4-O Diálogo Inter-Religioso Na Perspectiva Do Terceiro Milênio
4-O Diálogo Inter-Religioso Na Perspectiva Do Terceiro Milênio
4-O Diálogo Inter-Religioso Na Perspectiva Do Terceiro Milênio
O diálogo inter-religioso na
perspectiva do terceiro milênio*
Faustino Teixeira**
RESUMO
O diálogo inter-religioso apresenta-se como um dos gran-
des desafios para o terceiro milênio. Num tempo marca-
do pelo recrudescimento da violência e da intolerância, o
diálogo significa uma possibilidade alternativa. Não há
outro caminho possível para a paz no mundo senão medi-
ante o entendimento mútuo e a abertura para a alteridade.
O presente artigo busca traduzir o significado do diálogo
no contexto da globalização e suas condições de exercício.
Palavras-chave: Diálogo; Religião; Globalização; Plura-
lismo; Alteridade; Comunicação.
1
Um dos traços des- que tocam em questões fundamentais de identidade (HUN-
ses conflitos de linha
de fratura é a “lim- TINGTON, 1997, p. 320).1
peza étnica”: “Esses Em todos os continentes podemos testemunhar a presença
conflitos tendem a
ser violentos e cruéis, do acirramento da violência, que se afigura hoje como uma das
com ambos os lados mais difíceis e dramáticas questões depois do fim da guerra fria
perpetuando massa-
cres, atos de terroris- e do confronto entre Oriente e Ocidente. Os conflitos étnicos,
mo, estupros e tortu- nacionais ou sociais, estão em toda parte: na Ásia, na África, no
ras” (HUNTING-
TON, 1997, p. 321). Oriente Médio e na Europa. O confronto da tripla identidade
Com base em infor- religiosa na ex-Iugoslávia constitui um dos exemplos recentes
mações do New York
Times (1993), Hun- mais dramáticos e revoltantes. Ao drama do êxodo de cerca de
tington sinaliza a um milhão de kosovares de origem albanesa nesse último confli-
presença no mundo
de 59 conflitos étni- to, soma-se a “esquecida” e triste realidade dos 3,5 milhões de
cos presentes em 48 refugiados no continente africano. No documento publicado pelo
lugares distintos,
sendo 31 deles entre comitê redacional do Conselho do Parlamento Mundial das Reli-
grupos de civiliza- giões, reunido em Chicago (USA), em setembro de 1993, se dizia:
ções diferentes
(HUNTINGTON,
1997, p. 327). Com particular inquietação constatamos que em não poucos luga-
res deste mundo, responsáveis e seguidores de religiões não cessam
de fomentar agressões, fanatismos, ódio e hostilidade xenófoba,
quando não inspiram e legitimam conflitos violentos e sangrentos.
A religião vem muitas vezes usada apenas para fins de poder políti-
co, bem como para legitimar a guerra. (KÜNG; KUSCHEL, 1995,
p. 18; ver ainda KUSCHEL & BEUKEN, 1997, p. 5; HOUTART,
1997, p. 7-17; TRACY & HÄRING, 1998, p. 8-9)
6
Conforme dados es- convivialidade. O amor implica gratuidade. Trata-se de um “anseio
tatísticos recentes, o
número de muçulma- biológico que nos faz aceitar a presença do outro ao nosso lado
nos alcançaria hoje a sem razão, nos devolve à socialização e muda a referência de nos-
cifra de 1.060 bilhão
de fiéis, ultrapassan- sas racionalizações. A aceitação do outro sem exigências é o inimi-
do, assim, ao número
de católicos: 1.042
go da tirania e do abuso, porque abre um espaço para a coopera-
bilhão. Logo a seguir ção. O amor é inimigo da apropriação” (MATURANA, 1997, p. 186).
viriam os hinduístas,
com 751 milhões e Não pode haver diálogo inter-religioso sem essa gratuita aceita-
os protestantes, com ção do outro, de seu envolvimento no espaço aberto do amor.
505 milhões (Cf. LE-
NOIR; MASQUE-
LIER, 1997, p. 2.422).
Quanto ao campo re-
ligioso brasileiro, no- A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA SENSIBILIDADE MACROECUMÊNICA
vas pesquisas na área
das ciências sociais
têm-nos revelado que O novo horizonte mundial não dá margens para saudosismos
a Igreja católica “está de outrora, que animavam o ímpeto de predomínio ou conquista
perdendo o seu cará-
ter de definidor he- do cristianismo e da Igreja católica. O quadro atual suscita mais
gemônico da verdade
e da identidade insti-
realismo. O cristianismo não se expandiu por todo o planeta e
tucional no campo as religiões mundiais dão prova de grande vitalidade. Dados esta-
religioso brasileiro”
(SANCHIS apud tísticos recentes apontam um grande crescimento do Islamismo
ANTONIAZZI et al., em nível mundial6 e, curiosamente, assiste-se hoje a uma inver-
1994, p. 36; ver tam-
bém: CARNEIRO; são do antigo mapa missionário. De uma anterior expansão colo-
SOARES, apud BIN- nial direcionada do Norte para o Sul, verifica-se hoje um novo
GEMER, 1992,
p. 14-21). O cresci- dinamismo que move as tradições religiosas do Oriente em dire-
mento dos evangéli- ção ao mundo ocidental (GEFFRÉ, 1998, p. 56-57).
cos pentecostais tem
sido um dos mais im- Assim como se mostra problemática uma perspectiva voltada
pressionantes fenô- para o predomínio de uma tradição religiosa sobre as outras, re-
menos religiosos do
Brasil. Em pesquisa vela-se igualmente frágil e utópica a perspectiva que trabalha
realizada no Grande
Rio em 1994, envol-
compactuando com o mito de uma “religião mundial”, que apa-
vendo 1.332 respos- garia todas as diferenças e comprometeria a originalidade irre-
tas, chegou-se a con-
clusões surpreenden- dutível de cada tradição religiosa. O que hoje se impõe como da-
tes: cerca de 70% do de maior plausibilidade é a perspectiva de um ecumenismo pla-
dos evangélicos do
Grande Rio não nas- netário, que retoma o sentido mesmo do termo “Ecumene”, ou
ceram nem foram seja, “toda a terra habitada”. Trata-se de assumir uma nova cons-
criados em lares evan-
gélicos. A adesão re- ciência macroecumênica, da profunda unidade de toda a família
ligiosa se deu de for- humana, capaz de pensar e trabalhar uma perspectiva singular
ma voluntária, rom-
pendo-se com a reli- de entrelaçamento global, de mútuo enriquecimento e coopera-
gião dos pais. Cerca ção entre as culturas e religiões em favor da afirmação de vida
de 250 mil indivíduos
tornaram-se evangéli- no mundo.
cos nessa região entre
os anos 1992-1994,
A proposta macroecumênica e do diálogo inter-religioso en-
ou seja, uma média de contra dificuldades em determinados setores tanto da intelectuali-
80 mil por ano (Cf.
FERNANDES et al., dade como das igrejas. Por razões distintas não se consegue vis-
1998, p. 140). lumbrar o seu valor singular. Para alguns, esse diálogo não passa
9
(PONTIFÍCIO... dade peculiar, na medida em que os parceiros nele envolvidos
1991) Essa definição
foi tomada de um do- pertencem a tradições religiosas distintas. O diálogo inter-reli-
cumento anterior do gioso não pode ser confundido com uma mera relação de coe-
então SECRETARIA-
DO... (1984, p. 387); xistência, simbiose ou confrontação de identidades distintas. Diz
que se tornou conhe- respeito ao “conjunto das relações inter-religiosas, positivas e
cido como documen-
to sobre o Diálogo e construtivas, com pessoas e comunidades de outros credos para
Missão – a citação um conhecimento mútuo e um recíproco enriquecimento”.9 O
refere-se ao n. 3).
Outra referência para diálogo inter-religioso implica, portanto, uma atitude de abertu-
esse mesmo docu- ra somada a uma capacidade de escuta do outro. Deve, porém,
mento: SECRETA-
RIADO... (2001). ser acompanhado de um aprofundamento da própria fé. Sua gran-
Neste trabalho, esses de riqueza está na partilha recíproca dos patrimônios espirituais,
dois documentos se-
rão mencionados res- únicos e irrevogáveis.10
pectivamente como Na Igreja católica, uma nova atitude dialogal foi se afirman-
Diálogo e Anúncio e
Diálogo e Missão. do a partir da encíclica Ecclesiam suam, publicada em 1964,
por ocasião do pontificado de Paulo VI, e ganhou foro de cida-
10
Em singular refle-
xão, Ana Maria Zins- dania no Concílio Vaticano II (1962-1965). A partir de então,
ly CALMON (1998) aprofunda-se o empenho da Igreja em favor do diálogo, por fide-
trabalha os três prin-
cípios que regem o lidade à própria fé (Diálogo e Missão, n. 22). A decisão dialogal
diálogo inter-religio- na Igreja tem suas raízes teológicas bem definidas: “nasce da ini-
so: o princípio da
igualdade, da dife- ciativa de Deus que entra em diálogo com a humanidade, e do
rença e da comu- exemplo de Jesus Cristo cuja vida, morte e ressurreição deram
nhão, respectivamen-
te ligados às três di- ao diálogo a sua última expressão” (Diálogo e Anúncio, n. 53).
mensões da dialética Embora possa ser exercido sob uma multiplicidade de formas, o
inter-religiosa: di-
mensão ética, teoló- diálogo é, antes de tudo, um espírito, uma atitude, um estilo de
gica e mística. ação que deve permear todas as nossas atividades. Ele “implica
atenção, respeito e acolhimento para com o outro, a quem se re-
conhece espaço para a sua identidade pessoal, para as suas ex-
pressões, os seus valores” (Diálogo e Missão, n. 29). Não se po-
de compreender a missão evangelizadora da Igreja deslocada de
um espírito dialogal. Seria contrariar não somente as exigências
de humanidade mas igualmente as indicações do Evangelho.11
11
Esse mesmo docu- Não pode haver diálogo se não há respeito ao outro, ao mis-
mento sublinha: “Tal
diálogo é a norma e o tério de sua consciência. O diálogo sincero supõe a aceitação do
estilo necessários de dado da diferença, do respeito à liberdade de consciência e reli-
toda a missão cristã e
de cada uma de suas gião. Um importante documento do Concílio Vaticano II reite-
partes, quer se trate rou a cidadania da liberdade religiosa ao afirmar que “cada qual
das simples presença
e testemunho, ou do tem o dever e por conseguinte o direito de procurar a verdade em
serviço, ou do pró- matéria religiosa, a fim de chegar por meios adequados a formar
prio anúncio direto”
(Diálogo e Missão n. prudentemente juízos retos e verdadeiros de consciência” (VIER,
29; ver também: Diá- 1968, p. 602; DH n. 3). A fidelidade ao espírito do diálogo exige
logo e Anúncio, n. 9).
de cada um de nós respeitar a presença de verdadeira liberdade
AS FORMAS DE DIÁLOGO
20
Um dos pressupos- respectivos patrimônios religiosos” (Diálogo e Missão, n. 33).
tos necessários para
o diálogo, apontado Esse talvez seja o diálogo mais difícil, em que se dá propriamen-
pelo documento Diá- te o confronto das crenças singulares e respectivas experiências
logo e Anúncio (n.
14), é a justa e corre- espirituais mais íntimas; ele pressupõe uma certa relativização
ta avaliação teológica das próprias crenças, a disponibilidade de colocar-se em dis-
das tradições religio-
sas. Infelizmente, is- cussão e deixar-se transformar pelo encontro. Importantes e sig-
so nem sempre ocor- nificativos grupos de discussão inter-religiosos têm hoje se for-
re. Em nível do diálo-
go de intercâmbios mado no mundo inteiro para o aprofundamento dessas ques-
teológicos, esse cui- tões teológicas.20
dado e atenção de-
vem ser redobrados. Em um nível mais profundo, encontra-se o “diálogo da expe-
O papa João Paulo II riência religiosa”. Trata-se do diálogo silencioso da oração e da
tem manifestado em
vários momentos, so- contemplação. Nesse nível, dá-se o encontro de pessoas profun-
bretudo, em nível dos damente enraizadas nas suas específicas tradições religiosas para
gestos, uma grande
sensibilidade dialo- viver e compartilhar as suas experiências de oração, contempla-
gal. Sua participação ção e fé, bem como a forma de envolvimento dessas experiênci-
no encontro de Assis,
em 1986, talvez seja as com a vida concreta. Nesse diálogo, procura-se comungar as
dos exemplos mais diversas expressões e caminhos da busca do sentido fundamen-
bonitos. Porém, em
seu livro de entrevis- tal e do mistério absoluto. Os participantes nele envolvidos “não
tas, publicado em se detêm diante das diferenças”, pois estão animados por um
1994, perdeu uma
grande oportunidade propósito mais decisivo, o de promover e preservar os valores e
para reiterar esse es- ideais espirituais mais sublimes do ser humano (Diálogo e Anún-
pírito de abertura.
Talvez em razão de cio, n. 35). Nesse nível de diálogo, ocorre uma “comunhão em
sua assessoria, ao fa- profundidade”, para utilizar a expressão de Thomas Merton. Uma
lar sobre o budismo,
incorreu em impreci- comunhão que não se reduz a uma simples troca de conceitos
são e mesmo injusti- ou idéias, mas que acontece “acima do nível das palavras”, favo-
ça na avaliação dessa
tradição religiosa. recendo uma autêntica e inusitada experiência espiritual (MER-
Basta conhecer um TON, 1978, p. 246-248).
pouco mais de perto
a tradição budista Comentando sobre essas formas de diálogo, com base na ex-
para verificar que o periência envolvendo as tradições cristã e budista, Dalai Lama
nirvana não pode ser
gratuitamente identi- reconheceu a presença de uma “enorme convergência e um po-
ficado com um “esta- tencial para o enriquecimento mútuo”. Ressaltou, em particu-
do de perfeita indife-
rença em relação ao lar, as áreas da ética e da prática espiritual: as práticas da com-
mundo” (JOÃO paixão, da tolerância, do amor e da meditação. Reconheceu que
PAULO II, 1994,
p. 92). Como subli- esse diálogo “pode ir muito longe e alcançar um nível profundo
nham especialistas na de entendimento”. Sublinhou ainda que no domínio da metafí-
área do budismo, o
nirvana “é exatamen- sica o entendimento ainda é problemático, dadas as diferenças
te o oposto da indife- fundamentais existentes. Isso, entretanto, não o impede de ad-
rença em relação ao
mundo, é compaixão mitir que mediante o diálogo seja possível transcender essas di-
e amor infinito pela ferenças e reconhecer uma base comum para o entendimento
totalidade dos seres”
(REVEL; RICARD, mútuo (DALAI LAMA, 1997, p. 100).21
1998, p. 151). Igual-
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