Texto de !ay, Carmela!
Texto de !ay, Carmela!
Texto de !ay, Carmela!
!Ay, Carmela!
Elegia de uma guerra civil
em dois actos e um epilogo
Ao meu pai
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PERSONAGENS
PAULINO
CARMELA
PRIMEIRO ACTO
(Palco vazio, sumido na obscuridade. Com um sonoro “clic” acende-se uma
triste lâmpada de ensaios e, passado um pouco, entra PAULINO: roupas
descuidadas, vacilante, com uma garrafa na mão. Olha o palco. Bebe um trago.
Volta a olhar. Atravessa a cena desapertando a braguilha e desaparece pela
lateral oposta. Pausa. Volta a entrar, abotoando-se. Olha de novo. Vê ao fundo,
no chão, uma velha grafonola. Vai junto a ela e tenta pô-la a funcionar. Não
funciona. Pega no disco que estava posto nela, olha-o e tem um impulso de o
partir, mas contém-se e volta a pô-lo na grafonola. Sempre de cócoras e de
costas viradas para o público, bebe outro trago. O seu olhar descobre no chão,
noutra zona do fundo, um pano. Vai junto a ele e levanta-o, segurando uma ponta
com os dedos: é uma bandeira republicana meio queimada.)
PAULINO (cantarola):
(Volta para junto da grafonola e vai cobri-la com a bandeira. Ao encurvar-se para
fazê-lo, escapa-se-lhe um sonoro traque. Pára um momento, mas conclui a operação.
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Uma vez em pé, faz soar, agora deliberadamente, várias ventosidades que evocam um
toque de trompete. Ri num sussurro. Gira sobre si e olha para a sala. Avança até ao
proscénio, põe-se em sentido e saúda militarmente. Novo traque. Levanta o braço
direito, em saudação fascista, e declama:)
(Novo traque. Ri num sussurro. De repente, julga ouvir um ruído nas suas costas e
sobressalta-se. Tem um reflexo de fuga, mas contém-se. Pela lateral do fundo entra
uma luz esbranquiçada, como se tivessem aberto uma porta. PAULINO aguarda,
temeroso.)
PAULINO – Carmela…
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PAULINO – E deixaram-te vir, assim às boas?
CARMELA – Bom, não foi assim tão fácil. Custou-me bastante encontrar isto.
CARMELA – Caramba, rapaz: quantas perguntas. Qualquer um diria que não estás
contente por me ver.
PAULINO – Que não estou contente? Mas claro que sim: contentíssimo… Mas,
compreende… Como podia eu imaginar…?
CARMELA – Não, sim já compreendo que aches estranho… Também a mim me parece
um pouco esquisito.
CARMELA – Nada.
PAULINO – Nada?
PAULINO – Seco?
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CARMELA – Ou algo assim.
PAULINO – Seco…
PAULINO – E rios?
CARMELA – Casas?
CARMELA – Pessoas?
PAULINO – E então?
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PAULINO – Que fazem? Que dizem?
CARMELA – Nada.
CARMELA – Coçam-se.
PAULINO – Coçam-se?
CARMELA – A tinha.
CARMELA – Dizer?
CARMELA – A mim?
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CARMELA – Pois… “ Belo rabo” …
PAULINO – Como?
PAULINO – Quem?
CARMELA – Eu?
CARMELA – Nem queiras saber, pois mesmo assim, era um belo moço…
PAULINO – Pois: belo moço… Tu, pelo que vejo, não mudarás nem…
CARMELA – Anda, tonto… Não vês que o digo para te pôr ciumento? Nem olhei para
ele sequer. Estou mesmo jeitosa para galanteios. Se nem me sinto, o corpo…
PAULINO – Dói-te?
CARMELA – Quê?
CARMELA – Não, doer, não. Não sinto quase nada. É como se… Como direi? Por
exemplo: quando tens uma perna dormente, estás a ver? Sim, sente-la, mas como se não
fosse tua…
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PAULINO – Estou a ver… E, por exemplo, se te toco assim… (Toca-lhe a cara.) Que
sentes?
PAULINO – Que curioso… Eu também te sinto, mas… não sei como dizê-lo…
CARMELA – Retraída.
CARMELA – Porque não. Porque estou morta, e aos mortos não se dão beijos.
PAULINO – Claro.
PAULINO – Sim?
PAULINO – Sim?
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CARMELA – Olha Paulino: cada um é como cada qual.
CARMELA – Lembras-te em Oviedo, sem ir mais longe, com aquele fulano do salão de
festas… Como se chamava?
PAULINO - Grande passarão! Não mo recordes! Missa diária, vereador, oito filhos…,
um deles mongolóide e outro cónego da catedral…, e ele, pela noite, gerente do pior
tugúrio do norte de Espanha… Nem mo recordes.
PAULINO – Eu?
CARMELA – Sim, tu. Agora, muita desconsideração por ele, mas nesse tempo quase
que o metes na minha cama.
PAULINO – És injusta comigo. Eu só te pedia que lhe fizesses boa cara para que não
nos despedisse. Porque eu, com a minha afonia, estava em muito má forma.
CARMELA – E por isso não abrias a boca quando ele te gritava e insultava diante de
toda a gente?
PAULINO – Bem sabes que estava afónico e quase não podia falar.
CARMELA – Afónico, sim… É isso que te acontece: ficas afónico quando é preciso
lutar por qualquer coisa.
PAULINO – Eu sou um artista, não um lutador de boxe… E além do mais, quando faz
falta, também saco o que há que sacar…
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CARMELA – Que sacas tu?
PAULINO – O que há que sacar. Em Albacete, o ano passado, por exemplo… Já não te
recordas?
CARMELA – Em Albacete?
PAULINO – Sim, em Albacete. Quem deu a cara contra aqueles milicianos que nos
queriam confiscar todo o material?
PAULINO – Ah, não te lembras… Não te lembras da coragem com que fui buscar o
sargento e lhe disse na sua frente: “Senhor sargento: os seus homens…”?
PAULINO – Como?
CARMELA – Até havia uns quatro que eram de Huelva e acabamos todos a cantar
fandangos, não te lembras?
PAULINO – Isso foi já no final, depois de que eu lhes fazer má cara e pôr os pontos nos
iis.
CARMELA – Pois…
CARMELA – A quem?
CARMELA – Presos?
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CARMELA – Que espectáculo?
CARMELA – Agora mesmo, por exemplo, acabo de me lembrar que tenho que ir
embora…
CARMELA – Não me recordo… Alguém disse que tínhamos que ir a não sei onde, para
não sei quê…
CARMELA – Sim, entendo-te. Farei todo o possível para voltar… (Vai a sair.)
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PAULINO – (Fala para a lateral, sem se atrever a segui-la.) Espero-te aqui, eh,
Carmela? Aqui mesmo… Sem me mexer… Até que voltes. E não te esqueças, que tu…
(Gesto de despiste.) E mais agora, acabada de morrer… (Pensa.) Acabada… Mas então,
como é possível que …? Porque eu não estou bêbado… (Dá palmadas na cara. Olha o
palco, depois a sala, e outra vez o palco, percorrendo-o. Detém-se diante da zona
lateral por onde entrou e saiu CARMELA: parece que quer inspeccionar a saída, mas
não se atreve. É assaltado por uma ideia repentina e começa a actuar
precipitadamente: pega na garrafa de vinho e deixa-a em bastidores fora do palco; faz
o mesmo com a grafonola e a bandeira. Compondo o fato e o cabelo, limpa com os pés
a sujidade do chão e coloca-se no proscénio, em frente ao público. Uma vez ali, fecha
os olhos e aperta os punhos, como desejando algo muito intensamente, e por fim adopta
uma atitude de risonho apresentador. Quando parece que vai falar, descompõe a sua
posição, olha a luz de ensaios e sai pela lateral. Ouve-se o “clic” do interruptor e a luz
apaga-se. Após uma breve PAUSA, às escuras, entra de novo e coloca-se no centro do
proscénio, gritando para o fundo da sala:) Quando quiser, meu tenente! Estamos
preparados! (Silêncio. Não acontece nada. Volta a gritar:)Em frente com o ensaio de
luzes, meu tenente! Avanti! Stiamo presti! Luci, mio teniente! (A cena ilumina-se
brilhantemente. PAULINO, que agora tem posto um gorro de soldado nacional e leva
uns papeis na mão, fica um momento encandeado.) Bom, homem, bom… Não se ponha
assim… De certeza que no princípio é esta luz toda? (Folheia os papeis e grita.) Tuta
questa luce, in principio? (As luzes apagam-se e voltam a acender-se, esta vez com
menos intensidade.) Bem me parecia a mim… (Novo apagão e de novo
Luz, ainda que com menos intensidade) Nem tanto, homem, nem tanto, que nos deixa às
escuras!... No tanti, uomo, no tanti!... ( A luz desce mais.) Que nem tanto, digo, que não
a baixe tanto! Ao contrário: mais luz! Più, più, più…!
CARMELA – Mas, a que vem essa agora, fazer de pássaro? Isso não o temos
ensaiado…
PAULINO – (Bufando.) Qual pássaro, coisa nenhuma! Que lhe estou dizendo ao
tenente que dê mais luz… Mas esse, além de maricas, é surdo…
PAULINO – (Consultando os papeis.) Vamos a ver, vamos a ver… Não nos ponhamos
nervosos, que ainda falta uma hora… (Consulta o relógio.) Uma hora, digo? Só meia!
(Encontra a folha que procurava.) Aqui está: “Princípio”… É isso… (Grita para o
fundo da sala:) Os vermelhos! Os vermelhos , meu tenente! I rossi! (Apagão total.)
Não, homem! Que está a fazer? Não se assuste…! Quero dizer os botões vermelhos!
Que carregue só nos botões vermelhos para o princípio! I bottoni rossi! (Acende-se a luz
com intensidade média.) Finalmente ! É isso! Perfeito! Perfetto, mio tenente! Assim!
Cosí, cosí!... Princípio, cosí! I bottoni rossi! ( Dá um bufo de alívio e fala para a lateral,
a CARMELA.) Se isto dura muito, vou destroçar a voz à força de tanto gritar… E
depois, nos duetos vais tu fazer de ventríloqua … (Para o fundo da sala.) Ouça senhor,
meu tenente ! Porque não abre a janelita da cabine para me ouvir melhor? La finestrina
de la cabina, aprire, aprire…! ( Acompanhando com gestos super expressivos. Força a
vista e suspira.) É isso! Muito bem! Molto bene, mio tenente! Cosi, voce mia, no
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cascata…! (Para a lateral:) E menos mal que aprendi alguma coisa de italiano no
Conservatório, que se não, não sei como nos arranjaríamos…
CARMELA – Anda lá, muito bem…! Nem uma hora tive para o fazer… E de um
cortinado que só visto… Olha que aparecer diante de toda essa “homenzada” neste
ridículo...
CARMELA – O saleiro devia eu meter-to pela boca abaixo… Devias ter dito que, pelo
menos, sem os vestidos, não podíamos actuar…
CARMELA – E se os querem, pois que vão a Azaila, que os conquistem, já que são tão
valentes, e que no-los tragam…
CARMELA – E já veriam que gala tão bonita lhes fazíamos. Mas assim, sem nada…
(Bruscas mudanças de luzes.)
PAULINO – Já vou, já vou, meu tenente! (Empurrando CARMELA para fora de cena.)
Anda e acaba tu…
CARMELA – (Fora.) Vou ficar em bragas logo na primeira dança, vais ver!...
PAULINO – (Para o fundo da sala:) O senhor desculpe, meu tenente, mas é que… la
signorina Carmela está muito nervosa por ter de actuar assim: sem cenários, sem
figurinos , sin niente de niente … (Mudanças de luzes.) Bom, sim: luzes, sim. Muito
boas as luzes. Molto buone. Luci, splendide… Do mal o menos, porque, se não,
estaríamos na contingência … quero dizer… Bom, está-me a entender. Enfim, onde é
que eu ia: compreenda o senhor que nós somos artistas também, se bem que modestos…
Não como o senhor, claro, mas artistas… De “varietés”, claro, mas artistas… Aqui
onde me vê, eu tinha uma brilhante carreira de tenor lírico… Eu, tenor lírico de …
Zarzuela, compreende? Capisce “zarzuela”, opereta espanhola. (Canta:)
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(Casparreia.)Tenor lírico, sim, mas a guerra… quero dizer, a Cruzada, o Glorioso
Levantamento Nacional…, mas isso: carreira cagata, spezzata… E Carmela, la
signorina: uma figura do bailado andaluz, flamenco … Compreende, “flamenco”?
(Sapateia. ) Olé, gitano!... Enfim, meu tenente, como estava a dizer: Veja que é muito
duro para um artista dar menos do que pode dar, e ainda por cima fazê-lo mal,
compreende? Cosa mala fare arte cosi, spogliati, smantellati, smirriati… Non è vero? É
veríssimo, mi teniente, não me diga que não…O senhor sabe isso muito bem, como
artista que é, italiano além do mais, do berço da arte… Itália, e não é nada: Miguel
Angel, Dante, Petrarca, Puccini, Rossini, Boccherini, Mussolini… Enfim, para quê
continuar: aquilo está cheio. Pois é isso: já está a compreender, angustiados como
estamos a Carmela e um servidor, por ter que improvisar um sarau nestas condições…
E mais perante um público tão…tão…
CARMELA – (Saindo furiosa, ainda meio vestida.) Tantarantán! Deixa, que lho ponho
claro em quatro palavras…
PAULINO – (Tratando de o evitar.) Tu não abres a boca, que nos deitas a perder…
(Para o fundo:) Está a ver como está nervosa, meu tenente…
CARMELA – Não estou nervosa, seu tenente! O que estou é furiosa, sim.
CARMELA – (Para o fundo:) Aqui Paulino e esta servidora não temos que fazer de
ridículos diante da tropa…
CARMELA – Pois do exército, para além do mais, certamente, para celebrar a ocupação
de Belchite…
CARMELA – Isso, a libertação…, pois de certeza que devem ter libertado todas as
tavernas, e nem lhe digo nem lhe conto a vontade de armar confusão que devem trazer
no corpo.
PAULINO – Cala-te Carmela, que o tenente quase não entende o espanhol. Eu lho
explicarei… (Para o fundo). O senhor veja, meu tenente: la signorita vuole dire…
PAULINO – Quem? O tenente? Pois, claro: se estou a falar com ele desde há um
bocado…
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CARMELA – Não te dizia eu…?
CARMELA – Era o que eu te dizia, Paulino: esse foi dar uma volta. E de certeza que se
foi com o cabeleireiro, que andava atrás dele esta tarde.
PAULINO – Temia-o… Entre o susto desta manhã, o frio que faz, e agora os gritos…
CARMELA – Queres falar normalmente para ver como não se passou nada?
PAULINO – Não vou poder cantar, nem sequer falar e então adeus espectáculo…
CARMELA – Pois olha que grande desgosto seria…! Pela tua mãe., Paulino: continua
afónico até à manhã de manhã e safamo-nos desta merda.
PAULINO – (Com voz normal.) E quem nos safa de morrer fuzilados por
desobediência, eh? Muito boa é esta gente…!
CARMELA – Pois , o que é que se passa? Saía-te sempre bem e gostava muito…
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CARMELA – Eu?
PAULINO – Mas, é que não estás a compreender Carmela? Não te dás conta como me
humilhas recordando-me essa… essa… ? Eu sou um artista, um cantor!
CARMELA – E isso que tem a ver? Se ainda por cima tens esse dom que Deus te deu…
PAULINO – Não sou exagerado. O que acontece é que tenho a minha dignidade. Sabes
o que isso é? Não, suspeito que não…
CARMELA – Ouve, bem… Que eu, quando quero, sei-me por tão digna como as
demais…
PAULINO – Ponho-me no meu lugar. Se alguma vez de lá tive que sair, ou seja,
rebaixar-me, ou seja, perder a dignidade…
PAULINO – Aos traques, sim! A esse… “dom divino” como tu lhe chamas…! Já podes
ver que dom divino é, por sua culpa puseram-me fora do seminário aos treze anos…
CARMELA – Puseram-te fora? Pois não me tinhas dito que te vieste embora porque um
padre te andava…?
PAULINO – Me andava a querer mexer a toda a hora, sim, aquele padre… Mas a
verdade é que me puseram fora, me expulsaram, porque, para me fazer engraçadinho
diante dos meus companheiros, abrilhantava o “dom divino” em plena missa, no
momento da consagração…
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CARMELA – (Benzendo-se.) Jesus, Maria e José! E porquê essa heresia?
PAULINO – Não sei explicar… Mas tenho muito claro que, já mais velho, cada vez que
caí nesse… comércio, ou seja, cada vez que me rebaixei para ganhar a vida… com
isso… pois, isso: algo se rompeu em mim.
CARMELA – Por dentro, não sei… Mas, por fora, tinham-nos rompido a cabeça em
Barcelona e em Logroño se não tivesses actuado com os traques… Tu afónico, eu tísica,
estava para ver como teríamos cumprido os contratos…
CARMELA – Caramba, Paulino! Como estás hoje… Até pareces saído de uma comédia
de dom Jacinto de Benavente…
CARMELA – E tu a dar-lhe…!
PAULINO – Dou-lhe, sim: a ver se percebes de uma vez. Não mais traques na minha
carreira… nem ainda que me fuzilassem os fascistas … (Repara de repente no que disse
e a sua exaltação acalma-se de imediato. Olha, medroso, à sua volta.) Mas… que estou
a dizer? Como pude…? (A CARMELA, irado:) Dás-te conta como me provocas com as
tuas…?
PAULINO – (Muito nervoso.) Onde está o tenente? (Para o fundo da sala:) Meu
tenente!
PAULINO – Não sei… Talvez pensem que somos espiões, ou algo assim… (Grita
para o fundo.) Meu tenente!
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CARMELA – Espiões, tu e eu? Essa é de rir! Mas se de manhã lhes dissemos tudo o
que queriam e mais…
PAULINO – Já o sei… Mas esta gente é muito desconfiada. Vêem vermelhos por toda a
parte… Onde está Gustavete?
CARMELA – Disfarçar?
PAULINO – Por isso mesmo: já é hora de começar, e o tenente nem respira, a tropa não
aparece… Isto dá-me muito mau presságio... Vamos… (Colocam-se em posição de
iniciar um numero de dança.)
PAULINO – Um, dois, três: (Começam a evoluir pela cena em rudimentar coreografia
e continuam dialogando enquanto vigiam, inquietos, a sala e os bastidores do palco.)
Que lhe estava dizendo? Um, dois, um dois!
CARMELA – A quem?
CARMELA – Quando?
PAULINO – Há momentos, antes de sair tu… Roda à direita, um, dois!... A última vez
que manejou as luzes foi…
PAULINO – Roda à esquerda, três, quatro!... Por ter dito alguma imprudência…
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PAULINO – Cinco, seis, atrás!... Já sei: estava-lhe a dizer que isto de actuar assim, com
o que se traz vestido…
CARMELA – Com o que trazes vestido? Oxalá pudesse eu actuar com a minha roupa, e
não com estas cortinas remendadas…!
PAULINO – (Assustado.) Que fizeste ao panfleto da C.N.T. que nos deram ontem à
noite em Azaila?
CARMELA – Ai, filho! Que susto me pregaste… Usei-a ontem à noite mesmo, na
retrete.
PAULINO – Não mulher… Estou a pensar que… Mas, continuemos… Um, dois, um,
dois!...Estou a pensar que esta manhã quando nos detiveram, registaram-nos com muita
delicadeza…
CARMELA – Muito. O sargento não fazia outra coisa senão dizer-me: “Tranquila,
prenda, que isto é um mero trâmite…”
PAULINO – Sim, anda diz-lhes tu a uns militares, que passaste, sem te dares conta, da
zona republicana à zona nacional numa carripana, como se fosses almoçar ao campo…
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PAULINO – A comprar morcelas virias tu, que eu vinha ver se nos contratavam aqui
em Belchite para as festas.
CARMELA – Mas, que festas iriam fazer sabendo que os fascistas estavam já em
Teruel?
PAULINO – Claro, tu, sempre que abro a boca, contrarias-me, e aí está montada a
discussão.
CARMELA – Tudo: que sim o rabo, que sim o nevoeiro, que sim as morcelas…
PAULINO – Não é verdade: és tu quem dizias que eu não tinha que estranhar que eles
tivessem acreditado que nós…
Você está aí, senhor tenente? Faz uma hora que o estamos a chamar… E é para lhe
dizer que diga você ao senhor comandante que nós ainda não estamos preparados, nem
a música pronta. Assim que faça o favor de por a tropa a fazer instrução durante meia
hora, que lhes fará muito bem para lhes baixar o vinho, entretanto aqui Paulino e esta
servidora acabam de arranjar-se…
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Mas já CARMELA lhe agarrou a mão e puxou decidida para fora de cena. Esta fica um
momento vazia. Bruscamente, faz-se o
ESCURO
…com o ritmo como um negro rumbero… e sem desafinar nem uma nota… (Sorri com
pícara ternura.) Diabo de homem! Onde terias tu aprendido essas manhas ? De certeza
que não foi no seminário… (Mudança.) Já basta, Carmela. Água que não mais
beberás… Mais te vale ir esquecendo as coisas boas, para que não te coma a nostalgia
… (PAULINO mexe-se e articula algumas palavras ensonadas.) Bem: parece que o
senhor quer despertar. Seja em boa hora…
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PAULINO – (Sonhando em voz alta:) Não…! Não a levem!... Ela não tem…! Eles… a
culpa… esses milicianos…! …A cantar! Ela não!... Esses… que se puseram…!
(Continua murmurando, sem que se lhe entenda.)
CARMELA – Olha com o que este me sai! Pois não está sonhando…! E em voz alta,
além do mais… Eia novidade… ( Tenta acordá-lo com suavidade.) Acorda, rapazinho,
e não te zangues com o que já não tem remédio… Pauli, Paulino… Nada: como uma
criança no primeiro sono… Se até lhe saem os moncos… (Limpa-lhe o nariz com um
lenço. PAULINO resmunga, mas continua dormindo.) A culpa, dizes… Sabe Deus
quem a tem… Os milicianos… eu… tu… o tonto do Gustavete… a hóstia consagrada
… Mas não: eles não creio, pobres moços… Porem-se a cantar, sim. Isso deu-me não
sei quê… Ainda que, claro, que haviam de fazer? Que mais lhes dava, se pela
madrugada iam ser fuzilados? O facto de trazê-los a ver o espectáculo, com correntes e
tudo… E eu, ali, fazendo aquilo, com a bandeira… Que mau íntimo, o tenente! Em vez
de lhes dar a última ceia e matá-los, como Deus manda, trazem-mos aqui, pobres
filhos… a engolir o vexame. A mim estava-me a dar não sei quê logo desde início…
Vê-los aí, tão sérios… (Fica olhando a sala. Cantarola:)
(Como impulsionado por uma mola, PAULINO levanta-se e fica sentado, a pestanejar .
CARMELA sobressalta-se.)
CARMELA – Sim.
PAULINO – Voltaste…
CARMELA – Quê?
PAULINO – Quê?
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CARMELA – Custou-me mais.
PAULINO – Porquê?
PAULINO – Então…?
CARMELA – Ai, não sei… Olha que perguntão… E tu que tens feito?
CARMELA – Quê?
CARMELA – Porquê?
CARMELA – Quando?
PAULINO – Um cruzamento?
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CARMELA – Sim: de linhas de comboio. Cruzavam-se duas linhas de comboio.
CARMELA – Nem ele, nem ninguém. A gente ia chegando, formava-se uma fila…
PAULINO – Desfocados? Que queres dizer? (CARMELA não responde.) Queres dizer
que vos ides… que se vão… como que apagando?
CARMELA – Algo assim… (PAULINO, algo inquieto, toca-lhe na cara. Ela sorri.)
Não homem … Esses devem ser os mortos antigos, do princípio da guerra… ou de
antes. Não te preocupes: eu ainda… (Mudando vivamente de tema.) Sabes quem esteve
um bocado na fila?
PAULINO – Quem?
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CARMELA – (Muito contente.) Sim!
CARMELA – Comigo, sim, ali na fila… Só um pouco, ao princípio. Mas… nem vais
acreditar… sabes o que me fez?
PAULINO – A ti?
CARMELA – É como estás a ouvir. Vê, trago-os aqui… (Tira um pedacito de papel.)
Com um lápis…
PAULINO – Deixa-me ver… Que importante: escrever-te uns versos… E são bonitos?
PAULINO – (Lê:)
PAULINO – (Perplexo, sem saber o que dizer.) Sim, muito… Claro, aqui ele quer
dizer… (Emudece.)
PAULINO – Sim, isso sim. Isso entende-se muito bem… Em contrapartida, o das
formigas…
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CARMELA – De qualquer maneira , tens de reconhecer que é apenas um detalhe.
PAULINO – E é mesmo assim: pequeno detalhe… E mais, estando como está… (Volta
a ler:) De tu silencio blanco sin… Hormigas, diz aqui?
CARMELA – Ali mesmo. Com um lápis … Estava na fila, muito sério, algo apagado
já… Bem vestido…; com buracos, claro… Mas um senhor…
PAULINO – Era um senhor, sim… E um poeta grande. Eu sei uma poesia sua muito
forte. É aquela que começa:
Y yo me la llevé al rio
creyendo que era mozuela,
pero tenía marido…
CARMELA – Isso. Muito bonita, sim… Pois ali estava ele, e digo-te, olhando o chão,
muito sério, e eu vou e digo…
CARMELA – Onde?
CARMELA – Nisto, digo-lhe: “ O senhor não é daqui, pois não?”… Porque eu notava
um não sei quê… E ele vai e responde-me: “Pois você também não, conterrânea.” E aí
ficámos os dois falando de Granada… E acontece que conhecia a Carucas, uma prima
irmã da filha do primeiro marido da minha avó Mamanina, que tinha estado a servir em
sua casa…
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CARMELA – Isso mesmo lhe disse eu, e ele respondeu-me: “Muito pequeno, Carmela,
muito pequeno… Mas um dia crescerá”.
CARMELA – Sim.
PAULINO – Crescerá?
CARMELA – Sim.
CARMELA – É nesse momento que se aproxima o padre de Belchite, que quase não se
aguentava direito de tão molengo que estava…
CARMELA – Não sei muito bem… Vê-se bem que o atiraram do campanário abaixo…
PAULINO – Porquê?
PAULINO – Mas, mulher… Deus e a Virgem não vão andar por aí, a atender toda a
gente.
CARMELA – Bem, está bem… Mas, pelo menos, não sei: os anjos, os santos…
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PAULINO – Nisso tens razão.
CARMELA – Havia uma mulher, muito aborrecida, que não parava de chamar por
Santa Engrácia… “ Mas, bom, dizia, onde está a Santa Engrácia, vamos lá ver? Passei a
vida a rezar-lhe e a pôr-lhe velas todas as sextas feiras… Mais de duzentos duros em
velas lhe terei posto. E agora, quê? Onde raio está a Santa Engrácia?”… E ali não
aparecia nem Santa Engrácia nem ninguém.
CARMELA – Atirados à rua… E claro, pois o padre era tudo desculpas, que tenham
paciência , que sim, que há-de vir alguém… Mas, qual quê! Ali nada…
CARMELA – Quê?
PAULINO – Isto … O que nos está a acontecer… Que tu estejas aqui, morta, e que
possamos falar, tocar-nos… Não entendo como está isto a acontecer, nem porquê…
PAULINO – Juro-te que quase não bebi… E sonhar, já sabes que eu não sonho nunca…
ou quase.
CARMELA – Que queres que te diga… Ás tantas, digo eu, como há tantos mortos por
causa da guerra e isso, pois não cabemos todos…
PAULINO – Onde?
CARMELA – Onde há-de ser? Na morte… E por isso nos têm por aqui, esperando,
enquanto nos acomodam…
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PAULINO – Não digas tontices, Carmela. Tu pensas que a morte é… um armazém
conserveiro?
PAULINO – Claro, aqui a única morta é a senhora… Pois, por pouco…! Onde já se viu
uma morta a comer um marmelo?
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PAULINO – (Igual.) Tu é que não devias gritar!
PAULINO – O que conseguiste: tu, mais morta que … que uma ratazana morta, e eu…
PAULINO – Eu… pior que morto! Que pensavas ganhar, eh? Que iríamos nós ganhar a
armar em heróis? Não era já bastante ter aguentado quase dois anos de guerra com as
nossas “varietés”? Parece-te pouco esse heroísmo? “Carmela e Paulino, variedades do
mais fino”… Grande finura! Das capitais era esquecer, que há muita concorrência…
Era andar aldeia acima aldeia abaixo, com quatro baús… e o tonto do Gustavete, que é
como carregar com outro baú, porque nem serve para representar, nem para contra-
regra, nem para maquinista…
CARMELA – Para anormal, tu. Que se não tivesses dado tantos ares de artista para
com o tenente, não lhe tinha passado pela cabeça fazer-nos representar…
PAULINO – Deixar-nos abalar? Deixar-nos abalar, sua ingénua? Mas, tu sabes o que é
uma guerra? Tu fazes ideia do que se está a passar por aí? (Indica para o exterior.)
Anda: vai dar uma volta e vais ver o que encontras… Assoma-te à escola e vê quantos
“meninos” ali meteram, e como estão crescidos, e como lhes fazem cantar a tabuada dos
sete … E de seguida olha à volta e vê quanta gente puseram a “passear” e depois
fizeram ”descansar” pela berma da estrada… Bom, e sem ir mais longe: olha o que
fizeram contigo…
CARMELA – De me atirar à cara que estou morta. Até parece que estás contente…
PAULINO – Contente eu …?
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CARMELA – Bastante me custa a mim, que nem o sabor dos marmelos sinto.
CARMELA – Ouves?
PAULINO – De quê?
CARMELA – Digo-te que não. Ouço-o muito bem… Olha que se os matam outra
vez…!
PAULINO – A quem?
CARMELA – Até parece que os estou a ver… Sim… É ali… As vias… A caseta… Há
fumo… Explosões…
PAULINO – Carmela, por favor…, acalma-te… Como estás a ver isso que…? É
imaginação… Não se ouve nada, não se vê nada…
PAULINO – Estás aqui comigo, Carmela…, no teatro… Estás aqui… Onde vais?
CARMELA – Eles estão ali… Não fogem… estão quietos… andam devagar… param…
Vão matá-los outra vez!
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PAULINO – Carmela, não…! (Sai atrás dela, mas num momento volta a entrar, como
impulsionado por uma força violenta que o faz cair no chão. A luz esbranquiçada
apaga-se.) Carmela! (Tenta levantar-se, mas está como que aturdido e além do mais,
magoado numa perna.) Carmela, volta! Volta aqui! Parti uma perna! Estou ferido,
Carmela! Parti…! ( Mas comprova que não e põe-se de pé, ainda ofuscado. Caminha
coxeando e volta a gritar, com menos convicção.) … uma perna! Não posso andar,
Carmela!... Preciso de ti! Não podes deixar-me assim! Fiquei coxo!...
(De repente, a cena ilumina-se brilhantemente, ao mesmo tempo que começa a soar a
todo o volume o passodoble “Mi jaca”. PAULINO, assustado, imobiliza-se, olha as
luzes e também a sala. Esfrega os olhos, apalpa a cabeça e antes de sair do seu
assombro, cai rápido o
PANO )
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SEGUNDO ACTO
PAULINO – (Grita, raivoso.) Merda para as formigas de Deus! Merda para as putas das
formigas de Deus e da Virgem Santíssima!...
(Com os saltos o disco começa a repetir, uma e outra vez, parte do estribilho: Ay,
Carmela!... Ay, Carmela!... Ay, Carmela… Ao dar-se conta, PAULINO acalma-se
subitamente e olha como hipnotizado para a grafonola. Escuta inquieto à sua volta e
por fim, apressa-se a tirar o disco. Com ele na mão, volta a olhar em redor. Murmura:)
Isto não é natural… Isto é muita coincidência… Isto já é propositado. Aqui passa-se
alguma coisa… Há alguém aqui que… Porque eu não estou bêbado. E é entrar por aqui
e toma lá disto. São tudo coisas estranhas… Aquela que aparece sem mais nem menos,
a dita noite que regressa, as luzes que disparam todas… e agora, a grafonola, a fazer-
me truques de feira…!Vamos, homem! Um pouco de formalidade… (A um vago e
invisível interlocutor.) O que é que se passa? Lá por isto ser um teatro vazio já vale
tudo? Qualquer coisa e bumba, já está ? Vamos, homem!... Boas estão as coisas lá fora
para andar com fantasias… E o memos ainda é andar por aí todo o dia a mostrar o
sovaco… (Esboça a saudação fascista.) O pior é que, quando um tipo que não vai com
a tua cara… ou gosta dos teus sapatos, já está: «Vermelho!»… E depois como é que
uma pessoa faz para o deter … (Olhando o disco.) Ditosa tu, que já estás morta e podes
ver a tourada desde o camarote. Porque, o que serei eu, se sair inteiro desta corrida…
(Afastando pensamentos sombrios.) Mas enfim: haja peito para o que já está feito… E
morto à cova, vida nova. Aqui há que estar bem acordado, e andar de olho, e saber onde
se pisa, e arrumar-se a boa sombra… E se volto de vez em quando a este teatro, não é
para ninguém brincar comigo com magias baratas, nem com fantasmas, nem a…
(Brusca transição. grita implorante.) Carmela! Vem Carmela! Como estiveres, mas
vem! Com truques ou de mentira ou de teatro…! Tanto me faz! Vem, Carmela!...
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vestido andaluz e um grande leque, desfilando e bailando garbosamente. PAULINO,
após o lógico sobressalto, reage com irritada decepção e retira-se, muito digno, para o
fundo. Fica ali de costas, com os braços cruzados; evidentemente de mau humor.
CARMELA executa o seu número sem reparar nele até que a meio da peça, a música
começa a descer de volume – ou a reduzir a velocidade – ao mesmo tempo a luz de cena
diminui e a dança extingue-se. Resta, finalmente, uma iluminação discreta, e
CARMELA, no centro, como ausente, quase imóvel, em truncada posição de dança.
Silêncio. PAULINO volta-se e olha-a. Continua irritado, não directamente com
CARMELA.)
É demais, não?
PAULINO – De nada, Carmela, de nada… Tu, já fazes bastante, coitada… Agora aqui,
agora lá… Ora viva, ora morta…
PAULINO – Quê?
CARMELA – Cai-te sempre mal. E com os nervos antes de começar, ainda pior.
CARMELA – A quem é que passa pela cabeça comer um coelho inteiro, a menos de
duas horas de um espectáculo que nem Deus sabe como nos vamos sair? Mas não digas
que não foste avisado:«Pára, Paulino, que o coelho é muito traidor, quando não fazes a
digestão, ficas mal da tripa e já não acertas uma»… Mas tu:« Que não, Carmela, que
comer bem dá-me aprumo»… E estás a ver… Que sentes? Tonturas, febre? (Toca-lhe
na testa.)
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PAULINO – Não sinto nada… Estou perfeitamente…
CARMELA – A atirar para o verde… Claro que eu… Olha que ter que fazer
espectáculo quase sem me pintar! E ainda por cima a regra que me está para chegar…
CARMELA – Sempre te digo o mesmo: quando me está para vir a regra dói-me sempre
o dente do siso.
PAULINO – Quero dizer… nós… nossa arte… Sempre há que dar o melhor ao público.
Estejamos como estivermos, tenhamos o que tivermos.
CARMELA – Pois a este público, como não lhe demos «cuscuz». Viste a quantidade de
mouros que andam por aí? (Vai arranjando o cabelo.)
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PAULINO – Pois, claro… Agora é que reparaste? Mouros, italianos, alemães… (Sem
ironia.) O Exército Nacional.
PAULINO – De quê?
CARMELA – Desses milicianos que prenderam, e que vão trazer a ver-nos, e que
amanhã os fuzilam…
PAULINO – Bom… não sei… Parece que sim… Está-se a ver que o comandante quer
conceder-lhes uma… uma isso: uma última graça.
PAULINO – Mulher… não nos vai sair tão mal assim, vais ver…
PAULINO – Ah, claro… Isso sim, coitados… De França, da América… Creio que até
há algum polaco.
CARMELA – Polaco! Estás a ver que exagero… Quem havia de dizer aquela mãe, lá
tão longe, que lhe iam matar o filho em Belchite?
CARMELA – Não, Espanha, sim, que é muito famosa. E se vêm aqui a lutar, por
alguma coisa será.
CARMELA – À sua maneira, mas dirão. Senão, como teriam aqui chegado?
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PAULINO – Quem não chega é o público… (Olha para o fundo da sala.) E o tenente…
olha para ele na cabine, como está tranquilo, com Gustavete, fumando como um
marajá…
CARMELA – E ainda por cima, como é comunista, não poderá nem rezar…
CARMELA – Certamente que também… (Vai-se alterando.) Mas estás a ver: nem rezar
pelo filho, poderá.
PAULINO – (Consentindo.) Bom… na volta, nem vai saber… Polónia está lá muito
longe.
CARMELA – Órfão, ainda por cima! Pobre filho! Polaco, comunista, órfão e vir morrer
numa terra que nem sequer sabe com se pronuncia… (Cada vez mais agitada.)
CARMELA – Que não me ponha assim? Vê-se bem que tu nunca foste mãe…!
CARMELA – (Muito alterada.) Claro que não! Porque tu não quiseste, que és um
egoísta! E se não me chego a impor, não nos tínhamos casado nem pelo civil…
CARMELA – Isso sim! Muita procissão, muita missa, muito rosário, e a seguir…
fuzilar órfãos!
PAULINO – Faz o favor de te calar… E prepara-te, que o tenente está a dizer-nos não
sei o quê… Creio que a tropa já está a chegar. Estás a ouvir? (Para a lateral.) Já está aí
Gustavete ?
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CARMELA – (Indignada.) Sim…, mas, sabes o que te digo? Que o número da bandeira
não o faço.
PAULINO – Digo, que te cales! Já está! Vamos a começar! Ao teu sítio! Gustavete:
prepara a música!
CARMELA – Pois digo-to que não o faço. Podes ir inventando já alguma, porque eu
não faço o número a gozar com a bandeira. Ainda por cima, pobres filhos…
PAULINO – Isso não é a mesma coisa! Os traques não têm nada a ver com a política!
PAULINO – Que é pior para ti? … Bom, não me importa. Queres, descomplicar as
coisas agora?... Os papéis… Onde porra pus eu os papeis? … De certeza que a
grafonola funciona?... Sabes quando é a tua entrada, Carmela? … Carmela! Onde te
meteste?... Já estão a entrar… Madre mia, quantos oficiais!... Aquele não é Franco? O
general Franco ?... Carmela! Viste a Carmela, Gustavete? Estava aí faz um momento…
Funciona a grafonola? Os papeis, menos mal! E o meu barrete? Onde está o meu
barrete? Que fiz eu com…? Aqui está! E Carmela?... Carmela! Pode-se saber onde…?
CARMELA – Mijar.
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salvadores da Pátria invicta…» Não, ao contrário: «Invictos salvadores da Pátria
eterna…» A mama, Carmela…
CARMELA – Quê?
Mi Espanha,
Que vuela como el viento
Para hacerle un monomento
Al valor de su Caudilho.
Mi Espanha
Está llena de alegria
Porque ya se acerca el dia
De ponerse cara al sol.
PAULINO – «Invictos salvadores da Pátria eterna: hoje, vós, cérebro, coração e braço
do Glorioso Levantamento que devolveu a Espanha o orgulho do seu destino imperial,
haveis cumprido uma proeza mais, das muitas que já marcaram esta Cruzada redentora.
Na vossa marcha invencível para a reconquista do solo nacional, durante anos
manchado e desgarrado pela anarquia, o comunismo, o separatismo, a maçonaria e a
impiedade, hoje haveis liberado pelas armas esta heróica vila de Belchite. A Quinta
Divisão de Navarra do Corpo do Exército Marroquino, sob o comando do invicto
general Yagüe, escreveu com o seu sangue imortal outra gloriosa página no livro de
ouro da História semi… sempi… sempiterna de Espanha…, esse livro que inspira, dita e
encaderna com pulso seguro e mão firme nosso eguer…» não, «nosso egre…», sim,
«nosso egrégio», isso, «egrégio Caudilho Franco, a quem esta noite queremos
oferecer…» (Muda de folha.) «… quatro quilos de morcelas, dois pares de ligas pretas,
duas dezenas de…» (Interrompe. Olha aterrado o público.) Não, perdão… (Olha
furioso para CARMELA que, ausente, está arranjando um sapato. Amarrota a folha e
guarda-a no bolso.) Perdão, foi um engano… (Procura entre as folhas.) Queremos
oferecer… oferecer… Está aqui! (Lê.) «… queremos oferecer esta modesta Soiré
Artística, Patriótica e Recreativa», é isto, «… com a que uns humildes artistas
populares, a Carmela e o Paulino, Variedades do mais Fino… (Ambos saúdam.) …em
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representação de todo o povo espanhol…» (Sorri humilde.) Bom de quase todo… (Lê.)
«… espanhol, guiados fraternalmente por um artista e soldado italiano, da Divisão
“Littorio” do Corpo Trupe Volontarie… (Indicando a cabine.) … o Tenente Amelio
Giovanni de Ripamonte, em representação do povo italiano, que é o mesmo que dizer
da alma jovem, ‘récia’ e cristã do Ocidente…» (A extensão da frase faz-lhe perder o
alento e o fio. CARMELA adverte-o e dá-lhe com o seu leque.) … Isto… Bom…
pois… «de Ocidente queremos honrar, dedicar e entreter as tropas vitoriosas do
Glorioso Exército Nacional de Libertação…» (Dá-se conta de que acabou o parágrafo
e repete, fechando o período.) «…Nacional de Libertação.» Ponto. (Desculpa-se com
um sorriso forçado.) Perdoem, eu… Estas belas palavras não… Quero dizer que o
tenente é que as…
PAULINO – (Com humor forçado, após várias tentativas de a fazer calar.) E mãe há só
uma, e a ti te encontrei na rua!... Muito bem! Sim, senhores: esta é Carmela, uma artista
de raça e elegância que, depois de passear o seu garbo pelos melhores palcos de
Espanha, chega aqui, a este simpático Teatro Goya, de Belchite, para pôr a sua arte aos
vossos pés…
CARMELA – (Brincalhona.) Daí que, olho, não me vão pisar com essas botifarras… A
arte, digo…
PAULINO – (Com falso riso.) Que oportuna! Esta é Carmela, sim, senhores: todo o sal
de Andaluzia e o açúcar de… de… (Falham-lhe os conhecimentos agrícolas.)
CARMELA – Isso é verdade: que eu, ao público, amo-o muito, tenha lá o aspecto que
tiver… Os senhores estão a ver, por exemplo, tão sisudos aí, com as pistolas e os sabres
… Pois para mim é como se fossem os meus primos de Zamora… que andam sempre
com a coisa de fora… (Ri com falso pudor.) Ui! Senhores perdoem! Que esta é uma
brincadeira que fazíamos eu e minhas irmãs…
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aquela de … aquela… (Encontra-o.) Aqui está! Sim, senhores: isto… (Lê.) «E como
símbolo de esta fraternidade artística, que é também a dos nossos povos, o espanhol e o
italiano, unidos na luta contra a hidro…», não, «contra a hidra... a hidra vermelha,
oferecemos-lhe esta dança ale… alegro… alegórica – patriótica intitulada: Dois Povos,
dois Sangues, duas Vitórias»…
CARMELA – Primeiro eram três, porque o tenente queria que Gustavete, que é o
técnico… e outras coisas, fizesse de alemão, e assim entravam todos na dança… Bom,
menos os mouros, mas esses… (Gesto vago.) Pois, é como lhes digo: eu, de espanhola,
Paulino de italiano… que a verdade é que o fala muito bem, o italiano, digo…E
Gustavete de alemão, que, ainda que seja baixote, tem uma cabeça quadrada e o cabelo
um pouco espetado…
PAULINO – Bom, Carmela… Não creio que a estes senhores lhes interesse…
CARMELA – Deixa que lhes explique, para que vejam que vontade não nos falta…
Pois, onde é que eu ia: Gustavete de alemão, queria o tenente. Mas acontece que o
desgraçado está com umas frieiras nos pés que quase não pode nem andar, quanto mais
dançar, digam-me lá…
CARMELA – Mas, nem pensem: até ensaiámos um bocado, esta tarde, porque vontade
não nos falta… Mas, se vissem… (Ri.) O pobre Gustavete…! (Séria.) De forma que
dissemos: Tu, Gustavete, à grafonola. Não vão pensar estes senhores que queremos
gozar com eles…
Mas já basta de explicações e passemos sem mais à dança… (Consulta os papéis.) …«à
dança alegórica – patriótica intitulada: Dois Povos, dois Sangues, duas Vitórias»…
CARMELA – Vou já dizer: primeiro eram três, mas… (Gesto de PAULINO.) Já vão
ver como vão gostar…
(E entram os dois, cada um por uma lateral. Com a música de uma rasca marcha
italiana, PAULINO e CARMELA executam uma dança cuja rústica coreografia
corresponde aproximadamente ao que ensaiaram no primeiro acto. Ao terminar, saem
de cena juntos e, num momento, volta a entrar PAULINO e produz-se uma mudança de
luzes.)
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En el Cerro de los Angeles,
Que los ángeles guardaban,
Han fusilado a Jesus!
Y las piedras se desangran!
Pero no te assustes, madre!
Toda Castilla está en armas!
Madrid se ve ya muy cerca.
No oyes? Franco! Arriba Espanha!
La hidra roja se muere
De bayonetas cercada.
Tiene las carnes abiertas
Y las fauces desgarradas.
(Ouvem-se soluços nos bastidores e ruído de alguém que funga sem parar. PAULINO
dá-se conta, inquieto.)
CARMELA – (Ao público.) E Polónia, é o quê? Será que lá, não há mães? E caramba se
está perto…!
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(Após uns segundos de terror, PAULINO reage e adopta uma atitude de jovial
apresentador.)
Não?... Pois não… Sim, foi um engano… (Ao público enquanto folheia os papeis.) Não,
senhores: não é este o nosso próximo número… Foi um engano… O diálogo revisteiro
vem depois… E, além disso, é outro… Quero dizer que, de Polónia, nada… Nem de
Daroca… Foi engano… Confundimos a comédia… e o número… e tudo… (Encontra a
folha.) Aqui está… Que lhes dizia? Agora vem… Sim, é isso… «Suspiros de Espanha»
(A CARMELA.) Prepara-te, menina… (Ao público.) Sim, senhores: seguidamente,
Carmela cantará para vocês o bonito passo doble do maestro Alvarez «Suspiros de
España» … (Para a lateral, enquanto CARMELA arranja o vestido.) Gustavete,
preparado? (Ao público.) «Suspiros de España», sim: um pasodoble muito espanhol e
muito castiço, ou seja, muito bonito… Com todos vós, senhores e senhoras… que digo,
não: só senhores… Carmela e «Suspiros de España»!
(E sai dando, mais que um suspiro, um forte suspiro, enquanto soam já os acordes
iniciais do pasodoble.)
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Ay madre mya. Ay quién pudiera
En luz del dia y al rayar la amanecia
Sobre España renacer.
De galinha! A pele, digo… Põe-se-me a pele de galinha cada vez que canto esta canção.
A vocês não? Eu, é que sou muito ‘sentida’ e sinto tudo muito. Paulino diz que o que eu
sou é uma histérica, mas ele, o que é que ele sabe? Com esse sangue de ‘amendoada’
que tem, que nunca se lhe altera… (Sufoca um riso atrevido.) Se eu vos contasse…!
(Com intenção, ao ver entrar PAULINO, canta «Ay, mamá Inés! Ay, mamá Inês…!»
PAULINO – (Ofuscado.) Muito bem, muito bem, Carmela… Mas essa canção não toca
esta noite…
CARMELA – Um pouco não Paulino: um muito. Com estes senhores não há que estar
com disfarces que parvos é que eles não são…
CARMELA – (Ao mesmo interlocutor.) Não é verdade, alma minha, que já deste conta?
(Gesto lisonjeiro.) Porque, é o que eu digo: a estes senhores não há mais que ver-lhes a
cara para ver logo que são entendidos na arte fina, ainda que se lha apresente com pouco
brilho e aos tropeções, como agora nós… (Transição.) O que me sabe mal é o de
aqueles pobres filhos que, além de não entenderem nada, vão partir para o outro mundo
com uma má impressão… (PAULINO vai fazê-la calar, mas ela muda de tema.) Mas,
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bom já me calo… senão o PAULINO fica nervoso… Eu, é que, quando estou diante do
público, entra-me uma coisa que me disparo toda e já não há quem me pare…
CARMELA – Pelos caminhos, não, Paulino…Que nem uma cabra… Pelas ruas e pelas
tavernas e por… (Gesto pícaro.)
Terão visto que aqui não há truque… A gravata foi fatiada como um chouriço, e aí têm
os senhores os seus pedaços… Pois bem, prestem muita atenção e comprovem os meus
poderes mágicos…
(Leva solenemente as mãos ao peito, realiza ali misteriosos passes enquanto roda sobre
si próprio e ao ficar de novo de frente para o público, mostra a gravata … intacta.)
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(Gesto decidido para Carmela, que está distraída, olhando uma zona concreta da sala:
ali onde supostamente se situam os milicianos prisioneiros.)
Carmela!
CARMELA – Qual corda?... Ah, sim… (Dirige-se à lateral, desaparece por uns
segundos e regressa com uma corda que leva presas várias molas de roupa. Entrega-a
a PAULINO que, quando a vai receber, repara nas molas.)
PAULINO – (Irritado sem pegar na corda, indica-lhe as molas.) Por favor senhorita…
CARMELA – (Dando conta, desmancha o seu personagem e tira as molas.) Ui! Sim!
É que antes pus a estender as minhas…
PAULINO – (Pegando na corda.) Vejam, senhores, esta magnífica corda do mais puro
sisal, forte e resistente como um cabo de aço… mais ou menos… (Estica-a e mostra a
sua resistência.) Nem dez homens a conseguiriam romper… Pois bem: minha ajudante,
aqui presente, vai atar-me com ela as mãos e os pés, e eu, graças aos meus mágicos
poderes… vou libertar-me com um pequeno suspiro! Vamos, senhorita Kal!
(Dá a corda a CARMELA e estende os braços diante de si, com os punhos juntos.
Continua falando enquanto CARMELA lhe ata as mãos com a ponta da corda.)
Ate-me a senhora com todas as suas forças, sem disfarce nem ilusão… Aperte, aperte…
que vejam estes senhores o impossível que seria para qualquer mortal desfazer esses nós
marinheiros por… (Em voz baixa.) Nem tanto, bruta… (Alto.) Estes nós marinheiros por
meios naturais… ou inclusivamente artificiais… Sim, senhores: só com meios
sobrenaturais, por assim dizer, ou seja… mágicos… (A CARMELA.) Bom, mulher: já
está bem… (Ao público.) Por assim dizer. E agora os pés… (Enquanto Carmela, de
cócoras, lhe ata os pés com a outra ponta, mostra ao público, as mãos.) Aqui têm,
senhores, uns ligamentos… ou ligaduras… ou seja: uma atadura que, nem queiram
saber… Ninguém seria capaz de …
(A corda é um pouco curta, de forma que CARMELA, para lhe atar os pés, obriga
PAULINO a encurvar-se em incómoda e pouco airosa atitude.)
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PAULINO – Já estou a ver, já… Mas, enfim, não é preciso que…
PAULINO – Sim, claro, senhorita… Ate-me, ate-me, mas… (Em voz baixa.) Lembras-
te dos nós?
(E sai de cena com um último salto. CARMELA, que já se levantou, fica sozinha em
cena, algo perplexa.)
CARMELA – Bom, pois… não sei que dizer-lhes… O que acontece é que não pudemos
ensaiar. E assim, claro…
CARMELA – O quê?... Ah, sim… A tesoura… (Tira-a do seu decote e vai à lateral,
sem deixar de falar com o público.) Claro, pois tudo vai como vai… Porque a esta vossa
servidora não gosta… (Estende a tesoura, que alguém pega.) fazer ridículo assim… Já
antes o dizia ao tenente… (Para o fundo da sala.) Não é verdade senhor meu tenente?
Verdade senhor que faz pouco tinha eu uma zanga de Maria Santíssima por vir esta
noite fazer um papelão aqui… e ainda por cima com este vestido, que nem uma
«facha»… ?
(A mão de PAULINO sai da lateral e com um brusco puxão, tira CARMELA de cena.
Após uns segundos de irados cochichos, reaparece PAULINO esfregando os pulsos e
tratando de recuperar a dignidade.)
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PAULINO – Bem, senhores… Vocês nos saberão desculpar por… Mas, claro, a magia
tem os seus caprichos que… Enfim, vamos continuar a nossa ‘soiré’ com… (Olha os
papéis.) com… sim, com esse mundo tão nosso e tão castiço de… a zarzuela! Sim,
senhores: Carmela e este vosso servidor… Carmela… (Gestos para a lateral.) e este
vosso servidor vamos cantar para todos vós… para todos vós, o famoso duo… o famoso
duo… Carmela! (Com falso humor, ao público.) Para um duo são precisos dois pelo
menos… não? Carmela!
PAULINO – O quê?
PAULINO – (Em voz alta ao público.) Bem, senhores… Resolvido felizmente um…
um pequeno problema… técnico… passamos sem mais demora… ao nosso seguinte
número, que é, como lhes estava dizendo, ao famoso duo de Ascención y Joaquim, da
zarzuela “ La de manojo de rosas”… (A CARMELA.) Preparada? (Ela confirma desde a
lateral.) Preparado? (Para o fundo da sala.) Preparati?... Quero dizer… Tuto presto,
mio tenente? (Mudança de luzes.) Andiamo súbito… (Interpretando para CARMELA.)
“Quero ‘dizer-lha’ uma coisa”.
CARMELA – (Idem.) “Diga-me você o que for, porque eu ‘lho’ escuto todo”.
PAULINO – “Todo”?
CARMELA – “Quê?”
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PAULINO – “Não creia. O que tenho para ‘dizer-lha’ digo-o às boas”.
Canta:
………………………………………………………………………………………….
CARMELA – E com este bonito duo, senhores militares, acabou-se a festa… Porque
me veio a regra muito forte, e estou a ficar doentíssima…
PAULINO – (Urra, alarmado.) Que dizes, louca? (ao público, tratando de galhofar.)
Outra saída da… incorrigível Carmela, que tem a língua muito solta… Desculpem um
momentinho …
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VOZ DE CARMELA – Não me apetece!
(Após outras frases ininteligíveis, entra PAULINO muito alterado, tentando controlar-
se.
PAULINO – (Ao público.) E agora sim, senhores… Agora sim que vamos a interpretar
para todos vós um divertido diálogo revisteiro…, ainda que não seja o que anunciei
antes, porque antes me equivoquei, como já se devem ter dado conta… Pois bem, sim:
da divertida comédia leviana e musical “ El Doctor Toquemetoda”… que com tanto
êxito se representou em Madrid faz duas temporadas, escolhemos um gracioso e picante
diálogo… que o tenente Ripamonti teve a… a ideia de … arranjar, para adaptar às
coisas de hoje em dia… (Lança olhares, entre inquieto e encolerizado para a lateral.)
Claro, que … acontece que… quer dizer… pode não sair tão divertido… porque
acontece que… Bom, que Carmela se encontra algo mal disposta… (Tenta sorrir.) Já
sabem: coisas de mulheres… E é possível que nos saia… algo sem brilho… (Enérgico
para CARMELA.) Mas o que é para fazer, fazemos… Caramba se o fazemos! De cabo a
rabo… Não faltava mais nada! E agora mesmo… (Para a cabine.) Luci, mio tenente!
(Nova mudança de luz. PAULINO roda sobre si mesmo e coloca uns óculos e um nariz
postiço. Passeia pela cena interpretando um doutor ligeiramente afeminado. Dirige-se
a um interlocutor invisível.) Que voltem amanhã, enfermeira. Você está-me a ouvir?
Hoje já não recebo mais ninguém. Que se vão todas, todas… (Monologa.) Que
barbaridade! Este êxito profissional vai acabar comigo. Todos os dias o consultório
cheio… E noventa e nove por cento dos pacientes… “pacientas”…! Quero dizer:
senhoras, mulheres, fêmeas… De toda a idade, condição e estado: casadas, solteiras,
viúvas, separadas, jovens, velhas, virgens, mártires… Que martírio, o meu! E
certamente que a culpa é deste meu apelido que as atrai como moscas: Serafín
Toquemetoda… Que cruz! (Para cima.) Papá: odeio-te! Porque não te havias de chamar
Fernandez, como toda a gente? (Para a lateral.) Você, vá-se também, enfermeira. Não
preciso dos seus serviços até à manhã… (Para si.) Os seus serviços… Outra que tal!
Mais que uma enfermeira, parece uma modelo de roupa interior . À mais pequena
oportunidade, upa! Já me está a mostrar a combinação… E as pausasinhas que faz de
cada vez que me chama… (Tentando fazer voz feminina.) “Doutor… Tóqueme…
toda…” Que falta de vergonha! (Soam umas pancadas da lateral.) Batem à porta!
Quem será?
PAULINO – Não estou! Quero dizer… não está! O doutor não está!
PAULINO – Não, senhora… Sou o seu ajudante. O doutor já se foi embora faz tempo.
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VOZ DE CARMELA – Não importa. Abra-me, que é um caso de vida ou morte.
VOZ DE CARMELA – Se não me abre, ficarei à porta até de manhã, até chegar o
doutor.
PAULINO – (Para si.) Céus, que compromisso! Não tenho outro remédio que deixá-la
entrar e, se conseguir, fazê-la sair… (Finge abrir uma porta na lateral .) Passe minha
senhora. Mas já lhe digo que eu…
PAULINO – Não me está você a confundir com o doutor Marañon, que sai muitas
vezes?
CARMELA – Sair, sim que sai. Mas disseram-me que entrar, entra muito pouco…
CARMELA – Sim, doutor: calores. Ponha-me você o seu termómetro, que logo os
sente.
CARMELA – Muitos tenho, doutor. Mas será melhor… (Vacila.) Será melhor… (Fica
calada em atitude pouco amável.)
PAULINO – (Improvisando.) Sim, será melhor que… (Cada vez mais inquieto, trata de
induzir CARMELA a continuar.) Que tire a roupa, não?... para que possa reconhecê-la…
(Vencendo a sua resistência, tira-lhe a gabardina: o seu corpo está envolto pela
bandeira republicana. PAULINO volta ao seu papel, alterado pela atitude de
CARMELA.) Vamos, vamos… Essas cores não me agradam nada… Nota-se que você
teve … alguma intoxicação.
CARMELA – (Cada vez mais contra vontade, lançando olhares para a suposta zona
dos prisioneiros.) Tem razão, doutor… Mas a coisa vem-me … de nascença…
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PAULINO – Como é isso? (Perante o silêncio de CARMELA.) Diga, diga… Como
é…?
CARMELA – (De repente.) Veja você, doutor, eu nasci de um mau passo, já me está a
entender, de um descuido.
PAULINO – (Assumindo cada vez mais as réplicas que ela não diz.) E certamente
que… ao fim de poucos meses… começaram a sair-lhe… Quê?.Quê? Diga… Manchas
vermelhas na pele, não é verdade?
De repente, desde um lugar indeterminado – talvez desde a sala -, entoada por vozes
masculinas em que se adivinham acentuações diferentes, escuta-se a canção popular
republicana:)
Tudo aconteceu muito rapidamente, ao mesmo tempo que a luz começou a oscilar e a
adquirir tonalidades irreais. Também o canto – e outros gritos e golpes que tentam
calá-lo – soa distorcido. PAULINO, tratando degradar a desafiante atitude de
CARMELA, recorre à sua mais humilhante bufonada: com grotescos movimentos e
grosseiras posições, começa a emitir sonoras ventosidades à sua volta, para a tentar
salvar fazendo-a cúmplice da sua paródia.
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PAULINO – (Improvisa, angustiado e falsamente jocoso.) Estes são os ares… que a
você lhe convém…! E estas as melodias… que merece! Tome por aqui…! Tome por
acolá…! Si, dó, ré, mi…Si, dó, ré, fá!
ESCURO
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EPÍLOGO
No Escuro, ouve-se a voz de PAULINO que, desde fora de cena, grita :” Já vou, já
vou…!” Ouve-se o “clic” e acende-se a luz de ensaios. Entra PAULINO acabando de
vestir uma camisa azul com uma vassoura debaixo do braço.
PAULINO – (Fala para o fundo da sala.) Já vou… É que estava pondo isto…(Brinca
inseguro.) Fica-me bem?... (Sério.) Bom, já está… (Examina o palco, falando sempre
com o suposto ocupante da “cabina”.) Ou seja: varrer isto, limpar um pouco, colocar
os cinco cadeirões, as bandeiras, o crucifixo… ah, e as colchas … Está feito… E
depois… sim: levar a grafonola a arranjar, não nos vá falhar… (Começa a varrer.)
Numa hora, todo pronto. E se me despacho, até posso encontrar umas flores para
enfeitar o crucifixo, ou as bandeiras, ou… Bom: eu arranjo-as e tu dizes-me onde as
queres, eh Gustavete?... Agora, se não te parece bem, nada de flores, como queiras…
Ouve… (Olhando para o fundo.) Ainda estás aí? Não te esqueças de dizer ao presidente
da câmara… Porque vais a essa reunião, não?... Pois diz a dom Mariano como me estou
a portar, eh? Tu já sabes que a mim, vontade não me falta… Que vejam que comigo
podem contar seja para o que for… E, se vier a propósito, comenta-lhe aquilo do lugar
de vereador… Se puder sacar umas pesetas para ir andando, ao menos enquanto durar a
coisa… Logo, já veremos o que… Mas, enfim, o principal é que saibam que estou com
a lei… Trigo limpo, vamos… Estás a ouvir-me? Estás aí, Gustavete? (Olha e escuta.)
Vai-te, homem: outro que se despede à francesa… ou à italiana… (Continua varrendo
em silêncio.)
Olha para elas, que engraçadinhas!... A mãe que as pariu… Esta terra vai acabar por ser
comida pelas formigas… (Coça-se.) E a mim, os percevejos...
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PAULINO – (Tem uma reacção ambígua que, finalmente se resolve em seca
hostilidade, continua varrendo.) Que é?
PAULINO – Eu?
PAULINO – De certeza.
CARMELA – Pois não levantes tanto pó, homem, que o chão não te fez mal nenhum…
Que maneira de varrer… Dá cá, deixa-me a mim… (Vai pegar na vassoura; ele
rechaça-a, brusco.)
CARMELA – De quê?
PAULINO – De ti!
PAULINO – Bom … de ti não. De… disto… (Gesto vago, que a inclui a ela.) Tanto
truque, tanta mentira…
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CARMELA – Porquê?
PAULINO – Tu me dirás…
CARMELA – E como!
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PAULINO – Apertões? E tu deixas, claro… (Reage, furioso.) E a mim que me importa!
Já me estás a dar a volta outra vez!
PAULINO – Em que me estás a dar a volta, dizes tu!... Mas, tu acreditas que, com a
minha idade, ainda acredito em fantasmas?
CARMELA – Ouve tu: ouve bem, que eu, não tenho nada a ver com fantasmas.
PAULINO – Que é?
CARMELA – Trigo.
PAULINO – Trigo?
PAULINO – Quê?
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desavergonhado cabeça rachada do Pedro Rojas ofereceu a Carmela a sua colher! Não
percam esta!...
CARMELA – (Rindo.) Porque ainda não olhaste para ti!... (PAULINO põe-se de novo a
varrer, muito digno. Ela vai pouco a pouco deixando de rir. Aproxima-se dele,
conciliadora, e trata de lhe tirar a vassoura. Ele resiste.) Anda, dá-ma…
CARMELA – Uma, a mais jovem, que é de Réus, disse que já está ansiosa por
começarmos a fazer alguma coisa.
CARMELA – A coisa é essa. Porque diz Montse… mas a outra, a mais velha… que
existem muitas maneiras de estar morto…
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CARMELA – Assim como há muitas maneiras de estar vivo.
PAULINO – Qual?
CARMELA – Qual?
CARMELA – Mas, vamos a ver, alma de Deus: porque se faria passar por catalã, essa
pobre mulher?
PAULINO – E que sei eu… Nem a conheço… Mas há gente muito estranha por aí…
PAULINO – A outra, pelo contrário, estás a ver, diz seguido:”Sou catalã de Réus”. O
normal.
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PAULINO – Tens razão: conta, conta…
CARMELA – Ah, sim… Pois dizia Montse que nos podíamos pôr à procura dos que
não se conformam em apagar-se…, ou seja, os maciços, como lhes chama Montse… e
juntar-nos, e fazer algo assim como um clube, um grupo, ou um sindicato…, ainda que
Montse diga que, de sindicatos, já basta… mas com isso a outra Montse fica muito
picada, porque diz que…
PAULINO – Ouve.
CARMELA – O quê?
PAULINO – Quê?
CARMELA – Que não se chamam Montse, tá. Nenhuma das duas. Nem são catalãs,
nem de Réus, nem são nada.
CARMELA – Sim: para contarmos tudo o que se passou, e porquê, e quem fez isto, e
que disse aquele…
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CARMELA – Para recordar tudo.
PAULINO – A quem?
CARMELA – Não, não digo por ti… Ainda que, lembra-te… Tu, deixa que passe o
tempo, e depois falaremos…
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PAULINO – Então beijo-te eu…(Beija-a. Ela parece ausente.) Gostas?
CARMELA – Porque os vivos não aprendem nada com os erros, nem ao tiro…
CARMELA – E recordando…recordando…
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CARMELA – (Igual.) O mesmo que eu… Aqui não se está mal.
PAULINO – Que um vivo tenha visões, ainda vá, mas… Que as tenha um morto!...
CARMELA – Que mal passámos, eh! Porque eu, parecia contente, cantando e bailando,
mas… a dor estava cá dentro…Uma profissional…
CARMELA – Não…(Ri.) Isso da dor cá por dentro é uma maneira de falar, uma coisa
que se diz aqui…
PAULINO – Digo-te que me vou, Carmela… Já só falta aparecer por aqui o tal da
cabeça rachada...
CARMELA – Ouçam! E como é que nos entendemos?... Porque vós, não sei como
falais, mas eu entendo… E a mim entendeis-me? Ai, que engraçado! (Ri.) A ver se
resulta que… como morrestes em Espanha, pois já falais o espanhol… Que acontece!...
O mesmo que ao nascer num país…! Pois isso!
ESCURO FINAL
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