ConJur - Bellizze e Mazzola: Indução de Comportamento

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ConJur - Bellizze e Mazzola: Indução de comportamento 07/04/2023 22:05

Sanções premiais e indução de


comportamento
Por Marco Aurélio Bellizze e Marcelo Mazzola 17 de junho de 2022, 7h09

Em qualquer sociedade organizada, normas são fundamentais para viabilizar o


convívio em harmonia.[1] Sem pautas de conduta definidas, prevaleceriam a
desordem e a insegurança.

De um modo geral, cabe ao Estado fiscalizar o


cumprimento das normas. E uma de suas ferramentas é
a sanção, considerada instrumento de direcionamento
social.

A sanção tanto pode ter uma feição negativa (punir os


transgressores) como uma conotação positiva (premiar
comportamentos).[2] Ou seja, punir é apenas uma forma
de disciplinar, mas não a única.

Em termos simples, a sanção é a consequência negativa


(repressiva) ou positiva (premial) prevista pelo
ordenamento jurídico para estimular determinado comportamento.[3]

No decorrer do tempo, a lógica premial e o viés promocional ganharam relevância,


[4]
uma vez que a “técnica punitiva revelou-se muito simplista e inadequada” .

Nesse contexto, destacam-se as sanções premiais[5], que ajudam a formar um


sistema de incentivos voltado à promoção de comportamentos socialmente
desejáveis, recompensando condutas virtuosas[6], cujos efeitos se irradiam para o
futuro[7].

De fato, é preciso "resgatar a função da ordem jurídica, que é a de aperfeiçoar o


convívio social, estimulando comportamentos desejáveis e reprimindo os

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indesejados".[8]

Na prática, as sanções premiais propiciam a criação de um círculo retroalimentante


de positividade, funcionando como indutores de comportamentos, o que favorece
o cumprimento antecipado de metas e obrigações[9].

Basta pensar, por exemplo, na obrigação anual dos contribuintes de pagarem o


IPTU, com a possibilidade de se valerem de um desconto percentual, caso o
pagamento seja feito antes do vencimento. A sistemática estimula o contribuinte a
antecipar o pagamento em troca de um benefício individual (desconto percentual
— a sanção premial). Perceba-se que o indivíduo não é obrigado a adotar a
conduta indicada, mas, se o fizer, fará jus ao prêmio.

A lógica premial também se verifica nos contratos de aluguel (abono ou bônus de


pontualidade). Sobre o tema, um dos autores deste artigo já teve a oportunidade de
assinalar em voto exarado no REsp 1.424.814/SP:

A par das medidas diretas que atuam imediatamente no comportamento do


indivíduo (proibindo este, materialmente, de violar a norma ou compelindo-o a
agir segundo a norma), ganham relevância as medidas indiretas que influenciam
psicologicamente o indivíduo a atuar segundo a norma. Assim, o sistema jurídico
promocional, para o propósito de impedir um comportamento social indesejado,
não se limita a tornar essa conduta mais difícil ou desvantajosa, impondo
obstáculos e punições para o descumprimento da norma (técnica do
desencorajamento, por meio de sanções negativas). O ordenamento jurídico
promocional vai além, vai ao encontro do comportamento social desejado,
estimulando a observância da norma, seja por meio da facilitação de seu
cumprimento, seja por meio da concessão de benefícios, vantagens e prêmios
decorrentes da efetivação da conduta socialmente adequada prevista na norma
(técnica do encorajamento, por meio de sanções positivas).[10]

Na área penal, os acordos de colaboração premiada são terreno fértil para as


sanções premiais, especialmente no plano do direito material. Com alguma
frequência, controvérsias dessa natureza são dirimidas pelo Poder Judiciário.[11]

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Ainda na seara penal, vale mencionar a figura do whistleblower[12] – informante


do bem – trazida pela Lei nº 13.964/19 (pacote AntiCrime). Em casos de crime
contra a administração pública, o informante será recompensado em até 5% do
valor recuperado quando as informações por ele disponibilizadas facilitarem a
“recuperação de produto de crime” (art. 4º-C, § 3º, da Lei nº 13.608/18).

Na área tributária, cabe mencionar os arts. 138 e 160, parágrafo único, do Código
Tributário Nacional.

Em relação ao art. 138, que materializa o instituto da denúncia espontânea, o STJ


decidiu que a hipótese ocorre quando o contribuinte, após efetuar a declaração
parcial do débito tributário sujeito a lançamento por homologação, acompanhado
do respectivo pagamento integral, retifica-a antes de qualquer procedimento da
Administração Tributária, noticiando a existência de diferença a maior e efetuando
o pagamento concomitantemente. De acordo com o STJ, "a sanção premial
contida no instituto da denúncia espontânea exclui as penalidades pecuniárias"
[13], isto é, as multas decorrentes da impontualidade do contribuinte.

Já no campo do processo civil, muitos dispositivos contemplam benefícios para


estimular determinada conduta ou comportamento.

Por exemplo, o artigo 90, § 4º, do CPC estabelece que, se o réu reconhecer a
procedência do pedido e, simultaneamente, cumprir a obrigação, os honorários
serão reduzidos pela metade.

Quanto à ação monitória, se o réu efetuar o pagamento da dívida no prazo legal,


incluindo o percentual de 5% a título de honorários advocatícios (metade do
mínimo legal), ficará eximido das custas processuais (artigo 701, caput e § 1º, do
CPC).

Sob o prisma da execução, se o executado efetuar o pagamento integral do débito


no prazo de três dias, o valor dos honorários advocatícios será reduzido pela
metade (artigo 827, § 1º, do CPC[14]). Já no prazo dos embargos à execução, se o
executado reconhecer o crédito do exequente e comprovar o depósito de trinta por

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cento do valor da execução, acrescido de custas e honorários, poderá parcelar o


restante em até seis parcelas mensais, acrescidas de correção monetária e juros de
mora de um por cento ao mês, independentemente de concordância do exequente
(artigo 916 do CPC). A opção pelo parcelamento importa renúncia ao direito de
oferecer embargos (artigo 916, § 6º).

A lógica premial também pode ser explorada em convenções processuais


celebradas antes ou durante o processo (artigo 190 do CPC).

Por exemplo, é possível os litigantes acordarem que, se o devedor oferecer algum


imóvel idôneo como garantia antes de qualquer ato de constrição, o credor ficará
impedido de penhorar um bem específico indicado pelo devedor (artigos 833, I c/c
848, II, do CPC). Na fase de cumprimento de sentença, as partes também
poderiam convencionar o afastamento da proibição contida no artigo 916, § 7º, do
CPC (que veda expressamente o parcelamento nessa seara), se o devedor
apresentar — no prazo do artigo 523 do CPC, juntamente com o depósito de 30%
do débito —, um seguro-garantia do restante da dívida.

Por fim, discute-se atualmente[15] a possibilidade de o próprio juiz estipular


prêmios para estimular comportamentos (sanções premiais atípicas), à luz do
artigo 139, IV, do CPC ("medidas indutivas").[16] O tema ainda é novo, mas a
iniciativa, ao menos em perspectiva, afigura-se possível, desde que sejam
observados alguns requisitos (não afetação de direito alheio, impossibilidade de se
transferir externalidades ao Judiciário, necessidade de fundamentação adequada e
observância ao princípio da proporcionalidade).[17]

Nesse particular, cabe registrar que o Superior Tribunal de Justiça reconhece a


possibilidade de coexistência das sanções premiais com as sanções punitivas[18].
Assim, em uma mesma decisão judicial, o juiz pode tanto fixar uma sanção
premial atípica como uma sanção punitiva.

Por exemplo, suponha-se que, em ação de obrigação de fazer (no caso, duas
providências distintas), o juiz fixe na decisão dois prazos: dez dias para a primeira,
sob pena de multa diária de R$ 500, e 30 dias para a segunda, sob pena de multa

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diária de R$ 2.000. Adicionalmente, o juiz pode estabelecer que, se a primeira


obrigação for cumprida antes do prazo de dez dias, o "saldo" dos dias poderá ser
somado ao prazo anteriormente fixado para a segunda obrigação. Ou seja, se a
primeira obrigação for cumprida em cinco dias, a parte terá 35 dias para cumprir a
segunda obrigação. O juiz ainda poderia prever um escalonamento descrente das
astreintes para incrementar ainda mais o comando judicial.

Desse modo, o devedor pode melhor gerenciar suas obrigações, antecipando algo
que, para ele, é mais fácil e ganhando prazo adicional para cumprir a obrigação
mais "complexa", o que também beneficia o credor.

Um registro final: quando Rudolf von Ihering, ainda no século 19, vaticinou que
"um dia, os juristas irão ocupar-se do direito premial"[19], provavelmente não
poderia imaginar os múltiplos reflexos e os desdobramentos do estudo das sanções
premiais, que hoje se encontram infiltradas em nosso ordenamento jurídico e
podem contribuir para a racionalização da própria prestação jurisdicional.

[1] DURKHEIM, Émile. Les règles de la méthode sociologique. Paris:


Flammarion, 2010.

[2] BOBBIO, Norberto. Dalla struttura alla funzione – Nuovi studi di teoria del
diritto. Milano: Edizioni di Comunità, 1977, p. 87.

[3] BENEVIDES FILHO, Mauricio. O que é sanção? Revista da Faculdade de


Direito, Fortaleza, v. 34, n. 1, p. 355-373, jan./jun. 2013 Disponível em
http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/11850/1/2013_art_mbenevidesfilho.pdf.
Acesso em: 08.06.2022.

[4] MELO FILHO, Álvaro. Introdução ao Direito Premial. Tese submetida como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Jurídicas. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1975, p. 172-174.

[5] A expressão sanção premial já está positivada na a) lei (ex: capítulo IV da Lei
Complementar nº 29/2004, do Município de Mogi das Cruzes/SP); b) doutrina (ex:

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BENEVIDES FILHO, Mauricio. A sanção premial no direito. Brasília: Brasília


Jurídica, 1999; e c) jurisprudência (ex: STF, ADI 1.923/DF, Rel. Min. Ayres
Britto, Rel. para acórdão Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 17.12.2015). A
expressão também consta da seção “Vocabulário Jurídico”, no site do STF, com a
seguinte nota: “Usar para se referir à consequência jurídica positiva pelo
cumprimento de uma norma”. Disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarTesauro.asp?
txtPesquisaLivre=SAN%C3%87%C3%83O%20PREMIAL. Acesso em:
08.06.2022.

[6] “(...) “a sanção não é sempre e necessariamente um castigo. É mera


consequência jurídica que se desencadeia (incide) no caso de ser desobedecido o
mandamento principal da norma. É um preconceito que precisa ser dissipado – por
flagrantemente anticientífico –, a afirmação vulgar infelizmente repetida por
alguns juristas, no sentido de que a sanção é castigo. Pode ser, algumas vezes. Não
o é muitas vezes”. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 38.

[7] SILVA, Antônio Álvares da. Sanção e direito do trabalho. Belo Horizonte:
RTM, 2014, p. 16.

[8] CARPENA, Heloisa; ORTENBLAD, Renata. Ganha mais não leva. Por que o
vencido nas ações civis públicas não paga honorários sucumbenciais ao Ministério
Público? Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 280, jun./2018,
p. 347.

[9] CORDOVIL, Leonor Augusta Giovine. A sanção premial no direito


econômico. Revista do Centro Acadêmico Afonso Pena – Faculdade de Direito da
UFMG, nº 1, 2004, p. 158.

[10] REsp 1.424.814/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJe
10.10.2016.

[11] O STF já consignou, por exemplo, que fixação de sanções premiais não

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expressamente previstas na Lei nº 12.850/2013, mas aceitas de modo livre e


consciente pelo investigado, “não geram invalidade do acordo”. STF, AgRg no
Inquérito nº 4.405/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe
05.04.2018.

[12] Sobre o tema, ver GABRIEL, Anderson de Paiva. Whistleblower no Brasil: o


informante do bem. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-
analise/colunas/juiz-hermes/whistleblower-no-brasil-o-informante-do-bem-
20042020. Acesso em: 08.06.2022.

[13] REsp 1.149.022/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, DJe 24.06.10.

[14] “(...) em vez de buscar esse adimplemento voluntário pela imposição de uma
ameaça, como ocorre com a previsão da multa legal a que alude o art. 523, § 1º, do
CPC, o legislador optou por valer-se de um incentivo. É o exemplo do que se
convencionou chamar de sanção premial, assim entendida a técnica por meio da
qual se busca induzir o cumprimento voluntário de uma prestação mediante
incentivo”. DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula
Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil:
execução. v. 5. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 752.

[15] Juízes passam a conceder prêmios para incentivar o cumprimento de


decisões. Disponível em
https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/03/11/juizes-passam-a-conceder-
premios-para-incentivar-o-cumprimento-de-decisoes.ghtml. Acesso em:
08.06.2022.

[16] Vale destacar que a constitucionalidade do dispositivo está sendo questionada


junto ao STF. Na ADI nº 5.941/DF, proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT),
não se questiona a possibilidade de adoção de medidas indutivas, mas sim de
medidas coercitivas que possam violar direitos e garantias fundamentais previstos
na Constituição Federal, especialmente a apreensão de carteira nacional de
habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir, a apreensão de passaporte, a
proibição de participação em concurso público e a proibição de participação em

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licitação pública.

[17] MAZZOLA, Marcelo. Sanções premiais no processo civil: previsão legal,


estipulação convencional e proposta de sistematização (standards) para sua fixação
judicial. São Paulo: JusPodivm, 2022.

[18] “Desse modo, absolutamente possível a coexistência de sanções negativas,


consistentes em consequências gravosas e/ou punitivas oriundas do
descumprimento da obrigação, com a estipulação de meios aptos a facilitar o
adimplemento, ou mesmo de vantagens (sanções positivas) ao contratante que, ao
tempo e modo ajustado, cumpri com o seu dever pactuado”. STJ, REsp
1.579.321/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe
21.02.2018.

[19] “Um dia, os juristas irão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando,
pressionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria
premial dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio.
Delimitando-o com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prêmio,
mas, sobretudo, no interesse superior da coletividade. IHERING, Rudolf von. A
luta pelo direito. Trad. João de Vasconcelos. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 67.

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