com os pacientes. São inúmeros
estudantes que se preparam para o vestibular ao longo de anos, o
que faz com que o curso de medicina esteja na lista dos mais
concorridos do Brasil, demonstrando que a competitividade e os
esforços intermináveis – que não são exclusivos dessa área da
saúde – iniciam-se antes mesmo do ingresso na instituição de
ensino superior. No entanto, já dentro da faculdade, novos
conhecimentos deverão ser adquiridos, e habilidades deverão ser
aprendidas. E é sobre o momento do encontro com os pacientes
que este capítulo terá a honra de expressar sentimentos profundos
e sinceros de futuros médicos ao longo da sua jornada acadêmica.

O curso de medicina é composto pelo ciclo básico, nos dois


primeiros anos; pelo ciclo clínico, no terceiro e no quarto anos; e
pelo internato, do nono ao décimo segundo período. O UniCEUB,
por adotar a metodologia ativa de ensino, disponibiliza a prática
clínica aos acadêmicos desde o primeiro período de curso. Porém,
no quinto semestre, há mudança de ciclo, tornando as práticas
mais intensas, bem como a responsabilidade dos estudantes, o que
justifica muitas narrativas serem escritas nesse período.

O contato precoce com pacientes reais é fundamental para a


formação humanizada do acadêmico. Oliver Sacks (1933-2015) –
neurologista, escritor e professor de neurologia da faculdade de
medicina de Nova Iorque – conseguiu justificar a antecipação

73
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

desse encontro, o qual, na metodologia tradicional, ocorre apenas


a partir do quarto ano de curso, uma vez que “ao examinar a
doença, ganhamos sabedoria sobre anatomia, fisiologia e biologia.
Ao examinar a pessoa com doença, ganhamos sabedoria sobre a
vida”. Isso é reforçado por Friedrich Hoffman (1660-1742), médico
alemão, ao dizer que “a parte mais essencial da instrução de um
aluno é obtida, como acredito, não na sala de aula, mas à beira do
leito”.

Além do currículo acadêmico, diversas narrativas advieram


de experiências proporcionadas por estágios, ainda no aspecto
profissional dos estudantes, e pela própria vida. Desse modo,
prepare-se para a riqueza de detalhes particulares e íntimos de
cada autor, autoquestionamentos e sentimentos de impotência, de
alegria, de tristeza, de indignação, de gratidão, entre outros.
Prepare-se para ver médicos sendo formados.

O processo para se tornar médico é longo, árduo, cheio de


novas descobertas e, por vezes, parece solitário. Estatísticas
apresentam problemas na saúde mental de estudantes, como
ansiedade, estresse psicológico, depressão, distúrbios do sono,
Síndrome de Burnout (SB), distúrbios alimentares e uso abusivo de
álcool. Cerca de 89,6% dos acadêmicos de medicina tem
ansiedade, 13% apresentam SB, 50% não têm um sono reparador
e de 30,6% a 32,9% dos estudantes têm, associadamente,
depressão, ansiedade e uso abusivo de álcool. Um outro estudo
mostra que cerca de 20% dos estudantes do ciclo básico e clínico
está com SB (PACHECO, 2017; MORI; VALENTE; NASCIMENTO,
2012).

Com esses dados, evidencia-se a eminência do sofrimento do


estudante de medicina transcender limites humanos. A
compreensão das emoções e das dificuldades faz-se fundamental

74
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

em um curso de tanta responsabilidade e, ao mesmo tempo, longo


e exaustivo. O reconhecimento de limitações impostas pela
condição humana possibilita o desenvolvimento da inteligência e
da maturidade emocional e a manutenção da integridade da saúde
mental do futuro da medicina.

Neste capítulo, esse sofrimento ficará patente em todas as


quatorze narrativas a partir da explicitação da iatrogenia, da
exigência e da exaustão presentes na graduação. Essas histórias
foram agrupadas com fito de deixar claro os inúmeros desafios
afetivos e existenciais da formação médica.

Por fim, Carl Jung – psiquiatra e fundador da psicologia


analítica – reforça a necessidade da busca constante por
humanização da prática médica, ao solicitar que: “conheça todas
as teorias, domine todas as técnicas, mas, ao tocar uma alma
humana, seja apenas outra alma humana”. Dessa forma, as
narrativas são eficazes na aprendizagem e na convivência com as
emoções e a subjetividade. É, pois, necessário aprender a cuidar
de si, para também conseguir cuidar de outros.

Referências

BÍBLIA SAGRADA. Ave Maria. 198. ed. São Paulo: Ave-Maria,


2012.

BRASIL. Lei n. 14.013, de 10 de junho de 2020. Dispõe sobre o


valor do salário-mínimo a vigorar a partir de 1º de janeiro de
2020; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder
Executivo, Brasília, de 12 de junho de 2020. Seção 1, p. 5.

FEDERAÇÃO NACIONAL DOS MÉDICOS (FENAM). Confira o valor do


Piso Fenam para 2020, 2020.

MORI, Mariana Ono; VALENTE, Tânia Cristina O.; NASCIMENTO,


Luiz Fernando C. Síndrome de Burnout e rendimento acadêmico
em estudantes da primeira à quarta série de um curso de

75
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

graduação em medicina. Revista Brasileira de Educação Médica, v.


36, n. 4, p. 536-540, 2012.

PACHECO, João P. et al. Mental health problems among medical


students in Brazil: a systematic review and meta-analysis. Revista
Brasileira de Psiquiatria, v. 39, n. 4, p. 369-378, dez. 2017.

PATCH ADAMS – o amor é contagioso. Direção: Tom Shadyac.


Roteiro: Steve Oedekerk. Elenco: Robin Williams, Josef Sommer,
Bob Gunton, Daniel London. Filme em cores. EUA, 1998. (115
min.).

NARRATIVAS

Reaprendendo os sentimentos

Carolinne Camila de Souza Scarcela

Em 2017, eu tinha 19 anos, estava no meu segundo ano de


cursinho pré-vestibular e tinha um sentimento muito forte comigo
ao longo do segundo semestre do ano: “será o meu último
semestre de cursinho!”. Em determinados momentos, achava ser
muita prepotência, altruísmo ou até mesmo arrogância pensar
assim. Porém, fui nascida e criada em lar religioso, com fé
fervorosa. Então, para acalmar o meu coração inquieto, pensava
sempre que era uma mensagem do Senhor e que, por isso, deveria
fazer o melhor para passar por mais uma etapa rumo à conquista
do meu sonho.

Como em todo final de ano letivo, desde 2013, eu prestava o


Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) para alcançar pontos, a
fim de ingressar na minha faculdade dos sonhos: a ESCS. Escolhi
essa instituição pelo método utilizado como forma básica de
estudos, o PBL, por diversos motivos: o contato com o paciente
desde o primeiro semestre de curso; a repetição das matérias à
medida que se aprimoram; a construção de conhecimento por

76
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

meio de discussões e de estudos prévios. Tudo isso fazia com que


meus olhos brilhassem. Era essa a educação que queria para mim!

As últimas provas do ENEM que fiz foram realizadas nos dias


5 e 12 de novembro de 2017. Eu dei o meu melhor, não tem nada
que mudaria na situação que estava. Fiz as provas com um nível
de maturidade que demorei anos para adquirir e fiquei contente
com o meu comportamento de analisar e construir estratégias ao
longo do exame. Mas, infelizmente, quando terminei o ENEM, eu
sabia que não atingiria a pontuação. Uma onda de indignação
tomou conta de mim e fiquei questionando a sensação que tive:
“foi prepotência pensar daquela forma!”; “como eu posso ter
‘trilhado todos os caminhos’ para realizar um bom exame, mas sei
que não fui bem?”; “o que poderia ter feito de diferente?”

Isso fez com que eu me sentisse mal por alguns dias, até
mesmo questionando, também, com Deus: “o que o Senhor quer
de mim?”; “já não sabia que eu não ia passar neste ano?”; “por
que me deixou com o sentimento de ter terminado o cursinho?”.

Poucos dias depois, recebo um convite para participar de um


encontro de jovens, de 8 a 10 de dezembro, na cidade de
Sobradinho II, cerca de 30 quilômetros de distância da minha
casa. Era uma oportunidade incrível a qual aceitei sem titubear,
ainda mais por precisar aproximar-me de Deus, a fim de clarear as
minhas incertezas. Os dias foram passando, eu não abri um livro
para estudar, não resolvi um exercício sequer e, ainda mais,
estava desanimada para reiniciar, precisava de um tempo para
organizar as minhas emoções e reabastecer as minhas energias
após um ano frenético de dedicação aos estudos. A minha família
percebeu que eu não estava estudando e questionou-me:

77
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

– Você não vai prestar mais vestibular? – perguntou minha


mãe.

– Presta para alguma universidade particular. A gente se


junta para pagar – disse meu avô.

– Quando vai ser a prova da particular? Faz logo a inscrição.


Não quero você perdendo tempo no cursinho – disse meu tio.

Eu nunca tinha parado para pensar em ir para uma


particular. A ESCS era a minha garota dos olhos. O meu coração
acelerava todas as vezes em que eu passava na frente dela e
também quando meus familiares e amigos mandavam mensagem
dizendo:

– Estou passando em frente ao lugar que você vai frequentar


todos os dias, pelos próximos 6 anos. – Mal eles sabiam que não
era tão no começo da Asa Norte, era só um pouquinho mais para a
metade dela.

Então, diante da situação, eu tive de pesquisar alguma


universidade particular. Pesquisei várias e escolhi o UniCEUB, por
adotar o mesmo método de ensino que a ESCS. Acredite, a
inscrição era R$ 450,00! Para quem estava acostumada a pagar R$
90,00 pelo ENEM, eu fiquei envergonhada de entregar esse boleto
ao meu pai, que pagou com toda a satisfação, a confiança e a fé
do mundo inteiro. Além disso, retornei aos estudos para tudo ficar
fresco na cabeça na hora da prova.

A prova ia ser no dia 9 de dezembro. Logo, lembrei-me do


meu encontro de jovens e não gostaria de abrir mão da minha
participação. Falei com os meus coordenadores e eles acolheram a
minha causa, possibilitando a realização do vestibular sem
qualquer prejuízo. Foi uma sensação muito boa de poder servir ao
Senhor e, também, de fazer a minha prova.

78
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

As orações da minha família estavam intensas. Tão intensas


que era possível senti-las. Já eu estava desanimada, não queria
que eles se sacrificassem tanto por mim. Entretanto, seguia
estudando. Pensava recorrentemente: “bem, já que R$ 450,00
foram pagos, vou fazer essa prova para passar, assim vou
convencê-los de eu poder tentar mais um ano a universidade
pública”.

Chegou o famoso e tão esperado dia 9 de dezembro, fui


recepcionada com a bateria do UniCEUB, na entrada do vestibular,
e pensei: “estas devem ser pessoas que não têm o que fazer,
poderiam estar estudando ao invés de estar fazendo baderna”.

Fiz a prova e, depois, fiquei aguardando, em oração.

O resultado chegou na madrugada do dia 9 de janeiro, com a


minha amiga Kathianne, que estava dormindo na minha casa, e
com ela ficando muito mais feliz do que eu. O tão aguardado
churrasco de comemoração foi transformado em um jantar tímido,
com apenas as pessoas mais próximas, regado da frase “mas você
vai esperar o resultado do ENEM, né?!”. Isso me deixou muito
insegura sobre tudo. Como seria a minha vida naquele ano? Vou
mesmo fazer o curso que escolhi? A minha família vai conseguir
pagar?

A festa de comemoração de 40 anos da minha mãe foi no dia


20 de janeiro, e foi nela que recebi a maioria das parabenizações.
No dia 15 de fevereiro, as aulas começaram, e o primeiro semestre
não foi muito legal. Eu só estudei. Não aproveitei nada, pois sentia
que o meu coração era laranja – a cor da Bicuda, a atlética da
ESCS.

Ir para o Intermed, o Ceubixo, comemorações de final de


semana? Nem pensar! Eu tinha prova de Introdução à Medicina na

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

terça-feira. Eu não estava radiante e alegre sempre, mas pequenas


aulas me arrancavam alguns sorrisos, e, quando chegava em casa
contando que aprendi a lavar as mãos, esses mesmos sorrisos
espalhavam-se por toda a família.

Foi apenas no segundo semestre do curso que fui


entendendo que o UniCEUB era a minha casa, a minha instituição
formadora, onde comecei a ficar cada vez mais grata pela
estrutura, pela segurança, pelos amigos, pela biblioteca. Foi na
metade do ano de 2018 que eu me senti em casa pela primeira
vez. Esse processo foi tão importante para mim que não consigo
dimensionar. Entretanto, havia duas coisas que sempre me
puxavam para a realidade e não me deixavam ir para o “mundo
encantado da medicina dos sonhos de unicórnios cirurgiões e
receituários de alcaçuz”: a incerteza de ser bem formada e os
problemas ainda existentes no curso.

A felicidade foi aumentando, e eu queria fazer algo diferente.


Fazer algo na prática para ver como é ser esse tal de “médico” que
tanto ouço falar. Foi aí que veio a ideia de um estágio em uma
cidadezinha no interior da Bahia, chamada Santa Rita de Cássia –
a santa das causas impossíveis –, onde a minha avó nasceu, fui
várias vezes na minha infância visitar meus bisavós Constança (in
memoriam) e João Grosso (in memoriam) e onde, ainda, tenho
vários parentes residindo. Como há dependência extrema da
atenção primária em saúde, achei o local ideal para ir após ter
concluído o primeiro ano do curso de medicina. Entrei em contato
com a Secretaria de Saúde do município, e tudo foi acertado para
eu passar duas semanas do mês de janeiro de 2019,
acompanhando as estratégias de saúde da família e da
comunidade.

80
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Viajei com os meus avós maternos em um sábado, são oito


horas de estrada, e comecei o estágio na segunda-feira seguinte.
Eu ia, alternadamente, em dois postos, que, nesta narrativa, vou
identificá-los como posto 1 e posto 2, onde a dra. Juliana e o dr.
Felipe trabalhavam, respectivamente. O posto 1 foi o local onde
tive contato com várias situações pela primeira vez na vida, como
caso de hanseníase virchowiana, de infecção urinária durante a
gestação – com piócitos em 72, o que me deixou chocada! – e
troca de curativos. O posto 2 é conhecido como “pesado”, o que
quer dizer, segundo a explicação dos profissionais, que há muitos
casos de difícil conduta, histórias clínicas capciosas, ou seja, casos
“cabeludos”.

A minha postura foi modelada pelo acolhimento dos médicos.


Eles deixavam eu fazer os exames físicos, ensinavam-me a fazer
as receitas médicas de prescrição medicamentosa e as solicitações
de exames – em janeiro de 2019, por lá, ainda eram feitos de
forma manuscrita –, além de intervenções em algumas partes da
anamnese, quando eu tivesse vontade fazer perguntas para o
paciente. Isso foi muito bom para melhorar a minha descrição do
exame físico bem como para identificar as minhas falhas durante a
realização dele.

Como os médicos foram solícitos, eu consegui expressar as


minhas inseguranças sem assustar os pacientes, fazendo-os
pensar que não sabia de nada e, também, que não me sentia
inferiorizada quando os doutores conferiam o que eu dizia, pois
eles não falavam que eu era “só uma estagiária”. Eles me acolhiam
a ponto de eu me sentir boa parceira de consultório, onde os casos
eram discutidos, e eles não precisavam me lembrar de que eu era
uma mera estagiária a todo momento. Na verdade, não me

81
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

lembraram disso em momento algum. Fizeram eu me sentir parte


da equipe.

Na segunda semana de estágio, na tarde da quarta-feira, eu


estava no posto 2, e estávamos atendendo livre demanda. Depois
de algumas renovações de receitas e de adequações de
medicamentos para doenças crônicas, a próxima paciente era Ana,
de 13 anos de idade, 160 cm de altura e magra. Muito magra! Ela
entrou no consultório acompanhada por uma assistente social, e
eu não entendi nada. Depois de entrar, ela murmurou entre os
dentes que a mãe dela estava chegando. Conversamos sobre
amenidades, logo em seguida, a mãe dela chegou, e, então,
começamos a consulta. A queixa principal de Ana era o
aparecimento de manchas hipocrômicas no rosto, uma queixa com
aspecto estético. Perguntamos quando surgiram, se tinha algum
fator associado, investigamos algum fator hereditário, exposição
ao sol, e não houve nenhum achado, de modo que passamos a
investigar os hábitos de vida dela, e o médico perguntou:

– Você fuma?

– Não! – ela respondeu com uma instabilidade na voz, e a


mãe a cutucou nas costas.

– E maconha? – insistiu o dr. Felipe.

– Sim! – disse a paciente com tranquilidade.

– Conta para eles! Eles têm de saber! – disse a mãe, com um


tom imperativo. Nesse momento, eu fiquei apreensiva.

– Você usa mais alguma droga? – perguntou o médico.

– Só crack. – Eu fiquei em “leve” choque.

– Você bebe? – continuou o doutor.

82
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

– Não! Beber faz mal à saúde! – disse Ana, enfaticamente.

– Agora, você pode deitar ali que a doutora vai examinar


você – disse o médico, referindo-se que eu faria o exame físico.

A assistente social começou a ocupar de forma incômoda


todos os espaços da sala, metaforicamente. Eu comecei com o
exame físico da face, depois da orofaringe e, em seguida, pedi
para ela deitar com a blusa levantada, para a realização do exame
abdominal. Com o passar da conversa, percebi sua vida sexual
bastante ativa, com vulnerabilidade impossível de dimensionar. A
educação estava interrompida. Ana fugia de casa recorrentes vezes
e era abusada sexualmente em troca de bens materiais ou de
dinheiro. Decidi realizar o exame físico das mamas e foi nesse
momento que a assistente social foi mais incômoda ainda com
indagações sobre a necessidade dos exames:

– Doutora, ela precisa mesmo tirar a blusa? – com os braços


cruzados, perguntou.

– Precisa para eu ver como a pele dela está, além de avaliar


todo o desenvolvimento do corpo – expliquei calmamente, mas já
bastante incomodada com a desconfiança que a assistente social
demonstrava.

– Mas para que isso? Ela está reclamando de manchas no


rosto! – nesse momento, eu respirei, tentei me acalmar e não
transparecer o meu incômodo.

– Já está acabando – respondi.

Durante todo o exame, Ana me olhava como se estivesse


confortável, como se quisesse me contar algo que não parecesse
revelador para a doença. Parecia que ela queria conversar sobre
fatos da vida, mesmo sem relevância médica para o momento. Por

83
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

isso, senti que, independentemente da presença da assistente


social incômoda, Ana estava bem com a consulta. E isso me fez
bem também. Uma leve dor à palpação hepática foi o único achado
em todo o exame físico de Ana, além das manchas hipocrômicas
com bordas bem delimitadas na face já relatadas. Parecia que eu
não tinha justificativa clara para elas acontecerem. Parei por 10
segundos e POW!

– Doutor Felipe, podemos fazer sorologia de doenças


venéreas? – perguntei.

– Podemos, tem aqui. Quer fazer? Ah! Mas a enfermeira não


está hoje aqui. Espera que eu vou lá fazer com você – disse o
doutor.

Nesse momento, eu fiquei empolgada por ter disponível a


possibilidade de realização rápida de sorologias, esperava que
desse alguma coisa nos exames, mas não desejava isso para a
Ana. A assistente social mudou a expressão facial de desconfiada
para calma e ansiosa pelo resultado. O doutor pediu para a técnica
em enfermagem me ajudar a realizar a coleta. Como eu nunca
tinha realizado qualquer exame nos pacientes, apenas em mim,
nas aulas de morfofuncional, em ambiente controlado do
laboratório da faculdade, eu sabia como os testes funcionavam,
tecnicamente, mas, inacreditavelmente, ia coletar sangue da Ana,
sem luvas. A técnica logo me alertou, calcei as luvas e coletei o
sangue para os exames.

Enquanto aguardávamos os resultados, um silêncio


enlouquecedor incomodou-me a ponto de eu começar a explicar
todos os exames sem ninguém perguntar. A mãe da Ana estava
um pouco apreensiva, mas, sem muitas emoções, apenas olhava
curiosamente como o exame era feito e observava as minhas

84
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

explicações. A assistente social começou a prestar mais atenção


em mim e demonstrou um pouco mais de confiança, mesmo sem
falar uma palavra. Já a Ana, nossa! A Ana era uma moça tão
vulnerável emocionalmente que olhava timidamente para mim. Os
resultados saíram e eu falei com o médico:

– Doutor, deu positivo para sífilis.

– Eita que esse posto é “pesado”!

Vamos lá! Foi receitada a penicilina para a Ana, e eu insisti,


veementemente, para que ela retornasse à unidade de saúde, a
fim de fazer outra aplicação da medicação. Ainda orientei sobre a
disponibilidade de preservativos no posto e que ela sempre podia
procurar atendimento médico, quando quisesse e precisasse. Eu
acredito que o pensamento para solicitar os testes rápidos veio por
uma ajuda divina.

Eu tenho fé em Deus e que Ele viu as nossas limitações. Pedi


para Ele abençoar a vida da Ana imensamente e de todos os que
estão a sua volta. Pedi, também, para me ensinar a ser uma
pessoa mais paciente, como com pessoas que se questionam no
aspecto de desconfiança. Entretanto, agradeci e agradeço muito
pela oportunidade que tive, pelo direcionamento para realizarmos
o diagnóstico e pelas relações interpessoais permitidas.

Sou muito grata ao estágio, tanto que voltei em dezembro de


2019. Eu não imaginava que seria tão construtivo para mim em
tantos aspectos, desde o pessoal e o profissional até o religioso.
Ele me permitiu conhecer e amadurecer muito. Ademais, gostaria
de destacar a incrível sensação que tive quando retornei às aulas
em fevereiro. Eu me senti com mais vontade de aprender os
conteúdos, de me envolver com as atividades da faculdade, até fui
para o Intermed, nos dois semestres de 2019. Hoje, o meu

85
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

coração é preto e branco, as cores da Atlética de Medicina mais


maravilhosa que existe, a Lendária. A propósito, hoje, sou
integrante da bateria, e a gente sempre faz “baderna”, com muita
alegria e satisfação, para recepcionar calouros e representar a
medicina do UniCEUB dentro e fora do Distrito Federal. O UniCEUB
é a minha casa, não por eu pagar para morar lá durante 13 horas
por dia, cinco dias da semana, mas pelas pessoas que conquistam
e reconquistam frequentemente o meu coração.

Um tributo ao meu primeiro paciente:


quando a minha ficha caiu

Ana Carolina Souza Sisnando de Araujo

Ansiedade, nervosismo e empolgação, esses eram os meus


sentimentos ao acordar, pronta para o dia em que acompanharia
meu primeiro plantão desde que ingressei no curso de medicina do
UniCEUB. O plantão de pediatria foi organizado para que todos os
ligantes, em duplas, conseguissem ir ao hospital e conhecer, na
prática, um pouco mais sobre essa especialidade. No entanto, eu
não consegui alguém que pudesse ir comigo nos dias disponíveis
nem possuía carro ou carteira de motorista para me locomover até
o Hospital Regional do Paranoá (HRPa), mas não deixei essa
oportunidade passar e decidi ir sozinha, ainda estando no primeiro
ano da faculdade e indo de carona com amigos mais adiantados no
curso.

Ao chegar no hospital, tudo era novo para mim, não conhecia


ninguém, além de meus veteranos, os quais me ajudaram a
localizar a emergência de pediatria, mas logo seguiram para os
seus respectivos locais de atuação. Na recepção da emergência
busquei pela dra. Renata, médica que os diretores da liga tinham

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

me avisado que estaria lá para me receber. Ao nos encontrarmos,


ela se mostrou disposta a me ensinar e me mostrar como tudo
funcionava durante o plantão.

O primeiro caso que atendemos foi o de uma recém-nascida


com diarreia, porém sem maiores intercorrências. A médica, então,
realizou o exame clínico e prescreveu reidratação oral. Logo
depois, fomos reavaliar um menino de 4 anos, Caio, que estava
com a mãe no hospital, desde às 6 horas da manhã. Ao chegar, ele
tinha sido examinado por outro médico, que relatou que ele se
apresentava com um quadro de dor abdominal, com pouco
enrijecimento no local e sem sinais de irritação peritoneal. De
acordo com esse primeiro relato médico, não havia indícios de ser
apendicite ou outro quadro cirúrgico. Descartando essas
possibilidades, o médico internou Caio por suspeita de
gastroenterite e para permanecer em observação.

A dra. Renata já tinha avaliado o menino mais cedo, mas não


concordava com a avaliação do outro médico. Ela estava
desconfiada de ainda haver a possibilidade de ser um quadro
cirúrgico, como apendicite, mesmo com relatos médicos que
descartaram essa hipótese. Na reavaliação da tarde, a suspeita de
que realmente não fosse um quadro de gastroenterite foi
considerada, pois, após o início do tratamento, Caio ainda não
havia apresentado melhora alguma. Ele apresentava febre e muita
dor durante novo exame físico. Diante da dúvida sobre o
diagnóstico, foi solicitada a realização de uma tomografia
computadorizada.

A oportunidade de poder realizar o exame físico em Caio foi


algo muito especial para mim, visto que foi o primeiro paciente em
quem pude realizar esse procedimento. Aferi sua temperatura e

87
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

sua saturação de oxigênio e, nesse momento, pude perceber o


sofrimento decorrente da dor abdominal.

Outro momento importante ocorreu quando a pediatra


explicou aos pais a justificativa da realização da tomografia. Ver a
preocupação nos olhos da família, ao receber a notícia de que
havia a possibilidade de Caio necessitar de uma cirurgia, foi algo
profundo e marcante. Os pais estavam preocupados porque
acompanhá-lo no hospital estava dificultando a rotina deles, devido
aos seus horários de trabalho. Eles teriam de achar alguém que
pudesse cuidar do Caio e ficar no hospital com ele durante todo o
tempo. Para mim, foi algo muito intenso ver que uma possível
cirurgia de emergência pode ter impacto tão grande sobre a vida
de uma família.

A dra. Renata e eu fomos até a sala de realização dos


exames radiológicos para acompanhar a tomografia em tempo
real. Sabíamos que, se ele estivesse com alguma alteração do
exame que confirmasse a hipótese de apendicite, seria necessário
agilizar todos os processos. Não havia como realizar a cirurgia no
hospital em que estávamos, pois não tinha serviço de cirurgia
pediátrica lá e seria preciso encaminhá-lo para o hospital de
referência, que, em Brasília, é o Hospital Materno Infantil de
Brasília (HMIB), localizado na Asa Sul, relativamente distante do
HRPa. Estávamos na sala da radiografia, observando o exame que
confirmou a hipótese diagnóstica de apendicite, e precisávamos
definir quais seriam os próximos passos e como ocorreriam, de
maneira que fossem realizados o mais rapidamente possível. Nesse
momento, senti-me muito útil, porque minha mãe é cirurgiã
pediátrica do HMIB e consegui entrar em contato com o serviço de
lá para acertar a transferência do Caio.

88
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

No entanto, para que essa transferência pudesse ocorrer, o


serviço do HRPa teria de disponibilizar a ambulância e alguém da
área da saúde para acompanhá-lo, mas não havia alguém
disponível nesse momento para realizar essa função. Então, a
própria dra. Renata se dispôs a assisti-lo na ambulância e eu decidi
acompanhá-la.

Conseguimos arrumar tudo para realizar a transferência do


Caio para o hospital onde a cirurgia seria realizada. Conversamos
com a família dele, a qual também se organizou para conseguir
familiares que ajudassem nesse momento de extrema importância
e dificuldade. Quando a ambulância chegou e já estávamos
preparados para ir, surgiu um caso de Acidente Vascular Cerebral
(AVC) hemorrágico que precisou ser transferido com mais urgência
para o Hospital de Base, e a vaga, na ambulância, foi realocada
para que esse transporte pudesse ser realizado prioritariamente.

Essa situação me fez relembrar e ver, na prática, que, na


medicina, tudo é relativo e varia de acordo com cada situação. O
que é prioridade pode mudar de segundo em segundo, e temos
sempre de observar cada caso como único e com suas prioridades.
Mesmo que você não esteja responsável por uma pessoa, ela pode
se tornar sua prioridade, pois, em determinado momento, será
mais importante ajudá-la e oferecer o melhor suporte disponível,
sem se esquecer de outras situações que estejam ocorrendo ao
mesmo tempo.

Após esse contratempo, buscamos uma segunda ambulância


para levar Caio para o HMIB. Como ele era um paciente que estava
estável, não era preciso que fosse uma viatura de suporte
avançado, o que tornou mais fácil conseguir uma vaga em uma
ambulância que estivesse disponível. O caminho até o outro
hospital foi tranquilo, e os paramédicos foram acompanhando e

89
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

monitorando Caio durante todo o percurso, juntamente com a dra.


Renata.

Para mim, foi um momento marcante: uma caloura de


medicina, empolgada com tudo, andando pela primeira vez em
uma ambulância. Pode parecer pouca coisa para quem está
acostumado, mas, para mim, foi importante. Aquele dia ficou
marcado na minha memória, pois fiz meu primeiro exame físico
em um paciente, acompanhei a realização de uma tomografia, vi
um diagnóstico, antes descartado, ser, posteriormente, confirmado
e andei em uma ambulância. Todos esses eventos me trouxeram a
confirmação de que fiz a escolha certa pela carreira médica e de
que estava começando a estudar e a conviver com o que eu queria
fazer para o resto da minha vida.

Chegando ao HMIB, descemos da ambulância e fomos


finalizar o processo da transferência do Caio. Os médicos de lá
estavam esperando a chegada dele, procederam à sua internação
e analisaram o seu quadro clínico. Logo depois, a dra. Renata foi
embora na ambulância, retornando ao HRPa.

Esse dia foi importante, pois percebi o amor pela profissão


nas atitudes de várias pessoas, lutando por seu paciente e pelo
que é melhor para ele, um aprendizado de extrema valia em
qualquer área da saúde. Eu tive a chance de acompanhar a
evolução do caso e a operação à qual Caio foi submetido. A
operação foi bem-sucedida, e o pós-operatório, sem
intercorrências, obtendo alta no quinto dia após a cirurgia.

Diante dessa história, podemos analisar o papel da relação


médico-paciente. O tratamento do paciente deve ser humanizado e
individualizado, baseado em uma relação de confiança no seu
médico, pelo qual deve ter empatia. O diálogo deve ser em

90
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

linguagem clara e simples, certificando o entendimento da doença,


do tratamento e de seu prognóstico por parte do paciente e de sua
família. A atitude da dra. Renata para com Caio e sua família foi
um exemplo de interação adequada, com respeito e confiança.
Uma boa relação médico-paciente é importante para os dois, pois
transforma a experiência dos atendimentos para o paciente e é um
meio de proporcionar realização profissional e pessoal do
profissional de saúde (GROSSEMAN; PATRÍCIO, 2004).

Atualmente, devemos aprender e exercitar o estabelecimento


de boa relação com nossos pacientes, uma vez que, com o
desenvolvimento de novas tecnologias que ajudam no diagnóstico
e na terapêutica, há tendência a relevar o aspecto humano dessa
relação a um segundo plano. Quando o que é mais importante é a
quantidade de atendimentos a serem contabilizados e não a sua
qualidade, contribui-se com a mudança de cenário do exercício
profissional. É relevante lembrar da essência profissional, não
somente das interferências de políticas de saúde e de dinâmica de
mercado, como mencionado por Luiz Antonio Nogueira-Martins e
Maria Cezira Fantini Nogueira-Martins (1998), mas que ainda se
adequa às situações atuais.

A relação de prioridade e de particularidade exercida pela


dra. Renata com relação ao caso do Caio, além de seu
relacionamento com a família, desenvolvendo um vínculo que
demonstra confiança decorrente de efetiva comunicação, são
exemplos de uma boa relação médico-paciente. Os mais
importantes fatores para a comunicação e confiança entre o
paciente e sua família com o médico responsável são a clareza e a
transparência, para que saibam que o profissional está em busca
do melhor para o paciente e que não planeja realizar nada que
cause qualquer prejuízo a ele. É essencial lembrar que nem

91
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

sempre é fácil construir e lapidar uma boa relação médico-


paciente, mas é de extrema importância que ela ocorra tanto para
a pessoa que está sendo atendida quanto para o profissional
responsável.

Referências

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GROSSEMAN, Suely; PATRÍCIO, Zuleica Maria. A relação médico-


paciente e o cuidado humano: subsídios para promoção da
educação médica. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 28, n.
2, p. 99-104, 2004.

KABA, Riyaz; SOORIAKUMARAN, Prasanna. The evolution of the


doctor-patient relationship. International Journal of Surgery, v. 5,
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NOGUEIRA-MARTINS, Luiz Antonio; NOGUEIRA-MARTINS, Maria


Cezira Fantini. O exercício atual da medicina e a relação médico-
paciente. Revista Brasileira de Clínica e Terapêutica, v. 24, n. 2, p.
59-64, 1998.

92
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Um único plantão e duas diferentes histórias

Um choro silencioso e sofrido – Relato 1

Anne Caroline Castro Pereira

Após passar pelo módulo de Ginecologia e Obstetrícia,


deparei-me com crescente interesse pela área, o que me levou,
com a minha colega Bruna, a buscar mais vivências nessa
especialidade. Assim, durante as férias, tivemos a oportunidade de
acompanhar um plantão de GO, no HRC, algo encantador para
qualquer estudante do ciclo básico. Eu já havia tido essa
experiência anteriormente e presenciado alguns partos. Acredito
ser um momento lindo e que sempre me emociona. Nas outras
vezes, além do nascimento em si, pude ver a alegria da mãe que
conhece seu filho, o acompanhante que se alegra pela nova vida,
todo o amor envolvido. Mas, dessa vez, foi um pouco diferente.

No início da tarde, a doutora nos pediu para avaliar a


dinâmica uterina de algumas pacientes. Animada, fui fazer o
exame de Amanda, mas logo a percebi calada e sem muita
disposição para conversar. Assim, limitei-me a perguntar o que ela
estava sentindo e como estavam as contrações, recebendo
respostas diretas e secas. Apesar de muito educada, mostrou que
não desejava iniciar algum diálogo. Ao ser questionada, Amanda
não sabia a Data da Última Menstruação (DUM) nem muitos
detalhes da gravidez, mas me afirmou com certeza a data da
concepção da criança. Eram perceptíveis seu desconforto com a
situação, sua tristeza e seu desânimo. O trabalho de parto não
estava progredindo como esperado, então, ela estava em processo
de indução. Suas poucas palavras demonstravam sua ânsia de que
tudo fosse encerrado e de que o parto ocorresse o mais rápido

93
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

possível. Logo pude perceber que aquele bebê não estava sendo
aguardado com muita alegria.

Após o exame, conversamos com a médica, que nos contou


que Amanda não havia feito consultas pré-natais e tinha destinado
a criança à adoção. Quando contei sobre a ausência da DUM e
sobre a afirmação relativa à concepção, além do estado da
paciente, dra. Fabiana nos explicou, conforme sua experiência, que
a soma de todos esses fatores indicava que a gravidez deveria ser
fruto de violência sexual. Isso confirmou o pensamento que havia
passado pela minha cabeça e que eu, ingenuamente, tentei
afastar. Já discutimos no curso sobre essa triste realidade, além de
ser algo do qual toda menina entende desde cedo que precisa se
proteger. No entanto, presenciar o fruto dessa situação, todo o
sofrimento da vítima nove meses depois, foi um choque para mim.

Após algum tempo, optou-se pela realização da cesárea na


paciente, então, fomos acompanhar o parto na sala de cirurgia.
Durante os processos iniciais, toda a equipe perguntava o sexo e o
nome do bebê. Amanda não sabia o sexo e não havia escolhido
nome para o bebê, mas acredito que, pela vergonha de não saber
responder, mentiu. Eu e Bruna vimos que ela estava
desconfortável. Como a equipe poderia não saber sobre esse
histórico e fazer esses questionamentos? Esses profissionais não
deveriam estar mais bem preparados para essa situação especial?
Não seria o papel deles compor o ambiente de maior reflexão,
compreensão e silêncio que a paciente desejava? Quanta angústia
em presenciar essa cena. Com a conclusão do nascimento,
perguntaram-lhe se gostaria de ver seu filho, e ela quis ver apenas
seu rosto rapidamente, à distância. Quando levaram o bebê,
Amanda chorou. Um choro silencioso e sofrido, que encerrava um
capítulo doloroso da sua história. Não foi um parto bonito e alegre,

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

como os que eu já havia acompanhado. Não teve um final muito


feliz, como sempre esperamos. Mas foi um momento de
amadurecimento na minha formação, que me marcou
profundamente.

Quando o pequeno André veio ao mundo!


- Relato 2

Bruna Paiva de França

Eram férias de final de ano, entre o quarto e o quinto


semestres. Eu e minha dupla de habilidades clínicas, Anne, fomos
acompanhar um plantão de Obstetrícia no HRC, como já explicado
por ela. Ao chegar lá, a médica de plantão dra. Fabiana nos
informou sobre as pacientes que estavam na enfermaria e logo nos
orientou para realizar as manobras de Leopold e conferir a
dinâmica uterina nas gestantes lá presentes, além de auscultar os
batimentos cardíacos fetais. Uma gestante em especial me chamou
atenção. Era uma menina de apenas 17 anos, Ana, gestando seu
primeiro filho, com dilatação de quase oito centímetros, à espera
de começar seu parto vaginal em uma das cabines individuais da
enfermaria. Eu nunca havia presenciado um parto normal antes,
apenas cesáreas, dessa forma, fiquei muito interessada para
acompanhar o caso. Mal eu sabia que estaria esperando para
acompanhar um parto extremamente humanizado e bonito.

A sala onde ela estava deitada era pequena, mas muito


aconchegante, com um biombo na frente, o qual garantia a sua
privacidade. Duas enfermeiras estavam acompanhando de perto
cada contração que ela sentia. Eu fiquei encarregada de contar e
anotar a dinâmica uterina durante as contrações, tentando sempre
confortar a paciente diante da forte dor presente. Além da médica

95
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

e das duas enfermeiras que iam e vinham na pequena sala, a mãe


da paciente também estava lá, acompanhando de perto o
nascimento de seu neto. Embora Ana e a mãe fossem tímidas,
mostravam-se à vontade com a minha presença. Contavam que,
mesmo sendo uma gestação não planejada, estavam ansiosas com
a chegada do menino, de nome André. A gestante se mostrava
muito nervosa com o parto, com medo das dores e com medo de
não “dar conta”. Tentávamos sempre confortá-la.

Após alguns minutos de intensas contrações e dores, ela


atingiu os 10 centímetros de dilatação. As enfermeiras se
mostraram presentes em todo o processo do nascimento.
Primeiramente, Ana começou o trabalho de parto deitada sobre a
maca do quarto, realizando as devidas forças necessárias para a
expulsão do bebê. Entretanto, a posição estava desfavorecendo
todo o processo e incomodando ainda mais a futura mãe. Diante
disso, as enfermeiras mostraram para ela todas as posições que
poderiam ser feitas para facilitar o parto e perguntaram qual seria
a mais confortável, amenizando o sofrimento dela. A paciente
optou por uma posição no chão, em que sua mãe poderia abraçá-
la por trás, segurando-a em seus braços e dando o devido apoio e
aconchego durante o parto. As enfermeiras cobriram o chão com
todo o equipamento esterilizado necessário para a chegada do
feto. Ademais, elas colocaram música no local, perguntando a
favorita da gestante, deixando o ambiente ainda mais feliz e com
bastante suporte para ela. Após muita força e muito tempo em
trabalho de parto, com todo o apoio possível da equipe de saúde e
de sua família, o pequeno André veio ao mundo, da forma mais
bonita possível, no seu devido tempo, de forma natural e
extremamente humanizada, com a equipe de saúde respeitando as
escolhas da gestante, visando a reduzir, ao máximo, o desconforto

96
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

que a situação poderia causar. Naquele instante, eu sentia


felicidade em poder fazer parte de um momento tão importante na
vida de duas pessoas, reafirmando o porquê da minha escolha pela
medicina.

Com o recém-nascido presente no mundo, ele foi logo


colocado no colo de sua mãe, a qual voltou para a maca, para
iniciar o processo de amamentação. Ana se mostrava encantada
com o seu novo bebê e aliviada por ter conseguido passar pelo
parto. Mesmo com o André já no colo da mãe, ainda faltava uma
segunda parte do parto: a retirada da placenta. Depois de muito
cuidado e causando dores na paciente, ela foi finalmente retirada,
terminando todo aquele processo para a Ana. A nova avó já quis
logo sair do quarto para contar para seu marido que seu novo neto
havia chegado. Enquanto isso, Ana ficou apreciando sua nova
criação. E eu saí daquele plantão realizada por ter feito parte
daquilo.

CONCLUSÃO CONJUNTA

Diante desses dois relatos, pudemos presenciar, como dupla,


em uma mesma tarde, duas faces do nascimento. Totalmente
contrárias, com mulheres de histórias diferentes e com
sentimentos opostos. Uma demonstrava angústia, vergonha e
sofrimento, com hipóteses de violência sexual, enquanto a outra,
mesmo que adolescente, chorava de alegria e satisfação, enchendo
aquela pequena sala de amor. Um parto cesáreo, com perguntas
desconfortáveis à gestante, e um parto normal humanizado, com
as músicas favoritas da paciente, separados por uma parede. Nós,
como estudantes de medicina, acompanhamos os dois extremos de
emoções junto com as gestantes. Assim, ambos os casos, com
suas características peculiares, marcaram-nos. Crescemos e

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

amadurecemos naquele dia, saindo do hospital com novos


conhecimentos e novas percepções para a vida, e, sobretudo,
aprendemos a lidar um pouco mais com nossos sentimentos e
vimos como isso é importante para nossa futura profissão.

REFLEXÃO DAS AUTORAS DAS NARRATIVAS

O parto é um processo marcante na vida de várias mulheres


e, durante toda a história, passou por transições até alcançar o
formato instituído atualmente. Teve um início histórico de caráter
mais natural, passando pelo aumento exacerbado da intervenção
médica, e agora busca-se o equilíbrio entre um ambiente acolhedor
e humanizado para a paciente, mas ainda com o auxílio médico
necessário (BRÜGGEMANN; PARPINELLI; OSIS, 2005; POSSATI et
al, 2017; VENDRÚSCULO; KRUEL, 2015).

Por ser decorrente de diferentes histórias que envolvem a


concepção e levar a desfechos diversificados na vida da
parturiente, toda a gestação e trabalho de parto relacionam-se
com diferentes emoções. Esse processo, que naturalmente gera
sentimentos de medo, preocupação e ansiedade, pode ser
facilitado ou dificultado de acordo com o suporte recebido pela
gestante, pela sua vontade de gerar uma criança e pelo seu anseio
por essa maternidade (LORDELLO; COSTA, 2014). Dessa forma,
assim como evidenciam Vendrúsculo e Kruel (2015), cada história
é única, e o manejo dos profissionais de saúde deve ser
individualizado.

Nas narrativas descritas, duas vertentes opostas relacionadas


ao nascimento de uma criança são expostas, demonstrando o quão
abrangente é este único evento. Insere-se, nesse momento, a
importância da preparação da equipe de saúde envolvida com o

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

parto, que deve estar pronta para lidar com todos os tipos de
nascimento.

Atualmente, a Organização Mundial da Saúde e o Ministério


da Saúde têm proposto mudanças que retomem a atenção
humanizada ao parto, com maior acolhimento, compreensão e
valorização da mãe nesse processo, permitindo maior criação de
vínculo com os profissionais. Esse processo de humanização
abrange incentivo à deambulação, ao posicionamento livre, à
expressão de sentimentos e anseios e à participação ativa da
mulher no processo de nascimento (VENDRÚSCULO; KRUEL,
2015).

Esse fenômeno é verificado na segunda narrativa, na qual


Ana teve suporte durante todo o trabalho de parto, com músicas,
escolha de seu posicionamento e incentivo oral para que
enfrentasse seus sentimentos de medo e angústia, recebendo
grande apoio das profissionais de saúde. Vendrúsculo e Kruel
(2015) destacam que o acolhimento exige nova postura da equipe
de saúde, que precisa demonstrar maior respeito, empatia e
sensibilidade à paciente. Assim, apesar de exigir mais dedicação
emocional dos envolvidos, a confiança na equipe e o suporte
evitam situações de estresse e de angústia para a parturiente e os
seus acompanhantes.

Entretanto, não foi o que ocorreu durante a primeira


narrativa. É necessário entender que a relação afetiva entre o
recém-nascido e a mãe é baseada em diversos aspectos, entre
eles, o desejo de ter o bebê (LORDELLO; COSTA, 2014). A ideia da
mulher de doar seu filho ainda é pouco aceita socialmente, e esse
preconceito muitas vezes resulta do chamado “mito do amor
materno”, descrito por Elizabeth Badinter (apud FARAJ et al,
2016). Ainda de acordo com os mesmos autores, essa teoria é

99
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

baseada na concepção de que as mulheres nascem com o papel de


criação, na tendência de tratar a maternidade de forma instintiva.

Diante disso, embora a temática seja complexa, busca-se


desconstrução do amor materno ideal. Ademais, é importante a
distinção entre dois termos, que ajudará a romper esse conceito
enraizado ainda na sociedade: abandono e adoção. O primeiro
consiste em deixar o bebê em qualquer lugar, sem se preocupar
com sua vida. Já o segundo termo é atrelado ao bem-estar que a
mãe busca para seu filho, embora tenha alguma impossibilidade de
permanecer com ele (FARAJ et al, 2016).

Tendo em vista essa compreensão, busca-se entender como


o profissional de saúde deve se portar diante de uma situação
dessa natureza e como os médicos descritos na primeira narrativa
poderiam estar mais preparados. Conforme visto no exemplo de
Amanda, é de extrema importância o treinamento e a capacitação
da equipe obstétrica acerca do tema, conforme ressaltado por
Faraj et al (2016), visto que mais compreensão e humanização
causam menos desconforto emocional para a gestante.

Por intermédio de estudos, pode-se identificar que há


insegurança, um déficit na formação acadêmica e na discussão
entre os profissionais das maternidades, sobre os casos de mães
que decidem entregar o filho para adoção, não ocorrendo
procedimentos articulados, resultando em falhas de comunicação
entre a equipe, assim como em perguntas inadequadas na hora do
parto, como na primeira narrativa. Ressalta-se também a
importância de ofertar às mães que querem entregar o filho
políticas públicas que garantam apoio emocional e jurídico, algo
ainda pouco concreto no Brasil (FARAJ et al, 2016).

100
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

De acordo com Brüggemann, Parpinelli e Osis (2005), todo o


apoio e suporte para a gestante nesse momento desafiador para
todas as mulheres relacionam-se com o bom progresso do parto,
interferindo nas taxas de cesariana, no uso de ocitocina, na
duração do trabalho de parto, na intensidade de analgesia e na
satisfação da mãe com essa experiência. Dessa forma, faz-se cada
vez mais necessária a atenção ao parto humanizado e acolhedor,
com profissionais de saúde preparados para abordar todas as
situações da melhor maneira para a parturiente, tornando essa
vivência menos traumática e o mais gratificante para a nova mãe.

Referências

BRÜGGEMANN, Odaléa Maria; PARPINELLI, Mary Angela; OSIS,


Maria José Duarte. Evidências sobre o suporte durante o trabalho
de parto/parto: uma revisão da literatura. Cadernos de Saúde
Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1316-1327, set./out. 2005.

FARAJ, Suane Pastoriza et al. “Quero entregar meu bebê para


adoção”: o manejo de profissionais da saúde. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, v. 32, n. 1, p. 151-159.

LORDELLO, Sílvia Renata; COSTA, Liana Fortunato. Gestação


decorrente de violência sexual: um estudo de caso à luz do modelo
bioecológico. Contextos Clínicos, v. 7, n. 1, p. 94-104, jan./jun.
2014.

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Revista Mal-Estar e Subjetividade, v. 11, n. 3, p. 935-965, 2011.

POSSATI, Andrêssa Batista et al. Humanização do parto:


significados e percepções de enfermeiras. Escola Anna Nery, Rio de
Janeiro, v. 21, n. 4, 2017.

VENDRÚSCULO, Cláudia Tomasi; KRUEL, Cristina Saling. A história


do parto: do domicílio ao hospital; das parteiras ao médico; de
sujeito a objeto. Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas,
Santa Maria, v. 16, n. 1, p. 95-107, 2015.

101
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Lembrando de dar o meu melhor naquele


momento

Larissa Campos Spinola

Um dos momentos mais marcantes da minha vida como


futura profissional da saúde, como mulher, como filha e como
jovem foi o dia em que participei de uma atividade com gestantes
em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de Planaltina/DF. A
atividade era simples, porém de extrema importância. Seu objetivo
principal era reunir mulheres grávidas da região para uma
conversa sobre gravidez, sobre o calendário de vacinas da
gestante, técnicas de amamentação e cuidados que a mulher deve
ter com sua própria saúde durante esse período.

Entre as gestantes, vi uma menina que devia ter entre 14 e


16 anos, acompanhada de sua mãe. A menina estava cabisbaixa,
parecia extremamente tímida, de semblante triste. Notei grande
tensão entre ela e a mãe, que se tremia e que começou a chorar
assim que começamos a falar sobre amamentação. Naquele
momento algo como um filme passou pela minha mente e percebi
a delicadeza da situação. Provavelmente, aquela menina estava
enfrentando uma gravidez indesejada; provavelmente, estava
assustada e com medo do futuro. Devia estar com vergonha da
própria mãe ou sentindo uma culpa imensa por decepcioná-la. E
quem seria o pai? Será que ele era um adolescente como ela? Será
que a gravidez era fruto de uma relação sexual consensual? Será
que ela conhecia e tinha acesso a métodos contraceptivos? Será
que o pai teria se comprometido a assumir o filho e apoiá-la? Além
disso, imaginei-me em seu lugar, imaginei como eu estaria
desconfortável e me sentindo só ao olhar ao meu redor, naquele
grupo de mulheres grávidas, e não ver ninguém como eu, somente

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

mulheres casadas, acima de 25 anos, aparentemente, felizes com


a perspectiva de um novo filho.

Ver aquela menina tão jovem, muito quieta e cabisbaixa ao


lado de sua mãe agitada e em prantos me fez pensar sobre a
experiência de ter o mundo virado de cabeça para baixo e de
assistir o que, no momento, pode parecer ser um grande desastre
se desenrolar em frente aos seus olhos. Toda essa situação me
lembrou de um trecho de uma das obras da escritora Sylvia Plath,
sobre sua depressão, chamada A redoma de vidro, que diz:
“imagino que eu deveria estar entusiasmada como a maioria das
outras garotas, mas eu não conseguia me comover com nada. Me
sentia muito calma e muito vazia, do jeito que o olho de um
tornado deve se sentir, movendo-se pacatamente em meio ao
turbilhão que o rodeia”. Imaginei que talvez aquela menina se
sentiria assim, como um olho de um grande tornado.

Afirmo que essa experiência perpassa diversos aspectos da


minha vida, pois, além de despertar em mim o desejo de ser
solícita e empática como profissional de saúde e dar o meu melhor
para acolher, educar e ajudar aquele indivíduo, também me levou
a refletir, por exemplo, sobre a minha relação com a minha mãe,
sobre como meu processo de crescimento rompeu com certas
expectativas maternas projetadas em mim, até mesmo em relação
ao início de uma vida sexual.

Também me fez pensar sobre a experiência de ser mulher,


de ser um indivíduo capaz de gerar vida e sobre o direito de
escolher ou não gerar tal vida em seu ventre. Penso o quanto
desesperador é para diversas mulheres no mundo todo ter esse
direito negado, sendo forçadas a se conformar a uma moral que
idealiza a maternidade e julga aquelas que desejam ser donas do
próprio corpo e tudo que vem atrelado a isso. Percebo que a

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

experiência da existência feminina é marcada por diversos


momentos em que nossa liberdade é tolhida, nossa segurança
ameaçada e nossa saúde mental prejudicada. Entre esses
momentos de violência, a possibilidade de uma gravidez
indesejada com seu seguimento forçado.

Além disso, fez-me refletir sobre minha adolescência, sobre


esse período esquisito de mudança corporal e mental, sobre a
busca por independência e liberdade, num mundo que parece ser
muitas vezes grande demais e amedrontador. Penso sobre como é
difícil aceitar o próprio corpo, conhecer-se, começar a pensar em
quem você quer ser no futuro, descobrir desejos e aprender a
navegar no mundo dos relacionamentos, tanto amorosos quanto
familiares e de amizades. A gravidez na adolescência, muitas
vezes, representa uma ameaça a esse período já muito confuso de
autodescobrimento, levando a um estado de preocupação e de
responsabilidade muito precoce, podendo trazer mais uma camada
de sofrimento psíquico, além de grande impacto na formação
acadêmica da menina adolescente.

Creio que esse dia ficará marcado para sempre na minha


memória, de maneira que, ao olhar para uma paciente jovem,
grávida e com medo, o rosto dessa menina surgirá novamente na
minha mente, lembrando-me de dar o meu melhor para que eu
possa ser uma pessoa que irá aliviar seu fardo e ser sua confidente
em um momento tão delicado.

Mais um dia ou o dia mais importante?

Letícia Sampaio Castro

Era um dia rotineiro de março de 2016, minha família estava


viajando, e eu havia ficado em Brasília por motivos de estudo. A

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

monotonia e a rotina do dia foram completamente quebradas no


momento em que recebi uma ligação com a notícia de que meu pai
havia sofrido um infarto. Foi uma surpresa para todos, tendo em
vista que o Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) seria algo inesperado
para ele, considerando sua idade, peso, condições de saúde e
hábitos de vida, os quais não representavam grande risco para a
ocorrência de um evento como esse.

Quando recebi a notícia, meu pai, aqui representado por


João, que se encontrava em Rio Quente/Goiás, já estava em
direção a um hospital particular de Brasília. Apesar de incansáveis
perguntas sobre como ele estava e o que havia acontecido ao
certo, os detalhes da história só foram contados depois que o
turbilhão de acontecimentos e emoções cessou.

Quando finalmente pude entender toda a história, meu pai


contou como sentiu uma dor no peito e ignorou, até que ela se
repetisse, fazendo-o desconfiar que poderia ser algo mais sério, o
que o fez se dirigir a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA),
um dos únicos locais da cidade onde poderia receber atendimento
médico. Foi atendido por um médico jovem, que julgava ser
recém-formado e, por isso, sentiu certa desconfiança devido à
possível inexperiência profissional. Entretanto, após os exames
solicitados, foi surpreendido com a notícia de que se tratava de
IAM.

Logo em seguida, ainda um pouco desconfiado, encaminhou


alguns exames, por mensagem, a um amigo cirurgião cardíaco,
representado por Pedro, mas, como já era madrugada, e o amigo
não tinha acesso direto aos exames, a atenção não foi tão grande,
e ele acreditou se tratar de algo não muito grave, afirmando que,
quando voltasse a Brasília, meu pai deveria realizar alguns
exames. O médico plantonista insistiu em sua hipótese diagnóstica

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

e pediu para ter uma conversa com Pedro, a fim de discutir o caso
com mais detalhes. Chegaram à conclusão de que o caso se
tratava de IAM, e meu pai deveria urgentemente ir a um hospital,
para receber o suporte adequado e realizar uma cirurgia o mais
rápido possível. Meu pai contou o medo que sentiu e a inspiração
que eu, como futura médica, deveria ter no profissional que o
atendeu, o qual foi humilde e atencioso, porém confiante o
suficiente para vencer os preconceitos relacionados ao início da
carreira com extrema competência.

Após internação em um hospital próximo à cidade para


estabilização e monitoramento do quadro, João seguiu de
ambulância em direção a um hospital particular em Brasília, no
qual Pedro realizaria a cirurgia, que deveria ser feita com certa
urgência devido à gravidade do quadro. Ao chegar no hospital em
questão, a burocracia extensa e demorada levou a instituição a
comunicar, inicialmente, que não havia centro cirúrgico disponível.
Após uma longa espera, em local completamente inadequado para
receber o suporte necessário, o hospital informou que não iria
permitir admissão até que houvesse pagamento de metade do
valor da cirurgia, tendo em vista que João não tinha plano de
saúde associado ao hospital em questão, o qual foi priorizado como
primeira opção devido ao atendimento que seria prestado pelo
amigo de confiança.

Meu pai afirma que se sentiu objetificado ao ser deixado em


sofrimento, aguardando que o hospital tomasse uma decisão,
mesmo com os diversos avisos do amigo, à equipe hospitalar, com
instruções de acolhimento inicial até que ele chegasse para realizar
a cirurgia. Além disso, percebeu que, em um mundo em que o
paciente muitas vezes se torna mais um elemento de relações
comerciais, amizades influentes não resolvem. Dinheiro também

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

não importa, caso não seja transferido à conta do hospital. Apesar


de entender a posição da instituição, relata ter se sentido
impotente e julga, de certa forma, desumano ter se encontrado em
uma emergência médica e ter sido deixado de lado, sem o mínimo
de atenção e cuidado, especialmente daqueles que deveriam salvá-
lo.

Após o incansável processo burocrático, João, finalmente, foi


admitido no hospital e recebeu um tratamento extremamente
atencioso, especialmente após os profissionais tomarem
conhecimento de sua amizade com Pedro. Já no centro cirúrgico,
um amigo cirurgião bariátrico, apesar de não ser da área médica
em questão, acompanhou o procedimento e, um pouco antes de
começar, pediu que a equipe tirasse um momento para fazer uma
oração por meu pai, pois sabia de sua fé. Meu pai relata o quão
marcante e emocionante foi para ele ver a equipe abaixando a
cabeça em respeito à demonstração de fé, mesmo que não
compartilhassem da mesma crença.

Quando foi autorizado a receber visitas, percebi nele a


extrema sensibilidade e vulnerabilidade nas quais ele se
encontrava, afirmando que, em questão de poucos dias, o curso de
sua vida mudou, pairando constantemente a dúvida se ela sequer
teria possibilidade de continuar. Isso o fez valorizar ainda mais sua
fé e as pessoas que o apoiaram nesse momento, especialmente
minha mãe, que não deixou o seu lado em momento algum.

Hoje, quatro anos depois, fazendo o curso de medicina,


posso unir a minha visão de acadêmica, a minha visão de
acompanhante e os relatos de um paciente e refletir a respeito dos
mais diversos aspectos da medicina que essa situação pôde
evidenciar: para o hospital, mais um paciente que traz consigo
dinheiro; para alguns médicos que atenderam ao meu pai, mais

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

um caso clínico; para os amigos médicos, a confiança e o medo


que o conhecimento científico pode proporcionar, especialmente se
tratando de uma pessoa querida; para a família que não o pôde
acompanhar, incluindo eu, o medo e a apreensão que vêm com as
dúvidas; para a minha mãe, a mistura de medo, apoio e carinho,
no acompanhamento de perto; para o meu pai, o momento de
maior reflexão da vida dele. Tempos depois, ainda relembra como
esse dia, que, para alguns, foi apenas mais um dia de trabalho,
para ele, significou o dia mais importante em diversos aspectos,
mudando sua vida de forma drástica.

Dessa forma, nesse contexto, cabe ressaltar a discussão


acerca das mudanças que vêm ocorrendo no cenário da medicina,
destacando-se os paradigmas envolvendo conflitos de interesses
entre ciência, benignidade-humanitária e lucro, observando-se que
medicina se torna, ocasionalmente, um empreendimento
empresarial, muitas vezes supervalorizado em detrimento do
paciente (MARTIN, 2002).

Tendo em vista esses conflitos e a importância do olhar


integral ao paciente, estudos mostram a importância de
profissionais de saúde levarem em consideração, entre outros
aspectos, a religiosidade e a espiritualidade de pacientes que se
encontram em situações de risco e estado crítico em ambiente
hospitalar (LONGUINIERE; YARID; SILVA, 2018). Além disso,
apesar de relatarem dificuldade de abordagem do assunto em uma
consulta, por exemplo, é de extrema importância que médicos,
como cardiologistas, os quais lidam com patologias muitas vezes
crônicas, tenham conhecimento sobre as crenças do paciente, as
quais podem influenciar em seu tratamento, minimizando
sofrimentos e levando conforto à situação, conforme evidenciado

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

por Giancarlo Luchetti, Alessandra Luchetti e Álvaro Avezum Júnior


(2011).

Ademais, outro aspecto importante a ser considerado inclui a


recuperação multidisciplinar de pacientes que sofreram IAM.
Estudos ressaltam que a ocorrência dessa patologia pode levar a
sérias consequências físicas e psicológicas, tanto imediatas quanto
a longo prazo, no paciente e em sua família. Assim, o foco na
recuperação multidisciplinar pós-infarto apresenta-se como um
fator importante para se obter respostas favoráveis na reabilitação
de pacientes que sofreram eventos cardiovasculares traumáticos
(McINTYRE; FERNANDES; ARAÚJO-SOARES, 2000).

Portanto, essa intervenção, tendo como base a


multidisciplinaridade, mostra-se de extrema relevância a esses
pacientes, considerando a influência de fatores psicológicos, como
o estresse e o comportamento do tipo A – associado a hostilidade,
perfeccionismo, preocupação, tensão – no desenvolvimento de
doenças cardiovasculares (JENKINS, 1988). McIntyre; Fernandes;
Araújo-Soares (2000) destacam que, após o infarto, existe a
possibilidade de o evento cardíaco ter impacto psicológico
negativo, podendo aumentar ainda mais sua vulnerabilidade a
sofrer um novo episódio.

Referências

JENKINS, C. David. Epidemiology of cardiovascular diseases.


Journal of Counsulting and Clinical Psychology, v. 56, n. 3, p. 324-
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109
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

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AVEZUM JÚNIOR, Álvaro. Religiosidade, espiritualidade e doenças
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miocárdio: um esforço interdisciplinar. Psicologia, Saúde &
Doenças, v. 1, n. 1, p. 53-60, nov. 2000.

Tocar a vida das pessoas de alguma forma

Luiza Lobão Raulino Silva

Era uma quinta-feira comum, dia de visita domiciliar do eixo


educacional IESC IV. Como sempre, eu e minha dupla (ao
contrário da maioria) estávamos muito animadas em encontrar as
famílias que acompanhávamos em Planaltina. Já era nosso
segundo semestre visitando-os regularmente, e me sinto feliz e
orgulhosa em dizer que acredito que um forte vínculo já havia sido
criado. Prova disso era a forma com que éramos recebidas em
todas as casas visitadas, mas, em especial, na de Maria, a qual
fazia questão de preparar uma receita diferente a cada vez que
nos víamos. Era indescritível a sensação que tinha ao perceber que
aquelas famílias genuinamente confiavam e, mais do que isso,
tinham carinho por mim. Esse era meu maior objetivo com a
medicina – tocar a vida das pessoas, de alguma forma.

Apesar de a maioria das visitas ser relativamente tranquila e


sem muitos problemas, nessa quinta-feira, em especial,
deparamo-nos com uma situação delicada. Carla fazia parte da
segunda família por nós acompanhada e estava grávida quando a

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

conhecemos. Nessa visita, seu filho, Thiago, já estava com 4


meses e nos preocupava por sua extrema dificuldade em ganhar
peso, crescer e alcançar seus marcos de desenvolvimento. A mãe
havia sido instruída um mês atrás a utilizar fórmula como
complemento para a amamentação, recomendação essa que não
surtiu efeito no quadro do bebê. Agora, mais uma queixa nos
chamava atenção. Mãe e filho encontravam-se com diversas
manchas no corpo inteiro, as quais coçavam e geravam muito
desconforto, especialmente em Thiago, que chorava muito. Carla
estava desesperada, e todas as possibilidades diagnósticas por nós
sugeridas foram eventualmente descartadas.

Algo importante a ser esclarecido é que naquele momento, a


UBS daquela região estava sem médicos há quase um mês. Assim,
nesse instante, deparei-me com uma sensação comum na
medicina: a de impotência. Impotência por saber que vontade de
ajudar não era o suficiente. Nesse dia, fomos embora com o
coração partido. A Agente Comunitária de Saúde (ACS) havia
prometido tentar marcar uma consulta para Carla e Thiago o mais
rápido possível, mas todos voltamos para casa com a noção de
que, naquele dia, não havíamos sido o suficiente.

Dias se passaram, e era difícil não pensar no que havia


acontecido. O bebê pesava pouco mais de 3 kg, encontrava-se no
Z score -3, estava com a pele toda irritada, chorava sem parar.
Resolvi mandar uma mensagem para Priscila, a ACS, e reforçar a
seriedade da situação. Depois de um tempo, recebi resposta dela:
após muito esforço, a consulta havia sido marcada. Uma semana
depois, Priscila me envia um áudio, explicando o que havia
acontecido. Em resumo, Carla e Thiago tinham comparecido à
consulta e recebido o diagnóstico: sarna. Saber disso me trouxe
emoções conflitantes: alegria, por saber que o problema agora

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

poderia ser resolvido, e indignação, por perceber que mãe e filho


haviam passado meses em agonia, e que isso só havia acontecido
por uma falha no nosso sistema de saúde. Sistema esse que eu
agora faço parte.

Mais ou menos um mês depois, mais uma notícia: os


problemas no desenvolvimento de Thiago agora tinham uma
explicação. O bebê tinha hidrocefalia. E a consulta que levou a
esse diagnóstico só havia sido marcada por insistência nossa em
investigar, com urgência, a causa das dificuldades do bebê. Essa
última informação me ajudou a entender melhor tudo que havia
acontecido. Fez-me perceber que, sim, o sentimento de impotência
é inerente à prática médica. Mas também me mostrou que, por
outro lado, pequenas atitudes fazem, sim, a diferença. Que o
conhecimento científico é essencial, mas que grande parte da
medicina se resume a pequenas atitudes. Pequenas atitudes essas
que advêm da empatia, do amor ao próximo, da vontade de fazer
o bem. E, no final das contas, é por isso que eu quero ser médica.
Para ajudar mesmo quando a ajuda parece inalcançável. Para
trazer um pouco de igualdade para esse mundo tão desigual. Para
mudar a vida do outro com meu conhecimento e também com o
meu amor. Amor pela vida, amor pela justiça. Amor pela medicina.

Memórias

Luísa de Melo Brandão

Era um dia comum em Brasília, no Hospital Regional da Asa


Norte (HRAN). Entretanto, no nosso quarto dia de experiência
colhendo histórias no hospital, estávamos um pouco apreensivas
com o surgimento de casos da Covid-19 na cidade. Após divisão
feita pelo professor, fomos encaminhadas para examinar um

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

paciente no leito 609-B. Após o encaminhamento, subimos para o


sexto andar, ansiosas, uma vez que os pacientes com o novo vírus
estavam localizados no sétimo andar e os elevadores e as escadas
ainda permitiam o acesso e a movimentação de pessoas
provenientes daquele andar por todo o hospital.

Ao chegarmos ao leito 609, conhecemos o nosso paciente, o


senhor Rodrigo, de 65 anos. Como sabemos da importância da
relação médico-paciente, buscamos aproximarmos do senhor à
nossa frente sem demonstrar nossa ansiedade. O senhor Rodrigo
foi extremamente receptivo, mostrando-se aberto e atento a todos
os nossos questionamentos. Pouco tempo depois de iniciado o
atendimento, minha colega precisou ausentar-se do quarto devido
a um chamado do professor, com o qual deveria se encontrar às
16 horas.

Permaneci, então, sozinha no quarto com o paciente e a


esposa dele e, a partir desse momento, percebi que era necessário
que eu não demonstrasse a minha tensão, portanto, comecei a
conversar com ele sobre a sua história de vida. Então, durante
esse momento de colheita da anamnese, senti-me realmente
conectada com o paciente e a esposa dele. Eles me informaram
que eram provenientes do interior de Goiás, de uma pequena
cidade a qual não pude localizar no mapa, e que trabalhavam
desde jovens na fazenda deles. O senhor Rodrigo havia
frequentado a escola apenas até o segundo ano do ensino
fundamental, tendo abandonado os estudos para trabalhar na
fazenda. A sua esposa também não havia frequentado a escola por
muito tempo, informando ter abandonado os estudos também
ainda no ensino fundamental. Dessa forma, podiam ser
considerados semianalfabetos. Além disso, informaram-me que
haviam casado precocemente, antes dos 20 anos, e que tinham

113
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

três filhos, os quais também trabalhavam e viviam na pequena


cidade.

Para minha surpresa, ao início do exame físico, os senhores


demonstraram interesse por todos os procedimentos, fazendo
desde perguntas básicas como o modo correto de utilizar álcool em
gel até qual era o nome e a localização de alguns órgãos. Ademais,
perguntaram sobre como era o funcionamento do curso de
medicina, quantos anos de duração ele tinha e como estava sendo
a minha experiência. Senti-me, então, extremamente acolhida
naquele ambiente e continuei a conversa oferecendo explicações
sobre o pouco em que podia ajudar em relação às suas dúvidas.
Percebendo o meu interesse na conversa com o Rodrigo e a esposa
dele, dois outros idosos que estavam nos leitos adjacentes do
quarto resolveram se inserir na conversa e dar depoimentos
pessoais sobre suas histórias.

A partir disso, deu-se continuidade ao meu melhor dia como


estudante de medicina até o presente momento. Os pacientes me
contaram tudo o que sabiam sobre suas condições até o momento
e, também, os seus medos por estarem em um quarto em um
andar tão próximo àqueles infectados pelo vírus causador da
pandemia atual. Por um momento, então, senti que pude confortá-
los e, principalmente, senti que, mesmo dentro de um ambiente
hospitalar, em que todos tinham enfermidades tão graves – todos
naquele quarto tinham tumores pulmonares –, o ambiente poderia
apresentar-se como feliz e divertido. A hora seguinte,
aproximadamente, em que passei realizando o exame físico do
senhor Rodrigo, foi entremeada por conversas sobre doces,
animais, fazendas, banhos de rio e tantas outras coisas que
trouxeram, não só a mim, mas acredito que também aos
pacientes, a esperança de dias melhores.

114
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Finalmente, depois de tantas aulas e debates sobre o


assunto, senti a presença do vínculo médico-paciente. Algum
tempo depois, a minha colega retornou ao quarto para que
recolhêssemos nossos materiais e nos dirigíssemos à reunião final
com os professores. Quando nos ausentamos, um terceiro colega
foi, então, ao mesmo quarto, para colher a história de um dos
outros dois pacientes presentes, o qual informou a ele que a minha
visita tinha tornado o dia dele mais alegre.

Alguns dias depois, refletindo com a minha colega sobre


como resumir a história do senhor Rodrigo, para apresentá-la ao
professor, pude ter certeza de que aquele dia foi essencial não
apenas para o meu crescimento profissional, mas também para o
meu crescimento pessoal e espiritual. Naquele dia, como em
poucos outros, consegui compreender o verdadeiro significado da
palavra esperança. Naquela visita ao senhor Rodrigo, aprendi que,
independentemente de nossa condição, somos todos feitos de
memórias, como a de um banho de rio, em um dia quente.

A prática médica não é apenas aquilo que se


aprende nos livros

Maria Clara Peixoto Lima

Tudo começou com um caroço que minha mãe nunca tinha


percebido e que, de repente, começou a incomodar. Eu ainda
estava no cursinho e passava a maior parte do tempo fora de casa,
mas sempre que a via ela estava com a mão no seio. Insistia para
que ela fosse a um médico o mais rápido possível, mas ela achava
que não era nada, que aquilo iria, magicamente, desaparecer.
Contudo, depois de um mês, quando ela, finalmente, procurou
uma ginecologista, descobriu o que realmente era.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

O laudo da ressonância magnética ficou pronto uma semana


antes do ENEM, mas ela não me contou o resultado para me
preservar. Assim que saí da prova, no segundo dia, ela me contou,
no carro, que estava com câncer de mama, acho que nunca me
senti tão mal, em toda minha vida: queria vomitar, chorar e gritar.
O fato de poder perder minha mãe tão cedo não estava nos meus
planos, e, quanto mais eu pensava, mais eu negava essa
possibilidade, passei dois dias chorando no meu quarto. Comecei a
acompanhá-la nas consultas, e ficamos sabendo que ela se
submeteria à cirurgia, à quimioterapia e à radioterapia. A primeira
cirurgia foi agendada para o dia posterior ao da minha última
prova de vestibular.

O pós-cirúrgico foi péssimo, ela não conseguia fazer nada


sozinha. Entretanto, essa foi a parte mais fácil, o pior ainda estaria
por vir. Os pontos da cirurgia inflamaram, não paravam de sair pus
e, a cada dia que passava, ficavam piores. Nós duas sofríamos de
forma silenciosa, uma pensando na dor da outra.

Nas semanas seguintes, fomos diariamente ao mastologista


que realizou cirurgia para retirar o tecido inflamado que crescia.
Durante esse período, percebi a dedicação do médico que a
assistia, ele era sempre muito paciente e compreensivo, nas vezes
em que minha mãe gritava e chorava de dor, ele sempre tentava
animá-la, dizendo que tudo iria melhorar. Com essa experiência,
compreendi que a prática médica não é apenas aquilo que se
aprende nos livros, mas, sim, perceber quais são as dificuldades
individuais de cada paciente e qual a melhor forma de confortá-lo.

Apesar de todo o esforço, era inevitável refazer a cirurgia,


tudo iria recomeçar, e ela já estava exausta, para piorar, ainda
faltavam a quimioterapia e a radioterapia. Para mim, nada
importava, o meu único objetivo era cuidar da minha mãe, por

116
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

consequência, comecei a adoecer, entrar em depressão. Foi


preciso dobrar minhas sessões de terapia, pois não aguentava
mais cuidar dela sozinha.

Paralelamente a todo esse sofrimento, minha mãe se culpava


por todo meu fracasso nas provas de vestibular. Então, no dia em
que eu, finalmente, passei para a faculdade de medicina, a
felicidade dela foi maior que a minha, acho que ela, enfim, viveria
sem essa culpa.

De forma simultânea ao início da minha faculdade, minha


mãe iniciou a quimioterapia. Com isso, eu não poderia cuidar dela
todos os dias. Ela teve que procurar apoio em outras pessoas,
mesmo assim, eu me sentia péssima, já que não poderia ajudá-la
da mesma maneira. Porém, aprendi que eu não precisava assumir
toda a responsabilidade do tratamento dela, havia outras pessoas
que poderiam fazer isso também.

Além da dificuldade de pedir ajuda para outras pessoas,


também tive de aceitar que ninguém iria cuidar dela com o mesmo
carinho que eu tive, mas que seriam outras formas de expressar o
amor por ela. Com a quimioterapia, cada dia era de um jeito, havia
dias bons em que ela estava animada e disposta, fazendo
caminhadas ao redor da casa, e havia dias péssimos em que ela
não conseguia sair da cama e descrevia o seu sentimento como se
alguém tivesse tirado toda a sua alegria.

Depois que acabou a quimioterapia, foi a vez da radioterapia,


e eu, inocentemente, achava que seria mais fácil, pois o pior, em
tese, já havia passado, ninguém fala o quanto a radioterapia
também é difícil. As primeiras sessões foram tranquilas, mas, no
decorrer do tratamento, começaram a aparecer as queimaduras e,
junto com elas, as dores intermináveis, a sensibilidade e o choro.

117
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Sua força diária vinha de outras pessoas que ela via na sala de
espera da radioterapia, tinham muitas crianças e idosos. Eles
sempre conversavam com ela e contavam as suas histórias de luta
e superação do tratamento. Esses anjos disfarçados, mesmo que
inconscientemente, deram mais força para a minha mãe suportar a
sua batalha pessoal.

Toda essa experiência me mostrou a necessidade de


amparar, escutar e cuidar de pacientes e me mostrou,
principalmente, a necessidade de que o tratamento seja contínuo.
É preciso respeitar o tempo de cada um para se recuperar. Além
disso, o suporte psicológico é tão importante quanto o tratamento
médico. Nunca esquecerei da importância de dividir a
responsabilidade sobre o paciente bem como da necessidade de
cuidar do cuidador que sofre juntamente com o doente.

A última notícia que ele gostaria de dar

Letícia Maia Zica

Dia 16 de janeiro de 2020 – um dia que irei lembrar a minha


vida inteira. Nesse dia, recebi uma das piores notícias. Sabe
aqueles dias que está tudo indo bem e, do nada, parece que o
mundo vira de ponta-cabeça? Rafa, um grande amigo de infância,
manda-me uma mensagem inusitada diretamente do hospital. Eu
imagino que foi a última coisa que eu esperava ouvir e, com
certeza, a última notícia que ele gostaria de dar. Li a mensagem e
fiquei um bom tempo paralisada, lendo e relendo, e com um
turbilhão de pensamentos. Pedi que me contasse detalhes e de
como chegaram ao diagnóstico, afinal, por estar cursando
medicina e por me preocupar, queria mais. Meu amigo estava com
câncer.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Rafael, 19 anos, queixa de tosse e febre há três dias, voltou


de uma viagem aos Estados Unidos há aproximadamente uma
semana. Foi atendido, e o médico pediu um raio-X, para excluir a
possibilidade de pneumonia. Assim que saiu o resultado, o choque
foi geral para todos os médicos: um tumor de 22 cm, no
mediastino, comprimindo o pulmão esquerdo quase
completamente. Após a biópsia, diagnóstico fechado como Linfoma
não Hodgkin.

Como esse tumor cresceu sem que ninguém percebesse?


Como um garoto tão jovem estava com um câncer tão severo?
Como estava assintomático, diante de um tumor tão grande? A
resposta está na irresponsabilidade médica, na medicina comercial,
que esquece que é uma vida humana na sua frente e não um jeito
de ganhar dinheiro sobre o convênio.

Um mês antes da sua viagem para os Estados Unidos, ele


havia ido ao hospital, com fortes dores na região lombar,
resolvendo procurar auxílio médico, com medo de ser pedras nos
rins. Ao ser atendido e ter sido submetido ao exame clínico quase
ausente, foi encaminhado para diversos exames. O primeiro exame
foi uma Ressonância Magnética de abdome total – no primeiro
corte, já é visível o tumor de 12 centímetros – tamanho mostrado
no exame – comprimindo a base do pulmão, além de diversos
linfonodos retroperitoneais aumentados. No laudo? Nenhuma
massa visível, nenhuma alteração encontrada. O segundo exame,
uma Tomografia Computadorizada, apresentou o mesmo
resultado. Deram alta, ele saiu do hospital apenas com a receita de
um anti-inflamatório. Não devia ser nada.

Um mês de diferença: 10 centímetros separando um mês do


outro; 10 centímetros que poderiam doer menos na quimioterapia;
10 centímetros a menos de tratamento, custos e sofrimento. Pedi

119
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

para ver os exames descartados como normais, o tumor é


facilmente identificável até por mim, apenas uma estudante de
medicina, em pleno quinto semestre. Pedi permissão para realizar
um exame físico nele. Estava completamente alterado: murmúrio
vesicular praticamente ausente no hemitórax esquerdo e bulhas
cardíacas hipofonéticas. Algo estava claramente errado, e o erro
ocorreu desde o início. Um exame físico bem feito, na primeira ida
ao hospital, teria identificado algo anormal e demonstrado cuidado
em analisar a vida que está na sua frente, não bastaria apenas
pedir um exame caro para o plano de saúde custear.

Conheci o lado mais forte do meu amigo, encarar um câncer


da forma que eu o vejo fazer é para poucos. O Rafa vivenciou,
anos antes do próprio câncer, o câncer de seu pai. Nunca vi ele se
abater ou desistir dos seus sonhos por nenhuma das situações,
sempre sorrindo e lutando firmemente. Eu estava preparada, junto
aos meus amigos, para prestar todo o apoio que ele precisasse,
mas a maior fonte de força veio a ser dele mesmo.

Esse foi um dos momentos mais comoventes que vivi, tanto


como amiga de anos, que sofreu muito ao saber da notícia, quanto
por ter sido, de certa forma, a referência dele para falar sobre o
assunto, tirar dúvidas e olhar os exames. Viver os dois lados da
situação é algo muito único e me trouxe muitas reflexões, e uma
delas foi como a medicina desviou de sua essência.

A medicina como arte tem se perdido ao longo do caminho. A


glamorização da profissão, por seu salário, é uma ideia
equivocada, e pouco é falado sobre isso. A comercialização da
medicina tem feito o sentido da profissão ser perdido. Não deveria
ser sobre ganhar dinheiro. É sobre cuidar do próximo, é sobre
entender que é o amor de alguém que está na sua frente, é sobre
empatia e aliviar a dor do outro.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

O terror do ciclo clínico

Nathalia Moura Ramos

Começo do quinto semestre do curso de medicina, mas a


sensação não era a mesma do início de um semestre comum.
Havia algo diferente: começamos o ciclo clínico, fase do curso em
que temos os primeiros contatos com o paciente, de fato, o que
significa que, finalmente, colocaríamos em prática tudo aquilo que
passamos dois anos estudando, em livros de semiologia, e
praticando nos colegas de classe. Foram quatro semestres nos
perguntando, constantemente, quando iríamos realizar, em um
paciente, a anamnese, o exame físico e aquelas tantas manobras e
quando iríamos observar aquelas muitas alterações e doenças
sobre as quais tanto líamos. Nesse momento, o entusiasmo e a
euforia tomavam conta de nós.

O dia havia chegado. Era uma terça-feira, à tarde, e iríamos


ao HRAN, para o nosso primeiro rodízio, na clínica médica. Quanta
pressão! Nessa hora, a animação havia sido dominada pelo medo,
pela apreensão, pela incerteza e por vários questionamentos.
Como será nosso primeiro paciente? Conseguirei realizar a
anamnese e o exame físico? Irei me lembrar de tudo? E se eu
esquecer algo? E se eu não souber fazer? Conseguirei contribuir de
alguma forma com aquele paciente? Olhando para o lado,
podíamos perceber todos os colegas com as mesmas dúvidas e
angústias, um tentando acalmar o outro, mas todos nervosos,
revisando os vários resumos de semiologia feitos ao longo do
curso. Preparados? Chegou a hora.

O professor distribuiu os pacientes para cada dupla, e agora,


sim, a responsabilidade estava conosco. Chegando ao leito, eu e

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

minha colega nos deparamos com uma paciente jovem, em torno


dos seus vinte e poucos anos. Começamos a entrevista, e a
situação foi fluindo. “Tudo bem, eu repito quantas vezes for
preciso”, “podem perguntar o que quiserem”, dizia a paciente. Ela
estava calma e confiando em nós, e aquilo nos tranquilizou. E,
assim, o exame ocorreu de forma tranquila, a insegurança não
tomava mais conta de nós, e conseguimos realizar as tarefas da
melhor maneira possível, dentro do nosso conhecimento. Ao final,
todos os alunos se reuniram com os professores, para discutirem
os casos clínicos e relatarem como havia sido a experiência de
cada um. A partir dos relatos, percebíamos que alguns colegas não
tiveram a mesma sorte que nós, atenderam a pacientes mais
ríspidos e a outros não tão compreensivos, contudo, mesmo com
as várias adversidades, todos concordavam que aquela experiência
havia sido melhor do que imaginávamos. Nosso papel ali era
realizar a anamnese e o exame físico, criar um raciocínio clínico
diante dos achados, tentar entender o que estava acontecendo
com o paciente e fornecer um diagnóstico, mas, sinceramente,
estávamos todos felizes apenas por termos completado aquele
desafio.

Hoje, algumas semanas após esse episódio, agora


terminando o rodízio de clínica médica, ainda longe de saber a
técnica perfeita ou de saber diagnosticar e tratar todos os
pacientes, entendi que o aprendizado se dá em um processo lento
de construção e que todos esses sentimentos vividos são inerentes
a novas experiências. Entendi que ainda teremos muitas situações
na prática médica em que não nos sentiremos completamente
seguros, porém, nosso papel é estudarmos ao máximo para que,
nesses momentos, tenhamos a convicção de que temos a base

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

para agir. Entendi, principalmente, que é de extrema importância


compreender esse processo e respeitá-lo. Tudo no seu tempo.

Esses sentimentos não são exclusivos de um grupo restrito


de estudantes de medicina. Estudos na área mostram que a
chegada do aluno ao ciclo clínico, momento em que ele terá os
primeiros contatos com o paciente, gera sentimentos de ansiedade
e de medo (DICHI; DICHI, 2006). O receio de incomodar, o
sentimento de não estar contribuindo com o paciente, a dificuldade
de não conseguir distinguir o normal do patológico são alguns dos
medos vivenciados, gerando sentimentos negativos que dificultam
o enfrentamento nos primeiros contatos com o paciente (COSTA et
al, 2018). Com a prática, a maioria dos estudantes relata mudança
no modo de encarar esse desafio, respondendo de forma positiva à
experiência, porém uma porcentagem significativa ainda reporta
sentimentos negativos (AZEVEDO et al, 2008; SOUSA-MUÑOZ et
al, 2011). Assim, torna-se importante atentar-se ao quanto essa
experiência pode interferir no aprendizado e na saúde mental do
aluno, devendo ser enfrentada de forma adequada o mais
precocemente possível, para que não influencie de maneira
prejudicial na formação e na prática médica (COSTA et al, 2018).

Infelizmente, ainda hoje, algumas faculdades não


contemplam essas questões, tratando a semiologia médica como
disciplina que foca uma abordagem ao paciente restrita a técnicas
físicas, enquanto assuntos ligados às vivências dos estudantes ou
à relação médico-paciente ficam em segundo plano ou nem sequer
são abordadas dentro do ensino curricular (AZEVEDO et al, 2008).
Em sua prática, o estudante consegue aprender sozinho alguns
princípios da relação médico-paciente, porém isso não exclui a
importância de que ele receba apoio durante esse processo de
aprendizagem (SOUSA-MUÑOZ et al, 2011). Assim, a fim de

123
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

enfrentar tais adversidades, a criação de espaços de discussão,


nos quais os alunos possam compartilhar suas emoções e seus
aprendizados, mostra-se benéfica, de modo a criar uma rede de
apoio que minimize a angústia sentida diante desses desafios
(QUINTANA et al, 2008). Outra estratégia é treinar a habilidade de
comunicação dos estudantes, contribuindo com a melhora da
relação médico-paciente. Com isso, o estudante se mostra mais à
vontade e seguro durante a entrevista, com melhora na
capacidade de escuta, no manejo de emoções negativas e na
superação do medo e da tensão. Dessa forma, contribui-se não só
para um melhor vínculo com o paciente, mas também para a
coleta de uma anamnese mais completa (BALDUINO et al, 2012).
Assim sendo, apesar dos obstáculos inerentes à transição para
uma nova fase do curso, com o auxílio da faculdade e dos
docentes, o estudante pode enfrentá-la de maneira muito mais
simples e natural.

Referências

AZEVEDO, Mariana Honório de et al. Iniciação ao exame clínico:


primeiras vivências do estudante de medicina na interação com o
paciente hospitalizado. In: XI Encontro de Iniciação à Docência.
Anais... João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
2008.

BALDUINO, Paula Martins et al. A perspectiva do paciente no


roteiro de anamnese: o olhar do estudante. Revista Brasileira de
Educação Médica, v. 36, n. 3, p. 335-342, 2012.

COSTA, Gilka Paiva Oliveira et al. Enfrentamentos do estudante na


iniciação da semiologia médica. Revista Brasileira de Educação
Médica, v. 42, n. 2, p. 79-88, 2018.

DICHI, Jane Bandeira; DICHI, Isaias. The agony of medical history


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124
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

SOUSA-MUÑOZ, Rilva Lopes de; SILVA, Isabel Barroso Augusto;


MAROJA, José Luis Simões. Experiência do estudante de semiologia
médica em aulas práticas com o paciente à beira do leito. Revista
Brasileira de Educação Médica, v. 35, n. 3, p. 376-381, 2011.

QUINTANA, Alberto Manuel et al. A angústia na formação do


estudante de medicina. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio
de Janeiro, v. 32, n. 1, p. 7-14, 2008.

Saudades de casa

Mateus Costa Campos

Em uma tarde de terça-feira, eu e o Tomás, minha dupla do


ciclo clínico, tivemos uma das primeiras grandes oportunidades
para desenvolver técnicas de práticas clínicas. A situação era no
início do quinto semestre de medicina, quando os alunos passam a
ter mais contato com os pacientes, colhendo suas histórias clínicas.
O cenário era o HRAN, em uma rotineira e tranquila tarde. Com
certeza, o medo do novo e a ansiedade eram nossas principais
barreiras. Ao encontrarmos com os professores, os quais
encaminhariam os alunos aos seus respectivos pacientes, a
ansiedade e as preocupações em como seria a consulta já estavam
no auge: se o paciente ia ser cooperativo, se iríamos conduzi-la da
melhor forma, se iríamos colher a história de maneira correta e,
principalmente, se conseguiríamos, de alguma forma, agregar algo
na vida daquele paciente.

Ao chegar no quarto de internação do José Santos, um


senhor de 82 anos, morador do entorno do Distrito Federal,
acompanhado de sua esposa, a senhora Rosa, nós nos
apresentamos e explicamos o que seria feito dali em diante. Os
anseios diminuíram gradativamente, José, muito tranquilo,
colaborou com a coleta da história e, juntamente com sua esposa,
apresentaram-se muito receptivos com nossa presença ali.

125
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Sua história baseava-se em uma síndrome do sistema


respiratório, apresentando dores nas costas e dispneia, a qual
evolui gradativamente, apresentando-se até durante pequenos
esforços. Após fazer acompanhamento na UBS perto de sua casa,
sem resolução dos seus sintomas, procurou o HRAN. Foi
diagnosticado com pneumonia e, prontamente, internado. O seu
quadro melhorou gradativamente a partir desse momento, porém
de maneira muito lenta. No momento da coleta da história, já
havia dois meses desde o dia da internação. A história correu bem,
sem importantes complicações e queixas, até mesmo grandes
elogios foram referidos à equipe que o acompanhava, como para o
próprio hospital. Porém, quando tocamos em assuntos de como ele
se sentia em relação à doença e como estava se sentindo
emocionalmente, foi perceptível a expressão de tristeza no seu
rosto. José relatou a saudade de casa e o convívio com seus
animais de estimação, três cachorrinhos, os quais eram sua
companhia diária.

A partir desse momento, percebi e refleti a complexidade em


ser médico. O trato com o paciente era habilidade mais importante
no momento. O quadro de José era estável, porém sem previsão
de alta. Dessa forma, vi-me em uma linha tênue entre confortá-lo
e criar falsas expectativas. Assim, fiquei paralisado, não sabia o
que dizer, apenas desejei o melhor e que Deus o abençoasse. Ele
ficou muito agradecido com nossa presença e nos desejou o
melhor em nossas futuras profissões.

De certa forma, isso mudou meu dia, a ansiedade e o medo


pareciam ter ficado insignificantes perto da grandeza e do alívio
que a medicina pode proporcionar tanto para os profissionais de
saúde como para os pacientes. A sensação de ter impactado a vida
de alguma pessoa de forma positiva é simplesmente gratificante, e

126
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

a sensação de poder ter ajudado mais sempre é um motivo


motivacional para melhorar a prática médica. Com isso, percebi
quantas habilidades um bom médico precisa ter. Pois, no caso
apresentado, o qual não era dos mais complexos, já eram de
grande valia habilidades interpessoais. E a famosa frase “médicos
não tratam doenças, tratam pessoas” nunca fez tanto sentido a
partir desse dia.

Alguns tão pequenos que mais pareciam bonecas

Beatriz Reis Afonso

Ao final do meu primeiro semestre na faculdade de medicina,


eu e mais duas colegas tivemos a oportunidade de acompanhar
uma professora, em um plantão no HMIB. Era minha primeira vez
dentro de um hospital, como estudante de medicina, e era como
um sonho se tornando realidade, uma vez que, mesmo antes de
entrar para a faculdade, meu desejo sempre foi me especializar em
ginecologia e obstetrícia.

Ao chegar no hospital, a professora nos apresentou a


Unidade de Terapia Intensiva (UTI) neonatal. Foi um choque para
mim. Lá, estavam inúmeros bebês, todos em incubadoras, alguns
tão pequenos que mais pareciam bonecas. A maioria estava
intubada, com vários aparelhos ligados a eles. Olhando todos, um
por um, vendo seus nomes escritos, pensei no quanto cada um
deles já sofreu e no quanto deveria ser doído para os pais terem
um filho naquela situação. Mais tarde, naquele dia, vi uma cena
que me marcou profundamente: um dos bebês que estava na UTI
recebeu alta. Ver a alegria e a emoção dos pais, ao receber essa
notícia, foi uma das coisas mais lindas e verdadeiras que eu já
vivenciei.

127
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Após visitar a UTI neonatal, fomos para a sala de parto, onde


ficamos o resto do dia. Como já disse, ser ginecologista e obstetra
sempre foi meu sonho, e poder acompanhar um parto fez esse
desejo se aflorar ainda mais. Ao chegar na sala de parto, vi
situações extremamente opostas. Lá, além das mulheres que estão
em trabalho de parto, também ficam as mulheres que sofreram
aborto. Então, era muito comum que, em um box, estivesse um
casal cheio de alegria que acabou de ter seu filho e, em outro, uma
mulher aos prantos por ter acabado de perder o seu bebê. Mesmo
não tendo tido contato diretamente com as mulheres que estavam
passando por aborto, eu podia ver, no rosto delas, toda a tristeza
que sentiam.

Ainda na sala de parto, era muito comum ouvir gritos.


Inicialmente, confesso que me assustei, por ser uma situação nova
para mim, mas, depois que vi de perto o trabalho de parto,
entendi que o grito é uma das formas de a mulher se expressar
nesse momento tão difícil. Logo que chegamos, uma mulher já
estava na fase de expulsão e pudemos acompanhar. As
enfermeiras estavam correndo para pegar tudo que precisavam, a
mulher, com muita dor, e o marido, tentando acalmar a sua
esposa, mesmo que sem êxito. E, em minutos, o bebê nasceu.
Observar o casal chorando de emoção ao ver o filho pela primeira
vez encheu o meu coração de alegria. Foi emocionante. Mas,
depois de toda essa emoção, a realidade continuava. A mãe teve
muitas lacerações, e, enquanto a enfermeira costurava tudo, eu
pensava no quanto a mulher é forte por conseguir passar por tudo
isso. Horas de trabalho de parto, dores insuportáveis e tantas
lesões, para trazer uma vida ao mundo.

Mais tarde, nesse mesmo dia, pude participar de outro parto


natural. Dessa vez, a mulher estava acompanhada da irmã. O

128
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

parto foi rápido, mas, quando o bebê nasceu, havia um problema.


Ele estava roxo e não responsivo. Rapidamente, a médica pegou o
recém-nascido e o levou para uma área de primeiros cuidados.
Como eu acompanhei a médica, não pude ver a reação da mãe ao
ter seu filho levado às pressas, mas acredito que deva ter sido
extremamente difícil. Inicialmente, a médica fez aspiração das vias
aéreas, enquanto esfregava o bebê com um pano. Aos poucos, ele
foi ficando rosado e mais responsivo, como um milagre. Depois de
o recém-nascido ser estabilizado, ele foi levado novamente para a
mãe, que se emocionou muito ao recebê-lo.

Esse dia ficará sempre marcado na minha memória. Eu


passei a admirar ainda mais as mulheres que passam por isso e
são responsáveis por dar à luz a uma vida. Vivenciar tudo isso me
fez querer ainda mais ser médica e querer ajudar essas mulheres
nesse processo.

Quando meu pai falou “ele voltou” quase dei um


grito

Ana Luísa Jaramillo Garcia

Sempre tive o sonho de ser médica, quando criança, na


verdade, falava que seria médica de manhã, enfermeira à tarde e
cantora à noite. Talvez as duas primeiras profissões tenham sido
influência dos meus pais, um é médico, e a outra, enfermeira. A
última profissão, possivelmente, seja o lado lúdico de uma criança
falando. Enfim, sempre tive meus pais como inspiração maior,
como seres humanos incríveis e profissionais sensacionais.

Quando mais velha, decidi que era a medicina. Mais velha?


Sim, em vez de 6, 12 anos. Com isso, falava a quem quisesse
ouvir que queria medicina. Meus pais, com um misto de orgulho e

129
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

apreensão, sempre apoiaram o meu sonho. E, quando finalmente


veio o vestibular e a aprovação não chegou, a apreensão foi maior
que o orgulho: “vão ter coisas mais difíceis na medicina, não se
deixe abalar, mas talvez você não fez o suficiente” era a mão que
batia e acariciava. Então, no cursinho, meu pai me convidava para
os procedimentos que ele fosse realizar: “para te animar e te dar
mais gás, Analu”. Algumas vezes o acompanhei, com o olhar
brilhando e a certeza de que queria estudar o quanto fosse para
chegar ao tão almejado sonho: a medicina.

Foi exatamente em uma das vezes que acompanhei o meu


pai em um procedimento que aconteceu a coisa mais
extraordinária que eu já vivi. Meu pai é médico, cardiologista
pediátrico e hemodinamicista, e, nesse dia, ele iria realizar um
cateterismo em um menino de, aproximadamente, dois anos. O
paciente era acompanhado pelo meu pai desde o seu nascimento,
já tendo realizado diversos procedimentos e cirurgias devido a
defeito congênito no coração.

Ao chegarmos à UTI, onde o paciente estava acompanhado


da mãe e do pai, senti um misto de gratidão e de apreensão nos
olhos deles. Gratidão, por ainda terem o filho com eles, e
apreensão, por não saberem se ele seguiria ali. Meu pai, sempre
muito atento e carinhoso, explicou todo o procedimento para a
família, desenhou um coração no verso de uma folha e mostrou
tudo o que seria realizado no centro cirúrgico. Os pais a criança se
mostraram tão felizes com a atenção que o médico demonstrou e,
com os olhos brilhando, disseram: “confiamos o nosso filho ao
senhor, doutor, sabemos que o senhor faz tudo o que precisa ser
feito”. Nesse momento, senti uma confiança tão grande desses
pais no médico do filho deles que, novamente, o desejo de um dia
poder ajudar alguém como o meu pai ajudou essa família retornou.

130
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Assim, entramos ao centro cirúrgico para conferir os


equipamentos e os materiais que seriam utilizados, e eu sempre
ali, como uma sombra, seguindo meu pai. Quando tudo estava
preparado, fomos chamar o paciente, meu pai pediu para que a
equipe deixasse a mãe do neném acompanhá-lo até que ele fosse
sedado, para que ficasse mais tranquilo. Assim, enquanto a mãe se
trocava para poder adentrar o centro cirúrgico, meu pai me levou
ao lado do berço em que o paciente estava e me disse: “fica aí
brincando com ele, deixando ele mais tranquilo, enquanto a mãe
dele se troca. Eu vou entrando na sala”. Esse simples comando me
fez sentir tão importante, como se eu, realmente, pudesse ajudar
aquele pequeno ser humano a ter alguns minutos leves e
tranquilos.

Assim, fiquei ali, brincando com meu novo amigo e, ao


mesmo tempo, rezando para que nada acontecesse àquele
pequeno. Quando a mãe chegou, saí e fui, novamente, ao canto da
sala, para esperar que meu pai me chamasse para entrar no
centro cirúrgico. Entrei, o paciente foi sedado, a mãe saiu, meu pai
começou o procedimento, sempre tentando me explicar cada
passo, cada movimento. Eu sempre maravilhada com a destreza
do meu pai, com o respeito e o amor que ele colocava em cada
etapa do procedimento.

Já para o fim da cirurgia, quando eu estava quase


comemorando que o meu amiguinho tinha sido forte e ia poder
voltar para os pais dele, ele teve uma arritmia, uma arritmia forte,
eu acho, mas acreditava que arritmias vinham e voltavam,
espontaneamente. Escuto meu pai falar: “ele está parando, pega o
desfibrilador”, mas como? Se tudo estava correndo bem, se já
estava quase acabando, se o aparelho ainda estava apitando e não
estava com aquele sonoro piiiiiiiiii, o qual aparece nos filmes

131
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

quando alguém morre? E lá vai meu pai. Ele pegou duas pás
pequeninas do desfibrilador e chocou o bebê. Chocou o bebê igual
chocam os adultos nos filmes. E eu voltei a rezar, a rezar muito,
pensando que esse neném precisava voltar para os pais dele,
aqueles pais que tinham os olhos brilhantes de esperança e de
amor. E, nesse momento, eu já não queria saber de detalhes
técnicos do procedimento nem o que tinha acontecido para que ele
tivesse tido a arritmia, só pensava que, fosse o que fosse, ele
precisava voltar.

E foi assim, do mesmo jeito que a arritmia veio, ela foi


embora, deixando um neném loirinho e de olhos azuis muito bem e
saudável. Quando meu pai falou “ele voltou”, quase dei um grito,
como se comemorasse um gol, mas me contive, talvez por
vergonha, talvez por medo de alguma coisa acontecer de novo
com aquele pequeno ser humano. No entanto, nada aconteceu, o
procedimento terminou, foi um sucesso e adiou a próxima cirurgia
do neném por, aproximadamente, cinco anos. Mais cinco anos dele
com a sua família, mais cinco anos dele sem precisar passar por
esse estresse entre a vida e a morte.

Quando tudo acabou, fui com meu pai falar com a família,
dar a notícia de que tudo tinha dado certo. Meu pai estava com os
olhos marejados, e eu, da mesma forma. A mãe abraçava meu pai,
o pai abraçava meu pai, os dois chorando. Como eu não chorei
nesse momento, eu ainda não sei. Mas, assim que entrei no carro
com meu pai, para irmos de volta para casa, aí, sim, chorei. Chorei
muito. Chorei, talvez de alívio, talvez de felicidade, não sei ao
certo. Mas ali, no carro com o meu pai, tive certeza de que esse
era o sentimento mais puro que eu já tinha sentido, o de gratidão,
por ter visto a vida e a morte em um momento tão intenso e tão
lindo.

132
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Surpreendida pelo encontro!

Larissa Dumaresq Oliveira Montenegro

No dia 10 de março de 2020, no HRAN, às 13 horas, iniciei


meu primeiro dia de rotinas de atendimento aos pacientes da
enfermaria de infectologia, designados pelos professores do eixo
educacional Habilidades e Atitudes do quinto semestre do curso.
Estava apreensiva, pelo novo mundo que se abria à minha frente,
mas muito empolgada com a possibilidade de sentir,
verdadeiramente, a realidade da minha futura profissão tão
sonhada, e reflexiva frente à realidade que iria encontrar com os
pacientes, com uma cobrança interior de dar sempre o melhor
para aqueles que a mim recorrerem. No meu interior, sentimentos
se emaranhavam, se misturavam e se ressignificavam a cada
instante. Tudo isso ocorria enquanto me dirigia para o
apartamento 509.

Boa tarde, senhor! Exclamei na porta! Um rapaz de sorriso


aberto e olhar firme, olhou-me e disse: boa tarde, doutora. Era o
Daniel, 20 anos, sexo masculino, nascido em 19/8/1999, natural e
residente em Planaltina. Portador de HIV positivo. Ele estava
totalmente empático ao meu atendimento, colaborativo e ansioso
pelo meu cuidado. Logo percebi que aquele garoto/menino
procurava muito mais do que uma técnica, pois ele já era
consciente de todo o quadro clínico pelo qual estava passando,
uma vez que, com certeza, outros profissionais já haviam
esclarecido a situação atual dele. O meu primeiro paciente da vida
– assim o denominei – procurava acolhida, almejava uma escuta
ativa da minha parte.

133
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Ao iniciar o exame físico, o paciente começou a nos contar


toda a sua trajetória, falou de seus sonhos e de suas expectativas
para o futuro, mostrou-nos os quadros que ele estava pintando no
quarto do hospital. Ele transformou o cenário, que, para muitos
seria de tristeza e desalento, em um pequeno universo de sonhos
e de expectativas de um futuro que transcendia as paredes
daquele nosocômio. Ainda surpreendida, como no início do meu
atendimento, continuava ouvindo aquele rapaz/menino, deixando-
me levar pelo seu universo de sonhos e perspectivas, mesmo ele
estando à frente de um diagnóstico desafiador.

Ao final do exame físico, o nosso paciente recebeu todas as


informações técnicas propostas naquele atendimento. Quando
anunciamos o final da consulta acadêmica, ele pediu para que
ficássemos mais um pouco, queria continuar a nossa conversa,
queria a continuidade da escuta ativa. Ficamos um tempo precioso,
ouvindo aquele rapaz, que tinha o sonho de ser psicólogo, tinha o
sonho de ouvir e de acompanhar pessoas. Ao meu ver, o
diagnóstico clínico que ele tinha, naquele momento, parecia não
ocupar o mesmo patamar de importância do que suas boas
expectativas para um futuro próximo. Fiquei muito surpresa, pois a
minha expectativa pessoal era de encontrar um cenário muito
diferente do que me foi apresentado.

No instante da despedida, ele nos pediu para retornar outro


dia, para dar um “alô”, para dizer “oi”. Deixamos nosso paciente
muito feliz, muito cheio de vida, de sonhos e de expectativas, e eu
aprendi muito com ele, aprendi que as situações podem ser
transformadas, dependendo do ângulo pelo qual as enxergamos.

Entrei naquele quarto, com a expectativa de atender a


alguém, de ajudar alguém, mas, ao final, percebi que quem foi
mais beneficiado de todo atendimento fui eu, com isso, levarei a

134
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

experiência pelo resto da minha vida. A concepção do senhor


Daniel frente ao seu diagnóstico, ensinou-me a me ressignificar
diante das circunstâncias da vida, ajudou-me a ampliar minha
visão como futura médica e fez-me valorizar ainda mais a escuta
ativa com os meus pacientes. Obrigada, senhor Daniel, sigo
torcendo para que os seus sonhos se realizem e que você
transmita sua mensagem para muitas pessoas. Sou grata por me
ajudar a construir o caminho.

REFLEXÃO DA AUTORA DA NARRATIVA

Nunca podemos gerar expectativas para um atendimento


médico, antes de conversar com o paciente; mesmo diante dos
diagnósticos mais difíceis, sempre haverá alguém que encontrará
flores no caminho.

135
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Ana Luiza Antony Gomes de Matos da Costa e Silva

Suspiro

Um minuto de silêncio:
Preciso ouvir meu coração”
Ana Claudia Quintana Arantes

A preciosa medicina humanizada – que é tão falada e tão


ambicionada no atendimento médico – atualmente, é vista como
raridade, está nos cartazes de procura-se e desaparecidos, está
em escassez, assim como vários dos recursos naturais. Mas,
diferentes deles, a medicina humanizada não é um recurso finito,
ela pode e deve ser reinventada para que volte e comece a ser
encontrada em abundância. A humanização representa uma
síntese de estratégias que permitem maior conexão e empatia com
o paciente e seus movimentos, ações, histórias e pensamentos
(MUCCIOLI, 2007).

Apesar da grande descrença no atendimento humanizado, ele


ainda existe. Neste capítulo, serão mostradas várias situações
vivenciadas por estudantes de medicina que foram marcadas por
atitudes humanísticas. As narrativas serão apresentadas com o
intuito de tornar a medicina humanizada mais real e a fim de

136
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

exemplificá-la. Também serão abordados mecanismos e conceitos


que ressaltam a medicina humanizada assim como perspectiva
mais subjetiva e aspectos que tornam essa humanização especial.

A medicina pode ser vista como uma ciência biológica e


humanista, de conhecimento profundo e objetivo do corpo
humano, sendo muitas vezes esquecido que a medicina é também
uma arte. Patch Adams, Nise da Silveira e numerosos outros
médicos são tão artistas quanto Van Gogh e Salvador Dali, eles
desempenham a arte da cura, da investigação, da observação e da
percepção do ser humano com todas as suas peculiaridades. É
entendendo essa arte que podemos caminhar em direção à
humanização médica, percebendo como a nossa ciência é parte
maior que puramente biológica. Assim, é possível observar a
humanização médica, oriunda de um meio artístico, como
descreveu Moacyr Scliar escritor brasileiro, formado em medicina:
“o médico vê na palavra um recurso terapêutico, o escritor parte
dela para a criação artística. Há momentos, porém, em que
literatura e medicina se superpõem. Escritores escrevem sobre
doença. Médicos procuram dar uma forma literária a seu trabalho”
(SCLIAR, 2005).

Atualmente, os médicos precisam lidar com a pressão de


serem remunerados e avaliados por metas quantitativas, sendo
considerado um profissional pouco produtivo ou ineficiente quando
não cumpre as metas esperadas. Essa pressão corrobora para o
não estabelecimento do rapport – criação de uma relação de
empatia com outra pessoa –, para a automatização da prática e o
esquecimento de pontos cruciais da carreira médica que estão
cada vez mais em falta, como o olhar no olho, o lembrar o nome e
o perceber cada paciente individualmente (SALLES, 2010).

137
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Visto o desencanto das pessoas com seus médicos, conforme


mencionado por Muccioli et al (2007), a busca pelo atendimento
mais humanizado nas práticas da saúde vem sendo debatida,
marcadamente, desde 1980, passando a compor as políticas
públicas de saúde, com destaque para a Política Nacional de
Humanização do Ministério da Saúde. Essa política foi lançada em
2003 e busca colocar em evidência os princípios do SUS na prática
cotidiana. A implantação da política do SUS vem acompanhada de
maior demanda da população por atendimento mais humanizado.
Levantamento feito em maio de 2020 questionou qual a maior
dificuldade enfrentada pelo usuário que busca o sistema de saúde.
A humanização do atendimento foi apontada como a segunda
principal dificuldade (21,3%), atrás apenas do tempo de espera
(25,2%). Valores e atitudes, como empatia, confiança,
comunicação, visão integral ou mais aprofundada do paciente, são
atributos coletados nesse levantamento que descrevem o que o
usuário entende por atendimento humanizado (RIOS; SIRINO,
2015).

Existem estratégias de comunicação para o estabelecimento


da relação médico-paciente, como o rapport, a medicina centrada
na pessoa e as táticas de entrevista, como descritas por Daniel
Carlat (2006), em seu livro Entrevista psiquiátrica. O
conhecimento e o aprendizado dessas estratégias proporcionam
mais maturidade emocional, para que seja possível o
estabelecimento de relação equilibrada, composta por confiança e
honestidade.

Carl Rogers, psicólogo humanista, reitera, em seus trabalhos


sobre a comunicação terapêutica, a importância da escuta
qualificada da percepção da experiência do cliente e do apoio à sua
autonomia. O paciente é transformado em parte central do

138
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

processo e é capaz de caminhar em direção ao estabelecimento de


uma relação de confiança. Segundo Carl Rogers (1983 apud
MIRANDA; FREIRE, 2012), “quando efetivamente ouço uma pessoa
e os significados que lhe são importantes naquele momento,
ouvindo não suas palavras, mas ela mesma, e quando demonstro
que ouvi seus significados pessoais e íntimos, muitas coisas
acontecem”.

A medicina centrada na pessoa tem crescido como uma


demanda oposta à medicina que, historicamente, caminhou
priorizando a doença em detrimento da pessoa que está doente,
modelo conhecido como biomédico, uma metodologia objetiva que
não compreende a subjetividade do paciente, com todas as suas
queixas e como elas estão relacionadas, e não leva em
consideração a perspectiva do paciente e a sua experiência do
adoecer (BARBOSA; RIBEIRO, 2016).

Esses mesmos autores evidenciam que o método clínico


centrado na pessoa foi definido e estudado por Carl Rogers, como
um meio de estabelecer escuta ativa e qualificada, com
entendimento integral da experiência da pessoa com a sua doença
– perspectivas, contexto social, impressões –, para construir um
plano terapêutico concordado entre médico e paciente, abrangendo
todas as queixas abordadas e percebidas, com estímulo à
autonomia e ao protagonismo no processo, e estabelecendo a
promoção de saúde. Em 1975, Rogers formulou três importantes
condições para a formação da relação com o paciente: a empatia,
a autenticidade e a aceitação positiva incondicional – consideração
genuína pelo cliente e suas experiências.

As três características citadas acima não são desenvolvidas


do dia para a noite, por isso, é tão importante que assuntos como
esses sejam abordados e vivenciados na graduação médica.

139
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Considero o desenvolvimento da empatia muito difícil. Como


colocar-se no lugar de uma pessoa que viveu uma realidade
completamente diferente da minha, que passou por dificuldades
que eu nunca sonhei em passar? Como entender um paciente que
passou por relações sociais totalmente diversas, podendo, até
mesmo, ter vivenciado situações abusivas? É possível praticar a
empatia plenamente? Acredito que, diante de tantas possíveis
vidas diferentes, é crucial o desenvolvimento de sabedoria
emocional – aprender a conhecer as pessoas, identificar pontos
sensíveis, compreender como respeitá-las e, aos poucos, entender,
internamente, o conceito de empatia. Apesar da vivência de
alteridade radical na qual somos lançados ao longo do curso, um
novo mundo de experiências surge aos nossos olhos.

Durante o processo de aprendizado na faculdade de


medicina, temos a oportunidade de vivenciar o SUS, na prática,
em comunidades de baixa classe social. Essa experiência permitiu,
ao passar dos semestres, que conhecêssemos médicos com
atitudes inesquecíveis tanto positivamente quanto negativamente.
Perceber, comparar e entender essas atitudes têm poder de
modulação sobre como pretendemos seguir a prática médica. Foi
perceptível que as abordagens mais humanizadas estimulam maior
vínculo e apresentam resolutividade mais abrangente dos
problemas e das doenças. Essas vivências nos levam de novo ao
desenvolvimento da empatia, que é um processo de perceber a dor
do outro, como se estivéssemos a sentindo em nós mesmos. Ter
as experiências positivas é muito enriquecedor, mas, cada vez
mais, percebo a importância de passar por experiências negativas,
complicadas e difíceis como as das histórias que serão narradas no
capítulo sobre morte e morrer. Momentos difíceis nos ensinam
sobre humanidade e sobre a singularidade de cada pessoa. As

140
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

doenças podem ser similares, mas as experiências de adoecimento


são absolutamente distintas, na medida em que contemplam
expectativas, crenças, limiar de dor e relacionamentos individuais.

Praticar a medicina humanizada é um ato de atenção e


observação dos seres humanos que nos confiam sua saúde
corporal, física e mental. O estabelecimento de relações de
empatia e confiança não apenas auxilia na manutenção da saúde
mental dos profissionais como também proporciona melhores
resultados na saúde física e biológica do paciente, com seguimento
de tratamentos e percepção integral de como a doença afeta as
pessoas de forma mais eficaz. Desse modo, fica explícita a
importância da prática e do ensinamento humanístico na
graduação de medicina, para que os profissionais do futuro possam
dar continuidade ao processo de humanização que está sendo
construído.

A elaboração de narrativas médicas representa um aspecto


essencial na formação médica. Somos estimulados a observar a
medicina com outros olhos, além de proporcionar novo olhar
diante das distintas camadas sociais. As narrativas são um método
interpretativo do simbolismo das ações, dos eventos e das
instituições, por constituírem o registro de experiências (TAVARES,
2017) e permitem que façamos uma autoanálise crítica de
comportamento sobre as situações que passamos e que vemos as
pessoas passarem, proporcionando visão ampla das diferentes
realidades de vida.

Além disso, as narrativas permitem que entremos em contato


com nossos sentimentos, às vezes, mais profundos, dos quais não
fomos encorajados a falar ou não tivemos espaço para relatar, mas
que, de alguma forma, ficaram marcados nos nossos
pensamentos, sonhos e até atitudes. Ter um local seguro para

141
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

expressar esses sentimentos é crucial para o desenvolvimento das


características humanizadas do médico. Os ambientes social e
acadêmico propiciam o bloqueio da expressão de nossas emoções,
no entanto, sentir é a mais nobre característica humana. É preciso
aprender a escutar os sentimentos, a lidar e conhecer momentos
de estresse, de tristeza e de ansiedade, sobretudo a nossa
humanidade, para não perder a empatia, a compaixão e a conexão
com o outro.

As narrativas apresentadas neste capítulo são histórias


vivenciadas pelos meus colegas, que apresentam situações
cotidianas, e o que as tornam especiais são a atenção, o cuidado e
o diferencial de atendimento dos profissionais nas diversas
situações. Essas narrativas possibilitam a transformação de
situações cotidianas e rotineiras em memórias e aprendizados
perenes. Dessa forma, atividades como essas permitem ao aluno
vislumbrar cenas de medicina humanizada e aprender como elas
são essenciais para a prática médica.

Referências

BARBOSA, Mírian Santana; RIBEIRO, Maria Mônica Freitas. O


método clínico centrado na pessoa na formação médica como
ferramenta de promoção de saúde. Revista Médica de Minas
Gerais, v. 26, supl. 8, p. S216-S222, 2016.

CARLAT, Daniel J. Entrevista psiquiátrica. 2. ed. Porto Alegre:


Artmed, 2006. v. 1.

MATTA, Gustavo Corrêa. Princípios e diretrizes do Sistema Único


de Saúde. In: MATTA, Gustavo Corrêa; PONTES, Ana Lucia de
Moura (Org.). Políticas de saúde: organização e operacionalização
do Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/FIOCRUZ,
2007. p. 61-80.

142
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

MIRANDA, Carmen Silvia Nunes de; FREIRE, José Célio. A


comunicação terapêutica na abordagem centrada na pessoa.
Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 64, n. 1, p. 78-94, 2012.

MUCCIOLI, Cristina et al. A humanização da medicina. Arquivos


Brasileiros de Oftalmologia, São Paulo, v. 70, n. 6, 2007.

RIOS, Izabel Cristina; SIRINO, Caroline Braga. A humanização no


ensino de graduação em medicina: o olhar dos estudantes. Revista
Brasileira de Educação Médica, v. 39, n. 3, p. 401-409, 2015.

SALLES, Alvaro Angelo. Changes in patient-physician relationship


at the informatization age. Revista Bioética, v. 18, n. 1, p. 49-60,
2010.

SCLIAR, Moacyr. A face oculta: inusitadas e reveladoras histórias


da medicina. 2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2005. 222 p.

TAVARES, Luciana de Almeida. Medicina narrativa: o significado de


humanização para estudantes de medicina. 2017. Dissertação
(Mestrado em Ciências Médicas) – Faculdade de Medicina de São
Paulo, São Paulo, 2017.

NARRATIVAS

Era o meu primeiro rodízio

Eduarda Luz Barbosa Alarcão

Era o meu primeiro rodízio de clínica médica, e, como


esperado, havia grande expectativa nessa consulta,
principalmente, levando em consideração que eu seria a médica
principal da minha dupla. Nós havíamos escutado todos os tipos de
relatos possíveis de outros colegas veteranos, tanto sobre
experiências com o paciente quanto sobre a receptividade e a
exigência dos professores, o que tornava a ansiedade ainda maior.

Chegamos, então, com todas as nossas expectativas e


medos, na enfermaria do quinto andar do HRAN, onde os
professores estavam nos esperando. Lá, fomos brevemente

143
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

instruídos acerca dos pacientes, e, depois, cada dupla seguiu para


o quarto dos respectivos pacientes.

Eu e a minha dupla fomos ao encontro da nossa paciente e,


ao entrarmos no quarto, deparamo-nos com todos os leitos
ocupados. No canto esquerdo, havia uma mulher jovem, por volta
dos seus 30 anos, com um semblante feliz e um olhar tranquilo,
que atendeu por Fernanda, e, assim, conhecemos a nossa primeira
paciente.

Ela, com uma voz alegre e toda a paciência do mundo,


começou a nos contar sobre seus sintomas nos últimos oito meses,
uma dor torácica, associada a dispneia, febre, tosse seca e vômito.
Além disso, relatou a sua trajetória de diagnósticos inconclusivos,
quatro tratamentos malsucedidos e a sua vinda, esperançosa, para
Brasília, em busca de um médico que pudesse ajudá-la bem como
melhor estrutura hospitalar, uma vez que ela morava no interior
da Bahia.

Aqui, em Brasília, ela foi diagnosticada com derrame no


pericárdio, derrame pleural e presença de alteração no miocárdio e
ainda estava esperando o resultado do teste para lúpus. Mesmo
assim, apesar de toda a complexidade e das incertezas do seu
caso, Fernanda seguiu por toda a consulta bem-humorada,
cooperativa e trazendo leveza – provavelmente, sem nem mesmo
perceber – para esse momento, o qual para nós, estudantes do
quinto semestre, era extremamente esperado e trazia várias
expectativas e receios.

No fim da consulta, agradecemos a Fernanda pela paciência e


falamos que, na semana seguinte, voltaríamos para visitá-la, se
ela ainda estivesse internada, é claro. Na terça seguinte, voltamos
ao HRAN, no entanto, Fernanda não estava mais lá, então, nunca

144
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

tivemos a chance de saber o seu real diagnóstico e o que tinha


acontecido com ela. Tenho certeza de que nunca esqueceremos
dela, uma pessoa que, mesmo entendendo toda a complexidade do
seu caso e com todas as incertezas dele, não deixou que os
sentimentos de tristeza, insegurança e ansiedade a consumissem,
trazendo, para a sua vida e para as pessoas ao seu redor, leveza e
confiança na melhora de sua condição clínica.

Um novo olhar, uma nova vida

Camila Brito de Oliveira Aguiar

Era um dia de domingo, o início de uma semana inimaginável


para Manoela. Sentia-se indisposta desde o amanhecer, e uma dor
de cabeça intensa a perturbava como nunca. Ao final da tarde,
sofreu um desmaio em sua casa e logo foi levada pelo Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), ao Hospital Lúcio Rebelo.
Ainda desacordada, foi prontamente avaliada pela equipe médica e
submetida aos exames necessários, sendo posteriormente
encaminhada à UTI. Uma de suas irmãs, que a acompanhou até o
hospital, esperava ansiosamente por uma palavra daquela equipe,
ainda sem entender o que, de fato, estava acontecendo. Foi
quando um médico foi ao seu encontro e lhe comunicou que
Manoela havia sofrido um AVC Hemorrágico, em tronco cerebral, e
que o seu quadro era gravíssimo. Ressaltou, ainda, que ela poderia
não sobreviver às próximas 24 horas e, caso sobrevivesse,
certamente, apresentaria grandes sequelas. Naquele momento,
sua irmã afirmou que sua família confiava em um Deus que pode
tornar possível o que é impossível aos nossos olhos e que, se
assim fosse a Sua vontade, Ele poderia trazê-la de volta a uma
vida plena.

145
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Aquela situação mais parecia um pesadelo. Como era


possível uma jovem enfermeira, com 42 anos de idade, ativa,
saudável, alegre, cheia de planos, de uma hora para outra, estar
intubada, em coma, recebendo uma “sentença” como essa? Como
isso havia acontecido? Eram muitos os questionamentos daquela
família que havia sido atropelada por essa tragédia, mas cuja força
e fé possibilitaram superar o infortúnio e crer, durante todo o
tempo, que havia esperança, mesmo diante do parecer que tinham
recebido.

Ainda naquela noite, Manoela foi submetida a um


procedimento endovascular, o qual foi de suma importância para a
preservação da sua vida naquele momento. Por quinze dias, ela
permaneceu na UTI, e, em todos eles, sua família recebia
informações expressas a respeito da gravidade do seu caso. O
prognóstico era realmente sombrio, mas estar viva até ali já era
verdadeiramente uma dádiva.

Aos poucos, pequenas vitórias aconteciam. Recebeu alta para


a enfermaria, traqueostomizada, porém já não dependia mais da
ventilação mecânica. Já abria os olhos, apesar de ainda não
conseguir movimentá-los devidamente. Ouvia bem as pessoas,
porém não conseguia dizer uma só palavra. Tentava responder aos
estímulos, mas o máximo que conseguia era um discreto
movimento de apertar a sua mão direita.

Dias depois, Manoela foi encaminhada a um centro de


reabilitação, a fim de ser submetida a uma avaliação médica, para
possível internação naquela Instituição. O trajeto até lá foi
marcante e doloroso. Aquela mulher, tão linda, tão jovem, estava
ali praticamente imóvel, afásica, apresentando sangramento nasal,
sentindo o seu corpo fragilmente balançar naquela ambulância.
Sentia dores também. Dores na alma. Sua angústia tornara-se

146
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

visível naquele momento. Lágrimas escorriam dos seus olhos. Era


como se ela estivesse presa dentro de si mesma, clamando por
socorro.

Durante a avaliação, Manoela não conseguia responder aos


comandos que lhes eram solicitados. Não conseguia realizar
movimento efetivo algum, além do abrir e do fechar dos olhos. E,
então, após analisar a história, observar os exames e finalizar
todos os testes previstos, o médico informa à sua irmã e à sua
sobrinha, as quais a acompanhavam naquele dia, que,
infelizmente, não seria possível recebê-la para internação, visto
que a paciente não tinha um bom prognóstico com relação ao
retorno de suas funções. Ressaltou que os pacientes que lá
ficavam internados eram aqueles que tinham possibilidades reais
de se reabilitarem e que este, dificilmente, seria o caso de
Manoela, que, deitada naquela maca, ouvia atentamente cada
palavra dita. Suas acompanhantes não conseguiram conter a
emoção e, chorando, suplicaram àquele médico uma chance. Mas,
antes disso, elas já haviam silenciosamente suplicado a Deus.

Em meio àquela situação, o médico decidiu liberar a


internação, porém já determinando que seria por um período
máximo de quinze dias, somente para que a sua família pudesse
receber um treinamento sobre como seriam os cuidados com
Manoela dali em diante, além de receber orientações a respeito
das adaptações que deveriam ser feitas em casa. Acontece que,
após dois dias, Manoela, surpreendentemente, começou a emitir
sons, a acompanhar objetos com os olhos, a movimentar,
sutilmente, o seu corpo e a recuperar expressões faciais. A partir
disso, cada dia era uma conquista nova! Toda a equipe daquele
centro de reabilitação se comovia com o que presenciava
diariamente e se empenhava com muita dedicação nesse longo

147
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

processo. Manoela era fortemente amparada pela fé, pelo cuidado


e pelo amor da sua família, que não a abandonou por nenhum dia
sequer.

Os quinze dias viraram cento e cinquenta. Naqueles três


meses, Manoela foi reorganizando-se num novo modo de viver,
definindo a sua forma de agir, de sentir e de encarar o inesperado
que a tinha acometido. Com persistência, foi recuperando seus
movimentos, reaprendendo a andar, a falar, a se alimentar
sozinha, a ter controle sobre suas necessidades fisiológicas e,
dessa forma, ganhou autonomia. Um dia de cada vez. E, assim, foi
avançando, revestindo-se de força, superando obstáculos, até que
chegou o dia em que pôde voltar para casa. Que dia feliz! Quanta
gratidão!

Na ocasião da sua alta, o médico que a havia recebido na


primeira avaliação afirmou nunca ter visto algo parecido em todos
os seus anos de prática médica. Estava ali, diante dos seus olhos,
um “acontecimento fora do comum, inexplicável pelas leis
naturais”, um “acontecimento formidável, estupendo”. Então, eis
que estava diante dele um milagre!

REFLEXÃO DA AUTORA DA NARRATIVA

Nossas histórias podem ser mudadas em fração de segundos,


e a esperança tem um poder curativo, tornando-se indispensável
para vencer as adversidades tanto para quem sofre quanto para
quem se dispõe a ajudar. “Grandes milagres”, como o desta
história real, podem não ocorrer corriqueiramente, mas os
“pequenos milagres” estão sempre à nossa volta e, muitas vezes,
cercam-nos de forma imperceptível. Enxergá-los e ter gratidão nos
traz uma nova maneira de olhar para a vida, ressignificando
experiências negativas e valorizando as pequenas bênçãos diárias.

148
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Transmissibilidade de saberes na medicina:


estava acompanhando meu pai em uma cirurgia

Júlia Dourado Paiva

Era um dia comum, um sábado. Estava acompanhando meu


pai em uma cirurgia, não sabia qual, não sabia quem, mas era
uma cirurgia, ou seja, uma oportunidade. Ao chegar ao hospital,
foi tudo novo. Tantas salas e portas diferentes. Tantas pessoas de
pijamas cirúrgicos, máscaras, jalecos. Não entendi como aquele
ambiente tão fechado podia ser tão iluminado. Tudo parecia um
filme. Entramos em um quarto simples, com uma maca, um sofá,
banheiro e uma janela do lado direito. O paciente estava deitado,
conversando com sua namorada, aparentava ser jovem. E,
realmente, era, 27 anos, e tinha um osteocondroma em costela
esquerda. Parecia animado com a cirurgia e feliz com a nossa
presença. Saímos. A sala de cirurgia era grande, branca,
organizada, cheia de materiais e aparelhos familiares, no entanto,
eu não os conhecia. Nas paredes, um relógio e uma lista impressa
de remédios com seus efeitos colaterais colada ao lado da porta.
Chegaram mais pessoas. Tudo começou. Avental. Gorro. Máscara.
Luvas. Anestesia. Bisturi. Sangue.

O bisturi cortou a pele, o tecido subcutâneo, o músculo e


chegou no osso. Só ali, entendi que aquela pessoa perderia uma
parte da costela. Meu pai olhou o osso exposto e notou algo
estranho. Pediu para ver os exames de imagem de novo e
percebeu que o tumor não era só um. Existia um tumor na região
anterior, e outro, na região posterior da costela. A costela inteira
seria removida. Meu pai solicitou um aparelho, um tipo de serra, e
cortou o osso. Foi uma cena forte, uma força imensa tanto em
significado quanto literalmente. Fiquei animada e preocupada,

149
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

porque aquele paciente iria sofrer uma recuperação muito dolorida,


mas, no momento em que eu percebi o que estava olhando, o
mundo todo parou. Um coração batendo, lindo, perfeito, rosa-
avermelhado, forte, distribuindo vida, sangue, oxigênio, nutrientes
para todo o corpo, todas aquelas células. Um pulmão, rosa, indo e
vindo, trazendo ar, desprotegido, tão frágil. Meus olhos se
encheram de lágrimas, uma sensação única percorreu todo o meu
corpo. Tudo aquilo que faz essa pessoa viver estava ali, na minha
frente, exposto. A vida dele estava nas minhas mãos.

Repentinamente, o mundo voltou a girar, e o relógio voltou a


marcar o horário, até porque, na medicina, cada segundo conta,
mas aquela imagem e aquela sensação permaneceram comigo.
Meu pai pediu um fio de aço e, novamente, com força, aproximou
as costelas restantes para que aquela imensidão de vida e
fragilidade não ficasse exposta. O fio de sutura fechava aquela
imagem, mantinha a integridade do corpo, escondia toda a beleza
que eu presenciei, guardava a vida onde ela é mais valiosa: dentro
de cada um. Ao final da cirurgia, ouvi que deveríamos torcer para
que o tumor não originasse metástases, porque, se alguma
metástase aparecesse, ele não teria chance. Sempre me perguntei
o porquê de o corpo, um local que deveria ser seguro, gerar
células danosas a ele mesmo, células que podem acabar com a
segurança e tirar a vida de seus tecidos e, eventualmente, acabar.
É, simplesmente, a vida. Foi o que concluí. As pessoas não são
perfeitas, o corpo não é exato, dessa maneira, a vida não é
perfeita nem exata. É uma mistura de tudo.

No caminho de casa, pensei sobre tudo que tinha acontecido,


sobre todas as emoções que tomaram meu corpo e sobre todos os
pensamentos que passaram pela minha mente. No outro dia, fui
com meu pai visitar o paciente, e ele estava bem, ele estava com

150
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

dor, mas agradecido, esperançoso e, acima de tudo, feliz, queria


viver e aproveitar. Sua namorada sorria o tempo todo e só sabia
agradecer. Entendi que era aquilo ali. Era por aquilo na minha
frente que os médicos são médicos, por isso que eles sempre
tentam e dedicam-se. Doam-se. Percebi, naquele momento, a
beleza na medicina: o paciente grato por ter sua vida salva, e eu
grata pela imensidão que aquele único paciente me proporcionou.
Tudo se resume a essa troca de energia, confiança e experiências.

Em uma quarta-feira fria de inverno, no Brooklyn,


em Nova Iorque: na medicina, como no amor, nem
nunca nem sempre

Thiago de Lima Vaz Vieira

Em uma quarta-feira fria de inverno, no Brooklyn, em Nova


Iorque, estava eu continuando minha aventura no solo do Tio Sam,
em um estágio extracurricular, no centro médico Artisans of
Medicine, localizado em uma região densamente povoada por
imigrantes árabes.

Os atendimentos começavam às 9h da manhã, diariamente,


e prosseguiam, ininterruptamente, até as 17h, de segunda-feira a
sábado. O público de pacientes ali era muito diversificado. Eu
atendia a franceses, ingleses, árabes, italianos, sírios, egípcios,
iraquianos, canadenses, espanhóis, mexicanos, americanos e
tantas outras nacionalidades.

Não me sentia tecnicamente preparado. E não era para sentir


mesmo, afinal, tinha eu recém-terminado o segundo ano do curso
de medicina, em Brasília/DF, no Brasil. Longa jornada ainda me
esperava pela frente, mas decidi que, estando o mês de dezembro

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

inteiro em Nova Iorque, poderia eu experimentar mais do que a


tumultuada Big Apple natalina.

E foram muitas experiências vividas, com muitos


ensinamentos. Desde pacientes com sífilis, gonorreia, câncer de
mama, depressão, ansiedade, ataques de pânico, a pacientes com
resfriados, gripes, amigdalites, além daqueles que só compareciam
ao centro médico para realizar check-up ou para receber retorno
referente a exames de sangue.

Entre todos eles, um, com menos complexidade, ao menos


aos olhos dos médicos e dos estudantes de medicina que ali
estavam, chamou-me muito a atenção. Tratava-se de um jovem
americano de 20 anos de idade, que, aparentemente, tinha alguma
descendência árabe e que ali comparecia para ter um plano
terapêutico para hérnia umbilical.

Como eu já estava familiarizado com os atendimentos e já


havia me sido confiados os pré-atendimentos médicos,
encaminhei-me até uma das salas de atendimento e lá encontrei o
jovem Gustavo. Ele estava sentado em uma poltrona, logo à frente
da maca em que os pacientes eram examinados.

Assim que entrei na sala de atendimento, desejei uma boa


tarde a Gustavo, abri o seu prontuário eletrônico e o perguntei
sobre o que o trazia até aquele centro médico. Imediatamente,
Gustavo respondeu, em baixo tom de voz e pausadamente, que
estava ali buscando um tratamento para a sua hérnia umbilical.

Afirmou que, no passado, praticava esportes de alto


desempenho, com levantamento de peso, porém parou, após o
aparecimento da hérnia umbilical. Disse que, talvez em razão da
hérnia, passou a sentir desconforto e dor intermitentes na região

152
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

abdominal bem como dor no estômago, de intensidade 3/10,


principalmente após as refeições.

Gustavo asseverou que levava uma vida saudável, não


consumia álcool e drogas nem fumava, praticava exercícios físicos
regulares, tendo diminuído a intensidade ultimamente, em razão
do aparecimento da hérnia umbilical. Mencionou que se sentia
estressado por motivo de assuntos escolares e demonstrava
tristeza e medo em seu comportamento e em suas expressões.

Pedi para Gustavo se sentar sobre a maca e levantar a sua


camisa para que eu pudesse realizar o exame físico. Após
auscultar coração e pulmões, realizei a palpação abdominal e a
manobra de Valsalva, quando pude perceber, nitidamente, a
presença da hérnia umbilical em Gustavo.

Após o exame físico, Gustavo retornou para a sua poltrona,


ocasião em que o indaguei a respeito de ansiedade e de
depressão. Gustavo negou se sentir depressivo, mas assinalou
estar ansioso por acreditar que a sua hérnia umbilical seria um
entrave na sua vida profissional, vez que ele desejava se tornar
nutricionista esportivo.

Após realizar as devidas anotações sobre o histórico clínico e


o exame físico de Gustavo, mencionei a ele que iria sair da sala,
mas que voltaria com o dr. João, médico de família, quem também
o examinaria e realizaria, propriamente, a consulta médica. No
entanto, dr. João logo ingressou na sala, dando continuidade ao
atendimento.

Naquele momento, dr. João cumprimentou Gustavo e me


sinalizou, com um olhar, que aquele era o momento de início da
minha tarefa de repassar a ele a história colhida e o exame físico
realizado. Após a tarefa cumprida, dr. João conversou,

153
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

rapidamente, com Gustavo e me indagou quais eram os


tratamentos disponíveis para o quadro dele.

Como eu não tinha ideia sobre o tratamento, respondi ali


mesmo que não sabia. Dr. João, em seguida, solicitou que eu
pesquisasse e voltasse em cinco minutos com a resposta sobre o
tratamento terapêutico para hérnia umbilical. Logo após, ele saiu
da sala e eu também dali me retirei, informando a Gustavo que
logo voltaríamos.

Passados os cinco minutos, já estava eu de posse dos


tratamentos disponíveis, de volta à sala, e com Gustavo e dr. João
na minha companhia. Ao fechar a porta, eu os informei que, entre
os tratamentos disponíveis, existiam os tratamentos cirúrgicos e os
tratamentos mais conservadores, como o uso de cinto no local da
hérnia umbilical.

Ao ouvir as possibilidades terapêuticas, Gustavo disse, com


firmeza, que não queria fazer cirurgia. Diante de sua resposta, dr.
João o informou sobre a possibilidade de utilizar um cinto sobre a
hérnia umbilical, tendo indagado a Gustavo se este seria um
tratamento que ele anuiria. Gustavo, por sua vez, afirmou que
estava disposto a tentar o tratamento proposto, e a ele foi feita a
prescrição, naquele exato momento.

Após finalizar e entregar a Gustavo a prescrição, dr. João se


despediu e o informou que eu o acompanharia até a recepção,
para agendamento do retorno, tendo deixado a sala de
atendimento. Naquele instante, olhei fixamente para Gustavo e
percebi que ele permanecia com a mesma expressão de tristeza,
do início de sua consulta.

Diante disso, relembrei da confissão que Gustavo havia me


feito sobre o seu estado de ansiedade motivada por acreditar que

154
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

a sua condição médica o impediria de atingir o seu sonho de ser


nutricionista esportivo. Foi quando me veio um sentimento de
compaixão que me impulsionou a dizer algumas palavras de
conforto a Gustavo.

Nesse contexto, olhando nos olhos de Gustavo, disse a ele


que todos os sonhos que ele aspirava seriam realizados e que o
seu quadro de saúde não o impediria de atingir qualquer sonho, já
que ele poderia se tratar e encontrar diferentes meios para realizar
as metas de vida que ele almejava.

Naquele instante, Gustavo, que também olhava fixamente


para mim, respondeu, com uma expressão de libertação, que ele
estava ali buscando ouvir exatamente o que eu acabava de lhe
dizer. Por isso, agradeceu-me, com um olhar sincero e apertando
minha mão, mas disse que já sabia sobre todos os tratamentos
disponíveis, pois já havia pesquisado na internet a respeito.

Naquele momento, Gustavo deixou de lado a tristeza e me


pareceu transbordar confiança e esperança. E, embora eu
permanecesse sem esboçar emoção, a manifestação de Gustavo
me tocou. Saímos da sala, reagendei o seu retorno com a equipe
da recepção do centro médico e, com um sentimento de
compaixão, despedi-me dele, um paciente que me permitiu
aprender a ser mais humano e empático.

A Matatu

Tomás Costa Arslanian

O despertador tocou às 5h15 da manhã. Eu tinha exatamente


15 minutos para tomar banho, escovar os dentes, vestir-me e
comer alguma coisa. Nosso transporte estaria nos esperando as

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

5h30, na casa da Marafiki Community International, uma


Organização Não Governamental (ONG), para nos levar a um
hospital materno, em uma área carente de Nairóbi/Quênia. Após
me arrumar, cuidadosamente, para não acordar os outros cinco
homens do quarto, desci para a cozinha. Lá, encontrei Beatriz e
Letícia, as outras estudantes de medicina que também iriam
acompanhar a dra. Ana hoje. A dra. Ana logo se juntou a nós, e
conversamos um pouco até a Matatu, uma van de transporte típica
do Quênia, chegar. E, assim, começou um dos dias mais
marcantes da minha vida.

A casa onde estávamos hospedados ficava em Kikuyu, uma


cidade nas redondezas da capital queniana. Nosso destino era o
Pumwani Maternity Hospital, que ficava na capital. Embora a
distância não fosse grande entre os dois locais, devido ao trânsito
caótico da cidade, o percurso demorou cerca de duas horas, tempo
mais do que o suficiente para receber as orientações da doutora e
apreciar uma das grandes cidades africanas.

Chegando ao hospital, fomos diretamente para o centro


cirúrgico, onde passaríamos a manhã auxiliando a dra. Ana a
realizar cesáreas. O hospital onde estávamos assim como todos os
outros do Quênia são particulares, mas a entrada dele relembrava
muito a entrada dos hospitais do SUS os quais estou acostumado a
frequentar, então, pensei que a experiência seria muito parecida
com a que teria se estivesse no Brasil. Todavia, foi só entrar no
centro cirúrgico, ou theater, como eles chamam, que percebi que a
experiência seria drasticamente diferente.

Antes mesmo de entrar no centro, caso não tivéssemos


pedido propés, teriam deixado a gente entrar com os nossos tênis
sujos. Ao entrar na sala de operação, percebi que, além de não ter
ar-condicionado, não havia sistema de ventilação algum. E, na

156
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

hora de fazer a paramentação, a única coisa que tinha para lavar a


mão era detergente normal. Sei que estou sendo muito crítico e
que eles fazem o melhor com o que está disponível para eles, mas
acredito que isso serve para demonstrar o quão bom é o nosso
sistema de saúde no Brasil. E, logo, entrou a primeira paciente na
sala.

O caso era bem peculiar, pois a paciente era de Uganda e


não falava nem o inglês, o nosso meio de comunicação, nem o
swahili, a língua mais falada no Quênia, ou seja, nem a gente nem
os médicos quenianos tinham um meio de comunicação com a
paciente. E, para agravar, ela estava com sepse grave.

Como seu bebê estava começando a ficar com sofrimento


fetal, precisávamos iniciar a cesárea, mesmo sem a mãe estar
entendendo o que estava acontecendo. Embora ela estivesse com
expressões de espanto e medo, não mostrou muitos sinais de
resistência à cirurgia. Então, creio que sabia, mais ou menos, o
que estava acontecendo. Ou será que o quadro dela não permitia
que ela demonstrasse resistência? A única coisa que sabíamos
naquele momento era que precisávamos fazer a cesárea, senão
poderíamos perder tanto a mãe como o bebê.

A cirurgia estava indo bem, a dra. Ana estava explicando


tudo, bem detalhadamente, para nós, à medida que ia realizando a
cirurgia, e, para o alívio de todos, o bebê nasceu bem. Ele foi
imediatamente levado por um enfermeiro para outra sala, a fim de
ser examinado, mas conseguimos estimar que o primeiro Apgar foi
em torno de 7-8, que, de acordo com a médica, era excelente,
levando em consideração o quadro da mãe.

Após o nascimento, as explicações da doutora terminaram.


No primeiro momento, pensei que era porque não tinha muito mais

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

o que explicar, só suturar. Mas o tempo foi passando, e eu, só


observando. Quando a cirurgia já tinha em torno de 50 minutos de
seu início, comecei a perceber que não estava tudo bem. Era a
primeira cesárea que estava assistindo e não sabia como era o
procedimento, mas, segundo as orientações que recebemos na
Matatu, no início do dia, sabia que cada cesárea levava em torno
de 20 a 30 minutos. Ademais, a médica pediu para eu ir buscar
mais fio de sutura algumas vezes na estante. Decidi perguntar o
que havia acontecido, e a doutora falou que depois explicava.

A cirurgia durou um pouco mais de duas horas, mas tanto o


bebê como a mãe saíram bem. Assim que a mãe foi levada para a
sala de recuperação, recebi a resposta para a minha pergunta.
Como a mãe estava com sepse, o útero dela também estava
infeccionado. Diante disso, ao retirar o bebê do útero, ele sofreu
uma laceração enorme. Então, foi muito difícil restituí-lo. Ela
considerou fazer uma histerectomia, mas precisaria de um médico
auxiliar, algo que não tínhamos. A médica persistiu e, depois de
muito trabalho e esforço, conseguiu reparar o útero e terminar a
cirurgia com êxito.

Demorei algumas semanas após essa viagem, realmente,


conseguir processar os acontecimentos desse dia e da viagem
como um todo. É incrível como, mesmo tendo acabado de ter
estudado algo em um livro ou lido vários artigos sobre algum
tema, nada será igual à experiência. Como diz o ditado famoso da
medicina: “na medicina, como no amor, nem nunca nem sempre”.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Um novo dia

Isabelle Cristina Abreu Bílio

Era uma terça-feira quente e ensolarada, que marcou a


minha primeira visita à ala da maternidade do Hospital Regional de
Planaltina (HRP). Porém, não somente isso marcou essa minha
primeira visita, mas também o contato com uma paciente difícil de
se esquecer, tanto pela sua individualidade única como também
pela força que exaltava. Ao adentrar o quarto, havia diversos
leitos, e fui designada para um específico, no qual tinha Sandra,
que estava internada, e seu marido Victor, que a acompanhava.
Como de costume em experiências anteriores, iniciamos a
entrevista, a fim de colher uma história detalhada sobre o quadro
de Sandra.

Sandra era jovem e foi muito receptiva em responder as


perguntas, contribuindo com o fornecimento de informações, de
forma clara e afetuosa. Sempre muito educada e com bom humor
para todos os exames e manobras que foram realizados. No
momento da consulta, a paciente mostrava-se com ótima
recuperação, após uma cesárea de emergência, apresentando
sinais vitais adequados e condições físicas favoráveis. Apesar
disso, suas condições psicológicas se apresentavam
significativamente desgastadas e pesadas. Relatou, durante a
entrevista, a ocorrência de aborto prévio que foi extremamente
ofensivo para sua saúde mental, o que contribuiu ainda mais para
quadros depressivos preexistentes.

No perpassar da entrevista, Sandra mostrou receio em estar


no hospital, já que a sua última experiência internada tinha sido
devido a um abuso sexual, o qual foi o fator desencadeante de um

159
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

quadro depressivo. Diante daquela revelação, procuramos tentar


compreender ainda mais as dores emocionais que a afligiam e
percebemos que era um assunto ainda muito doloroso para que
fosse explorado e dialogado. O marido, Victor mostrou-se muito
afetuoso e parecia saber sobre o ocorrido, expressando a mesma
dor sentida pela esposa e não demonstrando abertura para que o
assunto fosse discutido. Com o passar da entrevista, percebemos
que Sandra também não mantinha um relacionamento com os
familiares, como o pai e a mãe, e esse distanciamento tinha carga
emocional evidente nela. Mesmo diante disso tudo, Sandra
apresentava-se calma e solícita, transmitindo carinho e
demonstrando animação em relação ao filho que tinha acabado de
nascer.

A partir dessa situação, consegui perceber a vulnerabilidade


de diversos grupos femininos e como a agressão contra a mulher é
uma situação cada vez mais comum. Quando ouvimos sobre
feminicídio e abuso sexual, de certa maneira, a impessoalidade na
função de ouvinte garante uma distância em relação à nossa
realidade pessoal, mas, quando há um relato tão próximo de você,
as palavras ganham força de tornar aquela situação ainda mais
real. A partir do relato de Sandra, pude notar como o abuso sexual
ainda é constante nos meios de saúde e evidencia as dificuldades
dos profissionais de saúde em conseguir abordar e lidar com essa
situação na relação com o paciente.

No caso de Sandra, percebi a importância do apoio e do


suporte de pessoas que a amam, como o marido dela, na
superação desse tipo de situação tão traumatizante. A necessidade
de se cercar de pessoas amorosas, afetivas e que dão apoio torna-
se quase um imperativo para a superação de experiências tão
traumáticas. Além disso, reforça a visão do paciente como um

160
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

indivíduo, abordando todos os aspectos que influenciem o curso da


patologia e não somente a visão orgânica. O amor e a afetividade
permitiram que a dor vivenciada por Sandra se tornasse força
interna maior, que a levou a seguir em frente e a ter novo
recomeço, com um filho e uma família que transborde amor e
carinho. No final da consulta, entendi que a felicidade do paciente
também reflete e contribui no seu poder de cura e que os fatores
psicológicos e a carga emocional individual também são aspectos
decisivos na saúde do paciente.

Extrapole: somos médicos do corpo e da alma

Arthur de Barros Andrade

Era fim de tarde de um sábado, quando a medicina me


ensinou uma grande lição, mas antes preciso voltar um pouco no
tempo.

Desde o início da faculdade de medicina, faço parte de um


grupo chamado MedCAL – médicos do corpo e da alma –, que é
um grupo de estudantes e de profissionais católicos da área da
saúde, os quais doam o seu trabalho para ajudar comunidades
carentes, montando mutirões de atendimentos, ato chamado por
nós de missões humanitárias. Em janeiro deste ano, fui para
Luziânia/GO, em missão, atendi a várias queixas de diferentes
pessoas, em diferentes condições de saúde, mas uma, em
particular, foi desafiadora e inspiradora para mim.

Era uma mulher de 40 anos que vinha com a queixa de


pressão alta e de dor generalizada na cabeça. Conforme ia fazendo
a história clínica, percebi os sintomas muito inespecíficos e
desconexos, ela não conseguia caracterizar a dor, determinar a
intensidade e, ao exame físico, não tinha alteração alguma. Com

161
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

relação à pressão, estava tudo normal, 120X80 mmHg, em uso de


medicamentos com prescrição e acompanhamento médico regular.

Visto isso, pensei, o que mais fazer? Agora só restava


conversar com a paciente, mas foi bem aí a mudança na história
toda. Conversando com a paciente, notei que ela sempre olhava
para os lados, então, perguntei se havia alguém a acompanhando,
e ela respondeu que o marido estava na consulta com o psicólogo
a poucos metros de lá. Tomei a liberdade de perguntar se a
relação deles era harmônica, e houve um silêncio na resposta,
seguido de muito choro; a partir daí a paciente se abriu totalmente
e contou como a sua relação estava desgastada com o marido e
que só os filhos sustentavam o casamento.

A consulta tomou um rumo totalmente diferente do


imaginado, e aquela queixa não estava descrita em livro algum de
medicina interna, protocolo clínico ou apresentação de faculdade,
pois as queixas tratadas eram relacionadas com amor, religião,
família, espiritualidade, cumplicidade. Tudo o que foi falado ali
representou um completo e sincero amparo e não tem tanta
validade neste relato documental, porque, naquele momento, o
aspecto humano e de caridade cristã falou mais alto, gritou!

A lição que eu carrego desse episódio pode ser resumida em


uma simples frase de um médico renascentista português, Abel
Salazar: “o médico que só sabe de medicina nem de medicina
sabe”. O olhar do paciente muitas vezes pode dar o diagnóstico, vá
além dos livros, se mostre humano. Não podemos ter medo de
conversar sobre qualquer assunto com quem estamos ajudando.
Mas e se eu extrapolar? Se for para o bem dele que EXTRAPOLE!

162
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Referência

PENTIADO JÚNIOR, Jorge Alberto Martins et al. Love and the value
of life in health care: a narrative medicine case study in medical
education. The Permanent Journal, v. 20, n. 2, p. 98-102, 2016.

Eu vejo você

Maria Carolina de Araújo Seixas

No dia 5 de novembro de 2019, ao acompanhar um plantão


na enfermaria de infectologia do HRAN, conheci uma mulher
incrível que, verdadeiramente, mudou a minha vida. Naquela
manhã, fui ao hospital realizar uma das atividades de extensão da
Liga Acadêmica de Infectologia do UniCEUB, que corresponde ao
acompanhamento desses plantões. Estava acompanhada de uma
colega de turma e confesso que não estava muito animada em
relação à prática que iria realizar.

Ao entrar nas enfermarias, o médico e os residentes que


estavam conosco apresentavam individualmente os pacientes e
avaliavam a evolução de cada um deles. Os ambientes eram, em
geral, arejados, com dois leitos – um para cada paciente – e
cadeiras para os acompanhantes. Quando chegamos na enfermaria
da senhora Verônica, onde estavam ela e o seu esposo, como
acompanhante, a paciente encontrava-se deitada no leito, em
regular estado geral e vigil. Inicialmente, cumprimentamos a
paciente e ela abriu um sorriso no rosto e respondeu a nossa
saudação. Nesse momento, foi iniciado o exame físico por um dos
residentes, durante o qual a paciente mostrou-se extremamente
colaborativa. No decorrer do exame físico e da entrevista, eu e
minha colega permanecemos em pé, num canto da sala,
observando tudo com certa inquietação, uma vez que percebemos

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

a dificuldade do médico, dos residentes e até mesmo do


acompanhante de se comunicarem com a paciente. Ao final do
exame, os residentes começaram a passar o caso, tratava-se de
uma paciente, do sexo feminino, de 47 anos, CID B24, sem uso da
terapia antirretroviral há 4 anos, por abandono de tratamento, que
foi internada no dia 3 de agosto de 2019, diagnosticada para
neurocriptococose e que, durante a internação e o tratamento,
evoluiu com perda da acuidade visual bilateral severa e com
redução da acuidade auditiva.

Após a apresentação do caso e quando o médico e os


residentes finalizaram o exame físico, a paciente se dirigiu ao
médico da equipe e começou a falar. Ela relatou que estava
sentindo piora progressiva na audição e, sobretudo, na visão e
pediu a ele que a liberasse temporariamente para que ela pudesse
ver a família, as filhas e a neta enquanto ainda podia. “Eu queria
ver minha neta e minhas filhas antes de ficar cega”, disse a
paciente enquanto chorava. A senhora Verônica disse ainda à
equipe para ficarem tranquilos que ela voltaria ao hospital para
continuar o tratamento e que só precisava de alguns dias para que
pudesse ver a família. Nesse momento, meus olhos se encheram
de lágrimas e confesso que foi um trabalho árduo evitar o choro.

Ao final da fala da paciente, o médico responsável apertou e


segurou sua mão e falou de forma clara e expressiva, com um tom
de voz elevado, que ele ia apenas esperar o resultado de um
exame e, finalmente, formalizar sua alta. Depois disso, a senhora
Verônica manifestou preocupação e disse que não tinha escutado o
que o médico havia dito. Novamente, com um tom de voz ainda
mais elevado e com a ajuda do esposo da paciente, o médico
repetiu a explicação. A senhora Verônica abriu, então, um grande
sorriso no rosto, emocionou-se e agradeceu ao médico e a toda a

164
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

equipe. Nesse momento, em todo o ambiente, era possível


perceber uma comoção coletiva e muita felicidade pelo aparente
desfecho da história.

Infelizmente, algumas horas depois, os resultados dos


exames mostraram presença de cisticercos em liquor, indicando a
necessidade de permanência da internação e de prolongamento do
tratamento. Ainda assim, o médico da equipe, consciente do
estado atual da paciente e de todos os fatores envolvidos no
processo de saúde e doença dela, formalizou a alta.

No final do plantão, eu, minha colega, os residentes e o


médico da equipe retornamos à enfermaria onde estava a senhora
Verônica. Ao entrarmos na sala, deparamo-nos com a paciente
sentada no leito e com o seu acompanhante sentado na cadeira ao
seu lado, ambos reflexivos e em silêncio. Quando cumprimentamos
a paciente, ela logo correspondeu à nossa saudação. Em seguida,
o médico calmamente e, com a ajuda do acompanhante, explicou o
resultado do exame para a paciente, o que ele significava e a
necessidade de dar continuidade ao tratamento. Ele continuou a
fala dizendo que ia dar a alta para a senhora Verônica se ela se
comprometesse a continuar com o tratamento em casa e a
retornar ao hospital dentro de alguns dias. Dito isso, a paciente,
ainda surpresa com a situação, emocionou-se novamente,
agradeceu ao médico e se comprometeu a tomar todos os
medicamentos que fossem indicados e a retornar ao hospital na
data estipulada. Seguidamente, despedimo-nos da paciente, e eu e
minha colega fomos liberadas.

Em suma, após ter vivenciado tudo isso, afirmo, com certeza,


que minha vida mudou. Saber da preocupação da senhora
Verônica em ver sua família, diante da consciência da possibilidade
de finitude dos seus sentidos e da progressão da doença, chamou

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

muito minha atenção. Além disso, perceber a serenidade da


paciente ao compreender a piora da doença e, ainda assim,
valorizar e agradecer ao trabalho da equipe médica fez com que eu
refletisse sobre o exercício da gratidão.

Ademais, apesar de não ter tido contato direto com a


paciente, pude aprender muito durante a entrevista,
principalmente a respeito de uma abordagem médica mais
humanizada e holística. Essa experiência viabilizou, também, a
ratificação da necessidade de desenvolver inúmeras habilidades
técnicas e emocionais para a abordagem do paciente e a
percepção, na prática, da importância de utilizar o método clínico
centrado na pessoa.

A casa de vovó Elisa

Isabella Gonçalves Andrade

Era uma quinta-feira, no final da tarde, sentadas na varanda


da casa de vovó Elisa, quando começamos a conversar. O céu
estava lindo, e os pássaros cantavam no jardim, na calmaria de
uma cidade do interior. Casa arejada, arrumadinha, cheia de
alegria, do jeitinho que vovó gosta. A varanda estava fresquinha, e
o café, quentinho, com pão de queijo que tinha acabado de sair do
forno. Mulher de um coração gigante, tem a fala mansa que
transmite calma, alegria estampada no rosto e o abraço pronto
para receber os netos, que ama contar suas histórias e
experiências de vida.

Elisa, 67 anos, mora em Rubiataba, no interior de Goiás.


Hipertensa, diabética, fumou por muito tempo – desde os 14 anos
–, mas, hoje, passou a colocar sua saúde em primeiro lugar, por

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

recomendação médica, após infarto há cinco anos. Casada há 34


anos, com Marcos, de 67 anos também.

Às 17h, saiu pelo quarto vovô Marcos, com o rostinho


amassado de tanto dormir e com o sorriso estampado no rosto,
olhando na direção dela. A alegria nos contagiou em poucos
minutos, o amor estava no ar, ele era a própria calmaria e alegria.
Independentemente da situação, ele fazia a alegria acontecer. E foi
aí que começaram as perguntas, e vovó começou a contar o que
aconteceu há cinco anos, antes do infarto. Relatou-me que
começou a perceber que vovô começou a se esconder das pessoas
quando interfonavam, a não atender mais o telefone e a pedir para
mentir, dizendo que não estava em casa. Ela achou muito
estranho, contou para as suas duas filhas e o levaram ao médico.
O primeiro diagnóstico foi de depressão, aos 57 anos, e ele
começou a ser tratado, com medicação e terapias, e cinco anos
depois foi diagnosticado com a Doença de Alzheimer. E foi aí que
tudo desabou. Vovó entrou em uma tristeza profunda, pois não
aceitava que “essa doença maldita” estava perseguindo o marido
dela. Sem saber o que fazer, começou a fumar ainda mais, todos
os dias, até tarde da noite, quando ele já estava dormindo.

Foi então que o excesso de cigarro a levou para a cama de


um hospital, onde passou por cateterismo e angioplastia. O medo
tomou conta dos seus pensamentos: “quem vai cuidar do
Marcos?”. Depois da cirurgia, começaram as terapias e as
consultas semanais no cardiologista, para entender a necessidade
de largar o cigarro. A questão da saúde tinha o seu valor principal
nessa situação, mas ela diz que o fato de cuidar da sua saúde para
conseguir cuidar de vovô falou mais alto. Depois disso, nunca mais
quis falar em cigarro. Os dias, então, resumiam-se em cuidar da
sua saúde para, assim, cuidar de vovô.

167
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

A vida de vovó se resume aos cuidados com vovô, durante


24 horas por dia, desde o café da manhã até o jantar, além de
colocá-lo para dormir. Os pensamentos de medo não a perseguem
mais, mas há dias que ela diz ficar muito triste de ver ele nessa
situação e fica imaginando o que ele deve pensar, pois “era um
homem tão bom e hoje nem lembra das filhas e tem dias que me
chama de mãe”. Hoje, cinco anos após o diagnóstico, ele já não
reconhece quase ninguém, fica quieto por causa dos remédios e dá
um pouco de trabalho. “Na verdade, ele me dá trabalho na hora de
tomar banho, foge do banheiro, mas eu adulo e consigo dar banho
e colocá-lo para dormir. Ele me ensina a ter paciência, a ser grata
por ter saúde e poder cuidar dele”, diz vovó. Ela afirmou nunca ter
passado pela sua cabeça interná-lo em um asilo e completou,
dizendo que, enquanto der conta, ela que vai cuidar dele – nunca
reclamou de ter de cuidar dele – e terminou falando que ela faz
por ele o que ele fez a vida inteira por ela e pelas filhas: “ele
cuidou de nós com o seu trabalho, nunca deixou faltar nada em
casa, e, hoje, posso cuidar dele com meu amor e cuidado”.

E foi daí, de uma tarde calma, que tiramos uma lição: o


amor. O amor pode não curar as doenças, pode não reverter os
quadros clínicos citados durante a narrativa, mas cura a descrença
da vida, o desânimo e dá vida, renova o que, antes, era tristeza.
Isso tudo me fez refletir sobre a fase que estou vivendo. Morar
distante da minha família é uma constante superação de medos e
de saudade. Eu, definitivamente, entendi que o amor é o bem mais
importante da vida. Todo mundo fala, mas ninguém para para
analisar o que isso, de fato, significa. Morar longe, passar finais de
semana sem abraçar alguém da família, faz-me dar valor ainda
mais no amor e na saúde de cada pessoa à minha volta –
principalmente, dos meus familiares. Eu não enxergava o valor da

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

saúde até ver minha avó, há cinco anos, em uma maca, pronta
para fazer angioplastia, não sabia o que aconteceria após a cirurgia
ou se aquela seria a última imagem dela. Hoje, ela me dá motivos
para estar correndo atrás dos meus sonhos e valorizar a minha
saúde. E me deparar com as situações que vemos, semanalmente,
nos rodízios do ciclo clínico, foi um divisor de águas para mim. A
falta de saúde para qualquer um independe de qualquer coisa, seja
dinheiro, idoso ou jovem. Fico pensando, e se fosse eu? Quais
seriam os meus desejos? Qual seria a minha motivação? Será que,
de fato, estaria com a consciência limpa de ter aproveitado os
momentos com as pessoas que eu amo? Certamente, se fosse
vovó, ela falaria que ter vovô é o que a motiva a acordar todos os
dias e agradecer pela sua vida e cuidar da sua saúde.

Situações como essa me fazem pensar no valor que temos


que dar à vida. Independentemente da circunstância que estamos
passando, devemos viver com alegria, correr atrás dos nossos
sonhos, ser gratos e otimistas. Em uma profissão que requer frieza
em algumas situações, não podemos esquecer que lidamos com
vidas. E vale muito a pena o esforço em ouvir e fazer com que o
dia de um paciente seja melhor, arrancando sorrisos. Não se perde
nada, apenas se ganha, e eu ganho motivos para continuar
seguindo os meus sonhos e dar alegria para vovó, contando o que
aprendi durante a semana, por intermédio de uma simples
chamada de vídeo.

‘‘Conheça todas as teorias, domine todas as


técnicas, mas, ao tocar uma alma humana, seja
apenas outra alma humana.’’
Carl Gustav Jung

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Era a dor de gerar uma vida

Laís Araújo Souto

Era uma terça-feira do mês de setembro, e, no Hospital


Santa Luzia, ocorria uma visita proporcionada pela Liga de
Medicina Intensiva do UniCEUB. A orientadora era a dra. Gabriela,
uma médica que já tínhamos tido contato e sabíamos da sua
incrível competência profissional. Carregados de expectativa,
caminhávamos pelo hospital sob a supervisão dela. Primeiro,
visitamos a UTI neonatal, e a atmosfera já mudou, pois era visível
que cada recém-nascido estava lutando pela sua vida, mal
conheciam o mundo exterior, no entanto, já demonstravam sua
bravura naquelas incubadoras, uns melhores que os outros, mas,
sem dúvida, era visível o brilho de cada ser. O cuidado de toda a
equipe estava nos detalhes, cada incubadora tinha um polvo de
crochê, que, de forma terapêutica, acalmava cada recém-nascido.
Direcionamo-nos para outra parte da UTI, e nos foi chamada a
atenção um recém-nascido hipotônico, ictérico, com ausência de
choro. Os médicos não sabiam a causa, então, iniciaram uma
investigação minuciosa, a fim de compreender o quadro que ele
apresentava. Foi realizada uma punção lombar, com o objetivo de
avaliar o líquido e descobrir possíveis patógenos. A médica
plantonista foi realizar a primeira tentativa, a criança foi curvada e
apalpada, no nível da vértebra L3-L4, e, no espaço, foi inserido a
agulha, no entanto, o líquido não veio; uma segunda tentativa foi
feita, mas ainda sem sucesso. Sabendo e reconhecendo sua
limitação, a médica chamou outro plantonista, que, por fim,
conseguiu. Nunca saberemos o desfecho desse caso, mas torci
para que tudo tenha se encaminhado de forma positiva.
Seguíamos, então, para o centro cirúrgico do hospital. Eu já havia

170
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

entrado em outros, mas aquele, sem dúvidas, foi especial, a


cirurgiã-obstetra estava sendo auxiliada pela filha dela, de igual
profissão, uma de frente para a outra. Duas mulheres. Um
anestesista de canto, um pediatra e algumas enfermeiras também
estavam presentes. O anestesista, pacientemente, ficou do meu
lado, explicando cada procedimento. Como nós estudantes
estávamos ali, foi sugerida a realização da entrevista da paciente.
Realizamos perguntas objetivas, devido à ansiedade dela e ao
momento que estava vivenciando. As perguntas eram feitas olho
no olho, com toque, e, depois de alguns segundos, parecia que nós
a conhecíamos. Primeira gestação, negava doenças crônicas e
estava acompanhada do marido. Queixava-se de muita ansiedade,
apreensão e dores devido ao processo fisiológico do parto. Referia
a dor como jamais tinha sentido antes, doía como nunca, contudo
não era só a dor. Era a dor de gerar uma vida. A humanidade de
todos ali foi única, à gestante foi dada toda orientação e cuidado
sobre cada passo que ia acontecendo, cada profissional, sem
dúvidas, era provido de amor. Foi uma cesárea com boa evolução.
Tudo parecia uma orquestra, todos em um único ritmo, fazendo
movimentos leves, uma sala predominantemente feminina, vendo
o poder de uma mulher em dar à luz. Foi uma sonoridade única. A
gentileza reinou. Foi uma das experiências mais lindas e com
muita luz que presenciei. A atmosfera foi de grande importância
para marcar essa experiência, foi como um sonho. A luz era clara,
não havia gritos, tudo pareceu ser planejado em cada detalhe. O
sentimento de gratidão e de paz foi preenchido pelos quatro cantos
e por todas as pessoas presentes naquela sala. O impacto daquele
dia na vida da gestante permanecerá para sempre bem como para
muitas pessoas daquela sala. Sobre a execução da entrevista,
realizamos da melhor maneira possível, frente a todo o sentimento
envolvido e, acima de tudo, fomos empáticas. Com relação à

171
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

prática médica, foi percebido que a maneira como o chefe da


equipe e a sua equipe se comportam influencia diretamente na
dinâmica das atividades realizadas.

Era uma vez, na UBS

Bruna Alves das Oliveiras

Era uma sala pequenininha demais para acomodar


confortavelmente as quatro pessoas ali presentes. O cômodo era
limpo e possuía objetos essenciais para a UBS: uma maca, um
armário, no qual eram alocados os remédios e algumas bagunças,
uma mesa, um computador e quatro cadeiras.

As quatro pessoas estavam em suas respectivas cadeiras. A


médica Mariana fitava e escutava atentamente as alegações da
irmã de Andréa Carvalho Lima. Eu, por outro lado, no primeiro dia
do meu estágio no interior da Bahia, estava com o olhar meio
perdido, no meio da situação. Não sabia se imitava a postura da
dra. Mariana, se fingia que nada grave estava acontecendo ou se
me atentava à feição comovente de Andréa.

Andréa era uma jovem de 14 anos, humilde, com passado


conturbado e presente desesperador. A história da doença atual
era constituída por sintomas depressivos, tentativas de suicídio e
automutilação. A realidade difícil da adolescente teve início na
infância, quando ela e a irmã foram abandonadas pela mãe. Anos
depois, aos 13, a jovem engravidou e, aos seis meses de gestação,
perdeu o bebê, após um acidente de moto. Era usuária de drogas,
lícitas e ilícitas, mantinha relações sexuais desprotegidas com
múltiplos parceiros, e todas essas atitudes não eram capazes de
preencher seu vazio existencial. Dessa forma, enxergou no fim da
vida uma possível solução para os seus problemas. O pai e a irmã

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

presenciaram uma tentativa de suicídio da adolescente, e, com


essa situação, a irmã tomou as rédeas e acompanhou a jovem
para uma consulta na UBS mais próxima. Não fazia uso de
medicação prescrita por profissional de saúde, não frequentava
algum terapeuta, não possuía alguma fé, estava largada à mercê
do destino. Não relatava outros sinais ou sintomas associados.

Estava claro para mim que Andréa sempre sentiu,


profundamente, todas as dificuldades que passou, e os aspectos
tristes sempre sobrepuseram os felizes. A paciente era lacônica e
evitava qualquer contato visual comigo ou com a dra. Mariana.
Estava levemente fletida para frente, como quem carrega o peso
do mundo nas costas. Sabia da existência dos seus problemas,
mas não tinha força para resolvê-los. Tudo era doído demais, tudo
era muito injusto demais.

A dra. Mariana foi bem direta, incisiva e honesta durante o


curso da entrevista. Detalhou perfeitamente que eram necessárias
alterações bruscas na vida da adolescente, caso quisesse sair
daquela situação. Evidenciou para a irmã a importância do auxílio
familiar e da presença de alguém com Andréa, durante os dias
iniciais do tratamento. Andréa acenava com a cabeça como quem
entendia, mas não sabíamos se ela estava de corpo e alma ali.
Dra. Mariana fez o encaminhamento para o Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) local e explicou sobre a importância do
acompanhamento de profissionais, como psiquiatras e psicólogos,
para a situação. Ademais, foram realizados testes rápidos para
doenças sexualmente transmissíveis, devido ao histórico da
paciente.

Foi um momento intenso, no qual lutei com diversos


sentimentos conflitantes. Inicialmente, fiquei revoltada com
tamanha irresponsabilidade advinda daquela paciente. Como podia

173
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

alguém tão jovem jogar oportunidades e saúde no lixo daquela


forma? Depois, partindo para uma análise mais profunda acerca da
situação e colocando os pés na realidade, concluí que é muito
exigir que aquela menina tenha a mesma visão da realidade que
eu tinha na mesma idade. Crescer em uma família conturbada, em
uma realidade cheia de vulnerabilidades, no interior do interior da
Bahia, pode não trabalhar a favor da saúde mental e física das
pessoas. Acho fulcral compreender que os fatores aos quais as
pessoas são expostas podem ter muitos impactos negativos e que
não cabe ao profissional de saúde julgá-los. O papel do médico
naquela situação foi o de cuidar e de tentar convencer aquela
paciente de que sua vida tem valor e que mudanças são
necessárias e possíveis.

Por dentro de uma visita domiciliar

Andressa Mota Gonçalves

Meu relato começa como todas as outras experiências vividas


durante minhas visitas do eixo educacional IESC. Sempre
visitamos primeiro a cada da família com a qual trabalhamos, onde
somos muito bem recebidos pela dona Luciana, como todos a
chamam. Luciana é uma senhora de 61 anos, que apresenta um
quadro intenso de úlcera varicosa, a qual requer constantes trocas
de curativos, e uma hérnia periumbilical de tamanho significativo.
Ela é muito atenciosa, mas do jeito dela.

Nossas visitas são muito esperadas, ela sempre confirma


quando vamos à sua casa e sempre fica de prontidão, esperando a
hora que iremos passar. Sua casa sempre está em boas condições,
não há muita presença de família, ela mencionou que têm filhos,
porém, só um reside com ela, e não apresentou outras

174
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

informações a respeito dos demais filhos. Uma vez, quando a


questionei sobre os outros filhos, ela demonstrou certo desconforto
com o assunto e não quis mais falar sobre isso. Porém, ela parece
ter o apoio dos irmãos, que sempre a ajudam.

Esse dia não foi diferente. Cheguei e comecei a fazer


perguntas sobre a comorbidade que mais a incomodava, que,
conforme exposto por ela, é a sua hérnia. Dona Luciana sempre
relata queixas a respeito da vergonha que tem ao sair na rua, pois
sempre olham estranho para a hérnia, e, por essa razão, ela tenta
vestir roupas as quais amenizam a sua aparição. Esse fato já tinha
sido exposto em várias visitas, e ela sempre reforça o quão
incômoda é a sua condição. Em relação à úlcera varicosa, ela
sempre cuida da melhor forma possível e, em algumas visitas que
fizemos com a ajuda de enfermeiros, ouvia atentamente nossas
dicas de como amenizar a sua ferida.

Desde a primeira visita, fomos informados de que ela estava


na fila para realização de duas cirurgias, uma para a variz extensa
que tem em seu tornozelo direito, a qual resultou na ferida, e
outra cirurgia para a colocação de uma tela, a fim de resolver o
problema da hérnia paraumbilical. Assim, todas as vezes que eu
tinha acesso ao posto, buscava saber como estava a colocação da
dona Luciana na fila para realização dessas cirurgias e, como de
costume, nesse dia, eu fui checar junto ao meu professor
Alexandre a condição em que se encontrava a dona Luciana nessa
fila. Ao checarmos, vimos que ela realizaria uma das cirurgias
dentro de cinco dias, e nem ela nem mesmo a equipe de saúde
que a acompanhava sabiam; então, resolvi dar a notícia
pessoalmente e passar algumas informações que ela precisaria ter
para se conduzir corretamente até a cirurgia.

175
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Ao voltar em sua casa, pois já havia a visitado mais cedo,


dona Luciana nos recebeu bem, como sempre, porém ficou curiosa
pelo motivo da nossa volta. Comecei a informá-la que tinha uma
boa notícia em relação a suas cirurgias, e logo ela questionou se
era a respeito da sua hérnia, pois é a maior causa de suas queixas.
Com esse questionamento, eu percebi que fui precipitada ao agir
alegremente em relação à cirurgia de sua úlcera, uma vez que,
para ela, a situação não era sinônima de grande felicidade, já que
apenas seria se fosse em relação à cirurgia de hérnia. Mesmo
assim, demonstrei a ela todos os pontos positivos do tratamento, e
ela se alegrou. O professor Alexandre conseguiu sanar todas as
dúvidas que ela tinha a respeito do tratamento, e, ao final da
visita, ela já tinha resolvido tudo de forma exultante.

Esse dia para mim, mesmo tendo começado como todos os


outros, foi especial, uma vez que eu, pela primeira vez, pude dar
uma notícia tão importante e, ainda, ganhei um aprendizado: é
necessário saber controlar as emoções perante o paciente, pois a
forma como eu trato o assunto pode não ser a mesma como o
paciente reage.

Na minha visita seguinte, eu me preparei, principalmente,


em relação aos cuidados que aquela paciente deveria ter no seu
pós-operatório. Li a respeito e tentei, ao máximo, colher
informações para saber atendê-la de forma correta. Todavia, ao
chegar em sua casa, recebi a notícia de que ela não tinha realizado
a cirurgia. Dona Luciana relatou que fez tudo corretamente, como
eu tinha dito a ela, e que, infelizmente, o médico não compareceu
ao hospital, deixando ela e outros pacientes, aguardando sem
informação alguma, até a hora em que receberam a notícia de que
ele estava de férias e não tinha passado adiante sua agenda;

176
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

então, todos os seus pacientes ficaram sem os seus respectivos


tratamentos.

Ao me contar a notícia, dona Luciana sempre me indagava o


porquê de tudo aquilo acontecer, como poderia o médico não
avisar ao outro sobre sua agenda e fazê-la perder o dia, se
cansando e indo atrás de carona e de todos os devidos
desdobramentos para a realização da cirurgia, e, diante disso,
demonstrou um sentimento de tristeza. Ela disse para mim que
tinha até se animado, porém teve uma grande quebra de
expectativa e que já não esperava mais nada em relação a seus
tratamentos.

Após esse fato, eu percebi a responsabilidade que tem o


informante de qualquer notícia. É necessário saber como passar o
assunto, de forma muito cuidadosa, tentando não demonstrar seus
próprios sentimentos em relação àquilo, ainda mais se você não
pode controlar a situação. Naquele dia, eu vivenciei um forte
sentimento de impotência, já que eu não podia fazer nada para
ajudar a dona Luciana. Talvez a minha alegria, ao contar a notícia,
pode, de certa forma, tê-la influenciado, fazendo com que criasse
expectativas sobre aquilo.

À vista disso, é primordial sempre tentar passar, de forma


atenciosa, cuidadosa e prestativa, todas as informações, mas
tomando todo o cuidado necessário para não colocar sobre o fato
ali exposto seus próprios sentimentos e tentar, ao máximo, não
influenciar o seu paciente sobre as suas ideias e expectativas.

177
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Marina Batista Kaminski

Para introduzir este capítulo, quero iniciar com meus


agradecimentos a todos os educadores que me ensinaram não só
sobre a fisiologia dos sistemas que compõem o corpo humano ou
sobre as fisiopatologias das doenças que nele fazem morada, mas
também sobre como ser uma boa médica e, acima disso, como ser
uma boa pessoa.

Este capítulo abordará sobre as experiências pedagógicas,


proporcionadas pelo curso de medicina, no qual várias narrativas
clínicas relatam histórias emocionantes, densas e lotadas de
reflexões e conteúdos que um estudante de medicina só
aprenderia na prática cotidiana da medicina e ao estudar durante a
sua graduação. Essas narrativas nos fazem questionar a relação
entre a formação médica e a dessensibilização emocional por parte
do estudante ou o drástico aumento do conhecimento denotativo e
a redução do conhecimento humano, conotativo e sensível que nos
garante a humanidade.

O fato é que essa humanização da medicina deveria


impulsionar os futuros médicos na resolução dos casos clínicos,

178
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

pois nos deixa mais perto de entender a angústia do homem e de


desenvolver a empatia. O ser humano não se configura apenas de
denotação, mas também de conotação, arte, filosofia, sociologia,
história, literatura, entre outras matérias imprescindíveis para a
formação médica. E medicina, direito, engenharia, entre outros
cursos, são atividades nobres e necessárias para sustentar a vida,
porém poesia, beleza, romance e amor. É para isso que
continuamos vivos. A função de um médico é lutar pela vida e pelo
bem-estar do paciente. Visto isso, só se pode entender a vida e
torná-la suportável, quando rodeada de práticas humanistas. O
foco é compreender a vida de forma integral, e os bons médicos
visam a entender o paciente de forma holística, para tratá-lo como
um todo, porém ressaltando sempre a individualidade de cada ser.

É de suma importância a formação de um profissional com


posturas críticas e reflexivas frente à sua prática. Dessa forma, o
contexto atual busca estratégias de ensino nas escolas médicas,
para transformar seus projetos político-pedagógicos em propostas
menos tradicionais, a fim de permitir que o estudante seja sujeito
de sua aprendizagem. Assim, atualmente, o ensino médico revê
seus espaços institucionais e cria contextos apropriados para
construção da reflexão e do pensamento crítico, buscando o
aprendizado ativo e constante, necessário para o futuro do
profissional.

Segundo a pesquisa de Colares e Andrade (2009), o aluno de


medicina, ao percorrer o caminho para se graduar, depara-se com
inúmeros obstáculos, os quais ultrapassam o âmbito da
aprendizagem teórica de uma enorme quantidade de conteúdo. O
estudante de medicina depara-se, durante sua graduação, com a
necessidade do desenvolvimento de habilidades cognitivas,
diariamente conhecidas como o raciocínio clínico, o qual deve ser

179
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

inerente a um médico. Além disso, a habilidade clínica deve se


apresentar revestida de habilidade de interação social, uma vez
que aprender a conviver e se comportar em sociedade é essencial
para o futuro médico, saber como se comunicar, escutar e
entender um paciente é de suma importância. Extrapola qualquer
parâmetro acadêmico, quando se analisa que, durante a trajetória
acadêmica, para se tornar um médico, os estudantes de medicina
encontram obstáculos relacionados a todo um aparato social,
cultural e histórico da profissão médica.

Dessa forma, muitas vezes, é necessário aprender a conviver


com a dicotomia existente entre suas individualidades e o contexto
grupal, que tem normas, regras e valores próprios. Visto isso,
nota-se que as atividades grupais com estudantes de medicina
lhes oferecem uma variedade de benefícios. Nessa pesquisa, a
atividade grupal abordada durante a formação médica era de
cunho sociodramática e apresentava viés teatral, porém pode se
perceber que qualquer atividade em grupo é capaz de estimular as
habilidades de comunicação, socialização, resolução de problemas,
entre outras, do estudante de medicina. Além disso, o médico é
um profissional que necessita saber se socializar, ser empático e se
comunicar bem para ser um profissional eficiente (COLARES;
ANDRADE, 2009).

A maior qualidade que um médico pode apresentar é a da


justiça, e, para se proporcionar justiça, é necessário apresentar
alto grau de desenvolvimento da razão, a qual é uma qualidade
inerente a um profissional da saúde. Um médico busca a justiça
tanto quanto o sistema de saúde público brasileiro busca. Afirmo
isso pois, ao se analisar os princípios do SUS integralidade,
universalidade e equidade fica nítida a necessidade de justiça. Ela
existe na função de propagar e garantir a saúde. Visto isso,

180
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

podemos aprofundar a reflexão acima ao fazer referência ao artigo


de Estrada (2009), quando ele explica a razão evolutiva. De acordo
com Piaget (MORIN, 2000 apud ESTRADA, 2009), a razão não
constitui uma invariante absoluta, mas é elaborada por uma série
de construções operatórias, criadoras de novidades, as quais
correspondem a mudanças paradigmáticas. Dessa forma, a razão
progride por mutações e reorganizações profundas e só pode ser
adquirida por meio de experiências práticas, nas quais essa
qualidade é testada. Além disso, a razão não é algo fixo, é mutável
e flexível. Então, essa qualidade além de ser construída deve ser
adaptada e refletida. Os métodos de ensino tradicionais de
medicina não ensinam razão ao médico, pois isso só pode ser
desenvolvido no cenário da prática médica e é individual a cada
graduando. É importante ressaltar que o PBL e a leitura dessas
experiências médicas proporcionam maior proximidade dessa
construção da razão e, por conseguinte, formam um médico mais
apto e perspicaz, para lidar com os problemas do dia a dia nos
hospitais e nos postos de saúde, com a dicotomia da justiça
médica, com os problemas emocionais, psicológicos e físicos do
paciente, como também lidar com ele mesmo e com toda a carga
emocional e a carga de esforço que a medicina exige.

No texto Os sete saberes necessários à educação do futuro,


Morin (2014) afirma que o conhecimento é sempre uma tradução,
seguida de uma reconstrução. Podemos analisar esse texto e
contextualizá-lo na realidade do PBL, utilizado na graduação de
medicina do UniCEUB. Nesse artigo, são apresentados sete
“buracos negros” da educação, ou seja, as sete falhas da educação
moderna, que são completamente ignorados, subestimados ou
fragmentados nos programas educativos. O primeiro buraco da
educação diz respeito ao conhecimento. O problema do

181
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

conhecimento é que ele não é uma imagem inteira da realidade ou


um reflexo da realidade e, sim, um conceito fragmentado,
construído e derivado de várias imagens e ideias. Dito isso,
podemos utilizar uma metáfora para expor tal fato. Imaginemos
um vaso de flores em cima de uma mesa redonda. Nessa mesa, há
cinco lugares, e cinco pessoas estão sentadas neles. O
conhecimento nessa metáfora é o vaso de flores visto pelo ângulo
de cada pessoa, ou seja, uma ideia fragmentada, pois ninguém
observa o vaso inteiro. Porém, quanto mais conhecimento, mais
perto da realidade podemos entender. Imaginemos que as cinco
pessoas sentadas ao redor da mesa discutem sobre o ângulo que
veem do vaso, cada pessoa vai expor uma forma de como ela
entende aquele vaso, a luz que bate no contorno do vaso, a cor
das flores, enfim, o conhecimento pode ser um reflexo próximo da
realidade, quando integrarmos as cinco visões do vaso. Ao trazer
esse conceito para a realidade do PBL e do ensino médico, pode se
ressaltar que os debates realizados nas tutorias são as exposições
do entendimento de cada um, do conhecimento de cada um para
construção de um conhecimento amplo e próximo da realidade
encontrada.

O segundo buraco da educação é a falta de integração entre


os diversos conhecimentos e as matérias. Existe uma divisão
didática utilizada pelas escolas, porém essa divisão não existe no
contexto da realidade. De acordo com Morin (2014), “o que existe
entre as disciplinas é invisível e as conexões entre elas também
são invisíveis, isto não significa que seja necessário conhecer
somente uma parte da realidade, é preciso ter uma visão que
possa situar o conjunto”. Dessa forma, é necessário dizer que não
é a quantidade de informações que gera sozinha um conhecimento
pertinente e, sim, a capacidade de colocar o conhecimento no

182
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

contexto. Essa realidade social é multidimensional, abordada por


várias disciplinas, e, quando analisamos a realidade, utilizando
uma só faculdade mental, apenas uma disciplina como base,
apenas uma dimensão dessa sociedade é entendida, por isso, é
necessário contextualizar todos os dados. O PBL resolve essa
situação quando apresenta os cenários médicos e a realidade para
ensinar o aluno. Sendo assim, o conhecimento é construído a
partir do aprendizado de todas as disciplinas bem como da
aplicação de todas essas matérias nos cenários médicos, no
contexto atual, integrando todas elas e formando visão completa
do conhecimento. Edgar Morin (2014) cita Pascal (XVII), o qual
pode esclarecer as afirmações acima: “não se pode conhecer as
partes sem conhecer o todo, nem conhecer o todo sem conhecer
as partes”.

A terceira falha relata a falta de identidade humana na


trajetória da educação. É curioso que nossa identidade seja
ignorada pelos programas de instrução. A citação de Edgar Morin
(2014) nos faz perceber a importância de aprender ser um ser
social e de preservar sua identidade humana para ser um bom
profissional e se relacionar com a sociedade. “O relacionamento
entre indivíduo-sociedade-espécie é como a trindade divina, um
dos termos gera o outro e um se encontra no outro. A realidade
humana é trinitária”. Por fim, devemos convergir todas as
disciplinas conhecidas e graduações para a formação da identidade
e a construção humana. Na faculdade de medicina do UniCEUB, há
o eixo educacional Profissionalismo, o qual existe para fazer essa
interação entre os conteúdos, aplicar os aprendizados no contexto
da realidade médica e desenvolver o caráter individual e único de
cada estudante.

183
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

O quarto aspecto é sobre a compreensão humana, também


abordada no PBL, nos eixos educacionais IESC e em Habilidades e
Atitudes. Essas matérias estimulam o desenvolvimento da empatia
e, por fim, possibilitam mais compreensão para/com o próximo.

O quinto furo é a incerteza. Atualmente, a ciência ensina


apenas certezas, porém, na realidade, o conhecimento pode
sempre abordar incertezas e erros. Nenhum ser humano é igual a
outro, portanto, nenhuma patologia vai se comportar de forma
igual em pessoas tão singulares. Tal fato só pode ser explicitado na
vivência cotidiana dos hospitais e conhecendo vários pacientes
diferentes com patologias iguais, porém que se comportam de
forma única naquela pessoa. Visto que até a patologia respeita a
individualidade do ser humano, o médico é mais que obrigado a
entender e abordar essa individualidade, a fim de efetivar o
tratamento dos seus pacientes.

No sexto aspecto, o autor relata como o conhecimento e a


educação não acompanharam a globalização. O nome dado a esse
aspecto é condição planetária. A educação não aborda o
conhecimento de forma interligada, não acompanha a rapidez que
a atualidade faz ir e vir uma informação, não acompanha o modo
como uma informação pode ser alterada e, também, não se
mostra maior do que as diferenças culturais e sociais encontradas
e exacerbadas pela globalização no contexto moderno. Morin
(2014) cita Ortega y Gasset: “não sabemos o que acontece, isto é
o que acontece” para explicar que é necessária certa distância com
o conhecimento imediato para poder compreendê-lo, e no contexto
atual, no qual tudo é acelerado e tudo é complexo, é quase
impossível essa compreensão. Porém, ao se estudar em uma
faculdade que adota o método PBL, no qual o próprio aluno tem de
buscar seu próprio conhecimento, utilizando todas as plataformas

184
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

de pesquisa e se aproximando da informação globalizada, ele


percebe como a informação é mutável, como o conhecimento é
algo construído e mutável e como o ser humano é incapaz de
saber tudo, sempre se deparando com inúmeras formas diferentes
de considerar um mesmo assunto e até divergências entre esse
mesmo assunto.

O último aspecto abordado é o antropoético ao relatar que os


problemas da moral e da ética diferem entre culturas e na
natureza humana. Esse fato é retratado nas práticas diárias dos
hospitais quando conhecemos diferentes pacientes, com
pensamentos, emoções e construções culturais e sociais diferentes
e aprendemos a lidar com cada um deles, respeitando suas
particularidades. É importante ressaltar que há moral e ética
neutras, inclusive estabelecidas pela organização médica e
publicadas no Código de Ética Médica, o qual deve guiar todas as
condutas dos profissionais da saúde.

Espero que consigam extrair o máximo de informações e


aprendizados deste capítulo e que os cenários encontrados guiem
vocês a reflexões esclarecedoras. Por fim, espero que ao final da
leitura deste capítulo a premissa contemporânea de que uma boa
pessoa forma um bom profissional, e nesse contexto, um bom
médico, esteja clara e guie a conduta de todos os estudantes de
medicina.

Referências

COLARES, Maria de Fátima Aveiro; ANDRADE, Antônio dos Santos.


Atividades grupais reflexivas com estudantes de medicina. Revista
Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, p. 101-
114, mar. 2009.

185
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

ESTRADA, Adrian Alvarez. Os fundamentos da teoria da


complexidade em Edgar Morin. Akrópolis – Revista de Ciências
Humanas da UNIPAR, v. 17, n. 2, p. 85-90, abr./jun. 2009.

MORIN, Edgar. Os setes saberes necessários à educação do futuro.


São Paulo: Cortez, 2014.

NARRATIVAS

Uma denúncia: a história das três meninas

Marina Batista Kaminski

Havia três meninas na sala de atendimento. Era uma tarde


de terça-feira, no mês de março, do ano de 2020. A data em si
não é tão relevante quanto os acontecimentos que aqui serão
narrados, mas o ponto é: era uma tarde quente. A sala era um
quarto de internações da ala de ginecologia e obstetrícia do HRP,
localizado no Distrito Federal, a alguns quilômetros de Brasília.
Havia três meninas na sala, as três com os seus corações partidos.
E, sim, meninas, não mulheres adultas nem crianças, mas
meninas! Uma delas era a menina do jaleco branco, mais
conhecida como estudante de medicina ou futura doutora ou
doutora, para os preguiçosos, tinha 21 anos, vestia-se de jaleco e,
a partir dali, empoderava-se daquela profissão que nem era dela
ainda, trazia um ar intelectual para a sala, uma confiança como de
quem sabe de tudo, porém, como a menina que ainda era, ela
mesma sabia que lhe faltava muito conhecimento ainda e, no bolso
do seu jaleco, ao lado do seu estetoscópio e das suas canetas,
escondia uma insegurança sem igual. A segunda menina era a
paciente, a entrevistada, acompanhada pela mãe, com marcha,
postura e fala atípica, fora da normalidade fisiológica do ser
humano, ela demonstrava estar doente, demonstrava dor. Uma
menina muito alegre com aspecto de criança, meio moleca ainda,

186
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

era de Planaltina, mais precisamente, de Arapoanga. Humilde e


sem muito entendimento de nada, porém exaltava uma ignorância
inteligente com seus olhos brilhantes e lindos, tinha apenas 15
anos, grávida de 12 semanas, diagnosticada com incontinência
istmo cervical, sofria de forma silenciosa, pela dor no pé de sua
barriga e pela chance de perder seu tão amado bebê. A terceira
menina era uma figurante apenas, não sei seu nome e, muito
menos, suas características, sei que ela estava deitada na maca ao
lado da segunda menina e se encontrava com muita dor, encolhida
e quieta em seu canto, não falava ou sequer soltava sons que
tornassem perceptível a dor que ela sentia ou a sua presença na
sala, porém seus suspiros, por mais silenciosos que fossem,
deixavam clara a imensidão de dor em que ela se encontrava.

A tarde era quente, e havia três meninas na sala, porém


também havia muitas outras pessoas, homens e mulheres, cada
mulher gestante ou puérpera, deitada em sua maca e
acompanhada de seu acompanhante. Havia três meninas na sala,
as três com os seus corações partidos. A menina de jaleco
começou a tarefa que lhe foi passada: fazer a anamnese da
paciente designada a ela, a segunda menina. A anamnese era
longa e chata, a tarefa era apenas seguir um roteiro e, a partir
dali, conseguir gerar empatia pela paciente, conexão, estimular
confiança e, se possível, ajudar no quadro clínico, reduzir o
sofrimento da enferma. Assim, iniciou-se a história, com perguntas
maçantes e fechadas, tiradas diretamente de um roteiro que não é
referência e, muito menos, seguido pela maioria dos médicos hoje
em dia. A menina de jaleco perguntou: nome, idade, profissão,
data de nascimento, naturalidade, procedência..., até que chegou
na parte dos antecedentes ginecológicos da paciente, uma parte
com perguntas um pouco constrangedoras para uma menina com

187
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

apenas 15 anos responder e para outra menina com apenas 21


anos perguntar, a qual estava sempre se protegendo das respostas
com um jaleco, o seu escudo. A menina de jaleco, então,
perguntou: “com quantos anos você teve sua primeira relação
sexual?”, e a paciente respondeu: “tive com 14”, e as perguntas
continuaram: “sua vida sexual atualmente é ativa?”, resposta:
“sim, estou namorando”, “quando foi sua última menstruação?”,
“como é seu ciclo menstrual?”, “por quantos dias você fica
menstruada?”, “por quantos dias você não fica menstruada?”,
“quantos absorventes você costuma usar em um dia de
menstruação?”, “geralmente tem cólica, Tensão Pré-Menstrual
(TPM)?”. Perguntas eram feitas de forma ininterrupta, e respostas
eram lançadas de forma direta, fria e continuamente, ecoando pela
sala quente. O ápice foi: “você já teve quantos parceiros sexuais
na vida?”. Nesse momento, a menina de jaleco se distraiu com as
informações que responderam essa pergunta, e nada mais por ela
foi visto, nada além do rosto e das reações da segunda menina. A
segunda menina respondeu de forma calma, aterrorizante e sem
ter a mínima noção da seriedade do fato que estava contando,
parecia estar sendo abençoada pela sua ignorância inteligente:
“tive três ou quatro ou mais, fui estuprada, não me lembro por
quantos”. A palavra dita de forma errônea exalta a tese desta
narrativa, nada bem estruturada, a menina paciente de apenas 15
anos, que carregava um bebê do namorado e ostentava um sorriso
sem igual, uma felicidade que, mesmo lotada de dor e de
medicamentos, transparecia a moleca que ela era, carregava não
apenas um filho como também um coração partido. Era nítido o
despreparo dela para a dor que carregava, seus olhos brilhavam
não por amor ou felicidade, mas, sim, pela ignorância inteligente
que a guiava pelos caminhos tortuosos da vida. Ela havia sido
estuprada aos 14 anos, e nem ela ou sua mãe apresentavam a

188
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

menor noção ou reação de tamanha seriedade do assunto


abordado naquela conversa em uma sala quente de março.

Havia três meninas na sala, as três com os seus corações


partidos. A menina de jaleco tentou usar mais uma vez seu jaleco
como escudo, mas a sala havia se tornado mais quente e a
vontade era de tirar o jaleco, de tirar o seu escudo. A vontade
era... mal ela sabia, a confusão mental tomou conta de suas
ações, e, naquele momento, a sua única reação foi perguntar se,
há um ano, a segunda menina tinha seguido o protocolo de apoio
para as vítimas de violação sexual de forma correta e se já tinha
recebido todas as orientações necessárias. Violação sexual? Sim,
ela não conseguia falar estupro, as aulas de profissionalismo
haviam encenado aquela situação, mas, nos teatros, a atriz
chorava e gritava, e essa menina mantinha seu sorriso, mesmo de
forma abalada e triste, a sua ignorância inteligente era seu escudo,
igual ao jaleco para a futura médica. “Você teve coragem de ir à
polícia?”, a menina de jaleco soltou em meio a sua confusão
mental e suas reações nada empáticas. A paciente respondeu:
“sim, mas não fizeram nada”. E foi essa resposta que a encheu de
força, tanta força que ela se expôs e contou um de seus maiores
traumas e dores. A narrativa dela embasou uma semana de
pesadelos da futura doutora.

Havia três meninas na sala, as três com seus corações


partidos, uma mais corajosa que a outra. A segunda menina,
então, começou a contar até que seu sorriso no rosto sumiu e seus
olhos não brilharam mais, mesmo que por minutos. “Por isso eu
parei de estudar, estava no oitavo ano, saí da escola no horário
normal, eu juro mãe! Quando eu saí, vi um menino de mochila me
seguindo no caminho de casa, esse menino começou a correr atrás
de mim, e, como não sou boba nem nada, corri também, corri e

189
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

corri, até que ele conseguiu me alcançar, e ele já não estava mais
sozinho, um carro parou ao meu lado. Havia três homens no carro.
Um deles gritou para eu entrar no carro, fiquei com medo e entrei,
o menino de mochila também entrou e sentou do meu lado. Eles
riam de mim e mexiam comigo, mexiam muito no meu cabelo.
Falavam que eu era bonita, safada, e que me envergariam, que
nada mais seria feito de mim. Falavam que eu não seria mais
nada. Eu chorei. Um deles tentou me beijar, eu tentei me
defender. Eu gritei. Até que o carro parou, admito não ter visto o
caminho, era muita coisa para pensar, então, sim, eu estava
perdida. Pararam o carro em um terreno baldio e lá tiraram minhas
roupas, ou parte delas. Graças a Deus, nesse momento, eles
bateram a minha cabeça numa pedra, ou eu tropecei e caí, e, a
partir daí, eu não me lembro mais de nada. Acordei no terreno
baldio, no dia seguinte, ou dois dias depois, eu nem sei. Estava
com meu corpo todo doendo, tinha sangue em algum lugar,
conseguia ver o sangue, mas não sabia de onde era, não
conseguia falar, sentia nojo de mim, nunca tomei tantos banhos na
minha vida, quando consegui chegar em casa, lembro de me
esfregar e limpar e o cheiro não saía de mim. Saí do terreno baldio
e voltei nua andando para casa, não sei como cheguei ou como
sabia o caminho de volta para casa, sei que cheguei e que nunca
tomei tantos banhos na vida. Em casa, minha mãe estava doida
atrás de mim, já tinha até chamado a polícia, quando a vi, chorei,
não conseguia falar”. A mãe da segunda menina, tão calada e
abençoada pela sua ignorância inteligente, então, interrompeu a
narrativa com as suas observações: “Essa menina não falava, ela
parecia estar drogada, não reagia, estava completamente passada,
ela não comia. Eu não entendia o que tinha acontecido com ela.
Chegou dois dias depois pelada e drogada, já tinha passado dos
limites, mas sumir nunca foi dela, eu sabia que algo estava errado.

190
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Ela só dormia, não falava e não comia, ficou um tempo assim,


mais que uma semana. Achei que ela tinha ido para a rua beber e
encher a cara, usar droga, porém ela nunca tinha voltado sem
falar. Ela não falava. Levei ela no médico, parece que lá ela
conseguiu contar alguma coisa, fomos à polícia, mas quem que
acreditaria numa menina passada igual a ela? Ela não falava. Nem
preciso falar que a polícia não fez nada com aqueles vagabundos
que pegaram minha filha, se eu achar um deles na rua, eu mato
um por um! Só depois do tratamento para depressão que ela
voltou a falar. Foram quase seis meses sem ouvir a voz dela
direito”.

Havia três meninas na sala e uma mulher. A mulher era, no


mínimo, a mãe da segunda menina. Havia três meninas e uma
mulher na sala, as quatro com os seus corações partidos. A
menina de jaleco apertou a prancheta contra o peito. O dia era em
março, e a sala, em Planaltina. A sala estava quente. O jaleco
estava na cadeira. A menina de jaleco, com o seu coração em
pedaços, vestiu-se de médica, colocou o jaleco e resolveu,
finalmente, admitir que não era forte o suficiente para ouvir aquilo.
Falou que precisava ir ao banheiro para lavar as mãos, pois
começaria o exame físico. Imagina tocar na segunda menina após
a narrativa dela. A menina de jaleco não sabia nem se podia mais,
havia criado uma conexão com a paciente tão forte que ela mesmo
se desestabilizou, ela mesma não conseguia mais fazer o exame
físico. Pelos corredores, a menina de jaleco procurou auxílio,
procurou sua professora. A menina vestida de mulher e fantasiada
de médica achou a verdadeira mulher e a verdadeira médica, em
uma só pessoa, no corredor, a sua professora, uma médica
ginecologista capaz de resolver, pelo menos, algum dos problemas
da paciente, a menina de jaleco assim esperava. Contou a história

191
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

rapidamente, na forma mais direta possível, pois médicos e


professores sempre foram impacientes, e essa mulher era os dois,
tanto médica quanto professora, imagina a impaciência que seria
demonstrada nos próximos segundos. A mulher doutora e
professora respondeu: “essa menina é passada mesmo. Isso já foi
tratado com ela várias vezes, não endossa esse testemunho, foque
na sua anamnese e no seu exame físico que esse é o seu trabalho
aqui, treinar o que já aprendeu. Ela está contando isso porque a
menina deitada ao lado dela também foi vítima de abuso sexual”.
A menina de jaleco engoliu seco, não entendeu a resposta da
professora, mas entendeu sua tarefa. Voltou para a sala,
vagarosamente, mas o corredor a prendia. A sala era sufocante. O
jaleco saiu da menina.

Havia três meninas naquela sala, as três com seus corações


partidos, as três acordando com pesadelos, as três sendo guiadas
pelas suas ignorâncias inteligentes. Meninas? Sim, meninas, posso
escutar minha mãe me corrigindo de longe: “você é uma mulher,
Marina, adulta!”, mas, não. Havia três meninas naquela sala, as
três com os seus corações partidos.

Relato de uma frustração

Júlia Prates Mallab

No terceiro semestre do curso de medicina, todos os alunos


estão muito animados com as famílias que vão receber, para
acompanhar até o fim do curso, e, comigo, não foi diferente. Ao
chegarmos na casa da família que eu ficaria responsável, sentamo-
nos na sala para começar a entrevista. Era uma casa simples e
acolhedora, porém o estado de higiene não era muito bom, o sofá
estava cheio de restos de comida e, no chão, havia alguns lixos

192
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

que não tinham sido recolhidos. Tirando isso, era uma casa de
alvenaria, mobiliada, que “acolhia”, perfeitamente, toda a família,
composta por cinco pessoas: Marlene, a mãe; Katiane, a filha, de
21 anos; Thiago, o filho, de 15 anos; Richard, o neto de Marlene, a
mãe dele não mora com eles; Lucas, o filho de Katiane, de 2 anos.
Devido ao horário da visita, Thiago estava na escola. Marlene se
demonstrou muito aberta e receptiva às perguntas e à nossa
presença. Katiane, ao contrário, estava tímida e envergonhada.

Após o primeiro contato, achei que seria uma família em que


nossa presença poderia fazer diferença. Richard sofria com a falta
dos pais. Thiago é portador da doença de Coats, o que estava
levando à perda da sua visão e o deixava triste e excluído
socialmente, porém ambos já estavam sendo acompanhados por
profissionais da área médica e psicólogos. Katiane foi com quem
eu mais me identifiquei, devido à proximidade da idade, e, de
acordo com a sua história, acreditei que poderia ajudá-la.

Katiane engravidou na adolescência, essa gravidez progrediu


para a morte fetal, devido a complicações da sífilis. Após esse
episódio, ela foi tratada da Infecção Sexualmente Transmissível
(IST) e liberada para casa. Aos 19 anos, engravidou novamente e,
no momento do parto, descobriram que ela era, novamente,
portadora de sífilis. Seu filho, Lucas, nasceu com sífilis congênita.
Ambos foram tratados e não apresentaram sequela alguma. Aos
21 anos, ela engravidou novamente e, durante o pré-natal, o
exame para sífilis veio positivo, pela terceira vez.

Em todas as visitas, conversamos com ela sobre a gravidade


da sífilis e a importância do uso de preservativos. Tentei explicar
de diversas formas, levei uma cartilha, pedi ao professor que me
acompanhasse para ajudar, falei com ela das complicações,
conversei com a mãe dela. Usei abordagens mais profissionais ou

193
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

mais amigáveis. Mas, de todas as formas, ela não olhava para a


gente durante a conversa e apenas demonstrava que estava
entendendo e iria mudar seus comportamentos. Durante esses
episódios, um que mais me marcou foi quando expliquei as
consequências neurológicas da sífilis terciária para a mãe dela, que
respondeu “Katiane já era doida” e riu, assim, percebi que elas não
entendiam a gravidade da situação. Após diversas visitas, com
estratégias diferentes, não sabia mais o que fazer para informá-las
corretamente.

Depois de cada visita, sentia-me frustrada, principalmente


quando recebemos a confirmação de que ela estava com sífilis pela
terceira vez. Abordar um assunto sério, como IST e gravidez na
adolescência, e não conseguir ser eficaz me deixou com
sentimento de culpa. Comecei a pensar que a paciente estava
tendo as recidivas, pois eu não estava explicando da forma
correta. Depois de usar todos os artifícios que pensei para tentar
ajudá-la, comecei a me sentir frustrada e impotente, uma vez que
não havia conseguido obter êxito.

Portanto, esses episódios me ajudaram a não desistir,


sempre procurar outras formas de realizar novas abordagens, a ter
perseverança e perceber que as coisas não vão acontecer como
acreditamos. Essa incerteza irá nos acompanhar durante toda a
vida na medicina, e precisamos aceitá-la. Durante as discussões
com os professores, após as visitas, ouvi uma frase que me
marcou e ajudou a entender o que eu havia vivido: “primeiro, o
paciente precisa se importar com a vida dele, para que, depois,
possamos ajudá-lo com o que precisa”.

194
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Ciclos

Kamila Catta Preta Carneiro de Sousa

A vida é repleta de ciclos, e estamos sempre conhecendo


alguém, aprendendo algo novo, errando, corrigindo, acertando,
caindo e levantando. Tudo pode se tornar um aprendizado. Em
2020, iniciou-se um novo ciclo, um pouco diferente do que se
estava acostumado, com novos mestres, novas diretrizes e novos
desafios.

Em uma tarde quente de uma terça-feira, todos estavam


animados com o primeiro dia de prática, no ciclo clínico, 18 de
fevereiro de 2020, quando conhecemos nossa primeira paciente.
Ela estava internada no HRP, aguardando o último exame de sua
filha recém-nascida, o teste da orelhinha, para poder voltar para
casa, em Alto Paraíso/GO. A paciente estava tranquila, sua única
preocupação era chegar logo em casa, para descansar e
apresentar a pequena para a sua família.

Perguntamos se poderíamos fazer algumas perguntas e


realizar alguns exames, como de costume, e a paciente autorizou
sem achar ruim e foi supercompreensiva, repetia respostas e
escutava tudo com muita atenção. Ao contar a história dela, eu e a
minha dupla ficamos muito surpresas. De maneira sucinta, ela
havia sentido contrações e dado entrada em um hospital na cidade
onde reside, e, com o aumento da frequência e da intensidade das
contrações, a paciente foi colocada em uma ambulância para que o
parto fosse realizado no HRP, mas, no caminho, ainda na
ambulância, ela deu à luz uma menina, sem grave intercorrência.
No entanto, o que mais surpreendeu, em toda essa situação, foi a
serenidade com que a paciente relatou o que viveu.

195
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

No contexto em que ela teve a filha, era de se esperar


sentimentos de medo da situação, de desespero, de insegurança e
diversas sensações ruins a respeito do que poderia ou não
acontecer naquele momento. Mas, ao ser questionada sobre como
estava se sentindo na hora em que deu à luz, Percília relatou que o
seu único medo era de não ter força suficiente para que sua filha
nascesse, mas que foi tudo muito rápido, e ela ficou feliz de ter
conseguido e chegado em segurança ao hospital. Esse sentimento
de felicidade e amor por sua filha superou todos os outros
sentimentos que poderiam estar presentes naquele momento, e
isso surpreendeu um pouco, pois, na maior parte das vezes, não
somente em situações extremas, mas em situações cotidianas, as
sensações negativas tendem a pesar mais que as positivas.

Por mais difícil que seja ter pensamento positivo e força de


vontade para seguir em frente, é importante que, no caminho,
tenha-se esperança, amor, felicidade e que não se deixe desviar
ou desistir por pensamentos e sentimentos negativos. Na
medicina, aprende-se que a vida humana é a coisa mais
importante que existe e que cada um está em um caminho
diferente, vivendo algo diferente, podendo sempre aprender e
ensinar um com o outro. Cada nova história acrescenta algo na
nossa vida e enriquece o nosso caminho.

Pé diabético no HRAN

Jordana Lopes de Lucena

Em meados de maio de 2019, em uma terça-feira, combinei,


com uma colega de sala, uma visita ao ambulatório de Pé
Diabético, no HRAN, para acompanhar os pacientes junto à dra.
Lílian, endocrinologista especialista em diabetes. Ao chegarmos no

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

local, no início da manhã, eu e minha colega nos deparamos com


grande quantidade de pessoas esperando por um atendimento na
sala de espera. Pessoas de todas as idades, raças, e todas
demonstrando seu sofrimento pelos seus olhares ansiosos. No
mesmo momento, fui tomada por um sentimento de impotência,
porque, apesar de querer intensamente ajudá-los, ainda não tinha
a capacidade para tal.

Fomos adentrando o hospital, até chegarmos ao consultório


da dra. Lílian, o qual, por sua vez, continha duas macas para
exame físico dos pacientes. Por volta de 8h, os atendimentos
começaram, dois pacientes ao mesmo tempo chegando e
ocupando os leitos, todos portadores de diabetes e com
complicações de pé diabético. A maioria dos pacientes eram
idosos, com os pés extensivamente machucados, muitos deles
cobertos de úlceras e, em alguns casos, com algum membro
amputado. A dra. Lílian colhia as histórias da maneira mais
detalhada possível, mas, em virtude da quantidade de pessoas
esperando para o atendimento naquele ambulatório, que só ocorria
às terças-feiras, muitas vezes, não era possível colher todas as
informações necessárias, e pude sentir frustração nisso – falta de
tempo e espaço, impedindo a boa abordagem com os pacientes e o
colhimento completo de suas histórias.

Após algum tempo, chegou um paciente, de nome José, com


uma história diferente. Acompanhado pela filha, o paciente relatou
ser trabalhador rural, residente e procedente de sua fazenda, no
interior de Goiás. Chegou ao ambulatório com queixas de
formigamentos e agulhadas no pé direito e relatou ser portador de
diabetes tipo 2, há 15 anos. Porém, até pouco tempo, fazia uso de
álcool e tabaco, tendo parado há pouco mais de 2 anos. Relatou
que não fazia dieta pelas más condições de vida e por não ter

197
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

condições financeiras de comprar coisas saudáveis, por isso,


muitas vezes, comia o que havia disponível. Seu sotaque mineiro
forte e sua humildade demonstraram-nos que não era apenas um
paciente portador de diabetes, o que me fez perceber a
individualidade de cada um e as suas respectivas necessidades.
Sua filha, ao lado, comentava que o pai não tomava as medidas
necessárias para prevenção das complicações da doença.

Ele relatou, também, que o seu pé piorou porque, como é


trabalhador rural, passava o dia inteiro praticamente de botina e,
quando chegava em casa, tomava um banho e, por causa de seu
cansaço e exaustão, não tinha energia e tempo para lavar os pés
adequadamente, às vezes, até esquecia. José sempre respondia às
perguntas com bom humor, fazendo piadas com sua situação.
Relatou que, nos últimos dias, sentia muito adormecimento nos
pés, além dos formigamentos e agulhadas já relatados. Ao
iniciarmos o exame físico, notamos diversas feridas, porém todas
em estado inicial. Ao final, ele acrescentou que estava muito feliz
de ter conseguido a consulta. Disse que, naquele dia, tinha
acordado às 3 horas da manhã, se arrumado e saído de sua
fazenda às 4 horas, pegando vários ônibus até chegar a Brasília,
para aquela consulta que, após um longo período na sala de
espera, foi iniciada às 10h30, durando apenas 15 minutos. Ele se
despediu de nós com um sincero “obrigado”.

Nesses 15 minutos, aprendi mais do que em uma semana de


aula, foram aprendizados que levarei por toda a minha carreira
médica. Aprendi não só as habilidades médicas, mas o quanto a
experiência individual do paciente deve ser reconhecida como
importante no diagnóstico e na sua abordagem. Aprendi que, às
vezes, o paciente anseia por aquele momento e, se não damos a
devida importância a ele, podemos frustrá-lo. Aprendi como a

198
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

humanização da medicina é importante nos dias atuais. Em


tempos de modernidade líquida, de acordo com Bauman (2007),
as relações sociais são frágeis, fugazes e maleáveis, porém temos,
em nossas mãos, a oportunidade de fazer diferente. De olhar
profundamente para cada um e extrair, mesmo que em apenas 15
minutos, detalhes de sua história que fazem mais diferença do que
qualquer outra coisa. Na medicina, acredito que a liquefação das
relações é particularmente perigosa; no entanto, em virtude do
pouco tempo disponível para o atendimento de cada paciente,
muitas vezes ela se concretiza, e a conexão e a relação médico-
paciente são cada vez mais prejudicadas.

Em alguns momentos, tudo que o paciente quer ouvir é “vou


cuidar de você” e sentir que sua ida àquela consulta valeu a pena e
que respondemos a seus anseios. Devemos reconhecer, cada vez
mais, que uma consulta vai muito mais além do que uma breve
anamnese e um exame físico, na busca de alguma patologia. Para
ser um verdadeiro médico, deve-se ter em mente que não só os
fatores biológicos, mas todas as relações de trabalho, sociais e as
dificuldades diárias do paciente importam, além da experiência da
doença de cada um deles. Como a doença impacta sua vida diária,
interferindo em todas essas relações. Espero, no futuro, ser uma
profissional que preza por tais aspectos, reconhecendo o valor da
individualidade de cada um, mesmo que atenda a diversos
pacientes ao longo de um curto período de tempo.

Referência

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução Carlos Alberto


Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

199
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Um sentimento positivo de esperança

Juliana Harumi Yajima

Terça-feira, era mais uma vez dia de os alunos do quinto


semestre do curso de medicina do UniCEUB visitarem os hospitais
e colherem a história clínica dos pacientes. O cenário de minha
turma era o HRAN, e, após uma pequena confusão quanto ao
número do quarto que deveríamos atender, eu e minha dupla,
finalmente, chegamos ao local onde o paciente que deveríamos
entrevistar estaria nos esperando. O quarto estava bem iluminado,
e um jovem rapaz nos recebeu muito bem. Ao lado de seu leito,
estava uma bela pintura feita por ele mesmo em uma bandeja de
papelão, estando seus instrumentos artísticos sobre uma mesa no
canto do quarto, próxima à janela.

O jovem não pareceu se incomodar com nossa visita, já


tendo sido previamente avisado, e se mostrou bastante
colaborativo. Mesmo com um longo roteiro de perguntas e exames
físicos que tínhamos de fazer, ele se mostrou bem-disposto.
Porém, ao longo da entrevista, um passado conturbado se
mostrou, contrastando com o jovem que estava diante de nós.

Ele era residente de Planaltina, do mesmo bairro que nós,


estudantes, costumávamos visitar nas atividades de IESC,
Arapoanga, uma coincidência que nos surpreendeu. Desde o
nascimento, a vida já colocou obstáculos para ele, sua mãe não
teve dilatação do colo do útero, sendo necessária uma cesariana.
Aos seis anos, sofreu abuso sexual de um primo, o que atribui
como provável motivo que o levou ao início precoce de sua vida
sexual, aos 13 anos. Começou a fumar aos 16 anos e, após isso,
passou a utilizar outras drogas, como cocaína e maconha. Ele

200
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

apresentava depressão e, eventualmente, alguns surtos


psiquiátricos. Em sua própria família, havia grande número de
casos de distúrbios psiquiátricos, incluindo um caso de suicídio.

Continuamos com a entrevista e cada vez mais nos


sensibilizamos com tudo que ele passara com apenas seus 20 anos
de vida. Seu ponto de virada ocorreu três meses atrás, quando
recebeu o diagnóstico de HIV+. O seu desespero foi tanto que
tomou uma overdose de LSD – a substância alucinógena
dietilamida do ácido lisérgico – que o levou a um surto psicótico e
a uma parada cardiorrespiratória, sendo levado ao HRP. A
ressuscitação foi bem-sucedida e, para aquele jovem, foi como se
ele realmente tivesse morrido e nascido novamente.

Seu encontro com a quase morte o fez perceber o valor de


sua vida. Acredito que o apoio familiar foi de grande importância
para ele naquele momento difícil, visto a forma afetiva que ele
falava de sua família, quando lhe perguntamos sobre os aspectos
familiares da entrevista. Ele jurou que nunca mais usaria LSD e
recomeçou sua vida, com o objetivo de se tornar um psicólogo e
poder ajudar as pessoas.

Infelizmente, a sua vida não se seguiu sem complicações,


uma vez que, após isso e com apenas três meses de intervalo, ele
precisou retornar ao hospital devido a uma dor intensa no “céu da
boca”, que se iniciou após uma limpeza dentária e evoluiu com
sangramentos e outros sintomas associados. Recebeu, então, o
diagnóstico de câncer, um Sarcoma de Kaposi, outra notícia difícil
e que, inicialmente, foi um choque, mas, com o apoio de sua
família e de médicos, que o explicaram de forma clara sobre sua
doença e o tratamento que faria, está conseguindo passar por esse
momento difícil, de forma bem mais tranquila que três meses
atrás.

201
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Graças ao apoio que ele recebeu, encontramos, naquele dia,


não um jovem depressivo e temeroso sobre o tratamento e o seu
futuro, mas, sim, um jovem bem-disposto e esperançoso sobre seu
futuro, sobre seu sonho que teve de ser adiado por um ano para o
tratamento, mas que ele seguia sem medo.

Apesar da trajetória difícil daquele jovem e de todos os


problemas que ele nos relatou, ao nos despedirmos dele e sairmos,
o sentimento que predominava em mim não era tristeza ou pena
dele, era também um sentimento positivo de esperança de que ele
superaria sua doença e realizaria seu objetivo assim como o desejo
de me tornar uma boa médica que poderia ajudar pacientes como
ele.

Um exemplo de como a condição física do


paciente pode desestabilizar o seu psicológico

Aléxia Gonçalves dos Santos

Durante o quarto semestre do curso de medicina, eu fui


apresentada à minha nova família, do eixo educacional IESC, no
qual devemos treinar a nossa habilidade de comunicação tão
quanto as habilidades de exame físico. A família antiga não tinha
tempo para estar presente durante as visitas, portanto, fui
designada a uma nova, constituída por uma cadeirante, Catarina, e
por seu filho adolescente, Michel. Durante a minha primeira vista,
percebi que Catarina demandava muita atenção, devido,
principalmente, à sua deficiência, adquirida após um acidente de
carro, como também psicologicamente exacerbada pela situação
em que a paciente se encontrava. Durante a anamnese, foi
possível avaliar a alta dificuldade da paciente para perceber e
procurar qualquer tipo de ajuda profissional, ela me indagava,

202
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

principalmente, questões que o filho estava passando, como


dificuldade de concentração na escola, além de súbito diagnóstico
de miopia. A grande dificuldade que eu estava passando era a de
esclarecer que a visita domiciliar e os serviços eram também
destinados a ela e que, devido à sua condição, alguns hábitos de
vida e costumes deveriam ser modificados e adaptados. A
paciente, que é fumante e, ocasionalmente, etilista, ficou
desconcertada quando percebeu o quanto a atenção estava voltada
a ela e o quanto era necessário.

Durante a revisão de sistemas, perguntei sobre o seu sistema


geniturinário, a paciente apresentava uma secreção de forte odor,
com cor amarelada e eventual sangramento. Percebi que, pela sua
condição, não deveria perguntar se algum outro sintoma de
sensibilidade pudesse ser percebido, como dor, prurido ou
irritação; na ficha de exames, havia uma hipótese diagnóstica:
bartolinite. Por um segundo, a dúvida na minha cabeça foi trocada
por vergonha; primeiro, pelo questionamento do diagnóstico, visto
que a principal característica da paciente com bartolinite é a dor
exacerbada ao sentar, e, segundo, por não ter pensado que a
paciente Catarina não tem sensibilidade na área pélvica do corpo,
portanto, não seria possível usar esse critério para estabelecer o
diagnóstico. A grande dificuldade para o diagnóstico, eu percebi,
foi a necessidade de avaliação caso a caso, o porquê que se deve
conversar com o paciente e não, simplesmente, preencher uma
lista de perguntas com respostas que, depois, de alguma forma,
irão se encaixar em um diagnóstico específico.

A paciente relatava também que ia pouco ao banheiro, pois


tinha preguiça de urinar e, como consequência, bebia pouca água
durante o dia. Com todas essas informações, foi possível traçar o
perfil da paciente e poder estabelecer algum tipo de medida

203
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

terapêutica, como um estímulo para que ela parasse de fumar com


tanta frequência e adaptasse o seu dia a dia para ingerir mais
água. No final da primeira consulta, a paciente perguntou se
poderia pegar meu telefone pessoal, para tirar qualquer dúvida,
como, inicialmente, não vi problema, cedi a ela, e, mais tarde, a
agente de saúde me advertiu para que eu pudesse conhecer meus
limites e, assim, estar mais à vontade a ceder ou não o meu
telefone, já que não sou a médica efetiva dela.

Alguns dias depois, Catarina me enviou mensagens,


perguntando sobre as consultas dela ou querendo apenas
conversar, e aquilo, subitamente, me fez questionar os limites que
eu, como profissional, desejo estabelecer com os meus pacientes.
Respondi às perguntas de maneira profissional, sem deixar espaço
para que outras perguntas pudessem ser criadas ou qualquer tipo
de situação pudesse ser mal interpretada. Com o final do
semestre, durante as férias, a paciente continuou me mandando
mensagens, respondi que, como estava no período de férias, não
iríamos às visitas e que retornaríamos no próximo semestre. Já
com o início do semestre e aquela situação me deixando
desconfortável, fui perguntar para a nova professora da matéria
qual seria o melhor posicionamento a ser tomado. Com isso, ela
me instruiu a responder à paciente que não deveria me fazer
aquelas perguntas e que, sim, deveria indagar o agente se saúde
que estava em contato direto com ela e com os profissionais que
teriam, de fato, uma atuação efetiva em relação a qualquer dúvida
que ela pudesse ter.

Toda essa situação me fez pensar mais sobre como a


condição física do paciente pode desestabilizar o seu psicológico e,
novamente, como é necessário tratá-lo como um todo, procurando
a melhor medida terapêutica, para que o dia a dia seja mais

204
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

confortável, sem fazer com que o paciente, eventualmente,


procure por escapes como, no caso de Catarina, o fumo. Em
conjunto, todo o acontecimento me fez pensar melhor em como
devo lidar com os pacientes e como devo me portar frente a uma
situação que me deixa desconfortável, sem que qualquer atitude
minha possa repercutir de forma negativa no dia a dia do
indivíduo, e, mesmo assim, respeitando os meus limites como
profissional.

No momento em que recebeu o diagnóstico


“quase pirou”

Cristiano Hoff Britto Dias

Em nossa segunda visita ao HRAN, dirigimo-nos ao quinto


andar, onde encontramos nossos professores. Eu estava
apreensivo, pois, nesse dia, iria liderar a entrevista e o exame
físico, enquanto minha dupla iria apenas relatar as informações
colhidas. Essa seria a minha primeira vez conduzindo uma
entrevista com um paciente, e, na semana anterior, nós
encontramos uma grande dificuldade ao tentar estabelecer o
rapport com o paciente, o que contribuiu para a minha apreensão.

Após recebermos as instruções necessárias, fomos ao quarto


designado a nós, onde encontramos o senhor Sérgio, nosso
paciente, deitado. Logo ao entrarmos no quarto, percebemos que o
lençol de sua cama era vermelho com uma escrita em japonês, o
que nos causou estranhamento; seu leito tinha vista para o Lago
Paranoá e estava com as janelas abertas, pois o dia estava quente.

Ao nos apresentarmos, o senhor Sérgio se mostrou muito


receptivo e simpático, demonstrando interesse em nos ajudar a
conduzir a entrevista. Ao questioná-lo sobre suas queixas, ele

205
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

respondeu que não estava sentindo nada, para a nossa surpresa.


Ao continuar a entrevista, ele explicou que seu pai é japonês, e ele
vivia e trabalhava no Japão, porém estava há cinco anos de volta a
Brasília e que pretendia voltar, em breve, ao país asiático. Por esse
motivo, ele havia procurado a enfermaria do viajante do HRAN,
para realizar exames antes da emissão do visto para o país.

Quando os resultados ficaram prontos, ele foi diagnosticado


com sífilis, HIV e hepatite C, sendo, portanto, necessária a
internação para o tratamento da sífilis, que já estava latente. O
que me marcou nessa entrevista foi o bom humor do senhor
Sérgio, mesmo com um quadro tão sério. Ao perguntarmos sobre
como ele se sentia com relação à doença, explicou que, no
momento em que recebeu o diagnóstico, “quase pirou” – conforme
palavras dele –, porém, ao conversar com outros pacientes do
ambulatório com as mesmas doenças, sua irmã, e realizar
acompanhamento psicológico, passou a aceitar seu quadro clínico.
Completou informando que, mesmo naquela condição, ele ainda se
sentia bem; seu único incômodo era com relação ao tempo de
internação, pois ele não sabia quanto tempo iria permanecer
internado e gostaria de retornar para o seu sítio.

A entrevista continuou sem grandes alterações, porém o que


ficou explícito foi a positividade do senhor Sérgio, que em
momento algum demonstrou impaciência, apatia ou
descontentamento perante a nossa presença. Diferentemente de
nosso paciente da semana anterior, que se recusava a realizar os
exames e até mesmo a responder nossas perguntas, visivelmente
incomodado com a nossa presença, o que resultou em uma
história clínica deficitária e, para nós, em um sentimento de
incapacidade de manejar a situação.

206
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Por esse motivo, no início da entrevista com o senhor Sérgio,


eu estava inseguro, porém acabamos vivenciando, na prática, o
que aprendemos em sala de aula. Quando o paciente está
interessado na entrevista, e o rapport é bem realizado,
estabelecendo assim um vínculo, o paciente acaba
involuntariamente ajudando os profissionais de saúde ou, no nosso
caso, os estudantes a se saírem melhores em suas atividades.

Essas duas entrevistas tão opostas nos proporcionaram


entrar em contato com diferentes tipos de pacientes, que
voltaremos a encontrar, no entanto, com mais experiência, em
nossa vida acadêmica e, posteriormente, profissional.

Ciclo clínico e o ciclo da vida

Gabriela Kei Ramalho Yoshimoto

Era uma terça-feira que parecia ser mais um dia comum


largado dentro das mil e uma atividades do curso. Lembro-me de
adentrar o HRPa e de me esforçar para gravar as inúmeras voltas
e escadas que me levariam para nosso cenário: a enfermaria de
pediatria. Todos nós entramos em uma pequena sala para dividir
os pacientes, a divisão era feita por sorteio e, por sorte ou pelo
destino, minha dupla marcou minha vida ao pegar o último
papelzinho que restava na mesa. Nesse papelzinho, estava escrito
o leito, o nome e a idade da paciente, bem assim: Amélia, sete
semanas, leito tal. Estávamos animadas, preparamo-nos para isso
o curso inteiro, imprimimos roteiro, compramos materiais que
combinassem com o cenário da pediatria, esforçamo-nos para
aquele momento que estava bem diante de nós, do outro lado do
corredor. As pernas tremiam, as mãos suavam, e o frio na barriga

207
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

estava lá. Quem será meu paciente? E se eu não conseguir


estabelecer um diálogo? Será que ela vai chorar?

O local era apertado, as macas quase se encostavam, quatro


pacientes em um quarto não é o ideal, “mas é assim a realidade do
SUS”, frase dita inúmeras vezes durante as aulas. Olhei para todos
as macas e, em apenas uma, tinha uma criança de colo, a primeira
maca da direita. E agora? Apresentei-me e expliquei o que
estávamos fazendo ali e já me desculpei pelas infinitas perguntas
que seriam feitas dali em diante. Não conseguia olhar diretamente
para a neném, senti que não estava preparada para aquilo, senti
todos os pensamentos sumirem da minha cabeça e eu, logo eu,
fiquei muda. Minha dupla, de forma graciosa, começou uma
conversa, não uma conversa com um roteiro, mas daquelas que
acalmam o coração e põe um sorriso no rosto de alguém. Sorri
também e comecei.

Nunca imaginei que a pediatria ganharia meu coração.


Amélia estava ali por um episódio de engasgo que evoluiu para
uma pneumonia. Olhei timidamente para ela, deitadinha, tranquila,
com roupinhas que pareciam grandes demais para sua idade; logo
em seguida, ela abriu um sorriso, e isso me fez sair do automático.
O automático da vida, das perguntas do roteiro e da rotina
infindável do curso. Talvez, mesmo sem perceber, coloquei-me
nesse estado para aliviar o cansaço, para me distanciar de
qualquer emoção que eu pudesse ter e que possivelmente me
traria sofrimento. Eu me vi muda outra vez. Eu sabia das minhas
obrigações, sabia de cabeça a ordem da anamnese e do exame
físico, mas eu não queria seguir esse contato assim, no
automático. Levantei, respirei e tentei viver cada segundo daquele
encontro. Para mim, foi emocionante ter a certeza do meu
caminho na vida.

208
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Parece até peça pregada pelo destino que logo a pediatra


tenha me mostrado que eu estou no caminho certo, mas que tenho
de tomar cuidado de não entrar no automático, que eu quero viver
cada experiência e cada paciente. Porque pacientes e médicos são
humanos e é, por isso, que eu escolhi viver para isso. Amélia,
obrigada pelos sorrisos ao longo da consulta, obrigada pela lição
de vida. Você não vai se lembrar de mim, mas você será para
sempre a minha primeira paciente, que me fez ter a certeza do
meu propósito.

Assim, o ciclo clínico, em uma terça-feira ensolarada,


confirmou que é isso que eu quero para o resto da minha vida,
todos os ciclos da minha vida.

Quem eu quero ser como médica:


a construção da persona do futuro médico no ingresso
na faculdade

Beatriz Kaminski Fink

Meu primeiro semestre de medicina foi incrível, era um


mundo completamente novo e encantador. Minha primeira
experiência em um hospital público, no entanto, trouxe-me muitas
marcas que, inclusive, proporcionaram-me um pouco mais de
esclarecimento sobre quem eu quero ser como médica.

Era uma quarta-feira, quando, finalmente, iríamos entrar no


ambiente hospitalar. Estávamos todos eufóricos, era nossa
primeira vez no hospital como estudantes de medicina. Eu, pelo
menos, mal esperava para sentir-me como uma médica. O curioso
é que, ao mesmo tempo, estava com medo. Medo do que poderia
ver, medo de não estar preparada para encarar a realidade
periférica do brasiliense no sistema público de saúde. Foi

209
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

surpreendentemente interessante, lembro-me, como se fosse


ontem, de passar com meus colegas de classe pelos corredores,
com macas encostadas nas paredes, pacientes esperando por
atendimento. Lembro-me de passar pela maternidade. É incrível
como o nascer de uma vida, às vezes, pode nos fazer bem, ou,
pelo menos, a ideia de um recém-nascido ali, no colo de sua mãe,
pode nos trazer ternura e amor. Passamos também pela pediatria,
que, apesar de ser triste presenciar uma criança doente e
chorando, é, ao mesmo tempo, gratificante vê-la se recuperando e
trazendo um sorriso no rosto, que, na minha opinião, é o sorriso
mais puro que existe no mundo.

O momento que eu mais temia chegava: a visita aos leitos.


Havia pessoas com uma expressão tão triste, de desesperança,
que me impactou como nada antes havia me impactado. Naquele
momento, eu percebia que eu nunca estaria ali. Eu sabia que
aquilo não era a minha realidade. Eu sabia que nunca precisaria
estar naquele ambiente e não precisaria passar por aquilo. Isso me
destruiu. E eu tive esse pensamento porque eu percebi o quanto
desigual e injusta era nossa sociedade. Por que precisam passar
por isso? Se eu precisasse estar em um hospital, eu teria conforto,
talvez nem precisasse ter receio, pois estaria em um lugar tão bem
preparado que o medo, se presente, seria menor. Ao mesmo
tempo, pensei em como me sentiria, se, por alguma razão, minha
mãe estivesse lá e, nesse momento, eu entrei em desespero só
por imaginar.

Ao final do passeio, iríamos para a sala de anatomia. Essa


sala é para onde vão os corpos daqueles que morreram, para
assim serem destinados a lugares específicos. Eu simplesmente
congelei, não consegui me ver no lugar onde, na minha cabeça,
seria o destino de muitas pessoas que antes estavam lá. Será que

210
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

o último momento deles foi naquela sala? Será que a última


pessoa que eles viram antes de morrer foi um médico e não a
família que amavam? Será que a pessoa, antes de morrer, teve
medo ou desespero? Tudo isso passou pela minha cabeça, e eu
não consegui dar mais um passo. Quando minha professora
encarregada da visita se virou, eu estava aos prantos. Não
conseguia falar, só saíam lágrimas, e todos os outros estudantes
me observavam, alguns desconfortáveis, outros sem entender, e
alguns compartilhavam da minha dor. Depois de me acalmarem,
eu consegui entrar na sala de anatomia.

No final do dia, eu lembrei da minha infância. Aquele dia


nunca fez tanto sentido. Estava eu, aos doze anos, em casa,
assistindo televisão como sempre fazia ao final do dia. Naquela
época, minha irmã estava na mesma posição que me encontro
agora e ela chegava em casa no começo da noite. Nesse dia em
particular, lembro-me de vê-la chegar em casa, deixar tudo o que
estava segurando cair no chão e chorar. Eu nunca havia
presenciado um choro dela daquele jeito. Ela era minha irmã mais
velha e vê-la naquela situação de vulnerabilidade me marcou
muito. Minha mãe a amparou, mas ela estava desolada.

Ao refletir sobre tudo, percebo que a medicina é a arte de


amar. Não se pode fazer nada a respeito de leitos lotados, má
estrutura e falta de medicamentos ou equipamentos, por exemplo.
Mas podemos entregar amor. Nós devemos fazer isso, pois é o que
nos faz suportar um pouco o sofrimento daquele paciente e o
ajuda a suportá-lo também. Por isso, eu quero ser uma médica
que dá amor, para todos.

Segundo Paulo Freire, a relação entre estudante e professor


se pauta no amor e, por meio do diálogo, é possível aprender e
pronunciar o mundo, por intermédio da linguagem. Ou seja, o

211
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

diálogo também é amor. Por isso, também acredito que, por meio
do diálogo construtivo e de escuta ativa no consultório, na visita
domiciliar ou no leito hospitalar, é possível aprender e praticar o
amor.

Referência

LIMA, Paulo Gomes. Uma leitura sobre Paulo Freire em três eixos
articulados: o homem, a educação e uma janela para o mundo.
Pro-Posições, v. 25, n. 3, p. 63-81, 2014.

212
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Luiz Felipe Falcão de Souza

Neste capítulo, serão abordadas questões referentes ao


âmbito da ética, no contexto da formação médica, bem como à
sensibilidade do estudante de medicina acerca dessa temática,
evidenciando a importância e os benefícios da metodologia do PBL,
no processo de amadurecimento desse indivíduo e na capacitação
dos docentes, conscientizando-os quanto às suas ações e falas,
sendo as narrativas médicas um dos meios de trazer essas
discussões para serem debatidas.

A ética médica é uma vertente da medicina a qual aborda


questões práticas da relação existente na assistência ao paciente,
além de possíveis problemas que possam ocorrer nessa
abordagem (OSORIO; CARRION, 2014). No Brasil, é regida pelo
Código de Ética Médica, elaborado pelo Conselho Federal de
Medicina (CFM), que visa, entre outras finalidades, a garantir
autonomia ao paciente, de acordo com suas vontades. Ademais,
em 2018, o próprio CFM lançou o Código de Ética do Estudante de
Medicina, o qual norteia, esse acadêmico em relação aos seus
direitos e deveres (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2018a,
2018b).

213
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação


em Medicina, em seu artigo 3º, afirma que o formando em
medicina deverá abranger características, em sua formação geral,
de humanidade, criticismo, reflexão e ética, para que possa ter a
capacidade de agir em diversos níveis de atenção à saúde
(BRASIL, 2014). Diante disso, fica evidenciada a importância da
abordagem de meios que atuem no desenvolvimento humanista e
ético do estudante de medicina no contexto do currículo médico.

De acordo com estudo publicado no ano de 2019, a


percepção dos discentes acerca do ensino da ética na graduação
médica é que este é deficitário. Isso ocorre, pois essa área de
estudo é desvalorizada, por ter seus ensinamentos desvinculados
do que é realizado na prática, por não estar presente em todo o
decorrer da graduação e, por fim, por haver professores e
preceptores que não abordam as questões éticas nos debates com
os alunos. Assim, os estudantes apresentam sugestões, a fim de
otimizar os ensinamentos acerca da ética no curso de medicina.
Dessa forma, o estudo indica que uma das principais maneiras de
isso ser realizado é por meio de melhor capacitação e qualificação
dos docentes, conforme afirma uma das alunas entrevistadas: “e
eu acho que seria preciso um processo de reeducação dos
profissionais que trabalham como professores. Reeducação da
ética” (MENEZES et al, 2019). Além disso, como abordado por
Ferreira, Mourão e Almeida (2016), há necessidade de o docente
se colocar em autoavaliação, para possibilitar a reflexão acerca de
aspectos que possam ser otimizados em sua postura ética para
com seus pacientes e seus alunos.

De acordo com Garcia-Jr. e Verdi (2019), o processo de


confronto das questões éticas se dá em três etapas, as quais os
autores denominam de posições. A primeira é a da “submissão”,

214
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

na qual o estudante, já no início, é oprimido, sendo levado a seguir


as ações padronizadas aos acadêmicos, o que leva à competição e
à rivalidade, sem se colocar em posição de questionar as suas
atitudes bem como as de terceiros. A segunda é chamada de
“colapso do estado de submissão”, quando o aluno é colocado em
uma posição de percepção das atitudes corretas em seu meio,
porém, ainda é levado a cometer atitudes incorretas, visto o meio
o qual está inserido. Por fim, a terceira, denominada “reprodução
ou ruptura” de valores, na qual o aluno pode seguir dois caminhos,
o primeiro, de reproduzir e de perpetuar a hierarquia presente na
formação médica, como lhes é mostrado, ou o segundo, de romper
esse contexto.

Nessa perspectiva da formação de alunos que reproduzam o


contexto o qual vivenciam na faculdade, há de se preocupar, ainda
mais, com aqueles que sofrem algum tipo de assédio moral por
parte de professores ou que vivenciam situações de assédio dos
professores com os pacientes, na tentativa de interromper o ciclo
de perpetuação. Assim, como evidenciado por Garcia-Jr. e Verdi
(2019), a partir de relatos de discentes e de docentes, muitos
desses alunos vivenciam questões problemáticas acerca da ética,
por parte de atitudes dos professores, tanto em atividades práticas
quanto em sala de aula, voltadas aos acadêmicos e aos pacientes.
Ainda nesse contexto, os estudantes afirmam haver divergência
muitas vezes entre o discurso exposto em sala de aula, a respeito
da ética médica, e as ações e atitudes dos professores na prática.
Esse fato acaba levando a situações de assédio, como
exemplificado na narrativa do colega Hugo Fernandes, na qual um
professor afirma que pacientes que estão sendo atendidos pelo
SUS são obrigados a fornecer dados para realização de histórias
clínicas, mesmo contra sua vontade e diante de seu desconforto,

215
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

assim como na narrativa da Catharina Hoff, em que havia


dificuldade de realização do exame físico, devido à dor excessiva
do paciente. Porém, ao questionar seus professores, receberam a
resposta de que o exame deveria ser realizado independentemente
da dor do paciente, o que deixa ainda mais evidente a necessidade
de reflexão e de capacitação por parte de alguns docentes.

No Brasil, de acordo com a Demografia médica de 2018, foi


demonstrado que 85,5% dos alunos egressos do curso de medicina
já vivenciaram ou assistiram a algum tipo de conduta ética
inadequada (SCHEFFER et al, 2018). Nesse contexto, os
estudantes identificam diversas formas de conflitos, no âmbito da
ética, dentro da graduação. Estes ocorrem em vários tipos de
relação interpessoal entre acadêmicos, docentes, pacientes e
funcionários, prevalecendo, de acordo com Menezes et al (2017),
os conflitos entre acadêmicos e docentes. Diante dessa realidade,
registro a minha preocupação e luta contra a deterioração ética e
humanística, durante a minha formação e de meus colegas, assim
como exposto por Santos et al (2017), quando evidenciaram
redução atitudinal por parte dos acadêmicos de medicina, no
decorrer do curso. De acordo com os autores, houve elevação do
cinismo e dos interesses econômicos, além de redução do
humanismo, dos valores sociais e das habilidades de julgamento
ético.

Assim, percebo que uma maneira de não seguir esse


caminho e de ser um profissional que adota atitudes que fogem da
ética e da humanização é, desde já, termos a possibilidade de nos
colocarmos em posição de questionar, não sendo apenas um
estudante passivo o qual recebe conhecimento e vislumbra
algumas ações sem, ao menos, colocá-las em dúvida. Dessa
forma, o processo de formação de cada aluno é fundamental,

216
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

dando cada vez mais autonomia para perceber as situações


adversas. Diante disso, pode-se evidenciar a clara importância da
metodologia de ensino PBL, a qual vem auxiliando, em parte, na
saída dos alunos da escuridão, ou seja, de uma posição ausente de
questionamentos, como diria Platão, em seu Mito da Caverna.

Nesse contexto, Menezes-Rodrigues et al (2019), por meio


de revisão na literatura, perceberam diversos benefícios do uso
dessa metodologia ativa de ensino. Entre eles, destaca-se a
possibilidade de o modelo permitir maior possibilidade de contato e
de interação social e de acentuar a humanização no processo de
formação tanto de alunos quanto dos próprios profissionais da
saúde. Ademais, ainda de acordo com os autores, o PBL
proporciona aperfeiçoamento de autonomia e independência
durante a formação, o que é visto como essencial na consolidação
de um estudante e futuro médico fundamentado na ética. Além
disso, como evidenciado por Oliveira e Nunes (2018), as
faculdades com metodologias ativas de ensino têm maior carga
horária voltada para o ensino e o aprendizado sobre a ética
médica, além de maior inclusão do tema nas matrizes curriculares,
salientando, assim, os benefícios trazidos por esse modelo de
educação.

Para situar o leitor, o PBL foi um modelo introduzido na área


da saúde, no final da década de 1960, na McMaster University no
Canadá. Posteriormente, passou a ser utilizado por outras
universidades, como a Maastrich University, na Holanda, e a
Harvard Medical School, nos Estados Unidos (TIBÉRIO; ATTA;
LICHTENSTEIN, 2003). Já no Brasil, nos últimos anos, essa
metodologia vem sendo incorporada nos cursos de graduação em
medicina, conforme preceitua, desde 2014, o artigo 32 das

217
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em


Medicina (BRASIL, 2014).

Esse modelo de educação baseia-se em eixos, sendo o


principal, o dos tutoriais. Este baseia-se em pequenos grupos, com
a participação de um professor tutor, nos quais, por meio das
leituras de problemas, em geral casos clínicos, os alunos chegam a
objetivos de estudo para os nortear na busca do conhecimento e
em posterior discussão realizada novamente nos grupos. Há,
também, o eixo educacional Habilidades e Atitudes, no qual há
enfoque no aprendizado da semiologia e na relação médico-
paciente desde os primeiros semestres do curso.

Ingressar no curso de medicina do UniCEUB e deparar com


essa nova forma de ensino, a qual nunca havia vivenciado
anteriormente, foi alvo de muita apreensão e dúvida a respeito de
sua funcionalidade. Porém, com o passar dos semestres, venho
percebendo o quão fundamental é essa maneira de ensino, não
apenas em relação às formas de se passar o conteúdo, mas
também por proporcionar o desenvolvimento de novas habilidades
do futuro médico, entre elas a boa capacidade de comunicação e a
possibilidade de contato, desde o início do curso, com médicos e
pacientes, podendo, desde então, identificar modelos que
queremos ou não seguir.

Além disso, a partir da inserção curricular do PBL no curso de


medicina, é possível verificar nova forma de visualizar a relação
entre professor, aluno e paciente. O professor não é mais apenas
fornecedor do conhecimento, tornando-se facilitador do
aprendizado (MARTINS; FALBO NETO; SILVA, 2018), o aluno tem
papel mais ativo e participativo em sua formação e na busca de
autonomia (BORGES et al, 2014), e o paciente, além de ser a
maior fonte de conhecimento e de aprendizado que se pode ter, é

218
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

um ser humano que, muitas vezes, em situação de


vulnerabilidade, necessita ser tratado com carinho, atenção e
sempre, sem exceções, com atitudes éticas.

Apesar dessa nova perspectiva entre professor, aluno e


paciente, há, ainda, no ambiente acadêmico, pessoas que vivem
realidade arcaica, não obstante o novo modelo de educação. Nele,
observam-se professores que se entendem, ainda, como
detentores do conhecimento, os quais veem o aluno apenas como
receptor das informações, e o paciente, como seu objeto de
estudo, desprovido de vontades e de sentimentos. Porém, muitos
desses professores são fruto de falta de capacitação, pouco voltada
para a vivência da ética e da humanização da medicina, uma vez
que foram formados em metodologias tradicionais de ensino, o
que, em parte, auxilia no entendimento dessas visões.

Outra maneira eficaz de melhor formar o graduando em


medicina com base em posturas éticas é o professor ser capacitado
em como realizar feedbacks relacionados à essa questão, além de
o discente ter a capacidade de agir de maneira ativa diante desses
comentários do docente, gerando, dessa maneira, resultados
positivos. Assim, de acordo com Pricinote e Pereira (2016), a partir
de estudo com grupos de alunos, foi observado que um bom
feedback, considerado efetivo, deve ocorrer de forma individual,
imediata, apontando meios para melhorar e, por fim, o estudante
ter a oportunidade de colocar em prática o que foi relatado pelo
professor.

Desde o meu primeiro semestre no curso de medicina, venho


tentando entender o que significa ter ética, ou melhor, ser ético.
Logo em meu primeiro módulo da faculdade, surgiu um problema
acerca do Código de Ética Médica e do Código de Ética do
Estudante de Medicina, o que me colocou, a partir daí, a

219
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

questionar se bastava seguir o que estava nos artigos e parágrafos


dos códigos para ser um médico não apenas ético, mas, também,
humanizado, preocupado com seus pacientes e com o ser humano
em geral.

A partir disso, comecei a me deparar com diversas situações


as quais coloquei em dúvida, sempre pensando em ter modelos na
minha caminhada rumo a ser um médico. Desses modelos,
diversos médicos e professores serviram e vem servindo como
fonte de inspiração do médico que quero me tornar. Porém, nessa
caminhada, presenciei situações as quais deixaram evidentes
ações de alguns profissionais que não quero ter durante minha
formação e após me formar.

Associadas às minhas vivências, muitos colegas, por meio


das narrativas selecionadas para este capítulo, puderam deixar
evidentes atitudes de profissionais de saúde, médicos e
enfermeiros, além de comentários de alguns professores, os quais
fugiram dessa ética que, desde o princípio do curso, buscamos
entender e adotar em nossas vidas, a exemplo das narrativas da
Andressa Moreira, da Catharina Hoff, do Hugo Fernandes e a
escrita por mim. Esses casos, apesar de serem minoria,
entristecem-nos, pensando muitas vezes que eles seriam nossas
inspirações e acabam agindo de forma que pouco mostram
importância com os seus pacientes, como ser humano, tratando-os
apenas como objeto de trabalho ou de estudo. Por outro lado, há
os médicos e as situações que tanto inspiram e nos servem de
modelo, como narrado pela colega Marina Drago, que apresenta
uma situação na qual o médico vai até um local de difícil acesso,
com uma hora e meia de estrada de terra, em meio a uma
paisagem de seca, para atender a pacientes que são

220
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

extremamente gratos pelo carinho e pela atenção levados por esse


profissional.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.


Câmara de Educação Superior. Resolução n. 3, de 20 de junho de
2014 – Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação
em Medicina. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, 23
de junho de 2014. Seção 1, p. 8-11.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Código de ética do


estudante de medicina. Brasília: CFM, 2018a. 52 p.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM n.


2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções
CFM n. 2.222/2018 e n. 2.226/2019 – Código de Ética Médica.
Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2018b.

FERREIRA, Lorena Cunha; MOURÃO, Rogério Antunes; ALMEIDA


Rogério José de. Perspectivas de docentes de medicina a respeito
da ética médica. Revista Bioética, Brasília, v. 24, n. 1, p. 118-127,
jan./abr. 2016.

GARCIA-JR., Carlos Alberto Severo; VERDI, Marta Inês Machado.


Dimensão dos problemas éticos implicados na educação médica.
Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v. 43, n. 4, p. 99-
108, out./dez. 2019.

MARTINS, Antônio Carlos; FALBO NETO, Gilliatt; SILVA, Fernando


Antônio Menezes da. Características do tutor efetivo em ABP: uma
revisão de literatura. Revista Brasileira de Educação Médica,
Brasília, v. 42, n. 1, p. 103-112, jan./mar. 2018.

MENEZES, Márcia Mendes et al. Conflitos éticos vivenciados por


estudantes de Medicina. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio
de Janeiro, v. 41, n. 1, p. 162-169, jan./mar. 2019.

MENEZES, Márcia Mendes et al. Percepções sobre o ensino de ética


na medicina: estudo qualitativo. Revista Bioética, Brasília, v. 27, n.
2, p. 341-349, abr./jun. 2017.

MENEZES-RODRIGUES, Francisco Sandro et al. Vantagens da


utilização do Método de Aprendizagem Baseada em Problemas

221
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

(MAPB) em cursos de graduação na área da saúde. RIAEE –


Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v.
14, n. 2, p. 340-353, abr./jun. 2019.

OLIVEIRA, Cynthia C.; NUNES, Carlos Pereira. O ensino da ética


médica na graduação de Medicina no Brasil: a revisão ética de uma
década. Revista da Faculdade de Medicina de Teresópolis, v. 2, n.
1, p. 157-171, 2018.

OSORIO, Alberto Rojas; CARRIÓN, Libia Lara. ¿Ética, bioética o


ética médica? Revista Chilena de Enfermedades Respiratorias,
Santiago, v. 30, n. 2, p. 91-94, jun. 2014.

PRICINOTE, Sílvia Cristina Marques Nunes; PEREIRA, Edna Regina


Silva. Percepção de discentes de Medicina sobre o feedback no
ambiente de aprendizagem. Revista Brasileira de Educação Médica,
Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, jul./set. 2016.

SANTOS, Wilton Silva dos et al. Profissionalismo médico: efeito da


diversidade sociodemográfica e da organização curricular no
desempenho atitudinal dos estudantes de Medicina. Revista
Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 41, n. 4. p. 594-
603, out./dez. 2017.

SCHEFFER, M. et al. Demografia médica no Brasil 2018. São Paulo:


FMUSP, CFM, Cremesp, 2018. 286 p.

TIBÉRIO, Iolanda de F. L. Calvo; ATTA, José Antônio;


LICHTENSTEIN, Arnaldo. O aprendizado baseado em problemas –
PBL: Problem Based Learning. Revista de Medicina, São Paulo, v.
82, n. 1-4, p. 78-80, jan./dez. 2003.

NARRATIVAS

O exemplo a não ser seguido

Luiz Felipe Falcão de Souza

A história que será relatada ocorreu em dezembro de 2019,


em Santa Rita de Cássia, cidade do interior da Bahia, onde fiquei
por 15 dias e tive a oportunidade de vivenciar experiências
imensuráveis de aprendizado e crescimento, tanto para a vida

222
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

médica/acadêmica quanto para a vida pessoal. Durante esse


período, coloquei-me a pensar sobre o modo como que nos
deparamos com diversos tipos de profissionais, os quais colocamos
como referências em nossas vidas, no decorrer de nossa
caminhada para a carreira médica. Acabamos por encontrar
profissionais que deixam marcas em nossa caminhada, no entanto,
esta narrativa trata justamente do contrário ao que falei, a de um
profissional que não almejo ser, a partir de uma experiência
negativa, mas enriquecedora, que me possibilitou questionar o
médico que quero ser, o profissional que vou me tornar e até
mesmo o ser humano que estou me tornando.

A cidade de Santa Rita de Cássia é pequena e típica de


interior, e a relação da comunidade com as questões de saúde é
muito íntima. Vários habitantes não possuem muitos recursos e
são, em sua maioria, de origem humilde. Estes veem na saúde
uma forma de amparo em suas vidas. Assim, médicos são
considerados personalidades de muito respeito e consideração, são
conhecidos e reconhecidos por onde passam, e tudo o que é dito
por eles torna-se verdade absoluta.

Fui a essa cidade para a prática de um estágio, o qual realizei


com outras três colegas acadêmicas de medicina. A proposta era
imergir na rotina médica de uma realidade que, de certa forma,
distingue da qual vivemos, em Brasília, pelo fato de lá ser um
outro Brasil, uma outra realidade, uma rotina totalmente distinta
daquela vivenciada por nós na cidade grande e mais urbanizada.
Na ocasião, fomos divididos para atuar em cinco unidades de
estratégia de saúde da família e fizemos rodízios diários de
acompanhamento, os quais nos possibilitou conhecer diversos
tipos de pacientes e diferentes tipos de profissionais, como
médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e dentistas. Foi a

223
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

partir dessa convivência que iniciei a tentativa de identificar o que


cada profissional tem a me acrescentar, considerando, para isso,
não apenas aspectos positivos, mas também negativos.

Após diversas experiências excepcionais e positivas, em um


dos dias de estágio, fui acompanhar o atendimento de um médico
experiente, de origem asiática, formado em um país da América
Latina, contexto que até hoje me faz perguntar o porquê de ele ter
ido parar no interior do Brasil. Mas isso, certamente, é fruto da
vivência e das oportunidades que ele teve durante a vida.

Voltando a esse dia, a programação da manhã era de visitas


domiciliares, e tudo estava correndo relativamente bem, como na
rotina dos demais dias. Cheguei à unidade, por volta das 7h30,
pois gostava de chegar com antecedência para os trabalhos que
eram a partir das 8h. No horário previsto para início, já estavam lá
a enfermeira, a técnica de enfermagem e o dentista, todos
realizando as atividades de cada área, da forma como deveria
acontecer, no entanto, o médico ainda não havia aparecido.
Questionei à enfermeira o que poderia ter ocorrido, e ela apenas
afirmou que ele agia sempre assim. Nesse momento, pude
vivenciar o primeiro aspecto do profissional que não quero ser,
diante de uma situação comum do dia a dia, como pontualidade,
algo simples de ser executado, porém, complexo, que
demonstraria respeito e consideração com o outro, nesse caso,
com os colegas de trabalho e, principalmente, com os pacientes
que o aguardavam. O tempo passava, e eu via, em todos, o
incômodo diante da situação, mas percebia o quão normal isso já
era para eles. Esperei até 8h30, 9h, 9h30, 10h, até que, por volta
de 10h20 ele apareceu. Cumprimentei-o com um bom-dia,
disfarcei a minha indignação e me apresentei, pois ainda não nos

224
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

conhecíamos. E é a partir daí que vem o segundo aspecto do


profissional que eu não quero ser.

Logo em seguida à sua chegada, após tudo isso e sem eu, ao


menos, questioná-lo, ele começou a reclamar de outros
profissionais, na tentativa de justificar o seu atraso; reclamou das
cobranças da secretaria de saúde; reclamou da própria secretária
de saúde do município e da assistente dela; reclamou dos colegas
de profissão, além de outros pontos da vida pessoal. Tive muita
dificuldade para entender o que ele dizia, em razão do sotaque
dele e também por eu não estar inserido naquela realidade. Na
minha opinião, o fato grave é que ele tentava justificar a atitude
de atraso, falando mal, para mim, que cumpria apenas papel de
estagiário, tanto de seus superiores quanto de seus colegas de
trabalho, os quais estavam com ele todos os dias, auxiliando na
realização das atividades de sua profissão. O que, na minha visão,
fugiu da ética profissional, independentemente da área que se
atue, causando-me certa revolta.

Após isso, para iniciarmos as visitas domiciliares, fomos para


o carro, onde o motorista já nos aguardava há muito tempo. Logo
na primeira visita, ocorreu um imprevisto, pois não haviam levado
a caixa com os materiais necessários, como esfigmomanômetro,
glicosímetro, blocos de receituários, entre outros, imprescindíveis
para o atendimento. Por sorte, a casa desse paciente era próxima
à unidade de saúde, e o motorista, muito solícito, retornou para
buscar a caixa. Nesse momento, dessa vez em frente ao paciente e
à família dele, o médico voltou a reclamar, veementemente, da
sua equipe por conta do esquecimento dos materiais, sendo que
ele também fazia parte dessa mesma equipe. Os equipamentos
finalmente chegaram, e o atendimento transcorreu sem outros
problemas.

225
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Fomos para a visita à segunda família, quando ocorreu o


momento que mais me chocou, o terceiro e o auge do profissional
que não quero ser, do médico que não quero me tornar. Logo de
início, percebi que eram pessoas humildes. A casa era de tijolo
exposto, o chão era de barro, e nós ficamos, na entrada, sentados
em cadeiras de plástico. Na casa, viviam, em torno, de dez
pessoas, das mais diversas idades. A paciente que ia ser atendida
tinha pouco mais de 80 anos. Estava sentada em uma das
cadeiras, o médico em outra, e eu, ao lado e em pé, observava. Ao
redor, estavam familiares, filhas e netas. Todos também
observando. Aquele seria mais um atendimento para renovação de
receitas, aferição de pressão, checagem de exames. Eles estavam
com muita dificuldade de entender o que o médico dizia, e, por
isso, comecei a traduzir o que era dito, na tentativa de ajudar a
família. Fiquei imaginando como eram os atendimentos nos demais
dias do ano, quando eu não estava ali, e a dificuldade daquela
família, diante de um profissional que pouco se esforçava para ser
entendido, não fazendo questão de explicar, cuidadosamente, à
paciente e a seus familiares o que era preciso ser feito.

Como exemplo disso, cito o fato de ter havido necessidade de


ser feita receita de medicamento de receituário especial, o qual
não estava com o médico no momento. Ele, então, orientou que
aquelas pessoas deveriam ir à unidade de saúde, no período da
tarde, para buscar a receita. Nessa explicação, eu pouco entendi o
que ele havia dito e fiquei imaginando como teria sido para
aquelas pessoas de origem mais humilde. Uma delas o questionou,
não tendo entendido. Isso gerou um mal-estar por parte dele,
afirmando que aquelas pessoas nunca prestavam atenção no que
ele dizia e que isso não estava certo. Percebendo a circunstância
em que estavam, com aquele profissional em posição de poder

226
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

diante da situação, eles apenas se calaram. Precisei intervir,


tomando à frente, para explicar o que ele havia dito, a fim de não
aumentar o sentimento de angústia e de desamparo daquela
família.

Apesar de tudo, não foi isso que tanto me chocou. Voltando


ao início dessa visita, esclareço que a senhora que ia ser atendida
encontrava-se sentada na cadeira, calada, com os braços apoiados
sobre as pernas, a coluna curvada e a cabeça baixa, com o queixo
quase encostando no tórax. Essa cena me deu a impressão de uma
idosa cansada e, provavelmente, com dores nas costas ou em
outras partes do corpo.

Diante disso, o médico, sem delicadeza e sem considerar a


condição a qual a paciente se encontrava, colocou uma das mãos
dele sob o queixo da senhora e elevou, bruscamente, a cabeça
dela, afirmando: “levanta essa cabeça e olha para mim!”. Eu
congelei, vendo isso. No rosto dele, a feição de quem estava
fazendo algo normal, sem o mínimo de empatia. Para mim, a
evidência do profissional que, nem de perto, quero me tornar. Ela
nem ao menos questionou, não disse nada, tentava manter o
pescoço ereto, diante do pedido do médico, que tanto era
respeitado. Mais uma vez, aparentemente não aguentando
sustentar a postura, ela abaixou a cabeça, e, novamente, ele
disse: “já falei que é para olhar para mim!”. Com muito esforço,
ela olhou para ele e manteve-se assim até a nossa saída de lá.

Ao voltar para casa, por volta das 12h30, desabafei toda a


minha indignação com as minhas colegas. Perdi completamente a
vontade e a empolgação de retornar à unidade de saúde, para
acompanhamento daquele médico, no período da tarde. Apenas
resolvi voltar depois de elas terem me convencido disso, além de
eu saber e considerar o compromisso o qual havia feito. Diante dos

227
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

fatos expostos, melhorei minha visão do médico que almejo ser,


ou melhor, do médico que não quero me tornar. Nessa ocasião,
ficou claro, para mim, o que representa a falta de humanidade a
qual, desde o início da formação em medicina, aprendemos a não
ter.

REFLEXÃO DO AUTOR DA NARRATIVA

O tema abordado na narrativa representa o que ocorre no


Brasil. De acordo com a Demografia médica no Brasil 2018, ficou
evidenciado que 85,5% de acadêmicos de medicina egressos já
vivenciaram ou assistiram a algum tipo de conduta ética a qual
consideraram inadequada (SCHEFFER et al, 2018). Diante disso, o
objetivo dessa narrativa foi levantar a importância da reflexão
crítica a respeito das atitudes éticas e humanistas pelo acadêmico
de medicina. Nesse contexto, como exposto por Garcia-Jr e Verdi
(2019), uma forma de combater problemas éticos é “aprender a
lidar consigo mesmo e difundir o debate e o estudo da ética no
curso de medicina”. Assim, uma maneira eficiente de formação do
médico com teor cada vez mais humanístico é o levantamento de
discussões acerca de questões éticas que envolvam privação de
humanidade.

Na situação narrada, podem-se evidenciar questões as quais


contrariaram os princípios bioéticos da beneficência e da não
maleficência, ou seja, o de realizar o bem ao outro e o de evitar
causar danos a um ser humano, respectivamente (CAMPOS;
OLIVEIRA, 2017). Entre as três situações vividas, essa questão
ficou explícita na última, na qual o médico tratou a paciente, que
estava sobre condição de elevada vulnerabilidade, de forma
agressiva e violenta. Diante desse acontecimento, foi possível
notar não só o não cumprimento dos princípios bioéticos citados,

228
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

mas também o descumprimento do Código de Ética Médica. Como


exemplo disso, destacam-se os artigos 23, 27 e 28, que,
respectivamente, vedam ao médico “tratar o ser humano sem
civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou
discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto”,
“desrespeitar a integridade física e mental do paciente” e
“desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer
instituição na qual esteja recolhido, independentemente da própria
vontade” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2018).

Perante o exposto, com a finalidade de que se forme um


médico fundamentado em atitudes éticas e humanísticas, não
apenas baseado nas técnicas da profissão, qualidades essas, as
quais se complementam, é importante que haja, desde o início da
graduação, ensinamentos acerca de habilidades afetivas
(ANDRADE et al, 2011). Sendo, assim, a escola médica representa
o lugar ideal para que as questões éticas sejam debatidas,
priorizando discussões as quais abordem temas éticos (TAQUETTE,
2005). Dessa maneira, o futuro profissional terá ferramentas para
melhor cuidar de seu paciente, envolvendo aspectos não só do
enfoque na doença, mas, principalmente, no ser humano o qual
muitas vezes, como mencionado nesta narrativa, encontra-se em
condições de vulnerabilidade e, assim, demanda cada vez mais ser
cuidado com zelo e amor.

Referências

ANDRADE, Sílvia Caixeta de et al. Avaliação do desenvolvimento


de atitudes humanísticas na graduação médica. Revista Brasileira
de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 35, n. 4, p. 517-525,
out./dez. 2011.

CAMPOS, Adriana; OLIVEIRA, Daniela Rezende de. A relação entre


o princípio da autonomia e o princípio da beneficência (e não

229
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

maleficência) na bioética médica. Revista Brasileira de Estudos


Políticos, Belo Horizonte, n. 115, jul./dez. 2017.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM n.


2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções
CFM n. 2.222/2018 e n. 2.226/2019 – Código de Ética Médica.
Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2018.

GARCIA-JR, C. A. S.; VERDI, M. I. M. Dimensão dos problemas


éticos implicados na educação médica. Revista Brasileira de
Educação Médica, Brasília, v. 43, n. 4, out./dez. 2019.

SCHEFFER, M. (Coord.). Demografia médica no Brasil 2018. São


Paulo: FMUSP, CFM, Cremesp, 2018. 286 p.

TAQUETTE, S. R. et al. Situações eticamente conflituosas


vivenciadas por estudantes de medicina. Revista Brasileira de
Educação Médica, São Paulo, v. 51, n. 1, jan./fev. 2005.

Voltamos ao quarto 613 e novamente nos


deparamos com a cama vazia

Catharina Hoff Britto Dias

No dia 18 de fevereiro de 2020, terça-feira, fizemos nossa


primeira visita ao HRAN, durante o rodízio de clínica médica para
colher as histórias dos pacientes. Como havíamos acabado de
adentrar no quinto semestre, esta foi nossa primeira vez
entrevistando pacientes que estavam internados em um contexto
hospitalar, e, por isso, estávamos apreensivas. Às 14 horas,
encontramos os professores no quinto andar, e a turma se dividiu
em duplas. Os professores, então, encaminharam cada dupla para
um quarto diferente onde deveríamos nos encontrar com nossos
respectivos pacientes e tínhamos a recomendação de que, às 15
horas, começaria o horário de visitação e deveríamos nos retirar
do quarto e retornar às 16 horas, após o fim do horário de
visitação ou assim que a visita saísse do quarto.

230
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Eu e minha dupla subimos para o sexto andar e fomos para o


quarto 613, leito 1, onde deveríamos encontrar o paciente João,
porém ao entrarmos no quarto, ele não estava, e o outro paciente
que estava no quarto com ele não sabia de sua localização. Os
professores haviam nos informado que, caso os pacientes
estivessem fazendo algum exame, deveríamos voltar ao quinto
andar, onde eles nos refeririam a outro paciente. Após retornarmos
ao quinto andar e percebendo que os professores não estavam
mais ali, decidimos voltar ao sexto andar e procurar o paciente que
havia sido, inicialmente, referido para nós. Voltamos ao quarto 613
e novamente nos deparamos com a cama vazia, saímos
novamente do quarto e voltamos a andar pelo corredor, à procura
do que fazer. Já estávamos ficando frustradas, pois essa era nossa
primeira visita ao hospital e não encontrávamos nem nosso
paciente nem nossos professores. Foi então que um senhor veio
caminhando em nossa direção e perguntou se estávamos
procurando por ele. Após confirmarmos seu nome, ele nos
acompanhou para seu leito e logo fez questão de perguntar se nós
gostaríamos de sentar, mas recusamos para não dar mais trabalho
ao simpático senhor, que já estava procurando cadeiras para que
nós pudéssemos nos sentar para a entrevista. Essa atitude do
paciente serviu como um ótimo quebra-gelo e já nos deixou mais à
vontade para conduzir a entrevista.

O senhor João mostrou-se, desde o início, como um


excelente informante, supersimpático e disposto a responder às
nossas perguntas, apesar de já tê-las ouvido inúmeras vezes antes
e nos fornecia informações antes mesmo de ser perguntado. O
cativante senhor tinha 57 anos, trabalhava como agente de
portaria, era espírita e era natural do Recife, mas já vivia no
Riacho Fundo há 25 anos e estava internado no hospital desde o

231
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

dia 13 de janeiro. Apesar de sentir uma dor extremamente intensa


em seu braço direito, ele era extrovertido, prolixo e parecia se
abrir conosco, porém, até certo ponto, visto que em determinado
momento ele começou a chorar durante a entrevista e logo mudou
de assunto, momento em que ficamos na dúvida se as lágrimas
eram devido a um assunto difícil, a dor física no braço ou aos dois.
Minha dupla e eu conseguimos preencher a identificação, queixa
principal e duração, história da moléstia atual e revisão dos
sistemas, até pouco mais de 15 horas, quando a visita dele chegou
no quarto. Nesse momento, então, eu e minha dupla nos retiramos
do quarto para dar mais privacidade aos dois e informamos a eles
que voltaríamos em seguida. Durante a entrevista, eu tive uma
sensação que, ao meu ver, é uma das piores sensações que se
pode experimentar, a de ver alguém que está tentando nos ajudar
sofrendo e não temos como retribuir e ajudar a amenizar o
sofrimento dessa pessoa.

Após sairmos do quarto, retornamos para o quinto andar,


onde nos encontramos novamente com os professores para tirar
algumas dúvidas, especialmente sobre o exame físico que, a
princípio, deveria ser realizado em seguida. Indagamos os
professores sobre os dados recolhidos até então, e eles nos
informaram que a hipótese diagnóstica seria uma síndrome de
Pancoast, associada a uma síndrome de Horner. Eu e minha dupla
estávamos muito preocupadas em como seria possível realizar um
exame físico em um paciente que sofria de uma dor extremamente
intensa que segundo o paciente, em uma escala de 0 a 10, sendo
10 a dor mais intensa, ele a classificou em 100. Ao perguntamos
isso aos professores, eles apenas nos informaram que deveríamos
realizar o exame físico completo, independentemente da dor
sentida pelo paciente, o que nos deixou extremamente

232
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

desconfortáveis. Nós retornamos então para o sexto andar e


sentamos próximas à porta do quarto do senhor João, para
esperarmos a hora da visitação acabar. Aproveitamos esse período
para ler sobre as patologias que acometiam nosso paciente e, após
um breve estudo, nossa sensação de desconforto de termos de
realizar o exame físico completo aumentou, já que ambas são
síndromes extremamente raras e que causam dores e limitações
ao paciente.

Pouco depois das 16 horas, a visita do senhor João foi


embora, nós adentramos no quarto novamente, e, para nossa
surpresa, ele estava dormindo. A acompanhante do paciente do
leito ao lado nos informou que ele estava com muita dor e havia
tomado morfina.

Após esse novo revés, nós retornamos para conversarmos


com os professores, mas dessa vez não mais frustradas, mas
extremamente compreensivas do que o paciente estava passando.
Os professores então começaram a debater na nossa frente o que
deveria ser feito, sendo que um sugeriu acordá-lo e o outro, que
acabou prevalecendo, falou para deixá-lo descansar e que o sono
da morfina seria bom para ele. Ademais, os professores, ao invés
de nos referirem a outro paciente, informaram-nos que deveríamos
retornar ao HRAN na quinta de manhã, para podermos finalizar a
coleta da história e realizar o exame físico que estava faltando.

Na quinta de manhã cedo, voltamos ao HRAN e nos


encontramos com o professor que ficaria responsável por nós
naquela manhã. Ele nos levou ao quarto do paciente novamente,
mas, dessa vez, o senhor João nos pediu desculpas e disse que
não conseguiria nos ajudar nessa tarefa, pois estava com muita
dor que o impossibilitava de participar da entrevista. O professor o

233
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

compreendeu e nos levou para outro paciente para que


pudéssemos completar a atividade.

Essa primeira visita ao HRAN me impactou profundamente,


pois, ao meu ver, ficaram bem claros alguns conceitos que sempre
são debatidos de forma abstrata e teórica na sala de aula, mas
que, na prática médica, são essenciais no dia a dia do profissional
e também fundamentais para a construção de um vínculo médico-
paciente efetivo. Entre esses conceitos, o que para mim ficou mais
nítida foi a necessidade de se respeitar a autonomia e as vontades
do paciente e de prezar pelo seu bem-estar, já que o paciente não
pode ser obrigado a fazer nada que ele não queira,
independentemente da vontade da equipe médica.

Quão longe vai o desrespeito?

Andressa Gabrielle Moreira

Era uma manhã de sexta-feira, o local, o pronto-socorro do


Hospital Regional de Taguatinga (HRT). Mais cedo naquela
semana, eu tinha combinado com uma tia minha, ex-enfermeira
chefe do HRT, a minha participação em um plantão para fins
acadêmicos, apenas no intuito de conhecer a dinâmica de um
pronto-socorro e quais as principais questões envolvidas nesse
ambiente hospitalar. Mas ao final, a experiência que eu tinha tido
fora totalmente diferente do esperado.

No início da manhã, encontrei-me com os enfermeiros, e a


enfermeira Aline me acolheu para que eu a acompanhasse na sua
rotina. Inicialmente, ela me apresentou as salas e como os
pacientes eram divididos, mostrou-me o carrinho com os materiais
mais utilizados e também o sistema pelo qual os profissionais têm
o controle do prontuário dos pacientes. O pronto-socorro contava

234
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

com duas salas principais; na primeira, ficavam pacientes mais


idosos, e, junto a eles, tinha uma rede de computadores para uso
dos profissionais de saúde; já a outra sala tinha pacientes de todo
tipo, era lotada e contava com poucos recursos adequados para
acolhimento daquela quantidade de pessoas. Além dessas salas,
tinha a sala de materiais, a sala dos enfermeiros e uma sala de
sutura de ferimentos não graves, que contava com duas macas e
dava acesso a outras regiões do hospital, então, muitas pessoas
passavam por ali.

Em seguida, a enfermeira Aline começou o atendimento,


cuidando, inicialmente, dos casos mais graves e, depois, passando
para os de menor risco. Em um dos atendimentos, ela reparou que
um dos pacientes precisava de um raio-X em leito, já que ele tinha
sofrido um acidente e não conseguia se movimentar, porém a
solicitação pedia raio-X normal. Logo, ela solicitou que eu fosse em
busca da médica responsável, para pedir tal alteração na
solicitação do exame. A médica me recebeu muito mal e me tratou
de forma inapropriada, o que mexeu muito comigo. Quando voltei
ao pronto-socorro, a enfermeira Aline me pediu que fosse a ala do
raio-X, a fim de verificar se a alteração teria chegado, e me
informaram que ainda não tinha; então, fui instruída a voltar na
médica responsável e verificar se realmente ela teria enviado. Ao
confrontar a médica sobre a alteração da solicitação do exame, ela
me respondeu de forma grosseira e ainda criticou a enfermeira
Aline, dizendo que “ela não para de encher o meu saco, fala para
ela que eu tenho mais o que fazer”. Então, voltei ao pronto-socorro
e informei a enfermeira Aline do ocorrido, e ela não ficou surpresa
com a reação da médica e até mesmo falou que já estava
acostumada com tais atitudes. Diante de tudo isso, ela decidiu ir
até a médica e pedir para que ela fosse ver o paciente, para que,

235
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

enfim, ela enviasse a alteração da solicitação do raio-X, e foi o que


ocorreu. De fato, esse episódio me mostrou que muitas vezes o
desrespeito de médicos com os demais funcionários é real e algo
que deve ser mudado, considerando que toda profissão tem seu
valor e não deve ser menosprezada.

O acontecimento mais marcante daquela manhã, entretanto,


foi o infarto de uma senhora de cerca de 55 anos, branca e obesa.
Era em torno de 11 horas da manhã, quando a acompanhante de
uma das pacientes procurou uma das enfermeiras e informou que
sua tia não passava muito bem. Logo, a enfermeira foi conferir e
verificou que a mulher estava tendo uma parada cardíaca. Assim,
todas as macas foram afastadas para manejo da paciente até a
sala de sutura, que era a única com espaço para a manobra de
reanimação. Então, a paciente foi posicionada na tal sala, e
levaram um desfibrilador cardíaco, mas, logo em seguida,
verificaram que estava com problema, então, foram atrás de outro
em outra região do hospital e acharam um que estava
funcionando. Nesse primeiro momento, várias piadas foram feitas,
falando que aquele não era o dia de sorte da “gordinha”, a partir
daí, fiquei horrorizada com a falta de respeito dos profissionais
com a paciente, que se apresentava inconsciente e totalmente
indefesa. Após a iniciação da reanimação, foram encontradas
algumas dificuldades, como a intubação da paciente, considerando
que pacientes obesos tendem a ter Mallampati classe 3 ou 4, o que
complica muito o processo de passagem da cânula. Diante disso,
vários profissionais tentaram e não conseguiram, e mais uma vez
foram feitas piadas caçoando a paciente por conta do seu peso.
Após cerca de 20 minutos do início da reanimação, chegaram, na
sala, estudantes de fisioterapia de semestres iniciais que estavam
visitando o hospital, e logo foi perguntado a eles quem gostaria de

236
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

fazer a reanimação, porque o pessoal que estava fazendo a


massagem já estava cansado. Então, dois estudantes se
voluntariaram e foram questionados a eles se já teriam feito ou
praticado a manobra de reanimação antes e ambos responderam
que não, e o que mais me chocou foi a resposta de um dos
enfermeiros: “então, está na hora de aprender, olha aí a sua
primeira cobaia”. Logo em seguida, os estudantes começaram a
fazer a manobra, e foi clara a falta de preparo deles. O mesmo
profissional que autorizou a ação dos estudantes de fisioterapia me
perguntou se eu estava interessada em fazer a manobra também,
mas eu recusei e expliquei que jamais faria algo que pudesse vir a
prejudicar a vida de um paciente, considerando que eu nunca tinha
feito massagem cardíaca antes, e a resposta do enfermeiro foi uma
risada.

Após toda a manobra de reanimação, a qual foi realizada de


forma desorganizada e desrespeitosa, a paciente não resistiu.
Assim que houve a confirmação da morte, a paciente foi deixada
na maca em que estava, na mesma sala de sutura, e foi jogado
um pano branco por cima do seu corpo, e em seguida, os
familiares foram avisados e instruídos sobre o processo burocrático
para a retirada do seu familiar do hospital. Ao ver aquela cena, em
que a filha e a sobrinha da paciente choravam com o recebimento
da notícia, pensei que elas nem imaginavam o tamanho
desrespeito que sua ente querida passou em seus últimos
momentos de vida, e aquilo me marcou de uma forma
inimaginável. Nunca imaginei que profissionais de saúde pudessem
ser tão não empáticos e permitissem tamanho desrespeito, e o
fato de eu não ter feito nada em relação a isso foi algo que me
revoltou.

237
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Ao voltar para casa, vários pensamentos passaram pela


minha cabeça, coisas que eu poderia ter dito ou feito para impedir
ou alertar tamanho desrespeito com aquela paciente, seja pelas
piadas em relação ao seu peso ou pela permissão da realização de
um procedimento sério por indivíduos não habilitados, não dando o
devido valor à vida da paciente. Imaginei o quão longe aqueles
profissionais já foram para permitir tais atitudes e encarar o
ocorrido como algo normal. Depois daquele dia, prometi a mim
mesma que jamais me tronaria esse tipo de profissional, de fato,
eu reconheço que trabalhar com saúde não é algo fácil, a bagagem
é pesada, e a perda de empatia é realmente algo que ocorre, mas
me prometi que sempre me lembraria daquela senhora e levaria
isso como um alerta pessoal para jamais desrespeitar um paciente
e para fazer de tudo para não permitir tais ações no meu ambiente
de trabalho, pois saúde não é caridade, é direito, e respeito deve
ser algo constitucional no interior de cada pessoa, principalmente
do profissional de saúde.

REFLEXÃO DA AUTORA DA NARRATIVA

A busca pelo respeito aos direitos dos pacientes e a


preservação da sua dignidade são pontos fundamentais na
discussão ética associada à assistência médica (CARVALHO;
TORREÃO, 1999). O CFM declarou, na Resolução n. 2.077/2014 –
a qual dispõe sobre a normatização do funcionamento dos Serviços
Hospitalares de Urgência e Emergência – a obrigatoriedade da
segurança assistencial ao paciente assim como ao médico. Essa
resolução visa a direcionar o serviço e a estabelecer estratégias de
gestão de risco para o paciente e ofertar condições estruturais e de
segurança para a desenvoltura do trabalho em saúde. Na prática,
entretanto, o que ocorre é o embate entre as duas figuras

238
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

asseguradas por essa resolução – médicos versus pacientes –, a


qual reflete a queda ou a falta de empatia dos primeiros na
interferência dos direitos dos segundos.

Segundo Ambroise Paré, empatia é “curar ocasionalmente,


aliviar frequentemente, consolar sempre” (BARROS FILHO, 2007),
todavia, esse conceito se perde na atualidade, pois a
representação do sucesso é a cura, e qualquer coisa além disso é
considerado fracasso. Isso posto, o médico se depara com um
acervo de frustrações pessoais ocupacionais, que provocam
desistência ou desinteresse, refletindo diretamente na consolidação
de condutas de indiferença e repúdio.

Atualmente, o profissional de saúde não empático é encarado


como algo normal, sendo essa uma problemática convergente na
discussão ética, pois a empatia é o laço que constrói a relação
médico-paciente eficaz. De fato, a vigência do progresso técnico e
a monopolização da informação científica no espaço médico
educacional refletem a drástica transformação do estudante de
medicina durante o período de formação, revelando um processo
de desumanização (MORETO, 2013).

Compreende-se, então, que o próprio seguimento


institucional acadêmico é fator causal na queda de empatia de
profissionais de saúde e seu consequente reflexo sobre condutas
antiéticas. Mas seria essa a única causa? Sabemos que não. Não é
segredo que o sistema de saúde brasileiro lida constantemente
com diversas dificuldades, como superlotação, falta de estrutura,
ausência de investimento proporcional, entre outras, e tudo isso
contribui para o que se chama de cenário caótico. Diante disso,
fica a reflexão de como deve ser trabalhar em um lugar que não
tem um alicerce adequado e exige, constantemente, condutas de
êxito, não é fácil, até mesmo chega a ser contraditório.

239
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Nessa conjuntura, a queda de empatia dos profissionais de


saúde contribui para condutas que, muitas vezes, envolve a não
compreensão da expectativa do paciente, a subestimação da dor e
a condenação do sofrimento, podendo ser expressas de forma
desrespeitosa e drástica, e, consequentemente, ferir os direitos
essenciais do paciente assim como a própria ética.

Esse contexto aplicado ao cenário de pronto-atendimento de


urgência e emergência fica ainda mais evidente, pois abrange
situações em que o contato anterior com o paciente não existe, ou
seja, o vínculo da relação médico-paciente começa exatamente
naquele instante. Além disso, aquele profissional de saúde está
envolvido em constantes episódios de inquietação e estresse,
aliado à estrutura deficiente em “equipamentos e recursos
humanos, o que põe em risco tanto a vida dos pacientes que
buscam assistência, quanto a integridade profissional dos médicos
que tentam exercer sua função” (CARVALHO, 1999).

Diante disso, fica claro que, ao se discutir sobre ética e


assistência médica, deve-se fazer uma análise de um dos pontos
centrais dessa associação, a empatia. Entender o que é empatia e
como e por que ela está sendo negligenciada na relação médico-
paciente é fundamental para resolução dessa problemática. Entre
as soluções, tem-se a mudança nos currículos acadêmicos de
medicina, direcionando temas humanísticos e a importância do
vínculo entre o médico e o paciente, discutindo todos os seus
desdobramentos, de acordo com cada cenário, principalmente, no
ambiente de urgência e emergência. Além disso, a oferta
adequada de recursos e condições de trabalho, para não
sobrecarregar o profissional de saúde, e, por fim, a desconstrução
da associação do sucesso com a cura e o entendimento de que ser
médico não envolve apenas conhecer a doença, mas também

240
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

saber valorizar o doente, tendo a aplicação da abordagem holística


como ponto principal de investigação e estabelecimento de uma
relação empática.

Referências

BARROS FILHO, Antônio de Azevedo. De barbeiro a cirurgião do


rei: a fantástica história de Ambroise Paré. Boletim da FCM, v. 2,
n. 10, 2007.

CARVALHO, Paulo Roberto Antonacci; TORREÃO, Lara de Araújo.


Aspectos éticos e legais na emergência. Jornal de Pediatria, Rio de
Janeiro, v. 75, supl. 2, p. s307-s314, 1999.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM n.


2.077, de 24 de julho de 2014 – Dispõe sobre a normatização do
funcionamento dos Serviços Hospitalares de Urgência e
Emergência, bem como do dimensionamento da equipe médica e
do sistema de trabalho. Brasília: Conselho Federal de Medicina,
2014.

COSTA, Fabrício Donizete da; AZEVEDO, Renata Cruz Soares de.


Empatia, relação médico-paciente e formação em medicina: um
olhar qualitativo. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 34, n.
2, p. 261-269, 2010.

MORETO, Graziela; BLASCO, Pablo Gonzales. A erosão da empatia


nos estudantes de Medicina: um desafio educacional. Revista
Brasileira de Medicina, Rio de Janeiro, v. 69, n. 1, p. 12-17, 2012.

A autonomia da paciente

Hugo Carneiro Fernandes

Era início do quinto semestre, começaríamos, em habilidades


de ginecologia e obstetrícia, colhendo as histórias médicas das
gestantes e puérperas, no HRP. No primeiro dia, a professora
selecionou uma gestante para nossa dupla e, então, fomos em
direção ao quarto, onde havia mais duas duplas colhendo a história
de outras pacientes. Foi decidido que eu começaria a anamnese,

241
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

algo que me deixou um pouco nervoso, mas estava confiante que


iria ocorrer tudo certo, visto que tinha me preparando bastante.

A paciente que me foi designada era uma gestante de 35


semanas, de nome Maria, que deu entrada no pronto-socorro com
queixa de cefaleia intensa, dor no hipocôndrio direito e
diagnosticada previamente com Doença Hipertensiva Específica da
Gravidez (DHEG). Quando chegamos, ela estava deitada na cama,
sem acompanhante, então, nós nos apresentamos e demos início à
identificação da paciente. Ela respondia às perguntas de forma
desinteressada, falando muito baixo, de modo que não
entendíamos o que respondia, dando a entender que ela não
queria que estivéssemos lá. Algo que desconstruiu minhas
expectativas, já que eu imaginava que seria algo positivo para a
paciente, pois estaríamos dando atenção para ela, ouvindo suas
queixas, mas não foi o que aconteceu. Ademais, durante a
anamnese, o telefone dela tocava constantemente, falei que
podíamos fazer uma pausa para ela atender, mas ela não quis,
imagino que ela esperava que iria terminar logo a coleta de dados.
Ao fim da anamnese, chamei uma colega para acompanhar, então,
coloquei o biombo, fechei a porta do quarto e iniciei o exame
físico. Eu estava um pouco receoso, pois seria a primeira vez que
faria em uma paciente, além do que, ela estava desconfortável
com nossa presença. Ao decorrer do exame, ela relata muita dor
na região abdominal, posição preferida em decúbito lateral, e não
queria ficar sentada, algo que é preciso em alguns momentos do
exame. Devido ao seu desconforto, tentei fazer o exame o mais
rápido possível e acabei pulando algumas fases, como o exame de
Leopold. Algo que refletiu na qualidade do exame físico. O fim da
coleta coincidiu com o horário de visita, quando ela usou para
responder às ligações de telefone. Então, eu fui falar com a

242
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

professora que não consegui terminar o exame, pois a paciente


estava desconfortável. Nessa ocasião, a professora falou que era
para voltarmos lá, terminar o exame, pois iria refletir na nossa
nota da história clínica, e que a paciente, por estar no SUS, era
obrigada a permitir que obtivéssemos os dados. Então, fomos
junto com a professora e terminamos o exame, a paciente ainda
relatava dor, contudo aparentava estar mais confortável.

Ao sair do hospital, fiquei pensando na frase da professora


que a paciente era obrigada a colaborar na história, por estar no
SUS, e na ênfase que ela deu na nota da história clínica, dando a
entender que era mais importante que o bem-estar e a liberdade
da paciente. No momento que ela disse isso, eu não entendi a
gravidade dessa fala e prossegui para voltar a fazer o exame, sem
contestá-la. Naquela hora, não senti liberdade para falar algo ou
pedir para trocar de paciente, talvez por querer evitar conflito, pelo
medo de perder nota ou pela falta de abertura que a professora
propôs. Hoje, entendo que prosseguir naquele exame foi algo
errado, visto o desconforto da paciente, e que devemos pôr o
bem-estar acima de tudo. Por fim, tomo isso como um aprendizado
para as próximas coletas de história.

Ao final da consulta, retirou de sua sacola meia


dúzia de ovos e entregou ao doutor, como forma
de agradecimento

Marina Coleta Drago

Ao final de meu quarto semestre, nas férias de final de ano,


eu e mais três colegas fomos fazer um estágio, em uma cidade no
interior da Bahia, Santa Rita de Cássia. Cidade pequena, à beira do
rio, uma rua de comércio principal, nenhuma loja multinacional, a

243
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

maior parte da cidade não é asfaltada. Tem uma ampla área rural
e uma população de 26 mil habitantes.

A atenção básica da cidade é impecável, 100% da população


têm acesso aos postos de saúde e aos médicos que lá trabalham.
Contudo, caso haja a necessidade de algum especialista, alguma
cirurgia ou até mesmo uma cesariana, o paciente deve ser
transportado para a cidade referência mais próxima, Barreiras,
cerca de 200 quilômetros de distância. O meu principal objetivo no
estágio era conhecer uma outra realidade deste país tão amplo e
diverso. Ficamos em cinco postos de saúde, fazendo rodízio entre
eles durante duas semanas. Como o município tem uma extensa
área rural, cada posto de saúde tem uma referência em alguma
área rural, de tal forma que o mesmo médico que trabalha na área
urbana, em um dia da semana atende no posto mais afastado.

No meu último dia de estágio, acompanhei o dr. Felipe,


médico recém-formado, para a área rural de Mandacaru. Para isso,
foi necessária uma viagem de uma hora e meia em estrada de
terra. No caminho, me atentei aos detalhes. A terra seca me
chamou a atenção, juntamente com o gado magro que lá estava,
praticamente esquelético. Havia sido informada que o período de
seca tinha sido maior nesse ano e que muitos pequenos produtores
haviam perdido praticamente tudo o que haviam investido. Vi
vilarejos com casas pequenas com portas e janelas fechadas, além
de crianças sentadas no chão. Pau-de-arara passando para levar
as famílias às cidades. Trabalhadores tentando realizar o plantio do
pouco que havia na terra.

Até que, de repente, paramos. No meio do nada. Com um rio


à frente. Disseram-me que devíamos pegar a balsa para
atravessar. Continuei sem ver nada, a não ser uma corda que ia de
um lado a outro da margem. Descemos do carro, e aí entendi o

244
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

que significava a balsa. Havia uma plataforma de madeira em que


o carro ficava, duas roldanas – uma em cada margem – que
serviam para puxarmos e movimentarmos a nossa balsa
manualmente. Ao chegar do outro lado, seguimos viagem.

Mais alguns quilômetros, e chegamos ao posto de saúde. Era


uma casa simples e simpática, rodeada de pessoas esperando para
serem atendidas. A senhora responsável pela limpeza nos recebeu
com tanto carinho, fez questão de me mostrar o lugar e de me
oferecer cuscuz com café. Entrei no consultório médico e me
apaixonei pelo que vi. Era uma sala apertada, com as paredes
pintadas de branco e uma janela atrás da mesa do médico. A
janela estava aberta, e dela era possível avistar o horizonte. Havia
uma mistura de cores: o marrom do barro, o verde da grama e das
árvores e o azul do céu claro. Senti-me extremamente feliz
naquele lugar.

Começamos os atendimentos. Entrou pela porta uma senhora


de 50 anos com uma pequena sacola. Rita era hipertensa e havia
ido à consulta para a entrega do resultado dos exames de rotina e
para renovação do receituário médico. Ao ser indagada sobre sua
profissão, respondeu-me que trabalhava na lavoura, que não
recebia muito, mas que dava para viver. Contou que naquele ano
estava tendo dificuldade com as chuvas e que os moradores de lá
estavam todos se ajudando. Disse que a prefeitura iria abrir um
posto perto de onde ela morava e me convidou, gentilmente, para
trabalhar lá quando me formasse. Disse que, com o dr. Felipe, ela
aprendeu a cuidar da saúde e que era muito grata a ele. Ao final
da consulta, retirou de sua sacola meia dúzia de ovos e entregou
ao doutor, como forma de agradecimento.

As consultas que se seguiam eram semelhantes à de dona


Rita, não necessariamente entregando presentes ao doutor, mas

245
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

lhe mostrando muita gratidão por estar lá. No final do dia,


perguntei o que havia de diferente naquele local para que os
pacientes demonstrassem tamanha gratidão. Ele me explicou que
se tratava de um posto recém-montado e que, antigamente, os
moradores precisavam ir à cidade para conseguir atendimento.
Essa proximidade fez com que eles se sentissem pertencidos ao
espaço onde moram.

Aquela conversa me encheu de emoção e, enquanto o doutor


estava terminando de preencher alguns formulários, fui novamente
à janela. Tive o sentimento de plenitude e relembrei o motivo pelo
qual escolhi essa profissão. Escolhi medicina não por remuneração,
status ou para ser reconhecida mundialmente, escolhi para olhar
para quem é esquecido, consolar quem precisa, conhecer e ajudar
esse Brasil que nos acolhe. Contudo, em muitas vezes, pela
correria da vida, deixamo-nos levar e realizamos nossos deveres
sem, ao menos, refletir o porquê. Esquecemos de nossa essência
em prol de notas, currículo, carreira, ser bem-sucedido. Eu tinha
esquecido o meu porquê. Felizmente, eu o recuperei e não
pretendo esquecê-lo novamente.

REFLEXÃO DA AUTORA DA NARRATIVA

O SUS, criado pela Constituição Federal de 1988, foi


influenciado pela Reforma Sanitária, que surgiu no final da década
de 1970 e tinha como um dos objetivos expor a saúde como um
direito de todo cidadão e um dever do Estado (MATTOS, 2009). O
SUS foi formulado de tal maneira que os princípios e as diretrizes
são ideais norteadores para o seu funcionamento. Entre eles, é
importante destacar os princípios de universalidade e de equidade.
O princípio da universalidade garante o direito dos brasileiros ao
acesso à saúde pública. O princípio da equidade confronta o

246
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

território brasileiro e expõe a realidade das desigualdades sociais e


econômicas existentes, e, assim, deve-se investir em políticas de
saúde em locais com maior iniquidade social e econômica,
atentando-se para as necessidades do indivíduo e da sociedade em
que está inserido (MATTA, 2007). Dessa forma, todos os cidadãos,
independentemente de cor, renda, raça, gênero, credo, local em
que residam, sendo área urbana ou rural, têm o direito de acesso
à saúde.

Além disso, foi implementada, em 2003, a Política Nacional


de Humanização (PNH) – HumanizaSUS, que, pela sua formação,
deve estar presente em todo o aspecto do SUS. Essa política visa à
valorização de todos os sujeitos que estão relacionados ao sistema
de saúde, desde o paciente até o gestor. Há a preconização do
diálogo entre os usuários, profissionais, trabalhadores e gestores
para a melhora do sistema, de tal forma que haja empatia entre as
partes. Assim, uma das diretrizes do SUS, que é a participação da
comunidade, é colocada em prática. O fato de o usuário ter voz e
participação em movimentos sociais, rodas de conversa, entre
outros, o faz sentir pertencente ao local onde habita, melhorando o
contato com o profissional de saúde, permitindo a intervenção
dele, se necessária, e lutando para tornar a saúde um direito de
todos. Isso também ocorre com os trabalhadores do SUS que, ao
receberem um local de trabalho apropriado, com condições
seguras para sua tomada de decisão, realizarão as atividades da
melhor forma possível (BRASIL, 2003).

A PNH tem como diretrizes o acolhimento humanizado, a


gestão participativa, a ambiência, um local acolhedor que possa
proporcionar espaço de encontro entre os cidadãos, defesa dos
direitos dos usuários e valorização do trabalhador. Com isso, os
objetivos dessa política, que são realizar atendimento humanizado,

247
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

desde o acolhimento até o último estágio, garantir os direitos dos


usuários, valorizar o trabalhador, entre outros, serão cumpridos
(BRASIL, 2003).

De acordo com a Sociedade Brasileira de Medicina de Família


e Comunidade (SBMFC), a medicina rural abrange população que
vive no campo, como pequenos e grandes proprietários rurais,
trabalhadores agrícolas, populações ribeirinhas, indígenas,
quilombolas, entre outros. Cada população apresenta suas próprias
características e singularidades; algumas apresentam dificuldade
de acesso, sendo necessário, por exemplo a utilização de postos de
saúde móveis, por meio de embarcações; outras necessitam de
unidades móveis montadas dentro de ambulância ou de que o
médico se desloque durante algumas horas para ocupar o posto de
saúde de um local afastado, colocando em prática o princípio de
equidade, para que todos possam ter seu direito resguardado
(SBMFC, 2018).

Para que a saúde de cada cidadão seja respeitada, como é


proposto pelo SUS, na Constituição, é necessário que haja um
profissional que consiga manejar todos os pontos apresentados e
conduzir uma consulta voltada da melhor forma para o paciente. A
medicina obteve vasta melhoria ao longo das décadas. O avanço
tecnológico permitiu que fosse possível desbravar o corpo humano
e atribuir preciosos conhecimentos sobre seu funcionamento e seu
processo de adoecimento. Assim, houve a criação de várias
subespecialidades. Contudo, percebe-se a perda da humanidade
congruente a esse avanço tecnológico e, ao mesmo tempo, a
tentativa de seu resgate pelos estudiosos. Várias linhas de
pensamento foram criadas para que essa humanidade
permanecesse. A medicina centrada no paciente é um exemplo
que surgiu no final do século XX, no Canadá; ela problematiza

248
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

tanto a metodologia semiológica quanto os conhecimentos da


medicina e nos põe a questionar a diferença entre cuidar da
doença e cuidar do doente (RIOS, 2016). As inúmeras
subespecialidades muitas vezes induzem o médico a praticar uma
abordagem voltada à doença, deixando de lado algum aspecto
psicológico ou sentimental que possa ter gerado o processo de
adoecimento.

Em minha experiência em Santa Rita de Cássia, percebi, com


o dr. Felipe, a importância em se abordar o doente, levando em
consideração as suas individualidades, os seus anseios e as suas
angústias. Percebi, nele, a prática da humanidade médica, ou seja,
capacidade de comunicação, sensibilidade, interesse, empatia e
responsabilidade (RIOS, 2005). Saber a importância dessa prática
nos torna mais humanos, além de melhores profissionais. Dessa
forma, é extremamente importante a prática dessa humanização
desde a faculdade. O aluno deve ter o contato precoce com a
comunidade para que ele aprenda a dialogar de maneira efetiva e
trabalhe envolvido, de forma ética, com a sociedade (ALVES et al,
2009).

A importância desse estágio se fez clara para mim. Pude


vivenciar a realidade do SUS em um local tão afastado da capital e
perceber que é possível colocar em prática os princípios e as
diretrizes desse sistema, com qualidade, revivendo minhas
esperanças. A vivência com um médico humanizado se contrapôs,
em muitos momentos, com alguns professores e outros
profissionais com os quais já tive contato. Isso se fez
extremamente importante para eu ter a certeza de qual futuro
profissional seguir.

249
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Referências

ALVES, Antonia Núbia de Oliveira et al. A humanização e a


formação médica na perspectiva dos estudantes de medicina da
UFRN – Natal/RN – Brasil. Revista Brasileira de Educação Médica,
v. 33, n. 4, p. 555-561, 2009.

BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização


(HumanizaSUS), 2003.

MATTA, Gustavo Corrêa. Princípios e diretrizes do Sistema Único


de Saúde. In: MATTA, Gustavo Corrêa; PONTES, Ana Lucia de
Moura (Org.). Políticas de saúde: organização e operacionalização
do Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2007.
p. 61-80.

MATTOS, Ruben Araujo de. Princípios do Sistema Único de Saúde


(SUS) e a humanização das práticas de saúde. Interface-
Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, supl. 1, p. 771-
780, 2009.

RIOS, Izabel Cristina. Humanidades médicas como campo de


conhecimento em medicina. Revista Brasileira de Educação Médica,
v. 40, n. 1, p. 21-29, 2016.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DE SAÚDE E COMUNIDADE


(SBMCF). Médicos que atuam na Zona Rural atendem 50% da
população do mundo, 2018.

250
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Ana Júlia Souza Malheiros

“A morte é que está morta


Ela é aquela Princesa Adormecida
no seu claro jazigo de cristal.
Aquela a quem, um dia – enfim – despertarás...
E o que esperavas ser teu suspiro final
é o teu primeiro beijo nupcial!
– Mas como é que eu te receava tanto
(no teu encantamento lhe dirás)
e como podes ser assim – tão bela?!
Nas tantas buscas, em que me perdi,
vejo que cada amor tinha um pouco de ti...
E ela, sorrindo, compassiva e calma:
– E tu, por que é que me chamavas Morte?
Eu sou, apenas, tua Alma…”
Mario Quintana

Confesso que quando produzi a minha narrativa, não tinha


50% do conhecimento necessário para escrever o que relato aqui.

251
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Não tinha conhecimento sobre a morte. Escrevi a seu


respeito, mas sempre me mantive em um terceiro plano, receosa,
contida. Para mim, era óbvio que não iria me aprofundar no
assunto, afinal, estava fazendo de tudo para não me afetar. Estava
com medo. Medo do desconhecido. Desconhecido não por ser algo
que nunca vivi, nem nunca alguém voltou para contar.
Desconhecido por ser algo que não é discutido, algo que é evitado
em todas as janelas da vida. Algo que é encarado como tabu, que
seus debates carregam morbidade em uma sociedade que já data
seu vigésimo primeiro século.

A tanatologia, como fonte de conhecimento, nunca havia, de


fato, despertado o interesse em mim, mas a morte faz parte da
vida. Os belíssimos livros A morte é um dia que vale a pena viver,
da paliativista Ana Claudia Quintana Arantes, e Sobre a morte e o
morrer, da psiquiatra suíça Elisabeth Kübbler-Ross, abordam, de
modo muito singelo, a forma como a morte é inexorável à vida. É
a única coisa que temos certeza, é um processo normal, mas que
não é encarado dessa forma. A tanatologia define a ciência que
estuda a morte. A origem da palavra vem do grego Thanatus, o
deus da morte, já logia significa estudo. Ampliando esse conceito,
temos que a tanatologia é a investigação científica sobre a morte e
o morrer.

Como afirma Arantes (2020), de maneira sucinta: “enquanto


as pessoas não olharem para a morte com a honestidade de
perguntar a ela o que há de mais importante sobre a vida,
ninguém terá a chance de saber a resposta”. Por meio disso, a
autora trouxe a metáfora de que nos escondemos da morte como
se estivéssemos brincando de esconde-esconde: “se eu não olho
para morte, ela não me vê. Se eu não penso na morte, ela não
existe”. Digo com precisão que, pelo menos, 90% dos leitores aqui

252
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

se identificaram com o precedente. E isso não cabe exclusivamente


à morte. As pessoas tendem a evitar olhar para situações
negativas, com medo de aquilo corroê-las por inteiro, como se não
olhar as fizessem não existir, mas a vida é feita de altos e baixos e
todas suas partes precisam ser enxergadas.

Kübbler-Ross (1985) interpela sobre o paradoxo do avanço


da ciência e a nossa diminuta capacidade de lidar com a morte;
como é possível hoje não sabermos defrontá-la? Recorremos a
eufemismos a todo tempo, impedimos o contato das crianças para
protegê-las. Isso posso falar por mim. Aos 13 anos, nunca havia
ido a um velório, quando fui exclusivamente ao do meu avô
paterno, e até mesmo sete anos depois ainda era uma situação
assombrosa. Aos meus 20 anos, deixei de me despedir de diversas
almas amigas pelo medo e pela proteção dos meus pais. Não julgo
meus pais por me afastarem disso, é a forma como eles foram
conduzidos pela sociedade que os fizeram evitar essas situações.

A morte é, hoje em dia, solitária e demasiadamente triste,


em geral, acontece em um leito de hospital, ambiente nada
familiar. Tem caráter mecânico e, da forma que é tratada nesses
ambientes, com uma logística extremamente atribulada e diversos
profissionais envolvidos, perde totalmente a sua humanização, a
qual deveria ser intimamente trabalhada nesse momento. Até isso
reflete o nosso medo de encarar a morte. Os médicos,
enfermeiros, técnicos e todos os profissionais que estão ali –
cargos que, futuramente, serão ocupados por nós – preferem
controlar todos os sinais vitais e outros parâmetros pelos
aparelhos, a fim de evitar olhar a morte iminente. É mais fácil
monitorar as máquinas do que olhar para o ser humano que está
ali e aceitar as nossas limitações, aceitar que não conseguiremos
“livrar todo mundo” e, principalmente, aceitar a nossa mortalidade.

253
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

É também um mecanismo de defesa, para tentar não deixar aquilo


nos afetar, pois, como afirma Morin (1997), a morte mostra a
nossa vulnerabilidade, independentemente de qualquer condição
social ou estado e ela não pode ser vencida.

A medicina evoluiu ao longo dos séculos com a capacidade


hodierna para curar e prolongar a vida de forma jamais vista.
Vivemos em uma sociedade extremamente desenvolvida
tecnologicamente, com múltiplos equipamentos capazes de
substituir órgão vitais, e, nesse contexto, é indispensável ponderar
entre o cuidado paliativo e a obstinação terapêutica. O cuidado do
paciente à beira da morte – ou cuidado paliativo – deve promover
qualidade de vida, aliviar a dor e o sofrimento, além de avaliar o
paciente por inteiro. A obstinação terapêutica ocorre quando o
médico opta por prolongar, incessantemente, a vida do paciente, o
que pode trazer desconforto, dor e sofrimento, sem perspectiva
alguma de cura. Não é uma conduta eticamente elogiável a qual
ocorre até pelo fato de os médicos e os profissionais de saúde não
aceitarem a própria mortalidade e estarem despreparados para
lidar com a morte, por não a conhecerem como mencionado
previamente. Acabam por provocar a distanásia, quando, mesmo
que não haja expectativas de cura ou melhora da enfermidade,
opta-se por insistir no prolongamento da vida de um paciente
terminal, sem respeitar o curso natural da morte. De certa forma,
em vez de prolongar a vida, prolonga-se a morte.

O estudante de medicina é exposto a uma carga de conteúdo


sem igual. Seis anos para quem está de fora parece muito tempo,
mas sempre nos questionamos como, em tão pouco tempo, vamos
aprender tudo para nos tornarmos médicos e como todo o
conteúdo será trabalhado. Apesar das incessantes aulas,
conferências, abordagens teóricas e noites mal dormidas, sentimos

254
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

um gap em inúmeras temáticas, temos a sensação de insuficiência.


Entretanto, pouco aprendemos nessas aulas a respeito da
sensibilidade, da forma como tratar o paciente, da conduta
adequada – e conduta aqui não me refiro aos protocolos e às
diretrizes terapêuticas, mas, sim, a, de fato, como conduzir o
paciente, como manejá-lo, como ser humano por inteiro.

Esse acadêmico, em geral, não tem capacidade para lidar


com a morte. A maioria dos médicos não sabem lidar com a morte
ou tem visão errônea dos cuidados paliativos. Como afirmam
Meireles et al (2019), o preparo para entender a morte ainda é
uma lacuna na educação médica, e a falta de diálogo cria
vulnerabilidade nos estudantes, com um paradoxo entre o
eticamente correto e a indiferença. Torna-se um desafio, no qual o
estudante e o médico não possuem habilidades para defrontar-se
com a morte, fazendo com que o mais viável seja se afastar
daquela situação e tratá-la da forma como foi abordado
anteriormente: sem olhar para o paciente de forma humanizada,
para se proteger da perda e da mortalidade.

Isso é evidenciado por Sapir (1972), ao afirmar que o


estudante de medicina, ao visualizar e encarar cadáveres desde o
começo da graduação, inicia a construção da sua barreira de
defesa. É um dos seus primeiros contatos com a morte que o
fazem buscar, incessantemente, o conhecimento e a objetividade
científica, esquivando-se da humanidade e da subjetividade, a fim
de evitar a aflição da morte.

No novo modelo de ensino da medicina – o PBL, o qual é


adotado no UniCEUB, a mortalidade e a humanização são mais
trabalhadas entre os alunos, porque, por meio da metodologia
ativa, as competências afetivas e empáticas são mais
desenvolvidas no discente. Além disso, o estudante é mais

255
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

estimulado a desenvolver habilidades de comunicação. Como


afirmam Medeiros et al (2013), essa metodologia, por adotar
currículo com princípios de garantir a formação médica em termos
não só técnicos e científicos como também humanísticos, de forma
interdisciplinar, cativa no estudante o que fora desvalorizado por
muitos anos. Nesse modelo, a doença não é só vista como algo
fisiopatológico, mas, sim, como uma situação multifacetada com
perspectivas pessoais e emocionais, segundo Charon (2004).

Ainda é importante citar alguns termos abordados por


Arantes (2020), como fadiga de compaixão ou estresse pós-
traumático, referidos como o sentimento carregado quando se leva
muita empatia para lidar com o processo de morrer, que ocorre
com profissionais de saúde ou voluntários. Isso me recorda um
pouco da minha vida, após a experiência que relatei na minha
narrativa. À época, foi muito difícil lidar com a morte, a cada ida
ao hospital infantil referido. Após a experiência que relatei na
minha narrativa, tornei-me voluntária para o cargo de “amigo do
leito”, no qual me caberia brincar e entreter as crianças, foi uma
experiência fascinante, apesar de curta. Não sei se estava
preparada como estou hoje para lidar com aquelas crianças, mas
tenho imensa gratidão às oportunidades que me levaram ao
voluntariado, como forma de expressar minha empatia. Hoje, iria
me guiar mais pela compaixão, pois, como afirma Arantes (2020),
a empatia tem seu perigo, a compaixão não. A compaixão vai além
da capacidade de se colocar no lugar do outro; ela permite nos
colocarmos no lugar do outro sem que sejamos contaminados por
ele. “Na compaixão para irmos ao encontro do outro, temos que
saber quem somos e do que somos capazes”. Precisamos ter a
nossa autonomia para não entrarmos no lugar do paciente e sentir
a dor dele.

256
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

As narrativas que abordaremos aqui mostrarão de forma


muito subjetiva o processo de morte e morrer, sob a visão de
estudantes de medicina. É lindo ver a escrita e o sentimento
envolvido nesses discentes que tenho o prazer de dividir a
caminhada e que serão futuros colegas de profissão. Cada
narrativa com suas peculiaridades me emocionou e emocionará
todos que as lerem, de uma forma única. Admira-me a capacidade
que alguns tiveram de lidar com a morte e o morrer. Essas
vivências foram mediadoras de toda a escrita deste capítulo. Cada
uma, de sua maneira, inspirou-me a estudar e a conhecer mais
sobre o processo da morte e do morrer.

Devemos a cada dia lembrar que somos finitos.


Inerentemente, a finitude nos leva a sermos pessoas melhores, a
valorizarmos cada dia vivido e cada pessoa amada. Devemos
lembrar que somos finitos sem temer a morte porque a morte é só
mais um processo da vida, que pode não parecer, mas é o que nos
faz agradecer todo dia por estarmos vivos e é o que mantém a
sagacidade e a vitalidade para viver e fazer acontecer tudo o que
sonhamos.

Por último, mas não menos importante, expresso minha


gratidão pelos professores autores deste livro. Tenho a certeza de
que nunca irei esquecê-los. Não pela oportunidade de poder
colaborar com este capítulo, mas, ao escrever isso, derramo
lágrimas de gratidão por todos os ensinamentos dados até aqui, do
que realmente é importante e deve ser valorizado em nossa
existência. Do que levarei não só para medicina como para vida. A
oportunidade de conviver com esses dois é única. Lembra o afeto
de casa, a compaixão e a empatia do mais belo, que me recordarei
quando não for mais uma estudante de medicina. Obrigada, Allan
e Eliana, por mostrarem suas almas sem medo, em um mundo

257
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

atual que nos molda a sermos tímidos e a interiorizarmos nosso


sentimentalismo e nossa humanidade. Obrigada.

Espero que este capítulo tenha sido de alguma forma


inspirador para quem o está lendo e viabilize a capacitação de
novas práticas dentro da medicina, para discentes e docentes.
Espero que a morte possa ser vista de outra maneira. Encarada
com humanidade.

Referências

ANDRADE, Silvia Caixeta de et al. Avaliação do desenvolvimento


de atitudes humanísticas na graduação médica. Revista Brasileira
de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 35, n. 4, p. 517-525,
out./dez. 2011.

ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a


pena viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.

CHARON, Rita. Narrative and medicine. New England Journal of


Medicine, v. 350, n. 9. p. 862-864, 2004.

DUARTE, Anaísa Caparroz; ALMEIDA, Débora Vieira de; POPIM,


Regina Célia. Death within the medical undergraduate routine:
students’ views. Interface – Comunicação, Saúde, Educação,
Botucatu, v. 19, n. 55, p.1.207-1.219, 2015.

EIZIRIK, Cláudio Laks; POLANCZYK, Guilherme Vanoni; EIZIRIK,


Mariana. O médico, o estudante de medicina e a morte. Revista
AMRIGS, v. 44, n. 1/2, p. 50-55, 2000.

FÄRBER, Sonia Sirtoli. Tanatologia clínica e cuidados paliativos:


facilitadores do luto oncológico pediátrico. Cadernos Saúde
Coletiva, v. 21, n. 3, p. 267-271, 2013.

KLAFKE, T. E. O médico lidando com a morte: aspectos da relação


médico-paciente terminal em cancerologia. In: CASSORLA,
Roosevelt M. S. (Coord). Da morte: estudos brasileiros. 2. ed.
Campinas: Papirus, 1998. p. 25-49.

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. Rio de


Janeiro: Editora Martins Fontes, 1985.

258
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

MARTA, Gustavo Nader et al. O estudante de medicina e o médico


recém-formado frente à morte e ao morrer. Revista Brasileira de
Educação Médica, v. 33, n. 3, p. 405-416, 2009.

MEDEIROS, Natália Souza et al. Avaliação do desenvolvimento de


competências afetivas e empáticas do futuro médico. Revista
Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 37, n. 4, p. 515-
525, out./dez. 2013.

MEIRELES, Maria Alexandra de Carvalho et al. Percepção da morte


para médicos e alunos de medicina. Revista Bioética, v. 27, n. 3,
p. 500-509, 2019.

MORIN, Edgar. O homem e a morte. São Paulo. Imago Editora,


1997.

SAPIR, Michel. La formation psychologique du médecin.


Bibliothèque Scientifique Collection Science De L’homme Dirigée
Par Le Dr G. Mendel, Payot, Paris, 1972.

VIANNA, A.; PICCELLI, H. O estudante, o médico e o professor de


medicina perante a morte e o paciente terminal. Revista da
Associação Médica Brasileira, v. 44, n. 1, 1998.

NARRATIVAS

A criança do leito 7

Ana Júlia Souza Malheiros

Quando cheguei ao Hospital da Criança de Brasília José


Alencar (HCB), naquela quarta-feira, achei que seria mais um dia
normal de acompanhamento no ambulatório de pediatria.
Entretanto, começou diferente. Fomos à sala de discussão de casos
orientados pela dra. Elisa, professora e diretora do departamento.
Ao entrarmos, participamos normalmente do debate entre os
especialistas, residentes e internos. Conforme iam descrevendo o
quadro dos pacientes, a aflição surgia em forma de ansiedade, que
se demonstrara na minha inquietude. Apenas no terceiro período

259
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

me deparava com uma situação que achei ser fácil de enfrentar,


mas ainda não sabia o que me esperava.

Discutir quadros clínicos de crianças com câncer e em estado


terminal não é e nunca será algo fácil para mim. Logo eu, que me
encanto tanto pela área da oncologia, não conheço nem 10% do
que é vivenciá-la. Ali havia crianças com linfomas, sarcomas,
leucemias, doenças autoimunes e inúmeras outras patologias. Mas
o que instalava a angústia era o prognóstico. Todas aquelas
crianças já passaram por sucessivos tratamentos, transplantes,
novos medicamentos, transfusões, inúmeras cirurgias, muitas com
poucas chances de sobreviver.

Naquele momento, coloquei-me em reflexão: por que isso


acontecera; por que seres tão inocentes, que mal conheceram a
vida, passavam por situações como aquelas. Não aguentava
imaginar como sofriam. Após esse momento, respirei fundo e
levantei a cabeça. Concordei que era difícil, mas que seria algo
corriqueiro na profissão que eu escolhi e que eu teria de aprender
a enfrentar. Em seguida, fomos à UTI visitar um dos pacientes cujo
quadro foi discutido.

No caminho até a UTI, por volta das 10h da manhã,


precisávamos atravessar o setor do caranguejo, destinado
especialmente aos pacientes oncológicos. Já imaginei que não seria
fácil, pois ali a maioria dos quartos e leitos eram construídos com
grandes janelas de vidro, para que as crianças fossem facilmente
monitoradas. E assim foi. O que vimos foram crianças já sem seus
belos cabelos pelos efeitos da quimioterapia, o que possibilitou,
não apenas ver, mas enxergar a beleza de modo diferente, a
beleza que se reluzia em um riso de esperança e doçura que se
abria ao ver alguém passar. A delicadeza dos olhos cintilantes de
pequenos seres que aprenderam tão cedo o mais belo e o

260
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

importante da vida. E, mesmo com aquela barreira física, foi


possível sentir a gratidão por cada minuto de vida que era vivido
ali. Sem dúvidas, olhos marejados. Após aquilo, estava pronta
para mais uma luta, e com razão.

Ao chegarmos à UTI, já era possível observar familiares com


aquela sensação de impotência, injustiça, mas também um fundo
de esperança como quem pergunta “por que isso aconteceu
comigo, meu Deus?”, mas ao mesmo tempo conclui: “Deus faz
tudo por uma razão, seja o que ele quiser”.

Seguimos, enfim, até o leito 7, onde a pequena Maria Luiza,


de apenas três meses de idade, pré-termo, que nascera com
apenas sete meses, encontrava-se. Ali, estava também, uma mãe
aflita, que buscava a todo instante um culpado pela situação que
se instalou. O clima tenso predominava enquanto os incessantes
ruídos eram emitidos pelos aparelhos de monitoramento, o que
não melhorava a situação naquelas quatro paredes. O desespero
aumentou quando a saturação da paciente repentinamente
diminuiu, os aparelhos soavam alto, e a angustia era proporcional
àquele barulho. Adrenalina. Níveis subindo. Instabilidade. Mais
adrenalina. Angústia. Equipe discute como proceder. Aguardam,
quadro se normatiza. Saturação começa a aumentar. A sensação
de alívio se instala. A paciente, tão jovem, já havia passado por
um transplante de fígado. Recebera um pedaço do fígado de sua
mãe.

Enquanto tudo acontecia, fiquei próxima à porta, respeitando


o momento e dividindo meu olhar com o leito ao lado, onde uma
pequena criatura na faixa dos seus cinco anos começara a me
encarar com aqueles olhinhos que, por si só́, já sorriam. Já em sua
ausência de cabelos, fez-me imaginar pelo que havia passado.
Contudo, isso não parecia estar afetando-o. Não naquele

261
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

momento. Seu sorriso brilhava para mim enquanto brincava de


esconde-esconde. Logo entrei no seu ritmo. “Cadê?”, “achou”. Com
as minhas mãos, eu me escondia e repentinamente aparecia. Esse
gesto, a priori sem muita relevância, para aquela criança foi uma
alegria só. O que era um riso frouxo, em instantes, tornou-se uma
gargalhada. Ao mesmo tempo em que eu tanto sorria ali, de
felicidade e gratidão, mais uma vez, encontrava-me em reflexão,
inconformada com o que aquela criança estava passando, mas
rezando para que melhorasse.

Após brincar com a criança do leito ao lado e retornar para o


leito 7, não demorou muito para eu perceber que a aflição daquela
mãe havia a transformado em uma mãe poliqueixosa, que
guardava um rancor de toda a equipe, como se fossem os culpados
pelo quadro de sua filha. Ali, estava instalada, há muito tempo, a
vontade de agir contra o hospital, pois ela sabia que o prognóstico
não era bom e era perceptível que o pré-luto em que se
encontrava caminhava meio à não aceitação.

O HCB é referência em todos os setores da pediatria do


Distrito Federal. A dra. Elisa, enquanto explicava, mais uma vez, o
quadro do bebê para a mãe, tentava passar a dificuldade de lidar
com aquela situação, que realmente não tinha um bom
prognóstico. Ela estava fazendo tudo que era preciso para
proporcionar um atendimento de ponta. Enquanto andávamos pelo
hospital, ela solicitava um aparelho de outro hospital, também
referência em Brasília, que poderia salvar a vida da criança em
meio à sua comorbidade. Quase que simultaneamente, ligava para
outro colega de profissão, a fim de discutir a melhor conduta, e
perceptível era o amor às crianças e à sua profissão. Enquanto
olhava para minha colega de classe, encontrava em seu olhar o
mesmo sentimento que havia em mim: admiração. Mais um

262
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

exemplo de como queria seguir essa profissão que escolhi para a


vida.

Ao fim, estava na hora de ir para casa. Aquilo tudo ainda


estava sendo processado. Enquanto dirigia, cada acontecimento
reverberava no meu córtex. A gratidão pela vida e a
inconformidade por sorte estavam sempre ali. A vontade de ajudar
também ocupara seu lugar. Contudo, havia também uma pontada
de curiosidade. Como estava o bebê do leito 7? Como ela iria
passar a noite?

No decorrer da semana, distraí-me e tentei esquecer, com


toda a fluidez do cotidiano e da rotina, aquilo logo se esvaiu.
Enfim, era quarta-feira novamente, mas, dessa vez, a aula seria
na faculdade. Ao ver a dra. Elisa, a curiosidade me instigou, não
conseguia me conter. Enquanto prestava atenção na aula,
despertava-me mais ainda a vontade de perguntar do prognóstico
da Maria Luiza, contudo não sabia os limites éticos e se aquilo
seria certo. Pois, para ser médico, você tem de saber lidar com
essas situações? Não é? É o que me falam.

Não precisei perguntar para que a dra. Elisa começasse a


contar um caso que ocorrera na semana passada. Minhas mãos
gelavam enquanto ela detalhava o transplante de fígado e
afirmava os três meses de vida da paciente, ela descreveu todo o
quadro, sabia de quem se tratava. O que será? O que havia
acontecido? Não conseguia esperá-la terminar a frase, mas
precisava me conter, ela não demoraria mais de 20 segundos para
dar um desfecho à história. E assim foi, com as seguintes
palavras: “perdemos a paciente, que já se encontrava muito
debilitada, seu prognóstico era muito ruim”. O que para muitos ali
não passava de mais uma morte na medicina, para mim doeu mais
que o esperado. Senti um nó na garganta. Eu sabia do

263
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

prognóstico, mas a minha inexperiência me fez alimentar


esperanças desde aquela quarta-feira. Doeu, sim. Doeu por pensar
naquela família, doeu por pensar em tudo que a criança sofrera.
Mas foi reconfortante saber que ali não se encontrava mais uma
criança ligada a aparelhos, que não podia desfrutar o melhor da
vida.

Concluí como esse momento foi um aprendizado para mim.


Sabia que teria de lidar com isso dali em diante. Respirei fundo e
segui. Mas não esqueceria o que me abriu os olhos para coisas que
não conseguia enxergar.

Podendo assim fazer uma diferença ainda maior


na vida de alguém

Anna Luiza Zapalowski Galvão

Em uma manhã ensolarada de um dia comum, fui


acompanhar um plantão no HCB. O local é, com certeza, um dos
hospitais mais encantadores que conheci. Um lugar lindo, lúdico e
cuidado com muito carinho, tudo feito com o objetivo de
proporcionar experiência mais leve aos pacientes e aos seus
acompanhantes. Percebia lá um sentimento de felicidade que era
transmitido desde os funcionários até os que estavam para um
atendimento médico.

Encantada com todos os lados que olhava, fui levada para


um local mais sério, momento em que todos meus sentimentos
mudaram em questão de segundos. Conheci a UTI do hospital,
que, mesmo colorida, confundia-se com os barulhos de seus
monitores e o sentimento de incerteza que era transmitido pelo
olhar dos acompanhantes dos pequenos pacientes. Tudo lá era
novo para mim, nunca havia entrado em um leito de UTI

264
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

anteriormente. O sentimento de curiosidade por conhecer um novo


ambiente hospitalar era concomitante ao sentimento que era
passado pelos pacientes e por seus acompanhantes, sem mesmo
dizerem uma palavra, deixando-me apreensiva inicialmente.

No local, conheci uma linda menina chamada Isabela, de,


aproximadamente, quatro anos, e sua mãe, Maria. A mulher foi
logo explicando o porquê de estarem lá, sua filha tinha nascido
com agenesia de vias biliares, o que foi diagnosticado alguns
meses após o seu nascimento. Assim, desde bebê a menina
passou por inúmeros procedimentos médicos, no hospital, e por
constante acompanhamento médico, a fim de resolver o problema,
sem resultados satisfatórios, mas que tinham a permitido viver até
o momento. Isabela estava com a saúde bastante complicada, e
outros órgãos, como os pulmões, já haviam sido acometidos.

Depois de um momento, a médica que eu estava


acompanhando foi falar a sós com Maria, e percebi que a mãe, já
abalada, estava chorando, e a médica, de alguma forma, tentava
acalmá-la. Maria, inconformada, passou a falar alto, e pude ouvir o
que ela falava. Ela culpava a equipe de saúde por não fazer o
suficiente por sua filha e ameaçava processar o hospital.

Despedimo-nos da paciente, e a médica responsável foi me


explicar o contexto de vida daquela família. A mãe tentava
engravidar há anos e fez muitos tratamentos, gastando grande
parte do seu dinheiro com esses procedimentos, assim, quando a
criança nasceu e foi diagnosticada com sua patologia, foi um
grande impacto psicológico ao grupo familiar. A mãe,
principalmente, tinha muita dificuldade de aceitar a situação.
Dessa vez, quando Isabela foi internada, os seus responsáveis já
haviam sido informados sobre o possível prognóstico da
pequenina, que tinha grandes chances de vir a óbito.

265
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

No momento em que fui informada da complexidade da


situação, em seu âmbito não só médico, mas também psicológico,
passei a refletir sobre as diversas faces de um adoecimento, já que
não envolve apenas a parte física, mas também tem repercussão
sentimental ao paciente e às pessoas próximas. Sempre vi
reportagens relatando sobre médicos e hospitais sendo
processados e confesso que isso sempre me assustou um pouco.
Certamente, o maior acesso à informação fez que as pessoas
buscassem, gradativamente, um tratamento de qualidade e que
tivesse resultado positivo. Logo, quando as expectativas do
paciente não são supridas, ele pode querer buscar “justiça”, de
alguma forma, no entanto, até que ponto isso pode ir?

No caso que eu presenciei, vi uma equipe multidisciplinar


muito determinada a dar o melhor tratamento possível e que,
desde a fase de diagnóstico, buscou amparar a família, dando até
mesmo o número de telefone, no caso de acontecer alguma
complicação inesperada. Por outro lado, vi uma mãe desesperada
ao ver sua tão esperada filha naquela situação e se sentir
impotente para ajudá-la.

Acredito que isso aconteça com certa frequência no ambiente


hospitalar, portanto, aprender como agir é muito importante. A
médica agiu com calma, respeitando, entendendo o outro lado e
explicando com muita paciência todo o tratamento que havia sido
feito desde o início até o momento. Na minha opinião, ver médicos
preocupados com a humanidade de seus pacientes e fugindo de
possível sentimento de superioridade, por ter domínio do assunto,
é muito bonito e, com certeza, inspira-me a, futuramente, tornar-
me cada vez mais uma profissional melhor.

Eu entendo que todas as oportunidades que tenho de


acompanhar a prática médica de perto são de grande

266
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

enriquecimento pessoal e profissional, pois vejo sempre situações


diferentes e suas repercussões psicológicas aos envolvidos – tanto
a equipe de saúde quanto os familiares do paciente – e, assim,
aprendo como lidar de forma melhor nesses momentos. Portanto,
a humanização dos cuidados médicos é muito importante, pois não
devemos ficar presos somente às questões fisiológicas do
adoecimento, mas buscar compreendê-lo e tratá-lo em sua
totalidade, podendo, assim, fazer diferença ainda maior na vida de
alguém.

REFLEXÃO DA AUTORA DA NARRATIVA

O cenário que vivenciei, certamente, acontece com certa


frequência no ambiente hospitalar, portanto, aprender a agir
nessas situações é muito importante. A médica que eu
acompanhava agiu com calma, respeitando, entendendo o outro
lado e explicando com muita paciência todo o tratamento que
havia sido feito desde o início até o momento. Na minha opinião,
ver médicos preocupados com a humanidade de seus pacientes e
fugindo de possível sentimento de superioridade, por ter domínio
do assunto, é muito bonito e, com certeza, inspira-me a,
futuramente, tornar-me cada vez mais uma profissional melhor.

Assim, entender a prática médica como uma arte em todos


os seus nuances, da mesma forma como o proposto por
Hipócrates, em seu juramento médico, é fundamental para que a
saúde e o adoecimento sejam compreendidos em sua totalidade.
Faz-se necessário ver a medicina não apenas como uma ciência
exata, mas como manifestação da arte de cuidar de alguém, um
indivíduo, com seus medos e suas concepções, os quais devem ser
abordados com sensibilidade. Dessa forma, considero que poder
ter contato com profissionais sensíveis e praticantes de tal

267
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

perspectiva é de grande valia para a formação profissional, a qual


deve ser ensinada aos futuros médicos.

Referências

FERREIRA FILHO, Olavo Franco. Arte e medicina. Revista Brasileira


de Educação Médica, Brasília, v. 43, n. 4, p. 3-4, 2019.

GOMES, Talita Rodrigues; DELDUQUE, Maria Célia. O erro médico


sob o olhar do Judiciário: uma investigação no Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e Territórios. Cadernos Ibero-Americanos de
Direito Sanitário, Brasília, v. 6, n. 1, p. 72-85, jan./mar. 2017.

Viva intensamente, mas faça mais do que apenas


existir

Rafael Maia de Almeida

Era um domingo, 2 de fevereiro de 2020, deveria pagar uma


permuta de plantão que tinha feito para poder viajar com minha
família. Fiz como de costume: acordei cedo, arrumei minhas fardas
e refeições do dia, peguei os equipamentos de trabalho e me
desloquei para o 34º Grupamento Bombeiro Militar, onde cumpriria
mais um dia de missão. Mal sabia eu que aquele dia não seria tão
tranquilo quanto eu idealizava.

Inicialmente, tudo andava conforme o habitual, hasteamento


da Bandeira Nacional, às oito horas, passagem de serviço,
conferência de viaturas e materiais, café da manhã e o famoso
“joga fora” com os colegas de quartel.

Porém, perto de quatorze horas, o rádio da Secom recebia a


informação de que, na Asa Norte, havia um paciente anginoso que
precisava de apoio dos bombeiros. Pensei, naquele momento, que
apenas a guarnição da Unidade de Resgate (UR) – ambulância –
iria atuar, pois esse paciente necessitava apenas de avaliação e de

268
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

ser conduzido ao hospital, se necessário. Entretanto, o


comandante da viatura em que eu estava escalado, Sgt. Euclídes,
disse que nós iríamos em apoio. Essas foram suas palavras: –
“Bombeiro, se prepara, nós vamos em apoio aos socorristas. São
vinte anos de serviço, nem sempre o que chega no rádio é o que
acontece ‘na vera’, vai por mim”.

Nesse sentido, deslocamo-nos prontamente para o local da


ocorrência e, por ironia do destino, ao subir no apartamento,
deparei-me com um senhor de idade, de, aproximadamente, 75
anos, que se encontrava ao solo recebendo a manobra de
Reanimação Cardiorrespiratória (RCP) dos bombeiros da
ambulância que chegaram ali pouco antes de nós. Sgt. Euclídes
nunca estivera tão correto...

Tratava-se da minha primeira RCP, em um caso real. Até


então, toda a minha experiência em dois anos como bombeiro
militar era baseada em exaustivas instruções com simuladores em
ambientes controlados. A casa estava cheia, várias pessoas, cerca
de oito? Nove? Não lembro bem, mas tratava-se do típico almoço
em família de domingo. O senhor no chão era, visivelmente, o
patriarca da família, e estavam presentes filhos, filhas, genros,
noras e netos dele, além de sua digníssima esposa, que se
encontrava totalmente desestabilizada e contida por seus
familiares, enquanto os bombeiros trabalhavam.

O cenário me abalou, lembrei-me, rapidamente, dos almoços


em família, na casa dos meus avós, com meus pais, tios, primos e
irmãos. Pensei, em uma fração de segundos, como aquela situação
era desesperadora para aquelas pessoas e como era triste aquilo
em um momento que deveria ser preenchido com amor e
felicidade.

269
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Os minutos passavam, nós íamos revezando a RCP: 30


compressões e duas insuflações; troca de socorrista ao final de
dois ciclos e meio; checar sinais vitais depois de cinco ciclos, foi
assim que aprendi, porém, na prática, a coisa não estava indo tão
bem quanto nos treinamentos.

O primeiro ponto que me assustara foi a sensação de fratura


das costelas, vários crecs em cada compressão, depois, a variação
de ritmo e profundidade da manobra que deveria ser o mais linear
possível entre os bombeiros, e, por último, quando me acalmei,
percebi que não estávamos insuflando a vítima com a Máscara de
Válvula de Bolsa (BVM), um reanimador manual, e, sim, ofertando
oxigênio passivo com a máscara. Imediatamente, perguntei ao
comandante da UR se o procedimento estava correto, ele
concordou que não, e passamos a usar o BVM. Nesse momento,
percebi que não só eu estava impressionado, mas todos os
bombeiros estavam, o que permitiu que esse erro e outros
acontecessem, então, ficou evidente para mim que o controle
emocional é alicerce de boa atuação de socorros em urgência.

Depois de estabilizar os ânimos e realizar as devidas


correções – fomos corrigindo erro por erro rapidamente –, a
guarnição engajou fortemente no procedimento, que passou a ser
feito fielmente, conforme os protocolos de RCP. Porém, aquele
senhor não voltava, dez, vinte, trinta minutos, nada... Eu percebia
o semblante de desespero na família e de impotência nos
bombeiros, sentia meu coração doer, minha esperança diminuía, e
o olhar de derrota que o comandante de socorro demonstrava só
alimentava o que eu captava naquele momento. O “não vai dar”
dito com um simples e discreto balançar negativo de cabeça
quando passamos dos trinta minutos de manobra.

270
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

O apoio avançado veio de helicóptero, a médica do SAMU


dra. Bruna colocou o desfibrilador, ritmo chocável, afasta! Choque,
nada... intuba, faz acesso central, adrenalina, nada ainda...
quarenta minutos e sem sucesso. Depois de exatos quarenta e
cinco minutos de manobra, foi declarado óbito no local. Os
familiares, leigos, não percebiam a evolução da situação. Estavam
todos esperançosos e confiando em nós para salvar a vida daquele
senhor. Fizemos tudo que estava ao nosso alcance, mesmo com
erros e escassez de recursos, eram evidentes o empenho e a
vontade dos bombeiros em ajudar.

A notícia foi dada à família, foi impactante, a esposa do


falecido senhor entrou em choque, gritava e culpava os bombeiros
pela morte do marido. Recusou-se a ser avaliada por nós. Saí
daquele quarto derrotado, parecia que aquela morte era de um dos
meus familiares. Olhei nos olhos de cada uma daquelas pessoas
como se fossem meus irmãos, abracei alguns deles e proferi
palavras de consolo, partilhei de seu sofrimento, indignei-me por
não ter um Desfibrilador Portátil (DEA) a pronto emprego nas
viaturas de solo. Será que o helicóptero demorou demais? Será
que nossos erros na manobra comprometeram a vida desse
senhor? E se tivéssemos o DEA desde o início? Culpa, eu sentia
culpa. Precisei de tempo para entender que foi feito o possível
naquela ocorrência.

Voltamos para o quartel com a moral baixa. Não houve


conversa, não houve debriefing, não houve motivação. Só pairava
a tristeza em todos os militares. Afinal, nosso lema é: vidas alheias
e riquezas a salvar. Contudo, não conseguimos salvar aquela vida,
a primeira vida que vi se perder durante atuação. O resto do
plantão foi vagaroso, poucas ocorrências e um silêncio que
dominava o ambiente que costumava ser agitado e animado.

271
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Dias após o ocorrido, já havia aceitado que nem sempre


conseguimos sair vitoriosos da missão e que devemos seguir
firmes, além de aproveitar o aprendizado de cada experiência.
Entretanto, por mais que não estivesse remoendo a situação, não
esperava que nela pudesse encontrar felicidade, eis que me deparo
com o BG 35, de 19 de fevereiro de 2020, que trazia o seguinte
agradecimento/elogio: – “Prezados, bom dia. Espero que esteja
utilizando o meio correto para este contato, caso não esteja, favor
informar ou direcionar este e-mail para o canal correto. Meu nome
é Paulo, e venho através deste agradecer a rapidez, a agilidade e a
humanidade que foi dado ao meu pai. No domingo – dia 2 de
fevereiro de 2020, aproximadamente, por volta das 14h30 –, meu
pai, João Pedro, sofreu um ataque cardíaco fulminante, minha
cunhada, Gabriela, acionou os Bombeiros pelo 193 e, rapidamente,
duas viaturas foram deslocadas para a casa do meu pai, os
primeiros procedimentos foram tomados, em seguida, foi acionado
o helicóptero e com sua chegada uma médica também auxiliava no
resgate. Quando cheguei na casa dos meus pais, vi inúmeros
bombeiros realizando procedimentos de ressuscitação – ventilação,
massagem cardíaca, medicamentos –, eles foram incansáveis, mas
Deus quis que meu pai não resistisse. Pelo que ouvi dos
bombeiros, foram mais de 40 minutos de tentativas. Quando
informaram da morte do meu pai, neste momento, peço desculpas
pela minha mãe, que, pela situação, culpou os bombeiros por não
terem conseguido trazer meu pai de volta, pois ali terminava a
vida de seu companheiro há 44 anos. Informo também que a
notícia foi dada de forma muito humana, ressalto isso, pois sei que
os bombeiros trabalham com essa situação todos os dias, mas a
notícia foi dada de uma forma que vimos que os bombeiros ficaram
chateados por não conseguirem ressuscitar meu pai. E depois
ainda tentaram ajudar minha mãe, medindo a pressão e dando um

272
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

medicamento para acalmá-la, mas ela não aceitou. Nos


informaram todos os procedimentos que deveríamos tomar,
explicando todos os passos. Informo que o legista comunicou que
provavelmente meu pai faleceu dormindo e que com o quadro de
saúde dele, provavelmente nenhum procedimento poderia tê-lo
salvo. Por mais, só quero deixar aqui os meus agradecimentos a
esta corporação tão respeitada que eu já admirava e agora muito
mais. Um agradecimento especial principalmente as equipes que
fizeram este atendimento. Muito obrigado, Paulo”.

Diante desse documento, no qual encontrava-se o


agradecimento acima, pude tirar um sentimento de extrema
gratidão e felicidade da ocorrência referida nessa narrativa.
Reforçando, assim, ainda mais meu amor por esta profissão. Ser
bombeiro é ser um herói anônimo, é ajudar sem julgamentos, é
dedicar-se inteiramente aos serviços profissionais, é viver em prol
da sociedade, mesmo com sacrifício da própria vida, é não esperar
nada em troca por isso, é meu ofício. Viva intensamente, mas
faça mais do que apenas existir.

REFLEXÃO DO AUTOR DA NARRATIVA

O tema abordado na narrativa é realidade para a maioria dos


profissionais da área da saúde. Como afirma Ariès (2003): “deixar
de pensar na morte não a retarda ou evita, mas pensar na morte
pode nos ajudar a aceitá-la e a perceber que ela é uma experiência
tão importante e valiosa quanto qualquer outra”.

Defrontar-se com o óbito ou comunicar um diagnóstico ou


prognóstico desfavorável aos pacientes e/ou familiares são
dificuldades encontradas por profissionais da área da saúde, o que
torna a morte um objeto fóbico (ARANTES, 2020). Nesse contexto,
a situação de morte, em geral, é interpretada como um teste à

273
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

competência do profissional, fato gerador de sofrimento. Segundo


Cassorla (2007), “é preciso fazer compreender que fatores, como
doenças, acidentes, catástrofes, guerras, entre outros, apenas
aceleram a morte que vem, em última instância, de dentro do ser
humano”.

Além disso, a narrativa busca reflexão sobre os impactos na


saúde mental do profissional, no que diz respeito às limitações
humanas e de recursos, no ambiente de trabalho. Esse cenário
pode gerar sentimento de culpa ou indignação. Nesse raciocínio, é
comum que profissionais da saúde, ao se depararem com o óbito
de um paciente, realizem a revisão de conduta para aprender com
possíveis erros, descobrir possíveis melhorias de protocolo ou até
perceber os possíveis impactos com a falta de recursos. Esse
momento, muitas vezes, traz consigo o sentimento de culpa
(PEIXOTO, 2018).

Outra questão importante a ser levada em consideração,


quanto ao sentimento de fracasso na atual prática profissional, diz
respeito à alteração das fronteiras entre a morte e o morrer,
propiciadas pelas técnicas de manutenção da vida. A partir delas, a
ação, por exemplo, de decidir interromper os cuidados nos
esforços de reanimação. De acordo com Menezes (2004), “é,
portanto, no mesmo momento em que se afirma um amplo poder,
que surge a sua fragilidade”.

Referências

ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a


pena viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.

ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro:


Ediouro, 2003.

274
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

CASSORLA, Roosevelt Moises Smeke. A negação da morte. In:


INCONTRI, D; SANTOS, Franklin Santana (Org.). A arte de morrer:
visões plurais. Bragança Paulista: Comenicus, 2007. p. 271-279.

MENEZES, Rachel Aisengart. Em busca da boa morte: antropologia


dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

PEIXOTO, Tereza Cristina et al. Responsabilidade e sentimento de


culpa: uma vivência paradoxal dos profissionais de terapia
intensiva pediátrica. Interface, Botucatu, v. 22, n. 65, 2018.

O tsuru dourado

Ana Luiza Antony Gomes de Matos da Costa e Silva

A sala de espera estava cheia de esperança, de amor e de


família. Por um longo período de tempo, a rotina mudou, cada um
podia ter um tempinho no quarto da UTI da Manoela, sem abusar,
claro, eram muitos familiares, um marido cheio de amor, três
filhas que não perderiam mais segundo algum da vida da mãe,
fora os cinco irmãos, com seus filhos, e uma mãe que não
conseguia acreditar no que estava acontecendo com a sua filha.

Por isso, a importância da sala de espera do Hospital Brasília,


a família ficava lá reunida, cada um com uma luz diferente,
colocando fé onde tinha espaço. Todos juntos, contra o mesmo
inimigo, o câncer. Famoso colecionador de lágrimas, responsável
por levar pessoas de todas as idades, por motivos conhecidos e
desconhecidos.

Nessa sala, aprenderam sobre a Lenda dos Tsurus; segundo


ela, o tsuru seria uma ave sagrada, que vivia mil anos, e, caso
uma pessoa dobrasse mil aves de papel, teria um desejo
concedido. Tal lenda surgiu no Japão, quando muitas pessoas
estavam sofrendo devido à bomba lançada em Hiroshima, no ano
de 1945. Foi construída uma estátua no Parque da Paz, em que

275
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

uma criança que morreu em consequência da bomba, está


segurando um tsuru dourado (MOREIRA; MATOSINHO, 2014). O
origami representa o desejo de saúde, felicidade e, acima de tudo,
de fé.

Chegou o dia que toda aquela gente estava esperando, o dia


da cirurgia. Cada um, com a sua crença, mandou as melhores
energias para Manoela.

Manoela, a personagem principal dessa narrativa, 55 anos,


artista, católica, branca, tabagista e etilista. Fora essas
informações formais e comuns a qualquer paciente de UTI,
Manoela pintava maravilhosos quadros que refletiam sua visão de
Brasília – a cidade planejada –, ficava com os netinhos durante a
tarde, quando os pais deles tinham de trabalhar, sempre via nas
pessoas o melhor – mesmo quando elas mesmas não enxergavam
isso –, transmitia positividade e força a todos aqueles que a
visitavam, ela sempre focou em perceber a sua situação e como
poderia fazer para torná-la, mesmo que minimamente, melhor,
assim, passou a tomar decisões que a doença a obrigou. Começou
a conversar semanalmente com um padre, para conhecer mais
sobre a religião que tinha guiado sua vida até ali. Enfim, ela saiu
da cirurgia.

Respiração presente, oxigenação 99%, 98 batimentos


cardíacos por minuto, e tudo indicava que estava CURADA. Essa
palavra pega qualquer um desprevenido, taquicardia, sudorese
intensa, calafrios, pupila dilatada, sintomas que podem indicar
uma crise de ansiedade, mas, na verdade, trata-se de uma
explosão interna de alegria. A sala de espera agora estava vazia,
não se via mais os passarinhos de origami. Em compensação, os
almoços de família de Manoela estavam cheios de música e de
alegria.

276
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Passados dois meses, é rotina que os pacientes façam


exames para confirmar se, realmente, o câncer foi embora. Poucos
dias depois, a sala de espera estava cheia de novo. Dessa vez, o
clima era diferente, os passarinhos estavam lá, mas o olhar das
pessoas era diferente, a cor do dia parecia ter mudado e ficado
mais acinzentado, cada dia as lágrimas eram de uma pessoa
diferente. O coletor de lágrimas voltou e sofreu metástase. Era
terminal.

Que conduta tomar nessa situação? Quando criar esperança


para de ser saudável e passa a ser negativo? O melhor é desistir?
Deixar de fazer os origamis? Até quando se deve lutar? Quais
palavras de conforto oferecemos a um paciente terminal e a sua
família? Quão realista os médicos precisam ser? Seria essa uma
tarefa tranquila? Quanto disso não afeta também os profissionais
de saúde diretamente ligados ao caso? Quais as sequelas ficam de
um paciente, um familiar em estado terminal? A faculdade de
medicina prepara para esses momentos? Será que existem
maneiras de preparar um aluno para lidar com situações tão
emotivas quanto essa? Quão fundo pode se estabelecer a relação
médico-paciente? Até que ponto o mundo cobra que os
médicos/enfermeiros/técnicos lutem contra a natureza humana de
estabelecer laços afetivos de amizade com os pacientes?

Todas essas perguntas são extremamente subjetivas e


pessoais, a vida vai nos ensinando a lidar com elas, à medida que
vamos tendo experiência. De forma que, atualmente, os
profissionais de saúde – tanto alunos, como os já formados – estão
muito suscetíveis a transtornos psíquicos, principalmente a
depressão, que tem como possível consequência, o suicídio (SILVA
et al, 2015). É importante a reflexão das maneiras que podemos

277
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

achar para aliviar pressão e aprender a lidar com as situações que


os agentes de saúde são expostos diariamente.

O grande objetivo dessa narrativa é o final da história,


imagina-se que as pessoas em estado terminal estejam no auge da
vulnerabilidade. No entanto, nada menos do que esperado,
Manoela se mostrou preparada para esse momento, mais que
qualquer familiar. Decidiu, então, viver o resto de tempo que lhe
restava, demonstrando amor pela pessoa que estava com ela dia e
noite, noite e dia, há anos. Quis se casar, tinha um companheiro
há muitos anos, mas nunca tinham oficializado o casamento.

Manoela foi a paciente mais inteligente que eu já conheci.


Com o casamento, realizaria seu sonho pessoal, faria
extremamente feliz o seu marido e, ao mesmo tempo, daria um
propósito de realização para a toda a família. A partir do seu
desejo, a família inteira se mobilizou e, mesmo sem dinheiro,
devido aos gastos hospitalares, fez o casamento mais iluminado
que eu já fui em toda a minha experiência. As flores eram
retiradas do jardim, os arranjos foram feitos pelas sobrinhas, os
tsurus estavam presentes na decoração da festa, amigos próximos
se mobilizaram pela causa, por isso, a mobília do casamento era
toda emprestada, e, por incrível que pareça, tudo combinava. E a
personagem principal, mesmo com todo o desgaste do tratamento
de câncer – quimioterapia, radioterapia –, com todo o cansaço da
rotina de hospital – casa, estava linda.

Talvez não exista um jeito certo e objetivo de lidar com a


tristeza, com o fim da vida, mas, porventura, tentar fazer com que
todos os dias tenhamos propósitos para cumprir seja uma ideia
boa. Toda aquela movimentação, fé e esperança que estavam na
sala de espera, no primeiro dia, estavam presentes no casamento,
multiplicados por todos. E, quando Manoela faleceu, ela foi embora

278
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

com música, deixou, no plano terrestre, muita união familiar e


muitos passarinhos de papel, que, hoje, decoram as casas das
famílias, ensinando sobre persistência e deixando um dos legados
mais bonitos.

Referências

MOREIRA, Samantha; MATOSINHO, Nívea Passos Maehara;


PEETERS, Irene da Silva. Grupo terapêutico em sala de espera:
“Programa Tsurus e as Dobraduras da Vida”. Blucher Medical
Proceedings, v. 1, n. 2, p. 319, 2014.

SILVA, Darlan dos Santos Damásio et al. Depressão e risco de


suicídio entre profissionais de enfermagem: revisão integrativa.
Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 49, n. 6, p. 1027-
1036, 2015.

Um Natal e um Ano Novo diferentes:


a cerimônia do adeus

Natália Claret Torres Praça

Nas vésperas do Natal, dia 23 de dezembro de 2019, Sofia,


uma senhora de 77 anos, chegou à emergência do Hospital
Lifecenter, em Belo Horizonte/MG. Ela apresentava choque séptico
e foi imediatamente atendida, sendo intubada e encaminhada para
a UTI. O caso era bem complicado, pois havia uma infecção grave,
e a paciente apresentava uma Doença Pulmonar Obstrutiva
Crônica (DPOC) avançada. No dia seguinte (24 de dezembro),
chegaram suas filhas e seus netos, que moravam fora, para visitá-
la e para passar o Natal com ela, como sempre faziam. Eles não
imaginavam o quanto esse Natal seria diferente, só queriam tê-la
em casa para curtirem a celebração como de costume, com comida
gostosa, com presentes, com filmes, com conversas longas e
inteligentes que somente ela proporcionava. Sônia era uma mulher

279
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

especial, estudada, trabalhadora, batalhadora, forte, determinada


e atenciosa. Ao mesmo tempo, era brava, durona, exigente e um
pouco temperamental. Essas características eram muito marcantes
e importantes para entender a complexidade da sua personalidade
e todas as suas atitudes.

24 de dezembro era o dia que o Natal era comemorado na


casa dela. Por isso, durante a visita dos seus familiares, ela
ordenou que os netos e as filhas realizassem o Natal da mesma
forma que estava planejado. Mesmo intubada, com dificuldade
para falar, escolheu as vasilhas que queria que usassem, orientou
sobre como preparar a comida e determinou a uma das netas, que
havia a ajudado com as compras dos presentes, a entrega de
todos eles. Só permitiu que uma das filhas ficasse com ela. E,
dessa forma, eles fizeram. Realizaram o Natal como ela pediu,
como se ela estivesse lá, mas, claro, que não era a mesma coisa.
Faltou o sorriso dela, após ver cada expressão da família ganhando
os presentes, comendo o tradicional bobó de camarão, tomando a
amada Coca-Cola gelada. Faltou o “eu achei a sua cara”, “você vai
ficar mais lindo(a) ainda”, “experimenta/testa, para eu ver”, frases
que ela sempre dizia.

No dia 25 de dezembro, ela foi desintubada. Na visita da


manhã, quis saber todos os detalhes do Natal, quem preparou a
comida e o que acharam dela, como foram as reações durante a
entrega dos presentes, e perguntou se a Coca estava gelada, do
jeito que ela gostava. Nesse dia, ela deixou que uma das netas a
acompanhasse. Mesmo assim, ela ficou preocupada de a neta não
estar comemorando o Natal com o avô. Porém, a neta não ligava,
queria passar esse momento com ela. Elas passaram a tarde toda
conversando, rindo e refletindo sobre a vida no quarto de UTI, um
ambiente claro, frio, mas com uma linda vista para o dia

280
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

ensolarado que fazia. Começaram a reparar em cada profissional


que chegava no seu leito e se impressionaram com a empatia e
com o carinho enorme que eles tinham.

Assim, felicitaram a todos pelo Natal e os parabenizaram por


estarem se doando a outras famílias, em um dia tão importante
para muitas pessoas. Ademais, planejaram comer o bobó de
camarão juntas, para ela provar o quanto estava gostoso e para
comemorar o Natal direito, assim que tivesse alta.

Nos dias seguintes, Sofia teve momentos de piora e de


melhora. Apesar de a infecção ceder, o padrão respiratório dela
não se mantinha, devido ao DPOC avançado. Dessa maneira, os
médicos indicaram, novamente, a necessidade de intubação. Como
ela estava completamente lúcida, manteve-se acordada durante a
primeira intubação e sofreu muito nesse período, decidiu, portanto,
de forma incisiva, que não queria ser intubada. Suas filhas, então,
apoiaram a decisão dela, com o coração apertado, já que queriam
que ela melhorasse, mas também não queriam que ela sofresse
mais ainda.

No dia 1º de janeiro de 2020, o médico plantonista reuniu os


familiares e comunicou que o quadro da Sônia não estava
apresentando melhoras e que não tinha mais opções de
tratamento para ela. Ou seja, ela era uma paciente terminal. Essa
notícia doeu lá no fundo do peito das filhas e dos netos. Cada um
teve uma reação, duas filhas dispararam a chorar, a outra ficou
bem séria e só pediu para que não a deixassem sofrer, as netas
foram fortes para dar suporte para as mães, e o neto não
acreditou naquela situação e sentiu raiva diante do que estava
acontecendo. Como é diversa a forma que os sentimentos
expressam-se! E como é difícil dar uma notícia tão triste, ainda

281
NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

mais no primeiro dia do ano, quando todos desejam um feliz ano


novo e fazem grandes planos para o ano que entra!

Cansada de tanto sofrer, no dia 2 de janeiro, ela pediu para


que desligassem o respirador, pois estava exausta e queria ir
embora. Os familiares conversaram com o médico, e ele disse que
isso poderia ser feito, já que o oxigênio só servia para aliviar um
pouco a falta de ar e não estava fazendo muito efeito. Após essa
decisão, as doses de morfina começaram a ser aumentadas, para
aliviar o sofrimento da paciente. Infelizmente, Sônia faleceu na
tarde nublada do dia 4 de janeiro.

Sônia foi uma paciente marcante pela sua força e


determinação, lutou 10 dias para viver, mas, quando percebeu que
não havia mais jeito, decidiu despedir-se do mundo. Ela ensinou
que, apesar da dor e do sofrimento, a morte tem um significado.
Ela mudou a forma de viver e de pensar dos seus familiares e
conhecidos. Como ela possuía DPOC e faleceu por causa de anos
de tabagismo, a sua morte influenciou pessoas a pararem de
fumar e a se cuidarem mais.

Como diz a médica geriatra especializada em Cuidados


Paliativos, Ana Claudia Quintana Arantes, quando uma pessoa
amada morre, entramos em uma caverna, e a saída não é por
onde entramos, pois não encontraremos a mesma vida que
tínhamos antes. A vida a partir da perda nunca será a mesma de
quando a pessoa amada estava viva.

Referência

ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a


pena viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Uma sentença de morte

Andressa Alves Caram

Era março de 2020, e o quinto andar do HRAN conseguia se


fazer novidade por inteiro. Dr. Tarquino indicou o quarto que
estava internado o paciente que seria nossa responsabilidade
naquele dia. Entramos na sala: paciente Lucas, sexo masculino,
solteiro, 30 anos, pardo, católico e bissexual, aparentemente
consciente, recebeu-nos, com um grande sorriso e disposição, bem
como a acompanhante, a irmã dele. O leito ao lado estava vazio no
momento, então, éramos somente nós quatro: eu, minha dupla
Laís, Lucas e a irmã dele Paula. Os outros colegas de turma já
haviam reclamado de casos, na semana anterior, de pacientes não
colaborativos, sem interesse em responder as perguntas da
anamnese ou sempre apressando o exame físico, e já, no
preenchimento do campo de identificação, foi possível perceber
que isso não seria um problema nessa consulta, pelo contrário,
todas as respostas eram dadas rapidamente, com ânimo e
detalhes, pela irmã. Eu me deparava com um caso que já
tínhamos comentado em aulas, mas não imaginava como seria um
desafio na prática: o acompanhante que não dá voz ao paciente. É
um dilema para nós, estudantes da medicina humanizada, que
tanto aprendemos sobre dar valor ao contexto e ao ser humano
como um todo, simplesmente, por mais que seja necessário, cortar
a voz desse acompanhante e exigir que a resposta venha do
paciente. Era evidente que essa relação familiar era construída
assim há muito tempo, pois até mesmo os fatos que Lucas
respondia, ao final de suas falas, ele, constantemente, buscava a
confirmação de Paula, questionando “não é?”. O primeiro
obstáculo, na minha primeira consulta. Não havia certo nem

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

errado, não havia um protocolo a se seguir, o medo de ser


ineficiente na anamnese se intercalava com o medo de ser
insensível, e, nesse balanço, fui tentando me equilibrar entre ouvir
respeitosa e pacientemente a irmã e direcionar, sempre que
possível, o olhar, explicitamente, ao paciente e reforçar o sujeito
das minhas perguntas, de modo que somente ele pudesse
responder. Para eles, parece que esse desenrolar se deu de
maneira tranquila, ambos se sentiram escutados, tão escutados
que a irmã começou a chorar contando do próprio mioma e
pedindo os meus conselhos, e Lucas agradeceu imensamente
aquela anamnese e exames físicos tão completos e me
parabenizou, eu, contudo, senti-me caminhando em uma corda
bamba por algumas horas. Acredito que venha com a prática essa
naturalidade de conseguir direcionar melhor o foco da consulta ao
paciente, nos casos de acompanhantes com alta necessidade de
serem ouvidos ou de imporem algum poder sobre o doente ou
sobre a situação no geral. Foi difícil ter dois pacientes à minha
frente e só poder estar atendendo a um deles.

Foi, então, nesse ambiente, amigável e receptivo, porém com


as respostas inesperadas da irmã, que comecei minha avaliação.
Lucas disse que estava ali por uma dor de cabeça, há 15 dias, o
que primeiramente deu a impressão de um caso simples, pois
cefaleia é uma queixa comum. No entanto, justamente por ser um
sintoma rotineiro e ter muitas causas possíveis, é necessário
explorar bem essa dor, ela era constante em toda a região cefálica
sem melhora com medicação. Poderia ser um tumor, contudo
questionamos a presença de febre, e a resposta foi positiva, febre
alta; então, pensamos em infecção, todavia, todos os sinais
meníngeos estavam negativos; pensamos em enxaqueca, mas ele
negava alterações na visão; pensamos em neurocisticercose,

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

porém ele negou o consumo de carne de porco. E, assim,


seguimos instigadas na entrevista e descobrimos episódios de
vômito, diarreia e significativa perda de peso: oito quilos em um
mês. Além disso, desde que tinha chegado ao hospital, teve dois
episódios convulsivos. O paciente relatou que todo o quadro da dor
se iniciou com o que ele chamou de queda de pressão que quase o
levou a desmaiar. Então, assim, em minutos, a simples dor de
cabeça se tornou bem mais que isso: o que estava levando a essa
dor e a todos esses sintomas?

Durante o exame físico do sistema respiratório – no qual


auscultei roncos no ápice – Lucas me perguntou se eu morava pelo
plano e, mais tarde, durante o exame cardíaco, voltou a me
perguntar se eu morava pelo plano. Assim percebi que cefaleia não
era a única alteração vinda da cabeça, também havia perda de
memória recente, para complicar mais o caso, além disso, sua
marcha estava trêmula e lenta, mas o paciente insistia que só
estava assim, pois ficava muito tempo parado no hospital. Percebi
também uma mancha esbranquiçada na região do hipocôndrio
direito, que ele referiu ser derivada de um “cobreiro”, ocorrido há
três anos. Eu não sabia o que era cobreiro, mas fingi que sabia e
anotei.

Saímos da sala, e Laís disse que acreditava que ele tinha


Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), do inglês
Acquired Immunodeficiency Syndrome.

Como? O paciente chegou com dor de cabeça. AIDS?


Voltamos ao quarto, questionamos se sofria de alguma doença
infecciosa ou se fazia uso de medicação contínua – para
descobrirmos sobre o coquetel – e a resposta foi negativa para
ambas perguntas. Saímos pensativas, discutimos o caso com a
dra. Lílian, que abriu para nós o prontuário – teste de HIV

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

realizado há três dias: positivo. Suspeita de JC vírus e confirmação


de neurotoxoplasmose, o que explicava todos os sintomas e os
sinais neurológicos e infecciosos. Além disso, ele tinha chegado
com pneumonia, o que explicava a ausculta respiratória com
murmúrios vesiculares anormais.

Sim. Tínhamos feito o diagnóstico. Todas as explicações,


tudo se encaixava. Encontramos tudo na anamnese e no exame
físico que era para ser encontrado, enxergamos aquele paciente da
cabeça aos pés, literal e metaforicamente, e fechamos o
diagnóstico. Meu primeiro paciente, meu primeiro obstáculo, meu
primeiro diagnóstico, aquela sensação de completude era nova
para mim, realização, dever cumprido, sensação de capacidade,
orgulho e até mesmo alegria, que durou um segundo. Um segundo
somente porque, no próximo, já me veio em mente a frase que
fica comigo até hoje e para sempre: “ele chegou com dor de
cabeça e vai embora com um ano de vida”. Dor. Eu senti a dor do
meu paciente ao receber a notícia, antes mesmo de ele a receber,
ao me dar conta de que ia chegar a ele: senhor Lucas, de 30 anos,
dor de cabeça? O senhor tem AIDS, sem cura; JC vírus, sem
tratamento; neurotoxoplasmose: você tem um ano de vida, com
prognóstico de piora gradual. Talvez, em uma próxima consulta,
ele pergunte se eu moro no plano três vezes, em vez de duas, e a
marcha esteja tão trêmula que leve à queda. E não podemos fazer
nada para evitar isso: impotência. Sentir que não posso ajudar me
destruiu por dentro. Sentir que a vida dele irá embora aos poucos
me destruiu por dentro, mas não posso mostrar isso para ninguém
porque somos todos muito profissionais aqui.

É difícil não carregar para casa a dor do hospital. Não há


remédio para essa sensação. Cheguei e fui pesquisar o cobreiro,
que eu fingi saber o que era: herpes zoster, há 3 anos. Deve ter

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

sido aí que contraiu o HIV, pois a imunidade caiu, e o vírus da


varicela pôde se expressar, mas ninguém se atentou. Raiva. Se
tivessem visto que, por trás daquele cobreiro, há 3 anos, havia
uma AIDS, talvez ele pudesse ter sido tratado e não chegaria a
essa gravidade que hoje está. Atenção. Aprendi a importância da
atenção das causas e não apenas da simplicidade dos sintomas. E
tristeza. Foi com a tristeza que me deitei naquela noite.

Era o segundo dia rodando no quinto andar de clínica médica


do HRAN, mas era, contudo, o primeiro paciente ao qual eu seria a
principal em fazer o atendimento, na semana anterior, minha
dupla Laís teve esse papel. Era, então, esperado que estivesse
nervosa, mas não, nunca senti ansiedade ou insegurança antes de
entrar em contato com as pessoas, pelo contrário, sempre foi a
parte da medicina que mais me fascinou, com a qual mais me
identifiquei e senti facilidade: a conversa, o olhar nos olhos e
enxergar até o que não está estampado. A arte da clínica me
conquistou ao mesmo tempo que me quebrou. Conquistou-me nos
detalhes e em sua importância, conquistou-me no encaixe de tudo.
E me quebrou junto com Lucas, junto com sua irmã, e com todas
as suas respostas, tão buscadas e, ao mesmo tempo, tão, mas tão
indesejadas.

REFLEXÃO DA AUTORA DA NARRATIVA

Existe literatura crescente abordando temas sobre a melhor


forma de exercer a prática de más notícias, como, por exemplo, a
importância da medicina humanizada e da educação que se volta
para o desenvolvimento de empatia, mas ainda há carência em
alguns temas, como o sentimento do médico ao dar a má notícia e
o modo de lidar com isso, mostrando que é uma área ampla e que
ainda há muito a se estudar; ainda há muitas questões sem

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

respostas. Na narrativa, o dilema com a irmã do paciente, que


respondia por ele e iniciou a citar problemas pessoais, foge do
ideal do encontro focado no paciente, que seria a conversa guiada
para suprir a necessidade daquele paciente. Ao mesmo tempo que
a interação com a família e o apoio emocional são de extrema
importância, essa situação pode acabar sendo um desafio para a
prática clínica e deve ser manejada com delicadeza (GOMES et al,
2012). Nesse sentido, ter esse aprendizado de como lidar com
essas situações se mostra de extrema importância.

A narrativa abrange tópicos variados de modo que é


demonstrável que uma consulta médica vai muito além de seguir o
roteiro, ultrapassa as noções essenciais de anatomia, fisiologia,
patologia e farmacologia e requer, também, habilidades de
comunicação, habilidades éticas, afetivas e interpessoais. São
rotineiras, na prática médica, situações similares as ocorridas na
narrativa, como os imprevistos nas relações com familiares
durante a consulta; o descobrimento de uma má notícia e,
consequentemente, necessidade de informá-la a um paciente
vulnerável, que não a espera; e, ainda, a dificuldade em traçar a
tênue linha entre a empatia, que torna um médico bem-sucedido
na relação médico-paciente, e a empatia que faz com que o
médico leve sofrimento para casa. Temas como esses não eram
amplamente contemplados nos componentes curriculares da
educação médica. Foi somente a partir de 2001 que dimensões
éticas e humanizadas foram incluídas no academicismo da
graduação, não só trazendo discussões de extrema importância e
apresentando o assunto, mas também proporcionando
aproximação precoce entre o estudante e o paciente (MEDEIROS et
al, 2013).

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Os currículos que abrangem esse ensino, que foi por tantos


anos negligenciado como se fosse um conhecimento óbvio
previamente adquirido, a respeito da preocupação com empatia e
da escuta integral e ativa ao paciente incluindo suas emoções,
tiveram melhores resultados em testes relacionados com o nível de
empatia dos médicos; fatores como estar sentado durante a
consulta, olhar nos olhos do paciente enquanto ele fala, captar
sinais não verbais de expressão e saber responder com compaixão
e apoio são considerados de extrema importância, sendo que
métodos educacionais que disponibilizam o contato entre
estudantes e pacientes reais obtiveram o maior índice de sucesso
(PATEL, 2019).

Referências

GOMES, Annatalia Meneses de Amorim et al. Relação médico-


paciente: entre o desejável e o possível na atenção primária à
saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n.
3, p. 1101-1119, 2012.

MEDEIROS, Natália Souza et al. Avaliação do desenvolvimento de


competências afetivas e empáticas do futuro médico. Revista
Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 37, n. 4, p. 515-
525, out./dez. 2013.

PATEL, Sundip et al. Curricula for empathy and compassion


training in medical education: a systematic review. PLoS One, v.
14, n. 8, 2019.

Sempre quis conhecer a África!

João Guilherme Marques Castello Branco Levy

Sempre quis conhecer a África, imaginava seus horizontes


exóticos, sua natureza exuberante, seu povo animado e suas
músicas enérgicas. Quando me foi apresentada a oportunidade de

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

fazer um trabalho voluntariado no Quênia, não pensei duas vezes e


fui me aventurar. Após uma semana na capital Nairóbi, fomos – 21
estudantes de medicina e quatro médicos – para a reserva Maasai
Mara, a fim de prestar serviços à população tribal que lá mora. No
primeiro dia de atendimento, 21 de janeiro de 2020, montamos,
em um pequeno complexo de clínicas, o medical camp. A
aparência lembrava uma UBS tradicional, pois havia três
consultórios, uma farmácia e uma sala destinada a testes
laboratoriais, a qual foi convertida em mais um consultório devido
à alta demanda. Também havia uma tenda onde era realizado o
acolhimento, na qual, em minha opinião, era o lugar mais difícil de
se lidar, pois o atendimento era feito – anamnese e exame físico –
e, às vezes, até receitar algum medicamento, após confirmar com
os médicos.

Nesse dia, estávamos nos consultórios, eu e uma grande


infectologista, a dra. Eveline, atendendo aos pacientes cujas
queixas não puderam ser solucionadas pelo acolhimento. Todas as
entrevistas eram feitas por meio de tradutor, pois pequena parte
da população falava inglês, apenas o idioma maasai. No
consultório, sentia-me mais relaxado e menos ansioso, uma vez
que, ao contrário do acolhimento, os procedimentos eram feitos
acompanhados de um profissional. Em certo momento do dia, uma
mulher de vestido amarelo, nos seus 40-60 anos de idade, entrou
sozinha no consultório. Sem fazer contato visual algum comigo ou
com a dra. Eveline, ela relatou ao tradutor o que sentia, e ele nos
explicou que se tratava de dor nos hipocôndrios direito e esquerdo,
há alguns anos.

Durante a conversa, percebi que ela estava encolhida, com a


cabeça um pouco baixa e evitando encontrar os olhos. Pedimos a
ela que se deitasse na maca, para poder realizar o exame

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

abdominal. Ao fazer a palpação superficial, percebemos uma


massa endurecida, pétrea, difusa pela parte superior do abdome
espalhado pelos hipocôndrios direito e esquerdo e epigástrio,
sendo a primeira hipótese algum câncer já em estágio avançado.
Apesar de a dra. Eveline tomar total cuidado de não mostrar
preocupação alguma, a paciente começou a chorar durante o
exame. Não sei ao certo se foi o tom de voz da dra. Eveline,
quando me instruiu a fazer o exame, ou a linguagem corporal ou,
possivelmente, até a minha expressão facial, pois, talvez, não
tenha conseguido esconder, mas algo indicou para a paciente que
alguma coisa não estava certa.

No momento, tentamos acalmá-la, mas a barreira da língua


dificultou para que isso fosse efetivo. Naquele instante, senti-me
impotente por não conseguir atenuar a dor da paciente. Queria, de
alguma maneira, conseguir amenizar o sentimento que ela estava
vivenciando, até o tradutor tinha ficado constrangido com a
situação, o que, com certeza dificultou ainda mais o manejo da
situação. Senti culpa também, pois gostaria de falar que tudo
ficaria bem, porém sabia que não poderia dizer isso, devido à falta
de acesso à saúde que a população maasai sofre. A verdade era
que aquele diagnóstico significava uma sentença de morte, e o pior
foi perceber que a paciente tinha entendido a gravidade da
situação. Apesar disso tudo, senti que pouco fiz para aquela
paciente, muito menos o que gostaria de ter feito.

A paciente conseguiu se recompor, e comunicamos ao


médico local que ela deveria ser encaminhada para um hospital, a
fim de poder fazer uma investigação mais profunda. Infelizmente,
o médico disse que isso seria difícil, mas se comprometeu a tentar
fazer o possível. A paciente, então, rapidamente, levantou-se e
falou algo na língua maasai, com uma face triste, mas de gratidão.

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NARRATIVAS HUMANISTAS: MEDICINA ALÉM DOS LIVROS

Foi nesse momento que percebi que, apesar da dificuldade que


tivemos de amenizar a dor da paciente, o que ela tinha dito, na
própria língua, foi “obrigada”.

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