Entrevista Com Vicent de Gaulejac
Entrevista Com Vicent de Gaulejac
Entrevista Com Vicent de Gaulejac
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LIST: Primeiramente, gostaríamos de lhe agradecer por nos conceder essa entrevista.
Muito obrigado. Agora para iniciarmos, gostaríamos que o senhor fizesse uma
apresentação de sua trajetória profissional.
Gaulejac: Eu poderia fazer duas apresentações de minha trajetória profissional. Uma em
02 minutos, formal, e outra na qual levaríamos toda a noite, sobre meu romance familiar e
minha trajetória social. Há em meu site7 um texto denominado Se autorizar a pensar, no
finalidade federalizar as formas de resistência às reformas e avaliações propostas em diferentes setores da iniciativa
pública (justiça, educação, saúde e cultura). O movimento surgiu na França, em oposição às políticas econômicas de
Nicolas Sarkozy, mas hoje já conta com adeptos e representantes de variados países, inclusive do Brasil.
7 O referido site pode ser encontrado no domínio: http://www.vincentdegaulejac.com
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qual eu apresento minha trajetória, como eu cheguei na Sociologia Clínica e como me tornei
professor e pesquisador. Mas, em resumo, atualmente sou Professor Emérito na Université
Paris-Diderot 7, sou presidente da Rede Internacional de Sociologia Clínica (RISC 8) e
escrevi alguns livros que ilustram a abordagem da sociologia clínica (Gaulejac, Hanique, &
Roche, 2012; Gaulejac, Giust-Desprairies, & Massa, 2013) em diversos domínios distintos.
Por exemplo, primeiro nos domínios das histórias de vida (Gaulejac & Legrand, 2013),
passando pela análise de conflitos ligados a mudanças de classes sociais – como na
neurose de classe (Gaulejac, 1987) –, bem como pela questão da vergonha (Gaulejac,
1996) e pelo peso das heranças familiares (Gaulejac, 1999). Segundo, no registro do
trabalho (Gaulejac & Taboada-Leonetti, 1994; Gaulejac, 2011), em relação às
transformações das organizações e do mundo do trabalho (Aubert & Gaulejac, 1991;
Gaulejac, 2005; Gaulejac & Mercier, 2012), assim como do surgimento da Revolução
Gerencialista e da Revolução Numérica (Gaulejac & Hanique, 2015). Mais recentemente,
interessei-me pela questão da radicalização de jovens jihadistas que partiram para lutar
junto ao Estado Islâmico, na Síria e na Europa (Gaulejac & Seret, 2018).
no trabalho, a perda do valor do trabalho, o que faz com que as pessoas se tornem muito
mais frágeis e vulneráveis no plano psíquico e mental. Todos esses sintomas são
ilustrativos do fato que a saúde mental no trabalho se degradou consideravelmente. Além
disso, nós vemos que esse modelo, nascente nas empresas privadas, foi importado na
iniciativa pública e, logo, observamos exatamente os mesmos sintomas nesses espaços.
Portanto, aqui constatamos um fenômeno massivo engendrado em uma batalha ideológica
maior na qual, por exemplo, o trabalhador sabe que seu mal-estar está ligado ao trabalho,
todavia o patrão, a direção de recursos humanos e o governo, na maior parte do tempo se
recusam terminantemente a considerar que possuem a mínima responsabilidade em
relação ao burnout, ao suicídio, às depressões no trabalho etc.
Enquanto o capitalismo industrial aceitava sua responsabilidade nas doenças
profissionais (e isso levou décadas), havia ao menos a preocupação de dizer: “[...] ok,
tratam-se de doenças profissionais, isto é, de doenças ligadas às situações de trabalho”.
Atualmente isso não existe mais, embora as doenças profissionais e o mal-estar no trabalho
se difundam consideravelmente. Portanto, hoje há uma batalha ideológica
substancialmente importante entre os trabalhadores, os sindicatos e alguns poucos partidos
políticos, os quais dizem que existem novas formas de alienação, de exploração, de
pressões no trabalho e, então, que é preciso reequilibrar as relações entre capital e trabalho
– isto é, que é preciso dar mais atenção ao trabalho, pois as pessoas não estão bem –, e,
depois, há outras pessoas que dizem que esse é um problema psicológico, médico, no qual
cada trabalhador deve se preocupar, mas que não concerne às empresas e aos governos.
Isso tudo explica em particular um fenômeno importante: ‘hoje a luta pelos lugares
substitui a luta de classes’. É dizer, no capitalismo industrial havia ainda a consciência de
classe. Concebia-se que o progresso se lograria pelas lutas sociais e relações de força
entre patrões e trabalhadores, entre a burguesia e o proletariado. Atualmente, praticamente
ninguém fala de classe social no trabalho ou os trabalhadores nem mesmo têm energia
para enfrentar batalhas coletivas. Eles estão unicamente preocupados pela ‘luta pelos
lugares’, isto é, por conseguir sobreviver e encontrar um lugar nesse mundo, uma vez que
é preciso vitalmente ‘encontrar um lugar’ para poder existir em nossa sociedade. Todos
aqueles que não se inserem, que não encontram lugares, são excluídos (como, por
exemplo, os refugiados, os desempregados e os precarizados), são colocados em uma
condição social, psicológica e econômica dramática e, portanto, naturalmente todas as
pessoas se mobilizam para evitar esses processos de exclusão. Enfim, é preciso sublinhar
que os processos de exclusão também estão ligados à excelência, a essa produtividade, a
intensificação da pressão nas empresas, as exigências de cada vez mais, as exigências de
subir sempre, às exigências de fazer mais com menos. É então essa corrida sempre em
frente e em direção ao lucro e à produtividade que se criam as tensões principais do mundo
onde vivemos.
LIST: O título de sua conferência em nosso congresso foi ‘Por que o mundo do trabalho se
torna paradoxal? Quais consequências para as pessoas, as instituições e a política?’ Nesse
sentido, diante de um cenário de demandas cada vez mais paradoxais no mundo do
trabalho, a sociologia clínica propõe intervenções no plano das metacomunicações. Como
incluir a dimensão do sofrimento no trabalho nesse contexto? O senhor poderia falar um
pouco mais sobre os dispositivos de pesquisa e intervenção da sociologia clínica?
Gaulejac: Primeiramente, é preciso explicar o que é a metacomunicação. Segundo a
Escola de Palo Alto, para superar uma injunção paradoxal é preciso desconstruir a
discursividade dessa injunção. Eu não tive tempo de desenvolver em minha conferência,
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11 Em sua conferência, durante o congresso organizado pelo Laboratório Interinstitucional de Subjetividade e Trabalho
(LIST), Vincent de Gaulejac apresentou um exemplo para elucidar a lógica de funcionamento das injunções paradoxais,
na qual duas obrigações radicalmente opostas são colocadas sobre o mesmo plano discursivo, de forma a impedir que o
indivíduo saia de determinada situação. No exemplo apresentado, uma mãe presenteia seu filho com duas gravatas, uma
vermelha e uma verde. Quando seu pequeno filho coloca a gravata verde, sua mãe lhe questiona se ele não gostou da
vermelha, pois escolheu não a utilizar. Quando o filho troca a gravata e retorna com a vermelha, ela lhe pergunta dessa
vez se ele não gostou da gravata verde. Ao se sentir confuso, o filho retorna a sua mãe utilizando ambas as gravatas
sobrepostas. Sua mãe, nervosa, lhe interroga: “[...] você quer me deixar louca?” Esse exemplo, enfim, ilustra como uma
injunção paradoxal induz sempre a uma impossibilidade de responder sem infringir alguma de suas opções.
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têm uma responsabilidade aqui, porém é preciso sublinhar que a evolução das
transformações do trabalho produziu um hiato crescente entre o ‘trabalho real’ e o ‘trabalho
prescrito’. Por isso observamos uma grande distância entre os ‘gerentes do cotidiano’ 12,
que vivenciam o cotidiano de trabalho das atividades produtivas, e os ‘gerentes
prescritores’, comumente responsáveis por elaborar as prescrições, os modelos, normas,
processos e redesenhos da produção, junto às grandes empresas de consultoria e com a
finalidade de criar instrumentos de gestão, indicadores de performance e avaliação. Estes
últimos normalizam a premissa de que o conjunto do sistema econômico deve efetivamente
ser avaliado em função de indicadores quantitativos, que por sua vez se traduzem em
indicadores financeiros os quais permitem traduzir o valor da empresa perante o mercado
financeiro. Eles, então, normalizam o poder e a dominação dos mercados financeiros sobre
o conjunto da sociedade.
Eu destaco novamente a dificuldade de fazer essa análise na política. Eu a fiz perante
o sindicalismo, a outras pessoas responsáveis (como patrões, por exemplo) e mesmo a
partidos políticos. Na maior parte do tempo eles não têm argumentos de oposição ao que
digo, mas o que me toca muito é que eles dizem: “[...] ok, está bem, nós estamos de acordo”.
Mas eles não tiram as consequências disso, pois se sentem impotentes para mudar, haja
vista que eles não querem renunciar aos paradigmas aos quais estão vinculados (e que
paradoxalmente contribuem a produzir esse problema). “Ora, como resolver um problema
no interior dos paradigmas que o gerou?” É por isso que as ciências sociais são tão
importantes. É exatamente a teoria que nos ajuda a mudar de paradigmas.
Em Gestão como doença social, eu tentei mostrar quais eram os paradigmas que
fundavam as ciências da gestão e eu elaborei proposições para mudar esses paradigmas.
A principal dificuldade encontrada é que os políticos estão predominantemente vinculados
ao registro da ação e, logo, eles pensam sempre que a solução está na ação. Quanto mais
eles agem, todavia, mais eles reforçam a crise. Eles permanecem na ‘passagem ao ato’,
mesmo que saibamos que a ‘passagem ao ato’ corresponde a um mecanismo de defesa
relacionado a algum problema que não foi resolvido. Em outros termos, nós sabemos que
‘resolver somente com a ação’ não funciona. Sabemos disso há muito tempo, desde O
poder das organizações. Entretanto, quando eu digo isso a um político, ele não
compreende, pois como o filho das gravatas verde e vermelho, para compreender ele
precisaria desconstruir o discurso: ‘por que isso não tem funcionado?’ Os políticos, então,
estão sempre presos a um discurso de crescimento para lutar, por exemplo, contra o
desemprego, portanto permanecem ligados a um discurso de desenvolvimento da
competitividade, mas não se dão conta que o desenvolvimento da competitividade
atualmente implica o lean management, isto é, corresponde a fazer mais com cada vez
menos. E esse é o paradoxo: ‘para combater o desemprego é preciso reduzir os efetivos’ e
isso não tem mesmo como funcionar.
12 Essa é uma tradução adaptada do conceito de manageur du terrain, o qual se opõe ao manageur prescripteur. No
primeiro caso, refere-se aos gerentes que têm contatos diários com suas equipes e a operação na qual é responsável,
isto é, do gerente que conhece de perto as dificuldades encontradas pelos diversos níveis de complexidade do trabalho
de seus subordinados. Quanto à segunda categoria, refere-se aos gerentes que desconhecem as dificuldades do cotidiano
de trabalho de suas equipes e, portanto, realizam um modo de gestão tão somente pautado em indicadores de
performance e de qualidade, sem conexão direta com a organização produtiva real.
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Todo esse trabalho começou também com Max Pagès, Eugène Enriquez, Jacqueline
Barus-Michel. Nunca estivemos sozinhos nessa aventura. Portanto, é verdade que o
vínculo com o Brasil foi sempre privilegiado. Nós nos apreciamos, temos uma forma de
abordar as coisas bastante próximas. No RISC temos a chance de desenvolver um trabalho
junto a todos os colegas de diferentes países, pois buscamos antes de tudo a co-
construção. Por exemplo, estou aqui (no Brasil) hoje e inclusive encorajo a todos vocês a
utilizarem a página Brasil, no site do RISC (Réseau International de Sociologie Clinique,
2019) para informar a todos os demais sobre o conjunto de atividades que vocês realizam.
A apropriação que todos fazemos dessa rede é o que garante que ela possa se manter viva
e ativa. E é exatamente isso que é muito interessante e enriquecedor nesse congresso.
Nós [...] os pesquisadores, os universitários, os clínicos, nós devemos trabalhar
permanentemente para ultrapassar as fronteiras disciplinares, mediante a abertura e com
a garantia do respeito recíproco na co-construção da pesquisa no mundo. Esse ponto é
fundamental, pois vemos na história que os fechamentos e as ditaduras sempre produziram
uma regressão da pesquisa, uma regressão do ensino e uma regressão da cultura. É
preciso ter isso em mente, pois o RISC [...] eu o concebo como um lugar que luta ferozmente
de forma determinada contra quaisquer tipos de fechamentos e enclausuramentos.
LIST: Para finalizar, sabemos que o senhor já esteve no Brasil várias vezes, inclusive uma
dessas vezes esteve em Maringá. Quais impressões o senhor teve das discussões em
torno da política e da questão do trabalho atualmente em nosso país?
Gaulejac: Eu falei sobre isso há alguns dias em Brasília, pois nós fizemos um colóquio (6°
Colóquio Internacional de Sociologia Clínica e Psicossociologia, 2018) sobre essa questão
naquela ocasião. Quando atuamos a partir da sociologia clínica, temos a responsabilidade
de criar um enquadre que possibilite a realização da análise clínica e que torne possível
‘trabalhar com a violência sem violência’. Ora, no nível individual nós sabemos qual o
enquadre necessário, no nível dos grupos, com o ‘organidrama’, por exemplo, nós sabemos
qual o enquadre necessário, porém no nível político não há esses enquadres. Logo,
passamos à análise política e à análise crítica, que se revelam pertinentes a partir do
momento em que se inserem nos enquadres das instituições, por exemplo. Eu considero
que não tenho nenhuma legitimidade para fazer um julgamento sobre a política brasileira.
Por outro lado, eu percebo que a violência é uma realidade. Ela inquieta todo mundo e nós
vemos que as pessoas não estão bem. Há atualmente suicídios, de estudantes e alunos,
há toda uma série de sintomas que são inquietantes e que nos fazem crer que as formas
de violência se intensificam.
O que me toca também é que todo mundo busca se proteger e, nesse contexto,
acredito que grandes discursos de denúncia política dessa violência não servem para nada
ou mesmo são contraprodutivos. Talvez agora seja preciso retornar ao principal e, como
clínico, sei que se trata das vivências das pessoas. Em minha opinião nossa
responsabilidade consiste em oferecer ferramentas reflexivas de escuta e intervenção as
quais permitam que os indivíduos não sejam contaminados por essa violência, que
geralmente também os torna violentos. Trata-se de refletir sobre como podemos criar
dispositivos grupais que sejam por sua vez espaços de reflexão, nos quais haja a troca de
experiências e vivências. Além disso, a partir de análises coletivas nesses espaços é
preciso que seja possível trabalhar sobre as dificuldades encontradas e os conflitos
existentes, de modo que as trocas geradas possibilitem a criação de meios de ação nos
níveis das instituições, das organizações, das pesquisas, das intervenções e, por que não,
da política. E é por isso que estou muito engajado no Manifesto dos Convivialistas
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(Convivialisme, 2019), por exemplo, que foi traduzido para o português (Manifesto
Convivialista, 2019) e que corresponde a uma proposição política não violenta, mas ao
mesmo tempo realista. Enfim, é preciso que alimentemos sempre a esperança de construir
um mundo melhor.
Referências
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Recebido: 03/06/2019
Aceito: 12/02/2020
Matheus Viana Braz: Psicólogo e professor na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
Doutor em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Correspondente Internacional
do Brasil no Réseau International de Sociologie Clinique (RISC).