Gardenia Mota
Gardenia Mota
Gardenia Mota
200 f.
CDU: 316.334.55:911.37
GARDENIA MOTA AYRES
Banca Examinadora:
__________________________________
Profª Drª Silvane Magali Vale Nascimento
(UFMA)
_________________________________
Profª Drª Lilian Cristina Bernardo Gomes
(UFMG/UEMA)
__________________________________
Profª Drª Cynthia Carvalho Martins
(Orientadora UEMA)
Aos guerreiros e guerreiras quilombolas, de ontem e de hoje, pelas resistências
contra os sistemas de opressão.
Aos quilombolas que tombaram lutando e aos que incansavelmente permanecem
ecoando sua voz em busca da liberdade.
Aos quilombolas do Maranhão, pela coragem na construção da identidade política e
na defesa pela garantia de direitos dos territórios.
Às divindades ancestrais, pela proteção e força.
AGRADECIMENTOS
Neste trabalho, por tratar-se de uma construção coletiva, torna-se uma tarefa delicada
proceder aos agradecimentos. Desse modo, adianto-me, no sentido de estender meus sinceros
agradecimentos a todos e todas que me dedicaram atenção, receberam-me, conversaram,
orientaram, ensinaram, compartilharam suas experiências e conhecimentos; sintam-se
contemplados neste agradecimento.
No entanto, procederei agradecendo honrosamente aos moradores, agentes sociais e
lideranças das comunidades quilombolas do território de Monte Cristo, pela confiança e
recepção com a qual abraçaram o nosso trabalho. Digo nosso, porque espero sinceramente que
cada um, cada uma, ao lerem ou comentarem sobre ele, consiga se encontrar, reencontrar sua
história e suas práticas, as quais fiz um esforço de transcrever fidedignamente. Caso tenha me
equivocado, peço desculpas e espero que possamos proceder às devidas correções.
Mas não poderei deixar de citar alguns nomes. Assim, agradeço imensamente a
Raimundo Nonato Mota (Ká), liderança de Monte Cristo, que tem minha admiração e por
quem temo pela vida, ameaçada pelos fazendeiros. A Clesiomar Pereira, da comunidade
quilombola de São Brás; Raimunda Nonata, da comunidade quilombola de Araçatuba;
Raimundo Nonato, da comunidade quilombola de Conduru, e Domingos Garcias, da
comunidade quilombola do Oriente, agentes sociais cuja história de luta e relatos me
direcionaram para a idealização deste trabalho e me inspiraram nesta pesquisa. Estendo meus
agradecimentos a todos os meus entrevistados, referenciando os mais velhos, que através da
oralidade repassam a nossa história. Espero que este trabalho, além de um trabalho
acadêmico, seja um instrumento de luta que ajude no debate acerca do reconhecimento do
território Monte Cristo.
Agradeço à minha família, especialmente aos meus pais Genésio Luís Souza Ayres
(in memorian) e Margarida Mota Ayres, pela base familiar e pelo esforço em colocarem seus
filhos para estudar. À minha mãe, pela referência na trajetória de vida e parceria nesta
pesquisa. Às minhas irmãs: Genny Magna, Margarene, Nadja, e ao irmão Ronny Magno, por
cultivarem a riqueza da coragem e fraternidade da nossa estrutura familiar, e a meus
sobrinhos: Bárbara Kinda, João Luís e Miguel Lucas pelos momentos de alegria e
descontração.
Agradeço a Davi Pereira, pelo carinho, parceria, cumplicidade e pelos longos debates
que significativamente nortearam a construção deste trabalho.
Agradeço aos quilombolas do Maranhão, em especial aos de Monte Cristo, pelos
ensinamentos compartilhados ao longo das experiências nos movimentos sociais. Agradeço a
Ivo Fonseca Silva, um dos responsáveis pela minha inserção na ACONERUQ, que sempre
dedicou confiança em minha pessoa e a quem admiro pela militância política em defesa dos
direitos dos quilombolas.
A todos os professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em Cartografia
Social e Política da Amazônia (PPGCSPA): Alfredo Wagner, Francisco Araújo, Helciane
Araújo, Jurandir Novaes, Leonardo Avritzer, Márcia Miranda, Protázio César e Rosa
Acevedo. Às professoras do referido programa: Patrícia Portela, Camila do Valle e Lilian
Gomes, pela solidariedade, contribuições e reflexões que provocam em mim novos desafios.
Meus agradecimentos à minha orientadora, professora Cynthia Carvalho Martins,
pelo incentivo, confiança e liberdade na construção deste trabalho.
Aos colegas de turma, Danilo Serejo, Dorival dos Santos, Adaildo dos Santos, Luís
Lima, Luciana Railza, Edson Souza, Joisa Maria, Reginaldo Conceição, João Damasceno e
Maurício Paixão, pelos momentos de aprendizado que partilhamos. Aos colegas da
conversação e descontração Poliana Souza, Tacilvan Silva e Marcionila Coutinho.
Agradeço à Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Maranhão (FAPEMA)
pelo financiamento da bolsa de estudo, a qual contribuiu para a realização deste trabalho.
A organização dos quilombos no Brasil ela não é recente, é uma organização que se
deu desde a luta contra o projeto de escravidão no país. Que a escravidão não foi só no
Brasil, foi na América, então essa organização de quilombo está ativa deste este processo.
[...] Tem uma palavra que eu sempre escuto e fico me perguntando, quando dizem
"aquela comunidade isolada" e hoje eu ouvi uma frase que me espelhou muito, que foi uma
comunidade indígena que colocou a palavra "uma comunidade livre". Uma comunidade que
não tem contato com os povos e a palavra comunidade "livre". Então para nós, queremos
uma comunidade livre também. Nós queremos nossa comunidade livre. Nós não temos
comunidades isoladas. Nós queremos a nossa comunidade livre.
[...] Nós não somos tímidos para dizer o que o grande capital faz com a gente, talvez
podemos ter repressão mais tarde, mas, nós sempre vamos dizer que o capital, as grandes
empresas, uma parcela das estruturas do governo também contribuem para esse massacre ao
nosso povo. Nós temos no Brasil, experiências em situações bem concretas que o próprio
governo Federal é um dos maiores chefes da destruição dos nossos povos.
The work presented here is the result of Master's research of the Graduate Program in Social
Cartography and Policy in the Amazonia. In the University of Maranhão of States. (UEMA)
In partnership with the Program of Graduate Studies in Political Science from the Federal
University of Minas Gerais (UFMG). The situation studied refers to, called by social agents,
Territory Monte Cristo, located geographically in the region designated as "Baixada
Maranhense" precisely the so-called county of Penalva (MA). This paper aims to conduct a
review of the process of recognition of the Territory Monte Cristo. The study theme has
presented his research locus in an ancient footprint that in the history of land concentration
process undergoes intense conflicts with the designated farmers and alleged landowners.
Thus, the territory called Monte Cristo, in the late nineteen hundred and seventy-eight goes
through a complex process of buying and selling culminating in the expropriation of land for
the creation of a settlement project. The expropriation turn not had results favorable to
households already living in the territory there followed generations, but those supposed
owners who felt authorized to extend its power of coercion, promoting acceleration in sales of
land and the privatization of natural resources, indispensable to families living in the
communities referred to the territory. The Communities, through their organizational
resources, trigger the collective identity and claim the territory as titration quilombola, backed
by constitutional guarantees, built by intense process of political mobilization of social
movements. The imposition of borders with the expropriation intensified internal conflicts and
threatens the specific territoriality claimed by social agents, through the process of territorial
built by the groups. Thus, I present the various contradictions in the process of recognition of
Monte Cristo, showing the action of the State in settlement project institution of land reform
given the claim of the groups by titration of the quilombo territory.
LISTA DE TABELAS
CAPÍTULO 1
Descortinando as aparências: a trama da construção da temática de pesquisa e a
inserção junto ao grupo 23
1.1 O pertencimento e a construção da temática 24
1.2 Da Fazenda Outeiro da Cruz à comunidade quilombola de Santo Antônio 29
1.3 Inserção no movimento social pelas mobilizações das comunidades 38
1.4 A relação com a temática de estudo e a inserção na pesquisa científica 49
1.5 Reflexões acerca do dilema da liminaridade: refletindo sobre a proximidade com o grupo
estudado 51
1.6 O campo de pesquisa 56
CAPÍTULO 2
As disputas na "di-visão" do território Monte Cristo e a ação do Estado no processo de
"desapropriação" 72
2.1 A complexidade da situação analisada: da desagregação dos engenhos à construção de
territorialidades específicas 75
2.2 Da noção de "propriedade privada" à intensificação dos conflitos pela colocação das
terras no mercado 80
2.3 Processo de Desapropriação de Monte Cristo para criação de "Projeto de Assentamento" 83
2.4 Da representação sindical às novas formas organizativas da construção de identidades
coletivas 86
2.5 Formas de classificação oficial na denominada "Baixada Maranhense" 91
2.6 As taxonomias impostas pelo Estado com a criação do "assentamento” 95
2.7 Ação do INCRA 97
2.7.1 Processo de desapropriação: as classificações oficiais e a imposição da fronteira 102
2.7.2 Os relatórios técnicos com instrumento de análise de categorias de classificação 105
2.8 A trama da compra e venda da denominada “Fazenda Monte Cristo” 112
CAPÍTULO 3
A construção da categoria quilombo: contextualizando a reivindicação pelo território
quilombola 121
3.1. A construção da política de reconhecimento das comunidades remanescentes de
quilombo 122
3.2 Da noção de "imóvel rural" às titulações de territórios étnicos 129
3.3 A construção do direito aos territórios quilombolas e as mobilizações sociais 134
3.4 A construção da categoria quilombo a partir das narrativas sobre os engenhos 141
3.5 A construção da categoria quilombo pelos conflitos 148
3.5.1 A imposição dos conflitos como ameaça aos modos de vida 149
3.6 Reivindicação do território quilombola de Monte Cristo 158
3.7 As associações: formas organizativas como instrumento de luta 167
Anexos 192
16
APRESENTAÇÃO
1
Para maior compreensão dessa relação, recomenda-se assistir ao Filme Vênus Negra (2010) e publicações que
mostram como os ocidentais exibiam os povos não europeus em zoológicos como selvagens e exóticos.
18
2
O uso do termo "deslocamento" tomo emprestado no sentido dado por Stuat Hall, conceito utilizado por
Ernesto Laclau, expressando assim: Uma estrutura deslocada é aquela cujo centro é deslocado, não sendo
substituído por outro, mas por " uma pluralidade de centros de poder".(HALL, 2014, p.13).
19
interpretativa. Ainda alerta para que, especificamente nessa quebra de paradigma, se reflita
também a atualização da comunidade interpretativa sob a forma autoral.
Assim, a autoria apresentada neste trabalho revela questões a serem desdobradas,
pois é uma autoria que não se constrói no isolamento, é uma autoria para além das parcerias
presentes em tantos textos e que revela a importância do discurso "a partir de" e não "sobre
algo", um "objeto". (VALLE, 2013).
A construção deste trabalho não é individualizada, seus resultados advêm de práticas
sociais de uma coletividade, uma diversidade de saberes, conhecimentos aguçados pelas
narrativas orais e memória coletiva que funcionam como fio condutor, entrelaçando
informações, ações e teorias e provocando um novo campo discursivo em se tratando de
autoria (FOUCAULT, 2001). São registros de múltiplos agentes sociais que não devem ser
individualizados ou mensurados, mas, colocados à luz de demandas sociais e estratégias
políticas de grupos específicos diante de políticas universais elaboradas pelo Estado.
Trata-se de posicionamentos de sujeitos sociais e lugares sociais de produção do
saber, de evidenciar práticas que vão sendo reeditadas com a emergência de conflitos sociais,
no rompimento da exclusão histórica no processo de participação política e dos contextos
adversos em que se configuram as políticas tidas como desenvolvimentistas.
Aqui, portanto, se propõe um deslocamento, não para legitimar um discurso
científico, mas no sentido de criar condições de possibilidades para uma nova descrição,
novos esquemas interpretativos para situações e relações sociais a partir de si e do grupo ao
qual se pertence ou com o qual se mantêm relações sociais. Também não se trata de axiomas,
mas de insurrecionar saberes3 e situações sociais de grupos que historicamente foram
invisibilizados ou colocados à margem da história, nunca como sujeitos e sim como "objetos",
causando a exclusão de sua participação política ativa, sufocada pela elite do imperialismo e
do colonialismo.
Munanga (2012) ao falar da dominação colonial na África diz que sua expansão
resultou efetivamente de duas vertentes: do imperialismo de mercado - que se apropriou das
terras, dos recursos e dos homens - e do imperialismo da história - que se apossou de um
espaço conceitual novo: o homem não histórico, sem referência nos documentos escritos.
3
Michel Foucault, ao tratar de Genealogia e poder, propõe que a atividade genealógica trate de ativar saberes
locais, descontínuos desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-
los, hierarquizá-los e ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência
detida por alguns. (...) Trata-se de insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os
conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição de saberes antes de tudo contra os efeitos de poder
centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no
interior de uma sociedade como a nossa. (FOUCAULT, 2012. p, 268)
20
4
Para maiores informações sobre a atualização do agrimensor, vide Nova Cartografia Social: territorialidades
específicas e politização da consciência das fronteiras. In Povos e comunidades tradicionais: nova cartografia
social. Manaus:UEA, 2013.
21
social" do território Monte Cristo. Evidentemente, não considero que este fato traga prejuízos
ao trabalho, ao contrário, tive o cuidado de não cair na armadilha da construção autoritária de
"mapas cartográficos" com o discurso de que se aproximaria de "mapeamento participativo"
(ACSELRAD, 2013), podendo incorrer na vulgarização da "cartografia" (ALMEIDA, 2013).
No entanto, entendo que os trabalhos de pesquisa em Monte Cristo ainda são
preliminares e o coligir de dados etnográficos demanda reflexões intensas. O "mapeamento
social" propõe-se a realizar uma "nova descrição", alia-se a composição da etnografia; baseia-
se na sistematização do trabalho de campo, a partir da relação de pesquisa estabelecida com
múltiplos agentes sociais, que fazem narrativas orais acerca dos elementos místicos, da íntima
relação com os recursos naturais e da situacionalidade dos conflitos vivenciados pelos grupos
sociais. Distingue-se das chamadas "cartografias tradicionais" pela representação que os
próprios agentes sociais fazem do território ao procederem à autocartografia, que cria
condições para se apoderarem de instrumentos tecnológicos e procederem ao mapeamento
social, com o apoio dos pesquisadores que oferecem treinamento e auxiliam nas chamadas
oficinas de mapas.
No decurso desta pesquisa, não foi possível, principalmente por falta de recursos
financeiros, a realização da oficina de mapas para que os agentes sociais das comunidades que
reivindicam o território Monte Cristo procedessem ao "mapeamento social" do território.
Diante desse fato, não é possível apresentar aqui um mapa nos moldes da "nova cartografia
social" que se contraponha ao tracejado semelhante àquele instituído por cadeia dominial
diante da "desapropriação", no qual o grupo não se identifique e tampouco se sinta
representado.
Nesse sentido, optei por propor a elaboração da Cartografia Social para um momento
futuro, conjuntamente com os agentes sociais referidos a Monte Cristo. Assim, os grupos
terão condições necessárias para construir a noção do território, descrevendo sua vivência,
criando seus croquis, apontando referenciais simbólicos e materiais, no intuito de continuarem
a criação de instrumentos políticos capazes de potencializar a resistência contra as formas de
dominação e acesso restrito ao uso de tecnologias a partir da nova cartografia social.
Pondo suavidade a esta apresentação, informo que este trabalho tem em sua
particularidade uma imensidão de sentimentos e emoções que vão sendo colocados quando
me fez mergulhar em minha própria história e memória. Do (re)encontro com meus
entrevistados e da confiança nos relatos, são situações vivenciadas e rememoradas que a
escrita é incapaz de expressar; são gestos, histórias, relações de confiança e
autorreconhecimento que vão se envolvendo na construção da temática ora apresentada.
22
CAPÍTULO 1
5
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE no censo de 2010, dos 34.267 habitantes de
Penalva, 17.647 (51,4%) pessoas residiam na zona rural. Em anais da Biblioteca Nacional consta uma descrição
do município de São Joze de Penn'alva, Comarca de Viana, Província do Maranhão, datado de abril de 1888 em
que é realizada uma descrição do município, como aspectos gerais, mar, ilhas, peixes, aves, limites etc. Consta
que São Joze de Penn'alva, conforme o último censo possuía uma população de 3.118 habitantes, sendo 1.265 de
escravos, bem como um relato da agricultura, indústria, comércio, enfatizando a exportação de café, açúcar,
algodão, tabaco e madeira etc.
6
Sobre a Pré Amazônia Maranhense, consultar Otávio Guilherme Velho em Frentes de Expansão e Estrutura
Agrária (2013).
25
infância, haja vista Santo Antônio ser vizinho às comunidades de Oriente, Conduru, Canta
Galo, Frechal, Cutias, Alto Bonito, Monte Cristo e Tibiri.
Entendo que há, entre as comunidades acima mencionadas, uma complexidade de
relações que apontam não ser possível o estabelecimento de uma fronteira física, capaz de
transcender aos laços de solidariedade indissociáveis, construídos pelos nossos antecessores e
mantidas pelas gerações vindouras. Percebo essas relações se aproximarem da situação
apresentada por Almeida (2008) ao tratar das designadas "terras de preto 7", fazendo referência
ao contexto de domínios específicos em que famílias e seus descendentes permanecem nas
terras a seguidas gerações sem proceder ao formal da partilha, desmembrá-las ou mesmo
delas se apoderarem individualmente.
Na memória da minha infância, recordo das reuniões em que as pessoas dessas
comunidades - algumas, atualmente, meus entrevistados, como Petrola e Maria do Carmo, sua
esposa, vindos do Genipapo; Coqueiro e sua esposa Maria, do Oriente; Mariinha e seu esposo
Minegídio, da Canarana (hoje chamada comunidade Monte Cristo) - participavam da
comunidade e eram membros da associação de moradores de Santo Antônio, pois foi a
primeira a ser criada entre esses povoados. Essa forma organizativa também reflete os laços
de confiança, solidariedade, união, parentesco e pertencimento a um grupo. Igualmente, foi a
primeira comunidade, nos arredores, a ter escola que atendia alunos das comunidades
circunvizinhas
Em entrevista do senhor Manoel Raimundo Maia Pinto, conhecido popularmente por
Pinto, da comunidade de Santo Antônio, ouvi relatos de como era a organização das
comunidades. O entrevistado informa que, antigamente, as comunidades de Oriente, Tibiri,
Canarana, Ludovico, Cutias, Frechal, Conduru se centralizavam em Santo Antônio, que
funcionava como sede para a realização das reuniões, nas quais se discutiam os problemas,
trocavam experiências e onde todos cantavam as músicas das comunidades. Ressalto que a
centralidade de uma comunidade é relacional, estando condicionada em certas situações à
posição do informante ou ao próprio contexto e tempo.
Essa organização se dava também em torno da realização das rezas, na casa dos
moradores das comunidades, o que me leva a pensar na religiosidade como forma de
mobilização e organização política. A concentração de eventos ligados ao catolicismo em
7
No intuito de fazer distinção entre as categorias e termos utilizados, recorrerei às aspas em categorias de
classificação tidas como oficias, ou seja, aquelas empregadas e legitimadas pelas agências oficiais, conceitos e
noções operacionais dos autores que recorro para fundamentar teoricamente o presente trabalho. Os destaques
em itálico serão dados ao descrever trechos das falas dos entrevistados, as categorias acionadas pelos grupos,
termos enunciados em suas práticas sociais.
26
Santo Antônio deve-se à devoção religiosa de seus moradores, expressa também através da
tradição das rezas no núcleo familiar, o que deixou na comunidade um legado da religiosidade
e referência na centralidade de organização das comunidades.
Santo Antônio também era - e ainda é - reconhecido por morar na comunidade um
famoso curador chamado de Conceição Lobato, lembrado em várias histórias por seus feitos,
e também o rezador Faustino Juvito Ayres, respeitado pela notoriedade, dada a função social
que exercia. O rezador e o curador, pelo que pude perceber, foram pessoas influentes
politicamente, tanto que estes exerceram um mandato no legislativo municipal. Na cena da
política partidária, Faustino Juvito Ayres consta com a profissão de lavrador e Conceição
Lobato, como Pai de Santo, com mandatos em (1963-1966) e (1967/1970), respectivamente.
Esses mandatos estão inseridos em um período em que majoritariamente os vereadores eram
comerciantes, pecuaristas e pertencentes às famílias tidas como "tradicionais8".
A Associação de Moradores do Povoado de Santo Antonio é fundada em mil
novecentos e oitenta e seis (1986) e com o passar dos tempos cada uma dessas comunidades
vizinhas criaram suas próprias associações. A associação na época da fundação representava a
comunidade nos encontros de trabalhadores rurais promovidos pelo Sindicato de
Trabalhadores Rurais e nas reuniões das comunidades.
Ainda na entrevista com o senhor Pinto, foi possível observar que ele faz uma
distinção entre comunidade - enquanto reunião de pessoas que se mobilizam, solidarizam, se
juntam - e "associação", classificada como instrumento desagregador. Para o entrevistado, a
partir do momento que são criadas as associações, as comunidades passam a se organizar mais
internamente, vão se dividindo. Então podemos pensar que o critério organizador dessas
comunidades, além dos laços comunitários e de parentesco, se apoia em um caráter político-
organizativo.
A complexidade deste estudo se apresenta quando percebo a relação de
pertencimento ao grupo sendo submetida a um processo de intervenção oficial e às
arbitrariedades implicadas nesse procedimento. A instituição de fronteiras físicas, delimitando
uma área para fins de criação de "Projeto de Assentamento" da Reforma Agrária, impõe uma
modalidade de propriedade individual e categorias de classificação que se distinguem das
formas específicas da vida social do grupo e de como construíram suas territorialidades.
A instituição do traçado de linhas demarcatórias, passando pelo meio dos núcleos
familiares, ocasiona, por um lado, situações que põem em risco as relações comunitárias,
8
Para maiores informações consultar MENDES NETO, Gonçalo. Sebo x Embroma: disputas políticas em
Penalva, 1ª edição, 2009.
27
9
Art. 68 da ADCT. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
28
entanto o processo de delimitação territorial impõe uma divisão da comunidade, sendo que
membros de um mesmo grupo familiar passam a ser classificados como os de dentro e os de
fora, para designar aqueles que são ou não considerados "assentados".
Dessa maneira, mesmo que a comunidade à qual eu pertenço não tenha sido
"desapropriada", a própria ideia de "desapropriação" desarticula as relações internas e impõe,
por exemplo, que Santo Antônio se aparte fisicamente das demais comunidades. A ideia de
propriedade particular, no caso dos herdeiros, também vai sendo enfatizada como maneira de
proteger a terra de um "loteamento".
Mesmo com todas as interferências, os laços afetivos, de parentesco e relações
sociais, ainda que distintas entre os grupos persistem, pois são vínculos que ultrapassam
fronteiras administrativas, impostas pelas classificações oficiais e se solidificam em relações
comunitárias. Weber (2000) já ressalta que os laços étnicos possuem uma permanência e são
mais fortes que outros vínculos, pois incluem a noção de relações comunitárias que
promovem a formação de comunidades políticas.
Na contramão do debate em torno dos grupos étnicos, a "desapropriação" elabora um
cenário de unificação, criando categorias, mapas e fronteiras fixas em territórios onde os
grupos se misturam e se fundem (ANDERSON, 2008).
A arbitrariedade da ação oficial, que faz com que sejam elaboradas classificações
como os de dentro e os de fora, fez-me refletir como o processo de "desapropriação" para
criação de "assentamento" impôs condições para despolitizar a noção de território quilombola
e as relações sociais dos grupos. Essa intervenção concorre para o estabelecimento de
diferentes classificações que culminam em uma série de conflitos internos e com o próprio
Estado, elaborador da política.
Dessa maneira, na área "desapropriada" temos várias formas de classificações
externas, dentre as quais se destacam: "assentados" e "cadastrados", para designar todas as
famílias que estão dentro da área "desapropriada" pelo INCRA; e os "selecionados", aqueles
que, entre os "cadastrados", terão direito a receber o "lote", as "benfeitorias" e incentivos dos
programas governamentais. Há casos de famílias que não aceitaram realizar o "cadastro", por
não se considerarem "dentro" da "área" ou não aceitarem a atribuição de "assentado".
Para ser considerado "assentado", são impostos, pelo Estado, critérios dissociados
dos modos de vida construídos pelas comunidades que se autodefinem enquanto quilombolas.
Dentre esses critérios, destacam-se: ser brasileiro nato ou naturalizado, maior de 18 anos de
idade, possuir experiência em atividades agrícolas, ter renda mensal igual ou inferior a três
salários mínimos e participar da "seleção" para integrar um "assentamento". O
29
"cadastramento" para participar da "seleção" pode ser feita na sede do INCRA ou mesmo nos
acampamentos provisórios de famílias "sem-terra". Além do mais, os "assentados" possuem
como dever residir e "explorar" o "lote" e, em caso de desistência de participar do projeto,
comunicar por escrito e devolver o "lote" ao INCRA. São critérios externos que afirmam a
arbitrariedade do Estado como definidor de uma lógica genérica que implica na instituição de
modalidades de parcelamento da terra10.
Estima-se que nas cinco comunidades que compõem a área "desapropriada" residam,
atualmente, cerca de seiscentas famílias. A área destinada ao projeto de "assentamento"
denominado de Monte Cristo I corresponde numericamente a dois mil, novecentos e
cinquenta hectares, oitenta e seis ares, trinta e três centiares (2.950.86,36). A "área", que está
localizada no município de Penalva no Estado do Maranhão, prevê a criação de cento e vinte e
quatro (124) unidades agrícolas familiares, ou seja, é suficiente para atender somente 124
"assentados".
Na comunidade quilombola de Santo Antônio, com a criação do projeto de
"assentamento", foi criada a seguinte situação: a minha casa e as de meus familiares que estão
do lado esquerdo do campo de futebol foram consideradas como ficando dentro do
"assentamento" e os demais familiares, que estão na outra extremidade, ficaram de fora do
"assentamento". Assim, sou considerada de "dentro"da "área do PA", mesmo que me
autoidentifique quilombola, assim como membros da minha família.
13
Dom aqui é compreendido como mérito espiritual divino para enxergar seres ou coisas pertencentes ao
universo místico.
14
Para maiores informações vide "Quem não tem Santo tem Visagem: a contribuição de Santos e Encantados na
construção de territorialidades quilombolas na Baixada Maranhense" de autoria dos quilombolas Davi Pereira
Junior e Dorival dos Santos em Insurreição de Saberes (2013).
32
a ter períodos que diziam "está louco". Sua família com o tempo saiu da comunidade e não
mais retornou, e ele ficou apresentando problemas da loucura até a morte. Existem outras
histórias similares que fazem menção ao fato de que, ao contrariar a preservação dos recursos
naturais, se desafia a relação com o sobrenatural e coloca-se em risco a proteção dos
encantados.
Essas passagens nos remetem a refletir como o grupo afirma sua territorialidade, (re)
interpretada para manter a unidade do território, preservando as riquezas naturais e o uso
comum. Com a "saída" do "rico, afortunado", que representa a privatização dos recursos e a
instalação de conflitos, a comunidade continua unida e conservando seus modos de vida e a
forma de lidar com os recursos naturais e o território.
Além das relações na construção de territorialidades envolvendo o místico, outras
situações apontam para a aproximação de relações que me permitem pensar quão arbitrária é a
dissociação dessas comunidades diante de um processo desapropriatório. Nesse caso é
importante mencionar que o antigo herdeiro das terras do Santo Antônio, o senhor Faustino
Coelho (como era conhecido), tinha os moradores antigos de Conduru, representado pelo
senhor Merandolino Correia, considerado como posseiro. Essa denominação de posseiros,
neste caso, refere-se àqueles que trabalham e têm a posse da terra sem necessariamente
possuírem escrituras. Conforme me recordo, ouvi muitas histórias de que Merandolino
Correia pediu um pedaço de terra para trabalhar, um lugar de casa; como a terra era muito
grande, Faustino Coelho cedeu uma área onde ficava o canavial da antiga fazenda para
Merandolino Correia.
Havia uma reivindicação de titulação da "área" de Conduru por parte da família
Correia e a reivindicação de reintegração de posse por parte dos Coelho, instalando assim uma
disputa entre as duas famílias. Atualmente pouco se comenta sobre o assunto e a comunidade
de Conduru faz parte da "desapropriação" do INCRA. Tal situação de disputa pela terra
também é relatada pela senhora Maria Aires, a qual também informou sobre desavenças entre
sua avó, que se considerava herdeira de Monte Cristo, e os Correia, denominados por ela
como posseiros, que chegaram pedindo um lugar de casa.
Essa situação poderia ser apontada como um obstáculo para a pesquisadora, pois é
vista como herdeira de Santo Antônio, no entanto, as relações sociais do presente e as
mobilizações coletivas pela propriedade dos territórios me permitem fazer este estudo sem
constrangimento ou ameaça à comunidade de Conduru. Ao contrário, poderia correr o risco de
ser mal interpretada pela minha própria família, considerando que para alguns deles a terra é
um bem privatista.
33
das terras no mercado, o que deslegitima as formas de ocupação e ameaça a permanência dos
núcleos familiares nos territórios sob seus domínios.
São situações que servem para alavancar a construção identitária em torno da
ressignificação do quilombo, do fortalecimento das relações comunitárias, operando as
transformações de unidade afetiva para uma unidade política de mobilização, de existência
coletiva (ALMEIDA, 2008).
A reivindicação de territorialidades específicas emerge de situações do presente,
rompendo com a austeridade territorial construída no passado histórico, sustentada pela noção
de "imóvel rural" e fortalecendo instrumentos que atuem na interlocução com os antagonistas
e o Estado.
Com base nas informações adquiridas, os moradores que detêm a memória das
formas de ocupação das terras nas comunidades não fazem referência ao “quilombo” do
passado como forma de apropriação territorial; ao contrário, fazem a negação do termo para
indicarem que seus antepassados eram trabalhadores, "livres" ou escravizados, não eram
"pretos fugidos" ou "isolados" e sim trabalhadores que permaneceram nas terras mesmo após
a desagregação dos engenhos e saída dos antigos donos das fazendas.
Observa-se, porém, que a partir da década de 1970, início de 1980, com a aceleração
no mercado de terras, houve a retomada de "propriedade" por aqueles que se diziam “antigos”
proprietários e um descontrole na posse e uso dos recursos naturais, principalmente, com a
inserção de “fazendeiros”.
No caso do então território Monte Cristo, com a desagregação das fazendas e dos
engenhos - na área desapropriada, até o momento, constata-se que existiram efetivamente
quatro engenhos -, atualmente, até pode-se asseverar que vários grupos familiares
permaneceram cultivando as terras. Uns afirmam terem comprado, herdado ou mesmo
morarem naquela localidade desde que nasceram e onde viveram seus antepassados.
A criação de um "P.A" se dá por mediação sindical, por meio de um processo de
"desapropriação" consumado diante da alegação de direitos de outros agentes que mantêm
com a terra uma relação externa e comercial.
Paralela à instituição de um "P.A" existe, formalizada no INCRA e presente nos
discursos dos "agentes sociais" ou das lideranças, a reivindicação da titulação do território
Monte Cristo enquanto quilombola, sendo compreendido pela união de 6 comunidades:
Araçatuba, Conduru, Monte, Cristo, Oriente, Ponta Grossa e São Brás. O capítulo III deste
trabalho destacará a construção da identidade quilombola e os desafios e entraves enfrentados
pelas comunidades na defesa de direitos territoriais específicos.
35
15
Estudos realizados por Nunes (2011) em comunidades quilombolas de Alcântara (MA) observam a dinâmica
das comunidades e as situações de deslocamento como elemento de manutenção das fronteiras. Este estudo
permite compreender as categorias “sitio”, “centro”, “povoados" envolvidas nas dinâmicas territoriais e as várias
situações de apropriação territorial e mobilidades utilizadas localmente pelos moradores de Alcântara. Tais
classificações se aproximam da situação de estudo em análise, entretanto não as abordarei sistematicamente.
36
16
Designação atribuída àquelas pessoas que exercem função religiosa análoga aos padres ligados à igreja
católica. São detentores de um saber religioso específico, reconhecido pelos grupos sociais, sendo requisitados
em várias ocasiões, como batizados, conselhos matrimoniais, extrema-unção, rezar excelências e ladainhas. O
padre do mato goza de profundo prestígio social na região. Sua atuação está ligada ao “dito catolicismo
popular”. No caso do meu pai, Genésio Luis Sousa Ayres, havia um reconhecimento público pela própria igreja
de sua importância no exercício da função religiosa na região.
17
O meu avô era rezador e deixou de herança este ofício para meu pai. As ladainhas são rezas cantadas pedindo
perdão, agradecendo, louvando anjos e Santos da igreja católica. São realizadas por diversos motivos que vão de
uma reunião na comunidade, missa, festejos, promessas ou simplesmente fazer uma reza em casa por dado
motivo. Muitos trechos das ladainhas ainda são rezadas em latim. Na comunidade de Santo Antônio se realiza
no mês de junho uma trezena, ou seja, treze noites rezando ladainhas em homenagem ao Santo. As excelências
são as rezas encomendadas em intenção das almas, geralmente no terceiro, sétimo dia, ou após um mês do
falecimento de alguém. São lamentos, súplicas de perdão que duram, em regra, a noite inteira.
37
influencia na abrangência das relações sociais dentro e para além das comunidades em
questão. Esse pertencimento político contribui para a relativização do critério biológico. Está
em jogo a organização social, a interação entre as pessoas como nos coloca Fredrick Barth.
Para esse autor, a etnicidade possui uma dimensão política, relaciona-se com a organização
social do grupo (BARTH, 2000).
O pertencimento a todo esse contexto de vivência no quilombo e com as
comunidades do entorno nos remete à própria noção de identidade. Adota-se em tal estudo a
perspectiva que tem sido desenvolvida pelos estudos culturais no trato com essa temática.
Stuart Hall (2007), em um artigo intitulado “Quem precisa de identidade? 18”, mostra que as
identidades devem ser pensadas enquanto um conceito estratégico e posicional, e não
essencializado. Ele afirma: essa concepção aceita que as identidades nunca são unificadas;
que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não
são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e
posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma
historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação
(HALL, 2007).
E, no texto "Da Diáspora", Hall reafirma essa necessidade de estar ligado ao que ele
denomina de “negociação com nossas rotas”:
Hall com esse conceito nos ajuda a pensar a questão quilombola e a identidade que se
constrói não necessariamente vinculada a um passado histórico, mas com o que ele chama
estar mais relacionado a uma “negociação com as nossas rotas”.
18
Título original: Who needs ‘identity’? Stuart Hall, 1996.
38
Assim, não estaria ligado, portanto, a uma ideia essencializadora de identidades que
se pergunta “quem nós somos” ou “de onde viemos”, mas as questões básicas são: “quem nós
podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação
afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios”. Isso remete ao próprio sentido
de meu pertencimento como quilombola e ao processo de escrita, pois tem profunda relação
com uma ação transgressora. Estou diante de um processo de compreender como fomos
representados até hoje e de que modo torna-se necessário recolocar os discursos a partir dos
sujeitos com força de enunciação e de outros locais, ou seja, os locais que até então eram os
lugares da invisibilidade, dos silenciamentos ativamente produzidos.
São situações de formas de representação política que convergem para minha
inserção nos movimentos sociais e, posteriormente, no âmbito da pesquisa científica, ou
melhor, na atuação no campo acadêmico, provocando rupturas com paradigmas que se
solidificaram tendo no externo/estranho a posição de interpretação e produção.
19
O primeiro presidente do Centro de Cultua Negra do Maranhão foi Luís Alves Ferreira, chamado de professor
Luisão. Ele se autoidentifica enquanto quilombola da comunidade de Saco das Almas, Brejo-MA. Médico e
professor da Universidade Federal do Maranhão/UFMA, é um militante incansável pelos direitos do povo negro
e na luta contra a discriminação racial.
39
"terra de preto" era a denominação dada aos territórios pelos seus moradores e como eram
reconhecidos pelos de fora (PVN, 1998).
Através do PVN militantes do CCN-MA iniciam visitas às designadas terras de
preto, constatando os graves conflitos pela terra e destacando as peculiaridades no modo de
viver desses grupos. Esse mapeamento foi realizado, dentre outros municípios como
Alcântara, Itapecuru-Mirim, Codó, Mirinzal, também em Penalva, onde foram identificadas
situações de territorialidades específicas das designadas terras de herdeiros e já apontavam
para as comunidades de Santo Antônio, Oriente e Conceição do Ludovico (PVN, 2002).
Segundo meu informante Manoel Pinto, a primeira reunião dos militantes do CCN
em Penalva foi articulada por ele e minha mãe, Margarida, que os convidaram para realizarem
uma reunião que aconteceu no Sindicato de Trabalhadores Rurais e contou com a presença de
mais de duzentas e cinquenta pessoas. Nesse momento a pauta principal era a luta do negro
contra a discriminação racial, assim exposta:
20
Tomo movimento social a partir das ideias de Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer (2002, p.46).
Trata-se da ampliação do campo do político na disputa pela re-significação de práticas. Para os autores, os
movimentos sociais estariam inseridos em movimentos pela ampliação do político, pela transformação de
práticas dominantes, pelo aumento da cidadania e pela inserção de atores sociais excluídos no interior da política
40
envolvimento reafirma um pertencimento. Ele só foi possível por eu ser uma agente social de
uma comunidade quilombola.
Essas ações do CCN através do PVN demarcam e demandam um debate sobre a
questão fundiária que culmina em uma articulação nacional para assegurar o reconhecimento
formal do direito dessas comunidades à propriedade definitiva de seus territórios, ou seja, o
Artigo 68 do ADCT. Essa articulação foi assim descrita pelo militante do CCN, Ivan Costa,
ao apresentar a cartilha comemorativa dos 10 anos do PVN, da Sociedade Maranhense de
Direitos Humanos (SMDH) e do CCN:
21
Em abril de 1995, foi realizado pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão/CCN o IV Encontro de
Comunidades Negras Rurais Quilombolas ou Terras de Peto, em São Luís, com o tema “300 anos de Zumbi: Os
quilombos contemporâneos e a luta pela cidadania”. Esse encontro resultou na criação da Coordenação Estadual
de Quilombos Maranhenses, formada por 9 representantes dos seguintes municípios: Penalva, Alcântara,
Mirinzal, Cururupu, Codó, Itapecuru-Mirim, Turiaçu, Brejo, Caxias e Bacabal (PVN, 1998)
41
24
Vide estudos realizados por Camila do Valle e Rosa Elizabeth Acevedo Marin (2011), ao tratarem do
estudante negro e a negritude em Paris nos anos 20 e 30 do século XX: destaque para o poeta Léon-Gontran
Damas.
25
Podem ser consideradas como manifestações da negritude os quilombos brasileiros contra a dominação
colonial branca e a revolta dos escravos no Haiti.A recusa ao colonialismo, ao processo de "aculturação"
europeia levou vários intelectuais negros a escreverem sobre a "negritude", a exemplo de Aimé Césaire,
Willianedwards, Franz Fanon. Podemos considerar também os Movimentos Diásporicos e Pan-Africanos de
intelectuais negros.
45
Seguindo essa trajetória política, por cerca de oito anos integrei a equipe de trabalho
da ACONERUQ e da CONAQ; esta, até o ano de 2006, teve sua secretaria executiva
funcionando no Maranhão, vinculada à ACONERUQ. Participei de reuniões de articulação
com entidades parceiras e agências financiadoras nacionais e internacionais, assim como da
elaboração, coordenação e acompanhamento de projetos.
Estive, enquanto membro da comissão organizadora, em assembleias, reuniões,
cursos de formação em comunidades de vários municípios do Estado, bem como em
encontros estaduais e nacionais26, que são espaços de discussões, deliberações e articulações
dos quilombolas. Esses espaços me aproximaram de várias situações que são vivenciadas
pelos quilombolas, principalmente as demandas territoriais e os conflitos de terra.
Dessa maneira, as relações estabelecidas com os agentes sociais do território
pesquisado se estendem desde as relações familiares, de parentesco, até as relações políticas
firmadas no âmbito da organização dos movimentos sociais.
Durante a realização do VIII Encontro Estadual de Comunidades Negras Rurais
Quilombolas do Maranhão, em Itapecuru-Mirim/MA, no ano de 2006, uma liderança de
Monte Cristo questionou a um representante do INCRA sobre a possibilidade de alteração de
um processo de "área de assentamento" para território quilombola. Na ocasião, foi informada
a possibilidade de alteração do título e, nesse mesmo ano de 2006, foi formalizada a
reivindicação dos agentes sociais pela titulação do território quilombola. Então, as
informações e dados aqui apresentados não foram adquiridos somente por meio de entrevistas,
mas também da presença em vários eventos envolvendo a temática em diferentes momentos.
Essa inserção permitiu ampliar meus conhecimentos a respeito das demandas das
denominadas constitucionalmente "comunidades remanescentes de quilombo" pelo
reconhecimento de seus territórios. Dessa forma, as relações políticas em torno das questões
territoriais foram fortalecidas e/ou estabelecidas com lideranças referidas às comunidades do
território Monte Cristo.
Foi nesse contexto, após as comunidades se afiliarem à ACONERUQ no ano de 2006
e, juntas, encaminharem o pedido de reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação do
território Monte Cristo ao INCRA, de acordo com o Decreto 4.887/200327, que me aproximei
26
Participação no VII Encontro Estadual das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, de 23 a 26 de outubro de
2003, em Codó – MA; III Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, de 04 a 07 de
dezembro de 2003, em Recife – PE; VIII Encontro Estadual de Comunidades Negras Rurais Quilombolas do
Maranhão, de 21 a 24 de setembro de 2006, em Itapecuru-Mirim /MA.
27
Decreto 4. 887, de 20 de Novembro de 2003, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de
que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
47
28
Para maiores informações sobre o PNCSA, vide Povos e comunidades Tradicionais: nova cartografia
social/organizado por Alfredo Wagner Berno de Almeida, Emmanuel de Almeida Faias Júnior: Manaus: UEA,
(2013).
50
o outro e pensar a si mesmo. Provocam uma nova reflexão do uso da cartografia que não se
restringe a situações individualizadas e inalteráveis e sim dando visibilidade às relações e
situações sociais de "realidades" localizadas.
Como pesquisadora, meu primeiro contato com o grupo se deu durante uma oficina
do projeto “Mapeamento Social como Instrumento de Gestão Territorial contra o
desmatamento e a devastação: processo de capacitação de povos e comunidades tradicionais”
realizada em Penalva29. Nessa ocasião, analisando mais detidamente situações de conflitos
relatadas pelos agentes sociais, concentrei-me em duas: uma causada pela implantação das
linhas de transmissão em comunidades quilombolas de Viana (MA); e a outra acerca dos
relatos e depoimentos sobre ação de fazendeiros e ameaça de morte aos agentes sociais em
Penalva, o que me instigou a investir nesses estudos.
Como pesquisadora do Grupo de Estudos Socioeconômicos da Amazônia (GESEA)
e do PNCSA, que vêm realizando pesquisas, cursos de formação e mapeamento social (GPS)
com povos e comunidades tradicionais, tenho tido possibilidade de acompanhar os conflitos
de Monte Cristo.
Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da
Amazônia (PPGCSPA), precisei refletir sobre essas várias inserções e problematizar em que
medida o lugar de pesquisa exige reflexões profundas sobre minha própria posição, a qual não
está desvinculada da construção e desenvolvimento da minha pesquisa (BERREMAN, 1975).
Cabe ressaltar que o fato de pretender estudar as intervenções do Estado, que
estavam sendo impostas na minha própria comunidade e interferindo nos modos de vida do
grupo familiar ao qual pertenço - uma vez que não o considero restrito a Santo Antônio e sim
à rede de relações mantidas por seguidas gerações -, me permitiu construir uma visão crítica
dessas ações oficiais. Essas posições criam condições de possibilidades para o que Bourdieu
(2001) chama de uma nova maneira de fazer política, ao tratar o "conhecimento engajado"
como uma intervenção no mundo político, que obedeça, na medida do possível, às regras em
vigor no campo científico (BOURDIEU, 2001).
As classificações oficiais que se impunham com a criação do chamado
"assentamento" iam de encontro àquelas as quais foram construídas ao longo da vivência com
as comunidades. E essa violência nem sempre foi tão perceptível. A possibilidade de
interpretá-las em um trabalho científico e também a de pensar o Estado, não a gênese dele - já
29
Oficina realizada no denominado Galpão das quebradeiras de coco babaçu em Penalva, nos dias 01 e 02 de
março de 2012. Um dos resultados da oficina foi carta das comunidades tradicionais denunciando a violação de
direitos e conflitos pela propriedade das terras.
51
que Bourdieu (2014) afirma ser este um objeto impensável, de difícil compreensão -, mas a
partir dos seus mecanismos, de seus instrumentos de ação e legitimação.
Portanto, o projeto de pesquisa que se encontra em curso demanda uma análise
crítica sobre o "modus operandis" do Estado no processo de reconhecimento30 de territórios
quilombolas reivindicado pelos agentes sociais e na imposição das chamadas "áreas de
assentamento" da reforma agrária. Tomo para análise o caso do território Monte Cristo e os
conflitos sociais31 nele causados com a interferência das agências estatais.
30
O termo "reconhecimento" é analisado a partir das ideias de Nancy Fraser (2001) ao propor uma nova tarefa
intelectual e prática de desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento, que identifique e defenda apenas
versões da política cultural da diferença que possa ser coerente combinada com a política cultural de igualdade.
Para a autora, os movimentos sociais mobilizam-se em torno de eixos de diferenças, fazendo perder a
centralidade dos interesses de classe para identidades grupais como incentivo para a mobilização política na
contestação de injustiças. Na compreensão da autora, a injustiça se apresenta em termos socioeconômicos e da
injustiça cultural e simbólica. Na concepção de justiça cultural e simbólica, diz que esta está arraigada a padrões
sociais de representação, interpretação e comunicação. Exemplos incluem dominação cultural (sendo sujeitados
a padrões de interpretação e de comunicação associados a outra cultura estanha e/ou hostil); não reconhecimento
(ser considerado invisível pelas práticas representacionais, comunicativas e interpretativas de uma cultura); e
desrespeito (ser difamado habitualmente em representações públicas estereotipadas culturais e/ou em interações
quotidianas (FRASER, 2001 ). Assim, entendo que o não reconhecimento pressupõe a assimilação, invisibilidade
e generalização, sendo que o reconhecimento é um instrumento de proposições de demandas coletivas para a
superação das injustiças e valorização das diferenças de grupos específicos.
Adiciono a essas considerações o sentido que Almeida (2013) imprime ao reconhecimento, ao tratá-lo como
associado a ações coletivas e a mobilizações políticas implicando em autoconsciência ou confiança na própria
pauta de reivindicação do movimento ou da associação que conduz a luta. Para esse autor, a luta pelo
reconhecimento não se refere a um plano individual ou ao atendimento de uma necessidade básica, consiste
numa mobilização política diretamente relacionada a conflitos sociais, tanto requerendo o cumprimento de
normas ou a adoção de novos dispositivos quanto afirmando, através de uma ação coletiva, a construção de
territorialidades específicas do movimento ou associação que a conduz. Vide Prefácio Insurreição de Saberes:
Tradição quilombola em contexto de mobilização. UEA, 2013.
31
Marianne Schmink e Charles Wood (2012), em Conflitos sociais e a formação da Amazônia, dizem que
"conflito social é uma característica inerente à sociedade de classe. No caso da Amazônia, conflitos ocorrem
primariamente devido às disputas entre as reivindicações sobre recursos valiosos, tais como terra, ouro e
madeira. No choque dos diferentes interesses operando na fronteira, pode-se delinear uma distinção bastante
habitual entre as disputas internas ao próprio grupo social e as disputas que envolvem resistência a grupos
dominantes".
52
Inicialmente, imaginei não ser uma tarefa difícil, ao contrário, entendia que as
relações sociais já estabelecidas me facilitariam a investigação. Essas relações sociais são
construídas em momentos e situações diferentes, conforme explicitado.
Diante do exposto, há que se relativizar a posição e a relação social da pesquisadora,
uma vez que não há neutralidade na produção do conhecimento, mesmo sendo submetido aos
rigores acadêmico-científicos, em que o "pertencimento" pode ser considerado um obstáculo
epistemológico. Assim, a posição da pesquisadora deve ser relativizada; conforme Bourdieu,
só compreendemos verdadeiramente o que diz ou faz um agente engajado num campo, se
estamos em condições de nos referirmos à posição que ele ocupa nesse campo, se sabemos
“de onde ele fala” (BOURDIEU, 2004, p.23).
O pertencimento até aqui revelado, o fato de pertencer a uma comunidade
quilombola, o envolvimento com os movimentos sociais e as relações de pesquisa, vão se
enlaçando, estão imbricados. Mesmo que a posição e a trajetória sejam, em alguns casos,
vistas como obstáculos, o critério reflexivo foi exacerbadamente elaborado de acordo com o
discernimento da cientificidade (BOURDIEU, 2005). No entanto, os riscos dessa situação
para efeitos didáticos, em estilo de pesquisador e, ao mesmo tempo, pesquisado, trazem à tona
a liminaridade na construção do conhecimento, podendo se manifestar da seguinte maneira:
Assim, como exposto por Pierre Bourdieu (2005), consumar esse rito se constitui um
desafio. As situações experimentadas e analisadas criticamente me conduzem a assumir a
posição do autor que ocupa um lugar no seu mundo social e ao questioná-lo o apreende entre
o vivido e o raciocinado.
Nesse sentido, este estudo aponta para um deslocamento do lugar da produção
científica, que vem sofrendo mudança de paradigma ao longo do seu percurso. Aqui a
pesquisadora encontra-se numa posição liminar, onde não há um distanciamento social dos
seus informantes tão rígido como ocorre no caso das etnografias tradicionais.
De certo modo, essa perspectiva aponta para uma relação específica da pesquisadora
com os grupos, não marcada por um vigoroso distanciamento e diferenciação de posições
sociais e culturais entre pesquisador e pesquisado, o que exige um intenso investimento nas
interações pessoais com os informantes. No caso aqui retratado, trata-se de estabelecer
53
relações sociais de pesquisa com agentes sociais com os quais tenho proximidade, relação de
parentesco e sociabilidade, procedimento científico que demanda rigor e reflexividade.
Para a elaboração deste trabalho, tive que acessar estudos clássicos, que se tornaram
referência para a pesquisa de "campo", mas que demarcam uma posição do pesquisador e
lugar da produção. Nesses estudos clássicos - Bronislaw Malinowski (1978), Gerald
Berreman (1975), Evans-Pritchard (2013) -, o pesquisador geralmente é estrangeiro, homem,
branco e europeu e sua inserção se dá em grupos que lhe são desconhecidos e exóticos. A
minha posição aponta para o contrário desse modelo clássico: sou mulher, negra, quilombola
e nada tenho de estrangeira.
No caso em análise, as relações sociais imprescindíveis para o estudo científico se
unem com o universo social no qual a pesquisadora está inserida, haja vista sua
autoidentificação como pertencente ao grupo, as relações com formas político-organizativas
na reivindicação da identidade étnica e seus laços de familiaridade e parentesco com os
informantes. Familiaridade e parentesco aqui têm sentidos distintos, pois a familiaridade pode
ser tida como uma aproximação com o grupo e as relações sociais possíveis oriundas de uma
convivência; o parentesco é estabelecido através do reconhecimento de uma descendência
comum, de laços que podem ser consanguíneos e também podem transcender esses laços,
sendo estabelecidos de acordo com as relações sociais de solidariedade, compadrio e formas
organizativas (WOORTMANN, 1995).
Nesse sentido, mesmo as relações sociais e de familiaridade fazendo parte do
cotidiano e a pesquisadora fazendo parte do grupo, sua posição deve ser relativizada e
refletida sistematicamente. Segundo Otávio Velho (1978), o familiar não é necessariamente
conhecido, deve ser estranhado, problematizado, desmantelando as hierarquias, as
classificações e categorizações a que estamos habituados. Contudo algumas observações e
informações só se tornam possíveis pela interiorização das relações, pela intimidade e
confiança com o grupo.
Para compreender os mecanismos e a lógica das relações sociais é preciso iniciar a
difícil tarefa de descoberta e análise do que é familiar. Conforme Velho (1978, p.131), “o
familiar não deve ser visto necessariamente como exótico, mas como uma realidade bem mais
complexa do que aquela representada pelos mapas e códigos básicos nacionais e de classes
através dos quais fomos socializados”.
A partir disso, penso que a atuação da pesquisadora não deve ser desprovida da
preocupação com o controle das impressões (BERREMAN, 1975) decorrente do complexo de
observações e interferências, construídas a partir do que os indivíduos fazem, assim como do
54
que dizem, tanto em público como privadamente. Ainda, anuindo ao pensamento de Berreman
(1975), a reação inicial dos sujeitos ao etnógrafo que os estuda será sempre uma tentativa de
identificá-lo em termos familiares e as impressões determinarão a maneira como ele será
identificado.
Dessa maneira, ao me dedicar a realizar um projeto de pesquisa científica, percebi
que aquilo que considerava fácil, acessível, tornava-se um desafio à árdua tarefa de refletir
criticamente, permitindo gradualmente o rompimento com os obstáculos epistemológicos.
Gaston Bachelard (1996) diz ser a experiência, colocada antes da crítica, o primeiro obstáculo
que se impõe ao conhecimento científico. Esse autor sugere que a visão da realidade carrega
valores da existência social, que pode incidir riscos de naturalização do objeto. Sendo assim,
ele conclui que a experiência primeira não constitui uma base segura (BACHELARD, 1996).
Nesse sentido Bourdieu (1989) indica que se exercite a reflexividade para não se cair na
armadilha do objeto pré-construído, orientações as quais a pesquisadora se esforça em
experimentar.
Mediante exposições durante seminário do Programa de Pós-Graduação em
Cartografia Social e Política da Amazônia (PGCSP), que se norteou sobre a construção do
objeto de estudo, foi possível perceber, nas primeiras tentativas de construir a temática, as
interferências das pré-noções e insuficiências teóricas de uma pesquisadora iniciante. As
dificuldades, previamente, ocorreram através da naturalização de conceitos como “território”,
“terra”, “gleba” e de categorias como “assentados”, “quilombolas” sem a formulação de
problematizacão sugerida pelas práticas da cientificidade. As categorias acionadas pelos
grupos como território, quilombo, direito também vão sendo relativizadas.
Essa percepção sobre a naturalização de conceitos e categorias foi possível devido à
exposição pública do tema da pesquisa sem a elaboração de uma apresentação prévia. Esse
exercício possibilitou tornar-me atenta a contornar o empirismo que, em algumas situações,
poderia funcionar como limite imposto à construção da temática; daí a tentativa de pôr em
causa o pré-construído (BOURDIEU, 1989). A partir de então, a temática de estudo foi sendo
submetida a reparos e correções, delineando-se e somente a partir das reflexões do trabalho de
campo, somado ao esforço de desnaturalização dos conceitos, é que sua construção vai sendo
elaborada.
Sobre a construção do objeto de estudo, Pierre Bourdieu (1989, p.24) orienta que "é
somente em função de um corpo de hipóteses derivado de um conjunto de pressuposições
teóricas que um dado empírico qualquer pode funcionar como prova". Em concordância com
esse pensamento, Gaston Bachelard (1996) diz que o espírito científico advém
55
32
A equipe foi composta pelas pesquisadoras Cynthia Martins, Patrícia Portela, Luciana Railza, Poliana
Nascimento e Jhuliane Mendes de Abreu e estávamos trabalhando nos territórios de San Sapé, Formoso e Monte
Cristo, simultaneamente.
57
da comunidade. Segui com Raimundo Nonato e com a pesquisadora Patrícia Portela para a
comunidade Araçatuba.
Durante nosso percurso para chegarmos à comunidade de Araçatuba, tivemos por
algumas vezes que nos desviar dos caminhos existentes nos campos naturais, que servem de
acesso às comunidades, devido ao cerceamento com instalação de cercas eletrificadas.
Observamos também a criação bubalina e os seus impactos nos campos naturais.
A nossa informante em Araçatuba, a senhora Raimunda Nonata Belfort, falou-nos
sobre religiosidade, gerações da sua família, encantarias, o processo de "assentamento" e o
fato de Araçatuba ter ficado de fora do "assentamento". Também nos mostrou a
documentação que elaborou solicitando à Fundação Cultural Palmares (FCP) a certificação da
comunidade enquanto quilombola.
A Portaria nº 98, de 26 de novembro de2007, para efeito do regulamento que dispõe
o Decreto nº 4.887/03, institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos
Quilombos da Fundação Cultural Palmares, para a emissão da Certidão de Autodefinição
como remanescente dos quilombos.
A situação da senhora Raimunda Nonata, em uma primeira percepção, parece não
permitir que ela continue envolvida com questões sobre a "terra", pois como ficaram de fora
no processo do "assentamento", os supostos proprietários da terra iniciaram um "loteamento"
e estavam comercializando para os moradores. Por ela representar a comunidade, estava se
sentindo ameaçada, acreditava que a organização política do grupo estava comprometida, pois
os moradores estavam desacreditados da "regularização da terra". A presidente da associação
estava no impasse sobre continuar a luta, pois mesmo o seu marido já havia comprado um
"lote" do suposto proprietário e não apoiava mais sua militância. A complexa situação das
terras de Araçatuba e sua relação com a temática em questão será desdobrada nos capítulos
seguintes.
Percebi, em uma análise preliminar, a situação de conflito interno advindo das
interferências do projeto de "assentamento", uma vez que este deslegitima e despolitiza as
formas de construção de territorialidades específicas elaboradas ao longo do tempo.
Ao retornarmos para a comunidade de São Brás, acompanhamos a entrevista com o
senhor João Lobato Martins, conhecido como João Gaiola, um dos moradores mais velhos
que detém a memória da comunidade. Informou-nos sobre a existência de vários engenhos na
região, como os engenhos de San Sapé e Monte Cristo, em Penalva; engenhos Bacurizeiro e
Retiro, em Viana; engenhos de Tramaúba e Barro Vermelho, em Cajari; e do Engenho
Central, em Pindaré-Mirim. Fez referência às embarcações que passavam, servindo de rota de
58
comércio entre os engenhos pelos lagos de Penalva, Cajari, Viana e Pindaré-Mirim. Ele relata
nomes de supostos proprietários e formas de compras de algumas localidades referidas ao
território Monte Cristo.
Conforme nosso informante, os roçados para plantar cana de açúcar eram feitos nas
propriedades dos donos de engenho. Depois foram vendendo as propriedades uns para os
outros e foram se mudando, mesmo depois da libertação dos escravos os senhores ainda
ficaram manobrando com os negros que ficaram naquele mesmo lugarzinho.
O senhor João Gaiola, nas suas palavras, relata que um moço chamado Vicente
Carão, trabalhando para o Plácido dos Anjos, antigo dono do engenho, achou um Santo, São
Brás, e levou para Araçatuba. O Santo não se deu bem lá e veio embora para São Brás. O
Santo ficou aos cuidados de Plácido, foi festejado, erguida uma igreja de taipa e até hoje
festejam São Brás33. A igreja foi construída em alvenaria em 1940.
Informa que a sua família, para trabalhar, pagava foro, uma parcela da produção pelo
uso da terra para Plácido ou para Bento Campo. Para plantar mandioca tinham que pagar, só
não pagava pela moradia. Havia pessoas que aforavam do Saturnino Anchieta, no Monte
Cristo.
Essas "histórias dos engenhos" presentes na memória dos moradores tidos como
mais velhos, como o senhor João Gaiola, parecem ser desconhecidas dos planejadores do
projeto de criação de "assentamento" e, ao mesmo tempo, fundamentam a reivindicação que o
grupo tem feito pela titulação do território como quilombola.
Em seguida toda a equipe passou pela comunidade Monte Cristo e se dirigiu à
comunidade Conduru; aqui, parte da equipe entrevistou a senhora Maria Correia, e os demais
foram à comunidade Oriente marcar pontos de GPS. Encontramo-nos em minha casa em
Santo Antônio e retornamos para Penalva, onde tínhamos uma entrevista previamente
marcada com a senhora Maria Aires.
A senhora Maria Aires afirma ter sido obrigada a deixar a comunidade Canarana
(hoje Monte Cristo) por conta das ameaças e conflitos pela terra. Foi uma entrevista marcada
por momentos de emoção, pois ela e a filha ao contarem as histórias choraram muito.
Também estava presente um dos seus filhos, que, mesmo morando em Penalva, ainda trabalha
na comunidade. Essa entrevistada e sua família são amigos da minha família, e eu sabia que
33
A história oficial diz que na comunidade de São Brás há indícios da presença da Ordem dos Jesuítas, com o
intuito de catequizar os índios gamelas que habitavam a região nos arredores dos lagos e de construir engenhos
de cana de açúcar e fazendas. Com a expulsão dos Jesuítas e maior avanço da colonização dos Portugueses, por
volta de 1854, chegaram a um sítio onde encontraram muitas frutas e denominaram de São José, nele ergueram
uma pequena capela em homenagem a São Brás.
59
tenho parentes maternos em Monte Cristo, e dona Maria Aires acrescenta ser prima do meu
avô paterno.
A expropriação sofrida pela família da senhora Maria Aires fez com que todos se
mudassem para a periferia de Penalva, em virtude das constantes ameaças, inclusive de morte,
das quais, segundo seu relato, sua avó era vítima. Eram terras pertencentes ao antigo engenho,
que abrangia as terras de Araçatuba, pertencentes a dois irmãos: o Saturnino Anchieta e o
Onofre Anchieta. Segundo Maria Aires, Saturnino era branco e foi embora para São Luís; e
Onofre, preto, continuou cuidando das terras, cedendo lugar para fazer casas; com o passar
dos anos a terra foi sendo vendida e as ameaças foram forçando a saída das famílias.
Entrevistamos também a senhora Maria Correia, da comunidade de Conduru, que
afirmou a existência de um engenho pertencente ao pai de sua mãe, José Merandolino
Correia. A entrevistada não sabe precisar de onde veio seu avô, mas sabe que ele trabalhava
nos engenhos desde garoto. Ela diz que seu avô fazia o canavial, assim como outros vizinhos,
e pagava a terra com a produção, pois o engenho era do seu avô, mas a terra não. Em outra
entrevista, fala que a terra era do avô dela e o engenho não, evidenciando a importância das
diferentes narrativas. Ela também faz referência à fazenda que ficava mais distante,
provavelmente a fazenda Outeiro da Cruz.
Com a descrição dos relatos acima, intenciono mostrar minha primeira inserção no
campo da pesquisa e como ela foi fundamental para o desenvolvimento do presente trabalho,
haja vista as diversas situações mencionadas, que foram determinantes na escolha do território
Monte Cristo como temática de estudo. Nesse momento, que antecede ao projeto de pesquisa
ora apresentado, as entrevistas estavam direcionadas para os estudos do projeto "Mapeamento
social como instrumento de gestão territorial contra o desmatamento e a devastação: processo
de capacitação de povos e comunidades tradicionais", no âmbito do PNCSA, e as perguntas,
direcionadas à existência de engenhos na região.
No entanto, ao buscarmos identificar os engenhos ali existentes, não
intencionávamos reconstruir historicamente as formas de ocupação da terra, mas entender o
processo de territorialização34, para melhor compreender os conflitos atuais, tendo em vista
34
Para Almeida (2008) o processo de territorialização é resultante de uma conjunção de fatores, que envolvem a
capacidade mobilizatória, em torno de uma política de identidade, e um certo jogo de forças em que os agentes
sociais, através de suas expressões organizadas, travam lutas e reivindicam direitos face ao Estado. As relações
comunitárias neste processo também se encontram em transformação, descrevendo a passagem de uma unidade
afetiva para uma unidade política de mobilização ou de uma existência atomizada para uma existência coletiva.
A chamada "comunidade tradicional" se constitui nessa passagem. O significado de "tradicional" mostra-se,
deste modo, dinâmico e como um fato de presente, rompendo com a visão essencialista e de fixidez de um
território, explicado principalmente por fatores históricos ou pelo quadro natural como se a cada bioma
correspondesse necessariamente uma certa identidade. A construção política de uma identidade coletiva,
60
coaduna com a percepção dos agentes sociais de que é possível assegurar de maneira estável o acesso a recursos
básicos, resulta, deste modo, numa territorialidade específica que é produto de reivindicações de lutas . Tal
territorialidade consiste numa forma de interlocução com antagonistas e com o poder do estado. (AMEIDA,
2008, p.118/119)
35
São considerados Povos e Comunidades Tradicionais, conforme Decreto da Presidência da República de nº
6.040, de 07 de Fevereiro de 2007, os grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que
possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como
condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
61
36
Pierre Bourdieu diz que a proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas condições
principais de uma comunicação “não violenta”. De uma lado, quando o interrogador está socialmente muito
próximo daquele que ele interroga, ele lhe dá, por sua permutabilidade com ele, garantias contra a ameaça de ver
suas razões subjetivas reduzidas a causas objetivas; suas escolhas vividas como livres, reduzidas aos
determinismos objetivos revelados pela análise. Por outro, encontra-se também assegurado um acordo imediato e
continuamente confirmado sobre os pressupostos concernentes aos conteúdos e a forma de comunicação: esse
acordo se afirma na emissão apropriada, sempre difícil de ser produzida de maneira consciente e intencional, de
todos os sinais não verbais, coordenados com os sinais verbais, que indicam quer como tal o qual enunciado
deve ser interpretado, quer como ele foi interpretado pelo interlocutor. (BOURDIEU, 2012, p.697)
37
O tríduo consistiu em três dias de homenagens a Santo Antônio, sendo que no dia 11 foi feito o levantamento
do mastro e rezadas as ladainhas à noite. No dia 12 rezamos novamente à noite; no dia 13 foi a culminância,
quando aconteceu celebração de missa, seguida de batizados pela manhã, à tarde houve procissão e logo em
seguida a última noite de rezas. No dia seguinte deveria acontecer a derrubada do mastro, mas em virtude da
comemoração de aniversário de uma senhora de 89 anos da comunidade Tibiri, com a qual temos laços de
parentesco, deixamos para a manhã do dia 14. Cada noite de ladainha possui uma quantidade de novenários que
são responsáveis por organizar as comemorações ao Santo.
62
de San Sapé como forma de pagamento por seus trabalhos de ferreiro e daquele que
trabalhava na trubina, na turbina do motor do engenho para feitura do açúcar.
Ao terminarmos nossa conversa ele me orientou a ir até à casa de Manoel Coqueiro,
pois este sabia muita coisa e disse-me que depois, se eu voltasse, já teria se lembrado de mais
coisas.
Seguindo essa orientação, fui à casa do Manoel Coqueiro, na comunidade de Oriente,
dessa vez acompanhada por um primo, filho de Raimundo Goldinho, dada a sua insistência
em que eu não deveria andar sozinha; mesmo diante da minha relutância, não consegui
dissuadi-lo. Ao chegar à comunidade, fui recebida e, depois de alguns gracejos sobre minha
infância, falei o que pretendia e iniciamos a conversa. Estavam presentes meu acompanhante,
o senhor Manoel Coqueiro e a esposa dele, dona Maria Coqueiro, o senhor Marinho, irmão de
dona Maria e algumas crianças que se aproximaram.
O senhor Manoel Coqueiro, ao falar da situação das "terras" de Oriente, diz que
houve pessoas que não herdaram nem compraram, se apossaram e começaram a cercar.
Naquela época, dos mais antigos, o negócio era feito na base da confiança e não tinha
escritura nem um limite certo. Falava de um tempo de autonomia que foi comprometida com
a invasão dos fazendeiros e com a colocação de cercas, privatizando as terras.
Sobre o processo de compra e venda que resultou na "desapropriação", ele diz que os
herdeiros não regularizaram a terra e depois outros venderam as terras incluindo Oriente,
como se fosse toda de Monte Cristo. Diz que agora é tudo terra do INCRA e todo mundo faz o
que quer. Refere-se aos conflitos oriundos do processo de compra e venda e posterior
"desapropriação" como desarticulando as relações sociais próprias dos grupos, que
permaneceram nas terras.
Essas entrevistas auxiliaram na construção da pesquisa, quando percebi as
arbitrariedades na colocação das terras no mercado e no processo de "desapropriação" ao
desconsiderar os processos de "territorialização" construídos pelos grupos e a
autoidentificação com "territorialidades específicas".
As referências feitas aos engenhos ou aos antigos proprietários nos fazem refletir que
há disputas pela posse das terras que antecedem a "desapropriação"; há situações de conflitos
com os designados posseiros, mas, de certa forma, estes são contidos por regras intrínsecas.
No entanto, a ação ofensiva de fazendeiros e a posterior "desapropriação", fruto de um
processo de compra por pessoas de outro Estado e com seus limites contestados, acirram esse
conflito e geram outros envolvendo uma série de categorias. Esses conflitos atuais concorrem
para que internamente os grupos familiares entrem em discordância.
64
Ao mesmo tempo que nos ajuda a entender as disputas pela terra, recuperar a
memória sobre os engenhos faz emergir fatores que concorrem para uma identidade comum.
A permanência na terra daqueles que trabalhavam nos engenhos, escravos ou “libertos”,
adquirindo ou não títulos, é constatada socialmente. Nesse sentido, mesmo após a ação
"desapropriatória", há a reivindicação como território quilombola. E mesmo sendo um debate
do presente, no caso em análise, desabrochar as histórias sobre os engenhos remete a esse
passado e nos auxilia a pensar as arbitrariedades do Estado ao instituir um "assentamento".
Também sou direcionada a entrevistar o senhor Benedito Trindade, chamado de Pita.
Meu entrevistado nessa sessão não nasceu no Oriente, mas conta que ainda achou o engenho
no Oriente e que chegou a tirar muitos tijolos e tachas e me mostrou uma roda de ferro que
trouxe de lá. Ele menciona alguns herdeiros de terras, inclusive sua esposa, uma suposta
herdeira. Comenta sobre os irmãos Ubiratan e Ubirajara, que compraram as terras das
comunidades como sendo terra de Monte Cristo. Esse entrevistado era compadre do meu pai.
As entrevistas dos senhores João Gaiola, Petrola e Manoel Coqueiro levaram-me a
refletir sobre a relação estabelecida entre as comunidades e também com comunidades de
municípios vizinhos desde a época do trabalho nos engenhos. Há uma diversificação na
dinâmica das relações sociais que ultrapassa a limitação imposta pelas fronteiras físicas.
Mesmo compondo um território, cada comunidade tem sua especificidade, suas diferenças
sociais, culturais e mantém contato entre si.
Esses desdobramentos me convidaram a refletir sobre o conceito de "fronteira
étnica", apresentado por Frederik Barth (2000) como sendo fundamental na ação política do
grupo. Para o autor, as "fronteiras" envolvem as relações sociais e demarcação de sinais
diacríticos que diferenciam os grupos sociais, quando acionados internamente.
É conveniente mencionar as referências que vão se delineando em torno dos
proprietários antigos, ou seja, daqueles que adquiriram escritura ou herdaram as terras, mas
em um dado momento o processo de compra e venda opera um descontrole que foge ao
domínio dos moradores detentores da memória das comunidades.
Ao focar nas informações sobre os engenhos, não intenciono recuperar o processo
histórico de formação do grupo, até mesmo porque, diante da comercialização da terra, é
complexa esta genealogia. No entanto, empenho-me para compreender os diferentes
processos de manutenção desses grupos nas terras em que vivem. Tomarei o passado para
entender situações do presente, considerando que o que está em jogo não é restrito à ocupação
do território, mas abrange a diversidade de situações pelas quais essa ocupação é mantida e
legitimada.
65
38
Apresento como “centralidade” devido as entrevistas não seguirem um padrão ou modelo; outras informações
como religião, formas de organização, fontes de renda, são percebidas, pois entender o processo de
reconhecimento não se restringe às informações sobre as formas de ocupação da terra, mas exige um amplo
leque de elementos sobre os modos de ser e viver do grupo.
66
parar para cumprimentar as pessoas, iniciava uma entrevista. Assim, tive a oportunidade de
entrevistar duas pessoas as quais até então eu não tinha conhecimento de que eram
consideradas "selecionadas" do projeto de "assentamento". Atentei para o fato de outras
comunidades estarem envolvidas nos processos de "desapropriação" e não serem citadas
formalmente. Também percebi a compreensão dos "selecionados" sobre o "assentamento",
que é reduzido à questão da construção de casas.
A observação preliminar sobre a reivindicação enquanto comunidade quilombola
aparece na fala dos agentes sociais como apropriada a partir de um processo de construção da
identidade promovida pelas organizações do movimento negro, em especial o CCN, ainda na
década de 80, e posteriormente pela ACONERUQ. Essas organizações atuaram nessas áreas e
contribuíram para a construção identitária do grupo, reforçada a partir dos conflitos
fundiários. Elas chamam à atenção agrupamentos familiares específicos para uma nova
modalidade de apropriação da terra que resulta em direitos constitucionais. Tomando o
quilombo como uma categoria construída, essa percepção ultrapassa a formulação verbal da
palavra, pode ser percebida através do sentimento de pertencimento ao grupo e do processo de
autoatribuição (BARTH, 2000).
Nesse sentido, as contribuições teóricas contidas na abordagem de Barth (2000)
ajudam a entender um enfoque relativo aos elementos situacionais referidos ao processo de
afirmação identitária, deslocando os princípios essencialistas contidos na relação de
consanguinidade e enfatizando o contexto de interação social e as relações sociais mantidas
nas fronteiras, como elementos importantes para pensar os grupos étnicos39. Max Weber
(2000) também chama a atenção para a formulação de comunidades políticas, as quais
denomina de grupos étnicos, que vão além das relações de parentesco e de crença na origem
comum se afirmando nas relações comunitárias, na pertinência ao mesmo grupo étnico. É
nessa perspectiva que pretendo continuar esta etnografia.
A respeito das percepções sobre o reconhecimento enquanto projeto de criação de
"assentamento", a mobilização resulta do descontrole do processo de aquisição de terras
através da compra e venda aceleradas com a lei de terras do Maranhão (1969), a dita lei de
"terras Sarney". No caso de Monte Cristo, na década de 1970, essa trama é armada e
39
Em primeiro lugar enfatizaremos o fato de que os grupos étnicos são categorias atributivas e identificadoras
empregadas pelos próprios atores; em segundo lugar, todos os trabalhos apresentados assumem na análise um
ponto de vista gerativo: em vez de trabalharmos com uma tipologia de formas de grupos e de relações étnicas,
tentaremos explorar os diferentes processos que parecem estar envolvidos na geração e manutenção dos grupos
étnicos; em terceiro lugar, para observamos esses processos, deslocamos o foco da investigação da constituição
interna e da história de cada agrupo para as fronteiras étnicas e sua manutenção (BARTH, 2000, p. 27.)
67
sustentada com base na referida lei. Dessa forma, a venda da terra antecede a Constituição de
1988. Mesmo o STTR de Penalva, conforme informações, tendo solicitado a "desapropriação"
junto ao INCRA para criação de "projeto de assentamento" em 1995, ao que me parece a
formalização do processo só aconteceu em 2003. A formalização do processo para
reconhecimento como quilombo data do ano de 2006. Informações adicionais sobre o terceiro
momento de campo serão exploradas nos capítulos seguintes.
Durante os três meses de aprofundamento no campo de pesquisa, foi possível
analisar com critérios mais rigorosos a concepção que o grupo tem sobre os elementos que
constituem a sua prática social e, principalmente, as interferências que operam interna e
externamente nos seus modos de viver. Também foram realizadas pesquisas em fontes
secundárias para compreender as intervenções geradas a partir de modelos históricos de
acesso à terra e dos processos procedentes da ingerência do Estado no processo de
reconhecimento territorial de Monte Cristo. No entanto, as fontes arquivísticas serviram
apenas como suporte, uma vez que a autoridade da pesquisa é direcionada àqueles que detêm
autoridade e memória do lugar.
Posteriormente, foram utilizados dados documentais provenientes da análise do
processo de criação de projeto de "assentamento" e do processo de identificação, delimitação
e titulação de comunidades quilombolas, que tramitam na competência do INCRA,
Superintendência Regional do Maranhão, autarquia Federal criada desde a década de 70 para
tratar da reforma agrária no Brasil. Após a Constituição de 1988, passa a ser oficialmente a
agência estatal incumbida dos procedimentos de regularização e titulação dos territórios
quilombolas.
O contato inicial com o INCRA foi feito por meio de servidores do "setor
quilombola" para saber quais os meios de acessar os processos. Posteriormente, encaminhei
ao INCRA carta de apresentação e uma solicitação embasada na lei de acesso às informações.
Os documentos foram entregues em vias digitais e vias xerocopiadas, pois os processos
referentes a Monte Cristo estão respectivamente em dois setores, um chamado "setor
quilombola" e outro que tramita na denominada "Divisão de Obtenção de Terras", que trata do
"Sistema de Informação de Projetos da Reforma Agrária" (SIPRA). Os servidores se
mostraram disponíveis e atenciosos. Foi possível observar que no SIPRA os funcionários
demonstraram não reconhecer a existência do processo de regularização fundiária do
Território Monte Cristo. Por sua vez, no "setor quilombola" observam-se as dificuldades
operacionais e, na fala dos funcionários, uma angústia velada ao reconhecerem que a situação
em que está o processo e os conflitos ocorre por "culpa do órgão", que nesse período havia
68
transferido uma funcionária por estar desenvolvendo um trabalho considerado ativo com as
comunidades e repassando informações com transparência. Percebe-se que não há apenas um
desconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas, mas também a existência de
uma política institucional de deslegitimar, imobilizar e desqualificar a política de
regularização fundiária dos territórios quilombolas.
Essa incursão no órgão federal também possibilitou perceber o distanciamento entre
os setores e mesmo as disparidades nas estruturas operacionais como espaço físico,
equipamentos, pessoal, disponibilização de material informativo, material disponível em
biblioteca. Essa desconformidade entre setores significativamente discrepantes reforça uma
grave conclusão presente na fala de funcionários dos dois setores ao entenderem que a política
de regularização quilombola é complicada e longa, sendo mais fácil a "inclusão" das
comunidades em outros projetos universais como os "assentamentos", destinados aos "sem-
terra", tanto por estes implicarem em "facilidades" na "desapropriação", quanto pelas
possibilidades de políticas de investimento através de projetos de financiamento.
Ao tratar dos obstáculos à titulação definitiva dos territórios quilombolas, Almeida40
(2011) aponta dois entraves principais: a dificuldade de implementação dos procedimentos
político-administrativos, entendidos em termos de procedimentos que limitam os dispositivos
jurídicos. Tal limitação revela a inoperância na efetivação de direitos constitucionais
fortemente amparada na pré-indisposição em operacionalizar questões de cunho étnico-racial
que se põe na contramão de uma questão meramente fundiária. A segunda dificuldade
elencada pelo autor refere-se às estratégias de interesse econômico de latifundiários,
blindados por partidos políticos que interferem nas políticas públicas de regularização do
Estado.
As situações supracitadas estão presentes no caso de Monte Cristo. A política
fundiária de criação de "assentamento" baseada nos domínios de um "imóvel rural" se
sobrepõe ao território socialmente construído. Trata-se aqui de temporalidades e sujeitos
sociais diferenciados atuando no processo. De um lado, a questão meramente fundiária
mediada inicialmente pelo Sindicato de Trabalhadores na intenção de distribuir terras aos
considerados "posseiros", que foge ao controle comunitário; de outro, a tomada da
consciência étnica de um grupo, rompendo com a unidade dos critérios de classificação - quer
sejam "trabalhadores rurais" quer sejam."pequenos podutores -, desestruturando, assim, a
40
Vide ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Quais os obstáculos para a titulação definitiva das comunidades
remanescentes de quilombos? Quem são seus principais autores? In. Quilombolas e novas etnias. Manaus:
UEA, 2011.
69
informações que me foram repassadas se deram por meio das relações de confiança e de
proximidade. Algumas entrevistas não foram gravadas e em outros momentos tive que
desligar os equipamentos, para evitar expor meus informantes. Assim, procurei também
observar o que Bronislaw Malinowski (1975, p.55) chama de os "imponderáveis da vida real",
fenômenos de grande importância que não podem ser registrados através de perguntas, ou em
documentos, mas que devem ser observados em sua plena realidade.
As dificuldades neste estudo também se apresentam quando percebi a complexidade
da dimensão do território. Se tomássemos o critério geográfico, poderíamos pensar o campo
de pesquisa como “muito abrangente”, haja vista que este pode se estender além daquele
institucionalizado. No entanto, a ideia de fronteira aqui pretendida nos remete a relações
sociais que ultrapassam fronteiras administrativas com delimitações rigorosas.
Outra dificuldade encontrada esteve associada à impossibilidade de delinear as
especificidades de cada uma das situações relativas às territorialidades específicas. O fato de
ter ido a diferentes comunidades e ter entrevistado pessoas de diferentes pertencimentos e
posições, no que se refere ao território, me fez perceber as diferentes narrativas. Portanto, para
melhor situar os leitores apresento o Anexo 01, com a caracterização dos principais
entrevistados, mapeando seus pertencimentos e posições políticas relativas à "desapropriação"
da "área" como "assentamento" ou reconhecimento do território como quilombola.
Portanto, o processo de reconhecimento territorial de Monte Cristo exige da
pesquisadora uma dedicação em compreender os diferentes processos que emergem dos
conflitos territoriais. O estudo exige uma regularidade e em alguns casos uma linearidade para
estabelecer relações com as condições que ajudam a entender o presente e a ação do Estado
no processo de institucionalização do "assentamento", o que trataremos no capítulo seguinte
mais detalhadamente.
72
CAPÍTULO 2
como pagar as dívidas dos empregados/escravizados, deixaram a estes parte da terra como
pagamento.
Em outras situações fazendas e engenhos foram vendidos ou ocupados por outras
famílias, que mantiveram a produção dos engenhos para consumo interno com a mão de obra
local; havia ainda aquelas propriedades deixadas sob os cuidados dos herdeiros que foram
expropriados com a disposição das terras no mercado, resultando em conflitos e imposição de
subalternidade àqueles que permaneciam nas terras com seus modos de ser e viver
diferenciados.
No caso do território Monte Cristo, durante a pesquisa, foi possível identificar nos
relatos dos entrevistados a existência de quatro engenhos antigos e uma engenhoca ou
engenho mais novo, que apresento no Quadro 01 a seguir, com suas respectivas distinções.
77
Quadro 01: Engenhos e engenhoca identificados no território Monte Cristo ao longo da pesquisa
Comunidade Denominação Características Situação
Antiga fazenda de cana de açúcar com engenho que tinha como supostos proprietários
Trajano Araujo e sua esposa Maria da Luz; esse período era considerado como sendo
da escravatura. Depois foi comprada por Plácido dos Anjos Freitas, feitor na fazenda
São Brás/Ponta Engenho Engenho puxado a carro de
Santo Inácio que, conforme meu informante Plácido comprou uma escrava, da mesma
Grossa Santarenzinho boi.
fazenda, por quinhentos mil réis, chamada Ana Rosa Teixeira, e ficaram morando em
São Brás. Nesse relato, o entrevistado diz já está se acabando a escravatura. O engenho
continua sua atividade produtiva, mas deixa de ser considerado de escravatura.
Fazenda com engenho a vapor, apontados como supostas propriedades de Saturnino
Anchieta, que produzia açúcar para ser comercializado em São Luís. Mercadorias
Engenho Monte Engenho a vapor, funcionava
como carne seca, farinha d'água e farinha seca eram levadas pelo carro de boi a um
Monte Cristo Cristo ou na máquina, não era rolado a
porto chamado Amarração e embarcadas no vapor com destinos a São Luís aos
Monte Alegre boi.
cuidados da Senhora Carolina Anchieta, esposa de Saturnino, ambos residentes na
Capital.
Engenhoca, provavelmente
Engenhoca construída pelo senhor Merandolino Correia com peças do antigo engenho
Engenhoca do construída após a abolição,
Conduru de Monte Cristo, que foram cedidas por Onofre Anchieta. Produzia açúcar para
Conduru puxada a boi e mantida pela
produção local.
força do trabalho local.
Fazenda com engenho, supostamente pertencente à família Leite, engenho dos antigos.
Depois passou para a mão de um senhor e passou a ser chamado de engenho de Anísio,
Engenho Belo
Oriente Engenho a vapor porém não funcionava mais, só tinha as peças das quais até hoje se encontram
Monte
vestígios. As correntes da caldeira e outras peças de ferro foram vendidas, houve um
tempo em que se comprou muito ferro dessas peças.
De grande referência por possuir um relógio que apitava quando marcava as horas e era
Engenho San
Tibiri* Engenho a vapor ouvido em muitas localidades, mesmo nas mais distantes. São feitas referências a
Sapé
supostos proprietários como os Jansen, Leite e Lopes.
* Considerando a complexidade da dinâmica territorial, incluo aqui o engenho San Sapé, haja vista a referência feita à sua importância e também por parte da
comunidade Tibiri ser considerada incluída no processo desapropriatório. A reivindicação de território quilombola da comunidade de Tibiri se soma ao designado Território
San Sapé.
Fonte: Elaboração própria com base nas informações dos entrevistados
78
41
Boletim informativo nº 2. Junho de 2014, produzido pela equipe de pesquisa do Projeto Nova Cartografia
Social da Amazônia/PNCSA, no âmbito do projeto Mapeamento Social como instrumento de gestão territorial
contra o desmatamento e a devastação: Processo de Capacitação de povos e comunidades tradicionais.
79
posse e propriedade das terras. Foi através dessa experiência, conforme já mencionado, que
passei a me inserir na pesquisa no território Monte Cristo.
No tocante à existência de engenhos no território, não deterei maiores esforços em
esmiuçar seu processo de desagregação ou falência, pois a temática exigiria um
aprofundamento teórico e demandaria uma concentração específica que poderia desfocar a
situação analisada neste estudo. Os engenhos são mencionados devido ao fato de aparecerem
nos depoimentos como relacionados às formas de ocupação das terras no passado e posterior
venda das terras levando em conta as propriedades das antigas fazendas e deslegitimando
outras formas de ocupação.
As narrativas sobre os engenhos também auxiliaram criando condições de
entendimento para a construção do processo de "territorialização", que vai interagir para a
construção da identidade quilombola e das territorialidades específicas, fruto da reivindicação
do reconhecimento do território quilombola.
A noção de "territorialização" refere-se à atribuição dada por João Pacheco Oliveira
(1998) ao defini-lo como processo de reorganização social, implicando em uma intervenção
política face à constituição de mecanismos arbitrários, resultando em uma coletividade
organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de
decisão e de representação e reestruturando as suas formas culturais que o relacionam com o
meio ambiente e com o universo religioso (OLIVEIRA, 1998).
Assim, dispensarei empenhos para explanar como ocorre o processo de compra e
venda da antiga Fazenda Monte Cristo que culmina com a "desapropriação" de área para
criação de "assentamento". Tratarei de descrever as versões apresentadas, que vão do
reconhecimento de "territorialidades específicas", que se formam a partir das terras de
herança, a posterior disposição de terras no mercado e aquisição destas pelo Estado.
Analisarei como a partir de então os conflitos sociais se acirram com o avanço dos
fazendeiros e latifundiários.
80
2.2 Da noção de "propriedade privada" à intensificação dos conflitos pela colocação das
terras no mercado
42
Consta Ficha de controle cadastral de identificação, tipo de atualização como inclusão do projeto do tipo
Assentamento, denominado de Monte Cristo I de responsabilidade da esfera federal. Nos aspectos fundiários do
projeto, consideram o código do imóvel de nº 9500257561998, de nome Fazenda Monte Cristo, com processo
administrativo de obtenção nº 00151/2003-13, datado de 21/07/03.
81
Porém, mesmo a escritura sendo deixada aos cuidados dos filhos de Onofre
Anchieta, os títulos de herdeiros, conforme consta no processo do INCRA, são em favor de
quatro filhos de Saturnino Anchieta. É por meio da "herança" desses filhos que é realizada a
"cessão de direitos hereditários" a Ione Ribeiro Alves.
No decorrer desta pesquisa, em dezembro de 2014, a senhora Maria Aires faleceu; e
meses depois eu conheci o senhor Pedro Aires, seu irmão, e fui presenteada com as
informações repassadas por ele, o qual muito me ajudou a entender as relações familiares que
fazem com que se autodeclarem herdeiros de Monte Cristo.
Não percebi nas falas dos irmãos Maria e Pedro Aires a reivindicação de herança da
terra para a família, mas a angústia de terem seus direitos violados, de serem obrigados, pelas
ameaças sofridas, a deixar o local em que nasceram e viveram seus antepassados. Atualmente
as famílias da senhora Maria Aires e do senhor Pedro Aires moram em um bairro na periferia
de Penalva, mas todos os dias se deslocam à comunidade Monte Cristo onde fazem a roça,
identificada como referência ao modo de vida e que lhes garante o sustento.
Além dos descendentes dos Aires, que se intitulam herdeiros, na comunidade de
Monte Cristo vivem outros grupos familiares como os Mota e os Correia. Entre esses grupos
familiares, existem relações estabelecidas solidamente pelos antepassados e reconhecidas
pelos moradores atuais. Conforme relatos, na comunidade Monte Cristo, eles são a maioria
todos parentes e respeitavam a autoridade dos designados como herdeiros, que atuavam na
função de encarregados, ou seja, responsáveis pela terra.
Essa autoridade dos herdeiros é comprometida com a invasão e comercialização das
terras por terceiros, gerando conflitos e forçando a saída de Maria Aires e seus descendentes
mais próximos do povoado. Assim, as demais famílias permanecem nas terras e também são
ameaçadas de expulsão e impedidas de acessarem os recursos naturais. Porém, essa ameaça é
dissimulada, pelo fato destes não serem considerados donos, e só se intensifica após a
"desapropriação" e posterior reivindicação de território quilombola.
Ao comentarem sobre o falecimento da senhora Maria Aires, seus familiares
atribuem ter relação com as angústias que ela sentia por não aceitar as invasões e desmandos
em Monte Cristo. Essa angústia é perceptível também na fala de senhor Pedro Aires, que diz
sentir saudades de Monte Cristo e aos seus 84 anos de idade não ter mais coragem de voltar e
ver tudo se acabando. É com muita veemência que afirma e sustenta a herança das terras da
antiga fazenda pela sua família, assim rememorado.
82
Minha avó era do Monte Cristo, eu sou neto de Onofre, dono do Monte
Cristo. Depois que Saturnino Anchieta morreu, quem ficou na
responsabilidade, dono mesmo de Monte Cristo, foi o irmão Onofre,
pagando imposto. Ia para Amarração, pegava essa carga, para ir para a
rampa e desembarcava em São Luis, para a mão da cunhada dele, Carolina.
O vapor era o nome da embarcação e Amarração era o Porto que tinha. Eu
ainda achei a caveira do engenho de Monte Cristo dos Anchieta. Lá era
Monte Cristo, do meu avô Onofre Anchieta, pai da minha mãe Antonia
Anchieta Aires, a minha mãe, mulher de Mariano Aires do Cajari. (PEDRO
AIRES, 2015)
Essa mediação sindical, ao que é possível observar, mesmo não sendo considerada
uma ação deliberada, sustentou a ideia de propriedade privada, endossada quando o SRT de
Penalva ao requerer formalmente a "desapropriação" identifica as terras como pertencentes
aos irmãos Fontenele. Essa solicitação pode ter concorrido para reforçar a legitimação, por
parte do INCRA, da criação dessa modalidade de apropriação territorial. Observemos que o
requerimento é feito no final da década de noventa, cerca de duas décadas após os trâmites do
processo de compra e venda protagonizado por Ione e, depois, pelos irmãos Fontenele.
Em entrevista, o senhor João Batista, presidente do Sindicato na época, que assina o
requerimento citado acima, informa que para o STR a "desapropriação" possibilitaria aos
trabalhadores rurais terra para trabalharem, pois, após a venda para os Fontenele, os que
ficaram encarregados pela terra estavam cobrando foro. Nesse caso, tal solicitação baseava-se
no livre acesso à terra, já que a legitimação em domínio privado promulgava o fechamento
dos recursos naturais e estabelecia aos moradores a cobrança de foro, instituída sob comando
43
Conforme a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Art. 2º, § 1º Compete à União desapropriar por interesse
social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.
44
Requerimento nº 01, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Penalva, datado de 25 de março de 1999.
84
dos responsáveis pela administração da área. Nessa época o pedido incluía também o
"assentamento" de 200 (duzentas) famílias.
Posteriormente, o STR de Penalva comunica ao INCRA que o "imóvel rural" da
fazenda Monte Cristo foi priorizado para fins de "desapropriação", no decorrer das
negociações que aconteceram durante o Grito da Terra Brasil em 1999, e reforça o pedido
para que a agência estatal faça um esforço no sentido de proceder à vistoria do imóvel. O grito
da Terra Brasil é uma ação do Movimento Sindical e Trabalhadores Rurais (MSTR),
promovido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG),
Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETAG) e pelos Sindicatos de
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTRs). Começou a ser organizado nos anos 1990,
com a finalidade de chamar a atenção da opinião pública e dos governantes para as
reivindicações dos trabalhadores rurais do campo. Assim, transcrevo ofício assinado pelo
presidente do STR na época, Manoel Raimundo Maia Pinto:
45
A Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, define Imóvel Rural o prédio rústico, de área contínua qualquer
que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através
de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada.
46
No referido Decreto a Fazenda Monte Cristo consta de 2.965,77,4 (dois mil novecentos e sessenta e cinco
hectares, setenta e sete ares e quatro centiares, objeto do Registro de nº R-1-80, fls.75, Livro 2-S, do Cartório do
1º Ofício da Comarca de Penalva, Estado do Maranhão (Processo INCRA/SR-12/nº 54230.000151/2003).
86
O processo de luta pela "terra" de Monte Cristo foi encabeçado politicamente pelo
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Penalva. Nesse momento, as questões referentes aos
conflitos das comunidades pela terra, via de regra, eram amparados pelos STRs. As
organizações sindicais articulavam os grupos de trabalhadores e eram responsáveis pela
mediação dos conflitos por se constituírem na forma organizativa com as quais as pessoas
ligadas a esses grupos sociais mantinham relações.
A reivindicação do processo de "desapropriação" em Monte Cristo é mediada
institucionalmente pelo STR. A luta pela terra, que o Sindicato trava na intenção de ajudar as
comunidades referidas a Monte Cristo, tem como antagonistas, além de fazendeiros, os
grileiros e os cartórios locais. O STR de Penalva é que possuía capilaridade política para dar
visibilidade às demandas, às lutas e aos conflitos em que as comunidades negras rurais
estavam envolvidas. No entanto, o Sindicato não se constitui em uma esfera de reivindicação
pelo dado "étnico", porque não é sua seara de discussão.
Sendo assim, diante da situação de Monte Cristo, o STR é a instituição que intervém
no processo de "desapropriação" para criação do PA. Esse procedimento ao mesmo tempo em
que pode ter reforçado a ideia de propriedade privada da "terra" pelos irmãos Fontenelle,
conforme já foi indicado no subtópico 2.2 deste Capítulo, deixa lacunas sobre possíveis
trâmites da solicitação de "desapropriação".
As informações colhidas nas entrevistas assinalam que após a compra da terra os
irmãos Fontenele perceberam haver muitas famílias morando e trabalhando nela, tinha muita
gente dentro, fato que impossibilitaria atender a pretensão que tinham de realizar um projeto
de criação de gado. Por esse motivo, foi mais lucrativo venderem a terra para o governo.
Pode-se também inferir que essa mediação, na época, fez parte da luta sindical em
garantir a terra para os trabalhadores rurais, observando que os STRs são organizações que
defendem os interesses da "classe trabalhadora" a ele associados; são instituições
representativas de categorias vinculadas a uma atividade socioeconômica e profissional em
que oportunizar melhores condições de vida ao trabalhador, benefícios trabalhistas, produção
e renda seriam suas principais bases de direitos.
87
como fazendeiros, e a dona Estácia, como suposta herdeira. A atuação do cartório de Penalva
é constantemente questionada.
Os cartórios podem ser considerados como antagonistas das comunidades negras
rurais, não somente no caso estudado. Eles constantemente aparecem nas narrativas dos
agentes sociais com essa conotação, visto que não é difícil se identificar duplicidade de
registro, aparecimento de registro em cartório, mesmo depois do processo de
"desapropriação" ter oficialmente sido efetivado ou estar em curso.
A postura de alguns cartórios possibilita o aparecimento de um fenômeno que
denominamos de “terras fantasma”, são terras registradas pelos cartórios em determinadas
localidades e, quando verificados, os registros existentes são irreais ou mesmo comportam
uma quantidade física infinitamente inferior à registrada. Isso dificulta os processos, visto que
no Brasil o Direito opera com uma noção evolucionista que entende a terra em uma
perspectiva vinculada à "cadeia dominial". Os cartórios, deste modo, compõem o instrumento
burocrático que atende as regras para "registro" da propriedade, sendo eles condicionados às
formalidades do sistema brasileiro de cartórios, apontados por James Holston (2010) como
um sistema privado, labiríntico e corrupto.
Portanto, nesse momento de solicitação de "desapropriação", pensemos na
configuração do STR enquanto instituição em que a forma de "apropriação" da terra está
vinculada aos padrões da política de Estado, instituída pela "reforma agrária", com forte apelo
para a criação de "assentamentos" para trabalhadores rurais.
Desse modo, uma vez que a (des)apropriação não implicou na resolução dos
conflitos e sequer foi de fato efetivada, a partir de novas formas organizativas, respaldadas em
direitos específicos, passa-se a reivindicação do território em uma nova frente de luta com
recorte em critérios de autoatribuição identitária. No caso de Monte Cristo essa reivindicação
territorial é reforçada com a participação dos agentes sociais das comunidades no VII
Encontro Estadual de Comunidades Negras Rurais Quilombolas, conforme já mencionado no
primeiro Capítulo, em que se associam à ACONERUQ e formalizam processo de titulação de
território quilombola no INCRA.
A questão da representação é acionada através das mobilizações dos movimentos
sociais, de outras formas de organizativas, das quais trataremos mais detidamente no terceiro
Capítulo, apoiados em identidades coletivas.
No entanto, cabe mencionar que se inicia uma disputa pela representação, uma vez
que as reivindicações pela propriedade da "terra" deixam de ser feitas exclusivamente pelo
SRT e convergem para formas de mobilizações políticas em que o critério "étnico" prevalece
89
como assegurando a titulação definitiva dos territórios. Nesse sentido, Almeida (2006) chama
a atenção para o fato do critério "étnico" não se ater a uma língua, a laços de sangue ou a uma
origem comum e sim expressando formas de agrupamentos políticos, que compreende o
movimento quilombola e indígena, assim entendido nas palavras do autor:
Sendo assim, tomo como ponto de partida a tarefa imprescindível de, na construção
da temática de estudo, tomar os instrumentos inerentes a essa construção para análise,
atentando também para os cuidados em abstrair as pré-noções e o pré-concebido para melhor
compreensão das lutas de classificação (BOURDIEU, 1989).
Essa abstração é reflexo de um exercício analítico, uma vez que percebi no projeto
preliminar de pesquisa ter tomado os termos “quilombo” e “assentamento” como categorias
dadas a partir das experiências empiricamente vivenciadas e dos anos de militância,
principalmente observáveis no movimento quilombola. Posteriormente, percebi que, com a
instituição do denominado "assentamento", o Estado impõe várias outras categorias como
"lote", "beneficiado" e "cadastrado".
Aqui a posição enquanto pesquisadora e o envolvimento com o movimento social, já
descrito na Introdução, especialmente com as formas político-organizativas dos quilombolas,
não estão dissociados, pois a formação é uma exigência da vida social frente à relação de
engajamento com a ação política. Bourdieu (2001) marca uma associação entre pesquisadores
e militantes, ao considerar os pesquisadores indispensáveis para desmontar as estratégias
elaboradas pelos poderes econômicos e políticos que dispõem de recursos científicos a seu
serviço. Em certo sentido, encontro-me diante de três desafios ao lidar: primeiro, com a
relação de pertencimento ao grupo; em seguida, com as relações pertinentes à militância
política quilombola e, finalmente, com as relações de pesquisa.
Assim, dialogando com o pensamento de Borges (2005), o qual concebe que
“notoriamente no hay clasificación del universo que no sea arbitraria y conjetural”; no estudo
ora apresentado, a construção das categorias “assentamento” e “quilombo” será abordada
enfatizando modalidades de acesso à terra legalizadas pelo Estado brasileiro. No caso dos
“assentamentos”, estão inseridos no processo da política pública de "reforma agrária"; e no
caso do "quilombo", o reconhecimento do direito da "regularização fundiária" de seus
territórios acionado pela reivindicação da identidade quilombola.
Este trabalho também requer colocar em jogo o processo de produção e construção
dos conceitos analisando sua gênese e os interesses em disputa. Neste caso, o debate de
Bourdieu (1989) sobre o conceito de “região” oferece elementos para entender essa "di-visão"
despótica do mundo social. Tal conceito será apresentado ao longo da discussão e será basilar
para entendimento da construção e imposição das categorias de classificação que serão
apresentadas ao longo deste estudo.
Desse modo, a "di-visão" da denominada Baixada Maranhense, em certo sentido,
coaduna-se com os critérios de classificação elaborados pelas agências oficiais nela
93
observados. Também nos ajuda a entender os conflitos sociais originados pelo uso, monopólio
e exploração dos recursos naturais, tão intensos nessa região, e pela disputa da propriedade
das terras.
Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os estudos da
Divisão Regional iniciaram-se em 1941. Tinham como finalidade principal sistematizar as
várias "divisões regionais" que vinham sendo propostas, de forma que fosse organizada uma
única Divisão Regional do Brasil para atender à divulgação das estatísticas.
Segundo o IBGE, da continuidade desses trabalhos citados acima decorreu a
aprovação da primeira Divisão do Brasil em regiões47, sendo classificadas em: Norte,
Nordeste, Leste, Sul e Centro-Oeste. Essa decisão ocorreu oficialmente em 31/01/1942,
legitimada através da Circular nº1 da Presidência da República. Por sua vez, a Divisão do
Brasil em Zonas Fisiográficas, baseadas em critérios econômicos do agrupamento de
municípios, foi estabelecida pela Resolução 143 de 6 de julho de 1945. Estas foram utilizadas
até a década de setenta para a divulgação das estatísticas produzidas pelo IBGE. Os estudos
para a revisão da Divisão Regional, a nível macro e das Zonas Fisiográficas, ressurgem
posteriormente em virtude das transformações ocorridas no espaço nacional.
Usualmente naturalizado, o conceito de "região" reporta-se a uma classificação
arbitrária estratégica, objeto de disputa de várias ciências pelo seu monopólio e legitimidade.
Assim, Bourdieu (1989) define a "região" como um acto de autoridade que circunscreve o
território, que decreta a definição legítima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do
território, em suma, o princípio da "di-visão" legítima do mundo social. As fronteiras aqui
retratadas são produtos dessa divisão, baseadas em critérios classificatórios biológicos e
geográficos e/ou de acordo com o domínio que se pretende impor. A ideia de "região"
pressupõe a ruptura com um estágio anterior à imposição de tais fronteiras.
Desse modo, ao referenciar a denominada "região" da Baixada Maranhense,
considerá-la-ei como inserida no mecanismo de "di-visão" geográfica do Estado do
Maranhão, em seus interesses econômicos, sociais e políticos. Essa denominação de "Baixada
Maranhense" se modifica e é passível de subdivisões elaboradas no plano das políticas
47
Conforme fontes do IBGE: Considerado um dos mais completos geógrafos da sua geração, Fábio Macedo
Soares Guimarães desenvolve estudo sobre divisão regional do Brasil, seguindo o objetivo da campanha levada a
efeito pelo Conselho Nacional de Geografia/CNG para adoção de uma forma única de organização regional para
o País. Elogiada por não desmembrar as unidades políticas, a proposta de divisão regional apresentada por ele ao
Conselho - Resolução n 72, de 14 de julho de 1941- ajusta-se aos fatores naturais clima, vegetação e relevo, bem
como se serve da posição geográfica para nomear as Grandes Regiões, ao mesmo tempo em que atende às
necessidades da administração pública, razões suficientes para que fosse adotada como Primeira Divisão Oficial
do Brasil.
94
públicas tais como: "Baixada Ocidental", "Campo e Lagos", "Campos Alagados", "Região das
Flores".
Para além da arbitrariedade na construção da região conhecida como Baixada
Maranhense, cabe ressaltar que a situação tomada para análise exige pensar no caráter
arbitrário presente nas políticas governamentais, especialmente no caso das políticas
fundiárias. Conforme veremos no decorrer do trabalho, o processo de reconhecimento
territorial estudado passou por diferentes processos de intervenção, cada um deles impondo
um tipo de classificação.
A "região" classificada, oficialmente, como "Baixada Maranhense", em sua
variedade de riquezas e/de recursos naturais tem sido cenário de intensos conflitos fundiários,
ocasionados pela concentração das terras por latifundiários, pelos interesses estatais e
privados para expansão do agronegócio e pela comercialização ilegal e desordenada das
terras.
Os interesses de caráter privatista nessa "região" convergem exasperar os conflitos
pela propriedade das terras, particularmente diante da implantação de projetos tidos como
desenvolvimentistas, a saber: criação extensiva de bubalinos, plantio de capim para alimentar
animais; implantação de grandes empreendimentos como barragens, linhas de transmissão;
privatização dos campos naturais para criação de peixes em cativeiro, introdução da criação
de camarão em cativeiro e plantio de arroz. Os campos naturais caracterizam-se por uma
vegetação plana e úmida, sofrem influencia da maré, enchem durante o período chuvoso que
ocorre entre dezembro a maio e propicia a prática da pesca de uma grande variedade de peixes
que servem de fonte de recursos das famílias e para o transporte fluvial. No período da
estiagem secam servindo de pasto para animais e facilitando o transporte e acesso entre os
lugares.
Assim, trata-se de uma "região" de intensos conflitos ocasionados pela disputa
pela propriedade das terras, em sua maioria, cercadas por grandes fazendas. Mesmo áreas
públicas consideradas como de utilização comum como os campos naturais inundáveis que
desde a década de 1960, com o projeto do governo de incentivo ao crescimento econômico da
"Baixada Maranhense", são privatizados para a prática de criação de bubalinos em cercados
eletrificados48.
48
Áreas de terras são cercadas com arame em aço farpado, ligados á corrente elétrica.
95
49
Vide Pierre Bourdieu em As duas faces do Estado. In Le Monde diplomatique – edição portuguesa, II Série, nº
632012; disponível em < http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1080>.
97
A política institucional adotada pelo INCRA, ao que foi possível observar por meio
de pesquisas, desencadeia situações favoráveis aos interesses de supostos proprietários. Há a
legitimação de uma ideia de "propriedade privada" que é contraditória às formas de uso do
território pelos moradores. Ao mesmo tempo, ressalta-se a contradição do Estado ao permitir
essa modalidade "privada" em uma área por ele "desapropriada" para "assentar" famílias de
trabalhadores rurais, classificados como "posseiros".
98
Sobre o pagamento de foro, percentual cobrado pelo uso da terra para fazer roça, em
produtos, serviços ou dinheiro, o depoimento acima evidencia que o senhor Zé Pinto, pessoa
que ficou encarregada de cuidar das terras na ausência dos irmãos Fontenele, cobrava foro
aos moradores sob a alegação de que era propriedade privada. Após a morte do encarregado,
os designados no depoimento como "os que têm a terra", "outros particulares", ou seja, os
fazendeiros, também não mais aforaram as terras. Abreu e Júnior são tidos como grandes
fazendeiros que cercaram as terras e impedem os moradores de trabalharem e utilizarem os
recursos de uso comum.
O debate sobre a ação do Estado e como ela está fundamentada em critérios
arbitrários é imprescindível nesse estudo. Benedict Andersom, em “Comunidades
Imaginadas” (2008), ressalta que a classificação das categorias está densamente ligada à ideia
de surgimento da Nação, que tem sua maior expressão na delimitação territorial,
categorização dos grupos e legitimidade da sua linhagem. Através das fabricações de
instrumentos como o “mapa”, o “museu” e o “censo”, o Estado consolidou seu poder de
dominação territorial, genealógico e o monopólio das classificações, respectivamente.
Esses critérios de classificações também são tratados por Jacques Rancière (1996).
Ele concebe a própria ideia de Democracia criada por Clistenes - estadista político ligado à
Aristocracia na Grécia - como um critério arbitrário, já que estabelece que os classificados por
“ethnos”- designando a "partilha natural" - seriam substituídos e classificados por “demos” -
100
uma "partilha artificial"50. Esta partilha separa, assim, grupos diferentes em limites territoriais
e força a destituição de laços de pertencimento a uma comunidade específica em detrimento
de grupos genéricos.
A ideia de "demos" associa-se solidamente com os critérios de uma política de
assentamento, separatista, genérica e com a imposição de critérios de classificação
estabelecidos arbitrariamente por estadistas. No entanto, ao tratar da reivindicação do
território como quilombola, percebemos que o "ethnos" se desloca dos critérios "naturais",
passando a combinar identidade com território no intuito de efetivar sua participação no
"processo democrático", que passa por sucessivos arranjos em seu conceito.
Tais classificações são elaboradas e monopolizadas por instituições ou grupos
hegemônicos que detêm o poder político e econômico, impondo condições para a construção
da noção de um território universal, limitado e igualitário. São produzidas a partir de
intervenções externas que modelam o ordenamento territorial proposto pelo Estado,
conferindo atributos para a manutenção do poder, controle e concentração de terras.
No Brasil o imperialismo consolidou a ideia de "Nação" como uma associação
política de "cidadãos" classificados como livres e independentes. No entanto, a divisão
territorial fixada pelo colonialismo deu-se através da concessão de capitanias sob a forma de
governo monárquico e hereditário. Tem-se, assim, a definição da "Nação Brasileira" e a
delimitação do seu "território", constitucionalmente principiada em 1824. Dessa maneira se
perpetuou desde o período colonial/imperial a concentração de terras pelos considerados
sucessores das linhagens nobres e legitimada através das instituições de controle que detêm o
poderio econômico, ou seja, o Estado e a Igreja.
Essas prerrogativas em relação ao aceso à terra foram ratificadas através da Lei de
Terras de 185051, que estabelece a proibição da aquisição de terra por outro título que não seja
a compra. Essa Lei fortaleceu a iniciativa privada uma vez que revalidava as "sesmarias" e
outras concessões e estabelecia os critérios para identificar terras devolutas, impossibilitando
a aquisição de títulos senão àqueles economicamente privilegiados. Acrescenta-se, no
Maranhão, a Lei nº 2.979, de junho de 1969, conhecida como a Lei de Terras Sarney.
50
Segundo Rancièr (1996), "O ethnos parte da ideia de classificar os grupos de acordo com critérios
considerados naturais, substituído por demos em que separava em limitações territoriais, grupos étnicos de
regiões diferentes".
51
Dispõe sobre as terras devolutas no Império e acerca das que são possuídas por título de sesmaria sem
preenchimento das condições legais bem como por simples título de posse mansa e pacífica; e determina que,
medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso, assim para empresas particulares, como
para o estabelecimento de colônias de nacionais e de estrangeiros, autorizado o governo a promover a
colonização estrangeira na forma que se declara.
101
52
Reforma Agrária é o conjunto de medidas implementadas pelo Governo Federal visando à melhor distribuição
da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios da justiça social,
do desenvolvimento rural sustentável e ao aumento da produção no campo.
53
Art. 55. Na colonização oficial, o Poder Público tomará a iniciativa de recrutar e selecionar pessoas ou
famílias, dentro ou fora do território nacional, reunindo-as em núcleos agrícolas ou agroindústrias, podendo
encarregar-se de seu transporte, recepção, hospedagem e encaminhamento, até a sua colocação e integração nos
respectivos núcleos.
102
54
Conforme Decreto 4.887/2003 que trata o art. 68 do ADCT, a caracterização dos remanescentes das
comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.
104
Analisando essa informação, somos levados a pensar no caso de Monte Cristo como
não alcançando essa fase de um processo de "regularização fundiária". Ao contrário, há uma
ausência de regularização, tanto como é perceptível na presença e ação de fazendeiros.
Seguindo os depoimentos dos agentes sociais, os grupos que ali permanecem já
ocupavam e usavam o território no regime de uso comum antes da intervenção de
modificação no regime de posse e uso imposto pelo Estado. A solicitação de "desapropriação"
da área realizada pelo STR de Penalva configura a tentativa de devolver a terra para os
trabalhadores, já que estavam sendo relegados à condição de "posseiros".
Trata-se de um episódio orquestrado pelo próprio Estado, pois os títulos de
propriedade, historicamente, estiveram sob domínio das elites dominantes que detêm o capital
econômico e influência política, a quem são dadas condições favoráveis para aquisição e
demarcação de terras, mesmo aquelas já ocupadas, notadamente amparados por lei como no
caso da Lei de Terras de 1850.
As ações de "reforma agrária" designadas pelo Estado, em regra associadas aos
"assentamentos", pressupõem um desenho de "região", são modelos únicos com a intenção de
criar unidades de produção econômica. Esse modelo de reforma na estrutura fundiária e suas
leis complementares foram insuficientes ou mesmo inadequados para a variedade de situações
nas formas de uso e ocupação da terra por grupos distintos.
No caso específico do território Monte Cristo, a contrariedade nos atos de Estado é
que com a arbitrariedade na criação do "assentamento" corre-se o risco de criar situações que
apontam para a formação de categoria anômala, ou seja, "quilombola sem terra".
105
55
Conforme Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Art. 18, A desapropriação por interesse social
tem por fim: a) condicionar o uso da terra à sua função social; b) promover a justa e adequada distribuição da
propriedade; c) obrigar a exploração racional da terra; d) permitir a recuperação social e econômica de regiões;
e) estimular pesquisas pioneiras, experimentação, demonstração e assistência técnica; f) efetuar obras de
renovação, melhoria e valorização dos recursos naturais; g) incrementar a eletrificação e a industrialização no
meio rural; h) facultar a criação de áreas de proteção à fauna, à flora ou a outros recursos naturais, a fim de
preservá-los de atividades predatórias.
106
administrativa56, sendo que são dados generalizantes que não se aproximam das realidades
localizadas. Eles tratam da “Microrregião Homogenia da Baixada Ocidental Maranhense” de
forma unânime. Os documentos, ao que pude observar, são padronizados, ou melhor, os
mesmos dados servem como orientação para as demais áreas desapropriadas da mesma
"região", como se todas apresentassem as mesmas condições e situações sociais.
Nos relatórios é possível perceber as contradições no processo de desapropriação,
pois colocam em evidência os modos através dos quais os dados técnicos consideram somente
a relação da propriedade privada com a terra; os demais agentes envolvidos são classificados
arbitrariamente ou invisibilizados.
Ao tratar da estrutura fundiária da denominada "Microrregião Baixada Maranhense",
no relatório consta que:
56
Esse estudo do ano de 2003 considera a divisão política administrativa na qual Penalva está localizada na
região centro-norte do Maranhão, pertencente a Microrregião 05 Baixada Maranhense composta por 21
municípios, sendo estes: Arari, Anajatuba, Bela Vista do Maranhão, Cajari, Conceição do Lago Açu, Igarapé do
Meio, Matinha, Monção, Olinda Nova do Maranhão, Palmeirandia, Penalva, Peri Mirim, Pinheiro, Pedro do
Rosário, presidente Sarney, Santa Helena, São Bento, São João Batista, São Vicente de Férrer, Viana e Vitória
do Mearim.
107
complementar" responsável por toda a fonte de "renda" das famílias. Sobre a agricultura,
descrevem-na como meio de sobrevivência dos "pequenos agricultores", que cultivam arroz,
milho, feijão e mandioca, utilizando o método de "derrubada e queimada, nos sistemas de
rodízio" geralmente de seis a oito anos. Consideram que essa prática deve ser abolida com
maior brevidade possível, pois os "assentamentos" priorizam o cultivo de "culturas
permanentes", evitando o desmatamento desordenado da mata e promovendo "maior retorno
econômico" e seguro dos investimentos com "cultura perene".
Ao que tudo indica, a atividade econômica principal - "pecuária em regime extensivo
de bovinos e bubalinos" - apontada pelo relatório está vinculada ao interesse dos "grandes
proprietários", sem nenhuma recomendação por parte do INCRA para sua extinção, uma vez
que os impactos dessa atividade têm causado profundas modificações nos modos de vida
específicos dos grupos e na paisagem da região.
As atividades praticadas pelos denominados "pequenos agricultores" são colocadas
como secundárias, passam por reducionismos que as colocam somente como meio de
sobrevivência, retirando-lhes quaisquer possibilidades de tratamento em termos de economia,
mesmo que para eles tais atividades não estejam atreladas somente à categoria "renda", mas a
um modo de existir, de uma cultura própria relacionada a um modo de vida.
A arbitrariedade presente na recomendação da abolição de práticas tradicionais,
atualmente reconhecidas como as mais eficazes na preservação ambiental, como o sistema de
rodízio nas áreas onde são feitas as roças, impõe outras modalidades e culturas que não
condizem com o modo de vida das famílias. Os grupos classificados como "pequenos
agricultores" produzem várias culturas no sistema coletivo, não necessariamente visando a
retorno econômico, haja vista não produzirem em larga escala, especialmente pela limitação
no uso da terra imposta pela apropriação privada.
Ainda no referido relatório, sobre os aspectos socioeconômicos, ao tratar da
disponibilidade da mão de obra, é descrita a seguinte situação:
aqueles que permanecem nas terras vivenciam os conflitos. No entanto, não são apontadas no
relatório recomendações que solucionem os conflitos ou impeça o avanço das pastagens. A
afirmação de extorsão e exploração das terras, do avanço da pecuária extensiva que expulsa os
designados como "posseiros", "pequenos produtores", "ocupantes de propriedades" das terras,
não é tratada em nenhum momento no relatório. A criação de "assentamento" não indica a
retirada dos "grandes proprietários", mas deixa transparecer a imposição de modalidades
diferenciadas aos modos de existência das famílias, que têm com a terra uma relação não
empregatícia, direcionadas a se adequarem ao modelo proposto pelo Estado.
No tocante à relação das benfeitorias indenizáveis, o relatório aponta, ao tratar da
conservação de recursos naturais, como sendo considerado fator decisivo para a definição e
implantação de um projeto de "assentamento", devendo ser observado o emprego de “práticas
inadequadas” que degradam o ambiente. Assim, sobre o imóvel vistoriado, o relatório avalia
que: existe exploração em áreas de "Preservação Permanente" (PL); que existe exploração em
área de "Reserva Legal" (RL). Avalia ainda que existe uso inadequado de terras com relação à
sua aptidão; que existe o uso de queimadas; que existe o uso inadequado dos recursos hídricos
e que não existe superlotação de rebanhos e pisoteio não controlado.
Observemos bem quais interesses estão em jogo. O "assentamento" ainda está em
fase se criação; então, podemos pensar: Como são estabelecidas pelo INCRA as áreas de
Preservação Permanente e de Reserva Legal? Estão de acordo com os interesses da
propriedade legitimada ou das famílias que nela vivem? Ainda observemos que todas as
atividades praticadas pelos núcleos familiares são consideradas ofensivas e inadequadas ao
uso dos recursos naturais, os quais, se lá permaneciam, devem ter sido preservados pelos que
nela ocupavam. De outro modo, mesmo afirmando a existência da atividade pecuária, diz-se
da inexistência de superlotação de rebanhos, haja vista ser atividade praticada pelos
considerados "donos da terra".
No caso do relatório em análise, podemos perceber que os critérios adotados para
criação de "PA" são favoráveis à propriedade privada e desconsideram as famílias
classificadas como "pequenos agricultores", "posseiros", "trabalhadores sem terra". A partir
dessa averiguação, os critérios que condicionam a propriedade da terra a cumprir sua função
social57 ignoram esses modos de vida específicos.
57
Conforme Lei nº 4.504 de 30 de novembro de 1964, a propriedade da terra desempenha integralmente a sua
função social quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela
labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a
conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho
entre os que a possuem e a cultivem.
109
58
O relatório diz que o imóvel denominado fazenda Monte Cristo não se adequa ao sub-item 1, ou seja, o GUT
(Grau de Utilização da Terra) não atingiu os 80% e GEE (Grau de Eficiência) não atingiu os 100% determinados
pela legislação em vigor.
110
tempo reforça-se que o INCRA ignora as formas de ocupação específicas e de uso dos
recursos naturais praticados pelas famílias que vivem no território.
Como resultado de vistoria realizada em 2004, o INCRA descreve, sobre o uso do
"imóvel", que no atual momento este não está sendo utilizado com nenhuma modalidade de
exploração exercida pelos seus proprietários. Sobre o que denomina de "ocupações", confirma
que são feitas precariamente por pequenos agricultores com exploração familiar, todos
residentes nos povoados existentes no interior da área desapropriada; segundo relatório,
inexistindo qualquer forma de tensão em relação a estes e os proprietários.
Desse modo, é possível reafirmar que ao tratar da "desapropriação" foram ignorados
os conflitos pela posse da terra já existentes e as formas de fazer e de viver dos grupos
considerados arbitrariamente como em condições de precariedade e atraso.
O relatório da vistoria sobre a viabilidade do "assentamento" descreve ainda o
seguinte:
Nessa passagem, são descritas situações que, ao que me foi possível observar, são
desconhecidas das famílias do território. A possibilidade de retirada de famílias ou do (re)
assentamento de outras sequer é mencionada, pois estas parecem não compreender essa forma
racional de atuação em que são consideradas clientes, sem serem consultadas sobre as ações
administrativas que as afetam, demonstrando a arbitrariedade do Estado no processo de
reconhecimento de Monte Cristo.
Analiso os relatórios elaborados pela política estatal, na tentativa de fazer uma
análise crítica aos critérios relacionados ao projeto de criação de "assentamento". Podemos
perceber como os critérios de desapropriação não se encaixam nos modos de vida das
famílias, visto que remetem as famílias que já ocupam a terra há seguidas gerações à condição
de "posseiros" e seus modos de vida são desconsiderados em detrimento de modelos de
produção mecanizada. Em vez de garantir e dar segurança a essas famílias de permanecerem
em seu território, elas são ameaçadas de serem retiradas. As leis que regem a
111
"desapropriação" também são aplicadas de forma aleatória, tecnicista, sem uma análise das
realidades localizadas.
Em se tratando de Monte Cristo, as etapas de criação de "assentamento" ainda não
alcançaram o "loteamento". Dessa forma, proponho deter a atenção nas etapas até aqui
observadas, pois apresentam instrumentos de análise que contribuem para compreensão das
interferências e situações de insegurança do grupo com ações que podem se consolidar
futuramente. No entanto, assim como a "desapropriação" gera inúmeros conflitos, um
possível "loteamento" pode ocasionar danos irreparáveis à construção identitária dos grupos
que reclamam a propriedade coletiva do território. A "di-visão" em "lotes" individuais tomaria
proporções que colocam em risco a vida e a sobrevivência dos grupos, pois romperia com as
regras que são reelaboradas há seguidas gerações, no intuito de manter o controle sobre o
território.
O processo de reconhecimento de Monte Cristo, enquanto destinado para programa
de "assentamento" da reforma agrária, apresenta contradições apontadas pelos agentes sociais
tanto no que se refere à delimitação da área quanto aos procedimentos administrativos das
políticas de reforma agrária, que serão tratados a seguir.
Como mencionado anteriormente, ao instituir o projeto de "assentamento", a área
"desapropriada" não incluiu as comunidades envolvidas no processo em sua totalidade. Essa
delimitação foi determinante para que a comunidade de Araçatuba ficasse de fora do projeto,
não foi beneficiada. Conforme depoimento de liderança da comunidade, o argumento
apresentado por servidores do INCRA sobre a retirada da comunidade do processo justifica-se
em virtude de se tratar de "área de jurisdição da marinha" e não ser de competência do
INCRA a sua regularização.
Convém mencionar que a Portaria da Secretária do Patrimônio da União59 (SPU)
disciplina a utilização e o aproveitamento dos imóveis da União em favor das comunidades
tradicionais, com o objetivo de possibilitar a ordenação do uso racional e sustentável dos
recursos naturais disponíveis na orla marítima e fluvial, voltados à subsistência dessa
população, mediante a outorga de Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), a ser
conferida em caráter transitório e precário pelos Superintendentes do Patrimônio da União.
Em caso de ilhas situadas em faixa de fronteira e terrenos da Marinha e marginais
presumidos, são consideradas indubitavelmente da União, por força constitucional, e sobre
59
Portaria n° 89, de 15 de abril de 2010/Publicada no D.O.U de 16 de abril de 2010 (fls. 91 e 92).
112
elas qualquer título privado é nulo. A portaria diz ainda em seu art. 8º que o TAUS poderá ser
outorgado nas modalidades Coletiva60 e Individual.
Portanto, mesmo se considerássemos a comunidade de Araçatuba como "ilha" ou
"área da Marinha", isso não retiraria a competência do Estado de tratar do processo de
reconhecimento da comunidade; ao contrário, a formalização do INCRA dessa justificativa
poderia criar precedentes para que as demais comunidades reivindicassem a devida anulação
dos títulos privados legitimados com o processo de "desapropriação".
Portanto, os estudos realizados pelos técnicos do INCRA auxiliam no sentido de
possibilitar entender a forma de atuação, a ingerência dos procedimentos e os critérios
administrativos da agência estatal ao proceder à "desapropriação" do designado "PA" Monte
Cristo. Percebe-se que os grupos sociais são continuamente colocados à margem da questão
fundiária, relegados à condição de designações classificatórias externas, dissociadas dos
modos de vida construídos pelas famílias.
60
I - Coletiva, em nome de uma coletividade de famílias ou de sua entidade comunitária representativa: por
poligonal fechada com coordenadas de pontos geodésicos da área utilizada para fins de moradia; por poligonal
fechada com coordenadas de pontos geodésicos da área de uso tradicional coletivo dos recursos naturais. II -
Individual, de área circunscrita, conforme o caso: a uma área definida em poligonal fechada por pontos
georreferenciados, respeitados os limites de tradição das posses existentes no local; a um raio de até 500m, a
partir de um ponto geodésico georreferenciado estabelecido no local de moradia do requerente, respeitados os
limites de tradição das posses existentes no local.
113
também que denominava esse mesmo nome nessa época. Ali para o lado dos
anos sessenta, segundo os meus pais me contavam, tinham quatro famílias
que ali moravam, nas abas de enseada que agente chama, que era a mãe da
senhora Maria Aires, o seu Joaquim Moraes e o seu Merandolino.
(RAIMUNDO NONATO MOTA, 2014)
A comunidade Monte Cristo é apontada pelos agentes sociais como possuindo uma
situação de conflito que se mostra mais extrema. É considerada como vivenciando complexos
processos de disputa pela terra. Esses conflitos se arrastam pelo tempo e vão se extremando à
medida que a família que detinha certa autoridade sai da comunidade por conta das ameaças.
A senhora Mariinha Aires, em depoimento, informa que sua bisavó, a mãe de Maria Aires, era
ameaçada de morte por terceiros que não moravam na comunidade, queriam expulsá-la e
diziam ser os donos da terra. A bisavó da informante resistiu às pressões e afirmava ter a
escritura da terra e ter nascido e se criado ali.
A entrevistada e sua família, em virtude das ameaças de morte e do desgaste pelas
discussões constantes, saíram da comunidade para evitar que o confronto chegasse ao
extremo. Hoje moram em Penalva, no entanto, o filho e o marido da senhora Mariinha,
trabalhadores rurais, ainda buscam alternativas e locais para fazerem suas roças, o que ainda
constitui a base do sustento da família. Como já mencionado, Maria Aires, em entrevista, nos
informa ter saído da comunidade para evitar agravar o confronto com questões relacionadas à
propriedade das terras que diz ter herdado de seu avô Onofre Anchieta, casado com Antonia
Aires Anchieta e irmão de Saturnino Anchieta. Segue depoimento da senhora Mariinha Aires:
Toda família foi saindo exclusivamente pelo problema da terra, porque era
muita confusão, eles já ameaçavam eles todo dia de morte. Eu era menina e
lembro que a mãe dela, que era minha avó, essa velha vivia tão perseguida
de gente querendo tomar essa terra dela. (MARIINHA AIRES, 2013)
A comunidade Monte Cristo também está no foco da discussão por ser o lugar de
onde surgem as tramas e as transações de compra e venda que culminam com a
"desapropriação". Também entre todas as seis comunidades envolvidas no processo de
reconhecimento, pode-se considerar que na comunidade de Monte Cristo a situação de
conflito é mais evidente. Ao que pude observar, nela a área cercada por fazendas é mais
ampla, deixando os moradores da comunidade sem condições de sobrevivência pelo
fechamento do acesso para a utilização dos recursos naturais e até mesmo dos caminhos.
Nesse sentido, no intuito de demonstrar em que circunstâncias e em que cenário o
Estado constrói o emaranhado processo de criação de "assentamento" que se apresenta
114
RNM: Na época, Gardenia, que a gente puxou essa discussão, meu pai me
apontava que a terra era da Senhora Antônia Aires, mãe da senhora Maria
Aires, que você já teve a oportunidade de conhecer. Essa pessoa eu conheci
sendo dona de Monte Cristo, filha de Monte Cristo, eu lembro que qualquer
coisa que você precisava, tirar pau, fazer uma roça, qualquer atividade,
tinha que ter a permissão dessa senhora. Aí o que acontece, esse serviço, eu
não sei se ele trabalhava como agrimensor, parece que essa era a função
dele. Daí a senhora Antonia Aires, ela foi muito perseguida por pessoas que
começaram dispersar sua terra e eles tinham muita opinião. Aí então, ela
começou deixar de mão, começaram a ser ameaçadas e as pessoas
começaram a esticar a cerca para próximo da casa dela, certo que logo ela
morreu, a dona Antonia Aires.
G: Essas pessoas que ameaçavam eram da comunidade?
RNM: Não, eram de lugares circunvizinhos, espertalhões na verdade, e ela
começou se zangar com aquilo, a sua idade já bastante avançada, chegou a
morrer, não estou dizendo que foi pelo caso da perseguição, mas morreu, e
os seus filhos começaram a se dispersar, foram embora, foram se mudando e
certo que hoje não mora nenhuma dessas pessoas na comunidade, moram
61
Aforar é o ato realizado entre o suposto proprietário da terra e o trabalhador; este planta na área daquele, que
recebe parte do que é colhido como pagamento, podendo ser também com dinheiro e/ou serviços, a depender do
acordado entre as partes.
115
aqui na cidade. A dona Maria Aires chora bastante quando a gente relata os
fatos de hoje a ela. Outra coisa interessante, o senhor Raimundo Aires, que é
irmão da Maria Aires, ele conheceu uma pessoa, ela tinha uma menina
chamada Ione, essa foi para o Rio estudar, fez Direito, ou não fez direito,
estudou para Direito, mas eu não considero que ela fez direito.
G: Ione era filha de Raimundo Aires?
RNM: Não, só adotiva, ela foi para o Rio, estudou, fez Direito, aí voltou,
eles tinham tomado a escritura. Ela voltou porque queria cuidar desses bens,
queria dar o golpe, pegou a escritura e prometeu a eles que ia sair com a
escritura para tentar negociar a terra. Certo que quando ela apareceu, eu
lembro, isso foi em oitenta e dois, chegou com dois cearenses, até de
helicóptero na comunidade. Todo mundo se apavorou, ouviu aquele bicho
sobrevoando a comunidade, aí ela chegou com eles, dizendo que tinha
negociado a terra com eles, o Ubiratan Fontinele e o Ubirajara. Eles
compraram a terra, já que a escritura rezava que incluía esses seis povoados
que eu acabei de citar ainda agora. (RAIMUNDO NONATO MOTA, 2014)
BM: [...] É que está essa revolução, só que dentro dessa área, que dizem que
venderam para o governo, que o governo quer lotear aparece umas
propriedades que tem documento. Vendeu com quem tinha propriedade e
tudo e aí tem dado uma dor de cabeça muito grande. Porque digamos assim,
116
a senhora me diz uma coisa, eu digo para Manoel Coqueiro, Maria vem diz
outra coisa, não tem como confirmar, não é? E tem dado uma dor na cabeça
com as pessoas que trabalham aqui na comunidade com essa desapropriação,
porque aparece no mapa que vem essa área todinha que era o legítimo dono
antigo, era da fazenda Monte Cristo. Depois foi, por exemplo, digamos
assim: eu sou posseiro de um tanto, aí eu procuro um jeito, vou ao cartório,
lá para onde for, mando bater uma escritura, aí fico pagando, por exemplo,
assim, o imposto e diz que o imposto não cai na União e aí fica aquela
história, para quem é que você vai perguntar? Então esse alvoroço é que está
dando esse embaraço todinho. Faz de conta que essa estrada aqui é um
limite, desse mato pra cá, desse lado aqui, assim de certa parte pertence a
parte que era do pai dele, até em cima e desse outro lado aqui, pertence
justamente desse lado que ele tava falando que era desses herdeiros . Mas
conta que o limite da terra é essa, é uma légua de terra quadrada que é toda
da fazenda Monte Cristo, agora bem aí não se sabe se aparece no mapa que
eles apresentam do Ubirajara Fontenele, se lá ele não aumentou e botou
dinheiro. (BENEDITO MARINHO, 2014).
G: Essa informação desse limite, esse limite foi feito pelos Fontenele?
JB: É, não existia, apesar de ter na escritura velha, a escritura velha deles
tem limites é não sei aonde, São Joaquim, diz assim mais ou menos isso.
Mas não aponta assim rumos como foi feito nesse período. Quem trabalhou
no rumo, compadre Menegídio, Tomás Coelho, eu acho que Raimundo
Aires, velho Placídio, não trabalhou no rumo mais contava muita história
quando era vivo, a gente ficava lá perto e eles sempre conversavam como
estava como não estava. Então essa demarcação foi feita nesse período.
(JOÃO BATISTA, 2014)
Garcia, da comunidade Oriente, atual presidente Associação das Associações da Gleba Monte
Cristo das Associações das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Penalva, dá a versão
que ouviu, conforme depoimento:
DR: Agora, daí como ele olhou muita gente como proprietário, como isso,
aquilo outro, aí o que foi que aconteceu? Um intruso, e aí ele viu que ia ser
difícil, que ele queria fazer era fazenda.
G: Ubiratan?
DR: Ubiratan mais Ubirajara. Aí quando eles vieram novamente, que vieram
tirar dúvida da área, eles foram olhar, tinham todos que estavam dentro e aí
acharam que ia dar uma confusão. Como é que ele ia indenizar? Para tirar
todo esse povo que estavam dentro, que era nascido e criado, o problema é
esse, entendeu? Aí ele deu a sugestão dele mais o irmão de eles pegarem e
vender para o governo, que era o único que poderia comprar e dar para a
sociedade, entendeu, para a população, para os carentes, trabalhadores. Aí o
resultado, o que ele fez, aí quando estavam nessa arrumação morre um dos
irmãos, ele faz o inventário de novo e aí vende para o governo federal.
(DOMINGOS RAMOS, 2014).
G: Sobre Monte Cristo o senhor diz que tem uma complicação no processo?
JB: Foi assim. Antes de pedir a desapropriação de Monte Cristo, ou antes da
lei da desapropriação, eu já conhecia uma parte de Monte Cristo. Indo daqui,
a gente morava aqui, ia pra lá e meu tio Plácidio, que é casado com Maria de
Kiel, uma das pessoas que vinha uma descendência do povo de Anchieta, de
lá. Aí ele ia para lá e a gente conversava sobre Monte Cristo e tal. Mas até aí
não se tratava nada de desapropriação nem do que era só Monte Cristo,
fazenda Monte Cristo. Só que de oitenta e dois para cá Monte Cristo mudou,
119
CAPÍTULO 3
Diante das complexidades das situações citadas nos Capítulos anteriores e no intuito
de evidenciar como são construídas as formas de mobilização e articulações em torno de
critérios identitários e na reivindicação do território Monte Cristo, enquanto território
quilombola, pretendo tratar mais detidamente, neste terceiro Capítulo, acerca da construção da
categoria quilombo.
Apresento a construção da categoria quilombo, contextualizando a emergência dos
conflitos e as disputas pela propriedade das terras. Desse modo, inicio refletindo sobre as
mobilizações e lutas dos movimentos sociais, em especial do Movimento Negro no
Maranhão, que resultam no reconhecimento dos quilombolas e na garantia da titulação
definitiva dos seus territórios, a partir dos marcos da Constituição de 1988; em seguida,
analiso criticamente acerca das modalidades de apropriação territorial pensadas nos termos da
noção de "imóvel rural" às titulações de territórios étnicos, observando as dificuldades do
Estado em operacionalizar o direito territorial dos grupos étnicos; depois, descrevo como vai
se delineando a construção desses direitos nos territórios étnicos e as mobilizações sociais
para sua efetivação; na sequência, através da análise dos dados do trabalho de campo, faço
uma análise, no intuito descrever como o grupo elabora a construção da categoria quilombo
através da narrativa sobre os engenhos.
A partir das mobilizações e reivindicações pelo território Quilombola de Monte
Cristo e considerando o processo de "desapropriação" para criação do PA, proponho mostrar
como a categoria quilombo se constrói através dos conflitos e como a imposição desses
conflitos ameaçam os modos de vida dos grupos; logo depois, procedo às informações sobre
como se dá a reivindicação do território quilombola de Monte Cristo, evidenciando a atuação
do INCRA; e, para fechar o Capítulo, discorro sobe as associações: formas organizativas
como instrumento de luta.
122
62
Assinado pelo presidente da República Fernando Henrique Cardoso em 10 de setembro de 2001: Regulamenta
as disposições relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos
quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras
por eles ocupadas.
123
regularização fundiária dos territórios quilombolas exige que se rompa com uma série de
paradigmas e noções operacionais cristalizadas, especialmente em torno do Direito
relacionado às múltiplas identidades coletivas em construção.
A concepção jurídica do Direito e a solidez de determinadas categorias jurídicas
corroboram para dificultar novas interpretações e situações de categorias e grupos sociais com
demandas específicas, pois esses grupos, no cenário da ciência jurídica, foram/são
constantemente destituídos de Direitos. Sendo que a inserção do Artigo 68 na Constituição
Federal causa o que Shiraishi Neto (2013) trata de "crise" ou "esgotamento" do modelo
jurídico, assim interpretado pelo autor:
63
Art. 215, o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais; Art. 216, constituem
patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:as formas de expressão;os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas,
artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico
124
No leque dos debates desse pluralismo jurídico pulsa com firmeza a reafirmação do
respeito às diferenças, na luta contra a discriminação racial e seus efeitos, em que também
está em jogo a questão de raça e território. Pois são os movimentos sociais negros que
apresentam essa questão dentro de um amplo leque de demandas reprimidas ligadas às lutas
negras no Brasil (GOMES, 2013) que posteriormente formam suas organizações específicas,
conforme será abordado posteriormente.
Em essência, podemos afirmar que a questão de regularização fundiária para os
quilombolas e sua pouca aplicabilidade deve-se especialmente à própria interpretação das
categorias jurídicas, aplicáveis e formuladas ao "sujeito de direito" e à "propriedade privada
da terra" (SHIRAISHI NETO, 2013). São categorias solidificadas num contexto agrário de
acumulação de terras, colocadas face às novas categorias de "identidade" e "território", que
representam o mundo socialmente construído pelos grupos que reivindicam identidades
coletivas e são alvos de uma possível falta de entendimento enquanto categorias
constitucionais. O autor corrobora ainda que o reducionismo legal privilegiou a
individualização do imóvel rural para a sua mercantilização, situação adversa das demandas
de regularização das comunidades quilombolas, que se encontram em contextos
diferenciados.
Ainda orientados por Shiraishi Neto (2013), destacamos que a modalidade de
propriedade privada vigente no sistema agrário brasileiro marginalizou, invisibilizou e
reprimiu esses grupos sociais e suas reivindicações. A propriedade privada não foi adotada
para as comunidades quilombolas, no entanto é a partir da negação de direitos que os grupos
criam e recriam seus modos de viver. É à margem do direito que os quilombolas lograram
seus objetivos e permaneceram nos territórios; dessa forma, o autor enfatiza que:
A ADI esteve por duas vezes na pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal
(STF). A primeira foi no dia 18 de abril de 2012, com o voto do relator e ex-ministro César
Peluso, que ao proferir seu voto julgou pela procedência da Ação Direta e declarando pela
inconstitucionalidade do Decreto questionado. Suspenso por meio de pedido de vistas da
ministra Rosa Weber, retornou à pauta de julgamento pela segunda vez no dia 25 de março de
2012, momento em que a ministra Rosa Weber proferiu voto64 pela improcedência da
inconstitucionalidade do Decreto presidencial 4.887/2003. Segue trecho do voto da Ministra
Rosa Weber:
64
Quanto ao voto da Ministra Rosa Weber no julgamento da ADI 3239 / DF, o documento pode ser acessado no
endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 8137174.
127
Retomando a Constituição de 1988 como marco para o exercício dos direitos sociais,
da igualdade e da justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, tem-se o desafio de reconhecer e assegurar direitos específicos. Essa forma de
atuação no campo político causa desconforto na lógica racional dos aparelhos estatais,
corrompidos historicamente, haja vista o processo de formação e ocupação da "nação"
privilegiar a elite agrária, com base na concessão e acumulação de terras, nas possibilidades
de exploração dos recursos naturais e da mão de obra escrava.
Os conflitos agrários foram gerados a partir da concentração de terras, instituída
pelos procedimentos administrativos do colonizador europeu que impôs e legitimou a
"propriedade privada", seja pela herança através das capitanias hereditárias seja através da
concessão de títulos de doação de "sesmarias". O processo de colonização se configura pela
expansão das fronteiras, exploração das terras e dos recursos naturais, patrocinada e amparada
legalmente pelo Estado, desde então.
Desde a primeira Constituição do Império, de 1824, a propriedade do "território
nacional" tem como base a hereditariedade na concentração de terras nas mãos dos grandes
proprietários e da elite agrária, reforçada posteriormente pelo reordenamento de terras
130
proposto pelo Império em 185065, através da Lei de Terras, que estabeleceu o direito à terra
somente através de compra, criando obstáculos aos trabalhadores dessas unidades familiares
de adquirirem a terra, ampliando assim a concentração fundiária.
Esse quadro é endossado com a Lei de Terras de 1969, promulgada pelo Estado do
Maranhão na gestão do governador José Sarney, que reforçou o poder do latifundiário, ao
colocar no mercado terras que já eram efetivamente ocupadas há muitas gerações por famílias
de trabalhadores rurais, a exemplo das famílias descendentes de ex-escravizados.
A recente política pública de "reforma agrária", instituída tardiamente, com intenção
de promover a (re) distribuição de terras (Lei 4.504/64), não surtiu os efeitos suficientes para
modificar um quadro histórico de desigualdades e exclusão. A proposição dessa política, em
suas medidas centrais, não ofereceu possibilidades de inclusão de modalidades de acesso à
terra que correspondessem às pluralidades de situações que emergem das diversas formas de
uso e ocupação territorial por grupos diversos e diferenciados.
A política pública de reforma agrária, de configuração "nacional", padronizada e
individual volta-se especialmente para a criação de "assentamentos" da reforma agrária,
atendendo a famílias dos designados como "posseiros", "pequenos agricultores" e "sem terra".
Essa concepção de estrutura fundiária tem um forte apelo na incorporação de critérios de
classificação arbitrária, sintetizada em categorias que permitem refletir a estrutura agrária no
Brasil. Conforme Almeida (2011), trata-se da categoria censitária "estabelecimento" e a
categoria cadastral "imóvel rural"; essas duas categorias contribuíram para dificultar o
reconhecimento de situações que estavam se impondo, pela via do conflito social, e não
correspondiam exatamente aos critérios norteadores daquelas categorias classificatórias.
Dessa análise, podemos conceber que a política de reforma agrária, implantada pelo
Governo Federal, com proposição da democratização da estrutura fundiária (REVISTA
INCRA, s/n), foi elaborada enfocando medidas “de modificação no regime da posse e uso” da
terra. Assim, esse modelo que se propõe a promover a desconcentração das terras é
insuficiente e inadequado, uma vez que não atende a situações específicas, eliminando
65
Lei nº 601, de setembro de 1850: dispõe sobre as terras devolutas do Império, determinando que estas após medidas
e demarcadas sejam cedidas a título oneroso, proibindo a aquisição por outros títulos que não seja através de compra.
Observa-se que essa Lei foi publicada no período em que o Brasil imperial estava pressionado para abolir a
escravidão, sendo que nesse ano, em outubro de 1850, foi publicada a Lei Eusébio de Queiroz, a qual proibia o tráfico
de escravos para o Brasil. Essa lei não teve efeito imediato sobre o tráfico, mas pode ter sido estratégica para impedir
que negros e/ou "escravizados" pudessem possuir títulos de terra.
131
Sendo assim, a Constituição Federal trouxe vários desafios e reflexões acerca de uma
correlação de forças entre a elite escravocrata e racista e grupos sociais com direitos
identitários reconhecidos, conforme explica Almeida (2011).
66
Para maiores informações sobre o processo de reconhecimento do Quilombo Frechal e as disputas arroladas
em torno do termo quilombo e os direitos deles provenientes, consultar: Frechal Terra de Preto: Quilombo
reconhecido como Reserva Extrativista. SMDH, CCN, PVN, 1996.
136
propriedade da terra. Sendo que antes da articulação promovida pelo movimento negro em
torno do PVN as comunidades negras rurais estavam organizadas em torno das instituições
religiosas, como as igrejas católicas, e dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, que foram
parceiras no processo de mapeamento e identificação de comunidades.
No Maranhão, em agosto de 1986, é realizado o I Encontro de Comunidades Negras
Rurais do Maranhão, com o tema O Negro e a Constituição brasileira, com o intuito de
discutir propostas relacionadas ao povo negro do Maranhão e do Brasil a serem encaminhadas
aos deputados constituintes67 (GOMES, 2009).
As comunidades quilombolas constituídas em movimentos sociais, durante o I
Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas, deliberam sobre a criação da
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
(CONAQ), e no Maranhão, em 1997, formalizam juridicamente a Associação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (ACONERUQ- MA). Ao final deste
subtópico apresento o Quadro 02 - com temas dos encontros estaduais de comunidades negras
rurais ou comunidades quilombolas, realizados no Maranhão pelo CCN e ACONERUQ - e
Quadro 03- com dados dos encontros nacionais de quilombos promovidos pela CONAQ.
É a partir do processo de mobilização política das comunidades remanescentes de
quilombo em torno do conflito pela propriedade definitiva de seus territórios, organizadas em
movimentos sociais, que se consolida o princípio basilar que impulsiona a reivindicação de
Direitos e a inclusão do Artigo 68 da ADCT na Carta Magna de 1988. Segue texto de
Almeida (2005) sobre essa passagem:
67
Para maior compreensão dessa atribuição do termo comunidades negras rurais e comunidades remanescentes
de quilombo, consultar as produções do CCN. Os debates em torno desse termo na Constituinte também são
discutidos por Gomes (2019), que trata da formação do movimento negro no Maranhão, do processo de
construção do Art. 68, das discussões que alteram o termo comunidades negras rurais para comunidades
remanescentes de quilombo e as disputas partidárias arroladas nesse procedimento. Nunes (2011), ao tratar da
constituição do campo de debate alusivo à identidade quilombola, discorre sobre a atualização e adoção das
expressões “Comunidades negras rurais”, “comunidades remanescentes de quilombo” e, ainda, “terras de preto”
no âmbito do movimento negro.
137
II Encontro de Comunidades
A Falsa Abolição CCN São Luís 1988
Negras Rurais do Maranhão
III Encontro de
O Negro e a Educação
Comunidades Negras Rurais CCN/GNPR Bacabal 1989
na Zona Rural
do Maranhão
IV Encontro de 300 Anos de Zumbi: Os
Comunidades Negras Rurais: Quilombos
CCN São Luís 1995
Quilombos e Terra de Preto Contemporâneos e a
do Maranhão Luta pela Cidadania
Organização Negra Coordenação
V Encontro de Comunidades Rural em Busca de seus Estadual dos
Negras Rurais: Quilombos e Direitos: Terra, Quilombos São Luís 1997
Terra de Pretos do Maranhão Educação, Saúde e Maranhenses/CC
Organização Política N/SMDH/PVN
VI Encontro Estadual das
Terra, Produção e
Comunidades Negras Rurais: ACONERUQ/CC
Organização Política Mirinzal 2000
Quilombo e Terras do Preto N
dos Quilombolas
no Maranhão
VII Encontro Estadual das
Terra, Gênero e
Comunidades Negras Rurais ACONERUQ Codó 2003
Religiosidade Afro
Quilombolas do Maranhão
VII Encontro Estadual das
Território, Gênero e Itapecuru -
Comunidades Negras Rurais ACONERUQ 2006
Legislação Brasileira Mirim
Quilombolas do Maranhão
Fonte: Elaboração própria com informações das produções do CCN/ACONERUQ
139
140
Terra, Produção e
17 a
I Encontro Nacional de Cidadania para os CCN, PVN
Brasília 20/11/
Comunidades Negras Rurais Quilombolas: 300 Anos CEDENPA
1995
de Zumbi
II Encontro Nacional de 20/11 a
Território e Cidadania
Comunidades Negras Rurais CONAQ Salvador 03/12/
para o Povo Negro
Quilombolas 2000
III Encontro Nacional de Terra, Educação e 04 a
Comunidades Negras Rurais Reparação para o povo CONAQ Recife 07/12 de
Quilombolas Quilombola 2003
IV Encontro Nacional de CONAQ: 15 Anos de 03 a
Rio de
Comunidades Negras Rurais Luta e Nenhum Direito CONAQ 07/08
Janeiro
Quilombolas a Menos 2011
Fonte: Elaboração própria com informações das produções CCN/CONAQ
141
Minha avó era do Monte Cristo, eu sou neto de Onofre, dos Anchieta, dono
do Monte Cristo. Eu ainda achei a caveira do engenho de Monte Cristo dos
Anchieta, eu ainda achei o quadro. Era de motor, na máquina, não era rolado
a boi. Ele tinha telha, muita telha, tinha as peças que eu conheci, era o
quadro que era o assentamento ali do motor. Não era rolado a boi, agora o
carro de boi era que puxava cana do canavial pra rampa, mas ali, era na
máquina. No Monte Cristo, na propriedade Monte Cristo eu conheci a
caveira ainda desse engenho que teve no antigo. (PEDRO AIRES, 2015).
O senhor Pedro Aires relata que também chegou a conhecer a engenhoca que foi
construída pelo senhor Merandolino Correia no Conduru, inclusive, chegando a trabalhar nela
quando garoto.
142
RG: Monte Cristo foi um dos segundo engenho que teve aqui em Penalva.
Então o que eu sei contar. Eu fico assim parado porque eles dizem que essas
terras aqui são quilombolas e eu não digo nada, porque vêm as raízes do
passado, foram pretos que trabalharam aqui, para esses engenho. Mas os
engenhos que teve aqui eram pessoas que trabalhavam e recebiam, porque
meu avô trabalhou muito tempo no São Sapé.
G: Qual era o nome dele?
RG: Cesário Marques Goldinho. Dois avós. Um trabalhava na turbina. O
que é turbina? Trabalhava lá no motor pra turbinar açúcar, ele trabalhava e
trabalhava no engenho, e já o outro meu avô, pai de papai, ele era ferreiro.
Estevão Pereira era o pai do meu pai. Então vêm dessa raiz desses outros,
que hoje nós somos netos, mas os nossos avós não foram escravos eles
trabalhavam, tinham a sua maneira de serviço, porque você sabe que um
mecânico, um ferreiro, nesse tempo ele tinha o seu recurso ele não
trabalhava à custa, escravizado. E quando os brancos foram embora, o
dinheiro que tinha não deu para pagar os trabalhadores. Por isso eu digo
143
A fala dos entrevistados deixa entrever que os anos não são medidos da
mesma maneira pelas partes em confronto, porque são vividos de modo
desigual. Há, em decorrência, uma politização da história que traz o passado
para o presente através de uma atitude que leva à história do grupo, enquanto
144
Correia, que, diante das experiências adquiridas no engenho Central em Pindaré- Mirim,
montara uma engenhoca, diferenciando os engenhos do passado com o mais recente, assim
mencionado pelo senhor Pedro Aires, no depoimento a seguir:
Ainda que o velho que morava em Conduru, eles botaram Monte Cristo em
trapaça, pra ser dono de Monte Cristo, pra ter direito de Monte Cristo. Então
o velho ele era aleijado, ele pediu para meu avô Onofre Anchieta, dá pra ele
aquela peça, que eu conheci o quadro. Então meu avô deu para ele, ele
pediu, o velho aleijado, pra fazer uma casa de engenho pra moer cana, isso
eu conheci, eu estou com oitenta e quatro, vou fazer oitenta e cinco anos
vinte e nove de junho. Conheci esse engenho que teve no antigo e ainda teve
os novos, eu trabalhei lá, e o antigo foi aquele do passado. (PEDRO AIRES,
2015).
P: Então, tinha o Engenho Monte Alegre, Belo Monte e Jatobá? Mas era
engenho de escravatura?
JL: Não.
P: Mas aqueles outros eram de escravatura?
JL: Sim. Os outros eram.
C: E Monte Alegre?
JL: Monte Alegre era do senhor Chico Aires, ali, tá vendo? O engenho de
Jatobá, um ano um trabalhava, no outro ano já arrendava e assim que era.
P: Mas esses já não eram mais de escravatura? Monte Alegre, Belo Monte e
Jatobá?
JL: Não, não. De escravatura, tinha um engenho aqui que eles chamavam
Taparica, esse era um engenho de escravatura do doutor Juca Sá, tá vendo? E
o nome da mulher dele era Brancha e era uma fazenda de escravatura.
(JOÃO LOBATO, 2013)
68
Envolve a relação com os recursos naturais e contribui para que os aspectos culturais se consolidem. Não pode
ser, pois, reduzida a simples noção de terra”. Vide: Terra de preto no Maranhão, 2002.
146
A presença de grupos sociais nessa região de ocupação antiga é fator que merece
destaque, pois, mesmo a história oficial tendo timidamente referenciando, constituíram-se
territorialidades específicas, como no caso das terras de Índio de Viana69. Em se tratando do
território Monte Cristo são recorrentes os relatos da presença dos indígenas que ocupavam o
território no passado, da expulsão e exploração praticadas pelos Jesuítas. Os relatos supõem a
existência de fazenda da Ordem dos Jesuítas no local onde hoje é a comunidade São Brás.
Através da oralidade, os que detêm a memória do território repassam sobre a passagem dos
índios na região.
Igualmente, tem-se invisibilizado a permanência dos designados, no período
colonial, quilombos ou mocambos, considerados como lugar de preto fugido e isolados
socialmente. Esses agrupamentos não estavam limitados a tais situações e mantiveram uma
organização própria, autônoma, haja vista sua exclusão dos processos formais de produção e
reconhecimento. Assim, temos nessa região os registros das insurreições dos escravos em
Viana, em que, organizados em uma extensa rede de relações, os aquilombados e libertos
lutam por liberdade, num ato de resistência contra o sistema escravista no Maranhão
(ARAÚJO, 2014).
Ao estudar situações de uso comum dos recursos naturais, Almeida (2008) distingue
diferentes formas de acesso aos domínios territoriais, ressaltando os contextos de compra,
herança, doação, aquisições, formação de territórios livres, delineando situações sociais que
envolvem a apropriação da terra, como terras de preto, terras de santo, terras de índio, terras
de parente, terras de ausente, terras de santa, terras de santíssima, terras de pobreza
(ALMEIDA, 2008).
Essas diferentes situações indicam que o acesso do grupo à terra e as formas de
resistência ao sistema dominante não ocorreram em um mesmo contexto histórico, mas estão
referidos a temporalidades distintas, organizados através dos sistemas de relações sociais que
estruturam em "processo de territorialização", no qual, conforme João Pacheco de Oliveira
(1998), os grupos se transformam em uma coletividade organizada, formulando identidade
própria, instituindo mecanismos de tomadas de decisão e representação, e restaurando as suas
formas culturais, inclusive as relacionadas com o meio ambiente e com o universo religioso.
O reordenamento de terras proposto pelo Império em 1850, através da Lei de Terras,
endossado com a Lei de Terras de 1969, promulgada pelo Estado do Maranhão na gestão do
69
Para maiores informações, vide Maristela Paula de Andrade: Terra de Índio: identidade étnica e conflito em
terras de uso comum. São Luís: UFMA, 1990, e Boletim Informativo. Nº 8. Violação de direitos e devastação:
"Linhão" nas comunidades quilombolas de Viana-MA. Manaus: UEA, 2014. Sobre Insurreição de Escravos de
Viana/1867, consultar Maria Raymunda Araújo, 3ª ed. São Luís, 2014.
147
governador Sarney, reforçou o poder do latifundiário, pois dispõe ao mercado terras que já
eram efetivamente ocupadas há muitas gerações por famílias que viviam dos trabalhos nas
roças, a exemplo das famílias descendentes de ex-escravizados. Nesse contexto é que
assistimos, a partir da década de 1970, ao chamado “cercamento dos campos naturais” de
forma a acirrar significativamente os conflitos na região da "Baixada Maranhense". Esse
quadro é assim explicitado pelo senhor João Lobato:
P: O senhor sabe de algum escravo que o senhor de escravo deu terra para
ele?
JL: Não, o senhor de escravo, justamente, foram vendendo, uns para os
outros, foram vendendo e foram se mudando, porque aqui tinha aquela
história daquele padre, aquele jesuíta da companhia. Isso aqui era uma coisa
que escravejava o povo, mas a princesa libertou aquilo e então eles ficaram
ainda manobrando com o povo, mas souberam lá que [...] largasse de mão,
porque senão vinha derrotar com tudo e aí eles foram enterrando dinheiro e
então foram embora.
P: Esses aí, senhores de engenho foram embora porque o engenho se
acabou?
JL: Foram embora, foram se acabando e foi para lá.
P: Mas quem trabalhava, os escravos ficaram aonde?
JL: Os escravos ficavam no mesmo lugarzinho, eles ficaram.
C: Então, nesse, caso, quando o senhor de engenho ia embora, deixava a
terra e os escravos ficavam, mas eles vendiam o engenho para outro, como é
que era?
JL: Aí outros vinham, compravam o engenho, pegava daí e carregavam para
outro lado, carregavam para sentar em outro lado. (JOÃO LOBATO,
2013)
Assim, podemos perceber que a "desapropriação" da área é vista com descaso pelos
fazendeiros, que aproveitam para manter sua apropriação com mais rigidez, diante da
ausência de uma posição do INCRA que efetive de fato a "desapropriação" e garanta a saída
149
daqueles apontados pelos moradores das comunidades como invasores. Os relatos sobre
proibições e desmandos são frequentes, inclusive com várias ameaças de morte.
Os agentes sociais têm dirigido suas ações no sentido de assegurar a titulação do
território quilombola, porquanto estejam implicados no presente, em situações de conflito
social com os designados fazendeiros. O processo de regularização fundiária parece ter
encontrado limites quanto à resolução da situação de conflitos, uma vez que os fazendeiros se
negam a sair do território "desapropriado" e que as ameaças de morte às lideranças têm se
intensificado.
produção, em regra, para o consumo local, pois, com a privatização da terra e dos recursos
naturais, a quantidade e a qualidade da produção ficam comprometidas.
No mês de julho de 2014, quando estive em campo, estava na época da colheita de
macaxeira, maxixe, abóbora e mandioca. Sobre essa situação da dificuldade de local para
fazer roça, segue depoimento de Clesiomar Pereira, agente social da comunidade de São Brás,
que está afastado das discussões sobre o reconhecimento da comunidade por ter sido
ameaçado de morte; ultimamente ele tem como atividade a pesca, pois as lideranças são as
principais pessoas proibidas de fazerem as roças:
G: Como vocês trabalham hoje? Ainda trabalham de roça, onde roça, como é
que é feito?
C: Ainda se trabalha de roça, com dificuldade, é como eu estava dizendo,
fazemos a roça hoje e amanhã não sabemos aonde. A gente está até perdendo
essa cultura de produzir nosso próprio alimento. Está perdendo por falta de
ter esse local, ou seja, de nos apresentar, porque sabemos que esse local é
nosso, porque nós nascemos aqui e aqui estamos até hoje. Mas só que depois
da gente tem esses proprietários, ou seja, grandes, para nós se torna grande
que nos barra.
G: Não permite fazer roça, quem ainda tem roça faz aonde?
C: Tem muita gente que acaba fazendo num quintalzinho aonde ele tem e
outros que já deixaram até de produzir, muitos estão optando por São Paulo,
Minas Gerais, entendeu? Porque eu sei que o objetivo do governo e nós da
comunidade permanecer nela, porque hoje como se diz aí que tecnologia está
avançada, a gente precisa. Já temos escola, a energia, então não há
necessidade de sairmos da nossa comunidade para ir para periferia da cidade,
inchar a cidade e dizer que ela está desenvolvendo.
G: Tem gente que roça na terra de outra pessoa, paga foro, aqui tem essa
situação?
C: Tem. Agora teve um grupo de poucas pessoas que teve coragem inclusive
de roçar pelo menos um hectare. Quando teve esse negócio da notificação
que ninguém não era dono, o INCRA que era dono e aí teve um grupo que
roçou.
G: Roçou aonde?
C: Aqui em frente, tem uma roça, quase um hectare.
G: Que seria numa área...
C: Do INCRA
G: Mas está cercada?
C: Do INCRA, está cercada pelo fazendeiro. Então aí eles meteram o pé e
plantaram uma pequena quantidade e está lá, inclusive está até bonito, mas
na briga, com briga.
G: Quem se diz dono dessa área?
C: Lá é de Abreu.
G: De Abreu, mas os moradores que plantaram?
C: São daqui da comunidade.
G: Mas ele não tirou?
C: Ainda não, ainda estamos esperando esse resultado, da técnica que ele usa
de tirar a mandioca e plantar o capim, então vamos ver se nessa hora não vai
ser a briga maior. E muitas das vezes a comunidade se contenta porque o
151
cara chega e dá ordem, olha aqui eu vou plantar capim e a gente já fica, na
realidade a gente fica bolando.
G: Tem muito arame?
C: Tem, principalmente, se você ver, a água ainda não saiu do campo, mas
se você ver no campo você fica com medo. (CLESIOMAR PEREIRA, 2014)
Percebe-se assim a ameaça a modos de vida e a uma cultura local em virtude das
dificuldades, pelo impedimento e restrições impostas por supostos proprietários, que agem
com violência e autoritarismo. Pois a roça também é um instrumento de identificação, sem
essa cultura a própria condição de existência do grupo está ameaçada na reprodução social. A
roça é condição fundamental para garantia da luta. Como Clesiomar fala, a cultura da roça é
uma forma de apresentação, de identificação, está ligada à identidade e ao território de
pertencimento. Quando o grande proprietário barra a roça, coloca-se em risco a sobrevivência
do grupo.
Durante realização de oficina70, nos dias 21 e 22 de novembro de 2014 na
comunidade quilombola de Santo Antônio/Penalva (MA), no âmbito do projeto de
Saneamento Ambiental executado pela Associação de Santo Antônio dos Pretos (ASA),
estavam presentes, num grupo de trabalho, moradores das comunidades de Tibiri, Monte
Cristo, Oriente, Alto Bonito e Santo Antônio, para discutir as principais atividades produtivas
das comunidades; eles apontaram a feitura da roça como sendo a atividade principal do
sistema de produção, base do sustento das famílias.
Além da roça, as principais atividades produtivas realizadas pelos moradores estão
relacionadas ao coco babaçu, carvão, criação de peixes e criação de pequenos animais e aves
nos quintais. No entanto, reafirmam que a questão do acesso à terra tem influenciado na
feitura da roça, uma vez que não há terra livre para eles trabalharem.
Apontada como base de sobrevivência das comunidades, atualmente a roça é feita
compreendendo as medidas de uma linha, uma linha e meia ou meia linha; caso o trabalhador
não seja o proprietário da terra, há situações relatadas pelos presentes de pagamento de foro,
uma espécie de pagamento (podendo ser em dinheiro, cerca de R$ 150,00 por linha, ou parte
da produção) pela utilização da terra para fazer a roça. Antes do cercamento das terras pelos
fazendeiros, cada grupo roçava cerca de duas a cinco linhas na modalidade de roça coletiva.
Foram apontadas duas modalidades de roça: Roça de Janeiro e Rocinha. A seguir
apresentamos o calendário produtivo construído pelos presentes, referentes a essas duas
70
Oficina realizada pela Associação de Santo Antônio dos Pretos (ASA) em parceria com a organização
Medicus Mundi e com parceria e apoio técnico da EMBRAPA.
152
modalidades. Esse calendário foi exposto para consulta com lideranças das comunidades de
Oriente e São Brás, que dizem serem práticas comuns às comunidades do território.
No tocante à roça, não intenciono aprofundar teoricamente sobre a construção dessa
categoria, tampouco me deterei em fazer uma descrição específica71 das demais categorias
apresentadas na prática dessa atividade ou cultura. A intenção é apenas evidenciar como a
roça está intimamente ligada aos modos de vida e sobrevivência das comunidades e, desse
modo, situá-las diante dos conflitos.
Na região, fazem-se dois tipos de roças, diferenciando-se pelo período do ano em
que são feitas e pelo tipo de plantação, sendo que ambas convergem para que durante todo o
ano a produção seja garantida. Os moradores organizam suas atividades relacionadas à roça
dentro de uma lógica de um “calendário” local específico. As atividades desse calendário
variam de acordo com o tipo de roça e o que se pode plantar, de acordo com a época do ano e
de fatores meteorológicos como o período chuvoso.
A chamada roça de janeiro é a mais usual na região. Os trabalhadores começam a
roçagem em setembro, a queima é feita entre outubro e novembro, o plantio ocorre entre
janeiro e fevereiro - de acordo com as chuvas - e a primeira capina é feita entre janeiro e
fevereiro, conforme Tabela 01, apresentada a seguir.
A roça de janeiro, por ser a principal responsável pela produção de alimento das
comunidades, abrange áreas maiores de plantio e uma maior variedade de alimentos
plantados. Pode ser feita individualmente, por cada unidade familiar, ou de forma coletiva. A
roça de janeiro, além de garantir alimento para a unidade familiar, dependendo da quantidade
de linhas plantada, pode gerar excedente que pode ser comercializado. Entretanto, está
deixando de ser feita em decorrência dos conflitos, das disputas pela terra devido à imposição
da propriedade privatista.
A rocinha é a outra modalidade de roça praticada pelos agentes sociais e também
possui um calendário específico representado na Tabela 02, abaixo. A rocinha tem como
principal objetivo a produção de arroz e mandioca, base da alimentação local.
71
Para maior aprofundamento sobre a categoria roça e suas derivações, vide: PEREIRA JUNIOR, Davi.
Territorialidades e Identidades Coletivas: Uma Etnografia de Terra de Santa na Baixada Maranhense, dissertação
apresentada como conclusão de curso de mestrado em Antropologia na Universidade Federal da Bahia. Salvador,
2012, e MARTINS, Cynthia Carvalho. Os Deslocamentos como Categoria de Análise: o garimpo, lugar de se
passar; roça, onde se fica e o babaçu nossa poupança. Manaus. UEA Edições, 2012.
153
Roça de Janeiro
Atividades JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
Roçar Janeiro
Queima
Cercar
Coivara
Plantar: milho, maniva
Planta Arroz
1ª capina
2º capina
Colheita milho (3meses)
Colheita milho (6 meses)
Colheita Mandioca (ano seguinte)
Colheita Arroz (3 meses)
Colheita Arroz (6 meses)
Plantio de outras culturas (maxixe,
quiabo, abóbora, melão)
Colheita de outras culturas
Fonte: Elaboração própria com base nas experiências dos (as) entrevistados (as)
154
Rocinha
Atividades JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
Roçagem rocinha
Queima
Cercar
Coivara
Plantar maniva
1º capina
2ª capina
Plantar melancia
Plantar feijão
Colheita da Mandioca (ano
seguinte)
Colheita melancia/feijão
Fonte: Elaboração própria com base nas experiências dos(as) entrevistados (as)
155
A privatização das terras também tem sido apontada pelos agentes sociais como um
dos fatores que acarreta a saída de homens e mulheres, geralmente jovens, de idade média
entre 18 a 45 anos, para outras regiões do país. A saída à procura de trabalho é justificada pela
falta de lugar para trabalhar, pois as terras estão todas cercadas e desmatadas. As pessoas
estão se deslocando geralmente para Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro e as atividades
para as quais são contratadas são construção civil, serviços domésticos, corte de cana, cultivo
de laranjas e outras atividades ligadas à produção agrícola.
A proibição da prática da roça força o deslocamento dos trabalhadores para outros
estados, pois a saída das comunidades é a única alternativa para a manutenção do sustento das
famílias. São situações de confrontos entre fazendeiros e famílias das comunidades que se
repetem pelo território.
Esses deslocamentos têm ocasionado a desestruturação e ao mesmo tempo um
reordenamento dos grupos familiares, pois muitas famílias estão saindo das comunidades para
fixarem moradia em outros estados. A saída de homens em grande quantidade e ao mesmo
tempo, geralmente, por um período de seis meses, faz com que as mulheres concentrem
tarefas; pois nos casos em que ainda se tem onde roçar ou se roça mediante pagamento de
foro, elas administram as roças. O trabalho é realizado pelas próprias mulheres e/ou mediante
pagamento ou troca de dia de trabalho, o pagamento é fruto do trabalho daqueles que foram
para outros estados, prática que está sendo considerada pouco viável.
Em meados dos semestres, maio ou outubro, quando os trabalhadores ainda não
retornaram do Sul, ao realizar tarefas que frequentemente são feitas pelos homens ou em
situações de temor, geralmente se comenta que nas comunidades só tem mulheres, crianças e
velhos.
Esse impedimento de fazer roças tem demandado práticas alternativas que
modificam o jeito de ser e viver nas comunidas. Devido às mudanças impostas pela falta de
acesso à terra, umas das opções tomadas foi a união de alguns moradores de várias
comunidades para realizar o plantio do arroz na área dos campos naturais alagados.
Esse deslocamento da área de cultivo, da terra firme para os campos alagados, não
assegura a colheita do arroz, pois essa transferência não limita a ação do fazendeiro que
mantém seu rebanho de búfalos criados soltos e instala cercas eletrificadas ameaçando o
plantio e a vida das pessoas.
156
72
Sobre a pesca na Baixada, vide Raimundo Lopes: Dois estudos resgatados, 2010.
73
O governo do Estado do Maranhão, através do Decreto 11900 de 11/06/1991, cria a Área de Proteção
Ambiental da Baixada Maranhense, tendo com uma das considerações a grande preocupação com as atividades
predatórias de caça e pesca, criação extensiva de bubalinos nos campos naturais, bem como a mortandade de
peixes nos lagos e lagoas, devido alterações nos padrões de qualidade físico-química-biológica da água,
provocadas por colmatagem das bacias em função dos desmatamentos e queimadas indiscriminados.
157
Mesmo com o baixo custo financeiro da amêndoa do coco babaçu, que atualmente
varia entre R$1,00 (um real) e R$1,30 (um real e trinta centavos), os derivados do coco
babaçu como o azeite e o mesocarpo além de servirem de fonte de renda também são fontes
de alimentos para as famílias. A privatização dos recursos é assim compreendida por
Raimundo Nonato da comunidade quilombola de Monte Cristo.
filhos na comunidade. Trata-se aqui não de situações isoladas, os relatos de ameaça aos
agentes sociais e lideranças sindicais é uma constante.
Portanto, a ação indiscriminada dos fazendeiros e a violência simbólica à qual os
grupos são submetidos nos ajudam a entender a emergência da reivindicação do território
quilombola. Os conflitos evidenciados acima ocasionam a desestruturação dos modos de vida
e colocam em risco a permanência dos grupos no território, pois sua sobrevivência está
intimamente ligada ao acesso aos recursos naturais. A ação dos fazendeiros e do Estado com o
processo de "desapropriação" estimula a privatização das terras, promulgando o fechamento
desses recursos naturais.
74
Protocolo INCRA (SR12/MA)
159
As formas de resistência em permanecer nas terras sob domínio dos supostos donos
de fazenda são explicadas, também, na relação casa feia e roça boa. Não ter liberdade para
fazer a casa, ter casa feia é uma forma de negar direitos, de subalternizar o outro, inclusive
pela estrutura da moradia, e a roça boa pode ter relação com os lucros pela produção e com o
pagamento de foro.
Nesse depoimento de Raimundo Nonato, podemos perceber também a construção do
processo de "territorialização", como a resistência e as formas organizativas vão se
estruturando em torno da identidade. Além do mais, traz o debate das formas de pensar a
política, ou melhor, da infrapolítica, pensada em termos de formas de resistência que podem
enfrentar a dominação (SCOTT, 1990). A "infrapolitíca" é a prática ou discurso dos grupos
como ato de resistência, não interpretada no aparente, não verbalizada, tem sido ignorada pela
"política" arquitetada pelos grupos dominantes e pelo Estado.
Ainda é possível extrair da Ata de Reunião trechos em que o grupo descreve que
essas comunidades resistem há mais de 200 (duzentos) anos, descendendo dos "antigos
núcleos de negros" que foram escravizados. Registram em Ata que as comunidades até hoje
são habitadas por negras e negros descendentes dos cativos que trabalhavam nos antigos
engenhos das fazendas localizadas nas comunidades como Monte Cristo, Oriente e São Brás,
161
ou nos arredores, motivo pelo qual reivindicam o direito à propriedade definitiva do território
secularmente ocupado.
É passível de observação a referência que fazem a vários engenhos das fazendas
localizadas onde hoje estão os núcleos das comunidades ou nos arredores, pois o projeto do
"assentamento" é instituído somente com base na área do "imóvel rural" da Fazenda Monte
Cristo.
São nas localidades tidas como arredores que os agentes sociais indicam os locais
onde viviam as famílias dos antigos povoados, não os tidos como "donos" da fazenda, mas os
primeiros descendentes dos escravizados ou "libertos" que ali se estabeleceram e construíram
suas territorialidades específicas. São a esses povoados que estão referidas as terras que foram
compradas ou herdadas pelos antigos moradores e hoje identificadas como herança. É a
partir da referência dos antigos povoados que se pode obter informações que levem ao
entendimento das territorialidades específicas.
No entanto, a lógica do processo de "desapropriação" não considera esses elementos,
já que se trata de uma política de (des)inclusão em um modelo de "reforma agrária" numa
modalidade expropriatória de territorialidades específicas. O "assentamento" serve para
"assentar" famílias e não para regularizar a propriedade da terra daqueles que já as ocupavam
no sistema de uso comum há séculos, como aponta o caso do território Monte Cristo.
Na fala do senhor Raimundo Aires, ele explica que depois que colocaram Monte
Cristo em um pedaço de papel, foi que se criou trapaça para ser dono de Monte Cristo.
Podemos deduzir que a legitimação através do escrito, registrado em cartório, dizimou as
regras internas, os direitos daqueles que ocupavam a terra, e inicia um processo conflituoso
pela propriedade. Os documentos, senão os da antiga fazenda Monte Cristo, são tidos como
ilegítimos, não são reconhecidos, somente aqueles mencionados em cadeia dominial.
Outrora em uma roda de conversa com lideranças, onde estavam presentes
representantes das comunidades de Conduru, Oriente, Monte Cristo, Ponta Grossa e São Brás,
foi possível analisar o seguinte: essas comunidades estão referidas ao centro dos núcleos
familiares, à organização das associações. No entanto, dentro do território existem outros
povoados, onde moravam os mais antigos. Nesse contexto da existência dos povoados,
ignorados pelo INCRA no processo de "desapropriação", são feitas referências a nomes de
povoados como Belém, Olho, Pataca, Veneza, Genipapo, Aleixo, Deserto, Caminho do Meio,
Frechal, Manoel Pereira, Tororoca e Centrinho, que fazem parte do território quilombola
reivindicado.
162
Negras Rurais Quilombolas de Penalva, relação com cerca de cinquenta nomes de pessoas,
fazendeiros e/ou supostos proprietários, que mantêm as terras cercadas dentro do território.
Nesse sentido, continuam a afirmar que a "desapropriação" deu força para os fazendeiros.
Como parte dos esforços das comunidades para a regularização do território, os
agentes sociais se organizaram e criaram, ainda no ano de 2006, a "Associação das
Associações da Gleba Monte Cristo das Associações das comunidades Negras Rurais
Quilombolas do município de Penalva".
As comunidades constituem-se em associação sem fins lucrativos, estabelecendo
entre seus principais objetivos: preservar o meio ambiente e exploração racional extrativista;
facilitar o acesso dos trabalhadores das comunidades negras rurais quilombolas de maneira
racional aos mecanismos das políticas sociais, agrícolas e agrárias na área destinada a
"assentamento" junto aos órgãos governamentais; oportunizar os associados quanto às
questões de gênero e etnia, conscientizando os jovens da Gleba Monte Cristo de sua
importância na sociedade em ambos os aspectos.
Convém mencionar que, antes da criação da referida associação, as comunidades de
Araçatuba, Conduru, Oriente, Ponta Grossa e São Brás, que recobram o território, já estavam
constituídas em associações locais e depois passam a adotar o termo quilombo ou quilombola
no nome das associações, substituindo as designadas como associações de moradores,
trabalhadores rurais, pequenos produtores e carentes.
No entanto, percebi, durante análise do pedido de titulação de território quilombola
que tramita no INCRA, que as comunidades se mobilizaram, se articularam na reivindicação
do processo de reconhecimento. Foram feitos esforços no sentido de cumprir as exigências
feitas pelo INCRA no processo. Mesmo assim, foi possível verificar que a autarquia de
competência pelos procedimentos de titulação dos territórios quilombolas, mesmo diante da
emergência da situação de Monte Cristo, não tomou providências em relação às
reivindicações do grupo com base nos direitos constitucionais referentes à titulação definitiva
das "comunidades remanescentes de quilombo".
São evidentes as contrariedades e a desorganização dentro dos próprios setores do
INCRA ao lidar com os processos em tramitação. São situações ratificadas pela desordem nos
processo, pois aos documentos do "processo de titulação de território quilombola", ao qual
tive acesso, mistura-se um relatório de uma provável tentativa de intervenção do INCRA, em
Monte Cristo, mas referida ao projeto de "criação de assentamento". Trata-se de um relatório
geral das atividades desenvolvidas pela Delegacia Agrária do Estado do Maranhão e técnicos
do INCRA, ao promoverem "diligências" em áreas de "assentamentos" entre o período de
165
29/11 a 08/12/2010 com o intuito de verificar conflitos entre famílias "assentadas" e pessoas
que se dizem proprietárias do "imóvel rural". Sendo descrito o seguinte em relação ao "PA
Monte Cristo - povoado São Brás":
não comportam as pluralidades pertinentes aos grupos. Suas funcionalidades estão reguladas
ao acionamento de políticas públicas, recebimento de projetos e recursos financeiros, interesse
político-partidário. A instituição de associações, em regra, leva os agentes sociais a
recorrerem a assessores, políticos, enfim, pessoas de fora da comunidade para essa
construção. A intervenção de "fora do grupo", com a intenção de auxiliar no processo e a
própria criação da associação, coloca em risco a autonomia organizativa e incorporação de
elementos que sirvam de obstáculos para o reconhecimento das diferenças.
A constituição de uma associação é regulada por instrumentos normativos, segue
regra, uma padronização exigida pelo código civil vigente, portanto, passível de
superficialidade construída externamente, de acordo com o que se segue:
Neste sentido, as associações formais das comunidades quilombolas não devem ser
vistas como mero recurso, apenas instrumento para se ter acesso a benefícios. Apesar da
imposição e das dificuldades provenientes dos mecanismos de sua construção, estão inseridas
num processo de luta mais amplo. São arranjos instituídos para possibilitar e intermediar o
diálogo com o Estado hierárquico, impessoal e formal. Para poderem acionar direitos
fundamentais, constituíram-se enquanto instrumentos jurídicos atendendo as terminologias
impostas pelos aparatos de poder, instituídos como legítimos. Essa situação pode ser assim
entendida:
Aqui a ideia de quilombo está associada com conflito direto, com emergência de
identidade, elaborando um ritual de passagem na luta por direitos específicos.
174
Considerações Finais
arquivado nos cartórios de registro. Sendo que o escrito, arquivado, escriturado, sempre foi
negado para os grupos, à medida que estes foram colocados à margem do direito e das formas
de conhecimentos "legitimados" pela ação oficial. As situações localizadas legitimadas pelos
grupos, suas relações, suas particularidades, memória, oralidade, pertencimento, são
desconsideradas pela lógica dominante, especialmente ao se tratar da questão fundiária.
O território Monte Cristo, oficialmente desapropriado há mais de uma década, ainda
não passa por todas as interferências de um projeto de assentamento. No entanto, a ação
desapropriatória desencadeou conflitos e situações sociais que abalaram os modos de vida das
comunidades e colocam em risco as relações e formas de ocupação do território que se
formaram com as gerações e mesmo as que ainda estão vigentes, de acordo com seus
processos de transformação e ressignificação.
Ao desapropriar a área do imóvel rural da fazenda Monte Cristo para criação de
assentamento, o INCRA interferiu de maneira decisiva para o acirramento de conflitos na área
e para um confuso processo de classificação que coloca membros de grupos com relações
familiares e de parentesco acentuadas em posições antagônicas. Ao mesmo tempo, os
designados fazendeiros se sentem autorizados a ampliar suas cercas e impedir os grupos
familiares de acessarem os recursos naturais e permanecerem nas terras.
A situação de conflito envolvendo as comunidades que formam o território de Monte
Cristo evidencia a falta de vontade política do Estado, que trabalha sob a nomenclatura de
Instituto de Colonização, como se este modelo de projeto servisse de parâmetro para resolver
a questão fundiária criada pelo mesmo modelo de exploração colonizadora.
De outro modo, as comunidades referidas a Monte Cristo, organizadas em torno de
uma identidade étnica, veem a questão da “regularização fundiária” de seus territórios ser
usurpada por um modelo de propriedade em que os conflitos não são mediados nem sanados.
Nesses termos, temos uma sobreposição de significados que, com a desapropriação, colocam
em xeque a atuação da agência de regularização fundiária ao não propor medidas que
contemplem a situação do grupo e sim privilegiam a figura centrada na propriedade privada e
nos interesses de mediadores ligados ao grande capital.
A ideia da "desapropriação", além de acirrar os conflitos pela terra, coloca em
disputa uma série de categorias e significados como posseiro, proprietário, dono, herdeiros,
fazendo com que se tenha uma perda de autonomia dos grupos familiares em relação a outros
períodos que antecedem a ação do Estado.
Antes da desapropriação, mesmo já existindo conflito, havia certa respeitabilidade
dos espaços de uso dos grupos familiares, de modo que todos tivessem acesso aos recursos
180
discussão, indo desde as acomodações para a realização das reuniões até o descaso com que
os agentes governamentais tratam a temática, demonstrando sequer dominarem os direitos
garantidos constitucionalmente. A estratégia é enfraquecer o debate e fazer com que os
quilombolas desistam da discussão e consequentemente do diálogo com o Estado para a
construção de soluções que apontem para a titulação definitiva dos territórios e para a situação
de ameaça aos grupos.
Ao me debruçar nas considerações finais deste trabalho, observo como o Estado e
seus instrumentos de intervenção negligenciam o direito referente às comunidades
remanescentes de quilombo. A intervenção do Estado com a "desapropriação" para criação de
assentamento reflete a incidência da contraditoriedade dos órgãos de ação oficial ao
ignorarem os processos sociais e as dinâmicas dos grupos em detrimentos de interesses de
mediadores.
No caso de Monte Cristo, o Estado simplesmente, em uma ação coordenada e
deliberada, ignora as reivindicações do grupo pelo território quilombola; presencia-se uma
evidente e insistente ação no sentido de promover a imposição do assentamento, mesmo que a
"falsa" desapropriação só tenha gerado conflitos e afirmação da propriedade privada em
detrimento das formas de uso comum e de abertura aos recursos naturais.
O crime na negação do reconhecimento de Monte Cristo, que pese sobre o Estado
brasileiro, expõe a risco iminente os modos de ser e viver destes grupos, ameaçados pelos
fazendeiros e pela ação arbitrária do próprio Estado, que se contrapõe às reivindicações dos
grupos.
Assim, ao instituir a política de assentamento, o Estado tem atuado no sentido de
destituir o coletivo, desmobilizar formas político-organizativas; essa ação coloca em risco a
dignidade humana, ameaça a identidade, ameaça a vida. Portanto, faz-se urgente uma revisão
nos procedimentos administrativos do Estado, para que as contradições sejam resolvidas, sem
violações aos direitos coletivos. Faz-se mister que o INCRA atue no processo de
reconhecimento territorial de Monte Cristo, criando condições para que os quilombolas
tenham autonomia e condições de permanecerem livremente em seus territórios, libertos dos
açoites das formas de dominação prevalecentes.
182
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LEGISLAÇÕES
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Ata de Fundação da Associação das Associações da Gleba Monte Cristo das Associações das
Comunidades Negras Rurais Quilombola de Penalva/MA, 2006
Anexos
Anexo 01:
Anexo 02
de Assis Mendonça
(...) prestar compromisso de arrolamento dos bens deixados por
1979 falecimento de Saturnino Augusto Anchieta e sua mulher Carolina
Anchieta [...] dos quis são cessionários, vem fazer suas primeiras
Carta de declarações pela maneira seguinte: Data do falecimento. Os
Adjudicação, inventariados Saturnino Augusto Anchieta e sua mulher Carolina
expedida pelo Juiz de Anchieta, eram casados em regime de comunhão de bens, sendo que
Direito da Comarca o primeiro faleceu em 17 de março de 1920 e a segunda em 27 de
de Penalva, do junho de 1952, esta última na capital deste Estado, não tendo
Estado do Maranhão, deixado ambos testamento ou quaisquer que seja as disposições de
a favor de Ubiratan última vontade. TITULOS DOS HERDEIROS. Desse consórcio
Fernandes Fontenele, resultaram os seguintes filhos e herdeiros: LUIZ, JOSÉ RIBAMAR,
e Ubiratan Fernandes MARIA JOSÉ e ELIZA CARDOSO RIBEIRO, que fizeram cessão
Fontenele , dos direitos hereditários a IONE RIBEIRO ALVES, conforme Livro
brasileiros, casados, 260, fls 176 a 177.
industriais, residentes “MONTE CRISTO” com área de 2.965.77.04 (DOIS MIL
e domiciliados à rua NOVECENTOS E SESSENTA E CINCO HECTARES, SETENTA
Gilberto Studart nº E SETE ARES E QUATRO CENTIARES), limitando-se de frente
1497 e 1493, na com o Rio Cajari, na reta do lugar Totoroca ao lugar Araçatuba,
cidade de Fortaleza - onde mede 4.8700m; ao fundo com as seguintes propriedades,
CE e extraída dos partindo do lugar Tibiri até o pico das terras de Raimunda Nonato
Autos de Ferreira, com 2.270m; daí limitando-se com as terras de Santo
Arrolamento dos Antônio com 1.985,00m e finalmente com as terras de Conduru,
bens deixados por medindo 680,00m, pela direita em linha reta do lugar Conduru até a
falecimento de Palmeira de Galho, medindo 5.440,00m, por onde se limita com
Saturnino Augusto terras de herdeiros de Melquíades Melônio e outro, desse ponto
Anchieta e sua Palmeira de Galho até Totoroca, medindo 3.000,00m, limitando-se
mulher Carolina com as terras dos Campos e pelo lado esquerdo com terrenos
Anchieta, em que foi alagados do lugar Araçatuba ao lugar Tibirí, medindo 6.310,00m.
Arrolante Ubirajara Essa propriedade foi adquirida pelo Inventariante Saturnino Augusto
Fernandes Fontenele Anchieta e sua mulher de Mariano Antonio Pereira e sua mulher,
conforme instrumento público lavrado no Cartório do 2º Ofício da
vizinha Comarca de Viana, em 31 de julho de 1.906.
Usando dos poderes que me são conferidos por lei e a requerimento
de parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-
Certidão INCRA, Certifico que as terras denominadas FAZENDA MONTE
CRISTO, situadas neste município, de propriedade atualmente dos
Datada de 11 de srs. Ubiratan Fernandes Fontenele e Ubirajara Fernandes Fontenele,
agosto de 2003e sofreu as transferências, nos últimos anos: Saturnino Augusto
assinada por Maria Anchieta adquiriu por compra feita a Mariano Antonio Pereira e sua
Joaquina Gonçalves, mulher Maria Cecília Costa Leite Pereira, consoante escritura
oficial Registro do pública de compra e venda lavrada no Cartório do 2º ofício da
Cartório do 1º Comarca de Viana - MA, em 31 de julho de 1906, Livro de Notas nº
200