TRABALHADORES NO DIVÃ Fernanda Sousa Duarte
TRABALHADORES NO DIVÃ Fernanda Sousa Duarte
TRABALHADORES NO DIVÃ Fernanda Sousa Duarte
TRABALHADORES NO DIVÃ:
CONTRIBUIÇÕES DA PSICOPATOLOGIA
CLÍNICA DO TRABALHO
Brasília
2020
FERNANDA SOUSA DUARTE
TRABALHADORES NO DIVÃ:
CONTRIBUIÇÕES DA PSICOPATOLOGIA CLÍNICA DO TRABALHO
Brasília
2020
Tese defendida em 27 de março de 2020, avaliada pela banca examinadora constituída por:
___________________________________________
Profa. Dra. Ana Magnólia Bezerra Mendes
Presidente da Banca Examinadora
Universidade de Brasília (UnB)
___________________________________________
Prof. Dr. Patrick Brown
Membro Externo
Universiteit van Amsterdam (UvA)
___________________________________________
Prof. Dr. Jean Michel Vivès
Membro Externo
Université Nice Sophia Antipolis (UNS)
___________________________________________
Prof. Dr. João Batista Ferreira
Membro Externo
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
___________________________________________
Prof. Dr. Alexander Hochdorn
Membro Interno
Universidade de Brasília (UnB)
Fonte: Emerson Lobo
Aos meus pais
que fizeram porto em todos os mares
(e sertões e cerrados) que atravessamos
“Geen karwei is ons te machtig,
geen vraagstuk waarvoor wij uit de weg gaan.”
De Leus van de Reus van Bickerseiland
AGRADECIMENTOS
A conclusão desta tese marca 10 anos de trabalhos com a prof. dra. Ana Magnólia
Mendes no Laboratório de Psicodinâmica e Clínica do Trabalho - e também fora dele - e um
e meio com o prof. dr. Patrick Brown do grupo de Sociologia Política da Universidade de
Amsterdam. Termino esta tese com mais perguntas que respostas, mas também com muito
mais agradecimentos que lamentos.
Aos professores que me reprovaram em 2014 e aos que me aprovaram em 2015 no
processo seletivo para o doutorado, minha gratidão eterna. Esse percurso possibilitou a
viagem que me proporcionou encontros que mudaram minha trajetória profissional e pessoal:
com Luiza, a quem também dedico este trabalho; com Caspar, o holandês que me disse que a
confiança é sempre a melhor opção; e com Orlando Reade, doutorando de um programa em
Princeton com quem estabeleci diálogos que me reconectaram com interesses em
Antropologia e Sociologia Médica. Esses encontros me motivaram buscas que me levaram
aos trabalhos do professor dr. Patrick Brown da Universidade de Amsterdam, com quem
realizei meu doutorado sanduíche e sem os quais esta tese não seria a mesma.
À profa. dra. Ana Magnólia Mendes: seu apoio, generosidade, inteligência,
irreverência e subversão me inspiram todos os dias, dentro e fora da academia. Obrigada
pelas viagens e estadias nessa jornada - we will always have Paris. Palavras não são
suficientes para expressar minha gratidão pelo nosso encontro.
Agradeço ao prof. dr. Patrick Brown pela generosidade e acolhimento. Por me aceitar
e receber como pesquisadora visitante na Universidade de Amsterdam durante meu estágio
no exterior. Sua generosidade, entusiasmo e admiração pela Teoria da Ação Comunicativa de
Habermas mudou os rumos da minha pesquisa. Obrigada pela confiança.
Aos professores doutores Jean-Michel Vivès, João Batista Ferreira e Alexander
Hochdorn que aceitaram gentilmente constituir a banca de defesa desta tese, contribuindo de
forma imensurável para este trabalho.
Aos psicólogos e pacientes que participaram do Estudo III. Obrigada por
compartilharem suas experiências de dor, de confiança e de transformação.
Ao meu analista por me proporcionar a chance de apreciar os diálogos ao longo dos
anos. Nosso trabalho analítico me transformou (e transforma) de maneira que nenhuma outra
relação poderia.
Agradeço ao PPG-PSTO - à prof. dra. Elaine Neiva pela coordenação do Programa e
aos demais professores do programa pela recomendação para o doutorado sanduíche. Aos
servidores Thiago e Onofre pela disponibilidade para me atender e facilitar os processos
burocráticos durante o doutorado.
Agradeço também à FAP-DF e CAPES pelos apoios financeiros que me permitiram a
realização deste doutorado no Brasil e no exterior. Ao Amsterdam Institute for Social Science
Research pelo apoio institucional.
Agradeço aos professores que fizeram parte de minha trajetória acadêmica na
Universidade de Brasília, especialmente às professoras e professores doutores Lucia Helena
Pulino, Camila Costa Torres, Hartmut Gunther, Isolda Gunther, Ronaldo Pilati, Laércia
Abreu Vasconcelos, Marcelo Tavares, Dyego Costa, Danielle Coenga, Emílio Peres Facas e a
minha supervisora de estágio Thiele Costa Muller. Suas perspectivas singulares sobre as
intersecções entre o psíquico e o social me desafiaram e me acalentaram ao longo do
caminho.
A todas estagiárias(os), psicólogas, profissionais e pacientes com quem tive o prazer
de trabalhar nesses anos de pesquisa e intervenção: Solange Silva, Maria Júlia Martinez,
Augusto de Carolina Teixeira, Thomaz Augusto, Laura Novaes Andrade, Victor
Vasconcelos, Neusa Maria de Souza e Tatiane Chianca.
Aos meus colegas de doutorado no Brasil (alguns deles agora doutores!) - Luiza
Mariana Soares, dra. Graziele Amaral, Arij Chabrawi, Giuliane Pimentel, dra. Kelma Soares,
dr. Ronaldo Souza e dra. Juliana Seidl - pelo apoio, pelas trocas teóricas e metodológicas.
À profa. dra. Ana Lúcia Galinkin por ter me dado de presente seu livro sobre a cura
no Vale do Amanhecer na defesa da minha dissertação - através dele descobri meu interesse
pela Antropologia e Sociologia Médica.
Aos doutores que conheci em Amsterdam: dr. Choolwe Muzyamba, prof. dr. Erik
Rietveld e prof. dr. Michael Eze - por dividirem suas trajetórias e epistemic blueprints
comigo. Seus olhares interdisciplinares e a coragem de se movimentar me inspiraram em
momentos cruciais.
Aos meus colegas de doutorado e vizinhos no exterior, Kali Carrigan e Richard
Girling, que me ensinaram a navegar o campus e a vida social do imigrante acadêmico. Nossa
curta convivência me marcou com ensinamentos anacrônicos - “leia só o começo e o final”
(Girling, 2018) - e os admiro profundamente pelas trajetórias pessoais e acadêmicas.
Aos meus vizinhos pós-graduandos e companheiros de jantares multiculturais no
Feniks e em Bickerseiland - Nithin, Lotta e Shulin - pela doçura e generosidade. Obrigada
por me fazerem sentir em casa e também no mundo todo ao mesmo tempo em qualquer
apartamento.
À Carla Van der Zwan, Paul Enthoven e Mark Enthoven - por me acolherem em sua
família e me proporcionarem tantos momentos preciosos.
À minha amiga brasileira em Amsterdam, Carmem Castellani, que trouxe um pouco
de Brasil para minha vida holandesa e não me deixou esquecer a importância das raízes.
Obrigada por dividir os perrengues, as saudades e as farofas.
Ao meu amigo Kevinho que me fez sentir em casa em Amsterdam com livros
anarquistas, poesias modernas, trajetos de bicicleta e cafés. Sua inteligência, carisma e work
ethics são incomparáveis. Ao Sam que me ajudou a ressignificar incertezas e vulnerabilidades
com seu olhar antropológico, seu entusiasmo e gifs de animais. Ao Aleksi pelas maratonas de
trabalho na biblioteca do Singel e por me motivar a sempre recomeçar. Obrigada por
confiarem que eu terminaria esta tese quando eu duvidei.
A todas as minhas amigas e amigos brasileiros que me apoiaram de várias partes do
mundo em momentos diferentes desse processo: minha amiga mais antiga, Gessica Mascêne,
que nem os anos e nem a distância afastaram. Sua fé, otimismo, doçura, carinho e
persistência me ensinam sempre. Ao Victor Corrêa e Silva, anfitrião em Munich e
companheiro de viagem em Salzburg, por me lembrar da soberania da natureza, do tempo e
do poder da espontaneidade - nunca se sabe se você vai acordar no mesmo país em que
dormiu. À Marcely Costa - artesã de pensamentos, palavras, linhas e queijos veganos, minha
anfitriã em Edimburgo e primeira visita em Amsterdam - pela amizade profunda e ao mesmo
tempo leve. À Janaina Chaikovsky - minha anfitriã em Chicago e em qualquer lugar do
mundo - sua alma viajante, indiscutível humanidade e amorosidade me acompanharam em
todas as viagens. Ao Eduardo Santos - companheiro de Atacama e Uyuni, meu anfitrião em
Haia e São Paulo. Em Scheveningen, enquanto eu explicava meu projeto na areia, nasceu esta
tese. Em São Paulo, me acompanhou ao consulado para emitir o visto de pesquisadora que
sonhei por anos. Sua existência iluminada me inspira a ser uma pessoa melhor. Obrigada.
Sem vocês, tudo seria mais difícil - ou menos engraçado.
À Marcella Albo, companheira inseparável de graduação, por ter compartilhado o
interesse por Antropologia e o amor por viagens de mochila. Por ter me incentivado a realizar
a disciplina Psicodinâmica e Clínica do Trabalho, onde iniciei o trajeto acadêmico que
culminou nesta tese.
Às minhas amigas Ana Paula Morais e Bruna Jalles Lima, profissionais que admiro e
amigas amadas com quem tenho o prazer de partilhar a vida desde que começamos a
graduação em Psicologia em 2007. Por irem até mim quando eu paralisava, por lembrarem de
mim quando eu esquecia, por me ensinarem a arte de cair e de levantar, a arte do impulso e da
moderação, por entrarem e saírem dos “será?” comigo - “eu não sei, tu acha?”. Por me
ensinarem, na prática, o poder da vulnerabilidade e as delícias das incertezas. As nossas
diferenças me fazem superar a necessidade de espelhos.
Ao Tim, echte schat. Nossa convivência me ensinou o que eu precisava sobre
confiança para escrever esta tese. Palavras não explicam a natureza processual e
comunicativa da nossa relação de confiança e amor constituída em três idiomas e muitos
leaps of faith.
E, principalmente, agradeço à minha família. Aos meus avós, tias e tios, primas e
primos - nosso pouco convívio me ensinou muito sobre as realidades do Brasil. À minha avó
Maria Valda Duarte que me ensinou a escutar as histórias que não podemos ler e a recontá-las
até que a periferia se torne centro. Ao meu irmão, por pavimentar o caminho dos estudos com
seu exemplo. À minha cunhada, por me proporcionar a alegria de ser tia da Maria Eduarda.
Aos meus pais, que me ensinaram tudo o que era importante para aprender sobre todo o resto
- a ler, a escrever, a observar, a ouvir, a (des)confiar e a amar. A dedicação, a persistência, a
humildade, a disciplina, a ousadia e alegria de viver dos dois me inspira e acalenta todos os
dias. Eu poderia escrever outra tese inteira para tentar explicar a minha gratidão - sua
natureza, suas dimensões e seus impactos - mas prefiro demonstrá-la de outras formas.
Agradeço, enfim, a confiança de todos vocês que a memória não me permitiu citar.
Perante os abismos, foi a confiança de vocês em mim que criou pontes - ou me deu a
coragem de saltar - para o desconhecido. Eu sou porque vocês são.
Só quem é, sabe.
RESUMO
Introdução…………………………………………………………………………………….13
I. Confiança de profissionais de saúde em pacientes: uma revisão das literaturas teóricas e
empíricas……………………………………………………………………………………. 20
II. Relações entre trabalho e adoecimento mental na formação em Psicologia……………...22
III. O trabalho da psicoterapia e a psicoterapia do trabalho: confiança de psicólogos clínicos
em queixas de trabalho……………………………………………………………………….42
IV. Contribuições teóricas e metodológicas da Psicopatologia Clínica do Trabalho para
Psicologia…………………………………………………………………………………….69
Referências………………………………………………………………………………...…72
INTRODUÇÃO
13
profissionais frente a problemas de saúde de trabalhadores em seus locais de trabalho
(Heloani & Capitão, 2003; Ferreira, 2007; Pires, 2009; Zanelli, 2012; Coelho Lima,
Bendassoli & Yamamoto, 2014; Matsumoto & Fairman, 2014; Ferreira & Maciel, 2015).
Outro problema para a atuação é o comprometimento ético do psicólogo com a organização,
considerado um obstáculo para a atuação voltada para a promoção de saúde dos trabalhadores
(Heloani & Capitão, 2003). Saúde Mental e Saúde do Trabalhador tem se apresentado como
campos distantes na Psicologia no Brasil, tanto na teoria quanto na prática, e são associadas à
Psicologia Clínica e à Psicologia Organizacional e do Trabalho respectivamente. Dessa
forma, nesta tese optou-se por focar em psicólogos clínicos em relação a pacientes que
apresentam queixas de trabalho durante psicoterapia individual.
Atualmente no Brasil, a formação em Psicologia é proposta como generalista, mas
autores tem argumentado que há um predominante “clinicismo” que influencia no despreparo
para atuações voltadas para demandas emergentes em contextos sociais específicos, como é o
caso do trabalho, por exemplo (Zanelli, 2012). Esse debate se centra, em certa medida, nas
discussões sobre a preponderância do psíquico ou do social que perpassa diversas áreas da
Psicologia no Brasil (Bastos & Gomes, 2012), assim como a constituição do currículo de
Psicologia e o perfil do psicólogo brasileiro. Seria possível endereçar, na teoria e na prática,
dimensões psíquicas e sociais ao mesmo tempo? Seria possível para uma área da Psicologia
atuar em diferentes níveis - individuais, grupais e organizacionais?
Autores tem creditado ao “clinicismo” excessivo o enfoque individual na atuação de
psicólogos assim como uma separação entre público e privado. Contudo, Mendes (2018)
propõe em sua obra “Desejar, Falar e Trabalhar” interlocuções entre o psíquico e o social
utilizando Psicanálise lacaniana, crítica social e reflexões sobre a História do trabalho no
Brasil. Considerando a possibilidade de destinos políticos para o sofrimento psíquico, a
autora estrutura uma Clínica Psicanalítica do Trabalho inaugurando uma abordagem singular
que pode se situar na intersecção entre Psicologia Clínica e do Trabalho. Sua abordagem
parte do pressuposto de que o trabalho é tão estruturante quanto a sexualidade, especialmente
no seio do capitalismo. Porém, embora seus trabalhos anteriores sejam referência em
Psicologia do Trabalho, abordagens como a sua que propõem tais diálogos ainda são
marginais no país (Fairman, 2012; Alves, 2015).
A proposição de Mendes (2018) de que o trabalho é tão estruturante quanto a
sexualidade para a Psicanálise, referencial bastante presente na formação de psicólogos
14
brasileiros (Neufeld & Carvalho, 2017; Neufeld et al., 2018; Cury et al., 2018), nos permite
propor algumas questões de pesquisa: como psicólogos clínicos percebem as relações entre
trabalho e adoecimento mental? São profissionais capacitados para identificar essas relações?
E se sim, tratam as patologias emergentes da relação entre sujeito e trabalho no modelo
capitalista de organização do trabalho? Como? Dessa forma, propomos um olhar para os
atendimentos psicoterápicos individuais em que queixas de trabalho são apresentadas pelos
pacientes. No caso desta tese, focamos na confiança dos psicólogos clínicos nesse processo.
O conceito de confiança tem sido abordado por diversas áreas do conhecimento
como a Filosofia, Economia, Medicina e Psicologia, porém nesta tese adota-se a perspectiva
sociológica para o estudo de confiança no contexto de atenção à saúde. A confiança é vista às
vezes como algo que se dá, em outras como dinâmica triangulada entre níveis, atores e
direcionalidade. Às vezes como escolha racional de um ator, em outras como afetivamente
motivada. Entre conceitualizações distintas, alguns consensos: ela é estruturante das
sociedades, permitindo o estabelecimento de relações em contextos de incertezas,
vulnerabilidades e riscos (Mollering, 2006). Dessa forma, é importante para compreender o
estabelecimento de relações de cuidado à saúde, o engajamento dos pacientes assim como sua
satisfação com os serviços prestados (Calnan & Rowe, 2008; Pilgrim et. al, 2011; Brown &
Calnan, 2012).
Parte significativa da literatura nesse contexto utiliza o conceito para analisar
relações médico-paciente ou paciente-instituições, priorizando a confiança por parte do
paciente e negligenciando o estudo da confiança de profissionais de saúde (Rogers, 2002;
Calnan & Rowe, 2008; Wilk & Platt, 2016). As pesquisas empíricas disponíveis sobre o tema
são limitadas e geralmente focadas em médicos (Douglass & Calnan, 2016) em países
anglófonos do Norte Global (Calnan & Rowe, 2008; Thom et al., 2011). Em termos teóricos,
as pesquisas também são limitadas (Rogers, 2002; Pilgrim et al., 2011), e em “Trust Matters
for Doctors? Towards an Agenda for Research” (Douglass & Calnan, 2016), argumenta-se
que a confiança de profissionais de saúde também é relevante, uma vez que profissionais de
saúde são tanto aqueles que confiam – trusters - quanto aqueles que são confiados – trustees
(Brown & Calnan, 2016).
O referencial conceitual proposto por Douglass & Calnan (2016) supõe as relações de
confiança de médicos como um entrelaçado de várias entidades em diferentes níveis:
autoconfiança, confiança em pacientes, confiança no local de trabalho e confiança no sistema.
15
Os autores sugerem ainda pensar na confiança dos médicos como parte de correntes de
confiança (chains of trust) conforme em estudos empíricos anteriores (Gilson et al. 2015;
Brown & Calnan, 2016). Nesse sentido, o trabalho de Douglass e Calnan (2016) apresenta
proposição de um referencial conceitual preliminar para o estudo da confiança de médicos
focando na relação entre atuação e identidade profissionais e confiança, assim como no papel
da confiança no manejo das incertezas advindas da complexidade da prática médica
contemporânea.
Ressalta-se aqui, novamente, que as pesquisas focam na confiança de médicos no
Norte Global, sendo o estudo de confiança de psicólogos no Brasil um estudo inédito que
demanda reflexões sobre o profissionalismo, especificidades epistêmicas da Psicologia,
especificidades regulatórias da profissão de psicólogo e características das relações de
trabalho no Brasil. Resumindo, devemos considerar que as formações e exercícios da
Psicologia enquanto profissão são especificidades a serem examinadas detalhadamente
quando se propõe o estudo da confiança de psicólogos clínicos. Destaca-se aqui além das
peculiaridades regionais que designam as relações de trabalho, o entendimento legal e teórico
de relações entre trabalho e doença e a regulação de Psicologia enquanto prática profissional
no Brasil como fatores a serem considerados.
Em linhas gerais, propõe-se nesta tese um modelo de confiança de psicólogos clínicos
no atendimento a queixas de trabalho no Brasil. O termo “modelo de confiança” é referido
em pesquisa realizada por Ward et al. ( 2015) onde investigou-se a natureza e as razões
(“nature and reasoning”, p. 1) da (des)confiança de pacientes usuários de sistema público e
privado de saúde na Austrália. Dessa forma, pode-se dizer que um modelo de confiança
pressupõe antecedentes de diversos tipos assim como a expressão da confiança na relação. O
diagrama a seguir ilustra a proposta teórica para a construção desta tese listando tópicos
relevantes a serem estudados assim como disciplinas a eles associadas:
16
Fonte: Elaborada pela autora
17
de três estudos independentes mas complementares que atendem a diferentes objetivos
específicos desta tese ao articular os eixos teóricos e empíricos essenciais para responder às
questões de pesquisa. Assim, além desta introdução geral sobre o objeto a ser investigado, os
três estudos serão apresentados separadamente.
O primeiro é apresentado em resumo estendido. O segundo e o terceiro estudos são
apresentados em formato de artigo científico e contém introdução, método, resultados,
discussão e conclusão próprios. Ao final, apresenta-se a conclusão da tese em que os achados
dos três estudos são analisados de forma compreensiva para delinear as contribuições deste
estudo para a proposta de uma Psicopatologia Clínica do Trabalho enquanto teoria e prática.
Vale ainda destacar que os estudos que compõem esta tese receberão contribuições de
co-autores posteriormente à defesa de tese e serão submetidos a periódicos científicos para
publicação, sendo este documento de tese um ponto de partida para inauguração de uma linha
de pesquisa e agenda para futuros estudos.
O primeiro estudo “Healthcare professionals’ trust in patients: a review of the
empirical and theoretical literatures”, é apresentado resumidamente em português em
razão de já ter sido encaminhado para publicação em coautoria com os orientadores brasileiro
e estrangeiro. O estudo foi escrito em língua inglesa e submetido à revista Sociology
Compass em dezembro de 2019. O estudo apresenta revisão de literatura sobre a confiança de
profissionais de saúde em pacientes com objetivo de identificar contribuições de estudos
teóricos e empíricos sobre o tema.
O segundo estudo “Relações entre trabalho e adoecimento mental na formação
em Psicologia” consistiu em estudo documental sobre as relações entre trabalho e
adoecimento mental na formação em Psicologia e analisou as proposições curriculares de
cursos públicos e privados de graduação em Psicologia no Distrito Federal com objetivo de
averiguar como a temática das relações entre trabalho e adoecimento mental vem sendo
contemplada nas propostas de curso de Psicologia.
O terceiro estudo “O trabalho da psicoterapia e a psicoterapia do trabalho:
confiança de psicólogos clínicos no tratamento de queixas de trabalho”, também
qualitativo e transversal, analisou o atendimento psicoterápico individual a queixas de
trabalho a partir de entrevistas individuais com psicólogos e pacientes com o objetivo de
caracterizar o modelo de confiança no trabalho clínico de psicólogos nesses casos,
descrevendo antecedentes, níveis e consequências da confiança.
18
Como mencionado anteriormente, pesquisas sobre confiança por parte de psicólogos
não foram identificadas, assim como sobre o trabalho clínico individual com pacientes com
queixas de trabalho a partir da perspectiva de ambas partes. Considerando essas lacunas
teóricas e empíricas, espera-se que os três estudos apresentados contribuam para os estudos:
1) em confiança; 2) da prática profissional em Psicologia Clínica; e 3) das relações entre
trabalho e do adoecimento mental na Psicologia Organizacional e do Trabalho. Assim, esta
tese se destina a psicólogos, futuros psicólogos e estudiosos de confiança em contextos de
atenção à saúde e das relações trabalho-saúde/doença mental. Espera-se que sua leitura possa
esclarecer aspectos da relação psicoterápica em questões relacionadas ao trabalho e também
fomentar debates interdisciplinares.
19
I. CONFIANÇA DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE EM PACIENTES:
UMA REVISÃO DAS LITERATURAS EMPÍRICA E TEÓRICA
20
dinâmicas conflituais; e “confiança post-hoc” - desdobramentos de dinâmicas relacionais que
modelam vulnerabilidades e incertezas. Incertezas e vulnerabilidades nesse contexto podem
ser compreendidas a partir de entendimentos de sistema e mundos da vida - lifeworlds. O
estudo concluiu que a confiança de profissionais de saúde ainda é negligenciada nos estudos
empíricos sobre confiança, embora os estudos teóricos tenham enfatizado a importância de
considerar profissionais de saúde também como aqueles que confiam.
Propõe-se que no futuro estudos teóricos reflitam a conceitualização da confiança dos
profissionais de saúde e que estudos empíricos, além de se debruçarem sobre a confiança dos
profissionais de saúde, também considerem incertezas e vulnerabilidades que emergem da
prática profissional de cuidados à saúde. Também propõe-se que a confiança em sistemas é
fundamental para compreender não só a confiança de pacientes em profissionais de saúde,
mas também a de profissionais de saúde em pacientes uma vez que os sistemas abstratos nos
quais os pacientes estão inseridos - legais, profissionais, organizacionais e éticos - também
explicam como as incertezas e vulnerabilidades da prática médica se desenvolvem no
trabalho cotidiano.
21
II. RELAÇÕES ENTRE TRABALHO E ADOECIMENTO MENTAL
NA FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA
22
caráter paliativo continuam característica da maioria das abordagens de saúde mental
relacionada ao trabalho da Psicologia (Fairman, 2012).
23
desse tipo de doença com o trabalho, no entanto, permanece um desafio desde então. A
legislação concernente a essa relação e suas implicações para a vida dos trabalhadores, para
as empresas e para o Estado no Brasil partem do pressuposto do reconhecimento das relações
entre trabalho e doença. Dessa forma, ainda que diante de impasses ontológicos,
epistemológicos e técnicos, há uma demanda legal de reconhecimento das relações entre
trabalho e doença que é imposta pelo Estado brasileiro para trabalhadores, empresários e
profissionais de saúde responsáveis pelo diagnóstico dessa condição (Jacques, 2007).
24
Psicologia e adoecimento mental relacionado ao trabalho
25
2012) ainda pode ser considerada marginal. A Psicodinâmica do Trabalho enquanto
abordagem teórica-metodológica advinda da França, e desenvolvida por Christophe Dejours,
teve grande projeção no Brasil na década de 90 e nos anos 2000. No Brasil, seu expoente é
Mendes (2007) com seus estudos com diversas categorias profissionais no Brasil, além do
desenvolvimento de um método de clínica do trabalho (Mendes & Araújo, 2011; Fairman,
2012; Deusdedit Junior, 2014; Alves, 2015). Entretanto, embora alguns estudos de Mendes e
colegas tenham abordado as relações entre trabalho e adoecimento, a Psicodinâmica do
Trabalho na tradição dejouriana foca na normalidade em detrimento do adoecimento (Merlo e
Mendes, 2009; Alves, 2015).
26
Psicologia do Trabalho e relações Trabalho-Saúde durante os anos de graduação, as horas
limitadas de cursos oferecidos e a fragmentação da Psicologia em subáreas (Coelho Lima,
Bendassoli & Yamamoto, 2014). Coelho Lima, Bendassoli e Yamamoto (2014) também
afirmam que a performance dos psicólogos frente a questões de saúde mental e trabalho são
prejudicadas pelo o que os autores consideram falhas na estrutura curricular dos cursos
universitários em Psicologia.
27
Oliveira & Destro, 2005) que designam relações hegemônicas com expectativas sobre o perfil
do futuro psicólogo e seus objetivos, a investigação da formação por meio da análise dos
currículos permite acesso a projetos ético-políticos gerais e específicos – ou a falta deles –
que fundamentam a formação de profissionais de uma área.
MÉTODO
No ano da coleta dos dados deste estudo (2018), haviam 11 cursos de Psicologia
autorizados e seis autorizados e reconhecidos pelo MEC no Distrito Federal. Os cursos
começaram a ser autorizados em 1963 e o mais recente foi autorizado em 2017. Com relação
ao reconhecimento, as graduações começaram a ser reconhecidas em 1974. O último
reconhecimento de curso aconteceu em 2016. Neste trabalho, optamos por incluir apenas
cursos autorizados e reconhecidos pelo MEC para coleta de dados. O número de vagas anuais
oferecidas por esses variaram entre 48 e 500, com média de 320 vagas. Os conceitos do
28
Enade - Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes - variaram entre 3 e 5 (nota
máxima). Apenas um dos cursos atingiu nota máxima. Desses cursos, foram acessados PPC
de três cursos e matrizes curriculares e ementas de quatro cursos. Agrupamos, a partir de
agora, os dados referentes a cada curso como IES1, IES2, IES3 e IES4. A tabela a seguir
indica a disponibilidade de documentos de cada uma das IES.
IES PPC MC ED
IES 1 • • •
IES 2 • • •
IES 3 • • •
IES 4 • •
Procedimentos
29
Análise
Conforme em Silva e Yamamoto (2013), o PPC foi classificado em três blocos no que
concerne relações entre trabalho e adoecimento mental na formação em Psicologia: 1)
fundamentos teóricos, filosóficos e pedagógicos, analisados a partir do perfil do egresso, do
processo formativo, das competências e habilidades; 2) ênfases curriculares e disciplinas –
quais ênfases estão presentes no curso e quais disciplinas; e 3) prática profissional a partir da
determinação de estágios básicos e específicos. Para realizar a classificação, primeiro
realizou-se a leitura integral dos PPC disponíveis. Em seguida, definiu-se descritores a partir
da literatura na área para identificar, ao longo do texto, temas vinculados às relações entre
trabalho e adoecimento mental - trabalho, trabalhador, psicopatologia do trabalho, bem estar
no trabalho, qualidade de vida no trabalho, saúde mental do trabalhador, saúde mental no
trabalho, doença profissional e doença ocupacional.
Pela marcação dos descritores nos três blocos do texto, essa etapa sintetizou cada
bloco caracterizando a abordagem das relações trabalho-adoecimento mental desde os
fundamentos do curso até a prática profissional. Em termos de disciplinas, foram incluídas,
como resultado desse processo, 28 disciplinas de quatro IES que apresentaram descritores
relacionados ao tema investigado na MC, na ED ou em ambas. Após leitura das ementas,
foram excluídas da análise disciplinas que não abordaram o tema investigado, restando seis
disciplinas e dois estágios de quatro IES. Foram então identificadas características das
disciplinas como posição no fluxo de formação, obrigatoriedade e se faziam parte do núcleo
central ou de ênfase específica. Os dados foram agrupados por instituição (IES) para
possibilitar comparações.
RESULTADOS
30
dessa forma, três instituições são citadas ao invés de quatro. A tabela seguinte indica a
tópicos que continham um ou mais dos descritores determinados para análise.
IES 1 •
IES 2 • • • •
IES 3 • • •
IES 4 •
Menções às relações entre trabalho e adoecimento (ou saúde) mental não foram
identificados no perfil do egresso de nenhuma das instituições. O perfil do egresso das
instituições pesquisadas foi composto pelo ideário do profissional polivalente, capaz de atuar
com populações diferentes em contextos diversos a partir de conhecimentos
31
teóricos-metodológicos adquiridos na graduação, sem especificação de abordagens teóricas
ou contextos. O egresso também foi descrito em duas das IES como “profissional
empreendedor”, “humanizado” (IES3), dotado de “responsabilidade social” (IES2),
“compromisso humanista”, “valores humanos”, “valores cristãos” (IES3) e “sensibilidade”
(IES2 e 3). Os perfis do egresso nas IES1, 2 e 3 também descreveram um psicólogo com um
olhar crítico aliado à uma postura ética na aplicação de conhecimentos teórico-metodológicos
para questões sociais, econômicas, culturais e políticas do país, considerando o fenômeno
psicológico como biopsicossocial.
32
Apesar dessa diferença, assim como nas IES 1 e 3, o processo formativo das
instituições pesquisadas foi proposto com o objetivo de criar as competências e habilidades
indicadas nas DCN pela integração entre teoria e prática como núcleo comum a todos os
psicólogos, propondo aproximações entre o mundo acadêmico e a comunidade em projetos
de estágio (IES1, IES2 e IES3), projetos de extensão e projetos de pesquisa (IES1 e IES2).
Outra característica comum entre as instituições foi a proposição de uma formação axiológica
e generalista visando superar a fragmentação histórica no ensino da Psicologia, integrando
campos do saber pela possibilidade de mobilidade entre departamentos de diferentes áreas do
saber durante a formação. Além disso, todas as IES indicaram a possibilidade de formação
33
equipe, compreensão da interação entre as dimensões biológica, psíquica e social no
fenômeno psicológico, capacidade de atuar em níveis individuais e coletivos, a busca por
educação permanente. No caso da educação permanente, a IES3 ressaltou que deve ser
buscada tendo em vista as demandas do mercado.
2. A
doecimento relacionado ao trabalho em ênfases curriculares e disciplinas
Na IES2, uma das três ênfases abordou temas de saúde do trabalhador: “Gestão,
Formação e Promoção da Saúde”. A ênfase foi proposta com objetivo de ampliar
possibilidades de atuação profissional em Psicologia a partir de uma formação que ofereça
conteúdos que viabilizem ao futuro psicólogo conhecimentos teóricos e metodológicos e
visão crítica. Mais precisamente, menções a atuação em saúde do trabalhador foram feitas.
Na IES3, uma das duas ênfases oferecidas, “Processos de Desenvolvimento e Promoção
Humana”, também citou saúde do trabalhador no eixo “Interfaces com Campos Afins do
Conhecimento”, mas sem informações adicionais.
34
Psicopatologia 1 4 60h Comu Obrigatóri -
m a
Em apenas uma das instituições (IES1) relações entre trabalho e adoecimento mental
foram identificadas como tema de uma disciplina, Psicopatologia 1 - associada à área da
Psicologia Clínica na IES. Na ementa da disciplina, o objetivo geral da matéria foi fornecer
uma visão crítica dos conceitos de normal e patológico e citou a psicopatologia do trabalho
como um tema dentro da última unidade da disciplina, “Doença Mental e Sociedade”. Outros
temas presentes na unidade foram as relações entre doença mental e contexto social assim
como antipsiquiatria e movimentos alternativos à Psiquiatria. Apesar da abordagem do tema,
não foi identificado referencial teórico ou bibliografia específica relacionada ao tópico. Em
todas as outras disciplinas identificadas, inclusive na própria IES1 (Psicologia do Trabalho),
as disciplinas estavam associadas à Psicologia Organizacional ou do Trabalho e seguiram a
tendência a abordar “saúde mental do trabalhador” e “saúde mental e trabalho” utilizando
predominantemente a Psicodinâmica do Trabalho (n=4 ) como referencial teórico. Outros
35
referenciais foram Qualidade de Vida no Trabalho (n=2), Desgaste Mental no Trabalho (n=1)
e Estresse Ocupacional (n=1), com preferência pelo uso de trabalho de pesquisadores
brasileiros ou franceses como referência.
3. P
rática profissional e adoecimento mental relacionado ao trabalho
Todas as IES propõem o início precoce da prática por meio de estágios básicos que
incluem visitas a locais de trabalho de psicólogos e diálogos com esses profissionais,
36
evidenciando relações entre processo formativo e futuro profissional, mas não foram
identificados os descritores pré-definidos nos estágios básicos de nenhuma das instituições.
DISCUSSÃO
Os resultados deste estudo indicaram a negligência das relações entre adoecimento
mental e trabalho na formação em Psicologia. As disciplinas identificadas abordaram
prioritariamente “saúde mental do trabalhador” com duração prevista de 60 a 90 horas, o que
constituiria entre 1,5% e 2,25% da carga horária mínima de 4000 horas de um curso de
Psicologia. Observou-se ainda que nem todos esses cursos são integralmente sobre
saúde/doença mental e trabalho. Uma tendência similar foi encontrada em outros dois
estudos: um com psicólogos organizacionais que atuavam em empresas e se queixaram da
insuficiência do tema durante a formação (Pires, 2009) e um sobre a produção acadêmica em
Psicologia do Trabalho, subdisciplina da Psicologia a qual geralmente se atribui o interesse
em saúde e doença mental no trabalho (Oliveira, Silva & Sticca, 2018). O volume de estudos
37
produzidos foi considerado pouco expressivo, representando 4,24% de toda a produção
acadêmica em Psicologia. Desta quantia, pouco mais da metade se voltou para investigações
em saúde do trabalhador, o que representaria 2,20% da produção acadêmica.
Também foi identificada tendência à eufemização de aspectos psicopatologizantes do
trabalho. Essa característica pode estar relacionado à predominância da Psicodinâmica do
Trabalho como referencial teórico - que enfatiza a normalidade como seu objeto de estudo
(Dejours, 1992) - e à apropriação do tema pela Psicologia Organizacional. Vieira (2014)
discute o uso de aspectos discursivos eufemísticos no seio da “sedução organizacional” e seus
efeitos de ocultação de violência, sofrimento e adoecimento no trabalho. Como exemplo, o
autor refere os programas de Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) - referencial presente em
duas IES - como símbolo da sedução organizacional em que a promoção de tal qualidade
geralmente não envolve debates sobre configurações de trabalho nas empresas ou no mundo
do trabalho contemporâneo. Nesse sentido, o “estresse do trabalho” é naturalizado ou
ignorado, e lidar com ele e promover qualidade de vida se tornam tarefas individuais
apartadas de seu contexto - o trabalho, o que pode levar à desqualificação do adoecimento
mental relacionado ao trabalho como problema de saúde pública.
A partir de uma perspectiva interacionista que entende a saúde mental como relação
entre ser humano, ambiente e trabalho e como possível campo de atuação profissional para o
psicólogo, os cursos propuseram formar psicólogos capazes de “diagnosticar” e “intervir” na
“promoção e prevenção de saúde mental do trabalhador”, focando em competências
conforme preconizado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (2004). A tendência quando da
definição das atribuições do psicólogo como prevenção e promoção de saúde mental do
trabalhador remetem a características específicas da Saúde Ocupacional que, alicerçada na
Medicina Preventiva e enunciada pela OIT/OMS, enfoca riscos, prevenção, proteção e
adaptação como fundamentos para intervir na saúde dos trabalhadores (Mendes, 1980). Nesse
sentido, o que vem se nomeando como práticas em Saúde do Trabalhador, principalmente nas
IES 3 e 4, se alinha mais à perspectiva da Saúde Ocupacional (Lacaz, 2007). Por outro lado,
a demanda por um profissional crítico e atento para a diversidade de contextos assim como
condições sociais, políticas e econômicas pode ser relacionada à perspectiva histórica da
Saúde do Trabalhador enquanto campo multidisciplinar (Minayo-Gomez & Thedim-Costa,
1997; 2003).
38
Nas ementas das disciplinas, majoritariamente vinculadas ao campo da Psicologia
Organizacional e da Psicologia do Trabalho, predominaram aspectos já reconhecidos na
literatura na abordagem da saúde mental do trabalhador no Brasil na Psicologia enquanto
campo do conhecimento: ausência de menções ao adoecimento ou aspectos psicopatológicos
do trabalho (Fairman, 2012); preferência pelo uso de referências brasileiras e francesas
(Oliveira, Silva & Sticca, 2018); visão histórica e contextualizada do trabalho x visão
a-histórica remetendo aos antagonismos entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ocupacional
(Seligmann-Silva et al., 2011); e multiplicidade de referenciais teóricos multidisciplinares
como Psicodinâmica do Trabalho, Qualidade de Vida no Trabalho e Teoria do Estresse
Ocupacional (Alves, 2015). Dessa forma, pode-se dizer que a abordagem teórica proposta à
saúde mental do trabalhador nos cursos de graduação em Psicologia no DF é marginal,
predominantemente realizada no campo da Psicologia Organizacional e do Trabalho, apartada
da Psicologia Clínica e marcada por divergências.
Por fim, apesar do foco em formação de competências e habilidades, quando
analisamos o Eixo 3, apenas uma IES ofereceu possibilidades em seu currículo de prática
profissional em formato de estágio supervisionado, o que sugere desconexão entre teoria e
prática nos temas de saúde/doença e trabalho durante a graduação em Psicologia. Em geral, a
desconexão entre teoria e prática também aparece em outros estudos sobre formação (Pires,
2009). Hipotetiza-se que no caso da saúde/doença mental do trabalhador o distanciamento
entre teoria e prática, entre academia e comunidade, pode ser atribuído a impasses teóricos,
ou seja, à abordagem da Psicologia às relações trabalho-saúde/doença. A diversidade de
referenciais teóricos além de fragmentar uma temática restrita a menos de 3% de toda a
formação em Psicologia, ainda revela tensões epistemológicas frutos das rupturas dentro do
campo da Saúde do Trabalhador no Brasil e na França nos anos 70 e 80 (Deusdedit Junior,
2014; Alves, 2015). Em sua raiz, a abordagem à saúde ou ao adoecimento mental do
trabalhador na Psicologia, com exceções, tem se aproximado mais do caráter higienista de
processo saúde/doença da Saúde Ocupacional, havendo poucas considerações históricas do
trabalho como categoria perpassada por relações econômicas, sociais, políticas e tecnológicas
para compreender o processo saúde/doença. O diagrama abaixo ilustra as relações entre
antecedentes históricos, formação e atuação sobre as relações entre trabalho e adoecimento
mental.
39
Figura 2: Relações entre antecedentes históricos e epistemológicos, formação e atuação em adoecimento mental
e trabalho
Deve-se considerar que a regionalidade do estudo pode ter interferido nos resultados
por questões 1) sociodemográficas - grande oferta de empregos públicos e pouca
expressividade do setor de indústrias no Distrito Federal; 2) institucionais - presença de
grupos de pesquisa de projeção nacional tanto em Psicodinâmica do Trabalho quanto em
Qualidade de Vida no Trabalho; e 3) éticas - impossibilidade de comparação entre IES
públicas e privadas em função da presença de apenas uma IES pública, o que poderia
identificar outras IES. Tendo em conta os resultados do estudo e contemplando também suas
limitações, sugere-se que estudos incluindo instituições de todo o Brasil sejam realizados,
assim como pesquisas com recém-formados e psicólogos atuando em diversas áreas para
consultá-los sobre adoecimento mental e trabalho em suas formações.
CONCLUSÃO
40
Com o objetivo de estudar a presença do adoecimento mental relacionado ao trabalho
na formação em Psicologia no Distrito Federal, o presente estudo constatou a escassez de
discussões sobre aspectos psicopatológicos do trabalho, a preferência pela saúde mental do
trabalhador ao invés da psicopatologia do trabalho enquanto objeto de estudo e dificuldades
na integração entre teoria e prática na formação em Psicologia. Esses refletem rupturas
epistemológicas que são moldadas e moldam o contexto social, histórico, político e
econômico no qual se inserem. Fruto dessas rupturas, dentro das diversas abordagens à saúde
mental do trabalhador preferidas pela Psicologia Organizacional e do Trabalho no Brasil, há
mais aproximações do caráter higienista da Saúde Ocupacional que da perspectiva crítica da
Saúde do Trabalhador, especialmente no que diz respeito à perspectiva de atuação
profissional de psicólogos na área conforme determinado pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais.
Repensar a predominância da saúde em detrimento do adoecimento mental na
Psicologia assim como a ausência de conceitualização da “saúde mental do trabalhador” é
preciso para dirimir incoerências e inconsistências éticas, teóricas e metodológicas que
refletem na formação e atuação dos psicólogos brasileiros. Os frutos dessa reflexão podem
dar emergência a modelos teóricos de fato locais e que façam frente a teorias importadas que,
considerando o Brasil um país periférico e tendo se estruturado em países que se
beneficiaram da exploração dos recursos de colônias e do tráfico humano com fins de
escravização para seu desenvolvimento, desconsideram problemas fundamentais como a
escravidão, o colonialismo e o imperialismo na estruturação das relações de trabalho no
Brasil assim como seus impactos.
41
III. O TRABALHO DA PSICOTERAPIA E A PSICOTERAPIA DO TRABALHO:
CONFIANÇA DE PSICÓLOGOS CLÍNICOS NO TRATAMENTO DE
QUEIXAS DE TRABALHO
42
queixas de trabalho. Para isso, caracteriza o trabalho clínico de psicólogos nesses casos,
descrevendo antecedentes, natureza, níveis e consequências da confiança na relação
psicoterapêutica. Confiança é fundamental no estabelecimento de boas relações entre
psicólogos e pacientes assim como de resultados benéficos para pacientes (Rogers, 2002;
Calnan & Rowe, 2008; Pilgrim et al., 2011) e para a identidade profissional desses
profissionais de saúde (Douglass & Calnan, 2016). Embora a natureza de mutualidade e
reciprocidade da confiança seja enfatizada em diversos estudos, a literatura em confiança em
contextos de atenção à saúde tem focado na perspectiva de pacientes, considerando os
profissionais apenas como receptores de confiança (Brown & Calnan, 2016). Entretanto,
ainda que negligenciada conceitualmente em estudos empíricos, diversos trabalhos teóricos
enfatizam a necessidade de desenvolver compreensões sobre a confiança de profissionais de
saúde.
43
vulnerabilidades vinculadas às práticas médicas contemporâneas podem ser contextuais ou
emergir a partir da dinâmica que emerge no encontro profissional-paciente.
Ainda de acordo com Duarte, Brown & Mendes (s.d.), as incertezas e
vulnerabilidades contextuais incluem respectivamente condições médico-legais e
sociopolíticas e as novas dinâmicas relacionais entre profissionais de saúde e pacientes em
que a comunicação é centrada no paciente. As incertezas e vulnerabilidades relacionais
compreendem as novas expectativas sobre papéis de profissionais de saúde e pacientes assim
como consequências médico-legais, sociopolíticas e individuais das ações de cuidado. Nesse
processo, a (des)confiança é central, determina e é determinada pelas várias formas de
vulnerabilidade e incerteza. A confiança emerge quando há aceitação dessas vulnerabilidades
e incertezas - essas, quando não assumidas ou impostas por quebras de confiança, levam à
desconfiança. A figura abaixo sumariza esse processo:
44
Tendo em vista a emergência das vulnerabilidades e incertezas não só nas relações
interpessoais mas também nas condições contextuais que moldam as práticas profissionais, a
revisão de literatura também ressaltou que a compreensão da confiança em sistemas -
profissionais, éticos, organizacionais, legais - é relevante para entender os processos de
confiança de profissionais de saúde em pacientes, especialmente no caso de pacientes em
condições estigmatizadas.
45
confiança de criar pontes entre micro e macro nível (Lewis & Weigert, 1985). A distinção
entre esses dois tipos de confiança aparece primeiro no trabalho de Simmel (1950), que
influencia posteriormente Luhmann (1979) e Giddens (1990) em seus desenvolvimentos
sistemáticos do conceito de confiança (Lane & Bachmann, 1998; Mollering, 2001). Neste
estudo, optamos por privilegiar os trabalhos desses dois autores para conceitualizar confiança
em sistemas e suas relações com a confiança pessoal em termos mais abrangentes.
Frente à complexidade da sociedade moderna, a confiança interpessoal se torna
insuficiente (Jalava, 2006) e formas impessoais de confiança se fazem necessárias como
extensões da confiança pessoal - baseada na familiaridade da vida cotidiana, uma vez que
confiança não tem como principal fim atestar a legitimidade de fatos ou se preocupa com uma
verdade essencial, mas sim com a redução da complexidade pelo manejo de incertezas
(Luhmann, 1979). Assim, a distinção comum entre confiança pessoal e impessoal está não só
na diferenciação entre sistema e indivíduo (Douglass & Calnan, 2016) como também na
complexidade social e na (im)possibilidade de familiaridade.
Nesse sentido, a confiança pessoal serve para lidar com a incerteza suscitada pela
imprevisibilidade das ações dos outros e, ao se basear na familiaridade, é limitada conforme a
complexidade social cresce, precisando ser estendida. Como resultado, temos a confiança em
sistemas em que se arrisca conscientemente a renúncia a outras informações possíveis, o que
implica em uma forma precavida de indiferença assim como controle contínuo dos resultados
(Luhmann, 1979, p.76). Essa confiança se refere a uma espécie de convicção (confidence)
em uma entidade abstrata (Luhmann, 1988). Consequentemente, a mudança da confiança
interpessoal para a confiança em sistemas implica também uma mudança nas bases da
confiança - de primariamente emocional para baseada em performance.
Ainda de acordo com Luhmann (1979), a confiança em sistemas se constrói e se
mantém através de experiências positivas com o sistema por seu caráter difuso baseado em
impessoalidade que possibilitam generalizações que sustentam e são sustentadas pela
indiferença precavida citada anteriormente: the person trusting knows he is unable to make
corrections; he then feels himself exposed to unforeseeable circumstances, but nevertheless
has to continue trusting as though under compulsion to do so” (p.55). Assim, a confiança em
sistemas cria uma espécie de certeza equivalente que permite generalização que descarta a
necessidade de antecipar situações específicas e não se aplica apenas a sistemas sociais mas
46
também a pessoas, uma vez que também se trata, em sua base racional, da suposição de que
todos os outros também confiam no sistema.
O contato do indivíduo com o sistema, no entanto, ocorre pelo contato com as
performances de representantes do sistema - experts que personificam o sistema e por ele são
personificados. Para Giddens (1990), esses representantes se tornam “pontos de acesso” que
fazem face à confiança sem face (“faceless”) que é a confiança em sistemas, dessa forma,
indivíduos trabalham a favor da manutenção do sistema pelo controle de suas performances
enquanto outra parte dos indivíduos aceita o sistema a partir do contato com essas
performances. No caso de profissionais de saúde, esses representam seus respectivos sistemas
- Medicina, Enfermagem, Psicologia - dando face a esses e outros sistemas abstratos aos
quais estão conectados. Para Hall et al. (2002), a falta de confiança em sistemas
impossibilitaria a prática da Medicina Moderna, por exemplo, uma vez que através de
mecanismos sociais e institucionais como registros profissionais e regulações se estabelecem
as condições para que um médico desconhecido seja confiável, pela suposição de que ele faz
parte desse sistema e opera de acordo com ele.
Embora Luhmann (1988) e Giddens (1990) difiram na interpretação do papel dos
indivíduos no estabelecimento da relação entre confiança pessoal e impessoal, é consenso em
suas obras que a confiança interpessoal e a confiança em sistemas se relacionam e se
influenciam (Mollering, 2006; Douglass & Calnan, 2016; Brown & Calnan, 2016). Além
disso, a distinção entre confiança interpessoal e em sistema permite o reconhecimento de
interesses e implicação social e moral dos indivíduos (Mollering, 2006). Ao considerar a
confiança em sistemas, consideramos o contexto em que se desenvolvem as relações entre
indivíduos e, no caso da atenção à saúde, isso inclui compreender as bases e o funcionamento
de sistemas de atenção à saúde, como são regulados e quais seus pressupostos epistêmicos
(Douglass & Calnan, 2016).
Aqui favorecemos o estudo dos alicerces da confiança - natureza, níveis, relações
entre os níveis - na compreensão de um modelo de confiança ao invés de focar apenas em
suas consequências. Nesse sentido, tanto a visão de trabalho quanto a de adoecimento mental
em suas dimensões históricas, sociais, políticas e econômicas para a Psicologia devem ser
consideradas para compreender a dinâmica da relação entre profissionais de saúde e
trabalhadores acometidos por adoecimento mental. Mais explicitamente, isso se refere aos
pressupostos epistêmicos da Psicologia sobre as relações entre trabalho e doença mental, as
47
condições regulatórias para a prática profissional em Psicologia no país e como a confiança
de sistemas e a confiança interpessoal se relacionam na relação psicólogo-paciente.
48
Os psicólogos brasileiros estão inseridos majoritariamente em contextos clínicos de
consultórios ou clínicas privados desde a regulamentação da profissão de psicólogo nos anos
60, mesmo com a emergência de novas possibilidades de atuação profissional para psicólogos
em contextos vinculados à Saúde Pública nos anos 80 (Bessa, 1992; Chaves, 1992; Bastos &
Gomide, 1989; Bastos, Gondim & Borges-Andrade, 2010; Lhuilier & Roslindo, 2013). Os
emergentes campos de atuação na Saúde Pública geraram debates sobre a pertinência das
teorias e modelos da Psicologia para atender às demandas da sociedade brasileira. Críticas ao
caráter excludente da teoria e prática da Psicologia emergiram, apontando o caráter
excludente e elitista de práticas psicológicas baseadas em modelos teóricos europeus e
norte-americanos que desconsideravam aspectos sociais brasileiros (Bastos et. al, 2010).
No entanto, o foco no desenvolvimento de competências para trabalhar em Psicologia
Clínica e avaliação psicológica permanecem nos cursos de Psicologia, assim como a
predominância de abordagens psicanalíticas, humanistas e sistêmicas - com destaque para a
Psicanálise, como em outros países da América Latina (Neufeld & Carvalho, 2017; Neufeld
et al., 2018). A esse “clinicismo” na formação que gera tendência de atuação profissional em
um “modelo clínico liberal privatista” caracterizado pela psicoterapia individual de
abordagem psicanalítica (Cury et al., 2018) é atribuída a dificuldade para atuação de
psicólogos fora de contextos clínicos, em níveis de grupos e organizações e no
reconhecimento de relações entre trabalho e saúde mental (Costa, Amorim & Costa, 2010;
Zanelli, 2012). Neste sentido, o presente estudo tem o objetivo de investigar o modelo de
confiança de psicólogos clínicos no atendimento psicoterápico individual de queixas de
trabalho através da descrição da atuação dos psicólogos por eles mesmos e por pacientes.
MÉTODO
Participantes
Foram entrevistadas sete psicólogas e sete pacientes individualmente. As pacientes
foram indicadas pelas psicólogas entrevistadas ou por outros psicólogos que não concederam
entrevista mas tiveram acesso à divulgação da pesquisa. Como critérios de inclusão para
psicólogos foram considerados: atuação em psicoterapia com adultos há pelo menos 1 ano;
formação há no máximo 10 anos; formação e atuação no Distrito Federal; identificação de
queixas relacionadas ao trabalho em psicoterapia. O critério de inclusão para pacientes foi
49
afastamento do trabalho por motivos de saúde, acidente de trabalho ou queixas sobre o
trabalho levadas para a psicoterapia.
Psicólogas
Pacientes
Todas as sete pacientes eram do sexo feminino, com idade média de 29 anos e em sua
maioria, casadas ou em união estável (n=4) e sem filhos (n=7). Todas tinham pelo menos
nível superior de escolaridade. No momento da pesquisa estavam empregadas em ocupações
diversas (professoras, psicólogas, assistentes administrativas, servidoras públicas em cargos
administrativos) nos setores públicos e privados e tinham em média oito anos de trabalho. Em
termos de motivos para buscar psicoterapia, o grupo se dividiu em dois: questões pessoais
(n=4) e questões de trabalho (n=3) . A maioria ainda estava em tratamento (n=5), todas com
profissionais de abordagem psicanalítica. Para as queixas relacionadas ao trabalho, duas
pacientes afirmaram também terem realizado acompanhamento com psicólogos de
abordagem Cognitivo-Comportamental. Algumas pacientes ainda relataram experiências com
50
psicólogos de outras abordagens (Terapia Cognitivo-Comportamental, Gestalt-terapia e
Psicodrama) antes do tratamento atual.
Instrumentos
Procedimentos
Análise
51
descritivos, para inferir conhecimentos a partir das mensagens – neste caso, as entrevistas.
Conforme indicado por Bardin, é importante manter “vigilância crítica” neste processo. As
seguintes fases devem estar presentes na organização da análise: pré-análise; exploração do
material; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Na fase da pré-análise
organizou-se os dados para constituir o corpus da pesquisa. O corpus, segundo Bardin (1977)
é o conjunto de documentos considerados para os procedimentos analíticos posteriores. Nessa
fase realizou-se a leitura flutuante, a escolha dos documentos, a preparação do material e a
referenciação dos índices junto com a elaboração de indicadores. Assim, os resultados brutos,
as transcrições, foram tratados para que se tornassem registros significativos e válidos.
Constituído o corpus, partiu-se para a exploração do material, fase onde
estabeleceu-se unidades de registro e unidades de contexto a partir do corpus. As unidades de
registro são o menor recorte de ordem semântica do texto – palavras-chave, tema, objetos – e
as unidades de contexto compreendem as unidades de registro. A realização adequada da
pré-análise permite que essa fase se torne um momento de administrar sistematicamente as
decisões realizadas na fase anterior. A partir da codificação pode-se realizar análise
quantitativa ou qualitativa. Neste estudo optou-se pela análise qualitativa dos conteúdos
codificados para identificar as categorias, processo de redução de dados a partir de critérios
específicos. Classificando por semelhança e analogia entre as unidades de registro, o critério
utilizado para a categorização dos dados desta pesquisa foi o semântico, que originou as
categorias temáticas. As qualidades de uma categoria adequada são exclusividade,
homogeneidade, pertinência, objetividade e fidelidade e produtividade. Na fase do tratamento
dos resultados, a inferência e a interpretação sistematizaram os resultados obtidos com os
objetivos iniciais, relacionando a interpretação com o corpus existente.
RESULTADOS
52
descrições dos resultados de pacientes e psicólogas em um mesmo tópico, destacando
diferenças e apontando similaridades.
53
Pós-graduações lato e stricto sensu t ambém constituíram parte da educação formal.
Nesse sentido, o mestrado acadêmico em universidade pública se tornou uma possibilidade
acessível frente às pós-graduações privadas para estender a educação formal. As respondentes
relatam pouca ou nenhuma abordagem às relações entre trabalho e adoecimento mental na
educação formal em Psicologia, tendo tido contato com reflexões sobre trabalho e outros
aspectos sociais a partir de leituras em Sociologia, Antropologia e Filosofia que ocorreram
dentro ou fora do contexto formal da universidade. A maioria das respondentes critica a
hegemonia da Psicologia Organizacional para apreender o trabalho, assim como seu
distanciamento da realidade de trabalho notada por alguns respondentes em experiências de
estágio em empresas ou ao trabalhar em empresas com Psicologia ou não.
O aspecto mais relevante em suas formações para a atuação profissional em clínica
foi, unanimemente, composto pela prática - experiências de estágio supervisionado em clínica
ou em outros contextos como o hospital ou empresas e participação em grupos de pesquisa:
“A leitura é importante, mas a experiência clínica é mais”. A partir disso, as psicólogas
enfatizaram a importância das experiências informais no mercado de trabalho antes, durante e
depois da graduação em Psicologia em atividades diversas dentro e fora dos modelos
assalariados para aprender sobre as relações entre trabalho e adoecimento mental. As
psicólogas tiveram experiências de trabalho com trabalhos voluntários, em organizações
não-governamentais, no contexto de economia solidária, em hospitais, em restaurantes, lojas
e de docência em faculdades.
As psicólogas também ressaltaram a importância de fazer psicoterapia como parte da
formação, enfatizando novamente a continuidade da educação para ser psicólogo. Junto a
isso, algumas também buscavam supervisão ou intervisão fora de contextos acadêmicos, além
de permanecer fazendo leituras informais de textos teóricos de suas abordagens. As
psicólogas ressaltaram o caráter contínuo da educação formal e informal como uma busca
individual e solitária que, por vezes, sobrecarrega ainda antes da entrada oficial como
psicólogo no mercado de trabalho. Dessa forma, para todas o trabalho se tornou parte da
formação e a formação se tornou parte do trabalho.
2. Mercado de trabalho
Temas: sentidos do trabalho, qualificações, vínculos de emprego, remuneração, gestão do
trabalho, experiências negativas nos ambientes de trabalho
54
Esta categoria descreve as condições e organização do trabalho de psicólogas e
pacientes. Ambos grupos relataram estar inseridos em um mesmo contexto socioeconômico
mais amplo e, de formas específicas, sujeitos a tendências semelhantes de emprego e relações
de trabalho no Brasil: trabalho como vocação ou como obrigação, relações com o mercado de
trabalho através das relações com colegas, chefias e empresas, trabalho informal e/ou
autônomo como problema e como solução, instabilidade em empregos formais e perspectiva
de estabilidade em empregos públicos, constante busca por qualificação profissional,
remuneração considerada incompatível com as cargas de trabalho, tempos e ritmos de
trabalho e sobrecarga de trabalho. O mercado de trabalho foi percebido, a partir desses temas,
como “precário” e “cruel” por pacientes e psicólogas, havendo relatos de adoecimento
físico ou mental relacionado ao trabalho nos dois grupos.
As psicólogas indicam a vocação como parte importante para realizar seu trabalho
mesmo face às dificuldades financeiras advindas das instabilidades materiais características
de seus trabalhos em clínicas ou consultórios: “o que dá dinheiro é Psicologia
Organizacional, mas não rola - parece que o que dá dinheiro não é o que me gratifica”.
Ressaltaram o risco de “viver só de clínica” p ara justificar o trabalho em múltiplos empregos
ou um vínculo de trabalho formal com remuneração fixa - em Psicologia ou não: “a clínica
de ar-condicionado não paga as contas”. Geralmente o trabalho clínico se inicia em clínicas
de psicólogos ou multiprofissionais que exigem qualificações às quais não se atribui mudança
na remuneração, e assim buscar uma pós-graduação ou outro emprego que pague a
pós-graduação se torna frequente, gerando sobrecarga: “Estou sempre trabalhando”, diz uma
das psicólogas que relata manter três atividades remuneradas.
Em função da baixa remuneração advinda dos planos de saúde junto com a
irregularidade do pagamento, a desconfiança com relação aos planos de saúde se estabeleceu
no discurso das psicólogas. Esse foi um dos motivos para buscar consultório sublocado ou
abrir o próprio consultório após alguns anos de prática, se tornando também empresárias e
secretarias do próprio negócio. O trabalho por vínculos celetista também é visto
negativamente em função da desconfiança que emerge do contato com o mercado de trabalho
- experiências de assédio moral no trabalho, adoecimento no trabalho seu ou de familiares,
relações conflituosas com colegas ou chefias. No entanto, a gratificação de ser um “agente
55
catalisador de mudanças” na vida de pacientes foi citada como motivação para se manter no
mercado de trabalho da clínica.
O discurso das pacientes também destacou o trabalho não só como vocação mas
também como necessidade, constituindo assim parte da sobrevivência mas também da
identidade: “Ai, o trabalho... (silêncio). Eu acho que é a minha identidade né. Era minha
identidade. Na verdade, não é a identidade. É a foto na carteira de identidade. É como eu me
ara as pacientes, com vínculos empregatícios e trabalhos formais em
apresento pro mundo”. P
sua maioria, a percepção de instabilidade do mercado de trabalho é similar à das psicólogas e
se caracteriza pela desconfiança seja do segmento privado - vinculado às instabilidades e
rotatividade de emprego - ou do segmento público. Essa desconfiança se fundou em
experiências negativas caracterizadas pela vivência ou testemunho de assédio moral ou
episódios de humilhação no local de trabalho, boicote de colegas e intromissão de chefes na
vida privada por parte de todas as psicólogas e pacientes entrevistadas. Frente a esse cenário
de incertezas e vulnerabilidades, o medo do desemprego ou de “ser pior lá fora” levaram à
submissão a relações de trabalho degradantes no caso das pacientes. Para as psicólogas,
serviu como ponto de partida para mudança de emprego ou de área da Psicologia.
3. O trabalho da psicoterapia
Temas: natureza da relação terapêutica, partes envolvidas, recursos necessários, meios,
desenvolvimento, objetivos esperados, objetivos reais
56
isso já é meio caminho andado”. Para as pacientes, a configuração da relação também é
relevante, sentindo que os psicólogos estão disponíveis e dedicados para refletir sobre suas
as que ao mesmo tempo se afeta
histórias e problemas a partir de uma perspectiva “neutra” m
e “se importa” com o paciente.
Os pacientes buscam a psicoterapia, de acordo também com psicólogas e pacientes,
quando: 1) há um problema de saúde física que não consegue ser explicado por médicos ou
outros profissionais de saúde; 2) em função de problema relacional - com familiares, amigos,
cônjuges, trabalho; 3) quando são encaminhados por médicos ou outros profissionais de
saúde; ou 4) quando sentem algo desagradável que não conseguem denominar. A psicoterapia
é descrita pelas psicólogas como “o espaço para parar e entender o que está acontecendo”,
caracterizando-se em oposição às relações estabelecidas fora do setting clínico. Nesse espaço,
o trabalho das psicólogas na psicoterapia consistiu em identificar as demandas dos pacientes,
incentivando os pacientes a nomear seus estados emocionais indefinidos assim como
situações problemáticas para o sujeito. Pacientes que relataram indefinição de motivos para
buscar psicoterapia relatam o trabalho do psicólogo como o de desvelar os motivos da
angústia. Também foi relatado que alguns pacientes buscam terapia com queixa medicalizada
a partir de autodiagnósticos - “o paciente chega aqui dizendo que sofre de ansiedade, mas e
aí? O que é essa ansiedade pra você? E eu tento trabalhar com ele esses significados”.
Diante disso, seis das cinco psicólogas afirmaram não trabalhar com diagnósticos
psiquiátricos ou psicológicos, e todas indicaram desconfiança com relação aos sistemas
diagnósticos CID e DSM em função de possíveis impactos negativos para os pacientes e para
o tratamento - “eu não gosto de trabalhar com rótulo, diagnóstico. Até porque o paciente
fica muito focado nesse rótulo, pesquisam, querem saber, dizem que viram na internet e de
partir da
repente começam a ter sintomas que nem tinham porque leram na internet”. A
percepção do sistema de diagnósticos também fizeram críticas à Psiquiatria, à atuação de
psiquiatras no DF “que só medicam” e que é difícil encontrar, para casos “mais graves”,
aqueles que demandam medicação, um psiquiatra de confiança - “um com visões
semelhantes” à dos psicólogos em termos de psicopatologia, “crítico e humanizado”. A
maioria das pacientes também via psiquiatras com desconfiança.
As psicólogas contrastam a medicalização e farmaceuticalização das intervenções
psiquiátricas com o trabalho psicoterápico. Para as psicólogas, a psicoterapia é baseada no
reconhecimento e respeito à singularidade do paciente e é feito através da escuta “sem
57
julgamento”, da interpretação e da devolução dos conteúdos interpretados em forma de
questionamentos com o objetivo de promover a autonomia - “de sentir, de lidar com suas
questões, de tomar decisões” - do paciente. Para os pacientes, esse objetivo se tornou
desejável em contraste com a primeira expectativa de cura que os levaria a um estado sem
angústias - a esse resultado, nomearam “amadurecimento”. Ao longo do tratamento, as
pacientes dizem assimilar a ideia de que esse estado não existe e que ao contrário de “obter
todas as respostas”, o importante é ter um espaço de “troca” nesse “processo sem fim”.
No processo terapêutico, a dúvida é considerada um ponto de partida e um meio para
as psicólogas e é usada para questionar a narrativa sem deslegitimar os afetos compartilhados
pelo paciente no espaço clínico. Para as pacientes, os questionamentos representam uma
disrupção em seu discurso que leva a reflexão e reorganização de suas experiências pessoais.
A abertura para esses questionamentos aumentou ao longo do tempo, conforme pacientes
percebiam que foram “criando intimidade” c om a psicóloga. Para isso, psicólogas e
pacientes afirmam que confiança é fundamental para que a relação terapêutica se estabeleça,
porém de formas distintas. Para as psicólogas, “dar confiança” para o paciente faz parte do
trabalho terapêutico e fazem isso pelo acolhimento e consideração de diverso aspectos da
narrativa do paciente, sem buscar “uma verdade” no discurso do paciente. As pacientes
percebem isso como reconhecimento e legitimação de suas experiências e,
consequentemente, de suas singularidades. Para as pacientes, “falar com a psicóloga não é
igual falar com meus amigos no bar, eu sei que ela não vai tomar lado, vai me ajudar a
perceber de outra forma, mais neutra”. Nesse sentido, depositam confiança não só em sua
psicóloga como também no funcionamento da psicoterapia, confiança que é criada e mantida
na experiência positiva com as psicólogas que as acompanham.
Por parte das psicólogas, um delas afirma que “eu não preciso confiar no paciente”
mas sim em sua disponibilidade e disposição para o tratamento - “eu, enquanto psicóloga,
preciso acreditar que o paciente vai estar lá porque meu tempo é precioso”. A confiança
então exerce sua função: “sempre que você deposita confiança no paciente, cara, é uma
e fato,
outra relação. Se você confia nos medos, e nos piores medos dele, é outra relação”. D
as pacientes percebem isso: “jamais diminua o sentimento da outra pessoa que tá
compartilhando isso com você, porque isso vai fazer quebrar o ciclo de confiança, então a
pessoa já não vai mais compartilhar as coisas com você. Porque ela vai perceber que você tá
diminuindo, você não tá dando o devido grau de importância pra esse sentimento. Então isso
58
eu entendi também, não sei se os psicólogos aprendem isso na faculdade de Psicologia, a
não diminuir. Mas eu gostava que ela [a psicóloga] tratava os meus problemas com a mesma
intensidade”.
Embora as pacientes tenham falado da disponibilidade e citado os benefícios assim
como a satisfação advindos de seus processos terapêuticos - “hoje eu acho que todo mundo
tinha que fazer terapia”; “eu largo meu marido mas não largo minha psicóloga [risos]”,
algumas relataram preconceitos que tinham com relação a psicoterapia antes do início do
tratamento - “eu achava que não era pra mim, que terapia era coisa de rico”; “eu achava
que psicólogo era pra gente doida” - que se dissiparam na experiência ainda que o
preconceito de familiares de algumas das pacientes tenha permanecido - “minha mãe falava
que esse negócio de depressão, não precisa de terapia, sua terapia é Jesus, hoje ela fala
menos isso mas ainda não aceita”.
4. A psicoterapia do trabalho
Temas: O trabalho como questão para psicoterapia, o estado inicial, a (não) delimitação da
queixa do trabalho, expectativas e realidade da psicoterapia do trabalho, desenvolvimento
da psicoterapia do trabalho, relação com outros profissionais de saúde, resultados da
psicoterapia do trabalho
Esta categoria descreve como queixas de trabalho são percebidas, recebidas e tratadas
no processo psicoterapêutico de acordo com psicólogas e pacientes. As psicólogas relatam
que queixas de trabalho são uma das razões mais comuns para a busca de psicoterapia, junto
com problemas de relacionamentos conjugais e familiares e queixas sem foco específico.
Pacientes e psicólogas concordam que problemas relacionais no trabalho são os conteúdos
mais comuns das queixas de trabalho e relataram situações de abusos de poder no trabalho
que, em alguns casos, chegaram a caracterizar assédio moral. Ambos grupos pontuaram que
os abusos no trabalho geralmente estavam ligados a aspectos mais estruturais das relações de
trabalho - hierarquização, rigidez na organização de trabalho, disputas de poder nas chefias -
do que de conflitos interpessoais de fato. Como resultado das situações de abusos, ambos
grupos identificaram impactos para a saúde física e psicológica das pacientes acompanhados
de prejuízos a relações conjugais e familiares. Também relatou-se a emergência de
desconfiança do trabalho e de si mesmo por parte das pacientes. De acordo com duas
pacientes: “eu só conseguia pensar que se eu me afastasse do trabalho, se eu adoecesse, eu
59
ia ser demitida”, “eu não conseguia mais trabalhar, eu achava que ia ser tudo igual
[assédio]”.
A psicoterapia surgiu como alternativa para lidar com os problemas do trabalho de
três formas diferentes: a partir da consciência do mal-estar ligado ao trabalho por parte das
pacientes, a partir do encaminhamento por outros profissionais de saúde e a partir da
percepção das psicólogas nos casos que já acompanhavam ou que buscaram psicoterapia com
queixa difusa de mal-estar, sem necessariamente medicalizar suas queixas. Entre as pacientes
que identificaram relações entre trabalho e “angústia” o u não, buscar a psicoterapia ou levar
essas queixas para a psicoterapia teve o objetivo de aplacar a angústia, “a dor, o sofrimento”
e/ou lidar com as situações causadoras de angústia. Assim, parte do trabalho das psicólogas
frente às queixas de trabalho consistiu em identificá-las, delimitando um foco sem
necessariamente separar as dimensões psíquica e social - “a gente foca, mas não tem como
separar o que é a vida pessoal da de trabalho, é um continuum”.
Ambos grupos descrevem similaridades com o processo da psicoterapia para outras
queixas, considerando que não há diferenças no acolhimento da queixa, que foi recebida
como legítima pelas psicólogas ainda que as pacientes, com auto-estima e auto-imagem
deterioradas, duvidassem da legitimidade das próprias queixas - “minha chefe falava que era
problema no meu casamento, e eu ficava ‘será?’, eu não sei… será?”. Porém para uma das
psicólogas “é igual [qualquer outra queixa], se me falar do trabalho a gente vai acolher
aquilo e tratar aquilo, o que significa, o que está fazendo com você e o que você está fazendo
com isso”. Essa tendência entre psicólogas foi, principalmente, sustentada pela percepção
negativa do mercado de trabalho obtida por meio de experiências profissionais das psicólogas
- “eu sei que o trabalho pode ser uma merda, eu já passei por coisas assim”.
A conduta de psiquiatras foi citada por ambas, psicólogas e pacientes, para contrastar
a abordagem das queixas de trabalho pela Psiquiatria e pela Psicologia. Uma das pacientes
cita que, frente às suas queixas, a psiquiatra “só sabia medicar, eu vivia dopada, teve um
momento que eu tomava nove medicamentos. Toda vez que eu dizia que não tinha melhorado,
ela aumentava a dose”. Por outro lado, de acordo com as pacientes, a psicoterapia teve a
função de “refletir”, “repensar”, “questionar” e “ver as coisas de outra perspectiva” a
partir do diálogo estabelecido em uma “relação de confiança”. Do ponto de vista de uma das
psicólogas, confiança se torna um elemento fundamental nesse contexto em que há poucos
espaços na sociedade para tratar do mal-estar que emerge no trabalho: “o paciente chega
60
desconfiado do local de trabalho e reproduz isso no setting, e então o psicólogo tem que se
atentar para ganhar a confiança do paciente por meio da escuta sem julgamentos”.
As psicólogas relatam que, para isso, buscam identificar características nocivas do
trabalho das pacientes e características das pacientes dentro de um contexto mais amplo de
relações de trabalho no Brasil para entender o significado e sentido do trabalho e do emprego
para as pacientes. Para isso, usam procedimentos clínicos semelhantes de interpretação e
questionamentos a partir da escuta do paciente, “legitimando a vivência do paciente” ao
mesmo tempo que a construção de uma nova narrativa se faz possível. O objetivo é
“fortalecer o sujeito diante dessas vivências” para que tenha “autonomia para decidir sobre
seu trabalho, não aceitar mais abusos ou se retirar daquele emprego”. Embora parte das
psicólogas reconheça a importância da psicoterapia individual, também abordam a tênue
linha entre responsabilização e culpabilização que pode ser facilmente cruzada nesse
tratamento, e afirmam que, em geral, as pacientes chegam se sentindo muito culpadas pelas
violências que sofreram ou pelas suas insatisfações e faz parte do trabalho clínico
desenvolver um entendimento de implicação dos sujeitos nas situações que vivem,
reconhecendo potencialidades individuais para lidar com a situação sem legitimar o
comportamento do agressor: “o sujeito tem que entender que tem opções, mas que isso não
significa que é culpado por ter sofrido as agressões”, “não pode culpar o indivíduo, mas
esse sentido, duas das pacientes mencionam a
também não dá pra favorecer o vitimismo”. N
importância da forma como as psicólogas abordam suas questões, respeitando o tempo e
espaço do paciente.
Em casos específicos, as psicólogas relataram a possibilidade de intervenção no
trabalho por meio da emissão de documentos recomendando afastamento ou remoção do
local de trabalho. Nesse contexto, pela primeira vez uma das psicólogas relata hesitação para
atuar. O diálogo abaixo ilustra, brevemente, aspectos já abordados nesta categoria também:
“Psicóloga F: Eu já peguei pessoas que especificamente vieram por questões de trabalho.
Por exemplo, a pessoa chegar relatando não conseguir mais ir ao trabalho porque está
sofrendo assédio moral no trabalho, muito grande, e está em um nível de ansiedade
terrível de não conseguir dormir, de não conseguir comer e começar a ter problemas
dentro de casa (...). E chega em nível de desespero absurdo e chega no consultório com
essa demanda específica, relatando que sente uma culpa enorme porque chegou ao ponto
de agredir os filhos por causa do que acontecia no trabalho. E nesse sentido, além da
gente precisar fazer todo um trabalho clínico, a gente precisa fazer uma intervenção
mesmo, fazer uma solicitação de afastamento e de remoção do local de trabalho. Eu fiquei
muito na dúvida nesse caso, mas fiz. Fiquei me perguntando se era isso [caso de intervir
no trabalho], será que…? Mas era.
Entrevistadora: Então você fez a intervenção no trabalho?
61
PF: Fiz, eu fiz. Fiquei na dúvida mas fiz.
E: Isso acabou se tornando um recurso clínico?
PF: Claro, com certeza. Eu preciso tentar (...) eu nem sabia se meu laudo ia ser aceito
porque ela trabalhava em um órgão público, não sabia se ia ser levado em consideração,
mas foi. E aí ela entrou e o chefe acolheu e deu certo. Essa mulher melhorou da água para
o vinho, ela realmente estava sofrendo um assédio de uma supervisora que… claro que a
gente pode discutir questões analítica aqui, o que é que essa supervisora trazia e blá blá
blá, mas não é o caso, é uma coisa séria de boicote no trabalho mesmo, pesada. Toda a
equipe também começou a fazer isso com ela. Foi um coisa horrível.”
Por fim, o trabalho psicoterápico das queixas de trabalho foi considerado satisfatório
pelas pacientes de forma unânime, levando-as a recomendar para “todas as questões da
vida”. Foi creditado ao trabalho clínico nesse contexto um percebido “crescimento pessoal”
e um novo posicionamento nas relações de trabalho:
"Paciente A: Uma pena que a gente não tem esses acompanhamentos no trabalho. Porque
ia ajudar muito a gente também.
Entrevistadora: E você recomendaria terapia pra alguém que estivesse passando por
situação de assédio ou uma situação dessas no trabalho?
PA: Com certeza. Até pra ajudar a construir uma solução. Ajudar a pensar assim... porque
você tem os espaços no trabalho, é...as comissões de ética, né, espaços onde você pode é...
relatar o que está acontecendo. Mas muitas vezes você não consegue chegar nesses
espaços por todo o medo, por toda a culpa. E eu acho que na terapia, ela te fortalece pra
você chegar nesse espaço. No meu caso não foi necessário porque as situações não
foram... mas assim... eu hoje eu sei que hoje eu tenho mais condição de se for necessário
chegar nesse espaço, eu chego. Eu chegaria. Tanto como não aconteceu lá atrás na minha
história como estagiária. Porque eu poderia também ter levado isso para um superior, ou
então num lugar que 'olha, isso aqui é assédio'. Mas eu também não fiz isso, como agora
nos últimos anos eu também passei por tudo isso e segurei, segurei, segurei, antes de
chegar a levar pra esse diretor. Que também não sei se ia resolver. Mas poderia ter
levado. Mas foi o que me ajudou a também entender que eu tenho mais condição de, se um
dia isso acontecer de novo, eu saber me defender e me posicionar.
E: Ter outra postura?
PA: Exatamente. Mas isso foi construído assim [com a psicóloga], não foi sozinha não,
porque não sei se eu daria conta."
5. Abordagens
Temas: abordagens teóricas, abordagens técnicas, abordagens pessoais, relação entre
abordagens, impactos para o tratamento, impactos para pacientes.
62
questões sociais, as leituras em Ciências Sociais com inclinações sociohistóricas, os
pressupostos epistêmicos da Psicanálise, as experiências de estágio supervisionado, a
experiência clínica, a própria terapia e as experiências negativas no mercado de trabalho
contribuíram para construir suas abordagens particulares às queixas de trabalho em
psicoterapia, que reconhecem como distante da abordagem da Psicologia Organizacional e do
Trabalho mas semelhante às suas atuações com queixas diversas enquanto psicólogas
clínicas.
As psicólogas vinculadas à Psicanálise destacaram as obras Mal-estar na civilização e
Psicologia das Massas d e Freud como pontos de partida importantes para pensar as
intersecções entre psíquico e social, assim como abordagens sócio-históricas da Sociologia
que sustentam suas visões críticas ao trabalho no capitalismo neoliberal. As psicólogas, em
sua abordagem teórica construída com elementos de Psicanálise e de visões sociohistóricas
sobre trabalho e adoecimento mental, tenderam a se voltar para a contextualização dos
sujeitos e de seus sofrimentos e angústias ao invés de diagnósticos, a partir do pressuposto de
centralidade do discurso do paciente e da “verdade do sujeito”. Além do olhar social, as
psicólogas relataram que essa visão social junto à abertura para a incerteza e vulnerabilidade
são fundamentais, sendo essas manejadas a partir de pressupostos que atribuem à abordagem
psicanalítica. O trecho a seguir ilustra como a abordagem teórica junto à auto-confiança
sustenta intervenções no contexto do paciente caso seja necessário:
63
passível de manejo por via da relação da psicoterapia de forma que possíveis equívocos se
tornam materiais que dizem mais a respeito do sintoma paciente - sua verdade - e da
abordagem teórica do que da capacidade das psicólogas. Ao mesmo tempo em que esses
pressupostos lhes conferem convicção em como proceder, também há críticas às teorias e
rigidez, havendo consenso de que as teorias e técnicas devem ser usadas como meios a partir
do reconhecimento da singularidade do paciente, havendo reflexividade sobre o lugar do
psicólogo clínico em relação ao paciente e também ao mundo.
As percepções das pacientes sobre as psicólogas se voltam mais para as abordagens
teóricas e técnicas das profissionais, descrevendo a “postura ética” no estabelecimento de
uma relação de respeito e troca. À abordagem teórica é conferida grande importância nos
resultados considerados satisfatórios pelas pacientes:
64
para construir sua abordagem clínica - “o que me ajudou a perceber o adoecimento no
trabalho dos pacientes foi o sofrimento do psicólogo [risos]”.
As pacientes também descrevem como, através de uma postura técnica que se dá a
conhecer através do trabalho clínico, é possível a construção da confiança no processo
terapêutico e no psicólogo:
Assim, por via das abordagens das psicólogas que não hierarquizaram, fragmentaram
ou deslegitimaram as queixas de trabalho, e pelo respeito às normas profissionais de
psicólogas como o sigilo, a psicoterapia se configurou como “espaço de confiança” para as
pacientes.
DISCUSSÃO
Frente à escassez de olhares para as relações entre trabalho e adoecimento mental da
Psicologia Organizacional e do Trabalho durante a educação formal - conforme visto nos
estudos II e III, as psicólogas deste estudo ressaltaram a relevância de seus estudos de outras
disciplinas baseados em inclinações pessoais para temas sociais assim como suas
experiências de estágio clínico e experiências pessoais negativas no mesmo mercado de
trabalho brasileiro “cruel” e “precário” do qual suas pacientes fazem parte. A atuação
profissional da maioria, que reconhece a possibilidade da emergência de psicopatologias
através da relação com o trabalho, se baseou em uma abordagem teórica fundada nos
pressupostos epistêmicos da Psicanálise e nas contribuições das Ciências Sociais para o
estudo das relações de trabalho.
Apesar do predomínio de psicólogas de abordagem psicanalítica, a crítica ao modelo
biomédico de doença, à CID e ao DSM, foi unanimidade e as profissionais relataram a
preferência por trabalhar dinâmicas - o sintoma, em seu significado psicanalítico ou não - de
maneira contextualizada. Essa crítica pode ser relacionada, mais amplamente, à Reforma
65
Psiquiátrica no Brasil e suas consequências para o estabelecimento e regulação da atenção à
saúde mental como parte do campo da Saúde Pública descrita como:
66
O que foi comum na atuação dessas psicólogas ainda que em abordagens diferentes
foi a (des)confiança em sistemas. A confiança nos sistemas que estabelecem as relações
terapêuticas - e no caso da Psicanálise, como possibilidade de olhar o psíquico e o social em
relação - junto à desconfiança nos sistemas psiquiátricos e dos que estabelecem as relações de
trabalho no Brasil a partir do mundo da vida que os pacientes também habitam basearam a
atuação profissional das psicólogas clínicas. Relacionaram-se ainda a essa (des)confiança de
sistemas: a autoconfiança, a (des)confiança em psiquiatras e a confiança no paciente. Esse
modelo de inter-relações de diferentes níveis de confiança por parte das psicólogas remete às
proposições conceituais de Douglass e Calnan (2016) e empíricas de Gilson et al. (2005) e
Brown e Calnan (2016) de que a confiança é relevante também para profissionais de saúde e
impacta suas identidades profissionais pelo entrelaçamento (lattice) entre esses níveis de
confiança.
Ressalta-se ainda que a ideia de confiança no paciente que emerge da (des)confiança
em sistemas que pressupõe “a verdade do sujeito”, questiona sistemas sociais e econômicos
e incorpora incertezas e vulnerabilidades assim como saltos de fé - leap of faith - na relação
psicólogo-paciente e nos remete à função da confiança definida por Luhmann (1979):
67
Este estudo visou contribuir para o estudo em profundidade da confiança por parte de
profissionais de saúde, tema constituído por uma lacuna empírica, assim como do
reconhecimento das relações entre trabalho e psicopatologia na prática profissional de
psicólogos clínicos, e seus resultados não podem ser generalizados. Em sua pequena escala, a
principal limitação deste estudo é sua amostra constituída por psicólogas quase todas de
mesma abordagem clínica formadas em um período específico e que se voluntariaram para
este estudo a partir de divulgação que buscava pacientes e psicólogos que tinham experiência
com queixas de trabalho em psicoterapia, o que pressupõe, de certa forma, o acolhimento
desse tipo de queixa. Novos estudos com psicólogos de outras abordagens clínicas devem ser
realizados a partir de chamados amplos para investigar o trabalho do psicólogo clínico. Para
os estudos de confiança em contextos de saúde, este estudo permite refletir não só sobre a
natureza da desconfiança, como também sua funcionalidade.
CONCLUSÃO
Este estudo identificou as relações entre (des)confiança em sistemas e confiança
interpessoal perpassadas por condições contextuais e dinâmicas relacionais possíveis a partir
de especificidades teóricas e metodológicas que definem o campo da saúde mental no Brasil.
São características do modelo de (des)confiança de psicólogas clínicas em queixas de
trabalho em psicoterapia individual: 1) abordagens próprias que mesclam elementos teóricos
da Psicanálise e das Ciências Sociais em contraponto a discursos hegemônicos da Psicologia
Organizacional e do Trabalho sobre as relações entre trabalho e saúde - vinculado à confiança
no sistema da Psicanálise ou da psicoterapia e na autoconfiança fomentada por suas
experiências clínicas, 2) elementos técnicos estabelecido por normas regulatórias da prática
clínica da Psicologia como o sigilo - confiança no sistema que regula a profissão; e 3)
elementos pessoais baseados em experiências negativas no mercado de trabalho -
desconfiança dos sistemas que sustentam as relações de trabalho no Brasil. Esses dados
trazem perspectivas sobre funcionalidades da desconfiança que não foram exploradas
anteriormente na literatura. Conclui-se que a atuação profissional das psicólogas
entrevistadas se alinhou mais aos estudos em Saúde do Trabalhador que da perspectiva de
Saúde Ocupacional que caracteriza a visão da Psicologia, predominantemente
Organizacional, das intervenções em saúde mental do trabalhador.
68
IV. CONTRIBUIÇÕES DA PSICOPATOLOGIA CLÍNICA DO TRABALHO
PARA A PSICOLOGIA
Let the paper remain on the desk unwritten, and the book on the shelf unopen’d!
Let the tools remain in the workshop! let the money remain unearn’d!
Let the school stand! mind not the cry of the teacher!
Let the preacher preach in his pulpit! let the lawyer plead in the court, and
the judge expound the law.
69
suscita acabou relegando a compreensão das relações entre trabalho e psicopatologia (ou
qualquer coisa identificada como negativa) à marginalidade.
Nessa marginalidade, a abolição do estigmatizante termo “doença mental” e a opção
por uma compreensão de psicopathologias - com “h”, nos remetendo à sua etimologia - tem
se sustentado, teoricamente, na obra freudiana “Mal-Estar na Civilização” em que o autor
esboça costuras entre sua teoria de sujeito e uma teoria social, como citaram algumas das
psicólogas entrevistadas. Também tem se apoiado em críticas à medicalização e modelos
biomédicos, conforme pressuposto na Reforma Psiquiátrica. Nesse âmbito, mesmo que em
formações com foco clínico, essas psicólogas foram capazes de compreender intersecções
entre as duas dimensões, realizando atualizações dessa concepção sistematizada
pioneiramente por Freud. Em termos gerais, suas abordagens se assemelhavam aos
pressupostos da Psicopatologia Clínica do Trabalho proposta por Mendes (2018).
Em termos práticos, os vínculos empregatícios também podem se relacionar com a
dificuldade de atuação voltada para saúde do trabalhador de psicólogos organizacionais
expressa na literatura, uma vez que o trabalho autônomo das psicólogas clínicas assim como
outras experiências de mercado de trabalho se relacionaram com um senso de identificação
com as pacientes e suas angústias advindas do trabalho que permitiu a elaboração de críticas
aos modos de gestão sem que, necessariamente, se sentissem ameaçadas de demissão, medo
comum de pacientes com queixas de trabalho associado ao silêncio frente aos abusos no
trabalho. Assim, a (des)confiança desse sistema de trabalho foi estruturante da escuta e da
fala de psicólogas e pacientes. As psicólogas relataram ainda inconformidade com “dois tipos
de conformismo [identificados por Freud] que poderiam atrapalhar o processo analítico: o
furor sanandi médico por um lado, e a moralização religiosa normatizante, por outro”, como
relembrou Vivès (2019) ao abordar a ética da psicanálise. Assim, na dimensão prática do
trabalho das psicólogas podemos afirmar que só a Psicanálise, enquanto teoria ou método,
não foi suficiente.
Essa hipótese sobre a prática só pôde emergir ao analisar a relação psicólogo-paciente
através da conceitualização sociológica de confiança. A partir dela pôde-se investigar
também interesses e forças contextuais que atuam implícita e explicitamente na relação
psicólogo-paciente, revelando a relevância de aspectos históricos e sociais da construção da
saúde do trabalhador enquanto objeto de estudo para a Psicologia, assim como nas maneiras
como são usados. Essa análise apontou a (des)confiança de sistemas, principalmente a
70
desconfiança dos sistemas que sustentam as relações de trabalho no Brasil, como relevante
para o reconhecimento das relações entre trabalho e psicopatologia. As críticas ao modelo de
trabalho assalariado capitalista neoliberal aliadas à possibilidade de trabalho autônomo
formam uma possibilidade de atuação que não é possível para psicólogos organizacionais -
restritos na atuação voltada para a saúde do trabalhador em função dos interesses da empresa
(Heloani & Capitão, 2003).
Da desconfiança das psicólogas emergiu uma espécie de consciência de classe que, na
concepção de uma delas, as distanciava da Psicologia Organizacional não só em termos
teóricos e técnicos, mas também políticos - “depois que eu terminei um ano de práticas [na
Psicologia Organizacional] que também levou muito da minha saúde mental junto, eu falei:
‘é isso aí, não vai rolar. Eu sou ‘comuna’ mesmo e não vai rolar Psicologia Organizacional
mesmo!”. Ao mesmo tempo que as distanciava de uma visão de Saúde Ocupacional,
geralmente mais associada ao aumento da produtividade como objetivo ou diminuição do
absenteísmo, essa desconfiança também as aproximou das pacientes marcadas pela
desconfiança das relações de trabalho após vivências de violência moral no trabalho,
conectando dimensões políticas e psíquicas através da clínica, como proposto por Périlleux
(2013) e Mendes (2018).
Quando o assunto é lidar com trabalhadores e as psicopathologias que emergem no
trabalho assalariado no capitalismo neoliberal brasileiro, colonizado e colonizante, este
trabalho conclui que é melhor ser um psicólogo clínico com um “Mal-estar na civilização” e
críticas aos contextos de trabalho e à medicalização na mão que várias abordagens
antagônicas de Saúde Ocupacional em um emprego em empresa voando. Chistes à parte, este
trabalho permitiu identificar a importância não só de sistemas como também de mundos da
vida para o estabelecimento de relações de confiança e, consequentemente, para um trabalho
que atenda a trabalhadores e seus interesses frente a abusos de gestões autoritárias ao invés de
buscar soluções de compromisso pelo uso de abordagens teóricas embasadas em razão
instrumental ou pelo uso instrumental de abordagens fundamentadas em razão crítica. Assim,
esta tese não propõe soluções ou receitas para atender aos trabalhadores em psicoterapia, mas
reclama a atenção às psicopatologias de forma contextualizada e crítica por meio da
Psicopatologia Clínica do Trabalho como uma possibilidade teórica e metodológica adequada
para pensar e agir frente à realidade do trabalhador brasileiro.
71
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