NERY Joao MARANHAO Fo Eduardo Meinberg D
NERY Joao MARANHAO Fo Eduardo Meinberg D
NERY Joao MARANHAO Fo Eduardo Meinberg D
Abstract: João Walter Nery, self-declared transman, and Eduardo Meinberg de Albuquerque
Maranhão Filho, self-declared “in-between-genders”, analyze, in this paper, some of the
multiple discourses of Brazilian transmen (transsexual men) through narratives produced in
virtual environment (forums, Facebook groups, and dialogues exchanged by e-mails). This
cyberspace cartography has been constructed over analysis of the topics collected by
participant observation. The bibliographical review allowed complementing the study with
social and cultural impressions, as well as academic-scientific research concerning
transidentities and its spectrum of masculinities.
1
Graduado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professor universitário, psicoterapeuta e pesquisador em gênero, especializado em Sexologia pelo Instituto
Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE), ex-mestrando em Psicologia da Educação pela Universidade
Gama Filho (UGF). Depois da publicação de Viagem Solitária: memórias de um transexual trinta anos depois e
depoimentos na mídia, tornou-se referência nacional como ativista pelos direitos da causa LBGTTTI. Contato:
[email protected].
2
Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História pela Universidade
de Santa Catarina (UDESC), especialista em Marketing e Comunicação Social pela Fundação Cásper Líbero,
graduado em História pela USP. Contato: [email protected].
139
Meu pai me disse: meu filho tá muito cedo,
Eu tenho medo que você case tão moço.
Eu me casei e veja o resultado,
Tô atolado até o pescoço.
Ainda são escassas as pesquisas brasileiras que destacam trabalhos de campo no ciberespaço,
como os de Jungblut (2009, 2010a, 2010b, 2011, 2012), de Rifiotis (2012), de Pace e Giordan
(2012) e de Segata (2009a, 2009b, 2010, 2012a, 2012b). Sobre a circulação de pessoas trans
através da internet, destacam-se os trabalhos de Ávila e Grossi (2010), Amaral (2012), Amaral
e Toneli (2013) e Coacci (2013).
3
Os autores utilizarão, neste texto, o termo transhomem em substituição a outros sinônimos: homens trans,
transexuais masculinos e/ou FTMs (female to male). Serão abordados o uso deste termo e suas definições nas
considerações sobre masculinidades. Certamente, cada um destes termos não dá conta das múltiplas
autodeclarações sobre trânsitos de gêneros e devem ser vistas com fins didáticos e heurísticos, sob rasura
(MARANHÃO Fº, 2012a e 2012b).
140
Também são poucos os trabalhos que analisam as transvivências, ou experiências subjetivas
de transhomens. Ávila e Grossi (2010, p. 1) argumentam que:
Foram analisadas discussões em grupos como FTM Brasil, FTMS, Disforia de Gênero, MTF
& FTM, FTMachos, Empregos para trans, Homens Trans Héteros e ABHT – Associação
Brasileira de Homens Trans. Tal trabalho de etnografia digital foi complementado através de
conversas com integrantes desta rede social e referências bibliográficas.
As vozes acolhidas através de narrativas em fóruns fechados e mensagens privadas não foram
identificadas por seus nomes reais. Optou-se por manter o conteúdo das narrativas em seu
formato original, linguagem típica da comunicação via internet. A média de idade nos fóruns
de transhomens do Facebook varia de 16 a 40 anos. Após algumas considerações sobre
masculinidades e pessoas assignadas como mulheres no espectro da transidentidade masculina,
ou transmasculinidade. Os autores apresentam temas distintos, como as resistências dos
transmeninos, transfobia vivenciada pelos transadolescentes, o uso de sanitários, a
(in)visibilidade trans e questões relacionadas à documentação. Por fim, sem a intenção de
4
Ou através de termos similares que identificam o trânsito de gênero do feminino (socialmente
atribuído/designado na gestação ou no nascimento) ao masculino, de auto-identificação e auto-declaração.
141
finalizar o assunto, os pesquisadores trazem considerações inconclusivas sobre um tema
caracterizado pelo recente diálogo e troca de informação entre pessoas cujas subjetividades se
fortalecem através da criação de laços e construção de pertencimento.
Alguns relatos acerca de adequações de gênero do feminino para o masculino estão presentes
em mitos, como o de Tirésias e o de Santo Onofre da Capadócia, mas também em
experiências reais de coletivos específicos, como as mulheres-homens da Albânia 5 e os/as
nguiu do México6.
Autores como Henry Fielding (1746) comentaram sobre pessoas designadas como mulheres,
que se apresentavam socialmente como homens e se casavam com mulheres, denominando
tais pessoas como female husbands (CLAYTON, 2004, p. 152). Jack Halberstam, que também
se apresentou como Judith, seu nome de registro, usa o termo female husband para designar
Anne Lister, que não seria “uma travesti feminina” 7
(HALBERSTAM, 1998, p. 67). A
condição de “mulher no nascimento”, para muitas dessas pessoas, foi somente percebida após
a morte, como no caso de James Allen, em 1829, citado no artigo de Halberstam, ou do
instrumentista de jazz Billy Lee Tipton8 (1914-1989), retratado no livro O Trompete (KAY,
1998).
De acordo com Coll-Planas e Missé (2010), pessoas transexuais entendem que a não
correspondência entre sexo e gênero podem demandar modificação corporal mediante
cirurgias e hormonização. A definição de transidentidades, para a pesquisadora Simone Ávila9,
abrange diversos contextos em que “uma pessoa sente o desejo de adotar, temporariamente ou
5
Conheça as mulheres homem da Albânia. Disponível em: <http://www.hypeness.com.br/2012/12/conheca-as-
mulheres-homem-da-albania/>. Acesso em: 22 mar. 2013.
6
Nguiu é uma espécie de termo guarda-chuva utilizado pelo povo zapoteca, do sul do México, que identifica
pessoas assignadas como mulheres e autoidentificadas como homens. Muxe and Nguiu. Disponível em:
<http://www.qualiafolk.com/2011/12/08/muxe-and-nguiu>. Acesso em: 24 mar. 2013.
7
Ou “a female tranvestite”, conforme termo original.
8
Batizado como Joss Moody, de acordo com a narrativa de Kay.
9
Transidentidades. Disponível em: <http://soutranshomemedai.webnode.com/transidentidades>. Acesso em: 20
mar. 2013.
142
permanentemente, o comportamento e os atributos sociais de gênero (masculino ou feminino),
em contradição com o sexo genital”.
O termo transhomem é uma das muitas classificações dentro das transidentidades, sendo uma
das autodesignações adotadas por pessoas que “nasceram mulheres” 10, ou melhor, designadas
como tal a partir do nascimento ou ainda no período de gestação, no entanto, identificam-se
como homens. Além deste termo, são também utilizados: homens trans, FTMs 11 , homens
transexuais, transmen e transmasculinos. Os termos mais utilizados por ativistas são homem
trans ou FTMs. Tais autodefinições acabaram por convergir em uma aquarela de
masculinidades (ALMEIDA, 2012). Ainda acredita-se relevante mencionar que, entre as
discussões virtuais que possibilitaram esta pesquisa, os transhomens costumes tratar-se por
man, brother e véi.
10
Os autores farão o uso de aspas, neste trecho e em outros, com o objetivo de marcar o sentido irônico referente
a tais termos.
11
Do inglês female to male, que se traduz “de mulher para homem”).
12
Disponível em: <http://soutranshomemedai.webnode.com>. Acesso em: 20 abr. 2013.
143
Outro grupo é “formado por ‘homens’ que não optam por modificações corporais cirúrgicas
nem hormonais. Fazem uso de outros recursos culturais disponíveis para terem a aparência
próxima do gênero com o qual mais se afinam” e se dizem “satisfeitos e efetivamente
pertencentes ao gênero masculino”. Um terceiro coletivo é influenciado pelas “perspectivas
de ‘desnaturalização das identidades’, como as de Judith Butler e Beatriz Preciado”,
São, assim, pessoas que, para a medicina, ciências ‘psi’ e sociedade em geral, “nasceram
mulheres”, mas por se identificarem como homens, transformam-se através de uma adequação
corporal ao gênero declarado. Além das autodefinições elencadas, muitas destas pessoas tem
se identificado no Facebook, como menino, homem ou man. O termo trans quase não é usado.
144
Para alguns destes indivíduos, designar-se homens, meninos, guris, garotos ou men, significa
entender a transexualidade como um estado transitório, efêmero, que desembocará na
adequação ao gênero de identificação.
Algumas destas pessoas se identificam ora como homens, ora como transhomens e alguns não
querem rótulos – lembramos que as autoidentificações são múltiplas e contingenciais. As
diferenças devem ser entendidas a partir da diversidade de experiências pessoais em relação a
marcadores sociais distintos: classe, orientação sexual, status acadêmico e profissional,
geração, limitações físicas (pensadas aqui como sinônimo de “deficiências”), origem, etnia,
raça, moradia, preferências culturais, religião, dentre outros. Tal perspectiva auxilia numa
desuniversalização, desessencialização, desmedicalização e despatologização das
transidentidades.
13
A expressão entre gêneros refere-se a pessoas que vivenciam experiências de trânsito e/ou bricolagens
identitárias de gênero. Dentre estas pessoas, destacam-se as que não se identificam com o gênero e/ou o sexo
atribuídos no nascimento ou a partir de biotecnologias (como ecogramas e ultrassons) que “identificam sexo” – e
sinalizam para o gênero. Tal conceito procura identificar algumas das diversas situações de deslocamentos
identitários individuais e coletivos relacionados a gênero. Tais pessoas – como todas as outras –, tem atribuídas a
elas, na gestação e/ou no nascimento, não só um sexo (detectado especialmente por conta da presença de vagina
ou pênis) como um gênero (feminino/masculino). Por terem um gênero atribuído/designado na gestação e/ou
nascimento que não as contemplam (feminino/masculino) e se identificarem com o gênero distinto, vivenciam
experiências entre gêneros. Estão entre o gênero de atribuição e aquele o qual se identificam e/ou se expressam.
Há também as pessoas que se encontram entre o gênero de designação e os dois outros gêneros, com os quais se
expressam e/ou identificam (como ocorre com pessoas que se identificam bigêneras ou pangêneras). A expressão
entre gêneros pode acolher, igualmente, pessoas que se percebem entre o gênero que lhes foi assignado e
nenhum outro gênero de identificação e/ou expressão – como é o caso dos agêneros (MARANHÃO Fº, 2012b).
145
as peregrinações de gênero dos transhomens – termo preferido por Nery e Maranhão Fº neste
texto para designar estes sujeitos específicos.
Ser transhomem, muitas vezes, tem a prerrogativa de desafiar normas de gênero. A resistência
à generificação sexista das pessoas e dos objetos é uma reação intrínseca a um poder
coercitivo, manifestado através do binarismo compulsório, que tenta imprimir um modelo
hegemônico na sociedade, onde corpo, subjetividade, desejo e práticas sexuais sejam lineares
e “coerentes” entre si.
14
Lembramos que em documentos, em sua vasta maioria, escolhe-se por definir o “sexo biológico” dos
indivíduos em detrimento do gênero.
15
Os caracteres sexuais secundários são modificações do corpo que ocorrem devido ao funcionamento do
146
“Destruí minhas Barbies e bonecas Eliana” é uma das narrativas sobre roupas e brinquedos,
provenientes dos fóruns de discussão. Muitos concordaram no fato de terem possuído objetos
considerados femininos, como bonecas – geralmente desnudadas, riscadas, com os seios
amputados e os cabelos cortados. Outros as tratavam como namoradas, beijando-as e usando-
as para reforçar suas próprias identidades, figuras masculinas em construção. Os transmeninos
parecem traduzir, de forma lúdica, através da brincadeira e sua relação com objetos, aspectos
de sua subjetividade.
Alguns transmeninos foram obrigados por suas mães ao uso de faixas nos cabelos compridos
e mencionaram que colavam chiclete ou tentavam pegar piolho na escola para forçarem seus
cortes de cabelo (Leo gostava da faixa, porque o Tai do Digimon também usava uma). Poucos
conseguiram ganhar bonecos, como afirmou também Leo: “Brincava sempre com o Ken kkk,
tive a sandália e o óculos do Seninha e usava uma calça do Tigor T”. A maioria teve tamanco
da Carla Perez, camiseta da Lilica Ripilica, botas brancas ou rosas da Xuxa – motivos de
grande constrangimento e descontentamento.
Narrativas como estas parecem demonstrar que, numa determinada aprendizagem do que é
“ser um menino”, brincar (ou cuidar) de bonecas não é permitido – visto que tal atividade é
associada desde a infância com características femininas (especialmente maternais). Nessa
espécie de pedagogia do gênero masculino, talvez brincar de bonecas, só fosse permitido “só
quando adulto e se forem infláveis”.
brincar de faz de conta pq dai eu podia ser um cara nas brincadeiras, tipo power
rangers. Inventar e desenhava as coisas, que eu falava que ia construir kkkk mas no
fim só ficava no papel mesmo... Gostava mt de legos tb, coisa de montar... brincar
de espião na rua da casa da minha vó, foi uma infância bem aproveitada até, apesar
do sofrimento... Eu sofria mais na escola mesmo, que eu não me soltava, era
sistema reprodutor.
147
MUDO, não falava com ninguém. No jardim eu falava por sinais com a professora
kkkk.
Muitos se tornam quase mudos, com medo do efeito da voz mais aguda do que o desejado. A
preocupação também permanente com o disfarce das mamas ou com a gesticulação, nem
sempre “máscula o suficiente” gera muita ansiedade, introspecção e sentimentos persecutórios.
16
Seguindo a escolha linguística para o gênero masculino, o mesmo acontece no feminino, quando
transmulheres são sinônimo de mulheres trans, MTF (male to female), transwomen ou transfeminina.
17
Homofobia, lesbofobia, bifobia, transfobia e intersexofobia são formas de violência específicas relacionadas à
população LGBT.
18
Isto por aparentarem ter corpos masculinos.
148
A questão do nome social permeia diversos espaços sociais dos transhomens, como a procura
por um trabalho, por exemplo. Segundo Luis, “as empresas sempre dão um ‘jeitinho’ de dizer
não quando te veem, e se te admitem muitos não querem colocar o nome social no crachá!”.
Na hora de preencher um currículo, não se sabe qual nome causará menos problemas.
Transhomens com escolaridade de nível superior, que conseguem empregos valorizados e/ou
de sucesso, geralmente, permanecem com o nome de registro para não perder o cargo. Um
deles, mestre em Antropologia, não aguentando o “enxotamento” da universidade, preferiu
trabalhar como autônomo, lavando pets.
Nos hospitais, inclusive os credenciados pelo SUS, transhomens não são respeitados com seu
nome social conforme estabelece a legislação. Poucos frequentam ginecologistas ou
psicoterapeutas particulares, porque estes não estão preparados/as para recebê-los. Impedidos
de realizar doação de sangue, alguns sofrem injúria, como Vitor, ao ser insultado por um
atendente como “lésbica escrota”.
Raros são os que têm apoio familiar. Em grande maioria, são considerados “lésbicas doentes
ou safadas”, que envergonham os familiares e a vizinhança, como é o caso de Samuel:
Meu pai sente vergonha de andar comigo na rua, insiste em corrigir as pessoas
quando me tratam no masculino e mesmo assim, estou fazendo questão de não tirar
a barba. De vez em quando ele joga na minha cara que não entende uma pessoa
querer ser homem e arrumar um ‘viado’ pra namorar (se referindo à minha
namorada q é MTF). Ainda bem q moro sozinho.
19
Nem todas são necessariamente transhomens.
149
A família é, muitas vezes, o espaço de relações sociais mais fortemente reprodutor de
sofrimento, sobretudo se muito religiosa, utilizando-se do pecado e da culpa para condená-los.
Citamos, entre as atrocidades cometidas, o “estupro corretivo” 20, inclusive com participação
de familiares, como forma de “tratamento”. Os que ainda não desenvolveram recursos
suficientes para abandonar tal contexto de violência veem-se obrigados a suportá-lo, como
Kaio:
Eu desisto, não aguento mais levar porrada (física e mental) nem preciso abrir a
boca pra mãe enfiar a mão na minha cara, basta me ver vestido com roupas
masculinas e binder21. Ontem tentou me enforcar, porque meu pai a acusou de não
ter me criado direito. Vou voltar com o meu nome de registro, me vestir como uma
garota e afogar meu próprio ser. Meu único desejo ultimamente tem sido a morte,
mas me recuso a morrer como mulher, isto não aceito de forma alguma.
E também Silas:
20
é uma prática criminosa a qual um ou mais homens estupram mulheres lésbicas ou que parecem ser,
aparentemente com o objetivo de corrigir suas orientações sexuais.
21
Binders são coletes para a faixa torácica, servindo para esconder as mamas.
22
Pessoas cisgêneras identificam-se com características de gênero atribuídas ao seu sexo biológico.
150
ter uma aparência de um macho alpha com um pinto no meio das pernas e para a maioria, um ftm
continua sendo visto como uma mulher".
Por incrível que parece o meio LGB e até o T também é o mais preconceituoso. As
pessoas heteros são mais tranquilo. Pelo menos comigo foi assim. Não tive e não
tenho problemas com homem cis e até os gays que conheço também não tive
muito, mas as lésbicas... PQP... É tenso!!! Mas, como não dou muita confiança, eu
corto logo.
A resistência é experiência que pode ser contínua. Halberstam argumenta sobre a menor
visibilidade de transhomens. Para o mesmo, transgênero
pode ser uma mulher que deseja se tornar homem, mas ninguém faz muito caso
disso e ela se torna invisível. Quando um homem quer se tornar uma mulher, há
ideia de que é fácil, porque a mulher já é artificial, então basta se vestir, usar
maquiagem e salto. A mulher que quer se tornar um homem enfrenta mais
problemas porque há tanto poder social investido na categoria homem que não
acreditamos que isso possa acontecer. Acreditamos que masculinidade é uma
prerrogativa de corpos biológicos e um lugar de privilegio social. Então a
sociedade se interessa menos por mulheres que se tornam homens que por homens
que se tornam mulheres, que são considerados fabulosos, expressivos
culturalmente. O homem transgênero, por outro lado, é alguém que está invadindo
o território da masculinidade, que é protegido por homens, para os homens. Então
eles passam despercebidos. (HALBERSTAM, 2012, p. 9-10).
151
Ainda acerca da invisibilidade, Almeida entende que grande parte do corpo social ignora a
condição dos transhomens grande em parte devido ao
Almeida acrescenta outra motivação para a menor visibilidade: o resultado das adequações
corporais de transhomens. Com a mamoplastia masculinizadora (mastectomia bilateral) e o
uso de testosterona, os “homens trans, ao contrário do que ocorre com as mulheres trans,
tornam-se bastante próximos fisicamente às expectativas sociais de como deve parecer um
homem, o que contribui para invisibilizá-los”. Relata que “por esse motivo, não sei se homens
trans desejam comunidades reais e muito menos formar grupos políticos, ou se a necessidade
de encontrar pares se basta nesses encontros pontuais e/ou virtuais de socialização”, pois o
desejo mais forte pode ser o “de sumir na multidão, o ‘direito à indiferença’”. (ALMEIDA,
2012, p. 519).
No endereço eletrônico da ABHT23, uma pergunta se faz claramente visível: “onde estão os
homens trans no Brasil?”. Ao acessar o link, uma série de indicações de blogs e canais da
internet sobre o tema, tanto no Brasil como no exterior possibilitará uma variedade de
caminhos para compreender essas subjetividades. Os blogs indicados são o de João Nery, o
23
Associação Brasileira de Homens Trans. Disponível em: <http://homenstrans.blogspot.com.br>. Acesso em:
20 dez. 2012.
152
Vídeos Transgêneros, o Transexualidade FTM, o Becoming Bernardo, o Trans-Boy, Meu
Segundo Nascimento e TechnoHombre. Os canais sugeridos são Power Rangers FTM, FTM
Brasil, Kaito Felipe, Leonardo Peçanha, Bruno Oliveira, Jack A. Macalister e Jack Akai.
Para Marquinho, “se a gnt não der a cara pra bater e se mostrar socialmente, como vamos ter
nossos direitos assegurados na sociedade?”. É graças à persistência de alguns transhomens
que políticas públicas têm sido implementadas, reavaliadas ou melhoradas. Terry anunciou:
Zoby comenta que a maior visibilidade tem refletido nos hospitais que realizam tratamento
pelo SUS: “alguns, como o HUB (Hospital Universitário de Brasília), já estão criando grupos
exclusivamente masculinos” (ZOBY, 2011, p. 4). Uma das principais reivindicações
(hormonização a partir dos 16 anos) foi conseguida no SUS em São Paulo, assim como o uso
153
de bloqueadores hormonais no início da adolescência. Os transhomens de outros estados
reivindicam esta melhoria também em suas localidades.
5. Documentação
Uma forte tendência entre transhomens é o isolamento social, sobretudo no próprio quarto,
como forma de se preservar do sofrimento em contato com as relações sociais. Pensamos ser
esta uma das razões pelas quais as discussões no ciberespaço têm proporcionado o diálogo e a
troca de experiências, bem como a criação de laços e redes de apoio mútuo. Alguns buscam
informações no Facebook sobre como adequarem o nome e o sexo em seus documentos,
como Mathias: “Prezados, algum de vocês é (ou conhece) um homem trans que conseguiu
24
A Lei Maria da Penha é uma lei de gênero e baseia-se no princípio da isonomia. Prevê também, no âmbito
familiar, a proteção de homens agredidos ou ameaçados por mulheres.
154
alterar o nome e o sexo em decisão de 1º grau em Santa Catarina? Por favor, entrem em
contato comigo. Obrigado”.
Enquanto em alguns países, como a Inglaterra, o critério “sexo” já foi abolido dos passaportes,
no Brasil é aprovado o novo modelo de documento de identificação, constando como
obrigatória a definição sexual, o que ocasionou revolta e indignação a Cris: “E pra quem não
mudou judicialmente o sexo, vai passar mais constrangimento ainda? Só vou andar com a
carteira de motorista que tá num plástico velho e nem dá pra ler”.
Figura 1
Vitório relata: “não paro de pensar nisso, vai ser horrível. Só vou mudar meu RG quando não
der mais pra usar em lugar nenhum”. Joaquim acrescenta: “ai...e o Brasil, ou engatinha ou
escorrega na maionese 4 vezes prá trás, precisamos fazer pressão política para retirar o campo
‘sexo’ desta nova carteira, como também do passaporte”.
155
Sinto-me enganado mais uma vez pelo Governo Federal. Anunciaram no dia 29 de
Janeiro que o Cartão SUS teria o nome social de pessoas trans. Olhem o cartão
novo e me digam se também não se sentem enganados? Além de ter em letra maior
o nome de registro tem também bem visível o sexo. Sabem quando aqueles
funcionários preconceituosos, que estão na base, vão chamar a gente pelo nome
social? NUNCAAAAAAAA!
O contexto atual aponta para diversas lacunas na asseguração de direitos de pessoas trans em
relação às cisgêneras, daí a importância de articulação política e estratégia de um movimento
social preocupado com estas demandas específicas.
Algumas considerações
Como visto, desde crianças muitos transhomens procuram transgredir / transcender as normas
de gênero que a sociedade impõe a seu respeito, os definindo como mulheres, em contradição
ao modo como se percebem e se sentem.
25
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1059446 .pdf.>. Acesso em: 15 mar. 2013.
156
emergente no Brasil, tem procurado se articular para resistir a medidas governamentais que
são fonte de constrangimento a estas pessoas.
Referências
ALMEIDA, Guilherme. “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades?. In:
BENTO, Berenice; PELUCIO, Larissa (orgs.). Dossiê Vivências Trans: Desafios,
Dissidências e Conformações. Estudos Feministas, Florianópolis, n. 20, v. 2, 2012.
AMARAL, Marília dos Santos. Essa boneca tem manual: práticas de si, discursos e
legitimidades na experiência de travestis iniciantes. Dissertação de mestrado em Psicologia.
Orientação de Maria Juracy Filgueiras Toneli. Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.
AMARAL, Marília dos Santos; TONELI, Maria Juracy Filgueiras. Entre Novatas, Cdzinhas
& Transformers: políticas de (re)existência na experiência de travestis iniciantes. In:
MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (org.). História Agora, dossiê (In)
Visibilidade Trans 1, São Paulo, v.1, n. 15, p. 162-184, 2013.
157
ANTUNES, Pedro Paulo Sammarco. Envelhecendo como travesti no Brasil. História Agora,
dossiê Gênero em Movimento. São Paulo, v.2, n. 12, p. 237-267, 2011.
ÁVILA, Simone Nunes; GROSSI, Miriam Pillar. Maria, Maria João, João: reflexões sobre a
transexperiência masculina. Anais do Fazendo Gênero 9 – Diásporas, diversidades,
deslocamentos, 2010, Florianópolis. Disponível em
<http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278255349_ARQUIVO_Maria,MariaJ
oao,Joao040721010.pdf>. Acesso em 20 mar. 2013.
BARBOSA, Bruno Cesar. O Brasil “travesti”: percursos e percalços das noções de travesti e
transexual. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (org.). História Agora,
dossiê (In) Visibilidade Trans 1, São Paulo, v.1, n. 15, p. 5-33, 2013.
158
COLL-PLANAS, Gerard. Introducción. In: MISSÉ, Miquel; COLL-PLANAS (Org.). El
género desordenado – críticas en torno a la patologización de la transexualidad. Barcelona-
Madrid: EGALES, 2010.
COSTA, Jurandir Freire. A Face e o Verso: estudos sobre o homoerotismo II. São Paulo:
Escuta, 1995.
DUQUE, Tiago. “Eu quero ir para a Europa”: reflexões sobre uma jovem travesti traficada. In:
MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (org.). História Agora, dossiê Gênero
em Movimento. São Paulo, v.2, n. 12, p. 179-197, 2011.
______. Reflexões teóricas, políticas e metodológicas sobre um morrer, virar e nascer travesti
na adolescência. In: BENTO, Berenice; PELUCIO, Larissa (orgs.). Dossiê Vivências Trans:
Desafios, Dissidências e Conformações. Estudos Feministas, Florianópolis, n. 20, v. 2, p. 489-
500, 2012.
______. Iglesias electrónicas: el caso de Brasil. Relaciones - Revista al tema del hombre, v.
318, p. 2-3, 2010a.
______. ADAMI, V. H. S.. Nova Era & ciberespaço: ensaio prospectivo sobre suas afinidades
eletivas a partir de um estudo de caso. Civitas (Porto Alegre), v. 9, p. 243-262, 2009.
__________. “Falaram que Deus ia me matar, mas eu não acreditei”: intolerância religiosa e
de gênero no relato de uma travesti profissional do sexo e cantora evangélica. História Agora,
dossiê Gênero em Movimento, São Paulo, n. 12, p. 198-216, 2011a.
______. “Jesus me ama no dark room e quando faço programa”: narrativas de um reverendo e
três irmãos evangélicos acerca da flexibilização do discurso religioso sobre sexualidade na
ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana). Polis e Psique, Edição especial, Porto Alegre, v.
1, n. 3, p. 221-253, 2011b.
NERY, João W. Erro de Pessoa: João ou Joana? São Paulo: Record, 1984.
______. Viagem Solitária – Memórias de um transexual trinta anos depois. São Paulo: Editora
Leya, 2011.
POL-DROIT, Roger. Michel Foucault: entrevistas (entrevista “Eu sou um pirotécnico”). São
Paulo: Graal, 2006, p. 67-100.
160
SEGATA, Jean; AGOSTINI, M.; OLIVEIRA, G.; KORB, A.. Admirável Mundo Novo? A
Cibercultura e os Apocalíticos e Apologéticos do Ciberespaço. Caminhos (Rio do Sul), v. 2, p.
17-27, 2012.
______. E, Quem não é Fake? Sobre Sujeitos no Orkut. Portas (São Paulo), v. 3, p. 18-35,
2010.
ZAMUR, Azimute. A testosterona mudou meu estar por aqui. In: MARANHÃO Fº, Eduardo
Meinberg de Albuquerque (org.). História Agora, dossiê (In) Visibilidade Trans 1, São Paulo,
v.1, n. 15, p. 286-290, 2013.
Referências no ciberespaço
CLAYTON, SUSAN (1999). L’habit ferait-il le mari ? L’exemple d’un female husband, James
Allen (1787-1829). Disponível em <http://clio.revues.org/254>. Acesso: 22 mar. 2013.
161
FTMS (grupo fechado). Disponível em
http://www.facebook.com/groups/180619182049731/?fref=ts. Acesso: 22 mar. 2013.
162