Da Fama de Horácio Entre Os Antigos
Da Fama de Horácio Entre Os Antigos
Da Fama de Horácio Entre Os Antigos
Giacomo Leopardi
Quem de bom grado não daria as ridículas lengalengas de Proclo sobre Platão,
as vergonhosas nugas de Artemidoro sobre o sonhos, as mortificantes disputas
de Alexandre de Afrodísias, Amônio, Filopono de Olimpiodoro, Siriano e toda
aquela barafunda de alquimistas gregos cuja mera leitura do índice já nos
causa exaustão, a maioria dos superabundantes manuais de gramáticos e
retóricos impressos ou ainda manuscritos e grande parte de Filo, Sexto
Empírico, Porfírio, os mistérios de Plotino – mais eternos que o argumento do
sétimo da terceira das Enéadas –, os comentários de Simplício, os mexericos
de Aristides e de Libânio, a multidão de apócrifos que só faz crescer e a
imensa escória de manuscritos que não se imprimem porque não se leriam em
troca de algum poema perdido de Homero, Alceu, Anacreonte, Simônides,
Estesícoro ou da grandiosa Safo, de quem quase nada nos restou; de alguma
tragédia das trezentas e tantas de Ésquilo, Sófocles e Eurípides que se
perderam; dos discursos de Licurgo e de Hipérides; das obras astronômico-
geográficas de Aristarco de Samos, Eratóstenes e Hiparco; dos Idílios perdidos
de Teócrito, Bíon e Mosco, e das Elegias de Calímaco, considerado o príncipe
desse gênero de composição; dos vinte e cinco livros perdidos de Diodoro
Sículo e outros tantos de Díon Cássio; das Vidas de Epaminondas, Cipião,
Hesíodo, Píndaro e muitos outros escritos de Plutarco; das histórias da
astronomia de Teofrasto e Eudemo, o qual compôs também uma história da
geometria: quem de bom grado não trocaria todos os tomos in-fólio daquelas
obras miseráveis por um precioso voluminho dessas últimas? Mas, porque o
lamento seria infinito e inútil, e, assim fazendo, nos desviaríamos do bom
caminho rumo a um beco, como dizem os latinos, que nos deixaria a mil
quilômetros de distância do argumento, voltarei e direi o quanto me agrada
meditar (brevemente, como se sabe) na fama de Horácio entre os antigos;
porque ninguém espere que eu diga de suas obras ou do que quer que lhe diga
respeito palavra não dita pelos antigos escritores.
nossa atenção
Meio século mais tarde, a Petrônio agradava em Horácio certa curiosa felicitas,
que aquele mostrou com toda a evidência lá quando, dizendo que se devia
“fazer com que as sentenças não se destacassem do corpo do discurso, mas
antes parecessem as cores com que a veste é tecida”, cita Homero, os líricos,
Virgílio e essa propriedade de Horácio. Delicado, chamou-lhe gracilem na
mesma época Lucano, se é que é ele o autor do poemeto a Pisão que lhe
atribuem: e Marcial, pouco depois, parece que o teve por príncipe dos líricos
latinos – assim como, em tempos mais recentes, Ausônio e São Jerônimo,
enquanto Sidônio Apolinário, no século quinto, o antepôs a Alceu, e recenseou-
lhe as obras todas não em prosa, mas em cinco versos. Já no sexto século,
Venâncio Fortunato chamou-lhe pindárico, e, em outro passo, que o poeta lhe
era especialmente caro. Isso tudo sobre as Odes. Das Sátiras belo elogio foi
Pérsio quem fez – e bem lhe convinha falar sobre o assunto – naquela célebre
passagem:
Mas, alguém porventura dirá, o que queres dizer com essa tua conversa fiada?
Que por Horácio grandíssima estima nutriram os antigos, tal como nós? E já o
não sabíamos, aliás, antes desse mundaréu de citações? Ao que responderia,
pelo contrário, que o meu ponto é precisamente mostrar que entre os mais
antigos (note-se que eu disse ‘mais antigos’ e não simplesmente ‘antigos’, com
o que pretendi referir-me aos que viveram nos primeiros séculos depois dele)
Horácio não gozava desta altíssima fama que lhe soemos atribuir: e este é o
principal objetivo deste texto. Fique-se, pois, sabendo que nos tempos mais
antigos Horácio não foi tido por tão grande e soberano poeta como agora o
têm, e como tiveram a Virgílio ontem, hoje e sempre, mas a ele não, já pouco
depois. Que assim tenha sido, eis, a propósito, um passo de Frontão (e talvez
seja esta a primeira vez que se invoca na Itália a autoridade e as palavras
deste excelentíssimo escritor), referindo-se a um dos Sermones [1]: “Horácio
Flaco me fez mil gracejos naquele trecho, poeta digno de nota e, ao que me
toca a mim, por seu amor a Mecenas e aos jardins que este lhe dera, não
desagradável”. Ora, não vos parece que Frontão, chamando a Horácio poeta
não desprezível, quase discorda do que diz? E por que razão miserável vem a
dizê-lo! Porque ganhara os jardins de Mecenas… Sem dúvida muito me
espantei na primeira vez que li tais palavras. Quem, entre nós, dissesse:
Horácio não me desagrada, diria coisa ridícula; menos ridícula se dissesse:
Não gosto muito de Horácio.
e noutro passo:
e Juvenal:
Quis trazer à baila todas essas passagens para que se notasse a diferença,
nos primeiros tempos, entre a fama de Virgílio e a de Horácio. Depois disso,
nós, mencionando-os juntamente, diríamos tanto Horácio e Virgílio quanto
Virgílio e Horácio; mas a coisa não se deu assim entre os mais antigos, nem
Frontão diria jamais ser Virgílio poeta digno de nota e não desagradável a si
por causa de uma bagatela: justo Frontão, que nos seus Exempla elocutionum
se valeu de Virgílio como de autor precípuo em matéria de língua.
A primeira razão de tal diferença eu julgo tenha sido a diferença das obras. A
Eneida, vasto poema de grande argumento e aos romanos particularmente
caro, tido por muitos desde o seu nascimento como superior à própria Ilíada – a
Ilíada que por tantos séculos se acreditou inigualável –, encheu as almas de
estupor e as fez ato contínuo considerar o poeta como o maior dos vates
latinos. As pequenas Odes de Horácio, lidas com prazer por muitos, com
maravilha por poucos, não podiam nem pela dimensão nem pelo argumento se
elevar tão logo a tão alto posto; e as Sátiras e as Epístolas, que muitos têm tido
por prosa metrificada, e a que o mesmo autor chamou Conversas, o vulgo as
reputou obras bem feitas, nada mais.
E quem fizer madura consideração acerca dos líricos e épicos de cada povo,
verá claramente que os últimos, na comum estima, são de ordinários tidos em
mais alta conta que os primeiros, não só porque a perfeição, se é tão difícil e
necessária em todo gênero de poesia, no lírico é dificílima e necessariíssima,
mas também porque o vulgo (e quando digo ‘vulgo’ não me refiro à plebe
senão à máxima parte dos literatos, juízes da fama dos escritores) costuma dar
mais sublime posto à épica do que à lírica. Petrarca, que está entre nós
dignissimamente ao lado de Ariosto e de Tasso, constitui um raro exemplo,
sem dúvida, nem sua espécie de poesia pode confundir-se com a de Horácio.
E que, talvez, junto a certo povo num momento felicíssimo, certo gênero de
poesia seja tido em baixa estima, o qual, noutro momento igualmente feliz, se
eleve à mais alta reputação, decorre claramente do exemplo supracitado.
Quem negará que século venturosíssimo para as letras haja sido o XVI?
Contudo se sabe que pouco ligavam, àquela altura, para as traduções, de sorte
que Caro, publicando a excelentíssima sua tradução da Eneida, a qual o tornou
famoso, escrevesse então a um amigo: “Sei que faço coisa de escasso louvor
traduzindo de uma língua noutra, mas meu intuito não é ser louvado”. E nos
séculos seguintes até o XIX não houve quase tradutor em cujo prefácio não se
recitasse a mesma ladainha sobre o valor das traduções, que muitos não
consideravam boas senão por colocar a obra em pauta em condições de ler-se
por quem não sabia a língua dos textos. Ora, finalmente se soube que um
grande tradutor era também um grande escritor, e, o que é melhor, coisa não
rara, visto que a Fênix não é rara. Por isso não espanta que Virgílio, sumo
poeta no seu gênero, fosse tido acima de Horácio sumo no seu.
Demais, se não me equivoco, Frontão lá teve o seu motivo para não amá-lo
grandemente. Porque ele não foi um fabricante de palavras muito comedido,
donde Bentley o ter chamado de grande inovador: basta ler o que deixou
escrito a propósito na Arte poética, onde também, assim como em outras
obras, se revelou pouco afeito aos antigos poetas romanos, e proferiu contra
Plauto aquele famoso juízo a que Escalígero chamou sine iudicio, o qual, no
dizer de Justo Lípsio, nunca lia aquela passagem sem uma indignaçãozinha,
sine indignatiuncula.
Tradução de Érico Nogueira. (Giacomo Leopardi. Della fama di Orazio presso gli
antichi. In: Tutte le poesie e tutte le prose. Grandi Tascabili Economici Newton, pp.
950-953.)
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[2] Jovem grego que em desmedida busca de fama ateou fogo ao templo de Ártemis
em Éfeso por volta de 356 a.C. (N. do T.)