Ética, Religião e Política

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ÉTICA, RELIGIÃO E POLÍTICA

ÉTICA, RELIGIÃO E POLÍTICA

Alberto Antoniazzi*

O
tema é, evidentemente, muito amplo. na antiga Iugoslávia ou no Afeganistão, em Israel e
Era necessário escolher uma abordagem Palestina, no Irã ou na Argélia, na Irlanda, ou até
particular, limitada. Escolhi uma abor- em Ruanda e Burundi...
dagem empírica, uma análise de fatos, tomada co- Existe outra hipótese, não muito consoladora,
mo ponto de partida para provocar reflexões e atribuída a Hunter. Ele pensa que os conflitos não
debates.1 serão principalmente entre culturas e religiões
diferentes, mas preferencialmente no interior de
Religião: ameaça à paz? cada cultura, entre diversas visões do mundo e da
Vou começar relembrando a hipótese (ou pro- autoridade religiosa ou política...3 Desses conflitos
fecia?) de Samuel P. Huntington, formulada em também poderíamos apresentar muitos exemplos
1993, num artigo cujo título era: “Choque de ci- atuais, tanto no islamismo ou judaísmo, como no
vilizações?”2 Ele prevê que a principal fonte de cristianismo católico, evangélico ou ortodoxo.
conflitos no século XXI não estará nem na ideolo- De qualquer forma, não há dúvida de que –
gia, nem na economia, mas no confronto entre cul- contrariamente às previsões dos anos ‘60 – a re-
turas, particularmente “entre a civilização ociden- ligião reencontrou uma inesperada força de atua-
tal e as civilizações islâmicas e asiáticas, em primei- ção política. Essa atuação, porém, não vai necessa-
ro lugar a chinesa”. É claro que, nesses conflitos, a riamente no sentido do diálogo pacífico e da recon-
religião estará fortemente envolvida, como já foi e ciliação, mas parece ter contribuído para tornar
é instrumentalizada nos conflitos atuais, sejam eles certos conflitos mais radicais e mais violentos.

* Doutor em Filosofia. Professor e assessor da Reitoria na PUC•Minas. Coordenador do Curso de Teologia do Seminário da
Arquidiocese de Belo Horizonte.
1
Esse texto foi apresentado inicialmente no seminário internacional sobre “Ética, sociedade e política no contexto latino-
americano”, promovido pela Fundação Konrad Adenauer e pela Fundação João Pinheiro em Belo Horizonte, nos dias 28 e 29
de outubro de 1996.
2
Huntington é diretor do Instituto de estudos estratégicos de Harvard. O artigo foi publicado na revista Foreign Affairs e
retomado recentemente em Asia news 1996, 3. A tese foi discutida no colóquio internacional promovido pela Universidade de
Florença (Itália) e por outras instituições em 26 e 27 de abril de 1996. Cf. Il Regno-attualità, 10/1996, p. 279-281, de onde
tiro as principais informações.
3
Cf. a exposição de Marc Luyckx (Bruxelas) no colóquio de Florença (Il Regno-attualità, 10/1996, p. 280).

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Certamente não foi sempre assim. Pode-se ci- 1) uma religião que enfatize a tradição no con-
tar, como exemplo, a atuação dos partidos cristãos texto de uma sociedade moderna, racionali-
(em grande parte católicos) que, após a II Guerra zada ou secularizada, tende a se transformar
Mundial, contribuíram para reconstruir a Europa numa moral social ou numa “religião civil”;
e lhe devolver a paz.4 é o caso, já muito estudado, dos Estados
As circunstâncias históricas eram outras. A Unidos; neste caso, não há conflito direto
ameaça do comunismo, visto então pela maioria com a democracia, mas pode estabelecer-se
dos cristãos europeus como o maior perigo para a um conformismo político-religioso com efei-
democracia e a liberdade, pode ter contribuído tos pouco ou nada democráticos;
para criar o que seria o núcleo da União Européia. 2) uma religião que enfatize a tradição no con-
Mas não há dúvida de que Adenauer, Schuman e texto de uma sociedade onde a moderniza-
De Gasperi souberam encontrar na inspiração ção não é auto-sustentada, mas é o objetivo
cristã uma motivação importante, se não decisiva, de uma política voluntarista, pode ser instru-
do seu projeto político. mento de mobilização política, como aconte-
ceu no Irã nos anos 80, transformando-se
Religião x modernidade: alternativas em movimento messiânico;
Uma abordagem histórica do tema nos levaria 3) uma religião que apele para um princípio
demasiadamente longe. Podemos então conside- transcendente mantém relações positivas com
rar, em seu lugar, a tentativa de sistematização das a democracia, nas sociedades modernas auto-
relações religião/modernidade feita pelo sociólogo sustentadas, incentivando o individualismo
Alain Touraine.5 religioso e trazendo geralmente um elemento
Desenvolvendo uma proposta de Max Weber, de defesa dos desprotegidos e das vítimas da
Touraine encontra quatro “formas elementares” modernização;
de encontro entre religião e modernidade. Do lado 4) uma religião que apele para a transcendência
da modernidade, distingue dois processos possí- contribui positivamente para a democracia
veis: 1) o processo de racionalização e seculariza- nas sociedades dependentes (e que buscam
ção, que se dá por um processo “objetivo”, auto- a modernização através de uma mobilização
sustentado, de evolução da sociedade; e 2) o pro- voluntarista), através de movimentos neoco-
cesso de modernização de uma sociedade operado munitários que se opõem ao poder autoritá-
sob a liderança de um movimento político (e ideo- rio e lutam pela libertação.
lógico, religioso, etc.), através de uma mobilização Touraine reconhece que, ultimamente, os mo-
da vontade dos agentes sociais. Do lado da religião, vimentos religiosos ditos “integristas”, que procu-
a atitude dominante também pode ser distinta: ou ram unir poder espiritual e temporal, e portanto re-
1) valorização da tradição; ou 2) valorização da ligião e política, são os que tiveram maior repercus-
transcendência e, portanto, da distinção entre es- são e eficácia. Julga, porém, que tal atuação políti-
piritual e temporal. ca se explica menos pela natureza da religião do
Da diversa conjunção desses quatro fatores re- que pelas lutas nacionais ou nacionalistas em que
sultam quatro variantes fundamentais: estão envolvidos os povos em questão.

4
O tema foi analisado recentemente pelo prof. E. Pace na “International Summer School on Religions in Europe” (cf. Il Regno-
attualità, 16/96, p. 464-465). Para uma análise mais crítica da atuação dos partidos democrata-cristãos após 1945, cf.: Karl-
Egon LÖNNE, Politischer Katholizismus im 19. und 20. Jahrhundert, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1986 (tr.it.: Il
Cattolicesimo politico nel XIX e XX secolo. Bologna, Il Mulino, 1991, 356p.)
5
Cf. Alain TOURAINE. O que é a democracia? Petrópolis: Vozes, 1996, 286p.; cf. especialmente p. 233-236 (ed. original:
Qu’est-ce que la démocratie? Paris, Fayard, 1994).

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O sociólogo francês discute também o caso do trou na atual sociedade “global” “um campo fértil
cristianismo, lembrando diferentes atitudes histó- para a renovação da [sua] influência pública”.8
ricas (a favor ou contra o autoritarismo, a favor ou Sobre quais bases é possível fazer previsões – como
contra a democracia).6 Entre os casos recentes, fazem Huntington e Hunter – sobre o rumo que as
Touraine cita a Polônia, onde a Igreja nem sempre religiões poderão tomar?
foi à frente das lutas democráticas, e o da América Peter F. Beyer apresenta algumas considera-
Latina, onde movimentos populares de inspiração ções interessantes para a busca de uma resposta. A
religiosa lutaram mais eficazmente contra as dita- tese dele se baseia sobre a análise da sociedade mo-
duras militares do que as classes médias instruí- derna de Niklas Luhmann. Não é o caso de retomar
das.7 aqui essa análise. Baste recordar que Luhmann sa-
lienta, na sociedade moderna, a diferenciação fun-
Perspectivas de futuro: conservadores cional dos subsistemas (econômico, político, cien-
ou progressistas? tífico, educacional, jurídico, religioso, artístico...)
As análises de Touraine, bem como a simples que compõem a sociedade. A existência de uma
observação dos fatos nos últimos anos, deixam pluralidade de subsistemas (que na sociedade tradi-
claro que as relações entre religião e política não cional, ao contrário, estavam integrados e indife-
são imutáveis, nem uniformes. Em cada conjuntu- renciados) traz como conseqüência que todo sub-
ra, diante de novos contextos, cada religião é es- sistema se relaciona com a sociedade em termos de
timulada a assumir uma atitude. Depende – pode- função e se relaciona com os outros subsistemas
mos nisso concordar com Touraine – de os “atores em termos de desempenho. Assim, tomando como
sociais” tomarem uma atitude e assumirem, face à exemplo o subsistema que aqui nos interessa, a re-
política, uma postura ou outra, em particular uma ligião, ela se relaciona com a sociedade em termos
postura ética e democrática, ou uma postura mais de uma função propriamente religiosa, enquanto
voltada para a defesa de interesses particulares, pode se relacionar com vários outros subsistemas
sejam eles religiosos, étnicos, nacionais ou outros em termos de desempenho (ou seja, concretamen-
ainda. te, suprindo as falhas da política, da economia, da
É possível definir melhor quais alternativas se educação, etc. e agindo, nesses campos, de forma
apresentam atualmente às religiões com relação à econômica, política, educativa, etc.).
sua “presença pública”? Há um crescente consen- Prosseguindo sua análise, Beyer encontra duas
so de que, contrariamente às previsões de muitos formas principais de orientar a religião na moder-
sociólogos nos anos 60, que acreditavam que no na sociedade global: a conservadora e a liberal9
mundo ocidental a religião se tornaria cada vez (que, no Brasil, seria melhor traduzir por progres-
mais uma realidade “privatizada”, problema de in- sista). As duas orientações se diferenciam tanto em
teresse (ou menos) dos indivíduos, a religião encon- termos de função quanto de desempenho. Ambas,

6
Sobre o assunto, escrevi algumas notas: Alberto ANTONIAZZI. Igreja e Democracia – enfoque histórico, em: CNBB (org.),
Sociedade, Igreja e Democracia. São Paulo, Loyola, 1989, p. 97-112.
7
Uma interessante documentação sobre o empenho da Igreja Católica pela democracia nas últimas décadas, em vários con-
tinentes, foi recolhida por Jean-Yves CALVEZ e Henri TINCQ no livro: L’Église pour la démocratie. Paris: Centurion, 1992,
222p.
8
Cf. Peter F. BEYER. “A privatização e a influência pública da religião na sociedade global”. In: FEATHERSTONE, Mike (Org.).
Cultura global. Nacionalismo, Globalização e Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 395-419, aqui p. 395 (ed. original:
Global Culture. London, Sage Publ., 1990). BEYER retomou o mesmo assunto mais amplamente no livro Religion and Glo-
balization. London, Sage Publ., 1994.
9
“Liberal” aqui, creio, deve ser tomado no sentido americano, em oposição a “conservador”, logo como equivalente a “progres-
sista” (ou, pelo menos, reformista). A tradução brasileira do estudo de Beyer (ed. Vozes), sobre a qual baseei minhas citações,
não está isenta de alguns graves equívocos, como quando a “Nova Direita Religiosa” dos Estados Unidos foi confundida com
o “Novo Direito Religioso”! (cf. op. cit., p. 414-415).

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diante do fato inegável da “privatização” da reli- determinado) os benefícios da modernidade.


gião, devem se preocupar em “administrar” a reli- Naturalmente, as duas orientações encontram
giosidade individual, sempre mais diferenciada ou suas dificuldades e nada garante de forma absoluta
fragmentada. Os conservadores acentuam, mais o seu êxito. Para Beyer, a opção progressista pare-
que os progressistas, o compromisso “holístico” ce – a longo prazo – mais em sintonia com a evo-
que a religião exige do indivíduo e solicitam sua so- lução da sociedade moderna (se ela conseguir evo-
lidariedade com a comunidade. Mas ambas procu- luir, resolvendo satisfatoriamente seus problemas).
ram manter uma presença da religião no espaço A opção conservadora seria – a curto prazo e so-
público. E aqui são mais nítidas as diferenças. bretudo nas sociedades dependentes – aquela com
A orientação conservadora privilegia a função mais chances de êxito. O importante da tese de
(portanto, o aspecto religioso) e dela dá uma de- Beyer, parece-me, é mostrar que ambas as orien-
finição mais tradicional e mais clara. Quanto ao tações religiosas são respostas à modernidade e à
desempenho, assume as características de uma globalização. A resposta conservadora não é mera
instrumentalização do político ao religioso (e vice- recusa ou reação à modernidade. “A opção conser-
versa): a religião deve ser traduzida em leis; a moral vadora (a reafirmação da tradição apesar da mo-
tradicional do grupo cultural deve ser preservada dernidade), longe de ser meramente um retrocesso
rigidamente e, já que isto é impossível numa soci- correlacionado com estruturas sociais ultrapassa-
edade global e pluralista, a tendência é restringir das, é, na realidade, a única que está tornando a re-
esse controle a um território determinado, onde ligião visível no mundo de hoje”.10 É um esforço de
predomina a referida cultura; enfim, a religião ten- separar modernidade e ocidentalização (nos paí-
ta novamente integrar aspectos (família, educação, ses do Terceiro Mundo) ou de dar novo vigor à
ciência...) que a modernidade diferenciou, afir- América (nos Estados Unidos) e à sua “missão” ou
mando assim o primado da função religiosa sobre destino de grande nação. Em todo caso, é expres-
as outras funções sociais. são da vontade de realizar o que a modernidade
A orientação progressista privilegia o desempe- econômica e política prometeu, mas não conse-
nho (e, portanto, a utilidade social da religião, não guiu.
sua finalidade específica). Da função religiosa ten-
de a dar uma definição “ecumênica”, que se con- Pode haver ética política sem democracia?
cilia com a definição das outras religiões, com o Está bastante claro que a opção religiosa aqui
resultado de ter dificuldades a manter a sua própria definida como “conservadora” não se concilia com
tradição e mesmo a se definir claramente. Quanto a democracia. Seja qual for a definição de demo-
ao desempenho, ele assume as características de cracia que adotarmos,11 ela sempre implicará iguais
uma ação social que procura agir economicamente direitos para todas as pessoas diante da lei e da so-
no campo econômico, politicamente no campo po- ciedade, sem discriminações religiosas, étnicas ou
lítico, cientificamente no campo científico, respei- culturais.
tando a autonomia dos diversos subsistemas, mas Na linguagem de Touraine, “a democracia não
ao mesmo tempo se apresenta como uma ação re- surge do Estado de direito, mas do apelo a princí-
ligiosamente motivada, voltada para garantir a to- pios éticos – liberdade, justiça – em nome da maio-
das as pessoas (não a um grupo cultural ou étnico ria sem poder e contra os interesses dominantes.

10
P. F. BEYER, op. cit., p. 412. Sobre os recentes movimentos fundamentalistas (não só islâmicos, mas judaicos, cristãos e ou-
tros...), procurando mostrar as profundas razões religiosas deste fenômeno, cf. por exemplo: Natale A. TERRIN. Il sacro off
limits. L’esperienza religiosa e il suo travaglio. Bologna, EDB, 1995, cap. 2, p. 37-60: Il fondamentalismo; Antônio Flávio
PIERUCCI, “Fundamentalismo e integrismo: os nomes e a coisa”, Revista USP, n. 13, 1992, p. 144-156.
11
Cf. Alain TOURAINE. O que é a Democracia?, citado acima na nota 4; Giovanni SARTORI, Democrazia. Cosa é. Milano,
Rizzoli, 1993, 338p.

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Enquanto um grupo dominante procura dissimu- dos direitos dos indivíduos contra todo possível
lar as relações sociais atrás de categorias instru- arbítrio, não há dúvida que na democracia tal
mentais (...), os grupos dominados, pelo contrário, requisito assume uma relevância toda especial.
substituem a definição econômica de sua própria Jacques Maritain, com respeito a isso, definiu a
situação, que implica sua subordinação, por uma democracia como “o único caminho para con-
definição ética: falam em nome da justiça, liberda- seguir uma racionalização moral da políti-
de, igualdade ou solidariedade”.12 ca”.16 ,17
Na linguagem de nossos filósofos, “a democra-
cia é aquela forma de viver em que o princípio fun- A estreita relação entre ética e democracia tem
damental é o discurso, em que as interações dos ho- como fundamento o fato de que o agir só pode ser
mens entre si ocorrem sob uma normatividade éti- autenticamente ético quando pressupõe o reco-
ca, que faz emergir o homem na dignidade de sua li- nhecimento mútuo dos sujeitos (i.e, das pessoas
berdade”.13 “A democracia se revela, então, como humanas): cada um reconhece o outro como por-
uma forma de organizar a vida que radica no direito tador dos mesmos direitos. Não é exagerado dizer
fundamental do ser humano, fonte de todos os ou- que a democracia é a expressão da ética no nível da
tros direitos, a ‘liberdade comunicativa’, pois nela política.
se revela o homem como ser autônomo, capaz de A afirmação pode parecer estranha, em nosso
autodeterminação e de reconhecimento no seio de contexto atual, porque na realidade poucos são os
um processo de argumentação, onde todas as suas que acreditam numa ética universal. A opinião pre-
pretensões se submetem a um processo de avalia- dominante é a do relativismo ético. Do pluralismo
ção”.14 Por isso, “qualquer intento de efetivação de político, expressão genuína de democracia, foi de-
uma democracia real coloca em primeiro plano as duzido um pluralismo ético, interpretado depois
exigências éticas da ação política. É nesse plano que como coexistência de éticas diferentes e mesmo in-
irá decidir-se, afinal, o êxito da experiência demo- compatíveis. Em apoio a essa tese vêm tanto os filó-
crática e, com ele, o destino da liberdade nas so- sofos pós-modernos, que anunciam o fim das
ciedades contemporâneas, vem a ser o próprio des- “grandes narrativas” e da metafísica, a fragmenta-
tino do homem político, como ser dotado de uma ção da razão, quanto os antropólogos, que conside-
essencial dignidade”.15 ram as diversas culturas todas igualmente válidas e
Podemos ouvir mais uma opinião nesse senti- autônomas.
do. Escrevendo sobre “Ética e política”, um ma- Em suma, a mentalidade hoje predominante
ritainiano afirma: inclina-se para “a defesa incondicional da multi-
plicidade infinita das éticas. Parte-se do fato, em-
“A democracia é o sistema político que mais do piricamente incontestável, da variação ilimitada
que qualquer outro permite às instâncias éticas das normas éticas de acordo com as culturas, et-
se encontrarem com as exigências da política. nias, raças, sexos e idades para a negação de qual-
Se um requisito indispensável de tal encontro quer princípio universal que pudesse ser ponto de
consiste na limitação do poder, como garantia referência para o teste de validade desta pluralida-

12
Cf. A. TOURAINE, op. cit., p. 37.
13
Cf. Manfredo Araújo de OLIVEIRA. Ética e práxis histórica. São Paulo: Ática, 1995, cap. 7, Pragmática transcendental e
democracia, p. 187.
14
Ibidem, p. 187.
15
Cf. Henrique C. de Lima VAZ s. j. Democracia e dignidade humana. In: Síntese: Nova fase, n. 44 (1988), p. 22 (citado por
Manfredo A. de OLIVEIRA, op. cit., p. 188).
16
Jacques MARITAIN. L’uomo e lo Stato. Milano: Vita e Pensiero, 1975, p. 69 (ed. original: 1951).
17
Antonio DA RE. Etica e Politica. In: E. BERTI, G.CAMPANINI. Dizionario delle idee politiche. Roma: AVE, 1993.

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de histórica de padrões de comportamento. Para a “Frente às inumeráveis e graves ameaças contra


mentalidade vigente no mundo pluralista em que a vida, presentes no mundo contemporâneo,
estamos inseridos é, simplesmente, impossível a poder-se-ia ficar como que dominado por um
existência de normas e princípios éticos univer- sentido de impotência insuperável: jamais o
sais”.18 bem poderá ter força para vencer o mal!”.20
Mas esse relativismo ético, apesar de ampla-
mente difundido, é intrinsecamente contraditório. O juízo extremamente negativo sobre o mundo
Pois, “ao afirmar que não existe nenhuma razão contemporâneo, e em particular sobre as socieda-
universalíssima, estamos proferindo uma proposi- des ocidentais de matriz cristã, vem como conse-
ção que se destrói a si mesma, já que ela refuta a si qüência de uma análise em que essa Encíclica não
mesma, ou seja, ela vale de si própria e se desdiz. Ela se limita a constatar “o eclipse do valor da vida” (n.
tem a mesma característica lógica de uma proposi- 10-17), mas aponta suas causas numa “noção per-
ção que afirma que não há verdade e, na medida em versa de liberdade” (n. 18-20) e no “eclipse do sen-
que é proferida, levanta a pretensão de ser verdadei- tido de Deus e do homem” (n. 21-24). O Papa
ra....”.19 aponta aqui como causa principal das ameaças à
Com isso não afirmamos que a ética, ou a con- vida humana o relativismo moral “que reina incon-
vivência democrática, se constroem apenas a partir testado” (n. 20).
de princípios universais, universalmente válidos. O Já na encíclica “Veritatis Splendor” (6 de agos-
universal é só um ponto de partida: ele deverá se to de 1993), o papa João Paulo II tinha denunciado:
expressar no particular, no concreto, na história. A
ação humana sempre terá essa dupla raiz e sempre “A descristianização que pesa sobre povos e co-
nascerá da tensão universal x particular. munidades inteiras, outrora ricas de fé e de vida
cristã, comporta não só a perda da fé ou de qual-
A democracia ameaça a religião? quer modo a sua ineficácia na vida, mas tam-
Podemos assim abordar um último aspecto, bém, e necessariamente, um declínio ou um
antes das conclusões. Entre as religiões, escolhe- obscurecimento do sentido moral e isto, quer
mos a Igreja Católica para exemplificar o temor pela disposição da consciência da originalidade
que as religiões têm de que a democracia vire re- da moral evangélica, quer pelo eclipse dos pró-
lativismo moral, de que o pluralismo moderno se prios princípios e valores éticos fundamentais.
torne negação da verdade e, afinal, fonte de terrí- As tendências subjetivistas, relativistas e utilita-
veis desgraças para a vida humana, ameaçada por ristas, hoje amplamente difundidas, apresen-
uma “cultura da morte”. tam-se não simplesmente como posições prag-
A recente encíclica de João Paulo II, “Evange- máticas, como prática comum, mas como con-
lium Vitae”, que traz a data de 25 de março de cepções consolidadas do ponto de vista teorético
1995, inicia seu segundo capítulo com um grito de que reivindicam uma sua plena legitimidade
angústia, que parece brotar da conclusão do pri- cultural e social”.21
meiro capítulo, longamente dedicado às “atuais
ameaças da vida humana”: Desde o início do século passado, os Papas têm
feito denúncias semelhantes: abandonando a “di-

18
Manfredo A. de OLIVEIRA. Ética e práxis histórica. São Paulo: Ática, 1995, p. 165.
19
Idem, ibidem, p. 168.
20
Cf. João Paulo II. Evangelium Vitae, n. 29 (trad. das Ed. Paulinas, São Paulo, 1995, p.59).
21
Cf. João Paulo II. Veritatis Splendor, n. 106 (trad. das Ed. Loyola, São Paulo, 1993, p. 98).

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vina autoridade da Igreja”, o mundo moderno ca- mente grave (que leva o Papa, por um instante, a
minha em direção da “mais repugnante perversida- desesperar de poder vencê-lo)24 entre a concepção
de moral”.22 Qual é, porém, o sentido exato da no- da vida e da verdade, de que a Igreja é portadora,
va denúncia de João Paulo II no contexto atual? e a modernidade ocidental.
O Autor que acabamos de citar (e cujo juízo po- Três equívocos seria necessário dissipar:
demos recusar, mas não os questionamentos que 1) o comunismo não era uma “versão bárbara”
levanta), como estudioso da história recente do ca- da modernidade, mas a sua negação;
tolicismo na Polônia e no Leste Europeu,23 procu- 2) a luta no Leste Europeu não foi entre a re-
ra relacionar a posição do Papa com os aconteci- ligião e a política, mas entre duas “religiões”
mentos de 1989 e o desmoronamento do mundo (a Igreja e o totalitarismo comunista);
comunista. Até essa data, e desde antes de sua as- 3) a crítica da modernidade (feita pela Igreja)
censão ao pontificado romano, Karol Wojtyla con- não coloca automaticamente a Igreja acima
cebia como primeiro dever da Igreja polonesa a de- ou fora da modernidade.
fesa dos direitos humanos. Sob essa bandeira, con- Numa perspectiva mais ampla, que é aquela
vergiram, junto com a Igreja, outras forças da so- que afinal nos interessa, o problema atual da rela-
ciedade polonesa. O dramático enfrentamento com ção entre a Igreja Católica e a democracia parece
o totalitarismo soviético não permitia discussões configurar-se da seguinte forma. Por um lado, o
sobre o conteúdo dos “direitos humanos”, conteú- “magistério’ da Igreja (seu poder ou sua exigência
do que após 1989 se revelou concebido de forma de discernir a verdade e ditar normas de vida) é
diferente pela Igreja e por outros setores da socie- contestado pela crescente tendência, no mundo
dade. Os próprios símbolos da Igreja e da fé cristã ocidental, a considerar a fé como uma questão in-
se tornaram, no contexto da oposição ao regime dividual, subjetiva, que se recusa à institucionaliza-
totalitário, os símbolos de uma luta pela liberdade ção. Por outro lado, a aceitação generalizada (em-
e o pluralismo na Polônia, sem que todos tivessem bora não sem problemas) da democracia no Oci-
a mesma fé nos fundamentos próprios desses sím- dente leva a maioria da população a reivindicar,
bolos. também no campo da religião, um comportamento
Para além da situação específica da Polônia, o análogo (não necessariamente igual!) ao que é
Papa João Paulo II parece ter esperado que a queda exigido pela democracia política.
do comunismo significasse o fim do projeto de Ora, a Igreja justamente não pode simples-
“construir um mundo sem Deus”, logo, uma “volta mente submeter à votação da maioria seus dogmas
à religião”. Mas as sociedades do Leste Europeu, ou o que considera a verdade revelada. Nem a de-
após o comunismo, tomaram o caminho da “mo- mocracia pode ser interpretada, falsamente, como
dernidade secularizada”, do relativismo moral, mais direito da maioria de impor sua vontade às mino-
do que o caminho da Igreja. Além disso, após 1989, rias (ao limite, inclusive, aniquilando-as). Esta ati-
teria ficado claro que o problema não está apenas tude seria exatamente o contrário da democracia e
no Leste Europeu, como não estava apenas no co- a esvaziaria de qualquer conteúdo ético (se ético é
munismo. Há um conflito não resolvido e extrema- o que pressupõe o reconhecimento, em toda pes-

22
Cf. Gregório XVI, Mirari Vos, citado por Patrick MICHEL, Le dernier pape, p. 393, junto com textos semelhantes de Pio IX
(cf. ibidem, notas 9 e 10). O texto de MICHEL faz parte da coletânea dir. por ele e R. LUNEAU, Tous les chemins ne mènent
plus à Rome. Paris, Albin Michel, 1995, p. 390-415.
23
Cf. Patrick MICHEL. Politique et religion. La grande mutation. Paris: Albin Michel, 1994, 175p. (no mesmo livro estão citados
três outros estudos anteriores do Autor sobre a Igreja na Polônia).
24
Após o grito de angústia face ao poder do mal (EV n. 29), o Papa continua a encíclica “Evangelium Vitae” renovando sua pro-
fissão de fé na vitória da vida sobre a morte e expondo, ao mesmo tempo, um programa de luta pela vida, ao qual quer associar
não apenas os cristãos ou os católicos.

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soa humana, de iguais direitos...). moral e, mais radicalmente, priva-a da verifica-


Mas se é fácil chegar a um acordo quanto a es- ção da verdade. De fato, ‘se não existe nenhuma
ses princípios fundamentais ou limites intranspo- verdade última que guie e oriente a ação políti-
níveis, tanto que podem parecer óbvios, menos fá- ca, então as idéias e as convicções políticas po-
cil é chegar a um acordo entre Igreja Católica e opi- dem ser facilmente instrumentalizadas para
nião pública, em muitos países, sobre aborto, an- fins de poder. Uma democracia sem valores
ticoncepcionais, divórcio, eutanásia, educação re- converte-se facilmente num totalitarismo aber-
ligiosa nas escolas públicas, estatuto jurídico da to ou dissimulado, como a história demonstra’
própria Igreja... (Centesimus Annus, 46)”.25
Quem pode decidir tais questões? Num regime
democrático, só o diálogo e o debate público po- Afirmações reforçadas recentemente:
dem levar a uma decisão. A Igreja não pode nem
deve renunciar a expor suas razões e a defender sa- “O primordial e inalienável direito à vida é pos-
biamente as soluções que lhe parecem mais con- to em discussão ou negado com base num voto
formes com a lei de Deus e a dignidade humana. E parlamentar ou na vontade de uma parte – mes-
é por isso que goza de credibilidade em nossa so- mo que seja majoritária – da população. É o re-
ciedade, apesar de que no comportamento indivi- sultado nefasto de um relativismo que reina in-
dual muitos cidadãos prefiram escolher outros ca- contestado (...). Deste modo e para descrédito
minhos. Mas não pode sonhar numa volta a uma de suas regras, a democracia caminha pela es-
“sociedade cristã”, onde a vontade da hierarquia trada de um substancial totalitarismo. O Esta-
eclesiástica, em nome de sua autoridade sagrada, do deixa de ser a ‘casa comum’, onde todos po-
determina as leis, sem passar pelo debate e a apro- dem viver segundo princípios de substancial
vação do povo. Ou seja, apesar da mentalidade re- igualdade, e transforma-se num Estado tira-
lativista hoje reinante, não se deve confundir demo- no, que presume de poder dispor da vida dos
cracia com relativismo, nem sobretudo voltar a mais fracos e indefesos...”.26
preferir à democracia outras formas de governo.
Os temores expressos pelo Papa João Paulo II Temores compreensíveis, mas que poderiam
na “Veritatis Splendor” e na “Evangelium Vitae” induzir em certos católicos uma desconfiança para
são compreensíveis. Escreve: com a democracia – comparada apressadamente
com o totalitarismo – ou uma volta rápida às sim-
“Após a queda, em muitos Países, das ideologias patias para com o autoritarismo político, que por
que vinculavam a política a uma concepção tanto tempo apoiaram? A distinção entre a ordem
totalitária do mundo – sendo o marxismo, a espiritual e a ordem temporal, entre o religioso e o
primeira dentre elas –, esboça-se hoje um risco político, e a própria exigência da transcendência de
não menos grave para a negação dos direitos Deus e da dignidade suprema da pessoa humana
fundamentais da pessoa humana e para a não devem levar o bom cristão a concluir que só a
reabsorção na política da própria inquietação democracia e a liberdade são garantia de eticidade?
religiosa que habita no coração de cada ser Todas as outras formas de regime político são, com
humano: é o risco da aliança entre demo- certeza, caminhos mais curtos para se chegar àqui-
cracia e relativismo ético, que tira à convi- lo que o Papa teme: o Estado tirano e a perversão
vência civil qualquer ponto seguro de referência moral.

25
Cf. João Paulo II. Veritatis Splendor, n. 101 (Loyola, 1993, p. 93-94).
26
Cf. João Paulo II. Evangelium Vitae, n. 20 (Paulinas, 1995, p. 42).

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Conclusões cute o poder sem ética, sem parâmetros”.28


Para concluir, apresentarei três reflexões que Cito o PT porque o considero o partido mais
proponho ao exame crítico e à avaliação de ouvin- empenhado na busca da “ética na política”.
tes e leitores. Se até no PT a ética corre risco, o que será nos
a) Apesar de ter apontado, até agora, exemplos outros partidos? (Infelizmente, a preocupa-
de relações e conflitos entre religião, ética e ção com a ética parece andar em baixa não
política em contextos muito diversos e afas- apenas na política brasileira. A política con-
tados da realidade brasileira, é minha con- temporânea não está, na grande maioria dos
vicção que esses problemas se põem também casos, dividida entre a mera luta pelo poder e
para o Brasil, evidentemente segundo carac- a gestão tecnocrática dos problemas coleti-
terísticas próprias. Ou seja, creio que tam- vos, geralmente sob a pressão dos mais for-
bém entre nós a democracia é mais uma meta tes?).
a alcançar do que uma realidade presente e • Vindo às igrejas, algumas – que demonstram
que o papel das religiões, neste momento, certa eficiência na manipulação dos votos de
longe de ser genuinamente democrático, cor- seus fiéis – parecem inclinadas a vender o vo-
re o risco de ser instrumentalizado a favor de to ao melhor oferente (não preciso citar no-
interesses particulares. A própria opção de- mes...). Dentro da própria Igreja Católica, se
mocrática dos cristãos, e entre eles dos cató- considero a situação da nossa cidade, Belo
licos, está longe de ser clara e firme, como Horizonte, ao lado de uma postura impecável
deveria ser. da hierarquia eclesiástica,29 respeitosa do
Não pretendo aqui demonstrar de forma exaus- pluralismo e da liberdade de voto dos católi-
tiva a tese. Limito-me a sugerir alguns indícios de cos, julgo que se manifestaram sinais de que
uma situação, que outros terão oportunidade de o próprio voto dos católicos se subdivide se-
examinar mais detidamente: gundo a adesão a grupos bem definidos, com
• há poucos dias os jornais davam notícia de interesses e ideologias diferentes, mas escas-
uma pesquisa em 16 países da América Lati- sa preocupação com o “bem comum” e com
na, segundo a qual 79% dos latino-america- a tendência a instrumentalizar a religião mais
nos não consideram a democracia ainda con- do que a evidenciar seu caráter transcendente.
solidada; segundo a mesma pesquisa, o Brasil Acho, portanto, urgente um empenho ativo e
apresenta um dos índices mais baixos de op- lúcido dos cristãos pela democracia.
ção pela democracia (50% preferem a demo-
cracia, 24% o autoritarismo e para 21% tanto b) Como, porém, traçar o caminho, os critérios
faz...);27 desse empenho?
• Segundo a imprensa, o presidente nacional Começando pelos princípios mais gerais, creio
do PT (Partido dos Trabalhadores), José importante reafirmar que o cristão – em particular,
Dirceu, numa reunião de avaliação do pri- o católico – deve adquirir e praticar, consciente e
meiro turno das eleições municipais, realiza- firmemente, o respeito do outro. Parece-me um
da em Belo Horizonte no dia 18 de outubro, primeiro passo, fundamental.
teria reclamado porque “dentro do PT se dis- Formulo essas exigências com as palavras de

27
Cf. Jornal do Brasil, 18/10/1996, p. 14; Folha de São Paulo, 18/10/96, cad. 1, p. 8.
28
Cf. Jornal do Brasil, 19/10/1996, p. 2.
29
Cf. “Carta do Sr. Arcebispo ao Povo de Deus da Arquidiocese de Belo Horizonte refletindo sobre as Eleições Municipais de
1996”, Belo Horizonte, julho de 1996, 4p.

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um mártir desse empenho de solidariedade e res- verdade e eu preciso da verdade dos outros. Ex-
peito do outro, morto há menos de três meses na perimento isso agora com milhares de argelinos
Argélia. Trata-se de dom Pierre Claverie, bispo ca- na partilha da existência e de interrogações que
tólico de Orano, nascido na Argélia de uma família todos nos colocamos. (...) Se após este momento
francesa aos 8 de maio de 1938.30 Num depoimen- de violência e de profundas fraturas da socieda-
to prestado em França, cerca de um ano antes de de, mas também da religião e da identidade,
morrer, dizia: chegarmos a conceber que o outro tem o direito
de existir, que traz uma verdade e é digno de res-
“O repentino aparecer do outro, o reconheci- peito, então não teríamos enfrentado em vão os
mento do outro, a adequação ao outro, torna- perigos a que estamos expostos”.31
ram-se para mim uma obsessão. É provável que
isto tenha estado à origem de minha vocação Quase como conseqüência desse princípio, é
religiosa. Perguntei-me por que, durante toda a evidente que o católico conceberá o seu empenho
minha infância, sendo cristão – não mais do político em termos ecumênicos. Procurará o en-
que outros –, freqüentando igrejas – como ou- tendimento não apenas com outros cristãos, mas
tros, escutando discursos sobre o amor ao pró- com todas as pessoas que em princípio estão dis-
ximo, nunca escutei dizer que o árabe era o meu postas a colaborar na busca do bem comum. Se re-
próximo. Talvez tenha sido dito, mas eu não tomarmos a distinção de Beyer, citada acima no
escutei. Disse para mim mesmo: não mais mu- item 3, isto nos levaria a engrossar as fileiras da
ros, não mais fronteiras, nem divisões. É neces- corrente que Beyer indica como “progressista”.
sário que o outro exista: no caso contrário, va- Gostaria de observar que as teses de Beyer não são
mos nos expor à violência, à exclusão, à recusa. infalíveis e que sua utilidade é sobretudo a de nos
(...) Na minha experiência do fechamento, de- advertir contra os fáceis entusiasmos. A opção que
pois da crise e da emergência do indivíduo, che- Beyer vê como mais ecumênica e mais aberta à mo-
guei à convicção pessoal de que não há huma- dernidade tem suas dificuldades. Com Touraine
nidade senão plural e que, quando pretendemos podemos dizer que ela se funda numa concepção
– no interior da Igreja católica temos disso uma da religião como fé na transcendência mais do que
triste experiência no decorrer da nossa história como defesa de uma tradição. O cristão deve ter,
– possuir a verdade ou falar em nome da huma- também na política, a atitude mais coerente, quan-
nidade, caímos no totalitarismo e na exclusão. to possível, com sua fé. Ora, se Jesus Cristo evita a
Ninguém possui a verdade, cada um a procura. redução da relação religiosa (“dai a Deus...”) à
Há certamente verdades objetivas, mas estão relação política (“dai a César...”), o cristão evitará
além de todos nós e a elas não se pode chegar confundir espiritual e temporal, religião e política.
senão através de uma longa caminhada e re- Mas não deixará de fazer de sua fé uma crítica do
compondo-as pouco a pouco, tomando das (eventual) arbítrio do Estado e uma defesa dos di-
outras culturas e dos outros grupos humanos o reitos da pessoa humana, como testemunharam o
que outros descobriram, procuraram, em seu próprio Jesus e seus discípulos-mártires.
caminho para a verdade. (...) Não se possui a Daí vem a necessidade de um discernimento,

30
Pierre L. Claverie foi assassinado num atentado terrorista no dia 1º de agosto de 1996. O texto que vou citar foi apresentado
oralmente há cerca de um ano e publicado no início de 1996. Utilizo a tradução italiana: Umanità plurale, “Il Regno-
documenti”, 17/1996, p.538-539.
31
No mesmo texto, é notável a análise da ideologização da religião (islâmica) feita pelos reformistas (radicais) e de sua
instrumentalização política. Claverie observa que os conflitos, envolvendo todo o povo argelino, obrigam também todos a se
interrogar sobre qual religião (qual Islã) querem seguir.

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que recentemente o cardeal Martini expressou decisões políticas. Parece-me que o efeito perverso
com as palavras do Eclesiastes (ou Qohélet): “Para ou a “unintended consequence” dessa atitude é
tudo há momento...: tempo de calar e tempo de fa- que, na falta de critérios adequados, os cristãos
lar” (Ecl 3,1.7b).32 Quando a Igreja deve calar? bem intencionados cedam à tentação mais comum
Quando se trata de assuntos que não são da sua entre os políticos: escolher o que parece lhe dar
competência, como por exemplo a escolha de um mais poder imediatamente. Ao contrário, é preciso
partido ou de uma determinada solução institucio- que a inspiração cristã passe por uma mediação
nal. Quando deve falar? Antes de tudo, para co- antropológico-ética (são as palavras do card. Mar-
municar sua palavra profética, para afirmar o pri- tini) e que, depois, no diálogo com todas as forças
mado de Deus e do Evangelho. (E o cardeal reco- políticas, procurem-se a elaboração e o amadure-
menda “preservar com o máximo cuidado e quase cimento de decisões propriamente políticas, ade-
com ciúme a diferença e a peculiaridade da Palavra quadas ao contexto específico e coerentes com os
cristã”). E quando se exige que a Igreja fale de éti- critérios éticos que as inspiraram.
ca, inclusive a respeito de escolhas políticas, que A outra indicação que me parece honesto tirar
põem em risco não a Igreja, mas o ethos civil e a de- é que a própria Igreja deve ser, ela mesma, em suas
mocracia. Não cabe aqui analisar as razões que o comunidades, uma escola de ética democrática.33
cardeal expõe para justificar sua convicção de que, Não se trata de adotar mecanismos (aliás, muitas
neste momento, na Itália, a Igreja deve falar de éti- vezes, pobres) de caráter parlamentar nas comuni-
ca política, porque “está em perigo a natureza mes- dades eclesiais, mas de educá-las ao respeito do
ma da política e, logo, da democracia”. Basta saber outro, à co-responsabilidade, à participação, ao
que ele recusa a indiferença, o silêncio, mesmo “a exercício da liderança em espírito de serviço, ao
neutralidade desapegada ou a tranqüila eqüidis- conhecimento das necessidades da comunidade
tância”. maior (o bairro, a região, a cidade) e especialmente
das necessidades e dos anseios dos menos favore-
c) É possível descer dos critérios gerais às in- cidos. Assim a Igreja tem, de fato, preparado “ato-
dicações concretas. O cardeal Martini se ar- res sociais” com atuação destacada em sindicatos,
riscou, na segunda parte de seu discurso, a partidos, obras sociais, organismos representati-
compor uma espécie de decálogo de como a vos. Há quem pense que a participação política de-
Igreja e os cristãos devem hoje “falar” (inter- mocrática dos católicos no nosso século só flores-
vir) na política. ceu realmente lá onde, há dois ou três séculos, a
Dele tiro uma indicação geral, que considero Igreja preparava “atores sociais” através de “irman-
preciosa e pouco atendida pelo “discurso” político dades”, “associações” ou “congregações”, em que
da maioria dos cristãos. É a necessidade de não se aprendia a descobrir a existência do outro e a
pretender deduzir diretamente do Evangelho as prática do serviço e da solidariedade.34

32
Cf. Carlo Maria MARTINI. Tempo per tacere, tempo per parlare. “Il Regno-documenti”, 1/1996, p.31-34; trad. bras. na revista
Perspectiva Teológica, n. 75 (1996), p. 221-228.
33
Sobre a democracia interna na Igreja, cf. a conclusão (p. 217-219) de Jean-Yves CALVEZ e Henri TINCQ, o. cit. (cf. acima,
nota 6) e o livro de Joseph RATZINGER e Hans MAIER. Democracia na Igreja. São Paulo, Ed. Paulinas, 1976, 82 p. (o original
alemão é de 1970).
34
Cf. Louis CHÂTELLIER. L’Europe des dévots. Paris: Flammarion, 1987; tr. it.: “L’Europa dei devoti”. Milano, Garzanti, 1988,
278p.

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Referências bibliográficas

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19. RARZINGER, Joseph, MAIER, Hans. Democracia na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1976. 82p.
20. SARTORI, Giovanni. Democrazia: cosa é. Milano: Rizzoli, 1993. 338p.
21. TERRIN, Natale A. Il sacro off limits: l’esperienza religiosa e il suo travaglio. Bologna: EDB, 1995. Cap. 2:
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22. TOURAINE, Alain. O que é democracia?. Petrópolis: Vozes, 1996. 286p.
23. VAZ, Henrique C. de Lima. Democracia e dignidade humana. Síntese: Nova Fase, n. 44, p. 22, 1988.

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Horizonte, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 59-70, 1º sem. 1997

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