Terra Indio
Terra Indio
TERRA DE ÍNDIO
2ª Edição
São Luís - Edufma
2008
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO HUMANIDADES
Núcleo de Humanidades
AGRADECIMENTOS
Ao vianense Sr. Pedro Mendengo da Fundação MARACU, que recuperou o texto a partir da
primeira edição.
À FAPESP e ao CNPq, que me concederam bolsa de estudo para realização do
doutorado.
À Prof. Margarida Maria Moura, que, solicitamente, aceitou assumir a orientação, muito
embora faltasse apenas um ano para a entrega da tese. Com interesse, paciência e dedicação
orientou essa etapa decisiva para a conclusão do trabalho.
Aos Prof. Dalmo de Abreu Dallari, José de Souza Martins, Aracy Lopes da Silva, Renato
Queiroz, integrantes da banca examinadora, pelas críticas e sugestões.
Aos Profs. Regina Sader, João Pacheco de Oliveira Filho e à Virgínia Valadão que,
igualmente, fizeram sugestões, a partir da leitura do relatório de qualificação.
A Alfredo Wagner Berno de Almeida, companheiro de trabalho e que, como sempre, na
prática, atuou como co- orientador, sem que seja, de nenhum modo, responsável pelas
limitações deste trabalho.
Às pessoas que auxiliaram na localização de fontes históricas, documentos, mapas e
outros materiais - Elizabeth Maria Bezerra Coelho, Márcia Anita Sprandel, Célia Maria
Corrêa, Dominique Gallois e Alfredo Wagner Berno de Almeida.
À Miriam Nobre, colega de trabalho no PROTER/PUC-SP, que criticou o capítulo V,
sugerindo modificações.
Ao Prof. Mario De Biasi, do Departamento de Geografia da USP, que orientou a
elaboração dos croquis da Terra dos Índios e do diagrama relativo ao calendário agrícola.
A Murilo Santos, que fez as fotos e os croquis, organizou a apresentação de mapas e
desenhos, filmou a festa do Belibeu, participou da coleta de informações em diferentes
períodos de campo e discutiu comigo vários aspectos do trabalho.
A Joaquim Santos e Alicia Rolla, que realizaram os desenhos.
A Crismere Gadelha Tsukioka, que procedeu à revisão, correção e formação da tese no
micro, e a Ednaldo Faria Lima, do Departamento de Pós-Graduação em Antropologia da USP,
meu "professor" de computação nos árduos tempos de digitação da tese.
Aos Professores Sérgio Figueiredo Ferretti e Benjamin Alvino de Mesquita Filho, da
Coordenação do Mestrado em Políticas Públicas e, principalmente a este último, pelos
incansáveis esforços para que o livro fosse publicado.
A Benedito Souza Filho, que colaborou na revisão dos originais, na organização das
ilustrações e na recuperação dos desenhos, por ocasião da primeira edição do livro.
Às Profs. Marília Sposito, da Faculdade de Educação da USP, e Dominique Gallois, do
Departamento de Antropologia da USP, pela solidariedade no momento exato.
Ao Monsenhor Eider Furtado, à Edith Furtado (em memória) e a Enói, pelo apoio em
Viana, durante os períodos de campo.
Especialmente ao primeiro, meu respeito e admiração por se manter fiel, até hoje, as
causas dos trabalhadores rurais.
A Cláudia Andrade e Valmir Baricelli, por terem assumido minhas crianças durante longos
períodos, enquanto eu redigia a tese.
Ao Mura, Marluce, Cacá e Dani, pela paciência.
ÍNDICE DE MAPAS E ILUSTRAÇÕES
Este trabalho foi elaborado para fins de obtenção do título de doutora em Ciências
Humanas (antropologia social), junto ao Departamento de Antropologia, da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, em 1990.
Após muitos percalços para conseguir publicá-lo em uma primeira edição, em 1999, o
Núcleo de Humanidades do CCH/UFMA, agora, me brinda com a possibilidade de uma
segunda edição.
O trabalho aplicado, resultado de minha inserção na Caritas Brasileira/MA, iniciou-se
em 1982 e a coleta de informações para a pesquisa prolongou-se pelos anos 80, até 1990,
quando foi defendida a tese. Registrou-se, portanto, um longo período até que viessem a
público seus resultados em forma de livro. Sendo assim, alertamos o leitor para o fato de que
não foram realizadas alterações significativas no texto nem na bibliografia referida, assim
como não foram incorporadas novas informações atinentes à atual situação do grupo no
tocante ao controle sobre seu território.
Quando da primeira edição ainda mantive nomes fictícios para indicar os informantes.
Naquele momento, dado o forte clima de tensão social, acreditei que seria o melhor
procedimento. Agora, passados quase trinta anos, decidi, em comum acordo com alguns deles,
que sua verdadeira identidade poderia ser conhecida e tornei público seus primeiros nomes
nas legendas das fotografias, apresentadas no final do trabalho. Imaginei que seria uma
maneira de homenageá-los, de alguma forma, e assim procedi.
Quanto aos demais, permanecem com nomes fictícios.
SUMÁRIO
Agradecimentos 9
Índice dos mapas e ilustrações 11
Siglas utilizadas 12
Nota da autora 15
Prefácio à 1ª edição 21
Prefácio à 2ª edição 25
APRESENTAÇÃO 29
I-FACÇÕESINTERNAS, MEDIADORES EXTERNOS E CONDIÇÕES DE
OBTENÇÃO DAS INFORMAÇÕES 35
1.As unidades sociais em jogo - o trabalho aplicado 39
2.A luta pela terra e as facções internas 42
3.O Sindicato dos Trabalhadores Rurais 44
4.A pesquisadora e os agentes externos 45
5.A pesquisadora e os primeiros informantes 46
6.Os conjuntos de grupos familiares liderados por Apolônio e João Lourenço 50
7.São Belibeu e sua festa 56
8.O milagre: a nova posição da pesquisadora 64
9.O ritual religioso e a ampliação das possibilidades de interação com o grupo 66
IV- OS GAMELA 95
1.Os Gamela na segunda metade do século XVIII 96
2.Os Gamela nas primeiras décadas do século XIX 104
3.Os Gamela de Viana e do Codó: domesticação e extermínio 110
4.Os Gamela e os caboco da Terra dos Índios 112
V- ARTICULAÇÃO ENTRE A APROPRIAÇAO FAMILIAR E O USUFRUTO
COMUM DOS RECURSOS NATURAIS 117
1.O trabalho agrícola e a organização da produção 126
2.O calendário agrícola: inverno e verão 133
3.A farinha 139
4.A pesca, a pecuária, a extração do babaçu 140
a)A pesca 140
b)A criação 142
c)A coleta e quebra do babaçu 144
5.A comercialização da produção 149
CONCLUSÃO 185
Notas 193
Referências 199
Fotos 207
PREFÁCIO À 1ª EDIÇÃO
Terra de índio, terra dos índios, lição de campo
I
Realizado no Maranhão, eis um trabalho de campo que une, de forma especialíssima,
sujeitos da pesquisa e pesquisadora numa delicada trama humana. De um lado estão os
moradores de uma terra de uso comum, em que residem e cultivam há várias gerações,
enquanto descendentes dos índios Gamela e guardiães dos documentos antigos da área.
Do outro está Maristela, a antropóloga, a potencial assessora jurídica, a mulher que veio de
fora.
Os moradores pedem sua colaboração para reforçar, através de seus vínculos urbanos,
sua permanência na terra. Terra onde interesses privados tentam fragmentar a apropriação
comum, abrindo caminho para a grilagem. Maristela - quem sabe - poderia ser a mediadora,
perante o direito oficial atual, das provas que possuíam dos direitos antigos, que querem
preservados e assegurados.
O percurso desta interação etnográfica poderia ser como o de outras tantas pesquisas
antropológicas: descobertas da pesquisadora se entrelaçam com descobertas do grupo; e desta
partilha da palavra e da prática nasce um terreno comum que vai do conhecimento ao afeto ou
do afeto ao conhecimento. Mas ocorre mais do que isto. Surgem não somente relações de
compadrio entre ela e Leandro Lió, como Maristela adota a
menina Marluce, filha deste, levando, em corpo e alma, um ser da comunidade para seu lar
conjugal.
Ainda sem filhos biológicos, embora casada há alguns anos, a pesquisadora aprende que
o santo protetor da comunidade não somente propicia a gravidez em mulheres inférteis, como
engravida, ele próprio, tais mulheres. O santo oferta a Maristela o dom de duas gestações a
termo: filhos dele, sem dúvida, diriam pessoas da comunidade, pela grande
sintonia divina e humana que tem com seus devotos.
Cunha-se, assim, a representação de que o pai das duas crianças que vêm de nascer não é
o marido de Maristela, mas o santo, embora o tipo físico de ambas lembre o traços daquele o
tempo todo. Contradição nenhuma, pois o santo, na sua grande argúcia e sensibilidade, não
teria deixado seu tipo moreno transparecer na prole. São Belibeu não constrange a mãe que,
casada com um homem alvo, poderia ficar numa posição difícil e ambígua perante o mesmo,
com filhos tão diferentes do biótipo paterno.
Por estes acontecimentos, a pesquisadora liga-se também de forma mágica aos sujeitos
de sua pesquisa, gerando-se neste contexto intersubjetivo uma verdadeira eficácia simbólica
do seu trabalho de campo, que flui do afetivo (adoção de uma filha) ao mágico (as gestações
excepcionais). No seu trabalho de campo, vai de Shanin a Leach, num percurso corrido,
vivenciando uma autêntica Herzenbildung, no sentido de Boas.
O que estas relações de substância afetiva e de substância simbólica veiculam, cada
uma a seu modo, é uma verdadeira inserção de Maristela nos quadros do parentesco desse
grupo humano e constitui, sem dúvida, a razão oculta - mas por isso mesmo a mais importante
porque são franqueadas a ela não somente genealogias antigas e documentos jurídicos
avoengos, mas também desvelados conflitos internos à própria comunidade, que se
manifestavam por um faccionalismo violento; fatos estes que antes ficavam sombreados no
contexto da luta pela manutenção da terra comum - foco dominante das reivindicações e
representações dos moradores para os agentes de fora.
Esta estória da pesquisadora, dos pesquisados e da pesquisa nos deixa todos,
antropólogos ou não, impacientes quanto ao saldo da dívida que Maristela tem para com a
Antropologia, de esmiuçar num artigo futuro o relato feito aqui brevemente, que já seria por si
só, suficiente para apresentar seu trabalho.
II
Ocorre que seus achados etnográficos com relação às questões de terra são importantes
demais para não serem aqui ressaltados.
É no período que vai de 1750 a 1777 que se trava a disputa entre a administração
pombalina e as ordens religiosas, principalmente a dos jesuítas, época em que, no Maranhão,
se sabe ter sido feitas a cessão de terras aos índios Gamela. É também deste período a
polêmica sobre a escravidão indígena, aconselhando a administração do Marquês de Pombal
que os índios fossem livres em suas terras, em áreas que lhe fossem atribuídas e destinadas.
Depois de várias perambulações num perímetro de área bastante extenso, entre os rios
Mearim e Grajaú, os Gamela a teriam abandonado, em benefício de outra, a noroeste do Rio
Pindaré, justamente onde hoje se localiza a Terra dos Índios. É a partir da delimitação deste
contexto espacial e histórico, que a autora desta tese aponta que a escritura em poder dos
camponeses se refere a uma doação feita pela Coroa Portuguesa, um ano após o Diretório ter
sido sancionado por um Decreto Real. Trata-se de uma carta régia de data e sesmaria que, já
no início do século XIX, encontra-se nas mãos dos índios e, posteriormente, dos
representantes dos índios que são, efetivamente, seus descendentes. Neste documento, o
Príncipe Regente (que aí já é o príncipe regente Dom João, que conhecemos com Dom João
VI) confirma o anterior Decreto Real aparecendo na qualidade de transmitente e um dos
ancestrais dos atuais "descendentes dos índios", como adquirente.
Nota-se aqui o papel do velho direito português que embora não aceitando a premissa
de que os indígenas são os primitivos donos da terra, reconhece, no entanto, sua condição de
súditos privilegiados. Este selo do direito oficial da época é hoje instrumento precioso a ser
acionado nos tribunais, pois eliminou a possibilidade de comunidades camponesas, hoje
ameaçadas pela apropriação privada da terra perpetrada por grandes grupos econômicos,
serem vistas como simples desvalidas em terra de ninguém. A documentação histórica de que
Maristela se vale para fundamentar o presente caso etnográfico - Terra de Índio, Terra dos
Índios - oferece poderoso reforço de mérito e argumentação aos juristas ciosos da antiguidade
desta e outras legislações: é garantia de permanência das comunidades justamente a
proclamação de serem terras públicas, visto
que o direito português e toda jurisprudência brasileira consagram a proteção aos logradouros
e bens de uso comum, em que pese o frequente desrespeito e a frequente desobediência a estas
normas.
Contribuição ao campo da Antropologia Jurídica, é também contribuição ao campo do
Direito, pois Maristela enlaça categorias tiradas de textos que afirmam que os habitantes
"hajão, logrem, e possuão as mencionadas terras, como causa sua própria, para elles e seus
descendentes, sem função, nem tributo algum mais que o dizimo a Deus dos fructos que nela
tiverem e lavrarem, a qual concepção lhe faço não prejudicando a terceiros
nem a S. A. R. se nas ditas terras quizer mandar fundar algua vil/a", quanto categorias e
noções que o próprio grupo, ontem e hoje se vale para habitar e cultivar a referida terra,
enquanto terra de uso comum. Nesta linha
etnográfica, descreve e interpreta de que modo a totalidade aparentemente indiferenciada da
área apresenta segmentações e hierarquizações no
seio do grupo sob o controle das famílias, outros sob o controle das famílias
e ainda outros sob a guarda e utilização do grupo camponês como um todo.
A ameaça a este conjunto de práticas costumeiras vem - como de
resto ocorre em outras áreas rurais do país - através dela, a possibilidade
de fragmentar, desmembrar, comprar e vender lotes. Documentos falsos
como esse pretendem golpear simultaneamente uma doação realenga,
por um lado, e um direito local da terra de uso comum, que conforma um
modo de vida, por outro.
Esta tese de doutoramento, em boa hora transformada em livro, é
mais uma excelente contribuição ao estudo do campesinato brasileiro e se
antecipa, em sua formulação original, à expressiva produção recente, na
qual se destacam os trabalhos de Jadir de Morais Pessoa, Emilia Pietrafesa
de Godói e Renata Medeiros Pacllelto, os dois primeiros já editados e a
terceira à espera de editor.
"É comum porque não tem propriedade, quer dizer que o dono
não existe propriedade, quer dizer que existe assim porque todo
mundo se goza, né? Mas não tem quem comprasse, pra dizer:
'aqui é meu'. Não tem proprietário ... quer dizer, que a terra é comum porque os índios
vinham e nunca foi vendida pra seu ninguém, quer dizer que aí é comum, se dá o nome de
comum, né ... quer dizer, que todo mundo pode roçar, pode trabalhar ... "
[Excertos de depoimento de José Antônio. Centro dos Bata. Terra dos Índios. Viana.
Maranhão]
"Eles dizem: é rapaz, isso era naquele tempo que era terra de índio... hoje não é mais terra
de índio, hoje é terra de comprador... e, com isto, vai acabando os direitos da terra dos
índios aqui pra nós..."
[Excertos de depoimento de João Lourenço. Santeiro. Terra dos Índios. Viana. Maranhão]
APRESENTAÇÃO
VIANA
Povoados Casas Habitantes
Baías 40 141
Barreiro 74 260
Cambutes 26 92
Canidé 01 04
Carpina 50 176
Caru 157 653
Cavaco 13 46
Centro dos Bata 70 246
Curva da Formiga 50 176
Cutias 12 42
Enseadado Prequeú 16 56
Estrada de Rafael 90 316
Estrela 39 137
Laranjal 70 246
Macaxeira 50 176
Maracassumé 38 134
Piraí 59 207
Porto Velho 17 70
Ricoa 36 127
Retiro 30 106
Samambaia 29 102
Santa Luzia 13 46
Santa Clara 17 60
Santeiro 209 737
São Cristóvão 45 158
Taquaritua 139 489
PENALVA
Povoados Casas Habitantes
Baía 04 13
Cambute 57 186
Cutias 83 270
São Sapé 20 65
Timbiras 78 253
MATINHA
Povoados Casas Habitantes
Aquiri 103 309
Jabara 68 197
Meia Légua 150 455
Piraí 09 26
Total 1.930 6.777
A FIBGE, por outro lado, não dispunha de dados demográficos relativos aos
povoados em questão, tendo sido informada por alguns de seus funcionários que, no
momento, estavam utilizando, igualmente, as informações da SUCAM.
Não foi possível, até aqui, precisar a área da região conhecida como Terra dos Índios,
a partir das informações constantes na escritura antiga. O ITERMA, órgão de terras do
Estado do Maranhão, também não dispõe dessa informação, apesar de estar, na época,
realizando ações discriminatórias nos municípios de Viana, Matinha e Penalva. Essas
ações iniciadas em 1988, a partir da Portaria ITERMA/GP Nº 051/88, estiveram
paralisadas durante o ano de 1989 em razão de alegada falta de verbas. A determinação da
área do território em questão deveria ser um dos primeiros resultados da ação daquele
órgão, o que, até o momento, ainda não foi conseguido. De qualquer modo, a partir das
informações contidas nos documentos antigos, pode- se estimar a área do território em,
aproximadamente 10.000 ha. Esta medida corresponde ao módulo segundo o qual eram
concedidas as terras durante o regime de sesmarias, ou seja, três léguas de comprido e uma
de largura, aproximadamente (Maia, 1952: 152). Esta área foi calculada com base nas
medidas apresentadas no memorial descritivo constante das escrituras e a partir da análise
dos mapas do território que serão citados no decorrer deste trabalho.
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Viana planejava, no momento da
elaboração deste trabalho, proceder a uma ação de autodemarcação de território, o que não
chegou a realizar, o que teria permitido, a partir dos dados dos documentos antigos e do
depoimento dos próprios autodenominados cabocos, assessorados por um topógrafo,
chegar a estabelecer a área do território, tal como reconhecido por eles.
Neste trabalho levanta-se a hipótese de ter esta área sido concedida aos Gamela,
uma nação indígena extinta, por meio de uma carta régia de Data e Sesmaria, no período
Pombalino, na segunda metade do século XVIII.
No início do século XIX, um descendente de certos indígenas, que se está supondo
tenham sido os Gamela, aparece na escritura em mão dos denominados descendentes com
“representante dos índios”. Nesses documentos, ainda, o Príncipe Regente aparece como
“transmitente” e o referido “representante”, como “adquirente”.
Em 1967, ocorreu um processo de inventário, após adulteração das escrituras
antigas, em que toda a extensão da região conhecida como Terra dos Índios foi considerada
como espólio de certos antepassados de membros de grupo. A partir de então, instaurou- se
na região um acelerado processo de compra e venda de terras, assim como um clima de
forte tensão entre certa facção do grupo – contrária à partilha e venda de porções do
território – e os chamados comprador da terra. Segundo integrantes daquela facção, passa a
ter vigência um novo tempo- o da terra de comprador – em oposição àquela da terra de
índio. Passa a ter lugar, também, nesse momento, um forte acirramento das tensões entre
facções internas, já que os que vendem as terras, muito embora ligados a agentes externos,
são elementos do próprio grupo.
Para efeito de exposição, o livro foi dividido em seis partes. Na parte I, procuro
explicitar as condições de obtenção das informações, a partir da análise das diferentes
posições que pude ocupar, enquanto mediador externo, face ao grupo estudado. Ao
proceder a essa análise, ainda nesta Parte I, procuro apresentar elementos para o
entendimento de aspectos da organização social do grupo, com o objetivo de fornecer ao
leitor condições de perceber como se deu a inserção junto àquele. Ao descrever a festa de
Belibeu, não foi outro o meu objetivo e, por esta razão, não encontrará, ali, uma análise do
ritual em si. Assim, nesta Parte I, são apresentadas as facções internas, nas quais se
alinham os integrantes do grupo, a partir de diferentes interesses relativos à apropriação
dos recursos básicos. São apresentadas, também, as redes de relações externas acionadas
nos conflitos de terra. A dinâmica das relações entre facções internas e agentes externos de
mediação, no entanto, será apresentada somente na Parte VI.
A seguir, na Parte II, procedo a uma primeira delimitação do objeto de estudo,
esboçando uma caracterização sociológica do grupo, em caráter preliminar, já que somente
a apresentação dos dados etnográficos permitirá atingir esse objetivo.
Prosseguindo em direção à delimitação do objeto, ainda na Parte II, busco
confrontar a situação estudada com o que, comumente, se entende por “comunalismo”,
“coletivismo”, procurando revisar os conceitos de “campesinato marginal”, “campesinato
livre comunal”, “sistemas de uso comum da terra”, tal como desenvolvidos por diferentes
autores.
Na Parte III, é apresentada a história da região estudada, a partir de dados de
memória social e, na Parte IV, a história dos Gamela segundo as fontes históricas. A ordem
de apresentação dessas duas partes contraria, propositalmente, aquela segundo a qual,
costumeiramente, têm sido apresentados s dados obtidos via fontes históricas. Por outro
lado, é mais condizente com os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa, em
que a volta ao passado foi determinada e condicionada pelos dados obtidos junto aos
informantes, no presente.
Os dados etnográficos, propriamente ditos, são apresentados na Parte V,
ressaltando a questão da articulação entre a apropriação individual- familiar e o usufruto
comum dos recursos da natureza. Sem pretender realizar um estudo de comunidade que
abrangesse todos os aspectos da vida social do grupo, procuro enfatizar aqueles que melhor
permitem apreender aquela articulação.
Finalmente, na Parte VI, procedo a uma análise de como se processa a grilagem na
região, caracterizando os atores envolvidos; as redes internas e externas, a articulação entre
elas nos momentos de conflito em torno das formas de apropriação da terra, a resistência à
venda de porções do território.
Ressalto, ainda, que os nomes reais dos informantes foram substituídos por
pseudônimos.
I
FACÇÕES INTERNAS, MEDIADORES EXTERNOS E CONDIÇÕES DE
OBTENÇÃO DAS INFORMAÇÕES
O primeiro contato com o grupo estudado data de 1982, durante a Semana do Índio,
quando fui procurada por uma comissão de cinco dos auto- denominados cabocos, na
Cáritas Brasileira, instituição católica onde trabalhava, em São Luís. Vinham da chamada
Terra dos Índios; orientados por Eider Furtado, um padre de Viana, à procura de assessoria
jurídica para melhor enfrentar as pressões dos grileiros.
Devo esclarecer que, enquanto funcionária daquela instituição, aquele primeiro
contato, assim como a assessoria jurídica que se seguiu, inscreveram-se em um quadro pré-
dado de mediação entre os camponeses e a sociedade abrangente, tal como exercida pela
Igreja Católica. Essa mediação, no caso de Via na, passara por grandes transformações em
um período imediatamente anterior. O bispo daquela Diocese - D. Hélio Campos-
considerado como pertencente à chama ala progressista da Igreja Católica, fora substituído
por um clérigo reconhecido nos meios eclesiais como conservador, D. Adalberto Paulo da
Silva, em 1975. Integrantes do clero local, que vinham desenvolvendo uma série de
atividades pastorais junto aos camponeses, apesar da repressão que os atingira na década
de 70, orientavam-se por princípios que os afastavam dos interesses dos grandes
proprietários rurais (MARTINS, 1989, p. 25-57). A sagração de D. Adalberto da Silva se
dera no mesmo período em que se realizavam exercícios da Décima Região Militar do
MA, na sede do município. Esses atos podem ser interpretados como fazendo parte de uma
certa demonstração de força desse bispo, que enfrentava a oposição daqueles elementos
tidos como progressistas. Estes, depois da sagração, retiraram-se para outras Dioceses e os
que permaneceram passaram a ser pressionados pelo bispo a abandonar a postura de apoio
aos camponeses. Em alguns casos, a pressão chegou até à excomunhão, como foi o caso do
padre citado.
A Cáritas, por outro lado, naquele período, em função de uma coordenação sensível
às questões afetas aos camponeses, tentava percorrer o caminho inverso. Da ação
marcadamente assistencialista e desenvolvimentista (MARTINS, 1989: 25-57), por meio
de assistência técnica e do crédito aos pequenos produtores, tentava voltar-se ao apoio da
organização sindical dos trabalhadores rurais. Seus quadros, até então integrados apenas
por agrônomos e técnicos agrícolas, puderam absorver, também, advogados, economistas,
educadores, antropólogos, assistentes sociais e psicólogos. Os projetos de desenvolvimento
econômico perderam a exclusividade, passando a conviver com aqueles de assessoria
jurídica e sindical e, até mesmo com os de pesquisa, visando a produção de conhecimentos
localizados sobre situações envolvendo camponeses, em diferentes regiões do Maranhão.
Data desse período a elaboração de relatórios de pesquisa, como os de Celecina Salles e de
Marluze Santos'.
A tentativa de realizar um trabalho nos moldes daquele desenvolvido pela CPT
teve curta duração, esbarrando, desde logo, com a oposição dos bispos que determinavam a
linha de atuação da entidade em nível nacional. Uma ação voltada à organização sindical
dos trabalhadores rurais, com vistas a apoiá-los contra grileiros e grandes proprietários de
terra, não cabia naquela linha, que privilegiava o assistencialismo, via implantação de
projetos econômicos a longo prazo ou mesmo por meio do atendimento de situações
emergenciais, tais como secas e enchentes. A orientação desse bispo foi endossada por D.
Paulo Ponte, assim que assumiu a Arquidiocese de São Luís, em 1984, e culminou,
posteriormente, com o afastamento daquela coordenação.
Os projetos de assessoria jurídica, de pesquisa e de apoio direto à organização dos
camponeses, no contexto da atuação da Cáritas, já nascia, por assim dizer, naufragado,
como os acontecimentos posteriores vieram a confirmar. Foi nesse contexto, enquanto
antropóloga da entidade, que fui procurada por aquela comissão, a conselho do padre
citado. Ressalte-se que, apesar de "excomungado" pelo bispo, não deixara de manter laços
de amizade e de solidariedade com os camponeses. Natural do próprio município,
com vários de seus antepassados, esses laços eram dados por relações estabelecidas muito
antes de sua ordenação como padre e não puderam ser abalados pelos atos do superior
hierárquico. Foram essas sólidas relações lhe permitiram, apesar de afastado de suas
funções como clérigo, prosseguir mediando as relações dos camponeses com a sociedade
mais ampla, mormente naquelas situações de conflito de terra.
A instituição referida funcionava no Arcebispado, edifício de imponentes
escadarias, vitrais e grandes salas. A comissão, por outro lado, era integrada por
camponeses que, em sua maioria, nunca tinham ido a capital. A recordação daquele
primeiro encontro, da solenidade do momento, dos temores deles, do tratamento que me
dispensaram imaginando- me uma religiosa, ainda hoje lhes provoca risos. Por outro lado,
sua atitude
naquele momento deixa entrever a crença depositada na mediação exercida por esse tipo de
entidade confessional.
A apresentação do grupo ficara a cargo de Leandro Lió que, por sua história de
vida, se especializara em contatos com o mundo externo. Fora Sub- Delegado de Polícia,
cabo eleitoral de políticos de Viana e, além disso, possuía várias filhas casadas, residentes
em São Luís, onde vinha com frequência. Quanto aos demais, tinham sido escolhidos entre
os mais velhos moradores de Taquaritiua - uma espécie de "núcleo indígena do território.
Segundo os auto-denominados cabocos é ali que se encontra o que denominam de raça de
índio e onde residiam os descendentes dos chamados encarregados, os guardiões dos
documentos antigos. Honório, um dos integrantes daquela comissão é bisneto de
Maximino Antonio da Costa, que aparece nos documentos antigos como "representante
dos índios" (Vide Parte VI). Taquaritiua é, também, o local onde passaram a se concentrar
as atividades dos chamados comprador e vendedor de terra, após a realização do
inventário fraudulento.
As pessoas escolhidas para viajar à capital, o fato de não terem procurado a
hierarquia da Igreja Católica na pessoa do Arcebispo, e de isto ter ocorrido durante a
Semana do Índio, indicam o tipo de expectativa que nutriam naquele momento.
Apresentavam-se enquanto descendentes dos índios exatamente na semana em que,
usualmente, os indígenas são objeto de' diferentes eventos promovidos por instituições
oficiais, civis
religiosas. Deste modo, aproveitavam o momento para reafirmar, na capital, sua
ascendência indígena, como aliás, já fizera Honório, em 1979, ao tentar apoio junto à
FUNAI.
O fato de terem procurado a Igreja Católica em São Luís, também é significativo.
Buscavam mediadores junto a uma entidade confessional na capital, já que em Viana o
grileiro tinha o controle sobre o Juiz, o Promotor, o Delegado, o Agente do FUNRURAL e
o Bispo.
Naquele encontro primeiro, Leandro Lió abrira o diálogo invocando repetidamente
o nome de "Nosso Senhor Jesus Cristo" e da "Virgem Maria” de modo que, somente
depois de minutos de conversa, pude perceber o que desejavam realmente. Vinham em
busca de assessoria jurídica e na esperança de, na Semana do Índio, chamarem a atenção
para a ameaça de perderem a terra que sua condição de descendentes dos índios,
até então, lhes assegurara.
Naquela ocasião, tive oportunidade de acompanhá-los aos jornais
locais, onde fizeram denúncias, comprometendo-me a envolver a instituição em seu apoio,
prestando-lhes assessoria jurídica. Teve início, assim
um longo relacionamento entre nós, que ainda hoje perdura, implicando,
inicialmente, no acompanhamento dos conflitos em que o grupo se via
envolvido. Esse acompanhamento significou o desenvolvimento de uma
série de atividades que envolveram idas constantes aos povoados para
reuniões; aplicações de questionários para levantamento das benfeitorias;
visitas às famílias mais diretamente atingidas pelos grileiros, assim como a
assessoria, na capital, para contatos com imprensa, Secretaria de Segurança Pública e
outros órgãos oficiais. O conjunto dessas diferentes atividades, diretamente ligadas à
assessoria jurídica estarão sendo chamadas, aqui, de trabalho aplicado.
Além desses contatos, no campo, resultado das necessidades colocadas pelo próprio
desenvolvimento do trabalho aplicado e pelo desempenho de minha função na instituição
referida, havia aqueles outros, informais, em minha casa, em São Luís. Constituíam-se de
visitas cordiais que os informantes me faziam, por ocasião de sua estada na capital, para
visitar os filhos ou se submeter a tratamento médico.
O contato com o grupo resultou, assim, na construção de sólidas amizades, no
estabelecimento de relações de compadrio e na adoção de uma filha. O desenvolvimento
desses laços, para além daquele trabalho aplicado, redundaram, posteriormente, em
acreditarem ter sido eu "engravidada" por um santo e, finalmente, na elaboração de uma
tese. O conjunto dessas várias modalidades de interação social com os pesquisados,
mantidas desde 1982 até os dias atuais, resultaram tanto do trabalho aplicado, como da
pesquisa propriamente dita. A explicitação das condições em que foram obtidas as
informações, por isto mesmo, se faz muito mais necessária, já que este trabalho não
representa, apenas, o resultado de um projeto acadêmico.
Nesta parte pretendo reconstruir, portanto, como se deram aquelas relações,
tentando separar os diferentes momentos e as variadas modalidades de inserção que
marcaram tanto o trabalho aplicado como a pesquisa. Ao fazê-lo, procurei,
concomitantemente, fornecer indicações para a compreensão de aspectos da organização
social do grupo estudado, mormente aqueles relativos às facções internas em jogo e às
redes de relações sociais acionadas em função dos conflitos.
Procurei, ainda, destacar os diferentes tempos da pesquisa, levando em conta os
recursos metodológicos que circunscreveram a posição de “quem fala” (FOUCALT, 1972,
p. 65- 68), ou seja, a minha própria enquanto observadora, os “lugares institucionais”
(FOUCAULT, 1972, p. 65- 68) de onde realizei a observação e pude produzir determinado
tipo de conhecimento e, finalmente, a posição ocupada pelos auto- denominados cabocos
que tive como informantes, em relação ao grupo estudado como um todo. A intenção foi a
de fornecer elementos para o entendimento de como se configuram, de um ponto de vista
estrutural, as redes de relações entre agrupamentos internos ao grupo estudado. Procurei
destacar, ainda, do mesmo ponto de vista, a existência de diferentes redes externas,
constituídas por facções do poder local, com as quais se relacionam diferentes facções do
grupo. A análise de como são acionadas essas redes, mormente naquelas situações de
conflito, será realizada na Parte VI.
Em 1985, a FUNAI enviou uma comissão para verificar se havia, realmente, índios
na área. Naquela ocasião, os funcionários daquele órgão teriam perguntado a Apolônio se
ele se considerava índio e ele lhes teria respondido: "eu digo pra vossuncês que eu sou
índio". Ainda segundo o relato dele próprio aqueles funcionários teriam respondido: "pois
nós viemos de lá pro senhor confirmar todo o tempo esse dito".
Por várias vezes, depois que passei a me hospedar mais frequentemente em sua
casa, Biá, a esposa de Mucura, me perguntava se na casa de Apolônio se usava sal ou se a
comida tinha tempero. Evidentemente, tais perguntas faziam parte das disputas em torno de
quem
melhor hospedava a "comadre de fora", mas eu as entendi, também, como aludindo a
imaginados costumes indígenas, que julgava serem compartilhados por aquele grupo
familiar. O próprio Apolônio se refere ao seu quintal, jocosamente, como "nossa aldeia" ou
"nossa colônia", pelo fato de reunir várias casas e pequenos abrigos para animais, dispostos
como que em círculo.
Apolônio está ligado por laços de parentesco e de relações de reciprocidade a um
grande conjunto de grupos domésticos, integrado pela família de seus três filhos, duas
filhas e três netos, todos casados. Em relação a essas diferentes unidades domésticas,
Apolônio se percebe enquanto administrador de uma série de atividades econômicas
conforme uma certa divisão interna do trabalho.
Inté na hora de colher é junto... temos casa de fomo aí, eu tenho fomo e aí eu vou comprando
tudo, porque o Z. é vaqueiro, o M. é pescador, o Z. A. era dono [mantinha sob cuidado ] dessas
cabras, agora esse rebanho de cabra é desse pequeno, meu neto. Bem, assim, cada qual tem
seu emprego, ta vendo? quem trabalha com gado, trabalha, quem trabalha com cabra,
trabalha; quem trabalha pescaria, trabalha ... e quem fica de fora planando um jeito pros
outros, né ... aí eu fico de fora, eu fico lutando no meio servindo de guia, viu? fico mandando
a turma.
A unidade doméstica chefiada por Apolônio é constituída por ele, sua esposa e uma
neta, por eles adotada, que auxilia na implantação dos roçados, realizando mesmo aquelas
tarefas que, normalmente, não são executadas por mulheres. Muito embora ela seja a única
efetivamente adotada, a casa de Apolônio está sempre repleta de netos, que chamam os
avós de pai velho e mãe velha e onde a maioria se alimenta durante o dia. É em sua casa
que é tirado o leite, pela manhã, e distribuído para as outras; é ele quem provê a
manutenção da casa de forno e quem adquire o material para fabricação das redes de
pesca. Recentemente, um búfalo destruiu a canoa utilizada por seu filho mais velho e o pai,
prontamente, adquiriu outra. Em contrapartida, esse filho supre de peixe a casa do pai que,
em situações de maus resultados da colheita, pode vir a receber arroz da casa de seus filhos
ou filhas casadas.
A aposentadoria lhe garante uma entrada fixa de dinheiro, o que lhe permite
transferir recursos para os filhos quando necessário. De qualquer modo, as relações entre
eles se fundam em um esquema de reciprocidade positiva cujos resultados nem sempre
podem ser quantificados. As crianças, por exemplo, constituem um tipo de grupo de
trabalho importante, realizando um grande número de tarefas. Elas costumam ser adotadas
por irmãos casados sem filhos ou com filhos bebê, por tios e avós, sendo distribuídas pelas
diferentes casas, onde sua presença torna-se fundamental para o funcionamento da unidade
doméstica. Esse seria um dos elementos do esquema de reciprocidade em que se baseiam
as relações entre diferentes unidades domésticas, que dificilmente poderia ser medido e
traduzido em números. Os netos, mesmo aqueles que não foram adotados, são alimentados
pelo avô, em casa de quem costumam passar o dia. Por outro lado, lhes prestam uma série
de pequenos serviços, fundamentais para o funcionamento de sua casa.
Os desenhos, a seguir apresentados, permitem visualizar a disposição das casas
dessas diferentes unidades domésticas em relação à de Apolônio e também aquelas da
chamada irmandade de irmão, liderada por João Lourenço, casado com uma de suas filhas.
João Lourenço é filho da irmã da esposa de Apolônio e casado com uma das filhas
deste. Sua casa localiza-se, juntamente com a de seus sete irmãos, a aproximadamente um
quilômetro e meio daquela de seu sogro, do outro lado da referida estrada. Eis como ele
descreve o conjunto de unidades domésticas que compõem sua autodenominada irmandade
de irmão.
Nós trabalha mesmo lá em casa, nós somos uma irmandade, um grupozinho que nós somos. Tem ano que
nós somos oito companheiros, tem anos que nós somos seis, junto, ta vendo? agora, nós somos mesmo oito,
do trabalho da comunidade, ta vendo? do grupo. Agora, quando nós trabalha só num lugar, aí nós faz só
uma roça e quando não dá, ar roça um pra um lado e outro pra outro.
Deste modo, esses dois conjuntos de grupos domésticos, ligados entre si por laços de
consanguinidade, se organizam verticalmente, congregando diferentes gerações (caso
Apolônio) ou horizontalmente, reunindo diferentes unidades domésticas de uma mesma
geração (João Lourenço e irmãos). Em julho de 89 eles eram constituídos por 17 homens
casados, 26 mulheres casadas ou sós, e 78 crianças, sendo que estas últimas estão incluídas
as moças e os rapazes solteiros. João Lourenço mantém, anualmente, um de seus dois
roçados (Vide Parte V) juntamente com seu sogro, enquanto o outro é realizado em
conjunto com seu irmão.
Embora não seja o irmão mais velho, João Lourenço é o chefe da autodenominada
irmandade, ocupando em relação a ela uma posição semelhante àquela do seu tio Apolônio
em relação ao outro conjunto de unidades domesticas. Dos dois conjuntos, Apolônio se
sobressai como reconhecida autoridade moral.
Lá fomos pela polícia, virou, torceu, e tal... eu tinha uns compadre forte também, os compadre foram em riba
do cara [ do que vendera] mas eu ainda fui preso uma noite.
Tenho feito tambor de crioula, tenho feito baile de São Gonçalo e tenho mandado fazer desobrigas e tenho
feito bumba- meu- boi e tenho feito baile de orquestra.
Enfim, como ele costuma dizer, de “caixa e tambor”, já promoveu todas as festas e,
entre estas, a de São Belibeu, sobre a qual passarei a discorrer.
Santo Horácio, apelidado de Belebreu, pelo fato de ser, como dizem, pretinho, é
chamado, também, Belibeu ou simplesmente, Bilico. Tem toda a aparência de um ex- voto:
de madeira preta, tosca, tem os pés móveis, não lhe faltando nem mesmo os genitais,
cuidadosamente esculpidos.
Vestido sempre como homem- calça comprida, camisa, boné, sapatos- dentro de um
pequeno caixão funerário, encontra-se ao lado de imagens de Cristo, São Benedito,
crucifixos e rosários, dispostos sobre uma pequena mesa, em casa de Apolônio. Á
tardezinha, quando o sol se põe e as crianças entram todas casa à dentro dando boa noite e
pedindo bênção aos mais velhos, não faltam aí velas, doadas pelos devotos.
Ela teve a criança e o peito não deu leite. Ela foi pro Maranhão [São Luís], tomou todo
medicamento, veio pra Viana, tomando medicamento ... não deu positivo ( ... ) aí o marido
disse pra ela: 'vai lá em casa de seu Apolônio e pede o santo pra fazer o milagre pra ti'. Aí ela
pediu, pediu que ele desse leite no peito pra amamentar o menino dela, que ela dava uma
caixa de vela pra ele e vinha dar de mamar pra ele, das seis às doze.
Eu tinha um boi aqui e não sabia por donde é que tava. Já tava fazendo um mês que eu caçava
o boi e ... digo: 'já comeram o boi' ... Aí eu digo: 'vou falar com Belibeu~ Aí eu disse: 'Belibeu, vós fazei-me
como vós me mostre meu bot, se tá vivo, amanhã pra eu dormir hoje e sonhar aonde é que tá esse boi. Vós
me leve aonde é que tá este boi'. Aí eu me peguei com ele, e dormi. Quando eu dormi, ali umas horas eu tava
sonhando, que um pretinho na minha frente foi e diz: 'quando tu chegar aqui em cima encostado dumas
mangueiras que tem, tu olha pra fora, é a primeira coisa que tu vê: teu boi deitado na beira do igarapé'.
Ora, o boi nunca na vida tinha ido pra esse lado do Prequeú, nunca no mundo ( ... ) quando eu cheguei lá
encostado debaixo das mangueiras (. .. ) olhei pra fora, o boi deitado.
Posteriormente, outras estórias acerca dos milagres do santo foram narradas por
outras pessoas, como Cizino, irmão de João Lourenço:
Marcelino tinha uma porca que caiu pra morrer ... o mal tava dando nas porcas, deu mal
beirada toda ... nós botava comê assim perto da boca dela e ela não queria ... com quatro dias
que ela tava mesmo assim estiradinha, morta, ai ele foi e disse assim pra ele: 'Belibeu, se vós fizer que mina
porca não morra, quando ela pegar cria, que parir, eu tiro o leitão pra vós’. Com dois dias que ela tava
mesmo assim estiradinha Maria foi botar cumê pra ela e ela comeu, comeu... e aí nós fiquemos com cuidado
com ela. Com uns quatro dias, cinco, ela alevantou tombando e aí foi depressa pra ela se endireitar... ela
pegou cria, quando ela pariu, ele tirou um pra ele, tá vendo?
Comparando as promessas feitas a outros santos como São João São Gonçalo,
Filuca, filha de Apolônio e esposa de João Lourenço, ressalte o fato de que, no caso de
Belibeu só se oferecem pequenos animais m a em grande quantidade. Ou seja, no caso
daqueles outros santos, é comum oferecerem animais maiores, como bois e porcos já
criados mas a frequência com que isto ocorre é menor:
São Gonçalo, São João é só essas coisas maior, é porco, é boi ... e pra Belibeu não ... é galinha, pato, é
porco ... pra esse outro é só assim essas coisas maior, mas é mais pouco, né. E Belibeu não... eles fazem
uma promessinha é uma galinha é um frango é um galo...
São esses animais que, preparados durante a festa, são distribuídos? todos os
participantes. Alguns são entregues antecipadamente a Apolônio ou a outro promotor da
festa, para que os criem em seu quintal ate aquela data. Outros são apanhados no dia da
festa mesmo, pelos
chamados cachorros, conforme se verá a seguir.
Tem muita vestimenta aí que eles traz ... é branco, é preto, é caboco, tudo traz roupa pra ele:
chapeuzinho, sapatinho, faz promessa e traz ...
Aí faz a promessa: é vestido, é calça ... ele não usa só de um jeito, porque ele usa vestido, ele
usa calça ... ( ... ) é porque eles prometem, não é? mesmo que pruma criancinha eles fazem vestido, levam e
ele veste, né? veste ele...
É a do Belibeu, que a gente brinca todo encaretado, todo preto, todo molhado.
Três dias antes da festa implantam o mastro, afixando nele frutas e garrafas de
bebidas. Desde o domingo, as mulheres se reúnem para assar bolos de tapioca e preparar a
cozinha onde será feita a comida. O chamado barracão, onde transcorrerá o baile, a partir
de segunda-feira, assim como a barraca que servirá de botequim, tudo estará sendo
preparado.
Por volta das quatro da manhã de terça-feira, eles se dirigem à casa de fomo, onde
pintam o rosto, o peito e os braços com carvão, ou segundo eles, se tisnam (vide fotos). A
seguir, apresentam-se no terreiro, rodeiam a casa do festeiro e o barracão do baile, sempre
imitando latidos e tentando aproximar-se das pessoas, que fogem, temendo ser pintadas
com carvão também. Em seguida, reúnem-se no terreiro, onde está implantado o mastro e o
denominado dono dos cachorros procede à chamada de um por um, pelos nomes
respectivos. São cachorros, cadelas, todos batizados com termos e expressões locais
alusivos aos genitais masculinos e femininos, como "pomba chata", "três nós", "pau
comprido" e outros. Da primeira vez em que participei da festa, o chamado dono dos
cachorros dirigiu-se a mim e ao meu marido, antes de proceder à chamada dos cachorros e
explicou que os nomes "eram pesados", indagando se não haveria problema, de nossa
parte, em ouvi-los.
Naquele ano, o chamado cachorro mestre escolhido por Apolônio foi Ribamar, um
de seus netos. Este acabara de chegar de um garimpo e passava a assumir a chefia de sua
unidade doméstica, construída por sua mãe doente, abandonada pelo marido, e duas irmãs
menores. Ele mostrava visível nervosismo, preocupado em apreender tudo que o avô
ensinava acerca do papel do cachorro mestre, uma função importante dentro do ritual.
Apolônio chamava a atenção para a ordem, o respeito que deveria imperar entre
eles e os moradores, durante todo o trajeto que percorressem. Apelava para que não
houvesse brigas e chamava a atenção para o fato de que havia pessoas "de fora" e,
inclusive, filmando.
Olha, a onça, o cachorro mestre e o maracajá, esse é escolhido ( ... ) por acaso, você quer ser ...
quer brincar ... aí eles lhe olham seu jeito e diz: seu Murilo, você não quer ser uma onça da
brincadeira? Se você se achar com físico de trepar como bicho e cair de lá pra baixo, diz: 'eu
vou'.
O dono dos cachorros tem o roteiro das casas cujos chefes oferecem as chamadas
caças ao santo. Essas residências passam a ser visitadas durante todo o dia, os cachorros
percorrendo longas distâncias, sob o sol sempre correndo e imitando latidos.
Depois da salda dos cachorros, o dono da festa oferece café com bolo, no barracão, a
todos os presentes, enquanto aqueles estarão rumando para os locais previamente
combinados.
Na casa onde a chamada caça é a cachaça, o dono da casa enterra uma ou mais
garrafas no terreiro e os chamados cachorros terão que, imitando esses animais, descobrir
pelo faro onde elas se encontram. Arranham o chão, fazem buracos, farejam e, muitas
vezes, conseguem localizar onde está oculta. O dono dos cachorros lhes oferece bebidas de
quando em vez, para que possam, segundo eles, suportar o longo esforço que perdura todo
um dia.
Come. Chegou, procurou, comeu. Todo mundo. O cumê é pra dar, não é pra ficar, porque é do santo...
Vamos comer inté acabar ...quando acabar, cabou mesmo ...assim que é feito ... mas não sal só de mim
também, sal dos outros Irmãos todos.
Em fevereiro de 1990, Apolônio ligou para minha casa, então em São Paulo, para
confirmar a promoção da festa e saber se estaríamos presentes. Nessa ocasião, disse que a
festa se realizaria de qualquer modo, pois os irmãos já haviam oferecido muitos animais,
para a comida. Ou seja, há um momento em que o excedente representado por esse "fundo
cerimonial" (Wolf, 1976) precisa, obrigatoriamente, ser distribuído.
- Sabe, porque, olha, de premere me fazia uma contusêo, tá vendo? as primeiras brincadeiras,
quando eu não sabia como era ... aí eles dizia: '0 Belibeu tá mal, mal, mal ... ' era mais quem
chorava, mais quem gritava ...
P - Só na molecagem?
Só na molecagem. Aí eu digo: será que ele vai morrer mesmo? Aí quando ele morria eles iam fazer sentinela
pra ele. 'Ali, vamos cavar o buraco ... ' aí eles cavam ... a gente tava lá olhando mesmo de olhos fitadinho em
cima, né? eles traziam, aquele grupo de gente trazia ele: 'vamos embora botar ele na cova' era mais quem
chorava daqui, mais quem chorava dacolá aí eles fupe! Pagavam a luz ... pronto, aí, 'bota terra, bota terra!'
quando acendia a luz, já tava tudo entupidinho ... digo: 'pra mim eles enterraram mesmo'. Quando passava
quatro, cinco dias que eu ia em casa de meu tio Apolônio, lá está Belibeu! 'quer dizer que eles tomaram tirar
ele do buraco?
Depois do "enterro", entram todos para o barracão e o dono da festa torna a oferecer
café com bolo de tapioca para os presentes, prosseguindo o baile até quarta-feira pela
manhã. Neste dia, os chamados irmãos vêm proceder ao que denominam de barrimento de
casa. Cada qual com um arbusto na mão, penetra na casa do festeiro e simula estar
varrendo-a. Este gesto simboliza que vieram buscar o alimento restante da festa, já que
nada deve ser apropriado privadamente pelo dono da casa. Em seguida, este lhes oferece a
chamada bóia, constituída do que, porventura, tenha sobrado, conforme explica Apolônio:
Tem a bóia ...tem cabeça de porco, tem fuçura [tripas e outras partes das entranhas de boi ou porco], ainda
ficou bastante pato, ali vai se fazer bóia ...agora, depois que acabar isso tudo, vamos derrubar o mastro.
Do ponto de vista da pesquisa, por outro lado, Belibeu me permitira um novo tipo de
inserção junto ao grupo, agora sem o peso do desenvolvimento direto nas questões de terra.
Em julho de 89, quando lá estive com toda a família, o filho da comerciante, anteriormente
referida, como de praxe, teria perguntado a um neto de Apolônio o que eu fora fazer ali, e
ele lhe teria respondido que eu ali estava por causa de Belibeu, da promessa que havia
feito. Belibeu me concedia mais esta graça, a de comparecer ao povoado sem tantos
constrangimentos, apoiada nas relações de amizade com alguns grupos familiares e não
mais, apenas, como a "mulher que persegue Evilázio" (o grileiro), conforme costumavam
afirmar membros da família dessa comerciante.
Estive com eles no nono mês de gravidez, pois desejavam ver de perto os efeitos do
que consideravam um milagre. A menina, depois de nascida, passou a ser conhecida como
a "filha de Belibeu" e cada vez que me hospedava na casa de Apolônio, brincavam: "ela
agora só quer ficar perto do marido". Eram frequentes as perguntas acerca da cor da pele
da menina, pois desejavam saber se era "alvinha" ou "roxinha", que é como denominam as
pessoas de cabelo liso e pele escura. Depois de tê-Ia conhecido, muitos diziam: "Belibeu
não fez certo ... tinha que sair ao menos roxinha".
Quando a menina, então com um ano e meio foi, como disseram, "visitar o pai", e
tomou-o no colo, beijando-o muito, todos se admiraram, desta vez sem tom de brincadeira,
que ela o "reconhecesse". Ainda hoje, esse episódio é narrado aos demais, como uma
confirmação do que entendem por milagre.
Quando estive com o pais dos meus filhos, pela primeira vez na área, em 1988, para
filmar a festa do Belibeu, Leonardo Lió conduziu-o para ser, como disse "apresentado" ao
santo. Essa ocasião também foi objeto de muitas brincadeiras, com alusões aos "ciúmes"
do meu marido. Pediam que ele "tivesse paciência" e que "não brigassem". Diziam que
Belibeu fora "esperto" em fazer a menina "alvinha": "ele fez certo, assim não teve
desconfiança nem nada, foi esperto, espertinho".
É pesada, mas é boa a festa ... mas não sai de mim também, sai dos outros todos ( ... ) os
cachorros vai buscar na casa dos irmãos: um dá um porco, outro da uma banda, outro dá
dois litros de cachaça, outros dá uma quarta de farinha e assim vai.
Conforme o maior ou menor prestígio que o festeiro detenha junto aos demais, maior
ou menor será o volume das chamadas caças e, portanto, melhor a festa, de acordo com
avaliação dos participantes. Naquele ano, muitos dos aliados de Apolônio diziam ter
oferendas para o santo, mas que as deixariam para o festeiro daquele ano. Em 1989,
quando eu e meu marido nos preparávamos para filmar o ritual pela segunda vez, muitas
pessoas, muitas pessoas próximas a Apolônio diziam que a festa, naquele ano, não seria
boa, que faltava comida e haveria brigas. Seus netos, que haviam participado como
cachorros, na casa de Zezinho, em anos anteriores, insinuavam que a família deste se
apropriava indevidamente das caças, deixando de distribui -Ias a todos. A apontada
ausência de generosidade daqueles que promoviam a festa naquele ano, assim como o que
entendiam por sua falta de firmeza para manter a ordem, evitando brigas, eram ressaltadas,
contrastando com as alegadas virtudes de Apolônio.
Essas evidentes disputas pelo prestígio, no entanto, tem por base o próprio ritual, ou
seja, coloca em questão quem o realiza de forma considerada pelo grupo como ideal. Elas
têm por base, portanto, critérios de avaliação do próprio ritual - maior ou menor
generosidade, maior ou menor firmeza para conter brigas - e não interesses opostos,
antagonismos, como é o caso das divergências em relação ao parcelamento do território.
Deste modo, neste segundo momento do processo de relações com os informantes, pude
colocar-me em uma posição mais favorável à ampliação das possibilidades de interação
com um elenco mais amplo de redes internas. A partir da promessa ao santo, passei a
colocar-me não mais apenas no plano do que separa, mas também no do que junta, que
agrega, onde as dissensões se relativizam. A partir de então, inaugura-se um terceiro
momento para a pesquisa, que coincide com o abandono proposital do trabalho aplicado e
o investimento na observação dirigida, agora, da perspectiva de um projeto de
investigação.
II
TERRA DE ÍNDIO
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que não se está diante de uma situação
de terra indígena, tal como definida pela Lei 6001, de 10.12.1983, o Estatuto do Índio.
Neste caso, tem- se uma situação de terra de índio que, em alguns contextos, é citada
também, por alguns autores, como terra de índios. Neste trabalho, estarei utilizando a
expressão terra de índio para indicar uma categoria que abarca um conjunto de noções
articuladas, relativas às regras que disciplinam as relações com a terra e outros recursos
naturais. A expressão Terra dos Índios será utilizada para denominar o território em
questão.
Estes roçados, assim implantados, são chamados roças de união, roças de junção,
roças de sociedade e as tarefas que lhes dão origem, trabalho de união. Ao justificarem esta
maneira de trabalhar, apontam para o que entendem como economia de esforços físicos e de
recursos da natureza, de modo que o acesso à terra é livre.
Note-se que a estrada que leva a este último município é o único acesso terrestre a uma
base espacial - o Centro de Lançamento de Alcântara - implantado pelo Ministério da
Aeronáutica a partir de 1984. Esta estrada corta ao meio o povoado Santeiro e vem
provocando grandes transformações neste local, com a instalação de luz elétrica e asfalto, o
que vem contribuindo para uma alta no valor das terras da região.
Muito embora o choque com esses agentes externos, tenha acirrado faccionalismos
internos e abalado regras erigidas e acatadas pelo grudo para disciplinar o usufruto comum
dos recursos naturais, este ainda mantém o controle sobre a maior parte do território. Apesar
das violências sofridas e das constantes investidas dos grileiros, os autodenominados
cabocos têm insistido em se manter enquanto produtores independentes e vêm, neste
sentido, desenvolvendo uma série de novas estratégias de
assistência, que serão analisadas na Parte VI.
É bem diferente a situação vivida pelos autodenominados caboco da Terra dos Índios,
cujas regras relativas à apropriação dos recursos básicos, por eles erigidas, colidem
frontalmente com aquelas do direito dominante, não havendo lugar, na legislação atual, para
a figura da propriedade familiar, comunal ou tribal. O direito positivo nega qualquer outra
forma de propriedade que não seja aquela entendida nos termos capita_
listas. Neste sentido, a organização social do grupo estudado se funda em regras que
contrariam aquelas do código legal vigente, relativas à propriedade da terra. Por outro lado,
esse mesmo código dominante lhes garante individualmente a condição de posseiros
(MARTINS, 1981, P 16). A proteção legal, porém, neste caso, dirige-se ao indivíduo e não
ao grupo.
O controle desse tipo de comunidade sobre a terra seria bastante forte, principalmente
naquelas situações em que este recurso fosse apropriado em comum e realocado anualmente
entre seus membros. Mesmo onde já se verificasse a apropriação individual da terra,
permaneceria o tabu da venda a elementos de fora. O sistema de poder, intimamente
vinculado à dimensão religiosa, tenderia a definir as fronteiras do grupo e a agir enquanto
símbolo de unidade coletiva.
Na Terra dos Índios, durante longo período da história recente do grupo, que cobre
todo o século XX, as terras também não foram objeto da presença da sociedade abrangente.
Só recentemente agentes externos passaram a pressionar no sentido de que as terras, mantidas
indivisas e sob controle dos autodenominados cabocos, fossem dispostas no mercado. A
grilagem e a ação oficial com vistas à titulação e ao loteamento via recursos financeiros
internacionais devem ser entendidas do ângulo das pressões recentes sobre essas terras
(ALMEIDA, 1984). Em relação à vinculação atual com a sociedade abrangente, a economia
dos cabocos da Terra dos Índios não pode, porém, ser considerada marginal, uma vez que
comercializam parte expressiva do que produzem, de modo a obter recursos para adquirir as
mercadorias de que necessitam. A Baixada Ocidental Maranhense tem sido responsável pelo
abastecimento da Capital de produtos tais como arroz, farinha, ovos, aves e frutas
(MOURÃO, 1975, p. 22-39). Apesar disso, as oscilações do mercado não os atingem
diretamente, pois sua organização econômica se orienta por mecanismos internos que lhes
permitem permanecer não afetados pelas crises daquele (CHAYANOV, 1981).
Enfim, as instituições políticas, neste caso, assentadas na autoridade moral detida por
determinados anciãos, conferida tanto pelos laços de parentesco com os indígenas, quanto por
outros fatores, seriam muito mais flexíveis, mais fluidas e não formalmente estruturadas.
1. O "CAMPESINATO MARGINAL"
O conceito de "camponês marginal" é retomado por alguns para ressaltar que muitos
desses produtores independentes funcionaram como exército agrícola de reserva para a
plantation, transformando- se, depois, em pequenos produtores voltados para o mercado
interno (VELHO, 1979, p. 161-170). No auge do sistema de plantation, segundo esses
autores, fora impossível consolidar-se uma massa de camponeses livres, tanto dentro quanto
fora das grandes explorações. Apenas um "ralo campesinato marginal" (VELHO, 1979, p.
161) teria existido nas áreas periféricas às grandes explorações, onde as unidades familiares
dedicavam-se à produção de alimentos e, mais
para o interior, à criação de gado. Esses pequenos produtores independentes, não
necessariamente oriundos das grandes explorações, mas a elas ligados de certa forma,
produziriam alimentos para o mercado interno, funcionando, ainda, como reserva de mão-de-
obra. Sua pequena agricultura estaria próxima da marginalidade, uma vez que
se caracterizava enquanto uma pequena produção mercantil de uma espécie peculiar,
mantendo laços frouxos com o mercado. Esta pequena agricultura é também caracterizada
como "subordinada" e voltada para o autoconsumo, "uma forma próxima à economia de
subsistência", tendo se desenvolvido tanto dentro quanto fora do domínio físico da
plantation. Quando o sistema de plantation não absorveu mais o "excedente demográfico"
criado por ele mesmo, desenvolveu- se um "campesinato de fronteira", também denominado
de "campesinato espontâneo" (VELHO, 1979, p. 119).
Refletindo sobre a situação estudada, não caberia, aqui, a ideia de uma certa marginal
idade "funcional" às grandes explorações, tal a levam a crer essas análises. Os indígenas que
ocupavam a região em questão e os grupos de ascendência indígena que se acamponesaram
não podem ser consideradas como “excedente demográfico”. Não se deslocaram para áreas
onde a presença da sociedade abrangente não se verifica e, muito menos se constituíram
muito menos se constituíram em "reserva de mão-de-obra para as grandes fazendas. Ao
contrário, toda a repressão da sociedade nacional a essas populações se deu no sentido de
ocupar seus territórios. O que se pode dizer é que, em alguns períodos de sua história, as
terras habitadas por este grupo mantiveram-se em uma posição de isolamento em relação aos
principais núcleos de desenvolvimento econômico. De qualquer modo, mesmo essa ideia de
isolamento deve ser desdobrada em relação aos diferentes momentos históricos que marcam a
constituição do grupo. A idéia de autonomia do grupo, calcada na identidade étnica é, mais
que o "isolamento" e a dependência, o aspecto que se pretende enfatizar.
Soares (1981) e Salles (1984), igualmente trabalharam com camponeses que podem
ser considerados como integrando esses campesinato "pós plantation". São os
autodenominados pretos que receberam a terra como doação - no primeiro caso, do seu
antigo senhor e, no outro, do Estado, em decorrência de serviços guerreiros prestados, ao que
tudo indica, durante a Balaiada. Nas duas situações, esses camponeses mantiveram as terras
indivisas e referem-se a heróis ancestrais, em torno de quem mantêm a unidade em relação ao
território.
Os autodenominados cabocos da Terra dos Índios não podem ser considerados como
integrando esse "campesinato pós plantation", uma vez que, segundo hipótese levantada neste
trabalho, sua constituição enquanto grupo teria se iniciado a partir da segunda metade do
século XVIII, quando da "domesticação" dos Gamela. Não foram escravos ou agregados das
grandes fazendas, que nelas permaneceram depois da "decadência". Não se estabeleceram à
sua "margem", funcionando como exército agrícola de reserva e como produtores de
alimentos, embora desempenhem importante função enquanto abastecedores dos mercados
regionais. Não prestaram, igualmente, serviços ao Estado, construindo estradas ou
participando de expedições guerreiras. Ao contrário, foram indígenas que reagiram à invasão
de seu território, que lutaram contra
catequese, contra as bandeiras, contra os sesmeiros, contra as tropas de linha. Foram os
escravos, não os libertos, mas aqueles que se insurgiram contra a escravidão e se auto
libertaram assinalando-se entre os Gamela. Juntos, passaram a constituir redutos que as
tropas de linha, durante o século XIX, tentaram dizimar. Os autodenominados cabocos da
Terra dos Índios se caracterizam como grupo que se destaca, não por uma "marginal idade
funcional" à economia dominante, mas pela rebeldia expressa no confronto com a sociedade
nacional, em diferentes momentos da história de sua constituição. Pelo menos desde 1751,
primeiro momento do contato dos Gamela com os Jesuítas, até as primeiras décadas do
século XIX, esses indígenas, em processo de acamponesamento, ocuparam áreas férteis,
cobiçadas pelos que aí desejavam implantar fazendas de arroz e, principalmente, de algodão.
Não ocuparam "terras marginais" e não foi sem conflitos que conseguiram se manter sobre
seu território, já que se recusavam a se subordinar ao poder dos grandes proprietários rurais,
insistindo em se manter enquanto grupo étnico (BARTH, 1970).
Dentro dessa perspectiva, as terras de santo, terras de preto, terras de índios, terras
de parente, terras de herança, se constituíram em sistema de usufruto comum dos recursos
básicos, notada mente da terra. Em todos esses casos, a territorialidade ganharia
proeminência enquanto "fator de identificação, defesa e força” (ALMEIDA, 1989, p. 5) e a
noção de terra comum seria central no sistema de representação sobre a terra.
III
Foi doada pros índios [a terra], pra três família de índio. Entonce, os índios se
mudaram, sabe, foi subindo, o pessoal foi aumentando, ficou pro pessoal, pros caboco... que
quase todo esboce tem uma raça de índio. Então, ficou esses esboce como representante,
quase que como herdeiro dos índios ( ... ) os índio foram se mudando, foram subindo pra
matar, ficou os esboce roçando, os descendentes dos índios, né? (Apolônio)
Note-se que a ancianidade da ocupação, ressaltada pela expressão morador velho, está
ligada à condição de caboca, de descendente dos índios. Estes, por estar ligados a ancestrais
indígenas, segundo as representações camponesas, teriam ocupado a terra desde tempos
imemoriais. Os chamados descendentes dos índios são representados, também, como "quase
herdeiros" daqueles. Embora reconheçam que a área foi doada a certo número de famílias
indígenas, nomeadas nos documentos, os "herdeiros" da terra, segundo eles, seriam todos os
chamados ceboco, e não apenas aqueles que foram legalmente (embora de forma fraudulenta)
instituídos como tal, conforme explica Leandro Lió:
Por outro lado, a condição de descendentes dos índios não é dada pela continuidade histórica
real com relação a uma nação indígena especí-
fica, sendo que os caboco dificilmente aludem a alguma delas. Sendo as-
sim, o nome Gamela não faz nenhum sentido para eles. Há referências, no
entanto, a certos índios que estariam para os lados do Gurupi. Referem-se
a eles como tendo "subido para a mata", ou seja, para o lado oeste de
Via na, onde se encontra, realmente, hoje, a região de floresta, na direção
daquele rio. Em seguida, se terá oportunidade de observar que os camponeses estão se
referindo aos Urubu Ka'apor.
A minha descendência desses índios, que hoje esses mesmos índios estão no Gurupi pra lá ...
eram três índias que comandavam esse terreno: era Ana, ali vivia em Viana, e Guardiana em
Matinha, minha tataravó, e Ana Dias em Vila Nova ... que é as terra que hoje tá em conjunto
também. Esse povo que são descendência dela também é nossos parentes também, né? Vive
nesse mesmo martírio que nós vivemos aqui com essa [terra] daqui.
A terra é comum porque foi doada por D. Pedro I pros índios e, agora, os índios não
gozam ela porque moram aí ores aldeia, mas têm os descendentes que são os caboco, caboco
lavrador, que vive na terra e cultiva ela, os trabalhador ... esta terra devo luta, isso é uma
terra comum, é da comunidade, do pessoal. (João Lourenço).
2. O TERRITÓRIO
Inúmeras vezes foi possível ouvir Leandro Lió repetir extensos trechos desses documentos,
para minha admiração e de todos que se postavam por perto nesses momentos. Vale à pena
citar um deles, para que se observem os detalhes, a precisão da descrição, se comparada aos
documentos disponíveis:
Cansei de ver amostrar o mapa pra gente. Amostrava o mapa, amostrava as escritura,
tudinho ... e ia ler pra gente ouvir ( ... ). Ele lia e dizia: 'olha, bem assim: pedra do canto da
Terra dos índios, em Matinha, ficava perto de um poço'. Travessando pelas águas do campo
de Aquiri, subindo a parte do mato grande, travessando pelas águas do campo do
Maracassumé, ao fundo dos Cutia, a pedra. De lá, corta pra fazer canto com a pedra de São
Raimundo, vem passando por São Domingos, Santa Helena, Barreiro ... quando chega aqui
em Barreiro ele dizia: 'vizinha com as terras de Ribeiro, das Sesmaria da Conceição de
Roma, pedra de Itaqui, em Piricaua' ... fazia canto pra travessar pra outra de Matinha.
Veja-se:
Esses documentos remetem, ainda, aos marcos, referindo-se às mesmas pedras citadas
pelos informantes. As pedras tiveram grande importância, durante longo período histórico,
como símbolo de poder e de reconhecimento do Estado (as pedras de suplício, os
pelourinhos) e a sua colocação, no caso, representava um procedimento oficial para assinalar
limites territoriais. Aos denominados caboco, por outro lado, esses marcos,
judicialmente respeitados, passaram a simbolizar sua posse imemorial. Transformaram-se
em verdadeiros monumentos, podendo ser encontrados também em outras regiões onde se
observa a utilização comum da terra, como aquele estudado por Sá (1975)4. Enquanto a
legislação dominante passou por todo um processo de transformação ao longo do tempo, para
o direito costumeiro esses símbolos continuaram a ter importância
fundamental. As pedras, juntamente com outros sinais - acidentes geográficos, árvores, rios -
continuaram a ser utilizados para demarcar o território. Entre esses marcos, continuaram a
traçar imaginariamente os chamados rumos, estabelecendo uma divisão do espaço toda
peculiar, que colide com os critérios e procedimentos demarcatórios oficiais atuais. Note- se
que até mesmo a linguagem utilizada, com o emprego de certos termos, próprios do século
XVIII e início do XIX (como místico indicando limítrofe,
por exemplo)", denotam a antiguidade de certas noções acerca da distribuição do espaço,
assimiladas por esses autodenominados cabocos e transmitidas de geração a geração.
Essa pedra aqui dos Cutia rancou-se ( ... ) reguou [recuou] com a tempestade e a pedra
sacoue o pessoal juntaram e tem ela lá dentro de casa ... eles foram nos amostrar aonde foi o
lugar que ela reguou, queria que nós colocasse lá de novo. 'Não, nós não quer colocar a
pedra. Nós só queria saber aonde ela está e pronto, abasta isso'. O dia que for preciso, a
gente vem aqui e se for pra testemunhar, nós testemunhamos. E nós deixamos a pedra lá
mesmo na casa do moço.
Recorde-se que a visita aos locais onde se encontram essas chamadas pedras deu-se
em um momento de grande tensão, em que parte do grupo estava sendo obrigada a se
defender das investidas dos grileiros. Muito embora as lutas, atualmente, não se desdobrem
no plano judicial, traduzindo-se muito mais em confrontos diretos, integrantes do grupo
sentem-se compelidos a se certificar de que as pedras, provas indiscutíveis de seus direitos,
ainda existem em seus devidos lugares. Caso isso não aconteça, é necessário se certificar de
que tenham sido resgatadas e guardadas em lugar seguro.
Não tinha essas divisão aqui ... que hoje aparece terra de seu Feliciano, de uns tempos pra
cá ... Ele [seu pai de criação] nunca me falou nessas terras, mas depois apareceu seu
Feliciano, tirando essas terras aí ... (Gonzaga, do Centro dos Bata).
Uma divisão interna, no entanto, separando povoados, sempre existiu. É por isso que
se referem ao que chamam de separação de trabalho, ou seja, afirmam que as áreas de
cultivo de diferentes povoados sempre foram precisamente demarcadas. Essa delimitação do
espaço articulada a relações sociais, será melhor apreciada nos capítulos seguintes.
Integrantes do grupo, hoje com cerca de oitenta anos, lembram- se da visita de certos
índios, desde quando eram crianças, que se repetiu até por volta de 1960, quando deixaram de
vir. O que faz supor que esses índios fossem os Urubu Ka’apor é o fato de diferentes
informantes assinalaram a região do Gurupi como de origem desses visitantes, além de
citarem o nome de Zé Gurupi entre eles. Zé Gurupi foi, realmente, um conhecido chefe
Urubu, tendo fundado, no atual município de Zé Doca, uma al-
deia que leva o seu nome. De fato, a região onde se localiza a denomina da Terra dos Índios
passou a ser objeto de incursões dos Urubu Ka'apor, a partir de 1860, em seu processo de
migração do Pará para o Maranhão (BALÉE,1984, p. 38). Por volta de 1900, os Urubu
encontravam-se em pleno processo de conquista de novos territórios e se expandiam até os
lagos de Viana (GUIMARÃES, 1886 apud BALÉ E, 1984, p. 38).
Alguns desses denominados línguas são apontados como tendo sido índios casados
com mulheres ligadas consanguineamente aos encarregados. Deste modo, é possível supor
que a autoridade destes, enquanto guardiães dos documentos, a partir de certo período da
história do grupo, tivesse passado a ser reforçada por laços de parentescos estabelecidos com
indígenas - Urubu Ka'apor ou outros.
Eles vinham em casa desse velho alegá rio e faziam a festa deles e traziam aqueles
assentamento tecido de guarimã e quando era na hora de dançar moleca dançava que
rolava ... Homens e mulheres ... esturravam o pé no chão, lhe garanto. E quando eles vinham
traziam batata, traziam cará, traziam macaxeira, vinha tudo carregado presse velho
Olegário. Eu ainda fui lá expectar a festa deles ...
Eles vinham ver se tava certo ... o velho Jorge Reis [um dos chamados línguas] dizia pro
pessoal daqui que iam visitar eles: 'eles tão afim de olhar o pé de cará, se tá certo no lugar
que eles deixaram plantado' ... e se procurava o que era o pé de cará, eles diziam que era as
pedras, aí eles iam, iam pra Matinha, olhar ( ... ) o pé de cará é a pedra que existe, por
causa disto é que iam pra Matinha.
Não sei se é porque a pedra ficava plantada só naquele lugar ... ela não podia sair ... como
não pode, s6 se tiver quem arranque ...
Quem deu aqui oro Antonio [marido] foram os índios Zé Gurupi ... Antonio disse: 'olha, seu
Zé, eu quero fazer uma residência aqui, uma morada ' ele disse: 'sim, senhor, pode fazer ...
tava Zé Gurupi, Canário e Passarinho ... dado pelos índios!
Zé Gurupi é apontado, ainda, pela mesma informante, como tendo sido chamado por
seu marido para dirimir questões relativas à apropriação da terra para implantação de roçado:
Eles [os índios] saíram aqui pro lado do Caru, que é lá que Antonio foi buscar eles uma vez,
porque ele fez um roçado bem aí. Ele marcou o mato e aí botaram uma cruz, fizeram um
bando de doidice. Antônio foi, conversou com Moizinho, dos Cavaco, que morava lá. Meu
marido disse: 'compadre, a gente roçando, marcando o mato, será que os índios vão fazer
certa coisas lá?' 'Compadre, o velho Moizinho disse, isso não é coisa de índio, isso é fulano
de tal que fez isso'. Lá Raimundo Tertuliano [o língua] e o Zé Gurupi mais os companheiros
dele tudo vieram. Ele foi lá, amostrou o roçado dele. Aí eles disse [os índios] que não era
eles que fazia uma coisa dessa, que era os outros.
Outros episódios são referidos pelos informantes como tendo tido a interferência
direta desses índios, como a tentativa de demarcação da área a partir dos limites tradicionais.
Certa ocasião, um dos encarregados, Olegário Meireles, de Taquaritiua, teria tentado
aviventar os rumos da Terra dos Índios, fazendo-se acompanhar pelos Urubu. Segundo os
depoimentos, teriam sido impedidos por autoridades locais, que já haviam se apropriado de
partes do território. Observe-se com João Mucura relata o episódio:
Porque quando dividiu a terra de São Pedro [povoado limítrofe à Santeiro], veio uma meia
dúzia de índio lá onde Maximino tava ( ... ) quando os índios vem, que começaram a tiraro
rumo ( ... ) Didi [comerciante] mandou dizer pro Juiz que os índios tava invadindo as terras,
demarcando. Aí o juiz mandou lá um oficial de Justiça proibir o rumo. Que o rumo não
travessasse senão iam todos pro pau.
Tudo leva a crer que os Urubu desempenhavam o papel de "intermediários neutros"
(COLSON, apud OUVEIRA FILHO, 1989, p. 157), ou seja, daqueles elementos que,
compartilhando os mesmos valores da comunidade, e estando suficientemente afastados da
situação em questão, teriam condições de funcionar como "árbitros". Os Urubu
representavam, assim, aquela instância supra familiar, em que eram resolvidas as tensões
internas mais diretamente relacionadas à apropriação dos recursos básicos.
P - Mas esses índios que vinham visitar, mesmo a terra estando cheia de gente, tendo
os povoados, tudo situado, vocês acham que eles teriam Interesse em não deixar pessoas
entrarem? Porque é deles mas eles não estão morando mais, né? ... mesmo
assim, vocês acham que eles teriam interesse nesta área?
Eu acho que eles tinham e pode ter, porque consta que é deles, né? Eles nunca venderam,
nunca deram ... eles podem ter interesse pra entregar pra outra pessoa ficar botando reparo
pra eles, né?
P - Vocês?
É ... e era preciso que a gente chamasse eles pra dar um jeito em quem rã vendendo, pra
tomar...pois se é que as terras é deles, outro não pode garrar e vender sem a conseqüência,
né?
O afastamento dos Urubu se dá, segundo os informantes, por volta dos anos 60 do
século XX, após a realização do inventário fraudulento. Note-se que, mesmo antes disso, já
se observavam atos de apropriação fraudulenta de porções da Terra dos Índios, como aquele
referido por João Mucura, quando da demarcação das terras de São Pedro, de propriedade do
pai da comerciante de Santeiro, já citada. Ao que parece, esses atos se constituíam em
iniciativas isoladas de comerciantes e políticos locais. Foi depois do processo de inventário
que surgiu, sistematicamente, a figura dos chamados comprador de terra, inaugurando uma
nova etapa do processo de apropriação privada da área.
Por acreditar que as terras pertencem a esses indígenas, que visitavam seus
antepassados e cujas visitas se repetiam até época recente é que seus ocupantes, ainda hoje,
demonstram o desejo de ir até eles. Pretendem convidá-los a tomar providências no sentido
de impedir o parcelamento e a venda do território.
No tempo do velho Mané, ninguém, ninguém torava {cacho de coco babaçu}, porque ele
vivia no mato como currupiro ... quando a gente pensava ... quando a gente tava juntando
coco, quando dava fé, ele tava pertinho da gente ...
Essa função, segundo os depoimentos, era transmitida de pai para filho e, em alguns
povoados, como o Centro dos Bata, ainda hoje é desempenhada por certos homens idosos,
como Pedrinho Bata, aquele que dá o depoimento seguinte:
Era eu mais Zé Bata que era pra ficar responsável aqui, mas ele gosta de cana, então
o diretor dos índios, sabe a língua que chamam, mas o nome é diretor, o língua, ele
disse: Chancho, quem tu deixa quando tu morrer, por representante do mato como tu?
o encarregado já vem de uma tal ... esqueci o nome dela ... de uma índia velha ...
P - Guardiana?
É essa tal de Guardina, vem de lá, vem de lá ... tiraram ele pra ser chefe, ficar tomando de
conta. (Apolônio)
“pela morte do velho {encarregado} ficou Raimundo Olegário Meireles incentivando o povo.
Quando era no tempo de abater o rumo ele convidava todo mundo..." (João Lourenço)
Eu quando me entendi ali no Santeiro, conheci o velho Olegário Meireles dizendo que ele
era o encarregado da Terra dos Índios, como ele cansou de dizer lá em casa pra meu pai:
'eu não sou o dono dessa terra, eu sou o encarregado, que eu tenho as escrituras, mas eu não
posso vender, não posso arrendar não posso aforar. Todo mundo pode trabalhar'.
Quando ele tinha esse negócio de imposto, depois que criou aquele órgão na terra de venda
dessa escritura, né, ele vinha e dizia: 'meus filhos, eu quero pagar, tal dia, uma escritura, to
aperreado ... eu ajudava ( ... ) eu cansei de dar dois alqueire de farinha, dava, dava dois
arroz ( ... ) aqui ele não vinha sem levar.
Papai, quando chegava fim de ano, dizia: 'vamos levar meio alqueire de farinha, ele tomava
conta dos papel da terra, né? ( ... ) ele sempre pagava o imposto da terra, então ele pedia
uma ajuda pro pessoal'.
Nota-se, pelos depoimentos, por outro lado, que a função do encarregado vai
sofrendo uma transformação, a partir do momento em que exigências da legislação
dominante passam a suplantar as regras acatadas pelo grupo. Isto ocorre concomitantemente
ao processo de transformação dessas terras, de uma situação de isolamento a objeto de cobiça
de agentes sociais não camponeses. Não é de estranhar, neste sentido, que tenha sido um
dono de cartório a aconselhar um dos velhos encarregados a regularizar legalmente a
situação da área, obtendo novos documentos e passando a pagar os impostos. Não é de
estranhar, ainda, que tenha sido um advogado da região, ele mesmo de origem camponesa, a
ter sugerido e levado a cabo um processo de inventário, com o objetivo claro de apropriar-se
fraudulentamente da área, como se verá (Vide Parte VI).