REVISTA ZUM 10 - Questão de Pele

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 14

REVISTA ZUM 10

Questão de pele Lorna Roth


Os cartões Shirley e os padrões raciais que regem a indústria
visual.

Os cartões Shirley, produzidos pela Kodak a partir dos anos 1940, eram usados pelos laboratórios na padronização de
cores e tons de pele de impressões fotográficas. As Shirleys, como passaram a ser chamadas as mulheres que
apareciam nesses cartões, eram invariavelmente brancas, o que causava dificuldade nos ajustes dos retratos que
incluíam pessoas de tons de pele variados. Reproduzido com permissão da Eastman Kodak Company. Anos 1960.
Acervo James Ollinger
AS MÚLTIPLAS identidades visuais de Shirley, a “moça do balanceamento de
cores”, só chamaram minha atenção em 1995, depois de uma conversa com um
negociante de máquinas industriais na América do Norte. Ele reclamava de ter
comprado um laboratório de fotoprocessamento da Kodak que lhe causara
grande frustração. Independentemente da calibragem configurada para imprimir
as fotos, a reprodução de peles mais escuras apresentava uma coloração
indistinta, pálida, ou tão próxima do preto que só o branco dos olhos e dos dentes
exibia algum detalhe. Nas fotos em que diferentes tons de pele apareciam lado a
lado – como as fotos de formatura com vários estudantes –, o desafio era ainda
maior, pois os fotógrafos muitas vezes aumentavam a intensidade da luz e
superexpunham as pessoas mais escuras para capturar a maior definição possível
da pele. Isso também causava a superexposição das peles claras, tornando o
resultado constrangedor para o fotógrafo.

A frustração do meu amigo foi amplificada pelo fato de nenhuma das instruções
que acompanhavam o laboratório adquirido (incluindo o guia de dados da Kodak)
sequer mencionar que a diversidade de tons de pele talvez fosse um fator crítico
na hora de criar reproduções realistas de pessoas. Ele, assim como muitos que
trabalhavam com os laboratórios da Kodak, aprendeu a calibrar tons de pele na
base da tentativa e erro. A solução desse problema seria a melhor compreensão
dos aspectos materiais da emulsão fotográfica ou a melhoria dos padrões de
balanceamento de cores na impressão?

Um dos itens que meu amigo e outros donos de laboratório recebiam com a
documentação da Kodak destinada à impressão fotográfica era uma imagem que
se tornou conhecida entre técnicos da área como “cartão Shirley”. Esse cartão
reproduzia a imagem de uma mulher de pele clara, vestindo roupa de alto- -
contraste, contraposta a escalas de cor e de cinza. Em muitos cartões, lia-se a
palavra NORMAL. O propósito dos cartões Shirley era ajudar a determinar a
exposição, a densidade e a calibragem dos tons de pele das fotografias que seriam
impressas. É comum ter parâmetros de cor de pele que ajudem a configurar uma
máquina, mas será que a palavra “normal” deveria ser aplicada às múltiplas
Shirleys, que representam um conjunto restrito das várias tonalidades de pele
humana existentes?

O nome Shirley, aplicado a todos os cartões desse tipo ao longo de muitos anos,
parece ter derivado da primeira modelo estampada num cartão da Kodak, na
década de 1940. Provavelmente, era alguém que trabalhava em um dos muitos
centros de pesquisa da empresa na América do Norte, ou a esposa de algum
funcionário, a quem pediram que servisse de modelo. Para simplificar a
classificação, os criadores desse cartão de referência decidiram dar a todas as
mulheres estampadas o mesmo nome. Essas mulheres também tinham em
comum a pele clara, o anonimato, a aparência ocidental e o fato de serem
atraentes – muitas vezes, bem sexy.

Reproduzidos com permissão da Eastman Kodak Company. Anos 1950-1960


‹›

Shirley e suas companheiras


As Shirleys não eram um fenômeno isolado. As Moças das Cores (ou Color Girls)
da televisão e as China Girls do cinema (também conhecidas como “bonecas” ou
“cabeças de moças”), sempre de pele clara, determinaram por décadas o padrão
de balanceamento de cores. Diferentemente de suas irmãs fotográficas e
cinematográficas, as Moças das Cores eram mulheres de carne e osso presentes
nos sets dos estúdios de transmissão analógica do mundo todo para representar
as variações de textura e cor de pele de forma tridimensional desde o início da era
da tv em cores.

Segundo Jan Kasoff, ex-cinegrafista do programa Saturday Night Live, da NBC,


além do uso de escalas de cinza e de cartões de cores, eram vários os passos para
balancear a cor numa câmera de tv analógica. Ao final do longo processo, “um
bom engenheiro de vídeo poria uma Moça das Cores na frente das câmeras e a
manteria lá até que os cinegrafistas focalizassem e alinhassem seu tom de pele
para fazer o ajuste fino que calibraria e balancearia as câmeras. Essa Moça das
Cores era sempre branca”.

Por volta de 2003, quando o padrão de transmissão nos Estados Unidos se tornou
digital, as Moças das Cores se tornaram obsoletas e desapareceram dos estúdios.
O balanceamento das cores na câme ra digital hoje se vale de um equ ipamento
eletrônico mais sofisticado, de caixas de luz e de tabelas de escala de cinza que
mostram a latitude do escuro mais escuro ao claro mais claro, com todos os graus
de variação no espectro das cores.

Embora menos visíveis que um cartão Shirley, as China Girls eram igualmente
importantes no balanceamento de cores da cinematografia. Seu nome parece ter
relação com a cor da porcelana (china, em inglês), e não com a etnia asiática.
Essas mulheres, que aparecem rapidamente no início da maior parte dos fil mes
comerciais e documentários feitos entre o final da década de 1920 e o começo dos
anos 1990, estão mais próximas, em textura e dimensão, às Shirleys impressas
em papéis e negativos.

As imagens das Shirleys eram pouco conhecidas do público em geral, porque


permaneciam penduradas nas paredes do laboratório. Seus cartões eram exibidos
e manipulados apenas por técnicos, como ferramenta de esclarecimento e
referência. As Moças das Cores sempre haviam participado do processo de
configuração da câmera no estúdio; e o próprio auditório por certo as conhecia
bem. As China Girls continuam sendo usadas no cinema até hoje, de forma
limitada, mas vislumbrá-las exige do espectador um olhar atento à exata fração
de segundo em que elas desfilam pela tela.
As “China Girls” eram a versão cinematográfica dos cartões Shirley. Mulheres, em geral brancas, que apareciam no
início dos filmes para auxiliar o projecionista a calibrar cores e tons de pele. Reproduzido com permissão da Eastman
Kodak Company. Acervo Northwest Chicago Film Society

O padrão Shirley
No escuro dos laboratórios fotográficos, entre 1940 e o momento presente,
versões dessas imagens femininas icônicas apareceram pelo mundo todo, de
forma analógica ou digital. Congeladas no tempo e na pose, sua pele clara
continua a difundir um padrão normativo subliminar entre técnicos de
laboratório e o público em geral. As Shirleys atravessaram décadas e continentes,
definindo e balizando de maneira estreita as tonalidades de cor de pele nas
imagens fotográficas, e transmitindo uma mensagem social e psicológica sutil
sobre a dominância da pele branca e a posição das mulheres na indústria.
Representam, ademais, uma beleza e uma estética de gênero euro-ocidental que
correspondia, na época em que foram criadas, à noção popular masculina da
aparência feminina ideal.
Como ferramenta de medida preconcebida pela indústria para todas as pessoas,
independentemente da cor de pele na vida real, a popularidade do padrão branco -
claro levantou diferentes questões para os fotógrafos. Se as Shirleys seriam a
norma usada para calibrar todas as cores de pele, como os técnicos deveriam lidar
com imagens de pessoas cuja pele tendesse para o amarelo, o avermelhado ou o
castanho, para o marrom e o preto?

A mensagem de que a Shirley era a norma, e de que o “normal” era a pele branca,
atingiu o ápice de popularidade antes de o movimento pelos direitos civis nos
Estados Unidos ganhar força. Nos anos 1960, os técnicos dos laboratórios da
Kodak e os fotógrafos das comunidades afro-americanas, assim como
consumidores e espectadores dotados de olho crítico e percepção estética,
começaram a perceber intuitivamente a química da brancura embutida nos
produtos. Mas, como tantos acalentavam a crença ingênua de que o filme tinha
sido feito para produzir uma foto do real, uma imagem perfeita do retratado, a
maioria nem sequer considerava a possibilidade de que a química das emulsões
fotográficas pudesse ter sido influenciada por critérios culturais. A crença de que
a tecnologia é neutra era tão predominante que poucos questionariam a indústria
visual, a não ser que uma prova convincente viesse a justificar esse ceticismo.

Em 2014, depois que publiquei um artigo com os resultados da minha pesquisa


sobre os cartões Shirley, a fotógrafa afro-americana Syreeta McFadden declarou
ao site Buzzfeed que sempre se inquietara com a má qualidade das fotos de sua
família, mesmo quando um fotógrafo profissional era contratado para retratar
eventos especiais. No artigo “Ensinando a câmera a ver minha pele”, ela refletia
sobre suas dificuldades na infância e na vida adulta com as limitações impostas a
sua própria imagem pela emulsão do filme colorido. Há muito McFadden intuíra
a questão principal – as emulsões fotográficas da Kodak favoreciam peles mais
claras –, mas hesitou em torná-la pública por não ter comprovação suficiente,
algo que fosse além de sua experiência pessoal: “Por volta da década de 1990,
quando comecei a fazer fotos, detestava fotografar pele marrom com filme
colorido. A foto impressa não apresentava os fotografados com exatidão;
escurecia as sombras, estourava os sorrisos. Compreendi que parte disso tinha a
ver com a harmonização dos componentes básicos da produção da imagem
ligados aos equipamentos – a velocidade do filme, a abertura do diafragma e
aquele fantasma que todos perseguimos: a luz. As incoerências eram tão gritantes
que, por um tempo, pensei ser impossível fazer uma foto decente de mim mesma,
que me capturasse como sou. Comecei a me afastar de situações que envolvessem
fotos em grupo. E, claro, muitos de nós somos volúveis quanto ao que se considera
um bom retrato. Mas parecia que a tecnologia se unira contra mim. A única coisa
que eu sabia, embora não entendesse o motivo, era que, quanto mais claro você
fosse, tanto mais provável que a câmera – o filme – te reproduzisse
corretamente”.

Restava adaptar a tecnologia para mitigar o problema: “Contornamos as falhas


inerentes à emulsão fotográfica garantindo que nossos sujeitos se posicionassem
bem em relação à luz; investimos em lentes caras que permitissem uma variedade
maior de aberturas, para banhar nosso trabalho o máximo possível de luz;
compramos filmes profissionais rápidos e filmes especiais, com emulsões
desenvolvidas para fotos em ambientes internos, de luz fluorescente ou
tungstênio. Aceitamos conselhos ruins de instrutores brancos para passar
vaselina nos dentes e na pele, ou aplicar maquiagem fotossensível que mal
combinava com as nuances de nossos tons de pele”.

Os ajustes especiais melhoravam o resultado no caso dos profissionais; mas e os


consumidores não especializados, que usavam filme comum e máquinas básicas?
Como melhorar esses filmes e resultados? Que fatores críticos motivariam
fabricantes a ampliar a latitude embutida nas emulsões fotográficas?

Encarando a Kodak
A latitude fotográfica refere-se à diferença existente entre o claro mais claro e o
escuro mais escuro de uma foto, assim como à capacidade do filme de registrar
as pequenas diferenças no contínuo da cor entre esses dois extremos. Foi a
reprodução dessa gama completa de cores que preocupou as equipes técn icas de
desenvolvimento de produtos das empresas fabricantes de filmes.

As emulsões comuns da Kodak foram, de início, desenvolvidas para favorecer


tons de pele mais claros. Isso significa que as fórmulas químicas usadas na
fabricação dessas emulsões privilegiariam a refletividade dos tons de pele claros.

No entanto, mesmo ao entrevistar funcionários da Kodak e de diversas redes de


tv nos Estados Unidos, Japão, China, Austrália, Holanda e Canadá, ouvi repetidas
vezes argumentos científicos que afiançavam que o design dos filmes e das
câmeras de tv, seus processos de manufatura e seus usos baseavam -se em
decisões racionais e lógicas que não precisavam levar em conta sutilezas culturais
ou raciais. Porém, após um longo período de resistência, no fim da década de
1990 pessoas importantes na indústria começaram a admitir discretamente que
a introdução de refinamentos na química das emulsões e no design das câmeras
de fato se baseara em escolhas negociadas a portas fechadas e em laboratórios. O
momento crítico do reconhecimento mais aberto desse fato por parte da Kodak é
particularmente interessante.

Reproduzir tons de pele claros e escuros numa mesma imagem exigia habilidade do fotógrafo, mas esbarrava em
limites técnicos do filme e da cópia, o que demorou a ser enfrentado pela indústria. Alunos da escola Villa Maria,
Bronx, Nova York, 1983. Acervo John R. Foldi

Fotos de formatura que a Kodak fora contratada para fazer em Rochester, nos
anos 1950, apresentaram um problema: crianças de pele escura e de pele clara
em um mesmo fotograma ficavam com um aspecto terrível. Nas imagens
resultantes, as crianças de pele mais escura não apresentavam contornos faciais
visíveis nem exibiam quaisquer particularidades; as de pele clara sofriam de
superexposição. Contudo, quando se faziam fotos das crianças individualmente,
os resultados eram bem melhores, graças ao domínio de mecanismos
compensatórios por parte do fotógrafo. As reclamações de pais que exigiam dos
filmes maior latitude foram discutidas na época, mas os ajustes de cor
efetivamente levados a cabo pela Kodak consideraram dois outros problemas.

De acordo com executivos da empresa, em meados das décadas de 1960 e 1970,


duas das maiores contas profissionais da Kodak aceleraram a decisão de ampliar
a gama de marrons das emulsões fotográficas. Uma delas foi uma empresa de
chocolates, que reclamou por não obter, nas imagens dos anúncios, os tons
corretos de marrom para mostrar a diferença entre os chocolates amargo, meio
amargo e ao leite. A outra queixa veio de fabricantes de móveis, insatisfeitos
porque, nas imagens de seus anúncios, a tonalidade das manchas e veios das
madeiras não correspondia à realidade, o que atrapalhava a diferenciação dos
produtos. Tampouco o tipo de madeira podia ser identificado. A representação
dessas variações sutis era um desafio idêntico ao de reproduzir diferentes tons de
pele; mas a melhoria da latitude dos filmes estava sendo feita por outras razões.

Outro motivo da empresa para ampliar a latitude dos filmes foi o desejo de entrar
no mercado japonês, monopolizado pela Fuji, e em outros mercados globais.

Como consequência desse movimento, o laboratório de pesquisa da Kodak em


Rochester, dirigido por Richard Wien, criou duas novas emulsões fotográficas. A
primeira, utilizada nos filmes profissionais VeriColor III, surgiu no início dos
anos 1980 para alimentar o mercado de fotografias de casamento, uma vez que
melhorava o contraste entre os vestidos brancos e os smokings escuros, por
exemplo. Em 1997, Wien descreveu o novo Gold Max, filme de consumo popular
lançado naquela década, como sendo capaz de “fotografar os detalhes de um
cavalo preto com pouca luz”. Suponho que esse fosse o código da Kodak para
informar aos consumidores que se tratava do filme certo para fotografar
tonalidades de pele mais escuras. A empresa sabia da deficiência de seus filmes,
mas precisava encontrar as palavras certas para comercializar o novo produto
sem se submeter a constrangimento ou crítica.

As novas Shirleys
Desde meados da década de 1990, os cartões Shirley também foram pouco a
pouco se ajustando às mudanças graduais na tecnologia. Embora o nome Shirley
remeta à mulher que estampava os cartões de cor da década de 1940, sua
aparência começou a se modificar para incluir uma gama maior de tons de pele e
de características étnicas. Entre 1996 e 1997, a Kodak produziu dois cartões de
referência com mulheres negras, brancas e orientais (embora todas tivessem tez
bastante pálida), mas levou algum tempo até que eles começassem a circular,
provavelmente porque os laboratórios estavam acostumados com suas Shirleys
favoritas.

Na era dos pixels, cartões de referência digitais proliferaram, acrescentando


diversas tonalidades de pele às práticas de balanceamento de cores. Hoje, a
maioria dos laboratórios cria as próprias versões, adaptadas às necessidades de
cada estúdio. A Shirley tradicional juntou-se a outras mulheres, e os cartões
passaram a incluir uma variedade maior de cores, gêneros, além de crianças,
animais, objetos e fundos.

Nos anos 1990, com a queixa dos consumidores e o interesse por outros mercados, começaram a surgir os cartões de
referência com diferentes tons de pele. Reproduzido com permissão da Eastman Kodak Company

Ao longo dos anos, o universo televisivo também passou por mudanças técnicas
para dar conta da crescente diversidade racial. Com visão de futuro, no início dos
anos 1990, a Philips holandesa investiu numa equipe que incluía o experiente
designer de vídeo Jan van Rooy, o consultor de mídia Greg Pine e a empresa
japonesa Ikegami. A tarefa do grupo era enfrentar os problemas que as câmeras
precisariam resolver no futuro, quando ampliassem a participação no mercado
global. As dificuldades na televisão norte-americana parecem ter fornecido a base
de suas preocupações. Segundo eles, a atriz Whoopi Goldberg, de pele escura e
muito popular, demandava uma calibragem de cores muito diferente da
calibragem de Barbara Walters, conhecida entrevistadora de pele clara. Combiná-
las no mesmo quadro era uma missão impossível, e, por algum tempo, cada uma
delas tinha de ser filmada por uma câmera diferente, com um balanceamento de
cores próprio, e as imagens eram mescladas eletronicamente na ilha de edição.
Para resolver o problema, Rooy inventou um protótipo de câmera que continha
dois chips de memória com configurações e armazenamentos separados para
cada tom de pele.

A equipe desenvolveu um recurso adicional: cosméticos digitais que podiam ser


usados para modificar sulcos, rugas e manchas, em um trabalho comparável ao
que hoje se faz com o Photoshop.

A importância do design inteligente


Era de se supor que a entrada das câmeras digitais no mercado eliminaria
problemas semelhantes aos gerados pelo uso dos cartões Shirley. Não foi bem
assim.

Veja-se, por exemplo, a webcam da HP lançada em 2009, supostamente capaz de


detectar e rastrear rostos. Quando começou a ser testada por diferentes
consumidores, tornou-se óbvio que só detectava rostos de pele clara – a câmera
nem sequer respondia aos de pele mais escura.

Em 2010, a Coolpix S630, da Nikon, tampouco foi capaz de reconhecer


consumidores asiáticos; a cada vez que usavam o software detector de rostos,
eram obrigados a responder a uma pergunta que surgia na tela: “Alguém
piscou?”. Em 2015, o Google passou pelo constrangimento de ter de pedir
desculpas por seu aplicativo de classificação automática de fotos depois que dois
jovens de pele escura foram identificados como “gorilas”.

E ainda hoje há controvérsia em torno do Instagram, com usuários que acusam o


aplicativo de reforçar com seu menu de filtros a percepção disseminada de que a
brancura continua sendo a norma estética preferencial e dominante.

Em todos esses casos, o problema central não está tanto na limitação tecnológica,
mas sim na falta de percepção sobre quem serão os usuários dos produtos, e no
consequente reconhecimento da diversidade de tons de pele que precisa ser
embutida nos algoritmos que controlam o resultado final. Há uma óbvia
deficiência na escolha dos grupos usados para testar produtos. E o lançamento
desses produtos, sem testes adequados em um mercado global etnicamente
diverso, evidencia como seus fabricantes encaram as relações raciais. Há uma
questão moral aqui, assim como um problema explícito de custo e de marketing.

As tecnologias não são, por si só, racistas. São criadas por pessoas que
construíram uma infraestrutura com base em decisões econômicas e culturais. E
a trajetória da reprodução do tom da pele nas imagens digitais é apenas uma
continuação daquilo que começou com os cartões Shirley.

“Alguém piscou?” A era da fotografia digital continua a gerar situações constrangedoras, como a criada em 2010 por
esta câmera da Nikon, que tinha dificuldade em distinguir traços fisionômicos. Acervo Joz Wang

Então os desenvolvedores técnicos são racistas? Em vez de apontar uma


conspiração, prefiro imaginar que eles tinham um baixo nível de consciência das
consequências de suas práticas nas representações de raça. Quando tomaram
consciência das implicações de suas decisões na comunidade afro-americana, por
exemplo, estratégias foram desenvolvidas para superar as barreiras iniciais.

Na imagem analógica, esse movimento foi impulsionado por preocupações de


mercado. Na mediosfera digital, isso aconteceu com mais frequência à medida
que defensores dos movimentos de direitos civis se tornaram mais poderosos e
falantes. A grita pública dos consumidores é, agora, a força motriz mais comum
que acelera os avanços no controle de qualidade das reproduções de tom de pele.
Na maioria dos casos, os ajustes não partem dos próprios fabricantes.

A maneira como nossas tecnologias cotidianas e nossos produtos visuais


funcionam, o que eles promovem ou ignoram, tem sido determinada pelos
agentes culturais e financeiros que tomam as decisões de design e marketing.
Intermediários povoam os bastidores dos laboratórios e as salas de reunião das
empresas de tecnologia, e são eles que, com seus produtos, direcionam os padrões
culturais nos sistemas de representação visual dominantes.

Esses padrões, por sua vez, agem como instrumentos educacionais implícitos na
configuração de nosso mundo visual. Embutidos em nossa visão de mundo, esses
modelos são capazes de favorecer ou de inibir o desenvolvimento de um senso
comum antirracista que possa guiar nossa compreensão visual do que é a
diversidade em determinada sociedade.

É preciso exigir da indústria visual uma nova maneira de compreender a


equidade racial e cultural que não gire em torno de estatísticas, legislação e
acesso a instituições. Se inserirmos uma visão algorítmica de equidade que
abarque todo o espectro de tonalidades de pele nos vários aparelhos
tecnológicos, esse conjunto alternativo de padrões poderia desencadear
representações mais equânimes de sucesso, beleza e integração – embora nada
garanta um resultado positivo. Diversidade, afinal, não é sinônimo de poder. / //

Em 2015, o Google desculpou-se publicamente depois que o novo programa de classificação automática de fotos
identificou dois jovens negros como gorilas.
Traduzido do inglês por Sergio Tellaroli. Revisão técnica de João Musa.

Lorna Roth é socióloga e professora no departamento de comunicação da


Universidade de Concórdia, em Montreal. É autora de Something New in the
Air: The Story of First Peoples Television Broadcasting in Canada (McGill-
Queen’s University Press, 2005).

Você também pode gostar